Daqui... - História Oral
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Daqui... - História Oral
HENRY MILLER TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO BIBLIOTECA VISÃO Título: Trópico de Capricórnio Título original: Tropic of Capricorn Autor: Henry Miller Tradução: Fernanda Pinto Rodrigues Tradução cedida por Livros do Brasil © 1961 by Greenleaf Classics © 2000 BIBLIOTEX, S. L. para esta edição © 2000 ABRIL/CONTROLJORNAL, por acordo com Bibliotex, S. L. para esta edição Editor: Bárbara Palia e Carmo Capa: Carlos Bravo Ilustração da capa: André Kano Coordenação editorial: Camilo Fernandez Gonzalez coma colaboração de M.” Eduarda Vasallo Pereira e Ignacio Vazquez Diéguez Revisão: José António Almeida Produção gráfica: João Paulo Font Impressão e encadernação: Printer, Industria Gráfica, S. A. , Ctra. N-II, Km. 600 l 08620 Sant Vicenç dels Horts (Barcelona’ Impresso em Espanha f Data de impressão: Junho de 2000 ,’ Todos os direitos reservados \ ISBN: 972-611-638-4 ’i Dep. Legal: B. 28.786-2000 Tiragem: 75 000 exemplares Abril/Controljornal, uma empresa do grupo Abril/Controljornal/Edipresse Largo da Lagoa, 15C 2795-116 Linda-a-Velha - Portugal De venda conjunta e inseparável da revista Visão HENRY MILLER TRÓPICO DE CAPRICÓRNIO acj Abril Controljormal Edipresse BIBLIOTECA VISÃO Introdução UMA HISTÓRIA CALAMITATUM (A História dos Meus Infortúnios) Muitas vezes o coração dos homens e das mulheres é excitado, assim como confortado, nos seus desgostos, mais pelo exemplo do que pelas palavras. Portanto, porque também conheci algum consolo graças a conversas tidas comalguém que foi disso testemunha, estou agora decidido a escrever acerca dos sofrimentos originados pelos meus infortúnios, para os olhos de alguém que, embora ausente, é em si mesmo e sempre um consolador. Faço-o para que, ao comparardes os vossos desgostos comos meus, possais descobrir que, em verdade, os vossos não são nada, ou no máximo são insignificantes, e assim consigais suportá-los mais facilmente. PEDRO ABELARDO No trolley ovariano Uma vez entregada a alma, segue-se tudo comuma certeza infalível, mesmo no meio do caos. Desde o princípio nunca foi outra coisa senão caos: era um fluido que me envolvia, que eu aspirava através das guelras. Nos substratos, onde a Lua brilhava firme e opaca, o ambiente era suave e fecundante; por cima disso, reinavam a selva e a desarmonia. Não tardei a ver em tudo o oposto, a contradição, e entre o real e o irreal a ironia, o paradoxo. Era o meu próprio pior inimigo. Não havia nada que desejasse fazer que me importasse de não fazer. Já em criança, quando não me faltava nada, queria morrer: queria render-me porque não via sentido nenhum em lutar. Sentia que nada seria provado, comprovado, acrescentado ou subtraído pelo facto de continuar uma existência que não pedira. Todos quantos me cercavam eram falhados, ou, se não eram falhados, eram ridículos. Especialmente os bem-sucedidos. Os bem-sucedidos chateavam-me ate às lágrimas. Era cornpreensivo até ao exagero, mas não era a compreensão que assim me tornava. Era uma qualidade puramente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples vista da miséria humana. Nunca ajudava ninguém coma esperança de que isso servisse para alguma coisa; ajudava porque não era capuz de proceder de outro modo. Querer mudar o estado das coisas parecia-me vão, inútil; estava convencido de que nada mudaria, a não ser que se verificasse uma mudança de intenções, e quem poderia modificar o coração dos homens? De vez em quando, um amigo convertia-se, o que me causava vómitos. Tinha tanta necessidade de Deus como Ele de mini, e costumava dizer para comigo que, se havia Deus, me encontraria comEle calmamente e Lhe cuspiria na cara. O irritante era que, ao primeiro rubor, as pessoas costumavam tomar-me por born, amável, generoso, leal e fiel. Talvez possuísse essas virtudes, mas se possuía era por ser indiferente: podiame dar ao luxo de ser born, amável, generoso, leal, etc., porque estava isento de inveja. A inveja era a única 10 coisa de que nunca tinha sido vítima. Nunca invejei nada nem ninguém. Pelo contrário, só senti compaixão por tudo e todos. Desde o princípio que me devo ter treinado para não querer nada commuita veemência. Desde o princípio que fui independente, de uma maneira falsa. Não tinha necessidade de ninguém porque queria ser livre, livre para fazer e para dar só de acordo comos meus caprichos. Mal esperavam ou exigiam alguma coisa de mim, recusava e daí não arrancava. Foi essa a forma que a minha independência assumiu. Por outras palavras, fui corrupto, fui corrupto desde o princípio. Dir-se-ia que a minha mãe me dera um veneno como leite, um veneno que nunca me abandonou o organismo, apesar de ter sido desmamado cedo. Parece que até mesmo quando ela me desmamou me mostrei completamente indiferente. A maioria das crianças revoltam-se, ou fingem que se revoltam, mas eu estive-me nas tintas. Ainda usava cueiros e já era filósofo. Era contra a vida por princípio. Que princípio? O princípio da inutilidade. À minha volta toda a gente lutava e se debatia. Pessoalmente, nunca fiz sequer um esforço. Se dava a impressão de que o fazia, era apenas para agradar a alguém; no fundo, estava-me marimbando. E se forem capazes de me dizer porque era assim, desmenti-los-ei, pois nasci comuma pecha má e nada a pode eliminar. Mais tarde, quando já era crescido, ouvi dizer que tiveram um trabalhão para me tirar do útero. Compreendo perfeitamente que assim fosse. Incomodar-me para quê? Para quê sair de um lugar agradável e quentinho, de um nicho acolhedor, onde tudo me era oferecido gratuitamente? A minha mais antiga recordação é do frio, da neve e do gelo nas valetas, da geada nos vidros das janelas e do suor gelado das paredes verdes da cozinha. Porque vivem as pessoas em agrestes climas das zonas temperadas, como erradamente lhes chamam? Porque são naturalmente idiotas, preguiçosas, naturalmente cobardes. Até cerca dos dez anos nunca imaginei que existissem países «quentes», lugares onde não era preciso suar para ganhar a vida nem tremer de frio e fingir que isso era tónico e revigorante. Onde há frio há pessoas que se esfalfam a trabalhar e que, quando têm filhos, lhes pregam o evangelho do trabalho - o que, no fundo, não é mais do que a doutrina da inércia. Os meus progenitores eram inteiramente 11 nórdicos, o que equivale a dizer idiotas. Perfilhavam todas as ideias erradas que jamais têm sido expostas. Entre elas contava-se a doutrina do asseio, para já não falar da da honradez. Eram penosamente asseados, mas por dentro fediam. Nunca, nem uma única vez, tinham aberto a porta que conduz à alma; nunca, nem uma única vez, lhes passou pela cabeça dar um salto às cegas, no escuro. Depois do jantar, os pratos eram imediatamente lavados e arrumados no armário; o jornal, depois de lido, era muito bem dobrado e arrumado numa prateleira; a roupa, depois de lavada, era passada a ferro, dobrada e guardada em gavetas. Preparava-se tudo para amanhã, mas o amanhã nunca chegava. Õ presente era apenas uma ponte, e eles continuam a gemer, como o mundo geme, e não há um idiota que se lembre de atirar a ponte pelos ares. No meu azedume, procuro muitas vezes razões para os condenar, a fim de melhor me condenar. Sim, porque eu também sou como eles, em muitas coisas. Durante muito tempo pensei que escapara, mas à medida que o tempo passa verifico que não sou melhor, que sou até um bocadinho pior, pois vejo mais claramente do que eles jamais viram e, contudo, sou impotente, incapaz de modificar a minha vida. Quando olho para trás, para o já vivido, tenho a impressão de que nunca fiz nada de minha livre vontade e sim, sempre, por pressão de outros. Ê costume considerarem-me um tipo aventureiro, mas nada poderia estar mais longe da verdade. As minhas aventuras foram sempre casuais, foram-me sempre impostas, foram sempre mais suportadas do que empreendidas. Sou da própria essência desse altivo e fanfarrão povo nórdico que nunca teve a mínima noção da aventura, mas que, não obstante, devastou a Terra, a virou do avesso, espalhando por toda a parte ruínas e relíquias. Espíritos inquietos, mas não aventureiros. Espíritos atormentados, incapazes de viver no presente. Vergonhosos cobardes todos eles, incluindo eu. Há apenas uma grande aventura. E essa é para o interior, rumo ao eu, e para essa não contam tempo nem espaço, nem tão-pouco feitos. Diversas vezes, de tantos em tantos anos, estive na iminência de fazer essa descoberta, mas, caracteristicamente, consegui sempre fugir aos encartes. Quando tento encontrar uma boa desculpa para isso, só consigo pensar no ambiente, nas 12 ruas que conhecia e nas pessoas que as habitavam. Não sou capaz de me lembrar de nenhuma rua da América, nem de nenhuma pessoa moradora em tal rua, que pudesse conduzir alguém à descoberta do eu. Percorri as ruas de muitos países do mundo, mas em lado algum me senti tão degradado e humilhado como na América. Penso em todas as ruas da América reunidas e formando uma imensa cloaca, uma cloaca do espírito para a qual tudo é aspirado e levado na enxurrada para a merda eterna. Sobre essa cloaca o espírito do trabalho agita uma vara mágica; irrompem lado a lado palácios e fábricas, fábricas de munições e de produtos químicos, siderurgias e sanatórios, prisões e manicómios. Todo o continente é um pesadelo que causa a maior miséria ao maior número. Fui um deles, uma entidade isolada no meio da maior congregação de riqueza e de felicidade (riqueza estatística e felicidade estatística), mas nunca conheci nenhum homem que fosse verdadeiramente rico ou verdadeiramente feliz. Eu, pelo menos, sabia que era infeliz e pobre, que estava fora do ritmo e da linha. Era essa a minha única consolação, a minha única alegria. Mas não chegava. Teria sido melhor para a minha paz de espírito, para a minha alma, se tivesse manifestado a minha rebelião abertamente, se tivesse ido para a cadeia por causa dela e se lá tivesse apodrecido e morrido. Teria sido melhor se, como o louco Czolgosz, tivesse abatido a tiro algum born presidente McKinley, alguma alma insignificante e bondosa como ele que nunca fizera o mínimo mal a ninguém. Sim, porque no fundo do meu coração havia assassínio: queria ver a América destruída, arrasada de alto a baixo. Queria ver isso acontecer por pura vingança, para castigo dos crimes cometidos contra mim e contra outros como eu, que nunca foram capazes de erguer a voz e exprimir o seu ódio, a sua rebelião, a sua legítima sede de sangue. Era o produto maldito de um solo maldito. Se o eu não fosse imperceptível, o eu acerca do qual escrevo há muito teria sido destruído. A alguns isto poderá parecer uma invenção, mas seja o que for que eu imagine tenha acontecido, aconteceu realmente, pelo menos a mim. A história poderá negá-lo, uma vez que não representei qualquer papel na história do meu povo, mas mesmo que tudo quanto digo esteja errado e imbuído de preconceitos, de despeito e de male13 volência, mesmo que eu seja um mentiroso e um envenenador, mesmo assim é a verdade e terá de ser engolida. Quanto ao que aconteceu... Tudo quanto acontece, desde que tenha significado, é por natureza contraditório. Até aquela para quem isto é escrito aparecer, imaginei que algures no exterior, na vida, como dizem, se encontrava a solução para todas as coisas. Quando a conheci, pensei que deitava as mãos à vida e a agarrava, que agarrava qualquer coisa em que podia ferrar os dentes. Em vez disso, perdi por completo o domínio da vida, fugiu-me das mãos. Estendi os braços à procura de qualquer coisa a que me pudesse prender, e não encontrei nada. Mas, embora ao estender os braços, ao fazer o esforço para agarrar, para me prender, ficasse tão sem nada como antes, embora isso acontecesse, o certo é que encontrei qualquer coisa que não procurara: encontrei-me. Descobri que o que desejara a vida inteira não fora viver - se o que os outros fazem se chama viver - e, sim, exprimir-me. Compreendi que nunca tivera o mínimo interesse em viver, mas apenas nisto que estou a fazer agora, em qualquer coisa que é paralela à vida, que, simultaneamente, faz parte da vida e a ultrapassa. O que é verdade pouco ou nada me interessa, nem tão-pouco o que é real; só me interessa o que imagino ser, o que asfixiara toda a vida a fim de poder viver. Se morrer hoje ou amanhã ser-me-á indiferente, sempre foi; o que me incomoda, o que me ulcera, é que mesmo hoje, após anos de esforço, não possa dizer o que penso e sinto. Desde a infância que só me vejo a seguir a pista desse espectro, sem gozar nem desejar nada além desse poder, dessa faculdade. Tudo o mais é uma mentira - é uma mentira tudo quanto jamais disse ou fiz fora dessa ambição... e procedi assim a maior parte da minha vida. Era essencialmente uma contradição, como se costuma dizer. As pessoas consideravam-me sério e magnânimo, ou alegre e estouvado, ou sincero e fervoroso, ou negligente e descuidado. Era todas essas coisas ao mesmo tempo e, para além delas, era mais alguma coisa, alguma coisa de que ninguém suspeitava e eu menos do que toda a gente. Aos seis ou sete anos costumava sentar-me à bancada do meu avô e ler-lhe enquanto ele cosia. Lembro-me vivamente do meu avô nos momentos em que, comprimindo o ferro quente contra a costura 14 de um casaco, parava, de pé, comuma das mãos por cima da outra, na pega do ferro, e olhava pela janela, sonhadoramente. Lembro-me melhor da expressão do seu rosto, quando sonhava assim, do que do conteúdo dos livros que lia, das conversas que tínhamos ou das minhas brincadeiras na rua. Costumava perguntar a mim mesmo que sonharia ele, que seria que o levava para fora de si próprio. Por mim, ainda não aprendera a sonhar acordado, estava sempre lúcido, no momento presente e todo inteiro. Mas o sonhar do meu avô fascinava-me. Sabia que ele não tinha qualquer relação como que estava a fazer, que não dedicava o mínimo pensamento a nenhum de nós, que estava sozinho e, estando sozinho, era livre. Eu nunca estava sozinho, principalmente quando não me encontrava commais ninguém. Parecia-me estar sempre acompanhado: era como uma migalhinha de um grande queijo - que era o mundo, suponho, embora nunca me detivesse a pensar nisso. Sei, porém, que nunca existi separadamente, que, por assim dizer, nunca pensei em mim como sendo o grande queijo. Por isso, até mesmo quando tinha motivos para me sentir triste, para protestar, para chorar, tinha a ilusão de participar numa tristeza comum, universal. Quando chorava, o mundo inteiro estava a chorar - ou, pelo menos, assim imaginava. Mas chorava raramente. A maior parte das vezes sentia-me feliz, ria-me, divertia-me. Divertia-me porque, como já disse, estava-me realmente nas tintas para tudo. Estava convencido de que, se as coisas me corriam mal, corriam mal a toda a gente. E, de modo geral, as coisas só corriam mal quando lhes ligávamos demasiada importância. Adquiri esta convicção muito novo. Lembro-me, por exemplo, do caso do meu amiguinho Jack Lawson. Passou um ano inteiro na cama, a sofrer os maiores tormentos. Era o meu melhor amigo pelo menos assim o diziam. Bem, ao princípio talvez tenha tido pena dele e talvez o visitasse de vez em quando para saber como ia; mas passado um mês ou dois tornei-me verdadeiramente insensível ao seu sofrimento. Disse para comigo que ele devia morrer e que quanto mais depressa morresse melhor e, chegado a essa conclusão, tratei de agir em conformidade isto é, esqueci-o rapidamente, abandoneio ao seu destino. Tinha só doze anos, nessa altura, mas lembro-me de que me senti orgulhoso da minha decisão. E também me lembro do 15 funeral, da vergonha que foi. Lembro-me dos amigos e parentes todos reunidos à volta do caixão, a gritarem como macacos doentes. A mãe, sobretudo, chateou-me a valer. Era uma criatura muito rara, muito espiritual - cientista cristã, julgo -, e, embora não acreditasse na doença nem na morte, fez tal escarcéu que o próprio Jesus Cristo se teria levantado da sepultura, se aquilo fosse comele. Mas o seu adorado Jack não se levantou! Não, Jack continuou frio como gelo, rígido e cego e surdo a todos os apelos. Estava morto e acabou-se. Eu sabia-o e sentia-me contente comisso. Não desperdicei lágrimas por esse motivo. Não podia dizer que estivesse melhor assim porque, no fim de contas, o «ele» desaparecera. Ele partira e levara consigo os sofrimentos que suportara e que, inconscientemente, infligira aos outros. «Ámen», pensei e, ligeiramente histérico, dei um peido sonoro, mesmo ao lado do caixão. Lembro-me de que esta história de me importar demasiado só começou mais ou menos quando me apaixonei pela primeira vez. Mas mesmo então não me importei o suficiente. Se me tivesse importado deveras não estaria agora a escrever a esse respeito, teria morrido como coração despedaçado ou ter-me-ia esforçado para conseguir o que queria. Foi uma experiência dolorosa, pois ensinou-me a viver uma mentira. Ensinou-me a sorrir quando não me apetecia sorrir, a trabalhar não acreditando no trabalho, a viver sem ter nenhuma razão para continuar vivo. Mesmo depois de a perder fiquei como condão de fazer aquilo em que não acreditava. Foi tudo um caos desde o princípio, como já disse. Mas por vezes estive tão perto do centro, do próprio fulcro da confusão, que me espanta não ter rebentado tudo à minha volta. É costume atirar comas culpas de tudo para cima da guerra. Pois eu digo que a guerra não teve nada a ver comigo, coma minha vida. Numa época em que outros arranjavam lugares confortáveis, eu arranjava um emprego miserável após outro, sem nunca ganhar o suficiente para me aguentar. Era despedido quase tão depressa quanto era admitido. Não me faltava inteligência, mas inspirava desconfiança. Aonde quer que fosse fomentava a discórdia, não por ser idealista ou coisa parecida, mas porque era como um holofote a revelar a estupidez 16 e a inutilidade de tudo. Além disso, não prestava como lambe-cus. Isso marcava-me, sem dúvida. Quando pedia um emprego, as pessoas percebiam logo que tanto me fazia consegui-lo como não. E, claro, geralmente não o conseguia. Mas passado algum tempo o simples procurar emprego tornouse uma actividade, um passatempo, por assim dizer. Apresentava-me e oferecia-me praticamente para tudo. Tratava-se de uma maneira de matar tempo, uma maneira que, tanto quanto me parecia, não era pior do que o próprio trabalho. Era patrão de mim mesmo e dispunha do meu tempo, mas, ao contrário dos outros patrões, originava a minha própria ruína, a minha própria bancarrota. Não era uma companhia, nem um trust, nem um estado, nem uma federação, nem uma política das nações... Se me parecia comalguma coisa, era comDeus. Isto foi assim mais ou menos desde o meio da guerra até... bem, até ao dia em que caí na armadilha. Finalmente chegou uma altura em que desejei desesperadamente um emprego. Precisava dele. Como não podia perder nem mais um minuto, decidi aceitar o mais reles emprego da terra, o de boletineiro. Entrei na secção de empregos da companhia telegráfica - a Cosmodemonic Telegraph Company - quase ao fim do dia, disposto a fazer o sacrifício. Tinha vindo da biblioteca pública e levava debaixo do braço uns calhamaços volumosos acerca de economia e metafísica. Para meu grande espanto, recusaram-me o emprego. O tipo que me deu coma tampa era um meia-leca que tomava conta do telefone. Pareceu tomar-me por estudante universitário, embora se visse perfeitamente pelo impresso que eu preenchera que deixara de estudar havia muito tempo. Até me enfeitara, no impresso, comum doutoramento pela Universidade de Columbia. Mas, aparentemente, o meia-leca que me recusou não reparou nisso, ou então reparou e desconfiou. Senti-me furioso, tanto mais que, pela primeira vez na vida, tinha verdadeiro empenho em me empregar. E não só por isso, mas também porque engolira o meu orgulho, que , em certos aspectos peculiares é muito grande. Claro que a mi- \ nhã mulher acolheu a notícia como habitual sorriso desde- l nhoso. Tinha pedido aquele emprego apenas como um gesto, l declarou-me. Fui para a cama a pensar no assunto, ainda ma- j 17 goado, e como passar da noite senti-me cada vez mais irritado. O facto de ter mulher e filha para sustentar não me incomodava por aí além; já tinha percebido, e bem, que não se davam empregos porque quem os pedia tinha família para sustentar. Não, o que me envenenava, me roía, era teremme recusado a mim, Henry V. Miller, um indivíduo competente e superior que solicitara o mais baixo emprego do mundo. Isso consumia-me. Não me conseguia resignar. De manhã levantei-me cedo, barbeei-me, vesti a melhor roupa que tinha e dirigi-me a toda a pressa para o metropolitano. Fui imediatamente ao escritório principal da companhia telegráfica... subi ao vigésimo quinto andar, ou lá o que era, onde o presidente e os vice-presidentes tinham os seus cubículos. Disse que desejava falar como presidente. Claro que o presidente estava, ou fora da cidade, ou demasiado ocupado para me receber, mas eu não me importava de falar como vice-presidente ou, de preferência, como seu secretário. Falei como secretário do vice-presidente, um tipo de ar inteligente e atencioso, e disse-lhe o que tinha a dizer. Falei correctamente, sem excessivo calor, mas dando-lhe a entender que não correriam comigo comfacilidade. Quando ele pegou no telefone e pediu que ligassem ao director-geral, pensei que era uma farsa, que iam empurrar-me assim de uns para os outros até me fartar. Mas mal o ouvi falar mudei de opinião. Quando cheguei ao gabinete do director-geral, que ficava noutro edifício na periferia, estavam à minha espera. Sentei-me numa confortável poltrona de couro e aceitei um dos grandes charutos que me ofereceram. O indivíduo pareceu-me vitalmente interessado no assunto e pediu-me que lhe contasse tudo, até ao mínimo pormenor, de orelhas arrebitadas para captar o mais leve vestígio de informação susceptível de justificar qualquer coisa que estava a ganhar forma dentro da sua carola. Compreendi que, por inesperado acaso, lhe estava a prestar um favor. Consenti, por isso, que me fosse caçando as palavras de acordo coma sua fantasia, mas sem deixar de estar atento ao lado de que soprava o vento. À medida que a conversa prosseguia, percebi que o tipo se interessava cada vez mais por mim. Finalmente alguém me demonstrava um pouco de confiança! Não precisei de mais nada para me lançar numa das minhas vias preferidas. Sim, 18 porque após anos de caça ao emprego tornara-me naturalmente perito: sabia não só o que não devia dizer, mas também o que devia dar a entender, insinuar. O adjunto do director-geral não tardou a ser chamado e convidado a escutar a minha história. Claro que, entretanto, eu já sabia qual era a história. Tinha compreendido que Hymie - «o judeuzito», como o director-geral lhe chamava - não tinha nada que se armar em gerente do pessoal. Hymie usurpara tal prerrogativa, até aí percebi eu. Também percebi que Hymie era judeu e que os judeus não estavam nas boas graças do directorgeral - nem de Mr. Twilliger, o vice-presidente, que era uma fonte de aborrecimentos para o director-geral. Talvez Hymie, «o imundo judeuzinho», fosse o culpado da elevada percentagem de judeus da força de boletineiros. Talvez fosse Hymie quem, na realidade, contratava o pessoal no escritório de empregos - em Sunset Place, como diziam. Percebi tratar-se de uma excelente oportunidade para Mr. Clancy, o director-geral, tirar do poleiro um tal Mr. Burns que, segundo me informou, era gerente do pessoal havia cerca de trinta anos e, ao que parecia, estava a tornar-se indolente e descuidado. A conferência durou diversas horas. Antes de terminar, Mr. Clancy chamou-me de parte e informou-me de que ia fazer de mim o chefe daquela história. Antes porém de me confiar o cargo pedia-me como especial favor, e também para me servir de uma espécie de aprendizado que me seria vantajoso, que trabalhasse uns tempos como boletineiro especial. Receberia o ordenado de gerente do pessoal, o qual me seria pago por uma conta à parte. Em resumo, andaria de escritório para escritório e observaria como as coisas eram dirigidas por toda a gente. Faria um relatoriozinho comas minhas observações, de tempos a tempos, e uma vez por outra passaria por sua casa, à socapa, e travaríamos uma pequena conversa acerca do modo como as coisas corriam nas cento e uma sucursais que a Cosmodemonic Telegraph Company tinha na cidade de Nova Iorque. Por outras palavras, seria espião durante uns meses e depois passaria a dirigir o pessoal. Talvez até me nomeassem director-geral, um dia, ou vice-presidente... Era uma oferta tentadora, apesar de embrulhada em muita merda. Aceitei. Passados poucos meses estava sentado na Sunset Place 19 a admitir e a despedir como um demónio. Assim Deus me ajude como aquilo era um verdadeiro matadouro. Não fazia sentido absolutamente nenhum. Era um desperdício de homens, de material e de esforço, uma farsa hedionda representada comum pano de fundo de suor e miséria. Mas, assim como aceitara espiar, assim aceitei admitir e despedir, e tudo o mais que isso implicava. Dizia «sim» a tudo. Se o vice-presidente decretava que não deviam ser admitidos aleijados, eu não admitia aleijados. Se o vice-presidente dizia que todos os boletineiros commais de quarenta e cinco anos deviam ser despedidos sem aviso prévio, eu despedia-os sem aviso prévio. Fazia tudo quanto me mandavam fazer, mas de maneira que eles o pagassem. Quando havia greve, cruzava os braços e esperava que terminasse, mas primeiro tratava de os fazer perder umas boas massas. Todo o sistema estava tão podre e era tão desumano, tão irremediavelmente corrupto e complicado, que seria preciso um génio para lhe insuflar um certo sentido ou uma certa ordem, para já não falar em bondade ou consideração humanas. Tinha pela frente todo o sistema americano do trabalho, que está podre por dentro e por fora. Era a quinta roda da carruagem e nenhum dos lados tinha qualquer serventia para mim, a não ser para me explorar. Na realidade, toda a gente estava a ser explorada: o presidente e a sua seita pelos poderes invisíveis, os empregados pelo público, etc., por aí fora, através de toda a rede. Do meu poleirozinho em Sunset Place tinha uma vista geral de toda a sociedade americana. Era como uma página tirada da lista telefónica. Alfabeticamente, numericamente e estatisticamente, fazia sentido. Mas quando a olhávamos de perto, quando examinávamos as páginas separadamente, ou os componentes separadamente, quando examinávamos um só indivíduo e o que o constituía, o ar que respirava, a vida que levava e os riscos que corria, então víamos algo tão sujo e degradante, tão baixo, tão miserável, tão completamente desesperado e sem sentido, que era pior do que olhar para um vulcão. Via-se toda a vida americana: economicamente, politicamente, moralmente, espiritualmente, artisticamente, estatisticamente e patologicamente. Parecia um grande cancro sifilítico num caralho gasto. Na realidade, parecia ainda pior do que isso, pois já nem se conseguia ver nada que se assemelhasse a um caralho. Talvez no 20 passado aquela coisa tivesse tido vida, produzido qualquer coisa, dado pelo menos um momento de prazer, uma emoção momentânea. Mas vista de onde eu a via parecia mais podre do que o mais bichado dos queijos. Só admirava que o pivete não os matasse... Tenho falado sempre no passado, mas, claro, agora é o mesmo, ou talvez um pouco pior. Pelo menos agora o fedor não é sequer disfarçado. Quando Valeska entrou em cena já eu contratara diversos corpos de exército de boletineiros. O meu escritório em Sunset Place era como um esgoto descoberto - e cheirava como tal. Enterrara-me na trincheira da linha da frente e era alvejado de todos os lados ao mesmo tempo. Para começar, o homem a quem tirara o lugar morreu como coração despedaçado poucas semanas depois da minha chegada. Aguentou apenas o tempo suficiente para me introduzir nos meandros e depois esticou. As coisas aconteciam tão depressa que eu não tinha sequer tempo para sentir remorsos. A partir do momento em que chegava ao escritório, era um longo pandemónio pegado, sem uma interrupção. Uma hora antes da minha chegada - chegava sempre atrasado - já o escritório estava cheio de candidatos. Tinha de abrir caminho pela escada acima e de forçar literalmente a passagem, para chegar à secretária. Antes de tirar o chapéu tinha de atender uma dúzia de telefonemas. Havia três telefones na minha secretária e tocavam todos ao mesmo tempo. Arrasavam-me antes mesmo de me poder sentar. Nem sequer havia tempo de ir ao cagatório antes das cinco ou seis horas da tarde. A situação de Hymie ainda era pior do que a minha, pois estava preso ao telefone. Estava lá das oito da manhã às seis da tarde, a movimentar «waybills». Um «waybill» era um boletineiro emprestado por uma sucursal a outra durante um dia ou parte de um dia. Nenhuma das cento e uma sucursais dispunha de pessoal completo. Nunca. Hymie tinha de jogar xadrez comos «waybills» enquanto eu trabalhava como um doido para colmatar as brechas. Se um dia, por milagre, conseguia preencher todas as vagas, na manhã seguinte a situação voltava exactamente ao mesmo, ou pior. Talvez vinte por cento da força era fixa; o resto era madeira flutuante. Os fixos enxotavam os outros. Ganhavam quarenta a cinquenta dólares por semana, às vezes sessenta ou setenta e s, cinco, e às vezes até cem dólares por semana, o que equivale \ 21 a dizer que ganhavam muito mais do que os empregados e, não raro, até que os gerentes. Quanto aos adventícios, tinham dificuldade em ganhar dez dólares por semana. Alguns trabalhavam uma hora e iam-se embora, muitas vezes depois de terem deitado uma remessa de telegramas no caixote do lixo ou pela pia abaixo. E quando se iam embora queriam receber imediatamente, o que era impossível, pois coma complicada contabilidade vigente só se conseguia saber o que um boletineiro ganhara ao fim de dez dias, pelo menos. Ao princípio, convidava o candidato a sentar-se a meu lado e explicava-lhe tudo, pormenorizadamente. Fazia-o até perder a voz. Não tardei, porém, a aprender a poupar as forças para as necessárias descomposturas. Para começar, quase todos os rapazes eram mentirosos natos e às vezes vigaristas, ainda por cima. Muitos deles já tinham sido admitidos e despedidos uma quantidade de vezes. Alguns consideravam aquele trabalho uma maneira de arranjarem outro emprego, pois levava-os a centenas de escritórios onde, caso contrário, nunca poriam os pés. Felizmente, McGovern, o ex-recluso que guardava a porta e distribuía os boletins de inscrição, tinha olhar fotográfico. Havia também os grandes dossiers, atrás de mim, nos quais estavam registados todos os que por ali tinham passado. Parecia um arquivo policial. As fichas estavam cheias de observações a tinta vermelha, denunciadoras desta ou daquela delinquência. A julgar pelo que saltava aos olhos, encontrava-me em maus lençóis. Nome sim, nome não, havia um roubo, uma fraude, uma zaragata, ou demência, ou perversão, ou idiotice. «Cuidado, Fulano é epiléptico!» «Não contrate este homem; é negro!» «Atenção, X esteve em Dannemora - ou em SingSing.» Se eu fosse dado a formalidades, não admitiria ninguém. Tinha de aprender depressa, e não através dos cadastros nem dos que me rodeavam e, sim, pela experiência. Havia mil e um pormenores pelos quais avaliar um candidato: eu precisava de entrar comtodos em linha de conta, num ápice, porque num curto dia, mesmo que um tipo seja tão rápido como Jack Robinson, só se pode admitir um certo número e não mais. E por muitos que eu admitisse nunca chegavam. No dia seguinte recomeçava tudo do princípio. Sabia que alguns deles durariam apenas um dia, mas tinha de os admitir mesmo assim. O sistema 22 estava errado de ponta a ponta, mas não era a mim que cornpetia criticá-lo. O que me competia era admitir e despedir. Encontrava-me no centro de um disco giratório que rodava tão velozmente que nada se imobilizava. O que fazia falta era um mecânico, mas, segundo a lógica dos gajos importantes de cima, não estava nada errado no mecanismo; pelo contrário, estava até tudo porreirinho. Enfim, as coisas estavam fora da ordem apenas temporariamente, diziam. E o facto de as coisas estarem temporariamente fora da ordem atraía epilepsia, roubo, vandalismo, perversão, negros, judeus, putas e tudo o mais - e às vezes também greves e lockouts. Então, de acordo coma tal lógica, pegava-se numa grande vassoura e limpava-se o estábulo à vassourada, ou pegava-se em cacetes e armas e, à porrada, metia-se um bocado de senso na cabeça dos pobres idiotas que sofriam da ilusão de que as coisas estavam fundamentalmente erradas. De vez em quando, era born falar de Deus, ou arranjar umas palestras em comum - e, umas vezes por outras, podia até justificar-se um bónus, quando as coisas estavam tão más, tão más, que não havia palavras que as justificassem. Mas, de um modo geral, o importante era não parar de admitir e despedir: enquanto houvesse homens e munições, a ordem era avançar, continuar a limpar as trincheiras. Entretanto, Hymie continuava a tomar comprimidos catárticos - tantos que chegariam para lhe estoirar o traseiro se isso fosse coisa que ele ainda tivesse, mas não tinha: imaginava apenas que estava a lascar, imaginava apenas que cagava na pia. Na realidade, o pobre sacana vivia num transe. Havia que pensar em cento e uma sucursais e cada uma tinha um quadro de boletineiros míticos, senão hipotéticos, e quer os boletineiros fossem reais, quer não, Hymie tinha de os ir distribuindo de manhã à noite, enquanto eu colmatava os buracos - o que também era imaginário, porque quando se mandava um recruta para uma sucursal não se sabia se ele lá chegaria nesse dia, no seguinte ou nunca. Uns perdiam-se no metropolitano ou nos labirintos debaixo dos arranha-céus; outros passavam todo o dia no comboio aéreo, porque, uniformizados, o passeio era de borla e talvez eles nunca tivessem tido o gosto de passear todo o dia no comboio aéreo. Uns punham-se a caminho de Staten Island e iam parar a Canarsie, ou eram devolvidos à procedência, em estado de coma, por um polícia; Trópico de Capricórnio 23 outros esqueciam-se onde moravam e desapareciam por cornpleto. Uns, que contratáramos para Nova Iorque, apareciam em Filadélfia um mês depois, como se isso fosse a coisa mais natural deste mundo; outros partiam para o seu destino, mas no caminho achavam que era mais fácil vender jornais, e vendiam-nos, como uniforme que lhes déramos, até serem apanhados. Uns iam direitinhos à sala de observações, levados por qualquer estranho instinto de conservação... A primeira coisa que Hymie fazia, quando chegava de manhã, era afiar os lápis. Afiava-os religiosamente, surdo aos telefones que tocavam, porque, conforme me explicou mais tarde, se não os afiasse logo nunca os afiaria. A seguir, olhava pela janela, para ver como estava o tempo. Depois, comum lápis recém-afiado, desenhava um quadrado ao alto da ardósia que tinha a seu lado e escrevia lá o estado do tempo. Isso, segundo também me informou, podia muitas vezes transformarse num álibi útil. Se a neve tinha 30 cm de altura ou o chão estava coberto de granizo, até o próprio Diabo podia ser desculpado por não movimentar os «waybills» mais depressa - e o gerente do pessoal também podia ser desculpado se não preenchesse os buracos todos nesses dias, não podia? No entanto, era um mistério para mim por que raio o tipo não ia lascar assim que afiava os lápis, em vez de se apressurar todo como quadro dos telefones. Mas ele também me explicou isso mais tarde. De qualquer maneira, o dia começava sempre comconfusão, queixas, prisão de ventre e vagas. E também começava compeidos sonoros e fedorentos, mau hálito, nervos esfrangalhados, epilepsia, meningite, ordenados baixos, pagamentos atrasados que já deviam ter sido feitos, sapatos cambados, calos e joanetes, pés chatos, carteiras desaparecidas e canetas de tinta permanente perdidas ou roubadas, telegramas a boiar no esgoto, ameaças do vice-presidente e conselhos dos gerentes, brigas e zaragatas, trovoadas e fios telegráficos partidos, novos métodos de eficiência e métodos antigos que tinham sido abandonados, esperança de melhores dias e uma prece pelo bónus que nunca mais chegava. Os novos boletineiros saíam da trincheira e eram metralhados; os antigos escavavam cada vez mais fundo, como ratos num queijo. Ninguém estava satisfeito, e muito menos o público. Pelo telégrafo chegava-se a São Francisco em dez minutos, mas depois 24 Henry Miller era preciso um ano para fazer chegar o telegrama às mãos do destinatário. E também acontecia nunca chegar. A Y. M. C. A.1, sempre desejosa de melhorar o moral dos jovens trabalhadores de toda a América, efectuava reuniões à hora do almoço: não gostaria de enviar alguns rapazes de ar desenxovalhado para ouvirem William Carnegie Astenbit Júnior proferir uma palestra de cinco minutos acerca do serviço? Mr. Mallory, da Liga do Bem-Estar, gostaria de saber se eu dispunha de alguns minutos para me falar dos reclusos-modelo, em liberdade condicional, que gostariam de trabalhar em qualquer coisa, até mesmo como boletineiros. Mrs. Guggenhoffer, da Caridade Judaica, ficaria muito grata se a ajudasse a manter alguns lares desfeitos, que se tinham desfeito porque todos os membros da família eram doentes, ou aleijados, ou incapacitados. Mr. Haggerty, do Lar-Abrigo para Rapazes, estava certo de ter os jovens que me convinham, se lhes desse uma oportunidade; todos eles tinham sido maltratados pelos padrastos ou pelas madrastas. O prefeito de Nova Iorque agradecia que dispensasse a minha atenção pessoal ao portador da dita carta, por quem ele se responsabilizava em todos os sentidos - mas por que raio não arranjava ele um emprego ao dito portador era um mistério. Um homem inclina-se por cima do meu ombro e entrega-me um papel onde acabou de escrever: «Mim compreender tudo, mas mim não ouvir as vozes.» Luther Winifried está de pé ao lado dele, como casaco remendado preso por alfinetes-de-ama. Luther é dois sétimos índio puro e cinco sétimos germano-americano, segundo explica. Do lado índio é um crow, um dos Crows de Montana. O seu último emprego foi consertar gelosias de janelas, mas como não tem eu nenhum dentro das calças envergonha-se de subir um escadote defronte de uma senhora. Saiu outro dia do hospital, e por isso ainda está um bocadinho fraco, mas acha que não o está tanto que não possa entregar telegramas. Há também Ferdinand Mish. Como pude esquecê-lo? Passou a manhã na bicha à espera de falar comigo. Nunca respondi às cartas que me escreveu. «Isso foi justo?», pergunta-me 1. Young Men’s Christian Association: Associação dos Jovens Cristãos. (N. da T.) Trópico de Capricórnio 25 suavemente. Claro que não foi. Lembro-me vagamente da última carta que me escreveu do Hospital dos Cães e dos Gatos, aquando do Grande Concurso, onde foi servente. Dizia estar arrependido de ter abandonado o emprego, mas fora por o pai ser demasiado rigoroso comele, não lhe permitindo «qualquer recreio ou prazer no exterior». «Já tenho vinte e cinco anos», prosseguia, «e não devia continuar a dormir como meu pai, não acha? Dizem que o senhor é um excelente cavalheiro e eu agora sou independente, por isso espero...» McGovern, o velho ex-recluso bem comportado, está de pé ao lado de Ferdinand, à espera do meu sinal. Quer correr comele, pois lembra-se de, há cinco anos, Ferdinand se deitar no passeio defronte da sede, como uniforme, e ter um ataque epiléptico. Mas, merda, não posso fazer isso! you dar uma oportunidade ao pobre sacana. Talvez o mande para Chinatown, onde reina relativa calma. Entretanto, enquanto Ferdinand veste o uniforme na sala das traseiras, ouço a conversa de um rapaz órfão que quer «ajudar a transformar a companhia num êxito». Diz que, se lhe der uma oportunidade, rezará por mim todos os domingos quando for à igreja, excepto naqueles em que tiver de se apresentar na Polícia, por causa da liberdade condicional. Não fez nada, parece. Apenas empurrou o tipo, e o tipo caiu, bateu coma cabeça e morreu. O seguinte: um ex-cônsul em Gibraltar. Tem uma caligrafia muito bonita, demasiado bonita, mesmo. Peco-lhe que me procure no fim do dia; há qualquer coisa esquisita nele. Entretanto, Ferdinand teve um ataque no vestiário. Que sorte! Se tivesse acontecido no metropolitano, fardado e como número no boné e tudo, quem estaria lixado seria eu. O seguinte: um tipo só comum braço e danado como um raio porque McGovern lhe aponta a porta. «comos diabos, sou forte e saudável, não sou?», grita e, para o provar, pega numa cadeira como único braço e fá-la em fanicos. Volto à secretária, onde encontro um telegrama à minha espera. Abro-o. É de George Blasini, ex-boletineiro n.° 2459, do escritório de S. W. «Lamento ter tido de me despedir tão depressa, mas o trabalho não era compatível coma indolência do meu carácter. Sou um verdadeiro amante do trabalho e da frugalidade, mas muitas vezes somos incapazes de controlar ou dominar o nosso orgulho pessoal.» Merda! Ao princípio sentia entusiasmo, apesar de tudo. Tinha ideias 26 Henry Miller e punha-as em prática, quer agradasse ao vice-presidente, quer não. De dez em dez dias, mais ou menos, chamavam-me à pedra e pregavam-me um sermão por ter «um coração demasiado grande». Nunca tinha dinheiro na algibeira, mas utilizava o dinheiro dos outros à vontade. Enquanto fosse o chefe, tinha crédito. Dava dinheiro a torto e a direito, dava as minhas roupas exteriores e interiores, dava os meus livros e tudo quanto era supérfluo. Se estivesse na minha mão, até teria dado a companhia aos pobres diabos que não me largavam. Se me pediam dez cêntimos, dava meio dólar; se me pediam um dólar, dava cinco. Estava-me cagando para o que dava, pois era mais fácil pedir emprestado e dar do que negar ajuda aos desgraçados. Nunca vira um tal conjunto de miséria na minha vida, e espero não o voltar a ver. Os homens são pobres em toda a parte, sempre o foram e sê-lo-ão sempre. E debaixo da terrível pobreza há uma chama, geralmente tão fraca que se torna quase invisível. Mas existe, e se um tipo tem a coragem de a soprar pode-se transformar num incêndio. Estavam constantemente a recomendar-me que não fosse demasiado brando, que não fosse demasiado sentimental, que não fosse demasiado caridoso. «Seja firme! Seja duro!», aconselhavam-me. «Vão-se foder comisso!», pensava. «Serei generoso, flexível, clemente, tolerante, terno.» Ao princípio, ouvia todos os homens até ao fim; se não lhes podia dar trabalho, dava-lhes dinheiro, e se não lhes podia dar dinheiro, dava-lhes cigarros ou dava-lhes coragem. Mas dava! O efeito era inebriante. Ninguém pode avaliar os resultados de uma boa acção, de uma palavra bondosa. Submergiam-me de gratidão, de votos de felicidade, de convites, de patéticos e ternos presentezinhos. Se eu tivesse verdadeiro poder em vez de ser a quinta roda de uma carruagem, sabe Deus o que poderia ter conseguido. Podia ter utilizado a Cosmodemonic Telegraph Company of North America como base para aproximar toda a humanidade de Deus; podia ter transformado a América do Norte e a do Sul, e também o domínio do Canadá. Tinha o segredo na mão: ser generoso, ser bondoso, ser paciente. Fazia o trabalho de cinco homens e durante três anos quase não dormi. Não tinha uma camisa em condições e muitas vezes tinha tanta vergonha de pedir dinheiro emprestado à minha mulher, ou de roubar o mealheiro da miúda, que de manhã, Trópico de Capricórnio 27 a fim de pagar os transportes para o trabalho, intrujava o vendedor de jornais cego da estação do metropolitano. Devia tanto dinheiro a toda a gente que nem que trabalhasse vinte anos o conseguiria pagar. Pedia aos que tinham e dava aos que necessitavam, e assim é que estava bem. Voltaria a fazer o mesmo, se voltasse a encontrar-me na mesma situação. Até consegui o milagre de acabar coma louca carência crónica de pessoal, coisa que ninguém ousara esperar. Mas, em vez de apoiarem os meus esforços, minaram-nos. Segundo a lógica dos tipos de cima, a carência terminara porque os salários eram demasiado elevados. Por isso, toca a reduzi-los. Foi como arrancar o fundo de um balde comum pontapé. Todo o edifício ruiu, se desfez nas minhas mãos. E, como se nada tivesse acontecido, os tipos insistiram em que os buracos fossem tapados imediatamente. A fim de adoçarem um bocadinho a pílula até insinuaram que podia aumentar a percentagem de judeus, contratar um aleijado de quando em quando e, se ele fosse capaz, fazer isto e aquilo, tudo coisas que anteriormente me tinham informado serem contra o código. Fiquei tão furioso que admiti tudo e todos; teria admitido cavalos bravos e gorilas se me fosse possível imbuí-los do mínimo de inteligência necessária para entregar telegramas. Alguns dias antes, houvera apenas cinco ou seis vagas à hora de fechar; depois passou a haver trezentas, quatrocentas, quinhentas... Escoavam-se como areia a correr por entre os dedos. Era maravilhoso. Sentava-me à secretária e, sem uma pergunta, admitia-os às carradas: negros, judeus, paralíticos, aleijados, ex-reclusos, putas, maníacos, pervertidos, idiotas, enfim, qualquer sacana do caraças capaz de se aguentar nas duas pernas e segurar um telegrama na mão. Os gerentes das cento e uma sucursais estavam transidos de medo. Eu ria-me. Ria-me o dia inteiro, só de pensar na grande salgalhada que estava a arranjar. As queixas choviam, de todos os pontos da cidade. O serviço estava manco, comprisão de ventre, estrangulado. Uma mula chegaria mais depressa ao destino do que alguns dos idiotas que eu contratava. A melhor coisa da nova era foi a admissão de mulheres, de boletineiras. Modificou por completo a atmosfera da baiuca. Para Hymie, principalmente, foi uma dádiva do céu. Até virou o quadro telefónico, enquanto fazia os seus malabarismos 28 Henry Miller comos «waybills». Apesar do aumento de trabalho, o filho da mãe conseguia ter uma erecção permanente. Chegava ao escritório a sorrir e sorria todo o dia. Estava no céu. À hora de fechar, eu tinha sempre uma lista de cinco ou seis comas quais valia a pena tentar a sorte. O jogo consistia em mante-las na expectativa, em prometer-lhes emprego mas obter uma foda grátis primeiro. Geralmente, bastava pagar-lhes uma refeição para as levar à noite ao escritório e deitá-las na mesa de tampo de zinco do vestiário. Se tinham um apartamento acolhedor, como por vezes acontecia, levávamo-las a casa e acabávamos a festa na cama. Se gostavam de beber, Hymie levava uma garrafa. Se prestavam para alguma coisa e precisavam realmente de massa, Hymie sacava do rolo das notas e esmifrava cinco ou dez dólares, conforme os casos. Sinto água na boca quando penso no maço de notas que ele trazia consigo. Nunca descobri como o arranjava, pois era o homem mais mal pago do escritório, mas a verdade é que ele o tinha e eu obtinha fosse o que fosse que lhe pedisse. Uma vez recebemos um bónus e eu paguei tudo, tudo, ao Hymie, que ficou tão banzado que me levou ao Delmonico’s, nessa noite, e gastou uma fortuna comigo. E, como se isso não chegasse, no dia seguinte insistiu em comprar-me um chapéu, camisas e luvas. Até insinuou que podia ir a sua casa e foder-lhe a mulher, se me agradasse, embora me avisasse que ela andava comuns problemazinhos ováricos. Além de Hymie e McGovern tinha como ajudantes um par de bonitas louras, que iam frequentemente jantar connosco. E havia O’Mara, um velho amigo meu recém-chegado das Filipinas e que nomeei meu principal ajudante. E Steve Romero, um autêntico touro que mantinha no escritório para o caso de haver algum sarilho. E O’Rourke, o detective da cornpanhia, que se me apresentava no fim do dia, quando pegava ao trabalho. Por fim, juntei outro homem ao quadro do pessoal: Kronski, um jovem estudante de medicina diabolicamente interessado nos casos patológicos que não nos faltavam nunca. Éramos um grupo alegre, unidos no desejo comum de foder a companhia custasse o que custasse. E enquanto fodíamos a companhia íamos fodendo quanto aparecia a jeito - todos excepto O’Rourke, que precisava de manter uma certa dignidade e, além disso, tinha problemas coma próstata Trópico de Capricórnio 29 e perdera todo o interesse em foder. Mas O’Rourke era um príncipe, uma pérola de homem, e indizivelmente generoso. Era O’Rourke que nos convidava frequentemente para jantar, à noite, e era a O’Rourke que recorríamos quando estávamos em apuros. Era neste pé que as coisas se encontravam em Sunset Place, depois de decorrido um par de anos. Eu estava saturado de humanidade, de experiências de um tipo ou doutro. Nos meus momentos mais sérios, tomava apontamentos de que tencionava servir-me mais tarde, se alguma vez tivesse a oportunidade de contar as minhas experiências. Esperava por uma aberta, por um momento para tomar fôlego. Até que um dia, por mero acaso, quando fui chamado à pedra por causa de uma negligência intencional qualquer, o vice-presidente disse uma frase que se me encasquetou na tola. Disse que gostaria de ver alguém escrever uma espécie de Livro de Horatio Alger dos boletineiros; insinuou que talvez eu fosse a pessoa indicada para isso. A idiotice do gajo enfureceu-me, mas ao mesmo tempo encantou-me secretamente, pois estava em pulgas para deitar cá para fora tudo quanto vira... «Espera-lhe pela pancada, dar-te-ei o teu Livro de Horatio Alger...» Quando saí do gabinete a cabeça andava-me à roda. Vi o exército de homens, mulheres e crianças que me tinham passado pelas mãos, vi-os chorando, suplicando, humilhando-se, implorando, praguejando, cuspindo, barafustando, ameaçando... Vi os rastos que deixavam nas auto-estradas, os comboios de mercadorias virados, os pais esfarrapados, o caixote do carvão vazio, a pia a deitar por fora, as paredes a ressumar humidade e, entre as gotas do frio suor que transpiravam, as baratas às corridinhas loucas; vi-os manquejando como gnomos torcidos, ou caindo para trás no frenesi epiléptico, de boca sacudida por espasmos, saliva a escorrer dos lábios e membros aos estremeções; vi as paredes cederem e a praga espalhar-se como um fluido alado, enquanto os gajos de cima, coma sua lógica de ferro, esperavam que passasse o mau tempo, esperavam que tudo se remediasse, esperavam regaladamente, manhosamente, comgrandes charutos na boca e os pés em cima da secretária, dizendo que as coisas estavam temporariamente fora da ordem, apenas. Vi o herói do Horatio Alger, o sonho de uma América doente, sempre a subir, primeiro boletineiro, 30 Henry Miller Trópico de Capricórnio 31 depois operador, depois gerente, depois chefe, depois superintendente, depois vice-presidente, depois presidente, depois magnata de trust, depois barão da cerveja, depois Senhor de todas as Americas, o deus do dinheiro, o deus dos deuses, o barro do barro, alta nulidade, zero comnoventa e sete mil decimais à esquerda e à direita... «Seus merdas», pensei, «dar-vos-ei a imagem de doze homenzinhos, zeros sem decimais, cifras, dígitos, os doze inesmagáveis vermes que estão a minar a base do vosso podre edifício. Dar-vos-ei Horatio Alger como seu aspecto do dia após o Apocalipse, quando todo o fedor se dissipou.» Tinham vindo a mim de toda a Terra para serem socorridos. Tirando as primitivas, praticamente não havia uma raça que não estivesse representada na força. Tirando os Ainos, os Maoris, os Papuas, os Vedas, os Lapões, os Zulos, os Patagónios, os Igorotes, os Hotentotes e os Tuaregues, tirando os desaparecidos Tasmanianos, os desaparecidos homens de Grimaldi e os desaparecidos Atlantas, tinha um representante de quase todas as raças que o Sol cobre. Tinha dois irmãos que ainda eram adoradores do Sol, dois nestonanos do antigo mundo assírio; tinha dois gémeos malteses e um descendente dos Maias do lucatão; tinha alguns dos nossos irmãozinhos acastanhados das Filipinas e alguns etíopes da Abissínia; tinha homens das pampas da Argentina e cowboys tresmalhados de Montana; tinha gregos, letões, polacos, croatas, eslovenos, rutenos, checos, espanhóis, galeses, finlandeses, suecos, russos, dinamarqueses, mexicanos, porto-riquenhos, cubanos, uruguaios, brasileiros, australianos, persas, japoneses, chineses, javaneses, egípcios, africanos da Costa do Ouro e da Costa do Marfim, hindus, arménios, turcos, árabes, alemães, irlandeses, ingleses, canadianos e muitos italianos e muitos judeus. Que me lembre, só tive um francês, e mesmo esse durou apenas três horas, mais ou menos. Tive alguns índios americanos - principalmente cheroquis , mas não tive tibetanos nem esquimós. Vi nomes que jamais imaginara existissem e caligrafias que iam do cuneiforme à escrita sofisticada e espantosamente bonita dos Chineses. Ouvi pedirem-me trabalho homens que tinham sido egiptólogos, botânicos, cirurgiões, mineiros de ouro, professores de línguas orientais, músicos, engenheiros, médicos, astrónomos, antropólogos, químicos, matemáticos, prefeitos de cidades e governadores de estados, directores prisionais, vaqueiros, lenhadores, marinheiros, pescadores de ostras, estivadores, rebitadores, dentistas, pintores, escultores, canalizadores, arquitectos, vendedores de droga, abortadores, traficantes de carne branca, mergulhadores, limpa-chaminés, lavradores, vendedores de fatos, armadilheiros, guardas de faróis, proxenetas, vereadores, senadores, enfim, todas as profissões existentes sob o Sol, e todos eles a suplicar trabalho, cigarros, dinheiro para os transportes, uma oportunidade, Cristo Todo-Poderoso, só mais uma oportunidade! Vi, e aprendi a conhecer, homens que eram santos, se há santos neste mundo; vi e falei comsábios, crapulosos e não crapulosos, escutei homens que tinham o fogo divino nas entranhas, que seriam capazes de convencer Deus Todo-Poderoso de que eram dignos de outra oportunidade, mas não conseguiam convencer o vice-presidente do Cosmococcic Telegraph Company. Imóvel, sentado à secretária, viajei pelo mundo fora à velocidade da luz e aprendi que em toda a parte existe e acontece a mesma coisa: fome, humilhação, ignorância, vício, ganância, extorsão, chicana, tortura, despotismo; a desumanidade do homem para como homem; as grilhetas, o jugo, o cabresto, as rédeas, o chicote e as esporas. Quanto melhor é o calibre, pior está o homem. Calcorreavam as ruas de Nova Iorque, naquele maldito e degradante uniforme, o mais desprezado e o mais vil dos vis, homens que caminhavam como alças, como pinguins, como bois, como focas amestradas, como burros pacientes, como grandes machos, como gorilas loucos, como maníacos dóceis atrás de uma isca pendurada à sua frente, como ratos valsadores, como cobaias, como esquilos, como coelhos, caminhavam assim e muitos e muitos deles eram capazes de governar o mundo ou de escrever o mais grandioso dos livros. Quando penso em alguns dos persas, dos hindus e dos árabes que conheci, quando penso no carácter que revelaram, na sua graça, na sua delicadeza, na sua inteligência e na sua santidade, cuspo nos conquistadores brancos do Mundo, nos degenerados Ingleses, nos teimosos Alemães, nos presumidos e enfatuados Franceses. A Terra é um grande ser sensível, um planeta saturado e ressaturado de homens, um planeta vivo que se exprime hesitante e tartamudeantemente; não é a pátria da raça branca, ou da raça negra, ou da 32 Henry Miller raça amarela, ou da desaparecida raça azul e, sim, a pátria do Homem, e todos os homens são iguais perante Deus e terão a sua oportunidade, se não agora, daqui a um milhão de anos. Os irmãozmhos acastanhados das Filipinas podem voltar a ter o vigor perdido, um dia, e os índios assassinados das Americas do Norte e do Sul podem também ressuscitar, um dia, e cavalgar pelas planícies onde agora se erguem cidades que vomitam fogo e pestilência. Quem tem a última palavra? O Homem! A Terra é dele, porque ele é a Terra, o seu fogo, a sua água, o seu ar, a sua matéria mineral e vegetal, o seu espírito que é cósmico, que é imperecível, que é o espírito de todos os planetas, que se transforma através dele, através de infindáveis sinais e símbolos, de infindáveis manifestações. Esperem, seus merdas cosmocócicos telegráficos, seus demónios que aguardam lá em cima que consertem a canalização; esperem, seus imundos conquistadores brancos que macularam a Terra comos seus pés de bode, os seus instrumentos, as suas armas, os seus germes de doenças; esperem, todos quantos estão ao abrigo a contar as massas, esperem que ainda não é o fim. O último homem dirá o que tem a dizer, antes de tudo acabar. Deve fazer-se justiça até à mais ínfima molécula sensível, e justiça será feita! Ninguém ficará impune seja pelo que for que tiver feito, e muito menos os merdas cosmocócicos da América do Norte. Quando chegou a altura das minhas férias - em três anos não as tivera, tão ansioso estava por contribuir para o êxito da companhia! , pedi três semanas em vez de duas e escrevi o livro acerca dos doze homenzinhos. Escrevi-o de uma assentada, cinco mil, sete mil e às vezes até oito mil palavras por dia. Pensava que um homem, para ser escritor, devia escrever pelo menos cinco mil palavras por dia. Pensava que devia dizer tudo de uma vez - num só livro - e depois cair. Não sabia | nada acerca de escrever. Estava cagado de medo. Mas estava ’ também decidido a apagar Horatio Alger da consciência norte-americana. Suponho que foi o pior livro, jamais escrito por homem algum. Era um volume colossal e imperfeito do princípio ao fim. Mas era o meu primeiro livro, e eu estava apai- ; xonado por ele. Se tivesse tido dinheiro, como Gide, tê-lo-ia publicado por minha conta. Se tivesse tido a coragem que Whitman teve, tê-lo-ia vendido de porta em porta. Todas as | Trópico de Capricórnio 33 pessoas a quem o mostrava diziam que era pavoroso. Aconselharam-me a abandonar a ideia de escrever. Tinha de aprender, como Balzac aprendera, que um homem devia escrever volumes e volumes antes de assinar como seu verdadeiro nome. Tinha de aprender, e não tardei a aprender, que um homem tinha de desistir de tudo e não fazer mais nada senão escrever, que tinha de escrever, e escrever, e escrever, mesmo que toda a gente o desaconselhasse, mesmo que ninguém acreditasse nas suas possibilidades. Talvez consigamos escrever precisamente porque ninguém acredita na nossa capacidade para tal, talvez o verdadeiro segredo resida em fazer as pessoas acreditar. O facto de o livro ser impróprio, imperfeito, mau, pavoroso, como diziam, era natural. Pretendi começar pelo que um homem de génio só empreenderia no fim. Quis dizer a última palavra no princípio. Foi absurdo e patético. Foi uma derrota esmagadora, mas reforçou-me a espinha comferro e pôs-me enxofre no sangue. Sabia finalmente o que era falhar. Sabia o que era tentar algo grande. Hoje, quando penso nas circunstâncias em que escrevi aquele livro, quando penso na espantosa quantidade de material que tentei utilizar, quando penso no que esperei abarcar, dou uma palmadinha nas próprias costas e acho que mereci um vinte. Sinto-me orgulhoso por o livro ter sido um fracasso tão estrondoso; se tivesse sido um êxito, eu seria um monstro. Às vezes, quando dou uma vista de olhos aos meus livros de apontamentos, quando olho só para os nomes daqueles acerca dos quais quis escrever, sinto vertigens. Cada um daqueles homens me procurara comum mundo seu; procurara-me e descarregara-o na minha secretária, esperando que eu o apanhasse e o colocasse nos meus ombros. Não tinha tempo para criar um mundo meu: tinha de estar imobilizado como Atlas, comos pés nas costas do elefante, e o elefante em cima das costas da tartaruga. Tentar saber em cima do que estava a tartaruga teria sido enlouquecer. Não ousei pensar em nada, então, a não ser nos «factos». Para alcançar o que existia sob os factos precisaria de ser um artista, e um tipo não se torna artista da noite para o dia. Primeiro precisa de ser esmagado, de que os seus contraditórios pontos de vista sejam aniquilados. Precisa de ser apagado do mapa como ser humano para renascer como indivíduo. Precisa 34 Henry Miller de ser carbonizado e mineralizado, a fim de emergir do último denominador comum do eu. Precisa de ultrapassar a compaixão, a fim de sentir a partir das próprias raízes do ser. Não se podem fazer uma nova terra e um novo céu com«factos». Não há «factos»; há apenas o facto de que o homem, todo o homem em toda a parte do mundo, vai a caminho da ordenação. Uns enveredam pelo caminho mais longo e outros pelo caminho mais curto. Todo o homem está a elaborar o seu destino à sua própria maneira, e ninguém o pode ajudar, a não ser sendo amável, generoso e paciente. No meu entusiasmo, achava então inexplicáveis certas coisas que hoje acho claras. Estou a pensar, por exemplo, em Carnahan, um dos doze homenzinhos acerca dos quais decidira escrever. Era o que se chama um boletineiro modelo. Formado por uma universidade importante, tinha uma inteligência sã e um carácter exemplar. Trabalhava dezoito e vinte horas por dia e ganhava mais do que qualquer boletineiro da força. Os clientes que servia escreviam cartas a elogiá-lo, a pô-lo, como se costuma dizer, nos cornos da Lua; ofereciam-lhe bons empregos, que recusava por um motivo ou outro. Vivia frugalmente e mandava a maior parte do que ganhava à mulher e aos filhos, que residiam noutra cidade. Tinha dois vícios: beber e a ambição de ser bem-sucedido. Era capaz de passar um ano sem beber, mas se levava uma gota aos lábios estava tramado. Ganhara born dinheiro na Wall Street, por duas vezes, e, contudo, antes de me procurar a pedir emprego não conseguira mais do que ser sacristão na igreja de uma pequena cidade qualquer - emprego de que fora despedido porque bebera o vinho sacramental e tocara os sinos toda a noite. Era honesto, sincero, zeloso. Eu depositava implícita confiança nele, e a minha confiança era justificada pela sua folha de serviços sem mácula. No entanto, abriu fogo contra a mulher e os filhos a sangue-frio e depois disparou contra si mesmo. Felizmente nenhum deles morreu; foram todos internados juntos e refizeram-se todos. Fui visitar a mulher, depois de o terem transferido para a cadeia, a fim de que o ajudasse. Recusou categoricamente, afirmando que ele era o filho da puta mais desprezível e mais cruel que jamais existira. Só desejava vê-lo enforcado. Instei comela durante dois dias, supliquei-lhe, mas mostrou-se inabalável. Fui à cadeia e falei comele através da rede. Descobri que já se tornara Trópico de Capricórnio 35 popular entre as autoridades e já conseguira privilégios especiais. Não estava nada desanimado. Pelo contrário, resolvera tirar todo o proveito possível do tempo que passasse na prisão, «estudando» a arte de vender. Seria o melhor vendedor da América, quando o libertassem. Quase posso dizer que parecia feliz. Pediu-me que não me preocupasse comele, que se havia de safar bem. Afirmou que eram todos porreiros e não tinha nenhuma razão de queixa. Vim-me embora meio atordoado. Fui a uma praia próxima e resolvi dar um mergulho. Vi tudo comnovos olhos e quase me esqueci de regressar a casa, de tal maneira me deixei absorver pelas especulações acerca do indivíduo. Quem poderia dizer que tudo quanto lhe sucedera não tinha sido pelo melhor? Talvez saísse da prisão transformado num evangelista perfeito, em vez de num vendedor. Ninguém poderia prever o que ele faria. E também ninguém o poderia ajudar, porque ele estava a elaborar o seu destino à sua maneira especial. Havia outro tipo, um hindu chamado Guptal. Não era apenas um modelo de born comportamento: era um santo. Tinha uma paixão pela flauta, que tocava sozinho no seu miserável quartinho. Um dia foi encontrado nu, na cama, coma garganta aberta de orelha a orelha e a flauta ao lado. Acompanharam o funeral umas doze mulheres que verteram lágrimas apaixonadas e, entre elas, a mulher do porteiro que o assassinara. Seria capaz de escrever um livro acerca deste jovem, que foi o homem mais delicado e mais santo que jamais conheci, que nunca ofendeu ninguém e nunca tirou nada a ninguém, mas cometeu o erro capital de vir para a América a fim de pregar a paz e o amor. Havia também Dave Olinski, outro fiel e afadigado boletineiro que só pensava em trabalho e mais nada. Tinha uma fraqueza fatal: falava de mais. Quando me procurou já dera a volta ao Globo diversas vezes e o que não fizera para ganhar a vida fora tão pouco que nem vale a pena mencionálo. Sabia umas doze línguas e orgulhava-se muito da sua aptidão linguística. Tratava-se de um daqueles homens cuja boa vontade e cujo entusiasmo eram a sua perda. Queria ajudar toda a gente, mostrar a toda a gente como ter êxito. Queria mais trabalho do que lhe podíamos dar; era um glutão por trabalho. Talvez o devesse ter avisado, quando o mandei para o escritório 36 Henry Miller do East Side, de que ia trabalhar numa zona perigosa. Mas ele dizia saber tanto e insistira de tal maneira em trabalhar naquela localidade (por causa da sua aptidão linguística), que não lhe disse nada. Pensei para comigo que não tardaria a aprender à sua custa. E na verdade pouco depois estava em apuros. Um dia, um jovem judeu, dos duros, morador nas imediações, entrou e pediu um impresso de inscrição. Dave, o boletineiro, estava sentado à secretária e não gostou da maneira como o outro pediu o impresso. Disse-lhe que devia ser mais delicado, o que lhe valeu uma caldaça nas orelhas. Isso desatou-lhe ainda mais a língua, do que resultou levar tal tareia que engoliu alguns dentes e ficou como queixo partido em três pontos. Mas nem mesmo assim teve o born senso de calar a boca. Como o grandíssimo idiota que era, foi à esquadra e apresentou queixa. Uma semana depois, quando estava sentado num banco a dormitar, uma quadrilha de valentaços entrou no escritório e fê-lo em papas. Deixaram-lhe a cabeça de tal maneira que os miolos pareciam uma omeleta. E, já que estavam coma mão na massa, despejaram o cofre e viraram-no de pernas para o ar. Dave morreu a caminho do hospital. Encontraram-lhe quinhentos dólares escondidos numa peúga... Havia também Clausen e a mulher, Lena. Apresentaram-se juntos, quando ele foi pedir emprego. Lena tinha um bebé ao colo e ele dava a mão a dois garotinhos. Foram-me enviados por uma obra de assistência qualquer. Admiti-o como boletineiro nocturno, pois assim teria um salário fixo. Poucos dias depois, recebi uma carta maluca em que me pedia lhe desculpasse a ausência, mas tinha de se apresentar ao responsável pela sua liberdade. Depois chegou outra carta a dizer que a mulher se recusava a dormir comele porque não queria ter mais filhos e a pedir-me o favor de os visitar e tentar persuadi-la a dormir comele. Fui a casa deles, uma cave no bairro italiano. Parecia um manicómio. Lena estava outra vez grávida, já quase de sete meses, e à beira da idiotia. Passara a dormir no telhado, porque estava muito calor na cave e também porque não queria que ele lhe voltasse a tocar. Quando lhe disse que, no estado em que se encontrava, não faria diferença nenhuma, limitou-se a olhar-me e a sorrir. Clausen estivera na guerra e talvez os gases o tivessem deixado um pouco apatetado - pelo í menos naquela altura espumava pela boca. Disse que lhe esTrópico de Capricórnio 37 toiraria a cabeça se não saísse do telhado e insinuou que Lena dormia lá em cima para se entender como carvoeiro que morava no sótão. Ao ouvir tais palavras, Lena sorriu de novo, como seu sorriso batraquiano e sem alegria. Clausen perdeu a tramontana e deu-lhe um pontapé no eu, o que a levou a sair, toda arrufada, comos fedelhos. Clausen gritou-lhe que escusava de voltar, abriu a gaveta e tirou um grande Colt. Tinha-o guardado para o caso de vir a precisar dele, disse. Mostrou-me também algumas facas e uma espécie de cassetete que ele próprio fizera. Depois começou a chorar. A mulher andava a fazer dele parvo, queixou-se. Estava farto, esfalfava-se a trabalhar para ela e ela dormia comtoda a gente da vizinhança. Os miúdos não eram dele; já não era capaz de fazer um miúdo mesmo que quisesse. No dia seguinte, quando Lena saiu para fazer compras, Clausen levou os garotos para o telhado e estoirou-lhes os miolos como cassetete que me mostrara. Depois atirouse para a rua, de cabeça. Quando chegou a casa e viu o que acontecera, Lena perdeu por completo o juízo. Tiveram de lhe vestir um colete-de-forças e chamar uma ambulância... Havia também Schuldig, o desgraçado que passara vinte anos preso por um crime que não cometera. Tinha sido espancado quase até à morte antes de confessar; depois, incomunicabilidade, fome, tortura, perversão e droga. Quando finalmente o libertaram, deixara de ser um ser humano. Uma noite, falou-me dos últimos trinta dias que passara na prisão, na angústia de esperar que o libertassem. Nunca ouvi nada semelhante e nunca imaginara que um ser humano pudesse sobreviver a tal agonia. Em liberdade, era perseguido pelo medo de ser obrigado a cometer um crime e ir de novo para a prisão. Queixava-se de que o seguiam e espiavam constantemente. Dizia que «eles» o tentavam, para que fizesse coisas que não tinha desejo nenhum de fazer. «Eles» eram os detectives que lhe andavam no encalço e a quem pagavam para o levarem de novo para a cadeia. À noite, quando dormia, segredavam-lhe ao ouvido. Era impotente contra eles, porque primeiro o hipnotizavam. Às vezes punham-lhe droga debaixo da almofada e, coma droga, um revólver ou uma faca. Queriam que matasse uma pessoa inocente qualquer, para desta vez terem uma acusação de pedra e cal contra ele. como tempo, foi-se tornando cada vez pior. Uma noite, depois de ter vagueado 38 Henry Miller durante horas comum maço de telegramas na algibeira, foi direito a um polícia e pediu-lhe que o prendesse. Não se lembrava do nome nem da morada, nem mesmo do escritório para o qual trabalhava. Perdera por completo a identidade. Repetia e tornava a repetir, incessantemente: «Estou inocente... estou inocente...» Voltaram a aplicar-lhe o terceiro grau. De súbito, levantou-se de um salto e gritou, como um louco: «Eu confesso! Eu confesso!» E desatou a desfiar um crime após outro, durante três horas. Até que, no meio de uma angustiosa confissão, se calou bruscamente, olhou à sua volta como quem acorda de repente e, coma rapidez e a força de que só um louco é capaz, deu um salto tremendo através da sala e esmagou a cabeça contra a parede de pedra... Relato estes incidentes resumida e apressadamente, à medida que me ocorrem; a minha memória está congestionada commilhares de casos semelhantes, comuma miríade de rostos, gestos, histórias e confissões, todas entrosadas e entrelaçadas como a fachada estupenda e inebriante de um templo hindu feito, não de pedra, mas sim da experiência da carne humana, de um monstruoso edifício de sonho construído inteiramente de realidade sem contudo ser realidade, sendo apenas o vaso em que está contido o mistério do ser humano. A minha mente conduz-me à clínica onde, na ignorância e na boa fé, levei alguns dos mais novos, para que os curassem. Não me ocorre, para dar uma ideia da atmosfera do lugar, nenhuma imagem mais sugestiva do que o quadro de Hieronymus Bosch em que o mágico, como um dentista extraindo um nervo vivo, é representado a libertar a insanidade. Toda a parlapatice e charlatanice dos nossos especialistas na matéria atinge a apoteose na pessoa do suave sádico que dirigia a clínica, comtoda a colaboração e conivência das autoridades. Para ser outro Cagliari só lhe faltavam as orelhas de burro. Fingindo cornpreender os mecanismos secretos das glândulas, investido como poder de um monarca medieval, sem ligar importância à dor que infligia e ignorando tudo quanto não fosse o seu conhecimento médico, desatava a trabalhar no organismo humano como um canalizador se lança ao trabalho nos canos de esgoto subterrâneos. Além dos venenos que introduzia no organismo do paciente, recorria aos punhos ou aos joelhos, conforme fosse mais conveniente. Uma «reacção» justificava | Trópico de Capricórnio 39 tudo. Se a vítima se mostrava letárgica, gritava-lhe, esbofeteava-a, beliscava-lhe um braço, dava-lhe um caldo ou aplicava-lhe um pontapé. Se, pelo contrário, a vítima se mostrava excessivamente enérgica, empregava os mesmos métodos, mas comredobrado afã. Os sentimentos do paciente não lhe importavam para nada; fosse qual fosse, a reacção que conseguia obter era apenas uma manifestação ou uma demonstração das leis que regulavam o funcionamento das glândulas de secreção interna. O objectivo do seu tratamento era tornar o sujeito apto a viver em sociedade. Mas por muito depressa que trabalhasse, e quer tivesse êxito, quer falhasse, a sociedade era ainda mais rápida e cada vez rejeitava mais inadaptados. Alguns eram-no tão maravilhosamente que quando ele, para obter a proverbial reacção, os esbofeteava vigorosamente, reagiam comum uppercut ou um pontapé nos tomates. É verdade, porém, que a maioria dos seus pacientes eram exactamente aquilo que ele diagnosticava: criminosos incipientes. Todo o continente estava a descambar - e ainda está , e não eram só as glândulas que precisavam de ser afinadas: eram também os rolamentos de esferas, a armação, a estrutura esquelética, o cérebro, o cerebelo, o cóccix, a laringe, o pâncreas, o fígado, o intestino grosso e o intestino delgado, o coração, os rins, os testículos, o útero, as trompas de Falópio, enfim, toda a tralha. O país inteiro é desrespeitador das leis, violento, explosivo, demoníaco. E uma coisa que está no ar, no clima, na ultragrandiosidade da paisagem, nas florestas petrificadas que jazem na horizontal, nos rios torrenciais que abrem caminho através dos desfiladeiros rochosos, nas distâncias supranormais, nos sublimes desertos áridos, nas colheitas excepcionais, nos frutos monstruosos, na mistura de sangues quixotescos, na miscelânea de cultos, seitas e crenças, na oposição de leis e línguas e na contraditatoriedade de temperamentos, princípios, necessidades e exigências. O continente está pletórico de violência enterrada, de ossos de monstros antediluvianos e de raças desaparecidas, de mistérios envoltos em perdição. Por vezes a atmosfera torna-se tão eléctrica que a alma é atraída para fora do corpo e anda à toa, louca. Como a chuva, vem tudo a potes - ou não vem. Todo o continente é um imenso vulcão cuja cratera está temporariamente oculta por um panorama móvel que é parte sonho, parte 40 Henry Miller medo e parte desespero. Do Alasca ao lucatão, a história é a mesma. A Natureza domina. A Natureza vence. Existe em toda a parte a mesma ânsia fundamental para chacinar, para destruir, para pilhar. Exteriormente, parece um povo excelente e honesto: saudável, optimista e corajoso. Interiormente, está cheio de vermes. Uma centelhazinha e explode. Acontecia muitas vezes, como na Rússia, um homem chegar amuado. Acordara assim, como que assarapantado por uma monção. Nove vezes em dez era born tipo, toda a gente gostava dele. Mas quando a cólera irrompia nada o conseguia deter. Era como um cavalo comos vagados, e a melhor coisa que se poderia fazer por ele seria abatê-lo logo. Acontece sempre assim comas pessoas pacíficas. Um dia ficam amoque. Na América estão constantemente a ficar amoque. Do que precisam é de um escape para a sua energia, para a sua sede de sangue. A Europa é sangrada regularmente pela guerra. A América é pacifista e canibalista. Exteriormente, parece um belo favo de mel, comos zangãos a amarinharem uns por cima dos outros, num frenesi de trabalho; interiormente, é um matadouro, comcada homem a matar o vizinho e a chupar-Ihe o tutano dos ossos. Superficialmente, parece um mundo ousado, viril; na realidade, é um bordel dirigido por mulheres, comos nativos a actuarem como alcaiotes e os malditos estrangeiros a venderem a sua carne. Ninguém sabe o que é sentar o eu e estar satisfeito. Isso só acontece nos filmes, onde tudo é forjado, até os fogos do Inferno. Todo o continente dorme profundamente, e nesse sono desenrolase um grande pesadelo. Ninguém seria capaz de dormir mais profundamente do que eu no meio desse pesadelo. A guerra, quando chegou, só produziu um estrondear distante e abafado aos meus ouvidos. Como os meus compatriotas, era pacifista e canibalista. Os milhões devorados pela carnificina passaram como uma nuvem, do mesmo modo que passaram os Astecas, e os Inças, e os Peles-Vermelhas, e os búfalos. As pessoas fingiam-se profundamente emocionadas, mas não estavam. Limitavam-se a mexer-se espasmodicamente no sono. Ninguém perdeu o apetite, ninguém se levantou e tocou o alarme de fogo. Quan- ,; do tive pela primeira vez consciência de que houvera uma guerra, já se assinara o armistício havia uns seis meses. Ia num } Trópico de Capricórnio 41 eléctrico na Rua 14. Um dos nossos heróis, um rapaz do Texas comuma enfiada de medalhas através do peito, viu um oficial a passar e ficou furioso. Ele era sargento e provavelmente tinha boas razões para se sentir magoado. Fosse como fosse, o facto de ver o oficial enraiveceu-o tanto que se levantou do lugar e desatou a berrar contra o Governo, o Exército, os civis, os passageiros do eléctrico, tudo e todos. Disse que, se houvesse outra guerra, nem comuma parelha de vinte muares o conseguiriam arrastar para ela. Disse que primeiro veria todos os filhos da puta mortos, antes de ele próprio ir. Disse que se estava cagando para as medalhas que lhe tinham dado e, para demonstrar que falava a sério, arrancou-as do peito e atirou-as pela janela fora. Disse que, se voltasse a estar numa trincheira comum oficial, o mataria comum tiro nas costas, como a um cão imundo, e que isso se aplicava ao general Pershing ou a qualquer outro general. Disse mais uma quantidade de coisas, comalgumas palavras feias que por lá aprendera à mistura, e ninguém abriu a boca para o contradizer. Quando acabou, senti pela primeira vez que houvera realmente uma guerra, que o homem que ouvira andara nela, que apesar da sua bravura a guerra fizera dele um cobarde e que, se voltasse a matar, seria completamente acordado e a sangue-frio, mas ninguém teria a coragem de o mandar para a cadeira eléctrica porque ele cumprira o seu dever para comos seus concidadãos dever que era ignorar todos os seus próprios instintos sagrados - e, portanto, estava tudo certo e era tudo justo, porque um crime lavava o outro em nome de Deus, pátria e humanidade, a paz seja comtodos vós... A segunda vez que experimentei a realidade da guerra foi quando o ex-sargento Griswold, um dos nossos boletineiros nocturnos, perdeu os trambelhos e fez o escritório em fanicos, numa das estações de caminhos-de-ferro. Mandaram-mo, para que o pusesse na rua, mas não tive coragem de o despedir. O tipo executara um acto de destruição tão belo que senti mais vontade de o abraçar do que de outra coisa. Só desejava que ele fosse ao vigésimo quinto andar, ou onde diabo o presidente e os vice-presidentes tinham os seus gabinetes, e fizesse uma limpeza à maldita quadrilha. Mas, em nome da disciplina e de acordo coma maldita farsa que tudo aquilo era, tinha de fazer qualquer coisa para o castigar, se não queria ser castigado eu, e por 42 Henry Miller Trópico de Capricórnio 43 isso, sem saber que menos poderia fazer, tirei-o do trabalho à comissão e repu-lo numa base salarial. O tipo levou a coisa muito a mal, sem compreender qual era exactamente a minha posição, se era por ele se contra ele, e por isso não tardei a receber uma carta sua, a dizer que me faria uma visitinha dentro de um ou dois dias e que estivesse preparado, pois ia-se vingar: no meu couro. Acrescentava que apareceria depois das horas de serviço e dizia que, se tivesse medo, seria melhor ter alguns calmeirões a proteger-me. Compreendi que falava muitíssimo a sério e senti-me muito fraco das canetas quando acabei de ler a carta. No entanto, esperei-o sozinho, pois parecia-me que ainda seria mais cobarde pedir protecção. Foi uma estranha experiência. Ele deve ter compreendido, no momento em que pôs os olhos em mim, que eu era um filho da puta e um hipócrita mentiroso e fedorento, como me chamava na sua carta. Mas eu era isso apenas porque ele era o que era, isto é, pouco ou nada melhor do que eu. Deve ter compreendido imediatamente que estávamos ambos no mesmo bote e que o maldito metia água assustadoramente. Vi que se passava algo desse género no seu íntimo quando ele avançou, exteriormente ainda furioso, ainda a espumar pela boca, mas interiormente já extinto, já todo mole e fofo. Quanto a mim, o medo que tinha dissipou-se no momento em que o vi entrar. O simples facto de estar ali calmo e sozinho, e de ser menos fone, menos capaz de me defender, dava-me ascendente sobre ele. Não que me interessasse ter ascendente sobre ele, porém. Mas acontecera assim e, naturalmente, tirei partido disso. Mal Griswold se sentou, tornou-se macio como papas. Já não era um homem, era apenas uma criança grande. Deve ter havido milhões como ele, crianças grandes commetralhadoras, capazes de dizimar regimentos inteiros sem pestanejar. Mas de regresso às trincheiras do trabalho, sem uma arma, sem um inimigo claro e visível, tornavam-se impotentes como formigas. Girava tudo à volta da questão da comida. A comida e a renda da casa, era só por isso que se tinha de lutar. Mas não havia nenhuma maneira, nenhuma maneira visível e clara, de lutar por essas coisas. Era como ver um exército forte e bem equipado, capaz de vencer fosse o que fosse que lhe surgisse pela frente, mas ao qual se ordenava todos os dias que recuasse, que recuasse, e recuasse, e recuasse, porque a estratégia assim o mandava, mesmo que isso significasse perder terreno, perder armas, perder munições, perder comida, perder sono, perder coragem e finalmente perder a própria vida. Onde quer que houvesse homens a lutar pela comida e pela renda havia essa retirada no nevoeiro, na noite, por nenhuma razão lógica, a não ser a da estratégia. E isso devorava-lhe o coração. Lutar era fácil, mas lutar pela comida e pela renda da casa era como lutar contra um exército de fantasmas. A única coisa que se podia fazer era recuar, e enquanto se recuava viam-se os próprios irmãos cair, um após outro, silenciosamente, misteriosamente, no nevoeiro, no escuro, e não se podia fazer nada para o evitar, absolutamente nada. O tipo estava tão confuso, tão perplexo, tão desesperadamente desnorteado e vencido, que apoiou a cabeça nos braços e chorou na minha secretária. E enquanto ele soluçava o telefone tocou de repente, e era do gabinete do vice-presidente - nunca era o próprio presidente; era sempre o seu gabinete -, queriam Griswold imediatamente despedido, e eu disse: «Sim, senhor!», e desliguei. Não disse nada a Griswold a esse respeito, acompanhei-o a casa e jantei comele e coma mulher e os filhos. E quando o deixei disse para comigo que se tivesse de despedir o tipo alguém iria pagá-lo, e além disso queria saber primeiro de onde viera a ordem e porquê. Furioso e impetuoso, fui direito ao gabinete do vice-presidente, logo de manhã, disse que queria falar como vice-presidente em pessoa e perguntei-lhe se dera a ordem, e porquê? E antes que ele tivesse tempo de negar, ou de explicar por que razão o fizera, falei-lhe um bocado da guerra, de improviso. Se ele não gostasse e não pudesse aceitá-lo... «E se não gosta, Mr. Will Twilldilliger, pode ficar como lugar, pode ficar como meu lugar e o dele e enfiá-los pelo eu acima...» E virei-lhe as costas. Voltei para o matadouro e entreguei-me ao meu trabalho, como de costume. Claro que esperava ser despedido antes de o dia terminar. Mas não aconteceu nada de semelhante. Para espanto meu, recebi um telefonema do director-geral a recomendar-me que tivesse calma, que serenasse um pouco, sim, acalme-se, não faça nada precipitado, nós estudaremos o assunto, etc. Creio que ainda estão a estudar o assunto, visto Griswold continuar a trabalhar - até o promoveram a escriturário, o que foi um golpe baixo, pois como escriturário ele ganha menos do que como boletineiro, mas at44 Henry Miller a promoção salvou-lhe o orgulho... e, sem dúvida, tirou-lhe mais um bocado de genica, também. Mas isso é o que acontece a um tipo quando ele é um herói apenas a dormir. A não ser que o pesadelo seja suficientemente forte para nos acordar, continuamos a recuar e ou acabamos sentados a uma secretária, ou então vice-presidentes. É tudo a mesma coisa, uma maldita confusão do caraças, uma farsa, um fiasco do princípio ao fim. Sei que é assim porque acordei. E quando acordei virei as costas a tudo. Saí pela mesma porta por onde entrara, sem um «comsua licença, senhor», sequer. , As coisas acontecem instantaneamente, mas primeiro pas- \ sa-se por um longo processo. O que sentimos quando aconte- ; cê alguma coisa é apenas a explosão e, um segundo antes, a ! centelha. Mas acontece tudo de acordo coma lei e como in- j teiro consentimento e a colaboração do cosmos. Antes porém í de me poder levantar e explodir, a bomba teve de ser devida- j mente preparada, devidamente escorvada. Depois de pôr as j coisas em ordem para os sacanas de cima, tive de ser apeado do meu alto cavalo, tive de ser pontapeado como uma bola de \ futebol, tive de ser pisado, esborrachado, humilhado, acorrentado, algemado, tornado impotente como uma medusa. Nunca na minha vida tive falta de amigos, mas neste período especial eles pareciam brotar à minha volta como cogumelos. ! Nunca dispunha de um momento só para mim. Se ia para casa à noite, na esperança de descansar, estava lá alguém à minha espera, para falar comigo. Às vezes estava lá até um grupo completo, e parecia nem fazer muita diferença que eu chegasse ou não. Cada grupo de amigos que arranjava desprezava o outro grupo. Stanley, por exemplo, desprezava-os a todos. Ulric também desdenhava muito dos outros. Tinha acabado de regressar da Europa,-após uma ausência de vários anos. Não nos víramos muito, desde rapazes, e um dia, por puro acaso, encontrámo-nos na rua. Esse dia foi importante na mi- ; nhã vida, porque me abriu um novo mundo, um mundo como qual sonhara muitas vezes, mas que nunca esperara ver. Lembro-me perfeitamente de que parámos à esquina da 6.a Avenida coma Rua 49, ao lusco-fusco. Lembro-me porque me pareceu absolutamente incongruente estar a ouvir um homem falar do monte Etna, do Vesúvio, de Capri, de Pompeia, de Marrocos e de Paris à esquina da 6.a Avenida coma Rua 49, Trópico de Capricórnio 45 em Manhattan. Lembro-me da maneira como ele olhava em seu redor, enquanto falava, como um homem que ainda não compreendera bem o que o esperava, mas pressentia vagamente que cometera um erro horrível ao regressar. Os seus olhos pareciam dizer, constantemente: isto não tem valor, não tem valor absolutamente nenhum. No entanto, não foi isso que disse, e sim, repetidamente: «Tenho a certeza de que gostarias. Estou certo de que é o lugar que te convém.» Quando me deixou, sentia-me num atordoamento, e enquanto não o voltei a encontrar não descansei. Queria ouvi-lo contar outra vez tudo, minuciosamente. Nada do que lera acerca da Europa parecia comparar-se como cintilante relato feito pelos próprios lábios do meu amigo. Parecia-me ainda mais miraculoso por provirmos ambos do mesmo ambiente. Ele conseguira-o porque tinha amigos ricos - e porque sabia poupar o seu dinheiro. Eu nunca conhecera ninguém que fosse rico, que tivesse viajado, que tivesse dinheiro no banco. Todos os meus amigos eram como eu, iam vivendo o dia-a-dia, sem um único pensamento para o futuro. O’Mara viajara um bocado, quase por todo o mundo... mas como vagabundo ou então no Exército, o que ainda era pior do que ser vagabundo. O meu amigo Ulric era o primeiro conhecido meu que podia realmente dizer que viajara. E sabia falar das suas experiências. Em consequência desse encontro casual na rua, passámos a encontrar-nos frequentemente, durante vários meses. Ele costumava ir-me procurar à noite, depois do jantar, e atravessávamos o parque, que ficava próximo. Que sede eu tinha! Fascinavam-me todos os pormenores acerca do mundo que ele visitara, por ínfimos que fossem. Ainda hoje, volvidos anos e anos, ainda hoje que conheço Paris como um livro, a imagem que ele me revelou dessa cidade continua diante dos meus olhos, ainda viva, ainda real. Às vezes, depois de uma chuvada, ao atravessar rapidamente a cidade de táxi, capto vislumbres fugidios da Paris que ele me descreveu: quadros momentâneos ao passar, talvez, pelas Tulherias, ou um relance de Montmartre, do Sacré Coeur, através da rue Laffitte, no último resplendor do crepúsculo. Um simples rapaz de Brooklyn! Empregava por vezes esta expressão, quando se envergonhava da sua incapacidade para se exprimir mais 46 Henry Miller Trópico de Capricórnio 47 adequadamente. E eu também era um simples rapaz de Brooklyn, o que equivale a dizer um dos últimos e mais insignificantes dos homens. Mas à medida que you vagueando, roçando por assim dizer os cotovelos pelo mundo, raro en- ; contro alguém capaz de descrever comtanto amor e tanta fidelidade o que viu e sentiu. Essas noites no Prospect Park, como meu amigo Ulnc, são, mais do que qualquer outra coi- ; sã, responsáveis pela minha presença aqui, hoje. Ainda me falta ver muitos dos lugares que ele me descreveu, e provavelmente a alguns nunca os verei. Mas vivem dentro de mini, cheios de calor e animação, tal qual como ele os criou durante os nossos passeios pelo parque. Entretecidos nestas conversas acerca do mundo exterior encontravam-se todo o corpo e toda a textura da obra de Lawrence. Muitas vezes, depois de o parque já se encontrar deserto havia muito, ainda discutíamos, sentados num banco, a natureza dos ideias de Lawrence. Ao recordar agora essas discussões, compreendo como estava confuso, como era tristemente ignorante do verdadeiro significado das palavras de Lawrence. Se tivesse realmente compreendido, nunca a minha vida teria seguido o curso que seguiu. Muitos de nós vivemos a maior parte da nossa vida submersos. No meu caso, posso afirmar que só depois de deixar a América emergi à superfície. Talvez a América não tivesse nada a ver comisso, mas mantém-se, mesmo assim, o facto de que só abri total e claramente os olhos quando cheguei a Paris. E possível que isso acontecesse apenas porque renunciei à América, porque renunciei ao meu passado. O meu amigo Kronski costumava troçar de mim por causa das minhas «euforias». Era a sua maneira ardilosa de me recordar, quando me via extraordinariamente alegre, que no dia seguinte estaria deprimido. E tinha razão. A minha vida cornpunha-se somente de altos e baixos. Longos períodos de tristeza e melancolia seguidos por extravagantes erupções de alegria, de inspiração, que tinham semelhanças comtranse. Nunca atingia um plano em que fosse eu próprio. Parece-me estranho dizê-lo, mas a verdade é que nunca era eu próprio. Ou era anónimo, ou a pessoa chamada Henry Miller elevada à máxima potência. Quando me encontrava no segundo estado de espírito, por exemplo, era capaz de inventar um livro inteirinho e contá-lo a Hymie, enquanto íamos no eléctrico - a Hymie, que nunca suspeitou que eu fosse algo mais do que um born gerente de pessoal. Parece que estou a ver os seus olhos, quando me fitou numa noite em que estava num dos meus estados de «euforia». Entráramos no eléctrico na Ponte de Brooklyn, para irmos a um apartamento de Greenpoint, onde nos esperavam duas galdérias, Hymie começara a falar-me, como de costume, dos ovários da mulher. Para começar, não sabia o que eram precisamente os ovários e, por isso, tratei de lho explicar de modo cru e simples. No meio da explicação pareceu-me, de súbito, tão profundamente trágico e ridículo que Hymie não soubesse o que eram os ovários que fiquei bêbedo, tão bêbedo como se tivesse uma garrafa de uísque no bucho. A partir da ideia de ovários doentes germinou, como que num relâmpago, uma espécie de vegetação tropical, constituída pela mais heterogénea miscelânea, no meio da qual se encontravam bem aninhados, tenazmente aninhados, Dante e Shakespeare. Ao mesmo tempo, recordei também subitamente a minha própria sequência de ideias, iniciada mais ou menos a meio da Ponte de Brooklyn e bruscamente interrompida pela palavra «ovários». Compreendi que tudo quanto Hymie dissera até à palavra «ovários» se coara através de mim como areia. A sequência de ideias que iniciara no meio da Ponte de Brooklyn fora a mesma que iniciara vezes sem conta, no passado, geralmente quando me dirigia a pé à oficina do meu pai, coisa que fazia diariamente, como num transe. Em resumo, o que iniciara fora um livro de horas, do tédio e da monotonia da minha vida no meio de uma actividade feroz. Havia anos que não pensava nesse livro que costumava escrever todos os dias, no trajecto da Delancey Street para Murray Hill. Mas ao passar pela ponte, como Sol a pôr-se e os arranha-céus a brilhar como cadáveres fosforescentes, a recordação do passado impôs-se... recordação de andar para trás e para diante na ponte, de ir para um emprego pior do que a morte e de regressar a um lar que era uma morgue, rememorando Fausto, a olhar para baixo, para o cemitério, a cuspir para o cemitério do comboio aéreo... o mesmo guarda na plataforma todas as manhãs, um imbecil... os outros imbecis a lerem o jornal, arranha-céus novos a subir, novos túmulos para neles se trabalhar e morrer... os barcos a passarem em baixo, a Fali ^li 48 Henry Miller River Line, a Albany Day Line... porque you para o trabalho, que farei esta noite, a cona quente a meu lado, posso fugir-lhe e tornar-me cowboy, experimentar o Alasca, as minas de ouro, safar-me, dar umas voltas, não morrer ainda, esperar mais um dia, um golpe de sorte, acabar tudo, descer, descer, como um saca-rolhas, cabeça e ombros na lama e pernas livres, os peixes morderão, amanhã uma vida nova, onde, em qualquer lado, para quê recomeçar, a mesma coisa em toda a pane, morte, a morte é a solução, mas não morras ainda, espera mais um dia, um golpe de sorte, uma cara nova, um novo amigo, milhões de oportunidades, ainda és muito jovem, estás melancólico, não morras ainda, espera outro dia, um golpe de sorte, vai fodendo... e assim ao longo da ponte até ao abrigo envidraçado, todos amalgamados, colados uns aos outros, vermes, formigas a saírem rastejantes de uma árvore morta, e os seus pensamentos a rastejarem do mesmo modo... Talvez ao encontrar-me ali em cima entre as duas margens, suspenso acima do trânsito, acima da vida e da morte, tendo de cada lado os altos túmulos esbraseados pelo Sol moribundo, o rio a correr sem destino, a correr como o próprio tempo, talvez todas as vezes que passava ali em cima qualquer coisa me espicaçasse, me instigasse a aproveitar, a anunciar-me. Fosse como fosse, todas as vezes que passava lá em cima encontrava-me verdadeiramente só, e sempre que isso acontecia o livro começava a escrever-se, a gritar as coisas que eu nunca murmurava sequer, os pensamentos que nunca proferia, as conversas que nunca travava, as esperanças, os sonhos e as ilusões que nunca admitia. Se era esse o verdadeiro eu, então era maravilhoso - e, mais importante ainda, parecia nunca mudar, recomeçar sempre onde parara na vez anterior, continuar a explorar o mesmo filão, um filão que descobrira quando era pequeno, fora à rua sozinho pela primeira vez e encontrara um gato morto, enregelado, no gelo sujo da valeta - a primeira vez que olhara para a morte e apreendera o seu significado. A partir desse momento, compreendi o que era estar isolado: cada objecto, cada coisa viva e cada coisa morta, tinha a sua existência independente. Os meus pensamentos também tinham uma existência independente. De súbito, ao olhar para Hymie e pensar naquela estranha palavra «ovários», naquele momento mais estranha do que qualquer outra palavra de todo o meu Trópico de Capricórnio 49 vocabulário, invadiu-me essa sensação de isolamento gelado e Hymie, sentado a meu lado, era uma rã, absolutamente uma rã e mais nada. Sentia-me saltar da ponte de cabeça, para o lodo primevo, comas pernas livres e à espera de serem mordidas - como Satanás mergulhava através dos céus, através da sólida crosta da Terra, de cabeça, a abrir caminho como um aríete, direito ao próprio cerne da Terra, ao mais negro, mais denso e mais quente poço do Inferno. Caminhava pelo deserto Mojave e o homem que estava a meu lado esperava que caísse a noite para se atirar a mim e chacinar-me. Percorria de novo a Terra do Sonho e um homem caminhava no arame por cima de mim e, por cima dele, num avião, outro homem escrevia letras de fumo no céu. A mulher que me dava o braço estava grávida, e dentro de seis ou sete anos a coisa que transportava dentro dela seria capaz de ler as letras no céu, e ele ou ela, ou a coisa, saberia o que era um cigarro, e mais tarde fumaria o cigarro, talvez um maço inteiro por dia. No útero, formavam-se unhas em cada dedo dos pés e das mãos. Podíamos parar aí, numa unha dos pés, a mais minúscula unha imaginável, e dar cabo do juízo a pensar nela, a tentar compreendê-la. Numa das colunas do Razão estão os livros que o homem escreveu, contendo uma tal embrulhada de sabedoria e idiotice, de verdade e mentira, que nem que se vivesse tantos anos como Matusalém seria possível encontrar o fio da meada; na outra coluna do Razão estão coisas como unhas dos pés, cabelo, dentes, sangue, ovários - se quiserem -, tudo incalculável e tudo escrito como outra espécie de tinta, comoutro tipo de caligrafia incompreensível e indecifrável. Os olhos da rã estavam fixos em mim como dois botões de colarinho enterrados em gordura congelada; estavam cravados no suor frio do lodo primevo. Cada botão de colarinho era um ovário que se descolara, uma ilustração tirada do dicionário sem o benefício da lucubração; sem brilho na fria gordura amarela do globo ocular, cada ovário abotoado produzia um arrepio subterrâneo, o rinque de patinagem do Inferno onde os homens se encontravam de cabeça para baixo, comas pernas livres à espera de serem mordidas. Dante andava por aí desacompanhado, vergado sob o peso da sua visão, e subia gradualmente para o céu por meio de círculos infinitos, para ser entronizado na sua obra. Aí, coma fronte lisa, Shakespeare 50 Henry Miller caía. no insondável devanear da raiva, para emergir em elegantes brochuras e insinuações. Rajadas de riso varriam uma glauca geada de incompreensão. Do centro do olho da rã emanavam raios brancos e limpos de pura lucidez que não deveria ser anotada nem categorizada, que não deveria ser numerada nem definida, que girava, cega, em calidoscópica mutação. Hymie, a rã, era um tumor ovárico gerado na elevada passagem entre duas margens: para ele se tinham erguido os arranhacéus, desbravado os desertos, chacinado os índios e exterminado os búfalos; para ele se tinham unido as cidades gémeas pela Ponte de Brooklyn, afundado os caixões, esticado os cabos de torre para torre; para ele se sentavam homens no céu, de cabeça para baixo, a escrever palavras de fogo e fumo; para ele se tinham inventado os anestésicos, e os fórcipes, e o Grande Berta, que podia destruir o que os olhos não podiam ver; para ele se domara a molécula e o átomo se revelara sem substância; para ele as estrelas eram todas as noites sondadas comtelescópios e fotografavam-se mundos no acto de gestação; para ele se derrubavam barreiras de tempo e espaço e todo o movimento, fosse o voo das aves ou a revolução dos planetas, era irrefutável e incontestavelmente explanado pelos supremos sacerdotes do desapossado cosmos... Então, como no meio da ponte, no meio de um passeio, sempre no meio, quer de um livro, quer de uma conversa, quer do acto do amor, então eu tomava de novo consciência de que nunca fizera o que queria fazer, e desse não fazer o que queria fazer crescia em mim esta criação que não era mais do que uma planta obsessiva, uma espécie de coral que expropriava tudo, incluindo a própria vida, até a própria vida se tornar o que era negado mas que constantemente se impunha, dando vida e matando vida ao mesmo tempo. Via isso continuar depois da morte, como o cabelo a crescer num cadáver, as pessoas a dizerem «morte» mas o cabelo a provar a existência de vida, até não haver nenhuma morte e sim essa vida de cabelo e unhas, desaparecido o corpo, extinguido o espírito, mas na morte algo ainda vivo, expropriando espaço, originando tempo, criando infinito movimento. Isso podia acontecer através do amor, ou da mágoa, ou de nascer comum pé boto; a causa, nada; o acontecimento, tudo. No princípio era o Verbo... O que quer que fosse o Verbo, doença ou criação, ainda andaTropico de Capricórnio 51 vá à solta; e continuaria infinitamente, ultrapassando tempo e espaço, sobrevivendo aos anjos, destronando Deus e soltando o universo. Qualquer palavra continha todas as palavras para aquele que fora separado através do amor, ou da mágoa, ou fosse de que causa fosse. Em todas as palavras a corrente regressava ao princípio que se perdera e nunca mais se reencontraria, pois não havia princípio nem fim, mas somente aquilo que se exprimia em princípio e fim. Por isso no eléctrico ovárico decorria aquela viagem de homem e rã compostos de matéria idêntica, nem melhores nem piores que Dante, mas infinitamente diferentes, um sem saber precisamente o significado de nada, o outro sabendo demasiado precisamente o significado de tudo - donde, ambos perdidos e confusos através de princípios e fins, para acabarem por ser depositados na Rua de Java ou da índia, em Greenpoint, onde regressariam à chamada corrente da vida por intermédio de um par de bonecas de serradura comovários estremecentes da conhecida classe dos gastrópodes. O que se apresenta agora como a mais maravilhosa prova da minha aptidão, ou inaptidão, para a época é o facto de nada acerca do que as pessoas diziam ou escreviam ter tido qualquer verdadeiro interesse para mim. Só o objecto me perseguia, a coisa separada, destacada, insignificante. Podia ser uma parte do corpo humano ou uma escada numa casa de vaudeville, podia ser uma chaminé ou um botão achado na valeta. Fosse o que fosse, permitia-me desabafar, render-me, apor a minha assinatura. E não podia apor a minha assinatura à vida que me cercava, às pessoas que compunham o mundo que conhecia. Estava definitivamente fora do seu mundo, como um canibal está fora das fronteiras da sociedade civilizada. Estava cheio de um amor perverso pela coisa em si - não se tratava de um afecto filosófico, mas sim de uma fome apaixonada, desesperadamente apaixonada, como se nessa coisa abandonada, sem valor, ignorada por todos, se contivesse o segredo da minha própria regeneração. Vivendo num mundo caracterizado por uma pletora do novo, eu prendia-me ao velho. Em cada objecto havia uma partícula minúscula que exigia especialmente a minha atenção. Sentia-me dotado de um olho microscópico para a mácula, para o grão de fealdade que, para mim, constituía 52 Henry Miller a única beleza do objecto. Fosse o que fosse que colocasse o objecto à parte, ou o tornasse imprestável, ou o datasse, atraía-me e tornava-mo querido. Se isso era perverso, também era saudável, se considerarmos que eu não estava destinado a pertencer ao mundo que irrompia à minha volta. Em breve eu próprio me tornaria igualmente como esses objectos que venerava, uma coisa à parte, um membro inútil da sociedade. Estava definitivamente datado, a esse respeito não existiam dúvidas. E todavia era capaz de divertir, de instruir, de nutrir. Mas nunca de ser aceite, de modo genuíno. Quando o desejava, quando sentia, digamos, a brotoeja, podia escolher qualquer homem, em qualquer estrato da sociedade, e fazê-lo ouvir-me. Podia fasciná-lo, se quisesse, mas, como um mágico ou um feiticeiro, somente enquanto o espírito permanecesse em mim. No fundo, pressentia nos outros uma desconfiança, uma intranquilidade, um antagonismo que, por ser instintivo, ’ era irremediável. Devia ter sido um palhaço; isso ter-me-ia proporcionado o mais vasto campo de expressão. Mas subestimava a profissão. Se me tivesse tornado palhaço, ou até actor de vaudeville, teria sido famoso. As pessoas ter-me-iam apreciado porque não me teriam compreendido; mas teriam cornpreendido que eu não era para ser compreendido. Isso pelo menos teria sido um alívio. Sempre me causou grande espanto a facilidade comque as pessoas se podiam irritar, só por me ouvirem falar. Talvez a minha linguagem fosse um tanto ou quanto extravagante, embora elas se irritassem comfrequência precisamente quando eu fazia todos os esforços para me dominar. O arredondar de uma frase, a escolha infeliz de um adjectivo, a facilidade comque as palavras me assomavam aos lábios, as alusões a assuntos considerados tabus, tudo isso conspirava para me assinalar como um fora-da-lei, como um inimigo da sociedade. Por \ muito bem que as coisas começassem, mais cedo ou mais tarde estava o caldo entornado. Se queria ser modesto e humilde, por exemplo, tornava-me excessivamente modesto e excessivamente humilde. Se pretendia ser alegre e espontâneo, atrevido e estouvado, tornava-me excessivamente atrevido, excessivamente alegre. Nunca conseguia pôr-me an point como indivíduo comquem calhava falar. Ainda que não fosse uma questão de vida ou de morte - e para mim, então, era tudo Trópico de Capricórnio 53 uma questão de vida ou de morte -, ainda que se tratasse apenas de passar um serão agradável em casa de algum conhecido, acontecia o mesmo. Emanavam de mim vibrações, sobretons e subtons, que carregavam desagradavelmente a atmosfera. Podiam-se ter divertido toda a noite comas minhas histórias, podiam-se ter rido dos meus ditos, como tantas vezes acontecia, e os augúrios podiam parecer os melhores possíveis. Mas, tão certo como é certo o destino, acontecia qualquer coisa antes de a noite findar, havia qualquer vibração que se soltava e fazia tilintar o lustre ou recordava a alguma alma sensível o penico debaixo da cama. Ainda o riso lhes morria nos lábios e já o veneno começava a fazer sentir os seus efeitos. «Espero voltar a vê-lo em breve», diziam, mas a mão mole e húmida que me estendiam desmentia as palavras. Persona non grata! Jesus, como tudo isso me parece agora claro! Não havia escolha possível: tinha de aceitar o que estava à mão e de aprender a gostar dele. Tinha de aprender a viver coma escumalha, a nadar como um rato do cano ou morrer afogado. Quando resolvemos juntar-nos à manada ficamos imunizados. Para sermos aceites e apreciados temos de nos anular, de nos tornar indistinguíveis da manada. Podemos sonhar, se sonharmos como ela. Mas se sonhamos qualquer coisa diferente não estamos na América, não somos americanos da América e sim um hotentote em África, ou um calmuco, ou um chimpanzé. No momento em que temos em pensamento «diferente», deixamos de ser americanos. E no momento em que nos tornamos algo diferente encontramo-nos no Alasca, ou na ilha da Páscoa, ou na Islândia. Estou a dizer isto comrancor, cominveja, commalícia? Talvez. Talvez lamente não ter sido capaz de me tornar um americano. Talvez. No meu zelo de agora, que é novamente americano, estou prestes a dar vida a um edifício monstruoso, a um arranha-céus que durará sem dúvida muito para além de os outros arranha-céus terem desaparecido, mas que também desaparecerá quando o que o gerou desaparecer. Tudo quanto é americano desaparecerá um dia, mais completamente do que o que é grego, ou romano, ou egípcio. Esta foi uma das ideias que me expulsou da morna e confortável corrente sanguínea onde, todos búfalos, em tempos pastámos em paz. Uma ideia que me tem causado mágoa infinita, pois não per- Jt. 54 Henry Miller tencer a algo duradouro é a maior das agonias. Mas não sou búfalo, nem tenho desejo nenhum de o ser; não sou sequer um búfalo espiritual. Afastei-me para me reunir a uma corrente de consciência mais antiga, a uma raça anterior à dos búfalos, a uma raça que sobreviverá ao búfalo. Todas as coisas, todos os objectos animados ou inanimados diferentes, possuem características inerradicáveis. O que eu sou é inerradicável, porque é diferente. Isto é um arranha-céus, como disse, mas é diferente dos arranha-céus comuns, à 1’américaine. Neste arranha-céus não há elevadores nem janelas de 73.° andar para delas se saltar. Se nos cansamos a subir, estamos quilhados. Não há nenhuma lista de inquilinos no átrio. Se procura alguém, tem mesmo de procurar. Se quer uma bebida, tem de sair e ir buscá-la; não há lojas de refrescos neste edifício, nem tabacarias, nem cabinas telefónicas. Todos os outros arranha-céus têm o que você quer; este só tem o que eu quero, o que eu gosto. E algures neste arranha-céus existe Valeska, e a ela chegaremos quando me der na gana. Por en- ; quanto Valeska está bem, atendendo a que se encontra 1,80 m J debaixo da terra e talvez até já esteja limpa pelos vermes. \ Quando existia em carne e osso também foi limpa pelos ver- j mês humanos, que não respeitam nada que tenha uma tonali- j dade diferente, um odor diferente. O que havia de triste em Valeska era possuir sangue negro i nas veias. Era deprimente para quantos a rodeavam. Tornava- | -nos conscientes disso, quer quiséssemos, quer não. O sangue j negro, como disse, e o facto de a mãe ser uma relaxada. A mãe | era branca, claro. Quem era o pai ninguém sabia, nem a pró- j pria Valeska. j Correu tudo muito bem até ao dia em que um serviçal ju- j deuzinho do gabinete do vice-presidente a observou. Ficou horrorizado, segundo me informou confidencialmente, por pensar que eu contratara uma pessoa de cor como minha se- ! cretária. Falou como se ela pudesse contaminar os boletineiros. No dia seguinte fui chamado à pedra. Tal qual como se tivesse cometido um sacrilégio. Claro que fingi não ter notado nada de especial nela, a não ser que era muitíssimo inteligente e muitíssimo competente. Por fim, o próprio presidente me- i teu a colherada. Teve uma breve entrevista comValeska, du- j rante a qual lhe propôs, muito diplomaticamente, um lugar j Trópico de Capricórnio 55 melhor em Havana. Nenhuma alusão à mácula do sangue. Falou-se simplesmente no facto de os seus serviços terem sido extraordinários e de desejarem promovê-la... para Havana. Valeska voltou ao escritório furiosa. Era magnífica, quando estava zangada. Declarou que não sairia dali. Steve Romero e Hymie estavam presentes, nessa altura, e fomos todos jantar juntos. Durante a noite ficámos um bocadinho entornados e a língua de Valeska desatou-se. A caminho de casa, informoume de que ia lutar e desejava saber se isso poria o meu emprego em perigo. Respondi-lhe que se ela fosse despedida eu também sairia. Ao princípio, fingiu não acreditar. Afirmei-lhe que falava a sério, que não me interessava o que acontecesse. Pareceu excessivamente impressionada. Agarrou-me as duas mãos e apertou-as devagarinho, comas lágrimas a correr pelas faces. Foi assim que as coisas começaram. Creio que logo no dia seguinte lhe passei um bilhetinho a dizer que estava doido por ela. Leu-o sentada defronte de mim e quando acabou olhou-me a direito, nos olhos, e afirmou não acreditar. Mas nessa noite fomos outra vez jantar juntos, bebemos e dançámos, e enquanto dançávamos ela apertou-se lascivamente contra mim. Nem de propósito, foi precisamente na altura em que a minha mulher se preparava para fazer outro aborto. Falei disso a Valeska, enquanto dançávamos. A caminho de casa, perguntou, de súbito: «Porque não me deixas emprestar-te cem dólares?» Na noite seguinte levei-a a jantar em minha casa e deixei-a entregar os cem dólares à minha mulher. Espantou-me como se entenderam bem as duas. Antes de o serão acabar já estava combinado que Valeska iria lá para casa no dia do aborto e tomaria conta da miúda. O dia chegou e eu dispensei Valeska durante a tarde. Cerca de uma hora depois de ela sair, resolvi subitamente folgar também naquela tarde. Pus-me a caminho do teatro burlesco da Rua 14. Mas mudei de repente de ideias, a um quarteirão do teatro. Mudei de ideias porque me lembrei de que, se alguma coisa corresse mal - se a patroa esticasse o pernil -, não me sentiria muito bem comigo próprio por ter passado a tarde no teatro. Dei umas voltas pelas arcadas onde se vendem objectos baratos e depois fui para casa. E estranho como as coisas acontecem. Ao tentar entreter * 56 Henry Miller a miúda lembrei-me, de súbito, de um truque que o meu avô me ensinara, quando era garoto. Pegava-se nas pedras do dominó e faziam-se comelas barcos de guerra altos; depois puxava-se devagarinho a toalha da mesa onde eles navegavam e, quando chegavam à borda da mesa, dava-se um puxão brusco e iam parar ao chão: afundavam-se. Fizemo-lo diversas vezes, os três, até que a garota se encheu de sono e adormeceu na sala ao lado. As pedras do dominó estavam espalhadas pelo chão, onde também se encontrava a toalha. De súbito, não sei como, Valeska estava encostada à mesa, coma língua enfiada pela minha boca abaixo e a minha mão entre as pernas. Quando a deitei para trás, em cima da mesa, enroscou as pernas no meu corpo. Senti um dos dominós debaixo dos pés - pane da esquadra que destruíramos uma dúzia de vezes ou mais. Pensei no meu avô sentado no banco, a avisar a minha mãe de que , eu era novo de mais para ler tanto e coma tal expressão só- j nhadora nos olhos, enquanto encostava o ferro quente à cos- j tura humedecida de um casaco; pensei no ataque dos Rough j Riders a San Juan Hill e no quadro que representava Teddy a atacar, à frente dos seus voluntários, e que vinha no grande , livro que eu costumava ler ao lado da bancada de trabalho; ; pensei no couraçado «Maine», que navegava por cima da minha cabeça no quartinho de janela gradeada, e no almirante ’ Dewey, em Schley e em Sampson; pensei na visita que nunca fizera ao Estaleiro da Marinha, porque no caminho o meu pai se lembrara subitamente de que tinha de ir ao médico - e quando saí do consultório já não tinha amígdalas nem fé algu- i ma nos seres humanos... Mal acabáramos quando a campai- ; nhã tocou. Era a minha mulher que regressava do matadouro. ; Atravessei o vestíbulo, para abrir a porta, ainda a abotoar a braguilha. Vinha branca como a cal, como se não fosse capaz de fazer mais nenhum. Metemo-la na cama e depois apanhámos as pedras do dominó e pusemos a toalha na mesa. Uma noite destas, num bistro, quando ia para a retrete, passei por dois velhotes que jogavam dominó. Tive de parar e pegar numa pedra. O contacto recordou-me imediatamente os barcos de guerra e o barulho que faziam ao cair no chão. E com i os barcos de guerra lá veio também a recordação das amígdalas cortadas e da fé perdida nos seres humanos. Todas as vezes que passava pela Ponte de Brooklyn e olhava para baixo, na Troptco de Capricórnio 57 direcção do Estaleiro da Marinha, era como se as tripas me caíssem. Lá muito em cima, suspenso entre duas margens, sentia-me sempre como se pairasse sobre um vácuo; lá em cima, tudo quanto jamais me acontecera parecia irreal e, pior do que irreal, desnecessário. Em vez de me reunir à vida, aos homens, à actividade dos homens, a ponte parecia cortar todas as ligações. Quer me dirigisse para uma das margens, quer para a outra, não fazia diferença: de ambos os lados era o Inferno. Não sei como, conseguira cortar a minha ligação como mundo que mãos humanas e cérebros humanos estavam a criar. Talvez o meu avô tivesse razão, talvez me tivesse estragado em botão, por causa dos livros que lera. Há séculos, porém, que os livros não me reclamam. Deixei praticamente de ler, há muito tempo. Mas a mácula permanece. Agora as pessoas são livros para mim. Leio-as de capa a capa e ponho-as de parte. Devoro-as, uma após outra. E quanto mais leio mais insaciável me torno. Não há limites para a minha fome. Até que começou a formar-se dentro de mim uma ponte que me juntou de novo à corrente da vida, da qual me tinham separado em criança. Um terrível sentimento de desolação. Pairou sobre mim durante anos. Se acreditasse nas estrelas, teria de acreditar que me encontrava totalmente sob a influência de Saturno. Tudo quanto me acontecia, acontecia demasiado tarde, para ter algum significado para mim. Até como meu nascimento foi assim. Previsto para o Natal, nasci atrasado meia hora. Pareceu-me sempre ser a espécie de indivíduo que é o que é em virtude de ter nascido em 25 de Dezembro. O almirante Dewey nasceu nesse dia e Jesus Cristo também... E, sei lá, talvez Crixnamurti também. De qualquer modo, era esse tipo de indivíduo que eu estava destinado a ser. Mas, devido ao facto de a minha mãe ter um útero preensor, de me ter agarrado como um octópode, saí cá para fora comoutra configuração - por outras palavras, commá sorte. Dizem - refiro-me aos astrólogos que as coisas irão melhorando para mim à medida que o tempo for passando; que o futuro será, na verdade, glorioso. Mas que me importa a mim o futuro? Teria sido melhor se a minha mãe tivesse tropeçado na escada, na manhã de 25 de Dezembro, e partido o pescoço: isso ter-me-ia proporcionado um começo mais justo! Quando tento pensar no momento em 58 Henry Miller Trópico de Capricórnio 59 que a ruptura ocorreu, you recuando, até não a poder atribuir a outra coisa senão ao atraso no nascimento. Até a minha mãe, coma sua língua cáustica, parecia compreendê-lo, de certo modo: «Sempre a ficar para trás, como o rabo de uma vaca.» Era assim que me definia. Mas terei culpa de ela me ter conservado fechado dentro de si até a hora passar? O destino pré- i parara-me para ser tal e tal pessoa; as estrelas estavam na devi- ; da conjunção e eu estava de acordo comelas e mortinho por sair. Mas não fui metido nem achado na escolha da mãe que deveria parir-me. Talvez tenha tido sorte em não nascer idiota, dadas todas as circunstâncias. Uma coisa parece no entanto evidente - e isso é uma espécie de ressaca do dia 25: nasci comum complexo de crucificação. Isto é, para ser mais preciso: nasci fanático. Fanático! Lembro-me de me arremessarem essa palavra, desde a infância. Especialmente os meus pais. Que é fanático? É uma pessoa que acredita apaixonadamente e actua desesperadamente de acordo comaquilo em que acredita. Passei a vida a acreditar em qualquer coisa e, consequen- > temente, a meter-me em trabalhos. Quanto mais palmadas me davam nas mãos, mais firmemente acreditava. Eu acreditava e o resto do mundo não! Se fosse só uma questão de suportar castigos, uma pessoa poderia ir acreditando até ao fim. Mas o mundo é mais insidioso do que isso. Em vez de sermos casti- ’ gados, somos minados, escavados, tiram-nos o chão debaixo dos pés. Nem sequer estou a pensar em traição. A traição é compreensível e combatível. Não, trata-se de algo pior, de , algo inferior à traição. É um negativismo que nos leva a exce- ’ der-nos, que nos obriga a consumir perpetuamente a nossa ; energia no acto de nos equilibrarmos. Somos tomados por uma espécie de vertigem espiritual, cambaleamos na beira do abismo, o nosso cabelo põe-se em pé e não podemos acreditar que debaixo dos nossos pés se está a abrir um abismo incomensurável. Isso resulta de excesso de entusiasmo, do desejo ] apaixonado de abraçar as pessoas, de lhes demonstrar o nosso amor. Quanto mais estendemos os braços para o mundo, mais ele recua. Ninguém quer amor autêntico, ódio autêntico. Ninguém quer que ponhamos a nossa mão nas suas sagradas entranhas - isso é só para o padre na hora do sacrifício. Enquanto vivermos, enquanto o sangue ainda estiver quente, teremos de fingir que sangue é coisa que não existe, que um esqueleto sob a cobertura da carne é coisa que não há. Não pise a relva! É obedecendo a este lema que as pessoas vivem. Se prolongarmos durante tempo suficiente o equilíbrio à beira do abismo, tornamo-nos peritos na matéria: seja para que lado for que nos empurrem, endireitamo-nos sempre. O equilíbrio constante desenvolve em nós uma alegria feroz uma alegria que não é natural, deveria dizer. Hoje há só dois povos no mundo que compreendem o significado de tal declaração: os Judeus e os Chineses. Se não pertencemos a um nem a outro, estamos numa estranha situação. Rimo-nos sempre no momento errado e somos considerados cruéis e sem coração, quando na realidade somos apenas duros e resistentes. Mas, se nos ríssemos quando os outros se riem e chorássemos quando os outros choram, então deveríamos preparar-nos para morrer como eles morrem e viver como eles vivem. Isto significa estar certo e ficar a perder ao mesmo tempo. Significa estar morto quando se está vivo e estar vivo só quando se está morto. Em semelhante companhia, o mundo apresenta sempre um aspecto normal, mesmo nas condições mais anormais. Nada está certo ou errado, mas pensar torna as coisas certas ou erradas. Deixamos de acreditar na realidade e passamos a acreditar no pensamento. E quando somos empurrados da beira do abismo, os nossos pensamentos acompanham-nos e não nos servem de nada. Em certo sentido quero dizer, num sentido profundo , Cristo nunca foi empurrado da beira do abismo. No momento em que cambaleava e oscilava, a contra-corrente negativa, num grande ressalto, recuou e suspendeu-lhe a morte. Todo o impulso negativo de humanidade pareceu enrolarse numa monstruosa massa inerte, para criar a inteireza humana, o número um, uno e indivisível. Houve uma ressurreição que é inexplicável se não aceitarmos o facto de que os homens sempre estiveram dispostos a negar o seu próprio destino. A Terra gira, as estrelas giram, mas os homens, o grande corpo de homens que faz o mundo, estão presos na imagem de um e só um. Se não somos crucificados, como Cristo, se conseguimos sobreviver, continuar a viver acima e para além do sentimento de desespero e futilidade, então acontece outra coisa curiosa. É como se tivéssemos realmente morrido e realmente sido 60 Henry Miller . J ressuscitados; vivemos uma vida supernormal, como os Chi-1 neses. Quero dizer, somos anormalmente alegres, anormalmente saudáveis, anormalmente diferentes. O sentimento do trágico desaparece: vivemos como uma flor, uma pedra ou uma árvore, em comunhão coma Natureza e contra a Natureza, ao mesmo tempo. Se o nosso melhor amigo morre, nem j sequer nos damos ao trabalho de ir ao funeral; se um homem í é atropelado por um carro mesmo debaixo dos nossos olhos, j continuamos o nosso caminho como se nada tivesse aconteci- i do; se rebenta uma guerra, deixamos os nossos amigos irem l para a frente, mas nós não experimentamos interesse algum l pela carnificina. E, etc., etc. A vida torna-se um espectáculo e, j se por acaso somos artistas, registamos o espectáculo que vai J passando. A solidão é abolida, porque todos os valores, in- l clumdo o nosso próprio valor, são destruídos. Só a simpatia i floresce, mas não se trata de uma simpatia humana, limitada: é l algo monstruoso e diabólico. Importamo-nos tão pouco coml tudo que nos podemos dar ao luxo de nos sacrificar por ai- l guém ou por alguma coisa. Ao mesmo tempo, o nosso inte- J resse, a nossa curiosidade, desenvolvem-se a um ritmo escan- 1 daloso. Isso também é suspeito, pois tanto nos pode prender a l um botão de colarinho como a uma causa. Não existe nenhu- l ma diferença fundamental, inalterável, entre as coisas: tudo f flui, é tudo perecível. A superfície do nosso ser está constan- i temente a ruir, mas por dentro tornamo-nos duros como dia- j mante. E talvez seja esse âmago duro e magnético do nosso j interior que atrai os outros para nós, quer queiram, quer não. B Uma coisa é certa: quando morremos e somos ressuscitados B pertencemos à terra, e o que quer que seja da terra é inaltera- B velmente nosso. Tornamo-nos uma anomalia da Natureza, l um ser sem sombra; nunca mais voltaremos a morrer, desapa- l recemos apenas como os fenómenos que nos cercam. I Nada do que estou agora a contar era do meu conhecimento quando passei pela grande mudança. Tudo quanto su- l portei foi como que uma preparação para o momento em que, « depois de pôr o chapéu na cabeça, uma noite, saí do escritorio, saí da minha até então vida particular e procurei a mulher ,| que me libertaria de uma morte viva. A essa luz recordo agorã as minhas vagueações nocturnas pelas ruas de Nova lor- i que, as noites brancas em que caminhei como um sonâmbulo m Trópico de Capricórnio 61 e vi a cidade em que nascera como se vêem coisas numa miragem. Muitas vezes era O’Rourke, o detective da companhia, quem me acompanhava através das ruas silenciosas. Muitas vezes o chão estava coberto de neve e o ar frio, gélido. E O’Rourke falava interminavelmente de roubos, de assassínios, de amor, da natureza humana, da Idade do Ouro. Quando estava bem lançado num assunto tinha o hábito de parar de repente no meio da rua e colocar o pé pesado entre os meus, de modo que não me podia mexer. Depois, agarrando-me pelas bandas do casaco, aproximava o rosto do meu e falava-me para os olhos, cada palavra sua a penetrar-me como uma volta de verruma. Ainda nos estou a ver aos dois no meio de uma rua às quatro da manhã, como vento a assobiar, a neve a cair e O’Rourke alheio a tudo menos à história que tinha de deitar cá para fora. Lembro-me de que, enquanto ele falava, eu tinha o hábito de observar as redondezas pelo canto do olho, consciente, não do que ele dizia, mas sim de nós dois parados em Yorkville, ou na Allen Street, ou na Broadway. Parecia-me sempre um pouco louca a seriedade comque recontava as suas banais histórias de assassínio no meio da maior confusão arquitectónica que o homem jamais criara. Enquanto ele falava de impressões digitais eu podia estar a observar a cimalha ou a cornija de um pequeno edifício de tijolo vermelho, atrás do seu chapéu preto. Pensava no dia em que a cornija fora colocada, em quem teria sido o homem que a desenhara e porque a fizera tão feia, tão semelhante a todas as outras feias e desairosas cornijas por que passáramos do East Side até ao Harlém e para lá do Harlém, e por que passaríamos se quiséssemos prosseguir para além de Nova Iorque, para além do Mississipi, para além do Grand Canyon, para além do deserto Mojave, que encontraríamos em todos os pontos da América onde há edifícios para homens e mulheres. Parecia-me absolutamente louco que tivesse de passar todos os dias da minha vida a ouvir as histórias de outras pessoas, tragédias banais de pobreza e angústia, de amor e morte, de anseio e desilusão. Se, como acontecia, todos os dias me procuravam pelo menos cinquenta homens, cada um contando a sua história dolorosa, e se, comcada um, tinha de ficar calado e «receber», era muito natural que em determinado ponto do percurso tivesse de fechar as orelhas e endurecer o coração. A mais pequenina ’IÍÍÍ 62 Henry Miller Trópico í/e Capricórnio 63 migalha me bastava; era capaz de levar dias e até semanas a mastigá-la e a digeri-la. No entanto, tinha de continuar ali sentado, a ser inundado, tinha de sair à noite e ouvir mais, de , dormir a ouvir, de sonhar a ouvir. Vinham em caudais de to- J das as partes do mundo, de todos os estratos da sociedade, falando mil línguas diferentes, adorando deuses diferentes, respeitando leis e costumes diferentes. A história do mais pobre deles todos era um volume imenso e, no entanto, se todas elas fossem escritas em pormenor, poderiam ser todas comprimidas no tamanho dos Dez Mandamentos, poderiam ser todas escritas nas costas de um selo de correio, como o Pai-Nosso. Esticavam-me tanto, todos os dias, que a minha pele parecia ( cobrir o mundo inteiro; e quando ficava só, quando já não era \ obrigado a ouvir, encolhia até ficar do tamanho de um bico de ; alfinete. A maior delícia, mas rara, era percorrer as ruas sozinho... percorrer as ruas à noite, quando estavam todos recolhidos, e reflectir no silêncio que me cercava. Milhões deitados s de costas, mortos para o mundo, de bocas escancaradas a ressonar, sem emitirem mais nenhum som. Caminhar pelo meio da mais louca arquitectura jamais inventada, perguntando-me porquê e comque fim, se todos os dias tinha de sair daqueles miseráveis tugúrios ou daqueles magníficos palácios um exército de homens desejosos de desbobinar a sua história de miséria. Num ano, calculando por baixo, ouvia vinte e cinco mil j histórias; em dois anos, cinquenta mil; em quatro anos seriam , cem mil, e em dez anos estaria louco varrido. Já conhecia gen- i te suficiente para povoar uma cidade de born tamanho. E que cidade seria, se eles se pudessem reunir todos! Quereriam arranha-céus? Quereriam museus? Quereriam bibliotecas? Também construiriam esgotos, e pontes, e carris, e fábricas? Fariam as mesmas cornijazinhas de folha, todas iguais, uma após outra, ad mfinitum, de Battery Park a Golden Bay? Duvido. Só o látego da fome seria capaz de os fazer mexerem-se. A barriga vazia, a expressão louca do olhar, o medo, o medo do pior a espicaçá-los, a incitá-los. Um após outro, todos iguais, todos levados ao desespero, a construírem, sob o látego da fome, os mais altos arranha-céus e os mais temíveis couraçados, a fazerem o melhor aço, a mais fina das rendas, o mais delicado dos vidros. Caminhar comO’Rourke a ouvir falar apenas de roubo, fogo posto, estupro e homicídio, era j como um pequeno tema de uma grande sinfonia. E assim como podemos assobiar uma ária de Bach e pensar numa mulher comquem desejaríamos dormir, assim também, ao escutar O’Rourke, eu pensava no momento em que ele pararia e me perguntaria: «Que queres comer?» No meio do mais cruento assassínio, eu pensava então sem dificuldade no lombo de porco que certamente haveria em certo restaurante um pouco adiante, e perguntava-me comque género de vegetais o acompanharia e se, para a sobremesa, pediria torta ou um pudim de custarda. Acontecia o mesmo quando dormia coma minha mulher, de vez em quando. Enquanto ela gemia e murmurava idiotices, eu era capaz de pensar se ela teria despejado as borras da cafeteira do café, porque a fulana tinha o mau hábito de deixar as coisas correr, desleixadamente. As coisas importantes, note-se. Café feito de fresco era importante - e bacon comovos também. Se ela engravidasse outra vez seria mau, seria mesmo sério, em certo sentido, mas mais importante do que isso era o café fresco, de manhã, e o cheiro do bacon comovos. Era capaz de suportar os corações despedaçados, e os abortos, e os romances terminados, mas para isso precisava de ter qualquer coisa no bandulho, e queria que esse qualquer coisa fosse nutritivo, saboroso. Sentia exactamente como Jesus Cristo teria sentido se tivesse sido descido da cruz e não lhe permitissem morrer na carne. Tenho a certeza de que o abalo da crucificação teria sido tão grande que ele sofreria uma amnésia total no que respeita à Humanidade. Tenho a certeza de que, depois de as suas feridas sararem, se estaria nas tintas para as atribulações da Humanidade e se atiraria, como maior apetite, a uma chávena de café acabado de fazer e a uma fatia de torrada, presumindo que havia dessas coisas. Quem, por causa de um amor demasiado grande - o que é monstruoso, no fim de contas -, morre de sofrimento, não renasce para conhecer amor nem ódio e, sim, para gozar. E esta alegria de viver, em virtude de não ser naturalmente adquirida, é um veneno que acaba por viciar o mundo inteiro. O que quer que seja criado para além dos limites normais do sofrimento humano actua como um boomerang e provoca destruição. À noite, as ruas de Nova Iorque reflectem a crucificação e a morte de Cristo. Quando a neve cobre o chão 64 Henry Miller Trópico de Capricórnio 65 * e reina o máximo silêncio, escoa-se dos horríveis edifícios de Nova Iorque uma música de tão sombrio desespero e desti- ’ tuição que a carne mingua. Nenhuma pedra foi colocada sobre outra comamor ou reverência; nenhuma rua foi feita para j dançar ou folgar. Acrescentou-se uma coisa a outra numa la- j buta louca e furiosa, para encher a barriga, e as ruas cheiram a ! barrigas vazias, a barrigas cheias e a barrigas meio-cheias. As j ruas cheiram à barriga que é insaciável e às realizações da bar- j riga vazia, que são nulas e vazias. j Nessa nulidade e nesse vazio, nessa brancura de zero, aprendi a saborear uma sanduíche, a apreciar qualquer baga- ; tela. Era capaz de estudar uma cornija ou uma cimalha coma , maior curiosidade, enquanto fingia escutar uma história dolorosa. Lembro-me das datas gravadas em certos edifícios e dos nomes dos arquitectos que os conceberam. Lembro-me da j temperatura e da velocidade do vento, quando me encontrava l parado em certa esquina; a história que ouvi nesse momento i varreu-se-me da memória. Lembro-me de que nesse próprio l momento estava a recordar qualquer outra coisa, e podia di- | zer o que recordava. Mas para quê? Havia em mini um ho- l mem que morrera e tudo quanto restava eram as suas recor- l dações; havia outro homem que estava vivo, e supunha-se que I esse homem era eu, mas ele só estava vivo como uma árvore l está viva, ou uma pedra, ou um animal no campo. Assim j como a própria cidade se transformara num imenso túmulo em que os homens lutavam para merecerem uma morte decente, assim também a minha própria vida acabara por se assemelhar a um túmulo que eu estava a construir a partir da minha própria morte. Andava às voltas numa floresta de pé- i dra, cujo centro era o caos. Às vezes, no próprio centro, no próprio coração do caos, dançava ou bebia até ficar pateta, ou fazia amor, ou travava amizade comalguém, ou planeava uma vida nova. Mas era tudo caos, tudo pedra, era tudo desesperado e desconcertante. Até encontrar uma força suficientemente grande para me atirar para fora dessa louca floresta de pedra, nenhuma vida me seria possível, não poderia ser escrita nenhuma página que tivesse qualquer significado. Talvez quem ler isto ainda tenha uma impressão de caos, mas isto está a ser escrito de um centro vivo, e o que é caótico não pássã aqui de periférico, não passa por assim dizer das partículas ] tangenciais de um mundo que já não me diz respeito. Há poucos meses, encontrei-me parado nas ruas de Nova Iorque, a olhar em meu redor como olhara anos atrás. E de novo dei comigo a estudar a arquitectura, a observar os minúsculos pormenores que só um olhar perturbado capta. Mas desta vez era como se tivesse vindo de Marte. Que raça de homens é esta? perguntei a mim próprio. Que significa? Não havia nenhuma recordação de sofrimento, nem da vida extinta na valeta; acontecia apenas que estava a olhar para um mundo estranho e incompreensível, para um mundo tão distante de mim que eu tinha a sensação de pertencer a outro planeta. Uma noite, olhei do alto do Empire State Building para a cidade que conhecia tão bem, vista de baixo: lá estavam, na sua verdadeira perspectiva, as formigas humanas entre as quais rastejara, os piolhos humanos comos quais lutara. Moviam-se a passo de caracol, cada um a cumprir, sem dúvida, o seu microcósmico destino. No seu infrutífero desespero tinham erguido aquele colossal edifício que era o seu orgulho e a sua vanglória. E do tecto mais alto desse colossal edifício tinham dependurado uma enfiada de gaiolas nas quais os canários prisioneiros cantavam o seu canto absurdo. No próprio cume da sua ambição havia essas pequenas manchas de seres trinando à toa. Dentro de cem anos, pensei, talvez engaiolassem seres humanos vivos, alegres, dementados, que cantariam acerca do mundo que viria. Talvez criassem uma raça de chilreadores que chilreassem enquanto os outros trabalhavam. Talvez em cada gaiola houvesse um poeta ou um músico, para que, em baixo, a vida pudesse fluir sem entraves, una coma pedra e coma floresta, um caos ondulante e rangedor de nada e vazio. Dentro de mil anos, talvez estivessem todos dementes, tanto trabalhadores como poetas, e caísse tudo em ruínas, como já tem acontecido tantas vezes. Dali a mais mil anos, ou cinco mil anos, ou dez mil anos, exactamente no ponto onde me encontrava a abarcar a cena, um rapazinho poderia abrir um livro, escrito numa língua ainda desconhecida e acerca desta vida que passa agora, uma vida que o autor do livro nunca experimentara, uma vida comforma e ritmo diminuídos, comprincípio e fim, e ao fechar o livro talvez o rapaz pensasse que grande raça os Americanos tinham sido, que maravilhosa vida houvera outrora neste continente que ele habitava. Mas 66 Henry Miller nenhuma raça futura, a não ser talvez a dos poetas cegos, poderá jamais imaginar o fervilhante caos do qual se compôs essa história futura. Caos! Um caos horrível! Não é necessário escolher um dia especial. Qualquer dia da minha vida - lá - serviria. Qualquer dia da minha vida, da minha minúscula e microcósmica vida, era um reflexo do caos exterior. Deixem-me recordar... O despertador toca às sete e meia. Mas eu não me levanto logo, deixo-me ficar até às oito e meia, a tentar dormir mais um bocadinho. Dormir... Como posso dormir? No meu cérebro há uma imagem do escritório onde já me devia encontrar. Vejo Hymie chegar às oito em ponto, já comos telefones a tocar, ansiosos por transmitir pedidos de socorro, os candidatos a subir a larga escada de madeira e o cheiro a cânfora a coar-se do vestiário. Para quê levantar-me e repetir os gestos de ontem? Vão-se embora coma mesma rapidez comque os contrato. Gasto os tomates nesta dança e nem sequer tenho uma camisa lavada para vestir. Às segundas-feiras recebo a semanada que a minha mulher me dá, para os transportes e o almoço. Estou sempre endividado comela, assim como ela está sempre endividada como merceeiro, o talho, o senhorio, etc. Não me dou ao trabalho de fazer a barba; o tempo não chega. Visto a camisa rota, emborco o pequeno-almoço a correr e peço um níquel emprestado para o metropolitano. Se ela está mal humorada, intrujo o vendedor de jornais da estação do metro. Chego ao escritório sem fôlego, uma hora atrasado e comuma dúzia de telefonemas a fazer e a atender antes mesmo de falar comalgum dos candidatos. Enquanto atendo um telefonema, há outros três à minha espera. Utilizo dois telefones ao mesmo tempo. O P. B. X. não pára de zumbir. Hymie afia os lápis entre chamadas. McGovern, o porteiro, coloca-se a meu lado, para me dar uma palavrinha de aviso acerca de um dos candidatos, provavelmente algum vigarista que tenta infiltrar-se comnome falso. Atrás de mim, as fichas e os dossiers comos nomes de todos os candidatos que já passaram pela máquina. Os maus estão assinalados comum asterisco a tinta encarnada; alguns têm seis nomes supostos, à frente do verdadeiro. Entretanto, a sala enche-se como uma colmeia. Tresan^ da a suor, a pés sujos, a uniformes velhos, a cânfora, a lisol c jH mau hálito. Metade dos candidatos terão de ser corridos nãfl Trópico de Capricórnio 67 porque não precisemos deles, mas porque não os poderíamos aceitar nem mesmo nas piores circunstâncias. O homem parado à frente da minha secretária, commãos de paralítico e olhos remelosos, é um ex-prefeito da cidade de Nova Iorque. Tem setenta anos e de born grado aceitaria qualquer coisa. Traz maravilhosas cartas de recomendação, mas nós não podemos aceitar ninguém commais de quarenta e cinco anos. Quarenta e cinco anos é o limite, em Nova Iorque. O telefone toca. É um melífluo secretário da Y. M. C. A. a perguntar-me se não posso abrir uma excepção para um rapaz que acaba de lhe aparecer no escritório - um rapaz que passou cerca de um ano num reformatóno. Que fez ele? Tentou violentar a irmã. Italiano, claro. O’Mara, o meu ajudante, aplica o terceiro grau a um candidato suspeito de ser epiléptico. Por fim consegue os seus intentos e, para que não restem dúvidas, o homem tem um ataque ali mesmo, no escritório. Uma das mulheres desmaia. Outra, bonita e comuma bela pele aconchegada ao pescoço, tenta persuadir-me a aceitá-la. Vê-se perfeitamente que é puta batida e eu sei que estarei lixado, se a admitir. Quer trabalhar em certo escritório da periferia, segundo diz por ser mais perto de casa. Ao aproximar-se a hora do almoço começam a chegar alguns compinchas. Sentam-se a ver-me trabalhar. Quando Kronski, o estudante de medicina, chega, diz que um dos rapazes acabado de contratar por mim tem a doença de Parkinson. Estive tão ocupado que ainda nem tive tempo de ir à pia. Segundo O’Rourke, todos os telegrafistas e todos os gerentes sofrem de hemorróidas. Anda a levar massagens eléctricas há dois anos, mas nada dá resultado. À hora do almoço somos seis à mesa. Alguém terá de pagar por mim, como de costume. Devoramos a comida à pressa e voltamos. Mais chamadas a fazer, mais candidatos a entrevistar. O vice-presidente pinta a manta porque não conseguimos manter a força no normal. Todos os jornais de Nova Iorque e de trinta quilómetros em redor publicam anúncios a pedir pessoal. Procurámos boletineiros em part-time em todas as escolas, recorremos a todas as instituições de caridade e auxílio. Mas os que se arranjam caem como moscas. Alguns nem uma hora duram. É um moinho humano. E o mais triste é ser totalmente desnecessário. Mas isso não me diz respeito. O que me diz respeito é fazer ou morrer, como disse Kipling. Avanço de 68 Henry Miller Trópico de Capricórnio 69 vítima para vítima, enquanto o telefone toca desalmadamente, a sala tresanda cada vez mais e os buracos aumentam. Cada uma daquelas pessoas é um ser humano a pedir uma côdea de pão. Tomo nota da sua altura, do seu peso, da sua cor, da sua religião, das suas habilitações, da sua experiência, etc. Todos os dados serão registados e arquivados, primeiro por ordem alfabética e depois por ordem cronológica. Nomes e datas. E impressões digitais também, se tivéssemos tempo para isso. E para quê? Para que os Americanos possam aproveitar a mais rápida forma de comunicação conhecida pelo homem; para que possam vender as suas mercadorias mais depressa; para que, quando um tipo cair morto na rua, os seus parentes mais chegados sejam avisados imediatamente isto é, dentro de í uma hora, a não ser que o boletineiro a quem for confiado o i telegrama decida abandonar o emprego e deitar os telegramas 1 todos no latão do lixo. Vinte milhões de impressos de boas- j -festas, todos a desejarem Alegre Natal e Feliz Ano Novo, j dos directores e dos presidente e vice-presidente da Cosmo- l demonic Telegraph Company. Talvez o telegrama dissesse: «Mãe a morrer, vem imediatamente», mas o funcionário estava demasiado atarefado e não reparou, e se o lesado intentar uma acção por danos - danos espirituais -, há um departamento jurídico treinado expressamente para tais emergências l e pode ter a certeza de que a sua mãe morrerá, o que não o im- j pedirá de ter um Alegre Natal e Feliz Ano Novo do mesmo \ modo. Claro que o funcionário será despedido e um mês de- j pois aparecerá a pedir um emprego de boletineiro, e será aceite e colocado no turno da noite, perto das docas, onde ninguém o reconhecerá, e a mulher aparecerá comos fedelhos para agradecer ao gerente do pessoal, ou talvez ao próprio vice-presidente, a bondade e a consideração demonstradas. E : um dia toda a gente ficará muito surpreendida ao descobrir que o dito boletineiro roubou a caixa, e O’Rourke meter-se-á no comboio nocturno para Cleveland ou Detroit, a fim de o apanhar, nem que isso custe dez mil dólares. E depois o vicepresidente emitirá uma ordem a proibir que sejam admitidos mais judeus, mas passados três ou quatro dias afrouxará um i pouco, pois só aparecem judeus a oferecer-se. E como as coi- ’ sãs se estão a tornar tão feias e o material de escolha tão escasso, | estive prestes a contratar um anão do circo, e provavelmente ’ tê-lo-ia contratado mesmo se não se tivesse ido abaixo e confessado que era uma anã. Para complicar ainda mais as coisas, Valeska acolhe-«a» sob a asa e leva-«a» para casa onde, a pretexto de compaixão, a submete a um exame minucioso, incluindo uma exploração vaginal como indicador da mão direita. E a anã torna-se muito amorosa e, por fim, muito ciumenta. Um dia extenuante. A caminho de casa, encontro a irmã de um dos meus amigos, que insiste em me oferecer de jantar. Depois de comermos vamos ao cinema e, às escuras, começamos a brincar um como outro, até que as coisas chegam a tal ponto que temos de sair. Voltamos ao escritório e deito-a na mesa de tampo de zinco. Quando chego a casa, pouco depois da meia-noite, Valeska telefona: quer que corra para o metropolitano e vá a sua casa; é muito urgente. É uma hora de caminho e eu estou arrombado, mas ela disse que era urgente e, por isso, lá you. Quando chego encontro a prima, uma jovem muito atraente que, segundo ela própria conta, acaba de ter relações comum desconhecido, por estar farta de ser virgem. Mas qual era afinal a urgência? Bem, na pressa esquecera-se de tomar as precauções habituais e talvez estivesse grávida. E depois? Queriam saber o que, na minha opinião, deviam fazer, e eu respondi: Nada. Então Valeska chamou-me de lado e perguntou-me se não me importava de dormir coma prima, assim a modos que para a domar, a fim de aquela história não se repetir. Uma história completamente chalada e por isso desatámos todos a rir histericamente e depois começámos a beber - a única coisa que tinham em casa era kummel e não foi preciso muito para ficarmos meioborrachos. As coisas tornaram-se ainda mais chaladas porque começaram as duas a apalpar-me e nenhuma deixava a outra fazer nada. Para resolver o assunto, despi-as a ambas e meti-as na cama. Adormeceram nos braços uma da outra. Quando saí, cerca das cinco da manhã, descobri que não tinha nem um cêntimo. Tentei ficar a dever um níquel a um motorista de táxi, mas nada feito e, por isso, acabei por despir o sobretudo forrado de pele e por lho dar - em troca de um níquel. Quando cheguei a casa a minha mulher estava acordada e pior do que uma barata por me ter demorado tanto. Tivemos uma discussão acalorada e eu acabei por perder os trambelhos e pré- 70 Henry Miller Trópico de Capricórnio 71 guei-lhe um estalo, ela caiu ao chão e começou a chorar e a soluçar, e a miúda acordou e, ao ouvir a mãe chorar, assustou-se tanto que desatou a berrar comtoda a força dos seus pulmões. A rapariga do andar de cima veio a correr saber o que se passava. Vinha de roupão e como cabelo caído pelas costas abaixo. Chegou-se a mim, na confusão, e as coisas aconteceram sem nenhum de nós pretender que acontecessem. Metemos a patroa na cama comuma toalha fria na testa, e quando a rapariga do andar de cima se debruçou para ela, aproximei-me por trás, levantei-lhe o roupão e enfieilha, e ela ficou muito tempo inclinada, a dizer uma série de tolices tranquilizadoras. Por fim meti-me na cama coma patroa e, para meu grande espanto, ela começou a aninhar-se e, sem dizermos uma palavra, enlaçámos os galhos e ficámos assim até ao alvorecer. Apesar de extenuado, não consegui adormecer e, deitado ao lado dela, planeei pedir folga no dia seguinte e procurar a puta da bonita gola de pele comquem falara de dia. Depois disso comecei a pensar noutra tipa, mulher de um dos meus amigos, que estava sempre a entrar comigo por causa da minha indiferença. E a seguir comecei a pensar, uma por uma, em todas aquelas que tinha passado em branco, por uma razão ou por outra, até que adormeci profundamente, e no meio do sono tive um sonho húmido. O despertador tocou às sete e meia, como de costume, eu olhei para a camisa rota pendurada na cadeira, disse para comigo que não valia a pena e virei-me para o outro lado. O telefone tocou às oito horas. Era Hymie a dizer-me que fosse depressa, pois havia greve. E era assim que as coisas se passavam, dia após dia, sem que houvesse nenhuma razão para isso. O país inteiro estava doido e o que relatei acontecia em toda a parte, em maior ou menor escala, acontecia em toda a parte, porque em toda a parte reinavam o caos e a insensatez. Continuou assim, dia após dia, durante quase cinco anos inteirinhos. O próprio continente era constantemente assolado por ciclones, tornados, macaréus, cheias, secas, nevões, vagas de calor, epidemias, greves, assaltos, assassínios, suicídios... enfim, uma febre e um tormento constantes, uma explosão, um vórtice. Eu era como um homem sentado num farol: debaixo de mim, as ondas alterosas, os rochedos, os escolhos, os destroços de frotas afundadas. Podia dar o sinal de perigo, mas era incapaz de evitar a catástrofe. Respirava perigo e catástrofe. Às vezes a sensação de perigo e de catástrofe era tão forte que me saía como lufadas de fogo pelas narinas. Ansiava por me libertar de tudo aquilo, mas ao mesmo tempo sentia-me fortemente atraído. Era simultaneamente violento e fleumático, era como o próprio farol: seguro no meio do mar mais turbulento. Debaixo de mim havia rocha sólida, a mesma camada de rocha sobre a qual os grandes arranha-céus se erguiam. Os meus alicerces penetravam profundamente na terra e a estrutura do meu corpo era de aço, unido por rebites em brasa. Acima de tudo era um olho, um enorme holofote que procurava incessantemente, que girava sem cessar, implacavelmente. Esse olho tão aberto, tão acordado, parecia ter colocado todas as minhas outras faculdades em estado de letargia. Exauria todas as minhas aptidões no esforço que fazia para ver, para apreender o drama do mundo. Se ansiava pela destruição, era só para que esse olho se extinguisse. Desejava um terramoto, qualquer cataclismo natural que mergulhasse o farol no mar. Queria uma metamorfose, uma mudança para peixe, para leviatã, para destróier. Queria que a terra se abrisse e engolisse tudo num bocejo hiante. Queria ver a cidade afundada muitas braças, nas profundezas do mar. Queria sentarme numa caverna e ler à luz de uma vela. Queria que o olho se extinguisse, para ter a oportunidade de conhecer o meu próprio corpo, os meus próprios desejos. Queria estar sozinho durante mil anos, a fim de reflectir no que vira e ouvira - e a. fim de esquecer. Queria da terra qualquer coisa que não fosse obra humana, qualquer coisa absolutamente divorciada do humano de que estava empanzinado. Queria qualquer coisa puramente terrestre e absolutamente despida de ideia. Queria sentir o sangue correr-me nas veias, mesmo expondo-me ao risco do aniquilamento. Queria expulsar a pedra e a luz do meu organismo. Queria a fecundidade escura da Natureza, o poço fundo do útero, silêncio, ou então o lamber das águas pretas da morte. Queria ser essa noite que o olho implacável iluminava, uma noite constelada de estrelas e longos cometas. Ser como a noite, tão assustadoramente silenciosa, tão absoluta- 72 mente incompreensível e eloquente ao mesmo tempo. Nunca mais falar, ou escutar, ou pensar. Ser englobado e abarcado e englobar e abarcar ao mesmo tempo. Não mais compaixão, não mais ternura. Ser humano apenas terrenamente, como’ uma planta, ou um verme, ou um ribeiro. Ser descomposto, despojado de luz e pedra, variável como a molécula, resisten-L te como o átomo, implacável como a própria terra. f Henry Miller Conheci Mara cerca de uma semana antes de Valeska se suicidar. A semana ou duas que precedeu esse acontecimento foi um verdadeiro pesadelo. Uma série de mortes súbitas e estranhos encontros commulheres. A primeira foi Pauline Janowski, uma judiazmha de dezasseis ou dezassete anos, sem lar, sem amigos e sem família. Foi ao escritório pedir emprego. Eram quase horas de fechar e não tive coragem para a mandar embora sem mais nem menos. Não sei porquê, meteu-se-me na cabeça levá-la a casa para jantar e, se possível, tentar persuadir a minha mulher a deixá-la ficar uns dias. O que me atraiu nela foi a sua paixão por Balzac. Durante todo o caminho para casa falou-me das Ilusões Perdidas. A carruagem estava tão cheia e nós íamos tão comprimidos um contra o outro que não importava aquilo de que falávamos, porque pensávamos ambos só numa coisa. Claro que a minha mulher ficou estupefacta quando me viu à porta coma jovem. Mostrou-se educada e cortês, à sua maneira frígida, mas eu percebi imediatamente que não valeria a pena pedir-lhe que deixasse ficar a rapariga. Só comdificuldade conseguiu permanecer à mesa connosco, durante o jantar. Assim que acabámos, desculpou-se e foi ao cinema. A rapariga começou a chorar. Ainda estávamos à mesa, comos pratos empilhados à nossa frente. Aproximei-me e envolvi-a nos braços. Tinha sincera pena dela e não sabia que fazer para a ajudar. De súbito, lançou-me os braços ao pescoço e beijoume apaixonadamente. Ficámos assim abraçados durante muito tempo, e depois eu disse para comigo que não, que era um crime, e que além disso talvez a patroa não tivesse ido ao cinema, talvez voltasse para casa de um momento para o outro. Disse à rapariga que se acalmasse, que íamos dar um passeio de eléctrico a qualquer lado. Vi o mealheiro da miúda na consola da chaminé, levei-o para a casa de banho e despejei-o silenciosamente. Tinha cerca de setenta e cinco centimes. Metemo-nos no eléctrico e fomos à praia. Encontrámos um recanto deserto e deitámo-nos na areia. Ela 74 Henry Miller Trópico de Capricórnio 75 mostrou-se histericamente apaixonada e não tive outro remédio senão seguir para a frente. Pensei que, depois, me censuraria, mas não censurou. Deixámo-nos ficar um bocado e ela recomeçou a falar de Balzac. Parece que tinha a ambição de ser escritora. Perguntei-lhe o que ia fazer e respondeu-me que não fazia a mínima ideia. Quando nos levantámos, pediu-me que a deixasse na auto-estrada. Disse que iria para Cleveland ou qualquer outro lado. Passava da meia-noite quando a deixei defronte de uma bomba de gasolina, comtrinta e cinco centimes na algibeira. Ao pôr-me a caminho de casa amaldiçoei a minha mulher, a miserável cadela. Gostaria que fosse ela que tivesse ficado na auto-estrada, sem ter para onde ir. Sabia que quando chegasse a casa ela não mencionaria sequer o nome da rapariga. Quando cheguei, estava a pé, à minha espera. Pensei que íamos ter outra vez discussão. Mas não, esperara apenas para me dar um recado urgente de O’Rourke: devia telefonar-lhe assim que chegasse a casa. No entanto, resolvi não telefonar. Resolvi despir-me e meter-me na cama. Precisamente quando acabava de me instalar entre lençóis, o telefone tocou. Era O’Rourke. Havia um telegrama para mini no escritório e ele queria saber se podia abri-lo e ler-mo. Respondi que sim, claro. O telegrama estava assinado por Mónica e vinha de Búfalo. Dizia que ela chegaria de manhã à Grand Central, como corpo da mãe. Agradeci a O’Rourke e voltei para a cama. A minha mulher não fez perguntas. Fiquei deitado, a pensar no que devia fazer. Se acedesse ao pedido, isso equivaleria a recomeçar tudo, precisamente quando acabara de agradecer às minhas estrelas ter-me livrado de Mónica. E agora ela voltava como corpo da mãe. Lágrimas e reconciliação. Não, a perspectiva não me agradava nada. E se não aparecesse? Havia sempre alguém disposto a tomar conta de um corpo. Sobretudo se a enlutada era uma jovem loura atraente e de olhos cintilantes. Perguntei a mim próprio se ela voltaria para o emprego no restaurante. Se Mónica não soubesse grego e latim nunca me teria metido comela. Mas a minha curiosidade levara a melhor. E, além disso, ela era tão pobre que esse pormenor também me ajudara a cair. Talvez não tivesse sido tão desagradável se as suas mãos não cheirassem a gordura. As mãos engorduradas é que estragavam tudo. Lembro-me da noite em que a conheci e em que passeámos pelo parque. Era encantadora de aspecto, e viva e inteligente. Foi na época em que as mulheres usavam saia curta, e a ela ficava-lhe bem. Passei a ir ao restaurante noite após noite só para a ver andar de um lado para o outro, inclinar-se para servir um cliente ou apanhar um garfo. E comas belas pernas e os olhos tentadores, uma maravilhosa frase de Homero; coma carne de porco e o charuto, um verso de Safo, as conjugações latinas e as odes de Píndaro; coma sobremesa, talvez Rubaiayt ou Cynara... Mas as mãos engorduradas e a cama desleixada na pensão defronte da praça... Não, não tinha estômago para isso. Quanto mais a repelia, mais pegadiça se tornava. Cartas de dez páginas acerca de amor, comnotas de rodapé sobre Assim Falou Zaratustra. E, de súbito, silêncio, e eu a felicitar-me, todo contente. Não, não era capaz de ir à Grand Central, de manhã. Virei-me e adormeci profundamente. Quando acordasse pediria à minha mulher que telefonasse para o escritório a dizer que eu estava doente. Já não estava doente havia mais de uma semana... era tempo de adoecer. Ao meio-dia encontrei Kronski à minha espera, à porta do escritório. Queria que almoçasse comele... desejava apresentar-me uma pequena egípcia. A pequena, afinal, era judia, mas provinha do Egipto e parecia egípcia. Muito quente, tão quente que começámos logo os dois a trabalhá-la. Como dissera que estava doente, decidi não regressar ao escritório e dar uma volta pelo East Side. Kronski voltava, para me substituir. Apertámos a mão à rapariga e seguiu cada qual o seu caminho. Eu segui na direcção do rio, onde estava mais fresco, e esqueci a rapariga quase imediatamente. Sentei-me no cais, comas pernas a balouçar, penduradas por cima da corda. Passou uma barcaça carregada de tijolos vermelhos e, de súbito, lembrei-me de Mónica. Mónica a chegar à Grand Central comum cadáver. Um cadáver FOB Nova Iorque! Parecia tão incongruente e tão ridículo que desatei a rir. Que teria feito dele? Tê-lo-ia despachado ou tê-lo-ia deixado num desvio? Devia estar a amaldiçoar-me veementemente. Que pensaria, se me visse ali sentado na doca, a balouçar as pernas por cima da corda? Estava quente e abafado, apesar da brisa que soprava do rio. Comecei a cabecear e lembrei-me de Pauline. Imaginei-a a caminhar pela auto-estrada, de mão levantada. Sim, 76 Henry Miller uma rapariga corajosa, sem dúvida nenhuma. Era estranho que não parecesse preocupar-se coma possibilidade de engravidar. Talvez estivesse tão desesperada que não se importava. E Balzac! Isso também era incongruente. Porquê Balzac? Bem, era lá comela. De qualquer maneira, teria o suficiente para comer qualquer coisa, até encontrar outro tipo. Mas uma i garota daquelas a pensar vir a ser escritora! E porque não? ! Toda a gente tinha ilusões, de uma espécie ou de outra. Móni- j ca também queria ser escritora. Estavam todas a tornar-se es- \ critoras. Escritor! Jesus, como parecia fútil! Dormitei... Quando acordei tinha uma erecção. O sol parecia estar a brilhar em cheio na minha braguilha. Levantei-me e lavei a cara no chafariz. Continuava quente e abafado, o asfalto estava mole como papas, as moscas picavam e o lixo apodrecia na valeta. Passei por entre os carros de mão, a olhar vagamente para tudo. Tinha uma daquelas tesões teimosas, ( mas sem nenhum objecto definido em vista. Só quando voltei à 2.a Avenida é que me lembrei, de súbito, da judia egípcia do almoço. Lembrei-me de a ter ouvido dizer que morava por cima do restaurante russo, perto da Rua 12. No entanto, con- , tinuava sem nenhuma ideia definida do que ia fazer. Limitava-me a flanar, a matar tempo. Mas os meus pés iam-me levando para norte, na direcção da Rua 12. Quando cheguei defronte do restaurante russo parei um momento e depois subi a escada a três e três. A porta do vestíbulo estava aberta. Subi dois lanços, a ler os nomes escritos nas portas. Ela morava no último andar e debaixo do seu nome havia um nome de homem. Bati devagarinho. Ninguém respondeu. Bati de novo, com j um pouco mais de força. Desta vez ouvi ruído de gente, no in- ’ terior, e depois uma voz a perguntar quem era, junto da porta, ao mesmo tempo que o puxador girava. Empurrei a porta e entrei às cegas na sala às escuras. Caí direitinho nos braços dela e senti-a nua debaixo do roupão meio aberto. Devia ter acordado de um sono profundo e só vagamente teria consciência de quem a abraçava. Quando compreendeu que era eu, tentou libertar-se, mas eu apertei-a e comecei a beijá-la apaixonadamente e ao mesmo tempo a empurrá-la, de costas, para o sofá que estava perto da janela. Murmurou qualquer coisa acerca da porta estar aberta, mas eu não quis correr o , risco de a deixar safar-se-me dos braços. Por isso, fiz um pé- ’ Trópico de Capricórnio 77 queno desvio e, pouco a pouco, empurrei-a para a porta, obrigando-a a fechá-la como eu. Dei a volta à chave, coma mão livre, conduzi-a para o meio da sala e, coma mesma mão livre, desabotoei a braguilha e pus a picha em posição. A rapariga estava tão bêbeda de sono que era como entreterme comum autómato. No entanto, percebi que lhe agradava a ideia de ser fodida meio a dormir. Ô pior é que cada vez que eu mergulhava, ela acordava mais um bocadinho. E à medida que ficava mais consciente ficava também mais assustada. Era difícil saber como adormecê-la de novo sem perder uma boa foda. Consegui atirá-la para cima do sofá sem perder terreno, enquanto ela se tornava cada vez mais desejosa e começava a torcer-se e a contorcer-se como uma enguia. Não creio que tivesse aberto os olhos uma única vez, desde que começara a agarrá-la. Dizia a mim mesmo, repetidamente: «Uma foda egípcia... uma foda egípcia...», e, para não me vir imediatamente, comecei a pensar no cadáver que Mónica trouxera consigo para a Grand Central Station e nos trinta e cinco cêntimos que deixara a Pauline, na auto-estrada. De súbito, zás! Batem à porta, comforça, e ela arregala os olhos e fita-me cheia de terror. Comecei a tirar-me rapidamente, mas, para minha surpresa, prendeu-me e segredou-me ao ouvido: «Não te mexas! Espera!» Bateram de novo e a seguir ouvi a voz de Kronski dizer: «Sou eu, Thelma... sou eu, Izzy.» Quase rebentei a rir. Recaímos numa posição natural e, como ela fechasse de novo os olhos, movimentei-me dentro dela devagarinho, para não a reacordar. Foi uma das fodas mais maravilhosas da minha vida. Parecia que ia durar eternamente. Sempre que me sentia em perigo de disparar, deixava de me mexer e pensava - pensava por exemplo onde gostaria de passar as férias, se as tivesse, ou nas camisas que estavam na gaveta da cómoda, ou na mancha da alcatifa do quarto, mesmo aos pés da cama. Kronski ainda estava à porta e eu ouvia-o mudar de posição. Todas as vezes que tinha consciência da sua presença enfiava-lha commais força, à cautela, e, no seu meio-sono, ela respondia comicamente, como se compreendesse o que eu queria dizer comaquela linguagem de mete-e-tira. Não ousava imaginar o que ela estaria a pensar, senão vir-me-ia imediatamente. Às vezes aproximava-me perigosamente do desfecho, mas o truque que me salvava sempre era lem- 78 Henry Miller Trópico de Capricórnio 79 brar-me de Mónica e do cadáver na Grand Central. O cómico J de tal situação actuava em mim como um duche frio. Quando acabou, ela abriu bem os olhos e fitou-me, como se me visse pela primeira vez. Não encontrei uma única palavra para lhe dizer; só pensava em sair dali o mais depressa possível. Enquanto nos lavávamos, reparei num bilhete que estava ’ no chão, junto da porta. Era de Kronski. A mulher acabava de ser internada e Kronski queria que ela fosse ter comele ao | hospital. Que alívio! Assim podia-me ir embora sem desper- l diçar palavras. ; No dia seguinte, Kronski telefonou-me. A mulher morre- í rã na mesa de operações. À noite fui jantar a casa e ainda está- ] vamos à mesa quando a campainha tocou. Kronski estava à ! porta, comum ar abatidíssimo. É-me sempre difícil dizer palavras de condolência, mas comele foi-me impossível. Ouvi a i minha mulher proferir as frases banais da ocasião e senti-me j mais enojado dela do que nunca. ,1 - Vamos sair - propus. l Caminhámos em absoluto silêncio, durante um bocado, l Entrámos no parque e seguimos na direcção dos prados. Uma B névoa espessa não deixava ver nada a um metro de distância. . De súbito, ele desatou a soluçar. Parei e virei a cabeça para o lado. Quando calculei que acabara, virei de novo a cabeça e B surpreendi-o a fitar-me comum estranho sorriso. «Parece in- m crível como é difícil aceitar a morte», comentou. Sorri tam- m bem e pus-lhe a mão no ombro. «Continua, fala à vontade, l Desabafa.» Recomeçámos a andar para trás e para diante nos prados, como se caminhássemos debaixo do mar. A névoa tornara-se tão densa que mal me permitia distinguir as feições B de Kronski, que falava serena e loucamente. «Eu sabia que B isto aconteceria», dizia. «Era demasiado belo para durar.» Na B noite antes de a mulher adoecer ele tivera um sonho, sonhara B que perdera a sua identidade. «Tropeçava no escuro, a chamar B pelo meu próprio nome. Lembro-me de chegar a uma ponte, fl cair de cabeça, e, quando vim à superfície, vi Yetta a flutuar H debaixo da ponte. Estava morta.» E acrescentou, de súbito: B «Estavas lá ontem quando eu bati à porta, não estavas? Percebi m que estavas lá e custou-me ir embora. Também sabia que Yet- B ta estava a morrer e queria estar comela, mas tinha medo de ir B sozinho.» Continuei calado e ele prosseguiu: «A primeira rã- | pariga que amei morreu da mesma maneira. Nessa altura era muito novo e não me conseguia conformar. Ia todas as noites ao cemitério e sentava-me junto da sepultura. As pessoas pensavam que eu estava chalupa. E creio que estava. Ontem, quando estive à porta, recordei-me de tudo. Vime de novo em Trenton, na sepultura, coma irmã da rapariga que amara sentada ao meu lado. Ela dizia-me que não podia continuar assim muito mais tempo, que enlouqueceria. Pensei que já estava realmente louco, e para o provar a mim próprio decidi fazer qualquer coisa maluca e, por isso, disse à rapariga: ”Não é a ela que amo, é a ti, ” E puxei-a para cima de mim, beijámo-nos e finalmente fodi-a, mesmo ao lado da sepultura. Creio que isso me curou, pois nunca mais voltei ao cemitério e nunca mais pensei nela... até ontem, parado à porta. Se te tivesse deitado as mãos, ontem, ter-te-ia estrangulado. Não sei porque senti vontade disso, mas parecia-me que tinhas aberto um túmulo, que estavas a violar o cadáver da rapariga que eu amara. É chalado, não é? E porque fui a tua casa esta noite? Talvez por me seres absolutamente indiferente... por não seres judeu e eu poder falar contigo... porque te estás nas tintas e tens toda a razão... Leste A Revolta dos Anjos}» Acabávamos de chegar ao caminho para bicicletas que contorna o parque. As luzes do boulevard nadavam na neblina. Olhei-o bem e percebi que não estava born da cabeça. Perguntei a mim mesmo se conseguiria fazê-lo rir, embora receasse que, se começasse a rir, nunca mais acabasse. Por isso desatei a falar à toa, primeiro acerca de Anatole France e depois acerca de outros escritores e, por fim, quando pressenti que o estava a perder, falei repentinamente do general Ivolgin, e então ele começou a rir, mas comum riso que era um cacarejo, um cacarejo horrível, como o de um galo coma cabeça debaixo do cutelo. Foi um ataque tão violento que teve de parar e agarrar a barriga comas mãos, de lágrimas a escorrer pelas faces. Entre os cacarejes soltava os mais terríveis e dilacerantes soluços. «Sabia que me farias bem», tartamudeou, quando a última gargalhada se extinguiu. «Sempre disse que eras um filho da puta maluco... Também és um pulha judeu, mas não o sabes... Agora conta-me cá, meu sacana, que tal foi aquilo ontem? Conseguiste enfiar-lha? Não te disse que era uma gaja boa? Sabes comquem vive? Jesus, tiveste sorte em 80 Henry Millet não ser apanhado! Vive comum poeta russo, tu conheces o tipo. Apresentei-to uma vez, no Café Royal. Será melhor que ele não desconfie, pois se desconfiar é capaz de te estoirar os miolos à porrada... e depois escreverá um belo poema a esse respeito e mandar-lho-á, a ela, comum ramo de rosas. Conheci-o em Stelton, na colónia anarquista. O velho dela é niilista. Toda a família é chalada. A propósito, é melhor teres cuidado contigo. Já tencionava dizer-to outro dia, mas não imaginei que actuasses tão depressa. E possível que ela tenha sífilis. Não estou a tentar assustar-te, estou apenas a informar-te, para teu próprio bem...» Esta última tirada pareceu acalmá-lo, realmente. Estava a tentar dizer-me, à sua retorcida maneira judaica, que gostava de mim. Para isso precisava primeiro de destruir tudo quanto me cercava: a mulher, o emprego, os meus amigos, a «moça negra», como chamava a Valeska, etc. «Creio que um dia serás um grande escritor.» Acrescentou, porém, perversamente: «Mas antes terás de sofrer um bocado. Refiro-me a sofrer realmente, pois ainda não sabes o que a palavra significa. Julgas que sofreste... Para isso precisarás de te apaixonar primeiro. Essa moça negra... não pensas que estás realmente apaixonado por ela, pois não? Alguma vez lhe reparaste bem no eu?... Quero dizer, como alarga? Dentro de cinco anos parecerá a tia Jemima. Farão um lindo par a descer a avenida, comuma enfiada de pigmeus atrás. Jesus, preferia ver-te casar comuma rapariga judia. Não a apreciarias, claro, mas seria born para ti. Andas a desbaratar as energias. Escuta, porque perdes tempo comesses sacanas estúpidos que arranjas? Pareces ter um talento especial para escolher as pessoas que não te convêm. Porque não te dedicas a qualquer coisa útil? Aquele emprego não presta para ti, podias ser um grande tipo importante noutro lado qualquer. Talvez um líder laborai... Não sei exactamente o quê. Mas primeiro tens de te livrar da cara de pau da tua mulher. Brr! Quando olho para ela apetece-me cuspir-lhe na fuça. Não percebo como um gajo como tu foi capaz de casar comuma cabra daquelas. Que te levou a isso? Um par de j ovários em ebulição? Ô teu mal é esse, não tens nada, a não ser sexo, na cabeça... Não, não era isso que queria dizer. Tens ; miolos e tens paixão e entusiasmo... Mas pareces estar-te nas tintas para o que fazes ou para o que te acontece. Se não fos- k Trópico de Capricórnio 81 sés um sacana tão romântico quase juraria que eras judeu. Comigo é diferente... nunca pude aspirar a nada. Mas tu tens qualquer coisa dentro de ti... só é pena que sejas tão preguiçoso que não a tires cá para fora. Às vezes, quando te ouço falar, digo para comigo: ”Se aquele tipo passasse o que diz ao papel!” comos diabos, serias capaz de escrever um livro que faria baixar a cabeça a um gajo como Dreiser. Es diferente dos americanos que conheço; é como se não tivesses nada a ver comeles. O que é excelente. E também és um bocadinho chalado... suponho que sabes. Mas no born sentido. Há bocado, se fosse outro tipo que me falasse como tu falaste, tê-lo-ia assassinado. Creio que ainda te aprecio mais porque não tentas mostrar-me compaixão. É coisa que não espero de ti. Se tivesses dito uma palavra errada, esta noite, teria enlouquecido, verdadeiramente. Sei que teria. Estive mesmo, mesmo, à beira disso. Quando começaste a falar do general Ivolgin pensei, por momentos, que estava tudo bem comigo. É por isso que digo que tens qualquer coisa... Foi realmente bem achada! E agora deixa-me dizer-te uma coisa... Se não tomas juízo depressa, dás em chalupa. Há dentro de ti qualquer coisa que te devora. Não sei o que é, mas não me enganas. Conheço-te do avesso e do direito. Sei que há qualquer coisa a devorar-te... e não é apenas a tua mulher, nem o emprego, nem sequer a moça negra por quem julgas estar apaixonado. Às vezes penso que nasceste na época errada. Escuta, não quero que julgues que te estou a transformar num ídolo, mas há uma certa verdade no que te digo... Se fosses capaz de ter um bocadinho mais de confiança em ti poderias ser o maior homem do mundo. Nem sequer terias de ser escritor. Acho que até te poderias tornar outro Jesus Cristo. Não te rias, estou a falar a sério. Não fazes a mínima ideia das tuas próprias possibilidades... estás absolutamente cego a tudo, menos aos teus desejos. Não sabes o que queres. Não sabes porque nunca te deténs a pensar. Consentes que se sirvam de ti. Es um grandíssimo parvo, um idiota. Se eu tivesse um décimo do que tu tens, viraria o mundo de pernas para o ar. Achas que estou a dizer parvoíces, não achas? Pois bem, fica sabendo que nunca na vida me senti commais juízo. Quando fui a tua casa, esta noite, pensava que estava à beira do suicídio. Pouca diferença faz que me suicide ou não, embora eu não veja grande 82 Henry Miller utilidade em suicidar-me. Isso não ma devolverá. Nasci comazar. Pareço levar a tragédia aonde quer que you. Mas ainda não quero arrumar as botas... Primeiro quero fazer algum bem no mundo. Isto pode parecer-te idiota, mas é verdadeiro. Gostaria de fazer qualquer coisa pelos outros...» Calou-se bruscamente e olhou-me de novo, comaquele estranho sorriso triste. A sua expressão era a do judeu desesperado em quem como em toda a sua raça - o instinto de viver é tão forte que, mesmo não existindo a mínima esperança, não é capaz de se matar. Aquele desespero absoluto erame estranho. «Se ao menos pudéssemos trocar a pele de um pela do outro!», pensei. Eu seria capaz de me matar por uma bagatela! O que me irritava mais era pensar que ele nem apreciaria o funeral da mulher - o funeral da própria mulher! Deus sabia que os nossos funerais tinham sido tristes, mas depois houvera sempre uns comes e bebes, umas alegres piadas obscenas e umas boas gargalhadas. Talvez eu fosse demasiado novo para apreciar os aspectos tristes, embora visse perfeitamente como berravam e choravam. Mas isso nunca significava grande coisa para mim porque, depois do funeral, na esplanada da cervejaria próxima do cemitério, reinava sempre uma atmosfera de alegria, apesar dos fatos pretos, dos crepes e das coroas. À minha mentalidade de garoto afigurava-se que estavam na realidade a tentar estabelecer qualquer espécie de comunhão como morto - algo de natureza quase egípcia, parece-me agora. Tempos houve em que pensei não passarem de uma corja de hipócritas. Mas não tinha razão. Eram apenas alemães estúpidos e saudáveis, comgula de vida. A morte era uma coisa alheia ao seu conhecimento, apesar de, se nos guiarmos apenas pelo que diziam, parecer ocupar uma boa parte dos seus pensamentos. Mas a verdade é que não a apreendiam - pelo menos da maneira como os Judeus apreendem. Falavam da outra vida depois desta, mas nunca acreditaram realmente nela. E se algum se sentia pesaroso ao ponto de se consumir de desgosto, encaravam-no comdesconfiança, como a uma pessoa demente. Havia limites para o sofrimento, assim como havia limites para a alegria: era essa a impressão que me davam. E nos limites extremos lá estava sempre o estômago para encher comsanduíches de queijo picante, e cerveja, e kiimmel, e pernas de peru, se as havia. Choravam para dentro da cerveja Trópico de Capricórnio 83 como crianças. E logo a seguir riam-se, riam-se de qualquer curioso aspecto do carácter do defunto. Até o modo como usavam o pretérito exercia sobre mim um efeito curioso. Mal decorrera uma hora depois do enterramento, já diziam do defunto: «Estava sempre tão bem-disposto!», como se o tipo em questão estivesse morto havia mil anos, fosse uma personagem da história ou dos Nibelungenlied. O caso é que estava morto, definitivamente morto para sempre, e eles, os vivos, estavam definitivamente e para sempre separados dele, e o dia de hoje, assim como o de amanhã, tinha de ser vivido, a roupa tinha de ser lavada e o jantar tinha de ser preparado. E, quando chegasse a vez do próximo, haveria um caixão para escolher e uma discussão por causa do testamento, mas isso fazia tudo parte da rotina diária, e perder tempo comlamentações e desgosto era pecado, porque Deus, se havia Deus, decretara que fosse assim, e nós, na Terra, não tínhamos nada a dizer a tal respeito. Ultrapassar os limites estabelecidos da alegria ou do desgosto era perverso. A ameaça de loucura era o pior dos pecados. Tinham uma tremenda noção animal da justa medida, maravilhosa de contemplar se fosse verdadeiramente animal, mas horrível de testemunhar quando compreendíamos que não passava de lerdo torpor germânico, de insensibilidade. E, no entanto, eu preferia esses estômagos animados ao desgosto de cabeça de hidra dos Judeus. No fundo, não era capaz de ter pena de Kronski: teria de sentir pena de toda a sua tribo. A morte da mulher dele era apenas uma parcela, uma insignificância na história das suas calamidades. Como ele próprio dissera, nascera comazar. Nascera para ver as coisas correrem mal, porque havia cinco mil anos que elas corriam mal no sangue da raça. Vinham ao mundo comaquele esgar abatido e desesperançado na cara, e abandonavam o mundo do mesmo modo. Deixavam atrás de si um pivete um veneno, um vómito de desgosto. O fedor de que tentavam libertar o mundo era o mesmo que eles tinham trazido para o mundo. Reflecti em tudo isto enquanto o escutava. Sentia-me tão bem e tão limpo por dentro que, depois de nos separarmos e de meter por uma transversal, comecei a assobiar e a cantarolar baixinho. Assaltou-me então uma sede terrível e eu disse para comigo, como meu melhor sotaque irlandês: «É de uma bebida que estás a precisar, meu rapaz», e mal o disse tro- 84 Henry Miller pecei num buraco na parede e pedi uma grande caneca de espumosa cerveja e uma sanduíche hamburguesa bem aviada e commuita cebola. Bebi outra cerveja e depois um golinho de brande, e pensei, à minha maneira insensível: «Se o pobre sacana não tem miolos suficientes para apreciar o funeral da mulher, apreciá-lo-ei eu por ele.» E quanto mais pensava no assunto mais feliz me sentia, e se havia em mim a mais pequenina parcela de desgosto ou inveja era só por não poder trocar o meu lugar pelo dela, pelo da pobre judia morta, pois a morte era algo que ultrapassava a compreensão de um goy estúpido como eu, e era uma pena desperdiçá-la em tipos como eles, que sabiam tudo a seu respeito e não precisavam dela para nada. A ideia de morrer embriagou-me de tal modo que, no torpor causado pela bebida, pedi entarameladamente ao Deus de cima que me matasse naquela noite: mata-me, Deus, e deixa-me saber do que se trata, afinal. Esforcei-me o mais possível para imaginar o que era esticar o pernil, mas perdi o meu tempo. O mais que consegui foi imitar um estertor, mas ao fazê-lo quase sufoquei, o que me assustou de tal maneira que por pouco não caguei nas calças. De qualquer modo, isso não era a morte. Era sufocar, apenas. A morte assemelhava-se mais ao que se passara no parque: duas pessoas caminhando lado a lado no nevoeiro, roçando por árvores e arbustos e não trocando uma palavra. Era algo mais vazio ainda do que o próprio nome de morte e, contudo, certo e sereno - digno, se quiserem. Não era uma continuação da vida e, sim, um salto no escuro sem nenhuma possibilidade de regressar, nunca, nem sequer como um grão de pó. E isso estava certo e era belo, disse para comigo, pois para que quereria uma pessoa regressar? Prová-la uma vez era prová-la para sempre - a vida ou a morte. Fosse para que lado fosse que a moeda caísse estaria certo, desde que não se fizessem apostas. Claro que é duro sufocar no próprio cuspo - mais do que qualquer outra coisa, é desagradável. Aliás, nem sempre se morre sufocado. Às vezes parte-se durante o sono, calma e serenamente, como um cordeirinho. O Senhor chega e recolhe-te no redil, como dizem. Seja como for, deixamos de respirar. E por que raio havíamos de querer continuar eternamente a respirar? Uma coisa que tivesse de ser feita interminavelmente seria uma tortura. Os pobres diabos humanos que somos deviam sentir-se Trópico de Capricórnio 85 gratos por alguém ter idealizado uma saída. Não protestamos quando adormecemos, e desperdiçamos um terço da nossa vida a ressonar, como ratos bêbedos. Que me dizem a isso? Não é trágico? Pois bem, em vez de um terço são três terços de sono de ratos bêbedos. Jesus, se tivéssemos ponta de senso dançaríamos de alegria só de pensar nisso! Poderíamos morrer todos na cama, amanhã, sem dor nem sofrimento, se tivéssemos o born senso de tirar partido dos nossos remédios. O nosso mal é não querermos morrer. É por isso que existe Deus e toda a restante patacoada nos nossos sótãos. General Ivolgin! Isso arrancou-lhe um riso cacarejado e alguns soluços secos. Também podia ter dito queijo picante. Mas o general Ivolgin significa qualquer coisa para ele, qualquer coisa chalada. Queijo picante seria demasiado sóbrio, demasiado banal. No entanto, é tudo queijo picante, incluindo o pobre bêbedo do general Ivolgin. O general Ivolgin proveio do queijo picante de Dostoievski, da sua marca especial. Isso significa um certo sabor, um certo rótulo. Para que as pessoas o reconheçam quando o cheiram ou provam. Mas de que era feito este queijo picante do general Ivolgin? Bem, do que quer que é feito o queijo picante, é x e. portanto incognoscível. E portanto...? E portanto, nada... absolutamente nada. Ponto final... ou antes um salto no escuro, sem regresso. Quando despia as calças, lembrei-me de repente do que o pulha me dissera. Olhei para a picha e achei-a tão inocente como sempre. «Não me digas que apanhaste a sífilis...», murmurei, agarrando-a e espremendo-a um bocadinho, para ver se saía algum pus. Não, não havia muitas possibilidades de ter apanhado a sífilis. Não nascera sob esse tipo de estrela. Um esquentamento, sim, isso era possível. Toda a gente apanhava um esquentamento, numa ocasião ou noutra. Mas a sífilis, não! Sabia que ele ma faria ter, se pudesse, só para que eu compreendesse o que era o sofrimento. Mas não estava disposto a fazer-lhe a vontade. Era um goy que nascera estúpido, mas comsorte. Bocejei. Era tudo tão queijo picante, pensei, que comsífilis ou sem sífilis ainda iria à minha mulher, se ela estivesse para aí virada, e depois dana o dia por findo. Mas ela não estava para aí virada, evidentemente. Voltava-me o eu. Por isso deixei-me ficar coma picha tesa encostada ao seu traseiro e fui-lhe por telepatia mental. 86 Henry Mille, E, Jesus, ela deve ter recebido o recado, apesar de dormir profundamente, pois não tive dificuldade nenhuma em entrar pela porta da estrebaria - e, além disso, não precisei de lhe olhar para a cara, o que foi um grandíssimo alívio. «Meu rapaz», disse para comigo, quando acabei, «é tudo queijo picante e agora podes virar-te e ressonar...» Dir-se-ia que o canto do sexo e da morte se prolongaria eternamente. Na tarde seguinte, a minha mulher telefonou-me para o escritório a dizer que a sua amiga Arline acabava de ser levada para um manicómio. Eram amigas desde a escola conventual, no Canadá, onde tinham ambas estudado música e a arte da masturbação. Conhecera a ranchada toda, pouco a pouco, incluindo a irmã Antolina, que era quebrada e, aparentemente, a suprema-sacerdotiza do culto do onanismo. Tinham todas tido uma paixoneta pela irmã Antolina, numa época ou noutra. E Arline, coma fronha de éclair de chocolate, não era a primeira do grupinho a ir parar ao manicómio. Não digo que fosse a masturbação que para lá as atirasse, mas a atmosfera do convento tinha comcerteza alguma coisa a ver como assunto. Eram todas avariadas do toutiço. Antes de a tarde terminar, apareceu o meu velho amigo MacGregor. Chegou carrancudo como sempre e a queixar-se do advento da velhice, embora pouco passasse dos trinta anos. Quando lhe falei do que acontecera a Arline animou-se um pouco. Sempre soubera, afirmou, que havia nela qualquer coisa que não batia certa. Porquê? Porque quando tentara forçá-la, uma noite, ela desatara a chorar histericamente. O pior, no entanto, não fora o choro e, sim, o que dissera: pecara contra o Espírito Santo e, por isso, teria de levar uma vida de continência. Ao recordar o incidente, MacGregor começou a rir, como seu riso sem alegria. «Disselhe: ”Bem, não precisas de fazer, se não queres... Basta que o segures na tua mão.”» Jesus, quando ouviu issoí pareceu perder por completo o juízo. Disse que eu estava 31 tentar macular-lhe a inocência. Assim mesmo, por estas pala*; vras. Mas ao mesmo tempo pegou-lhe e apertou-o tanto que quase desmaiei. E sem deixar de chorar e de falar do Espírito» Santo e da sua «inocência». Lembrei-me do que me tinhas^ dito, uma vez, e apliquei-lhe uma boa bofetada. Foi como um truque mágico! Serenou um bocado, o suficiente para me: deixar enfiar-lho, e então começou a paródia a valer. Alguma1 Trópico de Capricórnio 87 vez fodeste uma gaja doida? Vale a pena experimentar. A partir do momento em que lho enfiei, começou a falar à toa. Não sou capaz de te descrever exactamente como foi, mas quase se diria que ela não sabia que a estava a foder. Não sei se alguma vez tiveste uma mulher que comesse uma maçã enquanto lhe ias... bem, podes imaginar como isso afecta um tipo. Esta foi mil vezes pior. Buliu-me de tal maneira comos nervos que comecei a pensar que também era um pouco esquisito... E agora vais ouvir uma coisa em que te custará a acreditar, mas estou a dizer a verdade. Sabes o que ela fez quando acabámos? Envolveu-me nos braços e agradeceu-me... Espera, há mais. Depois saltou da cama, ajoelhou-se e disse uma oração pela minha alma. Jesus, lembro-me tão bem! «Por favor, fazei de Mac melhor cristão», pediu. E eu deitado, de caralho murcho, a ouvi-la. Nem sabia se estava a sonhar, se acordado. «Por favor, fazei de Mac melhor cristão!» Haverá alguma coisa que bata isto? E depois mudou de conversa e perguntou-me alegremente: - Que vais fazer esta noite? - Nada de especial. - Então vem comigo. Quero que conheças uma garota que arranjei... Laura. Arranjei-a no Roseland, há algumas noites atrás. Não é doida: é apenas ninfomaníaca. Quero ver-te dançar comela. Será um mimo vê-los! Se não te esporrares todo nas calças quando ela se começar a menear... bem, se isso não acontecer, serei um filho da puta. Vá, fecha a loja. Que ganhas em estar para aqui a peidar-te? Como ainda era preciso matar muito tempo antes de irmos ao Roseland, entrámos num buraquinho da parede que havia perto da 7.a Avenida. Antes da guerra era um estabelecimento francês; agora era um botequim clandestino dirigido por um casal de imigrantes italianos. Havia um barzinho junto da porta e ao fundo uma sala pequena, comserradura no chão e uma máquina de música automática. A ideia era tomarmos duas bebidas e depois jantarmos. Essa era a ideia. Mas conhecendo-o como o conhecia, não estava certo de que fôssemos ao Roseland juntos. Se aparecesse uma mulher que agradasse à sua fantasia - e para isso não precisava de ser bonita nem escorreita de espírito ou corpo -, MacGregor deixar-me-ia em apuros e pirar-se-ia. A única coisa que me preocu- Henry Miller pava, quando estava comele, era certificar-me de antemão de que o tipo tinha dinheiro suficiente para pagar as bebidas que pedíamos. E, claro, nunca o perder de vista enquanto a conta não estava paga. Os dois primeiros copos mergulhavam-no sempre em reminiscências. Reminiscências de conas, evidentemente. As suas reminiscências lembravam uma história que me contara J em tempos e que produzira em mim uma impressão indelével, ji Era a respeito de um escocês no seu leito de morte. Ao vê-lo ji esforçar-se para dizer qualquer coisa, quando estava mesmo a ; l ir desta para melhor, a mulher debruçou-se ternamente para í l ele e perguntou-lhe: «O que é, Jock, que estás a tentar dizer?» | E Jock, num derradeiro esforço, soergueu-se, exausto, e mur- J murou: «Apenas cona... cona... cona.» m comMacGregor, esse era sempre o tema de abertura. E de l encerramento. Era a sua maneira de dizer futilidade. O leitmotw era a doença, pois entre fodas, por assim fizer, MacGregor matava a cabeça a pensar em doenças. Para ele, era a coisa mais natural deste mundo dizer, no fim de um serão: «Vamos B lá acima num instantinho; quero mostrar-te o meu caralho.» Claro que, em virtude de o tirar, olhar, lavar e esfregar uma l dúzia de vezes por dia, o dito estava sempre inchado e inflal mado. De vez em quando, ia ao médico, que lhe fazia uma jl sondagem. Ou então, apenas para o sossegar, receitava-lhe uma caixinha de pomada e dizia-lhe que não bebesse muito. Isso dava origem a debates intermináveis, durante os quais me fl perguntava: «Se a pomada presta para alguma coisa, porque B tenho de deixar de beber?» Ou: «Se deixasse completamente m de beber, achas que teria necessidade de usar a pomada?» Cia- B ro que a minha recomendação, fosse ela qual fosse, entrava por um ouvido e saía pelo outro. Tinha de se preocupar comqualquer coisa, e o pénis era, sem dúvida, um born motivo de preocupação. Às vezes preocupava-se como couro cabeludo. Tinha caspa, como quase toda a gente, e quando o caralho estava born esquecia-se dele e preocupava-se como couro cabeludo. Ou então como peito. Assim que pensava no peito desatava a tossir. E que tosse! Dir-se-ia que estava tísico em B último grau. Quando perseguia uma mulher andava tão nervoso e irritável como um gato. Tinha uma pressa danada de a apanhar, mas mal a apanhava começava a preocupar-se com | Trópico de Capricórnio 89 a maneira de se ver livre dela. Tinham todas algo errado, geralmente qualquer insignificância banal que lhe tirava o gume ao apetite. Voltou à carga comtodas essas coisas quando nos sentámos na penumbra da sala do fundo. Depois do segundo copo, levantou-se, como de costume, para ir à casa de banho e, de caminho, meteu uma moeda na máquina. A música começou a tocar, o que o animou. Apontou para os copos e disse: «Pede outra rodada.» Voltou da casa de banho comum olhar extraordinariamente complacente, não sei se por ter aliviado a bexiga, se por ter encontrado alguma rapariga no corredor. Fosse como fosse, mudou de assunto, muito composto e muito sereno, quase como um filósofo: «Sabes, Henry, estamos a ficar entrados em anos. Tu e eu não devíamos desperdiçar o nosso tempo desta maneira. Se queremos vir a ser alguém, é mais do que altura de começarmos...» Havia anos que lhe ouvia aquela história e já sabia qual seria o final. Tratava-se apenas de um pequeno parêntesis, enquanto ele olhava calmamente à volta da sala, a ver qual das pêssegas tinha menos ar de idiota. Enquanto falava do miserável fracasso das nossas vidas, os seus pés batiam o compasso da música e os seus olhos tornavam-se cada vez mais brilhantes. Aconteceria como acontecia sempre. Quanto dissesse: «Repara no Woodruff, por exemplo. Nunca vencerá porque não passa de um filho da puta naturalmente mesquinho e pedinchão...», aconteceria que, precisamente quando dissesse isso, passaria alguma vaca bêbeda que lhe atrairia a atenção e, sem a mínima pausa, ele interromperia a narrativa para convidar: «Olá, pequena! Porque não te sentas e não bebes um copo connosco?» E como as vacas bêbedas daquele género nunca viajam sozinhas, e sim aos pares, ela responderia: «comcerteza. Posso ir buscar a minha amiga?» E MacGregor redarguiria, como se fosse o tipo mais galante do mundo: «Claro, porque não? Como se chama ela?» Depois puxar-me-ia pela manga, inclinar-se-ia e murmuraria: «Não te ponhas na alheta, estás a ouvir? Pagamos-lhes uma bebida e livramo-nos delas, percebes?» E, como sempre acontecia também, uma bebida levava a outra, e a conta começava a ficar muito puxada, e ele achava que não tinha obrigação de desperdiçar o seu dinheiro comduas vadias, por isso vai tu à frente, Henry, finge que vais 90 Henry Miller Trópico de Capricórnio 91 comprar um remédio, e eu seguir-te-ei dentro de momentos...’, mas espera por mim, filho da mãe, não me deixes a ver navios como da última vez. E, como sempre fazia, mal me encontrei na rua, afastei-me o mais depressa que pude, a rir para í comigo e a agradecer à minha boa estrela ter podido livrar-me ’ dele comtanta facilidade. comtodas aquelas bebidas no ban- ’ dulho pouco importava para onde os pés me arrastassem. , A Broadway estava loucamente iluminada como sempre e a multidão espessa como melaço. Atira-te para o meio dela como uma formiga e deixa-te levar. Toda a gente faz o mesmo, uns por uma boa razão e outros sem razão nenhuma. Todo este empurrar, todo este movimento, representa acção, êxito, avanço. Pára e olha para os sapatos ou para as camisas bonitas, para o novo tipo de sobretudo para o Outono, para as alianças de casamento a noventa e oito centimes cada uma. f Loja sim, loja não, há um empório de comes. Todas as vezes que ia parar àquelas bandas, cerca da hora do jantar, apoderava-se de mim uma febre de expectativa. São apenas alguns quarteirões, da Times Square à Quinta Rua, pó- t rém quando dizemos Broadway é a isso que realmente nos ré- j ferimos, a uma insignificância, um salto; mas às sete horas da l tarde, quando toda a gente vai em busca de uma mesa, vibra j no ar uma espécie de crepitação eléctrica, o nosso cabelo fica * em pé como antenas e, se somos receptivos, não só captamos j todos os clarões e centelhas, como também a comichão esta- ”i tística, o quid pro quo do quantum interactivo, intersticial e ’{ ectoplásmico dos corpos que chocam no espaço como as es- í trelas que compõem a Via Láctea, coma diferença de que esta 1 é a Alegre Via Branca, o topo do mundo sem telhado por cima [ e sem uma fenda ou um buraco que seja debaixo dos pés, para por ele cairmos e dizermos que é mentira. A sua absoluta impessoalidade provoca-nos um ardente e extremo delírio hu- ’ mano, que nos impele a seguir para a frente como uma pileca cega e a agitar as orelhas delirantes. Cada pessoa deixa de ser tão absolutamente ela própria que se torna automaticamente a > personificação de toda a espécie humana, apertando a mão a ^ mil mãos humanas, tagarelando commil diferentes línguas humanas, amaldiçoando, aplaudindo, assobiando, sussurrando, soliloquiziando, orando, gesticulando, urinando, fecundando, bajulando, choramingando, comerciando, proxenetando, guinchando, etc., por aí fora. Somos todos os homens que jamais viveram de Moisés para cá, e além disso somos uma mulher a comprar um chapéu, ou uma gaiola, ou apenas uma ratoeira. Podemos esperar de atalaia numa montra, como um anel de ouro de catorze quilates, ou subir pelo lado de um edifício como uma mosca humana, mas nada do que fizermos deterá a procissão: nem sombrinhas voando à velocidade da luz, nem morsas de dois andares calmamente a caminho dos bancos de ostras. A Broadway, conforme a vejo e a tenho visto há vinte e cinco anos, é uma rampa que foi concebida por São Tomás de Aquino enquanto ainda estava no útero. Inicialmente destinouse a ser usada apenas por serpentes e lagartos, pelo sapo cornudo e pela garça vermelha, mas, quando a Invencível Armada se afundou, a espécie humana saiu dos brigues e trasbordou, criando, devido a uma espécie de imundo e ignominioso contorcer e serpentear, a racha coniforme que vai de Battery, a sul dos campos de golfe, para norte, através do morto e verminoso centro da ilha de Manhattan. Da Times Square à Quinta Rua, está incluído tudo quanto São Tomás de Aquino se esqueceu de incluir no seu magnum opus, ou seja, entre outras coisas, sanduíches hamburguesas, botões de colarinho, cães d’agua, máquinas caça-moedas, chapéus de coco cinzentos, fitas de máquinas de escrever, tacos de laranjeira, casas de banho grátis, pensos higiénicos, pastilhas de hortelã-pimenta, bolas de bilhar, cebolas picadas, pratinhos de cartão amarrotados, sarjetas, sidecars, celofane, corda, pneus, magnetos, linimento para cavalos, gotas para a tosse e a opacidade felina do eunuco histericamente dotado que caminha para o balcão dos refrescos comuma espingarda de canos cortados entre as pernas. A atmosfera pré-prandial, a mescla de patchuli, pechblenda quente, electricidade gelada, suor açucarado e urina pulverizada, provoca-nos uma febre de delirante expectativa. Cristo nunca mais voltará à Terra, nem haverá nenhum novo legislador, nem cessarão o assassínio, o roubo e o estupro, e contudo esperamos qualquer coisa, qualquer coisa assustadoramente maravilhosa e absurda, talvez uma lagosta fria commaionese servida gratuitamente, talvez uma invenção como a luz eléctrica ou a televisão, mas mais devastadora, mais arrebatadora, uma invenção impensável que trará consigo uma calma e um vazio abaladores - não 92 Henry Miller Trópico de Capricórnio 93 a calma e o vazio da morte e sim da vida, como os monges sonharam, como ainda se sonha nos Himalaias, no Tibete, em Lahore, nas Aleútes, na Polinésia e na ilha da Páscoa, o sonho dos homens antes do Dilúvio, antes de a palavra ser escrita, o sonho dos homens das cavernas e dos antropófagos, dos possuidores de sexo duplo e cauda curta, dos que são classificados de doidos e não têm possibilidade de se defender, devido à superioridade numérica dos que não são doidos. Energia fria aprisionada por brutos astuciosos e depois libertada como foguetes explosivos; rodas complicadamente entrosadas para darem a impressão de força e velocidade - umas para produzirem luz, outras energia e outras movimento -; palavras unidas por maníacos e montadas como dentes postiços, perfeitas, repulsivas como leprosos; movimento cativante, suave, escorregadio e absurdo, vertical, horizontal, circular, entre paredes e através de paredes, para prazer, para negócio, para crime e para sexo; toda a luz, todo o movimento e toda a energia impessoalmente concebidos, gerados e distribuídos através de uma racha congestionada e conifqrme, destinada a ofuscar e embasbacar o selvagem, o labrego e o estrangeiro, mas sem que se veja ninguém ofuscado ou embasbacado: este esfaimado, aquele lúbrico, todos um e o mesmo e nenhum diferente do selvagem, do labrego, do estrangeiro, a não ser em insignificâncias, bricabraque, na espuma do pensamento, na serradura da mente. Na mesma racha coniforme, aprisionados mas não ofuscados, caminharam milhões antes de mim e entre eles um, Blaise Cendrars, que depois voou para a Lua e daí de novo para a Terra e pelo Orinoco acima, fingindo ser um homem selvagem, mas sendo na realidade são como um pêro, embora já não vulnerável, já não mortal, magnífico naco de poema dedicado ao arquipélago da insónia. Dos possuídos de febre poucos eclodidos, e entre eles eu próprio ainda por eclodir, mas pérvio e maculado, conhecendo comcalma ferocidade o tédio do vogar e do movimento constantes. Antes do j jantar o entrechocar e o tinido da luz do céu escoandose docemente através da cúpula cinzenta, os hemisférios errantes germinando de núcleos azul-ovo coagulando, ramificando, num cesto lagostas, no outro a germinação de um mundo antisepticamente pessoal e absoluto. Fora das sarjetas, tornados cinzentos pela vida subterrânea, homens do mundo futuro \ saturados de merda, a electricidade gelada a mordê-los como ratos, o dia acabado e a escuridão chegando como as frias e refrescantes sombras dos esgotos. Como um caralho mole a escorregar de uma cona sobreaquecida, eu, o ainda não eclodido, esboço algumas contorções abortivas, mas, ou não morto e suficientemente mole, ou livre de esperma e patinando ad astra, pois ainda não são horas de jantar e um frenesi peristáltico apodera-se do intestino grosso, da região hipogástrica, da zona umbilical e do lobo pós-pineal. Cozidas vivas, as lagostas nadam em gelo, sem dar nem pedir quartel, simplesmente imóveis e sem motivação no tédio aquoso e gelado da morte, vida escorrendo pela montra abafada em desolação, um escorbuto triste devorado por ptomaína, o vidro gelado da montra cortando como uma navalha, comlimpeza e sem deixar rasto. Vida escorrendo pela montra... Eu fazendo tanto parte da vida como a lagosta, o anel de catorze quilates e o linimento para cavalos, mas muito difícil de estabelecer esse facto, sendo a verdade que a vida é mercadoria comum conhecimento de carga apenso, que o que escolho para comer é mais importante do que eu, o comedor, cada um comendo o outro e consequentemente comendo, o verbo, rei do poleiro. No acto de comer o hospedeiro é violado e a justiça temporariamente derrotada. O prato e o que contém, através do poder predatório do aparelho digestivo, exige atenção e unifica o espírito, hipnotizando-o primeiro, engolindo-o depois lentamente, e por fim digerindo-o e absorvendo-o. A parte espiritual do ser passa como uma espuma, sem deixar absolutamente nenhum vestígio ou evidência da sua passagem, desaparece, desaparece ainda mais completamente do que um ponto no espaço após um discurso matemático. A febre, que pode voltar amanhã, está na mesma relação, para a vida, que o mercúrio de um termómetro está para o calor. A febre não produzirá o calor da vida, e isso é o que tem de ser provado, e assim consagra as almôndegas de carne e o esparguete. Mastigar enquanto milhares mastigam, sendo cada mastigação um acto de assassínio, dá o necessário aspecto social a partir do qual se olha pela montra e se vê que até a espécie humana pode ser justamente chacinada, ou mutilada, ou morta à fome, ou torturada, porque, enquanto se mastiga, a mera vantagem de estar sentado 94 Henry Miller numa cadeira, vestido e a limpar a boca a um guardanapo, permite compreender o que os mais sábios dos homens jamais foram capazes de compreender, ou seja, que não há outra maneira de vida possível desdenhando muitas vezes os ditos sábios de usar cadeira, roupa ou guardanapo. Assim, os homens que se apressam pela racha coniforme de uma rua chamada Broadway, todos os dias e a horas regulares, em busca disto ou daquilo, tendem a estabelecer isto e aquilo, que é exactamente o método usado por matemáticos, lógicos, físicos, astrónomos e quejandos. A prova é o facto e o facto não tem outro significado que não seja o que lhe é dado pelos que estabelecem os factos. Devoradas as almôndegas de carne, atirado cuidadosamente para o chão o guardanapo de papel, arrotando um pouco e não sabendo porquê nem para onde, saio para a cintilação de vinte e quatro quilates e junto-me à turba dos teatros. Desta vez vagueio pelas ruas transversais, atrás de um cego comum acordeão. De quando em quando, sento-me num degrau e ouço uma ária. Na ópera a música não faz sentido; aqui, na rua, tem o toque dementado certo, exacto, para a impregnar de pungência. A mulher que acompanha o cego segura um púcaro de folha. Ele também faz parte da vida, como o púcaro de folha, como a música de Verdi, como a Metropolitan Opera House. Toda a gente e tudo faz parte da vida, mas mesmo depois de todas as partes juntas a vida não é, de certa modo, vida. Quando é vida, pergunto-me, e porque não iigofj rã? O cego afasta-se e eu continuo sentado no degrau. A» almôndegas de carne estavam podres e o café era ordinário e ajj manteiga rançosa. Tudo aquilo que vejo é podre, ordinário J rançoso. A rua é como um mau hálito; a rua seguinte é o mesiM mo, e a outra, e a outra. O cego volta a parar à esquina e tocai «Home to our Montains». Encontro uma pastilha-elástica nBJ algibeira e mastigo-a por mastigar. Não posso fazer absolutaijH mente nada melhor - a não ser tomar uma decisão, o que «j impossível. O degrau é confortável e ninguém me chateia» Faço parte do mundo, da vida, como dizem, pertenço e nãdH pertenço. In Permaneço cerca de uma hora sentado no degrau, a diva» gar. Chego à mesma conclusão a que chego sempre que tenhdH um minuto para pensar em mim: ou you imediatamente parjJJ’ Trópico de Capricórnio 95 casa e começo a escrever, ou fujo e inicio uma vida inteiramente nova. A ideia de começar um livro aterra-me: há tanto que dizer que não sei por onde começar nem como. A ideia de fugir e começar de novo é igualmente aterradora: significa trabalhar como um negro para me manter vivo. Para um homem do meu temperamento e sendo o mundo o que é, não há absolutamente nenhuma esperança, nenhuma solução. Mesmo que pudesse escrever o livro que quero escrever, ninguém lhe pegaria: conheço muito bem os meus compatriotas. Mesmo que pudesse começar de novo, seria inútil, porque fundamentalmente não tenho desejo nenhum de trabalhar nem de me tornar um membro útil da sociedade. Permaneço sentado a olhar para a casa do outro lado da rua. Além de parecer feia e sem sentido, como todas as outras casas da rua, pelo facto de a fitar tão atentamente torna-se de súbito absurda. A ideia de construir um abrigo daquele modo especial afigura-se-me absolutamente insana. A própria cidade me parece um exemplo da mais alta insanidade - tudo nela: esgotos, linhas de cornboio aéreo, máquinas caça-moedas, jornais, telefones, polícias, puxadores de portas, bordéis, papel higiénico, tudo. Não fana diferença alguma se nenhuma dessas coisas existisse; além de não se perder nada, ganhava-se um universo inteiro. Olho para as pessoas que passam por mim para ver se uma delas concordará, por acaso, comigo. E se interceptasse uma e lhe fizesse uma simples pergunta? E se lhe perguntasse, apenas: Porque continua a viver da maneira que vive? Provavelmente chamaria um polícia. Pergunto a mim próprio; alguém falará consigo mesmo como eu falo comigo? Pergunto-me se haverá alguma coisa errada em mim. A única conclusão a que chego é que sou diferente. E isso é uma coisa muito grave, seja qual for a perspectiva de que a vejamos. Henry, digo para comigo levantando-me vagarosamente do degrau, espreguiçando-me, sacudindo as calças e cuspindo a pastilha-elástica, Henry, ainda és novo, és um franganote, e se consentes que te agarrem pelos tomates és um idiota, pois és melhor homem do que qualquer deles e só precisas de te libertar das tuas falsas ideias acerca de humanidade. Tens de compreender, Henry, meu rapaz, que estás a lidar comassassinos sanguinários, comcanibais, eles apresentam-se bem aperaltados, barbeados e perfumados, mas é isso que são: assassinos sanguiná- 96 Henry Miller rios e cambais. O melhor que tens a fazer agora, Henry, é ir tomar um chocolate gelado, e quando te sentares ao balcão conserva os olhos bem abertos e esquece o destino do homem, pois talvez ainda encontres uma gaja boa, e uma gaja boa limpar-te-á os rolamentos de esferas e deixar-te-á um gosto agradável na boca, ao passo que essas histórias só te causarão dispepsia, caspa, halitose, encefalite... Enquanto me apaziguo assim, aproxima-se um tipo e pede-me dez cêntimos. Dou-lhe um quarto de dólar, pelo seguro, e penso que se tivesse mais juízo teria comido uma suculenta costeleta de porco, comaquilo, em vez da porcaria das almôndegas, mas que diferença faz isso agora, é tudo comida, e a comida gera energia, e é a energia que faz girar o mundo. Em vez do chocolate gelado começo a andar, e em breve encontro-me exac-; tamente onde tencionava ir desde o princípio: defronte da bi-’ lheteira do Roseland. E agora, Henry, digo para comigo, se tiveres sorte o teu velho compincha MacGregor estará aqui e a primeira coisa que fará será dar-te uma sarabanda por te teres pirado, mas depois emprestar-te-á cinco dólares, e se contiveres a respiração enquanto subires a escada talvez vejas também a ninfomaníaca e consigas uma foda seca. Entra comtoda a calma, Henry, e conserva os olhos bem abertos!... E entro compezinhos de lã, obedecendo às instruções, entrego o ’ chapéu no vestiário e faço uma mijinha, comtoda a naturalidade. Depois volto a descer a escada e avalio as taxi girls, todas diafanamente vestidas, empoadas e perfumadas, parecendo frescas e vivas, mas provavelmente chateadíssimas e cansadas das pernas. Fodo imaginariamente todas e cada uma , delas, ao passar. A casa está literalmente superlotada de conas, I e é por isso que estou razoavelmente convencido de que l encontrarei o meu amigo MacGregor. Deixo de pensar no es- l tado do mundo, o que é maravilhoso. Menciono o assunto l porque, momentaneamente, enquanto admirava um eu sucu- i lento, tive uma recaída e quase entrei de novo em transe. Pensei, valha-me Cristo, que talvez fosse melhor ir para casa e começar o livro. Assustador pensamento! Uma vez, passei uma noite inteirinha sentado numa cadeira, sem ver nem ouvir nada. Devo ter escrito um livro de born tamanho, antes de acordar. O melhor é não me sentar. O melhor é continuar a circular. Henry, devias vir aqui qualquer dia, comuma quanTróptco de Capricórnio 97 tidade de massa, e ver até onde te levava. Refiro-me a cem ou duzentos dólares. Gastá-los-ias como se fossem água e dirias sim a tudo. Aquela de aspecto altivo e figura de estátua, vês? Aposto que se contorceria como uma enguia se lhe untasses bem as mãos. Supondo que ela dizia vinte dólares e tu podias responder comcerteza!... Suponho que podias dizer: escuta, tenho um carro lá em baixo. Vamos passar uns dias a Atlantic City. Henry, não tens carro nenhum nem, sequer, vinte dólares. Não te sentes... continua a circular. Paro junto do parapeito que separa a pista de dança e fico a vê-las navegar. Isto não é recreação inofensiva... isto é um assunto sério. Em cada lado da pista há um letreiro que diz: «Não E Permitido Dançar Indecorosamente.» Muito bem. Não há mal nenhum em colocar um letreiro em cada lado da pista. Em Pompeia talvez pendurassem um falo. Esta é a maneira americana, mas quer dizer a mesma coisa. Não devo pensar em Pompeia, pois de contrário sento-me e volto a escrever um livro. Continua a circular, Henry. Presta atenção à música. Esforço-me para imaginar quanto me divertiria se tivesse o dinheiro necessário para uma série de bilhetes, mas quanto mais me esforço, mais perco a mão em mim. Por fim encontro-me enterrado em lava até aos joelhos e o gás sufoca-me. Não foi a lava que matou os Pompeianos: foi o gás venenoso expelido pela erupção. Foi por isso que a lava os surpreendeu em posições tão esquisitas, por assim dizer de calças arriadas. Se, de súbito, Nova Iorque fosse surpreendida do mesmo modo, que museu daria! O meu amigo MacGregor, junto do lavatório, a lavar o caralho... os abortadores apanhados coma mão na massa... as freiras deitadas a masturbarem-se umas às outras... o leiloeiro comum despertador na mão... as telefonistas nos seus postos... J. P. Morganana sentado na pia a limpar placidamente o eu... chuis a aplicar o terceiro grau commangueiras de borracha... artistas a fazer o último striptease... Enterrado na lava até aos joelhos e comos olhos atafulhados de esperma: J. P. Morganana a limpar placidamente o eu enquanto as telefonistas enfiam as fichas, enquanto os chuis aphcam o terceiro grau commangueiras de borracha, enquanto o meu velho amigo MacGregor lava os germes do caralho, e o enxuga cuidadosamente, e o examina ao microscópio... 98 Henry Miller Trópico de Capricórnio 99 Toda a gente apanhada de calças arriadas, incluindo as stripteasers que não usam calça, nem barbas, nem bigodes, que usam apenas um triangulozinho de pano a cobrir as coninhas cintilantes. A irmã Antolina deitada na cama do convento, comas tripas amparadas pela cinta e as mãos nos quadris, à espera da Ressurreição, esperando, esperando por uma vidaJj sem hérnia, sem relações sexuais, sem pecado e sem mal, en-1 quanto vai petiscando uns biscoitos animais, um pimento,:! umas azeitonitas e um bocadinho de queijo de miolos. Os rã- f pazes judeus do East Side, do Harlem, do Bronx, de Canarsie I e de Brownsville a abrirem e a fecharem os alçapões, a arran-1 carem braços e pernas, a accionarem a máquina das salsichas, J a entupirem os canos, a trabalharem furiosamente por dinhei- l ro, e quem abrisse bico estava quilhado. commil e cem bilhe- l tes na algibeira e um Rolls Royce à espera, lá em baixo, pode- i ria passar o mais penosamente maravilhoso dos bocados,! fodendo todas e cada uma, sem olhar a idade, sexo, raça, religião, nacionalidade, nascimento ou educação. Não há nenhuma solução para um homem como eu, sendo eu o que sou e sendo o mundo que é. O mundo está dividido em três partes, das quais duas são almôndegas de carne e esparguete e a outra um imenso cancro sifilítico. A altiva, comfigura de estátua, provavelmente é fria, uma espécie de con anonyme forrada de ouro laminado e folha de estanho. Para lá do desespero e da desilusão há sempre a ausência de coisas piores e os emolu- ^ mentos do tédio. Não há nada mais reles e vazio do que o i meio da alegria viva captado pelo olho mecânico da época m mecânica, a vida a amadurecer numa caixa preta, um negativo l titilado comácido e produzindo um momentâneo simulacro M de nada. No limite extremo desse momentâneo nada chega o l meu amigo MacGregor, que se coloca a meu lado e traz consi- l go aquela de quem me falara, a ninfomaníaca chamada Laura, i Ela tem os gestos soltos, graciosos e ondulantes do sexo de* dois canos, todos os seus movimentos irradiam da região pel-1 viça, está sempre em equilíbrio, sempre pronta para fluir, para B serpentear, para agarrar, os olhos sem descanso, os dedos dosJ pés a estremecer e a cintilar, a carne sacudida por frémitosjB por ondinhas, como a superfície de um lago enrugada pelaM brisa. E a encarnação da alucinação do sexo, a ninfa marinhaH contorcendo-se nos braços do maníaco. Observo os dois,M a moverem-se espasmodicamente, centímetro a centímetro, na pista. Movimentam-se como um polvo comcio. Entre os tentáculos pendentes a música brilha e cintila, ora se desfaz numa cascata de esperma e água de rosas, ora forma um jacto oleoso, uma coluna que se conserva erecta, sem pés, para cair de novo como giz, deixando a parte de cima da perna fosforescente, uma zebra numa poça, de geleia dourada, comuma perna às riscas e a outra derretida. Um polvo de geleia dourada comarticulações de borracha e cascos derretidos, o sexo desfeito e atado num nó. No leito do mar as ostras estão atacadas pela Dança de S. Vito, umas comtrismo e outras comjoelhos de juntas duplas. A música está salpicada de veneno de ratos, peçonha de cascavel, hálito fétido de gardenia, saliva de iaque sagrado, suor de rato almiscarado e nostalgia coberta de açúcar de leproso. A música é uma diarreia, um lago de gasolina estagnada combaratas e mijo velho de cavalo. As notas que escorrem são a espuma e a baba do epiléptico, o suor nocturno” do negro fornicador. Toda a América está na mancha do trombone, naquele guincho esfarrapado e desanimado das vacasmarinhas gangrenadas paradas ao largo de Point Loma, Pawtucket, cabo Hatteras, Labrador, Canarsie e pontos intermédios. O polvo dança como uma picha de borracha - a rumba de Spuyten Dnyvil, inédit. Laura, a ninfa, dança a rumba, como sexo esfoliado e torcido como o rabo de uma vaca. Na barriga do trombone jaz a alma americana a peidar-se de contentamento. Nada se perde, nem a mínima humidade de um peido. No sonho de felicidade de geleia dourada, na dança do mijo velho e da gasolina, a grande alma do continente americano galopa como um polvo, comtodas as velas desfraldadas, as escotilhas descidas e o motor a vibrar como um dínamo. A grande alma dinâmica apanhada no clique do olho da câmara, no calor do cio, exangue como um peixe, escorregadia como muco, a alma do povo miscegenando no leito do mar, de olhos arregalados de desejo, espicaçada pela luxúria. O baile de sábado à noite, de cantalupos a apodrecer no caixote do lixo, de ranho fresco e verde e unguentos viscosos para as partes delicadas. O baile das máquinas de caçar moedas e dos monstros que as inventam. O baile do revólver e das balas que os usam. O baile do porrete e dos tipos que espancam cabeças até as transformarem numa polpa poliposa. O baile do mundo 100 Henry Miller do magneto, a centelha que não chispa, o vibrar suave do perfeito mecanismo, a corrida de velocidade numa plataforma giratória, o dólar ao par e as florestas mortas e mutiladas. A noite de sábado do baile oco da alma, cada dançarinho pulador uma unidade funcional da Dança de S. Vito do sonho da tinha. Laura, a ninfo, brandindo a cona, os doces lábios de pétalas rosadas crivados de garras de rolamentos de esferas. Centímetro a centímetro, milímetro a milímetro, fazem girar o cadáver copulador. E depois, zás! Como se desligassem uma tomada a música pára subitamente, e, coma paragem, os pares separam-se, comas pernas e os braços intactos, como folhas de chá a cair para o fundo da chávena. Agora o ar está azul de palavras, rechina lentamente, como peixe na grelha. A moinha da alma vazia a subir como chiadeira de macacos nos ramos mais altos das árvores. O ar azul compalavras que passam através dos ventiladores, que regressam adormecidas através de funis canelados e de chaminés, aladas como o antílope, listradas como a zebra, ora inertes como moluscos, ora cuspindo chamas. Laura, a ninfo, fria como uma estátua, comas partes devoradas, o cabelo musicalmente arrebatado. À beira do sono, Laura ergue-se comlábios mudos, as palavras a caírem como pólen através de um nevoeiro. A Laura de Petrarca sentada num táxi, cada palavra a tilintar através da caixa registadora, depois esterilizada e depois cauterizada. Laura, a basilisgi ca, inteiramente feita de amianto, a caminhar para a fogueiilH ígnea coma boca cheia de goma. Uma palavra misteriosa nofl lábios. Os lábios canelados e pesados do molusco, os lábiajl de Laura, os lábios do perdido amor uraniano. Tudo a flutuasji na direcção das sombras no nevoeiro em ladeira. Os últimoJI detritos murmurantes de lábios como os dos moluscos escorH rendo da costa do Labrador, borbotando para leste comall marés de lodo, dirigindo-se para as estrelas na corrente iodai] da. Perdida Laura, última dos Petrarcas, desvanecendo-se lenlj tamente à beira do sono. Um mundo não cinzento, mas baçoj o sono de bambu leve da inocência de costas de colher. m E isto deixa, no nada negro e frenético do oco da ausêncislB um sombrio sentimento de saturado desânimo, de cerM modo parecido coma mais alta ponta de desespero que é apíiB nas o alegre verme juvenil da exótica ruptura da morte corn« vida. Deste cone invertido de êxtase erguer-se-á de novíM Trópico de Capricórnio 101 a vida em prosaica eminência de arranha-céus, arrastando-me pelo cabelo e pelos dentes, trasbordante de alegria uivante e va/ia, feto animado do verme não nascido da morte à espera da decomposição e da putrefacção. O telefone acorda-me, no domingo de manhã. É o meu amigo Maxie Schnadig a anunciar-me a morte do nosso amigo Luke Ralston. Maxie assume um torn de voz de verdadeiro desgosto que roça por mim a contrapelo. Diz que Luke era um tipo formidável, o que também me soa a falso, porque Luke era um tipo normal, apenas assim-assim, e não precisamente o que se chama um tipo formidável. Luke era um panasca introvertido e, quando aprendi a conhecê-lo bem, um grande chato. Disse isso mesmo a Maxie, pelo telefone, e compreendi, pelo modo como me respondeu, que não gostou muito. Afirmou que Luke fora sempre um amigo para mim. Era verdade, mas não chegava. A verdade verdadeira é que me sentia realmente satisfeito por Luke ter esticado no momento oportuno: assim podia esquecer os cento e cinquenta dólares que lhe devia. Para ser franco, quando desliguei sentia-me jubiloso. Era um tremendo alívio não ter de pagar essa dívida. Quanto ao passamento de Luke, não me perturbava absolutamente nada. Pelo contrário, permitiame visitar a sua irmã, Lottie, que sempre desejara foder sem nunca o conseguir, por uma razão ou por outra. Já estava a ver-me a ir lá a casa, em pleno dia, e a apresentar-lhe as minhas condolências. O marido estaria no escritório e não haveria nada que interferisse. Via-me a envolvê-la nos braços e a confortá-la. Não há nada como atacar uma mulher quando ela está desgostosa. Via-a a abrir muito os olhos - tinha grandes e bonitos olhos cinzentos -, enquanto eu a conduzia para o sofá. Pertencia ao tipo de mulher que concede uma foda enquanto finge falar de música ou de qualquer coisa do género. Não gostava da realidade, dos factos nus, por assim dizer. O que não a impediria de meter uma toalha debaixo dela, para não manchar o sofá. Conhecia-a por dentro e por fora. Sabia que o melhor momento de a apanhar era agora, agora que estava comuma febrezita de emoção pela morte do querido Luke - que não tivera em grande conta, diga-se de passagem. Infelizmente era domingo e o marido estaria comcerteza em casa. Voltei para a cama 102 Henry Miller Trópico de Capricórnio 103 e fiquei deitado a pensar primeiro em Luke e em tudo quanto fizera por mim, e depois nela, em Lottie. Lottie Somers era o seu nome, que sempre me parecera bonito. Condizia perfeitamente comela. Luke era teso como um pau, comum rosto todo crânio e ossos, impecável e impossível de descrever por palavras. Ela era o contrário: macia e roliça, falava em voz arrastada, a acariciar as palavras, movia-se languidamente e sabia utilizar os olhos comtoda a eficácia. Ninguém os tomaria por irmãos. Excitei-me de tal maneira a pensar nela que tentei contentar-me coma minha mulher. Mas a pobre sacana, como seu complexo de puntamsmo, fingiu-se horrorizada. Gostava de Luke. Não foi ao ponto de dizer que era um tipo formidável, porque isso não estava no seu feitio, mas afirmou que era sincero, leal, um verdadeiro amigo, etc. Eu tinha tantos amigos sinceros, leais e verdadeiros que tudo aquilo não passava de conversa fiada para mim. Por fim travámos tal discussão por causa de Luke que ela teve um ataque de histerismo e desatou a chorar e a soluçar na cama, notem. Isso enfureceu-me. A ideia de chorar antes do pequeno-almoço parecia-me monstruosa. Desci a escada e preparei um delicioso pequeno-almoço, e enquanto o saboreei ri-me sozinho, por causa de Luke, por causa dos cento e cinquenta dólares que a sua morte súbita apagara da ardósia, por causa de Lottie e do modo como ela olharia para mim quando o momento chegasse... e por fim, absurdamente, pensei em Maxie, em Maxie Schanadig, o fiel amigo de Luke, junto da sepultura comuma grande coroa e talvez a atirar um punhado de terral para cima do caixão, enquanto o desciam. Não sei porquê, pa-1 recia-me uma coisa indizivelmente estúpida. Não sei porque! havia de me parecer ridícula, mas parecia. Maxie era um pate-< ta. Tolerava-o apenas porque, de vez em quando, lhe podia dar um encosto. E havia também a sua irmã, Rita. Deixava-o” convidar-me a ir a sua casa, de quando em quando, fingindo que me interessava pelo irmão, que era demente. Isso traduzia-se sempre por uma boa refeição, independentemente do facto de o idiota ser divertido. Parecia um chimpanzé e falava como se o fosse. Maxie era tão simplório que não compreendia que eu me estava apenas a divertir; julgava que me interes-1 sava genuinamente pelo irmão. Estava um bonito domingo e, como de costume, eu tinha| rã j cerca de um quarto de dólar na algibeira. Saí, a pensar a quem poderia dar um encosto. Não que fosse difícil conseguir umas massas, não era; o difícil era arranjar as massas e safar-me sem me aborrecer mortalmente. Lembrei-me de uma dúzia de tipos mesmo ali nas imediações, tipos que esmifrariam o cacau sem um murmúrio. Mas, depois, isso custar-me-ia uma longa conversa acerca de arte, religião ou política. Outra coisa que podia fazer, e que já tinha feito sei lá quantas vezes, num aperto, era visitar os escritórios da companhia, a fingir que fazia uma visita de inspecção amigável, e no último momento sugerir-lhes que vissem se não havia um dólar ou coisa parecida na caixa, até ao dia seguinte. Mas isso exigiria tempo e mais conversa, e conversa de pior género. Pensando fria e calculadoramente, achei que o indicado era o meu amiguinho Curley, de Harlém. Se Curley não tivesse o dinheiro de que precisava, faná-lo-ia da bolsa da mãe. Sabia que podia contar comele. Claro que quereria acompanhar-me, mas eu arranjaria maneira de me livrar dele antes de a noite terminar. Não passava de um miúdo e eu não precisava de estar comgrandes delicadezas comele. O que me agradava em Curley era o facto de, apesar de ser um miúdo de dezassete anos apenas, não ter absolutamente nenhuma noção de moral, nem escrúpulos, nem vergonha. Procurara-me quando tinha catorze anos, a pedir emprego como boletineiro. Os pais, que então se encontravam na América do Sul, tinham-no mandado para Nova Iorque ao cuidado de uma tia que o seduzira quase imediatamente. Nunca andara na escola porque os pais estavam sempre a viajar, eram uma espécie de saltimbancos. O pai estivera preso diversas vezes e, diga-se de passagem, não era o seu pai verdadeiro. Enfim, Curley procurou-me como um simples garoto precisado de auxílio, precisado, sobretudo, de um amigo. Ao princípio pensei que poderia fazer qualquer coisa em seu favor. Todos simpatizaram logo comele, em especial as mulheres, e tornou-se o menino bonito do escritório. Não tardei, porém, a compreender que era incorrigível, que na melhor das hipóteses possuía os ingredientes para se tornar um delinquente esperto. Mas gostava dele e continuei a ajudá-lo no que podia, sem no entanto o perder de vista. Creio que gostava dele principalmente porque não tinha noção de honra 104 Henry Miller absolutamente nenhuma. Seria capaz de fazer tudo no mund< por mim e, ao mesmo tempo, de me atraiçoar. Não o podi censurar por isso... divertia-me. Divertia-me sobretudo por que era franco a esse respeito. Não estava na sua mão proce der de outro modo, mais nada. O caso da sua tia Sofia, pá exemplo. Ele dizia que ela o seduzira. Sem dúvida, mas o eurioso era que ele se deixara seduzir enquanto liam a Bíbli; juntos. Apesar de muito novo, parecera compreender que a tia Sofia tinha necessidade dele nesse aspecto. Por isso deixara-se seduzir, como dizia, e depois fora ao ponto de exercei chantagem sobre ela. Quando precisava muito de dinheiro ií ter coma tia e apanhava-lho, commanhosas ameaças de dês* mascaramento. Feitas por certo como rosto mais inocente desta vida. Parecia-se extraordinariamente comum anjo, com1 os seus grandes olhos líquidos, que dir-seiam trasbordar franqueza e sinceridade. Sempre pronto a fazer coisas por nós, quase como um cão fiel. Mas depois de conquistado o nosso favor obrigava-nos astuciosamente a satisfazer-lhe os caprichozinhos. Ainda por cima, inteligentíssimo. Possuidor da inteligência astuta da raposa e da absoluta impiedade do ; chacal. j Por isso, nessa tarde, não me surpreendeu nada saber que andara metido comValeska. Depois de Valeska fora a vez da prima, que já tinha sido desflorada e precisava de um macho em que pudesse confiar, e para terminar fora a anã, que soubera arranjar um born mnhozinho em casa de Valeska. A anã interessava-o porque tinha uma cona perfeitamente normal, i Não tencionara fazer nada comela porque, segundo dizia, era, uma lesbicazinha repugnante, mas um dia encontrara-a a to-; mar banho e as coisas tinham começado assim. Estava a tornar-se demasiado para ele, confessava, pois as três não lhe da-; vam quartel. De quem gostava mais era da prima, que tinha algum dinheiro e não era agarrada. Valeska era muito sabida e, além disso, tinha um cheiro um bocado forte. Na realidade, começava a estar farto de mulheres. A culpa era da tia Sofia, que o fizera ter um mau começo. Enquanto conta estas peripécias vai revistando as gavetas da cómoda. O pai é um filho da puta miserável que merece ser enforcado, declara, ainda sem encontrar nada. Mostra-me um revólver comcabo de madrepérola... Quanto renderia? Uma arma era coisa demasiado Trópico de Capricórnio 105 boa para matar o velho... comdinamite é que gostaria de o liquidar. Ao tentar descobrir porque odiava tanto o velho, percebi que o rapaz gostava verdadeiramente da mãe e não podia suportar a ideia de o pai se deitar comela. Não queres dizer que tens ciúmes do teu velho? Tem, tem ciúmes. A verdade é que não se importaria nada de dormir coma mãe. Porque não? Fora por isso que deixara a tia Sofia seduzi-lo... pensara o tempo todo na mãe. Mas não te sentes mal contigo mesmo ao ires-lhe ao porta-moedas? - perguntei. Riu-se. Não é o dinheiro dela, é o dele. E, de resto, que fizeram eles por mim? Têm passado a vida a correr comigo, e a primeira coisa que me ensinaram foi a vigarizar as pessoas. Que rica maneira de criar um filho!... Não há um único centime em casa. Curley sugere que o acompanhe ao escritório onde trabalha: enquanto eu converso como gerente, ele vai ao vestiário e «limpa» todos os trocos que encontrar. Ou então, se eu não tiver medo de correr o risco, «limpa» a gaveta do dinheiro. Nunca suspeitariam de nós, afirma. Já fizera isso alguma vez? Claro... uma dúzia de vezes ou mais, mesmo debaixo do nariz do gerente. E não houvera barulho? Claro que houvera... tinham despedido alguns escriturários. Pergunto-lhe porque não pede qualquer coisa emprestado à tia Sofia. Seria fácil, mas para isso teria de lhe fazer umas cócegas e já não quer fazer cócegas à tia Sofia. Ela fede. Ela fede? Que queres dizer comisso?... Quero dizer exactamente que cheira mal... não se lava regularmente... Porquê, que tem ela?... Nada, é só por ser religiosa. E ao mesmo tempo está a ficar gorda e sebosa... Mas continua a gostar que lhe façam cócegas?... Se gosta! É mais doida do que nunca pela coisa. Mete nojo. É como ir para a cama comuma porca... Que pensa dela a tua mãe?... Oh, está danada comela como uma bicha! Pensa que a tia Sofia tenta seduzir o velho... e talvez tente! Mas não, o velho tem outra coisa. Apanhei-o uma vez em flagrante, no cinema, todo enroscado numa rapariga nova, manicura no Astor Hotel. Provavelmente anda a ver se lhe apanha algumas massas. É essa a única razão por que caça uma mulher. É um filho da puta imundo e miserável e gostana de o ver na cadeira eléctrica, um dia!... Tu é que vais parar a cadeira eléctrica, se não te acautelas. Quem, eu? Eu, não! Sou demasiado esperto... Lá esperto és, mas não tens tento na 106 Henry Miller língua. No teu lugar, daria menos à língua. Sabes - acrescen-i tei, para lhe meter medo -, o O’Rourke já desconfia de ti. Se alguma vez cais em desgraça, comele, estás liquidado... Por* que não diz ele nada, se sabe alguma coisa? Não te acredito, Explico-lhe, comcerta minúcia, que O’Rourke é uma da-| quelas pessoas - que são pouquíssimas - que preferem não\ arranjar sarilhos a ninguém, se está na sua mão evitá-lo, l O’Rourke possui o instinto do detective, mas só até ao ponto ] de gostar de saber o que se passa em seu redor. Estuda o ca- j rácter das pessoas e arquiva-o permanentemente no cérebro*! da mesma maneira que os chefes militares registam mental-, mente o terreno inimigo. As pessoas pensam que O’Rourke bisbilhota e espia para a companhia e que sente um prazer especial em fazer esse trabalho sujo. Mas não é assim. O’Rourke; é um estudioso nato da natureza humana. Toma conhecimento das coisas sem esforço, devido certamente à sua maneira pé-; culiar de ver o mundo... Por exemplo, tenho a certeza de que: ele sabe tudo a teu respeito. Nunca lho perguntei, confesso, mas presumo que é assim por causa das perguntas que me faz, de vez em quando. Talvez te esteja apenas a dar corda. Uma noite destas, encontrar-te-á acidentalmente e talvez te convide para ires petiscar comele a qualquer lado. De repente, é capaz de se sair comuma destas: Lembras-te, Curley, daquele escriturariozinho judeu ter sido despedido por roubar a caixa, quando trabalhavas no escritório SÁ? Creio que fizeste serão nessa noite, não fizeste? Interessante caso, esse. Sabes, nunca descobriram se o escriturário roubou ou não o dinheiro. Tiveram de o despedir por negligência, claro, mas não podemoaB garantir que tenha tirado o dinheiro. Há algum tempo qu« ando a pensar nessa história. Tenho um palpite quanto ai quem roubou de facto o dinheiro, mas não tenho a certeza ab-« soluta... E depois talvez te fite uns momentos e mude bruscamente de conversa. Talvez te conte a história de um patifezi- m nho que conheceu, o qual se julgava muito esperto e capaz de i se safar sempre. Levará que tempos a contar essa história, coml milhentos pormenores, até teres a sensação de estar sentado i em cima de carvões acesos. Estarás desejoso de te pôr a andar, j| e quando te parece que vais consegui-lo ele lembra-se, de sú-H bito, de outro caso muito interessante e pede-te que esperesH mais um bocadinho, enquanto encomenda outra sobremesa. J Trópico de Capricórnio 107 É capaz de passar assim três ou quatro horas de uma assentada, sem nunca fazer a mínima insinuação clara, mas sempre a estudar-te atentamente. Por fim, quando te julgas livre, quando lhe apertas a mão e soltas um suspiro de alívio, pára na tua frente, mete o grande pé entre as tuas pernas, agarra-te pelas bandas do casco e, olhando através de ti, pergunta, em voz suave e cativante: Então, meu rapaz, não achas que é melhor dizeres tudo? E se pensares que está apenas a pretender assustar-te e que podes fingir inocência e ir-te embora, estás enganado. Porque nessa altura, quando te pede que digas tudo, fala muito a sério e nada no mundo o deterá. Quando chegar a esse ponto, aconselho-te a contares tudo, até ao último cêntimo. Não me pedirá que te despeça, nem te ameaçará coma cadeia. Sugerir-te-á apenas, calmamente, que poupes umas moedas todas as semanas e lhas entregues. Ninguém saberá de nada. Provavelmente nem a mim próprio contará o que se passar. É muito delicado a respeito dessas coisas, verás. Curley pergunta-me, de repente: - E se eu lhe disser que roubei o dinheiro para te ajudar? Desata a rir histericamente. - Que acontecerá então? - Não creio que O’Rourke te acreditasse - respondo, comtoda a calma. - Podes tentar, claro, se julgas que assim te safas. Eu acho, porém, que o efeito te será prejudicial. O’Rourke conhece-me... sabe que não te deixaria fazer uma coisa dessas. - Mas deixaste! - Não te disse que o fizesses. Tu fizeste-o sem meu conhecimento, o que é diferente. De resto, podes provar que aceitei dinheiro teu? Não será um pouco ridículo acusares-me, a mim que tenho sido teu amigo, de te incitar a fazer uma coisa dessas? Quem te acreditaria? O O’Rourke, não, comcerteza. Além disso, ele ainda não te caçou. Não há necessidade de te preocupares antecipadamente. Talvez possas começar a repor o dinheiro pouco a pouco, antes de ele te descobrir. Podes fazê-lo anonimamente. Entretanto, Curley já estava chateado e cansado. Havia um pouco de schnapps no aparador, que o velho tinha de reserva, e eu sugeri que bebêssemos uma pinga, para nos animar. Enquanto bebíamos, lembrei-me, de súbito, que Maxie dissera que estaria em casa de Luke, a render a sua homenagem. Era o momento oportuno para lhe dar um encosto. Ele 108 Henry Miller Trópico de Capricórnio 109 estaria cheio de sentimentos piegas e eu poderia contar-lhe ai história que me viesse à cabeça. Poderia dizer-lhe que lhe falara tão insensivelmente pelo telefone porque estava desesperado, porque não sabia para que lado me virar para arranjar os, dez dólares de que precisava tanto. Ao mesmo tempo, talvez pudesse marcar um encontro comLottie. Comecei a sorrir, só de pensar nisso. Se Luke pudesse ver o amigo que tinha em mim! O mais difícil seria aproximar-me do caixão e olhá-lo: comar pesaroso. Não me rir! Expus a ideia a Curley, que se riu tanto que as lágrimas lhe correram pelas faces - o que me convenceu de que seria mais seguro deixá-lo cá em baixo, à espera, enquanto desse o en- : costo. Estava decidido. \ Estavam a sentar-se para jantar quando entrei, como ar í mais triste de que fui capaz. Maxie quase se engasgou como l meu súbito aparecimento. Lottie já se fora embora, o que me ajudou a manter a expressão triste. Pedi para ficar sozinho , comLuke alguns minutos, mas Maxie insistiu em acompanhar-me. Suponho que os outros se sentiram aliviados corn’, isso, pois deviam ter passado a tarde a conduzir visitantes junto do caixão. E como bons alemães que eram não gostavam de interromper o jantar. Enquanto olhava para Luke, ainda com, a expressão pesarosa que afivelara, percebi que os olhos de Maxie estavam fixos em mim, interrogadoramente. Levantei a cabeça e sorri-lhe, à minha maneira habitual. Não se pertur- i bou absolutamente nada. «Escuta, Maxie, tens a certeza de que não nos ouvem?» pareceu ainda mais intrigado e ofendi- ’ do, mas acenou coma cabeça, tranquilizadoramente. «Trata-se do seguinte, Maxie... Vim aqui de propósito para falar contigo... para te pedir uns dólares. Parece uma indignidade, bem sei, mas podes imaginar como estou desesperado, para fazer uma coisa destas.» Começou a abanar a cabeça solenemente, enquanto eu falava, coma boca a formar um grande «O», como se tentasse afugentar os espíritos. «Escuta, Maxie», prossegui depressa e tentando conservar a voz baixa e triste -, «o momento não é apropriado para me pregares um sermão. Se queres fazer alguma coisa por mim empresta-me dez dólares agora, imediatamente... passa-mos para a mão aqui mês- f mo, enquanto eu olho para o Luke. Gostava verdadeiramente j dele, sabes? Nada do que te disse pelo telefone foi comin- ] tenção... Apanhaste-me num mau momento, a patroa arrepelava os cabelos... Estamos metidos nuns grandes assados, Maxie, e conto contigo para fazeres qualquer coisa...» Como eu previra, Maxie não poderia sair comigo. Não queria que supusessem que os abandonava num momento daqueles... «Vá, dá-me agora o dinheiro», continuei, quase brutalmente. «Amanhã explico-te tudo, almoçarei contigo...» Maxie levou a mão ao bolso, embaraçado coma ideia de ser apanhado comum maço de notas nas unhas num momento daqueles. «Escuta, Henry, não me importo de te dar o dinheiro... mas não podias ter arranjado outra maneira de falar comigo? Não é por causa do Luke... é que...» Começou a gaguejar, sem saber realmente o que queria dizer, e eu inclinei-me mais para Luke, para que se alguém entrasse não desconfiasse do que me levara ali. «Pelo amor de Deus, não discutas agora... passa-me o dinheiro e acaba comisto... Estou desesperado, estás a ouvir?» Maxie estava tão confuso e atrapalhado que não conseguiu tirar uma nota sem sacar o maço todo da algibeira. Reverentemente debruçado para o caixão, pesquei a nota de cima, sem ver se era de um dólar, se de dez. Guardei-a o mais depressa possível, sem a olhar sequer, e endireitei-me. Depois dei o braço a Maxie e conduzi-o à cozinha, onde a família comia solenemente, mas comapetite. Convidaram-me para ficar, para petiscar qualquer coisa, e embora me fosse difícil recusar, numa altura daquelas, recusei o melhor que pude e safei-me, já coma cara a tremer de riso histérico. Curley esperava por mini à esquina, junto do candeeiro. Não me pude conter mais. Agarrei no braço do rapaz e meti pela rua abaixo a rir, a rir como raras vezes tenho rido na minha vida. Julguei que nunca mais conseguia parar. Todas as vezes que abria a boca para começar a contar o que se passara, tinha um ataque de gargalhada... Por fim até me assustei, tive medo de morrer a rir. Quando consegui dominar-me um pouco, e após um breve e pesado silêncio, Curley perguntou, de súbito: Conseguiste? Foi o bastante para desencadear outro ataque, ainda mais violento do que os anteriores. Tive de me encostar a um gradeamento e agarrar a barriga. Tinha uma dor danada nas tripas, mas agradável. O que mais me aliviou foi ver a nota que tirara do maço de Maxie: vinte dólares! Tanto bastou para me curar imediatamente do riso. E ao mesmo tempo enfureceu-me um pouco. Enfureceu-me pensar que na algibeira daquele idiota do Maxie havia mais notas, provavelmente mais notas de vinte, de dez e de cinco dólares. Se ele tivesse saído comigo, como lhe sugerira, e se eu tivesse visto bem o maço, tê-lo-ia assaltado sem sentir quaisquer remorsos. Não sei a que atribuí-lo, mas fiquei furioso. O meu pensamento mais imediato foi livrarme de Curley o mais depressa possível - uma nota de cinco calá-lo-ia - e depois fazer uma festazinha. O que desejava especialmente era encontrar uma gaja degradada e imunda, sem sombra de decência... Onde encontrar uma assim... exactamente assim”? Bem, começa por te livrar de Curley... Que ficou magoado, evidentemente. Esperara ficar comigo. Fingiu não querer os cinco dólares, mas quando viu que me preparava para os guardar arrebatou-os logo. De novo a noite, a noite incalculavelmente deserta, fria e mecânica de Nova Iorque, na qual não há paz, nem refúgio, nem intimidade. A imensa solidão gelada da turba comum milhão de pés, o fogo frio e desperdiçado dos letreiros eléctricos, a espantosa falta de significado da perfeição da fêmea que, através da perfeição, cruzou a fronteria do sexo e entrou no negativo, no vermelho, como a electricidade, como a energia neutral dos machos, como os planetas sem aspecto, como os programas de paz, como o amor pela rádio. Termos dinheiro na algibeira no meio de energia branca, neutral; caminharmos sem sentido e infecundados através do brilho vivo das ruas calcinadas; pensarmos alto em absoluta solidão, à beira da loucura; sermos de uma cidade, de uma grande cidade; sermos do último momento de tempo na maior cidade do mundo e não nos sentirmos parte dela, é tornarmo-nos nós próprios uma cidade, um mundo de pedra morta, de luz esbanjada, de movimento ininteligível, de imponderáveis e incalculáveis, da secreta perfeição de tudo o que é negativo. Caminhar comdinheiro através da multidão nocturna, protegidos pelo dinheiro, embalados pelo dinheiro, entorpecidos pelo dinheiro, a própria multidão transformada em dinheiro, a respiração dinheiro, todos os objectos em toda a parte dinheiro, dinheiro, dinheiro, dinheiro em toda a parte e mesmo assim insuficiente, e depois não termos dinheiro, ou termos pouco dinheiro, ou menos dinheiro, ou mais dinheiro, mas dinheiro, sempre dinheiro, e quer tenhamos dinheiro quer não, é o dinheiro que conta, é o dinheiro que faz dinheiro, mas o que faz o dinheiro fazer dinheiro! Outra vez o salão de baile, o ritmo do dinheiro, o amor pela rádio, o contacto impessoal, sem asas, da multidão. Um desespero que chega às próprias solas dos sapatos, um tédio, um desespero. Dançar sem alegria no meio da maior perfeição ’mecânica, estar desesperadamente só, ser quase desumano por ser humano. Se houvesse vida na Lua, que prova mais quase-perfeita, que prova mais triste, poderia haver do que isto? Se viajar afastando-nos do Sol é chegar a gélida idiotia da Lua, então chegamos à meta e a vida não é mais do que a fria incandescência lunar do Sol. Este é o baile da vida gelada no vazio de um átomo, e quanto mais dançamos maior é o frio. Por isso dançamos a um frenético ritmo gelado, ao cornpasso de ondas curtas e ondas longas, um dançar no interior da taça do nada, cada centímetro de lubricidade medido em dólares e centimes. Passamos de uma fêmea perfeita para outra em busca do defeito vulnerável, mas elas são impecáveis e impermeáveis na sua irrepreensível consistência lunar. Este é o branco e gelado hímen da lógica do amor, o rendilhado da maré vazia, a orla da vacuidade absoluta. E nessa orla da lógica virginal da perfeição danço a dança de desespero branco da alma, o último homem branco premindo o gatilho contra a última emoção, o gorila do desespero a bater no peito comimaculadas patas enluvadas. Sou o gorila que sente as asas crescer, um gorila tonto no centro de um vazio acetinado; a noite também cresce como uma planta eléctrica, lançando rebentos branco-ígneo para o espaço de veludo preto. Sou o espaço preto da noite em que os rebentos desabrocham de angústia, uma estrela-do-mar nadando no orvalho gelado da Lua. Sou o germe de uma nova insanidade, uma aberração ornada de linguagem inteligível, um soluço enterrado como um espinho no âmago da alma. Danço a dança muito sensata e muito encantadora do gorila angélico. Estes são os meus irmãos e as minhas irmãs, que não são sensatos nem angélicos. Dançamos no vazio da taça do nada. Somos da mesma carne, mas separados como estrelas. De momento tudo é claro para mim, é claro que nesta lógica 112 Henry Miller não há redenção, claro que a própria cidade é a forma mais elevada de loucura e todas e cada uma das suas partes, orgânicas ou inorgânicas, são uma expressão dessa mesma loucura.1 Sinto-me absurda e humildemente grande, não como um megalómano, mas como um esporo humano, como a esponja’ morta da vida inchada até à saturação. Já não olho para os olhos da mulher que seguro nos braços, nado através deles, cabeça e braços e pernas, e vejo que atrás das órbitas há uma ré- J gião inexplorada, o mundo da futuridade onde não há lógica l de qualquer espécie, onde há apenas a quieta germinação de J eventos não interrompidos pela cadência do dia e da noite, l pelo ontem e pelo amanhã. Os olhos, habituados a concentra- l rem-se em pontos no espaço, concentram-se agora em pontos J no tempo; os olhos vêem para a frente e para trás, conforme J lhes apetece. O olho que era o eu do eu já não existe; este olho l sem eu não revela nem ilumina. Viaja ao longo da linha do ho- J rizonte, viajante incansável e desinformado. Ao tentar reter o l corpo perdido cresço em lógica como a cidade, torno-me um l ponto na anatomia da perfeição. Cresço para além da minha i própria morte, espiritualmente brilhante e duro. Fui dividido i em intermináveis ontens, em intermináveis amanhãs, repou- l sando apenas na cúspide do acontecimento, uma parede comi muitas janelas, mas já sem a casa. Tenho de despedaçar as pare- I dês e as janelas, o derradeiro invólucro do corpo perdido, se i quero regressar ao presente. É por isso que já não olho para os J olhos ou através dos olhos, mas, pela prestidigitação da vonta- j de, nado através dos olhos, cabeça e braços e pernas, para ex- I piorar a curva da visão. Vejo à volta de mim mesmo como a mãe que me trouxe no ventre viu à roda das esquinas do tem- l pó. Quebrei a parede criada pelo nascimento e a linha da via- l gem é redonda e ininterrupta, plana como o umbigo. Nenhu- l ma forma, nenhuma imagem, nenhuma arquitectura; só voos l concêntricos de pura demência. Sou a seta da substancialidade do sonho. Confirmo pelo voo. Anulo caindo na Terra. m Assim passam momentos, momentos verídicos de tempo <jl sem espaço em que sei tudo, e sabendo tudo caio sob a abobada do sonho despersonalizado. Entre esses momentos, nos interstícios do sonho, a vida H tenta em vão construir-se, mas o andaime da lógica louca da fl cidade não é apoio que sirva. Como indivíduo, como carne j^ Trópico de Capricórnio 113 e sangue, todos os dias sou arrasado para fazer a cidade sem carne nem sangue cuja perfeição é a soma de toda a lógica e a morte do sonho. Debato-me contra uma morte oceânica em que a minha própria morte é apenas uma gota de água a evaporar-se. Para erguer a minha própria vida individual, nem que seja uma fracção de centímetro acima deste mar de morte que se afunda, preciso de uma fé maior do que a fé de Cristo, de um saber mais profundo do que o saber do maior profeta. Preciso de ter aptidão e paciência para formular o que não está contido na linguagem do nosso tempo, pois o que é agora inteligível não tem significado. Os meus olhos são inúteis, visto só me devolverem a imagem do conhecido. Todo o meu ser tem de se tornar um constante feixe de luz, a avançar comvelocidade sempre crescente, sem nunca parar, sem nunca olhar para trás, sem nunca hesitar. A cidade cresce como um cancro; eu tenho de crescer como um sol. A cidade devora cada vez mais profundamente o vermelho; é um insaciável piolho branco que morrerá eventualmente de inanição. you matar à fome o piolho branco que me devora. you morrer como cidade, a fim de me tornar de novo um homem. Portanto, cerro os ouvidos, os olhos e a boca. Antes de voltar a ser completamente um homem talvez exista como um parque, uma espécie de parque natural onde as pessoas vão descansar, passar o tempo. O que disserem ou fizerem será de pouca importância, pois só trarão a sua fadiga, o seu tédio e o seu desespero. Serei um tampão entre o piolho branco e o glóbulo vermelho. Serei um ventilador para remover os venenos acumulados através do esforço para aperfeiçoar o que é imperfectível. Serei lei e ordem como elas existem na Natureza e como se projectam no sonho. Serei o parque selvagem no meio do pesadelo da perfeição, o sonho imóvel, inabalável, no meio da actividade frenética, a tacada ao acaso na branca mesa de bilhar da lógica, não saberei chorar nem protestar, mas estarei sempre presente, em absoluto silêncio, para receber e restaurar. Não direi nada até chegar a altura de ser de novo homem. Não farei nenhum esforço para preservar nem para destruir. Não julgarei nem criticarei. Os que tiverem tido o suficiente irão até mim para reflectir e meditar; os que não tiverem tido o suficiente morrerão como viveram, na desordem, no desespero, Klk. 114 Henry Miller na ignorância da verdade da redenção. Se um me disser que devo ser religioso, não responderei. Se um me disser não tenho tempo agora, está uma cona à minha espera, não responderei. Mesmo que se projecte uma revolução, não responderei. Haverá sempre uma cona ou uma revolução ao dobrar da esquina, mas a mãe que me trouxe no ventre dobrou muitas esquinas e não respondeu, e finalmente virou-se do avesso e eu sou a resposta. De uma mania tão selvagem de perfeição ninguém esperaria, naturalmente, uma evolução para um parque selvagem, nem mesmo eu próprio, mas enquanto se espera a morte é infinitamente melhor viver num estado de graça e confusão natural. Enquanto a vida avança para uma perfeição mortal, é infinitamente melhor ser um pouco de espaço para respirar, uma extensão verde, um pouco de ar puro, uma poça de água. Também é melhor receber os homens silenciosamente e abraçá-los, pois não há resposta nenhuma a dar enquanto eles ainda correm freneticamente para virar a esquina. Estou a pensar na luta à pedrada de uma tarde de Verão há muito, muito tempo, quando eu estava em casa da minha tia J Carolina, perto de Hell Gate. O meu primo Gene e eu tinha- l mós sido encurralados por um grupo de rapazes, quando l brincávamos no parque. Não sabíamos a favor de que lado lu- -| távamos, mas lutávamos comtodo o afã no meio do monte de l pedras, junto da margem do rio. Tínhamos de mostrar ainda mais coragem do que os outros rapazes, pois suspeitavam que éramos mariquinhas. Foi assim que matámos um rapaz do grupo rival. Quando nos atacavam, o meu primo Gene atirou uma pedra de born tamanho ao chefe do grupo e acertou-lhe numa têmpora e ele caiu - e caiu de vez, sem dizer pio. Os polícias chegaram pouco depois e o rapaz estava morto. Tinha oito ou nove anos, como nós. Não sei o que nos teriam feito se nos tivessem apanhado. Mas nós, para não levantarmos suspeitas, apressámo-nos a ir para casa e, no caminho, sacudi^_nr,<: nm bocado e penteámo-nos. Chegámos quase tão i i casa, na grande sala da frente de persianas corridas, a jogar ao berlinde como nosso amiguinho Joey Kasselbaum. Joey tinha fama de ser um bocadinho atrasado e, habitualmente, limpávamo-lo, mas naquela tarde, por uma espécie de entendimento tácito, Gene e eu deixámo-lo ganhar tudo quanto tínhamos. Joey ficou tão contente que mais tarde nos levou à sua cave e obrigou a irmã a levantar a saia e mostrar-nos o que tinha por baixo. Chamavam-lhe Weesie, e lembro-me de que ela simpatizou instantaneamente comigo. Eu era de outra parte da cidade, tão distante, parecia-lhes, que era quase como se tivesse vindo de outro país. Até acharam que falava de modo diferente deles. Enquanto os outros garotos tinham de pagar se queriam que Weesie levantasse a saia, para nós levantava-a comamor. Passado algum tempo, conseguimos mesmo convencê-la a não a levantar mais para os outros rapazes - estávamos apaixonados por ela e queríamos que se portasse bem. Deixei o meu primo no fim do Verão e não o voltei a ver durante vinte anos ou mais. Quando nos encontrámos, o que mais profundamente me impressionou foi o seu ar de inocência: a mesma expressão do dia do combate à pedrada. Quando lhe falei dessa luta fiquei ainda mais estupefacto ao descobrir que ele se esquecera de que fôramos nós quem matáramos c rapaz; lembrava-se do caso, mas referia-se-lhe como se nerr ele nem eu tivéssemos tido qualquer participação no acidente Quando mencionei o nome de Weesie, teve dificuldade en identificá-la. Não te lembras da cave ao lado... Joey Kassel vaum? Ao ouvir o nome perpassou-lhe pelo rosto um lev sorriso. Achava extraordinário que eu me lembrasse de ta j coisas. Já era casado e pai, e trabalhava numa fábrica de este l jos de fantasia para cachimbos. Achava extraordinário reco l dar coisas que tinham acontecido numa época tão distante c l passado. ||L Quando o deixei, nessa noite, sentia-me terrivelmente d IHk sanimado. Tinha a impressão de que o meu primo tentí ^^i irradicar uma parte preciosa da minha vida, e ele próprio ju ’”«^.-p^arlo oelos peixes tro até momentos em que o gosto da grande fatia de pão de cen- , teio que a mãe dele me deu, nessa tarde, é mais forte na minha j boca do que seja o que for que esteja a comer. E a imagem da , passarinha de Weesie quase mais forte do que o contacto do ’< que tenho na mão. A maneira como o rapaz ficou caído, depois de o derrubarmos, muito, muito mais impressionante do que a história da Guerra Mundial. Na realidade, todo o Verão me parece um idílio retirado das lendas arturianas. Pergunto-me muitas vezes que terá havido de tão especial nesse Verão que o torna de tal maneira vivo na minha memória. Basta-me fechar os olhos um momento para ser capaz de reviver cada um dos seus dias. A morte do rapaz não me causou angústia alguma; estava esquecida antes de decorrer uma semana. A imagem de Weesie, na penumbra da cave, coma saia levantada, também esqueceu depressa. Estranhamente, a grossa fatia j de pão de centeio que a mãe dele me dava todos os dias pare- i cê ter mais potência do que qualquer outra imagem desse período. Penso nisso... penso profundamente. Talvez seja por- j que ela me dava sempre o pão comuma ternura e uma l simpatia nunca antes conhecidas. A minha tia Carolina não j era nada bonita e tinha a cara picada das bexigas, mas o seu l rosto era tão bondoso e tão cativante que nada o poderia dês- ] figurar. Era robustíssima e tinha uma voz muito suave, muito j acariciadora. Quando se me dirigia parecia prestar-me ainda j mais atenção e falar-me ainda commais consideração do qua« ao próprio filho. Gostaria de ter ficado sempre comela: tê-la-B -ia escolhido para mãe, se tal me fosse permitido. Lembro-meB perfeitamente como a minha mãe pareceu abespinhada ao verH como estava contente coma minha nova vida, quando um dial me foi visitar. Disse até que eu era ingrato, observação que l nunca esqueci, pois nessa altura compreendi pela primeira vez i que ser ingrato talvez fosse necessário e born para uma pés- l soa. Se fecho agora os olhos e penso na fatia de pão, acode-me l imediatamente ao espírito que naquela casa nunca soube o J que era ser repreendido. Creio que se tivesse contado à minha J tia que matara o rapaz, se lhe tivesse dito como acontecera, ela* me envolveria nos braços e me perdoaria. Imediatamente. Tal-B vez seja por isso que aquele Verão se tornou tão precioso paraB mim. Foi um Verão de tácita e completa absolvição. É por issoH que também não posso esquecer Weesie. Era uma criança | cheia de bondade natural, que estava apaixonada por mim e não fazia quaisquer censuras. Foi a primeira representante do outro sexo a admirar-me por eu ser diferente. Depois de Weesie, as coisas passaram a acontecer ao contrário. Depois dela, tenho sido amado, mas também tenho sido odiado, por ser o que sou. Weesie fez um esforço para compreender. O próprio facto de eu provir de um país estranho e falar outra língua a prendia a mim. Nunca esquecerei como os seus olhos brilhavam quando me apresentava às suas amiguinhas. Os seus olhos pareciam querer rebentar de amor e admiração. Às vezes, ao fim da tarde, íamos os três até à beira do rio, sentávamo-nos e conversávamos como as crianças conversam quando estão fora das vistas dos mais velhos. Falávamos então sei-o muito bem, agora - mais sensata e profundamente do que os nossos pais. Para nos darem aquela grossa fatia de pão todos os dias os pais tinham de pagar pesada pena. A pior pena que pagavam era a de se afastarem de nós. Sim, porque a cada fatia de pão que nos davam nós tornávamo-nos, não só mais indiferentes a eles, mas também mais e mais superiores. Na nossa ingratidão estavam a nossa força e a nossa beleza. Não sendo devotados, estávamos inocentes de todo o crime. O rapaz que vi cair morto, ficar imóvel e sem emitir o mais leve som ou gemido, a morte desse rapaz parece quase um acto limpo e saudável. A luta pela comida, pelo contrário, parece suja e degradante, e quando estávamos na presença dos nossos pais pressentíamos que tinham vindo ate nós impuros e não lhes podíamos perdoar isso. A grossa fatia de pão, à tarde, sabia-nos deliciosamente, o que se devia precisamente a não ter sido ganha. Nunca mais o pão voltará a saber assim. Nunca mais nos será dado do mesmo modo. No dia do assassínio pareceu ainda mais gostoso. Possuía um ligeiro travo a terror, que nunca mais teve. E foi recebido coma absolvição tácita, mas completa, da tia Carolina. Há um não-sei-quê no pão de centeio que tento descobrir, algo vagamente delicioso, atemorizador e libertador, algo associado comas primeiras descobertas. Estou a pensar noutra fatia de pão de centeio relacionada comum período ainda anterior, quando o meu amiguinho Stanley e eu costumávamos fazer uma razia ao frigorífico. Esse era pão roubado e consequentemente ainda mais agradável ao paladar do que o pão í dado comamor. Mas era no acto de comer pão de centeio, de caminhar comele na mão e falar ao mesmo tempo, era nisso que acontecia algo da natureza de uma revelação. Era como j um estado de graça, um estado de completa ignorância, de abnegação. Parece que retive, intacto, tudo quanto me foi comunicado nesses momentos, e não há o perigo de jamais perder o \ conhecimento que foi ganho. Talvez isso se deva ao facto de não ser conhecimento do género em que geralmente pensa- ’ mós. Era quase como receber uma verdade, embora a verdade seja uma palavra excessivamente precisa para o descrever. O i importante nas discussões do pão de centeio era realizarem-se j sempre longe de casa, longe dos olhos dos nossos pais, que te- ,] miamos mas nunca respeitámos. Sozinhos, não havia limites l para o que podíamos imaginar. Os factos tinham pouca im- j portância para nós: o que pedíamos a um assunto era que nosÉl concedesse a oportunidade de o expandir. O que me surpreen-1 de, quando recordo tudo isso, é o bem que nos compreenJ díamos um ao outro, o bem que penetrávamos no carácterí essencial de todos, jovens ou velhos. Aos-sete anos de idadeB sabíamos comperfeita certeza, por exemplo, que determinado indivíduo acabaria na prisão, que outro seria um burro de carga, outro um não-presta-para-nada, etc. Éramos absolutamente correctos nos nossos diagnósticos, muito mais correctos, por exemplo, do que os nossos pais, ou os nossos professores, mais correctos, até, do que os chamados psicólogos. Alfie Betcha acabou por ser um absoluto vadio; Johnny Gerhardt foi para a penitenciária; Bob Kunst tornou-se um burro de carga. Predições infalíveis. Os ensinamentos que recebemos tenderam apenas a obscurecer-nos a visão.  partir do dia em que fomos para a escola não aprendemos nada; pelo contrário, tornaram-nos obtusos, envolveram-nos num nevoeiro de palavras e abstracções. como pão de centeio, o mundo era o que é essencialmente, um mundo primitivo dominado pela magia, um mundo em que o medo desempenha o papel mais importante. O rapaz que conseguia inspirar mais medo era o chefe, respeitado enquanto era capaz de conservar o seu poder. Havia outros rapazes que eram rebeldes e, como tal, admirados, mas nunca se tornavam chefes. A maioria era barro nas mãos dos destemidos; podia-se depender de alguns, mas não da maioria. O ar estava cheio de tensão, não se podia predizer nada para amanhã. Este vago e primitivo núcleo de sociedade criava apetites agudos, emoções agudas e curiosidade aguda. Não se tomava nada por certo; cada dia exigia uma nova prova de poder, uma nova noção de força ou de falta de força. E assim, até aos nove ou dez anos, provámos verdadeiramente a vida; fomos independentes. Refirome, claro, àqueles que tiveram a sorte de não serem estragados pelos pais, àqueles que tiveram a liberdade de correr pelas ruas à noite e de descobrir coisas comos próprios olhos. No que estou a pensar, comuma certa dose de mágoa e saudade, é que a vida completamente restrita da infância pareceu um universo ilimitado, e a vida que se seguiu, a vida do adulto, um reino a diminuir constantemente. A partir do momento em que nos metem na escola estamos perdidos; ficamos coma sensação de ter um cabresto à roda do pescoço. O pão perde o gosto, e a vida também. Obter o pão torna-se mais importante do que comê-lo. É tudo calculado e tudo tem o seu preço. O meu primo Gene tornou-se uma nulidade absoluta; Stanley, um falhado de primeira. Além destes dois rapazes pelos quais tive a maior afeição, houve outro, Joey, que mais tarde se tornou carteiro. Sinto vontade de chorar quando penso no que a vida fez deles. Quando rapazes, eram perfeitos - o Stanley era o menos perfeito, por ser o mais temperamental. Tinha cóleras violentas, de vez em quando, e nunca sabíamos em que pé estávamos comele, no dia-a-dia. Mas Joey e Gene eram a essência da bondade, eram amigos no antigo significado da palavra. Penso muitas vezes em Joey quando you para o campo, porque ele era o que se chama um rapaz do campo. Isso significava, desde logo, que era mais leal, mais sincero e mais terno do que os rapazes que conhecíamos. Ainda estou a vê-lo correr para mim, sempre de braços abertos e pronto para me abraçar, sempre ofegante no afã de me contar as aventuras que planeava coma minha participação, sempre carregado de presentes que fora guardando para a minha chegada. Joey recebia-me como os monarcas de antigamente recebiam os seus convidados. Tudo quanto olhava era meu. Tínhamos inúmeras coisas que dizer um ao outro e nenhuma delas era enfadonha ou maçadora. A diferença entre os nossos respecti- 120 Henry Miller vos mundos era enorme. Embora eu também fosse da cidade, quando visitava o meu primo Gene tinha consciência de uma cidade ainda maior, de uma verdadeira cidade de Nova Iorque em que a minha sofisticação era insignificante. Stanley não fazia excursões para fora do seu bairro, mas Stanley viera de uma terra estranha do outro lado do mar, viera da Polónia, e entre nós havia sempre a marca dessa viagem. O facto de falar outra língua também aumentava a nossa admiração por ele. Rodeava cada um de nós uma aura característica, uma identidade bem definida que se conservava inviolada. coma entrada na vida, essas peculiaridades, essa diferenciação, esbateram-se, apagaramse, e tornámo-nos todos mais ou menos iguais e, evidentemente, muito diferentes da nossa própria personalidade. E esta perda do eu peculiar, da individualidade quiçá não importante, é esta perda que me entristece e põe em extraordinário relevo o pão de centeio. O maravilhoso pão de centeio participou na feitura das nossas personalidades individuais; era como o pão da comunhão, que todos compartilham, mas do qual cada um recebe apenas de acordo como seu estado de graça especial. Agora comemos do mesmo pão, mas sem o benefício da comunhão, sem graça. Comemos para encher a barriga e o nosso coração, sem graça. Comemos para encher a barriga e o nosso coração está gelado e vazio. Estamos separados, mas não somos indivíduos. Havia outra coisa que caracterizava o pão de centeio: muitas vezes acompanhávamo-lo comuma cebola crua. Lembro-me de estar comStanley, à tarde, comuma sanduíche na mão, defronte da casa do veterinário, que ficava mesmo defronte ’ da minha. Dir-se-ia ser sempre ao fim da tarde que o doutor McKinney decidia castrar um garanhão, operação feita em público e que atraía sempre uma pequena multidão. Lembro-me do cheiro do ferro quente e do tremor das pernas do cavalo, l da barbicha do doutor McKinney, do gosto da cebola crua e l do cheiro do gás, proveniente de uma nova conduta que esta-jH vam a colocar mesmo atrás de nós. Era uma performance^ completamente indolor. Desconhecendo o motivo da opeJB ração, travávamos depois longas discussões, que geralmentaM terminavam em briga. Também ninguém gostava do doutoçM McKinney, como seu eterno cheiro a iodofórmio e a mijí^B velho de cavalo. Às vezes a valeta defronte da sua casa enchia-seJB Trópico de Capricórnio 121 de sangue e, no Inverno, o sangue transformava-se em. gelo e dava um estranho aspecto ao seu passeio. De quando em quando, aparecia a fedorenta e grande carroça aberta de duas rodas, na qual carregavam um cavalo morto. A carcaça era içada por meio de uma corrente comprida, que produzia um ruído como o do descer de uma âncora. O cheiro de um cavalo morto e inchado é pestilencial, e a nossa rua estava cheia de cheiros pestilenciais. A esquina ficava a loja de Paul Sauer, que empilhava na rua peles cruas e curtidas, as quais também cheiravam pavorosamente mal. E havia o cheiro acre que vinha da fábrica da folha, atrás da casa - um cheiro semelhante ao do progresso moderno. O cheiro de um cavalo morto, apesar de quase insuportável, é mil vezes melhor do que o cheiro de substâncias químicas em combustão. E o espectáculo de um cavalo morto, comum orifício de bala na têmpora, a cabeça numa poça de sangue e o buraco do eu a rebentar coma última evacuação espasmódica, é preferível ao espectáculo de um grupo de homens de avental azul, saindo da porta em arco da fábrica comcarros de mão atestados de folha acabada de fazer. Felizmente para nós, havia uma padaria defronte da fábrica, e pelo gradeamento das traseiras podíamos ver os padeiros a trabalhar e aspirar o cheiro doce e irresistível do pão e dos bolos. E se, como disse, estavam a colocar canos de gás, havia ainda outra estranha mistura de cheiros: o cheiro da terra acabada de revolver, dos canos de ferro podres, do gás e das sanduíches de cebola que os trabalhadores italianos comiam encostados aos montes de terra. Claro que havia mais cheiros, mas menos impressionantes - como, por exemplo, o cheiro da alfaiataria de Silverstein, onde passavam muito a ferro. Era um cheiro quente e fétido, que se identifica melhor se imaginarmos Silverstein, um judeu magro e ele próprio fedorento, a limpar como ferro quente os peidos que os seus clientes deixavam nas calças. Na porta ao lado era a papelaria e loja de rebuçados de duas velhas malucas e beatas. Aí reinava o cheiro adocicado e enjoativo dos chupa-chupas, dos amendoins espanhóis, das pastilhas de jujuba e Sen-Sen e dos cigarros Sweet Caporal. A papelaria era como uma bela caverna, sempre fresca e cheia de objectos curiosos: junto da máquina da soda, da qual se desprendia outro odor característico, havia urna grossa placa de mármore cujo cheiro a azedo, no Verão, 122 Henry Miller Trópico de Capricórnio 123 m se misturava agradavelmente como cheiro seco e coceguento da água carbonada esguichada para os copos de sorvete. comos refinamentos próprios da maturidade, os cheiros desvanecem-se e são substituídos por um único cheiro também caracteristicamente recordável e agradável: o cheiro a cona. Muito especialmente o cheiro que nos fica nos dedos depois de brincarmos comuma mulher: este cheiro, se não se deu por ele antes, é ainda mais agradável, talvez porque já tem consigo o perfume do passado, do que o odor da própria cona. Mas, comparado comos odores característicos da infância, este, que pertence à maturidade, é um cheiro ténue. É um cheiro que se dissipa quase tão depressa na imaginação como na realidade. Podemos recordar muitas coisas acerca da mulher que amámos, mas é difícil recordar o cheiro da sua cona - isto é, recordá-lo comalgo semelhante a uma certeza. Por outro lado, o cheiro a cabelo molhado - cabelo de mulher molhado é muito mais potente e duradouro, não sei porquê. Ainda hoje, passados quase quarenta anos, me lembro do cheiro do cabelo da minha tia Tillie, depois de ela lavar a cabeça. Essa lavagem era feita na cozinha, que estava sempre só- j breaquecida. Geralmente ocorria ao fim de uma tarde de sá-jj bado, como preparativo para um baile, o que significava outrM coisa singular: que apareceria um sargento de cavalaria conH divisas amarelas muito bonitas, um sargento muito desempeM nado e escorreito, que até aos meus olhos parecia excessivaS mente gracioso, viril e inteligente para uma imbecil como minha tia Tillie. Mas, como ia dizendo, ela sentava-se nunH banquinho, junto da mesa da cozinha, a enxugar o cabel(M comuma toalha. A seu lado havia um candeeiro coma chamiM né suja de fumo e ao lado do candeeiro dois ferros de frisaiH cuja simples presença me enchia de inexplicável aversão. GeS ralmente, tinha um espelho inclinado, em cima da mesa. Pare^H ce-me que estou a vê-la fazer caretas, ao espelho, enquanto esjH premia os pontos negros do nariz. Era uma criatura imbecilH feia e escanzelada, comduas enormes dentuças que lhe davanH uma expressão cavalar sempre que arreganhava os lábios par^l sorrir. Cheirava a suor, até depois de tomar banho. Mas cH cheiro do seu cabelo... a esse nunca o poderei esquecer, poi^B associa-se de certo modo ao meu ódio e desprezo por claH Esse cheiro, quando o cabelo começava a secar, lembrava^ o fedor que vem do fundo de um pântano. Havia dois cheiros: um do cabelo molhado e outro do mesmo cabelo, que ela atirava para o fogão e explodia em chamas. Havia sempre rolinhos de cabelo caídos do seu pente e misturados comcaspa e como cheiro a suor do seu couro cabeludo gorduroso e sujo. Costumava colocar-me ao lado dela e observá-la, a perguntar a mim mesmo como seria o baile e como se comportaria ela. Quando acabava de se ataviar perguntava-me se estava bonita e se gostava dela e, claro, eu respondia que sim. Mas mais tarde sentava-me na casa de banho, que ficava no vestíbulo logo a seguir à cozinha, e à luz trémula da vela que ardia no parapeito da janela dizia para comigo que a minha tia parecia doida. Quando se ia embora, pegava nos ferros de frisar e cheirava-os e apertava-os. Eram repugnantes e fascinantes ao mesmo tempo, como aranhas. Tudo naquela cozinha era fascinante para mim. Familiar como me era, nunca consegui conquistá-la, talvez por ser simultaneamente tão pública e tão íntima. Ali me davam o meu banho na grande tina de folha, aos sábados. Ali se lavavam e ataviavam as três irmãs. Ali se lavava o meu avô da cintura para cima, no lavatório, e depois me dava os sapatos, para engraxar. Ali me punha à janela, no Inverno, e via a neve cair, via-a cair entorpecidamente, vagamente, como se estivesse no útero e ouvisse correr a água quando a minha mãe se sentava na retrete. Era na cozinha que se desenrolavam as confabulações secretas, sessões assustadoras e odiosas, que os deixavam a todos graves e carrancudos ou comos olhos vermelhos de chorar. Confesso que não sei porque corriam para a cozinha. Mas era muitas vezes enquanto estavam nessas conferências secretas, a discutir um testamento ou a decidir como livrarem-se de algum parente pobre, era nessas alturas que a porta se abria de súbito e entrava um visitante, o que modificava logo a atmosfera. Quero dizer, modificavaa violentamente, como se eles se sentissem aliviados pela intervenção de uma força externa que lhes poupava os horrores de uma prolongada sessão secreta. Lembro-me agora de que, ao ver a porta abrir-se e surgir o rosto de um visitante inesperado, o meu coração saltava de alegria. Pouco depois davam-me um grande jarro de vidro e mandavam-me à taberna da esquina, onde entregava o jarro, através da janelinha da porta da família, e esperava que mo devolvessem 124 Henri Miller Trópico de Capricórnio 125 a trasbordar de espumosa cerveja. A pequena corrida até à eaj quina, para comprar um jarro de cerveja, era uma excursai de proporções absolutamente incalculáveis. Primeiro havia B barbearia, mesmo debaixo de nós, onde o pai de Stanley exeM cia a sua profissão. Muitas vezes, quando descia para ir buscaB qualquer coisa, via o pai de Stanley a dar-lhe uma sova coml correia de afiar as navalhas, espectáculo que me deixava o sarjl gue a ferver. Stanley era o meu melhor amigo e o pai dele nãl passava de um polaco bêbedo. Uma tarde, porém, ao descel| como jarro, tive o intenso prazer de ver outro polaco atirar-se ao pai de Stanley comuma navalha. Vi o velho sair pela porta às arrecuas, como sangue a correr-lhe pelo pescoço abaixo e branco como um lençol. Caiu no passeio defronte da barbearia, a estremecer e a gemer, e lembro-me de que olhei para ele um minuto ou dois e depois me afastei comuma grande sensação de contentamento e felicidade. Stanley pisgara-se durante a briga e acompanhou-me à porta da taberna. Também estava contente, embora se sentisse um bocadinho assustado. Quando voltámos, a ambulância estava parada defronte da porta e levantavam-np na maca, coma cara e o pescoço cobertos por um lençol. Às vezes sucedia o menino do coro preferido do padre Carroll passar por ali precisamente quando eu chegava à rua, o que constituía acontecimento de primeira importância. O rapaz era mais velho do que qualquer de nós e um mariquinhas, um panasca em preparação. A própria maneira como andava nos enfurecia. Assim que algum de nós o via, a notícia corria em todas as direcções, e antes que ele chegasse à esquina era rodeado por um grupo de rapazes, todos muito mais pequenos do que ele, que o provocavam e imitavam até desatar a chorar. Depois caíamos-lhe em cima como uma alcateia de lobos, atirávamolo ao chão e rasgávamos-lhe a roupa. Não estava certo, mas causava-nos uma sensação agradável. Ainda ninguém sabia o que era um maricas, mas já todos éramos contra isso, fosse lá o que fosse. Assim como éramos contra os chineses. Havia um chinês, da lavandaria do cimo da rua, que passava por ali frequentemente e que, como o mariquinhas do padre Carroll, se tinha de avir connosco. Era exactamente como os desenhos de coolies que vêm nos livros. Usava uma espécie de casaco de alpaca preta comas casas dos botões entrançadas, sapatos silenciosos, sem saltos, e rabicho. Geralmente caminhava comas mãos enfiadas nas mangas. É do seu andar que me lembro melhor, uma espécie de andar furtivo, miudinho e feminino, absolutamente estranho e ameaçador para nós. Tínhamos um medo terrível dele e odiávamo-lo porque as nossas zombarias o deixavam completamente indiferente. Pensávamos que era tão ignorante que nem percebia os nossos insultos. Até que um dia entrámos na lavandaria e ele fez-nos uma pequena surpresa. Primeiro entregou-nos o embrulho da roupa lavada; depois meteu a mão debaixo do balcão e tirou um punhado de nozes de um grande cartucho. Sorria quando saiu de trás do balcão para abrir a porta, e continuava a sorrir quando agarrou Alfie Betcha e lhe puxou as orelhas; puxou as orelhas a todos nós, um de cada vez, sem deixar de sorrir. Por fim, fez uma careta feroz e, rápido como um gato, correu para trás do balcão, pegou numa faca comprida e feia e brandiu-a na nossa direcção. Saímos aos tropeções uns nos outros. Quando chegámos à esquina e olhámos para trás, vimo-lo à porta comum ferro na mão e um ar muito calmo e pacífico. Depois desse incidente nunca mais nenhum de nós quis ir à lavandaria; tínhamos de pagar todas as semanas um níquel ao pequeno Luís Pirossa para nos ir buscar a roupa. O pai de Luís era dono do lugar de fruta da esquina e costumava dar-nos bananas podres, como sinal de afeição. Stanley gostava muito das bananas podres, pois a tia fritava-lhas. As bananas fritas eram consideradas uma guloseima fina em casa de Stanley. Uma vez, nos anos dele, houve uma festa para a qual foi convidada toda a vizinhança. Correu tudo muito bem até chegarem as bananas fritas. Aconteceu então que ninguém lhes quis tocar, pois tratava-se de um prato conhecido apenas por polacos, como os pais de Stanley. Considerava-se repugnante comer bananas fritas. No meio do embaraço geral, um garoto vivaço sugeriu que se dessem as bananas ao maluco Willie Maine. Willie Maine era mais velho do que qualquer de nós, mas não sabia falar. A única coisa que dizia, a propósito de tudo, era Bjork! Bjork! Por isso, quando lhe passaram as bananas, disse Bjork!, e estendeu as duas mãos para elas. Mas George, o irmão, estava presente e sentiu-se insultado por quererem dar as bananas podres ao pateta do irmão. Desatou à pancada, e Willie, vendo o irmão atacado, entrou na refega, a gritar Bjork! Bjork! 126 Henry Miller Não contente combater nos outros rapazes, atirou-se também às raparigas, o que ocasionou um pandemónio. Por fim, ouvindo o barulho, o pai de Stanley veio da barbearia coma correia de afiar as navalhas na mão. Agarrou o maluco do Willie pelo cogote e desatou a dar-lhe correadas. Entretanto, George esgueirara-se e fora chamar o pai. Este, que também gostava da pinga, chegou em mangas de camisa, e ao ver o pobre Willie a ser espancado pelo bêbedo do barbeiro atirou-se a ele comos dois fortes punhos em riste e deu-lhe sem dó nem piedade. Wilhe, que conseguira livrar-se do apuro, estava de gatas a devorar as bananas fritas que tinham caído ao chão. Devorava-as como um bode, assim que as encontrava. Quando o velho o viu a empanturrar-se assim, como um bode, ficou furioso, apanhou a correia e correu para Willie, disposto a desancá-lo. Wilhe desatou a berrar Bjork! Bjork! e, de repente, começou toda a gente a rir. Isso serenou Mr. Maine; que , se sentou e a quem a tia de Stanley levou um copo de vinho. Ao ] ouvir o barulho tinham acorrido mais vizinhos, e houve mais l distribuição de vinho, e depois de cerveja, e depois de aguar- j dente, e em breve estavam todos felizes e a cantar e a assobiar, l e até os miúdos se empielaram. O Willie maluco não escapou | à bebedeira e voltou a pôr-se de gatas como um bode e a gritar Bjork! Bjork! Alfie Betcha, que estava muito bêbedo, ape- J sar de ter só oito anos, deu uma dentada no traseiro de Willie, ! e depois Willie mordeu-o também, e depois desatámos todos , a morder-nos uns aos outros, enquanto os pais observavam e ; riam e guinchavam de alegria. Foi muito divertido, houve mais bananas fritas, e desta vez toda a gente as comeu. Depois ’ houve discursos e mais copázios, e o maluco do Willie tentou 5 cantar para nós, mas só conseguiu dizer Bjork! Bjork! A festa J de anos foi um êxito tremendo, e durante uma semana ou J mais não se falou noutra coisa, e toda a gente dizia que os pais \ de Stanley eram uns bons polacos. As bananas fritas também { foram um êxito, e durante uns tempos foi difícil apanhá-las ao j pai de Luís Pirossa, pois tinham muita procura. Depois acon- ; teceu uma coisa que entristeceu toda a vizinhança: a derrota | de Joe Gerhardt às mãos de Joey Silverstein. O último era fi- \ lho do alfaiate, rapaz de dezasseis anos, de ar pacato e estu- | dioso, de quem os outros rapazes mais velhos se afastavam i por ele ser judeu. Um dia, quando ia entregar um par de calças j Trópico de Capricórnio 127 à Fillmore Place, foi abordado por Joey Gerhardt, que tinha mais ou menos a mesma idade e se considerava um ser muito superior. Houve uma troca de palavras e Joe Gerhardt arrancou as calças das mãos do outro e atirou-as para a valeta. Ninguém imaginaria que o jovem Silverstein reagiria a tal insulto recorrendo aos punhos, e por isso ’quando ele se atirou a Joe Gerhardt e lhe acertou em cheio no queixo ficaram todos muito surpreendidos - principalmente o próprio Joe Gerhardt. Houve uma luta que durou cerca de vinte minutos e no fim da qual Joe Gerhardt ficou estendido no passeio, incapaz de se levantar. Depois disso, o jovem Silverstein apanhou o par de calças e regressou calma e orgulhosamente à oficina do pai. Ninguém lhe disse uma palavra, mas o caso foi considerado uma calamidade. Onde já se vira um judeu espancar um gentio? Era inconcebível, mas acontecera, e acontecera ali mesmo, diante dos olhos de toda a gente. Noite após noite, sentávamonos no passeio, como era costume, e discutíamos a situação de todos os ângulos, mas sem encontrar qualquer solução. Até que... bem, até o irmão mais novo de Joe Gerhardt, Johnny, se chatear tanto como assunto que decidiu arrumá-lo ele próprio. Embora mais novo e mais pequeno do que o irmão, Johnny era duro e invencível como um jovem puma, exemplo típico dos irlandeses da vizinhança. A maneira como resolveu ajustar contas como filho do alfaiate foi esperá-lo uma noite, escondido, e meter-lhe uma rasteira, quando Silvertein saiu da loja. Ao meter-lhe a rasteira, nessa noite, estava prevenido comduas pequenas pedras, escondidas nas mãos, e quando o pobre Silverstein caiu atirou-se a ele e bateu-lhe nas têmporas comas pedras. Para seu espanto, Silverstein não ofereceu qualquer resistência; nem mesmo quando se levantou e lhe deu uma oportunidade de se levantar também. Silverstein nem se mexeu. Então Johnny assustou-se e fugiu. O medo devia ser tanto que nunca mais voltou, quando se ouviu falar novamente dele tinha sido apanhado, algures no Oeste, e mandado para um reformatório. A mãe, que era uma irlandesa relaxada e jovial, disse que era muito bem feito e que esperava nunca mais lhe voltar a pôr os olhos em cima. Quando Silverstein se refez da pancada, não voltou a ser o mesmo. As pessoas diziam que a agressão lhe afectara o cérebro e o deixara um pouco pateta. Joe Gerhardt, por outro lado, vol- 128 Henry Miller tou a brilhar. Parece que foi ver Silverstein, enquanto ele estava de cama, e lhe apresentou sinceras desculpas. Isso era urna coisa que também nunca se ouvira, um procedimento tão estranho, tão invulgar, que Joe Gerhardt foi considerado quase como um cavaleiro andante. Embora ninguém aprovasse o modo como Johnny se comportara, ninguém se lembraria de ir pedir desculpa ao jovem Silverstein. Foi urn gesto de tamanha delicadeza, de tamanha elegância, que Joe Gerhardt passou a ser olhado como um verdadeiro cavalheiro - o pri-í meiro e único cavalheiro da vizinhança. Cavalheiro era pala-- vra que nunca fora usada entre nós, mas passou a andar nos! lábios de todos e ser um cavalheiro tornou-se uma distinção.! Lembro-me de que a súbita transformação do derrotado Joe: Gerhardt em cavalheiro produziu em mim profunda impressão. Alguns anos mais tarde, quando me mudei para ou-í tro bairro e conheci Claude de Lorraine, um rapaz francês, estava preparado para compreender e aceitar «um cavalhei| ro». Nunca pusera os olhos num rapaz que se parecesse conl o tal Claude. No antigo bairro, teria sido considerado um mal riquinhas, por várias razões: falava demasiado bem, demasia! do correcta e cortesmente, e era demasiado atencioso, demal siado delicado e galante. Além disso, ouvi-lo, enquantJ brincávamos comele, mudar facilmente de inglês pari francês, se a mãe ou o pai apareciam, deixava-nos embasbacai dos. Alemão já ouvíramos falar e considerávamos essa língul uma transgressão permissível, mas francês! Falar francês, oil até mesmo compreendê-lo, apenas, era ser completamente esl trangeiro, completamente aristocrata, detestável, distmguM No entanto, Claude era um dos nossos, tão born como nól em todos os sentidos - e até uma bocadinho melhor, comei éramos forçados a admitir secretamente. Mas havia um senão: í o seu francês! Isso hostilizava-nos. Ele não tinha direito nenhum de viver no nosso bairro, direito nenhum de ser tão ca-i paz e viril como era. Muitas vezes, quando a mãe o chamava d nos despedíamos dele, juntávamo-nos no jardim e discutíamos a família Lorraine de trás para a frente e da frente para trás. Tínhamos curiosidade em saber, por exemplo, o que comiam, pois pelo facto de serem franceses deviam ter costumes diferentes dos nossos. Também nunca ninguém pusera os pés em casa de Claude de Lorraine, o que era outro facto suspeito I âl Trópico de Capricórnio 129 e desagradável. Porquê? Que escondiam? No entanto, quando passavam por nós na rua eram sempre muito cordiais, sorriam e falavam sempre em inglês - e num inglês muito excelente. Faziam-nos sentir um bocado envergonhados de nós próprios; eram superiores, aí é que estava. E havia ainda outra questão intrigante: uma pergunta directa feita aos outros rapazes obtinha sempre uma resposta directa, mas comClaude de Lorraine não havia nunca respostas directas. Sorria sempre commuito encanto antes de responder e mostrava-se muito calmo, muito senhor de si, comuma ironia que nos ultrapassava, que não entendíamos. Claude Lorraine era um espinho cravado na nossa carne e, por isso, quando deixou o bairro soltámos todos um suspiro de alívio. Quanto a mim, só passados dez ou quinze anos é que voltei a pensar nesse rapaz e no seu estranho e elegante comportamento. E foi então que tive consciência de que cometera um erro grave. Um dia, de súbito, lembrei-me de que, em certa ocasião, Claude de Lorraine me abordara coma intenção evidente de conquistar a minha amizade e eu o tratara comsobranceria. Quando pensei nesse incidente, percebi que Claude devia ter visto algo diferente em mim e quisera honrar-me, estendendo-me a mão da amizade. Mas nessa altura eu tinha um código de honra - mau ou born, tinha-o -, e esse código de honra mandava-me andar coma manada. Se me tornasse amigo íntimo de Claude de Lorraine, atraiçoaria os outros rapazes. Fossem quais fossem as vantagens que essa amizade pudesse oferecer-me, não tinha direito a elas; pertencia ao grupo, e o meu dever era permanecer afastado de tipos como Claude de Lorraine. Voltei a recordar esse incidente depois de um intervalo ainda maior do que o primeiro depois de estar em França havia alguns meses e de a palavra raisonahle ter adquirido um sentido inteiramente novo para mim. Um dia, de repente, ao ouvi-la, pensei nas tentativas feitas por Claude de Lorraine na rua, defronte da sua casa. Lembrei-me perfeitamente de que ele empregara a palavra razoável. Provavelmente pedira-me que fosse razoável, expressão que então nunca me saía dos lábios, pois não tinha necessidade dela no meu vocabulário. Era, como «cavalheiro», uma palavra raras vezes empregada, e mesmo nessas raras vezes comgrande reserva e circunspecção. Era uma Palavra que podia levar os outros a rirem-se de nós. Havia 130 Henry Miller muitas palavras assim. Realmente, por exemplo, era uma delas. Nunca nenhum dos meus conhecidos usara a palavra realmente até Jack Lawson aparecer em cena. Ele empregava-a porque os seus pais eram ingleses e, por isso, embora o gozássemos, desculpávamo-lo. Realmente era uma palavra que me lembrava, acto contínuo, o pequeno Carl Ragner, do antigo bairro. Cari Ragner era filho único de um político que morava na distinta ruazinha conhecida por Fillmore Place. Morava quase ao fundo da rua, numa pequena casa de tijolo vermelho sempre muito bem tratada. Lembrome da casa porque, ao passar por ela a caminho da escola, reparava no brilho dos reluzentes puxadores de latão que ornamentavam a porta. Mais ninguém tinha puxadores de latão nas portas. De qualquer maneira, Cari Ragner era um daqueles rapazes a quem não permitiam que se associasse comos outros rapazes. Por sinal, raramente o víamos. Regra geral, só ao domingo lhe púnhamos a vista em cima, a passear como pai. Não fosse este uma personagem poderosa no bairro e Cari teria sido morto à pedrada. Era realmente impossível, coma sua fatiota domingueira. Como se não lhe bastasse usar calças compridas e sapatos de verniz, ainda ostentava chapéu de coco e bengala. Segundo a opinião unânime, um rapaz que se deixava vestir assim, aos seis anos, era um idiota. Havia quem dissesse que a sua saúde era fraca, como se isso fosse desculpa para a excentricidade do seu vestuário. O estranho é que não o ouvi falar nem uma vez. Era tão elegante, tão refinado, que talvez considerasse falar em público sinal de má educação. De qualquer maneira, costumava pôr-me de tocaia aos domingos de manhã, só para o ver passar como seu velho. Observava-o coma mesma ávida curiosidade comque observava os bornbeiros a limparem os carros da bomba, no quartel. Às vezes, ao regressar a casa, levava uma caixinha de gelado, a mais pequena que se vendia, provavelmente o suficiente, apenas, para a sua sobremesa. «Sobremesa» era outra palavra que se nos tornara familiar e que utilizávamos depreciativamente, quando nos referíamos aos da igualha do pequeno Cari Ragner e da sua família. Éramos capazes de passar horas a imaginar o que semelhante gente comia à sobremesa, encontrando especial prazer em repetir o mais possível a recémdescoberta palavra sobremesa, que provavelmente fora contrabandeada da JLTrópico de Capricórnio 131 casa dos Ragners. Deve ter sido mais ou menos por essa altura que Santos Dumont se tornou famoso. Para nós, havia algo grotesco no nome Santos Dumont. comas suas façanhas pouco nos importávamos; só o nome é que interessava. À maioria do grupo cheirava a açúcar, a plantações cubanas, à estranha bandeira cubana comuma estrela a um canto e muito considerada pelos que coleccionavam os cartõezinhos que acompanhavam os cigarros Sweet Caporal e que representavam as bandeiras das diferentes nações, ou as principais soubrettes do palco, ou os pugilistas famosos. Santos Dumont era, então, algo deliciosamente estrangeiro, em contraste comas habituais pessoas ou objectos estrangeiros, como a lavandaria chinesa ou a altiva família francesa de Claude de Lorraine. Santos Dumont era uma expressão mágica que sugeria um belo bigode ondulante, um sombrero^, esporas, algo descuidado, gracioso, delicado e quixotesco. Às vezes lembrava o cheiro de grãos de café ou esteiras de palha, ou então, dado o seu carácter tão bizarro e quixotesco, provocava uma discussão acerca da vida dos Hotentotes. Sim, porque havia entre nós rapazes mais crescidos, que começavam a ler e nos entretinham horas a fio comhistórias que tinham ido buscar a livros como Ayesha ou Sob Bandeiras, de Ouida. O verdadeiro sabor do conhecimento está definitivamente associado no meu espírito ao terreno vago do fim do bairro para onde fui transplantado comcerca de dez anos. Aí, quando chegavam os dias outonais e nos sentávamos à volta de uma fogueira a assar pássaros e batatas nas latinhas que trazíamos connosco, surgiu um novo tipo de discussão diferente das antigas discussões, pois as suas origens eram sempre livrescas. Alguém acabara de ler um livro de aventuras, ou um livro científico, e toda a rua se tornava animada ao tomar conhecimento de um assunto até então desconhecido. Um desses rapazes podia, por exemplo, ter acabado de descobrir que existia uma coisa corno a corrente do Japão, e vá de tentar explicar-nos como e’a aparecera e qual era o seu objectivo. Era essa a única maneira como aprendíamos qualquer coisa - por assim dizer clandestinamente e a assar pássaros e batatas. Esses fragmentos de conhecimentos instalavam-se profundamente dentro de nós - tão profundamente, até, que mais tarde, quando confrontados comum saber mais exacto, era difícil desalojar 132 Henry Miller o antigo. Assim nos foi explicado um dia, por um rapaz mais velho, que os antigos Egípcios já conheciam a circulação do sangue, coisa que nos pareceu tão natural que, mais tarde, tiveram dificuldade em nos fazer engolir a história da descoberta da circulação sanguínea por um inglês chamado Harvey. Também não me parece estranho, agora, que nesse tempo a maioria das nossas conversas fosse acerca de terras remotas como a China, o Peru, o Egipto, a África, a Islândia e a Gronelândia. Falávamos de fantasmas, de Deus, da transmigração das almas, do Inferno, de astronomia, de aves e peixes estranhos, da formação de pedras preciosas, de plantações de borracha, de métodos de tortura, dos Astecas e dos Inças, da vida marinha, de vulcões e tremores de terra, de ritos fúnebres e cerimónias nupciais em várias partes do mundo, de línguas, da origem do índio americano, do desaparecimento dos búfalos, de doenças estranhas, de canibalismo, de bruxaria, de viagens à Lua e de como as coisas eram por lá, de assassinos e ladrões de estrada, dos milagres mencionados na Bíblia, de cerâmica, enfim, de mil e urna coisas que nunca ninguém mencionava em casa ou na escola e que para nós eram vitais porque estávamos famintos e o mundo estava repleto de maravilha e mistério, e só quando tremíamos de frio no love vago é que falávamos seriamente e sentíamos uma necessidade de comunicação ao mesmo tempo agradável e aterradora. A maravilha e o mistério da vida, que são sufocadas em nós quando nos tornamos membros responsáveis da sociedade! Até sermos empurrados para o trabalho, o mundo era muito pequeno e nós vivíamos na sua orla, por assim dizer na fronteira do desconhecido. Um pequeno mundo grego, apesar de tudo suficientemente profundo para nos proporcionar toda a espécie de variedades, toda a espécie de aventura e especulação. Mas também não era tão pequeno como isso, pois tinha de reserva as mais ilimitadas potencialidades. Não ganhei nada como alargamento do meu mundo; pelo contrário, perdi. Desejo tornar-me cada vez mais infantil e passar para além da infância na direcção oposta. Quero seguir exactamente ao contrário da linha normal de desenvolvimento, passar para um estado de ser superinfantil, que será absolutamente louco e caótico, mas não louco e caótico como o mundo que Trópico de Capricórnio 133 me rodeia. Fui adulto, e pai, e membro responsável da sociedade. Ganhei o pão de cada dia. Adaptei-me a um mundo que nunca foi o meu. Quero abrir caminho através desse mundo alargado e encontrar-me de novo na fronteira de um mundo desconhecido, que mergulhará em sombra este mundo pálido e unilateral. Quero passar da responsabilidade da paternidade para a irresponsabilidade do homem anárquico que não pode ser coagido, nem adulado, nem persuadido, nem caluniado. Quero escolher como guia Oberom, o cavaleiro nocturno que, sob o pálio das suas asas negras, elimina tanto a beleza como o horror do passado; quero correr para uma alvorada perpétua comuma velocidade e uma implacabilidade que não deixem campo para remorso, pesar ou arrependimento. Quero ultrapassar o homem inventivo que é uma maldição para a Terra, a fim de me encontrar de novo perante o abismo intransponível que nem as asas mais fortes me permitirão vencer. Mesmo que me torne um parque natural e selvagem habitado apenas por sonhadores indolentes, não me quero deter a descansar aqui, na fatuidade ordenada da vida adulta, responsável. Quero fazê-lo em memória de uma vida sem comparação alguma coma vida que me foi prometida, em memória da vida de uma criança que foi estrangulada e reprimida pelo consentimento mútuo daqueles que se tinham rendido. Renego tudo quanto os pais e as mães criaram. you regressar a um mundo ainda mais pequeno do que o antigo mundo helénico, regressar a um mundo que poderei sempre tocar se estender os braços, ao mundo do que sei, e vejo, e reconheço de momento a momento. Qualquer mundo é absurdo para mini, absurdo, e estranho, e hostil. Ao reatravessar o primeiro mundo luminoso que conheci em criança, não desejo parar lá e, sim, forçar a passagem para um mundo ainda mais luminoso, do qual devo ter vindo. Ignoro como esse mundo é e nem sequer tenho a certeza de o encontrar, mas é o meu mundo e nada mais me preocupa. O primeiro vislumbre e a primeira noção desse novo mundo luminoso tive-os através do conhecimento de Roy Hamilton. Estava no meu vigésimo primeiro ano, provavelmente o pior ano de toda a minha vida. Encontrava-me num tal estado de desespero que decidira sair de casa. Só pensava na Califórnia e só ralava da Califórnia, para onde tencionava ir começar 134 Henry Miller uma nova vida. Sonhava tão violentamente comessa nova terra prometida que, mais tarde, quando de lá regressei, mal me lembrava da Califórnia que vira e só pensava e falava na Califórnia que conhecera nos meus sonhos. Conheci Hamilton pouco antes de partir. Era um duvidoso meio-irmão do meu velho amigo MacGregor e tinham-se conhecido recentemente, pois Roy, que vivera a maior parte da sua vida na Califórnia, tivera sempre a impressão de que o seu verdadeiro pai era Mr. Hamilton e não Mr. MacGregor. Na verdade, tinha sido a fim de dissipar o mistério que envolvia a sua ascendência que viera ao Leste. Aparentemente, a vida comos MacGregror não o ajudara a encontrar uma solução esclarecedora. Depois de ter travado conhecimento como homem que julgara dever ser o seu legítimo progenitor parecia ainda mais perplexo do que nunca. Sentia-se perplexo, conforme me confessaria mais tarde, porque não encontrava em nenhum dos homens qualquer semelhança como homem que julgava ser. Talvez tivesse sido esse tormentoso problema de decidir a quem aceitar por pai que estimulara o desenvolvimento do seu próprio carácter. Digo isto porque, imediatamente após ter-lhe sido apresentado, senti-me na presença de um ser como jamais conhecera. Pela descrição que MacGregor fizera dele, estava preparado para travar conhecimento comum indivíduo «estranho» - sendo «estranho», na boca de MacGregor, sinónimo de ligeiramente chalado. Estranho era, na realidade, mas tão extraordinariamente são de espírito que me senti logo exaltado. Pela primeira vez falava comum homem que aprofundava o significado das palavras e a própria essência das coisas. Era como se falasse comum filósofo, não comum filósofo como os que conhecera através dos livros, mas sim comum homem que filosofava constantemente e que vivia a filosofia que expendia. Quer dizer, não tinha teoria absolutamente nenhuma, a não ser a de penetrar na própria essência das coisas e, à luz de cada nova revelação, viver a sua vida de tal modo que houvesse uma desarmonia mínima entre as verdades que lhe eram reveladas e a exemplificação dessas verdades pela acção. Naturalmente, o seu comportamento parecia estranho aos que o rodeavam. Mas não o fora para os que o conheciam na costa onde, conforme dizia, estava no seu elemento. Aí era, aparentemente, considerado um ser superior Trópico de Capricórnio 135 e escutado como máximo respeito, até mesmo comreverência. Conheci-o no meio de uma luta cujo verdadeiro significado só avaliei passados muitos anos. Na altura, não cornpreendia porque atribuía tanta importância a encontrar o verdadeiro pai. Por sinal, até costumava troçar a tal respeito, visto o papel do pai significar tão pouco para mim - o de pai ou o de mãe, pela mesma ordem de ideias. Via em Roy Hamilton a luta irónica de um homem que, apesar de já se ter emancipado, procurava estabelecer um sólido vínculo biológico do qual não tinha necessidade absolutamente nenhuma. Por paradoxal que pareça, esse conflito acerca do verdadeiro pai fizera dele um superpai. Era um mestre e um exemplo. Bastava-lhe abrir a boca para eu compreender que escutava uma sabedoria totalmente diferente de tudo quanto até aí associara a essa palavra. Seria fácil renegá-lo como místico, pois místico era, indubitavelmente; mas era também o primeiro místico que encontrava que sabia conservar os pés assentes no chão. Era um místico que sabia inventar coisas práticas, como, por exemplo, uma perfuradora muito necessária para a indústria petrolífera e que mais tarde lhe granjeou uma fortuna. No entanto, devido à sua estranha maneira metafísica de falar, na altura ninguém ligou muita importância ao seu invento prático. Consideraram-no mais uma das suas ideias chaladas. Falava constantemente de si próprio e da sua relação como mundo que o cercava, característica que criava a infeliz impressão de que não passava de um egotista espalhafatoso. Dizia-se até, e em certa medida comrazão, parecer mais preocupado coma verdade da paternidade de Mr. MacGregor do que comMr. MacGregor, o pai. comisso se implicava que não sentia verdadeiro amor pelo recémencontrado pai e sim, apenas, uma forte satisfação pessoal decorrente da verdade da descoberta, além de que explorava essa descoberta à sua habitual maneira auto-engrandecedora. Era profundamente verdade, claro, porque Mr. MacGregor, em carne e osso, era infinitamente inferior a Mr. MacGregor como símbolo do pai desaparecido. Mas os MacGregor não percebiam nada de símbolos nem nunca perceberiam, mesmo que lho explicassem. Faziam um esforço contraditório para, ao mesmo tem- 136 Henry Miller po, acolherem o filho havia muito perdido e reduzirem-no a| um nível compreensível, em que pudessem entendê-lo, nãol como «o havia muito perdido», mas simplesmente como o fí-l lho. Tornava-se porém evidente para quem possuísse um mí-J nimo de inteligência não ser aquele filho, de modo algum, uni filho e sim uma espécie de pai espiritual. Diria mesmo uma espécie de Cristo, que fazia um esforço muito corajoso para aceitar como sangue e carne aquilo de que tudo indicava já se ter libertado havia muito. Senti-me portanto surpreendido e lisonjeado quando esse; estranho indivíduo, que me merecia a mais calorosa admiração, me escolheu para confidente. Comparado comele, eu’ era muito dado aos livros, muito intelectual e mundano num sentido errado. Mas, acto contínuo, libertei-me dessa faceta da minha natureza e deliciei-me coma luz quente e imediata1’ criada pela sua intuição profunda e natural das coisas. Estar’ na presença dele dava-me a sensação de ser despido, ou melhor, descascado, pois era muito mais do que simples nudez o,| que ele exigia da pessoa comquem falava. Ao falar comigo, < dirigia-se a um eu de cuja existência só vagamente suspeitara,; o eu que emergia, por exemplo, quando subitamente, ao ler : um livro, verificava que estivera a sonhar. Poucos livros tinham esse dom de me pôr em transe, nesse transe de absoluta , lucidez em que, sem o sabermos, tomamos as mais profundas resoluções. A conversação de Roy Hamilton tinha esse condão. Tornava-me mais do que nunca atento, preternaturalmente atento, sem no entanto desfazer o tecido do sonho. Por outras palavras, apelava para o germe do eu, para o ser que eventualmente se sobreporia à personalidade nua, à individualidade sintética, e deixava-me verdadeiramente só e soli- ! tário, para que pudesse elaborar o meu próprio destino. A nossa conversa era como uma linguagem secreta no meio da qual os outros adormeciam ou se esbatiam como fantasmas. Isso, para o meu amigo MacGregor, era desconcertante e irritante; conhecia-me mais intimamente do que qualquer | dos outros tipos, mas nunca encontrara em mim nada que correspondesse ao carácter que lhe mostrava agora. Referia-se a Roy Hamilton como uma má influência, o que, mais uma vez, era profundamente verdade, pois aquele inesperado co- , nhecimento como seu meio-irmão servia sobretudo para nos Trópico de Capricórnio 137 alienar. Hamilton abriu-me os olhos e deu-me novos valores, e, embora mais tarde viesse a perder a nova visão de que me dotara, o certo é que nunca mais consegui ver o mundo, nem os meus amigos, como os vira antes da sua chegada. Hamilton modificou-me profundamente, como só um livro raro, uma personalidade rara ou uma experiência rara podem modificar uma pessoa. Pela primeira vez na minha vida compreendi o que era ter uma amizade vital e, no entanto, não me sentir escravizado ou preso por causa dela. Depois de nos separarmos nunca senti a necessidade da sua presença real; ele dera-se completamente e eu possuía-o sem ser possuído. Foi a minha primeira experiência pura e integral de amizade e nunca mais se repetiu comqualquer outro amigo. Hamilton era mais a própria amizade do que um amigo. Era o símbolo personificado, e por consequência inteiramente satisfatório, e por consequência desnecessário. Ele próprio o compreendia perfeitamente. Talvez fosse o facto de não ter pai que o impelia para a descoberta do eu, que é o processo final de identificação como mundo e, consequentemente, a compreensão da inutilidade dos vínculos. No estado em que então se encontrava, na plenitude da compreensão de si mesmo, ninguém lhe era, comcerteza, necessário, e muito menos o pai de carne e sangue que em vão procurava em Mr. MacGregor. A sua vinda ao Leste e a busca do pai verdadeiro devem ter-se revestido da natureza de um teste final, para ele, pois quando disse adeus, quando renunciou a Mr. MacGregor e também a Mr. Hamilton, foi como um homem que se tivesse purificado de todas as impurezas. Nunca vi um homem parecer tão isolado, tão absolutamente só, e vivo, e confiante no futuro, como Roy Hamilton quando se despediu. E também nunca vi tanta confusão e má interpretação como as que deixou atrás de si na família MacGregor. Era como si tivesse morrido no meio deles, ressuscitasse e os deixasse, na pele de um indivíduo inteiramente novo e desconhecido. Ainda os estou a ver no passeio, de mãos pateticamente, desesperadamente vazias, a chorarem sem saber porquê, a não ser que fosse por se sentirem despojados de algo que nunca tinham possuído. Gosto de pensar que foi assim. Sentiam-se perplexos e despojados - e vagamente, muito vagamente conscientes de que lhes fora oferecida uma grande oportunidade que não tinham tido a força ou a imaginação 138 Henry Miller suficientes para aproveitar. Era isso que o tremer das sua^ mãos pateticamente vazias me sugeria; não posso imaginar nenhum gesto mais doloroso de observar. Mostrava-me a terrível inaptidão do mundo quando posto cara a cara coma verdade, dava-me consciência da estupidez dos laços de sangue e do amor que não é espiritualmente inspirado. Olho rapidamente para trás e revejo-me na Califórnia. Estou só e trabalho como um escravo no laranjal de Chula Vista. Estou a obter aquilo a que tenho direito? Creio que não. Sou uma pessoa muito triste, muito infeliz, muito desgraçada. Pareço ter perdido tudo. Na realidade, sou mais um animal do que uma pessoa. Passo o dia parado ou a andar atrás dos dois burros atrelados ao meu trenó. Não tenho pensamentos, nem sonhos, nem desejos. Estou absolutamente saudável e vazio. Sou uma nulidade. Sinto-me tão completamente vivo e saudável que sou como os frutos enganosamente saborosos que pendem das árvores californianas. Mais um raio de sol e estarei podre. «Poum avant d’etre muri!» Sou realmente eu que estou a apodrecer neste luminoso sol californiano? Não resta nada de mim, de tudo o que fui até este momento? Deixem-me pensar um pouco... Houve o Arizona. Lembro-me agora de que já era noite quando pus pela primeira vez os pés no solo do Arizona. Havia apenas luz suficiente para captar um último vislumbre de um planalto que se esbatia. Caminho pela rua principal de uma cidadezinha cujo nome se perdeu. Que faço aqui nesta rua, nesta cidade? Estou apaixonado pelo Arizona, por um Arizona da mente, que procuro em vão como meu par de olhos. No comboio ainda me acompanhava o Arizona que trouxera comigo de Nova Iorque - até mesmo depois de termos atravessado a fronteira do estado. Não houvera uma ponte sobre um desfiladeiro que me arrancara em sobressalto do devanear? Uma ponte como nunca vira outra, uma ponte natural, criada por uma erupção cataclísmica havia milhares de anos? E vira um homem que parecia um índio e montava um cavalo comum alforje comprido pendendo ao lado do estribo. Uma ponte milenária natural, que à luz do poente e como ar tão límpido parecera a mais jovem, a mais nova das pontes imagináveis. E por essa ponte tão forte, tão duradoura, passava, Deus fosse louvado, apenas um homem e um cavalo, mais nada. Aquilo Trafico de Capricórnio 139 era, então, o Arizona, e o Arizona não era um invento da imaginação, mas a própria imaginação disfarçada de cavalo e cavaleiro. E isso era até mais do que a própria imaginação, pois não havia nenhuma aura de ambiguidade, mas apenas, nítida e clara, a coisa que era o sonho e o próprio sonhador montado a cavalo. E, quando o comboio pára, desço, e o meu pé abre um buraco profundo no sonho; estou na cidade do Arizona indicada no horário do comboio, e é apenas o Arizona geográfico que qualquer pessoa que tenha dinheiro para isso pode visitar. Caminho pela rua principal comuma mala na mão e vejo lojas de venda de sanduíches hamburguesas e escritórios de bens imobiliários. Sinto-me tão terrivelmente decepcionado que começo a chorar. Escureceu, entretanto, e estou parado no fim de uma rua, onde o deserto começa, e choro como um idiota. Que eu está a chorar? É o novo e pequeno eu que começou a germinar em Brooklyn e se encontra agora no meio de um imenso deserto e condenado a perecer. Agora,, Roy Hamilton, preciso de ti! Preciso de ti por um momento, só por um momentinho, enquanto me desfaço. Preciso de ti porque ainda não estava preparado para fazer o que fiz. E lembro-me de me dizeres que era desnecessário fazer a viagem, mas que a fizesse, se queria fazê-la. Porque não me persuadiste a não a fazer? Ah, persuadir nunca foi o teu modo de proceder! E pedir conselho nunca foi o meu. Por isso aqui estou, falido no deserto, e a ponte que era real ficou para trás de mim e o que é irreal está à minha frente, e só Cristo sabe que estou tão confuso e perplexo que se pudesse enterrar-me na terra e desaparecer o faria. Olho rapidamente para trás e vejo outro homem que foi abandonado e deixado perecer serenamente no seio da sua família: o meu pai. Compreendo melhor o que lhe aconteceu se retroceder muito, muito, e pensar em ruas como Maujer, Conselyea, Humboldt... especialmente Humboldt. Estas ruas eram de um bairro que não ficava muito distante do nosso, mas que era diferente, mais fascinante, mais misterioso. Estive na Humboldt Street apenas uma vez, em criança, e já não me lembro da razão por que lá fui, a não ser que tenha sido para visitar algum familiar doente, que enlanguescia num hospital alemão. Mas a própria rua produziu em mim uma impressão duradoura, embora não faça a mínima ideia porquê. Permane- 140 Henry Miller ce na minha memória como a rua mais misteriosa e mais prometedora que jamais vi. Talvez que, quando nos preparávamos para ir, a minha mãe me tenha, como de costume, prometido qualquer coisa de espectacular, como recompensa para a acompanhar. Estavam-me sempre a prometer coisas que nunca se materializavam. Talvez depois, quando cheguei à Humboldt Street e admirei, cheio de espanto, aquele novo mundo, me tenha esquecido por completo do que me fora prometido e a própria rua se haja tornado a recompensa. Lembro-me de que era muito larga e de que havia lanços de degraus altos, como nunca vira, de ambos os lados. Lembro-me também de que numa loja de costureira, no rés-do-chão de uma daquelas estranhas casas, estava na montra um busto comuma fita métrica pendente do pescoço, o que me impressionou muito. Havia neve no chão, mas o sol brilhava comforça e lembro-me perfeitamente de que, à volta do fundo dos latões de cinzas, havia uma poçazinha de água, deixada pela neve derretida. Toda a rua parecia estar a fundir-se sob o radioso sol de Inverno. Nos corrimãos dos altos lanços de degraus os montes de neve, que tinham formado almofadas brancas tão bonitas, começavam a escorregar, a desintegrar-se, deixando manchas escuras do arenito então muito em voga. Os pequenos letreiros de vidro dos dentistas e dos médicos, aninhados aos cantos das janelas, cintilavam ao sol do meio-dia e, pela primeira vez na minha vida, davam-me a impressão de que esses consultórios talvez não fossem as câmaras de tortura que supunha. Imaginei, à minha maneira infantil, que ali, naquele bairro, especialmente naquela rua, as pessoas eram mais cordiais, mais expansivas e, claro, infinitamente mais ricas. Devo ter-me expandido muito, embora não passasse de um pirralho, porque via pela primeira vez uma rua que me parecia desprovida de terror. Era uma daquelas ruas amplas, sumptuosas, reluzentes e a derreter-se que, mais tarde, quando comecei a ler Dostoievski, associei aos degelos de Sampetersburgo. Até as suas igrejas eram de um estilo de arquitectura diferente, tinham algo de semioriental, algo de grandioso e cálido ao mesmo tempo, que me assustava e intrigava. Reparei que, naquela rua larga e espaçosa, as casas ficavam muito para trás, no passeio, e repousavam em sossego e dignamente, sem terem a maculá-las o intercalado de lojas, fábricas e estábulos Trópico de Capricórnio 141 de veterinários. Vi uma rua composta apenas por residências e fiquei cheio de reverência e admiração. Lembro-me de tudo isso e tudo isso me influenciou grandemente, sem dúvida, mas não o suficiente, comcerteza, para justificar o estranho poder e a estranha atracção que o simples nome da Humboldt Street ainda evoca em mim. Alguns anos mais tarde voltei lá de noite, para a rever, e fiquei ainda mais impressionado do que da primeira vez. O aspecto da rua modificara-se, claro, mas era de noite, e a noite é sempre menos cruel do que o dia. Voltei a experimentar o estranho deleite do espaço e do luxo, já um pouco esbatidos mas ainda presentes, ainda positivos, impondo-se como outrora se tinham imposto os corrimãos de arenito, a espreitarem através da neve em fusão. Mas o mais característico de tudo foi a sensação quase voluptuosa de estar à beira de uma descoberta. Voltei a ter a consciência forte da presença da minha mãe, das grandes mangas tufadas do seu casaco de peles, da rapidez cruel comque me puxara pela rua fora, anos atrás, e da obstinação tenaz comque eu regalara os olhos em tudo quanto era novo e estranho para mim. Aquando da segunda visita, recordei vagamente outra personagem da minha infância, a velha governanta a quem tratavam pelo esquisito nome de Mrs. Kicking. Não me lembrava de ela ter adoecido, mas parecia recordar o facto de a termos visitado no hospital onde estava a morrer e de esse hospital ficar nas imediações da Humboldt Street que, longe de estar a morrer, se apresentava radiante na neve que se fundia sob o sol de Inverno. Mas que me teria prometido a minha mãe e de que nunca mais me consegui lembrar? Capaz como era de prometer tudo, talvez nesse dia, distraída, tivesse prometido algo tão ridículo que nem mesmo eu, apesar de toda a minha credulidade infantil, pudera engolir. E, no entanto, mesmo que me tivesse prometido a Lua e eu soubesse que isso estava fora de questão, esforçar-me-ia para revestir a sua promessa de um grão de verdade. Queria desesperadamente tudo quanto me era prometido e se, depois de reflectir, compreendia ser impossível, mesmo assim tentava, a meu modo, encontrar uma maneira de tornar tais promessas realizáveis. Era inimaginável, para mim, que as pessoas pudessem fazer promessas sem terem a mínima intenção de as cumprir. Mesmo quando sofria decepções cruéis, continuava a acreditar; acreditava que acon- JL 142 Henry Miller tecera algo extraordinário e superior à vontade da outra pessoa, e que fora isso que tornara a promessa nula e vazia. Esta questão da crença, esta velha promessa nunca cumprida, é que me faz pensar no meu pai, que foi abandonado no seu momento de maior necessidade. Até à altura da sua doença, nem o meu pai nem a minha mãe tinham evidenciado quaisquer tendências religiosas. Embora defendessem sempre a igreja na presença dos outros, eles próprios não voltaram a pôr lá os pés depois de se casarem. Consideravam um pouco idiotas os que frequentavam a igreja comexcessiva regularidade. A própria maneira como diziam: «Fulano é religioso», bastava para denunciar o desdém, ou então a piedade, que tais indivíduos lhes inspiravam. Se, de vez em quando, o pastor passava inesperadamente lá por casa, por causa de nós, as crianças, tratavam-no como uma pessoa a quem eram obrigados a mostrar deferência, por simples cortesia, mas coma qual não tinham nada em comum e de quem, na realidade, até suspeitavam um pouco, em virtude de representar uma espécie que ficava entre o idiota e o charlatão. A nós, por exemplo, diziam que era «um homem encantador», mas quando os seus amigos apareciam e desatavam a tagarelar, então ouvíamos comentários muito diferentes, geralmente sublinhados por gargalhadas desdenhosas e imitações trocistas. O meu pai adoeceu mortalmente em consequência de ter deixado de beber muito bruscamente. Toda a sua vida fora um tipo alegre e bem recebido: ganhara uma barriguinha que lhe ficava bem, tinha as faces cheias e vermelhas como uma beterraba, as suas maneiras eram cordiais e indolentes e parecia destinado a viver muitos anos, lúcido e são como um pêro. Mas sob esse exterior saudável e alegre as coisas não corriam nada bem. Os seus negócios iam de mal a pior, as dívidas acumulavam-se, e alguns dos seus mais velhos amigos começavam a abandoná-lo. O que mais o preocupava era a atitude da minha mãe, que via tudo muito negro e não se dava ao trabalho de o disfarçar. De vez em quando perdia a tramontana e atirava-se a ele sem dó nem piedade, chamandolhe os piores nomes, partindo a louça e ameaçando deixá-lo. Como consequência disso, o velho levantou-se uma manhã decidido a nunca mais beber uma gota que fosse. Ninguém acreditou na seriedade da sua determinação; houvera outros na família que Trópico de Capricórnio 143 tinham feito o mesmo, que tinham passado para a carroça da água, como diziam, mas que pouco tempo decorrido se tinham apeado. Embora todos o tivessem tentado em diversas ocasiões, ninguém na família conseguira tornar-se verdadeiramente abstémio. Mas como meu velho foi diferente. Onde ou como arranjou a força para se manter fiel à sua resolução, só Deus sabe. A mim parece-me incrível, pois se me encontrasse na situação em que ele se encontrava, teria bebido até rebentar. Mas o velho, não. Foi a primeira vez na vida que mostrou resolução acerca de uma coisa. A minha mãe ficou tão pasmada que, a grande idiota, começou a troçar dele, a zombar da sua força de vontade que até então fora tão lamentavelmente fraca. Mas ele manteve-se firme. Os seus compinchas dos copos deixaram de aparecer num instante. Em resumo, não tardou a encontrar-se quase totalmente isolado. Isso deve tê-lo atingido em cheio, deve tê-lo ferido profundamente, pois decorridas poucas semanas adoeceu comgravidade e teve de se chamar o médico. Refez-se um pouco, o suficiente para se levantar da cama e andar por ali, mas continuou sempre muito doente. Supunha-se que sofria de úlceras do estômago, embora ninguém tivesse a certeza de qual era o seu mal. Toda a gente compreendeu, porém, que ele cometera um erro ao deixar de beber tão bruscamente. Mas já era tarde para regressar a um modo de vida moderado. O seu estômago estava tão fraco que nem um prato de sopa aguentava. Em cerca de dois meses ficou quase transformado num esqueleto. E num velho. Parecia Lázaro saído do túmulo. Um dia a minha mãe chamou-me de parte e, comlágrimas nos olhos, suplicou-me que fosse ter como médico de família e lhe perguntasse a verdade acerca do estado do meu pai. O doutor Rausch era o médico da família havia anos. «Teutão» típico da velha escola, a longa prática tornara-o cínico e irritadiço, embora não lhe permitisse alhear-se por completo dos seus doentes. À sua estúpida maneira teutónica tentava correr comos doentes menos graves, obrigá-los, por assim dizer, a terem saúde. Quando entrávamos no seu consultório nem sequer se dava ao trabalho de levantar a cabeça; continuava a escrever, ou a fazer o que estava a fazer, enquanto ia atirando perguntas ao acaso, por vezes de modo insultuoso. Comportava-se comtanta grosseria e desconfiança que, por ridículo 144 Henry Miller que possa parecer, quase parecia esperar que os doentes levas J sem, não só os seus padecimentos, mas também aprova des-1 sés mesmos padecimentos. Dava-nos a impressão de que não era apenas fisicamente que tínhamos algo errado: era também j mentalmente. «Isso é só imaginação»: eis a sua frase favorita,’ que atirava em torn e comexpressão de escárnio. Conhe- j cendo-o como conhecia, e detestando-o profundamente, fui { preparado, isto é, levei o resultado da análise laboratorial’ das fezes do meu pai. Levava também o resultado da análise j da sua urina, na algibeira do sobretudo, se ele exigisse mais 1 provas. \ Quando eu era rapaz, o doutor Rausch demonstrara-me ] uma certa afeição, mas desde o dia em que lhe aparecera com\ um esquentamento perdera toda a confiança em mim e mos- ] trava-me umas grandes trombas mal me via entrar no cônsul- : tono. Tal pai, tal filho, era a frase comque me acolhia, e por j isso não fiquei nada surpreendido quando, em vez de me dar a <j informação que lhe pedia, começou a verberar-me, e ao meu ! velho ao mesmo tempo, pela vida que levávamos. «Não se ”; pode proceder contra a Natureza», sentenciou solenemente, } sem olhar para mim, enquanto fazia qualquer anotação inútil \ no grande calhamaço que tinha à frente. Aproximei-me tran- ^ quilamente da secretária, parei um momento a seu lado, sem abrir a boca, e quando ele levantou a cabeça, coma habitual expressão ofendida e irritada, disse-lhe: «Não vim cá para ouvir , lições de moral. Quero saber o que se passa como meu pai.» Ao ouvir tais palavras, levantou-se de repelão, fitou-me como ’ seu olhar mais severo e declarou, como o teutão estúpido e \ brutal que era: «O teu pai não tem a mínima possibilidade de se curar; em menos de seis meses estará morto.» Respondilhe, já a caminho da porta: «Obrigado, era só isso que queria saber.» Então, como se tomasse consciência de que fizera asneira, , foi atrás de mim, pesadamente, pôs a mão no meu ombro e, a gaguejar, tentou modificar as suas palavras, afirmando não ter ’ sido exactamente isso que quisera dizer, etc. Mas eu cortei-lhe ’ a palavra, abrindo a porta e gritando comtoda a força, para que os doentes ouvissem na sala de espera: «Considero-o um velho idiota e espero que rebente! Boas noites.» ’, Quando cheguei a casa modifiquei um tanto ou quanto a afirmação do médico e disse que, embora o estado do meu pai Trópico de Capricórnio 145 fosse muito grave, ele poderia refazer-se tivesse o máximo cuidado consigo. Isso pareceu animar muito o velho. Por sua própria iniciativa adoptou uma dieta de leite e torradas que, quer fosse quer não o que melhor lhe convinha, mal não lhe fez. Manteve-se uma espécie de semidoente durante cerca de um ano, tornando-se interiormente mais calmo, à medida que o tempo passava, e mostrando-se disposto a não consentir que nada perturbasse a sua paz de espírito mas nada, absolutamente nada, por muito mal que as coisas corressem. Assim que se sentiu um pouco mais forte começou a dar um passeio diário até ao cemitério próximo, onde se sentava num banco, ao sol, a ver as pessoas idosas arranjarem as campas. A proximidade da sepultura parecia animá-lo, em vez de o tornar mórbido. Dir-se-ia que se habituara à ideia de uma morte eventual, facto que até então se recusara a encarar de frente. Regressava muitas vezes a casa comflores que colhera no cemitério e o rosto inundado de serena alegria. Sentava-se então na poltrona e contava a conversa que tivera nessa manhã comum dos outros hipocondríacos que frequentavam o campo santo. Passado algum tempo, tornou-se evidente que o isolamento em que vivia lhe dava prazer - ou melhor, que tirava proveito profundo da experiência, de uma maneira que a inteligência da minha mãe não podia avaliar. Estava a tornar-se indolente, como ela dizia. Às vezes ia ainda mais longe e, ao referir-se ao meu pai, levava o indicador à testa, mas não dizia francamente o que pensava por causa da minha irmã, pois essa era, sem dúvida nenhuma, um pouco desarranjada da cabeça. Até que um dia, por gentileza de uma viúva idosa que visitava diariamente a campa do filho e era, como a minha mãe diria, «religiosa», o meu pai travou conhecimento como pastor de uma das igrejas vizinhas. Foi um acontecimento importante na vida do velho. De súbito, foi como se desabrochasse e a esponj azinha da sua alma, que quase se atrofiara por cornpleto à míngua de alimento, adquiriu tais proporções que o tornou praticamente irreconhecível. O responsável por essa extraordinária mudança operada no velho não tinha nada de extraordinário, porém; era um pastor congregacionalista de uma modesta paróquia vizinha do nosso bairro. A sua única virtude consistia em manter a religião em segundo plano. 146 Henry Miller O meu pai não tardou a sentir por ele uma espécie de idolatria de garoto; só falava desse pastor que considerava seu amigo. Como nunca olhara para a Bíblia em toda a sua vida - aliás nunca olhara para nenhum livro -, foi pelo menos comcerto espanto que passámos a ouvi-lo murmurar uma pequena prece antes de comer. Executava essa cerimoniazinha de uma maneira estranha, como quem toma um tónico, por exemplo. Se me recomendava a leitura de certo capítulo da Bíblia, acrescentava, muito sério: «Far-te-á bem.» Era um remédio novo que descobrira, uma espécie de mezinha de curandeiro para curar todas as doenças e que também podíamos tomar mesmo que não tivéssemos doença nenhuma, pois de qualquer maneira mal não nos faria. Assistia a todos os serviços religiosos e, nos intervalos, quando ia, por exemplo, dar um passeio, passava por casa do pastor, para dois dedos de conversa comele. Se o sacerdote dissesse que o presidente era uma boa alma e devia ser reeleito, o velho repetiria a toda a gente o que o pastor dissera, textualmente, e aconselharia as pessoas a votarem para que o presidente fosse reeleito. Fosse o que fosse que o pastor dissesse, era certo e justo e ninguém o poderia contradizer. Não há dúvida de que foi uma educação nova para o velho. Se o pastor mencionava as pirâmides durante o sermão, o velho tratava logo de se informar acerca das pirâmides. Falava como se toda a gente tivesse o dever de se familiarizar como assunto. O pastor dissera que as pirâmides eram uma das maiores glórias do Homem, ergo, não estar informado acerca das pirâmides era ser vergonhosamente ignorante, quase pecador. Por sorte o pastor não falava muito de pecado; pertencia ao tipo de pregador moderno que se impunha ao seu rebanho mais por lhe despertar a curiosidade do que por apelar para a sua consciência. Os seus sermões eram mais uma espécie de prolongamento de curso nocturno do que outra coisa e, portanto, para os tipos como o meu velho, muito interessantes e estimulantes. De vez em quando, os membros do sexo masculino da congregação eram convidados para urna festança destinada a demonstrar que o born do pastor era apenas um homem vulgar, como eles próprios, e de vez em quando apreciava uma boa refeição e mesmo um copo de cerveja. E até cantava, imagine-se não hinos religiosos e, sim, cançonetazinhas alegres, tipo popular. Somando dois e dois, Trópico de Capricórnio 147 podia-se inferir de tão alegre comportamento que, de vez em quando, também não fazia cara a uma boca lasca - sempre commoderação, evidentemente. «Moderação»: eis a palavra balsâmica para a alma lacerada do meu velho. Foi como descobrir um novo signo do zodíaco. E embora ele ainda estivesse tão doente que não podia tentar, sequer, regressar a um modo de vida moderado, essa palavra fazia-lhe bem à alma. Por isso, quando o tio Ned, que estava constantemente a passar para a carroça da água e a apear-se dela, lá apareceu em casa, uma noite, o meu velho pregou-lhe um pequeno sermão acerca da virtude da moderação. Como o tio Ned viajava, nesse momento, na carroça da água, quando o velho, emocionado pelas próprias palavras, foi subitamente ao aparador buscar uma garrafa de vinho e um copo, ficou toda a gente escandalizada. Jamais alguém ousara oferecer uma bebida ao tio Ned quando ele «deixava» de beber; atrever-se a semelhante coisa constituía uma grave falta de lealdade. Mas o velho fê-lo comtal convicção que ninguém se ofendeu, apesar de se escandalizarem, e como consequência disso o tio Ned bebeu um copinho de vinho e foi para casa sem parar numa taberna para matar a sede. Foi um acontecimento extraordinário e muito falado nos dias que se seguiram. Na realidade, o tio Ned começou a proceder de urna maneira um bocado esquisita, a partir dessa altura. Parece que, no dia seguinte, foi à loja e comprou uma garrafa de xerez, que despejou no licoreiro. Colocou o licoreiro no aparador, como vira o meu velho fazer, e, em vez de o despejar de uma assentada, contentou-se comum copo de cada vez - «um dedalzito», como dizia. O seu comportamento foi tão extraordinário que a minha tia, incapaz de acreditar nos próprios olhos, nos visitou e teve uma longa conversa como velho. Pediulhe, entre outras coisas, que convidasse o pastor a visitá-los, para que o tio Ned pudesse ter a oportunidade de cair sob a sua benéfica influência. Em resumo, às duas por três o tio Ned foi recolhido no redil e, como o meu velho, pareceu dar-se às mil maravilhas. As coisas correram muito bem até ao dia do piquenique. Infelizmente, esse dia esteve muitíssimo quente e, comas brincadeiras, a excitação e a hilaridade, o tio Ned arranjou uma sede dos diabos. Só quando já estava comas velas quase todas desfraldadas é que alguém reparou na regularidade e na frequência das suas idas ao barril da cerveja. Tarde de mais. Uma vez em semelhante estado, não era possível ter mão nele. Nem o pastor o conseguiu. Ned abandonou o piquenique e iniciou uma farrazinha que durou três dias e três noites. Ê talvez tivesse durado mais se ele não houvesse andado ao soco na beira-rio, onde o guarda-nocturno o encontrou inconsciente. Foi levado para o hospital, comum traumatismo cerebral de que nunca se refez. Ao regressar do hospital, o meu velho disse, de olhos secos: «O Ned não sabia o que era ser moderado. A culpa foi dele. De qualquer maneira, agora está melhor...» E, como se quisesse provar ao pastor que não era feito da mesma massa do tio Ned, tornou-se ainda mais assíduo no cumprimento dos seus deveres religiosos. Foi até promovido a «assessor», cargo de que muito se orgulhava e graças ao qual era autorizado a ajudar na recolha de contribuições, nos serviços dominicais. Imaginar o meu velho a atravessar a nave de uma igreja congregacionalista comuma caixa de esmolas na mão, imaginá-lo reverentemente diante do altar, coma caixa, enquanto o pastor benzia as oferendas, parece-me agora tão incrível que nem sei que dizer a tal respeito. Em contrapartida, gosto de pensar no homem que ele era quando, ao meio-dia de sábado, o ia esperar à casa do ferry, em garoto. Cercavam a entrada da casa do ferry três tabernas que, nas tardes de sábado, se enchiam de homens que iam petiscar qualquer coisa ao balcão e beber uma caneca de cerveja. Ele tinha então trinta anos, e ainda me parece que estou a vê-lo, um tipo saudável e alegre, comum sorriso para toda a gente e um gracejo para ajudar a passar o tempo. Vejo-o como braço apoiado no balcão, o chapéu de palha inclinado para trás e a mão esquerda levantada, a preparar-se para beber a cerveja espumosa. Os meus olhos ficavam mais ou menos ao nível da pesada corrente de ouro que lhe atravessava o colete. Lembro-me do fato de xadrez preto e branco que ele usava no Verão e da distinção que lhe conferia entre os outros homens, que não tinham tido a sorte de haver nascido alfaiates. Lembro-me da maneira como enfiava a mão no grande frasco de vidro que estava em cima do balcão, tirava alguns biscoitos salgados e mós dava, dizendo-me ao mesmo tempo que fosse dar uma vista de olhos à tabela de resultados do Brooklyn Times, que ficava perto. E quando eu saía a correr da taberna para ver quem estava a ganhar, talvez passasse uma enfiada de ciclistas rente ao passeio, na pequena faixa de asfalto ali colocada expressamente para eles. Talvez o ferry estivesse a atracar e eu parasse um instante a ver os homens fardados accionar as grandes rodas de madeira a que estavam presas as correntes. Quando a porta se abria e se colocavam as pranchas, saía uma multidão que se dirigia para as tabernas das esquinas mais próximas. Nesse tempo o meu velho sabia o significado da palavra «moderação», bebia porque tinha verdadeiramente sede e porque emborcar uma caneca de cerveja junto da casa do ferry era prerrogativa de homem. Então era como Melville tão bem dissera: «Alimenta todas as coisas como alimento conveniente para elas - isto é, se o alimento for obtenível. O alimento da tua alma é luz e espaço; alimenta-a de luz e espaço. Mas o alimento do corpo é champanhe e ostras; ahmenta-o pois de champanhe e ostras; e que ele mereça assim uma alegre ressurreição, se alguma houver.» Sim, parece-me que então a alma do meu velho ainda não tinha mirrado, que não lhe faltava luz e espaço, e que o seu corpo, sem se preocupar coma ressurreição, se alimentava de tudo quanto era conveniente e obtenível se não champanhe e ostras, pelo menos boa cerveja e biscoitos salgados. Então o seu corpo não estava condenado, nem o seu modo de viver, nem a sua ausência de fé. Tãopouco estava ainda cercado por abutres, mas sim apenas por bons camaradas, por simples mortais como ele, que não olhavam para cima nem para baixo e sim a direito, em frente, comos olhos sempre fixos no horizonte e contentes como que lá viam. E depois, transformado num destroço, fez-se assessor da igreja e passou a parar diante do altar, grisalho, curvado e mirrado, enquanto o pastor benzia os míseros fundos recolhidos e destinados a uma nova sala de boliche. Talvez se lhe tivesse tornado necessário sentir o nascimento da alma, alimentar esse tumor esponjiforme coma luz e o espaço que a Igreja Congregacional oferecia. Mas que fraco substituto isso era para um homem que conhecera as alegrias do alimento ansiado pelo corpo e que, sem rebates de consciência, inundara até a sua esponjiforme alma comuma luz e um espaço que não seriam religiosos, mas eram radiantes e terrenos. Recordo ainda a pançazinha sobre a qual a grossa corrente de ouro repousava e penso que, coma morte da pançazinha, só sobreviveu a alma-esponja, uma espécie de apêndice da própria morte do corpo. Penso no pastor que o engolira como uma espécie de comedor de esponjas desumano, guarda de uma tenda cheia de escalpes espirituais. Penso no que subsequentemente aconteceu como uma espécie de tragédia esponjai, pois, embora ele prometesse luz e espaço, mal desapareceu da vida do meu pai, todo o arejado edifício ruiu. Passou-se tudo da maneira mais banal desta vida. Uma noite, depois da habitual reunião, o meu velho chegou a casa comaspecto desgostoso. Tinham sido informados de que o pastor os ia deixar. Fora-lhe oferecido um lugar mais vantajoso na municipalidade de New Rochelle e, apesar da grande relutância que sentia em abandonar o seu rebanho, decidira aceitar. Claro que só aceitara após longa meditação - por outras palavras, como um dever. Ganharia mais, sem dúvida, mas isso não era nada comparado comas graves responsabilidades que assumiria. Precisavam dele em Néw Rochelle e ele obedecia à voz da sua consciência. O velho relatou tudo isto coma mesma untuosidade usada pelo pastor ao comunicar-Ihes a notícia. Mas tornou-se imediatamente aparente que se sentia magoado. Não compreendia por que motivo não podia New Rochelle arranjar outro pastor. Não estava certo, declarou, tentar o pastor comum ordenado maior. Precisamos dele aqui, afirmou comtal tristeza que quase tive vontade de chorar. Acrescentou que ia ter uma conversa franca como pastor, que se havia alguém capaz de o persuadir a ficar esse alguém era ele. Nos dias que se seguiram fez, de facto, todos os possíveis, certamente comgrande contrariedade do pastor. Confrangia ver a expressão vazia do seu olhar, quando regressava dessas conferências. Era a expressão de um homem que tentava agarrar-se a uma palha para não se afogar. Naturalmente, o pastor manteve-se irredutível. Nem sequer o facto de o velho perder a coragem e chorar na sua presença o comoveu e fez mudar de ideias. Esse foi o ponto de viragem. A partir desse momento, o meu velho sofreu uma mudança radical. Pareceu tornar-se mais azedo e rezingão. Não só deixou de rezar à mesa, como também se absteve de frequentar a igreja. Reatou o antigo hábito de ir para o cemitério e apanhar sol, sentado num banco. Tornou-se sombrio, depois melancólico e depois fixou-se na sua cara uma expressão de permanente tristeza, de uma tristeza eivada de desilusão, de desespero, de inutilidade. Nunca mais mencionou o nome do indivíduo, nem a igreja, nem nenhum dos outros assessores comquem se dera. Se por acaso passava por eles na rua, dava-lhes os bons-dias, mas não parava para lhes apertar a mão. Lia o jornal diligentemente, de ponta a ponta, sem fazer quaisquer comentários. Até os anúncios lia, todos, como se tentasse colmatar um grande buraco que se escancarava constantemente diante dos seus olhos. Nunca mais o ouvi rir-se. Quando muito, esboçava um sorriso fatigado, sem esperança, um sorriso que se desvanecia instantaneamente e nos deixava como espectáculo de uma vida extinta. Era uma cratera morta, morta e sem esperança alguma de ressurreição. Nem mesmo que lhe tivessem dado um estômago novo, ou um novo e resistente tracto intestinal, teria sido possível restituí-lo à vida. Já deixara para trás a atracção do champanhe e das ostras, a necessidade de luz e espaço. Era como o dodó que enterra a cabeça na areia e assobia através do buraco do eu. Quando adormecia na cadeira de balanço, o seu queixo pendia como um gonzo solto. Sempre ressonara, mas passou a ressonar mais ruidosamente do que nunca, como um homem que estava na verdade morto para o mundo. O seu ressonar assemelhava-se muito ao estertor, coma diferença de que era entrecortado por um intermitente e longo assobio. Quando ressonava parecia estar a espatifar todo o Universo, para que nós, que lhe sucederíamos, tivéssemos lenha suficiente para nos durar a vida inteira. Era o ressonar mais horrível e fascinante que jamais ouvi: estertoroso e estentório, mórbido e grotesco; umas vezes lembrava um acordeão a esvaziar-se, outras uma rã a coaxar nos pântanos. Após um assobio prolongado seguia-se por vezes uma terrível farfalheira, como se estivesse a entregar a alma, mas mudava logo para um subir e descer regular, para um rachar cavo e firme, como se estivesse nu da cintura para cima, comum machado na mão, perante a loucura acumulada de todo o bricabraque deste mundo. O que revestia o espectáculo de uma característica ligeiramente louca era a expressão de múmia do rosto, no qual só os grandes lábios gordos pareciam ter vida eram como as guelras de um tubarão a dormitar no leito do calmo 152 Henry Miller Trópico de Capricórnio 153 oceano. Ressonava regaladamente no fundo do abismo, senjt nunca ser perturbado por um sonho ou pelo arrastar de uma rede, num sono profundo, sem o tormento de um desejo insatisfeito. Quando fechava os olhos e adormecia, o mundo desaparecia e ele ficava só como antes do nascimento, era um cosmos a desintegrar-se. Sentava-se na sua cadeira de balanço como Jonas se deve ter sentado dentro do corpo da baleia, seguro no derradeiro refúgio de um buraco preto, sem esperar nada, sem desejar nada, não morto mas enterrado vivo, engolido inteiro e intacto, comos grandes lábios gordos a estremecer como fluxo e o refluxo do vazio da respiração. Estava na terra do sono à procura de Caim e Abel, mas não encontrava vivalma, nem qualquer palavra ou sinal. Viajava coma baleia e raspava o fundo negro e gelado; percorria milhas à velocidade máxima, guiado apenas pelas jubas flocosas de animais submarinos. Era o fumo que saía, enovelado, das chaminés, as densas camadas de nuvens que obscureciam a Lua, o lodo espesso que constituía o chão de oleado escorregadio dos abismo oceânicos. Estava mais morto do que morto, porque vivo e vazio; para além de toda a esperança de ressurreição, porque viajava para além dos limites da luz e do espaço e se aninhava comsegurança no buraco negro do nada. Inspirava mais inveja do que compaixão, pois o seu sono não era uma acalmia ou um intervalo, mas sim o próprio sono, que é a profundidade, e por isso, dormindo, descia cada vez mais profundamente às profundezas do mais profundo sono, à mais profunda profundidade do sono total, no mais fundo e profundo do doce sono. Dormia. Dorme. Dormirá. Sono. Sono. Pai, dorme, rogo-te, pois os que estão acordados fervem em horror... como mundo a desvanecer-se nas asas de um ressonar cavo, vejo a porta abrir-se e entrar Grover Watrous. «Cristo seja convosco!», saúda, arrastando consigo o pé boto. Já está um homem e encontrou Deus. Só há um Deus e Grover Watrous encontrou-o, e por isso não há mais nada a dizer a não ser que tem de ser tudo dito de novo na nova linguagem religiosa de Grover Watrous. Essa nova e cintilante linguagem que Deus inventou especialmente para Grover Watrous intriga-me enormemente, primeiro porque sempre considerei Grover um asno sem remédio, e segundo porque reparo que j já não se vêem manchas de tabaco nos seus dedos ágeis.l Quando éramos rapazes, Grover era nosso vizinho do lado. Visitavame de tempos a tempos, para fazer um dueto comigo, e, embora nessa altura tivesse apenas catorze ou quinze anos, já fumava como um desalmado. A mãe não podia fazer nada para o evitar, pois Grover era um génio, e um génio precisa de uma certa liberdade, sobretudo quando teve o azar de nascer comum pé boto. Grover pertencia ao tipo de génio que viceja na porcaria. Além das manchas de nicotina, também tinha as unhas pretas de sujidade, unhas que se partiam ao longo das intermináveis horas de prática e impunham ao jovem Grover a deliciosa obrigação de as arrancar comos dentes. Grover costumava cuspir as unhas partidas compartículas de tabaco que lhe tinham ficado presas aos dentes. Era delicioso e estimulante. Os cigarros abriam buracos no piano e, como a minha mãe observava em torn crítico, embaçavam as teclas. Quando Grover se ia embora, a nossa sala fedia como a das traseiras de um estabelecimento de cangalheiro. Tresandava a cigarros apagados, a suor, a roupa suja, às pragas de Grover e ao calor deixado pelas notas moribundas de Weber, Berlioz, Liszt & C.a Também tresandava ao ouvido purulento de Grover e aos seus dentes podres. Tresandava às pieguices e às mimalhices da mãe. A casa dele era um estábulo divinamente adequado para o seu génio, mas a sala da nossa casa era como a sala de espera de um agente funerário, e Grover não passava de uma besta que nem tinha inteligência suficiente para limpar os pés. No Inverno, o seu nariz escorria como um esgoto e, mergulhado na música, Grover deixava o ranho frio escorrer até aos lábios, onde era aspirado por uma língua branca e muito comprida. Isso adicionava um certo molho picante à música flatulenta de Weber, Berlioz, Liszt & C.a, o que tornava toleráveis esses demónios ocos. Palavra sim, palavra não, saía da boca de Grover uma praga. A sua expressão favorita era: «O caraças desta coisa não me sai bem!» Por vezes irritava-se tanto que cerrava os punhos e batia no piano como um louco. Era o seu génio a manifestar-se pela via errada. Na realidade, a mãe costumava atribuir grande importância a esses ataques de cólera; convenciam-na de que ele tinha qualquer coisa dentro de si. Outras pessoas diziam apenas que Grover era impossível. Mesmo assim, muito se lhe perdoava por causa do seu pé boto. Grover era suficiente- 154 Henry Miller mente manhoso para explorar esse defeito; sempre que desejava muito qualquer coisa, tinha dores no pé. Só o piano parecia não sentir o mínimo respeito pela sua deformidade. Por isso, era um objecto que merecia pragas, patadas e murros. Se, no entanto, se sentia em boa forma, Grover permanecia ao piano horas a fio, era mesmo impossível arrancá-lo de lá. Em tais ocasiões, a mãe ia para o relvado fronteiro à casa e saía ao caminho dos vizinhos, para lhes arrancar algumas palavras de elogio ao rebento. Deixava-se arrebatar de tal maneira pela arte «divina» do filho que se esquecia de fazer o jantar. O marido, que trabalhava nos esgotos, costumava chegar a casa irritadiço e esfaimado. Às vezes, ia direitinho à sala, no primeiro andar, e arrancava Grover do banco do piano. Também tinha um vocabulário imundo e quando desatava a língua contra o génio do filho pouco ficava a Grover para o rebater. Na opinião do pai, Grover não passava de um filho da mãe indolente, capaz de fazer muito barulho. De vez em quando, ameaçava atirar o caraças do piano pela janela fora - e Grover comele. Se a mulher tinha o atrevimento de interferir durante essas cenas, dava-lhe uma caldaça e mandava-a mijar pela ponta de uma corda acima. Claro que também tinha os seus momentos de fraqueza, durante os quais era capaz de perguntar a Grover que diabo estava para ali a martelar, e se o filho respondia, por exemplo, que era «a sonata Pathétique», o velho resmungava: «Que raio quer isso dizer? Porque não escrevem as coisas em simples inglês?» Grover ainda tinha mais dificuldade em suportar a ignorância do pai do que a sua brutalidade. Envergonhava-se sinceramente dele e ridicularizavao implacavelmente, pelas costas. Quando se tornou um pouco mais velho, passou a insinuar que não teria nascido como pé boto se o pai não fosse um pulha tão grande. E acrescentava desconfiar de que ele dera um pontapé na barriga da mãe, quando ela estava grávida. O alegado pontapé na barriga devia tê-lo afectado de vários modos, pois quando se tornou um homenzinho agarrou-se repentinamente a Deus comtal paixão que ninguém se atrevia a assoar o nariz à sua frente sem primeiro pedir licença a Nosso Senhor. A conversão de Grover verificou-se logo após a deflação do meu velho, e foi por isso que me lembrei dela. Ninguém via os Watrouses havia anos e, de repente, poder-se-ia até dizer no Trópico de Capricórnio 155 meio de um maldito ressonar, Grover entrou-nos pela casa dentro a esbanjar bênçãos e a invocar Deus como sua testemunha, enquanto arregaçava as mangas para nos livrar do mal. O que primeiro notei foi a mudança operada na sua aparência pessoal. Fora lavado e purificado no sangue do Cordeiro. Na realidade, apresentava-se tão imaculado que até parecia emanar dele um perfume. O seu modo de falar também fora purificado: em vez de pragas brutais, agora só lhe saíam dos lábios bênçãos e invocações. Não foi uma conversa que travou connosco: foi um monólogo em que, se perguntas houve, ele próprio lhes respondeu. Ao aceitar a cadeira que lhe oferecemos declarou, coma agilidade de um coelho, que Deus dera o Seu único e amado Filho para que nós pudéssemos desfrutar da vida eterna. Queríamos realmente essa vida eterna ou preferíamos refocilar nas alegrias da carne e morrer sem conhecer a salvação? Não teve, comcerteza, consciência do contra-senso de falar das «alegrias da carne» a um casal idoso, um dos membros do qual dormia profundamente e ressonava, a confirmá-lo. Estava tão animado e jubiloso naquele primeiro transporte da graça misericordiosa de Deus que se deve ter esquecido de que a minha irmã era apatetada, pois, sem perguntar sequer como ela passava, desatou a arengá-la naquele palavreado espiritual recémdescoberto, ao qual ela permaneceu absolutamente impenetrável, visto, como já disse, faltarem-lhe tantos botões que se ele lhe falasse de espinafres picados perceberia o mesmo. Uma frase como «os prazeres da carne» significava para ela algo parecido comum bonito dia e uma sombrinha vermelha. Percebi, pela maneira como se sentava na borda da cadeira e acenava coma cabeça, que esperava apenas que ele parasse, a fim de tomar fôlego, para o informar de que o pastor - o pastor dela, que era um episcopaliano - acabava de regressar da Europa e iam fazer uma feira na cave da igreja, onde ela teria uma barraca compratinhos de pôr debaixo dos copos, do armazém de cinco e dez cêntimos. Efectivamente, mal ele fez uma pausa ela disparou, em fogo cerrado, e falou dos canais de Veneza, da neve dos Alpes, dos carros de cães de Bruxelas e do maravilhoso chouriço de fígado de Munique. A minha irmã não era apenas religiosa: era completamente maluca. Grover começara a falar acerca de ter visto um novo Céu e uma nova Terra. ..pois o primeiro Céu e a primeira Terra tinham deixado 156 Henry Miller Trópico de Capricórnio 157 de existir, declarou, mastigando as palavras numa espécie de glissando histérico, a fim de tirar de cima de si o peso de uma mensagem oracular a respeito da Nova Jerusalém que Deus criara na Terra e em que ele, Grover Watrous, outrora porco de língua e deformado por um pé boto, encontrara a paz e o sossego dos justos. «Não haverá mais morte...», começou a gritar quando a minha irmã se inclinou para a frente e lhe perguntou muito inocentemente se gostava de jogar boliche; o pastor acabava de instalar uma nova e linda sala de boliche na cave da igreja e ela sabia que ele gostaria de ver Grover, pois era um homem encantador e bondoso para os pobres. Grover declarou ser pecado jogar boliche e afirmou não pertencer a nenhuma igreja, pois as igrejas eram ímpias; deixara até de tocar piano, porque Deus precisava dele para coisas mais elevadas «Aquele que se domina herdará todas as coisas», acrescentou. «e eu serei o seu Deus e ele será meu filho.» Fez nova paus. para se assoar a um belo lenço branco, e a minha irmã aproveitou a ocasião para lhe recordar que, antigamente, andava sempre ranhoso e nunca se assoava. Grover escutou-a solenemente e depois declarou que se curara de muitos maus procedimentos. Nessa altura o meu velho acordou. Vendo Grovei sentado a seu lado em carne e osso, assustou-se e, por momentos, pareceu não ter a certeza se ele era um fenómeno onírica mórbido ou uma alucinação, mas a visão do lenço limpo devolveu-lhe a lucidez. «Ah, és tu!», exclamou. «O rapaz dos Watrouses, não és? Mas, em nome de tudo quanto é sagrado, que fazes aqui?» E Grover respondeu-lhe, imperturbável: «Vim em nome do Santo dos Santos. Fui purificado pela morte no Calvário e estou aqui em nome de Cristo, para que vós possais ser redimidos e caminhar na luz, no poder e na glória.» O meu velho pareceu atordoado. «Que bicho te mordeu?», perguntou, envolvendo Grover num fraco olhar consolador. Minha mãe, que chegara da cozinha e se colocara atrás da cadeira de Grover, tentou dar a entender ao meu pai, comuma careta, que o rapaz estava chalado. Até a minha irmã pareceu compreender que havia algo errado no visitante, sobretudo quando ele recusou ir ver a nova sala de boliche que o seu encantador ministro instalara expressamente para jovens como Grover e outros que tais. Que se passava comGrover? Nada. Acontecia apenas que os seus pés estavam firmemente apoiados no quinto alicerce da grande muralha da Cidade Santa de Jerusalém, quinto alicerce esse feito inteiramente de sardónix e do qual ele abarcava o panorama de um rio puro de água da vida brotando do trono de Deus. E a visão de tal rio da vida era para Grover como a picada de mil pulgas no intestino delgado. Só depois de ter contornado pelo menos sete vezes a Terra seria capaz de se sentar tranquilamente e observar a cegueira e a indiferença dos homens comalgo semelhante a equanimidade. Estava vivo e purificado, e, embora aos olhos dos lerdos e sórdidos espíritos sãos parecesse «chalado», a mim parecia-me infinitamente melhor assim do que antes. Era um insecto inofensivo. Quem o ouvisse tempo bastante ficava também mais ou menos purificado, embora talvez não convencido. A linguagem viva de Grover apanhava-me sempre de surpresa e, por meio de gargalhadas incontáveis, limpava-me do sedimento acumulado pela lerda sanidade que me rodeava. Estava vivo como Ponce de León desejara estar vivo, vivo como apenas alguns homens jamais tinham conseguido estar. E, como estava sobrenaturalmente vivo, não se importava nada que lhe rissem na cara, assim como não se teria importado nada se lhe roubassem as poucas coisas que possuía. Estava vivo e vazio, coisa tão próxima da divindade que é loucura. comos pés solidamente apoiados na grande muralha da Nova Jerusalém, Grover conhecia uma ventura incomensurável. Talvez não tivesse conhecido essa incrível ventura se não houvesse nascido comum pé boto. Talvez tivesse sido uma sorte o pai ter dado um pontapé na barriga da mãe, quando ele ainda estava no útero. Talvez tivesse sido esse pontapé na barriga que atirara Grover pelos ares, que o fizera tão cornpletamente vivo e desperto que até a dormir transmitia mensagens de Deus. Quanto mais trabalhava, menos cansado se sentia. Já não tinha preocupações, nem desgostos, nem recordações tormentosas. Não reconhecia deveres nem obrigações, a não ser para comDeus. E que esperava Deus dele? Nada, nada... a não ser que Lhe entoasse louvores. Deus só pedia a Grover Watrous que se revelasse vivo, na carne. Só lhe pedia que fosse cada vez mais vivo. E, quando completamente vivo, Wover seria uma voz, e essa voz seria um mar que transfer158 Henry Miller maria todas as coisas vivas num caos, e esse caos tornar-se-ia por sua vez a boca do mundo, em cujo centro se encontrava o verbo ser. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava comDeus e o Verbo era Deus. Portanto, Deus era esse estranho e pequeno infinitivo que é tudo quanto há - e não chega? Para Grover era mais do que suficiente: era tudo. Partindo desse verbo, que diferença fazia a estrada por que viajasse? Abandonar o verbo era afastar-se do centro, erigir uma Babel. Talvez Deus tivesse estropiado propositadamente Grover Watrous, a fim de o prender ao centro, ao verbo. Mediante uma corda invisível, Deus conservava Grover Watrous preso à estaca que atravessava o coração do mundo e Grover tornara-se a galinha gorda que punha todos os dias um ovo de ouro... Porque escrevo acerca de Grover Watrous?, porque conheci milhares de pessoas e nenhuma estava viva da maneira como Grover estava vivo. Na sua maioria eram inteligentes, muitas delas eram brilhantes e algumas delas até eram famosas, mas nenhuma estava viva e vazia como Grover. Grover era inexaurível. Era como um pedaço de rádio que, mesmo enterrado debaixo de uma montanha, não perde a sua capacidade de emitir energia. Antes dele, conhecera muitas das chamadas pessoas enérgicas - não está a América cheia delas? -, mas nunca encontrara um reservatório de energia sob a forma de um ser humano. E que criava esse inexaurível reservatório de energia? Uma iluminação. Sim, acontecera tudo num abrir e fechar de olhos, que é a única maneira como as coisas importantes acontecem. Da noite para o dia, todos os valores preconcebidos de Grover foram atirados pela borda fora. De súbito, dessa maneira, deixou de se movimentar como as outras pessoas se movimentam. Meteu travões e continuou como motor a trabalhar. Se, outrora, como toda a gente, pensara ser necessário chegar a algum lugar, agora sabia que algum lugar era todo o lugar e, portanto, o sítio onde estava - e, por isso, para quê mover-se? Porque não estacionar o carro e deixar o motor a trabalhar? Entretanto, a própria Terra girava, e Grover sabia que ela girava e que ele girava comela. Chegava a Terra a algum lugar? É mais que certo que Grover fez a si próprio essa pergunta, e é mais que certo que chegou à conclusão de que não estava a chegar a lugar nenhum. Quem, então, dissera que devíamos chegar a algum lugar? Grover Tráfico de Capricórnio 159 perguntaria por certo a este e àquele para onde iam e o estranho é que, embora se dirigissem todos para o seu destino individual, nenhum jamais se detinha a reflectir que o único destino inevitável para todos era a sepultura. Isso intrigava Grover, pois ninguém o conseguiria convencer de que a morte não era uma certeza, ao passo que toda a gente podia convencer toda a gente de que qualquer outro destino era uma incerteza. Convencido da absoluta certeza da morte, Grover tornou-se, de súbito, tremenda e avassaladoramente vivo. Pela primeira vez na sua vida começou a viver e, ao mesmo tempo, o pé boto apagou-se por completo da sua consciência. Pensando bem, isto também é estranho, pois o pé boto, tal como a morte, era outro facto invencível. No entanto, o pé boto saiu do pensamento - ou, o que é mais importante ainda, saiu tudo quanto se relacionara como pé boto. Pela mesma ordem de ideias, a morte, uma vez aceite por ele, saiu do pensamento de Grover. Convencido da certeza única da morte, todas as incertezas desapareceram. O resto do mundo passara a coxear, comincertezas mancas, e só Grover Watrous estava livre e desembaraçado dessa manqueira. Grover Watrous era a personificação da certeza. Podia estar errado, mas tinha a certeza. E para que serve ter razão, se temos de claudicar comum pé boto? Só um pequeno punhado de homens compreendeu jamais esta verdade e os seus nomes tornaram-se muito grandes. Grover Watrous provavelmente nunca virá a ser conhecido, mas mesmo assim é muito grande. Talvez seja por essa razão que escrevo a respeito dele, pelo simples facto de ter tido lucidez suficiente para compreender que Grover se guindara à grandeza, mesmo que mais ninguém o admita. Na altura, pensei apenas que Grover era um fanático inofensivo, sim, um bocadinho «chalado», como a minha mãe insinuara. Mas todos os homens que aprenderam a verdade da certeza foram um pouco chalados, e esses homens foram os únicos a fazer qualquer coisa pelo mundo. Outros homens, outros grandes homens, destruíram um bocadinho aqui e outro bocadinho ali, mas estes poucos de que falo, e entre os quais incluo Grover Watrous, seriam capazes de destruir tudo para que a verdade pudesse viver. Geralmente tais homens nascem comuma desvantagem - comum pé boto, por assim dizer - e, por estranha ironia, é só essa desvantagem - só o pé boto - que os 160 Henry Miller homens recordam. Se um homem como Grover se despoja do seu pé boto, o mundo diz que ele se tornou «possesso». E esta a lógica da incerteza e o seu fruto é a desventura. Grover foi o único ser verdadeiramente venturoso que jamais conheci na minha vida, e isto, portanto, é um pequeno monumento que ergo em sua memória, em memória da sua venturosa certeza. É pena que tenha sido obrigado a usar Cristo como muleta, mas, no fim de contas, que importa a maneira como chegamos à verdade, desde que nos atiremos a ela e vivamos de acordo comela? Interlúdio Confusão é uma palavra que inventámos para descrever uma ordem que não compreendemos. Gosto de me deter no período em que as coisas assumiam forma, porque a ordem, se tivesse sido compreendida, deveria ter sido ofuscante. Em primeiro lugar havia Hymie - Hymie, a rã , e havia também os ovários da mulher dele, que apodreciam havia muito tempo. Eram o tópico quotidiano da conversa, tinham precedência sobre os comprimidos catárticos e a língua saburrosa. Hymie desfazia-se em «provérbios sexuais», como lhes chamava. Tudo quanto dizia começava pelos ovários ou a eles conduzia. No entanto, continuava a engatar-se coma mulher - prolongadas copulações de cobra, durante as quais fumava um cigarro ou dois antes de desengatar. Tentava explicar-me como o pus dos ovários em putrefacção a enchia de cio. Sempre fora boa para a foda, mas agora estava melhor do que nunca. Quando lhe fossem extirpados os ovários, não se sabia como reagiria. E ela parecia ter consciência disso, também. Ergo, toca a foder! Todas as noites, depois de lavada a louça do jantar, despiam-se no seu apartamentozinho de boneca e deitavam-se como um casal de cobras. Tentou descrever-me numerosas vezes como ela fodia. Por dentro era como uma ostra, uma ostra comdentes macios que o mordiscavam. Às vezes até parecia que estava mesmo dentro do útero dela, tão mole e fofo aquilo era, e os dentes macios iam-lhe mordiscando a gaita e tornando-o delirante. Costumavam deitar-se à maneira de tesoura, a olhar para o tecto. Para evitar vir-se, ele pensava no escritório e nas pequenas preocupações que o atormentavam e lhe davam um nó nos intestinos. Entre orgasmos, pensava noutra pessoa para, quando ela voltava à carga, poder imaginar que se tratava de uma foda novinha em folha, comuma cona novinha em folha. Costumava arranjar as coisas de 162 Henry Miller maneira a poder olhar pela janela, enquanto ia fodendo. Tornara-se de tal modo perito que era capaz de despir uma mulher no boulevard, debaixo da sua janela, e transportá-la para a cama. E não apenas isso: conseguia fazê-la mudar de lugar coma mulher, tudo sem desengatar. Às vezes fodia assim um par de horas e nem sequer se dava ao trabalho de ejacular. Para quê desperdiçar? Steve Romero, em contrapartida, via-se aflito para se conter. Steve parecia um touro e desbaratava semente à toa. Às vezes fazíamos comparações, sentados no restaurante especializado em chop suey, na esquina a seguir ao escritório. Era uma estranha atmosfera. Talvez por não haver vinho. Talvez por causa dos engraçados cogumelozinhos que nos serviam. Fosse lá pelo que fosse, não era difícil lançarmo-nos no assunto. Quando Steve se nos reunia já tinha feito o seu exercício, tomado duche e levado uma massagem. Vinha limpo por dentro e por fora. Era quase um espécime de homem perfeito. Não seria muito inteligente, lá isso não, mas era born tipo, um compincha. Hymie, por outro lado, lembrava um sapo. Parecia ir para a mesa directamente dos pântanos, onde passara o dia no lodo. Escorria-lhe imundície dos beiços, como mel. Na realidade, no seu caso, não se lhe podia chamar imundície, pois não era possível compará-la comqualquer outro ingrediente. Era tudo uma substância viscosa, peganhenta, feita inteiramente de sexo. Quando olhava para a comida, via-a como esperma potencial; se o tempo estava quente, dizia que estava born para os tomates; se viajava de eléctrico, sabia de antemão que o movimento rítmico do veículo lhe estimularia o apetite, lhe provocaria uma tesão lenta e «pessoal», como dizia. Nunca percebi porque lhe chamava «pessoal», mas essa era a expressão que usava. Gostava de sair connosco porque havia uma certeza razoável de arranjarmos qualquer coisa decente. Sozinho, não se safava muito bem; connosco, tinha esperança de mudar de carne - cona gentia, como lhe chamava. Gostava de cona gentia. Tinha um cheiro mais agradável. E as gentias riam-se mais facilmente, também... Às vezes mesmo no meio da coisa. O que não tolerava era carne escura. Ver-me andar comValeska enchia-o de espanto e nojo. Uma vez perguntou-me se ela não tinha um cheiro extraforte. Respondi-Ihe que gostava assim, forte e cheirosa, commuito molho à Trópico de Capricórnio 163 volta. Quase corou ao ouvir-me. Era espantoso como às vezes se mostrava delicado. Acerca da comida, por exemplo, era muito esquisito. Talvez fosse uma característica racial. E imaculado na sua pessoa. Não podia tolerar uma nodoazinha nos punhos lavados. Estava constantemente a sacudir-se e a tirar o espelho da algibeira, para ver se tinha alguma comida entre os dentes. Se via uma migalhinha, ocultava a cara atrás do guardanapo e usava o seu palito comcabo de madrepérola. Claro que aos ovários não os podia ver. Nem cheirar, porque a mulher também era uma gaja imaculada. Passava o dia a lavar-se e a dar irrigações, a preparar-se para as núpcias nocturnas. Era trágica a importância que atribuía aos ovários. Até ao dia em que a levaram para o hospital, foi uma autêntica máquina de foder. O medo de nunca mais poder voltar a foder enlouquecia-a. Claro que Hymie lhe garantia que não faria diferença nenhuma para ele, de uma maneira ou de outra. Colado a ela como uma cobra, comum cigarro na boca e as pequenas a passarem em baixo, no boulevard, eralhe impossível imaginar uma mulher incapaz de foder. Tinha a certeza de que a operação seria um êxito. Um êxito! Isso significava que ela ainda foderia melhor do que anteriormente. Costumava dizer-lho, deitado de costas e a olhar para o tecto. «Sabes que sempre te amarei», dizia. «Desvia-te só um bocadinho, sim?... Isso, isso mesmo. Que estava eu a dizer? Ah, sim!... Porque te hás-de preocupar comcoisas dessas? Claro que te serei fiel. Escuta, deixa sair um nadinha... isso, está óptimo assim.» Contava-nos tudo no restaurante do chop suey. Steve, que era incapaz de fazer semelhante coisa, quase rebentava a rir. Era demasiado franco, principalmente comas mulheres. Por isso nunca tinha sorte. O pequeno Curley, por exemplo - Steve odiava Curley -, conseguia sempre o que queria... Era um mentiroso nato, um intrujão nato. Hymie também não gostava muito de Curley. Dizia que era desonesto, referindo-se, evidentemente, a desonestidade em matéria de dinheiro. A esse respeito, Hymie era escrupuloso. Desagradava-lhe sobretudo a maneira como Curley falava da tia. Na opinião de Hymie, já era mau ele andar a fornicar coma irmã da própria mãe, mas falar dela como de um bocado de Queijo cediço, isso passava as marcas. Devia-se ter um certo respeito por uma mulher, a não ser que se tratasse de uma 164 Henry Miller puta. Se se tratava de uma puta, era diferente. As putas não eram mulheres: eram putas. Assim via Hymie as coisas. Mas a principal razão da sua antipatia residia no facto de, quando saíam juntos, Curley apanhar sempre o melhor bocado. E, ainda por cima, era quase sempre como dinheiro de Hymie que o conseguia. Até a maneira como o rapaz pedia dinheiro o irritava. Era como uma extorsão, afirmava. Achava que a culpa me cabia, em parte, pois tratava o rapaz comexcessiva brandura. «Ele não tem carácter moral», declarava Hymie, e eu perguntava-lhe: «E tu, onde está o teu carácter moral?» A resposta não falhava: «Eu? Ora merda, já sou demasiado velho para ter carácter moral. Mas Curley é apenas um garoto.» Steve metia-se na conversa: «O que tens é inveja!» «Eu? Eu ter inveja í/e/e?» E tentava sufocar a ideia comuma gargaIhadmha desdenhosa. Mas uma alfinetada desse género doía-Ihe. Voltava-se então para mim e perguntava: «Alguma vez me mostrei invejoso para contigo? Não te cedo sempre uma pequena, se ma pedes? Lembras-te daquela ruiva do escritório SU... aquela comas grandes tetas? Não era um rico naco, para a ceder assim a um amigo? Mas eu cedi-ta, não cedi? Cedi-ta porque disseste que gostavas de mamas grandes. Mas não a teria cedido ao Curley. Ê um patifezinho. Ele que cace, se quiser.» Na realidade, Curley não fazia outra coisa. Pelo que pude deduzir, em certa altura deve ter tido cinco ou seis de uma vez. Havia a Valeska, por exemplo, junto da qual se instalou muito bem. Ela sentia-se tão contente por ter alguém que a fodia sem corar que quando se tratou de o compartilhar coma prima e, depois, coma anã, não levantou a mínima objecção. Do que mais gostava era de se meter na banheira e deixá-lo fodê-la debaixo de água. Foi tudo muito bem até a anã perceber o jogo. Então houve chinfrim, mas as coisas compuserarn-se no chão da sala. Pelo que ele dizia, fazia tudo menos amarinhar pelos lustres. E tinha sempre a algibeira bem recheada. Valeska era generosa, mas a prima, essa, era uma andarilha. Bastava-lhe sentir uma picha tesa a trinta centímetros de distância para ficar mole como papas e ser possível fazer tudo dela. Uma braguilha desabotoada era o bastante para a deixar em transe. Era quase vergonhoso as coisas que Curley a obriTroptco de Capricórnio 165 gava a fazer. Tinha prazer em degradá-la. Mas ela era tão não-me-toques, tão presumida, nas suas roupas de sair, que eu não o podia censurar. Quem a visse na rua até seria capaz de julgar que não tinha pássara. Naturalmente, quando ele a apanhava sozinha, fazia-a pagar os seus ares importantes. Curley procedia como maior sangue-frio. «Tira-o para fora!», ordenava, desabotoando um bocadinho a braguilha. «Tira-o para fora coma língua!» (Tratava a trempe do mesmo modo, pois, segundo dizia, elas lambiam-se umas às outras nas suas costas.) Assim que ela lhe tomava o gosto, na boca, tornava-se possível obrigá-la a fazer tudo e mais alguma coisa. Às vezes obrigava-a a apoiar-se nas mãos e empurrava-a assim pelo quarto, como um carrinho de mão. Ou então ia-lhe à cão e enquanto ela gemia e se torcia toda acendia despreocupadamente um cigarro e soprava-lhe o fumo para entre as pernas. Uma vez pregou-lhe uma partida suja, ao ir-lhe desse modo. Excitara-a de tal maneira que a deixara fora de si. Depois de lhe pôr o eu quase em brasa, tirou a picha para fora, como se quisesse arrefecê-la, e, lenta e suavemente, enfiou-lhe uma grande e cornprida cenoura pela rata acima. «Isso, Miss Abercrombie, é uma espécie de Doppelgánger do meu caralho», declarou e, sem cerimónias, desatrelou-se e puxou as calças para cima. A prima Abercrombie ficou tão estupefacta que deu um grandíssimo peido e a cenoura caiu. Pelo menos foi o que Curley me contou. Claro que ele era um mentiroso descarado e é possível que a história não tivesse um grão de verdade. No entanto, era inegável que possuía uma habilidade especial para partidas desse género. Quanto a Miss Abercrombie e aos seus ares importantes, enfim, comuma gaja dessas pode-se sempre imaginar o pior. Comparado comCurley, Hymie era um purista. Não sei como, mas Hymie e a sua gaita gorda e circuncidada eram duas coisas diferentes. Quando tinha uma tesão pessoal, como dizia, isso significava, na realidade, que se tornava irresponsável. Queria dizer que a Natureza se impunha através da gaita gorda e circuncidada de Hymie Laubscher. Acontecia o mesmo coma cona da mulher, que era uma coisa que ela usava entre as pernas, como um ornamento. Era uma Parte de Mrs. Laubscher, mas não era a própria Mrs. Laubscher, se percebem o que quero dizer. Enfim, mas tudo isto veio à colação para falar da confusão 166 Henry Miller sexual geral que prevalecia na época. Era como alugar um andar na Terra da Foda. A rapariga do andar de cima, por exem^l pio... Uma vez por outra, quando a minha mulher dava uni recital, ia lá para casa, a fim de tomar conta da miúda. Era unJ idiota tão chapada que ao princípio nem reparei nela. Masfl como todas as outras, também tinha uma cona, uma espécie de] cona impessoal de que estava inconscientemente consciente. ’t Quanto mais vezes lá ia a casa, mais consciente se tornava, à! sua maneira inconsciente. Uma noite, como se demorasse sus- j peitosamente na casa de banho, começou a dar-me que pen-ffl sar. Resolvi dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura m ver comos meus olhos o que se passava. Juro que estava dian-B te do espelho, a acariciar e a alisar a passarinha! Quase falavJ comela. Fiquei tão excitado que ao princípio nem soube qufl fazer. Voltei para a sala, apaguei a luz e deitei-me no sofá, à es-B pêra que ela saísse. Deitado, continuei a verlhe a cona peluda e os dedos que pareciam tamborilar nela. Desabotoei a bra-1 guilha e deixei a picha estremecer na frescura da escuridãol Tentei hipnotizá-la do sofá - ou, pelo menos, tentei levar M minha picha a hipnotizá-la. «Vem cá, cadelinha», fui dizendcB para comigo, «Vem cá e esparrama essa cona em cima dal mim.» Ela deve ter captado imediatamente a mensagem, poi« num instante abriu a porta e começou a tactear no escuro, di-I reita ao sofá. Pela minha parte, não disse uma palavra nem & um movimento; limitei-me a fixar o pensamento na cona qucl avançava no escuro, como um caranguejo. Por fim, ela estava! de pé ao lado do sofá. Como eu, também não disse uma pa-B lavra, e quando lhe enfiei a mão pelas pernas acima desvioul um bocadinho um pé, para as abrir mais. Não me lembro dei ter levado a mão a cona tão sumarenta em toda a minha vida J Era como cola a escorrer-lhe pelas pernas abaixo, e se houves-l se por ali cartazes poderia ter colado uma dúzia ou mais. Pas-fl sados momentos, comtanta naturalidade como uma vaca queB baixa a cabeça para pastar, inclinou-se e meteu-o na boca. Pelai minha parte, tinha quatro dedos enfiados nela, a bater todol aquele sumo em castelo. A sua boca estava cheia e o suco con-l tinuava a correr-lhe pelas pernas abaixo. Nenhum de nós di-l zia palavra. Éramos dois maníacos mudos, a trabalhar às escu-l rãs como coveiros. Era um paraíso da foda, e eu sabia-o, ei estava disposto a foder até rebentar os miolos, se fosse neces-1 Trópico de Capricórnio 167 sário. Ela foi talvez a melhor foda que já tive. Não abriu uma única vez a boca - nem naquela noite, nem na noite seguinte, nem em qualquer outra noite. Aparecia sorrateiramente, às escuras, assim que lhe cheirava que eu estava sozinho, e esparramava a cona toda por cima de mim. E era uma grande cona, agora que penso nisso. Um labirinto escuro e subterrâneo, adornado comdivãs e cantos aconchegados, dentes de borracha e lilases, ninhos macios, penugem e folhas de amoreira. Eu costumava introduzir-me como a bicha solitária, enterrar-me numa fendazinha onde o silêncio era absoluto e a maciez extrema, e deixar-me ficar, repoltreado como um golfinho num banco de ostras. Um leve estremecimento e estava numa Pullman a ler o jornal, ou então num beco onde havia pedras musgosas e redondas e cancelazinhas de vime que abriam e fechavam automaticamente. Às vezes era como dar um mergulho fundo, sentia uma chuva de caranguejos mordiscantes, os juncos a agitarem-se febrilmente e as guelras de peixes minúsculos a tocarem-me como chaves de harmónica. Na imensa gruta preta havia um órgão de seda-e-sabão a tocar uma rapinante música negra. Quando ela atingia os cumes, quando abria ao máximo a torneira dos sumos, surgia uma mancha purpúrea-violácea, uma nódoa de amora retinta como crepúsculo, como o crepúsculo ventriloquial que as anãs e as cretinas apreciam quando menstruam. Fazia-me pensar em canibais mastigando flores, em bantos correndo amoque, em unicórnios selvagens acasalando em canteiros e rododendros. Era tudo anónimo e não formulado, John Doe e a sua esposa, Emmy Doe. Por cima de nós as cisternas de gás e debaixo de nós a vida marinha. Da cintura para cima, como disse, era chalada. Sim, absolutamente maluca. Talvez fosse isso que lhe tornava a cona tão maravilhosamente impessoal. Era uma cona num milhão, uma autêntica Pérola das Antilhas, como Dick Osborn descobriu ao ler Joseph Conrad. No largo Pacífico do sexo jazia cintilante recife de prata rodeado de anémonas humanas, de estrelas-do-mar humanas, de madréporas humanas. Só um Osborn a poderia ter descoberto, lhe poderia ter dado a devida latitude e longitude de cona. Encontrá-la de dia, vê-la andar imbecilmente de um lado para o outro, era como apanhar uma doninha numa armadilha quando a noite chegava. Bastava-me deitar às escuras de braguilha desabotoada 168 Henry Miller e esperar. Era como Ofélia subitamente ressuscitada entre os Cafires. Não se conseguia lembrar de uma única palavra em qualquer língua, e muito menos em inglês. Era uma surda-muda que perdera a memória e, coma perda da memória, o frigorífico, os ferros de frisar, a pinça e a malinha de mão. Tirando o tufo de cabelos entre as pernas, estava ainda mais nua do que um peixe. E era ainda mais escorregadia do que um peixe, pois, no fim de contas, um peixe tem escamas e ela não tinha. As vezes não sabia ao certo se era eu que estava dentro dela, se ela que estava dentro de mini. Era uma guerra aberta, um pancrácio moderno em que cada um mordia o próprio eu. Amor sem género e sem lisol. Amor incubacional, como os carcajus praticam acima da linha do arvoredo. De um lado, o oceano Árctico; do outro, o golfo do México. E embora nunca o mencionássemos abertamente, King Kong estava sempre connosco: King Kong a dormir no casco destroçado do Titanic, entre os ossos fosforescentes de milionários e lampreias. Nenhuma lógica poderia expulsar King Kong. Era a cinta gigante que sustém a angústia fugaz da alma. Era o bolo de casamento compernas peludas e braços de um quilómetro de comprimento. Era o écran giratório em que as notícias desaparecem. Era o cano do revólver que nunca dispara, o leproso armado de gonococos de canos serrados. Era ali, no vazio da hérnia, que me entregava a todo o meu calmo pensar via pénis. Havia antes de mais nada o teorema binómio, uma frase que sempre me intrigara: punha-o debaixo da lente e estudava-o de X a Z. Havia Logos, que, não sei porquê, identificara sempre comrespiração: descobri que, pelo contrário, era uma espécie de êxtase obsessivo, uma máquina que continuava a moer cereal, muito tempo depois de os silos estarem cheios e os Judeus terem sido expulsos do Egipto. Havia Bucéfalo, talvez mais fascinante para mim do que qualquer outra palavra do meu vocabulário: trotava nele sempre que me encontrava num dilema, e levando comele, evidentemente, Alexandre e todo o seu purpúreo séquito. Que cavalo! Procriado no oceano Índico, o último da linhagem e nem uma única vez acasalado, excepto coma rainha das amazonas durante a aventura mesopotâmica. Havia o gambito escocês! Extraordinária expressão que não tinha nada a ver comxadrez. Surgia-me sempre sob a forma de um homem Trópico de Capricórnio 169 empoleirado em andas, página 2498 do Dicionário Completo de Funk e Wagnall. Um ganbito era uma espécie de salto no escuro comgâmbias mecânicas. Um salto sem nenhum objectivo - donde, gambito! Claro como água e absolutamente simples, uma vez apreendido o sentido. E depois havia Andrómeda, e a górgona Medusa, e Castor e Pólux de origem celestial, gémeos mitológicos, eternamente fixos na efémera poalha de estrelas. Havia lucubração, palavra distintamente sexual e, contudo, sugerindo tais conotações cerebrais que me inquietava. Sempre «lucubrações da meianoite», sendo a «meia-noite» ominosamente significativa. E depois havia arras. Alguém fora, em certa ocasião, apunhalado «atrás do arras». Via uma toalha de altar feita de amianto e nela uma laceração atroz, como o próprio César poderia ter feito. Era um pensar muito sereno, como já disse, o género de pensar a que se devem ter entregado os homens do Paleolítico. As coisas não eram absurdas nem explicáveis. Era um quebra-cabeças que podíamos empurrar comos dois pés, quando nos cansávamos. Aliás, podia-se afastar facilmente tudo, até os Himalaias. Era precisamente o tipo de pensar oposto ao de Maomet. Não conduzia absolutamente a nada e, por consequência, era agradável. O grande edifício que se podia construir ao longo de uma longa foda também podia ruir num abrir e fechar de olhos. O que contava era a foda e não o trabalho de construção. Era como viver na Arca durante o Dilúvio: havia tudo à disposição, desde o mais complicado até uma chave de parafusos. Para quê cometer assassínio, estupro ou incesto quanto tudo quanto nos pediam era que matássemos tempo? Chuva, chuva, chuva, mas dentro da Arca tudo sequinho e quentinho, um par de cada espécie e na despensa belos presuntos vestefalianos, ovos frescos, azeitonas, cebolas de conserva, molho do Worcesterhire e outros acepipes. Deus escolhera-me a mim, Noé, para criar um novo céu e uma nova terra. Dera-me um barco robusto, comtodas as fendas betumadas e bem seco. Dera-me também os conhecimentos necessários para navegar em mares tormentosos. Talvez quando parasse de chover fosse necessário adquirir outro tipo de conhecimentos, mas de momento bastavam os conhecimentos náuticos. O resto era xadrez no Café Royal, Segunda Avenida, coma diferença de que eu tinha de imaginar um parceiro, 170 Henry Miller um inteligente cérebro judeu que fizesse render o jogo até a chuva parar. Mas, como já disse atrás, não tinha tempo para me aborrecer. Havia os meus velhos amigos Logos, Bucéfalo, arras, lucubração, etc. Para quê jogar xadrez? Fechado assim dias e noites a fio, comecei a compreender que pensar, quando não é masturbador, é lenitivo, curativo, agradável. O pensar que não nos leva a lado nenhum leva-nos a todo o lado; todo o outro pensar é feito sobre trilhos e, por muito longo que seja o percurso, no fim ergue-se sempre o depósito ou a rotunda de recolha. No fim há sempre uma lanterna vermelha que diz: PARE! Mas quando o pénis desata a pensar não há nenhum sinal de paragem nem nada que o impeça: é um feriado perpétuo, comisca fresca e o peixe sempre a mordiscar. Isto faz-me lembrar outra gaja, chamada Verónica ou coisa parecida, que me fazia pensar em sentido errado. comVerónica havia sempre uma refrega no vestíbulo. Na pista de dança, dir-se-ia que nos ia fazer uma doação perpétua dos ovários, mas assim que saía do salão começava a pensar em coisas como o chapéu, a malinha, a tia que estava a pé à sua espera, a carta que se esquecera de meter no correio, o emprego que ia perder - enfim, pensava numa série de coisas loucas e insignificantes que não tinham nada a ver coma questão em causa. Era como se, de repente, tivesse ligado o cérebro para a cona - a cona mais atenta e astuta que se possa imaginar. Era quase uma cona metafísica, por assim dizer. Não se contentava comsolucionar problemas; também pensava de uma maneira muito especial, comum metrónomo a funcionar. Era essencial uma luz velada peculiar, para esse tipo de despropositada lucubração rítmica. Tinha de haver escuridão suficiente para um morcego e, ao mesmo tempo, claridade que chegasse para encontrar um botão, se algum se soltasse e caísse no chão do vestíbulo. Estão a perceber o que quero dizer. Uma precisão vaga mas meticulosa, uma atenção firme, mas que simulava distracção. E uma excitação e uma casualidade ao mesmo tempo, de modo que nunca se sabia se era peixe ou carne. Que é isto que tenho na mão? Fino ou superfino? Era sempre canja. Se lhe agarrávamos pelas tetas, gritava como um papagaio; se lhe metíamos a mão debaixo do vestido, torcia-se como uma enguia; se a apertávamos comdemasiada força, mordia como um furão. Atrasava, e atrasava, e atrasaTrópico de Capricórnio 171 va. Porquê? Que pretendia? Cederia passada uma hora ou duas? Não havia uma probabilidade disso num milhão. Era como um pombo a tentar voar comas pernas presas numa armadilha de aço: fingia que não tinha pernas. Mas, se fazíamos menção de o soltar, ameaçava encher-nos de penas. Como tinha um eu tão maravilhoso e tão estuporadamente inacessível, costumava pensar nela como a Pons Asinorum. Todos os garotos da escola sabem que a Pons Asinorum só pode ser atravessada por dois burros brancos conduzidos por um homem cego. Não sei porque é assim, mas foi essa a regra estabelecida pelo velho Euclides. Era um tipo tão cheio de saber, o velhadas, que um dia apenas para se divertir, creio construiu uma ponte que nenhum mortal poderia jamais atravessar. Chamou-lhe Pons Asinorum, porque possuía dois belos burros brancos dos quais gostava tanto que não permitia a ninguém apoderar-se deles. E assim conjurou um sonho em que ele, o cego, conduziria um dia os burros através da ponte, para os felizes terrenos de caça dos burros. Bem, comVerónica podia-se dizer que acontecia o mesmo. Gostava tanto do seu bonito eu branco que não se separaria dele por nada deste mundo. Queria levá-lo consigo para o Paraíso, quando chegasse o momento. Quanto à sua cona - à qual, diga-se de passagem, nunca se referia -, bem, a cona era apenas um acessório que a acompanhava. Na luz penumbrenta do vestíbulo conseguia tornar-nos desagradavelmente conscientes dos seus dois problemas, embora nunca se lhes referisse abertamente. Tornava-nos conscientes deles à maneira de um prestidigitador. Tínhamos de olhar ou tocar só para sermos definitivamente iludidos, só para nos ser demonstrado que não tínhamos visto nem tocado. Era uma álgebra sexual muito subtil, a lucubração da meia-noite, que podia valer um 18 ou um 20 no dia seguinte, mas mais nada. Ficava-se bem no exame, recebia-se o diploma e depois era-se abandonado. E entretanto usava-se o eu para o sentar e a cona para verter águas. Entre o livro de estudo e a retrete havia uma zona intermédia em que nunca se penetrava, pois estava rotulada como a palavra «foda». Podia-se tocar e mijar, mas não se podia foder. A luz nunca se dissipava por completo, o sol nunca entrava a jorros. Havia sempre luz suficiente para orientar um morcego. E era essa luz fraca que mantinha a mente alerta, por assim dizer de 172 Henry Mille; Trópico de Capricórnio 173 atalaia, atenta a malinhas, lápis, botões, chaves, etc. Não se podia pensar, verdadeiramente, porque o cérebro já estava ocupado. A mente estava à disposição, como um lugar vago num teatro onde o dono deixou o chapéu. Verónica tinha, como disse, uma cona falante, o que era mau porque a sua única função parecia ser dissuadir-nos de uma foda. Evelyn, por outro lado, tinha uma cona que ria. Também vivia no andar de cima, mas noutra casa. Aparecia \ constantemente às horas das refeições, para nos contar uma /> anedota nova. Comediante de primeira água, a única mulher’’ realmente divertida que conheci na minha vida. Para ela era tudo uma brincadeira, incluindo foder. Até era capaz de fazer rir um caralho teso, o que não é nada fácil. Dizem que um caralho teso não tem consciência, mas um caralho teso que ri também é fenomenal. Só posso descrever o que se passava dizendo que, quando estava comcio, Evelyn fazia uma cena de ventriloquismo coma cona. Estávamos prontos para entrar e, de repente, o palhaço que ela tinha entre as pernas soltava uma gargalhada. Ao mesmo tempo, estendia-nos por assim dizer os braços e dava-nos um apertãozinho galhofeiro. E também era capaz de cantar, esse palhaço dessa cona. Na realidade, comportava-se exactamente como uma foca amestrada. Não há nada mais difícil do que fazer amor num circo. A exibição constante do número da foca tornava-a tão inacessível como se estivesse protegida por grades de ferro. Conseguia desfazer a tesão mais «pessoal» do mundo. Desfazê-la e rir. No entanto, não era tão humilhante como se poderá supor. Havia algo de compreensivo e simpático naquele riso vaginal. O mundo inteiro parecia desbobinar-se como um filme pornográfico cujo tema trágico fosse a impotência. Podíamonos visualizar a nós próprios como um cão, ou uma doninha, ou um coelho branco. O amor era algo à parte, digamos, um prato de caviar ou um helicóptero de cera. Podíamos ver o ventríloquo que existia em nós falar de caviar ou heliotrópios, mas a pessoa verdadeira era sempre uma doninha ou um coelho branco. Evelyn estava sempre deitada no canteiro das couves, de pernas abertas e a oferecer uma folha verdinha ao primeiro que chegasse. Mas se esboçávamos um gesto para mordiscar a folha, todo o couval explodia numa gargalhada, numa luminosa e orvalhada gargalhada vaginal como Jesus H. Cristo e Manuel Pés-de-Lã Kant nunca sonharam, pois se tivessem sonhado o mundo não seria o que hoje é e, além disso, não teria havido nenhum Kant nem nenhum Cristo Todo-Poderoso. A fêmea raramente ri, mas quando ri é vulcanicamente. Quando a fêmea ri, o melhor que o macho tem a fazer é recolher-se a toda a pressa à caverna do ciclone. Nada resiste a essa casquinada vaginal, nem mesmo cimento armado reforçado comferro. A fêmea, uma vez despertado o riso, é capaz de levar a palma, a rir, à hiena, ou ao chacal, ou ao gato selvagem. De vez em quando ouve-se um riso assim numa reunião de linchadores, por exemplo. Significa que a tampa foi pelos ares, que vale tudo. Significa que ela caçará para si própria - e cuidado, não nos arranquem os tomates! Significa que se vem aí a peste, ELA chegará primeiro e comenormes correias ferradas arrancar-nos-á o couro. Significa que não se deitará só comtorn, Dick e Harry, mas também comCólera, Meningite e Lepra; significa que se deitará no altar como uma égua comcio e receberá todos quantos vierem, incluindo o Espírito Santo. Significa que será destruído numa noite o que o pobre macho, coma sua astúcia logarítmica, levou cinco mil, dez mil, vinte mil anos a construir. Quando começar a rir a sério, ela destruirá tudo e mijar-lhe-á em cima e ninguém a deterá. Disse, a respeito de Evelyn, que o seu riso desfaria a tesão mais «pessoal» que se possa imaginar, e falei a sério: ela desfaria a tesão pessoal e substituí-la-ia por uma impessoal que seria como uma vareta em brasa. Podíamos não ir muito longe coma própria Evelyn, mas era possível fazer uma grande viagem como que ela tinha para dar. Mal nos aproximávamos, era como se tomássemos uma superdose de cantárida espanhola. Nada neste mundo nos murchava a picha, a não ser que a metêssemos debaixo de um malho. Isto acontecia constantemente, mesmo que todas as palavras que digo sejam mentira. Era uma viagem pessoal no mundo impessoal, um homem munido de uma pequena pá a abrir um túnel através da Terra, para chegar ao outro lado. A intenção era ir escavando até encontrar finalmente a garganta de Culebra, o ne plus ultra da lua-de-mel da carne. E, claro, a escavação não tinha fim. O mais que podia esperar era ficar encalhado no próprio centro da Terra, onde a pressão era mais t! forte e mais regular, ficar lá encalhado para sempre. Isso dar-me-ia a sensação de ser Ixião amarrado à roda, o que é uma espécie de salvação e não merece de todo em todo ser desdenhado. Por outro lado, eu era um metafísico do tipo instintivo: era-me impossível ficar encalhado fosse onde fosse, nem mesmo no próprio centro da Terra. Era imperativo, muito imperativo, descobrir e gozar a foda metafísica, e para isso seria obrigado a emergir num planalto inteiramente novo, num planalto de doce alfafa e monólitos polidos, onde as águias e os abutres voavam à toa. Às vezes, sentado à noite no parque sobretudo num parque cheio de papéis e restos de comida -, via passar uma, uma que parecia a caminho do Tibete, e seguia-a como olhar arregalado, na esperança de que desatasse de súbito a voar, pois se o fizesse, se desatasse a voar, eu saberia que também podia voar, e isso significaria o fim da escavação e da chafurdice. Às vezes, devido ao crepúsculo ou a outras perturbações do género, parecia-me que ela voava realmente, ao transpor uma esquina. Isto é, era subitamente levantada do chão pelo espaço de alguns passos, como um avião excessivamente carregado; mas essa súbita e involuntária elevação, real ou imaginária - não importava , dava-me esperança, dava-me a coragem para manter os olhos arregalados fixos no local. No interior havia megafones que gritavam: «Vamos, continua a avançar, não esmoreças», e tolices do género. Mas porquê? comque fim? Para onde? Regulava o despertador para me levantar a certa hora, mas levantar-me porquê? Sim, porquê levantar-me? comaquela pequena pá na mão trabalhava como um escravo nas galés, sem a mínima esperança de recompensa. Se continuasse a direito abriria o buraco mais fundo jamais aberto por qualquer homem. No entanto, se quisesse realmente chegar ao outro lado da Terra, não teria sido muito mais simples atirar a pá fora e meter-me num avião para a China? Mas o corpo segue a mente. O que é mais simples para o corpo nem sempre é fácil para a mente. E as coisas tornam-se particularmente difíceis e embaraçosas no momento em que cada qual envereda por direcções opostas. Trabalhar coma pá era uma delícia: deixava a mente cornpletamente livre, sem no entanto haver o mínimo perigo de mente e corpo se separarem. Se o animal-fêmea começava subitamente a gemer de prazer; se o animal-fêmea tinha subitamente um ataque de raiva, comas mandíbulas a moverem-se como atacadores velhos, o peito a ofegar e as costelas a estalar; se o animal-fêmea desatava de súbito a desintegrar-se no chão, para colapso da alegria e da sobreexasperação, precisamente nesse momento, nem um segundo antes nem depois, o prometido planalto surgia à vista como um navio a emergir do nevoeiro e só restava cravar-lhe a bandeira das estrelas e das listas e reclamá-lo em nome do Tio Sam e de tudo quanto é sagrado. Estas desventuras aconteciam comtanta frequência que era impossível não acreditar na realidade de um reino chamado Foda, pois esse era o único nome que lhe podia ser dado, embora fosse mais do que foda, e fodendo não conseguíamos mais do que começar a aproximarmo-nos dele. Numa ocasião ou noutra, toda a gente cravava a bandeira nesse território e, todavia, ninguém o poderia reclamar permanentemente. Desaparecia da noite para o dia, às vezes até num abrir e fechar de olhos. Era terra de ninguém e tresandava ao refugo de mortes invisíveis. Se era declarada uma trégua, os contendores encontravam-se nesse terreno e apertavam a mão e trocavam tabaco. Mas as tréguas nunca duravam muito tempo. A única coisa que parecia revestir-se de permanência era a ideia de «zona intermédia». Ali as balas voavam e os cadáveres amontoavam-se; depois chovia, e por fim não restava mais do que o fedor. Isto é tudo uma maneira figurada de falar acerca do que não é mencionável. Não mencionáveis são a foda pura e a cona pura: só devem ser mencionadas em edições de luxo, pois de contrário o mundo desintegrar-se-á. O que mantém o mundo inteiro, como aprendi pela amarga experiência, são as relações sexuais. Mas foda, o artigo genuíno, e cona, o artigo genuíno, parecem conter qualquer elemento inidentificado mais perigoso do que a nitroglicerina. Para se fazer uma ideia do que é o artigo genuíno deve-se consultar um catálogo da Sears Roebuck, avalizado pela Igreja Anglicana. Na página vinte e três encontra-se uma imagem de Príapo a equilibrar um saca-rolhas na ponta da pichota. Está de pé à sombra do Pártenon, por engano, e cobre-lhe a nudez apenas uma faixa perfurada, emprestada para a ocasião pelos Holy Rollers do Orégão e de Saskatchewan. A interurbana está ao telefone, 176 Henry Miller a perguntar se deve vender a longo ou a curto prazo. Ele responde vai-te foder e desliga. Ao fundo, Rembrandt estuda a anatomia de Nosso Senhor Jesus Cristo que, se não vos esquecestes, foi crucificado pelos Judeus e depois levado para a Abissínia para ser triturado comdiscos e outros objectos. O tempo parece estar agradável e quente, como de costume, tirando uma leve neblina que sobe do Jónio e que é o suor dos tomates de Neptuno, castrado pelos primeiros monges ou talvez pelos Maniqueus, no tempo da peste pentecostal. Secam, penduradas, compridas tiras de carne de cavalo e há moscas por toda a parte, exactamente como Homero descreveu, nos tempos antigos. Perto está uma debulhadora McCormick, uma segadora e enfardadeira commotor de trinta e seis cavalos e sem comutador. A colheita está feita e os trabalhadores contam o salário nos campos distantes. Rompe a aurora do primeiro dia das relações sexuais no velho mundo helénico, agora reproduzido para nós a cores graças aos irmãos Zeiss e a outros pacientes fanáticos da indústria. Mas não foi este o aspecto que apresentou aos homens do tempo de Homero, que estavam in loco. Ninguém sabe qual era o aspecto do deus Príapo quando foi reduzido à ignomínia de equilibrar um saca-rolhas na ponta da pichota. Assim encostado à sombra do Pártenon, deve comcerteza ter começado a sonhar comcona distante; deve ter perdido consciência do saca-rolhas e da debulhadora e enfardadeira; deve ter-se tornado muito silencioso dentro de si mesmo, e por fim deve ter perdido até o desejo de sonhar. Na minha ideia, estou evidentemente disposto a corrigir se me demonstrarem que me engano, quando estava assim parado na neblina que subia ouviu subitamente o Angelus e, maravilha das maravilhas, apareceu diante dos seus olhos um deslumbrante pântano verde no qual os Choctaws se divertiam comos Navajos; em cima, no ar, pairavam condores brancos commalmequeres a enfeitarem-lhes as penas do pescoço. Viu também uma ardósia enorme na qual estavam escritos o corpo de Cristo, o corpo de Absalão e o pecado que é a luxúria. Viu a esponja embebida em sangue de rãs, os olhos que Agostinho cosera na pele e o manto que não era suficientemente grande para cobrir as nossas iniquidades. Viu essas coisas no momento que antecedeu aquele em que os Choctaws e os Navajos se começaram a divertir, e foi de tal Trópico de Capricórnio 177 maneira apanhado de surpresa que, de súbito, lhe irrompeu uma voz de entre as pernas, a mais inspirada, a mais aguda e penetrante, a mais jubilosa, feroz e cachinante das vozes que jamais subiram das profundezas. Começou a cantar através da comprida picha comtal divina graça e elegância que os condores brancos desceram do céu e cagaram enormes ovos purpúreos por todo o verde pântano. Nosso Senhor Jesus Cristo levantou-se do leito de pedra e, embora marcado pelos discos, dançou como uma cabra montês. Os feias saíram do Egipto, agrilhoados, seguidos pelos belicosos Igorrotes e pelos comedores de caracóis de Zanzibar. Era neste pé que estavam as coisas no primeiro dia de relações sexuais do antigo mundo helénico. Depois disso tudo mudou muito. Já não é delicado cantar através da pichota e nem sequer é permitido aos condores cagarem ovos purpúreos por toda a parte. Tudo isso é escatólico, escatológico e ecuménico. E proibido. Verboten. E assim a Terra da Foda torna-se ainda mais recuada, torna-se mitológica. Portanto, vejo-me constrangido a falar mitologicamente. Falo comextrema unção, e também compreciosos unguentos. Ponho de parte os retumbantes címbalos, as tubas, os malmequeres brancos, os oleandros e os rododendros. Vivam os espinhos e as algemas! Cristo está morto e lacerado. Os feias embranquecem nas areias do Egipto, comgrilhões largos nos pulsos. Os abutres devoraram todos os bocadinhos de carne em decomposição. Está tudo silencioso, um milhão de ratos dourados mordiscam o queijo invisível. A Lua nasceu e o Nilo rumina nas suas devastações marginais. A Terra arrota silenciosamente, as estrelas tremeluzem e balem, os rios escapam-se das margens. É assim... Há conas que riem e conas que falam; há conas malucas, histéricas e ocariniformes e há conas planturosas, sismográficas, que registam a subida e a descida da seiva; há conas canibais, que se escancaram como as mandíbulas da baleia e engolem a presa viva; também há conas masoquistas, que se fecham como a ostra e têm a casca dura e talvez uma ou duas pérolas no interior; há conas ditirâmbicas, que dançam só coma aproximação do pénis e se encharcam todas, de êxtase; há conas tipo porco-espinho, que estendem os espinhos e acenam combandeirinhas na época do Natal; há conas telegráficas, que executam o código Morse 178 Henry Miller e deixam a mente cheia de pontos e traços; há conas políticas, que estão saturadas de ideologia e até negam a menopausa; há conas vegetativas, que não reagem a não ser que as arranquemos pela raiz; há conas religiosas, que cheiram como Adventistas do Sétimo Dia e estão cheias de contas, vermes, cascas de marisco, caganitas de ovelha e, de vez em quando, migalhas de pão duro; há conas mamíferas, que são forradas de pele de lontra e hibernam durante o longo Inverno; há conas de cruzeiro, equipadas como iates e boas para solitários e epilépticos; há conas glaciais, nas quais podemos lançar estrelas cadentes sem provocar uma centelha sequer; há conas multifárias, que desafiam a categorização e a descrição, em que tropeçamos uma vez na vida e que nos deixam cauterizados e marcados; há conas feitas de pura alegria, que não têm nome nem antecedentes e são as melhores de todas, mas para onde fugiram? E, finalmente, há uma cona que é tudo e a que chamaremos supercona, pois não é desta terra e sim daquele luminoso país para o qual há muito nos convidaram que voássemos. Aí o rocio cintila sempre e os juncos dobram-se ao vento. É aí que habita o grande pai da fornicação, o Pari Ápis, o touro que, à cornada, abriu caminho para o céu e destronou as divindades castradas do certo e do errado. De Ápis proveio a raça dos unicórnios, essa fera ridícula dos escritos antigos cuja erudita fronte se prolongou num falo reluzente, e do unicórnio proveio, por estádios graduais, o homem de que Oswald Spengler fala. E do caralho morto deste triste espécime nasceu o gigante arranha-céus comos seus elevadores directos e as suas torres de observação. Somos a última vírgula decimal do cálculo sexual; o mundo gira como um ovo podre nas suas camas de palha. Falemos agora das asas de alumínio para voarmos para esse lugar distante, para esse luminoso país onde Ápis, o pai da fornicação, habita. Funciona tudo como relógios lubrificados, para cada minuto do mostrador há um milhão de relógios silenciosos que vão marcando as fatias de tempo. Viajamos mais depressa do que a luz, mais depressa do que o mágico consegue pensar. Cada segundo é um universo de tempo. E cada universo de tempo é apenas um pestanejo de sono na cosmogonia da velocidade. Quando a velocidade chegar ao fim estaremos lá, pontuais como sempre e abençoaTropico de Capricórnio damente indenominados. Largaremos as nossas asas, os nossos relógios e as nossas consolas de chaminé para nos encostarmos. Erguer-nos-emos, plumosos e jubilosos, como uma coluna de sangue, e não haverá memória, não haverá recordação alguma que nos arraste outra vez para baixo. Desta vez chamo-lhe o reino da supercona, porque desafia a velocidade, o cálculo ou a imaginação. Tão-pouco o pénis tem um tamanho ou um peso conhecidos. Há apenas sensação constante de foda, o fugitivo em plena fuga, o pesadelo a fumar o seu tranquilo cachimbo. O pequeno Nemo anda por ali comuma tesão de sete dias e um maravilhoso par de colhões azuis doados pela Dona Generosidade. É domingo de manhã para lá da esquina do Cemitério Sempre-Verde. É domingo de manhã e eu estou deliciosamente deitado, morto para o mundo, na minha cama de cimento armado. Para lá da esquina fica o cemitério, o que equivale a dizer o mundo das relações sexuais. Os tomates doem-me da fodição que não pára, mas passa-se tudo debaixo da minha janela, no boulevard onde Hymie tem o seu ninho de copulação. Penso numa mulher, e o resto é vago. Disse que penso nela, mas a verdade é que morro uma morte estelar. Estou deitado como uma estrela doente, à espera que a luz se extinga. Há anos, estive deitado nesta mesma cama e esperei, esperei, por nascer. Não aconteceu nada. A não ser o facto de a minha mãe, na sua cólera luterana, me ter despejado um balde de água em cima. A minha mãe, pobre imbecil, pensava que eu era preguiçoso. Não sabia que tinha sido apanhado na deriva estelar, que estava a ser pulverizado, condenado a uma extinção negra na mais distante fronteira do Universo. Julgava que era pura preguiça que me mantinha preso à cama. Despejou-me um balde de água em cima: encolhi-me e tremi um pouco, mas continuei deitado no meu leito de cimento armado. Era amovível. Era um meteoro extinto à deriva algures nas imediações de Vega. E agora estou na mesma cama e a luz que existe em mim recusa-se a extinguir-se. O mundo de homens e mulheres diverte-se no recinto do cemitério. Estão a ter relações sexuais, benza-os Deus, e eu estou sozinho na Terra da Foda. Parece-me ouvir o clangor de uma grande máquina, as matrizes do linótiPO a passarem pelo torcedor do sexo. Hymie e a ninfomaníaca da mulher estão deitados ao mesmo nível que eu, mas do outro -^. ./ 180 Henry Miller lado do rio. O rio chama-se Morte e tem um sabor amargo. Vadeei-o muitas vezes até os quadris, mas, fosse lá pelo que fosse, não fiquei petrificado nem fui imortalizado. Ainda ardo vivamente por dentro, embora exteriormente esteja morto como um planeta. Desta cama me levantei para dançar, não uma, mas sim centenas, milhares de vezes. E de todas as vezes que voltei tive a convicção de que dançara a dança do esqueleto num terrain vague. Talvez tivesse desperdiçado demasiada da minha substância a sofrer; talvez tivesse a louca ideia de que seria a primeira floração metalúrgica da espécie humana; talvez estivesse convencido de que era, simultaneamente, um subgorila e um superdeus. Nesta cama de cimento armado lembro-me de tudo, e é tudo de cristal de rocha. Nunca há animais e, sim, apenas milhares e milhares de seres humanos todos a falar ao mesmo tempo, e para cada palavra que proferem tenho imediatamente uma resposta, às vezes até antes de a palavra lhes sair da boca. Há muita matança, nas não há sangue. Os assassínios são perpetrados comlimpeza e sempre em silêncio. Mas mesmo que todos fossem mortos continuaria a haver conversa, e a conversa seria simultaneamente complicada e fácil de acompanhar. Porque sou eu que a crio! Sei que sou, e é por isso que não me enlouquece. Travo conversas que podem ter lugar só daqui a vinte anos, quando encontrar a pessoa adequada, a pessoa que criarei, digamos, quando o momento propício surgir. Todas estas conversas decorrem num terreno vago que está preso à minha cama como um colchão. Uma vez, dei um nome a esse terrain vague: chamei-lhe Ubiguchi; mas, não sei porquê, Ubiguchi nunca me satisfez, parecia-me demasiado inteligível, demasiado cheio de significado. Seria melhor conservar apenas o terrain vague, e é isso que tenciono fazer. As pessoas julgam que a vacuidade é nada, mas enganam-se. A vacuidade é uma repleção discordante, um mundo fantasmagórico congestionado, aonde a alma vai em reconhecimento. Lembro-me de, em rapaz, me encontrar no terreno vago como se fosse uma alma muito viva, nua num par de sapatos. O corpo fora-me roubado porque não tinha nenhuma necessidade especial dele. Então, podia existir comou sem corpo. Se matava um pássaro e o assava na fogueira e comia, não era por ter fome e, sim, porque queria saber como eram as coisas em Timbuktu ou na Tierra dei Fuego. Tinha de ir para ô terreno vago e comer pásTropico de Capricórnio 181 saros para originar um desejo por aquela terra luminosa em que mais tarde viveria sozinho e que povoaria de nostalgia. Esperava coisas extremas desse lugar, mas fui deploravelmente enganado. Fui tão longe quanto era possível ir num estado de morte completo, mas depois, devido a uma lei talvez a lei da criação, suponho -, comecei subitamente a viver inexaurivelmente, como uma estrela de luz inextinguível. Aí começaram as verdadeiras excursões canibalísticas que tanto significaram para mim: não mais pássaros mortos assados na fogueira, mas carne humana viva, tenra e suculenta, segredos como fígados frescos e ensanguentados, confidências como tumores inchados conservados em gelo... Aprendi a não esperar que a minha vítima morresse e a comê-la enquanto ainda falava comigo. Às vezes, quando me afastava de uma refeição inacabada, descobria que não era mais do que um velho amigo sem um braço ou uma perna. Outras abandonava-o, reduzido a um tronco cheio de intestinos fedorentos. Como era da cidade, da única cidade do mundo, e como não havia em parte alguma lugar como a Broadway, costumava andar de um lado para o outro a olhar para os presuntos todos iluminados e para outras iguarias. Era um esquizerino da sola dos sapatos às pontas do cabelo. Vivia exclusivamente no gerúndio, que só compreendia em latim. Muito antes de ter lido a seu respeito no Livro Negro já coabitava comHilda, a couve-flor gigante dos meus sonhos. Atravessámos juntos todas as doenças morganáticas e algumas que eram ex cathedra. Habitávamos na carcaça dos instintos e éramos alimentados por recordações gangliónicas. Não havia nunca um universo e sim milhões e biliões de universos, os quais todos juntos não eram maiores do que a cabeça de um alfinete. Era um sono vegetal na selva do espírito. Era o passado, a única coisa que abrange a eternidade. No meio da fauna e da flora dos meus sonhos ouvia a interurbana chamar. Aleijados e epilépticos deixavam-me telegramas em cima da mesa. Hans Castorp aparecia, de vez em quando, e cometíamos juntos crimes inocentes. Ou, se estava um dia claro e gélido, eu dava uma volta pelo velódromo na minha bicicleta Presto, de Chemnitz, Boémia. O melhor de tudo era a dança do esqueleto. Antes de mais nada, lavava-me todo no lavatório, mudava de roupa, barbea- É ^fc. 182 Henry Miller fl va-me, polvilhava-me, penteava-me e calçava os sapatos de dançar. Sentindo-me anormalmente leve por dentro e por fora, passeava durante algum tempo pelo meio da multidão, para captar o devido ritmo humano, o peso e a substância da carne. Depois ia direitinho à pista de dança, agarrava um naco de carne leviana e iniciava a pirueta outonal. Foi assim que, unia noite, entrei no estabelecimento do grego cabeludo e dei de caras comela. Parecia negro-azulada, branca como cal, sem idade. Não havia apenas o fluxo, para trás e para diante, havia também a queda infinita, a voluptuosidade do desassossego intrínseco. Ela era mercurial, e ao mesmo tempo de um peso agradável. Tinha o olhar marmóreo de um fauno embebido em lava. Chegara a altura, pensei, de sair da periferia. Dei um passo para o centro, mas senti o chão fugir-me. A terra deslizava rapidamente debaixo dos meus perplexos pés. Saí de novo da faixa e olhei: as minhas mãos estavam cheias de flores meteóricas. Estendi para ela duas mãos flamejantes, mas ela era mais esquiva do que areia. Pensei nos meus pesadelos favoritos, mas ela era diferente de tudo quanto jamais me fizera suar e tartamudear. No meu delírio comecei a empinar-me e a relinchar. Comprei rãs e acasalei-as comsapos. Pensei na coisa mais simples de fazer - morrer -, mas não fiz nada. Permaneci imóvel e comecei a petrificar-me pelas extremidades. Isso causava uma sensação tão maravilhosa, tão cicatrizadora, tão eminentemente perceptível que comecei a rir por dentro, nas vísceras, como uma hiena louca de cio. Talvez me transformasse numa pedra de Roseta! Deixei-me ficar quieto, à espera. Chegou a Primavera, o Outono e o Inverno. Renovei automaticamente a minha apólice de seguro. Comi erva e raízes de decíduas. Passei dias a fio a ver o mesmo filme. De vez em quando lavava os dentes. Se disparavam uma automática contra mim, as balas ressaltavam-me do corpo e ricocheteavam nas paredes, comum estranho tá-tá-tá. Uma vez, numa rua escura, derrubado por um rufião, senti uma faca traspassar-me. Causou-me a sensação de um banho de agulheta. Por estranho que pareça, a faca não me deixou quaisquer buracos na pele. A experiência foi tão extraordinária, tão nova, que fui para casa e cravei facas em todas as partes do corpo. Mais banhos de agulheta. Sentei-me, retirei todas as facas e mais uma vez me maravilhei como facto de não haver vestígios de Trópico de Capricórnio 183 sangue, nem buracos, nem dor. Preparava-me para dar uma dentada num braço quando o telefone tocou. Nunca soube quem fazia as chamadas, porque nunca ninguém falava. Mas, voltando à dança do esqueleto... A vida escorre pela montra. Estou lá deitado como um presunto banhado de luz, à espera que o cutelo caia. Na realidade, não há nada a recear, pois é tudo muito bem cortado em fatias fminhas e embrulhado em celofane. De súbito, todas as luzes da cidade se apagam e as sereias fazem ouvir o seu aviso lúgubre. A cidade está envolta em gás venenoso, rebentam bombas, voam corpos mutilados... Há electricidade por todo o lado, e sangue, e estilhaços, e altifalantes. Os homens que se encontram no ar estão cheios de contentamento; os que se encontram em baixo gritam e berram. Quando o gás e as chamas acabarem de devorar toda a carne, começará a dança do esqueleto. Observo da montra, que está agora às escuras. E melhor do que o saque de Roma, pois há mais para destruir. Pergunto a mim mesmo por que dançam os esqueletos comtamanho êxtase. Será a queda do Mundo? Será a dança da morte tantas vezes anunciada? Ver milhões de esqueletos dançar na neve enquanto a cidade soçobra é um espectáculo aterrador. Voltará alguma coisa a crescer, jamais? Sairão bebés do útero? Haverá comida e vinho? São homens que estão no ar, sem dúvida. Descerão para saquear. Grassarão a cólera e a desinteria e os que estiveram lá em cima, triunfantes, perecerão como os outros. Tenho a sensação viva, firme, de que serei o último homem da Terra. Emergirei da montra quando tudo estiver acabado e caminharei calmamente por entre as ruínas. Terei toda a Terra para mim! Interurbana! Para me informar de que não estou absolutamente só. Então a destruição não foi completa? É desencorajante. O homem nem sequer é capaz de se destruir; só é capaz de destruir os outros. Sinto-me enojado. Que perverso aleijão! Que cruéis ilusões! Afinal, sobreviveram mais exemplares da espécie, que limparão o chiqueiro e começarão de novo! Deus descerá novamente em carne e sangue e assumirá 0 fardo da culpa. Escreverão música, construirão coisas de pedra e registarão tudo em livrinhos. Ora bolas! Que cega tenacidade, que desastradas ambições! 184 Henry Miller Estou novamente na cama. O antigo mundo grego, a aurora das relações sexuais - e Hymie! Hymie Laubscher sempre ao mesmo nível, a olhar para o boulevard através do rio. Há uma acalmia no banquete nupcial e servem-se os fritos de amêijoa. Desvia-te um bocadinho, diz ele. Isso, assim mesmo! Ouço rãs coaxar no charco do lado de fora da minha janela. Grandes rãs de cemitério alimentadas pelos mortos. Estão todas enganchadas em relações sexuais; coaxam comalegria sexual. Compreendo agora como Hymie foi concebido e trazido à vida. Hymie, a rã! A mãe estava no fundo da molhada e Hymie, na altura um embrião, escondido na bolsa da mãe. Corriam os primeiros dias das relações sexuais e não havia regras do marquês de Queensbury para atrapalhar. Era foder e ser fodido, e o resto que se lixasse. Tem sido assim desde os Gregos: uma foda cega na lama, depois uma desova rápida e depois a morte. As pessoas fodem a níveis diferentes, mas sempre num pântano, e a ninhada está sempre destinada ao mesmo fim. Quando a casa é deitada abaixo, a cama fica de pé: o altar cosmossexual. Estava a poluir a cama comsonhos. Estendido, tenso, no cimento armado, a minha alma deixava o corpo e vagueava de lugar para lugar num carrinho eléctrico, como o que se usa nos armazéns para fazer os trocos. Fazia trocos ideológicos e excursões; era um vagabundo no país do cérebro. Apresentava-se-me tudo absolutamente claro, porque feito de cristal de rocha. Em todas as saídas estava escrito em grandes letras: ANIQUILAÇÃO. O medo da extinção petrificava-me; o corpo transformava-se num bocado de cimento armado. Ornamentado por uma erecção permanente, do melhor gosto. Atingira aquele estado de vacuidade tão ansiosamente desejado por certos membros devotos de cultos esotéricos. Já não era. Não era sequer uma tesão pessoal. Foi mais ou menos por essa altura que, adoptando o pseudónimo de Samsom Lackawana, comecei as minhas depredações. O instinto criminal existente em mim levara a melhor. Eu, que até então fora apenas uma alma errante, uma espécie de Dybbuk gentio, tornei-me um fantasma coberto de carne. Adoptara o nome que me agradava e bastava-me agir instintivamente. Em Hong-Kong, por exemplo, estreei-me como vendedor de livros. Transportava uma bolsa de couro cheia de Tráfico de Capricórnio 185 dólares mexicanos e visitava religiosamente todos os chineses que precisavam de mais instrução. No hotel pedia mulheres pelo telefone como quem pede uísque comsoda. De manhã estudava tibetano, a fim de preparar a minha viagem a Lassa. Já falava fluentemente yiddish. E hebraico também. Era capaz de somar duas filas de algarismos ao mesmo tempo. Achava tão fácil intrujar os Chineses que voltei para Manila, desgostoso. Aí tomei um tal Mr. Rico sob a minha protecção e ensinei-lhe a arte de vender livros sem despesas extra. Os lucros provinham exclusivamente das taxas de frete marítimo, mas chegavam para me manter no luxo. A respiração tornara-se um truque, como respirar. As coisas não eram apenas duplas: eram múltiplas. Transformara-me numa gaiola de espelhos que reflectiam a vacuidade. Mas uma vez solidamente, pressuposta a vacuidade, encontravame no meu ambiente, e o que se chama criação era meramente uma questão de encher buracos. O carrinho eléctrico levava-me convenientemente de lugar em lugar e eu lançava em cada bolsinha lateral de grande vácuo uma tonelada de poemas, para apagar a ideia da aniquilação. Tinha sempre diante de mim paisagens ilimitadas. Comecei a viver na paisagem, como um pontinho microscópico na lente de um telescópio gigante. Não havia noite em que repousar; a luz estrelar brilhava perpetuamente na superfície árida de planetas mortos. De vez em quando, um lago preto como mármore negro, no qual me via caminhar entre brilhantes orbes de luz. As estrelas pairavam tão baixo e era tão ofuscante a luz que irradiavam, que dir-se-ia estar o Universo somente prestes a nascer. O que tornava essa impressão mais forte era o facto de me encontrar sozinho; além de não existirem animais, nem árvores, nem outros seres, também não havia sequer uma folha de erva, ao menos uma raiz morta. Nessa incandescente luz violeta, que nem mesmo tinha a sugestão de uma sombra, o próprio movimento parecia ausente. Era como um clarão de pura percepção, o pensamento tornava-se Deus. E Deus, pela primeira vez no meu conhecimento, apresentava-se nítido. E eu igualmente nítido, impecável, extremamente exacto. Via a minha imagem nos lagos de mármore preto, uma imagem cravejada de estrelas. Estrelas, estrelas... Sentia como que uma pancada entre °s olhos e toda a recordação se extinguia rapidamente. Era 186 Henry Miller Samson, e era Lackawana, e estava a morrer como um ser no êxtase da total percepção. E aqui estou agora, descendo o rio na minha pequena canoa. Farei tudo quanto quiserem que faça. Grátis. Esta é a Terra da Foda, na qual não há animais, nem árvores, nem estrelas, nem problemas. Aqui reina, supremo, o espermatozóide. Nada é determinado antecipadamente, o futuro é uma incógnita absoluta e o passado inexistente. Por cada milhão que nasce, 999 999 estão condenados a morrer e a nunca mais renascer. Mas o que se safa e chega ao destino tem a vida eterna garantida. A vida é espremida numa semente, que é uma alma. Tudo tem alma, incluindo os minerais, as plantas, os lagos, as montanhas e os rochedos. Tudo sente, até mesmo no mais baixo estádio de percepção. Uma vez apreendido este facto, não pode haver mais desespero. Até no fundo da escada, chez lês espermatozóides, há o mesmo estado de beatitude que no topo, chez Deus. Deus é a soma de todos os espermatozóides, atingida a percepção total. Entre o fundo e o topo não há paragem, não há nenhuma estação intermédia. O rio nasce algures nas montanhas e corre para o mar. Nesse rio que conduz a Deus, a pequena canoa serve de tanto como um grande navio de guerra. Desde o princípio que a viagem se faz rumo à pátria. Navegando pelo rio abaixo... lento como o ancilóstomo, mas suficientemente pequeno para dobrar todas as curvas. E ainda por cima tão escorregadio como uma enguia. Como te chamas? - grita alguém. Como me chamo? Bem, podes chamar-me Deus... Deus, o embrião. Continuo a navegar. Alguém gostaria de me comprar um chapéu. Que tamanho usas, imbecil?! - grita-me. Que tamanho? Bem, tamanho X! (Porque estarão sempre a gritar comigo? Julgarão que sou surdo?) O chapéu perde-se na catarata seguinte. Tantpis - para o chapéu. Deus precisa de chapéu? Deus precisa apenas de se tornar Deus, mais e mais Deus. Todo este viajar, todas estas armadilhas, o tempo que passa, o cenário e, contra o cenário, o homem, triliões e triliões de coisas chamadas homem, como sementes de mostarda. Nem mesmo em embrião Deus tem memória. O pano de fundo da percepção é composto por gânglios infinitesimamente minúsculos, um revestimento de cabelo macio como lã. A cabra montês ergue-se sozinha entre Trópico de Capricórnio 187 os Himalaias; não pergunta como chegou ao cume. Pasta tranquilamente entre o décor; quando chega a altura, volta a descer. Mantém o focinho rente ao solo, para não deixar perder o escasso alimento que os cumes montanhosos proporcionam. Neste estranho estado capricorniano de embriose, Deus, o bode, rumina, comimpassível beatitude, entre os cumes montanhosos. As elevadas altitudes alimentam o germe de separação que um dia o afastará completamente da alma do homem, que fará dele um pai desolado e pétreo, vivendo para sempre à parte, num vazio inimaginável. Mas primeiro vêm as doenças morganáticas, de que devemos agora falar... Há um estado de sofrimento irremediável, em virtude de a sua origem se perder na obscuridade. Bloomingdale’s, por exemplo, pode causar esse estado. Todos os armazéns são símbolos de doença e vazio, mas Bloomingdale’s é a minha doença especial, a minha enfermidade incurável e obscura. No caos de Bloomingdale’s há uma ordem, mas uma ordem que considero absolutamente louca: é a ordem que encontraria na cabeça de um alfinete se a observasse ao microscópio. E a ordem de uma acidental série de acidentes acidentalmente concebidos. Esta ordem tem, sobretudo, um odor: e é o odor de Bloomingdale’s que me enche o coração de terror. No Bloomingdale’s desintegro-me por completo, escorro para o chão num chiqueiro desgraçado de tripas, ossos e cartilagem. Há um cheiro não de decomposição, mas sim de aliança desigual. O homem, esse miserável alquimista, uniu, num milhão de formas e feitios, substâncias e essências que não têm nada em comum. Porque na sua mente existe um tumor que o vai devorando insaciavelmente; abandonou a canoazinha que o levava beatificamente pelo rio abaixo, a fim de construir um barco maior e mais seguro, no qual haja espaço para todos. Mas os seus labores levaram-no tão longe que se esqueceu por completo do motivo por que saiu da canoazinha. A arca está tão cheia de bricabraque que se transformou num edifício estacionário por cima de uma passagem subterrânea, num edifício em que prevalece e predomina o cheiro do linóleo. Reunam todo o significado oculto na intersticial miscelânea do Bloomingdale’s e ponham-no em cima da cabeça de um alfinete e terão um universo em que as grandes constelações se movem sem o mínimo perigo de colisão. E este caos micros- 188 Henry Miller cópico que provoca todas as minhas indisposições morganáticas. Na rua, desato a apunhalar cavalos à toa, ou levanto uma saia aqui e ali à procura de uma caixa de correio, ou ponho um selo postal numa boca, num olho ou numa vagina. Ou então decido subitamente escalar um edifício alto, como uma mosca, e quando chego ao telhado voo comasas a sério, e voo, e voo, e voo, percorrendo, num abrir e fechar de olhos, cidades como Weehawken, Hoboken, Hackensack, Canarsie e Bergen Beach. Quando nos tornamos um verdadeiro esquizerino, voar é a coisa mais fácil do mundo. O truque consiste em voar como corpo etéreo e deixar no Bloomingdale’s o saco de ossos, tripas, sangue e cartilagem; em voar apenas como eu imutável que, se nos detivermos um instante a reflectir, está sempre munido de asas. Voar deste modo, em plena luz do dia, tem vantagens sobre os vulgares voos nocturnos a que toda a gente se entrega. Pode-se levantar voo de momento para momento, tão rápida e decisivamente como se pisássemos um travão. Não há dificuldade em encontrar o nosso outro eu, porque no momento em que descolamos somos o nosso outro eu, o que equivale a dizer que somos o chamado eu integral. Simplesmente, como a experiência do Bloomingdale’s prova, esse eu integral, acerca do qual tanto se tem alardeado, desintegra-se commuita facilidade. Por qualquer estranha razão, o cheiro do linóleo far-me-á sempre desintegrar e cair no chão. É o cheiro de todas as coisas inaturais que foram aglutinadas em mim, que foram reunidas, por assim dizer, por consentimento negativo. Só depois da terceira refeição é que as dádivas matinais, doadas pela falsa aliança dos antepassados, começam a afastar-se e a verdadeira rocha do eu, a feliz rocha do eu, emerge do lodo da alma. como cair da noite, o universo da cabeça de alfinete começa a expandir-se. Expande-se organicamente, a partir de um ponto nuclear infinitesimal, do mesmo modo como se formam os minerais e as constelações. Vai devorando o caos circundante, como um rato a abrir caminho através de um queijo. Todo o caos pode ser contido numa cabeça de alfinete, mas o eu, microscópico à partida, expande-se e forma um universo a partir de qualquer ponto no espaço. Este ett não é aquele acerca do qual se escrevem livros; é o eu, perene, sem idade, que tem sido cedido aos homens comnomes e daTropico de Capricórnio 189 tas através de eras milenárias, o eu que começa e acaba como um verme, que é o verme do queijo chamado mundo. Assim como a mais leve brisa pode pôr uma imensa floresta em movimento, assim também, mediante um insondável impulso partido do interior, o pétreo eu pode começar a crescer, sem que nada possa impedir ou deter tal crescimento. É como se o mundo fosse uma vidraça e a geada entrasse em acção. Nenhuma sugestão de labor, nenhum som, nenhuma luta, nenhum repouso; implacável, inexorável, incansável, o crescimento do eu prossegue. Há só duas coisas na lista: o eu e o não-eu. E uma eternidade para o conseguir. Nesta eternidade, que não tem nada a ver comtempo ou espaço, há interlúdios em que se verifica algo parecido comum degelo. A forma do eu desintegra-se, mas o eu, como o clima, permanece. De noite, a matéria amorfa do eu assume as formas mais fugazes; o erro infiltra-se pelas vigias e o viandante é solto da sua porta. Esta porta que o corpo usa, se aberta para o mundo, conduz à aniquilação. É a porta existente em todas as fábulas e da qual o mágico sai; nunca se leu em parte alguma que ele regressasse através da mesma dita porta. Se aberta para dentro, revela portas infinitas, todas semelhantes a alçapões: não se vêem horizontes, nem linhas aéreas, nem nos, nem mapas, nem bilhetes. Cada couche é uma paragem apenas para a noite, seja de cinco minutos, seja de dez mil anos. As portas não têm puxadores e nunca se gastam. Mais importante ainda: não há nenhum fim à vista. Todas as paragens para passar a noite são, por assim dizer, explorações abortadas de um mito. Podemos tactear o caminho, orientar-nos, observar fenómenos passageiros; podemos até sentir-nos em casa. Mas não ganhamos raízes. Precisamente quando nos começamos a sentir «fixados», todo o terreno abate, o solo debaixo dos pés fica à deriva, as constelações soltam-se dos seus ancoradouros, todo o universo conhecido, incluindo o eu imperecível, começa a mover-se silenciosamente, ominosamente, arrepiantemente sereno e indiferente, a mover-se para um destino desconhecido e invisível. Todas as portas parecem abrir-se ao mesmo tempo; a pressão é tão grande que se verifica uma implosão e, no mergulho rápido, o esqueleto estoira. Deve ter sido um colapso gigantesco deste género que Dante experimentou ao situar-se no Inferno; não foi num fundo que tocou e, sim, num cerne, num centro a partir do qual o próprio tempo é contado. Aí começa a comédia, a partir daí parece divina. Tudo isto para dizer que certa noite, há doze ou catorze anos, ao transpor a porta giratória do Amarillo Dance Hall, ocorreu o grande acontecimento. O interlúdio a que chamo Terra da Foda, um reino mais de tempo do que de espaço, é para mim o equivalente ao Purgatório que Dante descreveu comtanto pormenor. Quando agarrei o puxador de latão da porta giratória, para sair do Amarillo Dance Hall, tudo quanto fora previamente, era, e estava prestes a ser, desmoronou-se. Não houve nada de irreal nisso; o próprio tempo em que nascera passou, arrastado por uma corrente mais forte. Assim como fora previamente atirado para fora do útero, assim também era agora devolvido a qualquer vector infinito, onde o processo de crescimento se mantinha à distância. Passei para o mundo dos efeitos. Não tinha medo; experimentava apenas um sentimento de fatalidade. A minha espinha estava hirta; tinha pela frente o cóccix de um novo mundo implacável. No mergulho, o esqueleto explodiu, deixando o ego imutável tão indefeso como um piolho esborrachado. Se não começo a partir deste ponto, é porque não há começo algum. Se não voo imediatamente para a terra luminosa, é porque as asas não servem para nada. É a hora zero e a Lua está no nadir... Não sei porque me lembro de Maxie Schnadig; a não ser que seja por causa de Dostoievski. A noite em que me sentei a ler Dostoievski pela primeira vez foi um acontecimento muito importante na minha vida, mais importante ainda do que o meu primeiro amor. Foi o primeiro acto deliberado e consciente que teve significado para mim; mudou por completo a face do mundo. Já não sei se é verdade que o relógio parou no momento em que levantei a cabeça, depois do primeiro grande trago. Mas sei que o mundo parou, se imobilizou um instante. Foi o primeiro vislumbre que tive da alma de um homem. Ou deverei dizer, simplesmente, que Dostoievski foi o primeiro homem a revelar-me a alma? Talvez eu já fosse um bocadinho estranho antes disso, sem me aperceber, mas a partir do momento em que mergulhei em Dostoievski tornei-me definitiva, irrevogável e regaladamente estranho. O mundo vulgar, o mundo de vigília e trabalho, estava acabado para mim. Morreu igualmente - e por muito tempo - qualquer ambição ou desejo de escrever existente em mini. Era como aqueles homens que passaram muito tempo nas trincheiras, que estiveram muito tempo debaixo de fogo. Vulgar sofrimento humano, vulgar inveja humana, vulgares ambições humanas, tudo isso era merda para mim. Avalio melhor o meu estado quando penso nas minhas relações comMaxie e a sua irmã, Rita. Lembro-me bem de que, nesse tempo, Maxie e eu íamos nadar juntos, commuita frequência. Muitas vezes passávamos todo o dia e toda a noite na praia. Só vira a irmã de Maxie uma ou duas vezes; sempre que mencionava o nome dela, Maxie mudava apressadamente de assunto. Isso aborreciame, pois a verdade é que estava chateadíssimo coma companhia dele e só o tolerava porque me emprestava facilmente dinheiro e me comprava coisas de que eu precisava. Todas as vezes que me punha a caminho da praia, tinha esperança de que a irmã dele aparecesse inesperadamente. Mas não, ele conseguia sempre mante-la afastada. Um dia, quando nos despíamos na barraca e ele me mostrava o excelente e firme escroto que tinha, disse-lhe, sem cerimónias: «Escuta, Maxie, os teus tomates são porreiros, não há motivos nenhuns para preocupação, mas onde diabo se mete a Rita, por que raio não a trazes e não me deixas dar uma boa olhadela à sua quimt... Sim, quim, sabes muito bem o que quero dizer.» Judeu de Odessa, Maxie nunca tinha ouvido a palavra quim. Ficou profundamente escandalizado comas minhas palavras - escandalizado e, ao mesmo tempo, intrigado como novo vocábulo. Redarguiu-me, numa espécie de atordoamento: «Jesus, Henry, não me devias dizer uma coisa dessas!» «Porque não? A tua irmã tem cona, não tem?» Preparava-me para acrescentar mais qualquer coisa, mas ele teve um tremendo ataque de riso, o que salvou a situação, de momento. No fundo, porém, Maxie não gostou nada da ideia. Incomodou-o durante todo o dia, embora ele não fizesse qualquer alusão à nossa conversa. Manteve-se muito calado. A única forma de vingança de que se conseguiu lembrar foi mcitar-me a nadar muito para além da zona de segurança, esperançado em que me cansasse e afogasse. Percebi tão claramente o que se passava no seu espírito que me senti possesso 192 Henry Miller Trópico de Capricórnio 193 da força de dez homens. Diabos me levassem se me ia deixar ’’’ afogar só porque, como todas as mulheres, a irmã dele tinha cona! Isto passou-se em Far Rockaway. Depois de nos vestirmos; e comermos, resolvi, de súbito, que me apetecia estar só e, por isso, à esquina de uma rua, apertei-lhe bruscamente a mão e ’ despedi-me. E pronto! Quase no mesmo instante, senti-me só ; no mundo, só como nos sentimos em momentos de extrema angústia. Creio que palitava distraidamente os dentes quando essa vaga de solidão me acertou em cheio, como um tornado. Fiquei parado à esquina da rua e apalpei-me todo, para ver se tinha sido atingido por alguma coisa. Era inexplicável e, ao mesmo tempo, muito maravilhoso e divertido, como um to- j nico reforçado. Quando digo que estava em Far Rockaway quero dizer que estava no fim da Terra, num lugar chamado í Xanto, se tal lugar existe, e comcerteza há tal palavra, embo- \ rã possa não se referir a nenhum lugar. Creio que se Rita ti- j vesse aparecido naquele momento, não a teria reconhecido. Tornara-me um estranho absoluto no meio da minha própria | gente. Pareciam-me todos doidos, comas caras acabadas de | queimar pelo sol, as calças de flanela e as peúgas coloridas. Ti-’ nham estado a tomar banho como eu, porque isso era um recreio agradável e salutar, e, também como eu, sentiam-se < cheios de sol, coma barriga atestada e um pouco pesados de ! fadiga. Até aquela vaga de solidão me atingir também estava ; um pouco cansado, mas de súbito, ali parado completamente isolado do mundo, despertei comum sobressalto. Sentia-me de tal maneira electrizado que não ousava mexer-me, commedo de arremeter como um touro, ou começar a trepar por um edifício, ou dançar e gritar. Compreendi de repente que tudo aquilo acontecia porque era realmente um irmão de Dostoievski, porque era, talvez, o único homem de toda a América que sabia o que ele quisera dizer ao escrever os seus livros. Mas não se tratava apenas disso; também sentia germi- í narem dentro de mim todos os livros que eu próprio escreveria, um dia: rebentavam no meu interior como casulos amadurecidos. E, como até àquele momento não escrevera mais do que cartas diabolicamente compridas acerca de tudo e de nada, erame difícil compreender que chegaria um momento em que começaria, em que escreveria a primeira palavra, apnmeira palavra autêntica. E esse momento chegara! Foi disso que me apercebi. Há pouco empreguei a palavra Xanto. Não sei se existe ou não alguma Xanto e, para ser franco, tanto se me dá como se me deu, mas deve haver um lugar na Terra - talvez nas ilhas gregas onde chegamos ao fim do mundo conhecido e estamos absolutamente sós e, contudo, não nos sentimos assustados: pelo contrário, rejubilamos, porque nesse lugar extremo podemos sentir o velho mundo ancestral que é eternamente jovem, e novo, e fecundante. Paramos aí, nesse lugar, como um pinto acabado de nascer ao lado da casca de ovo. Esse lugar é Xanto ou, como aconteceu no meu caso, Far Rockaway. Ali estava eu! Escureceu, levantou-se vento, as ruas tornaram-se desertas e, finalmente, começou a chover a potes. Jesus, isso foi o fim! Quando a chuva me bateu em cheio no rosto virado para o céu, desatei, de repente, a berrar de alegria. Ri-me, ri-me, n-me, exactamente como um doido. E nem sequer sabia de que estava a rir. Não pensava em nada. Sentia-me apenas avassalado pela alegria, doido como prazer de me encontrar absolutamente só. Não teria pestanejado, sequer, se naquele momento me apresentassem numa bandeja uma bela e sumarenta qmm, ou até todas as qmms do mundo, para escolher. Tinha o que nenhuma qmm me poderia dar. E foi nessa altura que, completamente encharcado mas ainda exultante, me lembrei da coisa mais insignificante do mundo: dinheiro para os transportes! Jesus, o sacana do Maxie fora-se embora sem me deixar cheta! Ali estava eu no meu belo mundo antigo a desabrochar, e sem uma moeda na algibeira. Herr Dostoievski Júnior teve de começar a ir a butes aqui e ali, a olhar para caras amigas e nem por isso, para ver se conseguia apanhar uns cobres. Foi de uma ponta de Far Rockaway à outra, mas pareceram estar-se todos nas tintas no que tocava a esmifrar dinheiro para transportes. Enquanto caminhava, invadido pelo pesado torpor animal que resulta de pedinchar, comecei a pensar em Maxie, o decorador de montras, e na primeira vez em que o vira, de pé numa montra, a vestir um manequim. Passados minutos, passei para Dostoievski, depois o mundo imobilizou-se e depois, como uma grande rosa a abrir na noite, pensei na carne quente e aveludada de Rita. 194 Henry Miller O que é estranho é o seguinte... Poucos minutos depois de pensar em Rita e na sua íntima e extraordinária quim, ia no comboio a caminho de Nova Iorque, a dormitar e comurna maravilhosa e lânguida erecção. O mais estranho ainda é que, depois de me apear do comboio e percorrer apenas um ou dois quarteirões, ao dobrar uma esquina dei de caras precisamente corn... a própria Rita. E, como se tivesse sido telepaticamente informada do que se passava no meu cérebro, ela também estava quente... Instantes depois estávamos sentados num restaurante chinês, lado a lado num pequeno cubículo, comportando-nos exactamente como um casal de coelhos comcio. Na pista de dança quase não nos mexemos. Estávamos colados um ao outro e assim continuámos, deixando os outros empurrar-nos à vontade. Podia tê-la levado para minha casa, pois nessa altura estava só, mas não, o que me tentava era levá-la para sua casa, encostá-la à parede do vestíbulo e fodê-la ali mesmo, debaixo das ventas de Maxie - e foi isso que fiz. No meio do acto, voltei a pensar no manequim da montra e na maneira como ele se rira nessa tarde quando eu dissera a palavra quim. Estava quase a desatar também a rir, quando senti que ela se vinha, num daqueles orgasmos prolongados que de vez em quando provocamos numa cona judia. Tinha as minhas mãos sob as suas nádegas, comas pontas dos dedos à entrada da cona, por assim dizer no forro. Quando ela começou a estremecer levantei-a do chão e fi-la subir e descer devagarinho na ponta do caralho. Receei que desse completamente em maluca, pela maneira como começou a comportar-se. Deve ter tido quatro ou cinco orgasmos assim, no ar, antes de lhe voltar a assentar os pés no chão. Tirei-o sem entornar uma gotinha sequer e mandei-a deitar-se no vestíbulo. O chapéu rebolou-lhe para um canto e a mala abriu-se e deixou escapar algumas moedas. Menciono o pormenor porque, momentos antes de lhe dar o que tinha a dar, comtodos os matadores, decidi mentalmente empochar algumas moedas, para os transportes. Enfim, poucas horas tinham decorrido desde que dissera a Maxie, na barraca da praia, que gostaria de dar uma boa olhadela à quim da irmã, e ali estava ela agora colada a mim, a escorrer e sem parar de esguichar. Se tinha sido fodida antes, nunca o fora convenientemente. Disso estava certo. E eu próprio nunca me sentira comuma Trópico de Capricórnio 195 disposição de espírito tão fria e científica como ali no chão do vestíbulo, mesmo debaixo das ventas de Maxie, a bombear a íntima, sagrada e extraordinária quim da sua mana, Rita. Podia ter-me contido indefinidamente - era incrível como me sentia desprendido, embora completamente consciente de cada estremeção que a sacudia. Mas alguém tinha de pagar por ter sido obrigado a andar debaixo de chuva a pedinchar uns cobres. Alguém tinha de comprovar a autenticidade daquela cona íntima e secreta que me atormentara durante semanas, durante meses. E haveria alguém melhor qualificado do que eu? Pensei tanto e tão rapidamente, entre orgasmos, que o caralho me deve ter crescido uns três a cinco centímetros. Por fim, decidi acabar comaquilo pela porta das traseiras e disse-Ihe que se virasse. Ao princípio recalcitrou um bocado, mas quando sentiu a coisa escorregar dela para fora quase enlouqueceu. «Oh, sim, oh, sim, faz, faz!», gemeu, e isso excitou-me a valer. De tal maneira que mal lho enfiara me senti vir, numa daquelas esguichadelas prolongadas e angustiosas, saídas da ponta da medula espinal. Enterrei-o tão profundamente que tive a sensação de que qualquer coisa dava de si. Caímos um para cada lado, exaustos e a ofegar como cães. Ao mesmo tempo, porém, tive a presença de espírito necessária para tactear à minha volta, à caça de umas moedas. Não que precisasse realmente delas, pois ela já me emprestara alguns dólares, mas para me vingar do que me faltara para os transportes em Far Rockaway. Mas, Jesus, ainda não acabara. Não tardei a senti-la às apalpadelas, primeiro comas mãos e depois coma boca. Eu continuava comuma espécie de meia-tesão. Enfiou-o na boca e começou a acariciá-lo coma língua. Vi estrelas. Quando dei por mim, ela tinha os pés à roda do meu pescoço e a minha língua estava enfiada pela sua racha acima. E depois tive de a montar outra vez e de o enterrar até aos coPOS. Contorceu-se como uma enguia, palavra. E começou a vir-se de novo, em orgasmos longos, intermináveis, no meio de gemidos e balbuciações alucinantes. Por fim, tive de o tirar e de lhe dizer que acabasse comaquilo. Que quim\ E eu só Pedira para lhe dar uma olhadela! Maxie, comas suas conversas acerca de Odessa, reavivara a’go que eu perdera em criança. Embora nunca tivesse tido urna visão muito clara de Odessa, a sua aura era como a do A.. 196 Henry Miller pequeno bairro de Brooklyn que tanto significara para mim e de onde me haviam arrancado tão cedo. Sempre que vejo um quadro italiano sem perspectiva, tenho uma sensação muito viva desse bairro. Se é, por exemplo, a representação de um cortejo fúnebre, trata-se exactamente do tipo de experiência que conheci em criança, uma experiência de proximidade intensa. Se se trata da pintura de uma rua, as mulheres sentadas à janela estão sentadas na rua e não acima ou fora da rua. Tudo quanto acontece é, acto contínuo, conhecido por toda a gente, tal qual como entre povos primitivos. O assassínio anda no ar, o acaso domina. Assim como esta perspectiva falta nos primitivos italianos, assim também, no velho bairrozinho de onde fui desenraizado em criança, havia planos verticais paralelos, nos quais tudo acontecia e através dos quais, de camada em camada, tudo era comunicado, como que por osmose. As fronteiras eram vivas, claramente definidas, mas não intransponíveis. Eu vivia então, em rapaz, perto da fronteira entre o lado norte e o lado sul: só um nadinha mais para o none, a poucos passos de uma larga artéria chamada North Second Street, a qual era para mim a verdadeira linha divisória entre os dois lados. Na realidade, a linha divisória era a Grand Street, que levava a Broadway Ferry, mas essa rua não significava nada para mim, a não ser pelo facto de já estar a encher-se de judeus. Não, a North Second Street era a rua misteriosa, a fronteira entre dois mundos. Vivia, portanto, entre duas fronteiras, uma real e outra imaginária - como vivi toda a minha vida. Havia uma ruazinha apenas comum quarteirão de comprimento entre a Grand Street e a North Second Street e chamada Fillmore Place. Essa ruazinha ficava obliquamente oposta à casa do meu avô, onde morávamos. Foi a rua mais fascinante que conheci em toda a minha vida. Era uma rua ideal para um rapaz, um amante, um maníaco, um bêbedo, um vigarista, um libertino, um rufião, um astrónomo, um músico, um alfaiate, um sapateiro ou um político. Na realidade, era mesmo assim, continha exactamente esses representantes da espécie humana, cada qual um mundo em si mesmo e vivendo juntos harmoniosa e desarmoniosamente, mas juntos, formando uma corporação sólida, um esporo humano coeso que não poderia desintegrar-se, a não ser que a própria rua se desintegrasse. Trópico de Capricórnio 197 Pelo menos assim parecia. Até que a Ponte Williamsburg foi aberta e começou a invasão dos judeus da Delancey Street, Nova Iorque. Isso provocou a desintegração do nosso pequeno mundo, da ruazinha chamada Fillmore Place que, como o próprio nome indicava, era uma rua de mérito, de dignidade, de luz e de surpresas. Os judeus chegaram, como disse, e, como traças, começaram a devorar o tecido das nossas vidas, até não haver mais nada a não ser essa presença de traças, que levavam para toda a parte. Em breve a rua começou a cheirar mal, em breve as pessoas verdadeiras começaram a mudar-se, em breve as casas começaram a deteriorar-se e os próprios alpendres a cair, como a tinta. Em breve a rua parecia uma boca repugnante em que faltavam os dentes principais, comraízes negras e feias aqui e ali, os lábios a apodrecer e o palato desaparecido. Em breve o lixo chegava aos joelhos e as valetas e as escadas de incêndio estavam cheias de restos inchados de roupa de cama, de baratas e de sangue seco. Em breve apareceram letreiros de «comida kosher» nas montras das lojas e havia por toda a parte criação, salmão fumado, pickles e enormes pães. Em breve havia carrinhos de bebé em todas as travessas, nos alpendres, nos quintalinhos e defronte dos estabelecimentos. E, coma mudança, a língua inglesa também desapareceu: só se ouvia yiddish, só se ouvia essa língua sibilante, crepitante e sufocante em que Deus e hortaliça podre têm o mesmo som - e significam o mesmo. Contámo-nos entre as primeiras famílias que se mudaram, após a invasão. Mesmo assim, voltava ao velho bairro duas ou três vezes por ano, para festejar um aniversário, ou o Natal, ou o Dia de Acção de Graças. Em cada visita verificava a perda de qualquer coisa que me fora querida. Era como um sonho mau. Ia de mal a pior. A casa onde os meus parentes ainda moravam lembrava uma fortaleza que começava a cair em ruínas. Eles estavam isolados numa das salas da fortaleza, onde levavam uma vida triste, insular, e começavam mesmo a parecer humildes, perseguidos, degradados. Começaram até a fazer distinções entre os seus vizinhos judeus, considerando alguns deles humanos, decentes, asseados, amáveis, compreensivos, caridosos, etc., etc. Para mim, era de cortar o coração. Teria sido capaz de pegar numa metralhadora e dizimar toda a gente, judeus e gentios ao mesmo tempo. 198 Henry Miller Foi mais ou menos na altura da invasão que as autoridades resolveram mudar para Metropolitan Avenue o nome da North Second Street. Essa rua, que fora para os gentios o caminho para os cemitérios, tornou-se aquilo que se chama urna artéria de trânsito, um elo entre dois guetos. Do lado de Nova Iorque, a zona ribeirinha transformava-se rapidamente, devido à construção dos arranhacéus. Do nosso lado - o lado de Brooklyn -, os armazéns multiplicavam-se e os acessos às várias pontes davam origem a sentinas, mercados, salas de bilhar, papelarias, sorveterias, restaurantes, lojas de vestuário, casas de prego, etc. Em resumo, estava tudo a tornar-se metropolitano, no sentido odioso da palavra. Enquanto morámos no velho bairro, nunca nos referimos à Metropolitan Avenue: continuou a ser a North Second Street, apesar da mudança oficial de nome. Só devo ter cornpreendido que a North Second Street já não existia decorridos uns oito ou dez anos, num dia de Inverno em que parei à esquina da rua, virado para o rio, e reparei pela primeira vez na grande torre do Metropolitan Lie Insurance Building. O meu olhar espraiava-se então muito para além dos cemitérios, muito para além dos nos, muito para além da cidade de Nova Iorque ou do estado de Nova Iorque, muito para além de todos os Estados Unidos, até. Em Point Loma, na Califórnia, olhara para o largo Pacífico e pressentira qualquer coisa que me obrigava a virar permanentemente a cara noutra direcção. Lembro-me de que uma noite voltei ao velho bairro como meu amigo Stanley, que acabava de sair da tropa, e percorremos as ruas triste e melancolicamente. Um europeu, a bem dizer, não pode saber o que significa tal sensação. Na Europa, mesmo quando uma cidade é modernizada, ficam sempre vestígios da cidade antiga. Na América, mesmo que existam vestígios, são apagados, riscados da consciência, espezinhados, obliterados, anulados pelo que é novo. O novo é, de dia para dia, uma traça que vai devorando o tecido da vida, acabando por deixar apenas um grande buraco. Stanley e eu caminhámos através desse aterrador buraco. Nem uma guerra causa tal género de desolação e destruição. Por meio da guerra, uma cidade pode ser reduzida a cinzas e toda a sua população dizimada, mas o que volta a nascer depois assemelha-se ao antigo. A morte é fecundante, tanto para o solo como para o espírito. Trópico de Capricórnio 199 Na América, a destruição é completa, aniquiladora. Não há renascimento, há apenas um tumor canceroso, camada sobre camada de tecido novo, venenoso, cada uma dela mais horrenda do que a anterior. Caminhámos através desse enorme buraco, como disse, e estava uma noite de Inverno clara, gélida, tonificante. Ao passarmos pelo lado sul, a caminho da linha divisória, saudámos todas as antigas relíquias ou os lugares onde outrora tinham existido coisas, onde houvera algo de nós. Ao aproximarmo-nos da North Second Street, entre Fillmore Place e a North Street - uma distância de poucos metros, apenas, e contudo uma área do Globo tão cheia, tão rica -, diante da barraca de Mrs. O’Melio, parei e olhei para cima, para a casa onde soubera o que era realmente ter um ser. Tudo mirrava agora, tudo se reduzira a proporções diminutas, incluindo o mundo que ficava para além da linha divisória, o mundo que fora para mim tão misterioso e tão assustadoramente grande, tão delimitado. Ali parado, em transe, recordei de súbito um sonho que tenho tido repetidas vezes, que ainda tenho de vez em quando e que espero sonhar enquanto viver; o sonho de transpor a linha divisória. Como em todos os sonhos, o extraordinário é a vividez da realidade, o facto de sermos na realidade e não a sonhar. Do outro lado da linha divisória sou desconhecido e encontro-me completamente só. Até a língua é diferente. Na verdade, sou sempre olhado como um estranho, um estrangeiro. Disponho de tempo ilimitado e comprazo-me em vaguear pelas ruas. Devo dizer que há só uma rua: a continuação daquela onde morei. Chego finalmente a uma ponte metálica, por cima do caminho-de-ferro. Está sempre a anoitecer quando chego à ponte, embora ela fique a pouca distância da linha divisória. Olho para baixo, para a teia dos carris, para as estações de comboios de mercadorias, para os tenders, para os depósitos, e enquanto olho para esse aglomerado de estranhas substâncias em movimento ocorre uma metamorfose, tal qual como num sonho. coma transformação e a deformação, torno-me consciente de que se trata do velho sonho tantas vezes sonhado. Sinto um medo terrível de acordar e, na verdade, sei que acordarei em breve, precisamente no momento em que, no meio de um grande espaço descamPado, estou prestes a entrar na casa que contém algo da máxima 200 Henry Miller importância para mim. Quando me dirijo para essa casa, o terreno onde me encontro começa a tornar-se vago nas extremidades, a dissolver-se, a desaparecer. O espaço envolve-me e engole-me e, comigo, a casa em que nunca consigo entrar. Não há absolutamente nenhuma transição deste sonho, o mais agradável que conheço, para o âmago de um livro chamado Evolução Criadora. Neste livro de Henry Bergson, ao qual chego tão naturalmente como ao sonho da terra existente para além da linha divisória, encontro-me de novo completamente só, sou de novo um estrangeiro, um homem de idade indeterminada parado numa ponte metálica a observar uma metamorfose peculiar, externa e interna. Se esse livro não me tivesse vindo parar às mãos no preciso momento em que veio, talvez eu tivesse endoidecido. Chegou numa altura em que outro enorme mundo se desmoronava nas minhas mãos. Mesmo que não tenha percebido nada do que está escrito nesse livro, mesmo que tenha conservado apenas a recordação de uma única palavra - criadora -, foi suficiente. Essa palavra tornou-se o meu talismã. comela pude desafiar o mundo inteiro e especialmente os meus amigos. Há ocasiões em que temos de romper comos nossos amigos a fim de compreendermos o significado da amizade. Pode parecer estranho que o diga, mas a descoberta desse livro equivaleu à descoberta de uma arma, 4e uma ferramenta coma qual se me tornava possível ceifar todos os amigos que me rodeavam e que já não significavam nada para mim. Esse livro tornou-se meu amigo porque me ensinou que eu não tinha necessidade nenhuma de amigos. Deu-me a coragem de ficar só, e permitiu-me apreciar a solidão. Nunca compreendi o livro; houve ocasiões em que me pareceu estar à beira da compreensão, mas nunca o compreendi, verdadeiramente. Foi mais importante para mim não compreender. comesse livro nas mãos, lendo alto para os meus amigos, interrogando-os, explicando-lho, foi-me dado compreender claramente que não tinha amigos, que estava só no mundo. Pelo facto de nem eu nem os meus amigos cornpreendermos o significado das palavras, uma coisa se tornou muito clara: há maneiras de não compreender, e a diferença entre o não compreender de um indivíduo e o não compreender de outro cria um mundo de terra firme ainda mais sólido do que as diferenças de compreensão. Tudo quanto outrora julgara Trópico de Capricórnio 201 ter compreendido ruiu e pude partir do zero. Os meus amigos, pelo seu lado, entrincheiraram-se mais solidamente na pequena vala de compreensão que tinham escavado para si próprios. Morreram confortavelmente no seu leitozinho de compreensão, para se tornarem úteis cidadãos do mundo. Lamentei-os e, a breve trecho, abandonei-os um após outro, sem o mínimo desgosto. Mas que existia nesse livro capaz de significar tanto para mim e, contudo, permanecer obscuro? Volto à palavra criadora. Tenho a certeza de que todo o mistério reside na compreensão do significado dessa palavra. Quando penso, agora, no livro e no modo como o abordei, penso num homem a submeter-se aos ritos da iniciação. A desorientação e a reorientação inerentes à iniciação em qualquer mistério são a experiência mais maravilhosa que é possível ter. Tudo quanto o cérebro se esforçou durante uma vida inteira para assimilar, categorizar e sintetizar tem de ser desintegrado e reorganizado. Dia de mudança para a alma! E, claro, não se trata de coisa que dure um dia, mas sim semanas e meses. Encontramos um amigo na rua, por acaso, um amigo que não víamos havia semanas, e verificamos que ele se tornou um completo estranho para nós. Transmitimos-lhe alguns sinais do nosso novo poleiro e se ele não percebe passamos adiante definitivamente. É tal qual como limpar um campo de batalha: todos aqueles que estão irremediavelmente incapacitados e agonizantes são despachados comuma cacetada rápida. Seguimos para a frente, para novos campos de batalha, para vitórias ou derrotas. Mas avançamos! E o mundo avança connosco, comuma precisão aterradora. Procuramos novos campos de operação, novos exemplares da espécie humana que instruímos Cadentemente e a quem equipamos comos novos símbolos. As vezes escolhemos espécimes para os quais antes nunca teríamos olhado. Tentamos tudo e todos quantos estiverem ao nosso alcance, desde que ignorem a revelação. Foi desta maneira que me encontrei sentado na sala de remendos da loja do meu pai, a ler em voz alta para os judeus que lá trabalhavam. A ler-lhes da nova bíblia, do mesmo modo que Paulo deve ter falado aos discípulos. coma desvantagem, claro, de que estes pobres judeus não sabiam ler a língua inglesa. Dirigia-me principalmente a Bunchek, o talhador, que tinha uma mente rabínica. Abria o livro, escolhia uma passagem ao acaso e lia-a, transpondo-a para um inglês primitivo, macarrónico. Depois tentava explicar o que lera, escolhendo como exemplo e analogia coisas comas quais estavam familiarizados. Era surpreendente para mim verificar como compreendiam bem, como compreendiam muito melhor, digamos, do que um professor universitário, ou um literato, ou qualquer homem instruído. Naturalmente que, em última análise, o que eles compreendiam não tinha nada a ver como livro de Bergson como livro. Mas não seria esse o objectivo de um livro de tal género? A minha maneira de compreender um livro é que este desaparece da vista, é mastigado vivo, digerido e incorporado no sistema como carne e sangue, que, por sua vez, criam novo espírito e remodelam o mundo. Era um grande banquete de comunhão que cornpartilhávamos na leitura daquele livro, que tinha como característica mais importante o capítulo acerca de «Desordem», o qual, havendo penetrado completamente em mim, me dotou de uma noção de ordem tão maravilhosa que, se um cometa chocasse subitamente coma Terra e tirasse tudo dos seus lugares, virasse tudo de pernas para o ar e do avesso, se isso acontecesse eu seria capaz de me orientar na nova ordem num abrir e fechar de olhos. Já não tenho medo da desordem, nem ilusões a seu respeito, do mesmo modo que não tenho uma coisa nem outra acerca da morte. O labirinto é o meu terreno de caça preferido, e quanto mais penetro na confusão melhor me oriento. coma Evolução Criadora debaixo do braço, meto-me no comboio aéreo na Ponte de Brooklyn, depois do trabalho, e inicio a viagem para casa, para o cemitério. As vezes entro na estação de Delancey Street, no próprio coração do gueto, depois de uma longa caminhada pelas ruas apinhadas. Entro na linha do comboio aéreo pela via subterrânea, como um verme a ser empurrado através dos intestinos. Todas as vezes que ocupo o meu lugar entre a multidão que enche o cais, sei que sou o indivíduo mais especial, mais único que ali se encontra. Observo tudo quanto se passa à minha volta como um espectador de outro planeta. A minha língua, o meu mundo, estão debaixo do meu braço. Sou o guardião de um grande segredo; se abrisse a boca e falasse causaria um engarrafamento de Trópico de Capricórnio 203 trânsito. O que tenho para dizer, e o que guardo para mim, todas as noites, nesta viagem do escritório para casa, é absoluto dinamite. Ainda não estou preparado para arremessar o meu cartucho de dinamite. Mordisco-o meditativamente, ruminantemente, irresistivelmente. Mais cinco anos, talvez mais dez anos, e varrerei toda esta gente. Se, ao descrever uma curva, o comboio dá um sacão violento, digo para comigo: Óptimo! Descarrila, aniquila-os! Nunca penso que eu correria perigo se o comboio descarrilasse. Estamos comprimidos como sardinhas em lata e toda a carne quente que se aperta contra mim me distrai os pensamentos. Tomo consciência de um par de pernas enlaçadas nas minhas. Olho para a jovem sentada à minha frente, olho-a nos olhos, e comprimo ainda mais os joelhos entre as suas pernas. Fica inquieta, mexe-se no lugar e, por fim, volta-se para a rapariga sentada a seu lado e diz-lhe que a estou a molestar. As pessoas próximas olham-me comhostilidade. Continuo a olhar tranquilamente pela janela e finjo não ter ouvido nada. Mesmo que quisesse, não poderia retirar as pernas. Mas a rapariga, pouco a pouco e compuxões e contorções violentas, consegue desenlaçar as suas das minhas. Encontro-me quase na mesma situação coma que vai sentada a seu lado, aquela a quem ela se queixou. Quase no mesmo instante, sinto um contacto compreensivo e a seguir, comgrande surpresa, ouço-a dizer à outra rapariga que não se podem evitar semelhantes coisas, que a culpa não é minha, é, sim, da companhia, que nos transporta como gado. E sinto de novo o estremecer das suas pernas contra as minhas, uma pressão quente, humana, como um apertar de mãos. coma mão livre, consigo abrir o livro. O meu objectivo é duplo: primeiro, quero que ela veja a espécie de livro que leio; segundo, quero continuar coma linguagem das pernas sem dar nas vistas. Funciona às mil maravilhas. Quando o comboio se despeja um pouco, tenho possibilidade de me sentar a seu lado e de conversar comela - acerca do livro, naturalmente. É uma judia voluptuosa, comenormes olhos líquidos e a franqueza inerente à sensualidade. Quando chega a altura de nos apearmos, caminhamos de braço dado pelas ruas, a caminho da sua casa. Estou quase nos confins do velho bairro. Tudo me é familiar e, todavia, repulsivamente estranho. Há anos que não caminho por estas ruas e agora percorro-as comuma rapariga 204 Henry Milter Trópico de Capricórnio 205 judia do gueto, uma bonita rapariga comforte sotaque judaico. Pareço deslocado ao lado dela. Sinto que as pessoas nos olham, pelas costas. Sou o intruso, o goy que veio ao bairro para escolher uma rica cona madura. Ela, pelo seu lado, parece orgulhosa da conquista; exibe-me às amigas. Olhem, vejam o que arranjei no comboio, um goy instruído, sofisticado! Quase ouço os seus pensamentos. Enquanto caminho lentamente, you reconhecendo o terreno, fixando todos os pormenores práticos que decidirão se a procuro ou não depois do jantar. Não me passa pela cabeça convidá-la para jantar. É tudo uma questão das horas a que, onde e como, porque, segundo me informa um momento antes de chegarmos à sua porta, é casada comum caixeiro viajante - e, por isso, precisa de ter cuidado. Concordo em voltar e encontrar-me comela à esquina, defronte da doçaria, a determinada hora. Se quiser levar um amigo, ela levará uma amiga. Não, decido vê-la sozinho. Está combinado. Dá-me um aperto de mão e desaparece rapidamente num corredor sujo. Regresso, apressado, à estação, a fim de chegar a casa depressa e despachar o jantar. Está uma noite de Verão e tudo se escancara. Ao regressar para me encontrar comela, todo o passado desfila, caleidoscopicamente. Desta vez deixei o livro em casa. É de cona que you à procura e não penso sequer no livro. Estou de novo deste lado da fronteira, cada estação que passa torna o meu mundo mais pequeno. Sou quase criança quando chego ao meu destino - uma criança horrorizada coma metamorfose que se operou. Que me aconteceu, a mim, homem do 14.° Bairro, para estar a descer nesta estação, em busca de uma gaja judia? Suponhamos que lhe dou uma foda, e depois? Que tenho eu a dizer a uma rapariga como esta? Que é uma foda quando o que quero é amor? De súbito, desaba tudo sobre mim como um tornado... Una, a rapariga que amei, a rapariga que morava aqui, neste bairro, Una a dos grandes olhos azuis e cabelo de linho, Una, que me fazia tremer só de olhar para ela, Una, a quem tinha medo de beijar ou até de tocar na mão... Onde está Una? Sim, essa é a pergunta escaldante: Onde está Una? Em dois segundos, fico completamente desencorajado, completamente perdido, desolado, na mais horrível angústia e no pior dos desesperos. Como pude deixá-la partir? Porquê? Que aconteceu? Quando aconteceu? Pensava nela noite e dia, ano após ano, e de repente, sem dar sequer por isso, fugiu-me do pensamento, sem mais nem menos, como uma moeda que cai por um buraco da algibeira. Incrível, monstruoso, louco. Se teria bastado pedir-lhe que casasse comigo, pedir-lhe a mão! Se lho tivesse pedido, ela teria respondido sim, imediatamente. Amava-me, amava-me desesperadamente. Agora lembro-me, lembro-me do seu aspecto na última vez que nos vimos. Tinha-lhe ido dizer adeus porque partia nessa noite para a Califórnia, porque, abandonava tudo e todos para iniciar uma nova vida. E nunca tive intenção nenhuma de levar uma nova vida. Tencionara pedir-lhe que casasse comigo, mas a história que inventara saiu-me tão naturalmente dos lábios que eu próprio a acreditei e, por isso, disse adeus e afastei-me, e ela ficou parada a olhar-me, senti os seus olhos traspassarem-me, ouvi as suas entranhas rugir, mas continuei a andar como um autómato e, por fim, dobrei a esquina e acabou-se. Adeus! Assim, sem mais nada. Como num coma. E tencionara dizer-lhe vem comigo! Vem comigo porque não posso viver mais sem ti! Sinto-me tão fraco, tão pesado, que mal posso descer a escada do comboio aéreo. Agora sei o que aconteceu: transpus a linha divisória! Esta bíblia que tenho trazido comigo destina-se a instruir-me, a iniciar-me num novo modo de vida. O mundo que conheci já não existe, morreu, acabou-se. E tudo quanto fui acabou-se comele. Sou uma carcaça a levar uma injecção de vida nova. Sinto-me luminoso, cintilante, ferviIhante de novas descobertas, mas o centro ainda é chumbo, escórias. Desato a chorar, ali mesmo, na escada do comboio aéreo. Soluço alto, como uma criança. Uma coisa se me apresenta, comtoda a clareza: estás só no mundo. Estás só... só... só. É triste estar só... triste, triste, triste, triste. É uma coisa sem fim, inconsolável, mas é a sorte de todos os homens da Terra, e especialmente a minha... especialmente a minha. De novo a metamorfose. De novo tudo cambaleia e se inclina. Estou novamente no sonho, no sonho doloroso, delirante, agradável e enlouquecedor de além da linha divisória. Estou de pé no meio do terreno vago, mas não vejo a minha casa. Não tenho casa. O sonho foi uma miragem. Nunca existiu nenhuma casa no meio do terreno vago. Foi por isso que nunca pude entrar nela. A minha casa não é neste mundo, nem no fl^l 206 Henry Miller Trópico de Capricórnio 207 outro. Sou um homem sem casa, sem um amigo, sem mulher. Sou um monstro que pertence a uma realidade que ainda não existe. Ah, mas existe, existirá, tenho a certeza disso! Agora caminho rapidamente, de cabeça baixa, a falar sozinho. Esqueci o encontro tão completamente que nem reparei se passei por ela ou não. Provavelmente, passei. Provavelmente, olho-a de frente e não a reconheço. Provavelmente, ela também não me reconhece. Estou louco, louco de dor, louco de angústia. Estou desesperado. Mas não estou perdido. Não, há uma realidade a que pertenço. Fica longe, muito longe. Posso caminhar até ao Dia de Juízo, de cabeça baixa, sem nunca a encontrar. Mas existe, tenho a certeza disso. Olho para as pessoas sanguinariamente. Se pudesse atirar uma bomba e fazer todo o bairro em fanicos, atirá-la-ia. Sentir-me-ia feliz ao vê-los atirados pelo ar, estropiados, gritando, lacerados, aniquilados. Quero aniquilar a Terra inteira. Não faço parte dela. É uma loucura do princípio ao fim. É um enorme pedaço de queijo velho comvermes a banquetearemse no seu interior. Lixa-a! Fá-la em fanicos! Mata, mata, mata: mata-os a todos, judeus e gentios, novos e velhos, bons e maus... Torno-me leve, leve como uma pena, e o meu andar fica mais firme, mais calmo, mais regular. Que bela noite está! As estrelas brilham tão vivamente, tão serenamente, tão longinquamente! Não se pode dizer que trocem de mim, mas recordam-me a futilidade de tudo. Quem és tu, jovem, para falares da Terra e de fazeres tudo em fanicos? Jovem, estamos aqui suspensas há milhões, há biliões de anos. Vimos tudo, tudo, apesar disso continuamos a brilhar pacificamente todas as noites, a iluminar o caminho, a acalmar o coração. Olha à tua volta, jovem, vê como é tudo sereno e belo. Repara, até o lixo das valetas parece belo, a esta luz. Apanha essa folhinha de couve, pega-lhe comcuidado... Inclino-me e apanho a folha de couve caída na valeta. Parece-me absolutamente nova, um universo em si mesma. Parto-lhe um bocadinho e examino-o. Continua a ser um universo. Continua a ser indizivelmente bela e misteriosa. Quase sinto vergonha de a atirar de novo para a valeta. Inclino-me e deposito-a, cuidadosamente, junto do restante lixo. Fico muito pensativo, muito, muito calmo. Amo toda a gente. Sei que algures, neste próprio momento, está uma mulher à minha espera e que se proceder muito cal- l niamente, muito suavemente, muito lentamente, chegarei junto dela. Estará talvez à espera numa esquina e, quando eu aparecer, reconhecer-me-á. Reconhecer-me-á imediatamente. Acredito nisso, assim Deus me ajude como acredito! Acredito que tudo é justo e foi tudo determinado. A minha casa? Ora, é o mundo, o mundo inteiro! Estou em casa em toda a parte; agora sei-o, mas não o sabia. Já não há nenhuma linha divisória. Nunca houve nenhuma linha divisória: eu é que a inventei. Caminho lenta e deleitosamente pelas ruas. Pelas amadas ruas. Onde toda a gente caminha e toda a gente sofre sem o demonstrar. Quando paro e me encosto a um candeeiro para acender um cigarro, até o candeeiro me parece amigo. Não é uma simples coisa de ferro: é uma criação da mente humana, comcerto feitio, dobrada e formada por mãos humanas, soprada por hálito humano, colocada por mãos e pés humanos. Viro-me e passo a mão pela superfície de ferro. Quase parece falar-me. É um candeeiro humano. Pertence, como a folha de couve, como as peúgas rotas, como o colchão, como a pia da cozinha. Ocupa tudo uma certa posição, num certo lugar, como a nossa mente em relação a Deus. O mundo, na sua substância visível, tangível, é um mapa do nosso amor. A vida,, e não Deus, é amor, amor, amor. E, no seu meio mais meio, no meio do seu meio, caminha este jovem, eu próprio, que não é outro senão Gottlieb Leberecht Múller. Gottlieb Leberecht Múller! Este é o nome de um homem que perdeu a sua identidade. Ninguém lhe sabia dizer quem era, de onde viera ou o que lhe acontecera. Nas fitas, onde travara conhecimento como indivíduo, presumia-se que tivera um acidente na guerra. Mas, quando me reconheci a mim próprio na tela, sabendo que nunca estivera na guerra, percebi que o autor inventara essa pequena ficção a fim de não me desmascarar. Esqueço-me frequentemente de qual é o verdadeiro eu. Frequentemente, nos meus sonhos, tomo a poção do esquecimento, como se diz, e vagueio triste e desesperado, à procura do corpo e do nome que são meus. E, às vezes, entre o sonho e a realidade existe apenas a mais ténue das fronteiras. Às vezes, enquanto uma pessoa fala comigo, saio dos meus sapatos e, como uma planta a vogar coma corrente, inicio a viagem do meu eu desarraigado. Em semelhante estado, sou perfeitamente capaz de desempenhar as exigências correntes da vida: encontrar mulher, tornar-me pai, manter a família, receber amigos, ler livros, pagar impostos, cumprir o serviço militar, etc., por aí fora. Em semelhante estado sou capaz, se necessário for, de matar a sangue-frio por amor da minha família ou para proteger o meu país, ou seja lá pelo que for. Sou o cidadão vulgar, rotineiro, que responde quando o chamam por determinado nome e a quem é dado um número no passaporte. Sou absolutamente irresponsável pelo meu destino. Até que um dia, sem o mais pequeno aviso, desperto e, ao olhar em meu redor, não compreendo absolutamente nada do que se passa à minha volta, nem o meu próprio comportamento, nem o comportamento dos meus vizinhos, nem por que motivo os governos estão em guerra ou em paz, conforme seja o caso. Em tais momentos nasço de novo, nasço e sou baptizado como meu verdadeiro nome: Gottlieb Leberecht Múller! Tudo quanto faço sob o meu verdadeiro nome é considerado louco. As pessoas esboçam sinais furtivos pelas minhas costas, e às vezes até na minha cara. Sou obrigado a romper comos amigos, a família e os entes queridos. Sou obrigado a levantar o acampamento. E assim, tão naturalmente como a sonhar, encontro-me mais uma vez a vogar coma corrente, geralmente a caminhar por uma estrada fora, de rosto voltado para o Sol no poente. Então todas as minhas faculdades se aguçam. Sou o animal mais suave, mais furtivo, mais astuto - e sou ao mesmo tempo o que se poderia chamar um homem santo. Sei arranjar-me sozinho. Sei como evitar trabalhar, como evitar relações embaraçosas, como evitar cornpaixão, compreensão, coragem e todas as outras armadilhas. Permaneço num lugar ou comuma pessoa apenas o tempo suficiente para obter o que necessito, e depois parto de novo. Não tenho nenhuma meta: o vaguear sem destino é suficiente em si mesmo. Sou livre como um pássaro, firme como um equilibrista. Cai maná do céu e eu tenho apenas de estender as mãos para o receber. E deixo em toda a parte o mais agradável dos sentimentos, como se, ao aceitar as dádivas comque me cumulam, fizesse um verdadeiro favor aos outros. Mãos amoráveis até da minha roupa suja se encarregam. Porque toda a gente ama um homem que vive como deve ser! Gottlieb! Que belo nome! Gottlieb! Repito-o para comigo, muitas vezes. Gottlieb Leberecht Múller! Neste estado, tenho sempre ido parar ao meio de ladrões, vadios e assassinos. Mas como têm sido bondosos e brandos comigo! Como se fossem meus irmãos. E não o são, deveras? Não tenho sido culpado de todos os crimes e sofrido por isso? E não é precisamente por causa dos meus crimes que estou tão estreitamente unido ao meu semelhante? Tenho consciência deste laço secreto sempre que vejo um brilho de reconhecimento nos olhos da outra pessoa. Só os olhos dos justos nunca se iluminam. Só os justos nunca conheceram o segredo da camaradagem humana. São os justos que cometem os crimes contra o Homem, são os justos os verdadeiros monstros. São os justos que exigem as nossas impressões digitais, que nos provam que morremos mesmo quando nos encontramos diante deles em carne e sangue. São os justos que nos impõem nomes arbitrários, nomes falsos, que inscrevem datas falsas no registo e nos enterram vivos. Prefiro os ladrões, os vadios, os assassinos, a não ser que consiga encontrar um homem da minha estatura, da minha qualidade. Mas nunca encontrei tal homem! Nunca encontrei um homem tão generoso, tão clemente, tão tolerante, tão descuidado, tão temerário, tão limpo de coração como eu. Perdoo-me todos os crimes que cometi. Faço-o em nome da humanidade. Sei o que significa ser humano, a fraqueza e a força que isso implica. Esse saber faz-me sofrer e delicia-me, ao mesmo tempo. Se tivesse a possibilidade de ser Deus, recusá-la-ia. Se tivesse a possibilidade de ser uma estrela, recusá-la-ia. A oportunidade mais maravilhosa que a vida oferece é a de ser humano. Isso abarca todo o Universo. Inclui o conhecimento da morte, de que nem mesmo Deus desfruta. No ponto a partir do qual este livro é escrito, sou o homem que se baptizou de novo. Isso aconteceu há tantos anos, e sucederam tantas coisas entretanto, que é difícil voltar a esse momento e descrever a viagem de Gottlieb Leberecht Múller. No entanto, talvez possa fornecer uma pista se disser que o homem que sou agora nasceu de uma ferida. Essa ferida atingiu-o no coração. Segundo toda a lógica feita pelo homem, devia estar morto. Fui, de facto, dado por morto por todos quantos outrora me conheceram; caminhei como um fantasma no meio deles. Usavam o passado ao referir-se-me, lamentavam-me, enterravam-me cada vez mais profundamente. No 210 Henry Miller entanto, lembro-me como costumava rir-me então corno sempre -, como fazia amor comoutras mulheres, como saboreava o que comia e bebia e a cama macia a que me agarrava como um demónio. Algo me matara e, todavia, estava vivo. Mas estava vivo sem uma memória, sem um nome; estava isolado da esperança, cortara comela assim como como remorso e o desgosto. Não tinha passado, e provavelmente não teria futuro; estava enterrado vivo num vácuo que era a ferida que me tinham desferido. Era a própria ferida. Tenho um amigo que de vez em quando me fala do Milagre do Gólgota, do qual não percebo nada. Mas sei alguma coisa acerca da ferida miraculosa que recebi, da ferida que me matou aos olhos do mundo e da qual renasci e fui rebaptizado. Sei alguma coisa do milagre dessa ferida que vivi e que cicatrizou coma minha morte. Digo isto como se se tivesse passado há muito tempo, mas está sempre comigo. É tudo passado distante e aparentemente invisível, como uma constelação para sempre afundada abaixo do horizonte. O que me fascina é que uma coisa tão morta e enterrada como eu pudesse ressuscitar, e não apenas uma vez, mas sim inúmeras vezes. E mais: cada vez que me extingui, mergulhei mais profundamente no vazio, de modo que a cada ressuscitação o milagre se tornou maior. E nunca estigma algum! O homem que renasce é sempre o mesmo homem, mais e mais ele a cada renascimento. Cada vez que morre larga apenas a pele e, comela, os seus pecados. O homem que Deus ama é verdadeiramente um homem que vive como deve ser. O homem que Deus ama é a cebola comum milhão de peles. Largar a primeira pele é indizivelmente doloroso; a segunda, é menos doloroso; a seguinte ainda menos, e finalmente a dor torna-se agradável, cada vez mais agradável, um deleite, um êxtase. E depois não há nem prazer nem dor, há simplesmente a escuridão que cede perante a luz. E, à medida que a escuridão cede, a ferida sai do seu esconderijo: a fenda que é homem, que é amor de homem, fica banhada de luz. A identidade que estava perdida recupera-se. O homem sai da sua ferida aberta, da sepultura que trouxe consigo tanto tempo. No túmulo que é a minha memória vejo-a agora sepultada aquela que amei melhor do que tudo o mais, melhor do que o mundo, melhor do que Deus, melhor do que a minha própria Trópico de Capricórnio 211 carne e o meu próprio sangue. Vejo-a apodrecer nessa sangrenta ferida de amor, tão chegada a mim que não a conseguia distinguir da própria ferida. Vejo-a lutar para se libertar, para se purificar da dor do amor, e recair na ferida a cada tentativa, atolada, sufocada, debatendo-se em sangue. Vejo a terrível expressão dos seus olhos, a comovente agonia muda, o olhar de fera encurralada. Vejo-a abrir as pernas para se libertar e cada orgasmo transformar-se num gemido de angústia. Ouço as paredes cair, as paredes abaterem-se sobre nós e a casa explodir em chamas. Ouço-os chamaremnos da rua, o chamamento para o trabalho e o chamamento às armas, mas estamos pregados ao chão e os ratos mordem-nos. O túmulo e útero de amor sepultando-nos, a noite enchendo-nos as vísceras e as estrelas cintilando no lago preto sem fundo. Perco a memória das palavras, e até do nome dela, que pronuncio como um monomaníaco. Esqueci como ela era, que sensação causava o seu contacto, a que cheirava, como fodia, enterrando-me mais e mais profundamente na noite da insondável caverna. Seguia ao buraco mais fundo do seu ser, ao cemitério da sua alma, ao sopro que ainda não expirou nos seus lábios. Procurei incansavelmente aquela cujo nome não estava-escrito em parte nenhuma, penetrei até ao próprio altar... e não encontrei nada. Enrolei-me nessa casca oca de nada, como uma serpente de anéis ardentes. Permaneci imóvel durante seis séculos, sem respirar, enquanto os acontecimentos do Mundo se coavam e formavam no fundo um leito de muco viscoso. Vi as constelações girarem à volta do imenso buraco do tecto do Universo; vi os planetas exteriores e a estrela preta que me libertaria. Vi o Dragão libertar-se de dharma e karma, vi a nova raça de homens fervilhar na gema da futuridade. Vi tudo, até ao último sinal e símbolo, mas não pude ler a cara dela. Vi apenas os seus olhos brilharem, imensos, carnudos, luminosos, como se eu nadasse por trás deles, nos eflúvios eléctricos da sua visão. Como se expandira ela assim, para lá de quanto está ao alcance da percepção? Por que lei monstruosa alastrara assim pela face do mundo, revelando tudo e, todavia, escondendo-se a si própria? Estava escondida na face do Sol, como a Lua em eclipse; era um espelho que perdera o estanho, um espelho que devolvia tanto a imagem como o horror. Olhando para dentro do fundo dos seus olhos, para dentro da carne polposa 212 Henry Miller Trópico de Capricórnio 213 e translúcida, vi a estrutura cerebral de todas as formações, de P todas as relações, de toda a evanescência. Vi o cérebro dentro l* do cérebro, a máquina infinita girando infinitamente, a pala- 4 vra Esperança rolando num espeto, assando, pingando gor- * dura, rolando incessantemente na cavidade do terceiro olho. Ouvi os seus sonhos murmurados em línguas desaparecidas, os gritos abafados ecoando em minúsculas fendas, os arquejos, os gemidos, os suspiros de prazer, o silvar de chicotes brandidos. Ouvi-a chamar o meu próprio nome por mim ain- , da não proferido, ouvi-a amaldiçoar e guinchar de raiva. Ouvi tudo amplificado mil vezes, como um homúnculo aprisiona1 do no ventre de um órgão. Captei a respiração abafada do Mundo, como se estivesse imobilizado na própria encruzilhada do som. Assim caminhámos, e dormimos, e comemos juntos, gémeos siameses que o Amor unira e que só a Morte podia separar. Caminhámos de pernas para o ar, de mãos dadas, no gargalo da garrafa. Ela quase exclusivamente vestida de preto, exceptuando manchas purpúreas de quando em quando. Não usava roupa interior, apenas um simples vestido de veludo ( preto saturado de um perfume diabólico, íamos para a cama ao alvorecer e levantávamo-nos quando começava a escurecer. Vivíamos em buracos pretos comas cortinas cerradas, comia- . mós em pratos pretos, líamos livros pretos. Olhávamos do buraco preto da nossa vida para o buraco preto do mundo. O Sol estava permanentemente escurecido, como para nos ajudar na nossa contínua luta mortal. Em vez de Sol tínhamos Marte, em vez de Lua, Saturno; vivíamos permanentemente no zénite do mundo subterrâneo. A Terra deixara de girar e através do buraco do céu, por cima de nós, pendia a estrela preta que nunca cintilava. De vez em quando, tínhamos acessos de riso, dávamos gargalhadas loucas e batraquianas que faziam os vizinhos estremecer. De vez em quando, cantávamos, delirantes, desafinados, tremolo. Estávamos fechados durante a longa noite escura da alma, um período de tempo incomensurável que começava e acabava como um eclipse. Girávamos à roda dos nossos próprios egos, como satélites fantasmas. Estávamos bêbedos da nossa própria imagem, que víamos quando fitávamos os olhos um do outro. Como parecíamos então aos outros? Como a fera parece à planta, como as estrelas parecem à fera. Ou como Deus pareceria ao homem, se o Demónio lhe tivesse dado asas. E comtudo isso, na fixa e estreita intimidade de uma noite sem fim, ela era radiante, jubilosa, emanava uma jubilação ultrapreta, como um contínuo jorro de esperma do Touro Mitraico. Tinha dois canos como uma caçadeira, era um touro-fêmea comum maçarico a acetileno no útero. No cio, fitava o grande cosmocrator, revirava os olhos, babava-se. No buraco cego do sexo valsava como um rato amestrado, de mandíbulas desencaixadas como uma serpente e pele horripilante, toda de plumas farpadas. Tinha a lascívia insaciável de um unicórnio. Até o buraco do céu através do qual brilhava a estrela preta era engolido pela sua fúria. Vivíamos colados ao tecto, comas emanações quentes e rançosas da vida de todos os dias a subirem e a suíocarem-nos. Vivíamos ao calor do mármore, como clarão ascendente da carne humana a aquecer os anéis serpentiformes em que nos enroscávamos. Vivíamos presos nos abismos mais fundos, comos fumos da paixão mundana a deixar-nos a pele da cor de cinza de charuto. Como duas cabeças espetadas nos piques dos nossos executores, girávamos lenta e fixamente sobre as cabeças e os ombros do Mundo que ficava em baixo. Que era a vida na terra sólida para nós, que estávamos decapitados e para sempre unidos pelos órgãos genitais? Éramos as serpentes gémeas do Paraíso, lúcidas no cio e frias como o próprio caos. A vida era um perpétuo foder preto à volta de um pólo fixo de insónia. A vida era Escorpião em conjunção comMarte, em conjunção comMercúrio, em conjunção comVénus, em conjunção comSaturno, em conjunção comPlutão, em conjunção comUrano, em conjunção commercúrio, láudano, rádio, bismuto... A grande conjunção era sempre a noite de sábado, o Leão a fornicar como Drago na casa do irmão e da irmã. O grande malheur era um raio de sol filtrando-se pelas cortinas. A grande praga era Júpiter, o rei dos peixes, que podia lançar um olhar benévolo. A razão por que é difícil contar deve-se ao facto de eu lembrar demasiado. Lembro-me de tudo, mas como um boneco sentado no colo de um ventríloquo. Tenho a sensação de que, durante o longo e ininterrupto solstício conubial, estive 214 Henry Miller sentado no colo dela (mesmo quando ela estava de pé) e disse as palavras que me ensinou. Tenho a sensação de que ela deve ter ordenado ao principal canalizador de Deus que mantivesse a estrela preta a brilhar através do buraco do tecto, lhe deve ter ordenado que lançasse para baixo uma noite perpétua e, comela, todos os tormentos rastejantes que se movem silenciosamente no escuro, de modo que a mente se transforma numa sovela giratória, a furar freneticamente no nada preto. Imaginarei apenas que ela falava incessantemente, ou ter-meia tornado um boneco tão maravilhosamente treinado que interpretava o pensamento antes de ele chegar aos lábios? Os lábios estavam finamente entreabertos, alisados por uma pasta espessa de sangue escuro; observava-os a abrirem-se e a fecharem-se comextrema fascinação, quer sibilassem um ódio de víbora, quer arrulhassem como uma rola. Estavam sempre em close up, como nos cartazes dos filmes, de modo que eu conhecia todas as suas fendas, todos os seus poros e, quando a baba histérica começava, viaa espumar, desfazer-se em vapor, como se estivesse sentado numa cadeira de balanço debaixo das cataratas do Niagara. Aprendi o que devia fazer como se fosse uma parte do seu organismo; era melhor do que o boneco de um ventríloquo, pois actuava sem precisar de ser violentamente sacudido por cordas. De quando em quando, fazia coisas de improviso, e isso às vezes agradava-lhe enormemente. Ela fingia, claro, não dar por tais irrupções, mas eu percebia sempre quando ficava satisfeita, pelo modo como se envaidecia. Tinha o dom da transformação, era quase tão rápida e subtil como o próprio Diabo. Depois da pantera e do jaguar, no que melhor se transformava era em ave: a garça selvagem, o íbis, o flamingo, o cisne comcio... Tinha uma maneira especial de descer a pique, subitamente, quando localizava uma carcaça podre, de ir direita aos intestinos, de se atirar imediatamente aos petiscos - coração, fígado ou ovários - e de levantar de novo voo, num abrir e fechar de olhos. Se alguém a via, ficava imóvel na base de uma árvore, comos olhos não completamente fechados, mas coma fixidez do basilisco. Se a espicaçavam um pouco, transformava-se numa rosa, numa rosa negra comas pétalas mais aveludadas que se possa imaginar e emanando um perfume avassalador. E espantosa a maneira como aprendi a conhecer a deixa. Por muito rápida que Trópico de Capricórnio 215 fosse a metamorfose, estava sempre no seu colo, fosse ele colo de ave ou de animal, de serpente ou de rosa: o colo dos colos, o lábio dos lábios, bico combico, pena compena, a gema no ovo, a pérola na ostra, uma garra de cancro, uma tintura de esperma e cantáridas. A vida era Escorpião em conjunção comMarte, em conjunção comVénus, Saturno, Urano, etc.; o amor era conjuntivite de mandíbulas, agarra isto, agarra aquilo, agarra, agarra, o agarrar mandibular da roda da luxúria. Chegada a hora da refeição, ouvia-a descascar os ovos e, dentro do ovo, chip-chip, abençoado augúrio da próxima refeição. Comia como um monomaníaco: coma prolongada e sonhadora voracidade de um homem que quebra triplamente o jejum. E enquanto eu comia ela ronronava, como ronronar ritmado e predador do súcubo a devorar as crias. Que maravilhosa noite de amor! Saliva, esperma, sucubação, esfincterite, tudo ao mesmo tempo: a orgia conjugal no Buraco Preto de Calcutá. Lá onde a estrela preta pendia, um silêncio pan-islâmico, como no mundo cavernículo onde até o vento é silenciado. Lá, se ousasse meditar nisso, a quietude espectral da insanidade, o mundo dos homens embalados, exaustos por séculos de carnificina incessante. Lá, uma membrana ensanguentada e circundante dentro da qual tinha lugar toda a actividade, o mundo-herói de lunáticos e maníacos que tinham apagado a luz do céu comsangue. Como era pacífica a nossa vidinha de pomba-abutre no escuro! Carne para nela cravar dentes ou pénis, carne abundante e odorosa sem nenhuma marca de faca ou tesoura, sem nenhuma cicatriz de estilhaços de explosão, sem queimaduras de gás de mostarda, sem pulmões escaldados. Tirando o alucinante buraco no tecto, uma vida uterina quase perfeita. Mas o buraco estava lá - como uma fissura na bexiga - e não havia algodão que conseguisse tapá-lo permanentemente, não havia urina que conseguisse passar comum sorriso. Mijar à larga e livremente, sim, mas como esquecer a fenda no campanário, o silêncio inatural, a iminência, o terror, a condenação do «outro» mundo? Comer uma barrigada, sim, e amanhã outra barrigada, e amanhã, e amanhã... mas finalmente, o quê? Finalmente! O que era finalmente? Uma mudança de ventríloquo, uma mudança de colo, uma mudança do eixo, outra fenda na abóbada... o quê”! O quê? Eu lhes 216 Henry Miller digo... Sentado no colo dela, petrificado pelos raios imóveis e forcados da estrela preta, dobrado, freado, atrelado e trepanado pela acuidade telepática da nossa agitação interactiva, não pensava em nada, absolutamente em nada, que fosse exterior à cela que habitávamos, nem sequer pensava numa migalha numa toalha de mesa branca. Pensava puramente dentro das paredes da nossa vida amébica, pensava só o pensamento puro que Manuel Pés-de-lã Kant nos deu e que só uma boneca de ventríloquo podia reproduzir. Estudava todas as teorias científicas, todas as teorias de arte, todos os grãos de verdade de todos os malucos sistemas de salvação. Calculava tudo até à expressão de um pontinho de alfinete, comdecimais gnósticos e tudo, como primes que um bêbedo distribui no fim de uma corrida de seis dias. Mas era tudo calculado para outra vida que outra pessoa qualquer viveria um dia - talvez. Estávamos mesmo no gargalo da garrafa, ela e eu, mas o gargalo da garrafa fora partido e a garrafa era apenas uma ficção. Lembro-me de que, na segunda vez que a encontrei, me disse que não esperara voltar a ver-me, e quando a vi na vez seguinte pensou que eu era um viciado em droga, e na seguinte chamou-me deus, e depois disso tentou cometer suicídio, e depois tentei eu, e depois tentou ela outra vez, e não deu resultado nenhum a não ser unir-nos mais, unir-nos tanto que nos interpenetrámos, trocámos personalidades, nomes, identidades, religiões, pais, mães e irmãs. Até o seu corpo sofreu uma mudança radical, não apenas uma vez, mas sim diversas vezes. Ao princípio era grande e aveludada como o jaguar, coma força sedosa e enganosa dos felinos, encolhendo-se e saltando como eles. Depois tornou-se emaciada, frágil, delicada, quase como uma centáurea-azul, e a cada mudança que em seguida se operou passou pelas mais subtis modulações - de pele, musculatura, cor, postura, odor, andar, gestos, etc. Mudava como um camaleão. Ninguém sabia dizer como ela era realmente, pois a cada mudança tornava-se uma pessoa inteiramente diferente. Passado algum tempo, nem ela própria sabia como era. Iniciara esse processo de metamorfose antes de eu a conhecer, como mais tarde vim a descobrir. Como tantas mulheres que se julgam feias, decidira tornar-se bonita, estonteantemente bonita. Para isso começara por renunciar ao nome e depois à família, aos amigos e a tudo quanto pudesse Trópico de Capricórnio 217 ligá-la ao passado. Dedicara-se, comtoda a inteligência e todas as faculdades, ao cultivo da sua beleza, do seu encanto, os quais já possuía em alto grau, mas que fora levada a crer serem inexistentes. Passava a vida diante do espelho, a estudar todos os movimentos, todos os gestos, a mínima careta. Modificou por completo o modo de falar, a dicção, a entoação, o sotaque e a fraseologia. Fazia tudo isso comtanta perícia que era impossível abordar, sequer, o assunto das origens. Estava constantemente na defensiva, até quando dormia. E, como um born general, não tardou a descobrir que a melhor defesa era o ataque. Nunca deixava uma única posição desocupada; tinha postos avançados, batedores e sentinelas em toda a parte. A sua mente era um holofote giratório, cuja luz nunca diminuía. Cega para a própria beleza, para o próprio encanto e para a própria personalidade, para já não falar da identidade, empenhou todas as faculdades na criação de uma criatura mítica, uma Helena ou uma Juno a cujos encantos nem homem nem mulher saberiam resistir. Automaticamente, sem o mínimo conhecimento da lenda, começou a criar pouco a pouco os antecedentes ontológicos, a sequência de acontecimentos mítica precedente ao nascimento consciente. Não precisava de se lembrar das suas mentiras, das suas ficções; bastava-lhe não se esquecer do seu papel. Não havia, para ela, mentira demasiado monstruosa, pois no papel que adoptara era absolutamente fiel a si mesma. Não tinha de inventar um passado: lembrava-se do passado que lhe pertencia. Nunca era flanqueada por uma pergunta directa, pois nunca se apresentava a um adversário a não ser obliquamente. Apresentava somente os ângulos das facetas em constante mutação, os prismas ofuscantes de luz que mantinha em movimento contínuo. Não era nunca um ser que pudesse ser surpreendido em repouso; era um mecanismo, o mecanismo que punha incansavelmente em funcionamento a miríade de espelhos destinados a reflectir o mito que ela criara. Não tinha «pose» absolutamente nenhuma; encontrava-se eternamente acima das suas múltiplas identidades, no vácuo do eu. Não pretendera transformar-se numa figura lendária; quisera meramente que a sua beleza fosse reconhecida. Mas, na procura da beleza, não tardou a esquecer por completo o que perseguia e a tornar-se vítima da sua própria criação. Tornou-se tão espantosamente bela que 218 Henry Miller umas vezes era assustadora e outras positivamente mais feia do que a mulher mais feia do Mundo. Conseguia inspirar horror e medo, principalmente quando o seu encanto atingia o apogeu. Era como se a verdade, cega e incontrolável, brilhasse através da criação, revelando o monstro que é. Na escuridão, fechado no buraco negro sem mundo nenhum a observar, sem nenhum adversário nem nenhum rival, o ofuscante dinamismo da vontade desacelerava um pouco, dava-lhe um brilho acobreado, comas palavras a saírem-lhe da boca como lava, a carne a procurar vorazmente onde se agarrar, um poleiro sólido e substancial, qualquer coisa em que se pudesse reintegrar e repousar alguns momentos. Era como uma frenética chamada de longa distância, um S. O. S. de um navio a afundar-se. Ao princípio, interpretei isso erradamente por paixão, pelo êxtase produzido pelo roçar de carne contra carne. Pensei que encontrara um vulcão vivo, um vesúvio. Nunca me passou pela cabeça a ideia de um barco humano a afundar-se num oceano de desespero, num mar de sargaços de impotência. Agora penso na estrela preta que brilhava através do buraco do tecto, na estrela fixa suspensa sobre a nossa cela conjugal, mais fixa e mais remota do que o Absoluto, penso nisso e sei que era ela, vazia de tudo quanto era verdadeiramente ela própria: um morto sol preto sem aspecto. Sei que conjugávamos o verbo amar como dois maníacos tentando foder-se através de um portão de ferro. Disse que, no frenético corpo a corpo travado no escuro, algumas vezes lhe esqueci o nome, como ela era, quem era. É verdade. Ultrapassava-me no escuro. Saía dos carris da carne para o infinito espaço do sexo, para as órbitas sulcais estabelecidas por esta ou por aquela: Georgiana, por exemplo, apenas durante uma breve tarde; Thelma, a meretriz egípcia; Carlota; Anallah; Una; Mona; Magda; rapariguinhas de seis ou sete anos; crianças abandonadas; fogos-fátuos; rostos; corpos; coxas; um sonho, uma recordação; um desejo; uma saudade. Podia começar pela Georgiana de uma tarde de domingo perto da via férrea, como seu vestido suíço às pintas, as suas ancas ondulantes, a sua arrastada fala sulista, a sua boca lasciva e os seus seios em fusão; podia começar pela Georgiana, o candelabro sexual comuma miríade de braços, podia começar por ela e seguir para a esquerda, para a direita, para cima e para Trópico de Capricórnio 219 baixo, através da ramificação de conas até à enésima dimensão do sexo, mundo sem fim. Georgiana era como a membrana do minúsculo ouvido de um monstro inacabado chamado sexo. Estava transparentemente viva e respirando, à luz da recordação de uma breve tarde na avenida, o primeiro odor e a primeira substância tangíveis do mundo da foda, que é em si mesmo um mundo ilimitado e indefinível, como o nosso mundo é o mundo. Todo o mundo da foda até à sempre crescente membrana do animal a que chamamos sexo, que é como outro ser crescendo no nosso próprio ser e desalojando-o gradualmente, de modo que, a certa altura, o mundo humano passa a ser apenas uma vaga recordação desse novo ser todo-inclusivo e todo-procriativo que dá à luz a si próprio. Foi precisamente essa copulação serpentiforme no escuro, foram essas relações desarticuladas e loucas que me meteram no colete-de-forças da dúvida, do ciúme, do medo e da solidão. Se começava o meu ponto aberto por Georgiana e pelo candelabro sexual comuma miríade de braços, tinha a certeza de que ela também se deitava ao trabalho a fazer membranas, orelhas, olhos, dedos, escalpo, e sei lá que mais, do sexo. Começaria pelo monstro que a violentou, presumindo que havia alguma verdade nessa história; de qualquer modo também começaria algures, num trilho paralelo, trabalhando para cima e para os lados, através desse ser multiforme e destruído por intermédio de cujo corpo tentávamos ambos desesperadamente encontrar-nos. Conhecendo apenas uma fracção da sua vida; possuindo somente um saco de mentiras, de invenções, de imaginações, de obsessões e ilusões; reunindo pontas soltas, sonhos de cocaína, devaneios, frases incompletas, um amontoado de palavras oníricas, delírios histéricos, fantasias mal disfarçadas e desejos mórbidos; encontrando de quando em quando um nome tornado carne; ouvindo pedaços soltos de conversas; observando olhares disfarçados e gestos interrompidos; conhecendo, possuindo, reunindo, encontrando, ouvindo e observando apenas isso e tudo isso, fácil me era acreditá-la comum panteão de deuses fornicadores próprios, de criaturas bem vivas de carne e sangue, de homens talvez daquela mesma tarde, ou talvez de apenas uma hora atrás, fácil me era imaginar-lhe a cona atafulhada do esperma da última foda. Quanto mais submissa se mostrava, quanto mais 220 Henry Miller apaixonadamente se comportava, quanto mais parecia abandonar-se, tanto mais incerto, duvidoso, me tornava. Não havia nenhum princípio, nenhum ponto de partida pessoal, individual; encontrávamo-nos como espadachins experientes no campo da honra, ora apinhado comos fantasmas de vitória e derrota. Estávamos atentos e reagíamos ao mínimo ataque, como só os experimentados sabem fazer. Reuníamo-nos ao abrigo das trevas, comos nossos exércitos e, vindos de lados opostos, forçávamos as portas da cidadela. Nada resistia à nossa obra sanguinária; não pedíamos nem dávamos quartel. Reuníamo-nos a nadar em sangue, era uma ensanguentada e glauca reunião na noite, comtodas as estrelas apagadas, excepto a estrela preta fixa, suspensa como um escalpo por cima do buraco do tecto. Se estava devidamente drogada, vomitava como um oráculo, vomitava tudo quanto lhe acontecera durante o dia, ontem, anteontem, havia dois anos, vomitava tudo, até ao dia em que nascera. E nem uma palavra era verdade, nem um único pormenor. Não parava um momento, pois se parasse o vácuo que criara na sua fuga provocaria uma explosão capaz de rebentar o Mundo. Era a máquina mundial de mentir em microcosmos, accionada pelo mesmo medo infinito e devastador que permite aos homens empenhar todas as suas energias na criação do aparelho da morte. Quem olhasse para ela julgá-la-ia destemida, julgá-la-ia a personificação da coragem. E era-o, desde que não tivesse de retroceder sobre os próprios passos. Atrás dela encontrava-se o facto sereno da realidade, um colosso que fintava todos os seus passos. Todos os dias essa colossal realidade adquiria novas proporções, todos os dias se tornava mais aterradora, mais paralisante. Todos os dias ela precisava de asas mais rápidas, de dentes mais aguçados, de olhos mais penetrantes e hipnóticos. Era uma corrida para os extremos limites do Mundo, uma corrida perdida desde o princípio e sem nada que pudesse detê-la. Na orla do vácuo encontrava-se a Verdade, preparada para recuperar o terreno roubado num gesto rápido como o relâmpago. Isso era tão simples e óbvio que a enlouquecia. Mesmo que pudesse comandar mil personalidades, ter sob a sua direcção os maiores canhões, enganar os maiores cérebros e meter pelos mais longos atalhos, mesmo assim o fim seria a derrota. No encontro final estava Trópico de Capricórnio 221 tudo destinado a ruir - a astúcia, a perícia, a força: tudo. Seria um grão de areia na costa do maior dos oceanos e, pior ainda, assemelhar-se-ia a todos os outros grãos de areia dessa costa. Seria condenada a reconhecer o seu eu único em toda a parte, até ao fim do tempo. Que destino escolhera! Que a sua singularidade tivesse de ser avassalada pelo universal! Que a sua força, o seu poder, tivessem de ser reduzidos ao máximo da passividade! Era enlouquecedor, alucinante. Não podia ser! Não devia ser! Em frente! Como as legiões negras. Em frente! Através de todos os graus do círculo sempre a alargar. Em frente e para longe do eu, até a última partícula de substância da alma ser esticada até ao infinito. No pânico da sua fuga, parecia levar o Mundo inteiro no útero. Estávamos a ser repelidos dos confins do Universo para uma nebulosa que nenhum instrumento permitia visualizar. Estávamos a ser impelidos para uma pausa tão parada, tão prolongada, que a morte, comparada comela, parece uma louca bacanal de bruxas. De manhã, olhava para a cratera exangue da sua cara. Nem um vinco, nem uma ruga, nem uma única mácula! A expressão do anjo nos braços do Criador. Quem matou Cock Robin? Quem chacinou os Iroqueses? Eu não fui, podia responder o meu anjo encantador, e quem seria capaz de duvidar dela, ao ver-lhe aquele rosto puro e inocente? Quem seria capaz de ver naquele sono de inocência que metade do rosto pertencia a Deus e a outra metade a Satanás? A máscara era suave como a morte, calma, deliciosa ao contacto, cerácea, uma pétala oferecida à mais doce das brisas. Era tão sedutoramente calma e sincera que uma pessoa se podia afogar nela, como corpo e tudo, como um mergulhador, e nunca mais voltar. Até os olhos se abrirem para o mundo jazia assim, totalmente extinta e brilhando comuma luz reflectida, como a Lua. Fascinava ainda mais naquele transe de inocência que se assemelhava à morte; os seus crimes dissolviam-se, esvaíam-se através dos poros, jazia enrolada como uma serpente adormecida presa à terra. O corpo forte, flexível, musculoso, parecia possuidor de um peso sobrenatural; tinha uma gravidade mais do que humana, a gravidade, quase se poderia dizer, de um cadáver morno. Era como podíamos imaginar que fora a bela Nefertite após os primeiros mil anos de mumificação, uma maravilha de perfeição mortuária, um sonho de carne preser- vada da mortal decomposição. Jazia enrolada na base de urna pirâmide oca, entesourada no vácuo por ela própria criado como uma sagrada relíquia do passado. Até a respiração parecia parada, tão profundo era o seu sono. Caíra abaixo da esfera humana, abaixo da esfera animal, abaixo até da esfera vegetativa: descera ao nível do mundo mineral, onde a animação está apenas uma marca acima da morte. Dominara tão bem a arte do engano que nem o sonho era capaz de a trair. Aprendera a não sonhar; quando se enroscava a dormir, desligava automaticamente a corrente. Se fosse possível apanhá-la assim e abrir-lhe o crânio, este seria encontrado completamente vazio. Não guardava quaisquer segredos perturbantes; tudo quanto podia ser humanamente mono, era morto. Podia viver assim interminavelmente, como a Lua, como qualquer planeta morto, irradiando uma efulgência hipnótica, criando marés de paixão, mergulhando o Mundo em loucura, descolorando todas as substâncias terrestres comos seus magnéticos raios metálicos. Semeando a própria morte, tornava febris quantos a rodeavam. Na horrível imobilidade do seu sono renovava a própria morte magnética pela união como magma frio dos mundos planetários sem vida. Estava magicamente intacta. O seu olhar fitava-nos comuma fixidez traspassadora: era o olhar-lua através do qual o dragão morto da vida exalava um fogo frio. Um olho era castanho-quente, da cor de uma folha outonal; o outro tinha um torn de avelã, era um olho magnético que tremeluzia como a agulha de uma bússola. Até a dormir esse olho continuava a tremeluzir sob a protecção da pálpebra; era o seu único sinal aparente de vida. Assim que abria os olhos ficava completamente acordada. Despertava comum sobressalto violento, como se o espectáculo do Mundo e da sua parafernais humana fosse um choque para ela. Lançavase acto contínuo em grande actividade, investindo para um lado e para o outro como uma grande pitão. O que a perturbava era a luz! Acordava a amaldiçoar o sol, a amaldiçoar o clarão da realidade. O quarto tinha de ser escurecido, as velas acesas e as janelas hermeticamente fechadas, para impedirem a entrada aos ruídos da rua. Andava de um lado para o outro, nua, comum cigarro pendente do canto da boca. Os seus arranjos pessoais eram motivo de grande preocupação; havia que ter em conta mil pormenores insignificantes, antes que pudesse enfiar um roupão que fosse. Era como um atleta a preparar-se para a grande prova do dia. Desde as raízes dos cabelos, que estudava comviva atenção, até à forma e ao comprimento das unhas dos pés, toda a sua anatomia era minuciosamente inspeccionada, antes de se sentar para tomar o pequeno-almoço. Disse que era como um atleta, mas na realidade era mais como um mecânico a vistoriar um avião veloz, para um voo experimental. Uma vez enfiado o vestido, estava lançada para o dia, para o voo que talvez terminasse em Irkutsk ou em Teerão. Ao pequeno-almoço metia combustível suficiente para todo o voo. O pequeno-almoço era uma coisa prolongada, a única cerimónia do dia em que se demorava. Era mesmo exasperantemente prolongado. Uma pessoa até perguntava a si mesma se ela alguma vez levantaria voo, se teria esquecido a grande missão que jurara cumprir todos os dias. Talvez estivesse a sonhar como itinerário, ou talvez não estivesse a sonhar, sequer, e sim a dar à sua maravilhosa máquina o tempo necessário para se preparar, a fim de que, uma vez iniciada a viagem, não precisasse de voltar para trás. Mostrava-se muito calma e senhora de si a essa hora do dia; era como uma grande ave empoleirada num penhasco montanhoso, a observar sonhadoramente o terreno que ficava em baixo. Não era da mesa do pequeno-almoço que levantava bruscamente voo, para se lançar a pique sobre a sua presa. Não. Do poleiro matinal levantava voo lenta e majestosamente, sincronizando todos os movimentos como pulsar do motor. Todo o espaço se abria à sua frente; só o capricho lhe ditava a direcção. Seria quase a imagem da liberdade, não fora o peso saturniano do seu corpo e a anormal envergadura das suas asas. Por muito serena que parecesse, principalmente na descolagem, pressentia-se o terror que motivava o voo diário. Ao mesmo tempo que obedecia ao seu destino, sentia uma vontade frenética de o vencer. Todas as manhãs levantava voo do seu poleiro, como de qualquer pico dos Himalaias; parecia sempre dirigir o seu voo para qualquer região que os mapas não registavam e na qual, se tudo corresse bem, desapareceria Para sempre. Cada manhã parecia levar consigo, para o ar, essa esperança desesperada, de último minuto; despedia-se comuma dignidade calma e grave, como quem se prepara para descer à sepultura. Nem uma vez descrevia círculos so.,áá-*^ 224 Henry Miller bre o campo de voo, nem uma vez lançava uni olhar para trás para aqueles que abandonava. Tãopouco deixava atrás de si a mínima migalhinha de personalidade; fazia-se ao ar comtodos os seus pertences, comtudo quanto pudesse constituir prova do facto da sua existência. Nem sequer deixava o sopro de um suspiro, um pedaço de unha que fosse. Era uma saída total, como o próprio Demónio poderia fazer por razões que só a ele diziam respeito. Ficávamos comum grande vazio nas mãos. Ficávamos abandonados, e não só abandonados, mas também traídos, desumanamente traídos. Não sentíamos desejo nenhum de a deter nem de lhe gritar que voltasse para trás; ficávamos comuma praga nos lábios, comum ódio negro que obscurecia o dia inteiro. Mais tarde, ao andarmos pela cidade, ao movermo-nos coma lentidão característica do pedestre, ao rastejarmos como o verme, captávamos rumores do seu voo espectacular: tinha sido vista a sobrevoar certo ponto, descera a pique aqui ou ali por razões só dela conhecidas, fizera um parafuso acolá, passara como um cometa, desenhara letras de fumo no céu, etc., por aí fora. Tudo quanto fizera era enigmático e exasperante, aparentemente feito sem qualquer objectivo. Era como um comentário simbólico e irónico à vida humana, ao comportamento da formiga-homem vista de outra dimensão. Entre o momento da sua partida e o do seu regresso, eu vivia a vida de um esquizerino completo. Não era uma eternidade que decorria, pois, não sei porquê, a eternidade relaciona-se compaz e vitória, é algo feito pelo homem, algo conquistado; não, aquilo por que eu passava era por uma espécie de intervalo durante o qual o cabelo embranquece até às raízes e cada milímetro de pele arde e queima até todo o corpo se transformar numa chaga purulenta. Vejo-me sentado à mesa, às escuras, comas mãos e os pés a crescerem e tornarem-se enormes, como se estivesse atacado de elefantíase galopante. Ouço o sangue esguichar para o cérebro e ressoar nos tímpanos, como demónios dos Himalaias a brandirem malhos: ouço-a a bater as asas imensas, até mesmo em Irkutsk, e sei que avança sempre, que fica cada vez mais longe» mais e mais inacessível. O quarto está tão silencioso e tão assustadoramente vazio que guincho e uivo, só para produzir um pequeno ruído, um pequeno som humano. Tento levanTrópico de Capricórnio 225 tar-me da mesa, mas os meus pés estão demasiado pesados e as minhas mãos transformaram-se nas patas informes de um rinoceronte. Quanto mais pesado fica o meu corpo, mais leve se torna a atmosfera do quarto. you inchar, inchar, até encher o quarto comuma massa sólida de geleia dura. Colmatarei até as fendas da parede, crescerei através da parede como uma planta parasita, alastrando, alastrando, até toda a casa ser uma massa indescritível de carne, cabelo e unhas. Sei que isto é a morte, mas sou incapaz de matar esse conhecimento - ou o conhecedor. Há qualquer minúscula partícula de mini que continua viva, qualquer pinta de percepção que persiste, e, à medida que a carcaça inerte se expande, essa centelha de vida torna-se mais e mais viva, brilha dentro de mim como o fogo frio de uma pedra preciosa. Ilumina toda a massa glutinosa de polpa, de modo que sou como um mergulhador comuma lanterna no corpo de um monstro marinho morto. Através de qualquer fino filamento oculto, continuo ligado à vida acima da superfície do abismo, mas o mundo superior fica tão longe, e o peso do cadáver é tão grande, que, mesmo que tal fosse possível, seriam precisos anos para chegar à superfície. Movimento-me no meu próprio corpo morto, explorando cada nicho e cada fenda da sua imensa e informe massa. É uma exploração interminável, pois como crescimento incessante toda a topografia se modifica, escorrega e deriva como o magma quente da Terra. Nem por um minuto há terra firme, nem por um minuto algo permanece imóvel e reconhecível: é um crescimento sem fronteiras, uma viagem em que o destino muda a cada mínimo movimento ou estremecimento. É este interminável encher de espaço que mata toda a noção de espaço ou de tempo; quanto mais o corpo se expande, tanto mais o Mundo se torna pequeno, até acabar por me dar a sensação de que se concentra tudo na cabeça de um alfinete. Apesar do alastramento da enorme massa morta em que me tornei, o que a sustém, sinto, o mundo do qual cresce, não é maior do que uma cabeça de alfinete. No meio da poluição, Por assim dizer no próprio coração e nas próprias entranhas da morte, pressinto a semente, a alavanca miraculosa e infinitesimal que equilibra o Mundo. Entornei o Mundo como um xarope e o seu vazio é aterrador, mas nada consegue desalojar a semente; a semente tornou-se um pequeno núcleo de fogo 226 Henry Miller frio que ruge como um sol no côncavo imenso da carcaça morta. Quando a grande ave saqueadora regressar, exausta, do seu voo, encontrar-me-á aqui no meio do seu nada, a mini, o imperecível esquezerino, uma semente chamejante escondida no coração da morte. Todos os dias ela julga encontrar outro meio de subsistência, mas não há mais nenhum além desta eterna semente de luz que, morrendo cada dia, redescubro para ela. Voa, ó ave devoradora, voa para os limites do Universo! Aqui está o teu alimentp, a brilhar no repugnante vazio que criaste! Voltarás para pereceres uma vez mais no buraco negro; voltarás sempre e sempre, porque não tens asas que te levem para fora do Mundo. Este é o único mundo que podes habitar, este túmulo da serpente onde a escuridão reina. E, de súbito, sem nenhuma razão, quando penso no regresso dela ao seu ninho, lembro-me das manhãs de domingo na velha casinha perto do cemitério. Lembro-me de me sentar ao piano em camisa de dormir, de accionar os pedais comos pés descalços e de as pessoas deitadas na cama brindarem, no quarto ao lado. Os quartos davam uns para os outros, telescopicamente, no born velho estilo americano. Ao domingo ficávamos na cama até nos apetecer guinchar de bem-estar. Mais ou menos cerca das onze horas, batiam na parede do meu quarto, para que fosse tocar para eles. Entrava na sala a dançar comos Fratellini Brothers, tão cheio de chama e penas que seria capaz de me içar, como um guindaste, para o ramo mais alto da árvore do céu. Era capaz de fazer tudo e mais alguma coisa sozinho e dir-se-ia que as minhas articulações funcionavam para qualquer dos lados. O velho chamava-me «Sunny Jim», porque eu estava cheio de «Força», cheio de genica e vigor. Primeiro fazia algumas cabriolas, para eles verem, na carpete defronte da cama; depois cantava em falsete, a tentar imitar um boneco de ventríloquo; depois dava alguns passos de dança fantásticos, para lhe mostrar de que lado soprava o vento, e por fim, como uma brisa, sentava-me ao piano e lançava-me num exercício de velocidade. Começava sempre por Czerny, a fim de me desentorpecer para a. performance. O velho detestava Czerny, e eu também, mas Czerny era o plat du jour da ementa e, por isso, era Czerny que marchava, ate as minhas articulações ficarem como borracha. De certa maneira Trópico de Capricórnio 227 vaga, Czerny recorda-me o grande vazio que mais tarde se abateu sobre mini. Que velocidade alcançava, preso ao banco do piano! Era como beber um frasco de tónico de uma vez e depois amarrarem-me à cama. Ao fim de uns noventa e oito exercícios estava preparado para um pouco de improvisação. Martelava as teclas de uma ponta à outra e depois modulava para «O Incêndio de Roma» ou «A Corrida de Carros de Ben Hur», de que toda a gente gostava porque era barulho inteligível. Muito antes de ler o Tractatus Logico-Pbilosophicus, de Wittgenstein, já compunha música de acordo comele, no estilo de sassafras. Era versado, então, em ciência e filosofia, na história das religiões, em lógica indutiva e dedutiva, no peso e na forma dos crânios, em farmacopeia e metalurgia e em todos os inúteis ramos do saber que nos causam indigestão e melancolia antes do tempo. Este vómito de quinquilharia sabichona fervilhava-me nas tripas toda a semana, à espera de que chegasse o domingo, para poder ser traduzido em música. Entre «O Alarme de Fogo da Meia-Noite» e a «Marcha Militar» arranjava a minha inspiração, que consistia em destruir todas as formas existentes de harmonia e criar a minha própria cacofonia. Imaginem Urano em boa fase relativamente a Marte, a Mercúrio, à Lua, a Júpiter e a Vénus. É difícil imaginar, claro, porque Urano funciona melhor quando está em má fase, quando está «angustiado», por assim dizer. No entanto, a música que eu produzia nas manhãs dominicais, uma música de bem-estar e de bem alimentado desespero, nascia de um Urano ilogicamente em boa fase e firmemente ancorado na Sétima Casa. Mas eu não o sabia então, nem sequer sabia que Urano existia, e tal ignorância era uma sorte. Mas compreendo-o agora, porque se tratava de uma alegria caprichosa, de um falso bemestar, de uma espécie destrutiva de criação ardente. Quanto maior a minha euforia, tanto maior a tranquilidade da família. Até a minha irmã, que era maluca, se tornaya calma e serena. Os vizinhos paravam do lado de fora da janela, a ouvir, e de vez em quando brindavam-me comuma explosão de aplausos. Então - zás! - lá me lançava outra vez como um foguete: Exercício de Velocidade n.° 947,5. Se por acaso via uma barata a amarinhar pela parede acima, ficava deleitado: isso levava-me, sem a mínima modulação, ao Opus Izzit do meu tristemente engelhado clavicórdio. Um domingo, 228 Henry Miller sem mais nem menos, compus um dos scherzi mais encantadores que se possa imaginar. A um piolho. Era Primavera e estávamos todos a receber tratamento de enxofre. Eu levara toda a semana às voltas como Inferno de Dante, em inglês. O domingo chegou como um degelo, os pássaros estavam tão bêbedos como súbito calor que entravam e saíam pela janela imunes à música. Tinha acabado de chegar uma parente alemã, uma tia solteirona, parecida comum granadeiro e vinda de Hamburgo ou de Brema. A sua simples proximidade bastava para me causar um ataque de raiva. Costumava dar-me palmadinhas na cabeça e dizer que eu viria a ser outro Mozart. Mas eu detestava Mozart, e ainda detesto, e para me vingar dela tocava mal, tocava todas as notas erradas que conhecia. E depois apareceu o piolhinho, como ia dizendo, um piolho verdadeiro que se enterrara na minha roupa interior de Inverno. Tirei-o de lá e pu-lo ternamente na ponta de uma tecla preta. Depois comecei a tocar à volta dele coma mão direita. O ruído deve tê-lo ensurdecido. Parecia hipnotizado coma minha ágil pirotecnia. Finalmente, a sua imobilidade extática buliu-me comos nervos e resolvi introduzir uma escala cromática, caindo sobre ele comtoda a força, como dedo médio. Acertei-lhe em cheio, mas comtal força que ficou colado à ponta do meu dedo. Isso provocou-me uma espécie de Dança de S. Vito. A partir daí, o scherzo começou. Foi um pot-pourri de melodias esquecidas, condimentadas comaloés e como sumo de porcos-espinhos, tocado às vezes em três tonalidades ao mesmo tempo e girando sempre, como um rato valsador, à volta da imaculada conceição. Mais tarde, quando ouvi Prokofiev, compreendi o que lhe acontecia; compreendi Whitehead e Russell, e Jeans e Eddington, e Rudolf Euken, Frobenius e Link Gillespie; compreendi por que motivo o homem inventaria o teorema binómio, se ele nunca tivesse existido; compreendi o porquê da electricidade e do ar comprimido, para já não falar de banhos Sprudel e outras coisas que tais. Compreendi muito claramente, devo dizê-lo, que o homem tem um piolho morto no sangue e que, quando nos dão uma sinfonia, ou um fresco, ou um explosivo forte, nos estão realmente a dar uma reacção de ipeca que não fazia parte da lista predestinada. Compreendi também porque falhara e não me tornara o músico que era. Todas as composições que Trópico de Capricórnio 229 criara na minha cabeça, todas essas audições privadas e artísticas que me foram permitidas, graças a Santa Hildegarda, ou a Santa Erigida, ou a João da Cruz, ou sabe Deus a quem, foram escritas para uma era futura, para uma era commenos instrumentos e antenas mais fortes - e tímpanos mais fortes, também. Tem de se experimentar uma espécie de sofrimento diferente antes de tal música poder ser apreciada. Beethoven demarcou território novo temos consciência da sua presença quando ele irrompe impetuosamente, quando sucumbe no próprio âmago do seu silêncio. É um reino de novas vibrações - para nós não passa de uma nebulosa, pois ainda não ultrapassámos a nossa concepção de sofrimento. Ainda temos de ingerir esse mundo nebuloso, o seu trabalho e a sua orientação. Foi-me permitido ouvir uma música incrível, deitado e indiferente ao sofrimento que me cercava. Ouvi a gestação do novo mundo, o som de rios torrenciais escolhendo o seu curso, o som de estrelas triturando e moendo, de fontes coaguladas, de chamejantes pedras preciosas. A música ainda é toda governada pela antiga astronomia, produto de estufa, uma panaceia para Weltschmerz. A música é ainda o antídoto do inominável, mas isso ainda não é música. A música é fogo planetário, um irredutível todo-suficiente; é a escrita na ardósia dos deuses, a abracadabra coma qual nem eruditos nem ignorantes sabem lidar, porque o eixo foi desenganchado. Olhai para as entranhas, para o inconsolável e para o inevitável. Nada está determinado, nada está decidido ou resolvido. Tudo quanto se está a passar, toda a música, toda a arquitectura, toda a lei, todo o governo, toda a invenção e toda a descoberta, tudo isso são exercícios de velocidade feitos no escuro, Czerney comum Z maiúsculo montando um louco cavalo branco numa garrafa de mucilagem. Uma das razões por que nunca cheguei a lado nenhum coma maldita música foi o facto de se misturar sempre comsexo. Assim que fui capaz de tocar uma melodia, as conas rodearam-me como moscas. Para começar, a culpa foi em grande parte de Lola. Lola foi a minha primeira professora de piano. Lola Niessen. Era um nome ridículo e típico do bairro onde morávamos, então. Soava a arenque salgado malcheiroso °u a cona bichosa. Para dizer a verdade, Lola não era exactamente uma beleza. Parecia-se um pouco comum calmuco ou 230 Henry Miller um chinuque, compele baça e olhos biliosos. Tinha algumas verrugas e alguns quistos, para não falar do bigode. O que me excitava, porém, era o seu hirsutismo. Tinha cabelo preto maravilhosamente comprido, que dispunha em rolos ascendentes e descendentes no crânio mongol. Na nuca, enrolava-o num carrapito serpentiforme. Vinha sempre atrasada, pois era uma idiota conscienciosa, e quanto ela chegava eu estava sempre um bocado debilitado de me masturbar. No entanto, assim que se sentava no tamborete a meu lado ficava novamente excitado, por causa do fétido perfume comque encharcava as axilas. No Verão usava mangas largas e soltas, que deixavam ver os tufos de pêlos debaixo dos braços. A visão enlouquecia-me. Imaginava-a compêlos no corpo todo, até no umbigo. E o que desejava fazer era enrolar-me neles, cravar os dentes neles. Teria sido capaz de comer a pilosidade de Lola como um petisco, se tivesse alguma carne agarrada. Enfim, era peluda, aí está aonde eu queria chegar, e o facto de ser peluda como um gorila desviava-me o pensamento da música para a sua cona. Andava tão doido por ver essa cona que, um dia, subornei o irmãozito dela, para me deixar espreitá-la quando estava na casa de banho. Era ainda mais maravilhosa do que imaginara: tinha uma guedelha que lhe ia do umbigo à zona genital, um enorme e denso tufo, uma bolsa escocesa rica como um tapete feito à mão. Quando lhe começou às pancadinhas coma borla do pó, julguei que desmaiava. Da próxima vez que ela me foi dar lição, deixei dois botões da braguilha desabotoados. Pareceu não reparar em nada. Na lição seguinte, deixei a braguilha toda desabotoada. Dessa vez, não lhe escapou. «Creio que te esqueceste de qualquer coisa, Henry», disse-me. Olhei para ela, encarnado como um tomate, mas perguntei brandamente: Do quê? Fingiu olhar para o lado, enquanto apontava coma mão esquerda. A mão estava tão próxima que não resisti a agarrá-la e metê-la na braguilha. Levantou-se muito depressa, pálida e assustada. Nessa altura já a minha picha estava ao léu, a estremecer de deleite. Atirei-me a ela e enfiei-lhe a mão pelo vestido acima, para chegar ao tapete denso e fofo que vira pelo buraco da fechadura. De súbito, levei um valente caldo nas orelhas, a seguir outro, e depois ela agarrou-me por uma orelha e levou-me para um canto, virado para a parede. «Agora abotoa Trópico de Capricórnio 231 a braguilha, idiota!», ordenou-me. Instantes depois voltámos para o piano - para Czerny e para os exercícios de velocidade. Tá não era capaz de distinguir um sustenido de um bemol, mas continuei a tocar, commedo de que ela contasse o incidente à minha mãe. Felizmente, não era coisa fácil de dizer a uma mãe. O incidente, apesar de embaraçoso, assinalou uma mudança decidida nas nossas relações. Pensei que na lição seguinte ela se mostraria severa comigo, mas, pelo contrário, pareceu ter-se embonecado, vinha mais encharcada de perfume do que nunca e parecia até um bocado alegre, o que era raro em Lola, que pertencia ao tipo melancólico e retraído. Não me voltei a atrever a desabotoar a braguilha, mas arranjava uma erecção e aguentava-a até ao fim da lição - e ela devia gostar, pois estava constantemente a lançar olhares disfarçados nessa direcção. Eu tinha apenas quinze anos, nessa altura, e ela teria à vontade vinte e cinco ou vinte e oito. Era-me difícil saber o que fazer, a não ser derrubá-la deliberadamente, num dia em que a minha mãe saísse. Durante algum tempo, cheguei a segui-la, de noite, quando ela saía sozinha. Tinha o hábito de dar longos passeios nocturnos solitários. E eu ia-lhe no encalço, esperançado em que chegasse a algum lugar solitário, perto do cemitério, onde pudesse empregar certas tácticas violentas. Às vezes tinha a impressão de que ela sabia que a seguia e isso lhe agradava. Creio que esperava lhe saísse ao caminho, que era isso que queria. Uma noite, deitei-me na erva perto da via férrea; estava uma sufocante noite de Verão e havia gente deitada por toda a parte, como cães ofegantes. Não pensava de modo nenhum em Lola; estava apenas para ali espapaçado, pois o calor era tanto que não permitia pensar em nada. De súbito, vi uma mulher aproximar-se pelo caminho estreito. Como disse, estava estendido no aterro e não via ninguém nas imediações. A mulher aproximava-se devagar e de cabeça baixa, como se sonhasse. Quando chegou junto de niim, reconheci-a. «Lola!», chamei. «Lola!» Pareceu sinceramente surpreendida por me ver ali. «Que fazes aqui?», perguntoume, ao mesmo tempo que se sentava a meu lado, no aterro. Não me dei ao trabalho de lhe responder, não lhe disse uma palavra: limitei-me a amarinhar para cima dela e a obrigá-la a estender-se. «Aqui não, por favor», pediu, mas 232 Henry Miller não lhe prestei atenção. A mão que meti entre as suas pernas ficou toda emaranhada no denso matagal. E encontrei-a encharcada como um cavalo a babar-se. Era a minha primeira foda e, Jesus, tinha de passar um comboio e deitar para cima de nós uma chuva de faúlhas! Lola ficou aterrorizada. Creio que também era a sua primeira foda e que provavelmente ainda estava mais precisada dela do que eu, mas quando sentiu as faúlhas quis levantar-se. Foi como tentar aquietar uma égua brava. Não consegui mante-la deitada, por muito que lutasse comela. Levantou-se, sacudiu a roupa e ajeitou o carrapito na nuca. «Deves ir para casa», disse-me. «Não you para casa», respondi-lhe, ao mesmo tempo que lhe dava o braço e começava a andar. Caminhámos num silêncio absoluto, durante um born bocado. Nenhum de nós parecia reparar para onde íamos. Por fim, chegámos à estrada. Por cima de nós ficavam os reservatórios e perto deles havia uma lagoa. Instintivamente, segui na direcção da lagoa. Tivemos de passar sob árvores de ramos baixos. Ajudava Lola a baixar-se quando, de súbito, escorregou e me arrastou consigo. Não fez esforço nenhum para se levantar; em vez disso, agarrou-me e apertou-se contra mim e, para meu completo espanto, enfiou a mão na minha braguilha. Acariciou-me tão maravilhosamente que me vim na sua mão, num abrir e fechar de olhos. Depois agarrou na minha mão e meteu-a entre as pernas. Deitouse para trás, completamente descontraída, e abriu bem as pernas. Inclinei-me e beijei-lhe todos os pêlos da cona; passei-lhe a língua pelo umbigo e lambi-o, até ficar limpinho. Depois meti a cabeça entre as suas pernas e lambi a baba que escorria dela. Gemia e agarrava-me desesperadamente; o cabelo soltara-se-lhe por completo e cobria-lhe o abdome nu. Resumindo, enfiei-lho e aguentei muito tempo, pelo que me deve ter ficado gratíssima, pois veio-se não sei quantas vezes - foi como um punhado de estalinhos a estoirar, um após outro -, mordeu-me, esmagou-me os lábios, arranhoume, rasgou-me a camisa e sei lá que mais. Quando cheguei a casa e me vi ao espelho estava todo marcado, como um vitelo. Foi maravilhoso enquanto durou, mas não durou muito tempo. Passado um mês, os Niessens mudaram-se para outra cidade e nunca mais voltei a ver Lola. Mas era como se tivesse o seu matagal pendurado sobre a minha cama e rezava-lhe toTrópico de Capricórnio 233 das as noites. E sempre que atacava a treta do Czerny ficava comuma tesão de pensar em Lola deitada na relva, de pensar no seu comprido cabelo preto, no carrapito na nuca, nos gemidos que soltava e no sumo que escorria dela. Para mim, tocar piano era apenas o substituto de uma longa foda. Tive de esperar mais dois anos antes de voltar a enfiá-la, como se costuma dizer, e então as coisas não correram muito bem, pois arranjei um lindo esquentamento - e, além disso, não foi na relva nem no Verão e faltou-lhe calor, foi apenas uma fria foda mecânica a troco de um dólar, num imundo quartinho de hotel, coma sacana a fingir que se vinha e a vir-se tanto como sei lá o quê. No entanto, talvez não tenha sido ela que me pegou o esquentamento e, sim, a sua compincha do quarto ao lado, que se deitou como meu amigo Simmons. As coisas passaram-se assim... Acabei tão depressa a minha foda mecânica que pensei ir ver como as coisas corriam como meu amigo Simmons. Imaginem, ainda não tinham acabado e estavam todos fogosos. A rapariga era checa e um pouco pateta. Estava na vida havia pouco tempo, ao que parecia, e costumava esquecer-se e gozar a coisa. Ao ver como se desempenhava do papel, decidi esperar e experimentá-la também. E assim fiz. Antes de a semana acabar apareceu-me corrimento e seguiu-se o costume. Passado um ano, eu próprio dava lições e, nem por sorte, a mãe da rapariga a quem ensinava era uma relaxada e uma vagabunda como as que o são. Mais tarde descobri que vivia comum negro. Parece que não conseguia encontrar uma picha suficientemente grande para a satisfazer. Enfim, todas as vezes que me preparava para regressar a casa agarrava-me à porta e esfregava-se toda contra mim. Tinha medo de começar qualquer coisa comela porque constava que tinha sífilis, mas que diabo pode um gajo fazer quando uma cadela daquele género esfrega a cona contra ele e lhe enfia a língua pela garganta abaixo? Comecei a fodê-la de pé, no vestíbulo, o que não tinha grande dificuldade porque ela era leve e eu podia agarrá-la como uma boneca. Estava a agarrá-la assim uma noite quando, subitamente, ouvi meter uma chave na fechadura. Ela também ouviu e ficou transida de medo. Não havia Para onde ir. Felizmente a porta tinha um reposteiro e eu escondi-me atrás dele. Logo a seguir ouvi o garanhão negro bei- 234 Henry Miller Trópico de Capricórnio 235 já-la e perguntar-lhe como tás, jóia, e ela responder-lhe que tinha estado à sua espera e que era melhor irem já para o quarto, porque não podia esperar, e etc. e tal. Quando os degraus da escada que levava ao quarto deixaram de gemer, abri devagarinho a porta e pirei-me. Jesus, apanhei um cagaço dos grandes, pois se o garanhão negro descobrisse o que se passava abrir-me-ia as goelas, disso podia ter a certeza. Deixei de lá ir dar lições, mas a filha da tipa, que tinha dezasseis anos, desatou a perseguir-me, a pedir-me que lhe desse lições em casa de uma amiga. Recomeçámos os exercícios Czerny, comfaúIhas e tudo. Foi a primeira vez que cheirei cona jovem e achei-a maravilhosa, como feno acabado de cortar. Podíamos ao longo das lições, uma após outra, e nos intervalos entre as lições iam umas fodazitas extra. Até que um dia se repetiu a velha e triste história: estava grávida, que fazer? Tive de procurar um rapaz judeu para me safar, mas ele queria vinte e cinco dólares pelo trabalho e eu nunca tinha visto vinte e cinco dólares na minha vida. Além disso, ela era menor. Além disso, podia arranjar uma infecção. Dei ao gajo cinco dólares por conta e cavei para os Adirondacks, durante umas semanas. Nos Adirondacks conheci uma professora primária que estava mortinha por receber lições. Mais exercícios de velocidade, mais camisas-devénus e complicações. Todas as vezes que mexia num piano parecia pôr uma cona à solta. Se havia uma festa, tinha de levar o caraças do rolo da música, o que para mim equivalia a enrolar o pénis num lenço e metê-lo debaixo do braço. Em tempo de férias, numa casa de campo ou numa estalagem, onde havia sempre um excesso de conas, a música produzia um efeito extraordinário. O tempo de férias era um período por que ansiava durante todo o ano, menos por causa das conas do que por significar que não havia trabalho. Uma vez liberto da canga, tornava-me um palhaço. Sentia-me tão atestado de energia que me apetecia saltar para fora da pele. Lembro-me de conhecer num Verão, nos Catskills, uma rapariga chamada Francie. Era bonita e lasciva, comrobustas tetas escocesas e uma ofuscante fieira de dentes brancos e regulares. Começou no rio, onde nadávamos. Estávamos agarrados ao barco e uma das suas mamocas saiu fora dos limites. Tirei-lhe também a outra para fora e depois soltei-lhe as alças do fato de banho. Meteu-se recatadamente debaixo do barco e eu segui-a e, quando voltou à superfície para meter ar, puxei-lhe o maldito fato de banho: ficou a flutuar como uma sereia, comar, fortes tetas a subir e a descer na corrente, como dois bocados de cortiça saturados de água. Despi os calções e começámos a brincar como golfinhos sob o costado do barco. Pouco depois, a amiga dela apareceu numa canoa. Era uma rapariga robusta, uma loura cheia de sardas e comolhos cor de ágata. Ficou escandalizada ao ver-nos em pêlo, mas não tardámos a arrancá-la da canoa e a despi-la também. E depois começámos os três a brincar ao agarra debaixo de água, mas era difícil conseguir alguma coisa delas, pois escorregavam como enguias. Quando nos fartámos, corremos para uma barraquinha que existia no campo e parecia uma sentina abandonada. Levámos a roupa para nos vestirmos, os três, na barraquinha. O tempo estava muitíssimo quente e abafado e estavam a acastelar-se nuvens de tempestade. Agnes - a amiga de Francie - tinha pressa de se vestir. Começava a envergonhar-se de estar nua à nossa frente. Francie, pelo contrário, parecia perfeitamente à vontade, sentada num banco, de pernas cruzadas, a fumar um cigarro. No momento em que Agnes se preparava para enfiar a camisa, brilhou um relâmpago e, logo a seguir, ribombou um trovão assustador. Agnes deu um grito e largou a camisa. Brilhou outro relâmpago, passados segundos, e ribombou novo trovão, assustadoramente próximo. O ar à nossa volta tornou-se azulado, as moscas começaram a picar e nós sentimo-nos nervosos, comcomichão e um bocadinho assustados, também. Especialmente Agnes, que tinha medo dos relâmpagos e mais ainda de ser encontrada morta ou de sermos encontrados os três todos nus. Só queria vestir-se e correr para casa, afirmou, e no instante em que teve esse desabafo desatou a chover. A potes. Pensámos que parana em poucos minutos e, por isso, sempre nus, parámos a olhar para o rio fervilhante, através da porta entreaberta. Mas a chuva continuava, forte, e os relâmpagos brilhavam incessantemente em nosso redor. Já estávamos todos assustadíssimos e sem saber que fazer. Agnes torcia as mãos e rezava em YOZ alta; parecia um idiota de George Grosz, uma daquelas cabras assimétricas comum rosário à volta do pescoço e, ainda por cima, icterícia. Pensei que ia desmaiar para ali, ou coisa Parecida. De súbito, tive a brilhante ideia de dançar uma dança 236 Henry Miller de guerra, à chuva, para as distrair. No momento em que saltei para fora da barraca, para iniciar o saracoteio, uma faísca abriu uma árvore de alto a baixo, não muito longe dali. Fiquei tão assustado que perdi a tramontana. Quando estou assustado, tenho o costume de rir, sempre. Por isso ri, soltei urna gargalhada louca, de gelar o sangue, que fez as pequenas gritar. Não sei porquê, quando as ouvi gritar pensei nos exercícios de velocidade, ao mesmo tempo que me senti de pé num vácuo, comtudo azul à minha volta e a chuva a tamborilar, quente-e-fria, na minha carne delicada. Todas as minhas sensações se reuniram à superfície da pele, sob a qual eu estava vazio e leve como uma pena, mais leve do que o ar, ou o fumo, ou o talco, ou o magnésio, ou o raio que me partisse. De súbito, senti-me um cbippewa, perdi a tramontana e estive-me nas tintas para o facto de as pequenas gritarem, ou desmaiarem, ou cagarem nas cuecas - que aliás não tinham vestidas. Ao olhar para a enlouquecida Agnes como rosário à volta do pescoço e a peida azul de medo, acudiu-me a ideia de executar uma dança sacrílega, comuma das mãos a amparar os tomates e a outra a achatar o nariz aos trovões e aos relâmpagos. A chuva era quente e fria e a erva parecia cheia de libélulas. Desatei aos saltos como um canguru e a gritar comtoda a força dos meus pulmões: «Ó pai, tempestuoso filho da puta, acaba comesses relâmpagos do caraças, senão a Agnes deixa de acreditar em ti! Estás a ouvir, velho chalado? Deixa-te de parvoíces... estás a endoidecer a Agnes. És surdo ou quê, velho pulha?» E, comum contínuo disparar de tolices, pus-me a dançar à volta da barraca, a saltar e a pular como uma gazela e a empregar o palavreado mais sujo que me vinha à boca. Quando o relâmpago brilhava, saltava ainda mais alto, e quanto o trovão ribombava, rugia como um leão, rebolava-me pela erva como um cachorrinho, enchia a boca de erva e cuspia-a, batia no peito como um gorila e, durante o tempo todo, via os exercícios de Czerny em cima do piano e a página branca cheia de bemóis e sustenidos, e pensava: «Idiota do caraças, convencido de que é assim que se aprende a manipular o clavicórdio!» De súbito, pensei que Czerny devia estar no céu e a ver-me naquela figura, e por isso cuspi para cima o mais alto que pude, e quando o trovão soou de novo gritei, comtoda a minha força: «Eh, Czerny, meu sacana que estás ai Trópico de Capricórnio 237 em cima, que os relâmpagos te arranquem os tomates... que engulas a própria cauda torcida e que ela te asfixie... Estás a ouvir-me, velho doido?» Mas, apesar de todos os meus bons esforços, Agnes tornava-se cada vez mais delirante. Era uma estúpida católica irlandesa e nunca ouvira falar a Deus daquela maneira. De súbito, enquanto eu dançava atrás da barraca, desatou a correr para o rio. Ouvi Francis gritar: «Vai buscá-la, ela afogase! Vai buscá-la!» Corri atrás dela, coma chuva a fustigar-me desalmadamente, e gritei-lhe que voltasse para trás. Mas ela corria às cegas, como se estivesse possessa do demónio, e ao chegar ao rio meteu pela água dentro, direita ao barco. Nadei no seu encalço, e quando chegámos ao barco, que receava se virasse, enlacei-a pela cintura, comum dos braços, e comecei a falar-Ihe calma e apaziguadoramente, como se falasse comuma criança. «Larga-me!», gritou. «És um ateu!» Fiquei aparvalhado ao ouvir aquilo. Era então por isso? Todo aquele histerismo era por eu estar a insultar Deus Todo-Poderoso? Apeteceu-me dar-lhe um soco num olho, para a chamar à razão. Mas estávamos fora de pé e eu receava que fizesse qualquer loucura - como virar o barco por cima das nossas cabeças -, se não lidasse comela como devia ser. Por isso fingi-me arrependidíssimo e afirmei que não sentira uma única palavra do que dissera, que falara assim por estar cheio de medo, etc., por ali fora, e enquanto lhe ia falando docemente, apaziguadoramente, deixei escorregar a mão que lhe segurava a cintura e afaguei-lhe devagarinho o eu. Era isso mesmo que ela queria. Começou a falar atabalhoadamente acerca da boa católica que era, de como se esforçava para não pecar... e talvez estivesse tão absorta no que dizia que não dava pelo que eu fazia, mas o certo é que quando lhe meti a mão entre as pernas e comecei a dizer todas as coisas bonitas que me vinham à cabeça, acerca de Deus, do amor, de ir à igreja, da confissão e de toda essa treta, o certo é que deve ter sentido qualquer coisa, pois eu tinha nada menos de três dedos dentro dela e mexia-os bem. «Põe os braços à volta do meu corpo, Agnes», pedi docemente, enquanto tirava a mão e a puxava para mim, a fim de poder meter as pernas entre as dela... «Isso mesmo... Agora tem calma... não tarda a acabar.» E, sempre a falar-lhe da igreja, do confessionário, de Deus, do amor e de todo o resto, consegui 238 Henry Mille’, enfiar-lho. «És muito born para mim», declarou, como se não soubesse que a minha picha estava dentro dela. «Lamento ter procedido como uma idiota.» «Eu sei, Agnes, não tem importância... Olha, agarra-me commais força... isso mesmo.» «Receio que o barco se vire», disse, esforçando-se por manter o eu em posição e remando coma mão direita. «Sim, é melhor voltarmos para terra», concordei, e comecei a desengatar-me. «Oh, não me deixes!», gritou, apertando-me commais força. «Não me deixes, morro afogada!» Nesse momento, Francie desatou a correr também para a água. «Depressa», pediu Agnes. «Depressa... morro afogada.» Devo dizer que Francie era boa rapariga. Não era católica, comcerteza, e se tinha alguma moral era do género reptilário. Tratava-se de uma daquelas raparigas que nascem para foder. Não tinha ambições nem grandes desejos, não evidenciava ciúme, não era de reservas, estava sempre alegre e não era estúpida. À noite, quando nos sentávamos no alpendre às escuras a falar comos hóspedes, sentava-se no meu colo, nua em pêlo debaixo do vestido, e eu enfiava-lho enquanto ela ria e falava comos outros. Creio que se teria atrevido a fazê-lo diante do Papa, se tivesse oportunidade para isso. Na cidade, quando ia visitá-la a casa, fazia exactamente a mesma coisa diante da mãe, cuja vista, por sorte, começava a deixar muito a desejar. Se íamos dançar e começava a sentir-se demasiado quente, arrastava-me para uma cabina telefónica e - estranha rapariga! - ligava efectivamente para qualquer pessoa, como por exemplo para a Agnes, enquanto eu lhe ia. Parecia sentir um prazer especial em fazer a coisa debaixo das ventas das pessoas; dizia que era mais divertido quando não pensávamos demasiado no que estávamos a fazer. No metropolitano apinhado, ao regressarmos da praia, por exemplo, virava a saia, de modo que a abertura ficasse à frente, pegava-me na mão e punha-a na cona. Se o comboio estava mesmo apinhado e nós ficávamos entalados num canto, em segurança, tirava-me a picha para fora e agarrava-a comas duas mãos, como se fosse um pássaro. Às vezes armava em brincalhona e transformava-a em cabide da mala, como se quisesse provar que não havia o mínimo perigo. Uma outra característica sua consistia em não fingir que eu era o único tipo comquem andava. Não sei se me dizia tudo, mas dizia-me o bastante. Falava-me, Trópico de Capricórnio 239 toda risonha, dos seus romances, enquanto me montava, ou quando eu lho enfiava, ou precisamente quando estava quase a vir-me. Dizia-me como faziam, se eram grandes ou pequenos, o que diziam quando se excitavam, etc., comtodos os pormenores possíveis, como se eu fosse escrever um manual acerca do assunto. Dir-se-ia não haver nada sagrado no seu corpo, ou nos seus sentimentos, ou fosse no que fosse que comele se relacionava. «Francie, fodidora do diabo, tens a moral de uma amêijoa!», costumava dizer-lhe. «Mas tu gostas de mim, não gostas?», replicava-me. «Os homens gostam de foder e algumas mulheres também. Não faz mal a ninguém e não é obrigatório amar todas as pessoas comquem iodemos, pois não? Não queria por nada deste mundo estar apaixonada. Deve ser terrível ter de foder sempre como mesmo homem, não achas? Se fedesses sempre comigo, cansavas-te depressa de mim, não cansavas ? Às vezes é agradável ser fodida por alguém que nem se conhece. Sim, acho até que é a melhor maneira», acrescentava. «Não há complicações, nem números de telefone, nem cartas de amor, nem brigas... Uma vez, tentei levar o meu irmão a foderme. Sabes como ele é maricas, como chateia toda a gente... Já não me lembro exactamente como as coisas se passaram, mas estávamos em casa sozinhos e eu sentia-me desejosa. Ele entrou no meu quarto para me pedir qualquer coisa e eu estava deitada como vestido levantado, a pensar na coisa e a desejá-la tremendamente, e quando ele entrou não quis saber para nada que fosse meu irmão, só pensei nele como homem, e por isso deixei-me ficar coma saia levantada e disse-lhe que não me sentia bem, que tinha uma grande dor de barriga. Quis sair logo, para me ir buscar qualquer coisa, mas eu respondi-lhe que não, que me esfregasse um bocadinho a barriga, pois isso far-me-ia bem. E obriguei-o a massajar a minha pele nua. O grande idiota crayou os olhos na parede e tentou massajar-me como se eu fosse um bocado de madeira. ”Não é aí, grande parvo, é mais abaixo... De que raio tens medo?”, disse-lhe e fingi que estava num grande sofrimento. Por fim, ele tocou-me acidentalmente. ”E aí mesmo!”, gritei. ”Oh, massaja-me, sabe tão bem!”. Queres crer que o grandíssimo idiota me massajou cinco minutos inteirinhos sem perceber que era tudo fita? Senti-me tão exasperada comele que lhe disse que se fosse embora e me 240 Henry Miller Trópico de Capricórnio 241 deixasse em paz. ”És um eunuco!”, gritei-lhe, mas ele era tão parvo que não devia saber o que a palavra significava.» Riu-se, a pensar na idiotice do irmão, e disse que provavelmente ele ainda era virgem. Mas que pensava eu, achava que fizera uma coisa muito má? Sabia, claro, que eu não pensaria nada de semelhante. «Escuta, Francie, alguma vez contaste essa história ao chui comquem andas embrulhada?» Pareceu-lhe que não. «A mim também me parece que não», observei. «Se ele a ouvisse desancava-te.» «Uma vez deu-me um soco», declarou prontamente. «O quê? Consentes que te bata?» «Não lho peço, claro, mas sabes como tem mau génio. Não deixo mais ninguém bater-me, mas ele não me importo muito, não sei porquê. Às vezes faz-me sentir bem cá por dentro... Não sei, talvez faça bem a uma mulher levar porrada de vez em quando... Não dói muito, se realmente gostamos de um tipo. E ele depois mostra-se tão meigo... Quase tenho vergonha de mim própria...» Não é frequente encontrarmos uma gaja que admita tais coisas - refiro-me a uma gaja autêntica e não a uma idiota. Estou a lembrar-me de Trix Miranda, por exemplo, e da sua irmã, Mrs. Costello. Que grande parelha formavam! Trix, que andava embrulhada como meu amigo MacGregor, tentava convencer a própria irmã, comquem vivia, que não tinha relações sexuais nenhumas comMacGregor. E a irmã dizia a toda a gente que era frígida, que não poderia ter relações comum homem, mesmo que quisesse, por ser «por constituição demasiado pequena». E, entretanto, o meu amigo MacGregor ia-as fodendo, às duas, e ambas sabiam uma da outra, mas continuavam a enganar-se. Porquê? Nunca consegui perceber. A Costello era histérica; quando lhe parecia que não estava a obter uma percentagem justa das fodas que MacGregor distribuía, tinha um pseudo-ataque epiléptico. Isso significava que era preciso pôr-lhe toalhas molhadas na testa, dar-lhe palmadinhas nos pulsos, desabotoar-lhe o vestido, esfregar-lhe as pernas e, finalmente, carregar comela para a cama, no primeiro andar, onde o meu amigo a «tratava» assim que a outra adormecia. Às vezes, de tarde, as duas irmãs deitavam-se juntas, para dormir a sesta, e se MacGregor lá estava deitava-se no meio delas. Segundo me explicava, a rir, o truque consistia em fingir que adormecia. Respirava profundamente e ora abria um olho, ora o outro, para ver qual delas estava realmente a dormir. Assim que adquiria a certeza de que uma adormecera, atirava-se à outra. Em tais ocasiões, parecia preferir a histérica, Mrs. Costello, cujo marido a visitava mais ou menos uma vez de seis em seis meses. Quanto maior era o risco, mais prazer lhe causava, dizia. Se fazia a coisa coma outra irmã, Trix, a quem supostamente namorava, tinha de fingir que seria terrível se a outra os surpreendesse; ao mesmo tempo, porém, confessava-me, estava sempre esperançado em que a outra acordasse e os apanhasse. Mas a irmã casada, a de «constituição muito pequena», como ela costumava dizer, era manhosa e, além disso, sentia-se culpada para coma irmã. Se esta a apanhasse em flagrante, fingiria que estava a ter um ataque e não sabia o que fazia. Nada no mundo a levaria a admitir que estava realmente a permitir-se o prazer de ser fodida por um homem. Eu conhecia-a bem porque lhe dei lições durante algum tempo e fiz todos os possíveis para a obrigar a admitir que tinha uma cona normal e gostaria de uma boa foda de vez em quando, se a pudesse ter. Costumava contar-lhe histórias malucas, que na realidade eram relatos mal disfarçados das suas próprias façanhas, mas mesmo assim mantinha-se obstinada, irredutível. Um dia - e isso bate todos os recordes -, até consegui que me deixasse meter os dedos dentro dela. Pensei para comigo que a coisa estava feita. É verdade que a achei seca e um bocado apertada, mas atribuí isso à sua histeria. Imaginem conseguir ir tão longe comuma gaja e depois ouvi-la dizer-nos na cara, puxando violentamente o vestido para baixo: - Bem lhe disse que a minha constituição não era apropriada! - Não notei semelhante coisa - repliquei, furioso. - Mas que espera que faça? Que use um microscópio? - Que lindas palavras! - exclamou, fingindo-se ofendida. - Que maneira de me falar! - Sabe muito bem que mente - prossegui. - Porque mente dessa maneira? Não acha que é humano ter uma cona e usá-la, de vez em quando? Quer que ela murche? - Que linguagem! - protestou, a morder o lábio inferior e corada como um tomate. - Sempre o julguei um cavalheiro. - Bem, você não é uma senhora, pois até uma senhora 242 Henry Miller admite que fode de vez em quando. Além disso, as senhoras não pedem aos cavalheiros que metam os dedos por elas acima, para verem como são apertadas. - Eu nunca lhe pedi que me tocasse! Jamais pensaria em pedir-lhe que me pusesse as mãos, pelo menos nos meus órgãos íntimos. - Talvez julgasse que lhe ia limpar o ouvido, não? - Nessa ocasião pensei em você como se fosse um médico - redarguiu, toda empertigada, tentando calar-me coma sua frieza. - Escute - resolvi arriscar -, finjamos que foi tudo um erro, que não aconteceu nada, absolutamente nada. Conheço-a demasiado bem para pensar em insultá-la dessa maneira. Jamais me passaria pela cabeça fazer-lhe semelhante coisa, oh, não! Pensei apenas que talvez não tivesse razão no que dizia, que talvez não fosse de constituição demasiado pequena. Aconteceu tudo tão depressa que não sei realmente o que senti... Creio que nem meti o dedo dentro de si. Devo ter tocado apenas no exterior. Olhe, sente-se aqui no sofá... voltemos a ser amigos. Puxei-a para o meu lado - estava a degelar visivelmente - e enlacei-a pela cintura, como que para a consolar mais ternamente. Foi sempre assim? perguntei, inocente, e quase desatei a rir ao compreender a idiotice da pergunta. Deixou pender a cabeça, timidamente, comse tocássemos numa daquelas tragédias não mencionáveis. - Se se sentasse no meu colo, talvez... - E levantei-a docemente para o meu colo, ao mesmo tempo que, comigual suavidade, lhe metia a mão debaixo do vestido e lha pousava ao de leve no joelho. - Talvez se sentisse melhor se se sentasse um bocadinho assim... isso mesmo, aninhe-se nos meus braços... Sente-se melhor? Não respondeu, mas também não resistiu; aninhou-se, mole, e fechou os olhos. Pouco a pouco, muito suave e lentamente, fui subindo a mão pela sua perna acima, sem deixar de lhe falar em voz baixa e apaziguadora. Quando lhe cheguei às virilhas e abri os labiozinhos, estava tão molhada como um pano da casa. Massajei-lha docemente, abrindo-a cada vez mais, e sempre coma conversa de que as mulheres às vezes se enganavam a seu respeito, pensavam que eram muito pequeTropico de Capricórnio 243 nas e, na realidade, eram absolutamente normais, e quanto mais falava, tanto mais sumarenta se tornava e tanto mais se abria. Já tinha quatro dedos dentro dela e ainda havia espaço para mais, se mais tivesse para lá meter. Tinha uma cona enorme, e pelos vistos fora bem vasculhada. Olhei-a, para ver se continuava comos olhos fechados. Tinha a boca aberta e ofegava, mas os olhos estavam bem fechados, como se dissesse a si mesma que tudo aquilo era apenas um sonho. Agora já a podia manejar sem delicadezas, pois não havia o perigo de que esboçasse o mínimo protesto. Talvez por maldade, sacudi-a comrudeza desnecessária, para ver se acordava. Estava mole como uma almofada de penas, e nem mesmo quando bateu coma cabeça no braço do sofá evidenciou qualquer irritação. Era como se se tivesse anestesiado para uma foda gratuita. Despi-a toda e atirei a roupa para o chão, e depois de a preparar um bocado no sofá tirei a picha de dentro dela e deitei-a no chão, em cima da roupa. Enfiei-lha outra vez e ela agarrou-a bem, comaquela ventosa que sabia utilizar tão habilmente, apesar do aspecto exterior de coma. Parece-me estranho que a música degenerasse sempre em sexo. À noite, se saía sozinho para dar um passeio, tinha a certeza de que arranjaria alguém - uma enfermeira, uma rapariga saída de um salão de baile, uma caixeira, fosse o que fosse que usasse saia. Se saía como meu amigo MacGregor, no seu carro só uma saltadinha até à praia, como ele dizia , cerca da meia-noite dava comigo numa sala estranha qualquer, de qualquer bairro estranho, comuma rapariga no colo - e geralmente uma rapariga para a qual me estava nas tintas, pois MacGregor ainda era menos exigente do que eu. Não raro, ao entrar no automóvel, dizia-lhe: «Escuta, nada de gajas esta noite, hem?» E ele respondia: «Jesus, não, estou farto... Só um passeiozinho a qualquer lado... talvez até Sheepshead Bay, que dizes?» Ainda não tínhamos percorrido um quilómetro, porém, quando ele encostava ao passeio e me acotovelava: «Olha-me para aquilo!», dizia, a apontar para uma rapariga que seguia o seu caminho. «Jesus, que pernas!» Ou então: «E se a convidássemos a vir connosco? Que dizes, hem? Talvez ela arranje uma amiga.» E, sem me dar tempo para abrir a boca, chamava a pequena e pregava-lhe coma conversa do costume, que era a mesma para 244 Henry Miller todas. Nove vezes em cada dez, a rapariga aceitava. Um pouco adiante, enquanto a apalpava coma mão livre, perguntava-lhe se não arranjava uma amiga para nos fazer companhia. E se ela protestava, se não gostava de ser apalpada logo às primeiras, dizia-lhe: «Muito bem, então pira-te... Não podemos perder tempo comtipas como tu!» E toca de afrouxar e de a empurrar para fora do carro. «Não estamos para nos chatear comgajas como aquela, pois não, Henry?», perguntava-me, a rir docemente. «Tem calma, prometo-te qualquer coisa de born antes de a noite acabar.» Se lhe recordava que naquela noite combináramos que não haveria gajas, redarguia-me: «Está bem, como queiras... Pretendia apenas tornar-te as coisas mais agradáveis.» E, de súbito, metia travões a fundo e dizia a qualquer vulto idiota que emergia do escuro: «Olá, miúda! Que andas a fazer? A dar um passeiozinho?» Talvez dessa vez fosse algo excitante, alguma cadelinha que não tinha mais nada que fazer senão levantar a saia e oferecê-la. Talvez nem sequer precisássemos de lhe pagar uma bebida, talvez bastasse parar o carro algures, numa transversal, e ala que se faz tarde, um depois do outro, no automóvel. E se ela era uma patetinha, como tantas vezes acontecia, MacGregor nem sequer se dava ao trabalho de a levar a casa: «Não vamos para esse lado», dizia o pulha. «E melhor saíres aqui.» E vá de abrir a porta, e toca comela. Claro que o seu pensamento seguinte era se ela não estaria contaminada. Isso ocupava-lhe o espírito durante todo o caminho de regresso. «Jesus, devíamos ser mais cuidadosos! Nem sabemos em que os metemos, ao escolhê-las assim. Desde a última - aquela que encontrámos na Drive, lembras-te? -, tenho andado comuma comichão do caneco. Talvez seja apenas nervosismo... penso demasiado no risco. Por que raio não pode um gajo contentar-se comuma cona, hem Henry? A Trix, por exemplo, é boa rapariga, como sabes, e eu até gosto dela, de certa maneira, mas... merda, de que vale falar do assunto? Conheces-me... sou um glutão. Estou a ficar de tal modo que às vezes saio para ir ao encontro de uma pequena, uma rapariga que quero foder e comquem combinei tudo... mas you a guiar e, pelo canto do olho, vejo, por exemplo, um belo pernao a atravessar a rua. Quando dou por mim, tenho-a no carro e a outra que se lixe. Devo estar encenado... Que te parece? Não me digas», acrescentava muito depressa. «Conheço-te, rneu Trópico de Capricórnio 245 ladrão, eras capaz de me dizer o pior.» E após uma pausa: «És uni tipo esquisito, sabes? Nunca te vejo recusar nada, mas também não dás a impressão de estar sempre a pensar no mesmo. Às vezes até me parece que te é indiferente, de uma maneira ou de outra. E és um pulha fiel... quase um monogâmico. Palavra que não percebo como te podes aguentar tanto tempo comuma mulher. Não te chateias comelas? Jesus, eu sei tão bem o que as gajas vão dizer!... Às vezes apetece-me dizer-lhes apenas: ”Escuta, pequena, não digas uma palavra. Basta que o tires para fora e abras bem as pernas.”» E ria-se, bem-disposto. «És capaz de imaginar a expressão da Trix se lhe dissesse uma coisa destas? Palavra, uma vez estive mesmo quase, quase! Não tirei o chapéu nem o casaco. Eh, pá, ficou fula! como casaco não se importou muito, mas o chapéu! Disse-lhe que tinha medo de apanhar uma corrente de ar... A verdade é que estava tão impaciente por me pôr a andar que pensei que me despacharia mais depressa se não tirasse o chapéu. Mas, em vez disso, passei a noite inteira comela. Levantou tal escarcéu que me vi aflito para a acalmar... Mas isso não foi nada. Uma vez, tive uma cabra irlandesa bêbeda, que tinha certas ideias esquisitas. Em primeiro lugar, nunca queria a coisa na cama... era sempre em cima da mesa. De vez em quando, isso está muito bem, mas sempre perde o interesse. Uma noite - creio que estava um bocadinho toldado -, disse-lhe: ”Não, nada feito, minha grande bêbeda... Esta noite vais para a cama comigo. Quero uma foda a sério, na cama.” Pois imagina que tive de discutir coma gaja quase uma hora, antes de a persuadir a ir para a cama comigo, e mesmo assim tive de lhe prometer que não tiraria o chapéu! Estás a ver-me montar aquela gaja de chapéu na cabeça? E ainda por cima em pelota! Sabes o que me respondeu quando lhe perguntei porque não queria que tirasse o chapéu? Pois ouve lá esta: respondeu-me que parecia mais fino! Estás a ver a mentalidade daquela gaja? Cheguei a detestar-me por andar coma grande cabra. Claro que nunca a procurava sóbrio. Precisava de me atestar bem primeiro e de ficar meio cego e chalado... tu sabes como às vezes fico...» Sabia muito bem. Era um dos meus mais velhos amigos e um dos sacanas mais briguentos que jamais conheci. Teimoso não era palavra que chegasse para o descrever. Era como uma mula, um escocês obstinado e cabeçudo. E o velho dele ainda 246 Henry Miller Trópico de Capricórnio 247 lhe levava a palma. Quando os dois se irritavam, era um espectáculo. O velho costumava dançar, dançar positivamente, de raiva. E se a velhota se metia, levava um soco num olho. Costumavam pôr MacGregor fora de casa, comregularidade. E lá ia ele para a rua comtodas as suas coisas, incluindo a mobília e o piano. Passado um mês, mais ou menos, voltava, porque em casa lhe davam sempre crédito. Até que uma noite regressava bêbedo e comuma mulher que arranjara em qualquer lado, e lá começava outra vez a fita. Parece que não se importavam muito que ele levasse para casa uma rapariga e ficasse comela toda a noite; do que não gostavam era do seu descaramento, ao querer que a mãe lhes servisse o pequeno- almoço na cama. Se a mãe tentava chamá-lo à razão, calava-a sempre comas mesmas palavras: «Que pretende dizer-me? Ainda hoje não estaria casada se não tivesse engravidado.» A velha torcia as mãos e lamentava-se: «Que filho! Que filho! Valha-me Deus, que fiz eu para merecer tal sorte?» Ao que ele replicava: «Deixe-se disso! Não passa de uma velha ameixa seca!» De vez em quando, a irmã aparecia e tentava deitar água na fervura: «Jesus, Wallie, não tenho nada como que fazes, mas não podes falar à mãe mais respeitosamente?» Então MacGregor sentava a irmã na cama e tentava convencê-la a servir-lhes o pequeno-almoço. Às vezes tinha de perguntar à companheira de cama como se chamava, para a apresentar à irmã. «Não é má pequena», costumava dizer, referindo-se à irmã. «É a única pessoa decente da família... Escuta, mana, traz-nos qualquer coisa que se coma, sim? Um belo baconzinho comovos, hem, que dizes? O velho está em casa? Que tal a sua disposição? Queria pedir-lhe dois dólares emprestados... Experimenta tu ver se lhos apanhas, sim? Dou-te uma prenda bonita no Natal.» Depois, como se estivesse tudo resolvido, empurrava a roupa para trás e mostrava a pêssega deitada a seu lado. «Olha para ela, mana, não é bonita? Repara-me nestas pernas! Escuta, devias arranjar um homem... estás muito escanzelada. Aqui a Pat aposto que não precisa de andar a pedinchá-lo, hem, Pat?» E, toca, uma valente palmada na garupa da Pat. «Agora pira-te, mana. Quero café... é, não te esqueças, o bacon que venha estaladiço! Não mo tragas como esse que já está aí velho em casa... arranja qualquer coisa especial. E depressinha!» O que me agradava nele eram as suas fraquezas. Como qualquer homem que arma em valentaço, era absolutamente frouxo por dentro. Não havia nada que não fizesse - por fraqueza. Estava sempre muito atarefado, e na realidade nunca fazia nada. E andava sempre a estudar qualquer coisa, a tentar aperfeiçoar os seus conhecimentos. Por exemplo, arrancava uma folha ao dicionário, todos os dias, e lia-a religiosamente, à ida para o escritório e à vinda. Estava atestado de factos, e quanto mais absurdos e incongruentes eles eram, tanto mais prazer lhe proporcionavam. Parecia apostado em provar a toda a gente que a vida era uma farsa, que não valia a pena, que uma coisa anulava outra, etc. Tinha sido criado no North Side, não muito longe do bairro onde passei a minha infância. Produto autêntico do North Side, e essa era também uma das razões por que gostava dele. A maneira como falava pelo canto da boca, o ar duro que assumia quando se dirigia a um polícia, as cuspidelas de repugnância, os palavrões especiais que empregava, o sentimentalismo, o horizonte limitado, a paixão pelo bilhar e pelos dados, as noites passadas em claro a contar histórias, o desprezo pelos ricos, o torn tu cá, tu lá comque falava dos políticos, a curiosidade por coisas inúteis, o respeito pelo saber, o fascínio pelo salão de baile, pela taberna e pelo teatro burlesco, a mania de falar constantemente em ver o mundo e nunca sair da cidade, a idolatria fosse por quem fosse desde que a pessoa em questão mostrasse «genica» - mil e uma pequenas características ou peculiaridades deste género tornavam-mo querido, porque eram precisamente essas idiossincrasias que caracterizavam os tipos que eu conhecera em miúdo. Segundo parecia, no bairro só havia falhados simpáticos. Os adultos comportavam-se como crianças e as crianças eram incorrigíveis. Ninguém podia subir muito acima do vizinho, se não queria ser linchado. Era até surpreendente que alguns indivíduos conseguissem tornar-se médicos ou advogados. Mesmo assim, tipo que lograsse essa proeza tinha de ser fixe, tinha de fingir que falava como todos os outros e tinha de votar nos democratas. Ouvir MacGregor falar aos compinchas de Platão ou Nietzsche, por exemplo, era uma coisa que nunca se esquecia. Em primeiro lugar, para conseguir permissão para falar de coisas como Platão ou Nietzsche aos compinchas tinha de fingir que só por acaso descobrira os 248 Henry Miller seus nomes - ou talvez dissesse que, certa noite, conhecera um bêbedo interessante, na sala dos fundos de uma taberna, e esse bêbedo começara a falar dos tipos, de Nietzsche e Platão. Fingia até nem saber bem como os nomes se pronunciavam. Platão não era nada parvo, dizia em torn apologético. Tinha uma ou duas ideias no toutiço, sim senhor, sissenhor. Gostaria de ver um dos estúpidos políticos de Washington discutir comum gajo como Platão. E continuava, no mesmo torn despretensioso e circunloquial, a explicar aos seus compinchas do jogo de dados que pássaro esperto fora Platão no seu tempo, e como pedira meças a outros homens de outros tempos. Claro que provavelmente tinha sido um eunuco, acrescentava, para deitar um pouco de água fria na fervura da sua erudição. Naqueles tempos, explicava lesto, era frequente cortarem os tomates aos gajos superiores, aos filósofos - era um facto! -, para os afastarem de todas as tentações. O outro gajo, o tal Nietzsche, esse era chalado, estava mesmo a pedir manicómio. Dizia-se que estivera apaixonado pela irmã. Era a modos que hipersensitivo. Tinha de viver num clima especial - supunha que em Nice. Regra geral, não gostava muito dos Alemães, mas aquele gajo, o Nietzsche, era diferente. Nietzsche até odiava os Alemães e alegava ser polaco ou coisa parecida. E topava-os bem, isso é que topava. Dizia que eram estúpidos e cevados e, por deus, sabia do que estava a falar! De qualquer maneira, desmascarara-os. Em resumo, dizia que estavam cheios de merda, e tinha razão, não tinha? Tinham visto a maneira como os sacanas haviam dado a volta ao cavalo quando tiveram de tomar uma dose do seu próprio remédio? «Conheço um tipo que limpou um ninho deles na região de Argonne. Disse que estavam tão em baixo que não cagaria neles, nem tão-pouco gastaria uma bala comeles! Limitou-se a meter-lhes a mona dentro comum cacete. Não me lembro do nome do gajo, mas ele disse-me que viu muitos nos poucos meses que lá esteve. O que mais gramou de todo o caraças daquela história, afirmou, foi mandar o seu próprio major desta para melhor. Não tinha nada de especial contra ele, mas não gramava a sua fronha. Não gostava da maneira como o gajo dava ordens. Muitos dos oficiais que morreram foram atingidos pelas costas, segundo disse. E os empertigados não estavam a pedir outra coisa! É um rapaz do North Side e creio Trópico de Capricórnio 249 que dirige agora uma casa de bilhar perto de Wallabout Market. Um tipo sossegado, que só se mete na sua vida. Mas se começam a falar-lhe da guerra perde a tramontana. Diz que assassinaria o presidente dos Estados Unidos se tentassem desencadear outra guerra. E seria homem para o fazer, garanto-Ihes... Mas, merda, que queria eu dizer-lhes a respeito de Platão?... Ah, sim...» Depois de os outros saírem, porém, engrenava noutra velocidade: - Não achas bem que se fale assim, pois não? - perguntava, e eu tinha de admitir que não achava, de facto. - Estás enganado. Temos de nos conservar de bem comas pessoas, nunca sabemos quando podemos precisar de um destes tipos. Partes do princípio de que és livre, independente! Procedes como se fosses superior a esta gente. É aí que cometes um grande erro. Como sabes o que serás daqui a cinco anos, ou mesmo daqui a seis meses, apenas? Podes estar cego, podes ser atropelado por um camião, podes ser metido no manicómio... Não sabes o que te vai acontecer. Ninguém sabe. Podes estar tão indefeso como uma criança... -E depois? - Bem, não achas que será born teres um amigo quando precisares dele? Podes encontrar-te de tal maneira que até precises que te ajudem a atravessar uma rua. Pensas que estes gajos são inúteis, desprezíveis, e que desperdiço o meu tempo comeles. Nunca se sabe o que um homem poderá fazer por nós, um dia. Ninguém chega a lado nenhum sozinho... Melindrava-o a minha independência, aquilo a que chamava a minha indiferença. Se me via obrigado a pedir-lhe umas massas, ficava encantado, pois isso proporcionava-lhe ensejo para me pregar um sermão acerca da amizade: «Então também precisas de ter dinheiro?», perguntava, comum grande sorriso de satisfação a alastrar-lhe pela cara toda. «Então o poeta também tem de comer? Bem, bem... É uma sorte poderes recorrer a mim, Henry, meu rapaz, pois eu sou brando contigo, conheço-te, meu filho da mãe sem coração. De quanto precisas? Não tenho muito, mas reparto o que tenho contigo. É justo, não é? Ou achas, meu sacana, que te devo dar tudo quanto tenho e ir pedir emprestado a outro para mim? Suponho que te está a apetecer uma boa refeição, hem? Pré- 250 Henry Miller Trópico de Capricórnio 251 sunto comovos não seria suficientemente born, pois não? £ se calhar também gostavas que te levasse de automóvel ao restaurante, hem? Olha, meu menino, levanta-te um bocadinho dessa cadeira, para te meter uma almofada debaixo do eu. Sim senhor, estás falido! Jesus, falido estás tu sempre. Não me’ lembro de te ter visto, nunca, comdinheiro na algibeira. Ouve cá, alguma vez sentes vergonha de ti mesmo? Falas desses vadios comquem ando... Pois fica sabendo que esses vadios nunca me vêm pedinchar dinheiro como tu. Têm mais orgulho do que tu, prefeririam roubálo a vir pedinchar-mo. Mas tu, merda, tu estás cheio de ideias bombásticas, tu queres modificar o mundo e toda essa conversa... não queres trabalhar por dinheiro, oh, não, isso não é para ti! Mas esperas que alguém to dê numa bandeja de prata. Felizmente há tipos como eu, que te compreendem. Precisas de te compreender a ti mesmo, Henry. Andas a sonhar. Toda a gente precisa de comer, ou não sabias? A maioria das pessoas está disposta a trabalhar para se sustentar, não fica na cama todo o dia como tu, que de repente enfias as calças e corres a pedir auxílio ao primeiro amigo que encontras. Supõe que não me encontravas. Que farias? Não respondas... sei o que vais dizer. Mas, escuta, não podes continuar toda a tua vida assim. Claro que falas bem e é um prazer ouvir-te. És o único tipo que conheço comquem gosto realmente de falar. Mas aonde te conduzirá isso? Um destes dias filam-te por vadiagem. Sabes que não passas de um vadio, não sabes? Nem sequer chegas aos calcanhares dos outros vadios contra os quais pregas. Onde estás quando eu estou em apuros ? Ninguém te encontra. Não respondes às minhas cartas, não atendes o telefone, e às vezes até te escondes quando te you visitar. Escuta, eu sei... não precisas de me explicar. Sei que não estás interessado em ouvir as minhas histórias a toda a hora. Mas, merda, às vezes preciso realmente de falar contigo. Tu bem te importas, porém. Desde que estejas protegido da chuva e a meter outra refeição no papo, sentes-te feliz. Não pensas nos teus amigos, a não ser quando estás desesperado. Isso não é maneira de um gajo proceder, pois não? Diz que não e dar-te-ei um dólar. Chiça, Henry, és o único verdadeiro amigo que tenho, mas também és um grandíssimo interesseiro. És um filho da puta de um não-presta-para-nada nato. Preferes morrer de fome a deitar a mão a qualquer coisa útil.»» l Eu ria-me, naturalmente, e estendia a mão para o dólar prometido. Isso irritava-o de novo: «Estás pronto a dizer seja o que for, não estás, desde que te dê o dólar que te prometi? Que gajo! E ainda me vens comconversas de moral... Jesus, tens a moral de uma cascavel! Não, ainda não to you dar, commil raios! Primeiro quero torturar-te mais um bocadinho, quero fazer comque ganhes este dinheiro, se puder. Olha, e se me engraxasses os sapatos? Fazes-me isso? Nunca serão engraxados se não os engraxares agora.» Pego nos sapatos e peco-lhe a escova. Não me importo absolutamente nada de lhe engraxar os sapatos. Mas isso também parece enfurecê-lo: «Vais engraxá-los, não vais? Isso é o máximo, Jesus! Onde está o teu orgulho? Não tens nenhum? E és tu o tipo que sabe tudo. É espantoso! Sabes tanto que tens de engraxar os sapatos de um amigo para lhe apanhar uma refeição! Toma, sacana, aqui tens a escova! E, já que estás coma mão na massa, engraxa também o outro par!» Uma pausa. MacGregor está a lavar-se e a cantarolar baixinho. De súbito, recomeça a falar, em torn animado e alegre: «Como está o tempo lá fora, Henry? Está sol? Escuta, lembrei-me do lugar ideal para ti. Que dizes a escalopes e bacon, comum pouco de molho tártaro? Trata-se de um restaurantezinho que fica perto da baía. Um dia como o de hoje está mesmo a pedir escalopes e bacon, hem, Henry? Não me digas que tens que fazer... Sabes que se te levar lá terás de passar um bocado comigo, não sabes? Jesus, quem me dera ter o teu feitio! Limitas-te a seguir à deriva, de minuto para minuto. Às vezes até penso que a levas muito melhor do que qualquer de nós, apesar de seres um nojento filho da mãe, um traidor e um ladrão. Quando estou contigo, o dia parece passar como um sonho. Não compreendes o que quero dizer quando declaro que tenho de te ver, uma vez por outra? Se estiver sempre sozinho comigo próprio dou em chalado. Porque ando tanto à caça de cona? Porque jogo às cartas toda a noite? Porque aturo aqueles vadios da Point? Porque há-de ser? Porque preciso de falar comalguém.» Um pouco mais tarde, na baía, sentado à beira-d’agua, comuma pinga de uísque no bucho e à espera que os mariscos sejam servidos: «A vida não é assim tão má quando podemos fazer o que nos apetece, pois não, Henry? Se conseguir ga- 252 Henry Miller Trópico de Capricórnio 253 nhar umas massas farei uma viagem à volta do Mundo... e tu irás comigo. Sim, embora não o mereças, ainda um dia gastarei dinheiro grosso contigo. Quero ver como procedes se te der bastante corda. Dar-te-ei o dinheiro, compreendes? Não fingirei que to empresto. Veremos o que acontece às tuas belas ideias quando tiveres alguma massa na algibeira. Escuta, outro dia, quando estive a falar de Platão, queria perguntar-te uma coisa: queria perguntar-te se tinhas lido aquela sua história acerca da Atlântida. Leste? Leste, hem? E que te parece? Pensas que se trata apenas de uma história ou achas que pode ter existido, de facto, um lugar como esse?» Não me atrevi a confiar-lhe as minhas suspeitas de que havia centenas ou talvez milhares de continentes cuja existência passada ou futura ainda não nos passara sequer pela cabeça. Por isso limitei-me a dizer-lhe ser muito possível que um lugar como a Atlântida tivesse existido, outrora. «Bem, suponho que não tem muita importância, de uma maneira ou de outra, mas vou-te dizer o que penso. Penso que, outrora, deve ter havido um tempo assim, um tempo em que os homens eram diferentes. Não posso acreditar que tenham sido sempre os porcos que são agora, que têm sido nos últimos milénios. Considero possível que tenha havido um tempo em que os homens sabiam viver, em que sabiam fazer as coisas comcalma e gozar a vida. Sabes o que dá comigo em maluco? É olhar para o meu velho. Desde que se reformou que passa o dia inteiro diante da lareira, embasbacado. Foi para isso que mourejou durante toda a vida, para estar para ali sentado como um gorila domesticado. Merda, se pensasse que me aconteceria a mesma coisa, um dia, estoiraria os miolos, agora mesmo. Olha à tua volta... olha para as pessoas que conhecemos. Conheces alguma que valha a pena? Para que é toda a fossanguice, gostaria de saber? Temos de viver, dizem. Porquê? Também gostaria de saber. Estariam todos muito melhor mortos. Não passam de esterco. Quando a guerra rebentou e os vi partir para as trincheiras, disse para comigo: Óptimo, talvez voltem comum pouco mais de senso! Claro que muitos deles não voltaram, sequer. Mas os outros... Julgas que se tornaram mais humanos, mais ponderados? De modo nenhum! No fundo, são todos carniceiros, e quando as coisas correm para o torto guincham. Metem-me nojo, todos eles. Vejo como são, ao pô-los em liberdade todos os dias. Vejo-o de ambos os lados da vedação, por assim dizer. Do outro lado o pivete ainda é maior. Se te contasse algumas das coisas que sei acerca dos juizes que condenam esses pobres diabos... Basta olhar-lhes para a cara. Sim, Henry, gostaria de pensar que existiu um tempo em que as coisas foram diferentes. Ainda não vimos nada a que se possa chamar vida verdadeira... nem veremos. Quanto a mim, isto vai durar mais uns milhares de anos. Achas que sou mercenário. Pensas que sou chalado, por querer ganhar uma quantidade de dinheiro, não pensas? Pois fica sabendo que quero ganhar umas massas para poder tirar os pés deste lodaçal. Se conseguir libertar-me desta atmosfera, partirei e irei viver comuma negra. Tenho-me esfalfado, tenho batido comeles numa laje para chegar onde cheguei... e não foi longe. Não acredito mais no trabalho do que tu, mas fui educado de maneira diferente... Se conseguisse apanhar umas massas boas a um dos imundos sacanas comquem lido, fá-lo-ia coma consciência absolutamente tranquila. O meu mal é saber um bocadinho mais do que o necessário acerca de leis... Mas ainda os intrujarei, vais ver! E quando o fizer será em grande escala...» Mais uma golada de uísque, enquanto servem os mariscos, e recomeça: «Falei a sério quando disse que te levaria numa viagem comigo. Estou a pensar seriamente no assunto. Responder-me-ás, suponho, que tens mulher e filha a sustentar... A propósito, quando é que te livras da tua megera? Não sabes que tens de a largar?» Começa a rir suavemente. «Ah, ah! Quando penso que fui eu que a escolhi para ti! Achas que me passou pela cabeça que serias suficientemente parvo para te atrelares a ela? Pensei apenas que te estava a recomendar uma bela lasca e tu, pobre idiota, casaste comela! Ah, ah! Escuta-me, Henry, enquanto ainda te resta algum juízo: não consintas que essa gata assanhada te destrua a vida, ouviste? Não me importa o que faças nem para onde vás. Custar-me-ia ver-te sair da cidade... digo-te francamente que sentiria a tua falta, mas, Jesus, mesmo que tenhas de ir para a África, pira-te, solta-te das suas garras, ela não presta para ti. Às vezes, quando arranjo uma gaja cheia de linha, digo para comigo: aqui está uma coisa que seria agradável para o Henry... Decido apresentar-ta e tudo o mais, mas depois esqueço-me, claro. No 254 Henry Miller entanto, Jesus, há milhares de gajas no Mundo comas quais te poderias entender bem. Pensar que tinhas de escolher urna cabra miserável como aquela... Queres mais bacon? Come agora o que te apetecer, pois mais tarde não haverá massa bem sabes. Outro copo, hem? Escuta, se hoje tentares fugir dê mini, juro-te que nunca mais te emprestarei nem um cêntimo... Mas que estava eu a dizer? Ah, sim, falava da cabra miserável comquem casaste. Vais deixá-la ou não? Sempre que te vejo dizes que te vais pirar, mas nunca o fazes. Não pensas que a estás a manter, pois não? Ela não precisa de ti, idiota, ainda não percebeste isso? Só quer torturar-te. Quanto à miúda... Merda, se estivesse no teu lugar, afogava-a. Parece indecente, bem sei, mas sabes muito bem o que quero dizer. Não és um pai. Para ser franco, não sei que diabo és... mas sei que és um tipo demasiado born para desperdiçares a tua vida por causa delas. Porque não tentas fazer qualquer coisa de ti próprio? Ainda és novo e tens boa aparência. Parte para qualquer lado, para longe, e recomeça tudo de novo. Se precisares de um dinheirito, eu arranjá-lo-ei. Será como deitá-lo por um esgoto abaixo, bem sei, mas mesmo assim estou disposto a isso. A verdade, Henry, é que gosto a valer de ti. Tenho-te tolerado mais do que toleraria fosse a quem fosse. Creio que ternos muito em comum, por provirmos do velho bairro... Imagina, não te ter conhecido nesse tempo! Merda, estou a tornar-me sentimental...» O dia foi passando assim, commuitos comes e bebes, sol quente, carro para nos passear, charutos nos intervalos, umas sonecazitas na praia, ver passar as gajas, conversar, rir, cantar um bocadinho, também... enfim, foi um dos muitos, muitos dias semelhantes que passei como MacGregor. Dias assim pareciam fazer realmente a roda parar. Superficialmente, eram agradáveis, alegres, como tempo a passar como um sonho doce. Mas, no fundo, havia neles algo de fatalista, de premonitório, faziam comque no dia seguinte andasse melancólico e desassossegado. Sabia muito bem que, um dia, teria de acabar comaquilo tudo, sabia muito bem que estava a desperdiçar o meu tempo. Mas também sabia que não podia fazer nada por enquanto. Primeiro teria de acontecer qualquer coisa grande, algo que me deixasse fora de mim. Só precisava de um empurrão, mas tinha a certeza de que esse empurrão, o ernTróptco de Capricórnio 255 purrão certo, só me poderia ser dado por uma força exterior ao meu mundo. Não podia sofrer, atormentar-me, porque isso não estava na minha maneira de ser. Toda a minha vida as coisas têm acabado por correr bem - no fim. Não estava previsto que me esforçasse. Tem de se deixar algo ao cuidado da Providência - no meu caso, esse algo era muito, era praticamente tudo. Apesar de todas as manifestações externas de pouca sorte ou de má orientação, sabia que nascera, como se costuma dizer, em berço de ouro. E comuma coroa dupla. A situação externa era má, admito: mas o que me preocupava mais era a situação interna. Tinha deveras medo de mim próprio, do meu apetite, da minha curiosidade, da minha flexibilidade, da minha permeabilidade, da minha maleabilidade, da minha jovialidade e da minha capacidade de adaptação. Nenhuma situação me assustava, em si mesma: via-me sempre a aguentar firme, protegido, como se estivesse sentado no interior de um ranúnculo a sorver o mel. Tinha o pressentimento de que mesmo que me metessem na cadeia, apreciaria a experiência. Creio que tal se devia ao facto de saber como não oferecer resistência. As outras pessoas esgotavam-se a puxar, a empurrar, a resistir; a minha estratégia era vogar coma maré. O que as pessoas me faziam incomodava-me praticamente tanto como o que faziam aos outros ou a elas próprias. Na realidade, estava tão desligado de tudo, interiormente, que tinha de me prender comos problemas do Mundo. E era por isso que andava sempre em apuros. Não estava, por assim dizer, sincronizado como meu próprio destino e tentava viver o destino do Mundo. Se, por exemplo, chegava a casa, à noite, e não havia comida nenhuma, nem mesmo para a miúda, dava logo a volta e ia procurá-la. Mas o que notava em mim, e que me intrigava, era que, mal me encontrava na rua à procura de paparoca, voltava ao Weltanschauung. Não pensava em comida para nós, exclusivamente, pensava na comida em geral, na comida em todas as suas fases e em toda a parte do Mundo àquela hora, em como se obtinha e se preparava, no que as pessoas faziam se não a tinham e na possibilidade de haver uma maneira de resolver o problema de modo que toda a gente a tivesse quando dela necessitasse, sem se perder mais tempo comum problema tão idiotamente estúpido. Claro que tinha pena da mulher e da miúda, mas também tinha pena dos 256 Henry Miller hotentotes e dos aborígenes australianos, para não falar dos belgas, dos turcos e dos arménios que passavam fome. Lamentava a espécie humana, a estupidez do homem e a sua falta de imaginação. Passar sem uma refeição não era uma coisa assim tão terrível; o que me perturbava profundamente era o espectral vazio da rua. Todas as malditas casas, tão iguais e todas comum ar tão vazio e tão triste. Boas pedras de calçada no passeio, debaixo dos pés, asfalto no meio da rua e degraus de arenito bela-e-horrendamente elegantes para subir - e, no entanto, um tipo podia levar o dia e a noite inteira a calcorrear esse material dispendioso em busca de uma côdea de pão. Era isso que me impressionava. A incongruência. Se ao menos se pudesse andar comuma campainha e gritar: «Ouvi, ouvi! Sou um tipo comfome. Quem precisa dos sapatos engraxados?» Se fosse possível ir para o meio da rua e expor as coisas comtoda esta clareza! Mas não, não ousávamos abrir a boca. Se disséssemos a um tipo, na rua, que tínhamos fome, acagaçá-lo-íamos de tal maneira que desataria a fugir. Nunca compreendi isso. E ainda não compreendo. É tudo tão simples! Bastaria dizermos «sim» quando um indivíduo nos procurasse comfome. Ou, se não pudéssemos dizer «sim», levá-lo pelo braço a outro tipo, para o ajudar. Porque temos de vestir um uniforme e matar homens que não conhecemos, só para conseguir a tal côdea de pão, é um mistério para mim. E nisso que penso, é mais nisso do que em quem pagará e quanto custará. Porque me havia de ralar como que qualquer coisa custa? Estou aqui para viver, e não para calcular. E é precisamente isso que os sacanas não querem que façamos: não querem que vivamos! Querem que passemos toda a vida a somar números. Isso faz sentido, para eles. Isso é razoável. Isso é inteligente. Se fosse eu que governasse o barco, talvez as coisas não estivessem tão ordenadas, mas seriam comcerteza mais alegres, coma breca! Não teríamos de nos cagar nas calças por causa de bagatelas. Talvez não houvesse estradas macadamizadas, nem automóveis aerodinâmicos, nem altifalantes, nem milhares de milhões de variedades de engenhocas; talvez não houvesse sequer um vidro nas janelas; talvez tivéssemos de dormir no chão; talvez não houvesse cozinha francesa, nem cozinha italiana, nem cozinha chinesa; talvez as pessoas se matassem umas às outras quan- l Trópico de Capricórnio 257 do a paciência se lhes esgotasse, e talvez ninguém as detivesse porque não haveria cadeias, nem polícias, nem juizes, e não haveria comcerteza nem ministros de gabinete nem legislaturas, porque não haveria nenhum raio de nenhuma lei a que obedecer ou desobedecer; talvez fossem precisos meses ou até anos para ir de um lado para outro - talvez não houvesse nenhuma dessas coisas e tudo isso fosse assim, mas também não precisaríamos, nem de visto, nem de passaporte, nem de carte d’identite, porque não estaríamos registados em lado nenhum, e não teríamos nenhum número, e se quiséssemos mudar de nome todas as semanas poderíamos mudar, pois não faria diferença nenhuma, uma vez que não possuiríamos nada a não ser o que pudéssemos trazer connosco, e para que diabo precisaríamos de possuir alguma coisa se tudo fosse grátis? Durante esse período em que andei à deriva de porta em porta, de emprego em emprego, de amigo em amigo e de refeição em refeição, tentei, apesar de tudo, isolar um pouco de espaço só para mim, um pouco de espaço que pudesse ser um ancoradouro - ou melhor, uma bóia de salvação no meio de uma corrente veloz. Para chegar a uma milha de mim tinha de se ouvir tocar um imenso e doloroso sino. Ninguém via o ancoradouro, que estava profundamente enterrado no leito do canal. Viam-me subir e descer à superfície, suavemente embalado ou agitadamente empurrado para a frente ou para trás. O que me prendia bem era a enorme secretária de cacifos que pusera no meio da sala. Essa secretária estivera na alfaiataria do meu velho nos últimos cinquenta anos, dera à luz muitas contas e muitos gemidos e albergara muitas estranhas recordações nos seus cacifos. Por fim, conseguira apanhá-la ao velho, quando ele estava doente, e agora encontrava-se no meio da lúgubre sala do segundo andar de uma respeitável casa de arenito, no centro do mais respeitável bairro de Brooklyn. Tivera de travar dura batalha para lá a instalar, mas insistira em que teria de ficar mesmo ali, mesmo no meio da barraca. Fora como pôr um mastodonte no centro do consultório de um dentista. Mas como a patroa não tinha amigas que a visitassem, e como os meus amigos se estariam nas tintas mesmo que eu a suspendesse do candeeiro, mantive-a na sala e pus à sua volta, a formar um grande círculo, todas as cadeiras que 258 Henry Miller tínhamos a mais. Sentava-me confortavelmente, punha os pés em cima da secretária e sonhava como que escreveria se fosse capaz de escrever. Tinha um escarrador ao lado da secretária um grande escarrador de latão da mesma proveniência, e de vez em quando cuspia-lhe para dentro, para me lembrar que ele estava ali. Os cacifos estavam todos vazios e as gavetas estavam todas vazias; não havia nada dentro nem em cima da secretária, a não ser uma folha de papel em que me era impossível desenhar nem que fosse uma vírgula. Quando penso nos esforços titânicos que fiz para canalizar a lava quente que fervilhava dentro de mim, nos esforços que repeti milhares de vezes para colocar o funil no lugar devido e captar uma palavra, uma frase, quando penso nisso, penso inevitavelmente nos homens do Paleolítico. Cem mil, duzentos mil, trezentos mil anos para chegar à ideia do paleolítico. Uma luta ilusória, pois eles não sonhavam sequer como Paleolítico. Surgiu sem esforço, nasceu de um segundo, pode-se dizer que foi um milagre - ou poderia, se tudo quanto acontece não fosse miraculoso. As coisas acontecem ou não acontecem, mais nada. Nada se alcança pelo suor e pelo esforço. Quase tudo aquilo a que chamamos vida é apenas insónia, uma agonia, porque perdemos o hábito de adormecer. Não sabemos parar. Somos como aquele boneco das caixas de surpresas, empoleirados no alto de uma mola: quanto mais nos debatemos, mais difícil se nos torna voltar para dentro da caixa. Creio que, se fosse doido, não teria tido melhor ideia para consolidar o meu ancoradouro do que a de instalar aquele objecto de Neanderthal no meio da sala. comos pés em cima da secretária, apanhando a corrente e coma coluna espinal bem apoiada numa grossa almofada de couro, estava numa relação ideal comos destroços que redemoinhavam à minha volta e que os meus amigos, por serem doidos e fazerem parte do fluxo, tentavam convencer-me de que eram vida. Lembroi j j -me perfeitamente do primeiro contacto coma realidade, estabelecido por assim dizer através dos pés. O milhão de palavras - mais ou menos - que escrevera, bem ordenadas e bem relacionadas entre si, não significavam nada para mim eram cifras toscas do Paleolítico - porque o contacto se fizera através da cabeça, e a cabeça é um apêndice útil, sem dúvida, Trópico de Capricórnio 259 mas só quando não estamos ancorados no meio da corrente, bem enterrados no lodo. Tudo quanto escrevera antes era material de museu - e muito do que se escreve ainda é material de museu, e é por isso que não pega fogo, que não inflama o Mundo. Eu era apenas um porta-voz da espécie ancestral que falava através de mim; nem sequer os meus sonhos eram autênticos, eram sonhos bona fide de Henry Miller. Estar quieto e pensar um pensamento que provinha de mim, da bóia de salvação, era tarefa hercúlea. Não me faltavam pensamentos, nem palavras, nem capacidade de expressão; faltava-me algo muito mais importante: a alavanca que fecharia a torrente. A maldita máquina não parava; aí é que estava a dificuldade. Não me encontrava apenas no meio da corrente: esta corria através de mim e eu não conseguia exercer o mínimo controlo sobre ela. Lembro-me do dia em que parei totalmente a máquina e de como o outro mecanismo, o que estava assinado comas minhas iniciais e que fizera comas minhas próprias mãos e como meu próprio sangue, começou lentamente a funcionar. Tinha ido a um teatro próximo ver um espectáculo de vaudeville; era uma matiné e eu tinha bilhete para o balcão. Quando me encontrava entre a multidão, no átrio, já experimentava uma estranha sensação de consistência. Era como se estivesse a coagular, a tornar-me uma massa de geleia consistente e reconhecível. Era como a última fase da cicatrização de uma ferida. Encontrava-me no apogeu da normalidade, o que é um estado muito anormal. Podia vir a cólera e soprar-me o seu bafo imundo para a boca que não teria importância. Podia inclinar-me e beijar as úlceras de um leproso que nenhum mal me aconteceria. Não se tratava de existir apenas um equilíbrio na guerra constante entre a saúde e a doença, que é o que a maioria das pessoas deseja alcançar; havia no meu sangue como que uma vantagem, algo graças ao qual, pelo menos durante alguns momentos, a doença estava completamente desbaratada, vencida. Se uma pessoa tivesse a sensatez de se enraizar em tais momentos, nunca mais adoeceria ou seria infeliz, nunca mais morreria, sequer. Mas chegar a esta conclusão seria dar um salto que nos levaria ainda mais para trás do que a o Paleolítico. Naquele momento, nem sequer me passou pela cabeça criar raízes; pela primeira vez na vida tinha 260 Henry Miller Trópico de Capricórnio 261 percepção do significado do miraculoso. Fiquei tão maravilhado quando ouvi as minhas próprias engrenagens a funcionar que de boa vontade teria morrido ali mesmo, pelo privilégio da experiência. O que aconteceu foi o seguinte: quando passei pelo porteiro como bilhete na mão, as luzes diminuíram e o pano subiu. Estaquei um momento, ligeiramente entontecido pela súbita escuridão. Enquanto o pano subia lentamente, tive a sensação de que, ao longo dos séculos, o homem fora sempre misteriosamente imobilizado por aquele breve momento que precede o espectáculo. Senti o pano subir no homem. E compreendi imediatamente, também, ser aquilo um símbolo que estava a ser infindavelmente apresentado ao homem, no sono, e que, se ele estivesse acordado, os actores jamais teriam subido ao palco e ele, Homem, é que teria pisado as tábuas. Não pensei, digamos, este pensamento, tratou-se, como disse, de cornpreender, de uma compreensão tão simples e tão avassaladoramente clara que a máquina parou de repente e eu fiquei parado na minha própria presença, banhado por uma realidade luminosa. Desviei os olhos do palco e olhei para a escada de mármores que teria de subir para chegar ao meu lugar, no balcão. Vi um homem subi-la devagar, a agarrar o corrimão. Esse homem podia ser eu próprio, o antigo eu que andara a dormir em pé desde que nascera. Os meus olhos não abarcaram a escada toda e, sim, apenas, os poucos degraus que o homem subira ou estava a subir no momento em que compreendi tudo. O homem nunca chegou ao cimo da escada e a sua mão nunca deixou o corrimão de mármore. Senti o pano descer e durante mais alguns momentos estive atrás dos cenários, a mover-me entre bastidores, como o aderecista que acorda subitamente e não sabe ao certo se continua a sonhar ou se assiste a um sonho que está a ser representado no palco. Era tão fresco e verde, tão estranhamente novo como as terras de pão e queijo que as donzelas de Biddenden viram todos os dias da sua longa vida, unidas pelos quadris. Vi apenas o que estava vivo! O resto esbateu-se numa penumbra. E foi para manter o Mundo vivo que corri para casa sem esperar pelo espectáculo e me sentei a descrever a pequena zona de escada imperecível. Mais ou menos nessa altura, os dadaístas estavam no apogeu e em breve se lhes seguiriam os surrealistas. Só uns dez anos mais tarde é que ouvi falar de qualquer dos grupos; nunca li um livro francês e nunca tive uma ideia francesa. Fui talvez o único dadaísta da América e não o soube. Era como se vivesse na selva amazónica, tão pouco contacto tinha como mundo exterior. Ninguém compreendia acerca de que escrevia eu, nem porque escrevia assim. Estava tão lúcido que diziam que estava maluco. Descrevia o Novo Mundo - infelizmente um pouco cedo de mais, porque ainda não fora descoberto e não era possível convencer ninguém de que ele existia. Era um mundo ovariano, ainda escondido nas trompas de Falópio. Naturalmente, nada estava ainda formulado claramente: apenas uma ténue sugestão de coluna vertebral; não se viam, comcerteza, braços ou pernas, nem cabelo, nem unhas, nem dentes. O sexo seria a última coisa em que se pensaria; era o mundo de Crono e da sua progénie ovicular. Era o mundo do iota e em que cada iota era indispensável, assustadoramente lógico e absolutamente invaticinável. Uma coisa era coisa que não havia, porque o conceito «coisa» faltava. Disse que descrevia um Novo Mundo, mas, como o Novo Mundo descoberto por Colombo, revelou-se um mundo muito mais velho do que qualquer dos que temos conhecido. Via sob a fisionomia de pele e osso o mundo indestrutível que o homem tem trazido sempre dentro dele; na realidade, não era velho nem novo: era o mundo eternamente verdadeiro que muda de momento a momento. Tudo quanto olhava era palimpsesto e não havia camada de escrita, por muito estranha que fosse, que não decifrasse. Quando os meus amigos me deixavam, à noite, sentava-me muitas vezes a escrever aos meus outros amigos, os aborígenes australianos, ou os construtores de montes do vale do Mississipi, ou os igorrotes das Filipinas. Tinha de lhes escrever em inglês, naturalmente, pois era a única língua que sabia, mas entre a minha linguagem e o código telegráfico empregado pelos meus amigos íntimos havia um mundo de diferença. Qualquer homem primitivo me teria compreendido, qualquer homem de épocas arcaicas me teria compreendido; só os que me cercavam, isto é, um continente comcem milhões de pessoas, não compreendiam a minha linguagem. Para escrever inteligivelmente para eles teria 262 Henry Miller Trópico de Capricórnio 263 sido obrigado, primeiro, a matar qualquer coisa e, segundo, a parar o tempo. E eu acabava de compreender que a vida é indestrutível e que tempo é coisa que não existe; existe apenas o presente. Esperariam que negasse uma verdade que levara toda a minha vida para vislumbrar? Esperavam, comcerteza. Uma coisa que não queriam ouvir dizer era que a vida é in-’ destrutível. O seu precioso novo mundo não fora edificado’: sobre a destruição dos inocentes, na violentação e no saque, na tortura e na devastação? Ambos os continentes tinham/ sido violados: ambos os continentes tinham sido despojados e i saqueados de tudo quanto era precioso - em coisas. Quanto a \ mini, nenhum homem sofreu maior humilhação do que Mon- ’ tezuma; nenhuma raça foi mais implacavelmente dizimada do que a do índio americano; nenhuma terra foi jamais violentada do modo indecente e sanguinário como a Califórnia foi violentada pelos que procuravam ouro. Coro ao pensar nas nossas origens; as nossas mãos estão mergulhadas em sangue e crime. E não há pausa para a carnificina nem para a pilhagem, ’ como descobri em primeiro lugar ao viajar a toda a largura e a < todo o comprimento da Terra. Todo o homem, até o amigo / mais íntimo, é um assassino em potência. Muitas vezes, não * foi necessário empunhar a arma, ou o laço, ou o ferro de marcar; encontraram maneiras mais subtis e diabólicas de torturar H e matar os seus próprios semelhantes. Para mini, a agonia mais excruciante era ver a palavra aniquilada antes mesmo de me sair da boca. A amarga experiência ensinou-me a ter tento na língua; aprendi a permanecer silencioso, e até a sorrir, quando na realidade espumava de raiva. Aprendi a apertar a mão e a dizer como está a todos os demónios de ar inocente que só esperavam que me sentasse para me sugarem o sangue. Como era possível usar esta linguagem cifrada de violentação e assassínio quando me sentava na sala, à minha secretária pré-histórica? Estava sozinho nesse grande hemisfério da violência, mas não o estava no que à espécie humana respeitava. Estava só num mundo de coisas iluminadas por clarões fosforescentes de crueldade. Delirava comuma energia que só podia ser libertada ao serviço da morte e da inutilidade. Não podia começar comuma declaração directa clara; isso teria significado o colete-de-forças ou a cadeira eléctrica. Era como um homem que estivera demasiado tempo encarcerado numa masmorra: tinha de tactear o caminho lentamente, hesitantemente, não fosse tropeçar e passaremme por cima. Tinha de me habituar gradualmente aos inconvenientes que a liberdade implica. Tinha de deixar formar-se uma nova epiderme, que me protegesse da luz abrasadora que brilhava no céu. O mundo ovariano é o produto de um ritmo de vida. No momento em que uma criança nasce, passa a fazer parte de um mundo em que existe, não só o ritmo da vida, mas também o ritmo da morte. O desejo frenético de viver, de viver custe o que custar, não é consequência do ritmo da vida e, sim, do ritmo da morte. Além de não haver necessidade nenhuma de permanecer vivo a todo o preço, a vida, se indesejável, está absolutamente errada. Este manter-se vivo devido a uma ânsia cega de derrotar a morte é, em si mesmo, um meio de semear a morte. Todo aquele que não aceitou totalmente a vida, que não incrementa a vida, ajuda a encher o Mundo de morte. Fazer o mais simples dos gestos coma mão pode exprimir o máximo sentido de vida: uma palavra dita comtodo o ser pode dar vida. A actividade em si mesma não significa nada e é muitas vezes um sinal de morte. Por simples pressão externa, pela força do ambiente e do exemplo, pelo próprio clima que a actividade engendra, uma pessoa pode tornar-se parte de uma monstruosa máquina de morte - como a América, por exemplo. Que sabe um dínamo de vida, de paz, de realidade? Que sabe um dínamo individual americano da sabedoria e da energia, da vida abundante e eterna possuída por um mendigo esfarrapado sentado debaixo de uma árvore no acto de meditar? O que é energia? O que é vida} Basta-nos ler as estúpidas patacoadas dos manuais científicos e filosóficos para compreendermos quão menos que nada é a sabedoria desses enérgicos americanos. Ouçam, eles puseram-me em fuga, esses loucos demónios do cavalo a vapor! Para quebrar o seu ritmo insano, o seu ritmo de morte, tive de recorrer a um comprimento de onda que, até encontrar a subsistência adequada nas minhas próprias entranhas, anulasse pelo menos o ritmo por eles estabelecido. Certamente que não precisava daquela grotesca, incómoda e antediluviana secretária que instalara na sala; certamente que não precisava de doze cadeiras vazias colocadas à sua volta, em semicírculo; precisava apenas de espaço para escrever e de uma décima terceira cadeira que me levasse para 264 Henry Miller fora do zodíaco que utilizavam e me colocasse num céu para além do céu. Mas quando se dá comum homem quase em maluco e quando, talvez para sua própria surpresa, ele descobre que ainda tem alguma resistência, algumas capacidades, então é natural que esse homem actue muito semelhantemente a um ser primitivo. Tal homem é capaz de se tornar, não só teimoso e obstinado, mas também supersticioso, de acreditar em magia e de praticar magia. Tal homem está para além da religião; é da sua religiosidade que padece. Tal homem torna-se um monomaníaco, empenhado em fazer uma única coisa, coisa essa que é destruir o encantamento mau que sobre ele foi lançado. Tal homem está para além de lançar bombas, para além da revolta; quer deixar de reagir, quer inertemente, quer ferozmente. Esse homem entre todos os homens da Terra quer que o acto seja uma manifestação de vida. Se, ao tomar consciência da sua terrível necessidade, começa a agir regressivamente, a tornar-se associai, a gaguejar, a mostrar-se tão absolutamente inadaptado que nem é capaz de ganhar a vida, se tal acontecer, fiquem sabendo que esse homem encontrou o caminho de regresso ao útero e fonte de vida e que amanhã, em vez do desprezível objecto de ridículo que fizeram dele, se demarcará como homem por seu próprio direito e todos os poderes do Mundo serão inúteis contra ele. Da tosca cifra comque, da sua pré-história secretária, comunica comos homens arcaicos do Mundo, emerge, constrói-se uma nova linguagem que abre caminho através da linguagem da morte em vigor, do mesmo modo que a telegrafia sem fios abre caminho através da tempestade. Não há magia nesse comprimento de onda, assim como não há magia no útero. Os homens estão sós e sem comunicar uns comos outros porque todos os seus inventos falam apenas de morte. A morte é o autómato que rege o mundo da actividade. A morte é silenciosa, porque não tem boca. A morte nunca exprimiu nada. A morte também é maravilhosa depois da vida. Só alguém como eu, que abriu a boca e falou, só alguém que disse sim, sim, sim, e outra vez sim, pode abrir bem os braços à morte e não sentir medo. Morte como recompensa, sim! Morte como resultado de realização, sim! Morte como coroa e escudo, sim! Mas não morte vinda das raízes, isolando os homens, tornando-os azedos, medrosos e solitários, Trópico de Capricórnio 265 dando-lhes energia infrutuosa, enchendo-os de uma vontade que só pode dizer não! A primeira palavra que qualquer homem escreve quando se encontra, quando encontra o seu próprio ritmo, que é o ritmo da vida, essa palavra é «sim!». Tudo quanto escreve a partir desse momento é «sim», «sim», «sim» - «sim» de mil milhões de maneiras. Nenhum dínamo, por muito imenso que seja nem mesmo um dínamo de cem milhões de almas mortas -, pode combater um homem que diz «sim!». Havia guerra e os homens estavam a ser chacinados, um milhão, dois milhões, cinco milhões, dez milhões, vinte milhões, finalmente cem milhões, depois mil milhões, toda a gente, homens, mulheres e crianças, até ao último dos últimos. «Não!», gritavam. «Não! Eles não passarão!» E, no entanto, toda a gente passava, toda a gente obtinha um passe quer gritasse «sim!», quer «não!». No meio dessa triunfante demonstração de osmose espiritualmente destrutiva, eu estava sentado, comos pés em cima da enorme secretária, a tentar comunicar comZeus, pai da Atlântida, e toda a sua progénie desaparecida, ignorando o facto de que Apollinaire morreria na véspera do Armistício num hospital militar, ignorando o facto de que, na sua «nova escrita», traçara estes versos indeléveis: Sede indulgentes quando nos comparardes comos que foram a perfeição da ordem. Nós que em toda a parte buscamos aventura, Nós não somos vossos inimigos. Dar-vos-íamos vastos e estranhos domínios Onde o mistério em flor aguarda aquele que o [colher. Ignorando que, nesse mesmo poema, ele também escrevera: Compadecei-vos de nós que lutamos sempre nas {fronteiras Do ilimitado futuro, Compadecei-vos dos nossos erros, compadecei-vos [dos nossos pecados. 266 Henry Miller Ignorava o facto de que viviam então homens que davam pelos estranhos nomes de Blaise Cendrars, Jacques Vaché, Louis Aragon, Tristan Tzara, René Crevel, Henri de Montherlant, André Breton, Max Ernst e Georges Grosz; ignorando o facto de que, em 14 de Julho de 1916, no Saal Waag de Zurique, fora proclamado o primeiro Manifesto Dada «Manifesto de Monsieur Antipyrine» - e que nesse estranho documento se declarava: «Dada é vida sem chinelos nem paralelo (...) necessidade forte sem disciplina nem moralidade e nós cuspimos na humanidade.» Ignorando o facto de que o Manifesto Dada de 1918 continha as seguintes linhas: «Estou a escrever um manifesto e não quero nada, no entanto digo certas coisas e sou contra manifestos por uma questão de princípio, assim como sou contra os princípios. (...) Escrevo este manifesto para demonstrar que uma pessoa pode executar acções opostas conjuntamente, numa única respiração; sou contra a acção, não sou nem pró nem contra e não explico porque detesto o born senso. (...) Há uma literatura que não alcança a massa voraz. Trabalho de criadores, emanado de uma necessidade real da parte do autor, e para ele próprio. Consciência de um egotismo supremo onde as estrelas definham. (...) Cada página deve explodir, quer como profundamente sério e pesado, o rodopio, a vertigem, o novo, o eterno, o embuste irresistível ou um entusiasmo por princípios, quer como método tipográfico. De um lado, um mundo que passa cambaleante, noivo do toque de sinos da escala infernal; do outro: novos seres...» Trinta e dois anos depois, continuo a dizer «sim!». Sim, Monsieur Antipyrine! Sim, Monsieur Tristan Bustanoby Tzara! Sim, Monsieur Max Ernst Geburt! Sim! Monsieur Rene Crevel, agora que morreu por suicídio, sim, o mundo é louco, tinha razão. Sim, Monsieur Blaise Cendrars, teve razão em matar. Foi no dia do Armistício que pôs à venda o seu livnnhoj’ai tué} Sim, «continuem, meus rapazes, a humanidade...». Sim, Jacques Vaché, tinha toda a razão: «A arte deve ser algo divertido e um nadinha maçador.» Sim, meu caro Vaché morto, como tinha razão e como é divertido, e maçador, e comovente, e terno, e verdadeiro: «Faz parte da essência dos símbolos ser diabólico.» Repita-o, repita-o do outro mundo. Tem aí em cima um megafone? Encontrou todos os braços e Trópico de Capricórnio 267 todas as pernas que foram pelos ares durante a mêlée? Pode refazê-los? Lembra-se do encontro de 1916, em Nantes, comAndré Breton? Celebraram juntos o nascimento da histeria? Breton disse-lhe que havia só o maravilhoso e nada mais do que o maravilhoso e que o maravilhoso é sempre maravilhoso e não é maravilhoso ouvi-lo outra vez, mesmo que os seus ouvidos estejam obstruídos? Quero incluir aqui, antes de passar adiante, um pequeno retrato seu feito por Emile Bouvier, para benefício dos meus amigos de Brooklyn que podem não me ter reconhecido então, mas que me reconhecerão agora, tenho a certeza... «... não era completamente louco e podia explicar a sua conduta quando a ocasião o exigia. As suas acções, apesar disso, eram tão desconcertantes como as piores excentricidades de Jarry. Por exemplo, mal saíra do hospital empregou-se como estivador e, desde então, passou as suas tardes a descarregar carvão nos cais ao longo do Loire. À noite, porém, fazia a ronda dos cafés e cinemas, vestido à última moda e comfatos muito variados. Mais, em tempo de guerra aparecia algumas vezes todo emproado num uniforme de tenente de hussardos, outras no de oficial inglês, de aviador ou de cirurgião. Na vida civil, era igualmente livre e despreocupado, não lhe causando a mínima perturbação apresentar Breton como André Salmon, ao mesmo tempo que assumia para si próprio, mas sem vaidade absolutamente nenhuma, os mais maravilhosos títulos e aventuras. Nunca dizia bons dias, nem boas noites, nem adeus, e nunca ligava importância a cartas, a não ser às da mãe, quando precisava de lhe pedir dinheiro. Deixava de reconhecer os melhores amigos de um dia para o outro...» Reconhecem-me, rapazes? Apenas um rapaz de Brooklyn a comunicar comos albinos ruivos da região Zuni. A preparar-me, comos pés em cima da secretária, para escrever «obras fortes, obras para sempre incompreensíveis», como os meus camaradas mortos prometiam. Essas «obras fortes»... reconhecê-las-iam, se as vissem? Sabem que, dos dois milhões que foram mortos, nem uma morte foi necessária para produzir «a obra forte»? Seres novos, sim! Ainda temos necessidade de seres novos. Podemos passar sem o telefone, sem o automóvel, sem os bombardeiros de grande classe; mas não 268 Henry Miller podemos passar sem seres novos. Se a Atlântida foi submersa pelo mar e se a Esfinge e as pirâmides continuam a ser um mistério eterno, é porque não estavam a nascer mais seres novos. Parem a máquina um momento! Flashback! Flashback para 1914, para o Kaiser montado no seu cavalo. Imobilizem-no assim um momento, como braço mirrado a agarrar a rédea. Olhem para o seu bigode! Olhem para o seu ar altivo de orgulho e arrogância! Olhem para a sua carne de canhão formada na mais rigorosa disciplina, pronta para obedecer à sua voz, para ser abatida a tiro, para ser esventrada, para ser queimada em cal viva. Aguentem agora um momento e olhem para o outro lado: os defensores da nossa grande e gloriosa civilização, os homens que guerrearão para acabar coma guerra. Troquem-lhes a roupa, troquem-lhes os uniformes, troquem-lhes os cavalos, troquem as bandeiras, troquem o terreno. Meu Deus, é o Kaiser que vejo num cavalo branco? São aqueles os terríveis Hunos? E onde está a Grande Berta? Ah, estou a ver!... Julguei que apontasse para a NotreDame... Humanidade, meus rapazes, a humanidade sempre a marchar na vanguarda... E as obras fortes de que estávamos a falar? Onde estão as obras fortes? Liguem para a Western Union e mandem um mensageiro - não um aleijado ou um octogenário, mas sim um jovem! Pecam-lhe que encontre a grande obra e a traga. Precisamos dela. Temos um museu novinho em folha à espera de a acolher - e celofane, e o sistema decimal Dewey para a arquivar. Precisamos apenas do nome do autor. Mas, mesmo que não tenha nome, mesmo que seja uma obra anónima, não faz mal. Mesmo que tenha um pouco de gás de mostarda, não nos importamos. Tragam-na morta ou viva: há uma recompensa de vinte e cinco mil dólares para o homem que a trouxer. E se lhes disserem que essas coisas tinham de acontecer, que não podia ter sido de outra maneira, que a França fez o melhor possível, e a Alemanha fez o melhor possível, e a pequena Libéria e o pequeno Equador e todos os outros aliados também fizeram o melhor possível, e que, depois da guerra, toda a gente tem feito o melhor possível para compor as coisas ou para esquecer, se lhes disserem isso respondam que esse melhor possível não é suficientemente born, que não queremos ouvir falar mais dessa lógica de «fazer o melhor possiTropico de Capricórnio 269 vel», digam-lhes que não queremos o melhor de um mau negócio, que não acreditamos em negócios, bons ou maus, nem em monumentos em memória dos mortos na guerra. Não queremos ouvir falar da lógica dos acontecimentos, nem em qualquer espécie de lógica. «Je ne parle pás logique», disse Montherlant, «je parle générosité.». Não creio que tenham ouvido muito bem, pois foi dito em francês; por isso repito-o para vocês, na própria língua da rainha: «Não falo lógica, falo generosidade.» É gramaticalmente mau, mas é claro. Generosidade, ouviram? Nunca a praticam, nenhum de vocês, quer na paz, quer na guerra. Não sabem o significado da palavra. Pensam que fornecer armas e munições ao lado que está a vencer é generosidade; pensam que mandar para a frente enfermeiras da Cruz Vermelha ou o Exército de Salvação é generosidade. Pensam que um bónus dado comvinte anos de atraso é generosidade; pensam que uma pensãozinha e uma cadeira de rodas é generosidade; pensam que devolverem a um homem o seu antigo emprego é generosidade. Não sabem o que o caraças da palavra significa, seus pulhas! Ser generoso é dizer «sim» antes de o homem abrir sequer a boca. Para dizer «sim» é preciso ser primeiro um surrealista ou um dadaísta, porque, sendo-o, compreende-se o que significa dizer «não». Podem até dizer «sim» e «não» ao mesmo tempo, desde que façam mais do que é esperado de vocês. Sejam um estivador de dia e um Beau Brummel de noite. Usem qualquer uniforme, desde que não seja o vosso. Quando escreverem à vossa mãe, pecam-lhe que vomite umas massas, para terem um trapo limpo a que limpar o eu. Não se perturbem se virem o vizinho correr atrás da mulher comuma faca: provavelmente ele tem boas razões para correr atrás dela, e se a matar podem ter a certeza de que teve a satisfação de saber porque o fez. Se estão a tentar aperfeiçoar a mente, deixem-se disso! Não é possível aperfeiçoar a mente. Olhem para o coração e para as tripas: o cérebro está no coração. Ah, sim, se então tivesse sabido que esses gajos existiam Cendrars, Vaché, Grosz, Ernst, Apollinaire -, se tivesse sabido isso, se tivesse sabido que, à sua maneira, pensavam exactamente as mesmas coisas que eu pensava, creio que teria explodido. Sim, creio que teria estoirado como uma bomba. Mas ignorava. Ignorava o facto de que, quase cinquenta anos antes, 270 Henry Miller um judeu doido da América do Sul parira frases tão maravilhosamente surpreendentes como «dúvida é pato comlábios de vermute» ou «Vi um figo comer um onagro»; ignorava que, mais ou menos ao mesmo tempo, um francês, apenas um rapaz ainda, dizia: «Encontrem flores que sejam cadeiras»... «a minha fome são os bocados de ar preto»... «o coração dele âmbar e coragem». Talvez ao mesmo tempo, ou mais ou menos, em que Jarry dizia «comendo o som de traças», e Apollinaire repetia após ele «quase um cavalheiro engolindo-se a si mesmo», e Breton murmurava docemente «pedais da noite movem-se ininterruptamente», talvez «no ar belo e preto» que o judeu solitário encontrara sob o Cruzeiro do Sul, outro homem, também solitário e exilado e de origem espanhola, se preparasse para confiar ao papel as seguintes palavras memoráveis: «Procuro, de modo geral, consolar-me do meu exílio, do meu exílio da eternidade, daquele desterro a que gosto de me referir como o meu descéusamento. (...) Presentemente, penso que a melhor maneira de escrever este romance é dizer como deveria ser escrito. É o romance do romance, a criação da criação. Ou Deus de Deus, Deus de Deo.» Se eu soubesse que ele ia acrescentar o que se segue, teria comcerteza rebentado como uma bomba: «Por ser louco entende-se perder a razão. A razão, mas não a verdade, pois há homens loucos que dizem verdades enquanto outros se mantêm silenciosos...» Ao falar destas coisas, ao falar da guerra e dos mortos da guerra, não posso deixar de mencionar que uns vinte anos depois oh, milagre dos milagres! se me deparou o seguinte, em francês, escrito por um francês: «Ilfaut le dire, U y a dês cadavres que je ne respecte qu’à moitié.» Sim, sim e outra vez sim! Oh, deixem-nos fazer qualquer coisa arrojada, pelo simples prazer de a fazermos! Deixem-nos fazer qualquer coisa viva e magnificente, mesmo que destrutiva! Disse o sapateiro louco: «Todas as coisas são geradas a partir do grande mistério e prosseguem de um grau para outro grau. Seja o que for que avance no seu grau, não recebe nenhuma abominação.» Em toda a parte e em todos os tempos o mesmo mundo ovariano anunciando-se. No entanto, também, paralelamente a esses anúncios, a essas profecias, a esses manifestos ginecológicos, paralelos a eles e contemporâneos deles, novos tótemes, novos tabus, novas danças de guerra. Enquanto os Trópico de Capricórnio 271 irmãos do homem, os poetas, os escavadores do futuro, cuspiam no ar tão preto e tão belo as suas linhas mágicas, ao mesmo tempo - oh, profunda e intrigante charada! - outros homens diziam: «Queira fazer o favor de se apresentar e aceitar um emprego na nossa fábrica de munições. Prometemos-lhe o salário mais elevado e as condições mais sanitárias e higiénicas. O trabalho é tão fácil que até uma criança o poderia fazer.» E se o convidado tivesse uma irmã, uma mulher, uma mãe ou uma tia, desde que soubesse utilizar as mãos e provasse não ter maus hábitos, convidavamno a levá-la também para a fábrica de munições. E se ao convidado repugnasse sujar as mãos, explicar-lhe-iam muito delicada e inteligentemente como esses delicados mecanismos operavam, o que faziam quando explodiam, porque não se devia desperdiçar sequer o lixo porque... et ipso facto e pluribus unum. O que mais me impressionava, ao correr em busca de trabalho, não era tanto o facto de me fazerem vomitar todos os dias (presumindo que eu tivera a sorte de meter qualquer coisa nas tripas), mas sim o empenho que mostravam sempre em saber se tínhamos bons hábitos, se éramos fixes, se éramos sóbrios, se éramos diligentes, se já trabalháramos antes e se não porquê... Até o lixo, que fora encarregado de recolher para a municipalidade, era precioso para eles, para os matadores. Enterrado no esterco até aos joelhos, o mais baixo dos baixos, um coolie, um pária, mesmo assim eu fazia parte do negócio da morte. Tentei ler o Inferno, à noite, mas estava escrito em inglês, e o inglês não é língua para uma obra católica. «O que quer que entre em si mesmo, no seu ser, isto é, no seu próprio lubet...» Lubet! Se eu tivesse tido então uma palavra assim, uma palavra assim para me servir de esconjuro, comque paz e tranquilidade me teria entregado ao meu trabalho de recolha de lixo! Como seria doce, na noite, quando Dante está fora do alcance e as mãos cheiram a esterco e a lodo, como seria doce tomar em si mesmo esta palavra que em holandês significa «luxúria» e em latim «lubitum» ou o divino beneplacitum\ Metido no lixo até aos joelhos, disse um dia o que consta ter Meister Eckhart dito há muito tempo: «Tenho realmente necessidade de Deus, mas Deus também tem necessidade de mim.» Esperava-me um emprego no matadouro, um agradável empregozinho de escolher entranhas, mas não consegui arranjar dinheiro para 272 Henry Miller os transportes até Chicago. Permaneci em Brooklyn, no meu próprio palácio de entranhas, e girei à roda e à roda do plinto do labirinto. Fiquei em casa à procura da «vesícula germinal» do «castelo do dragão no fundo do mar», do «Sagrado Coração», do «campo da polegada quadrada», da «casa do pé quadrado», do «beco escuro», do «espaço do Céu primitivo». Fiquei fechado, prisioneiro de Forculus, deus da porta, de Cardea, deus do gonzo, e de Limentius, deus do limiar. Falava apenas comas suas irmãs, as três deusas chamadas Medo, Palidez e Febre. Não vi nenhum «luxo asiático» como Santo Agostinho - ou pelo menos como ele imaginou ver. Tão-pouco vi «nascer os dois gémeos, tão seguidos que o segundo agarrava o primeiro pelo calcanhar». Mas vi uma rua chamada Myrtle Avenue, que vai de Borough Hall à Fresh Pond Road, e por essa rua jamais santo algum caminhou (ou ela ter-se-ia desfeito), jamais passou algum milagre, ou algum poeta, ou alguma espécie de génio humano; e tão-pouco lá nasceu jamais flor alguma, ou o Sol a banhou totalmente, ou a chuva a layou. Em lugar do Inferno genuíno que tive de adiar durante vinte anos, dou-lhes Myrtle Avenue, uma das inúmeras sendas de cavaleiros, percorridas por monstros de ferro, que levavam ao coração do vazio da América. Se viram apenas Essen, ou Manchester, ou Chicago, ou Levallois-Perret, ou Glásgua, ou Hoboken, ou Canarsie, ou Bayonne, se viram só isso não viram nada do magnífico vazio do progresso e do esclarecimento. Querido leitor, deve ver a Myrtle Avenue antes de morrer, quanto mais não seja para avaliar quão longe Dante viu no futuro. Tem de me acreditar, nem nesta rua, nem nas casas que a ladeiam, nem nas pedras que a pavimentam, nem em qualquer criatura que tenha um nome e nela viva, nem em qualquer animal, ave ou insecto que a percorra a caminho do matadouro ou vindo já do matadouro, tem de me acreditar que em nenhuma dessas coisas há esperança de «lubet», de «sublimar» ou de «abominar». É uma rua, não de sofrimento, pois o sofrimento seria humano e reconhecível, mas sim de puro vazio: é mais vazia do que o mais extinto dos vulcões, mais vazia do que o vácuo, mais vazia do que a palavra «Deus» na boca de um incréu. Disse que, então, não sabia uma palavra de francês, e é verdade; mas estava na iminência de fazer uma grande descoberta, Trópico de Capricórnio 273 uma descoberta que compensaria o vazio da Myrtle Avenue e de todo o continente americano. Estava quase chegado à costa desse grande oceano francês que dá pelo nome de Elie Faure, um oceano que os próprios Franceses mal navegaram e tomaram erradamente, segundo parece, por um mar interior. Ao lê-lo, mesmo numa língua tão decadente como o inglês se tornara, compreendi que esse homem, que descrevera a glória da espécie humana no seu punho, era o Pai Zeus da Atlântida de quem eu andara à procura. Chamei-lhe um oceano, mas ele era também uma sinfonia mundial. Foi o primeiro músico que os Franceses tiveram; era exaltado e controlado, uma anomalia, um Beethoven gaulês, um grande médico da alma, um gigantesco pára-raios. Era também um girassol a girar como Sol, sempre sôfrego de luz, sempre radiante e ofuscante de vitalidade. Como não se pode dizer que o oceano é benéfico ou maléfico, também não se pode dizer que fosse optimista ou pessimista. Era um crente na espécie humana. Acrescentou um cúbito à espécie ao devolver-lhe a sua dignidade, a sua força e a sua necessidade de criação. Via tudo como criação, como alegria solar. Não registava as coisas ordenadamente e, sim, musicalmente. Era-lhe indiferente o facto de os Franceses terem ouvido duro, pois orquestrava para todo o mundo simultaneamente. Qual não foi, por consequência, o meu espanto quando, ao chegar a França alguns anos mais tarde, verifiquei não haver monumentos a ele erigidos nem ruas como seu nome. Pior ainda: durante oito anos inteirinhos não ouvi nenhum francês mencionar o seu nome. Teve de morrer para ser colocado no panteão das divindades francesas - e como os seus deíficos contemporâneos devem ter parecido apagados, doentios, na presença de tão radiante sol! Sabe-se lá o que lhe poderia ter acontecido se não fosse médico e, portanto, capaz de ganhar a vida! Talvez tivesse sido mais uns braços para carregar os camiões do lixo! O homem que deu vida aos frescos egípcios em todas as suas flamantes cores, esse homem podia ter morrido de fome perante a indiferença total do público. Mas ele era um oceano, um oceano em que os críticos se afundaram. E os editores e o público também. Serão precisas eternidades para ele secar, para se evaporar. Mais ou menos tanto tempo quanto será preciso para os Franceses adquirirem um ouvido musical. 274 Henry Miller Trópico de Capricórnio 275 Se não houvesse música eu teria ido parar ao manicómio, como Nijinski. (Foi mais ou menos nessa altura que descobriram que Nijinski era doido. Tinham-no encontrado a dar o seu dinheiro aos pobres, o que é sempre um mau sinal!) A minha mente estava cheia de tesouros maravilhosos, o meu gosto era apurado e exigente, os meus músculos estavam em excelente forma, o meu apetite era grande e o meu fôlego born. Não podia fazer outra coisa senão aperfeiçoar-me, e ia endoidecendo comos aperfeiçoamentos que fazia todos os dias. Mesmo que houvesse um emprego para mim, não o podia aceitar, pois do que precisava não era de trabalho e, sim, de uma vida mais abundante. Não podia desperdiçar tempo a ser professor, advogado, médico, político ou qualquer das outras coisas que a sociedade tinha para oferecer. Era mais fácil aceitar tarefas inferiores, pois deixavam-me o espírito livre. Lembro-me de que, depois de ser despedido dos camiões do lixo, trabalhei para um evangelista que parecia ter grande confiança em mim. Eu era uma espécie de recepcionista, cobrador e secretário particular. Ele trouxe ao meu conhecimento todo o mundo da filosofia indiana. À noite, quando estava livre, reunia-me comos meus amigos em casa de Ed Bauries, que vivia num bairro aristocrático de Brooklyn. Ed Bauries era um pianista excêntrico incapaz de ler uma nota. Tinha um amigo íntimo chamado George Neumiller, comquem tocava muitas vezes duetos. Dos doze - mais ou menos - que nos reuníamos em casa de Ed Bauries quase todos sabíamos tocar piano. E, nessa altura, tínhamos todos entre vinte e um e vinte e cinco anos. Nunca levávamos mulheres e quase nunca nos referíamos a elas durante as nossas sessões. Tínhamos à nossa disposição muita cerveja e uma grande casa toda inteira, pois as nossas reuniões eram no Verão, quando a família dele estava ausente. Embora pudesse falar de uma dúzia de outras casas semelhantes, menciono a de Ed Bauries em virtude de ser típica de algo que nunca mais encontrei em parte alguma do Mundo. Nem Ed Bauries nem nenhum dos seus amigos suspeitavam do género de livros que eu andava a ler, e muito menos das coisas que me ocupavam o espírito. Quando chegava, saudavam-me entusiasticamente, como a um palhaço. Esperavam que animasse as coisas. Havia uns quatro pianos espalhados pela grande casa, para não falar da celesta, do órgão, das guitarras, dos bandolins, das flautas e sei lá que mais. Ed Bauries era um chalado, um chalado muito afável, muito compreensivo e muito generoso. As sanduíches eram do melhor, a cerveja abundante, e se um tipo queria passar lá a noite ele punha à sua disposição um excelente divã, sem qualquer problema. Ao descer a rua uma grande rua larga, sonolenta e luxuosa, uma rua que não parecia deste mundo -, ouvia tocar o piano na grande sala do rés-do-chão. As janelas estavam escancaradas, e à medida que me aproximava via Al Burger ou Connie Grimm refestelados nas grandes poltronas, comos pés no parapeito e grandes canecas de cerveja na mão. Era provável que George Neumiller estivesse ao piano, a improvisar, sem camisa e comum grande charuto na boca. Falavam e riam enquanto George tocava, a procurar uma aberta. Assim que encontrava um tema, chamava Ed, e este sentava-se a seu lado, estudava o tema à sua maneira amadora e, de súbito, martelava as teclas, dando a réplica adequada. Quando eu entrava era possível que alguém estivesse a tentar fazer o pino na sala contígua havia três grandes salas no rés-do-chão, umas a seguir às outras, e ao fundo um jardim, um enorme jardim comflores, árvores de fruto, videiras, estátuas, fontes, tudo. Às vezes, quando estava muito calor, levávamos o celesta ou o pequeno órgão para o jardim (e um barril de cerveja, naturalmente) e sentávamo-nos às escuras a rir e a cantar, até os vizinhos nos obrigarem a calar. Outras vezes, tocávamos música em toda a casa ao mesmo tempo, em todos os andares. Era verdadeiramente louco, embriagador, e se estivessem mulheres presentes nessas alturas estragariam tudo. Em certas ocasiões, era como assistir a uma prova de resistência: Ed Bauries e George Neumiller no piano de cauda, cada um a tentar cansar o outro, mudando de lugar sem parar, cruzando as mãos, limitando-se por vezes a martelar as teclas e outras vezes tocando como um Wurlitzer. E havia sempre qualquer coisa que fazia rir. Ninguém nos perguntava o que fazíamos, no que pensávamos, etc. Quando chegávamos a casa de Ed Bauries, estavam-se todos nas tintas para o tamanho do chapéu que usávamos ou para o preço que custara. Era divertimento do princípio ao fim - comsanduíches e bebidas por conta da casa. E quando as coisas aqueciam, comtrês ou quatro pianos a tocar ao mesmo tempo, além do celesta, do órgão, dos ban- 276 Henry Miller dolins e das guitarras, comcerveja a correr a jorros, as prateleiras das chaminés cheias de sanduíches e charutos e uma brisa a soprar do jardim, e comGeorge Neumiller nu da cintura para cima e a modular como um demónio, quando isso acontecia era melhor do que qualquer espectáculo que jamais vi e não custava uni cêntimo. Por sinal, como o despir e o vestir constantes, saía de lá muitas vezes comuns trocos a mais e uma algibeira cheia de bons charutos. Nunca os via entre sessões: era só nas noites de segunda-feira, durante o Verão, que Ed nos abria as portas. De pé no jardim, a ouvir a barulheira, quase me custava a acreditar que se tratasse da mesma cidade. E se alguma vez tivesse aberto a boca e revelado as entranhas, teria sido o fim. Nenhum daqueles tipos valia grande coisa, em relação ao Mundo. Eram apenas bons rapazes, crianças, indivíduos que gostavam de música e de se divertir. E gostavam tanto disso que às vezes até tínhamos de chamar a ambulância como na noite em que Al Burger torceu um joelho ao mostrar-nos uma das suas habilidades. Estava toda a gente tão feliz, tão cheia de música, tão animada, que ele precisou de uma hora para nos persuadir que se magoara, de facto. Tentámos levá-lo para o hospital, mas ficava muito longe e, além disso, tratava-se de uma coisa tão gira que, de vez em quando, o deixávamos cair e ele gritava como um doido. Por fim, telefonámos a pedir auxílio de um dos telefones da Polícia e pouco depois chegou a ambulância e comela a ramona. Levaram Al para o hospital e o resto da malta para a choça. No caminho, cantámos comtoda a força dos nossos pulmões. Quando nos libertaram, continuávamos a sentir-nos bem, e os chuis também se sentiam bem, e por isso fomos todos para a cave, onde havia um piano desafinado, e continuámos a cantar e a tocar. Tudo isto parece um período qualquer da história de A. C., que não acabou por haver uma guerra e sim porque nem uma casa como a de Ed Bauries está imune ao veneno que escorre da periferia e se infiltra. Porque todas as ruas se começam a tornar uma Myrtle Avenue; porque o vazio enche todo o continente, do Atlântico ao Pacífico; porque, passado um certo tempo, não se pode entrar numa única, em todo o comprimento e toda a largura da terra, e encontrar um homem a fazer o pino e a cantar. São coisas Trópico de Capricórnio 277 que já não se fazem, pura e simplesmente. E não tocam dois pianos ao mesmo tempo em lado nenhum, nem em lado nenhum há dois homens prontos a tocar toda a noite, só pelo prazer que isso causa. Dois homens capazes de tocar como Ed Bauries e George Neumiller são contratados pela rádio ou pelo cinema, utiliza-se apenas um dedalzinho do seu talento e o resto deita-se para o caixote do lixo. A julgar pelos espectáculos públicos, ninguém faz uma ideia do talento que existe no grande continente americano. Tempo depois, e era por isso que costumava sentar-me nos degraus da Tin Pan Alley, entretinha as tardes a ouvir as profissionais esforçarem-se. Também era born, mas era diferente. Não havia divertimento naquele tocar, era um ensaio perpétuo para render dólares e cernimos. Qualquer homem da América que tivesse uns gramas de humor poupava-o muito bem poupadinho, para ir vivendo. Havia entre eles alguns chalados maravilhosos, homens que nunca esquecerei, homens que não deixaram nome nenhum e que foram o melhor que tivemos. Lembro-me de um executante anónimo do circuito de Keith que talvez tenha sido o maior louco da América, sem que isso lhe valesse mais do que uns cinquenta dólares por semana. Três vezes por dia e todos os dias da semana, aparecia no palco e fascinava os espectadores. Não tinha um número: improvisava. E nunca repetia as suas piadas nem as suas proezas. Dava-se prodigamente, era um daqueles indivíduos cheios de uma alegria e de uma energia tão violentas que nada as pode conter. Era capaz de tocar qualquer instrumento e dançar qualquer dança e, coma maior das facilidades, inventava histórias que fazia durar até a campainha tocar. Não lhe bastava desempenhar o seu próprio número, tinha ainda de ajudar os outros. Colocava-se nos bastidores e aguardava o momento de intervir no número de um colega. Era todo um espectáculo, todo um espectáculo que continha mais terapia do que o arsenal completo da ciência moderna. Deviam pagar a um homem assim o mesmo que pagam ao presidente dos Estados Unidos. Deviam despedir o presidente dos Estados Unidos e todo o Supremo Tribunal e pôr um homem assim a dirigir as coisas. Era um indivíduo capaz de curar qualquer tipo de doença, e mais: fá-lo-ia de borla, se lho pedissem. São homens destes que despejam os 278 Henry Miller manicómios. Não propõem uma cura: endoidecem toda a gente. Entre esta solução e o estado perpétuo de guerra que é a civilização, só há uma saída - e essa saída é a estrada pela qual todos enveredaremos, eventualmente, porque tudo o mais está condenado ao fracasso. O tipo que representa esta única via tem uma cabeça comseis faces e oito olhos; a cabeça é um farol giratório e, em vez de ter uma coroa tripla no cimo, como seria muito natural que tivesse, tem um buraco que ventila os poucos miolos que restam. E são realmente muito poucos, porque há muito pouca bagagem para transportar e porque, vivendo em plena consciência, a matéria cinzenta desfaz-se em luz. Este é o único tipo de homem que se pode colocar acima do comediante; não ri nem chora, está para além do sofrimento. Ainda não o reconhecemos porque está muito chegado a nós, porque na realidade está mesmo debaixo da nossa pele. Quando o comediante nos acerta nas tripas, este homem, cujo nome suponho que poderia ser Deus, se ele precisasse de ter um nome, este homem fala. Quando toda a espécie humana treme de riso, quando ri tanto que chega a doer, então todos têm o pé no caminho. Nesse momento toda a gente pode muito bem ser Deus ou outra coisa qualquer. Nesse momento, dá-se o aniquilamento da percepção dupla, tripla, quádrupla, que é o que faz a matéria cinzenta enroscar-se em dobras mortas no topo do crânio. Nesse momento, sentimos realmente o buraco no alto da cabeça, sabemos que tivemos lá um olho, em tempos, e que esse olho era capaz de abarcar tudo ao mesmo tempo. Agora o olho desapareceu, mas quando nos rimos até as lágrimas correrem e a barriga doer, então estamos realmente a abrir a clarabóia e a ventilar os miolos. Nesse momento, ninguém nos pode convencer a pegar numa arma e matar o nosso inimigo; tão-pouco nos podem persuadir a abrir um grosso volume contendo as verdades do mundo e a lê-lo. Se sabemos o que a liberdade significa - a liberdade absoluta e não uma liberdade relativa -, então temos de reconhecer que nunca estaremos mais próximos dela do que nesse momento. Não sou contra o estado do mundo por ser moralista e, sim, porque quero rir mais. Não digo que Deus é uma grande barngada de riso; digo que temos de rir commais força, se nos queremos aproximar, que seja, de Deus. O meu único objecTroptco de Capricórnio 279 tivo na vida é chegar perto de Deus - isto é, chegar mais perto de mim próprio. E por isso que não me importa a estrada por que enverede. Mas a música é muito importante. A música é um tónico para a glândula pineal. A música não é Bach ou Beethoven; a música é o abre-latas da alma. Tornanos terrivelmente calmos por dentro, dá-nos a consciência de que o nosso ser tem um telhado. O horror acutilante da vida não está contido nas calamidades nem nas catástrofes, porque essas coisas despertam-nos, nós familiarizamo-nos comelas e elas acabam por ser dominadas... O horror acutilante da vida é mais como estar, digamos, num quarto de hotel em Hoboken e ter na algibeira apenas o dinheiro suficiente para mais uma refeição. Estamos numa cidade em que nunca mais esperamos voltar a estar e temos apenas de passar a noite no nosso quarto, no hotel, mas permanecer nesse quarto exige toda a nossa coragem e energia. Deve haver uma boa razão para certas cidades, certos lugares, inspirarem tal aversão, tal medo. Deve cometer-se em tais lugares qualquer espécie de assassínio perpétuo. As pessoas são da mesma raça que nós, tratam da sua vida como as pessoas de qualquer outro lado, constróem o mesmo tipo de casa - nem melhor nem pior -, têm o mesmo sistema de educação, a mesma moeda e os mesmos jornais, e, no entanto, são absolutamente diferentes das outras pessoas que conhecemos, toda a atmosfera é diferente, o ritmo é diferente e a tensão é diferente. É quase como olharmos para nós noutra encarnação. Sabemos, comuma certeza muito perturbadora, que não é o dinheiro, nem a política, nem a religião, nem a instrução, nem a raça, nem a língua, nem os costumes que governam a vida e, sim, qualquer outra coisa, algo que tentamos constantemente asfixiar e que na realidade nos asfixia a nós, pois de contrário não nos sentiríamos subitamente aterrorizados e não nos perguntaríamos como escapar. Nalgumas cidades nem precisamos de passar a noite; basta uma hora ou duas para nos tirar a coragem. Penso em Bayonne desse modo. Cheguei lá de noite, comalgumas moradas que me tinham dado. Levava uma pasta debaixo do braço, comum prospecto da Enciclopédia Britânica. A minha missão era tentar, ao abrigo da noite, vender a maldita enciclopédia a quaisquer pobres diabos que quisessem aperfeiçoar-se. Se me tivessem abandonado em 280 Henry Miller Helsingfors não me sentiria menos à vontade do que a percorrer as ruas de Bayonne. Para mim, não era uma cidade americana. Não era sequer uma cidade; era um imenso octópode a debater-se no escuro. A primeira porta a que cheguei pareceu-me tão assustadora que nem me atrevi a bater. E aconteceu-me o mesmo diante de diversas outras, antes de conseguir a coragem necessária para bater. A primeira cara para que olhei deixou-me sem pinta de sangue. Não por timidez ou embaraço: por medo. Era o rosto de um ajudante de pedreiro, um tipo ignorante a quem tanto se daria derrubar-nos comum machado como cuspir-nos num olho. Fingi que me enganara e corri para a morada seguinte. Cada vez que a porta se abria via um monstro. E, finalmente, bati à porta de um simplório que queria realmente aperfeiçoar-se, e isso foi o fim, tirou-me o resto da coragem. Sentime verdadeiramente envergonhado de mim mesmo, do meu país, da minha raça e da minha época. Vi-me e desejei-me para o persuadir a não comprar a maldita enciclopédia. Quando ele me perguntou inocentemente o que me levara então a sua casa, respondi-lhe, sem um segundo de hesitação, comuma espantosa mentira, comuma mentira que viria a revelar-se uma grande verdade. Disse-lhe que fingia, apenas, andar a vender a enciclopédia para travar conhecimento compessoas e escrever a seu respeito. Isso interessou-o muitíssimo, ainda mais do que a enciclopédia. Quis saber o que escreveria a seu respeito, se pudesse dizer-lhe, claro. Levei vinte anos a encontrar a resposta a essa pergunta, mas aqui vai ela. Se ainda está interessado em saber, John Doe da cidade de Bayonne, preste atenção. Devo-lhe muito, porque depois da mentira que lhe disse saí da sua casa, rasguei o prospecto que me fora fornecido pelos vendedores da Encilopédia Britânica e atirei-o para a valeta. Prometi a mim mesmo que nunca mais abordaria as pessoas comfalsos pretextos, nem que fosse para lhes dar a Bíblia Sagrada. «Nunca mais venderei nada, nem que tenha de morrer de fome. Agora you para casa, sento-me e começo realmente a escrever a respeito de pessoas. E se alguém me bater à porta para me vender qualquer coisa, mando-o entrar e pergunto-lhe: ”Porque faz isso?” E se ele me responder que é porque precisa de ganhar a vida, dar-lhe-ei todo o dinheiro que tiver e voltarei a pedir-lhe que pense no que está a fazer. Quero impedir o máximo de homens possível Trópico de Capricórnio 281 de fingirem que têm de fazer isto ou aquilo porque precisam de ganhar a vida. Não é verdade. Podese morrer de fome - é muito melhor. Todo o homem que morre voluntariamente de fome encrava outra rodinha dentada do processo automático. Prefiro ver um homem pegar numa arma e matar o vizinho, a fim de obter a comida de que precisa, a vê-lo alimentar o processo automático fingindo que tem de ganhar a vida.» Era isto que lhe queria dizer, Mr. John Doe. Adiante. Não é o horror acutilante das calamidades e das catástrofes, como dizia, mas sim a regressão automática, o panorama severo da luta atávica da alma. Uma ponte na Carolina do Norte, perto da fronteira do Tennessee. Saindo dos luxuriantes campos de tabaco, cabanas baixas por toda a parte e o cheiro de madeira nova a arder. O dia passado num denso lago de ondulante verde. Praticamente ninguém à vista. De súbito, uma clareira e encontro-me sobre uma grande ravina, atravessada por uma fraca ponte de madeira. É o fim do mundo! Não sei, confesso, como cheguei aqui e porque estou aqui. Como you comer* E, mesmo que coma a maior refeição que se possa imaginar, continuarei triste, assustadoramente triste. Não sei para onde ir, daqui. Esta ponte é o fim, o meu fim, o fim do mundo meu conhecido. Esta ponte é loucura: não existe nenhuma razão para estar aqui, assim como não existe nenhuma razão para as pessoas a atravessarem. Recuso-me a dar outro passo, oponho-me a atravessar essa louca ponte. Perto há um muro baixo ao qual me encosto, a tentar decidir que fazer e aonde ir. Apercebo-me, comtoda a serenidade, de que sou uma pessoa terrivelmente civilizada, da necessidade que tenho da companhia de pessoas, de conversar, de livros, de teatro, de música, de cafés, de bebidas, etc. E terrível ser civilizado, porque quando chegamos ao fim do mundo não temos nada que suporte o terror da solidão. Ser civilizado é ter necessidades complicadas. E um homem, quando está exausto, não devia precisar de nada. Passara o dia a atravessar campos de tabaco e a sentir-me cada vez mais inquieto. Que tenho eu a ver comtodo este tabaco? Para onde you? Por toda a parte as pessoas cuidam de plantações e produzem mercadorias para outras pessoas, e eu sou como um fantasma a deslizar entre toda esta ininteligível actividade. Quero encontrar qualquer espécie de trabalho, mas não quero ser uma parte 282 Henry Miller disto, deste infernal processo automático. Passo por uma cidade e vejo um jornal que diz o que se passa na cidade e nas suas imediações. A mim parece-me que não está a acontecer nada, que o relógio parou e estes pobres diabos não deram por tal. Além disso, tenho uma forte intuição de que anda assassínio no ar. Cheira-me. Alguns dias atrás, transpus a linha imaginária que separa o Norte do Sul. Só tive consciência disso quando vi aparecer um negro a conduzir uma parelha. Quando chegou ao meu lado, levantou-se do banco e tirou o chapéu, muito respeitosamente. Tinha cabelo branco como a neve e um rosto cheio de dignidade. Senti-me horrivelmente, compreendi que ainda havia escravos. Aquele homem a tirar-me o chapéu por eu ser de raça branca! Eu, eu é que lhe devia ter tirado o chapéu! Devia tê-lo saudado como sobrevivente de todas as vis torturas que os homens brancos têm infligido aos pretos. Devia ter tirado o meu chapéu primeiro, para que ele soubesse que não faço parte deste sistema, que peço perdão por todos os meus irmãos brancos, tão ignorantes e tão cruéis que não são capazes de um gesto franco e honesto. Hoje sinto os seus olhos constantemente postos em mim; observam-me atrás das portas, atrás das árvores. Muito sossegada e pacificamente, na aparência. Negro nunca dizer nada. Negro passar o tempo todo a cantarolar. Branco pensar que negro aprender o seu lugar. Negro não aprender nada. Negro esperar. Negro observar tudo que homem branco faz. Negro não dizer nada, não senhor, nassinhor. MAS MESMO ASSIM O NEGRO ESTÁ A MATAR O HOMEM BRANCO! Todas as vezes que um negro olha para um branco traspassa-o comum punhal. Não é o calor, não é o ancilóstomo, não são as más colheitas que estão a matar o Sul: é negro! O negro destila um veneno, quer o queira, quer não. O Sul está drogado, dopado comveneno de negro. Adiante... Sentado à porta de uma barbearia, junto do rio James. Estarei aqui apenas dez minutos, enquanto tiro o peso de cima dos pés. Do outro lado, há um hotel e algumas lojas; acaba tudo de repente, termina como começou: sem razão nenhuma. Do fundo da alma lamento os pobres diabos que nascem e morrem aqui. Não há nenhuma razão lógica para este lugar existir. Não há nenhuma razão para alguém atravessar a rua e fazer a barba ou cortar o cabelo, ou sequer para comer Trópico de Capricórnio 283 um bife do lombo. Homens, comprem uma arma e matem-se uns aos outros! Varram-me esta rua do pensamento para sempre, pois ela não tem um mínimo de significado. No mesmo dia, depois de escurecer. Continuo a andar, a embrenhar-me mais e mais profundamente no Sul. Afasto-me de uma cidadezinha por uma estrada curta, que leva à auto-estrada. De súbito, ouço passos atrás de mim e, pouco depois, um homem novo passa por mim a trote, ofegante e a praguejar comtodas as forças. Paro um instante, a perguntar-me o que se passará. Ouço outro homem aproximar-se, também a trote; é mais velho e empunha uma arma. Respira comrelativa facilidade e não lhe sai uma palavra da boca. Quando chega perto de mim, a Lua rompe as nuvens e permite-me ver-lhe bem a cara. É um caçador de homens. Afasto-me do caminho, enquanto se aproximan outros. Tremo de medo. E o xerife, ouço dizer, e vai apanhá-lo. Horrível. Sigo na direcção da auto-estrada à espera de ouvir o tiro que acabará tudo. Não ouço nada. Apenas o respirar pesado do jovem e os passos rápidos, ansiosos, da turba que vai atrás do xerife. Quando me aproximo da auto-estrada, um homem surde da escuridão e abeira-se silenciosamente de mim. «Aonde vais, meu filho?», pergunta, calma e quase ternamente. Tartamudeio qualquer coisa acerca da cidade seguinte. «É melhor ficares aqui, filho.» Não respondo. Deixo-o levar-me de novo para a cidade e entregar-me como a um ladrão. Dormi no chão comuns cinquenta outros tipos. Tive um sonho sexual maravilhoso, que terminou coma guilhotina. Continuo... É tão difícil recuar como avançar. Já não tenho a sensação de ser um cidadão americano. A parte da América de onde provenho, onde tinha alguns direitos, onde me sentia livre, ficou tão para trás que começa a tornar-se vaga na minha memória. Tenho a sensação de que alguém me encosta constantemente uma arma às costas. Continua a andar - é tudo quanto me parece ouvir. Se algum homem fala comigo, tento não parecer demasiado inteligente. Finjo, ou tento fingir, que estou vitalmente interessado nas colheitas, no tempo ou nas eleições. Se paro, olham para mim, brancos e pretos - olham-me e voltam a olhar-me, como se eu fosse suculento e comestível. Tenho de calcorrear outros mil quilómetros, mais ou menos, como se tivesse um objectivo claro, como se fosse 284 Henry Miller realmente a algum lado. Tenho também que me mostrar a modos que grato, por não ter ainda dado na veneta de ninguém disparar contra mim. É deprimente e estimulante ao mesmo tempo. Um tipo é um homem marcado, e no entanto ninguém prime o gatilho. Deixam-no ir direito ao golfo do México, onde se pode afogar. Sim, senhor, cheguei ao golfo do México, meti por ele dentro e afoguei-me. Fi-lo grátis. Quando pescaram o cadáver, viram que estava marcado F. O. B. Myrtle Avenue, Brooklyn. À cobrança no destino. Quando mais tarde me perguntaram porque me matara, a única coisa que encontrei para responder foi: porque quis electríficar o cosmo! Queria comisso dizer uma coisa muito simples: Delaware, Lackwanna e Western tinham sido electrificadas, a Seaboard Air Line tinha sido electrificada, mas a alma do homem ainda se encontrava na fase do carroção coberto. Nasci no meio da civilização e aceitava-a comtoda a naturalidade - que outra coisa poderia fazer? O engraçado é que mais ninguém tomava o caso a sério. Eu era o único homem da comunidade verdadeiramente civilizado. Não havia lugar para mim - por enquanto. E, todavia, os livros que lia e a música que ouvia garantiam-me existirem no mundo outros homens como eu. Tive de me ir afogar no golfo do México a fim de ter um pretexto para continuar essa existência pseudocivilizada. Precisei, por assim dizer, de me «despiolhar» do meu corpo espiritual. Quando tomei consciência de que, em relação ao esquema das coisas, era menos do que pó, sentime realmente muito feliz. Perdi num instante toda a noção da responsabilidade. E, se não fosse os meus amigos cansarem-se de me emprestar dinheiro, talvez tivesse continuado indefinidamente a limitar-me a passar o tempo. O Mundo era como um museu para mim; não via mais nada que valesse a pena fazer senão ir comendo o maravilhoso bolo coberto de chocolate que os homens do passado tinham abandonado nas nossas mãos. Toda a gente se aborrecia ao ver como me divertia. Segundo a sua lógica, a arte era uma coisa muito bonita, oh, sim, sem dúvida, mas as pessoas deviam trabalhar para ganhar a vida... e depois descobririam que estavam demasiado cansadas para pensar em arte. Mas foi quando ameacei acrescentar uma ou duas camadas pessoais ao maravilhoso bolo coberto de chocolate que Trópico de Capricórnio 285 rebentaram comigo. Esse foi o retoque final. Demonstrara ser definitivamente doido. Primeiro consideraram-me um membro inútil da sociedade; depois, durante algum tempo, um cadáver atrevido e despreocupado, comum apetite tremendo; finalmente, passei a ser doido. (Ouve, sacana, arranja um emprego... não contes mais connosco, estamos fartos!) De certo modo, essa mudança de fachada foi revigorante. Sentia o vento soprar através dos corredores. Pelo menos, «eles» já não vogavam na calmaria. Era a guerra, e como cadáver eu ainda era suficientemente recente para me restar um pouco de genica para a luta. A guerra é revigorante. A guerra agita o sangue. Foi no meio da guerra mundial, da qual me esquecera, que a mudança se operou. Casei da noite para o dia, para demonstrar a todos que, de uma maneira ou de outra, me estava marimbando. Casar estava certo, na mentalidade deles. Lembro-me de que, graças ao anúncio do casamento, consegui logo um empréstimo de cinco dólares. O meu amigo MacGregor pagou a licença necessária, e até a barba e o corte de cabelo, a que insistiu me submetesse, para me casar. Afirmaram que um tipo não se podia casar sem se barbear e, embora eu não visse razão nenhuma para isso, submeti-me, visto ser de borla. Foi interessante verificar como toda a gente parecia ansiosa por contribuir comqualquer coisa para a nossa manutenção. De repente, só porque demonstrara um pouco de senso, cercaram-nos todos: não podiam fazer isto por nós? Não podiam fazer aquilo por nós? Agora, claro, presumiam, eu iria comcerteza trabalhar, agora veria que a vida é uma coisa séria. Nunca lhes passou pela cabeça que eu poderia deixar a minha mulher trabalhar para mim. E na verdade fui muito decente comela, ao princípio. Não era nenhum condutor de escravos. Só pedia dinheiro para os transportes a fim de procurar o mítico emprego e uns miúdos para cigarros, cinema, etc. As coisas importantes, tais como livros, álbuns musicais, gramofones, bifes de cervejaria e outras do género, podíamos arranjá-las a crédito, agora que éramos casados. O sistema de prestações fora inventado expressamente para tipos como eu. O pagamento inicial era fácil; o resto... ficava a cargo da Providência. Uma pessoa tem de viver, diziam constantemente. Pois foi isso mesmo que passei a dizer, para comigo: Uma pessoa tem de viver! Vive primeiro e paga depois. Se via um 286 Henry Miller sobretudo que me agradava, entrava e comprava-o. Mas cornprava-o um pouco antes da estação, para mostrar que era um indivíduo sério, previdente. Merda, era um homem casado e em breve seria, provavelmente, pai... tinha direito a um sobretudo de Inverno, ao menos, não tinha? E depois de ter o sobretudo pensava num par de bons sapatos resistentes, a condizer - um par de sapatos grossos, de cordovão, como toda a vida desejara mas nunca me pudera dar ao luxo de ter. E quando o frio apertava e me encontrava na rua à procura do tal emprego, às vezes atacava-me uma fome dos demónios. É realmente saudável sair assim, dias após dia, calcorrear a cidade debaixo de chuva e neve, vento e granizo. Por isso, de vez em quando entrava num restaurante aconchegado e pedia um suculento bife alto, comcebola e batatinhas fritas. Fiz um seguro de vida e, também, um seguro contra acidentes. Segundo me diziam, é importante um tipo casado fazer essas coisas. Supondo que caía morto, um dia, e depois? Lembro-me de o indivíduo me dizer isso mesmo, para me convencer. Eu já lhe tinha dito que assinaria o contrato, mas ele devia-se ter esquecido. Dissera-lhe imediatamente «sim», pela força do hábito, mas, repito, ele devia-se ter esquecido - ou então era contra as normas deixar um tipo assinar o contrato antes de lhe impingir o discurso de venda todo. Fosse como fosse, preparava-me para lhe perguntar quanto tempo seria preciso decorrer antes de poder pedir um empréstimo sobre a apólice, quando ele me atirou coma hipotética calamidade: Supondo que caía morto, um dia, e depois? Deve ter-me julgado um bocado chalupa, pelo modo como me ri coma pergunta. Ri até as lágrimas me correrem pela cara abaixo. Por fim, ele observou: «Não me parece que tenha dito nada assim tão engraçado...» «Bem», redargui-lhe, e por momentos fiquei sério, «olhe para mim comatenção. Pareço-lhe um indivíduo que queira saber para alguma coisa do que acontece depois de estar morto?» Aparentemente, ficou escandalizado comas minhas palavras, pois respondeu-me: «Não creio que essa seja uma atitude muito ética, Mr. Miller. Estou certo de que não quereria que a sua mulher...» «Escute, suponha que lhe dizia que me estou marimbando para o que possa acontecer à minha mulher quando eu morrer. E então, hem?» Como as minhas palavras pareceram ofender ainda mais as suas susceptibilidades éticas, Trópico de Capricórnio 287 acrescentei, pelo sim, pelo não: «Pela parte que me toca, podem até não pagar o seguro quando eu esticar. Faço isto apenas para que você se sinta bem. Tento ajudar as pessoas, cornpreende? Precisa de viver, não precisa? Pois eu estou apenas a meter-lhe um pouco de comida na boca, mais nada. Se tem mais alguma coisa para vender, desembuche. Compro tudo quanto me parece born. Sou um comprador, não um vendedor. Gosto de ver as pescas felizes, é por isso que compro coisas. A quanto disse que sairia por semana? Cinquenta e sete centimes? Óptimo. Ó que são cinquenta e sete cernimos? Vê aquele piano? São cerca de trinta e nove cêntimos por semana, creio. Olhe à sua volta... Tudo quanto vê custa um tanto por semana. Disse que eu podia cair morto, e depois? Acha que eu ia morrer e deixar toda esta gente prejudicada? Seria uma brincadeira de muito mau gosto. Não, preferiria que viessem e levassem as coisas... se não as pudesse pagar, evidentemente...» O tipo mexia-se nervosamente e tinha uma expressão vítrea no olhar. «Desculpe, não vai uma pinguinha, para molhar a apólice?» Respondeu que não, mas eu insisti. E, além disso, ainda não assinara a papelada, a minha urina teria de ser analisada e aprovada e seriam necessários uma quantidade de selos e carimbos - sabia toda essa treta de cor. Por isso pensei que seria melhor bebermos uma pinga primeiro e protelarmos assim a parte séria do negócio, porque, sinceramente, comprar seguros ou comprar fosse o que fosse era um verdadeiro prazer para mim, dava-me a sensação de que era exactamente como qualquer outro cidadão um homem, coma breca! - e não um macaco. Por isso fui buscar a garrafa do xerez (não me davam outra coisa) e enchi-lhe generosamente um copo, a pensar para comigo que era agradável ver o xerez esgotar-se, pois para a próxima talvez me comprassem outra coisa melhor. «Também vendi seguros, em tempos», informei-o, levando o copo aos lábios. «Claro que sou capaz de vender seja o que for. O meu mal é ser indolente. Num dia como o de hoje, por exemplo, não é mais agradável estar em casa, a ler um livro ou a ouvir música? Por que diabo havia de sair e cansar-me para uma companhia de seguros? Se estivesse a trabalhar, hoje, você não me teria apanhado em casa, pois não? Acho que é melhor levar as coisas comcalma e ajudar as pessoas, quando elas aparecem... como você, por exemplo. 288 Henry Miller Trópico de Capricórnio 289 b r É muito mais agradável comprar coisas do que vendê-las, não acha? Quando se tem dinheiro para isso, claro! Nesta casa não precisamos de muito dinheiro. Como lhe disse, o piano custa cerca de trinta e nove cêntimos por semana - ou quarenta e dois, não sei bem -, e o...» - Desculpe, Mr. Miller, mas não acha que devíamos tratar de assinar estes papéis? - interrompeume. - Oh, comcerteza! - respondi-lhe, risonho. - Trouxe todos consigo? Qual lhe parece que devemos assinar primeiro? A propósito, não tem uma caneta de tinta permanente que gostasse de me vender? - Assine aqui, por favor - pediu, fingindo ignorar as minhas observações. - E aqui também. Agora, Mr. Miller, despeço-me. Terá notícias da companhia dentro de poucos dias. - Quanto mais depressa melhor - redargui, enquanto o conduzia à porta -, pois posso mudar de ideias e suicidar-me. - comcerteza, Mr. Miller, comcerteza, o mais depressa possível... E agora bons dias, bons dias! Claro que o sistema de prestações chega uma altura que falha, mesmo que um tipo seja um comprador assíduo, como eu era. Fazia, sem dúvida nenhuma, todos os possíveis para manter ocupados os fabricantes e os publicitários da América, mas parece que ficaram decepcionados comigo. Toda a gente se decepcionava comigo. Houve um homem, em particular, que ficou mais decepcionado comigo do que todos os outros, um homem que fez realmente um esforço para me ajudar e a quem deixei ficar mal. Penso nele e no modo como me admitiu como seu assistente - tão pronta e graciosamente - porque mais tarde, quando contratava e despedia como um revólver de calibre 42, eu próprio fui atraiçoado, mas nessa altura já estava por assim dizer imunizado e, por isso, não liguei nenhuma. O homem a que me refiro fez tudo para me demonstrar que acreditava em mim. Era editor do catálogo de uma grande casa de vendas pelo correio, um enorme compêndio de sucata que saía uma vez por ano e levava um ano inteiro a preparar. Não fazia a mínima ideia do que se tratava e já nem me lembro por que motivo entrei no seu escritório, nesse dia - a não ser que desejasse aquecer-me, pois passara o dia inteiro nas docas, a ver se arranjava um emprego como conferente, apontador ou qualquer coisa. O escritório era acolhedor e eu fiz-lhe um grande discurso, para descongelar. Não sabia que emprego pedir, disse, só queria um emprego. Era um homem sensível e muito bondoso e pareceu adivinhar que eu era escritor, ou queria ser escritor, pois a breve trecho estava a perguntar-me o que gostava de ler e qual era a minha opinião acerca deste ou daquele escritor. Por coincidência, eu tinha uma lista de livros na algibeira livros que ia procurar na biblioteca pública -, tirei-a e mostrei-lha. «Meu Deus!», exclamou. «Lê realmente este livros?» Acenei modestamente coma cabeça, na afirmativa, e, como costumava acontecer quando uma observação idiota como aquela me destravava a língua, comecei a falar dos Mistérios de Hamsun, que acabara de ler. A partir desse momento, o homem foi como massa nas minhas mãos. Quando me perguntou se queria ser seu assistente, apressou-se a pedir desculpa por me oferecer um lugar tão modesto. Disse que podia levar o tempo que precisasse a aprender os pormenores do cargo, o que, estava convencido, seria canja para mim. E depois perguntou-me se não me podia emprestar algum dinheiro, do seu bolso, até eu receber o ordenado. Antes que tivesse tempo de dizer sim ou não, tirou uma nota de vinte dólares da algibeira e meteu-ma na mão. Fiquei comovido, naturalmente. Senti-me disposto a trabalhar para ele como um filho da mãe. Editor assistente... Soava bem, sobretudo aos ouvidos dos credores das minhas vizinhanças. E durante algum tempo senti-me tão contente por comer rosbife, e frango, e lombo de porco, que fingi gostar do trabalho. Na realidade, porém, tinha dificuldade em me manter acordado. Numa semana aprendi o que precisava de aprender. E depois? Depois senti-me condenado a trabalhos forçados perpétuos. Para amenizar as coisas, entretinha o tempo a escrever histórias e ensaios e longas cartas aos meus amigos. Talvez pensassem que estava a escrever ideias novas para a companhia, pois durante algum tempo ninguém me prestou atenção. Parecia-me um emprego maravilhoso. Dispunha do dia quase todo para mim, para os meus escritos, pois aprendera a despachar o trabalho da firma numa hora, mais ou menos. Andava tão entusiasmado como meu trabalho pessoal que dava ordens aos meus subordinados no sentido de só me incomodarem em determinados momentos. Vogava como uma brisa, coma companhia a pagar-me regularmente e os outros 290 Henry Miller a fazerem o trabalho que lhes destinava, quando um dia, no meio de um importante ensaio sobre O Anticristo, um homem que nunca vira se aproximou da minha secretária, espreitou por cima do meu ombro e, em torn sarcástico, começou a ler em voz alta o que eu acabara de escrever. Não me perguntei quem ele era nem o que pretendia; o único pensamento que me veio à cabeça, e que repeti freneticamente, foi: Receberei uma semana de salário extra? Quando chegou o momento de me despedir do meu benfeitor, senti-me um bocadinho envergonhado comigo próprio, sobretudo quando ele me disse, logo de caras: «Tentei conseguir-lhe uma semana de salário extra, mas nem quiseram ouvir falar disso. Gostaria de poder fazer qualquer coisa por si... Está apenas a atravessarse no seu próprio caminho, como sabe. Para lhe ser franco, continuo a ter a maior fé em si... mas receio que, por uns tempos, vá passar um mau bocado. Não se ajusta em parte alguma... Um dia será um grande escritor, tenho a certeza. Agora desculpe-me», pediu, e apertou-me calorosamente a mão. «Tenho de ir falar como patrão. Felicidades!» Senti-me um bocadinho magoado, compena de não ser possível provar-lhe imediatamente que a sua fé era justificada. Naquele momento, desejei poder justificar-me perante o mundo inteiro: ter-me-ia atirado da Ponte de Brooklyn se isso convencesse as pessoas de que não era um filho da mãe sem coração. Tinha um coração grande como o de uma baleia, como não tardaria a provar, mas ninguém me estava a examinar o coração. O que toda a gente estava era a ser prejudicada, e muito - não só as firmas de vendas a prestações, mas também o senhorio, o talho, o padeiro, os tipos da água, do gás e da electricidade, toda a gente. Se ao menos eu pudesse acreditar nessa história do trabalho! Mas não conseguia, nem que disso dependesse a salvação da minha vida. A única coisa que via é que as pessoas batiam comeles numa laje a trabalhar porque não tinham senso para mais. Pensava no discurso que fizera, e graças ao qual obtivera o emprego. Assemelhava-me muito a Herr Nagel. Nunca se sabia o que seria capaz de fazer, de um momento para o outro. Não havia maneira de se saber se era um monstro ou um santo. Como tantos homens maravilhosos do nosso tempo, Herr Nagel era um desesperado - e era esse mesmo desespero que o tornava tão simpático. Trópico de Capricórnio 291 Hamsun também não sabia que ideia fazer da sua personagem. Sabia que ele existia e sabia que era algo mais do que um simples bufão e um mistificador. Creio que amava Herr Nagel mais do que qualquer outra das personagens que criou. E porquê? Porque Herr Nagel era o santo não reconhecido que todo o artista é, o homem que é ridicularizado porque as suas soluções, que são verdadeiramente profundas, parecem ao mundo demasiado simplistas. Nenhum homem quer ser um artista; é levado a isso porque o mundo se recusa a reconhecer a sua adequada liderança. O trabalho não significava nada para mim, porque o verdadeiro trabalho a fazer estava a ser evitado, ignorado. As pessoas consideravam-me indolente e inepto, mas eu era, pelo contrário, um indivíduo muitíssimo activo. Mesmo que se tratasse apenas de procurar uma gaja, isso era alguma coisa, e valia a pena - especialmente em cornparação comoutras formas de actividade, como fazer botões, apertar parafusos ou até remover apêndices. E porque me escutavam as pessoas tão prontamente quando me candidatava a um emprego? Porque me consideravam tão interessante? Sem dúvida porque sempre gastara o meu tempo proveitosamente. Oferecia-lhes presentes - presentes resultantes das minhas horas passadas na biblioteca pública, das minhas ociosas vagueações pelas ruas, das minhas experiências íntimas commulheres, das minhas tardes no teatro burlesco, das minhas visitas aos museus e às galerias de arte... Se fosse um inútil, um pobre diabo honesto que só queria gastar os tomates a trabalhar por tanto a semana, não me ofereceriam os cargos que me ofereciam, não me dariam charutos, não me levariam a almoçar e não me emprestariam dinheiro, como tantas vezes acontecia. Devia ter para oferecer algo que, talvez sem o saberem, consideravam mais valioso do que cavalos a vapor ou competência técnica. Eu próprio não sabia o que era, porque não tinha nem orgulho, nem vaidade, nem cobiça. Acerca dos grandes problemas, era lúcido, mas confrontado comos pequenos pormenores da vida sentia-me confuso. Tive de experimentar essa mesma confusão numa escala colossal antes de lhe apreender o significado. Os homens vulgares são geralmente mais lestos na avaliação de uma situação prática: o seu ego é proporcionado às exigências que lhe são feitas, o mundo não é muito diferente do que imaginam. Mas um homem que 292 Henry Miller Trópico de Capricórnio 293 está completamente dessincronizado do resto do mundo, ou padece de uma colossal inflação do ego, ou então o seu ego está tão submerso que é praticamente inexistente. Herr Nagel tivera de mergulhar no lado mais fundo em busca do seu verdadeiro ego; a sua existência era um mistério, para ele e para toda a gente. Mas eu não me podia dar ao luxo de deixar as coisas assim, em suspenso; o mistério era demasiado intrigante. Mesmo que tivesse de me roçar como um gato contra todo o ser humano que encontrasse, havia de chegar ao fundo do problema. Esfrega durante tempo suficiente e comforça suficiente, e a centelha brilhará! A hibernação de certos animais, a suspensão de vida praticada por certas formas inferiores de vida, a maravilhosa vitalidade do percevejo que espera interminavelmente atrás do papel da parede, o transe do yogui, a catalepsia do indivíduo patológico, a união do místico como cosmo e a imortalidade da vida celular, tudo isso são coisas que o artista aprende a fim de despertar o mundo, no momento propício. O artista pertence à raiz racial humana x; é, por assim dizer, o micróbio espiritual que passa de uma raiz para outra. Não é esmagado pelo infortúnio porque não faz parte do esquema físico, rácico, das coisas. O seu aparecimento é sempre síncrono comcatástrofe e dissolução; é o ser cíclico que vive no epiciclo. A experiência que adquire nunca é utilizada para fins pessoais; serve o objectivo mais vasto para o qual está engrenado. Nada se perde nele, por muito insignificante que seja. Se interrompe durante vinte e cinco anos a leitura de um livro, é capaz de recomeçar na página onde interrompeu como se não tivesse acontecido nada de permeio. Tudo quanto acontece de permeio, e que é «vida» para a maioria das pessoas, é apenas uma interrupção no seu avanço. O carácter eterno do seu trabalho, quando ele se expressa, é simplesmente o reflexo do automatismo da vida em que é obrigado a permanecer adormecido, à espera do sinal que anunciará o momento do nascimento. Esse é o grande acontecimento e foi sempre claro para mim, mesmo quando o neguei. O descontentamento que impele uma pessoa de uma palavra para outra, de uma criação para outra, é apenas um protesto contra a inutilidade do adiamento. Quanto mais desperta uma pessoa se torna, como micróbio artístico, tanto menos deseja fazer alguma coisa. Comple” l tamente acordada, está tudo certo e não há necessidade de sair do transe. A acção, a acção que se exprime na criação de uma obra de arte, é uma concessão ao princípio automático da morte. Ao afogar-me no golfo do México, pude compartilhar de uma vida activa que permitiria ao eu verdadeiro hibernar até eu estar apto a nascer. Compreendi-o perfeitamente, embora actuasse de maneira cega e confusa. Nadei de regresso à corrente da actividade humana até chegar à fonte de toda a acção e, aí, abri caminho, entrei, chamando a mim próprio director de pessoal de uma companhia telegráfica, e deixei a maré de humanidade passar-me por cima como grandes vagas de crista espumosa. Toda esta vida activa, precedendo o acto final de desespero, conduziu-me de dúvida em dúvida, cegando-me cada vez mais para o eu autêntico que, como um continente asfixiado comos indícios de uma grande e florescente civilização, já se afundara sob a superfície do mar. O ego colossal estava submerso e o que as pessoas viam mover-se freneticamente acima da superfície era o periscópio da alma, à procura do seu alvo. Tudo quanto aparecia ao alcance de tiro tinha de ser destruído, se eu queria voltar a emergir e cavalgar as ondas. O monstro que emergia de vez em quando para fixar o alvo compontaria certeira, que voltava a mergulhar e que vagueava e pilhava incessantemente, quando chegasse o momento emergiria pela última vez e revelar-se-ia uma arca, recolheria em si mesmo um par de cada espécie, e por fim, quando as cheias amainassem, fixar-se-ia no cume de uma alta montanha para aí escancarar as suas portas e devolver ao Mundo o que fora preservado da catástrofe. Se estremeço de vez em quando, quando medito na minha vida activa, se tenho pesadelos, é talvez porque penso em todos os homens que roubei e assassinei no meu sono diurno. Fiz tudo quanto a minha natureza me mandou fazer. A natureza segreda-nos eternamente ao ouvido: «Se queres sobreviver, terás de matar!» Em virtude de sermos humanos, não matamos como os animais e, sim, automaticamente. A morte é disfarçada e as suas ramificações são intermináveis, de modo que matamos sem pensar sequer nisso, que matamos sem necessidade. Os homens mais respeitados são os que mais matam. Crêem que estão a servir os seus semelhantes, crêem sinceramente nisso, mas são assassinos implacáveis, e em certas 294 Henry Miller ocasiões, quando acordam, têm consciência dos seus crimes e entregam-se a actos de bondade frenéticos e quixotescos, a fim de expiarem a sua culpa. A bondade do homem fede mais do que o mal que nele há, pois a bondade ainda não está reconhecida, ainda não é uma afirmação do eu consciente. Quando nos empurram para um precipício, é fácil, no último momento, entregar tudo quanto possuímos, abrir os braços num último abraço aos que ficam, a todos quantos ficam. Como deter o impulso cego? Como deter o processo automático em que cada um empurra o outro para o precipício? Sentado à minha secretária, na qual pusera um letreiro que dizia: «Ó vós que entrais, não abandoneis toda a esperança!», sentado à minha secretária a dizer «sim», «não», «sim», «não», apercebi-me, comum desespero que se foi transformando em lívido furor, de que era um títere em cujas mãos a sociedade colocara uma arma mortífera. Em última análise, não havia diferença entre praticar uma boa acção ou uma má acção. Era como um sinal de igual através do qual passava o enxame algébrico da humanidade. Era um sinal de igual muito importante e activo, como um general em tempo de guerra, mas, por muito competente que fosse ou viesse a ser, jamais me poderia tornar um sinal de mais ou de menos. Nem eu nem ninguém, tanto quanto me era dado avaliar. Toda a nossa vida se arquitectava sobre esse princípio de igualdade. Os números inteiros tinham-se tornado símbolos que eram distribuídos de acordo comos interesses da morte. Piedade, desespero, paixão, esperança, coragem eram as refracções temporais resultantes de olhar para as equações de vários ângulos. Deter o interminável malabarismo virando-lhe as costas, ou olhando-o de frente e escrevendo a seu respeito, também não ajudaria. Num salão de espelhos não há maneira nenhuma de virarmos as costas a nós próprios. Não farei isto. Farei qualquer outra coisa! Muito bem. Mas pode-se não fazer nada? Pode-se deixar de pensar em não fazer nada? Pode-se estacar e, sem pensar, irradiar a verdade que se sabe? Fora essa ideia que se encaixara no fundo da minha cabeça e que ardia, ardia... Quando me mostrava mais expansivo, mais radiante de energia, mais compreensivo, mais desejoso de ajudar, mais sincero e melhor, talvez fosse essa ideia fixa que brilhava e me Trópico de Capricórnio 295 fazia dizer, maquinalmente: «Oh, não tem importância... Não tem de quê, garanto-lhe... Não, por favor, não me agradeça», etc., etc. Em virtude de disparar a arma tantas centenas de vezes por dia, talvez já nem sequer ouvisse as detonações; talvez pensasse que estava a abrir as gaiolas dos pombos e a encher o céu de aves brancas como leite. Já alguma vez viram no écran um monstro sintético, um Frankenstein de carne e sangue? São capazes de imaginar como poderia ser treinado para premir um gatilho e ver pombos voar ao mesmo tempo? Frankenstein não é um mito: Frankenstein é uma criação muito real, nascida da experiência pessoal de um ser humano sensitivo. O monstro é sempre mais real quando não assume as proporções de carne e sangue. O monstro do écran não é nada comparado como monstro da imaginação; até os monstros patológicos existentes, que vão parar às esquadras da Polícia, são apenas fracas demonstrações da monstruosa realidade coma qual o patologista vive. Mas ser o monstro e o patologista ao mesmo tempo... isso está reservado a certas espécies de homens que, disfarçados de artistas, estão supremamente conscientes de que o sono é um perigo ainda maior do que a insónia. A fim de não adormecerem, a fim de não se tornarem vítimas dessa insónia chamada «viver», recorrem à droga de colocar palavras umas após outras, infindavelmente. Isso não é um processo automático, dizem, porque está sempre presente a ilusão de que podem parar quando lhes apetecer. Mas não podem parar; conseguiram apenas criar uma ilusão, que talvez seja um fraco qualquer coisa, mas está longe de ser o estado de totalmente desperto, e não é estar activo nem inactivo. Eu queria estar totalmente desperto sem falar ou escrever a esse respeito, a fim de aceitar a vida absolutamente. Mencionei os homens arcaicos de remotos lugares do Mundo comos quais comunicava frequentemente. Porque considerei esses «selvagens» mais capazes de me compreenderem do que os homens e as mulheres que me cercavam? Seria louco por acreditar em semelhante coisa? Não acho. Esses «selvagens» são os restos degenerados de primitivas raças de homens que, estou convencido, devem ter tido maior poder sobre a realidade. A imortalidade da espécie está constantemente diante dos nossos olhos sob a forma desses espécimes do passado que persistem num esplendor debilitado. Se a espécie humana 296 Hemy Miller é imortal ou não, não me compete dizê-lo, mas a vitalidade da espécie significa algo para mim, e o facto de estar activa ou letárgica significa ainda mais. À medida que a vitalidade da nova raça declina, a vitalidade das antigas raças manifesta-se à mente desperta comsignificado cada vez maior. A vitalidade das antigas raças permanece até na morte, mas a vitalidade da nova raça prestes a morrer parece já inexistente. Se um homem levasse um cortiço de abelhas para o no a fim de as afogar... Era esta a imagem que trazia em mim. Se ao menos eu fosse o homem e não as abelhas! Sabia, de modo vago e inexplicável, que era o homem, que não me afogaria no cortiço como os outros. Sempre que nos reuníamos num grupo, eu destacava-me; desde o nascimento que era favorecido desse modo e sabia que, fossem quais fossem as atribulações por que passasse, não seriam fatais nem duradouras. Acontecia em mim ainda outra coisa estranha, quando me mandavam aproximar: sabia-me superior ao homem que me dava a ordem! A tremenda humildade que praticava não era hipócrita e, sim, uma condição provocada pela consciência do carácter fatídico da situação. A inteligência que possuía, mesmo em rapaz, assustava-me; era a inteligência de um «selvagem», sempre superior à do homem civilizado no facto de ser mais adequada às exigências das circunstâncias. É uma inteligência de vida, mesmo que, aparentemente, a vida os tenha ignorado. Quase tinha a sensação de ter sido propulsionado para um plano de existência que, para o resto da espécie humana, ainda não atingira o ritmo completo. Via-me obrigado a afrouxar se queria permanecer comos outros e não ser impelido para outra esfera de existência. Por outro lado, era em muitas coisas inferior aos seres humanos que me rodeavam. Dir-se-ia que saíra dos fogos do Inferno sem estar inteiramente purificado. Ainda tinha uma cauda e um par de chavelhos, e, quando as minhas paixões despertavam, havia no meu hálito um veneno sulfuroso e aniquilador. Chamavamme um «demónio afortunado». O bem que me acontecia era classificado como «sorte» e o mal era sempre considerado um resultado das minhas deficiências. Ou, melhor ainda, fruto da minha cegueira. Raramente alguém tinha confiança em mim! Nes.se aspecto era tão hábil como o próprio demónio. Mas toda a gente via que era frequentemente cego. E em tais ocasiões deixavam-me em Trópico de Capricórnio 297 paz, repeliam-me como ao próprio demónio. Até que abandonei o mundo, regressei aos fogos do Inferno. Voluntariamente. Estas idas e vindas são tão reais para mim - são na verdade mais reais do que tudo quanto aconteceu de permeio. Os amigos que pensam conhecer-me não sabem nada a meu respeito, porque o verdadeiro eu mudou de mãos vezes sem conta. Nem os homens que me agradeciam, nem os que me amaldiçoavam, sabiam comquem estavam a lidar. Nunca ninguém chegou a uma base sólida comigo, porque a minha personalidade estava sempre em liquidação. Conservava aquilo a que se chama «personalidade» de reserva, à espera do momento em que, deixando-a para que solidificasse, ela adoptaria um ritmo humano adequado. Ocultava o rosto à espera do momento em que me encontraria como passo certo como mundo. Claro que tudo isso estava errado. Até o papel de artistas vale a pena adoptar, enquanto se gasta tempo. A acção é importante, ainda que implique actividade inútil. Uma pessoa não deveria dizer «sim», «não», «sim», «não», nem mesmo sentada no mais alto lugar. Uma pessoa não se deveria afogar no macaréu humano, nem mesmo para se tornar um Mestre. Uma pessoa deveria marcar o seu próprio ritmo, custasse o que custasse. Acumulei milénios de experiência num pequeno punhado de anos, mas a experiência desperdiçou-se porque não tive necessidade dela. Já tinha sido crucificado e marcado pela cruz; tinha sido libertado da necessidade de sofrer - e, contudo, não conhecia outra maneira de avançar a não ser repetindo o drama. Toda a minha inteligência se rebelava, se opunha. Sofrer é inútil, dizia-me e repetia-me a inteligência, mas eu continuava a sofrer voluntariamente. Sofrer nunca me ensinara nada; para outros, talvez ainda seja necessário, mas para mim não é mais do que uma demonstração algébrica de inadaptabilidade espiritual. Todo o drama que o homem de hoje representa, através do sofrimento, não existe para mim; nunca existiu, na realidade. Todos os meus calvários foram alegres crucificações, pseudotragédias destinadas a manter os fogos do Inferno a arder vivamente para os pecadores genuínos em perigo de serem esquecidos. Outra coisa... O mistério que envolvia o meu comportamento adensava-se à medida que me aproximava mais do círculo dos parentes uterinos. A mãe de cujo ventre saíra era 298 Henry Miller uma autêntica estranha para mim. Para começar, depois de me parir, pariu a minha irmã, a quem geralmente me refiro como o meu irmão. A minha irmã era uma espécie de monstro inofensivo, um anjo a quem fora dado o corpo de um idiota. Quando rapaz, causava-me uma estranha sensação crescer e desenvolver-me lado a lado comesse ser que estava condenado a permanecer toda a vida um anão mental. Era impossível ser irmão dela porque era impossível considerar aquele matacão atávico uma «irmã». Suponho que ela teria funcionado perfeitamente entre os primitivos australianos. Entre eles, talvez ascendesse, até, ao poder e à eminência, pois, como já disse, era a essência da bondade, não conhecia o mal. Mas, no tocante a viver a vida civilizada, não havia nada a fazer. Além de não ter nenhum desejo de matar, também não tinha o mínimo desejo de progredir a expensas dos outros. Era incapaz de trabalhar, pois, mesmo que fosse possível treiná-la para fazer cápsulas para explosivos fortes, seria muito capaz de, distraidamente, atirar o dinheiro ao rio, no regresso a casa, ou de o dar a um pedinte, na rua. Quantas vezes foi açoitada na minha presença, como um cão, por, naquilo a que chamavam a sua distracção, ter desempenhado um desses belos actos de misericórdia. Aprendi em criança não haver nada pior do que fazer uma boa acção sem motivo. Ao princípio, fui castigado como a minha irmã, pois tinha como ela o hábito de dar coisas, principalmente coisas novas, que tinham acabado de me ser dadas. Uma vez, aos cinco anos, levei até uma valente tareia por aconselhar a minha mãe a cortar uma verruga que tinha num dedo. Um dia, ela perguntou-me o que havia de fazer e eu, na minha ignorância de medicina, respondi-lhe que a cortasse comuma tesoura - e ela cortou-a, como uma idiota. Dias depois apareceu-lhe uma infecção e perguntou-me: «Foste tu que me disseste que a cortasse, não foste?» E, zás! Espancoume. Desse dia em diante compreendi que nascera na casa errada. Desse dia em diante, aprendi como um alho. Venham-me cá falar de adaptação! Aos dez anos já passara por toda a teoria da evolução. E ali estava eu, evoluindo através de todas as fases da vida animal e, contudo, acorrentado àquela criatura a quem chamavam minha «irmã», que era evidentemente um ser primitivo e que nunca compreenderia sequer o alfabeto, nem mesmo que chegasse aos noventa anos. Trópico de Capricórnio 299 Em vez de crescer como uma árvore robusta, comecei a inclinar-me para um lado, num desafio total à lei da gravidade. Em vez de romper em ramos e folhas, desabrochei em janelas e torrezinhas, e quanto mais alto me tornava, tanto mais desafiava a lei da gravidade. Era um fenómeno no meio da paisagem, mas um fenómeno que atraía gente e provocava elogios. Se a mãe que nos parira houvesse feito mais um esforço, talvez tivesse nascido um maravilhoso búfalo branco e fôssemos os três instalados num museu, protegidos para o resto da vida. As conversas travadas entre a torre de pisa inclinada e o pelourinho, a máquina de ressonar e o pterodáctilo de carne humana, eram pelo menos, pelo menos, um pouco esquisitas. Tudo podia servir de objecto de conversa - uma migalha de pão que a «irmã» se esquecera de recolher ao limpar a toalha da mesa ou o multicolorido casaco de José que, no cérebro alfaiático do velho, podia ter sido jaquetão, ou fraque, ou sobrecasaca. Se regressava do rinque de patinagem, onde passara toda a tarde a patinar, o importante não era o ozónio que respirara gratuitamente, nem as convoluções geométricas que me fortaleciam os músculos e, sim, a pintinha de ferrugem existente debaixo das correias, pintinha essa que, se não fosse limpa imediatamente, poderia provocar a dissolução de qualquer valor pragmático incompreensível para o meu tipo pródigo de pensamento. Utilizando este exemplo insignificante, a pintinha de ferrugem podia arrastar consigo os mais alucinantes resultados. Talvez a «irmã», ao procurar a lata do petróleo, virasse a vasilha das ameixas que estavam a ser cozidas e pusesse assim em perigo a vida de todos nós, privando-nos das calorias necessárias, na refeição do dia seguinte. Isso obrigaria a dar-lhe uma grande tareia, não colericamente, pois tal perturbaria o aparelho digestivo, mas silenciosa e eficientemente, como um químico a bater uma clara de ovo a fim de preparar uma análise de pequena importância. Mas a «irmã», que não compreendia a natureza profiláctica do castigo, soltaria gritos de gelar o sangue, o que afectaria de tal modo o velho que ele sairia para dar uma volta, e regressaria duas ou três horas depois perdido de bêbedo e, pior ainda, arrancaria um bocadito de tinta de uma porta, no seu desequilíbrio. Pois esse bocadito de tinta chegaria para provocar uma zaragata das antigas, o que era muito mau para a minha vida onírica porque, nessa vida, 300 Henry Miller Trópico de Capricórnio 301 mudava muitas vezes de lugar coma minha irmã, aceitando as torturas que lhe eram infligidas e alimentando-as como meu cérebro hipersensitivo. Era nesses sonhos, sempre acompanhados por sons de vidros partidos, gritos, pragas, gemidos e soluços, era nesses sonhos que adquiria um conhecimento não formulado de antigos mistérios, dos ritos da iniciação, da transmigração das almas, etc. Podia começar tudo comuma cena da vida real: a minha irmã de pé junto do quadro, na cozinha, e a minha mãe a perguntar-lhe, de régua em riste: dois e dois quantos são? A minha irmã gritava cinco e... bang! Não, sete e... bang! Não, treze, dezoito, vinte!... Eu estava sentado à mesa a fazer os trabalhos escolares, exactamente como na vida real, quando, por um ligeiro desvio, ou esquiva, via a régua acertar na cara da minha irmã. Então, de repente, encontrava-me noutro planeta onde o vidro era desconhecido, o vidro e muitas outras coisas. Os rostos dos que me rodeavam eram-me familiares, eram os rostos dos meus parentes naquele novo ambiente. Estavam vestidos de preto e a sua pele era da cor da cinza, como a dos demónios tibetanos. Estavam todos munidos de facas e outros instrumentos de tortura: pertenciam à casta dos carniceiros sacrificiais. Eu parecia dotado de absoluta liberdade e da autoridade de um deus, mas, por qualquer capricho dos acontecimentos, acabava sempre estendido na pedra dos sacrifícios, enquanto um dos meus encantadores parentes uterinos se debruçava para mini, comuma faca reluzente, e se preparava para me arrancar o coração. A suar de terror, desatava a papaguear as «minhas lições» em voz alta e esganiçada, cada vez mais depressa, à medida que sentia a faca procurar-me o coração. Dois e dois quatro, cinco e cinco dez, terra, ar, fogo, água, segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, hidrogénio, oxigénio, azoto, Pliocénico, Miocénico, Oligocénico, Pai, Filho, Espírito Santo, Ásia, África, Europa, Austrália, encarnado, azul, amarelo, caneleira, diospireiro, papaia, catalpa... mais depressa, mais depressa... Odin, Wotan, Parsifal, rei Alfredo, Frederico-o-Grande, a Liga Hanseática, a Batalha de Hastings, Termópilas, 1492, 1776, 1812, almirante Farragut, o ataque de Pickett, a Brigada Ligeira, estamos aqui hoje reunidos, Deus é o meu Senhor, não farei, uno e indivisível, não, 16, não, 27, socorro!, assassínio!, polícia! - e, gritando cada vez mais alto e cada vez mais depressa, perdia por completo a tramontana e não havia mais dor nem mais terror, mesmo que eles me estivessem a traspassar todo comfacas. De súbito, sinto-me absolutamente calmo e o corpo que estava na pedra dos sacrifícios, e que eles continuavam a perfurar comgozo e êxtase, não sentia nada porque eu, o seu dono, fugira. Transformava-me numa torre de pedra que se inclinava para a cena e observava cominteresse científico. Bastava-me entregar-me à lei da gravidade para cair sobre eles e obliterálos... Mas não me entregava à lei da gravidade porque estava excessivamente fascinado por todo aquele horror. Estava tão fascinado, na realidade, que me nasciam mais e mais janelas. E, à medida que a luz penetrava na pedra interior do meu ser sentia que as minhas raízes, que estavam na terra, estavam vivas, e que um dia, quando me apetecesse, poderia libertar-me do transe que me imobilizava. Basta do sonho em que estou irremediavelmente enraizado. Na realidade, quando os queridos parentes uterinos chegam, sinto-me livre como um pássaro e saltitando de um lado para o outro, como uma agulha magnética. Se me fazem uma pergunta, dou-lhes cinco respostas, cada uma das quais melhor do que a outra. Se me pedem que toque uma valsa, toco uma sonata para a mão esquerda. Se me dizem que coma mais uma perna de frango, limpo a travessa, comacompanhamentos e tudo. Se me incitam a ir brincar para a rua, obedeço e, no meu entusiasmo, abro a cabeça do meu primo comuma lata. Se ameaçam dar-me uma tareia, replico que dêem, não me importo! Se me afagam a cabeça e felicitam pelos meus progressos escolares, cuspo para o chão, a fim de lhes mostrar que ainda tenho alguma coisa a aprender. Faço excessivamente tudo quanto querem que faça. Se querem que me cale e não diga nada, fico mudo como uma pedra: não os ouço quando me falam, não me mexo quando me tocam, não choro quando me beliscam, não tujo nem mujo quando me empurram. Se se queixam de que sou obstinado, torno-me maleável e flexível como borracha. Se desejam fatigar-me para que não evidencie excessiva energia, consinto que me encarreguem de todas as tarefas e desempenho-me delas tão minuciosamente que acabo por cair no chão, exausto, como um saco de trigo. Se querem que seja razoável, torno-me ultra-razoável, o que os enlouquece. Se desejam que obedeça, obedeço à letra, o que 302 Henry Miller provoca interminável confusão. E tudo isto porque a vida molecular de irmão-e-irmã é incompatível como peso atómico que nos foi destinado. Como ela não cresce nada, eu cresço como um cogumelo; como ela não tem personalidade, eu torno-me um colosso; como ela está isenta de mal, eu sou um candelabro de mal comtrinta e dois braços; como ela não pede nada a ninguém, eu peço tudo; como ela inspira ridículo em toda a parte, eu inspiro medo e respeito; como ela é humilhada e torturada, eu exerço vingança sobre toda a gente, seja amigo ou inimigo; como ela é impotente, eu forço-me a ser Todo-Poderoso. O gigantismo de que sofri nesse tempo foi simplesmente a consequência de um esforço para limpar a pintinha de ferrugem que aparecera no patim da família, por assim dizer. Essa pintinha de ferrugem debaixo das correias fez de mim um patinador campeão. Fez-me patinar tão veloz e furiosamente que, mesmo quando o gelo se derretia, eu continuava a patinar, patinava através de lama, através de asfalto, através de ribeiros, e rios, e meloais, e teorias de economia, etc. Tão rápido e lesto era que poderia patinar através do Inferno. Mas toda essa patinação era inútil. O padre Coxcox, o Noé pan-americano, estava sempre a chamarme, a ordenar-me que regressasse à Arca. Todas as vezes que parava de patinar havia um cataclismo, a terra abria-se e engolia-me. Era um irmão para todos os homens e, ao mesmo tempo, um traidor para mim próprio. Fazia os mais espantosos sacrifícios, mas acabava sempre por verificar que não valiam de nada. De que valia provar que podia ser o que esperavam que fosse, quando não queria ser nenhuma dessas coisas? Todas as vezes que chegamos ao limite do que esperam de nós, ficamos frente a frente como o mesmo problema: sermos nós próprios! E mal damos o primeiro passo nesse sentido, verificamos que não existe plus nem minus; atiramos os patins fora e nadamos. Acaba-se o sofrimento, porque já não há nada que possa ameaçar a nossa segurança. E nem sequer há desejo de ajudar os outros, pois para quê roubá-los de um privilégio que deve ser conquistado? A vida alastra de momento para momento numa infinidade estupenda. Nada pode ser mais real do que supomos que seja. O cosmos é seja o que for que pensemos que é, e não poderá comcerteza ser outra coisa enquanto Trópico de Capricórnio 303 vocês forem vocês e eu for eu. Vocês vivem dos frutos da vossa acção e a vossa acção é a colheita do vosso pensamento. Pensamento e acção são a mesma coisa, porque nadando estão nela e são dela, e ela é tudo quanto desejam que seja, nem mais, nem menos. Cada braçada conta para toda a eternidade. O sistema de aquecimento e arrefecimento é só um sistema, e Câncer está separado de Capricórnio apenas por uma linha imaginária. Não nos tornamos extáticos e não somos mergulhados em dor violenta; não rezamos a pedir chuva, nem dançamos uma jiga. Vivemos como um rochedo feliz no meio do oceano: estamos fixos enquanto tudo quanto nos rodeia se encontra em movimento turbulento. Estamos fixos numa realidade que permite pensar que nada é fixo, que até mesmo o rochedo mais feliz e mais forte será um dia completamente dissolvido e tornar-se-á fluido como o oceano de que nasceu. Era esta a vida musical de que me aproximava, começando por patinar como um maníaco através de todos os vestíbulos e corredores que levavam do exterior para o interior. Os meus esforços nunca me acercaram dela, nem os meus esforços, nem a minha furiosa actividade, nem o meu roçar de cotovelos coma humanidade. Tudo isso era simplesmente um movimento de vector para vector num círculo que, por muito que o perímetro se expandisse, permanecia paralelo como reino de que falo. A roda do destino pode ser transcendida em qualquer momento porque toca o mundo real em todos os pontos da sua superfície, e basta uma centelha de iluminação para provocar o miraculoso, para transformar o patinador em nadador e o nadador em rochedo. O rochedo é meramente uma imagem do acto que detém a inútil rotação da roda e mergulha o ser em total consciência. E a total consciência é veramente como um oceano inexaurível que se dá ao Sol e à Lua e também inclui o Sol e a Lua. Tudo quanto existe nasceu do ilimitado oceano de luz - até a noite. Algumas vezes, nas incessantes revoluções da roda, tive um vislumbre da natureza do salto que era necessário dar. Saltar para fora do mecanismo de relógio: eis o pensamento libertador. Ser qualquer coisa diferente, ser algo mais do que o mais brilhante maníaco da Terra! A história do Homem na Terra maçava-me. A conquista, até mesmo a conquista do mal, maçava-me. Irradiar bondade é maravilhoso, porque 304 Henry Miller é tónico revigorante, vitalizador. Mas ser, apenas, é ainda mais maravilhoso, porque é interminável e não exige qualquer demonstração. Ser é música, o que é uma profanação do silêncio no interesse do silêncio, e portanto para além do bem e do mal. A música é a manifestação da acção sem actividade. É o acto puro da criação a nadar no seu próprio seio. A música não incita nem proíbe, não procura nem explica. A música é o som silencioso feito pelo nadador no oceano da percepção. É uma recompensa que só pode ser dada pelo próprio recompensado. É o dom do deus que a pessoa é porque deixou de pensar em Deus. É um augúrio do deus que todos seremos em devido tempo, quando tudo quanto é f or para além da imaginação. CODA Não há ainda muito tempo, percorria as ruas de Nova Iorque. Querida velha Broadway. Era de noite e o céu estava de um azul oriental, tão azul como o ouro do tecto do Pagode da rue de Babylone, quando a máquina começa a funcionar. Passava exactamente debaixo do lugar onde nos conhecemos. Parei um momento, a olhar para as luzes vermelhas das janelas. A música soava como sempre: leve, apimentada, encantadora. Estava sozinho e havia milhões de pessoas à minha volta. Enquanto ali estava parado, lembrei-me de que já não pensava nela; pensava no livro que estou a escrever, um livro que se tornou mais importante do que ela, mais importante do que tudo quanto nos aconteceu. Será esse livro a verdade, toda a verdade, e nada mais do que a verdade, assim Deus me ajude? Misturei-me de novo coma multidão, a debater-me comessa questão da «verdade». Há anos que tento contar esta história e a questão da verdade tem sempre pesado sobre mim como um pesadelo. Vezes sem conta relatei a outros as circunstâncias da nossa vida, e disse sempre a verdade. Mas a verdade também pode ser uma mentira. A verdade não é suficiente. A verdade é apenas o cerne de uma totalidade inexaurível. Lembro-me de que, quando estivemos separados pela primeira vez, a ideia da totalidade me agarrou pelos cabelos. Quando me deixou, pretendeu - ou talvez tenha mesmo acreTropico de Capricórnio 305 ditado nisso - que a separação era necessária para o nosso bem-estar. Eu sabia no fundo do coração que ela tentava libertar-se de mim, mas era tão cobarde que nem a mim próprio o confessava. Quando, porém, compreendi que ela podia passar sem mim, mesmo durante um espaço de tempo limitado, a verdade que tentara ocultar começou a crescer comalarmante rapidez. Foi mais doloroso do que tudo quanto jamais experimentara, mas também foi cicatrizante. Quando fiquei completamente vazio, quando a solidão atingiu tal ponto que não podia agudizar-se mais, compreendi de súbito que, para continuar a viver, essa intolerável verdade tinha de ser incorporada em algo maior do que o âmbito de um infortúnio pessoal. Senti que passei imperceptivelmente para outro reino, para um reino de fibra mais resistente, mais elástica, que a mais horrível verdade não conseguiria destruir. Sentei-me a escrever-lhe uma carta em que lhe dizia sofrer tanto como pensamento de a perder que decidira começar a escrever um livro a respeito dela, um livro que a imortalizaria. Seria, afirmei, um livro como ninguém jamais vira. E continuei a escrever extasiadamente, até que no meio parei, de súbito, para me perguntar porque me sentia tão feliz. Ao passar por baixo do salão de dança e pensar de novo nesse livro, compreendi de repente que a nossa vida chegara ao fim: compreendi que o livro que planeava não era mais do que um túmulo onde planeava sepultá-la, a ela e à parte de mim que lhe pertencera. Isso passou-se há algum tempo e desde então tenho tentado escrevê-lo. Porque é tão difícil? Porquê? Porque a ideia de um «fim» me é intolerável. A verdade encontra-se neste conhecimento do fim que é desapiedado e implacável. Podemos saber a verdade e aceitá-la, ou podemos recusar o seu conhecimento e não morrer nem renascer. Deste modo é possível viver para sempre uma vida negativa tão sólida e completa, ou tão dispersa e fragmentária, como o átomo. E, se seguirmos por essa estrada durante tempo suficiente, até essa eternidade atómica poderá submeter-se ao nada e o próprio Universo desmoronar-se. Há anos que tento contar esta história; todas as vezes que comecei escolhi uma estrada diferente. Sou como um explora- 306 Henry Miller dor que, desejando circum-navegar o Globo, acha desnecessário munir-se sequer de uma bússola. Além disso, por sonhar há tanto tempo comela, a própria história acabou por se assemelhar a uma imensa cidade fortificada, e eu, que sonho e sonho comela, estou fora da cidade, sou um vagabundo que pára diante de portão após portão, demasiado exausto para entrar. E, como acontece ao vagabundo, a cidade em que a minha história se situa foge-me perpetuamente. Sempre à vista, mantém-se no entanto inacessível, uma espécie de cidadela fantasma flutuante nas nuvens. Das altas muralhas ameadas descem bandos de imensos gansos brancos, em firme formação de cunha. comas pontas das suas asas brancas-azuladas roçam pelos sonhos que me turvam a visão. Os meus pés movem-se confusamente; mal consigo um apoio, volto a perder-me. Vagueio sem destino, à procura de um apoio sólido, onde possa firmar bem os pés a abarcar um panorama da minha vida, mas atrás de mim existe apenas uma confusão de vias entrecruzadas, um tactear confuso, o espernear espasmódico do frango cuja cabeça acaba de ser cortada. Sempre que tento explicar a mim próprio o padrão peculiar que a minha vida assumiu, sempre que tento localizar a primeira causa, por assim dizer, penso inevitavelmente na rapariga a quem amei pela primeira vez. Parece-me que data tudo desse romance abortado. E foi de facto um estranho romance masoquista, ridículo e trágico ao mesmo tempo. Talvez tenha tido o prazer de a beijar duas ou três vezes, como género de beijos que reservamos para uma deusa. Talvez a tenha visto a sós diversas vezes. comcerteza nunca lhe passou pela cabeça que durante mais de um ano passei todas as noites pela sua casa, na esperança de captar um vislumbre seu, à janela. Todas as noites, depois do jantar, levantava-me da mesa e metia pela longa estrada que levava a sua casa. Ela nunca estava à janela quando eu passava, e eu nunca tinha a coragem de parar diante da casa e esperar. Passava para trás e para diante, mas dela nem sombra, nunca. Porque não lhe escrevi? Porque não a visitei? Lembro-me de que uma vez consegui reunir coragem suficiente para a convidar a ir ao teatro. Cheguei a sua casa comum ramo de violetas, a primeira e a única vez que comprei flores para uma mulher. Quando saímos do teatro, as violetas caíram-lhe do decote e, na minha atrapalhação, Trópico de Capricórnio 307 pisei-as. Supliquei-lhe que as deixasse no chão, mas ela insistiu em apanhá-las. Pensei como era desastrado, e só muito tempo depois recordei o seu sorriso, ao baixar-se para apanhar as violetas. Foi um fiasco completo. No fim, fugi. Na realidade, fugia de outra mulher, mas na véspera de sair da cidade resolvi vê-la mais uma vez. Foi ao meio da tarde e ela saiu para falar comigo na rua, no pequeno corredorzinho entre os prédios, comuma vedação. Já estava comprometida comoutro homem; fingiu sentir-se feliz comisso, mas eu vi, apesar da minha cegueira, que não era tão feliz como fingia ser. Tenho a certeza de que me bastaria ter dito a palavra adequada para que ela abandonasse o outro tipo; talvez até tivesse fugido comigo. Preferi, porém, castigar-me. Despedi-me despreocupadamente e desci a rua como um morto. Na manhã seguinte parti para a costa, decidido a começar nova dia. A nova vida foi outro fiasco. Acabei por ir para a um rancho em Chula Vista, sentindo-me o homem mais desgraçado que jamais pisara a Terra. Havia a rapariga a quem amava e havia a outra mulher, pela qual sentia apenas uma profunda compaixão. Vivia comela havia dois anos, comessa tal mulher, mas já me pareciam uma vida inteira. Eu tinha vinte e um anos e ela admitia ter trinta e seis. Todas as vezes que olhava para ela, dizia para comigo: quando eu tiver trinta anos ela terá quarenta e cinco, quando eu tiver quarenta anos ela terá cinquenta e cinco, quando eu tiver cinquenta anos ela terá sessenta e cinco... Tinha rugas fimnhas debaixo dos olhos, rugas de riso, mas rugas, apesar de tudo. Quando a beijava, ampliavam-se uma dúzia de vezes. Ria-se comfacilidade, mas os seus olhos eram tristes, terrivelmente tristes. Olhos arménios. O seu cabelo, que em tempos fora ruivo, era então louro oxigenado. Tirando isso, era adorável: corpo venusiano e alma venusiana, leal, digna de ser amada, grata, tudo quanto uma mulher deve ser, exceptuando o facto de ter mais quinze anos do que eu. Os quinze anos de diferença davam comigo em maluco. Quando saía comela, só fazia a mim mesmo perguntas do género: como será daqui a dez anos? Ou então: que idade aparenta agora? Pareço ter idade suficiente para ela? Ao subir a escada, costumava enfiar-lhe o dedo pelas virilhas, o que a fazia guinchar como um cavalo. Se o filho, que era qua- 308 Henry Miller Trópico de Capricórnio 309 se da minha idade, estava na cama, fechávamo-nos à chave na cozinha. Ela deitava-se na mesa estreita e eu cravava-lho. Era maravilhoso. E o que tornava tudo ainda mais maravilhoso era o facto de, em cada sessão, dizer para comigo: É a última, vez... amanhã piro-me! E depois, como ela era a porteira do prédio, ia à cave e punha os latões das cinzas na rua, para a ajudar. De manhã, depois de o filho ter saído para o trabalho, subia ao telhado e arejava a roupa da cama. Tanto ela como o filho sofriam de tuberculose... Algumas vezes não havia sessão em cima da mesa. Algumas vezes o desespero de tudo aquilo filava-me pela garganta e eu vestia-me e ia dar um passeio. De vez em quando, esquecia-me de regressar. E, quando isso acontecia, sentia-me mais desgraçado do que nunca, pois sabia que ela estava à minha espera, comaqueles grandes olhos magoados. Voltava para ela como um homem comum dever sagrado a cumprir. Deitava-me na cama e deixava-a acariciarme, enquanto lhe observava as rugas debaixo dos olhos e as raízes do cabelo, que começavam a ficar ruivas. Assim deitado, pensava muitas vezes na outra, naquela a quem amava, perguntava-me se também estaria deitada a fazer aquilo ou... Os longos passeios a pé que eu dava, trezentos e sessenta e cinco dias no ano! Recordava-os mentalmente, deitado ao lado da outra mulher. Quantas vezes tenho revivido esses passeios! As ruas mais tristes, mais desoladas, mais feias que o homem jamais criou. Angustiado, revivo esses passeios, essas ruas, essas primeiras esperanças esmagadas. A janela existe, mas não há Melisanda; o jardim também existe, mas sem qualquer refulgir dourado. Passar e tornar a passar e a janela sempre deserta. A estrela vespertina paira, baixa; aparece Tristão, e depois Fidélio, e depois Oberon. O cão de cabeça de hidra ladra comtodas as suas bocas e, embora não haja pântanos, ouço rãs coaxar em toda a parte. As mesmas casas, as mesmas filas de carros, o mesmo tudo. Ela está oculta atrás da cortina, ela espera que eu passe, ela está a fazer isto ou a fazer aquilo... mas não está à janela nunca, nunca, nunca. É uma ópera de gala ou uma sessão de realejo? É Amato rebentando o pulmão de ouro, é o Rubaiyat, é o monte Everest, é uma noite sem lua, é uma solução na alvorada, é um rapaz a fazer de conta, e o Gato na Bota, é Mauna Loa, é raposa ou astracã, não tem matéria nem tempo, é infindável e começa e torna a começar sob o coração, ao fundo da garganta, nas solas dos pés, e porque não só uma vez, só uma vez pelo amor de Cristo, porque não só uma vez uma sombra, ou um roçagar da cortina, ou um bafo na vidraça, porque não qualquer coisa uma vez, mesmo uma mentira, qualquer coisa que pare a dor, que ponha fim a este andar para baixo e para cima, para baixo e para cima... De regresso a casa. As mesmas casas, os mesmos candeeiros, o mesmo tudo. Passo pela minha própria casa, pelo cemitério, pelos gasómetros, pelas garagens e pela represa e mergulho no descampado. Sento-me à beira da estrada, coma cabeça nas mãos, e soluço. Pobre diabo que sou, incapaz de contrair o coração o suficiente para rebentar as veias! Gostaria de sufocar de desgosto, mas em vez disso dou à luz uma pedra. Entretanto, a outra espera. Vejo-a de novo, sentada no alpendre baixo, à minha espera, de olhos dilatados e dolorosos e rosto pálido e trémulo de ansiedade. Sempre pensei que era a compaixão que me levava para junto dela, mas agora, ao caminhar na sua direcção e ao ver a expressão dos seus olhos, já não sei o que é, sei apenas que entraremos em casa e nos deitaremos juntos, que ela se levantará meio a chorar, meio a rir, e ficará pouco a pouco muito calada, a observar-me, a estudar os meus movimentos, sem nunca, nunca, me perguntar o que me tortura, nunca, porque essa é a única coisa que teme, a única coisa que tem medo de saber. Não te amo! Não me ouve gritá-lo? Não te amo! Grito-o vezes sem conta, de lábios comprimidos, comódio no coração, comdesespero, comraiva impotente. Mas as palavras não me saem nunca da boca. Olho para ela e fico de língua presa. Não consigo... Tempo, tempo, interminável tempo nas nossas mãos e nada comque preenchêlo, nada a não ser mentiras. Bem, não quero recordar toda a minha vida até ao momento fatal... Seria muito longo e muito doloroso. Além disso, terá a minha vida conduzido realmente a esse momento culminante? Duvido. Penso que existiram inúmeros momentos em que tive oportunidade de começar, mas em que me faltaram a força e a fé. Na noite em questão, abandonei-me a mim próprio, deliberadamente: virei as costas à vida antiga e entrei na nova. Isso não exigiu o mínimo esforço. Tinha então trinta anos. Tinha mulher e filha e aquilo a que 310 Henry Miller Tráfico de Capricórnio 311 se chama um lugar de «responsabilidade». Estes são os factos, e os factos não significam nada. A verdade é que o meu desejo era tão grande, tão forte, que se tornou realidade. O que um homem faz num momento assim não tem grande importância; o que conta é o que ele é. E em momentos assim que um homem se torna um anjo. Foi precisamente o que me aconteceu: tornei-me um anjo. O mais valioso não é a pureza de um anjo e, sim, o facto de poder voar. Um anjo pode quebrar o esquema em toda a parte e em qualquer momento e encontrar o seu céu; tem a faculdade de descer na mais baixa da matéria e de se libertar dela a seu bel-prazer. Na noite em questão, compreendi-o perfeitamente. Era puro e inumano, desprendido, e tinha asas. Fora despojado do passado e não tinha qualquer preocupação quanto ao futuro. Estava para além do êxtase. Quando saí do escritório, dobrei as asas e escondi-as debaixo do casaco. O salão de baile ficava mesmo defronte da entrada lateral do teatro onde costumava passar as tardes, em vez de procurar trabalho. Era uma rua de teatros e eu costumava sentar-me lá horas a fio, a sonhar os sonhos mais violentos. Toda a vida teatral de Nova Iorque se concentrava naquela rua, ou pelo menos assim parecia. Era a Broadway, era o êxito, a fama, o brilho, a pintura, a cortina de amizade e o buraco na cortina. Sentado nos degraus do teatro, costumava olhar fixamente para o salão de baile, do outro lado da rua, para a enfiada de lanternas vermelhas que até mesmo nas tardes de Verão se acendiam. Em todas as janelas havia um ventilador que parecia soprar a música para a rua, onde a barulheira do trânsito a desfazia. Defronte, do outro lado do salão de baile, havia um lavabo onde também me costumava sentar, na esperança de conquistar uma mulher ou de dar um encosto a alguém. Acima do lavabo, ao nível da rua, havia um quiosque que vendia revistas e jornais estrangeiros; a simples visão daqueles jornais, das estranhas línguas em que estavam impressos, era o suficiente para me perturbar para o dia todo. Sem a mínima premeditação, subi a escada do salão de baile e fui direito ao guiché da cabina onde Nick, o Grego, estava sentado comum rolo de bilhetes à frente. Como o urinol, em baixo, e os degraus do teatro, a mão do Grego parece-me agora, também, uma coisa isolada, separada - a enorme mão peluda de um ogro retirada de qualquer horrível conto de fadas escandinavo. Era sempre a mão que me falava, era sempre a mão que me dizia: «Miss Mara não virá esta noite.» Ou: «Sim, Miss Mara só vem tarde, esta noite.» Era comaquela mão que sonhava em criança, quando dormia no quarto coma janela gradeada. No meu sonho febril, a janela iluminava-se, de súbito, e revelava o ogro agarrado às grades. O monstro hirsuto visitava-me noite após noite, agarrado às grades e de dentes arreganhados. Acordava encharcado em suores frios, no quarto absolutamente silencioso da casa às escuras. De pé, na orla da pista de dança, vejo-a dirigir-se para mim. Avança comtodas as velas desfraldadas e a grande cara cheia maravilhosamente equilibrada na comprida coluna do pescoço. Vejo uma mulher talvez de dezoito anos, talvez de trinta anos, de cabelo preto-azulado e grande cara branca, uma cara branca e cheia onde os olhos refulgiam, brilhantes. Veste um fato de veludo azul, comcorte de alfaiate. Lembro-me perfeitamente de como o seu corpo era cheio e o seu cabelo fino e liso, comrisco ao lado, como o de um homem. Lembro-me do sorriso em que me envolvia conhecedor, misterioso, fugidio -, um sorriso que jorrava subitamente, como uma rabanada de vento. O ser concentrava-se todo no rosto. Podia ter pegado apenas na cabeça e partido para casa comela; podia tê-la deitado a meu lado, numa almofada, à noite, e amá-la. Quando a boca e os olhos se abriam, todo o ser brilhava através deles. Era como se houvesse uma iluminação que vinha de qualquer fonte desconhecida, de um centro profundamente oculto na terra. Não era capaz de pensar noutra coisa senão na cara, na propriedade estranha e uterina do sorriso, na sua avassaladora proximidade. O sorriso era tão dolorosamente rápido e fugaz que lembrava o clarão de uma faca. Esse sorriso, esse rosto, empoleiravam-se altivamente num comprido pescoço branco, no forte pescoço de cisne do médium - e dos perdidos e danados. Estou parado à esquina, debaixo das luzes vermelhas, à espera que ela desça. São cerca de duas horas da manhã e ela vai-se despedir. Estou de pé na Broadway, comuma flor na botoeira, e sintome absolutamente purificado e sozinho. Estivemos quase toda a noite a falar de Strindberg, de uma 312 Henry Miller personagem sua chamada Henriette. Escutei-a comuma atenção tão tensa que caí em transe. Foi como se, logo à primeira frase, tivéssemos iniciado uma corrida - em direcções opostas. Henriette! A bem dizer, assim que o nome foi mencionado ela começou a falar de si mesma, mas sem nunca perder Henriette de vista. Henriette estava ligada a ela por uma comprida corda invisível, que manipulava imperceptivelmente comum dedo, como o vendedor ambulante que se mantém um pouco afastado do pano preto, no passeio, aparentemente indiferente ao mecanismozinho que movimenta no pano, mas denunciando-se pelo movimento espasmódico do dedo pequenino, a que o fio preto está atado. Henriette sou eu, o meu verdadeiro eu, parecia ela dizer. Queria que eu acreditasse que Henriette era, realmente, a encarnação do mal. Dizia-o tão naturalmente, tão inocentemente, comuma sinceridade quase sub-humana... Como poderia eu acreditar que falava a sério? A única coisa que conseguia fazer era sorrir, como para lhe mostrar que estava convencido. De súbito, sinto-a vir. Viro a cabeça. Sim, lá vem ela de velas desfraldadas e olhos reluzentes. Pela primeira vez reparo bem no seu porte. Avança como uma ave, uma ave humana envolta numa pele macia. O motor trabalha a todo o vapor. Apetece-me gritar, produzir um som que leve todo o mundo a arrebitar as orelhas. Que andar! Não é andar, é deslizar. Alta, imponente, cheia, senhora de si, corta o fumo e a luminosidade vermelha como a rainha mãe de todas as lúbricas putas babilónicas. Isto acontece à esquina da Broadway, mesmo defronte do lavabo. A Broadway é o seu reino. Isto é Broadway, isto é Nova Iorque, isto é América. Ela é América a pé, alada e sexuada. E o lubet, o abominar e o sublimar comuns pós de ácido clorídrico, nitroglicerina, láudano e ónix pulverizado. Tem opulência, e magnificência; é a América, certa ou errada, e como oceano de cada lado. Pela primeira vez na minha vida, todo o continente me acerta em cheio, comtoda a força, entre os olhos. Isto é América, combúfalos ou sem búfalos, é América, o rebolo de esmeril da esperança e da desilusão. O que quer que fez a América fê-la a ela, em ossos, sangue, músculos, globos oculares, andar, ritmo, porte, confiança, descaramento e tripas ocas. Está quase junto de mini, como rosto cheio a brilhar como cálcio. A grande pele macia Trópico de Capricórnio 313 escorrega-lhe do ombro sem que dê por isso. Parece não se importar que as roupas lhe caiam ou não. Está-se nas tintas para tudo. É a América a mover-se como um relâmpago na direcção do armazém de vidro da histeria vermelha. Amurrica, compele ou sem pele, comsapatos ou sem sapatos. Amurrica à cobrança. E pirem-se, seus pulhas, antes que os furemos! Acertou-me nas tripas, tremo. Vem qualquer coisa direita a mim e não me posso esquivar. Ela avança a direito, através da montra de chapa de vidro. Se parasse ao menos um segundo, se ao menos me deixasse em paz por um momento... Mas não, nem um momento me concede. Rápida, implacável, imperiosa como o próprio Destino, avança para mim como uma espada que me traspassa... Agarra-me na mão, aperta-a comforça. Caminho a seu lado sem medo. As estrelas brilham dentro de mim, dentro de mim existe uma grande abóbada azul onde há momentos os motores trabalhavam furiosamente. Podemos esperar uma vida inteira por um momento assim. A mulher que nunca esperámos conhecer está agora sentada à nossa frente, fala e parece exactamente a pessoa comquem sonhámos. Mas o mais estranho de tudo é que, até agora, nunca nos apercebêramos de que sonhávamos comela. Todo o nosso passado é como um longo sono que teria sido esquecido se não fora o sonho. E o sonho também poderia ter sido esquecido se não fora a recordação; mas a recordação existe; está no sangue, e o sangue é como um oceano em que tudo é arrastado pelo que é novo e ainda mais substancial do que a vida: A REALIDADE. Estamos sentados num compartimentozinho do restaurante chinês do outro lado da rua. Pelo canto do olho vejo o tremeluzir das letras luminosas, céu acima, céu abaixo. Ela continua a falar de Henriette, ou talvez seja de si mesma. O seu chapelinho preto, a sua mala e a sua pele estão no banco, a seu lado. comintervalos de poucos minutos acende um cigarro, que se consome enquanto ela fala. O que diz não tem princípio nem fim, jorra dela como uma chama e consome tudo quanto apanha ao seu alcance. Nunca se sabe como ou onde começa. De súbito, está no meio de uma longa narrativa, uma narrativa nova, mas que é sempre a mesma. O seu falar é tão informe como um sonho: não há sulcos, nem paredes, 314 Henry Miller nem saídas, nem paragens. Tenho a sensação de me afogar numa funda rede de palavras, de me arrastar penosamente para o cimo da rede, de fitar os olhos dela e tentar encontrar neles qualquer reflexo do significado das suas palavras - mas não encontro nada, nada a não ser a minha própria imagem a tremer num poço sem fundo. Embora ela não fale noutra coisa que não seja de si mesma, sou incapaz de formar a mais ténue imagem do seu ser. Inclina-se para a frente, comos cotovelos apoiados na mesa, e as suas palavras inundam-me; onda após onda passando-me por cima, sem que nada se acumule dentro de mim, nada que eu possa apreender coma minha mente. Fala-me do pai, da estranha vida que levavam na orla da Sherwood Forest onde nasceu, ou pelo menos falavame a esse respeito, pois agora é outra vez acerca de Henriette - ou será acerca de Dostoievski? Não tenho a certeza. De qualquer maneira, de súbito percebo que não está a falar de nenhuma dessas coisas e, sim, acerca de um homem que a levou a casa, uma noite, e que, quando estavam no alpendre a despedir-se, estendeu de repente o braço e lhe levantou o vestido. Faz uma pausa, como se quisesse informar-me de que é a esse respeito que quer falar. Olho-a, estupefacto, sem perceber por que caminho chegámos a tal ponto. Que homem? Que lhe estivera ele a dizer? Deixo-a continuar, pensando que provavelmente voltará ao assunto, mas não, já me ultrapassou outra vez, e agora parece que o homem, esse homem, já morreu, suicidou-se, e ela tenta fazer-me ver que sofreu um golpe rude, mas o que na realidade consegue dar-me a entender é que se sente orgulhosa pelo facto de ter levado um homem ao suicídio. Não consigo visionar o homem morto; só o vejo no alpendre a levantar-lhe o vestido, um homem sem nome, mas vivo e perpetuamente imobilizado no gesto de se inclinar para lhe levantar o vestido. Há outro homem que era o pai dela, e a esse vejo-o comuma série de cavalos de corrida ou então, algumas vezes, numa estalagenzinha à saída de Viena: vejo-o no telhado da estalagem, a lançar papagaios de papel para tentar entreter o tempo. E entre esse homem que foi o seu pai e o homem por quem ela esteve loucamente apaixonada, não consigo estabelecer qualquer separação. Ele é alguém na sua vida a respeito de quem prefere não falar, mas mesmo assim volta constantemente a ele e, embora eu não tenha a certeza Trópico de Capricórnio 315 de que não foi o homem que lhe levantou a saia, também não tenho a certeza de que não foi o homem que se suicidou. Talvez fosse o homem acerca do qual começou a falar quando nos sentámos a comer. Lembro-me agora de que, quando nos sentámos, ela começou a falar febrilmente de um homem que acabava de ver entrar na cafetaria. Até disse o seu nome, mas esqueci-o imediatamente. Lembro-me, porém, de me ter dito que vivera comele e que ele fizera qualquer coisa de que não gostara - não disse o quê - e por isso deixara-o, abandonara-o sem uma palavra de explicação. Depois, ao entrarmos no restaurante chinês, tinham dado de caras um como outro e ela ainda estava toda a tremer quando nos sentámos no pequeno compartimento... Durante um longo momento experimento uma sensação muito desagradável. Talvez cada palavra dita por ela seja uma mentira! Não uma mentira vulgar, não; algo pior, algo indescritível. Mas às vezes a verdade também sai assim, especialmente se pensamos que nunca mais voltamos a ver a pessoa comquem estamos. Às vezes somos capazes de dizer a um absoluto estranho coisas que jamais ousaríamos revelar ao nosso amigo mais íntimo. E como adormecer no meio de uma festa; interessamo-nos tanto por nós próprios que adormecemos. E, quando estamos perfeitamente adormecidos, começamos a falar comalguém, comalguém que estava na mesma sala connosco e portanto cornpreende tudo, mesmo que comecemos pelo meio de uma frase. E talvez essa outra pessoa também adormeça, e é por isso que se torna tão fácil encontrá-la. E, se esse indivíduo não diz nada que nos perturbe, então sabemos que o que estamos a dizer é real e verdadeiro, que estamos bem acordados e não há outra realidade além desse estar bem acordado a dormir. Nunca me sentira tão bem acordado e tão a dormir ao mesmo tempo. Se o ogro dos meus sonhos tivesse realmente afastado as grades e me desse a mão, eu teria morrido de susto e, por consequência, agora estaria morto, isto é, adormecido para sempre e, portanto, sempre livre, e nada seria estranho, nem mentira, mesmo se o que acontecesse não acontecesse. O que aconteceu deve ter acontecido há muito tempo, sem dúvida de noite. E o que está agora a acontecer também está a acontecer há muito tempo, e de noite, e isso é tão verdade como o sonho do ogro e as grades que não cediam, coma diferença de que as 316 Henry Miller Trópico de Capricórnio 317 barras, agora, estão partidas, e aquela que receava me dá a l mão, e não há diferença nenhuma entre o que temia e o que é, *| por que estava adormecido e agora estou adormecido bem | acordado, e não há mais nada a temer, nem a esperar,, há ape- i nas isto, que é e não conhece fim. 7 Quer partir. Partir... De novo aquele deslizar escorregadio, « como quando saiu do salão de dança e avançou direita a mim. i De novo as suas palavras... «De súbito, sem nenhum motivo, baixou-se e levantou-me o vestido.» Aconchega a pele à volta dos ombros; o chapelinho preto emoldura-lhe o rosto, dá-lhe ares de camafeu. A cara redonda e cheia, comzigomas eslávicos. Como podia sonhar isto sem nunca o ter visto? Como podia saber que se levantaria assim, próxima e cheia, como rosto branco, cheio e a desabrochar como uma magnolia? Tremo quando a sua coxa roliça roça pela minha perna. Parece até um pouco mais alta do que eu, embora não o seja. É da maneira como levanta o queixo. Não vê por onde caminha. Passador cima de coisas, em frente, comos olhos muito abertos e fitos no espaço. O eu parece tê-la deixado e o corpo impele-se para a frente, de pescoço tenso, branco como a cara. A conversa continua, naquela voz baixa, gutural. Sem princípio nem fim. Não tenho consciência do tempo nem do passar do tempo e, sim, da ausência de tempo. Ela tem o útero pequenino da garganta ligado ao útero grande da pelve. O táxi está encostado ao passeio e ela continua a mastigar a moinha cosmológica do eu exterior. Pego no porta-voz e ligo-o ao útero duplo. Está lá, está lá? Vamos! Toca a andar comisso - táxis, barcos, comboios, lanchas a nafta; praias, percevejos, auto-estradas, atalhos, ruínas; relíquias, velho mundo, novo mundo, cais, molhe; o alto fórcipe, o trapézio oscilante, a vala, o delta, os aligátores, os crocodilos, conversa, conversa e mais conversa, depois outra vez estradas e mais poeira nos olhos, mais arco-íris, mais cargas de água, mais alimentos para o pequeno-almoço, mais cremes e mais loções. E quando todas as estradas tiverem sido atravessadas e só restar o pó dos nossos passos frenéticos, ainda subsistirá a recordação da tua cara cheia e tão branca, e da boca grande, de lábios frescos entreabertos, comos dentes níveos e cada um uma perfeição, e a essa recordação talvez nada consiga mudar, porque ela, como os teus dentes, é perfeita... É domingo, o primeiro domingo da minha nova vida, e eu uso a coleira de cão que me puseste ao pescoço. Estende-se à minha frente uma vida nova. Começa pelo dia de descanso. Deito-me numa grande folha verde e vejo o Sol rebentar no teu útero. Que grande barulheira faz! Tudo isso expressamente para mim, não? Se ao menos tivesses em ti um milhão de sóis! Se ao menos pudesse ficar aqui deitado para sempre a apreciar o celestial fogo-de-artifício! Encontro-me suspenso sobre a superfície da Lua. O Mundo está num transe uterino: o ego interior e o exterior estão em equilíbrio. Prometes-me tanto que, se nunca sair disto, não fará diferença nenhuma. Parece-me que passaram exactamente 25 960 anos desde que adormeci no útero preto do sexo. Parece-me que dormi 365 anos a mais. Mas, de qualquer maneira, encontro-me agora na casa certa, entre os seis, e o que se encontra atrás de mim está bem e o que se encontra à minha frente está bem. Apareceste-me disfarçada de Vénus, mas és Lilith, e eu bem o sei. Toda a minha vida está pendente; gozarei tal luxo este único dia. Amanhã inclinarei a balança. Amanhã o equilíbrio acabarse-á; se o voltar a encontrar será no sangue e não nas estrelas. Ainda bem que me prometeste tanto. Preciso que me prometam quase tudo, pois vivi demasiado tempo à sombra do Sol. Quero luz e castidade - e um fogo solar nas tripas. Quero ser enganado e desiludido, para poder completar o triângulo superior e não estar continuamente a ser atirado do planeta para o espaço. Acredito em tudo quanto me dizes, mas também sei que acontecerá tudo de modo diferente. Tomo-te como uma estrela e uma armadilha, como uma pedra para inclinar a balança, como um juiz vendado, como um buraco para nele cair, como um caminho para nele andar, como uma cruz e uma seta. Até ao presente viajei pelo lado oposto do Sol; doravante, viajarei em dois sentidos, como Sol e como Lua. Doravante, assumirei dois sexos, dois hemisférios, dois céus, dois jogos de tudo. Doravante, terei articulações duplas e sexo duplo. Tudo quanto acontecer, acontecerá duas vezes. Serei como um visitante desta Terra, compartilhando das suas bênçãos e levando as suas dádivas. Não servirei nem serei servido. Procurarei o fim em mim próprio. Olho de novo para o Sol - o meu primeiro olhar em cheio. 318 Henry Miller E vermelho-sangue e andam homens a caminhar nos telhados. Tudo acima do horizonte é claro para mim. É como Domingo de Páscoa. A morte está atrás de mim e o nascimento também. Agora you viver entre as doenças da vida. you viver a vida espiritual do pigmeu, a vida secreta do homenzinho no ermo do mato. Interior e exterior trocaram os lugares. O equilíbrio já não é o objectivo - a balança tem de ser destruída. Deixa-me ouvir-te prometer de novo- todas as soalheiras coisas que trazes dentro de ti. Deixa-me acreditar só por um dia, enquanto descanso ao ar livre, que o Sol traz boas novas. Deixa-me apodrecer em esplendor enquanto o Sol rebenta no teu útero. Acredito implicitamente em todas as tuas mentiras. Tomo-te como a personificação do mal, como a destruidora da alma, como a mabarani da noite. Prega o teu útero na minha parede, para que possa lembrar-me de ti. Temos de ir andando. Amanhã, amanhã... Setembro de 1938 Villa Seurat, Paris NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA HENRY Valentine MILLER nasceu em 26 de Dezembro de 1891, em Nova Iorque, filho de judeus norte-americanos. Abandonou os estudos no City College para trabalhar numa fábrica de cimento. Por essa época, iniciou a sua relação comPauline Chouteai, dezoito anos mais velha do que ele. Em 1914, depois de uma série de viagens pelo Sul dos EUA, empregou-se na alfaiataria do pai. Mais tarde, trabalhou na Companhia de Telégrafos Western Union e no Herald Tribune. Em 1917, casouse coma pianista Beatrice Sylvas Wickens. Em 1923, depois de se divorciar, casou-se comJune Edith Smith e comela realizou a sua primeira viagem à Europa. Instalaram-se em Paris, onde Miller escreveu Trópico de Câncer (1934), livro que se manteve proibido pela censura dos Estados Unidos até 1961, quando Miller foi descoberto pelos hippies, que o proclamaram o mestre da revolução sexual de então. Em Paris conheceu os escritores Anais Nin e Lawrence Durrell, que marcariam a sua vida e a sua obra. comDurrell fez uma viagem à Grécia em 1939, que deu origem ao romance O Colosso de Maroussi (1941). Divorciado de novo, em 1942 regressou aos EUA e casou-se comJanina Lepska. Depois da Segunda Guerra Mundial, a sua obra tornou-se conhecida; gradualmente, Miller foi aceite como uma figura maior na luta pela liberdade literária e pessoal e um sábio espiritual que influenciou grandemente a beat generation na sua busca pela salvação através de experiências extremas. Em 1945 instala-se na Califórnia onde viveu até à sua morte. Ali terminou a trilogia Sexus (1949), Plexus (1953) e Nexus (I960), também autobiográfica. Em 1948 voltou a divorciar-se para se casar comEve McLure, comquem viajou para a Europa. Em 1957 é eleito membro da Academia Nacional de Artes e Letras. Divorciou-se de Eve em 1961 e casou-se pela LA^^m^ 320 Henry Miller quinta e última vez coma cantora japonesa Hocki Takuda. Em 1963 estreou a sua comédia Just Wild about Harry e em 1977 publicou a sua última obra, de carácter autobiográfico: O Livro dos Meus Amigos. Henry Miller morreu, vítima de insuficiência cardíaca, em 7 de Junho de 1980. Estão publicados em português: Trópico de Câncer; Trópico de Capricórnio; O Colosso de Maroussi; Pesadelo em Ar Condicionado; O Sorriso aos Pés da Escada; Sexus; Plexus; Nexus; Big Sur e as Laranjas de Jeónimo Boch; Reflexões sobre a Morte de Mishima; Opus Pistorum; Um Diabo no Paraíso; Moloch ou Este Mundo Pagão; Insónia; O Livro dos Meus Amigos. A