o diário da minha melhor amiga

Transcrição

o diário da minha melhor amiga
JILL ABRAMSON
O DIÁRIO DA MINHA
MELHOR AMIGA
TRADUZIDO DO INGLÊS POR
JOSÉ VALA ROBERTO
CAPÍTULO 1
A
verdade é que arranjar um cão novo nos faz sentir a falta
daquele que tínhamos antes.
Fui duramente confrontada com esta verdade num belo dia da
primavera de 2009, quando Henry, o meu marido, e eu chegámos a
Thistledown Kennels, perto de Boston, para nos encontrarmos com
Donna Cutler, uma criadora de cães da raça golden retriever. Porque
o local se chamava Thistledown e porque sabia que a raça golden
retriever havia sido apurada por um tal lorde Tweedmouth, tinha a
expectativa de que o lugar tivesse a aparência de um solar rústico.
Pelo contrário, estacionámos em frente a um simples rancho
suburbano e o único sinal da ninhada de cachorros com sete semanas
que tínhamos sido convidados a apreciar (embora soubéssemos que
afinal seríamos nós a ser apreciados pela criadora) era uma placa na
porta da frente que exibia dois golden retrievers e a frase «LIMPAR AS
PATAS». Porque terei sentido uma necessidade súbita de secar os olhos?
O meu coração ainda sofria pela perda do Buddy, o nosso west
highland terrier branco, completamente surdo e sempre rezingão,
que partiu em março de 2007, com dezasseis anos de idade. Os nossos dois filhos, Cornelia e Will, que cresceram com ele mas cujos
anos de infância voaram antes de ele morrer, costumavam dizer que
o Buddy era a minha única relação perfeita na vida.
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JILL ABRAMSON
O Buddy, tal como eu, era do tipo autossuficiente e apesar do
seu pequeno porte não era um cão de colo. Como muitos west highland terrier, era aflitivamente teimoso e nunca respondia quando o
chamavam. Podia ser um resmungão imprevisível para as crianças
e uma vez chegou a morder o lábio superior à minha afilhada. Também não era simpático para os adultos; anos mais tarde, mordeu a
perna a uma idosa que, por qualquer razão inexplicável, se encontrava descalça e em camisa de noite no nosso elevador, quando chegou ao nosso andar e as portas se abriram. Felizmente, este incidente
despoletou uma amizade improvável entre mim e Eve, a vítima do
Buddy. Apesar de tudo, eu era louca por ele e perdoava-lhe todos
os pecados. Também aprendi muito com o Buddy; entre outras coisas ensinou-me que, mesmo em situações enervantes, os cães têm
uma maneira única de nos conduzir para direções interessantes e
inesperadas.
Confesso que estraguei o Buddy com mimos, para além do
razoável. Os convidados de nossa casa acordavam frequentemente
com o aroma de um frango assado com rosmaninho, que eu gostava
de lhe dar ao pequeno-almoço. Henry observava algumas vezes, sem
rancor, que quando eu viajava em trabalho e ligava para casa, a
minha primeira pergunta era sempre: – Como está o Buddy?
Muito depois de Cornelia e Will começarem a querer esquivar-se dos meus abraços e a achar aborrecidos os jogos que eu inventava, o Buddy ficava sempre feliz quando eu lhe afagava a barriga
cor-de-rosa ou brincava com ele a medir forças. Enquanto os meus
filhos preenchiam as suas vidas com a escola, o escutismo e o desporto – e, mais tarde, com a universidade, o trabalho e o namoro –
o Buddy permaneceu o meu fiel companheiro. Quando o Buddy era
um cachorro, vivíamos na Virgínia e juntos, eu e ele, passeávamos
quilómetros pelo bairro, descobrindo ruas secundárias novas com
casas interessantes. Havia sempre alguém que parava para o admirar
e foi assim que conheci muitos dos meus vizinhos. Durante os nossos passeios, também conseguia libertar-me de alguma da pressão
do meu trabalho como jornalista de investigação, naquele tempo
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Buddy e Jill sob o alpendre no Connecticut
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para o Wall Street Journal. Às vezes, com o espírito a vaguear livremente enquanto puxava a trela para um lado ou para outro, surgia-me a ideia para uma grande história ou para um ângulo de
reportagem sobre os escândalos de Washington, que eram os meus
frequentes alvos de investigação. O Buddy, fiel e verdadeiro, era o
meu leal e cúmplice conspirador.
Uma vez tive um raro momento «eureca» enquanto passeava o
Buddy. Tinha deixado recentemente o Wall Street Journal para trabalhar no escritório de Washington do New York Times, onde integrei a equipa de repórteres que fez a cobertura do escândalo Monica
Lewinsky. Um dia, enquanto o Buddy e eu caminhávamos para sul
na Second Street em Arlington, tomei consciência de que uma das
pessoas que encontrara num documento na noite anterior me era
familiar – tratava-se de um proeminente advogado conservador de
Nova Iorque. A razão por que o seu nome me ocorreu durante um
passeio com o Buddy na manhã seguinte, adivinhe quem quiser;
mas quando eu e o meu cão fomos para casa, agarrei nos documentos que tinha estado a rever e descobri que esse advogado era repetidamente mencionado. Essa descoberta conduziu a uma história
de primeira página sobre como uma cabala de advogados conservadores tinha trabalhado secretamente no caso de assédio sexual,
que dera início aos procedimentos de impugnação contra o presidente Clinton. O Buddy, o meu sócio silencioso, merecia partilhar
o subtítulo desta história.
Embora independente e muitas vezes agressivo, o Buddy ficava
sempre feliz por me ver. Quando os meus filhos estavam no final
da adolescência, não pude deixar de notar que ele, ao contrário de
Cornelia e de Will, nunca estava de mau humor nem me pedia o
carro emprestado. E quando fui promovida a chefe de departamento
do Times em Washington, reparei que ao invés dos repórteres que
trabalhavam para mim, o Buddy ficava infalivelmente deliciado sempre que eu aparecia com aquilo que achava ser uma ideia inspirada.
O Buddy, bem se vê, foi o meu primeiro cão e cativou-me por
completo. Talvez esta nova relação fosse tão intensa, precisamente
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porque não era baseada em palavras, por oposição ao resto da minha
vida pessoal e profissional. Passava uma parte tão grande do meu
dia a falar, a ler e a escrever, que ao mesmo tempo era um alívio e
uma alegria estar algum tempo com o Buddy. Com exceção de algumas ordens simples, a nossa conversa era inteiramente constituída
pelos meus arrulhos infantis e pelo seu rosnar apreciativo.
A minha irmã mais velha, Jane, comentou muitas vezes que o
que mais a surpreendia em mim era aquela minha transformação
tardia em amante de cães.
– Foste uma mãe maravilhosa – disse-me uma vez – mas nunca
te vi tão afetuosa ou expressiva com ninguém como és com este cão.
Era verdade. No trabalho, onde alguns dos meus colegas e das
minhas fontes diziam achar intimidatória a minha personagem de
jovem e dura jornalista de investigação, eu estava constantemente a
puxar das últimas fotografias do Buddy e a contar a todos as suas
últimas histórias. O Buddy era mais do que o meu cúmplice conspirador; também parecia querer fazer de mim uma pessoa mais simpática para os outros.
*
Eu não gostava só do Buddy. Também adorava o Arrow, um
jack russell cruzado da minha irmã, que me saudava em êxtase quando eu chegava à porta dela. Eu e o Arrow tínhamos uma ligação
especial quando me mudei de Washington para Nova Iorque, em
2003, para assumir as funções editora-chefe do Times. Henry – que
trabalhava numa empresa de pesquisa do tipo «fábrica de ideias»
em Washington D.C. e se preparava para ser consultor em Nova
Iorque – e o Buddy não puderam juntar-se imediatamente a mim
em Manhattan, portanto vivi um par de semanas com Jane e com
o Arrow. A minha ligação afetiva ao Arrow foi, durante este período,
inflamada pelos sacos com «comida para o cão» que eu trazia com
frequência do restaurante onde tinha jantares de trabalho. O Arrow,
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lembro-me, gostava especialmente das iscas de fígado grelhadas e
do bacon de um restaurante italiano chamado Elio’s.
Cresci num apartamento do Upper West Side de Manhattan.
Os nossos pais autorizavam que eu e a Jane tivéssemos tartarugas,
peixes, periquitos e até um hamster, que sobreviveu a todos os nossos
animais de estimação. (Durante o famoso apagão de 1966, passei
horas a encher com água um aquário de peixes tropicais de modo a
fornecer o oxigénio suficiente para salvar uma fêmea guppy prenhe
e a sua iminente prole.) Mas os meus pais vetaram um cão. «A cidade não é um bom sítio para criar um cachorro», disse-nos a mãe.
Apesar dos nossos apelos e até de vivermos a dois passos do Central
Park, ela foi irredutível.
O Buddy chegou em 1992, quando Henry e eu andávamos
pelos nossos trinta e muitos e os nossos filhos tinham nove e sete
anos. Foi também o ano em que faleceu o meu pai, portanto o
Buddy foi especialmente bem-vindo. Cornelia e Will disseram as
usuais mentiras de crianças sobre a chegada de um animal doméstico: juraram que seriam eles a dar-lhe comida e que o iriam acolher
calorosamente na nossa família. Naturalmente que as coisas não
foram assim e portanto eu tomei conta do Buddy, ensinando-o, alimentando-o e cantando-lhe canções de embalar junto ao seu pequeno caixote. No entanto, eu não me importava – ter uma vida nova
em nossa casa era um tónico para compensar o desgosto pela perda
do meu pai.
A nossa morada, naquele tempo, era perfeita para um cachorro
ativo. Vivíamos num recanto fora de moda em Arlington, na Virgínia, numa sólida casa de campo que fora encomendada no catálogo Sears de 1928. A casa tinha um bom jardim com uma cerca e
como o Buddy tinha uma portinhola para cão, podia entrar e sair
quando quisesse. O seu objetivo de vida passou a ser o de patrulhar
o canteiro de relva e protegê-lo de intrusos imaginários. Também
aprendeu a abrir a caixa do correio; todos os dias, esperava dentro
de casa pela chegada do carteiro e depois corria até ao alpendre
para recolher a correspondência do dia. Quando nevava, o Buddy
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desaparecia muitas vezes sob os montes de neve branca do nosso jardim e fazia túneis e buracos à sua vontade. Eu gostava sobretudo de
caminhar com ele quando a neve estava estaladiça sob as minhas
botas; surpreendentemente, o Buddy fazia-me desejar o inverno.
O Buddy já tinha treze anos quando nos mudámos para Manhattan e preocupava-me que a mudança lhe pudesse ser fatal. Subalugámos um loft no centro, em Tribeca, mas felizmente o Buddy
adorou toda a atividade do seu novo bairro, incluindo os odores de
tantos outros cães e a beira sombria do passeio à porta de um restaurante japonês de luxo, chamado Nobu.
Assim que Henry e eu nos instalámos na nossa nova casa, contratei um tratador de cães chamado Carlos, que levava o Buddy a passear todas as tardes. Um dia, esqueci-me de levar alguns documentos
para o trabalho e tive de regressar a casa para os ir buscar e dei de
frente com Carlos, que fazia o seu passeio na rua com o Buddy e
três outros cães. O Buddy não tinha socializado muito com outros
cães nos seus dias de patrulha do jardim, mas naquele momento
parecia perfeitamente adaptado à companhia dos seus descontraídos
companheiros da cidade. Quando me viu, olhou-me com um ar
indiferente como que a perguntar: «O que fazes aqui?»
Antes de sair para o trabalho, ia muitas vezes com o Buddy dar
uma corrida perto do rio Hudson, onde ele se juntava a uma cadelinha da mesma raça e de porte mais ou menos idêntico. Quando
brincavam juntos faziam lembrar um anúncio a um whisky escocês
e eu gostava de conversar com os donos dela, que se sentavam nos
bancos e adoravam discutir comigo as críticas de cinema, teatro e
restaurantes do Times. Aquelas manhãs faziam-me recordar os anos
em que os meus filhos eram pequenos e as tantas e tão boas amizades que fiz enquanto estava sentada nos bancos do parque infantil,
falando de tudo um pouco, desde fraldas biodegradáveis aos nossos
casamentos.
Um dia levei o Buddy ao veterinário em Tribeca para um exame
médico de rotina e encontrei uma mulher com dois west terriers.
Ela usava umas meias axadrezadas enfeitadas com cães dessa raça.
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– Tenho umas iguais – disse-lhe. Ela riu-se e depois olhou para
o Buddy.
– Que idade tem o seu west terrier? – perguntou.
Quando lhe disse que o Buddy tinha quinze anos, ela exclamou:
– Oh, nós temos um com dezoito.
Como os dois cães que a acompanhavam eram obviamente
muito mais novos, perguntei-lhe onde estava o mais velho.
– Vive num hospício perto de nós e visitamo-lo quase todos os
dias – respondeu.
Fiquei surpreendida; nunca tinha imaginado que existissem
estabelecimentos em regime de internamento para cuidar de cães
em final de vida. Este encontro marcou o início do meu fascínio
pelo sofisticado mundo da vida canina em Manhattan, onde existem de facto hospícios para cães, para não mencionar fisioterapeutas, massagistas de cães e psiquiatras de cães, que lhes prescrevem
ansiolíticos.
Henry e eu também ficámos apreensivos ao descobrir que tudo
o que tinha a ver com cães era bastante mais caro em Manhattan.
Embora nós vivêssemos num velho edifício não restaurado, sem
porteiro, que no passado fora uma fábrica de especiarias, Tribeca
era um dos bairros mais caros de Manhattan, repleto de corretores
de Wall Street que ganhavam ordenados chorudos e bónus principescos. Placas que anunciavam «LOFTS LUXUOSOS PARA VENDA» estavam à vista por todo o lado, e com o «luxuoso» a significar um custo
por apartamento na ordem dos dois milhões de dólares ou mais.
Uma bola de borracha que comprei numa loja local de artigos para
animais custou seis dólares. É verdade que eu gastava bastante
dinheiro com Carlos, mas as outras pessoas do bairro que tinham
cães gastavam ainda mais, enviando os seus cachorros para The
Wagging Tail, um centro de cuidados caninos diurnos na Rua
Greenwich.
Quando o Buddy fez dezasseis anos já ouvia muito mal, mas
continuava a ser atrevido. No entanto, no inverno de 2007 começou a desenvolver uma tosse persistente.
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– Acho que pode ser do coração – disse Cornelia, que frequentava o segundo ano da Faculdade de Medicina de Columbia. Num
dado fim de semana sofreu o que parecia ser um derrame cerebral:
ficou temporariamente confuso, mas voltou bastante rápido ao seu
estado normal. Mais tarde, em finais de fevereiro, enquanto Cornelia e eu o levávamos a passear ao final do dia, caiu inanimado no
passeio. Peguei nele e corri para o veterinário, que nos disse para o
levarmos a um hospital veterinário na parte de baixo da 5th Avenue.
Depois de lhe ministrarem algum oxigénio, pareceu estabilizar.
Fomos aconselhadas a deixá-lo internado durante a noite e os meus
olhos encheram-se de lágrimas quando fomos encaminhadas para
nos despedirmos dele e o vi deitado, tão vulnerável, numa pequena
gaiola.
Às três horas da madrugada o telefone tocou. Era o veterinário.
O Buddy estava em insuficiência cardíaca congestiva.
– Está com muitas dificuldades respiratórias e parece estar a
sofrer muito com dores – informou o veterinário de serviço.
– Acho que devíamos abatê-lo. – Cornelia agarrou no telefone
e disse que estaríamos no hospital em poucos minutos.
Henry, Cornelia e eu saímos a correr do apartamento, quase
esquecendo os casacos com a pressa, e chamámos um táxi. Quando
chegámos ao hospital veterinário, o Buddy estava deitado de lado
numa maca, com as costas arquejantes e uma pequena máscara de
oxigénio no focinho. Fizemos uma imensidão de perguntas e procurámos por todos os meios imaginar que o Buddy podia recuperar,
mas estava claro que não havia esperança. Enquanto o técnico clínico preparava a injeção letal, Henry e eu não suportámos assistir,
apesar do conselho de alguns amigos que nos diziam que era reconfortante para o cão os donos estarem presentes quando a sua vida
chegava tranquilamente ao fim. Cornelia, na sua pele de médica,
ficou com o Buddy até ao fim.
Quando regressámos ao nosso loft, senti o silêncio envolver-me.
Era doloroso; tinha-me habituado a escutar as chapinhas metálicas
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do Buddy a tilintar enquanto ele andava de uma sala para outra. Para
os meus ouvidos, aquela era a música de um fiel companheirismo.
*
Depois da morte do Buddy, fiquei inconsolável. Não era apenas
pela falta do amor incondicional ou da saudação entusiástica de
cada vez que eu abria a porta e entrava em casa, mesmo que só me
tivesse ausentado por poucos minutos para despejar o lixo na cave.
Sentia a falta de tudo o que se relacionava com a nossa rotina, desde
alimentá-lo com vitela ou frango grelhados até aos nossos passeios
noturnos ao longo da margem ventosa do rio. E evitava passar com
frequência pelos locais onde normalmente passeava com o Buddy.
Todos nos incentivavam a arranjar um novo cão o quanto antes.
Mas as semanas passaram e eu fui-me habituando a alguns aspetos
de uma vida sem cão. Sem cão para passear, podia não só acompanhar tudo o que não lera no dia anterior no Times, mas também
examinar o Wall Street Journal, o Financial Times e vários sites e blogues políticos, tudo isto antes de ir trabalhar. Comprei um iPhone
e rapidamente me tornei mestre de uma vida distraída, um estilo
de vida que não era adaptável aos jogos e ao treino concentrado de
que um cachorro precisa. Enchi o meu ninho digital com amigos
do Facebook, incluindo parentes afastados redescobertos e antigas
colegas do liceu. Passávamos muitos fins de semana na cidade do
Connecticut onde Henry crescera – aí compráramos uma velha
quinta em final dos anos 90 – e agora podíamos ir para a praia todo
o dia ou ficar fora até tarde sem nos preocuparmos em ter de ir para
casa para levar o cão à rua.
Pouco tempo depois, já quase me convencera de que a minha
mãe tinha razão: a cidade era provavelmente um mau lugar para
um cachorro, mesmo para um que pudesse viver uma parte do
tempo no campo. Os meus dias como dona de um cão pareciam
ter terminado.
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O DIÁRIO DA MINHA MELHOR AMIGA
Dois meses depois de o Buddy morrer, a vida voltou a pregar-me uma partida terrível. Na manhã de 7 de maio de 2007,
enquanto me dirigia do escritório para um ginásio próximo, fui atropelada por um enorme camião no cruzamento da West 44th Street
com a 7th Avenue, em Times Square. Como cresci na cidade, considerava-me uma navegadora experimentada nas ruas movimentadas
de Manhattan. Tal como muitos nova-iorquinos, já tinha sofrido um
par de experiências mais ou menos assustadoras; uma vez em que
um táxi quase me bateu quando eu estava parada numa esquina, ou
outra em que um mensageiro de bicicleta passou tão perto de mim
que me tocou no casaco de raspão. Mas deslocava-me para qualquer
lado da cidade sem sequer pensar duas vezes nos seus perigos.
Desta vez, enquanto atravessava a 7th Avenue, um enorme
camião frigorífico, ao descrever uma curva para a direita, veio ameaçadoramente na minha direção. A roda direita dianteira do camião
esmagou-me o pé direito e fui arrastada para o chão. A roda traseira
passou sobre a minha coxa esquerda fraturando-me o fémur. Por
sorte, outros peões pararam para me ajudar. Fiquei deitada na rua,
a sangrar; não perdi a consciência, mas senti dores horríveis. Enquanto algumas pessoas procuraram um polícia para chamar uma
ambulância, outras perseguiram o camião e obrigaram-no a parar.
Quando a ambulância chegou, os paramédicos informaram-me que
iria ser levada para o Bellevue Hospital, o famoso centro para tratamento de traumatismos.
Passei as três semanas seguintes no hospital. Para além das feridas na perna e no pé, também fraturei a bacia e sofri lesões internas
greves. Um dos médicos disse-me que se a roda traseira do camião
me tivesse atropelado a coxa esquerda dois centímetros mais acima,
eu teria morrido no acidente. Depois de ser sujeita a uma intervenção cirúrgica na perna em que me foi implantada uma haste de titânio, fui informada de que teria de passar seis semanas de cama e
depois reaprender a andar.
À medida que comecei a recuperação em Bellevue, aprendi a
passar da cama para a cadeira de rodas usando apenas os braços e a
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parte superior do corpo. Iniciei rapidamente um programa intensivo de fisioterapia e, ao trabalhar lado a lado com doentes que
sofriam de terríveis lesões cerebrais permanentes, tomei consciência
da sorte que tinha. As enfermeiras que cuidaram de mim eram
maravilhosas. Lembro-me de que na primeira vez em que tive de
passar da cama para uma cadeira de rodas, a minha enfermeira,
Angela, disse-me para a abraçar com força à volta do pescoço e carregou com todo o meu peso. «Dança comigo, querida», brincou
ela, enquanto aguentava o meu corpo inerte.
Já em casa, uma competente fisioterapeuta chamada Pearl visitava-me três vezes por semana. Era como se eu tivesse voltado a ser
bebé, mas Pearl ensinou-me como progredir do rastejar para o
andar, primeiro com a ajuda de canadianas e, finalmente, com uma
bengala. Sentir-me tão desamparada era muito duro para mim e eu
ficava facilmente frustrada por não poder desempenhar tarefas simples, como arrumar os pratos lavados na cozinha.
Senti terrivelmente a falta do Buddy durante este período difícil
– seria um conforto extraordinário tê-lo ao meu lado. Conseguir
voltar a estar de pé pelos meus meios foi duro e, três meses após o
acidente, o meu andar ainda era vacilante. Mas o corpo humano,
mesmo na meia-idade, é de uma flexibilidade notável e os meus
anos de passeio com o cão e de idas ao ginásio ajudaram o osso a crescer relativamente depressa em redor da haste implantada na minha
perna. Lentamente, a minha mobilidade física estava a voltar.
Precisamente quando estava a regressar a um estado muito próximo do normal, fui acometida por uma depressão que parecia sufocar-me como um cobertor quente. Nunca tinha passado por nada
assim e de alguma forma tranquilizou-me um pouco saber que os
episódios depressivos eram relativamente comuns depois de lesões
traumáticas. Felizmente, consegui o bom acompanhamento de uma
psicóloga. Durante uma sessão, a minha psicóloga disse-me que
quando eu falava do Buddy o meu rosto se iluminava.
– Talvez fosse bom pensar em arranjar outro cão – sugeriu gentilmente.
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O DIÁRIO DA MINHA MELHOR AMIGA
Henry, os meus filhos e Jane Mayer – a minha melhor amiga,
perdida por cães – depressa lançaram uma campanha de incentivo.
O seu diagnóstico coletivo era o de um caso grave de balada da
meia-idade: nestes últimos tempos tinha feito cinquenta anos, vira
os meus filhos crescidos deixarem o nosso ninho e perdera o muito
querido Buddy. Agora, enquanto lutava para me recompor do acidente e da depressão, eles tinham a certeza de que aquilo de que eu
precisava, acima de tudo, era de um novo cão. Ao longo dos anos, Jane e eu partilhámos muitas cumplicidades, tanto profissionais como pessoais. Fomos coautoras de um livro
campeão de vendas sobre Justice Clarence Thomas, um projeto que
envolveu algumas das mais estimulantes reportagens das nossas carreiras. Contudo, este empreendimento teve os seus momentos mais
ligeiros. A determinada altura, a nossa investigação exigiu que tivéssemos de visionar vídeos para maiores de dezoito anos, que apresentavam uma estrela porno chamada Bad Mama Jama, mas eram
de tal maneira ridículos e maçadores que ambas adormecemos no
sofá da minha sala de estar. Um par de anos antes, tínhamos conseguido salvar a Peaches, uma adorável e amarela cadela labrador,
das garras de um antigo namorado de Jane que insistira em manter
a Peaches consigo após a separação. Numa sexta-feira quente,
quando planeava fazer uma viagem de férias com as crianças e com
o Buddy, Jane decidiu aproveitar a oportunidade para raptar a Peaches e fazê-la desaparecer para casa dos seus pais em Vermont.
Naquela tarde, quando Jane soube que o namorado ainda estaria a
trabalhar, dirigimo-nos a casa dele na minha velha carrinha verde.
Jane era tão pequena que não teve qualquer dificuldade em entrar
furtivamente em casa pela portinhola do cão. Num ápice, apareceu
à porta da frente com a Peaches, que trepou para a carrinha, ao lado
do Buddy, enquanto eu pisava o acelerador e desaparecíamos.
Agora, como parte da persistente campanha para me animar,
Jane enviou-me fotografias de um par de irmãs basset hound já velhinhas, que precisavam de ser salvas. Sugeriu que cada uma de nós
ficasse com uma, mas eu dissuadi-a argumentando que aquelas
19
JILL ABRAMSON
«velhinhas» não deviam ser separadas. Entretanto, Cornelia intrometia-se anunciando que devíamos escolher um nome para o novo
cão e enviava-me regularmente e-mails com ideias como Cosmo, Sugar
e Pamplona. Will, para não ser ultrapassado, enviava-me links de
cachorros incrivelmente bonitos no Petfinder.com.
Mas eu mantinha-me irredutível. – Não – dizia –, não há cão
novo.
*
No verão de 2008, Henry decidiu tomar o assunto nas suas
mãos. Apesar da minha resistência, sereno mas inflexível, achou que
era tempo de arranjar um novo cão. E desta vez queria um cão mais
corpulento – «enquanto podemos lidar com ele», explicava –, mas
um que fosse acalmando com o tempo. Quando dávamos os nossos
passeios na praia do Connecticut depois da morte do Buddy, Henry
olhava impacientemente para os grandes cães que corriam em busca
de objetos e nadavam. Ele preferia uma cadela, com base na teoria
de que é mais fácil lidar com as fêmeas.
Sem o meu conhecimento, Henry andava encantado com uma
dócil golden retriever que pertencia a dois bons amigos do Connecticut, Marian e Howard Spiro. Henry admirava especialmente a
correção de comportamento que a cadela dos Spiro – chamada
Cyon, a partir de Procyon, uma estrela da constelação Orion – apresentava quando estava acompanhada.
Henry tinha ficado apaixonado durante as habituais partidas
de lawn bowling nas manhãs de domingo, organizadas pelo Dr. Spiro.
(A maior parte dos participantes era octogenária, mas Henry jogava
para ganhar e muitas vezes conseguia-o.) Durante os jogos, a Cyon
observava tranquilamente os participantes, sem nunca ladrar nem
correr atrás da bola. Naquele mês de setembro, na tradicional festa
cocktail do Dia do Trabalhador em casa dos Spiro, a Cyon não pediu
uma única vez fosse o que fosse, nem saltou para abocanhar um
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O DIÁRIO DA MINHA MELHOR AMIGA
pedaço de queijo caído, ou entornar um gin tónico, por mais precário que fosse o seu equilíbrio.
A Cyon, que estava certificada como cão de terapia hospitalar,
tinha uma atitude nobre e era de uma cor rara, quase branca. Os
Spiro informaram-nos que a Cyon era uma variedade especial de
golden retriever do tipo britânico. Os golden são a segunda raça mais
popular nos Estados Unidos, mas até conhecermos a Cyon desconhecíamos que possuíam diversos matizes, do vermelho arruivado à cor
de mel mais comum, e finalmente ao tom platinado da Cyon. No
princípio do outono de 2008, Henry já só tinha a ideia fixa de que
deveríamos adquirir um cachorro do tipo britânico e começou
então, num esforço suave mas insistente, a procurar persuadir-me
a concordar com o seu plano. O meu coração ainda chorava a falta
do Buddy e eu não estava plenamente segura de estar preparada para
ter um novo cão, mas por fim cedi.
Depois de obter referências com Marian Spiro, Henry contactou Donna Cutler, uma criadora de golden retrievers britânicos da
zona de Boston. Donna informou-o de que esperava uma nova ninhada na primavera seguinte e, em dezembro de 2008, com o meu
cauteloso consentimento, Henry enviou uma candidatura e fez o
depósito de um sinal sobre o preço de um dos cachorros ainda por
nascer.
Sentia-me culpada. Com milhões de cães nos canis de todo o
país à espera de serem adotados e com grupos locais de ajuda a animais, que procuravam ativamente novos lares para retrievers abandonados ou maltratados, tinha a perfeita noção de que para nós
faria mais sentido a adoção de um cão do que a compra de um
cachorro de raça pura. Embora hoje em dia, em comparação com
as últimas décadas, haja muito menos cães a serem alvo de eutanásia
nos canis, cerca de três a quatro milhões de cães abandonados são
abatidos anualmente, de acordo com a ASPCA (associação americana para a prevenção da crueldade para com os animais). Como
podíamos nós justificar a compra de um novo cachorro?
21
A Cyon na praia, no Connecticut

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