ler fragmento - Nova Acrópole

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ler fragmento - Nova Acrópole
TEBAS
Jorge A. Livraga
TEBAS
Edições Nova Acrópole
Humanismo•Filosofia•Simbolismo
SENTIDO ESOTÉRICO DA MUMIFICAÇÃO
E DAS OFERENDAS FUNERÁRIAS
Já antes abordámos este ponto muito sucintamente.
Faremo-lo agora com maior amplitude.
A mumificação no Egipto não é um caso único na História;
praticaram-na outros povos antigos ainda que com distintas
técnicas. Também não é a mesma através dos séculos no
próprio Egipto e repetimos que, no início do que poderemos
chamar “tempo histórico”, apenas se praticava nos corpos
sacralizados dos Faraós ou de Grandes Sacerdotes.
Renovamos igualmente a nossa afirmação de que, para os
egípcios, a morte e a vida não eram mais do que duas faces
de uma mesma moeda, como mais tarde dirá o refrão. Há uma
só Vida... que desliza sobre os seus dois pés, a vida e a
morte... para repetir o ciclo enquanto houver caminho a percorrer e no final fundir-se com a Alma do Mundo, o Espírito
Solar, Amon-Ra, onde mora o Rei do Mundo, no Cósmico:
Osíris-o-que-tem-um-só-pé. Porque a primeira mumificação,
segundo conta a tradição, fê-la o próprio Anubis - Deidade
pré-histórica - sobre o cadáver de Osíris, morto e despedaçado por Seth - a diferenciação - operação na qual colabora a
Maga Ísis, Irmã-Esposa de Osíris. No entanto a parte sexual
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de Osíris não pôde ser encontrada (é esta a explicação de certas mutilações encontradas em múmias) e é Horus o Maior, o
Grande Pássaro do Espírito que a encontra e, levando-a nas
suas garras, toca com uma asa o ombro da Virgem Ísis o que
a deixa grávida de Horus o Menor. O falo de Osíris desapareceu no Nilo (identificou-se com o Rio), Horus o Maior voltou
à sua morada cósmica e Ísis dotou o nascente filho (que como
todos os Filhos de Deus nasce de uma Virgem) com Poderes
Extraordinários para unir a Terra e o Céu, segundo o sentido
do próprio nome de Ísis: Degrau-degrau, ou seja, Escada.
Horus o Menor combate o assassino do seu Pai - por sua vez
irmão de Osíris - Seth; fá-lo retroceder e esconder-se nos pântanos sob a forma de Sebeck, o Deus-Crocodilo. Horus perde
um olho no combate mas esse olho adquire vida própria e
será daí em diante Uadjed, o Olho Protector com a sua eterna
lágrima de compaixão pelos viventes.
Este Rito Mistérico seria depois reproduzido na Terra.
O corpo do Faraó, Príncipe, Princesa, Sacerdote ou personagem que morria era submetido, através dos ritos que
ajudavam a sua Alma “colocando-a” às vezes dentro de uma
estatueta ou de uma vaso (virá daí o conto do Génio encerrado numa garrafa de origem árabe?), a um longo e muito complexo processo que não interessa aqui relatar em detalhe.
Habilmente recebia lavagens rituais ao mesmo tempo que
anti-sépticos, exteriores e interiores, através de todos os
orifícios excepto pela boca, pelo dois olhos e pelos dois
ouvidos. Através do nariz, levantada com toda a perícia a
parte carnosa, extraía-se a pouco e pouco o cérebro com uma
espécie de gancho. Do ventre, pela parte esquerda, tiravam-se as vísceras incluindo o coração e os pulmões. Após
muitos banhos e tratamentos, os restos extraídos, perfeitamente limpos e submersos em essências aromáticas, introduziam-se em quatro vasos chamados canópicos pelos gre116
gos cujas tampas representam os quatro Filhos de Horus (os
Quatro Elementos, as Quatro Forças): um com cabeça de
Chacal, Duamutef; outro com cabeça de Pássaro, Quebsenuf;
outro com cabeça de Mono do tipo Cinocéfalo, Hapi; e o
último com cabeça Humana, Amset. Este último, em finais
do Reino Novo, costumava representar a pessoa morta, tal
como a peça nº 3610 do Museu do Cairo encontrada na
tumba de Tutankhamon, cujo rosto está provavelmente adaptado para Smenkarhé visto que nessa tumba se acumularam,
por motivos que veremos, muitos objectos que não tinham
conexão directa com o Faraó enterrado.
Estes quatro vasos colocavam-se numa arqueta especial
que os mantinha verticais e separados. O morto, como Ra, era
secundado por cinco Génios, quatro encerrados nos vasos e o
que no féretro se fixava à múmia. O sexto Génio, relacionado com Osíris, era o “Duplo”, o Ka, a escapar do encerro
através da porta falsa da tumba, às vezes potenciada por
escritos; e num caso, pessoalmente comprovado, com fragmentos altamente magnéticos de um aerólito. O sétimo Génio
era o mais esotérico, jamais era nomeado e tinha uma missão
específica no Peso do Coração.
O corpo assim preparado vendava-se muito cuidadosamente com faixas de linho real incrivelmente longas entrecruzadas cerimonialmente. Sobre elas e em dois capuchos e
mortalhas de rede cerâmica colocavam-se frases mágicas e
amuletos para evitar que o corpo seguisse a Alma. A suas
duas pernas eram por fim atadas como se fossem uma, adoptando a posição osiriana. A pele das palmas dos pés era retirada e substituída por sandálias de papiro ou de linho real, às
vezes com olhos para que não desse nenhum passo em falso
nem voltasse a andar na Terra. O coração carnal substituía-se
por um de cerâmica, de pedra ou outro material consagrado
para que aí existisse um símbolo não carnal de ressurreição.
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Múmia colocada em pé para a oferta de água, que era uma parte da cerimónia da Abertura da Boca. Túmulo de Nabamun e Ipuky. XVIII
Dinastia, 1380 a.C. British Museum.
Os braços cruzavam-se em diversas posições consoante o
grau, sexo e época em que tivesse sido feito o embalsamamento que, como a palavra indica, é apenas “introduzir em
bálsamos”.
O facto da pessoa defunta levar no seu corpo signos de
ressurreição e que ao seu lado se colocassem armas, móveis,
comidas e bebidas criou a falsa imagem de que os egípcios
preparavam o corpo para que, chegado o Dia Final, se levantasse como um robot e gozasse dos prazeres da vida carnal.
Tal concepção teria horrorizado os egípcios: ao povo pela sua
superstição e aos Sacerdotes pela sua sabedoria. Somente
numa forma cultural materialista como a que nós estamos a
viver se pode pretender hibernar a velhos doentes com a
esperança de, uma vez descobertos os remédios para os seus
males, trazê-los de novo a uma vida completamente
desconectada do seu meio natural e além disso efémera.
Também não acolhiam a crença dos cristãos numa ressurreição da carne pois a sua profunda observação da Natureza
tinha-os ensinado a lei dos ciclos e as renovações ou reencarnações de uma mesma Alma através de veículos carnais
novos, sãos e jovens.
Este ritual, feito na Terra, tinha a missão de reflectir-se
na Outra Terra ou Amenti. As suas formas mentais não se
tinham limitado apenas a plasmar Templos e Caminhos
nesta Terra mas sim também na outra, como podemos ver
nos Planos do Amenti reproduzidos em tantos féretros e nos
seus Livros Sagrados nos quais se dão conselhos para que a
Alma possa passar os portais da adversidade nesta e na
outra vida.
Como exemplo para esta vida extraímos a formidável
Confissão negativa, um monumento de guia espiritual para
qualquer Aspirante à Realização.
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A CONFISSÃO NEGATIVA (Papiro Nu)
Salve, Deus grande, Senhor da Verdade e da Justiça,
Amo poderoso: cheguei até ti.
Permite-me contemplar a tua radiante beleza!
Sei o teu Nome mágico e também o das quarenta e duas
Dignidades(1)
que te rodeiam na grande Sala da Verdade-Justiça;
o dia em que se presta contas dos pecados ante Osíris;
o sangue dos pecadores serve-lhe de alimento.
O Teu Nome é: “O-Senhor-da-Ordem-do-Universo-cujos-dois-Olhos-são-as-duas-Deusas-irmãs”.(2)
É assim que eu trago no meu Coração a Verdade e a
Justiça,
porque dele retirei todo o Mal...
Eu não fiz mal aos homens.
Eu não empreguei a violência com os meus parentes.
Eu não substituí a Justiça pela Injustiça.
Eu não frequentei os maus.
Eu não cometi crimes.
Eu não fiz trabalhar em excesso para o meu benefício.
Eu não intriguei por ambição.
Eu não dei maus-tratos aos meus servidores.
Eu não blasfemei os Deuses.
Eu não privei o pobre do seu alimento.
Não cometi actos execrados pelos Deuses.
Eu não permiti que um amo maltratasse o seu criado.
Eu não fiz sofrer outrem.
Eu não provoquei a fome.
Não fiz chorar os homens, meus semelhantes.
(1) As quarenta e duas Divindades integravam o Jurado quando uma
alma era julgada ante Osíris. Noutro aspecto são “os 99 Nomes”.
2
( ) Ísis-Nephtis e noutra chave Nur-Nut (há mais cinco chaves sobre o
mesmo tema).
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Eu não matei nem mandei matar.
Eu não provoquei doenças entre os homens.
Eu não subtraí as oferendas dos Templos.
Eu não roubei os pães dos Deuses.
Eu não me apoderei das oferendas destinadas aos
Espíritos santificados.
Eu não cometi acções vergonhosas no recinto sagrado dos
Templos.
Eu não diminuí a porção das oferendas.
Eu não procurei aumentar os meus domínios
utilizando meios ilícitos
nem usurpando os campos dos outros.
Eu não manipulei os pesos da balança nem a sua haste.
Eu não tirei o leite da boca da criança.
Eu não me apoderei do gado nos campos.
Eu não apanhei com o laço as aves que estavam destinadas
aos Deuses.
Eu não pesquei peixes com peixes mortos.
Eu não pus obstáculos às águas que deviam correr.
Eu não apaguei no fogo no momento em que devia arder.
Eu não violei as regras das oferendas de carne.
Eu não me apoderei do gado que pertencia aos Templos
dos Deuses.
Eu não impedi que um Deus se manifestasse.
Eu Sou puro! Sou puro! Sou puro! Sou puro!
Fui purificado tal como o grande Fénix de Heracleópolis.
Porque eu sou o Senhor da Respiração
que dá vida a todos os Iniciados
no solene dia em que o Olho de Horus,
na presença do Senhor divino desta Terra,
culmina em Heliópolis.
Já que vi culminar em Heliópolis o Olho de Horus,
não me sucederá nenhum mal nesta Região, oh Deuses!,
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nem tão pouco na vossa Sala da Verdade-Justiça.
Porque eu sei o Nome dos Deuses
que rodeiam Maat,
a grande divindade da Verdade-Justiça.
E para a Alma, os seguintes fragmentos do mesmo livro
comummente chamado Dos Mortos, que se combina com o
Das Portas.
A SAÍDA DA ALMA PARA A LUZ DO DIA
As Portas do Céu abrem-se para mim
e as Portas da Terra já não impedem o meu passo...
Tirai os Ferrolhos do Portal de Keb!(1)
Deixa-me entrar na Primeira Região!
Certamente, os braços invisíveis
que me rodeavam e me protegiam na Terra
e que guiavam os meus passos
afastaram-se de mim.(2)
A região dos Canais e das Correntes mostra-se ao meu
olhar
e posso percorrê-la a meu gosto...
Certamente, sou o Amo do meu Coração “ib”(3)
e do meu Coração “hati”.
O Amo dos meus braços, das minhas pernas, da minha
boca,
(1) Keb, Deus da Terra, tem um papel importante no Mais Além protegendo os primeiros passos do defunto.
(2) Alusão à liberdade e responsabilidade assumida pelo Iniciado.
(3) “Hati” é o passado, o Karma fixo, o coração físico, a vida subconsciente e instintiva. O destino futuro, a possibilidade, é “ib”,
coração consciente, cheio de aspirações e desejos, onde reside a
vontade lúcida e a consciência moral.
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o Amo de todo o meu Corpo,
o Amo das oferendas sepulcrais,
o Amo da Água, do Ar, dos Canais, dos Rios,
o Amo da Terra e dos seus Sulcos,
o Amo dos Seres mágicos(1) que obrarão para mim
no Mundo Inferior.
Eu tenho total poder
sobre tudo quanto podia ser-me ordenado na Terra.
Oh vós, Espíritos divinos!
Haveis pronunciado ante mim estas palavras?:
“Que participe na Vida eterna
comungando com o Pão consagrado de Keb!”
Apartai de mim as coisas que detesto!
O meu Pão de comunhão será feito com Trigo branco, (2)
a minha bebida de comunhão será extraída do Trigo
vermelho,
viverei no lugar puro e santificado,
debaixo dos ramos da Palmeira,
árvore sagrada de Hathor, princesa do Disco Solar.
Ei-la aqui que se dirige a Heliópolis (3)
com o Livro das divinas Palavras de Thot (4) nos seus
braços.
Certamente, eu sou o Amo do meu Coração “ib”
e do meu Coração “hati”,
(1) Figurinhas encontradas nas tumbas com forma de homens, animais,
etc., conhecidas pelo nome de ushapti (“os que respondem às
chamadas”). Por meio da magia encarregavam-se de todos os trabalhos impostos ao defunto no Mais Além, no Mundo Inferior.
2
( ) A comunhão das duas espécies (sólida e liquida) expressava-se
através dos símbolos das cores correspondentes ao Sol (vermelho)
e à Lua (branco).
3
( ) As indicações dos lugares geográficos não se referem ao conhecido Egipto terrestre mas sim aos seus protótipos no Mais Além de
onde se reflectem.
4
( ) Deus da Palavra criadora e mágica (Logos) e também da Palavra
escrita.
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O Amo dos meus braços, das minhas pernas, e da minha
boca,
o Amo da Água, dos Canais e dos Rios,
o Amo dos Seres mágicos que obram para mim no Mundo
Inferior.
Tenho eu total poder
sobre tudo quanto poderia ser-me ordenado
tanto na Terra como no Mundo Inferior.
Se se me coloca à direita, dirijo-me à esquerda;
Se se me coloca à esquerda, dirijo-me à direita.
Sentado ou de pé, suspiro mediante o Hálito vivificante do
Ar.
Certamente, a minha Boca e a minha Língua... Eis aqui os
meus guias! (1)
A esperança, o anseio máximo da Alma era, evidentemente, não retornar à Terra por um muito longo tempo ainda
que se soubesse que, excepto para os Seres Superiores, o
regresso era inexorável pois a Alma não estava suficientemente aperfeiçoada para converter-se em Pura Luz Espiritual.
As oferendas, fossem de que género fossem, não eram
colocadas para a sua utilização física. Como os egípcios
acreditavam que todas as coisas tinham um Duplo, colocavam-se para que os seus Duplos acompanhassem a Alma e
lhe servissem no longo Caminho que, à semelhança do Sol
Subterrâneo, ou melhor Oculto, devia realizar nas trevas. Por
isso, durante os cortejos funerários e durante as preparações
psicopômpicas, efectuavam-se oferendas à Alma em forma
de comidas que, na sua parte material, eram logo
(1) A boca e a língua (também a laringe) são os órgãos da Palavra mágica, instrumento aperfeiçoado e legado por Thot; é a arma de combate, por excelência, do defunto.
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aproveitadas pelos próprios assistentes, como numa
Comunhão. Apenas não se tocava no que se guardava na parte
inacessível das tumbas. Mas sabemos que nos Templos
funerários e nas complexas tumbas do Vale dos Mortos da
Outra Tebas, os Sacerdotes da Corporação de Anubis organizavam procissões com oferendas de flores, perfumes,
bebidas, comidas e cânticos para os Faraós mumificados,
usando as primeiras câmaras como se fossem Templos. Uma
vez cumprida a cerimónia, retiravam-se os objectos materiais
que se consideravam “descarregados” do seu duplo e
destruíam-nos ritualmente enterrando-os nuns poços perto
(os actuais arqueólogos encontraram vários deles) ou, se fossem víveres, ofereciam-nos àqueles que tinham participado
na procissão e aos esforçados guardiães do Vale. Apesar da
cuidadosa recolha de “prendas” para a Alma, cujo corpo
jazia no fundo do longo corredor funerário, os primeiros
arqueólogos encontraram ainda pequenos testemunhos,
sendo os mais emocionantes umas pequenas coroas de flores
à maneira das que ainda usam os muçulmanos nas
Festividades Sagradas do Ramadão.
Enquanto às litanias e encantamentos de que se serviam os
Sacerdotes nos Festivais Funerários, ou sobre a instrução que
possuíam sobre o que ocorre à Alma quando desencarna,
perdeu-se quase tudo; quer por ocultação voluntária do que se
considerava sagrado e secreto, quer pela necedade humana
que chegou ao ponto de aquecer as termas de Alexandria, por
exemplo, fazendo fogo com milhões de papiros. Algo nos
ficou, como pudemos ver, sobre a passagem simbólica da
Alma-Sol pelas Doze Portas ou horas nocturnas. Isto está
reflectido, para citar apenas o que nos é de fácil acesso, no
chamado Livro dos Mortos, Da Oculta Morada ou Do Aduat,
com instruções para esta e para a outra vida, sinalização das
rotas ocultas, etc., conhecido a partir da época de Tutmosis I.
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O Livro das Portas que instrui sobre como passar através dos
Doze Portais conhece-se desde Horemheb. Além disso existem o Livro das Litanias ao Sol onde o Deus-Sol é invocado
sob setenta e cinco nomes diferentes; e o Livro da Abertura
da Boca que descreve operações mágicas sobre a estátua e o
corpo de uma pessoa falecida.
Estes Livros, que são os principais no momento em que
isto escrevemos, apenas são conhecidos por versões da época
do Império Novo e ainda mais tardias. Nada sabemos de outras versões anteriores, salvo por troços de papiros que, geralmente, os especialistas não conseguem nem sequer relacionar
com Os Livros. De qualquer forma o secreto continuará
sendo-o e é bom recordar que as principais chaves jamais
foram escritas passando da boca do Iniciador ao ouvido do
Iniciado. Ou, quanto muito, sob efémeras séries de figuras
geométricas de uma Linguagem Universal e algumas destas
formas foram recolhidas pelos hieróglifos de escrita hierática.
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SIGNIFICADO OCULTO DOS
SARCÓFAGOS
Sob o nome genérico de sarcófago o simples apaixonado
do Antigo Egipto costuma designar indistintamente aquilo
que os especialistas costumam diferenciar.
Na verdade, esta denominação tem origem grega e significa “comedor de carne”, quer porque a observação demonstrara a esse curioso povo que um cadáver depositado numa
caixa costuma ficar em ossos em poucos anos, quer porque
naquele tempo acreditava-se na existência de uma determinada pedra de origem asiática que tinha a particularidade de
consumir a carne, e no caso das caixas funerárias, a humana.
Assim, no caso egípcio, teríamos que chamar sarcófago
apenas ao féretro que usualmente estava em contacto directo
com a múmia. Nos casos de enterramentos sumptuosos, este
féretro estava perfeitamente encaixado em várias caixas que
se encastravam umas nas outras. Dito féretro costumava ser
de madeira e ainda de cartão grosso nos tempos tardios.
Apenas a caixa mais externa era de pedra e já não mantinha
forma humana mas sim tendendo para uma forma quadrangular. Em casos excepcionais, por exemplo de Faraós, costumava-se encaixar o féretro noutros maiores e, no final, todo o
conjunto numa ou várias capelas.
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Câmara funerária do hipogeu de Tutankhamon. XVIII Dinastia.
Em casos mais raros, que infelizmente ainda não chamaram devidamente a atenção dos arqueólogos, o féretro era de
metal, não forçosamente ouro como no caso de
Tutankhamon, mas sim no que os gregos chamaram electrum.
Uma destas esotéricas caixas acaba de receber um lugar
digno e resguardado no Museu do Cairo depois de estar muito
tempo misturada com objectos de menor valor. A sua forma
não é exactamente humana mas sim uma misteriosa combinação entre os aspectos sacramentais do Falcão Horus e a
humana. Tinham pertencido a Grandes Sacerdotes e estavam
muito especialmente preparadas, pelo que o seu manejo deve
ser esmerado e cuidadoso, evitando tudo aquilo que possa
diminuir ou ameaçar a Forma Mágica plasmada na liga
metálica. É provável que a muitos leitores isto lhes soe a
superstição e lhes pareça impróprio do trabalho de um universitário; mas somos nós, precisamente, os universitários que
sabemos, se nos despojarmos das inúteis vaidades, o pouco
ou nada que as Universidades do século XX ensinam sobre
estas coisas. Não nos devemos escandalizar nem perder o
optimismo. Também as Universidades antes do século XV
não ensinavam que a Terra era redonda, nem que se trasladava à volta do Sol antes do século XVII, nem que os fenómenos parapsicológicos são reais antes do século XX. Com
ocorrer do tempo também se tomarão como boas muitas
coisas que hoje se depreciam ou se negam sem a suficiente
fundamentação, pelo simples facto de não dar cabimento a
qualquer hipótese contrária à moda.
Se para simplificar tomamos o exemplo de um féretro ou
de um sarcófago antropomorfo veremos que está normalmente recoberto, tanto externa como internamente, de
hieróglifos e signos mágicos. Por dentro abundam as representações dos Deuses, especialmente da Mãe Nut, Senhora do
Céu Estrelado e da Luz na Obscuridade; as suas piedosas asas
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- que a relacionam com a Alma-andorinha - estão colocadas de
modo a que, ao fechar a caixa, a múmia fique entre elas.
Outras vezes, como no caso do famoso sarcófago de alabastro
transportado a Londres por Belzoni, a figura da Deusa aparece
no fundo para que a múmia descanse sobre Ela.
O féretro ou sarcófago é como uma nave para sulcar os
espaços psíquicos que separam a vida da morte. É uma caixa
de protecção contra os ventos do chamado pelos actuais
“ocultistas” Mundo Astral, evitando o contacto com larvas e
maus espíritos. Devemos considerar que para os egípcios,
assim como para os esoteristas de todas as épocas, a Alma
enquanto é humana não se separa facilmente do corpo físico
nem do conjunto de sensações, afectos, recordações, entusiasmos e desditas que a vida terrestre pôde engendrar; é
necessário ajudá-la a elevar-se com o fim de evitar-lhe, na
medida do possível, dores e trabalhos. Nessa Oculta Ciência
tinham-se especializado os Sacerdotes de Tebas.
Que uma pessoa culta e inteligente não entenda nem
acredite necessários os planos do Aduat que se desenharam
no fundo dos féretros e sarcófagos não tem nada de estranho.
Se de alguma ignorada forma pudéssemos trazer ao século
XX uma pessoa culta e inteligente do Egipto que temos vindo
a referir e lhe mostrássemos um circuito impresso de um
rádio-transistor, também nada entenderia; se depois o
puséssemos a tocar, acreditaria que mantínhamos músicos
escondidos atrás de alguma falsa porta... Da mesma forma,
muitos fenómenos “estranhos” que ocorrem nos Museus relacionados com múmias e estátuas atribuem-se hoje a alterações violentas da temperatura, picadas de mosquitos,
jamais descobertos venenos que impregnavam os objectos ou
a microorganismos indeterminados. Acreditamos honradamente que vale a pena fazer um esforço eclético e sem preconceitos, neste como em tantos outros temas, se com ele
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aumentamos as nossas possibilidades de aceder à verdade
para além das inevitáveis alienações que qualquer época, a
nossa ou outra, encerram.
É muito provável, a julgar por achados isolados - inclusive
no mercado clandestino de antiguidades - que os antigos
Faraós, Príncipes e Sacerdotes, sem descontar os altos funcionários do Estado, receberam ritos funerários de extrema
complexidade e baseados em preciosas construções, quer
pela sua arte ou pelos elementos com que estavam realizados.
Mas os saques já ocorridos em pleno Império Novo e os
despojos que sofreram as tumbas às mãos de estrangeiros e
bandidos do deserto, não mais nos deixaram que um exemplo, ainda que extraordinário, dos esplendores funerários
daqueles tempos. Referimo-nos, pois, à descoberta por Carter
(nos inícios dos anos vinte e financiado pelo infeliz Lord
Carnavon) do enterramento de Tutankhamon.
Este Faraó da XVIII Dinastia governou pouco mais de dez
anos, depois da desastrosa experiência de Akhenaton e sua
tirânica ordem de adorar, não a um Deus único como pretendem alguns dos seus defensores, mas sim a uma das formas
do Deus-Sol, Aton, colocando fora da lei os Mistérios
milenários que nesse então se apoiavam nos Iniciados de
Amon, de Tebas. Amenofis, (Amon-está-contente) IV, que ao
surgir a sua loucura religiosa se fez chamar Akhenaton
(Espírito-de-Aton), abandonou Tebas com toda a sua corte até
uma cidade que começou a construir em Tel-El-Amarna.
O certo é que Akhenaton não reinava sozinho mas sim que
tinha a seu lado um co-regente que suscitou um enigma
histórico. Chamava-se Smenkarhé e vivia tão inseparável do
Faraó que muitos opinam que Nefertiti era apenas um símbolo oficial. Hoje, tendo-se descoberto o enterramento de
Smenkarhé e não o de Nefertiti, há investigadores que
chegam a duvidar que a Imperatriz, cujo busto real ou atribuí131
Disposição dos ataúdes e capelas do túmulo de Tutankhamon.
do é famoso pela sua estilizada beleza, tenha existido.
Encontramo-nos perante uma versão milenar do que hoje se
denomina vulgarmente por “travesti”? O certo é que a múmia
de Smenkarhé foi colocada em postura feminina e com atributos femininos, ainda que os estudos anatómicos confirmem
que se trata dos despojos de um moço.
Seja qual for o detalhe íntimo, em tempos de grandes
anomalias o menino Tutankhaton (imagem vivente de Aton)
sucedeu no trono da Dupla Coroa ao seu enlouquecido pai
adoptivo que foi provavelmente envenenado ou que se suicidou bebendo vinho empeçonhado. Sob a tutela dos repostos
Sacerdotes de Tebas que contavam com o apoio do povo,
mudou o seu nome para o que hoje conhecemos. Morreu de
forma repentina pois teve que ser enterrado numa tumba
secundária preparada para um funcionário chamado Ai
(Olho) e discute-se sobre se deixou filhos. Foi precedido,
aparentemente durante muito pouco tempo, por
Ankhkheperure Smenkahra e sucedido, também fugazmente,
pelo mencionado Kheperpherure Ai. Mas nada sabemos com
certeza até ao advento do caudilho chamado Djeserepherura
Horemheb, que foi quem reordenou o Egipto e abriu-lhe caminho à sua última etapa de esplendor com os Raméssidas.
A tumba de Tutankhamon é tão pequena que os desprendimentos aluviais taparam a sua boca em menos de um século
de construção. Não sabemos tão pouco se o jovem Faraó realizou alguma proeza; mas os Sacerdotes de Tebas quiseram,
através dele, restaurar com todo o esplendor o seu Poder
Espiritual ao mesmo tempo que o super-protegeram num verdadeiro alarde de riqueza e de conhecimentos mágicos. A
acumulação de objectos de diferentes épocas e naturezas
demonstra que não se trata de um enterramento “normal” e o
enigmático Destino quis que chegasse até nós praticamente
intacta; pois os saqueadores ou últimas hordas revolu133
cionárias apenas puderam penetrar no corredor e na primeira
sala. Talvez a inesperada quantidade de objectos os demorasse e alguma patrulha da “Polícia do Vale” os tenha surpreendido, repondo as coisas rapidamente e chamando um
Sacerdote de Anubis para que colocasse os Selos do Chacal
sobre os falsos muros que às vezes faziam de portas.
A Carter devemos, com o duvidoso financiamento de Lord
Carnavon (este dedicava-se, entre outras coisas, ao tráfico ilegal de antiguidades: as mais pequenas apreciava convertê-las
em jóias modernamente engranzadas antes de vendê-las ou
conservá-las) e também por o achado ter sido num bom
momento económico e psicológico mundial, o facto de tantos
tesouros terem chegado a ser expostos no Museu do Cairo, e
depois em muitos outros países, com muito pouca perda.
Deste achado surgiu uma estranha lenda negra, que aqui
não vem ao caso detalhar, que começa com a morte de Lord
Carnavon no Cairo à mesma hora que o seu cão preferido na
Grã-Bretanha; lenda que ainda não terminou pois o mais ou
menos subconsciente pavor que despertou o chamado
Tesouro de Tutankhamon impediu a correcta manutenção de
muitos objectos. Inclusive a múmia do jovem Imperador não
está, como as outras encontradas, na Câmara das Múmias do
Museu do Cairo mas sim foi trasladada para a sua tumba original junto ao sarcófago exterior que a recobre e também ao
féretro exterior que o turista apenas consegue ver através de
espelhos às vezes cedidos por alguns guardas árabes... que
jamais passam para o interior. É a única múmia conhecida
que repousa no Vale dos Mortos de Tebas, entre as suas paredes pintadas, rápida mas belamente, num estilo que reflecte
ainda certas deformações da arte de Amarna.
No desenho adjunto podemos ver como estavam encastrados entre si e, por sua vez, estes nas capelas. Carter e os
hábeis ajudantes tiveram enormes dificuldades para mani134
Howard Carter trabalhando no túmulo de Tutankhamon.
Capelas e sarcófagos contendo a múmia de Tutankhamon.
pulá-los num espaço tão reduzido. Mas os artesãos do Antigo
Egipto tinham deixado valiosas inscrições e marcas nos
encaixes... inexplicáveis se não se tivesse previsto que o
descomunal puzzle iria ser desmontado e voltado a armar.
Todas as obras são maravilhosas pelo seu simbolismo,
arte, artesanato e acabamento, assim como pelos materiais
empregues, entre eles o ouro como em nenhum outro caso
conhecido. Claro que a adaga “favorita” do Faraó tinha folha
de ferro meteórico... mas isso é parte de uma valorização
mágica que ao observador actual lhe parecerá absurda (ainda
que os E.U.A. tenham presenteado muitos Chefes de Estado
amigos com um pedacito de pedra lunar).
No nosso presente trabalho podemos unicamente mostrar
a harmonia cósmica que reflectem os sarcófagos ou como se
lhes chame já que, por serem atípicos, escapam à classificação erudita.
Se bem que nos enterramentos típicos de outros Faraós
havia que introduzir na Câmara da Ressurreição - para lá de
vários corredores e criptas - a quantidade de quatro capelas e
três ataúdes, ou pelo menos um sarcófago, um ataúde e a
múmia propriamente dita, isto não ocorre com o recheio
funerário de Tutankhamon. Em parte por ter sido, como já
dissemos, enterrado apressadamente numa tumba muito
pequena e por outro lado pelas circunstâncias político-religiosas singulares que o Império atravessava, que fizeram com
que sobre ele recaíssem complicações ritualistas cujo significado escapa-se-nos.
Os continentes da múmia estavam assim dispostos:
1)
Uma enorme capela de madeira revestida de
estuque e ouro martelado sobre símbolos mágicos em relevo.
2)
Outra semelhante que encaixava na primeira. Há
alusão à Barca de Milhões de Anos, ou seja, o Sol que leva os
Bem-Aventurados.
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3)
Outra semelhante que encaixava dentro da segunda.
4)
Esta capela é sensivelmente mais pequena e sóbria.
Estas quatro estão normalmente depositadas no Museu do
Cairo. É provável que representem os Quatro Elementos ou
Dimensões Cósmicas.
5)
Dentro da última capela encontrava-se o precioso
sarcófago de quartzite avermelhada com as suas esquinas
custodiadas por Quatro Deusas aladas relacionadas nos seus
perfeitos alto-relevos com as Quatro Guardiãs das Esquinas e
com o Olho de Horus, Protector. É a que hoje está na tumba
mas a sua tampa, originalmente de granito de Tebas, foi substituída por um grosso vidro protector. A tampa original está
também no Museu do Cairo. Uma cama dourada funerária
estava no interior e custa a entender como suportou durante
tanto tempo o enorme peso que tinha em cima.
6)
No primeiro ataúde propriamente dito, de madeira
dourada, devemo-nos deter num detalhe: pela primeira vez
aparece o rosto do Faraó representado de maneira austera.
Permanece na tumba de Tebas.
7)
No segundo ataúde, também de madeira laminada a
ouro, o rosto tem uma expressão menos rígida.
8)
O primeiro ataúde, composto de ouro puro, tem um
peso superior aos 200 kg, já que se utilizou esse metal para
uma moldagem maciça que frequentemente supera os 2 cm
de espessura. Tem incrustações de pedras semi-preciosas,
pasta de vidro e pequenas quantidades de outros metais. O
rosto aparece muito mais doce e tranquilo. Inclusive parece
de uma pessoa mais jovem. Dissimuladamente tem empunhaduras para manejá-lo e levantar a sua tampa.
9)
A múmia foi encontrada completamente deteriorada e em pedaços por efeito dos unguentos e resinas que praticamente a tinham carbonizado, coisa que avaliza a teoria de
que não se procurou preservá-la mas sim de purificá-la.
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10)
Outro objecto importante é a máscara ou
capacete de ouro de confecção parecida ou, se se quiser, ainda
mais fina do que a do ataúde de ouro; tem as suas próprias
características e no rosto nota-se um sorriso e feições muito
juvenis. Se passamos a vista rapidamente desde o primeiro
ataúde até à máscara parecer-nos-á que o Faraó sorri e se rejuvenesce, tendo este efeito, muito habilmente conseguido, um
claro sentido espiritual que coincide com as crenças egípcias
de que a morte oferece a oportunidade de enobrecer a Alma e
fazê-la continuamente jovem.
A destroçada múmia estava guarnecida de muitíssimos
objectos rituais, amuletos, manoplas, anéis, colares, estatuetas que representam a Alma-andorinha...
Encontraram-se peças de tecidos à maneira de véus, como
o branco que cobria a grande imagem de Anubis sobre a
Caixa do Mistério. Mas apenas se teve tempo de fotografá-las
porque se desfizeram em contacto com o ar em movimento,
ainda que não saibamos se todos pois, por incrível que
pareça, não existe inventário detalhado dos objectos, salvo a
lista feita pelo próprio Carter e que também não foi convenientemente estudada. Os véus que cobriam ou envolviam
alguns féretros eram de cor negra, embora saibamos quanto
podem mudar os pigmentos. Salvo o linho na sua cor natural
branco-leitoso, todas as outras cores possivelmente variaram.
Não nos cabe destacar a grande quantidade de pregos,
cabos, placas de metais preciosos que tornavam possíveis os
encaixes. Antes sim que em muitos cartuchos onde se lê o
nome de Tutankhamon verifica-se que foram retocados, o que
confirma a reutilização de muitos objectos, além da própria
tumba que se acredita ter sido rapidamente ampliada para dar
guarida aos tesouros. Ainda que não se pudesse efectuar um
enterramento de um Faraó antes dos sete meses, aproximadamente, do Ciclo Shotérico é lícito pensar que os Sacerdotes
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Cofre para vasos canópicos, em alabastro. Tumba de Tutankhamon. XVIII Dinastia,
1333 - 1323 a.C.
de Anubis deitado sobre os Nove Inimigos não excederam
esse lapso mínimo. No entanto não se esqueceram de colocar
debaixo das, de certa forma, atípicas pinturas das paredes, os
amuletos e os metais sagrados assim como os desenhos que-se-vêem-na-obscuridade, à maneira de todas as criptas relacionadas com a Sabedoria Tradicional.
É de destacar a grande quantidade de maquetas de barcas
que se encontraram na tumba, desde uma que mais não é que
um engenhoso brinquedo, provavelmente propriedade do
Faraó quando era menino, confeccionada em alabastro sobre
um receptáculo que, enchendo-se de água, dá a sensação de
que a barquita está flutuando conduzida por dois anões, até outras que pertencem ao Ritual Mágico. Estudados os seus instrumentos, sabemos que as havia para navegar Nilo acima, contra
o fluir da corrente, e também para deixar-se levar por ela. Claro
está que não se referiam ao rio físico mas ao seu Duplo luminoso que cruzava as terras do Egipto Oculto, o Amenti.
O outro objecto ritual de ferro, neste caso não sabemos se
meteórico ou não, é um pequeno “apoia-cabeças” precisamente
colocado. De resto havia coisas exóticas e desconcertantes
como vasos de alabastro com figuras gravadas no interior que
apenas são visíveis quando se acende uma lâmpada ou uma
vela dentro. Estas imagens do Homem que ao acender a sua
Luz Espiritual torna-se transparente e mostram os seus poderes
escondidos, os seus Deuses interiores, fizeram com que o
famoso Osbert Lancaster dissesse que o conteúdo da tumba
fazia-o recordar “a venda dos objectos pessoais de uma
coquete do Segundo Império sustentada por um judeu com
gostos de antiquário”... Razão tinha Jesus quando recomendava não atirar pérolas aos porcos. Mas os actuais meios de
comunicação tornam isto inevitável e os “especialistas” costumam ser os mais aberrantes intérpretes de um passado que os
desconcerta e como, por vaidade, não podem reconhecer a sua
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ignorância escarnecem desse passado em termos às vezes nem
sequer aproximados à verdade objectiva.
Carter, exemplo do oposto, isto é, um bom arqueólogo e
um bom homem, trabalhou desde 1922 até 1929 extraindo
cuidadosamente todos os objectos com uma equipa de restauradores e especialistas que embalaram tudo o que foi registado e enviaram-no ao Cairo. Os grandes féretros foram
trasladados à capital egípcia em 1931. Carter, já ancião, morreu em Londres em 1939.
Com ele terminaram as grandes epopeias arqueológicas
no Egipto. O mundo mudou, empobreceu-se, fragmentou-se
e já quase não restou força económica para dedicar à investigação profunda do passado.
Os vulgarmente chamados sarcófagos egípcios, seja
como for, somam-se milhares e estão em todas as partes do
mundo, provenientes daquelas velhas escavações do século
XIX e primeira metade do XX, na sua quase totalidade. Sem
saber exactamente porquê, as pessoas amantes do passado
resguardam-nos e sentem por eles uma estranha fascinação.
Nos grandes Museus as pessoas andam quase em bico-de-pés nas salas dedicadas ao Egipto e detêm-se ante as misteriosas naves, absortas, maravilhosamente ignorantes,
calorosamente humanas.
Nos seus Duplos luminosos, os seus antigos donos terão
navegado milhares de anos na Luz Astral e a sua finalidade já
está consumada. Mas, neste momento histórico dessacralizado, ainda nos atraem como uma antítese puramente espiritual, bela, mágica e ingénua na qual intuímos o mistério do
nosso próprio Ser Interior, perdurável e impregnado de Fé em
Deus, na Natureza e no nosso próprio Destino, ali onde mora
o porquê e o como da nossa fugaz passagem num determinado momento do tempo e do espaço.
Um Génio invisível sussurra-nos muito intimamente:
“Homem, não receies, a Vida continua”.
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