“Nascimento de um público/Mitos cinematográficos de uma nação”

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“Nascimento de um público/Mitos cinematográficos de uma nação”
Cine Clube
O nascimento de uma nação [The Clansman [título do romance de Charles Dixon, Jr. (1864-1946),
em que se baseia o filme], título mudado para The Birth of a Nation] (1915)
de D[avid]. W[ark]. Griffith (1875-1948)
BIBLIOTECA, FCT/UNL, 21 Janeiro 2014
“Nascimento de um público/Mitos cinematográficos de uma nação”
Christopher Damien Auretta
O filme de Griffith – na altura da sua primeira exibição em 1919 – foi recebido
clamorosamente pelos seus primeiros públicos pela sua mestria técnica e narrativa dotada
de uma envergadura épica. Foi igualmente banido em oito estados dos EUA, em resultado
de protestos e campanhas educativas organizadas pela NAACP, organização fundada em
1909, precisamente para proteger a população que se encontrava agora emancipada,
embora vivesse ainda sujeita a uma segregação/discriminação sistémica de facto e/ou de
jure. (Vejam-se, por exemplo, as Jim Crow laws que se prolongariam até aos anos sessenta
do século vinte no país de Abraham Lincoln.) O filme hoje em foco marca um momento de
viragem na carreira artística do realizador, até então realizador de várias centenas de
curtas-metragens (one- and two-reelers) para a Biograph Company (de que era igualmente
director). Baseia-se na obra ficcional de Thomas Dixon, Jr., (1864-1946) que, por sua vez,
era romancista, dramaturgo, conferencista, advogado e ainda pastor da Igreja “Southern
Baptist”. Com efeito, Dixon era autor de uma trilogia que defendia a classe proprietária
(constituída pelos Brancos do Sul) e o mundo “antebellum” (antes da Guerra Civil) em
que os membros daquela classe proprietária eram os protagonistas e os usufruidores
duma sociedade alicerçada na escravocracia. Uma classe que se debatia contra a
reorganização da sociedade desencadeada pela Guerra Civil dos EUA (1861-1865), que
trouxe a emancipação dos escravos e a chegada de uma nova era histórica no Sul daquele
país, uma nova era chamada Reconstrução. O filme, que mistura narrativa visual
ficcionada com a pretensão de criar um documento fílmico de grande veracidade histórica
(técnica de persuasão empregue por Dixon na sua própria obra), sem ser realmente
pioneiro nas muitas técnicas cinematográficas patentes nesta longa-metragem de três
horas, serve-se destas mesmas técnicas a fim de transmitir um conteúdo cujo notório
racismo e tipologia grotescamente demagógica no tocante à realidade da época histórica
que trata, exige do espectador atento um trabalho de reflexão complexo. Aliás, o filme, nas
suas caracterizações pseudo-históricas desta realidade histórica, no uso de uma retórica de
flagrante racismo, bem como no demagógico binarismo moral do filme, leva o espectador
a aperceber-se do que está em jogo. Resta-nos assim, como espectadores críticos, decidir
como responder ao filme, como hierarquizar os seus elementos visuais e narrativos à luz
do mal-estar que produz em nós ao visioná-lo, e o mal que representa em termos de
heroísmo, nobreza moral e glorificação de uma ordem social corrupta e desumana. O
espectador crítico poderá abordar o filme à luz de uma sociologia do cinema; à luz da
utilização de obras literárias, por exemplo, a fim de instrumentalizar o seu conteúdo no
meio cinematográfico, cuja autonomia artística se firmou precisamente nos anos da
filmografia de Griffith; à luz do cinema como explorador de técnicas em rápida evolução
(permitindo a captação cada vez mais sedutora da realidade que filma, i.e., que relata e,
em simultâneo, inventa; à luz da história da consciência histórica (daqueles que realizam
os filmes e daqueles que, como público, os visionam), i.e., a história da percepção de uma
dada realidade pelo crivo da sua contextualização ideológica; à luz da história dos públicos
de cinema, i.e., quem vê os filmes, quem critica os filmes?, quem critica em nome de uma
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compreensão superior de um dado filme?, quem é autorizado para divulgar essa
compreensão dos filmes pelos meios de informação cultural que circulam numa dada
sociedade?, quem determina o que se deve ver ou não?, etc.; à luz dos realizadores como
“narradores” (storytellers): que histórias é que privilegiam?, que histórias é que
marginalizam?; e, à luz da questão do cinema em si: até que ponto o cinema serve para
organizar uma percepção (consensual) por parte do público relativamente a um
determinado tema, assunto ou posicionamento ideológico?. Um filme não reproduz apenas
uma realidade visual: a sua neutralidade histórica é um equívoco. Um filme não vê
simplesmente o que nós, os espectadores, vemos ulteriormente no ecrã. O ecrã não é da
natureza do ar, da luz e do olho. O olho fisicamente vê, captando as formas iluminadas de
acordo com os variáveis graus de luminosidade existente. O olho vê o que, mediante a luz
filtrada pela atmosfera terrestre, logo recodifica e organiza em sensação e cognição. Em
contraparida, um filme não constitui um ver natural, mas, sim, cinematográfico. Portanto,
o que vemos é um ver de segunda ordem ou posterior ao trabalho natural da luz e do olho:
o cinema transforma o olhar para outra coisa. (E no intervalo entre o ver natural e o ver
cinemático acontece tudo: é precisamente nesse intervalo que a narrativa visual toma
lugar.) Com efeito, o olhar cinemático é um ver seleccionado, construído e codificado
segundo as histórias privilegiadas de uma dada realidade social, não segundo as leis da
física e da fisiologia. E, no caso do filme de Griffith, este ver seleccionado e construído
promove, sobretudo, um não-ver. Que tipo de não-ver é esse? Na mestria da sua narrativa
visualmente e tecnicamente considerada, o filme em foco hoje promove o não-ver do Outro
(neste caso, do escravo como ser humano, do Afro-Americano como cidadão de plenos
direitos, da história de um país constituir um mosaico de vozes, histórias, ideias e
conflitos). Se calhar, neste filme detectamos questões sócio-culturais e artísticas ainda
muito pertinentes. Com efeito, vemos agora a problemática dissociação habitual entre
narrativa e técnica em relação a este filme. Pois, a técnica, tratando-se de dispositivos
inventados pela humanidade, sendo, portanto, de natureza de segunda ordem, nunca pode
ser neutra. Não constitui uma mera ferramenta a fim de, no caso do filme de Griffith,
simular cenas de guerra, de família e da condição humana num mundo em transformação
histórica; não reproduz uma história supostamente “verídica”: o filme visa produzir
história. Introduz no público de espectadores uma percepção, uma visão, uma
interpretação, um mundo. Não: não há técnicas neutras. E o nosso olhar crítico deve estar
atento, afinado e também publicamente expresso.
Quantos blockbusters contemporâneos não privilegiam, nas suas próprias narrativas
visuais, um binarismo moral tosco ou até grotesco, sempre visando agradar o público (pela
sua adesão a tais filmes) e, consequentemente, o grande capital (pelas vendas nas
bilheteiras, na distribuição internacional e no marketing intenso)? Resultante do
fenómeno sócio-cultural, técnico e cinematográfico do filme de Griffith, descobriu-se o
cinema como um meio enfeitiçador do olhar do público e ainda como criador de públicos.
Além disso, descobriu-se o olhar do público como grande tributário de posicionamentos
ideológicos com os quais a consciência crítica deve debater-se de modo a subverter a
imposição de atitudes tendentes ao consenso que, contudo, encerram o pensamento
monolítico do fanatismo, do ódio perante o Outro (qualquer que seja) e o medo, viveiro da
violência. É uma história, por sua vez, muita americana, e, nesse sentido, Griffith não
deixa de ser um realizador americano de relevo: entre o self-made man e o mestre de
cinema com características populistas, entre o cineasta como contador de histórias e o
cineasta como contador de histórias convicto de que o seu cinema é inerentemente self2
verifying, eis o dilema para o indivíduo na posse de meios retóricos e financeiros bem
acima da média. Transpondo este dilema para o palco internacional, eis, igualmente, o
dilema de todos os impérios que publicitam a sua grandeza em detrimento da auto-crítica
e de uma reflexão cabal.
Ah! Temos a proto-diva Lillian Gish, num dos seus primeiros papéis, numa longuíssima
carreira que durou setenta e cinco anos. Trata-se de uma actriz do ecrã e da Broadway de
grande talento. Recomenda-se vivamente o visionamento de um outro filme que
protagoniza, The Wind, datado de 1928, do realizador Viktor Sjöström – figura pioneira
do cinema sueco, que influenciou o realizador Ingmar Bergman e que desempenhou o
papel do velho professor homenageado no filme deste, Morangos Silvestres (1957).
PORTAIS EM TORNO DO FILME O nascimento de uma nação [The
Birth of a Nation] (1915):
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https://archive.org/details/dw_griffith_birth_of_a_nation
http://www.imdb.com/title/tt0004972/
http://en.wikipedia.org/wiki/The_Birth_of_a_Nation
http://texashistory.unt.edu/ark:/67531/metapth21924/m1/20
/
http://cinemastyles.blogspot.pt/2007/07/myth-ofnation.html
http://www.filmsite.org/birt.html
PORTAIS EM TORNO DO REALIZADOR D. W.
GRIFFITH (1875-1948)
•
<http://sensesofcinema.com/2006/greatdirectors/griffith/>
BIBLIOGRAFIA
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Barry, Richard. “Five Dollar ‘Movies’ Prophesied”, The New York Times, March 28, 1915.
Bitzer, Billy. Billy Bitzer: His Story, Farrar, Strauss, and Giroux: Nova Iorque, 1973.
Brownlow, Kevin. The Parade’s Gone By, University of California Press: Berkeley/Londres, 1968.
Eisenstein, Sergei e Jay Leda (eds), Film Form, Harcourt Brace Jovanovich: Nova Iorque, 1949.
Gunning, Tom. D.W. Griffith and the Origins of American Narrative Film, University of Illinois Press: Urbana and Chicago,
1991.
Jay, Gregory S. “’White Man’s Book No Good’: D.W. Griffith and the American Indian”, Cinema Journal, vol. 39, no. 4,
2000, pp. 3–26.
Rhode, Eric. A History of the Cinema from Its Origins to 1970, Da Capo Press: Nova Iorque, 1976.
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Simmon, Scott. The Films of D.W. Griffith, Cambridge University Press: Cambridge, 1993.
Na NET:
Film Directors – Articles on the Internet
Links to many online articles can be found here
Pioneer Film Director Dishonored By Those Who Follow In His Footsteps
Article by Christopher P. Jacobs in High Plains Reader, December 1999–January 2000.
D.W. Griffith’s First Movie
Article by Linda A. Griffith, D.W.’s first wife, written in 1916.
The Greatest Films: The Birth of a Nation
Reviewed by Tim Dirks.
VOZES APROPRIADAS PELO REALIZADOR E PELO ESCRITOR THOMAS
DIXON JR., AUTOR DA PEÇA EM QUE SE BASEIA A HISTÓRIA DO FILME
EM FOCO:
• http://en.wikipedia.org/wiki/William_Archibald_Dunning: “William Archibald Dunning (historiador): “William
Archibald Dunning (1857–1922) was an American historian and political scientist who taught many PhD students
and founded the Dunning School of Reconstruction historiography at Columbia University.”
EM TORNO DA DIVA LILLIAN GISH (1893-1993): “FIRST LADY OF THE
SILENT CINEMA”:
•
http://en.wikipedia.org/wiki/Lillian_Gish
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http://www.imdb.com/name/nm0001273/ (IMDB)
http://archives.nypl.org/the/21463 (The Lillian Gish Papers na New York Public Library) (1909-1992)
http://worldcat.org/identities/lccn-n50-33290
http://www.virtual-history.com/movie/person/747/lillian-gish (fotografias, cronologia, iconografia, etc.)
http://www2.bgsu.edu/gish/ (The Dorothy and Lillian Gish Film Theater and Gallery)
OUTRAS VOZES/OUTRAS NARRATIVAS/OUTROS PÚBLICOS PERANTE O
FILME DE GRIFFITH:
EM TORNO DA DIVA EVELYN PREER (1896-1932): “THE FIRST LADY OF
THE SCREEN”
• http://www.angelfire.com/jazz/ninamaemckinney/EvelynPreer.html
• http://www.imdb.com/name/nm0695792/
• http://www.ibdb.com/person.php?id=56551
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http://www.naacp.org/: (“Founded in 1909, the NAACP is the nation's oldest and largest civil rights organization.
From the ballot box to the classroom, the thousands of dedicated workers, organizers, leaders and members who
make up the NAACP continue to fight for social justice for all Americans.”)
http://en.wikipedia.org/wiki/Oscar_Micheaux: (“Oscar Devereaux Micheaux (January 2, 1884 – March 25, 1951)
was an American author, film director and independent producer of more than 44 films. Although the shortlived Lincoln Motion Picture Company produced some films, he is regarded as the first major African-American
feature filmmaker, the most successful African-American filmmaker of the first half of the twentieth
century[1] and the most prominent producer of race films.[2] He produced both silent films and "talkies" after the
industry changed to incorporate speaking actors.”)
http://en.wikipedia.org/wiki/Within_Our_Gates: (um filme de Micheaux) (“Within Our Gates (1920) is a silent
film by the director Oscar Micheaux that portrays the contemporary racial situation in the United States during
the early twentieth century, the years of Jim Crow, the revival of the Ku Klux Klan, the Great Migration of
blacks to cities of the North and Midwest, and the emergence of the "New Negro". It was part of a genre
called race films.”)
https://archive.org/details/WithinOurGates: (o filme Within our Gates de Oscar Devereaux Micheaux, patente no
Internet Archive)
http://en.wikipedia.org/wiki/W._E._B._Du_Bois: W. E. B. du Bois: (“William Edward Burghardt "W. E.
B." Du Bois (pronounced /duːˈbɔɪz/ doo-BOYZ; February 23, 1868 – August 27, 1963) was an
Americansociologist, historian, civil rights activist, Pan-Africanist, author and editor. Born in Great Barrington,
Massachusetts, Du Bois grew up in a relatively tolerant and integrated community. After graduating
from Harvard, where he was the first African American to earn a doctorate, he became a professor of history,
sociology and economics at Atlanta University. Du Bois was one of the co-founders of the National Association for
the Advancement of Colored People (NAACP) in 1909.”)
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