Volume 2 N.º 2 Ano: Julho/Dezembro 2013
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Volume 2 N.º 2 Ano: Julho/Dezembro 2013
Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 1 ACTA FARMACÊUTICA PORTUGUESA Vol 2 N.º 2 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 2 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens ACTA FARMACÊUTICA PORTUGUESA Vol 2 N.º 2 www.ofporto.org Conselho Editorial Diretor Agostinho Franklim Marques Editores Associados António da Rocha e Costa João Paulo Sena Carneiro José Luís Martins Pedro Barata Coelho Natércia Aurora Teixeira Secretariado Maria Luís Santos Mariana Alves Conselho Científico Bruno Miguel Sepodes Delfim Fernando Santos Félix Dias Carvalho Fernando Fernandez-Llimós Fernando Ramos Franklim Marques Helder Mota-Filipe Isabel Vitória Figueiredo João Carlos Sousa João Luís Machado dos Santos José de Oliveira Fernandes José Miguel Azevedo Pereira Maria de Fátima Cerqueira Maria Margarida Caramona Natércia Teixeira Pedro Barata Coelho Rita Sanches Oliveira Rui Manuel Pinto Vitor Seabra A Acta Farmacêutica Portuguesa é uma revista de caráter científico que funciona na modalidade de revisão prévia dos textos submetidos ao corpo editorial constituído por peritos em anonimato mútuo (peer review). É essencialmente dirigida a Farmacêuticos e todos os que se interessam pelas Ciências Farmacêuticas. A Acta Farmacêutica Portuguesa abarca um vasto leque de questões relacionadas com as Ciências Farmacêuticas, publicando artigos de diferentes tipos: artigos de revisão, artigos originais, artigos sobre avanços nas Ciências Farmacêuticas, editoriais e opiniões. Periodicamente a Acta Farmacêutica Portuguesa publica números especiais dedicados a uma área em específico das Ciências Farmacêuticas. Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 3 Editorial Franklim Marques Diretor Deve admitir-se que o atual momento da vida económica e financeira do nosso Pais acarreta consigo um manancial de medidas, cuja amplitude redutora para o crescimento de muitas e distintas áreas é por todos sobejamente conhecida. A Ciência e a Educação são das áreas mais sacrificadas como se pode aquilatar pelo contínuo desinvestimento, em termos de financiamento público, de uns tempos a esta parte, e que deve merecer um cuidado particular, dadas as inerentes e potenciais implicações que daí poderão advir para o futuro. Na realidade, é notório, em particular nos países com maiores dificuldades económicas, o retrocesso que se verifica na consciencialização da importância do conhecimento e do saber adquiridos para o desenvolvimento das sociedades e da modernidade. Países com maior investimento em ciência e educação são os que se caraterizam por uma maior capacidade de inovação, de evolução e de competitividade. O conhecimento e o saber são a chave da dinamização económica e do sucesso de um país, conduzindo-o necessariamente a um patamar de crescimento mais elevado e consistente, e a um nível superior de colaboração e de entendimento entre os seus concidadãos e com as comunidades com que interagem. O saber egoísta é um saber morto. O saber partilhado e vivido é a essência da motivação e do progresso. A Acta Farmacêutica Portuguesa não pretende ser mais do que um simples e activo mediador na partilha do conhecimento, num contributo contínuo a favor do desenvolvimento dos saberes no âmbito da Saúde, em particular na área das Ciências Farmacêuticas. Apesar da sua curta existência, angariou um significativo ganho de reconhecimento e de confiabilidade junto daqueles que são o objeto da sua existência. Por si só, estas são razões que nos fazem querer ir mais além e alimentam a nossa vontade em prosseguir este caminho. Com o vosso apoio, esta revista será, seguramente, bem mais que uma revista destinada à divulgação da ciência, da investigação e do conhecimento: será a vossa revista, a Acta Farmacêutica Portuguesa. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 4 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 5 Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens Correia-da-Silva, Marta1, Sousa, Emilia1, Marques, Franklim2, Pinto, Madalena M. M.1 (1) Centro de Química Medicinal – Universidade do Porto (CEQUIMED-UP), Laboratório de Química Orgânica e Farmacêutica, Departamento de Química, Faculdade de Farmácia, Universidade do Porto, Rua de Jorge Viterbo Ferreira, 228, 4050-313, Porto, Portugal. (2) Unidade de Análises Clínicas, Departamento de Ciências Biológicas, Faculdade de Farmácia, Universidade do Porto, Rua de Jorge Viterbo Ferreira, 228, 4050-313, Porto, Portugal. Autor correspondente: Marta Correia da Silva Laboratório de Química Orgânica e Farmacêutica, Departamento de Química, Faculdade de Farmácia Universidade do Porto, Rua de Jorge Viterbo Ferreira, 228, 4050-313, Porto, Portugal. Resumo A terapêutica anticoagulante foi, durante muito tempo, limitada ao uso de heparinas e varfarinas. Recentemente foram introduzidas no mercado novas alternativas a esta terapêutica antitrombótica. A disponibilidade para uso oral quer de agentes inibidores do FXa quer da trombina tem proporcionado resultados clínicos revelantes em ensaios para a profilaxia da trombose venosa pós-operatória. No entanto, estes fármacos não apresentam a polifarmacologia única das heparinas. Neste contexto, a investigação de pequenas moléculas sulfatadas que mimetizem as funções dos glicosaminoglicanos, sem os inconvenientes característicos das grandes cadeias de heparinas, tem surgido como uma área de investigação alternativa. Neste trabalho, são expostas as principais abordagens na terapêutica para o tratamento da trombose venosa e é dado um enfoque especial ao estudo desenvolvido no nosso grupo de investigação na procura de pequenas moléculas com atividade dual anticoagulante e antiagregante plaquetária. Palavras-chave: Terapêutica anticoagulante, Varfarina, Glicoaminoglicanos sulfatados Abstract Anticoagulant therapy was for a long time, limited to the use of heparins and warfarins. Recently, has been introduced in the market new alternative antithrombotic to this therapy. The availability of an oral of FXa or thrombin inhibitors has provided relevant clinical results in assays for the prophylaxis of postoperative venous thrombosis. However, these drugs do not have the polypharmacology of heparins. In this context, the investigation of small molecules that mimic the functions of the sulfated glycosaminoglycans, without the drawbacks characteristic of large chain heparins, has emerged as an area of research alternative. In this work, the major therapeutic approaches for the treatment of venous thrombosis are exposed, and is given a special focus to the study of our research group in the search for small molecules active dual antiplatelet and anticoagulant. Keywords: Anticoagulant therapy, Warfarins, Sulfated glycosaminoglycans Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 6 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens Introdução rivaroxabano e o apixabano, também designados de novos anticoagulantes orais (NOAC). A hemostase é o nome que se dá ao mecanismo de defesa que, em caso de lesão, permite que os tecidos sejam reparados, impedindo a perda excessiva de sangue. Este fenómeno, que depende de interações complexas entre a parede dos vasos, as plaquetas, as enzimas e os cofatores, é regulado por diferentes mecanismos que incluem várias fases: constrição do vaso lesado, formação do trombo plaquetário, formação do coágulo de fibrina (coagulação), seguida pela dissolução do coágulo (fibrinólise)1. Existem vários reguladores do sistema hemostático; a antitrombina III (ATIII) é o principal regulador da coagulação inibindo vários fatores intervenientes, nomeadamente o fator Xa (FXa) e o Figura 1. Agentes anticoagulantes utilizados na terapêutica e os respetivos alvos. (AVK, antagonistas da vitamina K; HBPM, heparinas de baixo peso molecular; HNF, heparina não fracionada) fator IIa (FIIa). Desequilíbrios no sistema hemostático con- Assim, são apresentadas cada uma das classes duzem a situações patológicas de trombose ou de de fármacos anticoagulantes, com referência à clas- hemorragia2. Cerca de 90% das doenças cardiovas- sificação química, descrição do mecanismo de ação culares são causadas por eventos trombóticos e 10% e principais vantagens e desvantagens. causadas por eventos hemorrágicos. Geralmente, Com a revelação de outros mecanismos de no caso da trombose que ocorre nas artérias (trom- ação que influenciam a atividade anticoagulante da bose arterial), onde o sangue é rico em plaquetas, heparina, esta tornou-se um modelo interessante na são utilizados agentes antiagregantes plaquetários. procura de novas alternativas. Assim, no final desta No caso da trombose que ocorre nas veias (trom- revisão será dado um especial enfoque a uma nova bose venosa), onde o sangue é pobre em plaquetas, classe de compostos em investigação, os polifenóis são utilizados agentes anticoagulantes. No entanto, oligossacáridos sulfatados que, nos últimos anos, têm em certas situações é necessária a sua utilização sido alvo de estudo pelo nosso grupo de investigação3. conjunta. Com a introdução de novos fármacos anti- Antagonistas da Vitamina K (AVK) coagulantes com novos mecanismos de ação, surge a necessidade de efetuar uma revisão da Os antagonistas da vitamina K (AVK) são usa- terapêutica anticoagulante. A Figura 1 representa dos como anticoagulantes há mais de 60 anos4. A os atuais agentes anticoagulantes utilizados na descoberta dos AVK surgiu com o aparecimento de terapêutica e os respetivos alvos. Na terapêutica uma doença hemorrágica em bovinos, no centro- de curta duração, profilática ou de emergência, -oeste dos EUA, na década de 1920, após uma popu- têm-se utilizado a heparina não fracionada (HNF), lação de imigrantes ter destruído uma plantação de as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) ou gramíneas nativas para construir as suas casas e fa- o fondaparinux. Em tratamentos prolongados, são zendas. Esta doença foi atribuída à ingestão de trevo utilizados os antagonistas da vitamina K (AVK) e, doce deteriorado, tendo Karl Link conseguido isolar mais recentemente, o etexilato de dabigatrano, o a substância responsável pela hemorragia. Este es- Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 7 tudo conduziu à comercialização do dicumarol, em exemplo pelos polimorfismos da enzima CYP2C9. 1941, e na continuidade, esforços para desenvolver Adicionalmente, a lista extensa de interações com um derivado sintético resultaram na obtenção da var- medicamentos e alimentos ricos em vitamina K, farina (nome oriundo de Wisconsin Alumni Research limitam grandemente o seu uso. Foundation), aprovada para uso médico em 1954. Os AVK são compostos de baixo peso molecular Ativadores da antitrombina III (ATIII) e de natureza não polissacárida, derivados da 4-hidroxicumarina, com um substituinte aromático Heparina não fracionada (HNF) volumoso na posição 3 (Figura 2). Estes dois requisitos estruturais, um substituinte volumoso na posição 3 e A HNF tem sido utilizada para a prevenção e o grupo hidroxilo na posição 4, são essenciais para a tratamento de trombose, desde a década de 19307. atividade anticoagulante desta classe de compostos. A HNF é um produto natural, de fontes bovina ou Os AVK têm propriedades farmacocinéticas e efeitos porcina, que contem uma mistura de cadeias de secundários semelhantes entre si , sendo a varfarina polissacáridos de diferentes tamanhos (número de o AVK mais frequentemente usado. resíduos entre 10 e 80) e uma diferente distribuição 5 dos grupos sulfato. O peso molecular médio de 15.000, implicando a presença de cerca de 65-85 cargas negativas, em média, por cadeia (Figura 3). Figura 2. Antagonistas da vitamina K (AVK) em uso clínico. Os AVK inibem, no fígado, a epóxido redutase da vitamina K e a carboxilação da vitamina K-dependente dos fatores de coagulação protrombina, FVII, FIX, FX. Subsequentemente, os fatores de coagulação parcialmente carboxilados apresentam um efeito coagulante reduzido. Os AVK Figura 3. Heparina não fracionada (HNF). correspondem A HNF aumenta significativamente a taxa de ao tratamento padrão para a profilaxia a longo inibição, por parte da ATIII, de várias enzimas da prazo, de acidentes vasculares cerebrais (AVC), coagulação, incluindo a trombina, o FXa, FIXa, FXIa, em pacientes com fibrilação atrial. No entanto, os FXIIa e TF/ FVIIa, sob condições fisiológicas. A trom- AVK estão associados a um conjunto considerável bina e o FXa são os mais sensíveis à inibição pelo de limitações (Tabela 1). Os AVK apresentam uma complexo HNF/ATIII, sendo este o principal meca- janela terapêutica estreita, bem como a necessidade nismo envolvido na ação anticoagulante da HNF8. de uma monitorização frequente da coagulação e de Para catalisar a inibição da trombina, a HNF liga-se à ajustes de dosagem. A hemorragia é o efeito adverso ATIII, através de uma sequência pentassacárida DE- mais comum com os AVK . Além disso, estes agentes FGH, e simultaneamente à trombina. Em contraste, possuem um efeito lento, quer no aparecimento para promover a inibição do FXa, a HNF necessita quer no desaparecimento do efeito anticoagulante, apenas de se ligar à ATIII através da sua sequência o que implica a associação de heparinas durante pentassacárida. As cadeias de HNF contendo 18 a fase inicial do tratamento. O metabolismo dos unidades sacarídicas são demasiado curtas para se AVK é afetado por fatores genéticos, ou seja, por ligarem a ambas, trombina e ATIII e, portanto, não 6 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 8 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens podem catalisar a inibição da trombina. No entanto, estes fragmentos mais curtos de HNF podem catalisar a inibição do FXa. Como quase todas as cadeias de HNF são de comprimento suficiente para fazer a Heparinas de baixo peso molecular (HBPM) ponte da ATIII à trombina, a HNF promove a inibição da trombina e FXa igualmente bem e é atribuída uma proporção de anti-FXa de antitrombina de 1,259. A HNF é um agente parentérico, administrado para uma série de indicações, nomeadamente, em quer por via intravenosa ou subcutânea . Geralmente, a HNF tem um início de ação imediato e uma parnaparina. 7 Nas últimas décadas assistiu-se à introdução de várias HBPM, que ganharam maior aceitação pacientes que sofrem de HIT. As HBPM (Figura 4) em uso incluem a enoxaparina, a dalteparina, a nadroparina, a tinzaparina, a reviparina e a curta duração de ação, embora a semi-vida biológica da HNF seja variável e dependente da dose administrada e da via de administração. A administração intravenosa provoca níveis iniciais elevados, com um tempo de semi-vida curto (1 hora). A administração subcutânea conduz à libertação lenta de HNF e tem um efeito equivalente à HNF intravenosa na profilaxia da trombose.Os problemas da terapêutica com HNF resultam da sua estrutura molecular. Os extensos fragmentos de cadeias altamente aniónicos são responsáveis por um grande número de interações com proteínas plasmáticas, o fator 4 das plaquetas, macrófagos hepáticos, osteoblastos, osteoclastos e células endoteliais. Estas interações limitam a biodisponibilidade e conduzem a uma Figura 4. Heparinas de baixo peso molecular (HBPM). As HBPM derivam da HNF por despolimerização enzimática ou química. Estes derivados correspondem a uma diminuição no peso molecular de cerca de um terço da HNF (~ 2000-5000 Da; média resposta anticoagulante altamente variável, sendo causadoras dos efeitos adversos da HNF, tais como, complicações hemorrágicas, trombocitopenia in- de 3000 Da) e apenas 25% a 50% das moléculas de duzida pela heparina (HIT) e o aumento significativo dos valores das transaminases hepáticas11. A adicionar ao seu caráter polianiónico, a HNF apresenta milhões de sequências que diferem umas das outras na posição dos grupos sulfato, gerando considerável micro-heterogeneidade e das cadeias de HBPM são demasiado curtas para se polidispersidade. Essa complexidade estrutural da HNF também oferece caminhos para utilização em doping12, como o demonstrado pelos acontecimentos recentes em que um contaminante13 presente na de 2:1 a 4:114. HNF comercial levou a várias mortes nos EUA. Além disso, a origem animal deste fármaco é uma causa de preocupação no que diz respeito à contaminação com caracterizadas, em doses baixas, por possuirem agentes potencialmente infeciosos de origem vírica. que a HNF. O risco de desenvolver complicações 10 HPBM contêm um número de sacáridos igual ou superior a 18. Por conseguinte, pelo menos metade ligarem simultaneamente à trombina e à ATIII. Assim, as HBPM têm menor atividade contra a trombina que a HNF. Em contraste, retêm a ação inibitória contra o FXa14, apresentando índices de aceleração da inibição do FXa versus da trombina que variam Quando comparadas com HNF, as HBPM apresentam uma reduzida ligação às proteínas do plasma, plaquetas e outras células. As HBPM são uma maior biodisponibilidade, um maior tempo de semi-vida e um efeito dose-resposta mais previsível Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 9 hemorrágicas e incidência de HIT em resposta O fondaparinux só potencializa a taxa de neu- à terapêutica com HBPM é diminuído apesar de tralização de FXa pela ATIII e, ao contrário da HNF e ainda existir . Quando as HBPM são utilizadas das HBPM, não inativa a trombina. A inibição seletiva no tratamento da trombose venosa profunda é do FXa faz do fondaparinux um anticoagulante me- observada hepatotoxicidade, definida como a lhor tolerado do que a HNF e as HBPM. O fondapa- elevação de transaminases hepáticas maior do que rinux não tem nenhum efeito conhecido na função três vezes o limite superior do normal11. As HBPM plaquetária, atividade fibrinolítica ou no tempo de ainda são heterogéneas em termos de atividade hemorragia; o fondaparinux não induz toxicidade biológica e duração de ação. Cada HBPM tem um peso hepática16 e, como não se liga ao factor 4 das plaque- molecular específico que determina a sua atividade tas, tem sido utilizado com sucesso para tratar doen- anticoagulante e duração de ação, de modo que tes com HIT17. O fondaparinux é preferencialmente cada agente é considerado um medicamento único. recomendado nas diretrizes recentes para o trata- Devido ao seu modo de ação dependente da mento antitrombótico devido à sua eficácia e perfil ATIII, a HNF e as HBPM não são capazes de inativar a de segurança favorável, assim como ao facto de se trombina ligada à fibrina ou o FXa ligado às plaquetas apresentar numa dose única diária, sem necessidade ativadas. de monitorização. No entanto, o fondaparinux man- 14 tém o risco de hemorragia, como o observado nos Fondaparinux pacientes tratados com HBPM; no caso de uma hemorragia incontrolável, o FVIIa recombinante pode As vantagens farmacocinéticas e biológicas das ser eficaz18. HBPM relativamente à HNF têm estimulado o inte- A necessidade de administração parentérica resse em fragmentos de HNF ainda menores. A des- subcutânea19 torna o fondaparinux um fármaco in- coberta, nos anos 1980, de que um domínio de ape- conveniente e dispendioso. Além disso, o fondapa- nas cinco resíduos (DEFGH) na HNF ativava a ATIII rinux não inibe o FXa ligado ao complexo de pro- para acelerar a inibição do FXa, mas não da trombina, trombinase e é dependente da ATIII. conduziu à síntese de uma única sequência pentassacarídica, o fondaparinux (Figura 5). A primeira sín- Inibidores diretos de fatores de coagulação tese química do pentassacárido compreendeu mais de 60 passos e este foi produzido com rendimento No que diz respeito à inibição direta da coagu- e pureza suficientes para utilização como fármaco. lação, foram propostos como alvos a trombina e o Apesar da sua síntese em larga escala ser realizada FXa. Os inibidores diretos da trombina e do FXa po- com sucesso na indústria, ainda hoje compreende dem ligar-se diretamente à trombina e ao FXa, res- várias etapas. O fondaparinux chegou ao mercado petivamente, enquanto que os inibidores indiretos nos EUA e na Europa em 200215. são dependentes da ATIII. Estes fármacos inibidores diretos de trombina e de FXa formam uma grande classe de reguladores da coagulação que são considerados superiores às heparinas uma vez que inibem ambas as enzimas circulantes e ligadas ao coágulo20. No entanto, carecem dos efeitos polifarmacológicos das heparinas, nomeadamente das suas proprieda- Figura 5. Fondaparinux. des anti-inflamatórias, antiangiogénicas, etc. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 10 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens Inibidores diretos da trombina (IDT) Os inibidores diretos da trombina (IDT) ligam-se à trombina e bloqueiam a sua interação com os seus substratos, a formação de fibrina e a ativação de plaquetas e dos FV, FVIII, FXI e FXIII21. A trombina é o agonista mais potente da ativação das plaquetas. Através da ativação dos receptores ativados por protease (PAR), presentes na superfície das plaquetas, conduz à libertação de grânulos e à agregação das plaquetas através dos receptores GPIIb/IIIa. Assim, anticoagulantes que inibem a atividade da trombina reduzem a ativação plaquetária através dos receptores PAR. Estes fármacos também podem inibir as vias intracelulares de transdução do sinal induzidas pela trombina, incluindo a ativação das plaquetas induzida pela trombina. Existem dois tipos de IDT, dependendo da interação que estabelecem com a molécula de trombina. Figura 6. Inibidores diretos da trombina (IDT) parenterais. A. Hirudina ligada à trombina (imagem de PDB; 4HTC). B. Estrutura do argatrobano. Os IDT bivalentes (hirudina, lepidurina, bivalirudi- boembolismo venoso, o ximelagatrano demonstrou na) ligam-se tanto ao local ativo como ao exosítio ser mais eficaz ou comparável à varfarina23. No en- 1, enquanto que os IDT univalentes (argatrobano, tanto, o uso deste fármaco foi suspenso em 2006 melagatrano, dabigatrano) ligam-se apenas ao lo- devido a toxicidade hepática observada24. Em março cal ativo. A hirudina, a lepidurina, a bivalirudina e de 2008, um segundo inibidor direto da trombina o argatrobano são IDT de administração parenteral. por via oral, o etexilato de dabigatrano (Figura 7), A hirudina é um péptido de origem natural pro- foi aprovado para comercialização na Europa25. veniente das glândulas salivares de sanguessugas (tais como Hirudo medicinalis) (Figura 6 A). A bivalirudina é uma forma quimicamente derivada da hirudina e a lepidurina uma forma recombinante da hirudina. O argatrobano é uma pequena molécula inibidora direta da trombina (Figura 6 B). Os IDT parenterais são geralmente reservados para o tratamento de pacientes com HIT. A principal limitação da sua ação é a ocorrência de hemorragias22. Figura 7. Inibidores diretos da trombina (IDT) e respetiva bioativação. O primeiro IDT disponível (2003-2006) para O etexilato de dabigatrano é um duplo pró-fár- uso clínico por via oral foi o ximelagatrano (Figu- maco que, após administração oral, é rapidamente ra 7), um pró-fármaco do melagatrano. O apareci- absorvido e por hidrólise, catalisada por esterases mento deste medicamento representou um grande no plasma e fígado, convertido na sua forma ativa, avanço em relação aos AVK orais existentes, pois não o dabigatrano (Figura 7). Este novo anticoagulante exigia monitorização ou ajuste de dose . Em ensaios não apresenta os problemas dos AVK, no que con- clínicos para o tratamento e prevenção de trom- cerne as interações com medicamentos e/ou ali- 23 Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 11 mentos. Há que referir a possibilidade de aumen- nal com AVK está contra-indicado, foi descrito re- to de hemorragia com o uso concominante com centemente30. fármacos que bloqueiam a agregação plaquetária, como os anti-inflamatórios não esteróides. Por outro lado, o etexilato de dabigatrano é um substrato da glicoproteina P, pelo que inibidores desta bomba de efluxo reduzem a sua eficácia (ex. amiodarona, cetoconazol, quinidina). Inibidores diretos do FXa Figura 8. Inibidores diretos do FXa: rivaroxabano e apixabano. Na Tabela 1 são resumidas as principais vantaO FXa é o local primário de amplificação no processo da coagulação: uma molécula de FXa cata- gens e desvantagens dos anticoagulantes de utilização clínica. lisa a formação de cerca de 1000 moléculas de trombina26. Os inibidores de FXa inibem a formação de trombina, de forma potente e seletiva, em vez da Em investigação: nova classe de polifenóis oligossacáridos sulfatados atividade da trombina. Por esta razão, o desenvolvimento de fármacos que inibam o FXa é uma estra- Embora existam substâncias úteis na terapêu- tégia promissora na investigação farmacêutica. Uma tica, há ainda muito a fazer no sentido de se obte- vez que a intervenção do FXa fora da coagulação é rem agentes mais eficazes e com menos efeitos se- menor do que a da trombina, estes inibidores têm cundários. Uma lição importante que surgiu a partir uma janela terapêutica mais larga do que os inibido- dos numerosos ensaios antitrombóticos é que só o res da trombina e, aparentemente, não conduzem, aumento da potência antitrombótica por si só não após a interrupção, à hipercoagulabilidade, regular- garante necessariamente um maior benefício clíni- mente observada após a paragem dos inibidores de co e, em geral, as abordagens com antitrombóticos trombina. potentes devem ser reservadas para pacientes de O rivaroxabano é um derivado da oxazolidona alto risco. A ocorrência de hemorragias representa (Figura 8), um inibidor direto competitivo do FXa e o fator mais importante que influencia a terapêutica altamente seletivo, que foi aprovado, em setembro a longo prazo e o benefício clínico global da tera- de 2008, na Europa, para a prevenção do tromboem- pêutica antitrombótica. A principal preocupação em bolismo venoso em pacientes submetidos a cirurgia relação aos fármacos antitrombóticos existentes re- ortopédica27, 28. O rivaroxabano não apresenta intera- laciona-se com a janela terapêutica e a necessidade ções com alimentos, como os AVK; no entanto, pos- de monitorização. Assim, os principais desafios no sui interações com alguns medicamentos inibidores desenvolvimento destes inibidores, incluem atingir da glicoproteína P, inibidores da protease e com uma afinidade de ligação para as enzimas da coagu- inibidores potentes do CYP3A4 (ex. rifampicina). lação que não esteja associada com um efeito he- Em maio de 2011, outro inibidor oral do FXa, morrágico excessivo e evitar a toxicidade hepática. o apixabano (Figura 8), foi aprovado na Europa para Numerosas substâncias com atividade anti- a prevenção de tromboembolismo venoso após ar- trombótica com ação em vários outros alvos, no- troplastia eletiva da anca ou joelho29. O sucesso do meadamente no co-fator da heparina (HCII), proteí- apixabano na prevenção de AVC em pacientes com na C, FIX, FVII, FXIa31-33, encontram-se atualmente fibrilação atrial, nos quais o tratamento convencio- em diferentes etapas de desenvolvimento. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 12 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens Tabela 1. Agentes anticoagulantes na terapêutica AdministraçãoVantagens Desvantagens Antídoto ATIVAÇÃO DA ATIII HNF i.v. Rápido (2 ou 3 vezes por dia) início/fim de ação Pode ser usada na gravidez HBPM s.c. Não requer (2 ou 3 vezes por dia) monitorização Fondaparinux s.c. Não requer (1 vez por dia) monitorização Origem sintética Não se observa HIT AdministraçãoVantagens Administração parenteral Depende da ATIII Origem animal Complicações hemorrágicas Monitorização HIT severa (4-5 dias) Ativação plaquetária Administração parenteral Depende da ATIII Origem animal Complicações hemorrágicas Risco de HIT Administração parenteral Depende da ATIII Complicações hemorrágicas em pacientes com insuficiência renal Desvantagens Sulfato de protamina Sulfato de protamina FVIIa recombinante Antídoto AVK Varfarina oral Administração Início de ação lento Vitamina K (1 vez por dia) oral Complicações hemorrágicas Plasma fresco Tratamento prolongado Requer monitorização Teratogénico FIX/protrombina Baixo custo Polimorfismo Interações com medicamentos e alimentos IDT Hirudina, i.v. Não se observa HIT Administração parenteral Sem antídoto Lepirudina, Episódios hemorrágicos graves Bivalirudina Argatrobano Etexilato de oral Administração Experiência clínica reduzida Sem antídoto dabigatrano (2 vezes por dia) oral INIBIDORES DIRETOS DO FATOR Xa Rivaroxabano oral (1 vez por dia) Apixabano oral (2 vezes por dia) Rápido Experiência clínica reduzida início/fim de ação Resposta previsível Interações com medicamentos e alimentos pouco relevantes Rápido Experiência clínica reduzida início/fim de ação Resposta previsível Interações com medicamentos e alimentos Sem antídoto Sem antídoto Legenda: HBPM, heparinas de baixo peso molecular; AVK, antagonistas da vitamina K; IDT, inibidores diretos da trombina; i.v., intravenoso; s.c., subcutâneo; HIT, trombocitopenia induzida pela heparina. Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 13 No entanto, na última década, com a descober- como venotrópicos, nomeadamente, a diosmina ta de um conjunto de mecanismos envolvidos na ati- (D), a hesperidina (H), a rutina (R) e a etoxirutina vidade anticoagulante da HNF , vários esforços têm (ER) 41, bem como uma série de outras moléculas sido dirigidos na procura de miméticos da heparina, pertencentes a outras classes químicas (Figura 9), mas que apresentem uma composição bem definida, por serem utilizadas como nutracêuticos ou suple- síntese eficaz, menores efeitos secundários e uma mentos nutricionais, pelas suas propriedades anti- resposta terapêutica previsível, sem necessidade de -inflamatórias e antioxidantes, como por exemplo, o monitorização. Podem destacar-se, nomeadamente, glucosídeo de trans-resveratrol (SB), a mangiferina as tentativas de obtenção de heparina totalmente (M), etc42, 43. 34 sintética, de oligossacáridos miméticos da heparina35-37, bem como tentativas de desenvolvimento de formulações de heparina oralmente ativa38. No nosso grupo de investigação temos vindo a desenvolver nos últimos anos pequenas moléculas com atividade antitrombótica no sentido de mimetizar as funções dos anticoagulantes polissacáridos sulfatados da terapêutica39. Assim, foram definidas três caraterísticas estruturais essenciais: i) possuir grupos sulfato, necessários para a atividade anticoagulante; ii) ser uma Figura 9. Matérias-primas selecionadas para sulfatação. pequena molécula que, relativamente às macromo- Os derivados polissulfatados (Figura 10) foram léculas da terapêutica, corresponda a uma estrutura, obtidos por um processo sintético mais simples que do ponto de vista de síntese, mais acessível, conten- o utilizado para o fondaparinux (podendo mesmo do um menor número cargas negativas e um caráter ser efetuado numa só etapa a partir das respetivas mais hidrofóbico, no sentido de minimizar os seus matérias-primas), com rendimentos superiores a efeitos secundários; iii) e possuir uma porção glico- 80%41-43. sídica que consinta aplicar o princípio da extensão molecular e aumentar o número de cargas negativas permitindo assim o reconhecimento molecular caraterístico dos anticoagulantes polissacarídicos. Assim, foi selecionado um conjunto de pequenas moléculas glicosiladas, que se encontrasse na terapêutica, para submeter a modificação molecular por sulfatação. Isto porque a probabilidade de com- Figura 10. Alguns exemplos de novas pequenas moléculas sulfatadas sintetizadas com propriedades anticoagulantes. postos que resultem de modificações moleculares de agentes terapêuticos já existentes poderem tam- No que diz respeito aos tempos clássicos de bém virem a ser utilizados em humanos é elevada. coagulação, todos os compostos polissulfatados pro- Como já dizia Sir James Black, prémio Nobel em fi- longaram os tempos de coagulação in vitro, em con- siologia e medicina (1988): “A forma mais proveito- tacto com plasma humano, e dentro de cada classe sa para a descoberta de novos fármacos é começar química foi possível observar uma relação estrutura- com fármacos já existentes” . Pelo exposto, foram -atividade que evidenciou a importância do número selecionados flavonóides utilizados na terapêutica de grupos sulfato41-43. O tempo de tromboplastina 40 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 14 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens parcial ativado (APTT) e o tempo de protrombina da ATIII41. A xantona XGS apresentou um perfil dife- (TP) foram os testes que apresentaram maior sen- rente exercendo atividade inibidora do FXa tanto na sibilidade à presença dos compostos sulfatados. Os presença como na ausência de ATIII43. compostos mais potentes foram a rutina persulfatada (RS) A agregação plaquetária foi também avaliada e a 3,6-(O-β-D-glucopiranosil)xantona na presença dos compostos sulfatados, em sangue persulfatada (XGS)43 (Figura 10), tendo duplicado o total, através da medição dos tempos de oclusão APTT numa concentração da ordem dos micromolar. do colagénio/5’-difosfato de adenosina (COL/ADP) No entanto, com concentrações mais altas, os com- e colagénio/epinefrina (COL/EPI) e por agregome- postos ERS, RS , MS e XGS interferiram também tria por impedância elétrica induzida pelo péptido com o tempo de trombina (TT). Os tempos clássicos de ativação do receptor de trombina (teste TRAP), de coagulação, após a administração intraperitoneal pelo ácido araquidónico (teste ASPI) e pelo 5’-di- em ratinhos, foram também avaliados para três dos fosfato de adenosina (teste ADP). Ambos os tempos compostos polissulfatados (DS, RS, MS) 41, 43, tendo de oclusão COL/ADP e COL/EPI apresentaram-se sido observado um prolongamento do APTT para ní- prolongados na presença dos flavonóides polis- veis terapêuticos (2,5-3 vezes superior ao valor nor- sulfatados ERS e RS41, do resveratrol persulfatado mal do APTT) logo após 30 minutos. Os compostos SBS42, e da xantona glicosilada persulfatada XGS43. demonstraram provocar uma hipocoagulação com Na presença das diosmina e hesperidina hexasulfa- duração de ação adequada, uma vez que, após 120 tadas (DS e HS)41 e da mangiferina heptasulfatada minutos, os tempos de coagulação ainda se encon- (MS) 43, o tempo de oclusão COL/EPI permaneceu travam prolongados. Os níveis das necroenzimas he- dentro dos valores normais enquanto o tempo de páticas foram também avaliados ao longo do ensaio oclusão COL/ADP foi alterado, sendo este um perfil in vivo e não foram observados sinais de hepatoto- característico por exemplo, do clopidogrel. Alguns xicidade. compostos sulfatados, DS, ERS, RS, HS, SBS, MS e 41 41 43 A capacidade anticoagulante dos compostos DS, ERS, RS, HS, SBS, MS e XGS XGS, inibiram a agregação plaquetária induzida pelo , na presença de ácido araquidónico (teste ASPI), à semelhança do sangue total humano foi avaliada por tromboelasto- ácido acetilsalicílico, e pelo 5’-difosfato de adenosi- grafia, tendo o tromboelatograma apresentado um na (teste ADP). 41-43 perfil de hipocoagulação, sem sinais de fibrinólise. A descoberta que os compostos DS, ERS, RS, Relativamente ao possível mecanismo de ação HS, SBS, MS e XGS apresentavam simultaneamente justificativo da atividade anticoagulante, nenhum atividades anticoagulante e antiagregante plaquetá- dos compostos apresentou qualquer influência so- ria, aumentou as expectativas relativamente aos seus bre a atividade da trombina, mesmo na presença de benefícios clínicos. Este tipo de perfil é vantajoso ATIII. No entanto, alguns derivados sulfatados, DS, relativamente à terapêutica de combinação de um HS, ERS, RS, MS e XGS, mostraram seletividade para anticoagulante e um antiagregante plaquetário, pela o FXa (direta ou indiretamente) tendo sido observa- sua farmacocinética menos complexa, pela probabi- das algumas características interessantes de relação lidade de incidência mais baixa de efeitos colaterais estrutura-atividade, no que se refere à classe química e pela menor exigência em fase de estudos clínicos. e à posição do açúcar: enquanto que os flavonóides Assim, os compostos sintetizados podem ser úteis polissulfatados 3-rutinosídeos ERS e RS41 e a man- concomitantemente na trombose arterial como na giferina sulfatada MS43 foram inibidores diretos do venosa, podendo vir, por isso, a constituir uma nova FXa, os flavonóides polissulfatados 7-rutinosídeos abordagem na prevenção e tratamento das doenças DS e HS foram inibidores do FXa através da ativação cardiovasculares39. Estado da arte na terapêutica anticoagulante: Novas abordagens 15 cífico para utilização quando é necessária a reversão Conclusão e perspetivas futuras urgente parece ser um problema mais teórico do A introdução das HBPM e do fondaparinux sim- que prático, devido ao tempo de semi-vida relativa- plificou a terapêutica anticoagulante parenteral e mente curto do etexilato de dabigatrano e do rivaro- estes agentes têm substituído a HNF para muitas in- xabano. Assim, apesar das previsões otimistas sobre dicações. Inesperadamente, foi provado que o pen- a utilidade superior dos novos anticoagulantes orais tassacárido sintético, fondaparinux, produz grandes emergentes, a sua utilização terapêutica está longe problemas de hemorragia em doses mínimas . As- de ser a ideal47. Há que considerar o elevado cus- sim, a sua utilização tem sido reservada apenas para to que implicam para o paciente e mesmo para o casos de desenvolvimento de HIT. Sistema Nacional de Saúde se a todos os doentes 44 O desenvolvimento de novos anticoagulantes orais para substituir os AVK em ambulatório em tra- medicados com varfarina fossem prescritos indiscriminadamente os NOAC. tamentos prolongados de doenças trombóticas tem Assim, a procura de novas alternativas para a sido mais lento do que o dos agentes parenterais. terapêutica antitrombótica continua. A heparina pa- Os AVK, como a varfarina, apresentam a vantagem rece continuar a desempenhar um papel central nas da administração oral, mas devido ao seu início de principais linhas de investigação que poderão fazer ação lento, não dispensam administração dos anti- chegar, no futuro, à terapêutica anticoagulante, uma coagulantes citados anteriormente, na fase inicial do heparina totalmente sintética, uma heparina oral- tratamento. Para além disso, apresentam várias inte- mente ativa, ou pequenas moléculas polissulfatadas rações com medicamentos e alimentos e originam que mimetizem as funções das heparinas. respostas com grande variabilidade inter-individual, requerendo monitorização da resposta terapêutica, Agradecimentos o que conduz frequentemente à falta de adesão do doente. Com o objetivo de ultrapassar estas desvan- Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), tagens, desenvolveram-se os NOAC. Foram introdu- PEst-OE/SAU/UI4040/2011, FEDER, POCI, POPH, zidos na terapêutica para uso oral quer agentes ini- FSE, QREN pelo financiamento e pela bolsa de pós- bidores do FXa quer inbidores da trombina que têm -doutoramento a Marta Correia da Silva (SFRH/ proporcionado resultados clínicos impressionantes BPD/81878/2011). nos ensaios para a profilaxia de trombose venosa pós-operatória. Estes não requerem monitorização nem Referências bibliográficas são afetados por interações com alimentos como os AVK; no entanto, têm as preocupações de segurança 1. Lippi, G.; Favaloro, E. J.; Franchini, M.; Guidi, G. relacionadas com elevação das enzimas hepáticas e C. Milestones and Perspectives in Coagulation potenciais riscos de hemorragia associada com o seu and Hemostasis. Semin Thromb Hemost. 2009; uso prolongado. Nesta fase, são escassos os dados 35: 9-22. a longo prazo sobre o etexilato de dabigatrano ou 2. Lippi, G.; Franchini, M. Pathogenesis of Venous rivaroxabano. Os ensaios clínicos a decorrer por pe- Thromboembolism: When the Cup Runneth ríodos mais longos de tratamento irão com certeza Over. Semin Thromb Hemost. 2008; 34: 747-761. fornecer informações mais rigorosas sobre a poten- 3. Correia-da-Silva, M.; Sousa, E.; Pinto, M. Emer- cial hepatotoxicidade45. Portanto, é ainda cedo para ging sulfated small molecules as drugs: nature as se prever se os AVK serão substituídos pelos novos an inspiration Med Res Rev. 2013; Doi: 10.1002/ anticoagulantes orais . A falta de um inibidor espe- med. 21282. [Epub ahead of print]. 46 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 16 Estado da arte na terapêutpica antigoagulante: Novas abordagens 4. Moualla, H.; Garcia, D. Vitamin K Antagonists - C.; Guglieri, S.; Fraser, B.; Al-Hakim, A.; Gunay, Current Concepts and Challenges. Thromb Res. N. S.; Zhang, Z.; Robinson, L.; Buhse, L.; Nasr, 2011; 128: 210-215. M.; Woodcock, J.; Langer, R.; Venkataraman, G.; 5. Ansell, J.; Hirsh, J.; Hylek, E.; Jacobson, A.; Linhardt, R. J.; Casu, B.; Torri, G.; Sasisekharan, Crowther, M.; Palareti, G. Pharmacology and Ma- R. Oversulfated chondroitin sulfate is a contami- nagement of the Vitamin K Antagonists. Chest nant in heparin associated with adverse clinical 2008; 133: 160S-198S. events. 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(6) Research Institute for Medicines and Pharmaceutical Sciences (iMed.UL), Faculdade de Farmácia, Universidade de Lisboa, Portugal. Autor correspondente: Isabel Vitória Figueiredo – Grupo de Farmacologia e Cuidados Farmacêuticos Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra Pólo das Ciências da Saúde, Azinhaga de Santa Comba, 3000-548 Coimbra, Portugal. Tel: +351 239 488 400/430 – Fax: +351 239 488 503 – [email protected] Resumo A polimedicação aumenta o risco de reações adversas, interações e uso incorreto dos medicamentos. Nos idosos é bastante prevalente, potenciando ainda mais os problemas relacionados com os medicamentos, uma vez que estes também resultam das alterações fisiológicas e multimorbilidades do envelhecimento. Sabendo que os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) são fármacos muito usados pelos idosos, foram objetivos deste trabalho caracterizar potenciais interações entre AINEs prescritos e a restante medicação em idosos e criar uma lista de recomendações relacionadas com a monitorização destes doentes, de modo a evitar ou detetar precocemente tais interações. Análise retrospetiva dos dados referentes à medicação prescrita de uma amostra de idosos de uma Unidade de Cuidados de Saúde Primários (Centro de Saúde de Eiras, Coimbra, Portugal) presentes numa consulta médica entre 2 e 16 de janeiro de 2012. Foram revistos os regimes farmacoterapêuticos de 29 doentes a tomar pelo menos 1 AINE, cerca de 3 meses antes da recolha de dados, num total de 37 AINEs prescritos. Foram encontradas 123 interações moderadas e 2 minor. As principais interações ocorreram entre AINEs e diuréticos (17,6%), antagonistas dos recetores da angiotensina (14,4%), bloqueadores da entrada do cálcio (12,0%) e inibidores da enzima de conversão da angiotensina (8,8%). A prevalência de interações entre AINEs foi de 12,8%. Elaborou-se uma lista de recomendações para monitorização dos doentes quando não se podem evitar as ditas interações. Estas interações devem ser tidas em conta no momento da prescrição e cedência de AINEs, pois podem desencadear efeitos negativos tais como alterações renais e aumento da pressão arterial. O farmacêutico pode desenvolver um papel relevante em serviços como a revisão da medicação, para identificar estas interações potenciais, ou no acompanhamento farmacoterapêutico, na gestão destas situações quando devidamente identificadas. Salienta-se a importância da interação positiva com a Medicina Geral e Familiar para a segurança e a eficiência das terapêuticas. Palavras-chave: Idosos; Serviços farmacêuticos clínicos; Polimedicação; Interações medicamentosas; Anti-inflamatórios não esteroides (AINEs). 20 As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs Abstract Polypharmacy – a frequent situation found among the elderly, related to their physiological changes and multiple morbidities – increases the risk of adverse reactions, interactions, drugs misuse and drug-related problems. Knowing that non-steroidal anti-inflammatory drugs (NSAIDs) are widely used among the elderly, the aims of the present study were to assess the potential interactions that may occur between prescribed NSAIDs and other drugs and to create a list of recommendations for monitoring elderly patients taking NSAIDs, in order to prevent or minimize those negative outcomes. With this purpose, a retrospective study was performed at Centro de Saúde de Eiras (Coimbra, Portugal). The study involved the systematic analyses of the medication regimens of a sample of elderly patients selected from the elderly population of this primary health care unit. Eligible subjects were patients aging 65 or more years and at least with one NSAID included in their therapeutic schemes in the last three months. A total of 37 prescribed NSAIDs were found in the 29 patients of the sample. 125 potential NSAID-drug interactions were found: 2 minor and 123 moderate. Most interactions occurred between NSAIDs and antihypertensive drugs, such as diuretics (17.6%), angiotensin receptor blockers (14.4%), calcium channel blockers (12.0%) and angiotensin converting enzyme inhibitors (8.8%). The prevalence of interactions between NSAIDs was 12.8%. These interactions can cause adverse effects with particular manifestations in the elderly, such as renal impairment and increased blood pressure. The pharmacist can develop a relevant role in services such as medication review, to identify these potential interactions, or pharmacotherapy follow-up, in the management of these situations when properly identified. Stresses the importance of positive interaction with General and Family Practice for the safe and efficiency of therapies. Keywords: Elderly; Clinical pharmacy services; Polypharmacy; Drug interactions; Non-steroidal antiinflammatory drugs (NSAIDs). Introdução O envelhecimento progressivo da população é uma problemática muito relevante no mundo ocidental. Segundo os resultados dos Censos 2011 realizados em Portugal, 19% da população tem 65 ou mais anos de idade, ultrapassando os 2 milhões de portugueses1. O envelhecimento é um processo inevitável caracterizado pelo declínio das funções fisiológicas e uma diminuição da facilidade em se adaptar a alterações externas. De facto, o idoso é, por definição, um indivíduo física, psíquica e socialmente diminuído e que, quando sofre uma alteração fisiológica, repõe o equilíbrio mais lenta e dificilmente. No entanto, a idade cronológica nem sempre reflete a “idade funcional”, tornando este um grupo heterogéneo e difícil de tratar. Acresce a isto que cada vez mais os idosos sofrem de múltiplas doenças, muitas delas crónicas e, associadas a estas, surge muitas vezes a polimedicação2. Todo o regime terapêutico tem como objetivo a cura de uma determinada doença, a redução ou eliminação da sintomatologia, o controlo da doença, o retardar da sua progressão ou ainda a prevenção da mesma. Um regime terapêutico pode considerar-se ótimo quando resolve uma situação aguda, mantém a saúde em geral ou previne o seu declínio. Contudo, estes três pontos são, por vezes, difíceis de atingir na população idosa, devido às multimorbilidades e polifarmacoterapia. O uso de vários medicamentos em simultâneo pode ser benéfico no tratamento de múltiplas doenças, mas aumenta também o risco de ocorrência de reações adversas e torna a manutenção à terapêutica mais difícil. Em situações de polifarmacoterapia, surgem por vezes casos de duplicação da terapêutica, diminuição da qualidade As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs de vida e custos financeiros desnecessários. Com o aumento do número de fármacos, aumenta também o risco de ocorrência de interações entre estes. Nalguns casos torna-se mesmo difícil distinguir se um determinado sintoma resulta do processo de envelhecimento, de doenças associadas ou se é um efeito adverso resultante da terapêutica2-4. De entre as doenças mais comuns nos idosos encontram-se a hipertensão, a doença cardíaca, o cancro, a diabetes, a sinusite e a osteoartrite. A osteoartrite ou artrose é uma doença que afeta as articulações, sendo responsável por mais de dois terços das queixas relativas à dor nos idosos. A osteoartrite ocorre quando a cartilagem das articulações fica danificada e gasta, causando rigidez, dores e perda de movimento na articulação afetada. A dor persistente pode influenciar a capacidade de realizar atividades diárias e diminui a qualidade de vida dos doentes, podendo resultar em ansiedade, depressão, insónia e dificuldades de concentração. A idade e a obesidade são dois dos principais fatores de risco associados a esta doença. Normalmente é uma doença que afeta as pessoas com mais de 50 anos, sendo mais comum nas mulheres do que nos homens. As articulações mais afetadas são as dos joelhos, anca, região lombar e mãos. Os sintomas mais comuns são a dormência matinal, rigidez, inflamação (com edema), dor e/ou movimentação limitada nas áreas afetadas. Não havendo uma cura conhecida para a osteoartrite, o tratamento baseia-se na diminuição da dor, aumento da mobilidade nas articulações e aumento da qualidade de vida4. Os Anti-Inflamatórios Não Esteroides (AINEs) têm sido utlizados como opção terapêutica para a diminuição da dor. São medicamentos massivamente prescritos, sendo um dos grupos terapêuticos mais utilizado a nível mundial. São também muito utilizados em situações de automedicação e estima-se que a sua utilização por pessoas com idade superior a 60 anos se encontra entre os 40% e os 60%. O seu mecanismo de ação baseia-se na inibição de um grupo de enzimas, as ciclooxigenases (COXs), responsáveis pelo metabolismo do ácido araquidónico em prostaglandinas, o que confere a estes fármacos duas ações farmacológicas determinantes para o 21 seu uso na diminuição dos sintomas da osteoartrite: ação anti-inflamatória e ação analgésica (as prostaglandinas são mediadores pró-inflamatórios que favorecem a vasodilatação prolongada, aumentam o fluxo sanguíneo e potenciam a ação de substâncias, como bradicinina, histamina e serotonina, capazes de aumentar a permeabilidade vascular e ativar as terminações nervosas)5,6. Apesar de todos os efeitos benéficos que os AINEs apresentam, a maior parte dos doentes não tem a perceção do risco da sua utilização e dos potenciais efeitos adversos que este grupo de medicamentos origina, para além das interações possíveis com inúmeros fármacos – estima-se que, de entre os efeitos adversos que ocorrem, cerca de 25% se devem aos AINEs6. Vários dos serviços farmacêuticos clínicos – entre os quais a revisão da medicação e o acompanhamento farmacoterapêuticos – têm como componente crucial uma avaliação aprofundada da farmacoterapia. Sabendo que a avaliação da farmacoterapia tem como finalidade permitir que os medicamentos que um dado doente toma atinjam os objetivos terapêuticos previamente definidos (efetividade) sem agravarem ou gerarem novos problemas de saúde (segurança)7, foram objetivos deste trabalho identificar, numa amostra de idosos de uma unidade de cuidados de saúde primários, as potenciais interações existentes entre AINEs prescritos e a restante medicação habitual, bem como elaborar uma lista de recomendações clínicas relacionada com a monitorização destes doentes, de forma a evitar ou detetar precocemente tais interações. Metodologia Análise retrospetiva dos dados referentes à medicação prescrita de uma amostra de idosos de uma Unidade de Cuidados de Saúde Primários (Centro de Saúde de Eiras, Coimbra, Portugal) presentes numa consulta médica entre 2 e 16 de janeiro de 2012. A amostragem foi feita após a subdivisão dos idosos de acordo com a sua faixa etária: 65-70 anos, 71-75 anos, 76-80 anos e 81-85 anos. Formaram-se, por conseguinte, quatro grupos, não necessariaActa Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 22 As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs mente com o mesmo número de doentes por grupo. Foi posteriormente recolhida, de forma aleatória, a medicação prescrita de 25% do total de doentes de cada grupo. Os dados foram recolhidos tendo como critérios de inclusão dos doentes: a) a prescrição de, pelo menos, um AINE; b) AINEs administrados apenas por via oral ou por via intramuscular; c) AINEs prescritos a partir de outubro de 2011 (cerca de 3 meses antes da recolha de dados), quer tenham resultado de uma renovação dos medicamentos já prescritos ou de medicamentos introduzidos recentemente no regime terapêutico de cada doente. Após a recolha dos dados identificaram-se os AINEs mais prescritos e procuraram-se possíveis interações entre os AINEs e os restantes medicamentos prescritos, interações essas que foram posteriormente analisadas e contabilizadas. Para efetuar esta análise recorreu-se a uma ferramenta disponível online para qualquer profissional de saúde – o “sítio” Drugs.com8. Este “sítio” fornece rapidamente informações concisas sobre os medicamentos disponíveis, incluindo possíveis interações que possam ocorrer entre eles. Todas as interações indicadas em Drugs.com foram validadas através da análise do mecanismo de ação e/ou da farmacocinética de cada fármaco. Foi considerada a classificação disponibilizada pelo Drugs.com referente aos tipos de interações existentes: Interação minor: interação com significado clínico mínimo / procurar minimizar os riscos associados a este tipo de interação considerando a troca por um fármaco alternativo, tentar diminuir os fatores de risco que potenciam a interação e/ou estabelecer um plano de monitorização. Interação moderada: interação com algum significado clínico / de uma forma geral, tentar evitar a combinação dos dois fármacos envolvidos na interação e, se forem mesmo necessários, utilizá-los apenas sob circunstâncias especiais. Interação major: interação com um significado clínico elevado / evitar o uso concomitante dos dois fármacos envolvidos na interação uma vez que, na maior parte das vezes, o risco ultrapassa o benefício. Por fim, criou-se uma lista de recomendações relacionadas com a monitorização dos doentes idosos a quem foram prescritos AINEs, de forma a evitar ou detetar precocemente as interações identificadas. Essa lista foi elaborada tendo em consideração os fármacos e a potencial interação entre eles, apresentando uma coluna referente à explicação detalhada da interações e outra referente à recomendação prática ao profissional de saúde, tanto ao que prescreve como a todo o que integra a equipa de saúde que cuida dos doentes. Resultados A Tabela 1 apresenta o número total de doentes idosos do Centro de Saúde de Eiras, Coimbra, divididos por quatro faixas etárias, o número de doentes incluídos na amostra de modo aleatório e o número de doentes que cumpriam os critérios de inclusão, divididos pelos mesmos subgrupos etários. Tabela 1. Composição da amostra de estudo Faixa etária Nº total 5% N.º de doentes de doentes dos doentes incl. no estudo 65 – 70 anos 112 28 5 71 – 75 anos 174 44 11 76 – 80 anos 111 29 8 81 – 85 anos 82 21 5 Total 479122 29 Na revisão dos regimes terapêuticos prescritos dos 29 idosos incluídos no estudo identificaram-se 37 AINEs, o que, em termos percentuais, corresponde a 75,86% da amostra a tomar apenas um AINE contra 24,14% a tomar dois ou mais AINEs em simultâneo. De entre a variedade de AINEs utilizados, sobressaem três subgrupos terapêuticos como tendo sido os mais prescritos: os derivados do ácido propiónico (M01AE) (29,72%), onde se incluem o ibuprofeno, o naproxeno, o cetoprofeno e o flurbiprofeno; os derivados do ácido acético (M01AB) (21,63%), como o diclofenac e o aceclofenac; e os inibidores seletivos da COX-2 (M01AH) (18,92%), como o etoricoxib e o celecoxib. A nimesulida, derivado sulfanilamídico (M01AX17), representou 13,51% das prescrições de AINEs. Em menor quantidade foram prescritos os As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs oxicams (M01AC) (8,11%), que englobam o tenoxicam e o meloxicam, e os derivados do indol e do indeno (M01AB) (8,11%), como a acemetacina e o etodolac (Figura 1). A análise das interações segundo a metodologia descrita originou um total de 125 interações, 23 tendo 2 sido classificadas como minor e as restantes 123 tendo sido classificadas como moderadas. A Figura 2 mostra a prevalência das interações entre os AINEs e os restantes fármacos de diferentes grupos farmacoterapêuticos. Figura 1. Prevalência dos AINEs prescritos Figura 2. Prevalência das interações AINE – fármaco. (ARAs – antagonistas dos recetores da angiotensina; AINEs – anti-inflamatórios não esteroides; BECs – bloqueadores da entrada de cálcio; iECAs – inibidores da enzima de conversão da angiotensina; AAS – ácido acetilsalicílico (100 mg)). Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 24 As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs A Tabela 2 corresponde à lista de recomendações elaborada para os profissionais de saúde que, de alguma forma, cuidam do doente idoso que toma AINEs. Depois de identificado o par de fármacos envolvido na potencial interação, descreve-se o meca- nismo farmacodinâmico e/ou farmacocinético que suporta a dita interação e apresentam-se recomendações muito concretas de monitorização destes doentes, de modo a que eles possam retirar o máximo benefício da sua medicação com o mínimo risco. Tabela 2 – Mecanismos das interações, potenciais efeitos adversos e recomendações encontradas para cada tipo de interação3,5,9. Fármacos envolvidos e tipo de interação AINE ↔ AINE Interação Moderada AINE ↔ BEC Interação Moderada AINE ↔ IECA/ARA Interação Moderada AINE ↔ Diurético Interação Moderada Interações Recomendações A COX-1 é constitutiva e encontra-se na maior parte dos tecidos, sendo responsável pela produção de níveis basais de prostaglandinas (PGs), que se encarregam do correto funcionamento renal, da integridade da mucosa gástrica e da hemostase, entre outros. A COX-2, embora também seja constitutiva nalguns tecidos (cérebro, rim, ossos e cartilagens), expressa-se principalmente por estimulação das células que estão envolvidas na inflamação, sendo por isso uma enzima “inflamatória ou indutível”. Os AINEs, ao inibirem a atividade das COXs, podem ter efeitos adversos a vários níveis e por diversas causas. O uso concomitante de AINEs pode potenciar estes efeitos, sendo dependentes das dosagens e da duração da terapêutica de ambos os fármacos. • Efeitos gastrointestinais – inflamação, hemorragia, ulceração e/ou perfuração – devido à inibição da síntese das PGs protetoras da mucosa gástrica e devido ao potencial citotóxico da maioria dos AINEs (ao serem ácidos fracos, propiciam a entrada de iões hidrogénio nas células epiteliais, induzindo assim a sua morte celular). • Efeitos renais – alterações hidro-eletrolíticas, insuficiência renal aguda, síndroma nefrótico com nefrite aguda intersticial e/ou necrose papilar – devido à inibição da síntese das PGs renais responsáveis pela regulação da pressão e perfusão sanguínea renal, vasodilatação e excreção de potássio. • Efeitos hepáticos – hepatite, colestase, doença mista ou lesões hepáticas crónicas – devido à eliminação dos AINEs pela bílis, produção de metabolitos ativos tóxicos e sua acumulação nos hepatócitos. Não usar vários AINEs em simultâneo, uma vez que, por um lado, não existem evidências científicas que demonstrem sinergismo terapêutico e, por outro lado, aumenta o risco de efeitos indesejáveis. Os AINEs, ao inibirem as COXs, alteram o tónus vascular dependente da prostaciclina e de outras PGs vasodilatadoras, diminuindo assim os efeitos vasodilatadores dos bloqueadores da entrada de cálcio: • Potencial aumento da pressão arterial. • Quando o AINE é retirado do tratamento, pode haver o risco de hipotensão. Monitorizar regularmente a pressão arterial. Os AINEs, ao inibirem a produção de PGs renais, vão interferir na filtração glomerular e diminuir a excreção de água e sódio. Os inibidores da enzima de conversão da angiotensina, bem como os antagonistas dos recetores da angiotensina, bloqueiam o efeito de vasoconstrição arteriolar eferente mediado pela angiotensina II, contribuindo assim para o aumento da filtração glomerular. O uso concomitante de um destes dois tipos de fármacos com AINEs pode levar à deterioração da função renal, principalmente em idosos ou em doentes com a função renal comprometida, podendo provocar os seguintes efeitos: • Potencial aumento da pressão arterial. • Deterioração da função renal, podendo originar um aumento na creatinina sérica, necrose tubular e/ou glomerulonefrite. Monitorizar regularmente a pressão arterial. As PGs renais aumentam a filtração glomerular devido aos seus efeitos vasodilatadores e aumentam a excreção de água e sódio. Os AINEs, ao inibirem as COXs, diminuem a perfusão do rim – sendo o risco aumentado em doentes desidratados ou que fazem uma dieta de restrição de sódio – e provocam retenção de fluídos. Estes efeitos reduzem a efetividade dos diuréticos: • Potencial aumento da pressão arterial. • Potencial aumento do risco do desenvolvimento de insuficiência cardíaca congestiva. • Potencial desenvolvimento de hipercaliémia. • Risco de insuficiência renal aguda, normalmente reversível. Evitar a desidratação. Monitorizar regularmente a função renal. Monitorizar regularmente a pressão arterial. Monitorizar regularmente a função renal. Avaliar periodicamente o ionograma. AINE ↔ bloqueador adrenérgico tipo β Interação Moderada Os AINEs, ao inibirem a produção de PGs renais, vão diminuir o fluxo renal e a filtração glomerular, provocando a retenção de fluidos. Estes fatores interferem com o efeito anti-hipertensor de alguns grupos de fármacos, incluindo os bloqueadores adrenérgicos tipo β: • Potencial aumento da pressão arterial. Monitorizar regularmente a pressão arterial. AINE ↔ Biguanida (Metformina) Os AINEs, ao inibirem a síntese das PGs renais responsáveis pela regulação da pressão e perfusão sanguínea renal, podem provocar uma diminuição da função renal, diminuindo assim a excreção renal das biguanidas: • Potencial desenvolvimento de acidose lática, devido à acumulação de metformina Monitorizar regularmente a função renal. Interação Moderada As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs 25 Tabela 2. Mecanismos das interações, potenciais efeitos adversos e recomendações encontradas para cada tipo de interação3,5,9(cont.). Fármacos envolvidos e tipo de interação AINE ↔Sulfonilureia (Gliclazida) Interação Moderada AINE ↔ ISRS Interação Moderada AINE ↔ AAS 100 mg Interação Moderada AINE ↔ Antiagregante plaquetar Interação Moderada AINE ↔ Corticosteroide Interação Moderada AINE ↔ Bifosfonato Interação Moderada AINE ↔ Anticoagulante oral (Varfarina) Interação Moderada AINE ↔ Expetorante Interação minor Interações Recomendações A maioria dos AINEs liga-se extensivamente às proteínas plasmáticas, assim como as sulfonilureias; quando há o deslocamento das sulfonilureias pelos AINEs verifica-se um aumento da atividade destes fármacos, por aumento da sua concentração plasmática livre: • Potencial risco de hipoglicémia. Monitorizar regularmente a glicémia. Caso seja necessária a sua associação, deve ser feito o ajuste das doses de ambos os fármacos (utilizar doses menores). A serotonina promove a agregação plaquetária; com o uso de inibidores seletivos da recaptação da serotonina, as concentrações de serotonina diminuem nas plaquetas e aumentam nas sinapses nervosas, diminuindo também a sua ação na agregação plaquetária. Por sua vez, os AINEs inibem a agregação plaquetária através da inibição da produção do TxA2. Sendo assim, o uso concomitante destes dois tipos de fármacos pode provocar: •Potencial aumento do risco de hemorragias. Monitorizar clínica e laboratorialmente a eventual ocorrência de hemorragias. O ácido acetilsalicílico 100 mg inibe a agregação plaquetária através da acetilação irreversível da COX-1, impedindo a formação plaquetária do TxA2 durante toda a vida da plaqueta. Os restantes AINEs inibem a COX-1 de forma reversível, afetando também a agregação plaquetária. Para além destes efeitos sobre as plaquetas, o uso concomitante de ácido acetilsalicílico 100 mg com AINEs pode levar a uma diminuição acentuada da produção das PGs protetoras do trato gastrointestinal: • Potencial aumento do risco de hemorragias, principalmente ao nível gastrointestinal. Monitorizar clínica e laboratorialmente a eventual ocorrência de hemorragias. Os AINEs inibem a agregação plaquetar através da inibição da produção do TxA2; outros antiagregantes também inibem a agregação plaquetar através de vários mecanismos, tais como a inibição da fosfodiesterase (dipirimadol) e o bloqueio irreversível do recetor do ADP (clopidogrel): • Potencial aumento do risco de hemorragia. Monitorizar clínica e laboratorialmente a eventual ocorrência de hemorragias. Os AINEs inibem a produção das PGs protetoras da mucosa gástrica. Os corticosteroides suprimem as respostas imunitárias e inflamatórias patológicas e fisiológicas, originando assim diversas reações adversas. Ao nível gastrointestinal, os corticosteroides retardam a cicatrização de úlceras pépticas já existentes e também inibem a síntese de PGs citoprotetoras: • Potencial aumento do risco de efeitos adversos ao nível GI – inflamação, hemorragia, ulceração e/ou perfuração; este risco encontra-se aumentado em doentes com história prévia de úlcera péptica, hemorragias gastrointestinais e em doentes idosos ou debilitados. Monitorizar clínica e laboratorialmente a eventual ocorrência de hemorragias, tendo especial atenção a possíveis alterações que possam ocorrer ao nível gastrointestinal. Os AINEs inibem a produção das PGs protetoras da mucosa gástrica. Os bifosfonatos administrados por via oral podem causar irritação local da mucosa digestiva alta: • Potencial aumento do risco de efeitos adversos ao nível gastrointestinal – esofagites, úlceras esofágicas e erosões esofágicas. Educação para o doente: o comprimido deve ser deglutido inteiro, com bastante água, estando o doente sentado ou em pé mas sempre em posição vertical. O doente não se pode deitar na meia hora seguinte e o comprimido deve ser tomado após o jejum noturno, meia hora antes da ingestão da primeira refeição e bebida ou de qualquer outro medicamento ou suplemento. Os AINEs inibem a agregação plaquetária através da inibição da produção de TxA2; a varfarina atua como anticoagulante ao nível da cascata da coagulação, por antagonismo da vitamina K. A maioria dos AINEs desloca a varfarina da sua ligação às proteínas plasmáticas, aumentando assim os seus níveis no sangue, o que pode ultrapassar o limite superior da estreita margem terapêutica: • Potencial aumento do risco de hemorragias. Monitorizar os níveis de protrombina através do Tempo de Protrombina (TP) e/ou Índice Internacional Normalizado (INR), principalmente na altura da introdução, alteração da dose ou suspensão de algum destes fármacos. Os AINEs inibem a produção das PGs protetoras da mucosa gástrica e os mucolíticos têm a capacidade de destruir a barreira da mucosa gástrica: • Potencial aumento de danos gastrointestinais (inflamação, hemorragia, ulceração e/ou perfuração) em doentes mais suscetíveis de desenvolver úlceras gastroduodenais. Educação para o doente: avisar o doente para separar o horário da toma de ambos os tipos de fármacos ou então reduzir a dose dos AINEs. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 26 As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs Discussão Após a análise dos dados relativos à medicação dos 29 doentes idosos incluídos no estudo, podemos verificar que cerca de um quarto da nossa amostra utilizava dois ou mais AINEs por dia, aumentando deste modo a probabilidade de ocorrência de interações com os restantes medicamentos. Apesar de ser uma amostra reduzida, este estudo permitiu duas coisas: por um lado, identificou situações muito prevalentes que podem constituir achados (findings) num serviço de revisão da medicação, ou situações a verificar se chegaram a manifestar-se num serviço de acompanhamento farmacoterapêutico; por outro lado, este estudo salienta a necessidade de uma colaboração entre duas áreas de conhecimento dentro das ciências farmacêuticas: a da farmacologia e farmacoterapia e a dos cuidados farmacêuticos. Juntando estas ideias podem chegar a produzir-se normas de orientação úteis para a prática diária, baseadas em conhecimentos atualizados de farmacodinamia e farmacocinética. Foram encontradas 125 interações entre os diferentes AINEs e os restantes fármacos. Destas, 2 foram consideradas minor e 123 foram classificadas como moderadas, o que significa que a grande maioria das interações pode ter alguma influência sobre os resultados pretendidos com o uso da medicação em cada doente. Este estudo demonstra que há interações, ainda que conhecidas há muito tempo e frequentemente documentadas na literatura, que chegam a níveis de prevalência que merecem a atenção dos farmacêuticos quando prestam serviços clínicos. A grande maioria das interações ocorre entre os AINEs e os grupos de fármacos mais utilizados em doenças relacionadas com o aparelho cardiovascular, como por exemplo hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, por serem também doenças com grande incidência na população idosa. Desta forma, as principais interações ocorrem com os diuréticos (17,6%), com os antagonistas dos recetores da angiotensina (14,4%), com os bloqueadores da entrada do cálcio (12,0%) e com os inibidores da enzima de conversão da angiotensina (8,8%). Também se verifica uma grande prevalência de interações quando dois ou mais AINEs são utilizados num mesmo indivíduo (12,8%), para além de que não existem evidências científicas que demonstrem benefícios na sua utilização simultânea. Trabalhos como o presente, associando a farmacologia e os cuidados farmacêuticos, permitem identificar também soluções para situações de uso inapropriado da medicação. Por exemplo, numa meta-análise em rede recente o naproxeno aparece como sendo o AINE associado a um menor dano cardiovascular, ao invés do diclofenac e do ibuprofeno, que aumentam em mais de 30% o risco de ocorrência de eventos cardiovasculares10. Curiosamente, o diclofenac e o ibuprofeno são os dois AINEs mais prescritos na amostra de idosos estudada, onde todos fazem prevenção cardiovascular. Por outro lado, encontrou-se que, para as interações mais prevalentes nos utilizadores de AINEs, a intervenção mais apropriada é um acompanhamento farmacoterapêutico na maioria das ocasiões, e não a simples modificação da medicação utilizada pelo doente. O farmacêutico deve pensar sempre que a medicação é prescrita porque é necessária para o doente. O facto de existir uma interação não deve levar a que o doente fique com algum dos seus problemas de saúde sem tratamento, coisa que pode acontecer se a interação não for adequadamente gerida. Monitorizar o efeito de um dos medicamentos ou monitorizar o aparecimento de efeitos indesejados pode ser a estratégia mais apropriada perante uma interação potencial, justificando-se ainda mais o acompanhamento farmacoterapêutico. Conclusão O aparecimento de interações medicamentosas com significado clinico é muito frequente em adultos idosos que utilizam AINEs. Muitas das vezes, a melhor gestão destas interações não passa tanto pela retirada de um dos fármacos mas pelo acompanhamento de algum indicador da manifestação dessa interação. O farmacêutico pode desenvolver um papel relevante em serviços como a revisão da medicação, para identificar estas interações potenciais, ou no acompanhamento farmacoterapêutico, As bases farmacológicas dos cuidados farmacêuticos: o caso dos AINEs na gestão destas situações quando devidamente identificadas. Salienta-se a importância da interação positiva com a Medicina Geral e Familiar para a segurança e a eficiência das terapêuticas. Referências bibliográficas 1. Portugal, Instituto Nacional de Estatística, I.P. – Censos 2011 Resultados Definitivos - Portugal. Lisboa: Instituto Nacional de Estatística, I.P. 2011. ISBN 978-989-25-0181-9. 2. Midlov, Patrick; Eriksson, Tommy; Kragh, Annika – Drug-Related Problems in the Elderly. 1ª Ed. UK: Springer Science and Business Media B. V., 2009. ISBN 978-90-481-2445-9. 3. Guimarães, Serafim; Moura, Daniel; Soares da Silva, Patrício – Terapêutica medicamentosa e suas bases farmacológicas. 5ª Ed. Porto: Porto Editora, 2006. ISBN 972-0-06029-8. 4. California State Board of Pharmacy – Drug Therapy Considerations in Older Adults. Health Notes, 2003, Vol. 1, Nº 7. Califórnia. 27 5. Álamo González, Cecilio – Guia Farmacológico de Analgésicos. Revisfarma – Edições Médicas Lda., 2007. ISBN 978-989-8036-09-4. 6. Tannenbaum, Hyman et al. – An evidence-based approach to prescribing NSAIDs in musculoskeletal disease: a Canadian consensus. Can Med Assoc. J 1996; 155:77-88. 7. Castel-Branco, M.M. et al. – Necessidades reais de implementação de novos serviços farmacêuticos centrados no doente. Acta Farmacêutica Portuguesa, 2011; 1 (2) 15-22. ISSN 2182-3340. 8. Drugs.com – Drug Information Online. [Acedido em Fevereiro e Março de 2012] Disponível na Internet: http://www.drugs.com 9. INFARMED, Portugal – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. / Ministério da Saúde. Infomed. Disponível na Internet: http://www.infarmed.pt/infomed/inicio. php 10. Trelle, S. et al. – Cardiovascular safety of non-steroidal anti-inflammatory drugs: network metaanalysis. Br Med J. 2011; 342: c7086 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches Mateus, Vanessa1,2, Faisca, Pedro3, Mota-Filipe, Helder2, Sepodes, Bruno2, Pinto, Rui2 (1) Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa - IPL (2) Pharmacology and Translational Research Group, iMED – FACULDADE DE FARMÁCIA. UNIVERSIDADE DE LISBOA (3) Departamento de Anatomia Patologica, Faculdade de Medicina Veterinária - ULHT Autor correspondente: Rui Pinto – E-mail:[email protected] Abstract IBD is a gastro-intestinal disorder marked with chronic inflammation of intestinal epithelium, damaging mucosal tissue and manifests into several intestinal and extra-intestinal symptoms. Currently used medical therapy is able to induce and maintain the patient in remission, however no modifies or reverses the underlying pathogenic mechanism. The research of other medical approaches is crucial to the treatment of IBD and, for this, it´s important to use animal models to mimic the characteristics of disease in real life. The aim of the study is to develop an animal model of TNBS-induced colitis to test new pharmacological approaches. TNBS was instilled intracolonic single dose as described by Morris et al. It was administered 2,5% TNBS in 50% ethanol through a catheter carefully inserted into the colon. Mice were kept in a Tredelenburg position to avoid reflux. On day 4 and 7, the animals were sacrificed by cervical dislocation. The induction was confirmed based on clinical symptoms/signs, ALP determination and histopathological analysis. At day 4, TNBS group presented a decreased body weight and an alteration of intestinal motility characterized by diarrhea, severe edema of the anus and moderate morbidity, while in the two control groups weren’t identified any alteration on the clinical symptoms/signs with an increase of the body weight. TNBS group presented the highest concentrations of ALP comparing with control groups. The histopathology analysis revealed severe necrosis of the mucosa with widespread necrosis of the intestinal glands. Severe hemorrhagic and purulent exsudates were observed in the submucosa, muscular and serosa. TNBS group presented clinical symptoms/ signs and histopathological features compatible with a correct induction of UC. The peak of manifestations became maximal at day 4 after induction. This study allows concluding that it’s possible to develop a TNBSinduced colitis 4 days after instillation. Keywords: IBD, TNBS-induced colitis, Inflammation, Metabolic pathways, Pharmacological targets Resumo DII é um distúrbio gastro-intestinal caracterizado por inflamação crónica do epitélio intestinal com dano associado da mucosa, manifestando-se a partir de sintomas intestinais e extra-intestinais. A terapia médica utilizada é capaz de induzir e manter o doente em remissão, mas não modifica ou inverte o mecanismo patogénico subjacente. A procura de outras abordagens terapêuticas é crucial para o tratamento de DII e, para tal, é importante o uso de modelos animais para mimetizar as características da doença. O objetivo do estudo é desenvolver um modelo animal de colite induzida por TNBS de modo a testar novas abordagens 30 Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches farmacológicas. O TNBS foi instilado por via intracolónica em dose única como descrito por Morris et al. Foi administrado 2,5% de TNBS em 50% de etanol através de um cateter inserido no cólon. Os animais foram mantidos em posição Tredelenburg para evitar o refluxo. Nos dias 4 e 7, os animais foram sacrificados por deslocamento cervical. A indução de colite foi caracterizada com base nos sintomas/sinais clínicos, determinação de ALP e análise histopatológica. No dia 4, o grupo TNBS apresentou uma diminuição do peso corporal e uma alteração da motilidade intestinal caracterizada por diarreia, edema severo do ânus e morbilidade moderada, enquanto nos dois grupos controlo não foram identificados quaisquer alterações nos sintomas/ sinais clínicos com um aumento do peso corporal. O grupo TNBS apresentou as maiores concentrações de ALP, comparando com os grupos controlo. A análise histopatológica demonstrou necrose grave da mucosa com necrose generalizada das glândulas intestinais. Foi observado exsudato hemorrágico e purulento ao nível da submucosa, muscular e serosa. O grupo TNBS apresentou sintomas / sinais clínicos e características histopatológicas compatíveis com uma correta indução de colite. O pico das manifestações tornou-se máximo ao 4º dia após a indução. Este estudo permite concluir que é possível desenvolver colite induzida por TNBS 4 dias após a instilação. Palavras-chave: DII, Colite induzida por TNBS, Inflamação, Vias metabólicas, Alvos farmacológicos. Introdution Inflammatory bowel diseases (IBD), which include Crohn’s disease (CD) and ulcerative colitis (UC), are chronic inflammatory diseases of the gastrointestinal tract, characterized by chronic recurrent ulceration of the bowels1. IBD affects between 7–10% of people worldwide, mainly of Caucasian descent2,3, promoting significant gastrointestinal symptoms, like bloody diarrhea, abdominal pain, anemia, weight loss and other extra-intestinal manifestations1. Interplay between several factors, like genetic predisposition, environmental trigger and aberrant immune reaction seem to contribute to initiation and progression of IBD4,5. Pathogenesis of IBD is not fully understood, but two broad hypotheses have arisen regarding its fundamental nature. The first contends that primary dysregulation of the mucosal immune system leads to excessive immunologic responses to normal microflora. The second suggests that changes in the composition of gut microflora and/or deranged epithelial barrier function elicit pathologic responses from the normal mucosal immune system. Currently, it’s well accepted that IBD is indeed characterized by an abnormal mucosal immune response but that microbial factors and epithelial cell abnormalities can facilitate this response6. Currently used medical therapy of IBD consists of salicylates, corticosteroids, immunosuppressants and immunomodulators. These drug treatments aim to induce and maintain the patient in remission and ameliorate the disease’s secondary effects, rather than modifying or reversing the underlying pathogenic mechanism1,7. Second-generation agents have been developed with improved drug delivery, increased efficacy and decreased side effects frequency1. However, their use may result in severe side effects and complications, such as an increased rate of malignancies or infectious diseases7. The research of other medical approaches is crucial to the treatment of IBD and, for this, it is important to use animal models to mimic the characteristics of disease in real life8. Animal models are widely used to study pathogenesis of human diseases and to test new therapeutics9. Most of these models are based either on chemical induction, immune cell transfer or gene targeting4. Trinitrobenzene sulfonic acid (TNBS) promotes a chemical induction of colitis by intrarectal instillation of the haptenating substances TNBS dissolved in ethanol resulting in acute inflammation Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches with ulcers in rat and mouse10. The acute transmural damage became maximal from 3 days to 1 week after instillation, and resolved within 2 weeks8,10-12. The protocols of the TNBS-induced IBD model are not standardized, such as the dosage of TNBS, the depth of TNBS administration, and the time point for model evaluation. Therefore, it knows that the effects of TNBS are dose dependent8. Thus, the aim of the study is to develop an animal model of TNBS-induced colitis to test new pharmacological approaches. 31 was administered and mice were kept for 1 min in a Tredelenburg position to avoid reflux13,14. On day 4 and 7, the animals were sacrificed by cervical dislocation, however a cardiac puncture was made immediately before in order to obtain samples for determination of serum alkaline phosphatase (ALP). The abdomen was opened by a midline incision. The small intestine and colon were removed, freed from surrounding tissues and washed with phosphate buffered saline. The results between day 4 and 7 were subsequently compared. Material and methods Materials TNBS 5% aqueous solution was purchased from Sigma Chemical Co. Ketamine (Imalgene® 1000) was purchased from Merial. Xilazine (Rompun® 2%) was purchased from Bayer. ADVIA® kit was purchased from Siemens Healthcare Diagnostics. Animals Male CD-1 mice, 30-40 g in weight and 5-6 weeks of age, were housed in standard polypropylene cages with ad libitum access to food and water in the Faculty of Pharmacy Central Animal Facility in the University of Lisbon. Experimental groups Three groups of mice were used in the study, which received an intracolonic administration of different preparations. The first group (n = 6) received 100 µl of 2.5% of TNBS in 50% ethanol (TNBS group) for induction of TNBS-colitis. The second group (n = 3) received 100µl of 50% ethanol (ethanol group). The third group (n = 2) received 100µl of saline solution (sham group). It was used two control animals groups, namely ethanol and sham group. Induction of TNBS-colitis TNBS was instilled intracolonic single dose as described by Morris et al (1989). Briefly, mice were left unfed during 24h. In the induction day, mice were anesthetized with Ketamine 100mg/Kg + Xilazine 10mg/Kg IP and a catheter was carefully inserted into the colon until the tip was 4 cm proximal to the anus. Then, 2,5% TNBS in 50% ethanol Clinical symptoms/signs The animals were observed daily, monitoring body weight, morbidity, stool consistency and anus appearance. Biochemical Marker ALP in the sample catalyzes the hydrolysis of colorless p-nitrophenyl phosphate to give p-nitrophenol and inorganic phosphate. At the pH of the assay (10.3 e 10.4), the p-nitrophenol is in the yellow phenoxide form. The rate of absorbance increase at 410/478 nm is directly proportional to the ALP activity in the sample. Optimized concentrations of zinc and magnesium ions are present to activate the ALP in the sample. The measurement was made by an automatic analyzer: ADVIA 1200. Histopathological analysis Histopathology was carried out by an independent histopathologist of the Faculty of Veterinary Medicine of Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. The intestine samples were fixed in 10% neutral buffered formalin, processed routinely for paraffin embedding, sectioned at 5 µm, and stained with hematoxylin and eosin. The morphological features of small intestine and colon were evaluated in the same conditions for all studied groups (TNBS group, ethanol group and sham group), according the number of days after induction and the localization of sections. It was evaluated at day 4 and 7, with several sections of small intestine due to its length and with three sections of colon (proximal to the cecum, in the middle of the colon and distal to the rectum). Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 32 Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches Microscopic assessment of colitis severity The assessment of colitis severity was based on previously described parameters15: a) epithelial damage (0 = none, 1 = minimal loss of goblet cells, 2 = extensive loss of goblet cells, 3 = minimal loss of crypts and extensive loss of goblet cells, and 4 = extensive loss of crypts); b) infiltration (0 = none, 1 = infiltrate around crypt bases, 2 = infiltrate in muscularis mucosa, 3 = extensive infiltrate in muscularis mucosa with edema, and 4 = infiltration of submucosa). The histological activity index (HAI) was calculated as the sum of the epithelium and infiltration score, resulting in the total HAI score ranging from 0 (unaffected) to 8 (severe colitis). At day 2, there were 2 deaths in the TNBS group. The macroscopic analysis showed a severe obstruction to the colon filled with large fecal pellets. Severe swelling of the intestinal wall, inflammation with presence of generalized strokes. The lesions were apparently consistent with toxic megacolon. Biochemical Marker ALP was identified in all experimental groups, but in different concentrations depending of the group was evaluated. TNBS group presented the highest values around 32.9 ± 5.5 U/L of serum concentration comparing with the other two groups. Ethanol and sham groups presented decreased values but quite similar around 10.8±1.5 U/L and 8.5±0 U/L, respectively. Results Monitoring of clinical symptoms/signs Animals were observed daily for morbidity, stool consistency and anus appearance. At day 1, TNBS group presented an alteration of intestinal motility characterized by diarrhea or soft stools, severe edema of the anus and moderate morbidity. Ethanol group showed the same clinical signs, but lightly. At day 4 and 7, TNBS group kept the observed clinical signs, while in the ethanol group wasn’t identified any alteration. Sham group remained without any alterations during the study. Regarding body weight, ethanol and sham groups increased the weight of mice during the study, but TNBS group showed a decreased body weight at day 4 (Table 1). Table 1 – Average of body weight during the study. AVERAGE OF BODY WEIGHT ± SD (g) TNBS GROUP (n=6) DAY 0 DAY 4 DAY 7 34.3 ± 4.7 29 ± 0 43.3 ± 4.6 ETHANOL GROUP 33.6 ± 1.6 (n=3) 44 ± 0 40.5 ± 2.5 SHAM GROUP (n=2) 43 ± 0 47 ± 0 37 ± 2 Assessment of small intestine lesions The small intestine was analyzed and it showed similar histological results among evaluated groups and the number of days after induction. Apparently, no macroscopic lesions were observed, but microscopically, a slight lymphoplasmacytic infiltrate in the lamina propria was identified and it was similar to all studied groups independently of the day after induction (Figure 1). Figure 1. Histopathological features of small intestine sections (100x) from (a) TNBS group, (b) Ethanol group, (c) Sham group. Assessment of colitis severity The colon was analyzed and it showed different histological results depending of which group was evaluated and the number of days after induction. Regarding macroscopic evaluation of colon, it was observed hemorrhagic focus and edema. Microscopically, the TNBS group presented severe lesions at day 2 and day 4, whereas no substantial Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches morphological changes were detected at day 7 (Figure 2). The histopathology analysis revealed severe necrosis of the mucosa with widespread necrosis of the intestinal glands. The remaining intestinal glands were ectasic with squamous metaplasia. Severe hemorrhagic and purulent exsudates were observed in the submucosa, muscular and serosa. The assessment of colitis severity was based on two main parameters namely (a) epithelial damage and (b) infiltration. At day 2 and 4, it was observed the higher score (HAI of 8 – severe colitis) for all samples evaluated on the TNBS group comparatively to the samples of ethanol and sham group, which it was observed no lesions (HAI of 0-unaffected). Figure 2. Morphologic changes of colon from TNBS group in day (a) 2, (b) 4 and (c) 7. In the ethanol and sham group, no histological alterations were observed in the colon (HAI of 0 – unaffected), independently of the day after induction (Figure 3). Figure 3. Histopathological features of colon (40x) from (a) Ethanol group and (b) Sham group, in day 4 and 7. 33 Discussion The pathogenesis of IBD is similar between human disease and TNBS-induced colitis16, and this is the reason why so many research groups are now using this model to investigate novel approaches for the treatment of IBD. Regarding monitoring of clinical symptoms/ signs, TNBS group presented an alteration of intestinal motility characterized by diarrhea or soft stools, severe edema of the anus and moderate morbidity, while ethanol and sham groups remained without any alterations. These clinical manifestations in the TNBS group were expected and compatible with a correct induction of UC15,16. The manifestations became maximal at day 4 after induction and resolved at day 7. The literature refers that manifestations became maximal from 3 days to 1 week after instillation, and resolved within 2 weeks8,10-12, depending of the dosage of TNBS, the depth of TNBS administration, and the time point for model evaluation8. The peak of clinical symptoms/signs is also confirmed by the decreased body weight of TNBS group at day 4, comparing with ethanol and sham groups that increased its body weight during the study. ALP is regularly measured in clinical practice and its changes in serum levels are observed in a number of clinical conditions of organs where it can be found like bone, liver, bowel and kidney17. Therefore, ALP was measured in all experimental groups and TNBS group presented the highest values around 32.9 ± 5.5 U/L of serum concentration comparing with ethanol and sham groups (10.8±1.5 U/L and 8.5±0 U/L, respectively). The low concentrations of APL in both control groups (ethanol and sham group) suggest that the origin of increased APL in the TNBS group is due to intestinal lesion inducted in this study. These our results are consistent with other studies, which observed a higher AP activity in the colon from colitic animals compared to the non-colitic animals from acute intestinal inflammation model induced by TNBS18,19. Intestinal ALP has been considered a phenotypic marker of differentiation, which is up-regulated in experimental chronic diarrhea and IBD19,20. It’s a small intestinal Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 34 Development of TNBS-induced colitis: animal model to test new pharmacological approaches brush-border enzyme that functions as a gut mucosal defense factor, providing resistance to bacterial invasion when the intestine is subject to a certain lesion like local or distant ischemic injury21. Based on these results, administration of exogenous intestinal ALP enzyme to patients with the active form of IBD may be a therapeutic option22. The histopathological analysis showed a slight lymphocytic inflammatory infiltrate in the lamina propria similar with all experimental groups. These lesions are consistent with a sub-acute to chronic process, suggesting no relationship with this study. Perhaps, the reason is that mice are not Specific Pathogen Free, even because there are similar for all experimental groups. These should therefore be devalued. The morphological features of colon in the TNBS group were evaluated at day 2, 4 and 7. The results revealed severe lesions of tissue between day 2 and day 4, whereas it was detected no substantial morphological changes at day 7. The peak of clinical symptoms/signs is also confirmed by the severe lesions at day 4. No histological alterations were observed in the colon from ethanol group and sham group. The histopathology analysis revealed severe necrosis of the mucosa with widespread necrosis of the intestinal glands. The remaining intestinal glands were ectasic with squamous metaplasia. Severe hemorrhagic and purulent exsudates were observed in the submucosa, muscular and serosa. These lesions are consistent with a correct induction of UC by TNBS15,16. Conclusion This study allows concluding that it’s possible to develop a TNBS-induced colitis 4 days after instillation. This model will be interesting to clarify the inflammatory mechanisms associated with IBD in order to propose other pharmacological modulation of the inflammatory response than the currently known, with the main objective to facilitate a more effective and selective treatment for this disease. References 1. Pithadia A, Jain S. Treatment of inflammatory bowel disease (IBD). Pharmacological Reports. 2011; 63:629-42 2. Hanauer S. Inflammatory bowel disease: epidemiology, pathogenesis, and therapeutic opportunities. Inflamm Bowel Dis. 2006; 12(1):3–9 3. Spiegel B. The burden of IBS: looking at metrics. Curr Gastroenterol Rep. 2009; 11:265–9 4. Wirtz S, Neurath M. Mouse models of inflammatory bowel disease. Adv Drug Del Rev. 2007; 59:1073–83 5. Mayer L. Evolving paradigms in the pathogenesis of IBD. J Gastroenterol. 2010; 45:9–16 6. Strober W. Fuss I, Mannon P. The fundamental basis of inflammatory bowel disease. J Clin Invest. 2007; 117:514–21 in doi:10.1172/JCI30587 7. 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Fonseca, Bruno M.1,2, Costa, Mariana A.1,2, Almada, Marta1,2, Soares, Ana3, Correia-da-Silva, Georgina1,2, Teixeira, Natércia A.1,2 (1) Departamento de Ciências Biológicas, Laboratório de Bioquímica da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (2) Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto (3) Serviços Farmacêuticos, Centro Hospitalar Tâmega e Sousa – Unidade S. Gonçalo Autor correspondente: Natércia A. Teixeira Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto – Ciências Biológicas Rua de Jorge Viterbo Ferreira n. º 228 – 4050-313 Porto – Portugal Telefone: +351 222 428 000 – Fax: +351 226 093 390 – E-mail: [email protected] Resumo A utilização terapêutica da Cannabis sativa ou seus derivados é conhecida há muitos anos, no entanto, o estudo das suas propriedades despontou recentemente com a descoberta de um sistema canabinóide endógeno (ECS). O ECS compreende os compostos endógenos similares ao tetrahidrocanabinol (endocanabinóides), os recetores canabinóides (CB1 e CB2) e as enzimas envolvidas no seu metabolismo. Desde a descoberta do ECS, a comunidade científica focou-se na investigação do seu potencial clínico com resultados encorajadores. Em alguns países, os derivados da cannabis constituem uma opção farmacológica na estimulação do apetite e tratamento da dor. O primeiro medicamento baseado no ECS, o rimonabant (um antagonista CB1), foi aprovado para o tratamento da obesidade associada a outros fatores de risco, no entanto foi retirado por questões de segurança. Atualmente, e baseadas nos estudos pré-clínicos e clínicos, existem várias evidências do seu interesse clínico na modulação de diversas condições fisiopatológicas. Neste artigo discutimos o papel potencial do sistema (endo)canabinóide na terapêutica e as recentes estratégias desenvolvidas na modulação do sistema. Palavras-chave: Endocanabinóides, Recetores canabinóides, Farmacoterapia Abstract Although the medicinal use of Cannabis sativa derivatives is well known since antiquity, the study of their properties expanded recently with the discovery of an endogenous cannabinoid system, which comprises the endogenous cannabis-like ligands (endocannabinoids), the cannabinoid receptors (CB1 and CB2) and the enzymes involved in their metabolism. Since the discovery of the endocannabinoid system (ECS), the scientific community focused on research of its clinical use and achieved important findings during the last decade. In some countries, cannabis derivatives are a pharmacological option for appetite stimulation and pain treatment. However, the first ECS-based drug rimonabant (a CB1 antagonist), approved for the treatment obesity with associated risk factors, was withdrawn due to safety concerns. Nowadays, based on the growing evidences resulting from preclinical and clinical studies of ECS modulators, these drugs are currently pointed out as novel therapeutic approaches for several pathophysiological conditions. Here, we review the potential role of (endo)cannabinoid system in therapeutics and the recent designed strategies for the development of drugs that target this system. Keywords: Endocannabinoids, Cannabinoid receptors, Pharmacotherapy 38 O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica Introdução As primeiras evidências da utilização de Cannabis sativa com fins medicinais datam do terceiro milénio a.C., na Índia. Esta planta era utilizada devido às suas propriedades analgésicas, antieméticas e anti-convulsivantes1. No entanto, a diversidade de substâncias ativas da cannabis e a natureza lipídica dos fitocanabinóides dificultou significativamente a sua caracterização. Assim, o isolamento do seu principal composto ativo, ∆9-tetrahidrocanabinol (THC), ocorreu apenas em 19642, pelo que o uso terapêutico da cannabis resumia-se à utilização de partes da planta, resultando numa grande variabilidade na dosagem dos seus princípios ativos e concomitantemente nos seus efeitos terapêuticos. Desta forma, o uso terapêutico da cannabis foi preterido relativamente a preparações farmacêuticas com composição definida que permitiam um maior controlo dos seus efeitos terapêuticos e secundários. Além do mais, a utilização de Cannabis sativa com fins recreativos e o conceito pejorativo que lhe é inerente foram determinantes para que a sua utilização médica fosse “rejeitada” pela sociedade, contribuindo para o atraso na investigação das suas propriedades farmacológicas. Contudo, a descoberta do Sistema Endocanabinóide (ECS) e a consolidação do seu papel fulcral na homeostasia de diversos sistemas biológicos contribuíram para a mudança de mentalidades e para a aceitação do THC e análogos e outros fármacos que modulam o sinal canabinóide como novas estratégias terapêuticas a explorar3. De facto, embora existam referências com vários séculos à utilização de THC na terapêutica, os últimos anos têm sido férteis no estudo das suas potencialidades clínicas. O número de referências indexadas na base de dados PubMed praticamente triplicou na última década demonstrando o interesse do seu estudo para a comunidade científica (Figura 1). Sistema endocanabinóide: A descoberta Apesar do longo historial do uso da cannabis para fins recreativos e medicinais, apenas recentemente se começou a compreender os mecanismos de ação que medeiam os efeitos amplamente conhecidos desta planta. Figura 1. Número de publicações indexadas ao Pubmed “cannabinoids in therapeutics” nos anos de 1970 a 2012. O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica Dada a natureza hidrofóbica do THC e a sua caracterização tardia, considerava-se que este canabinóide exercia os seus efeitos por interação com a membrana celular. Esta linha de pensamento persistiu durante anos sem se questionar a existência de recetores específicos ou de canabinóides endógenos. Contudo, este impasse foi ultrapassado com o desenvolvimento de análogos do THC que permitiram identificar possíveis locais de ação dos canabinóides a nível cerebral. Assim, em 1988, foi identificado um recetor que era ativado pelo THC e seus análogos, o recetor canabinóide 1 (CB1)4. O CB1 é principalmente expresso a nível do sistema nervoso central e medeia os efeitos psicotrópicos dos canabinóides. Após a caracterização molecular deste recetor, seguiu-se a descoberta do primeiro endocanabinóide (ligando endógeno capaz de ativar os recetores canabinóides), a anandamida (AEA)5. Etimologicamente, o nome anandamida provém da palavra sânscrita “ananda”, que significa prazer, e da natureza do seu grupo químico, uma amida. Posteriormente, em 1993, foi identificado o segundo recetor canabinóide, o CB26, localizado principalmente em órgãos e tecidos periféricos. Nos anos seguintes, outros endocanabinóides foram identificados tais como o 2-araquidonilglicerol (2-AG), a virodamina, a N-araquidonildopamina e o 2-araquidonilgliceril éter. Estas moléculas variam em termos de eficácia e afinidade para os recetores CB1 e CB2, sendo que algumas delas são capazes de ativar apenas um destes recetores7. Os endocanabinóides são sintetizados a partir de precursores membranares e apenas sob estímulo, não se encontrando armazenados em vesículas como a maioria dos neurotransmissores8. A síntese de AEA é depois mediada por uma fosfolipase específica (“arachidonoylphosphatidylethanolamine-phospholipase D”; NAPE-PLD) enquanto o 2-AG é sintetizado através de uma outra lípase (“diacylglycerol lípase”; DAGL). Uma vez sintetizados, os endocanabinóides são rapidamente degradados. A AEA é degradada por uma hidrólase das amidas dos ácidos gordos (“fatty acid amide hydrolase”; FAAH) enquanto o 2-AG é degradado pela FAAH ou por uma lípase de gliceróis (“monoacylglycerol lipase”; MAGL). 39 Assim, o Sistema Endocanabinóide (Figura 2) é constituído pelos recetores canabinóides, pelos endocanabinóides, pelas enzimas envolvidas no seu metabolismo e pelo respetivo transportador membranar (“Endocannabinoid membrane transporter”; EMT)7. Figura 2. Representação esquemática do Sistema Endocanabinóide. A anandamida (AEA) é sintetizada pelas enzimas N-acetiltransferase (NAT) e uma fosfolipase específica (“arachidonoylphosphatidylethanolaminephospholipase D”; NAPE-PLD). O 2-araquidonoilglicerol (2-AG) é sintetizado através de uma outra lípase (“diacylglycerol lípase”; DAGL). Uma vez sintetizados a AEA e o 2-AG ligam-se ao transportador membranar dos endocanabinóides (EMT) ficando disponíveis para atuar nos recetores canabinóides. O transportador remove rapidamente estes compostos sendo a AEA degradada por uma hidrólase das amidas dos ácidos gordos (“fatty acid amide hydrolase”; FAAH) resultando ácido araquidónico (AA) e etanolamina (EtNH2), enquanto o 2-AG é degradado pela FAAH ou por uma lípase de gliceróis (“monoacylglycerol lípase”; MAGL) a AA e glicerol. Um mecanismo alternativo é mediado pela ciclooxigenase-2 (COX-2) que converte a AEA a prostaglandina etanolaminas. Quando ativados, os recetores canabinóides interferem com várias vias de sinalização para exercerem os seus efeitos nos diferentes tecidos e órgãos9. Nos neurónios, a estimulação pré-sináptica do CB1 inibe a libertação de neurotransmissores10. No fígado, onde a expressão do CB1 é normalmente baixa, Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 40 O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica a sua estimulação conduz a um aumento de acetil-Coenzima A carboxilase e de ácidos gordos e consequentemente a um aumento da lipogénese11. Já a ativação do recetor CB2, maioritariamente expresso nas células do sistema imunitário, parece mediar efeitos imunossupressores12. Existem vários outros processos patofisiológicos onde a sinalização canabinóide está envolvida, nomeadamente na memória, dor, inflamação, apetite, reprodução e sistema cardiovascular (Figura 3)13-17. Assim, a modulação dos recetores canabinóides surge como uma abordagem potencialmente relevante numa perspetiva terapêutica. Figura 3. O Sistema Endocanabinóide encontra-se envolvido em diversos processos fisiológicos. Particularmente relevantes e mais estudado está o seu envolvimento na dor, balanço energético, apetite, homeostase, fertilidade, sistema endócrino e imune. De facto, o envolvimento do sistema endocanabinóide em vários processos fisiológicos e patológicos despertou o interesse de várias empresas farmacêuticas para a investigação e desenvolvimento de novas moléculas que tenham como alvo os diferentes membros deste sistema e portanto que modulem o sinal (endo)canabinóide. THC e seus análogos na terapêutica Como já foi referido, as propriedades medicinais da cannabis, que são conhecidas desde a an- tiguidade, provêm principalmente do seu teor em THC. Este canabinóide tem como principais efeitos com interesse clínico a ação analgésica18, a diminuição da pressão intraocular19, a estimulação do apetite15, a atividade ansiolítica20 e antiemética21, efeitos que resultam da ativação do recetor CB1. No entanto, os efeitos psicotrópicos, a potencial dependência e efeitos adversos (sedação, disfunção cognitiva, taquicardia, hipotensão postural, ataxia, infertilidade, imunossupressão e xerotomia22-23), impuseram restrições ao seu uso clínico. Apesar de as propriedades da cannabis na diminuição da pressão intraocular serem bem conhecidas, o consumo de marijuana não está recomendado para o tratamento do glaucoma19. De facto, a curta duração de ação da marijuana (apenas 3-4 horas), que implica um consumo frequente, e os efeitos no comportamento, que comprometem a capacidade cognitiva e mental, têm sido argumentos frequentes contra a sua utilização. Outros aspetos relevantes são os efeitos a nível do sistema nervoso central e lesões pulmonares devido à diversidade de compostos existentes na marijuana. Por outro lado, a sua utilização sistémica reduz a pressão sanguínea que pode ser prejudicial para o nervo ótico24. Com a identificação dos recetores canabinóides a administração local poderá vir a diminuir os efeitos secundários. Os primeiros fármacos desenvolvidos para modular o sistema endocanabinóide foram análogos do THC com apropriada estabilidade metabólica, biodisponibilidade oral e reduzidos efeitos adversos (Tabela 1). A utilização do THC e análogos na prática clínica foi reintroduzida na década de 80, particularmente nos Estados Unidos e Canadá. Inicialmente, um derivado sintético do THC, o dronabinol, foi utilizado em doentes oncológicos para estimulação do apetite e redução das náuseas e vómitos secundários à quimioterapia. O dronabinol tem como nome comercial Marinol® e é distribuído sob a forma de cápsulas pela Abbott Laboratories. Atualmente, a sua utilização abrange também os doentes com SIDA, e é usado como estimulante do apetite. Com interesse terapêutico muito similar ao dronabinol, a nabilona (outro derivado sintético do THC), é comercializada O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica 41 Tabela 1. Utilização terapêutica dos medicamentos baseados na modulação do sistema endocanabinóide. Tabela 1 – Utilização terapêutica dos medicamentos baseados na modulação do sistema endocanabinóide. Nome comercial Denominação Comum Internacional Uso Terapêutico 1Marinol® Dronabinol Estimulação do apetite e antiemético em doentes oncológicos e com SIDA 1Cesamet® Nabilona Estimulação do apetite e antiemético em doentes oncológicos e com SIDA THC e Canabidiol Tratamento da rigidez muscular e dor neuropática em doentes com Esclerose Múltipla; Analgésico em doentes oncológicos terminais Rimonabant Redução do apetite; Tratamento da obesidade Sativex® 2Acomplia ® 1 Não é comercializado em Portugal. 2 Autorização de comercialização suspensa em Outubro de 2008. pela Valeant Pharmaceuticals International sob a designação de Cesamet®. Embora o Cesamet® seja usado há vários anos no Reino Unido e Canadá sem historial de abuso ou intoxicação, a sua utilização nos Estados Unidos continua proibida dada a sua classificação como estupefaciente. Em Portugal quer o Marinol®, quer o Cesamet® não são comercializados. Para além do THC, a cannabis tem elevados teores de outros canabinóides25. Entre eles, o canabidiol (CBD) é o mais abundante e extensivamente estudado, embora o seu mecanismo de ação ainda não esteja totalmente compreendido. Apesar de não apresentar afinidade para os recetores canabinóides, o CBD parece bloquear a recaptação e degradação da AEA. Além disso, o CBD parece possuir propriedades agonistas dos recetores da serotonina26. Adicionalmente, este canabinóide é desprovido de atividade psicomimética, atenuando inclusive os efeitos psicomiméticos e ansiogénicos associados às doses elevadas de THC. A constatação de que a associação com o CBD melhorava o valor terapêutico do THC levou a que, em 2005, fosse aprovado no Canadá um outro medicamento derivado dos canabinóides, o Sativex®. O Sativex® inclui na sua fórmula THC e CBD em quantidades similares e está disponível na forma de spray, o que permite uma absorção a nível da mucosa oral e concomitantemente um efeito mais rápido. O Sativex® é utilizado para o tratamento da rigidez muscular e dor neuropática em doentes com Esclerose Múltipla e também como analgésico em doentes oncológicos em fase terminal em associação com os opióides. Desde junho de 2012, o Sativex® está autorizado em Portugal com indicação terapêutica na esclerose múltipla e é comercializado pela Almirall sob licença da GW Pharmaceuticals. Embora a utilização terapêutica dos agonistas canabinóides seja promissora e tenha já aplicação clínica em situações selecionadas, a possibilidade de dependência, bem como os seus efeitos prejudiciais a nível do sistema nervoso central continuam a constituir os maiores obstáculos a uma utilização mais ampla. Por outro lado, o bloqueio dos recetores canabinóides tem revelado resultados promissores, particularmente no controlo do apetite. Estudos com o antagonista do CB1 rimonabant demonstram uma diminuição significativa da ingestão de alimentos em animais27. Também com animais obesos sujeitos a uma dieta rica em gordura, o tratamento crónico com rimonabant diminuiu a ingestão de alimentos resultando numa perda de peso28. Simultaneamente, um outro estudo mostrou que animais CB1 knock-out mostraram resistência em ganhar peso, inclusive quando sujeitos a uma dieta hiperlipídica29. Tais evidências resultaram no desenvolvimento clínico e posterior autorização de introdução no mercado do rimonabant para o tratamento da obesidade, em junho de 2006. Este fármaco foi comercializado sob a designação de Acomplia® pela Sanofi-Aventis em mais de 55 países mas foi retirado do mercado ainda antes de ser comercializado em Portugal30. A comercialização do Acomplia® foi suspensa na União Europeia dado que a sua utilização estava relacionada com um aumento do risco de ansiedade e depressão31. Uma vez que estes efeitos resultavam essencialmente da estimulação do CB1 a nível central, estuda-se a utilização de agonistas Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 42 O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica parciais para prevenir os efeitos psiquiátricos secundários resultantes do bloqueio total do CB1. De facto, a utilização de agonistas parciais leva a uma menor prevalência de efeitos adversos, sem haver uma diminuição da eficácia farmacológica31. Outra estratégia seria desenvolver antagonistas do CB1 que não atravessem a barreira hematoencefálica. O LH-21, antagonista do CB1 com menor penetração no sistema nervoso central que o rimonabant, revelou uma diminuição do apetite e consequentemente do aporte calórico em animais, apresentando uma menor incidência de efeitos secundários32. Outros ensaios clínicos sugerem que atenuar a produção de endocanabinóides em vez de bloquear os recetores CB1 pode constituir uma abordagem mais fisiológica para a terapêutica da obesidade, já que nos indivíduos obesos se verificam níveis elevados de endocanabinóides e não uma maior expressão de recetores CB1. Aliás, indivíduos obesos revelaram uma menor expressão de recetores CB1 comparativamente com indivíduos normoponderais33. Tal estratégia passa por modular o sistema endocanabinóide de forma a corrigir níveis anormalmente elevados de endocanabinóides e constitui uma nova abordagem terapêutica. Perspetivas terapêuticas baseadas nos endocanabinóides Na última década emergiu uma nova perspetiva terapêutica com a síntese de fármacos que modulam o sinal canabinóide por ativação ou inibição dos recetores canabinóides e das enzimas que sintetizam e degradam os endocanabinóides. Atualmente, as atenções incidem menos nos fármacos que atuam diretamente nos recetores canabinóides (isto é, agonistas canabinóides tais como o THC). Embora as propriedades farmacológicas do THC sejam semelhantes às da AEA, esta é rapidamente hidrolisada pelo que a sua utilização clínica se encontra limitada. Assim, uma estratégia promissora explora a interferência com os processos de inativação (por exemplo, inibidores da enzima de degradação, a FAAH), aumentando os níveis dos endocanabinóides e potenciando a sua atividade. Estes potenciadores dos endocanabinóides são mais vantajosos pois são pensados para preservar a especificidade endocanabinóide, limitando os efeitos adversos indesejáveis. Atualmente existe uma grande variedade destas moléculas em estudos pré-clínicos. A inibição da degradação da AEA é possível através de inibidores da sua hidrólise pela FAAH, tais como URB597, PF04457845 e OL-13534 ou inibidores do transportador dos endocanabinóides, tais como AM404, UCM707, OMDM-1 e OMDM-2 e VDM11 35. Estes compostos têm atraído a atenção de várias empresas, pois emergem como promissores no tratamento da ansiedade e da dor18, 36, o que tem sido corroborado pelos resultados promissores de vários ensaios clínicos. Neste sentido, atualmente está a decorrer um ensaio clínico fase II para avaliar a segurança e eficácia do inibidor da FAAH PF-04457845 no tratamento da dependência de cannabis 37. Além do mais, foram descritos compostos endógenos análogos dos endocanabinóides com atividade biológica em modelos animais de dor e obesidade que, apesar de desprovidos de ação nos recetores canabinóides, interferem com a degradação dos endocanabinóides e consequentemente com as suas concentrações. Notavelmente, os endocanabinóides constituem um sistema distinto de sinalização envolvido nas diversas funções fisiológicas, desde homeostase, modulação de nocicepção, resposta imunitária e inflamatória e ainda função do sistema cardiovascular. A modulação deste sistema constitui um promissor alvo terapêutico pelo que o conhecimento mais profundo nesta área permitirá o desenvolvimento das melhores estratégias para explorar a sua utilidade. Conclusão O uso medicinal da planta Cannabis sativa foi abandonado em vários países, apesar de inúmeros relatos que confirmam a sua segurança e baixa toxicidade. Ao longo dos últimos quatro mil anos, O Sistema Endocanabinóide – uma perspetiva terapêutica esta planta tem sido utilizada para o tratamento de numerosas patologias mas, devido às suas propriedades psicoativas, o seu uso medicinal é altamente restrito. Por outro lado, os canabinóides sintéticos têm sido aceites pela comunidade médica. Embora diversas evidências confirmem que as propriedades analgésicas do THC são úteis e complementares às dos opióides, a sua utilização clínica é essencialmente como estimulante do apetite. Contudo, a nabilona, um análogo sintético do THC, foi autorizada há já vários anos para o tratamento do espasmo muscular e dor em doentes com esclerose múltipla. Mais recentemente, o antagonista do CB1 rimonabant foi comercializado para o tratamento da obesidade. No entanto, o uso terapêutico dos canabinóides também pode ser acompanhado por reações adversas, tais como ataques de ansiedade ou pânico, o que levou à retirada do mercado do rimonabant. Em Portugal, foi recentemente autorizada a introdução no mercado do primeiro medicamento que interfere com o sistema endocanabinóide, o Sativex®, com indicação terapêutica para a esclerose múltipla. Particularmente relevantes são as evidências de potenciais aplicações terapêuticas resultantes da manipulação do sistema endocanabinóide. A considerável investigação no conhecimento das suas ações fisiológicas e a panóplia de mecanismos biológicos em que os endocanabinóides se encontram envolvidos começa apenas agora a desvendar-se. A sua utilização recai principalmente sobre os agonistas/ antagonistas dos recetores canabinóides (baseados na estrutura química do THC ou dos endocanabinóides) e os potenciadores da ação dos endocanabinóides recorrendo à inibição da sua recaptação ou das enzimas de degradação. De facto, a grande variedade de funções fisiológicas afetadas pelos endocanabinóides sugere que o estudo aprofundado do sistema endocanabinóide pode permitir o desenvolvimento de novos fármacos com maior aceitabilidade social e reduzidos efeitos secundários. Após duas décadas de investigação no sistema endocanabinóide, excitantes descobertas foram feitas. Embora o puzzle continue certamente incompleto, o que sabemos até ao momento indica que vale a pena investir no seu estudo e manipulação clínica. 43 Referências bibliográficas 1.Robson PJ. Therapeutic potential of cannabinoid medicines. Drug Testing and Analysis. 2013 Sep 4, (Doi: 10.1002/dta.1529). 2. Mechoulam R, Gaoni Y. A Total Synthesis of DlDelta-1-Tetrahydrocannabinol, the Active Constituent of Hashish. J Am Chem Soc. 1965; 87:3273-5. 3. Pertwee RG. Targeting the endocannabinoid system with cannabinoid receptor agonists: pharmacological strategies and therapeutic possibilities. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2012; 367(1607):3353-63. 4. Devane WA, Dysarz FA, 3rd, Johnson MR, Melvin LS, Howlett AC. Determination and characterization of a cannabinoid receptor in rat brain. Mol Pharmacol. 1988;34(5):605-13. 5. Devane WA, Hanus L, Breuer A, Pertwee RG, Stevenson LA, Griffin G, et al. Isolation and structure of a brain constituent that binds to the cannabinoid receptor. 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Devido à sua capacidade imunomoduladora e ao reduzido número de DCs ativadas capazes de gerar uma eficiente resposta imunológica, as DCs têm sido muito utilizadas em ensaios clínicos com o intuito de obter ou amplificar uma resposta imune anti-tumoral. Apesar de estudos clínicos evidenciarem que as vacinas de DCs são seguras e induzem uma resposta imunológica na maioria dos doentes, o número de casos com remissões completas do tumor ainda é pequeno. Para aumentar a eficácia clínica é necessário melhorar e criar novas estratégias que incluam a amplificação da imunidade adaptativa anti-tumoral e o bloqueio da proliferação de linfócitos T reguladores e do microambiente imunossupressor. A combinação de vacinas de DCs com os protocolos convencionais de quimio- e radioterapia promovem a ativação de DCs, a apresentação cruzada de antigénios e a eliminação seletiva de células imunossupressoras, revertendo o estado de imunossupressão inerente ao tumor. Assim, esta associação de quimioimunoterapia poderá explorar positivamente a capacidade das DCs na obtenção de uma resposta imunológica mais eficaz. Palavras-chave: Células dendríticas; Cancro; Imunoterapia; Vacina Abstract Dendritic cells (DCs) are professional antigen-presenting cells, which display an extraordinary capacity to induce and regulate T-cell responses. Because of their immunoregulatory capacities and because very small numbers of activated DCs are highly efficient in generating immune responses against antigens, DCs have been extensively used in clinical trials in order to elicit or amplify immune responses against cancer. While clinical trials provide evidence that dendritic cells vaccines are safe and elicit immunological responses in most patients, few complete tumor remissions have been reported. To improve the clinical efficacy, it is mandatory to design novel and improved strategies that can boost adaptive immunity to cancer helping to overcome regulatory T cells and allowing the breakdown of the immunosuppressive tumor microenvironment. The association of DCs vaccines with conventional chemo- and radiotherapy protocols could enhance DCs activation and antigen cross-presentation, selectively eliminating immunosuppressive cells, thus reverting the immunosuppression state caused by cancer, suggesting that relevant chemoimmunotherapy associations could fully exploit DC capacity to trigger anticancer responses. Keywords: Dendritic cells; Cancer; Immunotherapy; Vaccine. 46 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas Introdução As células dendríticas (DCs) foram identificadas, pela primeira vez, por Paul Langerhans, em 1968, que durante um estudo anatómico da epiderme constatou a presença de uma rede de células irregulares com longas extensões membranares, semelhantes a dendrites das células do sistema nervoso (células de Langerhans, LCs) 1. A sua incógnita função estendeu esta analogia até meados do século XX, erroneamente incluída como parte integrante do sistema nervoso periférico2. Posteriormente, em 1973, Ralph Steinman e Zanvil Cohn observaram uma população de células no baço com forma dendrítica, mostrando tratar-se de uma nova classe de leucócitos com funções imunomoduladoras do sistema imunitário3. Atualmente sabe-se que as DCs são células apresentadoras de antigénio (APCs) altamente eficientes, essenciais e com uma capacidade única de modulação da imunidade e tolerância2. As DCs encontram-se normalmente num estado imaturo, sendo extremamente sensíveis a sinais de “perigo” resultantes de processos inflamatórios, infeciosos, ou de destruição celular4. Num processo tumoral, as DCs migram através da circulação sanguínea até ao tecido tumoral, sendo gerados estímulos que desencadeiam a sua maturação5. Durante este processo, as DCs perdem a sua capacidade fagocítica, ocorrendo a produção de citocinas e quimiocinas, alterações na expressão de recetores de quimiocinas e ainda a sobre-expressão de moléculas co-estimuladoras e moléculas do complexo major de histocompatibilidade (MHC) contendo o antigénio que irá ser reconhecido pelo recetor dos linfócitos T (TCR) 6. A heterogeneidade das DCs, aliada à sua capacidade de atingirem diferentes estados de maturação confere-lhes um papel extremamente dinâmico, permitindo-lhes interagir com diversas células efetoras, incluindo linfócitos T, linfócitos B e linfócitos NK (natural killer). Esta modulação entre resposta imunogénica e tolerância periférica torna-as num alvo extremamente aliciante para o desenvolvimento de novas estratégias imunoterapêuticas, nomeadamente na potenciação da resposta anti-tumoral, no desen- volvimento de vacinas antimicrobianas e na indução de tolerância em transplantes, alergias ou autoimunidade7. Deste modo, o conhecimento dos mecanismos inerentes às alterações funcionais e fenotípicas desencadeadas durante o processo de maturação assume um papel preponderante na manipulação e compreensão de DCs, tendo em vista a otimização dos atuais protocolos imunoterapêuticos4. Este texto pretende ser uma revisão da aplicação das DCs na imunoterapia anti-tumoral, tendo por base os estudos recentes que demonstram segurança e viabilidade na indução de uma resposta imunológica e clínica em doentes oncológicos5. Neste contexto, as DCs serão abordadas no que respeita à sua imunobiologia, manipulação e imunoterapia, assim como será feita uma descrição de resultados de ensaios clínicos recentes. Células dendríticas Origem, diferenciação e classificação As DCs têm origem a partir de células estaminais hematopoiéticas (HSCs) CD34+ da medula óssea, onde as recém-formadas HSC dão origem a uma série de precursores que migram através da circulação sanguínea até ao tecido alvo8. Entre esses precursores encontram-se os progenitores comuns mieloides (CMPs) e os progenitores comuns linfoides (CLPs) cujo potencial de diferenciação está intimamente ligado à expressão e capacidade de resposta destes progenitores ao ligando Flt3L (Fms-like tyrosine kinase 3 ligand) 2. Em condições de stress fisiológico, os monócitos diferenciam-se em DCs imaturas, entre uma variedade de outras citocinas, na presença do fator estimulante de colónias de macrófagos e granulócitos (GM-CSF) 8. Segundo o modelo de comprometimento gradual, os diferentes precursores não se encontram predestinados a dar origem a um tipo particular de DCs. No entanto, existe um gradiente de probabilidade que vai desde precursores que podem originar todos os tipos de DCs, precursores que só dão origem a DCs plasmacitóides (pDCs) e precursores que só dão origem a DCs CD8+ e CD8- 2. Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas A enorme heterogeneidade apresentada pelas DCs torna a sua classificação bastante complexa; no entanto, genericamente, podem ser classificadas em pDCs e DCs convencionais (cDCs). As primeiras, de origem linfoide, encontram-se no sangue e órgãos linfoides, sendo caracterizadas pela sua extraordinária capacidade na produção de interferão tipo 1 (IFN-α/β) após infeção viral ou após interação com agonistas dos recetores do tipo Toll (TLR) 7 e 9. Do ponto de vista funcional, apresentam enorme plasticidade podendo induzir respostas T auxiliares (Th) 1, Th2, ou tolerância, através da indução de células T reguladoras (Tregs). Por outro lado, as cDCs são de linhagem mieloide e encontram-se nos tecidos e sangue periférico, estando envolvidas no reconhecimento de estruturas bacterianas e na produção de citocinas pro-inflamatórias, designadamente o fator de necrose tumoral α (TNF-α), interleucina 6 (IL-6) e IL-12p70, ativando células Th1/Th17 e, consequentemente, recrutando linfócitos T citotóxicos (CTL). As cDCs apresentam ainda elevada expressão dos recetores TLR1, TLR2, TLR3, TLR4 e TLR8 e constituem os precursores de células de Langerhans ou de DCs intersticiais, consoante os estímulos recebidos e o microambiente a que são expostas3, 9. Tem sido demonstrado ainda que as pDCs aumentam a resposta imune por cross-talking com cDCs através da produção de IFN-α e pela expressão de CD40L, ativando a produção de IL-12p702, 10. Imunobiologia de DCs Captação, processamento e apresentação de antigénios Atuando como sentinelas nos tecidos periféricos não linfoides, as DCs imaturas são especializadas na captura e processamento de antigénios, reconhecendo, assim, os designados pathogen associated molecular patterns (PAMPs) ou padrões moleculares associados a agentes patogénicos. Estas estruturas, altamente conservadas, incluem lípidos microbianos, polissacarídeos, ácidos nucleicos e RNA viral, sendo reconhecidas via recetores de reconhecimento de padrões (PRRs). Estes recetores são diversifica- 47 dos, que por sua vez incluem TLR, recetores nucleotide-binding oligomerization domain (NOD-like), recetores da proteína cinase ativada (PKR) e helicases do tipo RIG-18. Após efetuado o reconhecimento antigénico, a captação dos mesmos inclui mecanismos de macropinocitose, endocitose e fagocitose mediada por recetores. A sua internalização é mediada por um vasto número de recetores que, por processos de endocitose e fagocitose, inclui recetores para a porção FC das imunoglobulinas, recetores de complemento, recetores scavenger, recetores de lectina do tipo C e integrinas2. As DCs processam antigénios endógenos e exógenos, apresentando-os aos linfócitos T sob a forma de péptidos antigénicos acoplados a moléculas MHC. Este processamento é diferenciado, tendo em conta a origem e a natureza molecular do antigénio, encontrando-se descritos três mecanismo de apresentação: i) via MHC classe I ou citosólica (endógena); ii) via MHC classe II ou endocítica (exógena); iii) apresentação de antigénios lipídicos acoplados a moléculas CD1. As DCs possuem ainda a capacidade única de apresentar in vivo antigénios exógenos aos linfócitos T CD8+ pela via MHC-1, num processo designado por apresentação cruzada2, 10. Maturação e estimulação da resposta imune As DCs encontram-se normalmente nos tecidos periféricos num estado imaturo, sendo praticamente desprovidas de atividade imunoestimuladora. Contudo, após um estímulo de “perigo” (danger signal) as DCs migram para os tecidos linfoides, sofrendo uma complexa e coordenada série de alterações morfológicas, funcionais e fenotípicas, que culmina com aquisição de potencial imunoestimulador (maturação) 2. Com efeito, DCs maturadas expressam altos níveis de moléculas co-estimuladoras, assim como moléculas MHC, tornando-se capazes de apresentar antigénios aos linfócitos B e T naive9. Este processo, contínuo e altamente regulado por vias de transdução de sinal, pode ser desencadeado de forma direta pelo reconhecimento de agentes patogénicos através de PRRs (caracterizado pelo aumento da produção de citocinas e quimiocinas por Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 48 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas parte das DCs), ou de forma indireta através da exposição a mediadores inflamatórios produzidos por outras células do sistema imunitário, o que resulta num aumento da expressão membranar de moléculas co-estimuladoras2, 9. Nos nódulos linfáticos, as DCs apresentam os antigénios aos linfócitos T CD4+ e T CD8+ via MHC-II e MHC-1, respetivamente. Esta interação resulta na ativação dos linfócitos T CD8+ e na diferenciação dos linfócitos T CD4+ nos seus diferentes tipos de células efetoras e reguladoras, requerendo estes processos o fornecimento de três sinais distintos por parte das DCs. O primeiro sinal consiste no reconhecimento antigénico via MHC. O segundo é determinado pela interação entre sinais positivos e negativos originados pela interação de moléculas co-estimuladoras das DCs e respetivos ligandos nas células T, desencadeando uma resposta imunogénica ou tolerância. Por fim, a secreção de citocinas e quimiocinas por parte das DCs maturadas constitui o sinal 3, provocando a diferenciação dos linfócitos T CD8+ em CTLs e a polarização dos linfócitos T CD4+ em células efetoras (Th1, Th2 e Th17) ou reguladoras (Tregs 1 e 3) 10. Por outro lado, o papel das DCs na ativação de linfócitos B é maioritariamente indireto, através da indução da expressão de CD40L e de IL-2 nos linfócitos T (fatores preponderantes na ativação de linfócitos B). Um número crescente de evidências tem mostrado que as DCs também interagem com outras células da imunidade inata durante as fases iniciais da resposta imunológica. Estas interações são recíprocas, produzindo efeitos em ambas as células, ocorrendo fundamentalmente nos órgãos linfoides secundários e em locais de inflamação2. A função desempenhada pelas DCs é, então, crucial na modulação da imunidade, ao estabelecer a ligação entre imunidade inata e adaptativa, direcionando a resposta imune ou promovendo tolerância antigénica. O tipo de resposta depende do estímulo indutor da maturação das DCs, do perfil de maturação induzido, da concentração do antigénio, da intensidade e duração da interação com os linfócitos e dos fatores inerentes a estes2. Imunoterapia anti-tumoral baseada em DCs Imunoterapia baseada em DCs O recurso a DCs como estratégia imunoterapêutica baseia-se na sua capacidade em captar e apresentar proteínas tumorais, desencadeando uma forte e efetiva resposta imunogénica, através da ativação e expansão de células efetoras como os linfócitos Th1, linfócitos CTL e células NK (Figura 1) 11. A imunidade inata desencadeia uma primeira resposta através da libertação de citocinas que visam a lise de células anormais (via células NK), ou através da internalização de antigénios (monócitos, macrófagos ou DCs) para posterior apresentação às células T (Figura 2)12. O reconhecimento de complexos peptídicos de células tumorais via MHC-I, através do recetor TCR, promove a ativação de CTL e a libertação de citotoxinas (perforina e granzima), destruindo as células malignas11, 13. A ativação de DCs via MHC-II promove a diferenciação das células T CD 4+ naive em, pelo menos, quatro grandes linhagens (Th1, Th2, Th17, Tregs) que participam em diversos tipos Figura 1. Homeostase do Sistema Imunológico. As células Th1 produzem IFNγ juntamente com citocinas pró-inflamatórias, como TNF-α e TNF-β, que por sua vez ativam DCs que irão regular a permanência das CTLs CD8+ como células de memória. A resposta Th2 promove a produção de IL-4 e IL-10 e está frequentemente relacionada com a imunidade humoral. Já as células Th17 segregam IL-17 e IL-22, provocando a inflamação dos tecidos implicados na autoimunidade. (adaptado de: Borghaei H et al..12) Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas de resposta imune14. Contudo, as células tumorais geram frequentemente um microambiente imunossupressor que impede uma efetiva ativação das DCs e, consequentemente, uma inadequada resposta anti-tumoral. Este microambiente está associado à produção de IL-6, IL-10, fator de transformação do crescimento β(TGF-β), fator de crescimento vascular endotelial (VEGF) e indução de Treg2. Figura 2. Imunidade inata e adaptativa na resposta antitumoral. As caixas cinzentas ilustram de um modo simplificado as respostas inata e adaptativa. As setas descrevem o impacto das células imunes sobre as tumorais. (adaptado de: Borghaei H. et al.12) Vacinas com DCs A estratégia imunoterapêutica anti-tumoral com recurso a DCs baseia-se no desenvolvimento de vacinas que, partindo de precursores de DCs, são posteriormente diferenciadas e carregadas com antigénios tumorais autólogos, favorecendo uma resposta imune direcionada e efetiva15. Tal como ilustra a Figura 3, os precursores de DCs (monócitos ou HSCs CD34+) são isolados a partir do doente oncológico (1). A incubação com GM-CSF e IL-4 promove a diferenciação dos monócitos em DCs imaturas, enquanto a incubação com FLt3L, GM-CSF e TNF-α diferencia as HSCs CD4+ (2). A maturação das DCs é conseguida através da utilização de citocinas pró-inflamatórias, CD40L ou agonistas TLR (3). O carregamento com antigénios tumorais (proteínas ou ácidos nucleicos tumorais ou um simples antigénio alvo) pode ocorrer simultaneamente com a matu- 49 ração ou numa fase posterior a este processo (4) 15, 16 . Deste modo, DCs maturadas carregadas com o antigénio tumoral são injetadas no doente (5), migrando para os tecidos linfoides. Neste local, o organismo desencadeia uma resposta inata e desenvolve, ainda, a ativação das células T CD4+ e CD8+ (6). As células T ativas migram do tecido linfoide para o tecido tumoral (7) inibindo o seu crescimento (8) 13. Figura 3. Imunoterapia com DCs. O recurso a vacinas como estratégia imunoterapêutica baseada em DCs para o tratamento e prevenção do cancro tem sido, nas duas últimas décadas, alvo de intensa investigação. A figura ilustra de um modo simplificado este conceito de imunoterapia anti-tumoral. (adaptado de: Sabado RL, Bhardwaj N. 13) A vacina ideal A vacina de DCs ideal deverá ser capaz de induzir DCs maturadas, com capacidade migratória, apresentar longevidade e estabilidade na apresentação do antigénio tumoral, de modo a iniciar e a manter uma efetiva e adaptativa resposta imune. O aumento da longevidade das DCs promove uma resposta dos linfócitos T mais efetiva e, portanto, aumenta a capacidade de eliminação do tecido tumoral17. Os principais e últimos parâmetros de avaliação de desempenho da vacina têm em conta a taxa de eliminação tumoral e o intervalo de sobrevivência livre de doença. Os primeiros resultados clínicos evidenciam segurança na administração deste tipo de vacinas, que, no entanto, conduzem por vezes a respostas imunes e clínicas limitadas3. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 50 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas Gerações e tipologia de vacinas Os resultados dos primeiros ensaios com vacinas de DCs foram pouco conclusivos, uma vez que a regressão tumoral foi apenas observada esporadicamente. Parte do insucesso foi atribuído à reduzida carga antigénica apresentada pelas DCs, ao possível ambiente imunossupressor gerado, à fraca migração das DCs injetadas para os nódulos linfáticos e ainda ao facto dos ensaios terem sido realizados em doentes com tumores em fase terminal, cujo sistema imunitário se encontrava bastante debilitado. Estudos recentes referem que as DCs manipuladas ex vivo e posteriormente injetadas têm um papel limitado na estimulação direta dos linfócitos T in vivo. Pelo contrário, estas DCs ativam indiretamente os linfócitos T CD8+ naive através da transferência dos antigénios de que são portadores para as DCs endógenas que, subsequentemente, os apresentam às células T CD8+. Desta forma a atividade imunogénica pode ser limitada e os benefícios da transferência de antigénios para as DCs endógenas podem ser anulados pela atividade imunossupressora da maioria dos tumores. As estratégias desenvolvidas no imediato aludem para o uso simultâneo de vacinas de DCs em combinação com o bloqueio da atividade imunossupressora tumoral através de anticorpos direcionados para determinadas moléculas2, 18. Como forma de ultrapassar algumas limitações da manipulação ex vivo, tem vindo a ser desenvolvida uma nova estratégia anti-tumoral baseada na administração in vivo de antigénios tumorais acoplados a anticorpos específicos para moléculas de superfície das DCs, de modo a direcioná-los seletivamente para estas. Esta abordagem tem mostrado resultados promissores em modelos animais, desencadeando respostas imunogénicas efetivas contra os alvos de tratamento tumorais2. Resistência Anti-tumoral Um dos maiores obstáculos ao sucesso de vacinas com DCs é o desenvolvimento de mecanismos imunossupressores desencadeados pelas células tumorais (Figura 4) 19. Com efeito, sob influência de um microambiente tumorogénico, as DCs podem adquirir um fenótipo tolerogénico. Deste modo, as DCs condicionadas podem produzir uma variedade de moléculas imunossupressoras e, assim, favorecer a resistência tumoral9. As células tumorais produzem vários fatores imunossupressores como citoci- Figura 4. Mecanismos de resistência anti-tumorais desenvolvidos pelas células tumorais. (a) A acumulação de lípidos nas DCs devido à sobre-expressão de recetores scavenger de macrófagos 1 (Msr1) inibe a apresentação de antigénios solúveis pelas DCs. Ligandos do recetor X do fígado (LXR) inibem a expressão do recetor de quimiocina C-C tipo 7 (CCR7) impedindo a migração das DCs. (b) A interação do antigénio 2 do estroma da medula óssea (BST2) / immunoglobulin-like transcripts 7 (ILT7) suprime a capacidade de produção de IFN-α/β pelas pDCs após estimulação TLR7/9. (c) A sobre-expressão da proteína S100A9 por fatores solúveis tumorais inibe o processo de maturação das DCs e promove a acumulação de MDSCs, tal como acontece com a libertação de GM-CSF. Exossomas de origem tumoral potenciam ainda as funções supressoras das MDSCs através do transdutor do sinal e ativador de transcrição 3 (STAT3) e da proteína de choque térmico 72 (HSP72). (d) Prostaglandinas E 2 (PGE2) reduzem a infiltração de DCs no tumor (TIDC) através da libertação de IL-10 que induz DCs tolerogénicas a expressarem CD25 e IDO. (e) O ligando 21 da quimiocina C-C pode ainda recrutar Tregs CD4+ e MDSCs. (adaptado de: Apetoh L. et al.19) Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas nas (TGF-β, IL-10 e IL-6) e moléculas de superfície que medeiam este tipo de resposta (VEGF, ligando Fas (Fas-L), ligando do recetor de morte celular programada 1 (PD-L1) e indolamina-2 e 3-dioxigenase (IDO)). Neste microambiente, existem ainda, para além das células tumorais, outras células imunossupressoras como fibroblastos associados ao tumor (CAFs), DCs tolerogénicas, células supressoras de origem mieloide (MDSCs), macrófagos imunossupressores associados ao tumor (TAMs) e células Treg. Estas células imunossupressoras inibem a imunidade anti-tumoral por vários mecanismos, incluindo a depleção de arginina e a produção de ROS e NO11. Atualmente, evidências emergentes sugerem que uma forma efetiva para melhorar a eficácia da imunoterapia com base em DCs reside na inibição da regulação imunossupressora9. Estratégias para melhorar a efetividade imunoterapêutica de vacinas Para maximizar a efetividade anti-tumoral da vacinação com DCs, várias estratégias têm sido desenvolvidas neste sentido. Estas incluem a otimização na diferenciação de DCs, o aumento da imunogenicidade via modificação genética das DCs e a inclusão de adjuvantes, um carregamento de antigénios otimizado, o aumento da longevidade de DCs e a inibição dos mecanismos de imunossupressão. Com o objetivo de melhorar a resposta imunológica dos linfócitos T, a diferenciação das DCs deve ser adaptada e específica ao processo tumoral em questão. A combinação de citocinas adicionadas ao processo de diferenciação de monócitos em DCs assume um papel crucial na qualidade de resposta dos linfócitos T. Por exemplo, DCs maturadas obtidas pela incubação com GM-CSF e IL-15 assumem um fenótipo característico de LCs. Em particular, são mais eficientes in vitro no tratamento do melanoma ao maximizar a resposta dos linfócitos T CD8+ naive e, consequente diferenciação em CTLs, em comparação com as DCs obtidas após diferenciação induzida por GM-CSF e IL-420. O aumento da eficácia e estabilidade da apresentação de antigénios pelas DCs inclui várias estratégias de otimização, entre as quais a administração 51 in vivo de antigénios tumorais acoplados a anticorpos específicos para as DCs do doente, assim como uma variedade de processos de carregamento de DCs com antigénios in vitro. De facto, antigénios acoplados a anticorpos específicos para moléculas de superfície de DCs, como a 33DI (anti-dendritic cell antibody) ou DEC205 (dendritic and epithelial cell receptor with a m.w. of 205 kDa), estão a ser usadas em estudos pré-clínicos. Além disso, DCs geneticamente modificadas ex vivo com RNAm ou DNA tumoral, ou carregadas com péptidos tumorais, estão a ser testados in vitro e in vivo na indução de resposta imunológica9. O recurso a péptidos como fonte de antigénios tem várias limitações quando utilizados em ensaios clínicos, principalmente na indução de imunogenicidade efetiva. Deste modo, a inclusão de DCs transfectadas com RNAm para o antigénio leucocitário humano (HLA) assim como para um número limitado de antigénios imunodominantes associados ao tumor, tem demonstrado maior benefício terapêutico relativamente a outras estratégias de carregamento de antigénios na indução da resposta imune. A transfecção de RNAm originará a apresentação de múltiplos epítopos antigénicos, possivelmente mais imunogénicos que os anteriormente caracterizados, independentemente do haplótipo HLA do doente. Adicionalmente, o RNAm do tumor autólogo pode ser isolado e amplificado, no sentido de obter antigénios de especificidade intrínseca ao próprio. Uma vez que o RNAm tem uma semivida curta e não se integra no genoma do hospedeiro, modificações genéticas nas DCs por eletroporação com RNAm são consideradas altamente seguras e uma ferramenta simples de aplicação clínica9, 10, 21. O aumento da eficácia da imunoterapia anti-tumoral relaciona-se, intimamente, com a compreensão dos mecanismos complexos inerentes ao equilíbrio entre imunidade e tolerância e com as características exigidas pelas DCs para uma resposta efetiva. Com o objetivo de aumentar a eficácia das DCs, estão a ser desenvolvidas estratégias que incluem a sua modificação genética, de modo a aumentar a expressão de reguladores positivos imunogénicos e a inibir reguladores negativos17. Como supramencionado, a interação CD40/ Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 52 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas CD40L é preponderante na expressão de citocinas, quimiocinas e moléculas co-estimuladoras. Para mimetizar esta interação, as DCs podem ser modificadas por transdução via adenovírus ou por eletroporação de RNAm para expressão do ligando CD40L. A fim de controlar e melhorar a expressão via CD40, pode ser adicionado um indutor químico de dimerização (CID) AP1903. Esta estratégia induz uma resposta Th1 anti-tumoral mais eficaz, assim como uma migração melhorada tanto in vivo como in vitro22. Outras moléculas co-estimuladoras com evidência positiva incluem a proteína relacionada com o TNFR induzida por glucocorticoides (GITR-L), 4-IBBL, CD70 e OX40L. A vacinação com DCs carregadas com o RNAm correspondente ao antigénio tumoral e que expressem o ligando GITR aumentam a resposta específica via linfócitos T, prolongando, ainda, a semivida das células T de memória. A expressão transgénica da molécula CD70 pelas DCs em murganhos mostrou quebrar a tolerância dos linfócitos T CD8+, aumentando assim a imunogenicidade anti-tumoral. A eletroporação com RNAm que codifique a combinação de CD70, CD40L, entre outras moléculas co-estimuladoras aumenta, deste modo, a capacidade de estimulação das células T17. Modificações genéticas que visem a expressão aumentada de mediadores solúveis, como citocinas e quimiocinas, também aumentam a eficácia da vacinação com DCs. A produção local de citocinas pelas DCs, como a IL-12, evita a toxicidade associada à administração sistémica de citocinas inflamatórias. Esta sobre-expressão melhora a migração, maturação e a atividade anti-tumoral numa variedade de modelos pré-clínicos17. A expressão de recetores TRANCE (citocina induzida por ativação e relacionada com o TNF) para os ligandos RANK (recetor ativador do NFκB – fator nuclear de transcrição kappa B) dos linfócitos T promove uma sinalização autócrina nas DCs, aumentando a sua potência na expressão de moléculas co-estimuladoras e a secreção de citocinas que, por sua vez, aumentam a potência de resposta dos linfócitos T. Esta estratégia aumenta a taxa de eliminação das células tumorais em modelos pré-clínicos, sendo que, no entanto, aguarda ainda por resultados clínicos23. A longevidade das DCs é crucial para a eficácia da vacina; assim, modificações genéticas que estimulem a regulação de sinais anti-apoptóticos ou reduzam os pro-apoptóticos estão sob investigação. O mecanismo PI3k (cinase responsável pela fosforilação da posição 3 do fosfatidilinositol) / Akt (proteína cinase B) regula múltiplas atividades celulares, críticas no processo de produção, sobrevivência e secreção de citocinas. Para aumentar a longevidade das DCs em modelos pré-clínicos, a modificação genética da Akt num sinal reforçado e constitutivo, regula a proteína Bcl-2 aumentando a longevidade das DCs. A inclusão de small interfering RNA (siRNA) direcionado para moléculas proapoptóticas Bax, Bak e Bim favorece, também, a longevidade de DCs em murganhos24. Embora os reguladores positivos representem uma abordagem promissora no desenvolvimento de vacinas mais eficazes, as DCs permanecem sensíveis a inibidores endógenos que, sob microambiente tumoral, auxiliam o processo de tolerância e evitam a autoimunidade. Uma vez que um dos principais objetivos é quebrar a auto-tolerância aos antigénios tumorais, estes reguladores negativos apresentam-se como um dos principais obstáculos à imunoterapia anti-tumoral. Os recetores inibitórios estão envolvidos no desenvolvimento de tolerância, na manutenção da homeostase e na regulação negativa da resposta imune. A inibição destes últimos é geralmente mediada por ITIMs (immunoreceptor tyrosine-based inhibitory motifs) nas regiões citoplasmáticas, que atuam por recrutamento de inibidores das proteínas tirosina-fosfatases, tais como SHP-1 e SHP2. Estes recetores inibitórios podem ser úteis como alvos de intervenção terapêutica. Por exemplo, vários estudos clínicos estão a ser desenvolvidos para avaliar a segurança e a eficácia do bloqueio do recetor PD-1; alguns destes estudos combinam este bloqueio com anticorpos monoclonais17. O recetor de macrófagos com estrutura de colagénio (MARCO) é um recetor scavenger de classe A, expresso por alguns macrófagos e DCs, cuja deficiência melhora a migração de DCs. Assim, o silenciamento MARCO mostrou melhorar este parâmetro tanto in vitro como in vivo, sem alterar aparentemente a secreção de citocinas, além de controlar o crescimento de tumores B16 (atividade anti-melanoma) 25. O recurso a inibidores citoplasmáticos apresenta-se como outro método de regulação inibitória de fatores negativos Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas responsáveis pela maturação de DCs, aumentando a resposta imunológica dos linfócitos T. Assim, a proteína SOCS1 (supressor de sinalização de citocinas 1) atua como um regulador negativo da secreção de citocinas inibindo a via JAK (cinase de Janus) / STAT. O silenciamento do gene SOCS1 em células dendríticas derivadas da medula óssea de murganho (BMDCs) aumentou a resposta imune dos linfócitos T e a regressão das células tumorais; esta resposta foi mediada pelo aumento da produção de IL-12. Resultados in vitro obtidos pelo silenciamento do gene SOCS1 em DCs humanas corroboram os resultados obtidos em células de murganho ao aumentar a resposta das células T26. A proteína A20 (proteína 3 induzida pelo TNF-α, TNFAIP3) é uma ubiquitina modificada expressa em altos níveis nos órgãos linfoides, incluindo o timo e o baço. Esta proteína atua como um regulador negativo a jusante do TLR e do recetor TNF, inibindo, portanto, a sinalização NF-κB. O direcionamento de siRNA para esta proteína em BMDCs provocou uma produção robusta de citocinas pró-inflamatórias como o TNF-α, IL-12p40 e a IL-6, a inibição de Tregs, bem como o aumento da atividade anti-tumoral das células T. De modo similar, a inibição desta proteína em DCs derivadas de monócitos humanos aumentou os níveis de NF-κB e a potência de resposta dos linfócitos T27. Terapêutica de associação como estratégia anti-tumoral Tendo em conta a diversidade de mecanismos imunossupressores inerentes ao cancro metastático, qualquer resultado clínico positivo que aumente a extensão de resposta de vacinas com DCs é considerado notável. No entanto, para melhorar os resultados, estas vacinas têm de ser combinadas com outras terapias que combatam o microambiente imunossupressor gerado pelo tumor. Tais regimes de combinação envolvem diversos fármacos que atuam em diferentes alvos terapêuticos (Figura 5) 18. Recentemente, surgiram novos paradigmas no campo da pesquisa de vacinas contra o cancro. Em particular, tem sido discutido o potencial uso de associações terapêuticas que incorporem imunomoduladores com quimio- e radioterapia antevendo-se 53 Figura 5. Vacinas de DCs em terapêutica combinada. Os ensaios clínicos em decurso evidenciam regressão tumoral considerável, em parte dos doentes estudados. No entanto, a eficácia clínica pode ser limitada pelo desenvolvimento de células supressoras mieloides, células inflamatórias Th2 e células Tregs. Torna-se essencial, portanto, desenvolver novas estratégias de modo a maximizar a resposta adaptativa, bloquear células Treg e eliminar o microambiente imunossupressor. A estratégia terapêutica atual consiste na combinação destes três componentes principais. (adaptado de: Palucka K. et al. 28) . sinergia com as vacinas anti-tumorais. A quimioterapia citotóxica é, geralmente, considerada imunossupressora, devido à sua toxicidade para as células em divisão na medula óssea e no tecido linfoide periférico. Deste modo, a combinação de vacinas anti-tumorais com quimioterapia foi, outrora, entendida como inadequada, atendendo a que o efeito imunossupressor anularia a eficácia destas vacinas. No entanto, têm surgido evidências que contrariam este conceito, verificando-se um perfil de maior eficácia quando a imunoterapia é combinada com a quimioterapia convencional. Por exemplo, o citotóxico gemcitabina, não só exerce ação anti-tumoral direta, como também medeia efeitos imunológicos relevantes em imunoterapia. Estudos clínicos desenvolvidos mostram que o tratamento combinado com este fármaco reforça a apresentação cruzada dos antigénios associados ao tumor (TAAs) pelas DCs, aumentando a expansão de CTL e a sua infiltração no tumor. Esta apresentação cruzada não conduziu a tolerância. Além disso, a gemcitabina reduziu o número de células supressoras mieloides, sem, no entanto, afetar os linfócitos T CD4+ e CD8+, as células NK, os macrófagos ou os linfócitos B. Assim, este citotóxico parece não ser imunossupressor e, contrariamente ao Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 54 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas inicialmente suposto, aumenta a resposta à imunoterapia administrada e ativa ou apoia a resposta imunológica dirigida às células tumorais11. Ramakrishnan et al 29 provaram que a quimioterapia conduz à sobre-expressão do recetor de manose-6-fosfato dependente de catiões (CI-MPR) em células tumorais, aumentando o uptake de granzima B. Como resultado, as CTLs podem induzir apoptose num vasto número de células malignas, eventos que se manifestam num clínico e evidente efeito anti-tumoral29. Parte dos doentes com cancro avançado, que responde inicialmente aos tratamentos de quimioterapia, pode sofrer uma recidiva devido à sobrevivência de uma pequena população de CSCs (células estaminais cancerígenas). Esta subpopulação de células tumorais possui maior capacidade de proliferação, relativamente às restantes, podendo manter o crescimento tumoral ou, até, iniciar novos tumores. Embora a quimio- e radioterapia eliminem a maioria das células tumorais, a sobrevivência de CSCs constitui um importante mecanismo de resistência, através da sobre-expressão de transportadores ABC (ATP-binding cassette), reparações de DNA e resistência à apoptose30. Deste modo, o desenvolvimento de estratégias imunoterapêuticas contra a população de CSCs é altamente desejável, cujo sucesso dependerá da eficácia da resposta imunológica, modulada por vacinas de DCs. Recentemente foram produzidos híbridos de DCs e CSCs para aumentarem o potencial de resposta das células CTL anti-CSCs. A fusão DC/ CSC induziu a proliferação de linfócitos T com elevados níveis de expressão de IFN-γ, matando as células CSCs in vitro. Assim, uma abordagem que combine a terapêutica convencional, como a quimio- e radioterapia que elimina grande parte das células tumorais, com CTLs reativas a CSCs, poderá representar uma estratégia promissora no tratamento de estados tumorais avançados (Figura 6). Estes resultados inauguram um novo campo de investigação para o desenho de futuros ensaios clínicos11. Uma vez que a terapêutica anti-tumoral citostática e combinada varia de tumor para tumor, torna-se necessário desenvolver protocolos clínicos exclusivos que combinem DCs com a terapêutica convencional (Figura 7) 18. Figura 6. Terapêutica de associação: radio- e quimioterapia em combinação imunoterapêutica. Atualmente, as terapêuticas convencionais, como a radio- e a quimioterapia, eliminam grande parte das células tumorais (CC), que são menos resistentes que as CSCs. Apesar da regressão inicial da massa tumoral, esta pode voltar a desenvolverse devido a CSCs residuais. A combinação da terapêutica convencional com a imunoterapia surge, assim, como uma nova abordagem que visa eliminar CSCs, promovendo a irradicação tumoral. (adaptado de: Koido S. et al. 11). Figura 7: Intervenções terapêuticas para aumentar a eficácia de vacinas de DCs anti-tumorais. Terapêuticas antitumorais como a oxaliplatina, antraciclinas ou radioterapia podem aumentar a fagocitose e a apresentação cruzada de antigénios tumorais pelas DCs, favorecendo a produção de IFN-γ pelas células T CD8+ e, consequentemente, a imunidade anti-tumoral. Outros fármacos anti-tumorais como a ciclofosfamida e o 5-fluorouracilo eliminam seletivamente células Treg e MDSC, respetivamente. Já o paclitaxel e a cisplatina podem sensibilizar as células tumorais aos CTLs pelo aumento da permeabilidade à granzima B. Por fim, a migração das DCs pode ainda ser melhorada pela prevenção da acumulação lipídica, inibindo a acetil-CoA carboxilase ou a síntese de colesterol com SULT2B1b (ligando LXR responsável pela inativação da enzima sulfotransferase 2B1b). (adaptado de: Apetoh L. et al. 19). Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas Estudos clínicos e aplicação terapêutica anti-tumoral Apesar dos notáveis progressos na prevenção e na terapêutica anti-tumoral, assim como no atual decréscimo de mortes relacionadas, o cancro permanece uma das principais causas de mortalidade. As estratégias que combinam a cirurgia com a radioe quimioterapia são, geralmente, bem-sucedidas na eliminação de grande parte da massa tumoral, permanecendo, no entanto, células tumorais residuais como as CSCs, responsáveis por eventuais recidivas. Assim, as vacinas anti-tumorais de DCs surgem como uma nova esperança dentro do campo oncológico, ao oferecerem vantagens únicas que incluem baixa toxicidade e o direcionamento de uma resposta imunológica efetiva contra moléculas alvo6. Atualmente existe um vasto número de ensaios clínicos em desenvolvimento, cujos resultados carecem, ainda, de ampla eficácia anti-tumoral. De um modo geral, apenas uma fração dos doentes envolvidos apresenta uma resposta imunológica potente, que se traduz numa moderada resposta clínica (aproximadamente 10-15%) 9. No entanto, para alguns tipos de cancro, os resultados obtidos são deveras promissores, contando já com aprovação imunoterapêutica pela FDA31. Seguidamente são apresentadas breves referências de tumores sólidos, para os quais a imunoterapia com DCs tem sido intensamente estudada e cujos resultados clínicos se afiguram promissores. 55 monstram que a imunoterapia pode melhorar o estado clínico destes doentes. Especificamente, um estudo clínico envolveu 31 doentes com CH, os quais receberam vacinas de DCs carregadas com antigénios de lisados autólogos tumorais. Foram registadas 14 respostas parciais e 17 conseguiram estabilizar o tumor. Os doentes obtiveram ainda uma taxa de sobrevivência melhorada em 1 ano de vida (63% vs 10%; P =.038) 32. A α-fetoproteina (AFP), principal proteína do soro fetal, encontra-se sobre-expressa na maior parte dos CHs, desempenhando um papel importante no seu diagnóstico e na sua monitorização terapêutica. A sobre-expressão desta proteína correlaciona-se com o aumento da proliferação tumoral e resistência à apoptose pelas CSCs. Foram desenvolvidos dois estudos clínicos que testaram vacinas peptídicas de DCs; em ambos verificou-se que os epítopos peptídicos de AFP foram imunogénicos in vivo e capazes de estimular os linfócitos T nestes doentes com elevados níveis plasmáticos desta proteína. O segundo estudo, que envolveu 10 doentes, demonstrou também que 6 destes aumentaram a produção de IFN-γ. Registou-se ainda uma diminuição transitória dos níveis plasmáticos de AFP em 2 doentes31. Uma vez que a ablação térmica por radiofrequência estimula a resposta dos linfócitos T aos antigénios tumorais, a combinação desta técnica com imunoterapia poderá ser uma abordagem mais eficaz para o tratamento do CH31, 33. Imunoterapia no cancro da próstata Imunoterapia no cancro hepático O cancro hepático (CH) constitui uma das principais causas de morte em todo o mundo. Este problema de saúde tem vindo a assumir contornos graves e preocupantes, ao registar-se um aumento da incidência tumoral e de esteatose hepática na população mundial. Tumores pequenos e localizados são potencialmente curáveis por excisão cirúrgica ou por transplantação; no entanto, a maior parte dos doentes apresenta um diagnóstico inicial de doença avançada31. Os resultados de diversos estudos clínicos de- Diversos estudos clínicos de fase 2 e 3 evidenciam abordagens imunoterapêuticas promissoras em doentes com cancro da próstata31. Estas estratégias, baseadas em vacinas com DCs, representam um avanço científico seguro e viável na indução de respostas imunológica e clínica anti-tumorais5. Os primeiros estudos envolveram vacinas de DCs carregadas com péptidos derivados do antigénio de membrana específico da próstata (PSMA), obtendo-se respostas parciais em 26% dos envolvidos, cuja diminuição do antigénio específico da próstata (PSA) foi superior a 50%5. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 56 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas Recentemente, um ensaio clínico de fase 3 que testou a administração da vacina sipuleucel-T em 512 doentes com cancro da próstata avançado, demonstrou prolongar a taxa média de sobrevivência nestes doentes (25,8 meses no grupo sipuleucel-T vs 21,7 meses no grupo placebo; P =.017), diminuindo em 22% o risco de morte devido ao tumor. Esta técnica recorre a células autólogas mononucleares do sangue periférico, que após incubação in vitro com PA2024 (proteína de fusão de fosfatase ácida prostática e GM-CSF), ativa APCs, como as DCs. O mecanismo de ação ainda não é completamente conhecido, mas poderá envolver a expressão da CD54, uma molécula de adesão crucial para a formação da sinapse imunológica e consequente estimulação dos linfócitos T. Esta vacina foi aprovada nos Estados Unidos da América em Abril de 2010, pela Food and Drug Administration, para o tratamento do cancro da próstata assintomático, minimamente sintomático ou metastático, dado os seus perfis de eficácia clínica, cujos efeitos adversos são similares aos do grupo placebo2, 5, 31, 34. Apesar destes resultados clínicos promissores, a eficácia das diversas estratégias de tratamento à base de DCs é ainda limitada para muitos doentes com cancro prostático. Deste modo, torna-se essencial melhorar estas abordagens, que podem ser conseguidas através da combinação com outras terapêuticas como a radio- e quimioterapia, terapêutica antiangiogénica ou hormonal, ou ainda com recurso a anticorpos anti-tumorais5. Imunoterapia no cancro do ovário Estudos recentes têm mostrado uma correlação positiva entre o aumento de sobrevivência e a presença de células T efetoras no seio das células tumorais. A ausência de células reguladoras no tumor (Tregs ou MDSCs) evidencia o papel crucial de vigilância imunológica na progressão do cancro do ovário, conseguida, potencialmente, através da imunoterapia31. Vários grupos de mulheres com cancro no ovário iniciaram, recentemente, estudos de vacinação com células tumorais autólogas ou alogénicas, en- volvendo DCs para direcionar uma resposta imunológica anti-tumoral, utilizando antigénios associados ao cancro do ovário (CA 125, HER-2/neu, recetor de folato, ou antigénio de mucina 1 – MUC1). Um ensaio clínico envolvendo DCs carregadas com Her-2/ neu–GM-CSF (vacina lapuleucel-T [APC8024]) demonstrou uma resposta clínica ligeira contra tumores HER-2/neu, como o cancro do ovário, permanecendo, ainda, em estudo se a vacina aumenta a taxa média de sobrevivência destas doentes, de forma análoga à vacina sipuleucel-T31. Imunoterapia no cancro do pâncreas Cinco doentes com cancro pancreático avançado foram incluídos num estudo clínico que envolveu a combinação de gemcitabina (citotóxico padrão utilizado em quimioterapia no cancro pancreático) com vacinas de DCs. Foram ainda utilizados anticorpos monoclonais anti-CD3 para estimular células NK. Como resultado, 1 doente apresentou remissão parcial do tumor e 2 obtiveram uma estabilização tumoral de duração superior a 6 meses. Recentemente, imunoterapia baseada em vacinas de DCs combinada com gemcitabina/S-1 foi efetiva em doentes com cancro pancreático avançado resistentes à quimioterapia padrão. Os antigénios MUC1 e WT1 (gene tumoral de Wilms 1) encontram-se altamente expressos no cancro pancreático, constituindo excelentes TAAs para o direcionamento imunoterapêutico. Foi desenvolvido um estudo clínico com 49 doentes com cancro pancreático, dos quais 38 receberam vacinação de DCs carregadas com o péptido WT1. Alguns destes doentes receberam ainda outros péptidos como a MUC1, CEA (antigénio carcino-embrionário) e CA125 (antigénio tumoral 125). Previamente a esta terapêutica combinada, 46 dos 49 doentes tinham sido tratados com quimioterapia ou radioterapia mas sem qualquer efeito significativo. Apesar das condições deficitárias no que concerne à homogeneidade entre os grupos, surpreendentemente, 2 doentes registaram remissão completa do tumor, 5 remissão parcial e 10 estabilizaram o tumor, cujo tempo médio de sobrevivência aumentou 360 dias. O uso de vacinas de DCs em combinação direta Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas com quimioterapia pode ser uma verdadeira opção para o tratamento de doentes com cancro do pâncreas avançado11. De facto, a gemcitabina aumenta a expressão WT1 nestes doentes e sensibiliza as células tumorais pancreáticas WT1 para o aumento de resposta específica T imunogénica35. Imunoterapia no cancro do estomago Kono et al36 observaram que a vacinação anti-tumoral com DCs carregadas com o péptido HER-2/ neu poderá ser uma opção terapêutica no tratamento de doentes com cancro gástrico. Segundo este estudo de fase 1, 33% dos doentes reduziram os marcadores tumorais após vacinação e 22% tiveram uma regressão do tumor em mais de 50%, sem efeitos adversos significativos36. Além disso, resultados recentes sobre o aumento da resposta imunológica anti-tumoral, com recurso a DCs geneticamente modificadas por siRNA para o recetor IL-10, demonstraram ocorrer bloqueio da imunossupressão tumoral, abrindo novas perspetivas para uma imunoterapia baseada em DCs eficaz no tratamento do cancro do estômago15. Imunoterapia noutros tipos de cancro Encontram-se atualmente em desenvolvimento vários estudos clínicos e pré-clínicos que pretendem avaliar a eficácia da imunoterapia com DCs aplicada a outros órgãos em processo tumoral. Um estudo clínico de fase I envolveu 13 doentes com cancro da mama em fase inicial, os quais foram injetados com DCs ativadas com uma mistura constituída pela citocina IFN-γ e pelo LPS, para produzirem IL-12p70. As DCs foram carregadas com o péptido HER-2/neu, que se encontra sobre-expresso neste tipo de tumor. Czerniecki et al 37 detetaram uma resposta imunogénica robusta, como evidenciado in vitro pela indução de resposta das células T CD4+ e CD8+, assim como in vivo pela infiltração na região tumoral de células B e T, traduzindo-se numa redução drástica do tumor. Os autores concluíram assim que esta estratégia pode apresentar-se vantajosa na prevenção e tratamento do cancro da mama de fase inicial37. 57 Dohnal et al também demonstraram segurança e viabilidade na utilização de vacinas de DCs ativadas com IFN-γ/LPS para o tratamento de cancros pediátricos. Não foram registados efeitos adversos relevantes, ocorrendo secreção de IL-12p70 com consequente ativação imunológica38. O uso de DCs em doentes com melanoma avançado mostrou também aumentar o potencial de indução e amplificação da resposta anti-tumoral nestes doentes. Esta técnica, designada por TriMix, consiste na eletroporação de DCs com RNAm codificante do ligando CD40, CD70 e TLR4, amplificando a produção de IL-12p70 9. Conclusão A década contemporânea representa, na história da imunologia, um período extremamente ambicioso no que concerne ao desenvolvimento de vacinas anti-tumorais. Os consideráveis progressos ao nível da compreensão da imunobiologia das DCs, assim como das células T efetoras, abriram novas estratégias para o desenvolvimento de protocolos clínicos vastamente melhorados28. As DCs são um elemento primordial do sistema imunitário pela conexão que estabelecem entre imunidade inata e adaptativa e pela capacidade única de modulação da resposta adaptativa, podendo induzir imunidade ou tolerância28. Tal papel primazia as DCs como recurso aliciante na potenciação de respostas anti-tumorais, ao amplificar e ativar a resposta dos linfócitos T CD8+, CD4+ e CTL. Além disso, as DCs podem melhorar a imunomodulação e potencial citotóxico das células NK e, deste modo, dilatar a resposta anti-tumoral5. Apesar da imunoterapia com DCs emergir como terapêutica promissora no tratamento oncológico, é necessário, no entanto, aprofundar o conhecimento relativo aos mecanismos moleculares responsáveis pelas alterações desencadeadas por diversos sinais de “perigo” durante o processo de maturação das DCs2,31. Não obstante, permanecem ainda mecanismos de imunossupressão mediados pelas células tumorais que culminam com a aquisição de um fenótipo tolerogénico por parte das DCs, Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 58 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas bem como fenómenos de resistência anti-tumoral via CSCs, sendo necessário estratégicas terapêuticas que contornem esses eventos9, 19. Vários estudos clínicos têm sido desenvolvidos neste âmbito, tendo por base a administração de DCs carregadas com péptidos derivados de TAAs, proteínas ou RNA. Os resultados obtidos são deveras promissores, demonstrando segurança e viabilidade na indução de resposta imunológica, tendo sido recentemente aprovada pela FDA a vacina sipuleucel-T para o tratamento do cancro prostático5. Apesar destes resultados clínicos positivos, a eficácia da imunoterapia baseada em DCs permanece ainda limitada para muitos doentes com os mais diversos tipos de cancro sólido avançado. Portanto, torna-se essencial melhorar as estratégias concebidas, passando pela combinação da vacinação imunoterapêutica com radio- e quimioterapia, anticorpos ou terapêutica antiangiogénica18, 31. Referências bibliográficas 1. Goldsby RA, Kindt TJ, Osborne BA. Kuby Immunology. 6ª Ed. New York: W. H. Freeman and Company. p. 38-40, 2007. 2. Neves BMR. Modulação das células dendríticas por estímulos alergénicos e infeciosos. Tese de Doutoramento em farmácia, na especialidade de biologia celular e molecular. Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Coimbra: Universidade de Coimbra. p. 1-61, 2010. 3. Paczesny S, et al. Dendritic cells as vectors for immunotherapy of cancer. Semin Cancer Biology. 2003; 13:439-447 4. Schuler G. Dendritic cells in cancer immunotherapy. Eur J Immunol. 2010; 40:2123-2130. 5. Jähnisch H, et al. Dendritic cell-cased immunotherapy for prostate cancer. Clin Dev Immunol. 2010; 2010:1-8. 6. Kalinski P. 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Lista de abreviaturas ABC – ATP-binding cassette AFP – α-Fetoproteina Akt – Proteína cinase B APCs – Células apresentadoras de antigénio BMDCs – Células dendríticas derivadas da medula óssea de murganho BST 2 – Antigénio 2 do estroma da medula óssea CAFs – Fibroblastos associados ao tumor CA125 – Antigénio tumoral 125 CCR7 – Recetor de quimiocina C-C tipo 7 cDCs – Células dendríticas convencionais CEA – Antigénio carcino-embrionário CH – Cancro hepático CID – Indutor químico de dimerização CI-MPR – Recetor de manose-6-fosfato dependente de catiões CLPs – Progenitores comuns linfoides CMPs – Progenitores comuns mieloides CSCs – Células estaminais cancerígenas Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 60 Imunoterapia anti-tumoral com células dendríticas CTL – Linfócitos T citotóxicos DCs – Células dendríticas Fas-L – Ligando Fas FDA – Food and Drug Administration Flt3L – Fms-like tyrosine kinase 3 ligand HLA – Antigénio leucocitário humano HSCs – Células estaminais hematopoiéticas GITR – Proteína relacionada com o TNFR induzida por glucocorticoides GM-CSF – Fator estimulante de colónias de macrófagos e granulócitos IDO – Indolamina-2 e 3-dioxigenase IFNα/β – Interferão tipo 1 IL – Interleucina ILT7 – Immunoglobulin-like transcripts 7 ITIMs – Immunoreceptor tyrosine-based inhibitory motifs HSP72 – Proteína de choque térmico 72 LCs – Células de Langerhans LPS – Lipopolissacarídeo LXR – Recetor X do fígado MARCO – Recetor de macrófagos com estrutura de colagénio MDSCs – Células supressoras de origem mieloide MHC – Complexo major de histocompatibilidade Msr 1 – Recetores scavenger de macrófagos 1 MUC1 – Antigénio de mucina 1 NF-κB – Fator nuclear de transcrição kappa B NOD-like – Nucleotide-binding oligomerization domain PAMPs – Padrões moleculares associados a agentes patogénicos pDCs – Células dendríticas plasmacitóides PD-L1 – Ligando do recetor de morte celular programada 1 PGE2 – Prostaglandina E 2 PI3k – Cinase responsável pela fosforilação da posição 3 do fosfatidilinositol PRRs – Recetores de reconhecimento de padrões PSA – Antigénio específico da próstata PSMA – Antigénio de membrana específico da próstata RANK – Recetor ativador do NF-κB siRNA – Small interfering RNA SOCS1 – Supressor de sinalização de citocinas 1 STAT – Transdutor do sinal e ativador da transcrição SULT2B1b – Sulfotransferase family cytosolic 2b member 1 TAAs – Antigénios associados ao tumor TAMs – Macrófagos imunossupressores associados ao tumor TCR – Recetor dos linfócitos T TGF-β – Fator de transformação do crescimento β Th – Linfócitos T auxiliar TLR – Recetores Toll-like (TLR) TNF – Fator de necrose tumoral TNFAIP3 – Proteína 3 induzida pelo fator de necrose tumoral α TRANCE – Citocina induzida por ativação e relacionada com o TNF Tregs – Linfócitos T reguladores VEGF – Fator de crescimento vascular endotelial WT1 – Gene tumoral de Wilms 1 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas Prior, João A.V.1, Ribeiro, David S. M.2, Santos, João L. M.3 (1) Professor Auxiliar, Requimte, Laboratório de Química Aplicada, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (2) Investigador Auxiliar, Requimte, Laboratório de Química Aplicada, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto (3) Professor Auxiliar, Requimte, Laboratório de Química Aplicada, Departamento de Ciências Químicas, Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto Autor correspondente: João A.V. Prior E-mail: [email protected] Resumo Embora os fármacos sejam desenvolvidos com fins terapêuticos, às vezes algumas substâncias são utilizadas com objetivos diferentes daqueles que o farmacologista teve em mente. A palavra fármaco também contempla substâncias psicoativas que podem usar-se com objetivos medicinais ou não-medicinais nos quais são incluídas substâncias legais e ilegais (comummente designadas por “drogas”). O uso de algumas substâncias com intenções não terapêuticas tornou-se um problema de saúde pública crescente, muito importante do ponto de vista de estudos toxicológicos. Quando supostas vítimas informam que foram roubadas ou assaltadas enquanto incapacitadas por uma droga, a análise química toxicológica é imperativa para ajudar a fundamentar a denúncia da vítima. Este tipo de ofensas criminais denomina-se por crimes facilitados por drogas. O ramo da ciência dedicado a estudos de toxicologia envolve a toxicologia forense e analítica, que são interdisciplinares e que compreendem todos os factos científicos relacionados com crimes facilitados por drogas. Normalmente, os casos de crimes facilitados por drogas implicam substâncias com fortes efeitos depressores do sistema nervoso central, e que são usadas para transformar as pessoas em vítimas fáceis de roubos ou assaltos sexuais. Dado que novas drogas são continuamente sintetizadas e, também surgem novos métodos para drogar vítimas sem o seu consentimento ou conhecimento, é imperativo desenvolver novas metodologias de análise química e toxicológica, para auxiliar na investigação científica de todos os factos dos crimes cometidos com drogas, ou ainda possibilitar a implementação de medidas de prevenção. Por exemplo, um modo de drogar vítimas sem o seu conhecimento é através da colocação disfarçada de drogas em bebidas, nos locais de diversão social, em festas, em “raves”, etc.. Nestes casos, as bebidas adulteradas são as “armas do crime”. Neste artigo, será abordado o enquadramento de crimes facilitados por drogas nas ciências de análise química toxicológica e também, será realizada uma revisão bibliográfica das metodologias analíticas disponíveis para o controlo químico toxicológico de bebidas adulteradas com drogas de abuso. Palavras-chave: Crimes facilitados por drogas; Metodologias automáticas; Bebidas adulteradas; Drogas de abuso; Rastreio de drogas. Abstract Although drugs are developed with therapeutics intentions, sometimes some substances are used for purposes other than those the pharmacologist had in mind. The word “drug” also involves psychoactive sub- 62 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas stances that can be used for medicinal or non-medicinal purposes in which it is included substances that are legal or illegal. The use of drugs for intentions other than their therapeutic purposes has become a growing public concern making their study very important from the toxicological standpoint. When alleged victims report that they were robbed or assaulted while incapacitated by a drug, toxicological chemical analysis is imperative to help substantiate the victim’s claim. These criminal offenses are known as drug facilitated crimes. The branch of science dedicated to toxicology studies has two application fields, forensic and analytical toxicology, that are interdisciplinary and that comprise all the scientific facts related with crimes committed through the use of drugs. Most often, the cases of crimes facilitated by drugs involve substances that have strong central nervous system depressant effects that are availed to easily render victims to robberies or sexual assaults. As new drugs are continuously being synthetized and new methods are used for drugging victims without their knowledge or consent it is important to develop new analytical methods that can assist in the investigation for figuring out all the details about this sort of crimes or enable ways of their prevention. For example, one way of drugging victims without being aware of is through drink spiking in social entertainment places, during parties, raves, etc. In these cases, the spiked beverages are the “crime weapons”. In this paper, it will be presented the relation of drug facilitated crimes and the toxicology science and also a review focused on the available analytical methods for the detection of adulterated beverages with drugs. Keywords: Drug facilitated crime; Automatic methodology; Spiked drinks; Drugs of abuse; Drug screening. Introdução Enquadramento toxicológico A toxicologia é uma área da ciência dedicada ao estudo dos efeitos adversos de compostos estranhos (xenobióticos e agentes químicos, físicos ou biológicos) em organismos vivos e no ecossistema. Inserida nesta área de conhecimento científico, a toxicologia analítica lida com a deteção, identificação e quantificação de substâncias tóxicas ou venenos em diversos tipos de amostras, como por exemplo, biológicas (urina, sangue, etc.), ambientais (terra, água e ar) e alimentares (líquidos e sólidos). Desempenha assim um papel importante no prognóstico, diagnóstico, tratamento e, em alguns casos, na prevenção de envenenamento, dado que os seus estudos incidem na obtenção objetiva de evidências da natureza e magnitude da exposição a um composto tóxico específico1. As análises toxicológicas solicitam-se em várias situações, tais como, (i) exames tóxicos hospitalares de foro geral e de emer- gência, incluindo o rastreio de venenos e (ii) em casos mais específicos como de toxicologia forense e rastreio de drogas de abuso 2. De facto, o estudo dos métodos analíticos usados na análise toxicológica de diferentes amostras não pode dissociar-se de outro campo da toxicologia, nomeadamente a toxicologia clínica e forense. A toxicologia forense é um híbrido de química analítica e os princípios toxicológicos fundamentais. Essencialmente, preocupa-se com a deteção e quantificação de agentes tóxicos possivelmente presentes em situações criminais e por isso é uma ferramenta importante para auxiliar nas investigações médicas ou legais de casos de morte, envenenamento e abuso de droga. De facto, o objetivo principal do toxicólogo forense é encontrar as respostas às perguntas que surgem durante a investigação criminal, como: (i) “Esta pessoa foi envenenada?”; (ii) “Qual é a natureza do veneno? ”; (iii) “Como foi administrado o veneno? ”; (iv) “Quais são os seus efeitos? ”; e (v) “Foi uma quantidade perigosa ou letal?” 3. Assim, a realização de análises químicas desempenha um pa- Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas 63 pel muito importante para esclarecer a presença de um veneno, quantificar a sua concentração e relacionar esta informação com a sua toxicidade conhecida ou efeitos sobre o organismo. A toxicologia forense pode dividir-se em três áreas diferentes: toxicologia de investigação “post-mortem”, toxicologia forense de desempenho humano e toxicologia ocupacional 4. A toxicologia “post-mortem” é a área da toxicologia forense onde o toxicólogo ajuda na investigação da possibilidade de relacionamento do abuso de álcool, drogas ou outras substâncias tóxicas com a causa de morte. A toxicologia ocupacional determina a ausência ou a presença de substâncias proibidas e dos seus metabolitos em urina, sendo utilizada para controlo dos trabalhadores nos locais de trabalho. A toxicologia de desempenho humano trata de avaliar a influência de álcool e determinadas drogas no comportamento humano e no seu desempenho normal. Deste modo, além das investigações relacionadas com atos de condução perigosa ou acidentes de viação, a toxicologia de desempenho humano envolve as investigações relacionadas com o conceito de uso de drogas para cometer crimes – Crimes Facilitados por Drogas (DFC). fácil às mesmas, dada a dificuldade do seu controlo por parte das autoridades competentes. O aparecimento de novas drogas faz também com que não existam métodos analíticos para a sua deteção rápida. Um cenário típico de DFC pode envolver a adulteração dissimulada de bebidas ou de outros alimentos com drogas psicotrópicas de modo a tornar a vítima passiva, submissa e incapaz de resistir ao atacante. Nos casos de DFC, a maioria das vítimas normalmente sofre de perda de memória do que aconteceu durante e de imediato após a ocorrência. De facto, na mente do agressor, uma droga ideal deve ser aquela que está prontamente disponível, é fácil de administrar, atua rapidamente na perda da consciência e faz com que a vítima tenha amnésia anterógrada de todos os eventos que ocorrem durante a influência da droga utilizada. Além disso, também deve originar na vítima desinibição, relaxamento de músculos voluntários e perda do controlo 5. Neste artigo, além do enquadramento do fenómeno de crimes facilitados por drogas na área das análises químicas e toxicológicas, é feita uma revisão das metodologias analíticas disponíveis para o controlo toxicológico de bebidas adulteradas com drogas associadas a DFC. Crimes facilitados por drogas Substâncias comummente utilizadas O fenómeno de Crimes Facilitados por Drogas (DFC, do inglês “Drug Facilitated Crime”) e de Assaltos Sexuais Facilitados por Drogas (DFSA, do inglês “Drug Facilitated Sexual Assault”) envolve o uso de substâncias químicas para modificar o comportamento de um ser humano com o intuito da realização de ações criminais, como por exemplo, violações, roubos e homicídios, sem o consentimento da vítima, ou até mesmo, a sua perceção dos acontecimentos. O crescente número de ocorrências registadas (e muitas outras ocorrerão sem denúncia) de crimes facilitados com o uso de drogas é um problema sério de saúde e segurança pública, originado pelo frequente aparecimento de novas drogas depressoras do sistema nervoso central e também pelo acesso O maior desafio encontrado na investigação de um caso de DFC é a dificuldade na descoberta do tipo de droga que se usou para cometer o crime. De facto, segundo a Sociedade dos Toxicólogos Forenses (SOFT, do inglês “Society of Forensic Toxicologists”) existem mais de 50 drogas reconhecidas ou suspeitas de terem sido usadas para cometer DFC 6. As substâncias mais comummente encontradas nos alegados crimes do tipo DFC (Tabela 1) podem ser drogas de abuso recreativas, medicamentos sujeitos a receita médica obrigatória, medicamentos não sujeitos a receita médica e etanol. Entre os fármacos normalmente implicados nestes casos podem destacar-se as benzodiazepinas (flunitrazepam, diazepam, etc.), análogos de benzodiazepinas (zopiclone, zolpidem, etc.), barbitúricos, anti-histamínicos Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 64 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas e inclusive, um antidiabético oral (glibenclamida) com pelo menos um caso registado 7. As substâncias mencionadas acima têm todas em comum algumas propriedades ansiolíticas, calmantes ou hipnóticas e são depressores do sistema nervoso central. Adicionalmente, os seus efeitos são perigosamente potenciados quando as drogas são ingeridas com álcool 8. sido drogada e consequentemente, não é efetuada uma investigação minuciosa para determinar o que realmente aconteceu 10. Por isso, é imperativo a recolha de matrizes de amostras adequadas e analisá-las recorrendo a metodologias analíticas de elevado desempenho para permitir a identificação da substância utilizada no crime. Tabela 1. Lista de drogas reconhecidas ou suspeitas de terem sido usadas em DFC. (Adaptado de (SOFT) SoFT 6). Matrizes de amostras Etanol A seleção da amostra correta para uma análise toxicológica é outra questão muito importante a considerar numa investigação de suspeita de DFC. As amostras normalmente escolhidas para a análise toxicológica são espécimes biológicos, nomeadamente urina e sangue, incluindo, plasma e soro. Contudo, os resultados da análise toxicológica nestas matrizes de amostras podem fornecer um resultado negativo apesar de uma droga ter sido de facto ingerida. Esta situação pode ocorrer porque as amostras biológicas impõem procedimentos de colheita especiais. Um dos problemas mais evidentes é o atraso na denúncia do crime por diversas razões, como por exemplo, devido à amnésia anterógrada da vítima, confusão mental que origina dúvidas sobre o que pode ter acontecido e, possivelmente outras razões de foro psicológico incluindo vergonha, medo e negação da ocorrência. Assim, pode decorrer tempo suficiente durante o qual a droga sofre metabolização no organismo e eliminação pelas vias biológicas normais. Consequentemente, as substâncias ingeridas podem atingir níveis de concentração no organismo abaixo dos limites de deteção dos métodos de análise disponíveis. De facto, a maioria das drogas de DFC têm um tempo de semivida muito curto, sendo rapidamente biotransformadas em vários metabolitos inativos e sofrer imediata eliminação. Como consequência dos rápidos processos de metabolização das drogas, é muito importante para o analista assegurar que as amostras biológicas são obtidas rapidamente, embora nem sempre seja possível. A utilização de amostras biológicas de sangue para análises toxicológicas é muito útil mas apenas quando o crime de DFC ocorreu no espaço de 24 horas anteriores à colheita. Em alternativa, as Análogos de benzodiazepinas Zolpidem GHB e análogos Zopiclone Ácido gama-hidroxibutírico Zaleplon 1, 4-Butanodiol Gama-butirolactona Anti-histamínicos Bromfeniramina Benzodiazepinas Clorofeniramina Alprazolam Difenidramina Clonazepam Doxilamina Clorodiazepóxido Diazepam Barbitúricos Flunitrazepam Amobarbital Lorazepam Butalbital Oxazepam Pentobarbital Triazolam Fenobarbital Secobarbital Estimulantes Anfetaminas Drogas diversas Cocaína Cetamina Metanfetamina Escopolamina MDMA Ácido valpróico Legenda: MDMA, 3,4-metilenodioximetamfetamina; GHB, ácido gamahidroxibutírico Nos casos de DFC, a identificação da droga utilizada para cometer o crime (e que constitui uma evidência de crime) é extremamente importante para estabelecer uma queixa criminal contra o perpetrador, desde que a droga usada seja a “arma” do crime. Contudo, a avaliação dos efeitos farmacológicos nas vítimas é de pouca ajuda para traçar um perfil toxicológico numa situação em que se desconfia de ter ocorrido um crime do tipo DFC. De facto, os efeitos depressores do sistema nervoso central da maioria das substâncias implicadas em DFC são muito semelhantes, o que torna difícil identificar a droga específica usada só pela avaliação dos sintomas das vítimas 9. Além disso, os efeitos farmacológicos das drogas comummente usadas em crimes do tipo DFC são característicos de uma intoxicação com etanol, levando em muitas investigações legais a supor que a vítima estaria sob o efeito de etanol em vez de ter Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas análises de urina têm algumas vantagens porque estas amostras têm um intervalo de tempo maior para a deteção das drogas frequentemente usadas em DFC, e seus metabolitos. Contudo, recomenda-se que a colheita de amostra de urina ocorra até 96 horas após a suposta ingestão da droga pela vítima 11. Quando excedido o prazo final para reunir amostras de urina e sangue, a análise toxicológica para identificar drogas DFC nestas amostras tem pouco interesse, porque o risco de não se detetar a droga aumenta consideravelmente embora na realidade possa ter ocorrido um crime facilitado com o uso de drogas. Nos últimos anos, o uso de outras matrizes de amostras para análises toxicológicas complementares tem assumido especial relevância na investigação de crimes DFC. As amostras mais comummente usadas na análise toxicológica complementar são o cabelo e fluidos orais (saliva)12. O cabelo constitui uma amostra importante para executar uma análise toxicológica. De facto, a análise de cabelo possibilita aumentar o intervalo de tempo para deteção de drogas, de semanas a meses dependendo do comprimento do cabelo, e também distinguir uma exposição única do uso crónico de uma droga, conhecimento esse de extrema importância. Adicionalmente, a estabilidade da droga dentro da matriz de cabelo é alta por longos períodos de tempo, desde que as amostras recolhidas sejam armazenadas ao abrigo da luz e humidade. Adicionalmente, as análises do cabelo envolvem procedimentos de recolha não-invasivos e fáceis de executar. Contudo, algumas desvantagens foram identificadas no uso de amostras de cabelo para análise toxicológica. Um problema importante é a possibilidade de obter falsos resultados positivos devido à contaminação ambiental do cabelo. Além disso, considerando que o cabelo é uma matriz complexa, a sua análise implica procedimentos de pré-tratamento laboriosos para evitar a possibilidade de existência de interferentes nas análises toxicológicas. Finalmente, é importante referir que para obter informações de um abuso crónico de drogas a análise de cabelo assume uma importância elevada, mas para obter dados sobre o uso de drogas num curto prazo após a ingestão, as amostras de urina ou sangue são as mais 65 indicadas não se podendo depender apenas da análise ao cabelo 12. As amostras de saliva já se usaram em investigações de crimes DFC apresentando algumas vantagens. Uma das vantagens é que a colheita de amostra pode executar-se sob a supervisão direta das autoridades, sem necessitar de técnicas invasivas (como na colheita de amostra de sangue) ou a perda da privacidade (como na colheita de amostra de urina). No entanto, estas amostras têm algumas desvantagens entre as quais, pode destacar-se a quantidade insuficiente da amostra colhida da vítima. De facto, há algumas drogas que podem inibir a secreção de saliva e provocar secura na boca. Outra desvantagem é o curto tempo de deteção, porque a concentração de drogas na saliva depende da concentração plasmática das mesmas. Assim, drogas que têm curtos tempos de semivida e que são rapidamente eliminadas do organismo são detetadas na saliva apenas por um curto período de tempo. Tal constitui uma desvantagem das amostras de saliva comparativamente às amostras de cabelo ou urina 12. Concluindo, apesar da deteção da droga de abuso nos fluidos biológicos da vítima ser de extrema importância para estabelecer uma acusação eficaz, os resultados da análise toxicológica nestes casos são geralmente negativos devido a problemas, tais como o atraso na comunicação da ocorrência, a administração de uma dose única e o curto tempo de semivida de algumas destas substâncias. Estes factos originam concentrações dessas substâncias abaixo dos limites de deteção das metodologias analíticas de controlo toxicológico, ou a total eliminação das drogas do corpo das vítimas. Substâncias como o ácido gama-hidroxibutírico (GHB) podem ser eliminadas do organismo num período de 12 horas. Além das análises toxicológicas executadas em amostras biológicas da vítima (sangue, urina, saliva ou cabelo) para descobrir a substância usada no crime, as autoridades competentes foram aconselhadas por investigadores de crimes do tipo DFC a procurar qualquer outro item de possível relevância nos locais do crime, como bebidas ou resíduos de bebida com suspeita de adulteração. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 66 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas Adulteração de bebidas No decorrer de uma investigação de suspeita de crime perpetrado com o auxílio de drogas colocadas clandestinamente em bebidas, estas devem ser analisadas para a presença de drogas como parte da investigação. As pretensas bebidas adulteradas no local do crime devem ser recolhidas pelas autoridades para serem submetidas a análises toxicológicas em laboratório ou, alternativamente, se as autoridades tiverem meios suficientes, pode executar-se uma análise de rastreio no local. Como já se mencionou, quando se realizam análises toxicológicas em amostras biológicas, numa investigação de crime do tipo DFC, os principais problemas encontrados relacionam-se com os limites de deteção das metodologias analíticas, a colheita e conservação de amostras biológicas e o tempo decorrido entre a ingestão da droga e a análise das amostras. Assim, a combinação destes fatores indica que a análise das bebidas adulteradas nestes crimes é muito importante, dado que pode ser o único modo de contornar alguns problemas inerentes na análise de amostras biológicas da vítima. De facto, os níveis de concentração das drogas nas bebidas adulteradas são muito mais altos do que os encontrados em amostras biológicas, por causa da maior estabilidade das drogas nas bebidas, onde o biometabolismo das substâncias não ocorre. Considerando o aumento dos casos de crimes executados com o auxílio de drogas, são comercializados no Reino Unido, por exemplo, alguns kits que afirmam detetar no local a presença de drogas em bebidas. Contudo, um estudo efetuado por Beynon et al. 13 demonstrou que dois kits bem conhecidos para detetar em bebidas algumas drogas usadas em crimes DFC têm uma acentuada falta de seletividade e sensibilidade. De facto, o uso de tais kits pode fornecer falsos resultados negativos na deteção de drogas de abuso, aumentando a preocupação relativa à verdadeira dimensão de crimes perpetrados com o auxílio de bebidas adulteradas com drogas no Reino Unido. O rastreio rápido e a análise toxicológica de drogas colocadas intencionalmente em bebidas representa um desafio para os laboratórios forenses e uma necessidade de desenvolvimento científico de novas técnicas analíticas ou a melhoria de metodologias já existentes. Metodologias analíticas toxicológicas Um dos problemas mais importante numa investigação de DFC é a limitação da sensibilidade das metodologias analíticas de rastreio e das utilizadas como métodos confirmatórios, dado que algumas substâncias, como por exemplo, as benzodiazepinas, são utilizadas frequentemente numa dose baixa e única. Assim, a necessidade de desenvolver novas metodologias analíticas é evidente, podendo encontrar-se na literatura científica diversos trabalhos de investigação realizados nos últimos anos para rastreio e quantificação de drogas geralmente utilizadas em DFC, em diferentes amostras 14. Os métodos de rastreio de drogas utilizadas em crimes DFC incluem imunoensaios com marcador enzimático (EMIT, do inglês “enzyme multiplied immunoassay”), imunoensaios de fluorescência polarizada (FPIA, do inglês “fluorescence polarisation immunoassay”) e kits de “Abuscreen OnTrak” ou “OnLine imunoassays” (Roche Diagnostics) 15. Para a confirmação da presença e identificação de drogas utilizadas em DFC foram desenvolvidas algumas metodologias de separação envolvendo cromatografia gasosa, cromatografia líquida e eletroforese capilar (incluindo cromatografia eletrocinética micelar (MEKC, do inglês “micellar electrokinetic chromatography”) e eletroforese capilar de zona (CZE, do inglês “capillary zone electrophoresis”)) que podem ser acopladas com diversas técnicas de deteção, como por exemplo, espectrometria de massa, espectrofotometria na região do ultravioleta, matriz de fotodíodos, fluorescência, ionização em chama (FID, do inglês “flame ionization”), captura de eletrões (ECD, do inglês “electron capture”) e detetor de azoto e fósforo (NPD, do inglês “nitrogen phosphorous”) 14. A generalidade das metodologias analíticas desenvolvidas para o controlo químico toxicológico, usadas como métodos confirmatórios, destina-se à Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas análise de amostras biológicas, encontrando-se apenas um número muito reduzido de metodologias para a deteção de drogas de abuso em bebidas. Metodologias analíticas para análise de bebidas Um estudo de revisão realizado por Brown e Melton 14, sobre métodos analíticos de determinação e quantificação de drogas publicados entre 2000 e 2010, revelou que a maioria de técnicas de análise de flunitrazepam, GHB e cetamina, implica a deteção em amostras biológicas, enquanto só 4%, 5% e 67 2% das técnicas de análise, respetivamente, se destinaram a ser realizadas em bebidas. Métodos instrumentais de elevado desempenho analítico Uma avaliação da literatura científica permitiu compilar os trabalhos científicos que envolvem o desenvolvimento de metodologias analíticas para identificação e/ou quantificação de drogas de abuso em bebidas, potencialmente utilizadas em crimes do tipo DFC. Esses trabalhos encontram-se compilados na Tabela 2 e são descritos resumidamente. Tabela 2. Métodos para determinação e quantificação de drogas DFC em bebidas. Substância Matriz Preparação de amostra Separação e deteção Recuperação % LOD µg mL-1 LOQ µg mL-1 Refer. DIA Refrigerantes, sumos de frutas LLE com clorofórmio e éter dietílico HPTLC - UV 74 – 84 - - (16) BZDs Bebidas alcoólicas, chás e sumos LLE com clorofórmio e isopropanol DEP-MS - - - (17) DIA, ALP e CHL Bebida alcoólica “Toddy” - RP-HPLC-DAD - 0,4 – 4,5 - (18) MECK - 31,8 GHB 0,722-4,37BZDs - (19) GHB e BZDs Refrigerantes, água, LLE com acetato de bebidas alcoólicas, etilo (BZDs) e diluição sumos (GHB) BZDs e outros sedativos Água, refrigerantes e cerveja - LC-ESI-MS - - - (20) GHB e GBL Bebidas alcoólicas, sumos e água LLE com clorofórmio e derivatização com TMS GC-FID GC-MS - - (21) GHB Água, cerveja e refrigerantes GC-MS - 1,5 (22) GHB Cerveja SPME com derivatização direta na fibra - 3GHB 5GBL - NMR - - - (23) (24) MECK-LIF 79 – 88 13 - CZE-DAD 49,8 – 135,8 2,7-41,5 9,0 – 138,2 (25) LLE com diclorometano LC-DED 78 – 95,5 0,02 - (26) Sumos e cerveja LLE com clorofórmio e isopropanol GC – MS 73 – 112,6 1,3 – 34,2 3,9 – 103,8 (27) GHB e GBL Bebidas alcoólicas, refrigerantes, sumos e água - NMR – PURGE - 0,03 – 0,1 1,1 – 9,8 (28) FLU Bebidas alcoólicas, refrigerantes e sumos - DESI – MS - - 3 (29) SCO Bebidas alcoólicas e creme hidratante LLE com metanol (creme) e diluição (bebidas) P-CE-C4D - 2,6 (bebidas) 0,6 (creme) - (30) CLO, FLU e NIT Bebidas LLE com acetato de etilo BZDs Refrigerantes, bebidas alcoólicas e sumos - FLU e NIT Refrigerantes BZDs e KET Legenda: DIA, diazepam; BZDs, benzodiazepinas; ALP, alprazolam; CHL, hidrato de cloral; GHB, ácido y-hidroxibutírico ; GBL, y-butirolactona; CLO, clonazepam; FLU, flunitrazepam; NIT, nitrazepam; KET, cetamina; SCO, escopolamina; TMS, trimetilsilano; LLE, extração líquido-líquido; SPME, microextração em fase sólida; HPTLC, cromatografia de alta eficiência em camada fina; DEP, sonda por eletronebulização direta; RP-HPLC, cromatografia líquida de alta eficiência em fase reversa; MECK, cromatografia eletrocinética micelar; LC, cromatografia líquida; ESI, ionização por eletronebulização; MS, espectrometria de massa; GC, cromatografia gasosa; FID, deteção por ionização com chama; NMR, ressonância magnética nuclear; LIF, fluorescência induzida por laser; CZE, eletroforese capilar por zona; P-CE, eletroforese capilar portátil; DAD, deteção por matriz de fotodíodos; DED, deteção eletroquímica; DESI, dessorção/ionização por eletronebulização; C4D, deteção condutimétrica; LOD, limite de deteção; LOQ, limite de quantificação. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 68 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas Em 1998, Sarin et al.16 desenvolveu uma metodologia baseada em cromatografia de alta eficiência em camada fina para deteção e determinação de diazepam em bebidas, implicando uma extração líquido-líquido com clorofórmio e éter dietílico para pré-tratamento da amostra. Em seguida, Chen e Hu17 em 1999 aplicaram um método de deteção por eletronebulização direta/espectrometria de massa para análise qualitativa de nove benzodiazepinas em várias bebidas. Também neste estudo, as amostras foram sujeitas a um pré-tratamento por extração líquido-líquido com clorofórmio antes da análise. Na opinião dos autores, o método é uma alternativa eficiente para identificar drogas em amostras de bebidas encontradas nos locais de crime. Depois, em 2004, Rao et al. 18 propôs uma metodologia baseada em HPLC de fase reversa com deteção por matriz de fotodíodos para a separação, identificação e determinação simultânea de hidrato de cloral, diazepam e alprazolam em bebidas alcoólicas fermentadas. Neste trabalho, o único pré-tratamento de amostra necessário foi uma filtração por membranas de nylon com malha de 0,45 nm. No mesmo ano, Bishop et al. 19 descreveu um método baseado em cromatografia eletrocinética micelar, com recurso ao tensioativo aniónico sulfato dodecil de sódio (SDS), para a separação e deteção de benzodiazepinas e ácido gama-hidroxibutírico (GHB) em várias bebidas, e em que se realizou uma extração líquido-líquido com acetato de etilo para as bebidas que continham benzodiazepinas. Em 2005, Olsen et al. 20 empregou uma cromatografia líquida com eletronebulização e deteção por espetrometria de massa para a determinação de drogas em diferentes bebidas. Também avaliaram se nove fármacos com efeitos sedativos e obtidos comercialmente, quando acrescentados a bebidas diferentes causavam a incapacitação de vítimas e também, se os comprimidos causavam a modificação da aparência e gosto das bebidas. Concluíram que quando adicionado numa determinada quantidade a uma bebida, os fármacos testados podem causar a diminuição das capacidades motoras e de perceção ou, mesmo a incapacitação. Adicionalmente, as dro- gas testadas causaram a alteração da aparência das bebidas e a maioria dos fármacos modificou o gosto da bebida original. Também em 2005, Elliott et al. 21 analisou as substâncias ácido gama-hidroxibutírico e gama-butirolactona em 50 bebidas. Neste trabalho, as amostras foram analisadas inicialmente usando cromatografia gasosa com detetor de ionização de chama (GC-FID) e de seguida usou-se cromatografia gasosa com espetrometria de massa para a confirmação dos resultados positivos obtidos previamente por GC-FID. Os autores extraíram as drogas de várias bebidas usando clorofórmio. Nesse mesmo ano, Meyers et al. 22 desenvolveu um método de análise de GHB em várias bebidas alcoólicas e não alcoólicas. O método desenvolvido envolveu inicialmente a extração de GHB de amostras aquosas por microextração em fase sólida (SPME) seguido de derivatização direta na fibra seguido de análise por GC-MS. Em 2006, Grootveld et al. 23 explorou uma metodologia baseada em espectroscopia de ressonância magnética nuclear 1H de alta resolução para a deteção e quantificação de GHB em saliva humana e em cerveja não alcoólica. Bishop et al. 24 em 2007 desenvolveu um método rápido de análise microfluídico para a deteção de benzodiazepinas em bebidas adulteradas. Neste trabalho, utilizou-se cromatografia eletrocinética micelar com um corante de cianina (Cy5) para a deteção indireta por fluorescência. Ainda, usou-se uma extração líquido-líquido com acetato de etilo para concentrar as amostras. Ainda em 2007, Webb et al. 25 desenvolveu uma metodologia baseada em eletroforese capilar de zona (CZE) com deteção por matriz de fotodíodos (DAD) para a separação e determinação de seis benzodiazepinas em várias bebidas frequentemente consumidas em bares e festas. Este método empregou um tubo capilar duplamente revestido com cloreto de poli(dialildimetilamónio) e sulfato de dextrano. Neste trabalho, nenhum pré-tratamento de amostra foi necessário para quantificar cinco benzodiazepinas nas bebidas testadas, com a exceção do vinho, cuja complexidade da matriz para análise não Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas permitiu a quantificação exata de nitrazepam. Honeychurch e Hart 26, em 2008, descreveram uma técnica por cromatografia líquida (LC) com deteção eletroquímica para determinar flunitrazepam e nitrazepam em bebidas adulteradas. As bebidas testadas foram submetidas a um procedimento de pré-tratamento de amostra antes da análise, através de uma extração líquido-líquido com diclorometano. Em 2009, Acikkol et al. 27 desenvolveu uma metodologia baseada em cromatografia gasosa com espetrometria de massa para a determinação simultânea de algumas benzodiazepinas e cetamina em diversas bebidas. As drogas foram extraídas das bebidas adulteradas por extração líquido-líquido com uma mistura 1:1 de clorofórmio e isopropanol. Mais recentemente, em 2011, Lesar et al.28 analisou algumas bebidas adulteradas com GHB e GBL através de 1H-NMR com um método de supressão de água denominado PURGE. O método de PURGE em combinação com a técnica de 1H-NMR permitiu a identificação direta e a quantificação de GHB e GBL em todas as bebidas exceto o vinho no qual a quantificação exata não foi alcançada devido a interferências da matriz da amostra. Também em 2011, D’Aloise e Chen 29 usaram uma nova técnica de desadsorção/ionização por eletronebulização acoplado a espetrometria de massa para a determinação de flunitrazepam em várias bebidas. A bebida adulterada com flunitrazepam analisou-se sem necessidade de qualquer pré-tratamento. Em 2013, Sáiz et al. 30 desenvolveu um método de determinação de escopolamina em seis bebidas alcoólicas e num creme hidratante utilizando um equipamento portátil de eletroforese capilar, modificado pelos autores. A análise do creme foi realizada após um procedimento de pré-tratamento da amostra por extração com metanol, enquanto as amostras de bebidas implicaram unicamente como tratamento a diluição das mesmas. As metodologias descritas para a análise toxicológica de bebidas com drogas usadas em crimes do tipo DFC são muito exatas e algumas apresentam elevada sensibilidade e seletividade, contudo a maioria dos procedimentos mencionados necessitam de equipamento dispendioso, analistas altamente espe- 69 cializados e exigem um tratamento de amostras laborioso e específico usando reagentes de elevado risco ambiental. Adicionalmente, estas técnicas só se executam em condições de laboratório muito especiais com a intervenção rigorosa dos técnicos especializados. Também, é importante considerar que nem todos os laboratórios dispõem de orçamento para a aquisição e manutenção de muitos dos equipamentos necessários nas metodologias de análise referidas. Os métodos acima mencionados constituem, sem qualquer dúvida, alternativas robustas para análises químicas toxicológicas, sobretudo como metodologias confirmatórias com alta confiabilidade nos resultados fornecidos. No entanto, a maioria das metodologias já desenvolvidas, para controlo químico toxicológico de bebidas adulteradas com drogas de abuso, são completamente impróprias para rastreios rápidos das bebidas nos locais de consumo ou do crime, dado que exigem equipamentos científicos de elevada dimensão e requerem tempos de preparação de amostra e análise elevados. O desenvolvimento de novas metodologias analíticas para rápido rastreio ”in situ” de drogas de abuso em bebidas é muito importante do ponto de vista forense e toxicológico. Assim, para uma rápida deteção de drogas de abuso nos locais de consumo, o objetivo principal é utilizar metodologias simples, rápidas, fiáveis e ainda com outras especificações que permitam a execução de análises fora do ambiente de um laboratório, nomeadamente: automáticas, pequenas dimensões, portáteis, reduzido consumo energético, versatilidade e facilidade de operação. Para este fim, o recurso a métodos automáticos de análise e mais precisamente as metodologias baseadas na análise em fluxo podem assumir um papel importante. Metodologias automáticas em fluxo A automação dos procedimentos analíticos em análises químicas permite efetuar rapidamente a análise de um grande número de amostras, com a diminuição da intervenção humana, e redução considerável do volume dos reagentes e amostras necessários à análise. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 70 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas Os métodos automáticos de análise têm aplicação em variados campos, inclusive análises clínicas e toxicológicas; controlo de processos industriais, de matéria-prima e produto acabado; análise regular do ar, água e solo; e controlo de qualidade de alimentos, produtos farmacêuticos e agrícolas 31. O conceito de multi-impulsão 32 através da utilização de micro-bombas solenóides apareceu em 2002, e constituiu uma nova estratégia de fluxo com características hidrodinâmicas distintas (fluxo pulsado) das outras metodologias de fluxo e com outras diferenças importantes, nomeadamente, a conceção e montagem do sistema de fluxo, dado que as etapas sucessivas de um procedimento típico na análise em fluxo incluindo a inserção de amostra, a adição de reagentes e a propulsão das soluções são efetuadas pelo mesmo componente do sistema de fluxo e não por equipamentos diversos, separados e de controlo individual. Deste ponto de vista, é de referir ainda o avanço evidente na miniaturização dos sistemas de análise. A análise em fluxo por multi-impulsão é baseada na utilização de várias micro-bombas solenoides, uma por cada solução de reagente envolvida na análise, que podem funcionar individualmente ou em combinação na impulsão de líquidos podendo atuar ao mesmo tempo como dispositivos de inserção de amostra/reagente e unidades de comutação entre as soluções. As características e as potencialidades dos sistemas de fluxo baseados no conceito de multi-impulsão tornam esta estratégia de fluxo uma ferramenta útil na implementação de procedimentos analíticos, que podem usar-se com vantagens significativas relativamente às estratégias convencionais de análise. De facto, a natureza do fluxo pulsado em combinação com múltiplas tarefas executadas pela micro-bomba e o seu controlo individual por meio de um computador permite implementar sistemas analíticos em fluxo mais compactos e que integram menos componentes, controlados com uma grande simplicidade operacional. A portabilidade destes sistemas, em virtude da sua miniaturização e exigências reduzidas de energia para funcionar, permite o transporte para fora do ambiente de laboratório e assim, possibilita executar análise de campo. Outra característica essencial dos sistemas de multi-impulsão é a versatilidade na implementação de uma grande variedade de métodos analíticos. Na literatura científica encontram-se diversos trabalhos que descrevem várias metodologias explorando o conceito de multi-impulsão com diferentes técnicas de deteção, como por exemplo, espectrofotometria, fluorescência e quimioluminescência. Considerando as vantagens da análise em fluxo por multi-impulsão, este conceito foi também aplicado no desenvolvimento de sistemas automáticos para o controlo químico e toxicológico de bebidas adulteradas com substâncias de abuso potencialmente utilizadas em crimes do tipo DFC. Em 2010, Ribeiro et al.33 desenvolveu um sistema miniaturizado e automático de análise em fluxo por multi-impulsão para o controlo químico de diazepam em bebidas alcoólicas adulteradas, com deteção fluorométrica (Figura 1). A metodologia explorada neste trabalho envolveu apenas a foto-degradação de diazepam com radiação ultravioleta e monitorização dos produtos de degradação fluorescentes. A interferência na análise de compostos fluorescentes das bebidas constituiu uma desvantagem, pelo que restringiu a aplicação a bebidas alcoólicas brancas. Figura 1. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). P1, P2 – micro-bombas solenoides (volume interno de 10 µL); X – ponto confluência; R – reator de 2 m; D – detetor de fluorescência (λex = 272 e λem = 450 nm); L – lâmpada de ultra-violeta da Philips; AP – percurso analítico de 10 cm; S – amostra; C – solução transportadora (0,2 mol L-1 NaOH); W – dreno. (Adaptado de Ribeiro et al.33) . Também Ribeiro et al. 34, em 2011, implementou uma nova metodologia química para a determinação de glibenclamida em bebidas alcoólicas adulteradas com o fármaco antidiabético. Neste tra- Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas balho, o conceito de química supramolecular foi explorado através da utilização de um tensioativo aniónico, o dodecil sulfato de sódio, para promover um meio micelar organizado que se verificou otimizar a emissão de radiação fluorescente do fármaco em meio ácido (Figura 2). A portabilidade e o controlo simples do sistema de fluxo verificaram-se devido à sua simples configuração e, também se demonstrou o potencial da metodologia proposta como um instrumento analítico valioso para a determinação de glibenclamida em bebidas alcoólicas intencionalmente adulteradas. O funcionamento do sistema de análise desenvolvido e os resultados com ele obtidos permitiram verificar a importância da sua possível aplicação em investigações laboratoriais de controlo toxicológico. 71 dologia em fluxo de multi-impulsão foi muito importante na eficiência do processo de separação em linha, principalmente, no fenómeno de desadsorção do fármaco do carvão vegetal ativado. A monitorização foi realizada por fluorescência. Figura 3. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). P1, P2, P3 – micro-bombas solenoides; X, ponto confluência; V1, V2, V3, V4 – válvulas solenoides (linha – solenoide desligado; tracejado – solenoide ligado); D – detetor de fluorescência (λex = 300 nm e λem = 404 nm); CL – coluna de separação contendo carvão ativado (5,0 cm e d.i. 0,2 cm); S – amostra: glibenclamida em 0,01 mol L-1 NaOH; C – solução de lavagem e condicionadora: 0,01 mol L-1 NaOH; E – solução eluente: 0,01 mol L-1 CTAB, 70 % etanol e 1,0 mol L-1 HCl; W – dreno. (Adaptado de Ribeiro et al.35) Conclusões Figura 2. Sistema de fluxo por multi-impulsão (MPFS). PC – micro-computador; P1, P2, P3 – micro-bombas solenoides (volume interno de 10 µL); X, ponto confluência; D – detetor de fluorescência (λex = 301 nm e λem = 404 nm); AP – percurso analítico de 10 cm; S – amostra: glibenclamida em 50 % etanol/0,2 mol L-1 H2SO4; C – solução transportadora: 0,2 mol L-1 H2SO4; R, 0,03 mol L-1 SDS; W – dreno. (Adaptado de Ribeiro et al.34) Em 2012, Ribeiro et al. 35 desenvolveu uma metodologia analítica para o controlo toxicológico de chás adulterados com glibenclamida (Figura 3). Dada a complexidade das amostras de chás, bebidas ricas em diversos compostos que interferem em muitas metodologias de análise, foi implementado num sistema de fluxo miniaturizado um processo de separação baseado numa unidade de pré-separação constituída por uma mini-coluna com carvão vegetal ativado, para a extração em linha de glibenclamida em amostras de chás adulterados. O processo de separação (adsorção e desadsorção) foi automatizado. A natureza de fluxo pulsado característico da meto- As metodologias automáticas desenvolvidas para o controlo toxicológico de bebidas constituíram uma notável contribuição para os métodos de rastreio rápido de drogas usadas em DFC, colocadas discretamente em bebidas alcoólicas e não alcoólicas, com o intuito de cometer crimes. As novas metodologias analíticas possibilitam atuar na prevenção de abusos por drogas e auxiliam no apuramento das responsabilidades legais dos crimes que envolvem as drogas de abuso. Considerando as características especiais dos sistemas de análise em fluxo por multi-impulsão, incluindo o tipo de componentes e a sua configuração, modo operacional e particularidades da hidrodinâmica de fluxo, os sistemas de fluxo desenvolvidos possibilitam portabilidade e um baixo consumo de energia, o que os torna ferramentas promissoras para análises toxicológicas de campo. Os métodos automáticos desenvolvidos para o rápido rastreio de drogas em bebidas adulteradas podem usar-se não como alternativa, mas sim como Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 72 Controlo químico de bebidas adulteradas em crimes facilitados com drogas complemento à análise toxicológica convencional de amostras biológicas (sangue e urina). Adicionalmente, permitem identificar rapidamente e quantificar a droga responsável usada em casos de crimes do tipo DFC quando as bebidas adulteradas são identificadas e recolhidas, dado que o controle químico destas amostras não necessita normalmente de métodos de quantificação com limites de deteção baixos. Sem dúvida as metodologias como a cromatografia gasosa ou eletroforese capilar são de excelência em termos de desempenho analítico, mas tais métodos tornam-se excessivos na análise de bebidas adulteradas que não requerem limites de deteção e quantificação baixos. Contudo, a matriz das amostras de bebidas constitui ainda uma grande dificuldade na aplicação de métodos de análise baseados apenas em derivatização química, exigindo por isso, métodos de análise com elevada seletividade e sensibilidade. De modo a possibilitar a aplicação com sucesso das metodologias automáticas de análise em fluxo na análise de bebidas contaminadas com drogas de abuso é necessário desenvolver sistemas com hifenização de técnicas de micro-separação e outros métodos de deteção. No futuro, o desenvolvimento de sistemas analíticos mais miniaturizados baseados em análise em fluxo, com inferiores consumos energéticos e de reagentes, deve ser explorado para obter-se métodos alternativos de análise passíveis de utilização em análises de campo, para o rastreio rápido e em tempo-real de drogas em bebidas adulteradas em locais de entretenimento social. No entanto, é importante não esquecer que os resultados de uma análise toxicológica podem ter sérias consequências forenses e legais, pelo que a qualidade dos métodos analíticos precisa de um controlo constante e rigoroso. Referências bibliográficas 1. Flanagan RJ, Taylor AA, Watson ID, Whelpton R. Fundamentals of Analytical Toxicology. England: John Wiley & Sons Ltd; 2008. 2. Couchman L, Morgan PE. LC-MS in analytical toxicology: some practical considerations. Biomed Chromatogr. 2011; 25(1-2):100-23. 3. Moffat A, Osselton M, Widdop B, Jickells S, Negrusz A. Introduction to forensic toxicology. In: Jickells S, Negrusz A, editors. Clarke’s Analytical Forensic Toxicology. 1st ed: Pharmaceutical Press; 2008. p. 1-11. 4. Goldberger BA, Polettini A. Forensic toxicology: web resources. Toxicology. 2002; 173(1-2):97-102. 5. Kintz P. Bioanalytical procedures for detection of chemical agents in hair in the case of drug-facilitated crimes. Anal Bioanal Chem. 2007; 388(7):1467-74. 6. 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Exploiting adsorption and desorption at solid– liquid interface for the fluorometric monitoring of glibenclamide in adulterated drinks. Anal Chim Acta. 2012; 721:97-103. O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Gomes, Maria J.1, Ramos, Fernando2 (1) Mestre em Ciências Farmacêuticas. Farmacêutica. (2)Doutor em Farmácia – Especialidade de Bromatologia e Hidrologia. Professor Associado da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra Centro de Estudos Farmacêuticos. Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra. Azinhaga de Santa Comba. 3000-549 Coimbra. Portugal Autor correspondente: Fernando Ramos [email protected] Faculdade de Farmácia. Universidade de Coimbra. Pólo das Ciências da Saúde. Azinhaga de Santa Comba. 3000-548 Coimbra Resumo Os medicamentos genéricos são, atualmente, uma forma de diminuir as despesas em Saúde em Portugal. Estes medicamentos surgem quando expira a patente de um medicamento original e apresentam, normalmente, um preço mais baixo contribuindo, assim, para a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde. A quota de mercado dos medicamentos genéricos começou a aumentar a partir de 2003 refletindo as medidas implementadas de promoção dos medicamentos genéricos. Os preços destes medicamentos tem vindo a diminuir continuadamente ao longo dos anos, havendo uma redução de 42 % apenas do ano de 2011 para 2012. As taxas médias de comparticipação dos medicamentos apresentam uma tendência para diminuir levando a um aumento dos encargos em medicamentos por parte dos cidadãos. Ainda, neste âmbito, as farmácias vivem uma fase crítica, uma vez que, as margens de lucro tem vindo a diminuir, sendo em alguns casos negativas. Devido a estes fatores, questiona-se a acessibilidade aos medicamentos por parte dos utentes uma vez que vivemos uma crise económica e social acompanhada de uma potencial diminuição da cobertura farmacêutica. Palavras-chave: Medicamentos Genéricos, Preços de Referência, Farmácias, Acessibilidade aos Medicamentos Abstract Nowadays, generic medicines are used to reduce the health expenses in Portugal. These medicines arise when the reference medicine patent expires and have usually a lower price in order to contribute to the sustainability of the National Health Service. The Portuguese market of generic medicines began to increase since 2003. This was the consequence of the policies implemented to promote generic medicines. The prices of generic medicines have been declining constantly over the years, with a decrease of 42 % only from 2011 to 2012. The average reimbursement of medicines has a tendency to decrease which increases the amount that the patients pay. In this context, pharmacies live a critical period because of the decrease of the profit margins that are in some cases negative. Due to these situations, the accessibility to medicines by patients is questioned, since Portugal live in an economic and social crisis accompanied by a potential decrease of the pharmaceutical services coverage. Keywords: Generic medicines, Reference Prices, Pharmacies, Accessibility to Medicines 76 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Introdução Os medicamentos de marca são, normalmente, inovadores numa determinada classe terapêutica ou são resultado de um melhoramento de outros medicamentos ou tratamentos já existentes1. Esta inovação resulta de elevados investimentos por parte da indústria farmacêutica durante um longo período de tempo. No final de um processo de desenvolvimento bem-sucedido, estes medicamentos são protegidos por uma patente que permite a recuperação dos investimentos realizados uma vez que é propriedade industrial do detentor de Autorização de Introdução no Mercado (AIM) que lhe deu origem, conferindo-lhe uma situação de monopólio de mercado. As patentes são um elemento fundamental do processo económico que conduz a obtenção de inovações 2. A nível nacional, o Instituto Nacional de Propriedade Industrial estabelece a duração do registo de patente por um período de 20 anos, contado a partir da data de concessão 3. Finalizado o período de proteção por patentes, estima-se que a indústria inovadora já tenha recuperado os custos associados com a inovação sendo a proteção de concorrência de outras empresas eliminada. Surgem, então os medicamentos genéricos (MG) que são o foco principal deste trabalho. Assim, os MG apresentam um preço de custo substancialmente mais baixo em relação ao medicamento original uma vez que não incorporam os custos de investigação e desenvolvimento, refletindo-se num menor custo para o cidadão e para o Serviço Nacional de Saúde (SNS) 2. Segundo o INFARMED, “um MG é um medicamento com a mesma substância ativa, forma farmacêutica e dosagem e com a mesma indicação terapêutica que o medicamento original, de marca, que serviu de referência”4. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, no artigo 3.º, n.º 1, alínea n, define MG como um “medicamento com a mesma composição qualitativa e quantitativa em substâncias ativas, a mesma forma farmacêutica e cuja bioequivalência com o medicamento de referência haja sido demonstrada por estudos de biodisponibilidade apropriados” 5. A avaliação da segurança e eficácia dos MG em Portugal é da responsabilidade do INFARMED que segue as normas técnicas aceites e aprovadas para toda a Europa. De referir que o medicamento original tem vários anos de comercialização, aumentando a segurança uma vez que são enumerados outros efeitos adversos não detetados em ensaios clínicos de desenvolvimento. Assim, Os MG têm origem em medicamentos para os quais existem um longo historial clínico. No entanto, são realizados ensaios de biodisponibidade e bioequivalência (BD/BE), referidos anteriormente, para garantir que o MG e o medicamento de referência (MR) são intercambiáveis entre si, isto é, com igual eficácia e semelhança de efeitos adversos 6. Os ensaios de biodisponibilidade e bioequivalência (BD/BE) são ensaios clínicos que visam determinar se as concentrações sanguíneas de determinado medicamento e, eventualmente, os seus metabolitos ativos atingem ou não os níveis exigíveis em diferentes parâmetros. Os intervalos de variação aceites são estreitos de forma a garantir uma permuta segura entre o medicamento de referência e o genérico 6. Atualmente existe, ainda, desconfiança por parte dos cidadãos e de alguns profissionais de saúde em relação aos MG. O assunto não é recente, tendo-se iniciado, fundamentalmente, com a introdução da Nova Política dos Medicamentos há, aproximadamente, 10 anos. A crise financeira vivida em Portugal permitiu que os MG vivessem um momento de elevada visibilidade e, consequentemente, de penetração de mercado. De facto, não podemos ignorar o impacto socioeconómico destes medicamentos uma vez que, desse ponto de vista, facilitaram o acesso ao medicamento e contribuíram para a sustentabilidade financeira do SNS. Assim, nos últimos 10 anos, o Estado tem vindo a tomar diversas medidas no sentido de incentivar o uso de MG. Para além disso, tem usado uma política de preços de referência que tem promovido descidas dos preços de medicamentos. De facto, estas políticas, a curto prazo, melhoram o acesso a medicamentos e diminuem a despesa em Saúde7. No entanto, devido a essas políticas, as farmácias O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia encontram-se numa situação de resultados líquidos mais baixos, relativamente aos períodos anteriores. Algumas apresentam-se em situação de insolvência, ou até mesmo de falência, o que influencia negativamente a sua capacidade de abastecimento e dispensa de medicamentos ao cidadão, a curto e médio prazos. O presente artigo procura fazer uma análise do mercado de medicamentos genéricos, nomeadamente a evolução do seu consumo e do seu preço nos anos de 2011 e 2012. Além disso, procura, também, apresentar uma visão tripartida, avaliando o impacto do consumo destes medicamentos na perspetiva do Cidadão, do Estado e das Farmácias. Evolução histórica dos medicamentos genéricos em Portugal A Lei n.º 81/90, de 12 março foi o primeiro diploma que se referia a MG no que diz respeito à sua produção, AIM, distribuição, preço e comparticipação 8. Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 72/91, de 8 de fevereiro, estabeleceu a definição de MG e estabeleceu as condições de prescrição e dispensa 9. Outras medidas foram realizadas nomeadamente com a Portaria n.º 623/92, de 1 de julho, que alterou o regime de formação de preços dos MG (20 % abaixo do PVP do MR) 10 assim como com o Decreto-Lei n.º 249/2003, de 9 de julho, que alterou as condições de AIM. No entanto, apesar de terem sido tomadas estas medidas, até esta última data, a quota de mercado de medicamentos genéricos era pouco significativa (inferior a 0,5 %) 7. A partir de 2000 o Ministério da Saúde criou o Programa Integrado de Promoção de Genéricos e é a partir desta data que se inicia o crescimento sustentado da quota de mercado dos MG. Algumas das medidas que contribuíram para este crescimento foram, por exemplo, a criação do Sistema de Preços de Referência12 e a obrigatoriedade da prescrição por Denominação Comum Internacional (DCI) para substâncias ativas com MG autorizado 13. Foram, ainda, realizadas campanhasa de informação sobre a qualidade, eficácia e segurança dos MG tanto para profissionais de saúde como para o 77 público em geral e foram, também, estabelecidas medidas dirigidas à indústria farmacêutica tais como a simplificação de processos de AIM e melhorias no processo de avaliação e aprovação de MG 14. Contexto social e económico Numa época de crise financeira, o sistema de saúde português é questionado quanto à sua sustentabilidade, nomeadamente em aspetos relacionados com os medicamentos. Na Figura 1 está representada o consumo per capita de medicamentos entre 1999 e 2010, verificando-se um aumento constante desse consumo, refletindo-se, assim, num aumento da despesa total com medicamentos havendo, contudo, uma desaceleração entre 2005 e 2007 7. De fato, perante este aumento da despesa, era necessário serem tomadas uma série de medidas, surgindo, deste modo, a Nova Política do Medicamento. Figura 1. Consumo per capita de medicamentos pelo Serviço Nacional de Saúde. A Nova Política do Medicamento visa, essencialmente, a redução de preços, através do sistema de PR, o incentivo ao uso de MG e ainda, a criação de mecanismos de mercado para motivar descidas de preços, tendo como objetivo reduzir a despesa com medicamentos. Outros objetivos da Política do Medicamento são assegurar a equidade do acesso aos medicamentos e promover a utilização racional por prescritores e consumidores 15. No entanto, as recentes medidas implementadas no âmbito da Política do Medicamento restringem-se, essencialmente, a aspetos financeiros, o que, a longo prazo, se mostrará ineficaz 15. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 78 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia De referir que, no ano de 2011, Portugal solicitou ajuda externa, passando a ser um país governado a par com o que se convencionou chamar-se Troika (Fundo Monetário Europeu, Banco Central Europeu e União Europeia). Neste âmbito, foi estabelecido o Memorando de Entendimento com a Troika que, para além de outras, define novas medidas para a Saúde e Medicamento que deverão ser (ou que estão a ser) aplicadas em Portugal. Algumas dessas medidas são: rever o atual sistema de preços de referência com base nos praticados internacionalmente, sensibilizar os médicos para a prescrição de MG e MR menos dispendiosos, remover as barreiras à entrada de MG e alterar o cálculo das margens de lucro para instituir uma margem comercial regressiva e um valor fixo para as farmácias 16. No Orçamento de Estado de 2012 estas medidas ficaram definidas visando a sua implementação 17. Medicamentos Genéricos em Portugal No Plano Nacional de Saúde (PNS) de 20042010 definiu-se uma meta para 2010 que estabelecia uma percentagem da ordem de 15 a 20 % de MG no mercado total de medicamentos. Esta meta foi plenamente alcançada como se ilustra na Figura 2. O Programa Integrado de Promoção dos MG, patrocinado pelo Ministério da Saúde, foi o elemento chave do crescimento do mercado de MG na primeira metade da década de 2000 18. Figura 2. Quota de mercado em valor e em volume de medicamentos genéricos em Portugal. Até meados do ano de 2001, o mercado de MG em Portugal era praticamente nulo. A partir desta data assistiu-se a um aumento desse mercado que, embora inicialmente lento, viria a acelerar até meados da década. Após este rápido desenvolvimento, verificou-se um ritmo de crescimento menos pronunciado, alcançando-se uma espécie de patamar a partir de 2008 7. Estas taxas de crescimento ao longo dos anos 2004 até 2010 estão ilustradas na Figura 318. Figura 3. Taxa de crescimento do mercado de medicamentos genéricos em Portugal entre 2004 e 2010 Apesar do crescimento da quota de mercado dos MG em Portugal ter aumentando ao longo dos últimos anos, verifica-se que, em 2009, o mercado de MG, quer em valor quer em embalagens, ficou muito aquém de países como a Alemanha, Eslovénia ou outros países da antes designada Europa de Leste 19. No entanto, Portugal apresentou uma melhor posição em relação a Itália e Grécia, sendo, à época, o único país em que a quota de mercado em valor era superior à quota de mercado em embalagens, verificando-se, assim, que se podia, ainda, percorrer um longo percurso em relação ao mercado de genéricos, sobretudo no que ao número de embalagens dizia respeito 19. Uma vez que o objectivo deste trabalho se foca nos anos de 2011 e 2012, aprofundar-se-á o estudo da variação do consumo de medicamentos genéricos durante esse intervalo de tempo. No ano de 2011 o comportamento do mercado de MG está representando na Figura 4 em que se pode observar que a quota de mercado, em valor, diminuiu cerca de 4 % desde janeiro até dezembro de 2011, enquanto que, em número de embalagens, cresceu cerca de 0,5 % 20. Verifica-se, então, uma desproporcionalidade entre o crescimento em valor e em embalagens que se explica através das alterações frequentes dos preços, apesar do número de embalagens dispensado ter sido ser superior. O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Figura 4. Quota de mercado de medicamentos genéricos ao longo dos anos de 2011 e 2012. Analisando, agora o ano de 2012, através da Figura 4, verifica-se que o comportamento foi relativamente semelhante, havendo uma taxa de crescimento da quota de mercado, em embalagens, de 0,8 %, enquanto que, em valor, apresentou um valor negativo na ordem dos 2,6 % 21. Deste modo, observa-se que durante os anos de 2011 e 2012 o comportamento do mercado dos MG foi semelhante havendo uma diminuição relativamente constante da quota de mercado, em valor, com um aumento em número de embalagens, refletindo um maior consumo de MG que, no entanto, não compensou, do ponto de vista económico, as descidas dos preços dos MG. A evolução do preço dos medicamentos genéricos A formação dos preços dos medicamentos e o sistema de preços de referência O PVP (Preço de venda ao público) dos medicamentos é composto por diferentes parâmetros: a) Preço de venda ao armazenista (PVA): o preço máximo para os medicamentos no estádio de produção ou importação; b) Margem de comercialização do distribuidor grossista; c) Margem de comercialização da farmácia; d) A taxa sobre a comercialização de medicamentos e e) IVA. O PVP dos medicamentos a introduzir pela primeira vez no mercado nacional ou os referentes a alterações da forma farmacêutica e da dosagem não podem exceder a média que resultar da comparação com os preços de venda ao armazenista em vigor nos países de referência para o mes- 79 mo medicamento ou, caso este não exista, para as especialidades farmacêuticas idênticas ou essencialmente similares, acrescido das margens de comercialização, taxas e impostos vigentes em Portugal. Até 2012, os países de referência eram a Espanha, a Itália e a Eslovénia 22. Em 2002, introduziu-se o sistema de preços de referência (PR) em Portugal que alterou significativamente o mercado de medicamentos causando, nomeadamente, facilidade à entrada de MG. O preço de referência é o valor sobre o qual incide a comparticipação do Estado no preço dos medicamentos incluídos em cada um dos grupos homogéneosb, quando o PVP é superior ao PR. O PR corresponde à média dos cinco preços mais baixos dos medicamentos que integram cada grupo homogéneo. O cálculo é feito com base em cinco preços distintos, o que pode corresponder a mais do que cinco medicamentos, independentemente de serem genéricos. A partir da média dos preços mais baixos é calculado o Preço de Referência unitário 22. O PR é estabelecido quando existem MG no mercado, alterando a taxa de comparticipação sobre o medicamento original. Assim, traduz-se numa maior sensibilidade ao preço por parte dos utentes, uma vez que, normalmente, existe uma grande diferença no pagamento caso se opte, no momento da aquisição, por um MG ou por um medicamento de marca 2. Em termos práticos, após obtida a AIM, o Ministério da Economia fixa um preço máximo de comercialização baseado numa comparação internacional. Caso seja um MG, o preço máximo é fixado num valor inferior em 35 por cento dos respetivos medicamentos de marca ou 20 por cento no caso de medicamentos com PVP inferior a 10 euros. É feita uma revisão trimestral dos preços de referência dos grupos homogéneos (em que se pode alterar a composição dos mesmos) e existem, ainda, mecanismos administrativos de revisão periódica dos preços 22. Breve análise dos anos 2007 a 2010 A Figura 5 representa a evolução do preço dos genéricos entre outubro de 2006 e fevereiro de 2011. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 80 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Esta evolução é explicada por uma série de medidas que foram implementadas no sector do Medicamento, nomeadamente no sector dos MG. Figura 5. Preço dos MG entre Outubro 2006 e Fevereiro 2011 Na Figura 6 estão evidenciados os preços de moléculas mais representativas em 2007 e 2010, em que há uma visualização gráfica da diferença dos preços. nova portaria veio estabelecer que os PVPs máximos dos MG superiores a 5 euros, aprovados até março de 2008, seriam reduzidos em 30 % 24. Também em 2010 uma serie de medidas foram implementadas, nomeadamente: definição do PVP dos novos medicamentos a comparticipar como inferior em 5 % relativamente ao PVP do MG mais barato com pelo menos 5 % da quota de mercado de MG do grupo homogéneo e alteração das regras de cálculo do preço de referência para os grupos homogéneos, correspondendo à média dos cinco PVPs mais baixos praticados no mercado 25. Ainda, em outubro de 2010, foi definida uma redução de 6 % no PVP máximo dos medicamentos comparticipados 26. Após uma breve revisão da evolução dos preços dos MG entre 2007 e 2010, segue-se uma análise da variação dos preços dos anos de 2011 e 2012, nos quais foram implementadas várias medidas no âmbito dos medicamentos, com o objetivo de contenção da despesa pública em Saúde. Evolução dos preços dos medicamentos genéricos em 2011 e 2012 Figura 6. A) Diferença percentual entre o preço médio de cada DCI praticado em 2007 e 2010. B) Comparação do valor do preço médio para cada DCI praticado em 2007 e em 2010 Nota: DCIs com maior volume de vendas em embalagem durante os anos 2007-2010. Em março de 2007 foram estabelecidas novas regras de fixação dos preços de medicamentos por referenciação internacional e os preços deixaram de ser preços fixos para passarem a ser preços máximos. Além disso, estabeleceram-se reduções no preço dos MG em função da evolução da quota de mercado e, definiu-se, ainda, que o PVP dos novos MG tinha de ser inferior a 35 % ao preço de referência, ou a 20 % se o preço de referência fosse menor que 10 euros23. Em Setembro de 2008 verifica-se uma diminuição considerável dos preços dos MG uma vez que uma No ano de 2011 foram implementadas novas medidas no âmbito da Política do Medicamento que, somadas às medidas dos anos anteriores e aos mecanismos de mercado, resultaram numa diminuição relativamente constante ao longo desse período como se pode ver na Figura 7. Segundo dados do INFARMED, a média dos preços dos MG em 2011 foi de 10,43 euros. Em janeiro, a média de preços rondava os 11,58 euros enquanto que no final do ano rondava os 8,79 euros, o que corresponde a uma diferença de 2,79 euros 20. Figura 7. Preço médio dos MG em 2011 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia O Decreto-Lei n.º 112/2011, de 29 de novembro, define novas políticas na área dos medicamentos em que o artigo 8.º estabelece a formação de preços dos MG. Assim, o PVP destes medicamentos a introduzir no mercado nacional é inferior, no mínimo, em 50 % ao PVP do medicamento de referência, com igual dosagem e na mesma forma farmacêutica. Excetuam-se os casos em que o PVA é inferior a 10 euros em todas as apresentações em que o PVP deverá ser inferior em 25 % ao do medicamento de referência, conforme foi determinado pelo Decreto-lei n.º 112/2011, de 29 de novembro, que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2012 22. Novas medidas foram estabelecidas com a Portaria n.º 4/2012, de 2 de janeiro, nomeadamente a revisão anual dos preços dos MG sendo objeto de revisão em função do preço máximo, administrativamente fixado, do MR com igual dosagem e forma farmacêutica. Assim, os PVPs dos MG foram reduzidos até ao valor correspondente a 50 % do preço máximo administrativamente fixado do MR para PVA superiores a 10 euros. No caso de PVA inferiores a 10 euros, os PVPs foram reduzidos para 75 % do preço máximo administrativamente fixado 27. Assim, nesse mesmo ano de 2012, verificou-se uma nova descida do preço dos medicamentos genéricos 27. Na Figura 7 verifica-se que essa baixa de preços acontece entre fevereiro e março uma vez que as farmácias tinham uma margem de 90 dias para escoar os medicamentos com o preço estabelecido antes destas novas medidas. A média dos preços dos MG no ano de 2012 foi de 7,10 euros apresentando uma diferença de 3,33 euros face ao ano anterior. Em janeiro de 2012 o preço médio era de 8,5 euros, enquanto que no final do ano era de 6,70 euros, havendo uma descida de 1,8 euros. Como já referido, a grande descida deu-se em março com uma diferença de 1,14 euros, face ao mês de fevereiro 21. E em 2013? Segundo dados do INFARMED, entre janeiro e março de 2013 a quota de mercado, em volume, 81 de MG foi de 27,1 %, superior ao valor de 2012. Em relação à quota de mercado em valor dos MG houve um aumento de 1,4 % relativamente ao valor de 2012, representando um valor de 18 % do mercado total de medicamentos. O preço médio dos medicamentos genéricos foi de 6,71, 6,83 e 6,80 euros em janeiro, fevereiro e março, respetivamente, havendo, assim, um ligeiro aumento dos preços 28. Apesar da progressão no aumento de mercado da quota dos MG em Portugal, na sexta atualização do memorando de entendimento com a Troika, em dezembro de 2012, foi estabelecido como objetivo uma quota de mercado de MG em volume de 45% em 2013 17 o que se afigura ser difícil, para não dizer impossível, de atingir em presença dos resultados do 1º trimestre de 2013. Entretanto, uma nova portaria foi publicada, Portaria n.º 91/2013 de 28 de fevereiro, que define como novos países de referência para o estabelecimento do preço de MG, a Espanha, França e Eslováquia 29. Esta Portaria anula, também, a baixa do preço dos MG, no sentido de evitar a saída do mercado português de inúmeros medicamentos genéricos por inviabilidade económica que, como é sabido, estava a ser comum 17. Em 2013, introduziu-se, pela primeira vez, um mecanismo de comparação internacional de preços para os medicamentos utilizados em meio hospitalar 17 através do Despacho n.º 4927A/2013, de 10 de abril, que estabelece uma reapre ciação dos preços máximos e dos limites máximos de encargos a que os hospitais do SNS estão autorizados 30. Comparação dos preços e sistemas de preços com países da OCDE Em vários países da OCDE também existe uma vontade de diminuir as despesas com os medicamentos. As medidas implementadas diferem de país para país, no entanto algumas delas são comuns. Sendo o foco deste estudo avaliar a evolução do preço dos MG, importa analisar que medidas são realizadas noutros países neste âmbito comparando com as praticadas em Portugal. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 82 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Um estudo realizado pela PREMIVALOR Consulting , em julho de 2011, teve como objetivo comparar o preço dos MG em Portugal com os países da EU (Espanha, Itália, França e Grécia) que, naquela época, eram os países de referência estabelecidos19. Os dados obtidos permitem concluir que os quatro países referenciados apresentavam uma média dos preços unitários mais elevada comparativamente a Portugal, havendo maior discrepância com a Grécia e menor com a Espanha 19. Os resultados obtidos da análise das 5 DCIs com maior volume de embalagens vendidas em Portugal indicam que, à data, os preços praticados em Portugal eram, em geral, mais baixos. Assim, compreende-se perfeitamente a entrada em vigor da Portaria n.º 112-B/2011, de 22 de março, que estabelecia o adiamento da revisão de preços por um período de três meses, de forma a “permitir reflexão”, uma vez que “que, em média, os preços dos medicamentos já está abaixo dos PRs” 31. Os preços dos medicamentos apresentam uma evolução diferente em países com liberalização ou com sistema de preços regulado. Analisando o que se faz noutros países no âmbito da promoção dos MG verifica-se que em vários países da Europa como França, Alemanha e Itália também se implementou o sistema de PR. No entanto, nos Estados Unidos e no Reino Unido o sistema de preço mantém-se relativamente liberalizado o que se reflete em mecanismos de mercado diferentes, observando-se que há uma maior variação de preços dos MG nos Estados Unidos e no Reino Unido 32. Assim, apesar dos Estados Unidos e do Reino Unido não apresentarem uma estrutura rígida de definição de preços com objetivo de manter preços baixos, estes dois países apresentam uma maior descida dos preços dos MG. Isto sugere que quando estamos perante um sistema de PR existe uma baixa competição entre preços, havendo uma grande concentração de preços à volta do PR estabelecido e os preços vão diminuindo de forma mais lenta 32. Ainda de referir que no Reino Unido a penetração dos MG no mercado assim como a diferença de preços entre MG e MR foi, em 12 medicamentos, superior à de outros países europeus que têm PR estabelecidos33. 19 Após aplicação de novas medidas e ideias, deve-se avaliar os resultados e os impactos obtidos. Com os estudos referidos, verifica-se que apesar de se acreditar que o Sistema de Preços de Referência é o que permite uma maior diminuição dos gastos do SNS em medicamentos por aumento da concorrência com efeito significativo na diminuição de preços 2, não foi esse sistema que trouxe uma maior penetração de MG no mercado nem maior rapidez na diminuição dos preços do MG, conforme se pode comprovar com o que aconteceu no Reino Unido. Em países com os preços liberalizados as empresas de MR têm tendência para aplicar preços mais elevados, enquanto que em países com preços regulados os MR apresentam preços mais baixos. No primeiro caso, os potenciais produtores de MG são atraídos a entrar no mercado uma vez que poderão obter margens elevadas. Por outro lado, nos países com sistema de preços regulado, as medidas fazem com o que os preços dos MG diminuam durante o seu ciclo de vida, o que não estimula a entrada de MG no mercado 34. Este aspeto explica os diferentes comportamentos do mercado em países como o Reino Unido e Alemanha, por exemplo. O mercado de MG não pode ser avaliado apenas pelo fator preço. Nos países referidos outras medidas foram implementadas. Na área do incentivo à prescrição dos MG pretende-se que se alterem os padrões de prescrição, de dispensa e, também, de consumo. Procura-se tornar os médicos sensíveis ao preço através da criação de orçamentos de prescrição, da monitorização e auditoria e ainda, através da definição de normas de prescrição33. No entanto, os orçamentos poderão ter como desvantagem o racionamento baseado na ordem de chegada e não na necessidade 2. No que diz respeito ao farmacêutico, várias medidas, no ato da dispensa, foram já realizadas, tais como a autorização para substituição do MR pelo MG caso o utente, devidamente informado, assim o permita. Esta medida foi também implementada em Portugal e em países como a Alemanha, Estados Unidos e Itália. Mas, para além disso, foram defi- O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia nidas taxas fixas ou margens regressivas em países como a Alemanha, França, Espanha e Itália, em que a dispensa de um MG ou de MR se torne igualmente rentável, não havendo dependência exclusiva do preço dos medicamentos 33. Uma medida comum a alguns países, como França, Itália, Espanha e Estados Unidos, foi a definição de legislação que permite a entrada rápida dos MG no mercado uma vez que os laboratórios de genéricos estão autorizados a iniciar o processo regulamentar antes da queda da patente de um MR. Para além disso, nos Estados Unidos, o primeiro MG a entrar no mercado tem seis meses de exclusividade de mercado o que estimula a rápida comercialização de um MG 33. O maior ou menor sucesso das políticas de promoção dos MG não depende única exclusivamente do seu preço, mas do conjunto de medidas que podem ser aplicadas neste âmbito. O memorando da Troika prevê, aliás, uma série de medidas não relacionadas com o preço. O Estado e o cidadão: As taxas de comparticipação e a acessibilidade ao medicamento O Estado apresenta três funções distintas no sector da saúde: acionista, regulador e pagador. Este papel tripartido concentra muitas responsabilidades numa só organização, que poderão, inclusive, ser contraditórias entre si, originando conflitos de interesses na tomada de decisão 1. A comparticipação do Estado existe para proteger os utentes de riscos financeiros, funcionando como uma forma de seguro de saúde (proteção contra a incerteza do momento e volume de consumo necessário) 2. Existem várias alternativas a nível do sistema de comparticipação tais como o cidadão pagar a totalidade do valor do medicamento, caso este não seja comparticipado (nem todos os medicamentos são abrangidos pela comparticipação), a comparticipação ser estabelecida por um preço de referência (atual sistema português) ou os medicamentos possuírem iguais taxas de comparticipação independentemente de serem genéricos ou de marca 2. Para melhor compreender como funciona a 83 comparticipação num sistema de preços de referência simula-se o cálculo do preço a pagar pelo utente na aquisição de medicamentos: Sendo C a taxa de comparticipação dos medicamentos, P o preço do medicamento adquirido pelo utente e PR o preço de referência estabelecido o utente pagará P – C x PR. Ou seja, se P < PR o utente pagará um valor relativamente baixo ou mesmo nulo. Caso P > PR o utente pagará (1–C)x PR + P–PR, ou seja, o utente pagará a parte não abrangida pela comparticipação do preço de referência acrescida da diferença entre o preço do medicamento escolhido e o preço de referência. Ao Estado cabe pagar C x PR. É sabido que a entrada de MG altera a dinâmica de mercado uma vez que há aumento de concorrência e assim originam preços menores no mercado 2. Verifica-se, de fato, que existe uma grande diferença de preços entre MR com e sem MG no mercado. Além disso, na presença de MG o Estado paga uma quantia muito menor pelo medicamento. Assim, compreendem-se as constantes medidas implementadas com o objetivo de promover os genéricos e de, inclusive, facilitar a sua entrada no mercado. Importa ainda referir que, apesar das diferenças substanciais de preço, existe sempre um grupo de utentes que prefere (ou o médico assim o indica) o medicamento de marca, sendo um grupo menos sensível ao preço 2. Na Figura 8 apresenta-se o comportamento da taxa média de comparticipação entre 2007 e 2010 em que se verifica um crescimento até ao ano de 2010, com diminuição considerável nos anos 20102011. Figura 8. Taxa média de comparticipação de medicamentos entre 2007 e 2011 Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 84 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia O Decreto-Lei n.º 48-A/2010, de 13 de maio, definiu vários escalões de comparticipação. Os medicamentos foram englobados num dos quatro escalões estabelecidos, dependendo das indicações terapêuticas, da utilização, das entidades que o prescrevem e das necessidades acrescidas de certas patologias. Assim, o escalão A tinha comparticipação de 95 % do PVP, o escalão B 69 %, o escalão C 37 % e, por último, o escalão D com 15 % de comparticipação sobre o PVP 25. No Decreto-Lei n.º 106-A/2010, de 1 de Outubro, a comparticipação do escalão A diminuiu em 5 %, ou seja, os medicamentos englobados no escalão A passaram a ter 90 % de comparticipação 35. A diminuição da taxa média de comparticipação reflete-se num aumento dos encargos em medicamentos para os utentes e numa diminuição dos encargos para o SNS como se observa na Figura 9. Os encargos per capita de medicamentos passaram de 200,65 euros em 2010 para 162,69 euros em 2011 (menos 37,96 euros), enquanto que para o utente passaram de 86,66 euros para 95,01 euros (mais 8,35 euros) 36. Figura 9. Encargos per capita em medicamentos pelo SNS e utentes. Estas modificações, associadas à crise vivida em Portugal, geram questões de acessibilidade aos medicamentos por parte dos utentes. Num estudo da Universidade Nova de Lisboa37 realizaram-se inquéritos a utentes de 18 % das farmácias portuguesas, em que 23 % dos inquiridos referiram ter abdicado de comprar medicamentos. Destes, 60 % justificaram que esse comportamento se ficou a dever a motivos financeiros 37. Um outro estudo fez um inquérito a 78 utentes, em que 20 % não adquiriram a totalidade dos medicamentos prescritos. Destes 25% indi- caram dificuldades económicas como a causa para essa atitude15. No entanto, existem exceções a este sistema de comparticipações, nomeadamente as insulinas para tratamento da diabetes. Estes produtos são financiados na totalidade pelo Estado, fazendo com que o utente não suporte qualquer custo direto. Apesar de ser uma patologia crónica que deve ser apoiada, o fato de estes produtos serem cedidos gratuitamente leva a uma tendência para um consumo excessivo devido a desvalorização por parte do utente, originando, também, tendência para aumento do preço por parte dos laboratórios que as produzem. Assim, deve, eventualmente, ser encontrado um valor diferente na comparticipação destes produtos de modo a equilibrar solidariamente os encargos de todos os cidadãos para com o SNS. Ao mesmo tempo que se procura a sustentabilidade do SNS, procura-se garantir o acesso aos medicamentos por parte dos cidadãos, o que se torna um desafio cada vez mais relevante. Neste âmbito importa introduzir o conceito de medicamentos essenciais que são definidos pela OMS como aqueles que satisfazem as necessidades dos cuidados de saúde prioritários para a população e que devem estar disponíveis em qualquer momento nas quantidades, forma e dose adequadas, nos sistemas de saúde, acompanhados com a informação adequada e com garantia de qualidade e a preços individuais suportáveis pela comunidade 38. Os medicamentos essenciais devem ser apoiados com o maior escalão de comparticipação de modo a garantir que, no mínimo, os indicadores de saúde em Portugal se comparem, ou continuem a comparar, com os restantes países ditos desenvolvidos. A Farmácia: Sustentabilidade e capacidade de abastecimento e dispensa de medicamentos Segundo um estudo da Universidade Nova de Lisboa 37, as farmácias passam por uma fase crítica da sua atividade uma vez que, neste momento, com o atual funcionamento do mercado tendem a ter margens negativas. Estima-se que, em 2011, o preço por O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia receita era de 33,04 e, em 2012, de 30,79 sendo o custo marginal por receita estimado em 33,21 (dados de custo de 2010) 37. Um outro estudo, este da Universidade de Aveiro 41, estima que o número de farmácias com resultado líquido negativo em 2010 era de 191, enquanto que em 2011 seria já de 1210, um aumento de 1019 farmácias numa situação crítica, apenas num ano. Diz ainda o mesmo estudo que em 2012 as farmácias apresentavam uma rentabilidade líquida de vendas negativa 41. Um dos fatores que contribui para este resultado negativo está relacionado com o aumento dos seus custos fixos que é consequência da legislação aprovada em 2007. Neste ano, foi publicado o Decreto-Lei n.º 53/2007, de 8 de março, que estabelecia o alargamento do horário das farmácias 39, assim como o Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de agosto, que obrigava a cada farmácia a ter, pelo menos, dois farmacêuticos 40. Estima-se que os custos fixos médios de uma farmácia em 2002 eram de 23 000 Euros enquanto que em 2010 eram de 44 000 Euros, um aumento de, aproximadamente, 47%37. Poderíamos pensar que este aumento dos custos fixos fosse compensado pela diminuição dos preços dos medicamentos, mas as margens de comercialização das farmácias também foram alteradas (medida prevista no memorando da Troika). Nas margens das farmácias definidas pelo Decreto-Lei n.º 112/2011, de 29 de novembro22, verifica-se que há uma regressividade nas margens de lucro em função do preço (quanto maior o preço, menor a margem); existe um pagamento de uma quantia fixa, independente da margem de lucro (forma de remuneração do serviço prestado pela farmácia), bem como é estabelecido um teto máximo, uma vez que a partir de um determinado preço a farmácia passa a receber um valor constante42. Apesar das farmácias não comercializarem apenas produtos com o preço regulado, verificou-se que as vendas de outros produtos representam apenas 15 % em valor das vendas totais. Em 2005, com o Decreto-Lei n.º 134/2005, de 16 de agosto, foi liberalizada a venda de MNSRM fora das farmácias43, havendo, em junho de 2012, 978 locais de venda que 85 concorrem com as farmácias na venda destes produtos37. Mantendo-se este panorama, estima-se que muitas farmácias irão encerrar o que vai colocar em causa a equidade no acesso ao medicamento devido a redução da cobertura farmacêutica. No entanto, esta redução do número de farmácias poderá resultar na sobrevivência das restantes 41. Segundo a ANF (Associação Nacional de Farmácias), em abril de 2013, 10 % do das farmácias portuguesas (correspondendo a um total de 279 farmácias) apresentavam ações de insolvência e penhora. Segundo a mesma fonte, desde de dezembro de 2012 até abril de 2013 mais 14 farmácias apresentaram processos de insolvência e 25 farmácias processos de penhora44. Assim, com estas novas medidas, algumas farmácias encerram e outras apresentam tendencialmente margens negativas, não permitindo cobrir os custos fixos. Questiona-se, então, a capacidade de abastecimento e dispensa de medicamentos pelas farmácias. Neste âmbito, o estudo da Universidade Nova de Lisboa37 realizou inquéritos aos utentes e 11 a 12% indicaram dificuldade em encontrar os medicamentos regularmente. Inquéritos realizados aos proprietários ou diretores técnicos em 20 % das farmácias, cerca de 88 % referem uma redução do stock mínimo da maioria dos medicamentos e 86,5 % indicou uma redução do número de embalagens solicitadas aos fornecedores, havendo uma diminuição do valor médio da compra diária ao grossista preferencial 37. Um outro inquérito, realizado no âmbito do Relatório Primavera 2013, concluiu que se reduziram os stocks dos produtos sujeitos a IVA 6 % comparativamente com 2011 e que aumentaram os atrasos no pagamento aos grossistas, resultando em cortes de abastecimento. No entanto, mesmo na ausência de atrasos no pagamento, existiam dificuldades na aquisição de determinados medicamentos. Um dos fatores que pode dar origem a situações como esta é a exportação paralela para países Europeus que se deve ao baixo preço dos medicamentos em Portugal17. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 86 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Considerações finais e conclusões As medidas implementadas recentemente em Portugal no setor do medicamento resultam, em boa medida, do memorando de entendimento com a Troika, com o objetivo de contribuir para a sustentabilidade do SNS. No entanto, antes da presença da Troika, já várias ações tinham sido efetuadas no setor do medicamento, nomeadamente, com a designada Nova Política dos Medicamentos. Estas medidas surgiram devido a um aumento constante da despesa com medicamentos, correspondendo a 20 % da despesa em Saúde em 20101. Em países como França, Espanha e Itália assistiu-se, também, a um aumento da despesa com medicamentos ao longo dos últimos anos semelhante à ocorrida em Portugal. A promoção do uso de MG é uma das formas de se diminuir a despesa com medicamentos uma vez que apresentam preços mais baixos que os medicamentos originais. Até 2001 o mercado de genéricos era quase nulo, havendo um aumento da quota de mercado tanto em volume como em valor a partir de 2003. Este crescimento de mercado de MG deveu-se a várias medidas implementadas e à promoção junto de profissionais de saúde e do público em geral. A partir de 2006, as taxas de crescimento não foram tão elevadas como no período de tempo entre 2003 e 2005. Até 2010 a quota em valor era superior à quota em embalagens, invertendo-se esta situação em 2011. Os preços dos medicamentos em Portugal são fortemente regulados havendo constantes atualizações dos preços de forma a proporcionar descidas dos mesmos. Assim, observa-se uma diminuição dos preços dos MG desde 2007 até aos dias de hoje, com maiores descidas em 2008 e a partir de 2010. Em 2011 e em 2012 os preços dos MG viveram uma diminuição constante, com maior diferença entre fevereiro e março de 2012. Em janeiro de 2011 o preço médio rondava os 11,58 euros e no final de dezembro de 2012 rondava os 6,70 euros, havendo uma diferença de 4,88 euros, ou seja, uma diminuição de 42 %. O mercado de MG é homogéneo o que provoca uma grande competição de preços promovendo descida dos mesmos como se tem vindo a verificar. Para isso, contribui, também, o fato de haver uma grande quantidade de laboratórios produtores de MG uma vez que existe uma relação inversa entre o número de concorrentes e preço dos MG. O mesmo não acontece com os medicamentos originais porque, apesar de estarem associados a custos superiores, existe uma percentagem de utentes fidelizados à marca, ou seja, existe uma percentagem de mercado “insensível” ao preço. Nos vários países da Europa implementaram-se várias medidas no âmbito da Política do Medicamento, algumas semelhantes, outras diferentes tal como é o caso da regulação dos preços. Em Portugal implementou-se o sistema de preços de referência de modo a aumentar a concorrência entre laboratórios e contribuir, também, para a diminuição dos preços. No entanto, em países que não aderiram a este sistema e mantêm (por exemplo, o Reino Unido) os preços liberalizados verifica-se uma descida dos preços mais rápida e uma maior penetração no mercado. O sistema de preços de referência apesar de apresentar resultados satisfatórios no que diz respeito ao preço, poderá afastar potenciais produtores de MG do mercado português. Em Portugal, as estratégias focaram-se principalmente no que diz respeito à definição do preço. Porém, outras medidas poderão ser implementadas com o objetivo de promover o uso de MG e, com isso, diminuir a despesa do SNS. Assim, existem outras estratégias que podem ser aplicadas no setor do medicamento que ao mesmo tempo contribuem para diminuir a despesa no curto prazo e, a longo prazo, proporcionam um gestão mais racional e eficaz dos medicamentos e, até, melhoram os indicadores de saúde. O relatório da Deloitte1 sugere uma gestão integrada do medicamento visando as seguintes medidas: controlar a prescrição de medicamentos, dando seguimento ao desenvolvimento de guidelines terapêuticas; avaliação benefício-risco e avaliação económica dos medicamentos para efeitos de comparticipação; informação aos utentes de modo a envolvê-los na sua terapêutica e, assim, au- O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia mentar a adesão à mesma; aceleração dos processos de comparticipação do INFARMED e, ainda, criar informação útil sobre orientações terapêuticas desenvolvidas para os cidadãos que permite dotá-los de conhecimento para melhor decidirem sobre a opção por MG 1. Algumas destas medidas foram implementadas noutros países da OCDE que apresentaram alguns resultados positivos nesta área. Poder-se-ia pensar que a descida dos preços dos medicamentos beneficiava de igual modo SNS e utentes. De fato beneficiou os dois lados durante um determinado período de tempo. No entanto, verificou-se que a taxa média da comparticipação de medicamentos diminuiu nos últimos dois anos, provocando um aumento da fatia paga pelos utentes na aquisição de medicamentos. Em 2002 criou-se o sistema de preços de referência que visava uma maior adesão aos MG uma vez que estabelecia uma diferença de preço considerável entre o MG e o MR. Este preço é estabelecido quando existe um MG no mercado e baseia-se nos preços praticados nos países de referência, sendo sobre este valor que incide a comparticipação do Estado. Ou seja, na presença de um MG no mercado, o Estado paga um valor fixo independentemente da escolha do utente (ou do médico por ele) aquando da aquisição dos medicamentos. Verifica-se que, na ausência de MG, os preços dos medicamentos originais são tendencialmente mais elevados e o Estado paga um valor maior, o que explica os objetivos de facilitar e agilizar a entrada de MG. Outro aspeto importante a referir é que o preço dos MG é definido com uma percentagem do preço do MR, ou seja, está dependente do preço do MR que pode diminuir drasticamente, eliminando as margens de lucro dos MG 18. No entanto, as medidas foram implementadas sem se avaliar os impactos das mesmas: despedimentos no setor, encerramento de farmácias e desarticulação de estruturas existentes como redes de distribuição de medicamentos e alterações na acessibilidade aos medicamentos são uma constante quase diária. As Farmácias vivem uma fase crítica perante estas descidas constantes de preços e das margens de comercialização dos medicamentos. Estima-se que, 87 desde 2010, as farmácias apresentam tendencialmente margens negativas, não tendo capacidade de suportar os custos fixos. Compreende-se, assim, que várias farmácias estejam em situações de insolvência e falência levando, consequentemente, ao seu encerramento. Em 2007 ocorreram mudanças legislativas que conduziram a um aumento de custos fixos como foi, por exemplo, o alargamento do horário e a obrigação de cada farmácia ter, pelo menos, dois farmacêuticos. Perante este panorama existem atrasos nos pagamentos aos fornecedores por parte das farmácias levando a uma quebra nos fornecimentos. Por sua vez, os fornecedores, independentemente da existência de atrasos ou não, apresentam incapacidade de repor stocks nas farmácias. Questiona-se, assim, a capacidade de abastecimento e dispensa de medicamentos por parte das farmácias. Não se deve olvidar que nas Farmácias existe um quadro altamente qualificado que presta serviços e cuidados aos utentes com base em informação técnico-científica que contribui fortemente para o sucesso do SNS e que esta capacidade instalada na Farmácia tem de ser financiada. Além disso, não pode ser esquecido a elevada importância de Laboratórios Farmacêuticos no desenvolvimento e produção de novas moléculas e medicamentos fundamentais para obter ganhos em saúde. Assim, com a elevada expansão do mercado de MG é, também, necessário repensar a forma de financiamento de I&D de modo a não impedir o acesso à inovação. É curioso que apesar dos preços dos medicamentos diminuírem, a questão da acessibilidade ao medicamento é colocada. De fato, estas diminuições “excessivas”, com preços muito inferiores aos praticados em países como França e Itália, podem trazer, a curto e médio prazo, consequências como: Baixa cobertura farmacêutica devido ao encerramento de farmácias; Falta de medicamentos nos fornecedores e, consequentemente, em Farmácias, devido a exportações dado que não compensa aos produtores comercializarem em Portugal; Os MG poderão sair do mercado devido às baixas margens de comercialização que apresentam ou, Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 88 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia até, potenciais MG não surgem no mercado quando expiram patentes de MR uma vez que é um mercado que não atrai produtores. Deste modo, se as medidas se continuarem a focar essencialmente no preço, as supostas soluções passarão a constituir riscos para a saúde dos cidadãos, ainda mais se as taxas de comparticipação continuarem com a tendência atual e aumentarem os encargos aos utentes. Assim, a crise financeira está a criar um impacto negativo em toda a cadeia de valor do medicamento: indústria farmacêutica, farmácias e grossistas17, com profissionais de saúde qualificados, conduzindo à destruição de um mercado que representa uma mais-valia para Portugal. O medicamento é visto, atualmente, como um custo pelo Estado e há um desejo constante de diminuir os seus preços. O medicamento tem de ser visto como uma tecnologia que traz ganhos em saúde, integrado no sistema de saúde. Especificamente, os MG apresentam a vantagem de proporcionar ganhos em saúde para os doentes, nomeadamente em casos de doenças crónicas, a um preço acessível. Além disso, é evidente a contribuição que proporcionam à sustentabilidade do SNS. Em jeito de conclusão final, e ainda que apenas a título de autores, parece-nos que no ano de 2013 se deve procurar rever o atual sistema de preços e a forma como as políticas no setor do medicamento estão a ser implementadas, tendo em consideração, sobretudo, a avaliação dos resultados das medidas tomadas. Assim, e sem querer sugerir nada seja a quem quer que seja, mas tendo em conta os atuais riscos vividos no setor dos medicamentos em ambulatório, parece-nos evidente que uma “espécie de pacto de regime” entre Governo/Farmácias/Indústria Farmacêutica/Distribuição Grossita tem que ser firmado com regras claras e com um calendário bem definido. Referências bibliográficas 1. 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Admitem-se ainda, entre quadros, figuras e fotografias, até 10 ilustrações. Qualquer artigo da iniciativa dos autores e os artigos solicitados pelos editores são sujeitos a um processo de revisão por pares. Os artigos publicados, cujos conteúdos são da responsabilidade dos autores, ficarão propriedade da Acta Farmacêutica Portuguesa e não poderão ser reproduzidos, sem prévia autorização do seu Diretor, no seu todo ou em parte. Os artigos submetidos não podem ter sido objeto de qualquer outro tipo de publicação, nem ter sido simultaneamente propostos para publicação noutras revistas ou jornais. Os artigos apresentados à Acta Farmacêutica Portuguesa deverão apresentar um título, um resumo em português e em inglês, seguido pela inclusão de, no máximo, 5 palavras-chave, a descrição dos Autores, um corpo de texto e referências bibliográficas, de acordo com o indicado nas normas internacionais. Todos os artigos deverão ser redigidos em português, sendo contudo aceites textos em inglês ou espanhol. A Acta Farmacêutica Portuguesa subscreve os requisitos constantes das normas de Vancouver, cuja última revisão publicada se encontra no sítio Internet do International Committee of Medical Journal Editors (ICJME) (http:// www.icmje.org). NORMAS DE APRESENTAÇÃO À ACTA FARMACÊUTICA PORTUGUESA Os artigos devem ser dactilografados em qualquer processador de texto e gravados nos formatos Microsoft Word, RTF ou Open Office. As páginas devem ser numeradas. A primeira página deverá incluir apenas o título do artigo, o nome do autor ou autores (devem usar-se apenas dois ou três nomes por autor), o grau, título ou títulos profissionais e/ou académicos do autor ou autores, o serviço, departamento ou instituição onde trabalha(m); A segunda página deverá incluir apenas o número de telefone, endereço de correio electrónico e endereço postal do autor responsável pela correspondência com a revista acerca do manuscrito; A terceira página deverá incluir apenas o título do artigo e um resumo, em Português e em Inglês, que não deve ultrapassar as 300 palavras, e no máximo cinco palavras-chave; As páginas seguintes incluirão o texto do artigo, devendo cada uma das secções, em que este se subdivida, começar no início de uma página; A página a seguir ao texto do artigo deverá conter o início do capítulo Referências bibliográficas e incluir o capítulo Agradecimentos, quando este exista. As páginas seguintes deverão incluir as ilustrações. Estas devem ser enviadas cada uma em sua página, com indicação do respectivo número (algarismo árabe ou numeração romana) e legenda. Gráficos, diagramas, gravuras e fotografias (figuras) deverão ser apresentados com qualidade que permita a sua reprodução directa. As figuras em formato digital devem ser enviadas como ficheiros separados, e não dentro do documento de texto. São aceites os formatos JPEG, TIF e EPS, preferencialmente com uma resolução de 300 pontos por polegada (dpi) ou superior. As Referências bibliográficas devem ser marcadas no texto utilizando algarismos árabes, pela ordem de primeira citação e incluídas neste capítulo utilizando exactamente a mesma ordem de citação no texto. O numeral da referência deverá ser colocado antes da pontuação (ponto, vírgula, etc.), em superscript. Se houver lugar à citação de mais do que uma referência estas deverão ser separadas por vírgulas, excepto se forem sequenciais onde deverão ser separadas por hífen. O uso de abreviaturas e símbolos, bem como as unidades de medida, devem estar de acordo com as normas internacionalmente aceites. O uso de negrito está reservado apenas a títulos e o itálico apenas nas referências bi bliográficas, palavras estrangeiras e nomes técnicos das classificações científicas. A indicação da casa decimal, quando necessário, deve fazer-se através de uma vírgula. Acta Farmacêutica Portuguesa • Vol. 2 N.º 2 92 O Preço dos Medicamentos Genéricos em Portugal (2011-2012): Estado, Cidadão e Farmácia Título Acta Farmacêutica Portuguesa Vol. 2 N.º 2 ISSN 2182-3340 Depósito Legal 335338/11 Execução Gráfica Minhografe – Artes Gráficas, Lda. Braga Tiragem 100 Exemplares Preço 10 Euros