Desenho e Cinema - Serviço de Documentação e Informação

Transcrição

Desenho e Cinema - Serviço de Documentação e Informação
Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto
Mestrado em Desenho e Técnicas de Impressão
Dissertação de: Elisa Almeida Trindade
Orientado por: Doutora Cristina Mateus
2013
Desenho e Cinema
Agradecimentos:
À minha orientadora Doutora Cristina Mateus,
à minha família, aos meus amigos e
a todos que tornaram possível este trabalho.
Índice
Resumo/Abstract
9
3.1. Storyboards
Introdução: Breve enquadramento histórico.
Projeto e método
11
George Méliès
Alfred Hitchcock
Fritz Lang
Sergei Eisenstein
Akira Kurosawa
Orson Welles
Saul Bass
Federico Fellini
Satyajit Ray
Roman Polanski
Ridley Scott
Martin Scorsese
Peter Greenaway
Tim Burton
17
19
21
25
28
31
36
37
41
45
47
49
52
55
56
Capítulo 1
Realizadores desenhadores
1.1. Storyboards e outros realizadores
F.W. Murnau
Jonh Huston
Terry Gillian
Jane Campion
Told Haynes
3.2. Cenários
O gabinete do Dr. Caligari
Metropolis
A Casa Encantada
Ken Adam
Voyage dans la Lune
A invenção de Hugo
Sang d’un poète
O contrato do desenhador
A walk through H
O sol do marmeleiro
American Splendor
Quem tramou Roger Rabbit?
Kill Bill
Harry Potter e os Talismãs da Morte
Detachment
Tabu
Argo
Culpados por suspeita
Capítulo 3
Função do desenhador de produção e
do diretor artístico
Henry Bumstead
Dante Ferretti
Stuart Craig
109
3.2.2. Desenhos de Artefactos
115
3.3. Desenho de Guarda-roupa
119
122
124
125
127
128
3.3.1. Outros Figurinos
129
3.3.2. Desenhos de outros personagens
133
Capítulo 4
Outros processos
Capítulo 2
O desenho como parte integrante do filme 67
Carlos Saura
Pedro Costa
Peter Greenaway
69
70
71
72
72
74
74
75
75
76
76
77
78
80
Capítulo 5
Do Cinema ao Desenho
Gustav Deutsch
William Kentridge
Quentin Tarantino
81
85
87
90
7
99
103
104
106
107
3.2.1. Desenhos técnicos e
desenhos concetuais
Collen Atwood
Ngila Dickson
Sandy Powell
Jacqueline Durran
Eiko Ishiola
59
61
62
63
65
66
93
137
139
141
142
143
145
147
148
Reflexões finais
149
Bibliografia
153
Índice de imagens
158
8
Resumo: Esta dissertação dá uma pequena contribuição para a análise da utilidade do desenho
na arte do cinema, em algumas das suas vertentes.
Em Desenho e Cinema é abordada principalmente a importância do desenho em todo o
processo cinematográfico, desde a fase de pré-produção até à rodagem de um filme, incluindo os
desenhos feitos pelos próprios realizadores, e de todos os outros profissionais que trabalham na
equipa de produção, sob o seu escrutínio.
Nesse sentido, a dissertação analisa o método de trabalho dos cineastas, o desenho como um
intermediário de fácil utilização, e transversal a todos os departamentos artísticos, mormente a
relevância do storyboard como ferramenta que permite pré-visualizar um filme e outros desenhos
de continuidade. Recorremos aos depoimentos de todos os intervenientes, porque os
entendemos como um apoio fundamental para a nossa pesquisa, que começa nos primórdios do
cinema.
Abstract: This dissertation aims to contribute to analysis of the usefulness of drawing in the art
of the cinema, focusing on certain aspects.
Drawing and Cinema addresses above all the importance of drawing throughout the
cinematographic process, from pre-production to filming, and including drawings made by
directors themselves and by all the other professionals working in the production team under the
supervision of directors.
The dissertation therefore analyses the working methods of filmmakers, drawing as an easily used
intermediary found across all artistic departments and, above all, the importance of the
storyboard, as well as other continuity drawings, as tools to pre-visualise a film. We make use of
testimonies from all those involved, because we believe that they are a fundamental resources for
our research, which starts with the earliest days of cinema.
9
10
Introdução – breve enquadramento histórico.
Projeto e método.
11
12
Quando falamos da relação entre o Desenho e o Cinema a primeira coisa que nos vem à mente
é o Cinema de Animação; e, de facto, este é um ótimo exemplo da utilidade do desenho no
cinema, mas não é este género (contudo, considerado por Sergei Eisenstein a forma mais pura e
completa de cinema) que pretendemos abordar. Em termos gerais, é nossa intenção fazer um
“mapeamento” sobre o processo de trabalho dos realizadores que utilizam o desenho, seja como
“intermediário”, para propor ou explicar as suas ideias, seja quando é usado para o “processo de
visualização” que está implicado em todo o trabalho de conceção das imagens de um filme – caso
da função do storyboard –, mas também quando o desenho é parte integrante de uma cena ou
cenário.
As influências mútuas entre o Cinema e a Pintura são inegáveis, e isso acontece quase desde o
início da invenção do cinematógrafo. A formação de muitos cineastas como artistas plásticos
contribuiu para isso, trazendo ao cinema uma nova visão. Isso acontece tanto no cinema dito
“comercial” como no de “autor”, e é ainda mais evidente no cinema de animação e no
experimental. Tendo em conta esta evidência, o desenho tem um papel relevante.
Num dos textos do catálogo da exposição dedicada a David Lynch na Fondation Cartier
(2007), em Paris, aquele que reproduz uma conversa entre Borys Groys e Andrei Ujica, encontrase uma questão que é poucas vezes abordada. Segundo estes autores, que procuram deste modo
realçar o caso singular de Lynch, os cineastas cujas origens se situam na Pintura foram sempre, no
Cinema, uma minoria; para eles, são mesmo o grupo menos representativo. Como afirmam, «…a
maior parte dos realizadores vem da literatura, de facto sobretudo da prosa; alguns também vêm do teatro,
e uns poucos da poesia, o que torna manifesto que o cinema é essencialmente uma arte narrativa.» 1
Porém, como também admitem, essa minoria não teve um papel propriamente insignificante
na história do cinema. Os exemplos que dão desta minoria (e, sublinho, referem apenas estes) são:
Murnau (1888 – 1943), que estudou História da Arte e cuja contribuição fundamental consistiu
na transposição para o cinema de um estilo de pintura, o Expressionismo; Tarkovsky, (1932 –
1986), que teve como aspiração mais profunda ser um pintor, mas nunca exerceu essa atividade
para além dum hobby (também nunca se tornou um poeta, o seu outro desejo maior); e,
finalmente, David Lynch (1946). Segundo eles, o que distingue este último é ter trabalhado
como artista plástico desde o início da sua carreira, algo que ainda continua a fazer, ainda que a
partir do momento em que os seus filmes projetaram o seu nome a nível internacional essa faceta
da sua obra tenha sido relegada, por assim dizer, para “segundo plano”.
O desconhecimento de Borys Groys e Andrei Ujica é algo estranho, porque não é preciso uma
1 Borys
GROYS e Andrei UJICA – “On the art of David Lynch, a conversation between Borys Groys and Andrey
Ujica: Hchschule fur Gestaltung, Karlsruhe, November, 20, 2006” in DAVID Lynch: The air is on fire. Paris: Fondation
Cartier pour l’art contemporain, 2007, p. 107 [a tradução é nossa].
13
pesquisa muito aprofundada para constatar que aquilo que afirmam não é verdade. Num breve
exercício de memória, para ilustrar o que acabamos de afirmar, constatamos que, além de Lynch,
Peter Greenaway, Derek Jarman, Abbas Kiarostami, Jane Campion e Julian Schnabel também têm
formação em pintura, e do mesmo modo que o cineasta americano continuaram a trabalhar como
artistas plásticos (Schnabel foi mesmo um dos artistas mais importantes dos anos 80 do séc. XX).
Para além destes, têm formação formal em artes – ou prática profissional e aprendizagem
autodidata – em diversos ramos (incluindo o desenho), mais aprofundada nuns casos que noutros,
muitos outros entres os quais se contam alguns dos nomes mais importantes da denominada 7ª
Arte: Georges Méliès, Paul Leni, Fritz Lang, Sergei Eisenstein, Alfred Hitchcock, Saul Bass,
Orson Welles, John Huston, Frederico Fellini, Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi, Satyajit Ray,
Damiano Damiani, Andrzej Wajda, Ermano Olmi, Ridley Scott, Carlos Saura, René Allio, Dennis
Hopper, Tim Burton, Maurice Pialat, Terry Gilliam, Mike Figgis, Todd Haynes, Jean-Jacques
Beineix, Takeshi Kitano, Kathryn Bigelow, Fredi M. Murer, e Lâm Lê. Acrescentaremos ainda
Jean Cocteau (que para além de cineasta foi pintor, desenhador, escritor, músico e actor) e Robert
Bresson, que um dia numa entrevista, colocado perante a pergunta “foi pintor antes de ser cineastas?”,
deu a seguinte resposta significativa: “Quer dizer sou pintor. Não se pode ter sido pintor e deixar
de o ser”.2
Na abordagem que fazemos ao tema damos relevo, sempre que possível, aos depoimentos dos
realizadores, como fizemos supra com Robert Bresson. Sendo relativamente escassa a bibliografia
sobre este tema, e nalguns casos pouco acessível, a nossa investigação requer para o seu
prosseguimento uma forte pesquisa de fontes documentais, de modo a permitir uma produção
documental séria.
Com esta dissertação pretendemos responder às questões que formulamos a seguir, e chegar a
algumas conclusões: Porquê a utilização do desenho como componente do processo de trabalho
preparatório, para a realização dos seus filmes, por parte de muitos realizadores? Quais os
benefícios que a prática do desenho trazia ao cinema (e ainda traz)?
2 Robert
BRESSON cit. in “BRESSON explica BRESSON” in BRESSON. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1978, p. 31. A entrevista foi publicada originalmente nos Cahiers du Cinema, nº 140, Fevereiro de 1963. Referimos
ainda o caso muito particular de Josef von Sternberg, que também foi pintor autodidata (existem algumas pinturas
suas na Cinemateca de Bruxelas). Como salienta o cineasta holandês Eric de KUYPER (“Os filmes apresentados por
Eric de Kuyper” in Cinema e Pintura. Dir. João Bénard da COSTA e Jean Louis SCHEFER. Lisboa: Cinemateca
Portuguesa – Museu do Cinema, 2005, p. 299), «…no séc. XIX teria sido um pintor, talvez um mau pintor, mas um
pintor. Mas fez filmes, e fê-los inserido numa tradição, e é isso que quero realçar. Quero realçar que, embora não haja,
evidentemente, uma relação directa com a pintura ou a escultura, os filmes dele – sobretudo The devil is a women – têm
como fundamento a ilusão, a utopia de fazer e controlar todo o processo.». O último aspeto levantado por Kuyper é
importante, porque se relaciona com a reivindicação do cinema como uma arte, e Sternberg anuncia a noção
posterior de “autor”.
Saliente-se, apenas por razões de limitação do número de palavras desta dissertação (imposto) não é possível
apresentar dados mais completos, seja da formação dos cineastas referidos seja os referentes a datas e outros, embora
os conheçamos.
14
À primeira vista, no cinema tradicional a utilização do desenho poderia parecer de pouca utilidade
no processo de trabalho mas, na verdade, tem sido fundamental em todas as fases da produção
cinematográfica, desde a criação das personagens à conceção visual da narrativa, do guarda-roupa
aos cenários, da arquitetura ao mobiliário; e se em filmes de época, com referências históricas
precisas, ou naqueles de “fantasia” como “O Senhor dos Anéis”, poderá ser mais evidente para o
espetador comum a sua utilidade, contudo, aquela que será seguramente a função mais
importante raramente tem oportunidade de ser apreciada, pois normalmente não figura no
resultado final que pode ser visto no ecrã: referimo-nos aos storyboards, que quase sempre ficam
guardados em arquivos dos estúdios/produtores ou, nalguns casos, na posse dos próprios
cineastas.
15
16
1
Os realizadores desenhadores
17
18
G
interessado em colocar o cinema ao serviço
orges Méliès
dos seus espetáculos em palco, enriquecendo-
(Paris, 1861 – 1938, Paris)
-os com a imaginação,
O desenho esteve presente no
mundos e viagens inventados; em suma:
cinema quase desde o início da
criando magia.
sua história, no país onde nasceu. Na
Méliès compreendeu bem que o desenho
verdade, Georges Méliès – como acontecerá
podia ser um auxiliar precioso na preparação
posteriormente com Fritz Lang, Eisenstein,
dum filme, nos mais pequenos detalhes.
Hitchcock, Fellini ou Ridley Scott, entre
Assim, num texto que escreveu em 1906
outros – antes de ter sido cineasta já era
desenhador.
Era,
segundo
parece,
apresentando
esclarece o papel que cabia ao desenho nessa
um
fase de pré-produção, como diríamos hoje:
3
caricaturista com talento , além de mágico, e
«La composition d’une scène demande
até ao fim da sua vida nunca terá deixado de
naturellement l’établissement d’un scénario
desenhar.
tiré de l’imagination; puis la recherche des
Muito
naturalmente,
quando
começou a realizar filmes soube tirar partido
effets
dos seus talentos gráficos.
l’établissement des croquis et maquettes des
qui
porteront
sur
le
public;
A utilização do desenho por parte de
décors et costumes; l’invention du clou
Méliès, enquanto cineasta pioneiro (quanto
principal sans lequel aucune vue n’a de
mais não seja dos efeitos especiais, de que é
chance de succès. Lorsqu’il s’agit d’illusions
ou de féeries, l’invention, la combinaison, les
considerado o “pai”), autor de mais de 500
croquis des trucs et l’étude préalable de leur
filmes, começou desde que instalou em
construction demandent un soin tout spécial.
Montreuil, no distante ano de 1897, o
La mise en scène est également préparée à
primeiro estúdio da história do cinema. Ao
l’avance, ainsi que les mouvements de
contrário dos Irmãos Lumière (Auguste e
figuration et le placement du personnel. C’est
Louis), que eram avessos a qualquer espécie
un
de encenação e manipulação – tratava-se,
préparation d’une pièce de théâtre; avec la
portanto, de captar meramente a sensação do
différence que l’auteur doit savoir tout
movimento real, e da vida –, estava mais
combiner lui-même sur le papier, et être, par
travail
conséquent,
absolument
auteur,
analogue
metteur
en
à
la
scène,
dessinateur et souvent acteur, s’il veut obtenir
un tout qui se tienne.»4
Segundo Madeleine MALTHÈTE-MÉLIÈS (Méliès
l’enchanteur. Paris: Hachette, 1973, cit. in Benoît
PEETERS – “Le cinéma dessiné – Histoire du cinéma:
allers-retours” in Jacques FATON, Benoît PEETERS
e Philippe de PIERPONT – Storyboard – le cinéma
dessiné. Paris: Editions Yellow Now, 1992, p. 11), «…il
s’est moqué du général Boulanger dans le journal la
Griffe, avec “un coup de crayon à faire tomber le
régime” (…)».
3
Georges MÉLIÈS – “Les Vues cinématographiques”
in Georges SADOUL – Lumière et Méliès. Paris:
Lherminier, 1985, p. 209, cit. in Benoît PEETERS –
“Le cinéma…”, p. 11. O negrito e o itálico são nossos.
4
19
Quanto aos desenhos que aqui apresentamos,
sabemos que um deles [fig. 1] é o único
documento preparatório hoje conhecido para
o filme L’Homme à la tête en caoutchouc
(1901). Trata-se dum desenho a lápis de cor e
tinta sobre papel, que inicialmente estava
colado sobre um cartão de formato maior.
Em 2002 foi restaurado, e depois de retirado
1
o cartão ficou reduzido às dimensões do
desenho original. O terceiro [fig. 3], a tinta e
aguarela sobre papel, não é certo se se trata
dum estudo preparatório para alguma cena
fílmica, ou antes para um espectáculo
mágico-teatral, como sugere o título: Illusion
sur la scène du théatre Robert Houdin. Contudo,
conhecidos os filmes de Méliès, não seria
estranho
2
que
este
desenho
de
1930,
apresentando uma sucessão de diversos
fenómenos mágicos em cima dum palco,
pudesse ter servido de facto como estudo
para alguma sequência cinematográfica, com
efeitos especiais, porque é semelhante a
outras conhecidas.
3
1. Desenho para L’Homme à la tête en caoutchouc (1901). Lápis
de cor e tinta s/papel, 19, 7 cm x 26,8 cm.
2. Fotograma do filme L’Homme à la tête en caoutchouc (1901).
3. Illusion sur la scène du théatre Robert Houdin (c. 1930). Tinta e
aguarela s/papel, 19 x 26,2 cm.
20
A
storyboards a posteriori (ou seja, depois dos
lfred Hitchcock
filmes rodados), [fig. 12] só com o intuito de
(Londres, 1889 – 1980, L. Angeles)
corresponder às expectativas e interesse da
Começou a trabalhar em
imprensa.
1915 como técnico da Henley Telegraph and
Era para a imprensa que procurava traba-
Cable Company; enquanto frequentava aulas
lhar porque, como tinha consciência, ela é
noturnas de História da Arte, começou a
que iria influenciar o público. Talvez por essa
desenhar, e devido a esse seu interesse
razão, quando era entrevistado respondia
acabou por ser transferido para a secção
com entusiasmo às perguntas que lhe faziam,
publicitária da Henley, onde trabalhava dia e
explicando com detalhe as técnicas e as
noite com grande entusiasmo. Em 1926 foi
posições da câmara. Num almoço com o
contratado para desenhar os intertítulos dos
futuro realizador françês Jules Dassin, que
filmes mudos; numa primeira fase a tempo
assistiu às filmagens de O Senhor e a
parcial, depois com contrato a tempo inteiro.
Senhora Smith (1941), Hitchcock terá pega-
Quando Hitchcock chegou aos Estados
do nos guardanapos para fazer desenhos,
Unidos com a sua família já levava consigo
para que este percebesse melhor os ângulos
uma larga experiência, adquirida nos estúdios
da
Companhia
Cinematográfica
de câmara das cenas que estava a filmar, co-
Famours
mo mais tarde recordava Dassin.
Player Lasky que Hollywood abriu em
Hitchcock fazia ele próprio muitos dese-
Londres. Ao longo da sua carreira realizou
nhos para os seus filmes, até porque teria
vários filmes que estão classificados entre os
alguma destreza, mas trabalhou igualmente
melhores da história do cinema. Ainda hoje é
com muitos dos melhores desenhadores que
referência para muitos cineastas, e um dos
estavam ao serviço da indústria cinematográ-
que tem exercido uma influência mais
fica. Mesmo assim, parece que nem sempre
evidente na arte contemporânea.
valorizava muito os desenhos, que considera-
Hitchcock ganhou alguma fama de perder
ria uma mera etapa. E Elisa María M. Martí-
mais tempo na preparação das suas películas
nez cita mesmo uma declaração do realiza-
do que nas filmagens propriamente ditas que,
dor, em que recomenda a realização de
segundo se diz, o aborreciam um pouco. E
storyboards apenas para as cenas mais impor-
parte dessa fama deve-se aos storyboards e
tantes: «A veces hago storyboards, no siem-
desenhos doutro tipo, que para alguns dos
pre. Puede hacerse. Haces storyboards para
filmes terão sido feitos em grande número. A
escenas clave. Los planos menos importan-
partir de certa altura, sabe-se hoje, tendo
tes, no son nada. En Psicosis se hace el
conhecimento disso e tirando partido dela,
storyboard para el hombre que s ube las
chegou
escaleras, para asegrar que se consigue el
a
mandar
fazer
desenhos
e
21
contraste en el tamaño de la imagen.
En Vértigo, habían momentos en los que se
necesitaba eso, pero no necesariamente se
hace el storyboard para todo, porque es muy
difícil hacer los movimientos de cámara. El
artista normalmente dibuja una flecha grande, que no da a entender realmente a donde
va la cámara.»5
Mas é também a mesma autora, que para a
4
sua tese de doutoramento dedicada a
Hitchcock, e da qual extraímos a citação
anterior, se deslocou à biblioteca Margaret
Herrick Library, em Los Angeles, onde se
encontram depositados muitos desenhos do
realizador inglês, quem manifesta a sua
surpresa por ter encontrado, apesar da
declaração de Hitchcock, uma enorme
quantidade de material gráfico pertencente à
preparação
5
storyboards
dos
seus
filmes,
praticamente
incluindo
completos
de
muitos dos seus filmes.
6
4 e 5. Desenhos de Hitchcock, para a produção de Os
39 degraus (1935). Os desenhos transmitem o ambiente
que ele pretendia criar na sua adaptação do romance de
John Buchan.
7
6. Desenho de Os 39 degraus.
7. Esboços para o filme Sabotagem (1942).
Alfred HITCHCOCK cit. in Elisa María
MARTÍNEZ MARTÍNEZ – Hitchcock: imágenes entre
líneas. Valência: Publicaciones de la Universitat de
València / Biblioteca Javier Coy d’estudis nordamericans, 2011, p. 92.
5
22
8
9
10
11
8. Storyboard para Um barco e nove destinos (1944).
9. Storyboard para Intriga Internacional (1959).
10. Storyboard para Os pássaros (1963).
11. Storyboard para Marnie (1964).
23
12
12. Desenho de Hitchcock feito depois da rodagem do filme
Intriga Internacional (1959).
13, 14 e 15. Desenhos de Hitchcock para o guarda-roupa de
Intriga em Família (1976).
13
15
14
24
F
ritz Lang
obsessiva; nos seus autorretratos, tanto em
(Viena, 1890 – 1976, L. Angeles)
pinturas como desenhos, representou amiú-
Nascido no seio duma família
de as mãos num gesto característico seu,
rica vienense, antes da primeira
com os dedos abertos em forma de V, que
I Guerra Mundial estudou pintura e
escultura,
tendo
almejado
seguir
no desenho de Lang também se distingue na
uma
da esquerda, virada para o espetador.7
carreira como pintor, antes de enveredar
pelo cinema, onde começou por ser
argumentista.
Todavia,
os
dados
hoje
existentes sobre a sua formação artística são
confusos: não é conhecida ao certo a sua
extensão, nem o grau de educação formal ou
informal (um aspecto que não tratou de
esclarecer em entrevistas posteriores); além
de Viena, poderá ainda ter tido alguma
educação
formal
em
Munique,
onde
permaneceu algum tempo. Sabe-se que terá
vivido como artista profissional em Bruxelas,
16. Fritz Lang, Autorretrato.
e que antes de estalar a guerra se encontrava
em Paris, onde se preparava para realizar
Não é possível afirmar, por ausência de da-
uma exposição individual do seu trabalho.6
dos seguros, que Lang no início da sua car-
Os pintores Egon Schiele e Gustav Klimt
reira cinematográfica realizou storyboards;
eram as suas referências, e principalmente o
em contrapartida, sabe-se que filmes tão
primeiro, como aliás denota um conhecido
famosos como os Nibelungos, Metrópolis, M
autorretrato do cineasta, feito segundo o
(Matou) ou O Testamento do Dr. Mabuse, tive-
estilo daquele: há até uma espécie de identi-
ram uma preparação gráfica muito elabora-
ficação com Schiele, na pose e no modo
da. Théo Lingen, ator nos dois últimos fil-
como representa as mãos. O interesse nas
mes citados, deixou mesmo uma declaração
mãos atingiu em Schiele uma proporção
7
O significado deste gesto, em Schiele, nunca foi
muito claro. Mas há quem o tenha interpretado como
tendo uma comotação sexual (a posição dos dedos
desenharia, então, as partes íntimas da mulher), e até
como um misterioso signo ocultista ou cabalista.
Sobre este aspecto, vd. Simon WILSON – Egon Schiele. Oxford: Phaidon Press Limited, 3ª edição, 1989, p.
25.
Sobre as dificuldades de estabelecer com rigor a
formação artística de Lang, vd. Karl FRENCH – Art
by Film Directors. London: Mitchell Beazley, 2004, pp.
140 e 143. Como aponta o autor restam hoje poucas
evidências do seu trabalho como pintor; mas
sobreviveu um certo número de esculturas: algumas
delas são reproduzidas na obra citada.
6
25
muito impressiva sobre as suas recordações
dessa altura, referindo-se à enorme quantidade de “recortes” amontoada sobre a secretária do cineasta, os quais conteriam um
trabalho muito minucioso, onde tudo era
anotado e assinalado com precisão: posição
das câmaras e dos atores, enquadramentos,
acentuação dos diálogos, e até a montagem
prevista.8
Os desenhos que apresentamos ao lado
pertencem a um storyboard desenhado pelo
próprio Lang, para um thriller de espionagem
da sua “fase americana”: Feras Humanas
(1944). Como se constata foram realizados
em papel timbrado dum hotel de Beverly
Hills, e registam sinteticamente os movimentos dos personagens numa cena passada nos
lanços de uma escadaria dum edifício, além
de conterem outras anotações complementares escritas nas margens. Em termos gerais,
para o cineasta expressionista alemã o
storyboard parece ter funcionado como uma
maneira de poupar tempo na rodagem dum
filme. Frequentemente, Lang desenhava
mesmo após as filmagens: «Il faut penser en
termes de simple arithmétique: si je travaille
A declaração está contida na seguinte obra: Fritz
Lang – Trois Lumières, textes réunies et présentés par Alfred
Eibel. Paris: Flammarion, 1988, pp. 72-73. É citada
por Benoît PEETERS (“Le cinéma dessiné…”, pp.
15-16), que também chama a atenção para os
esquiços de Otto Hunte, Erich Kettelhut ou Emil
Hasler, colaboradores de Lang, publicados na obra de
Lotte EISNER – Fritz Lang: Paris: Cahiers du
Cinéma/ Cinémathèque française, 1984, que denotam
uma grande proximidade com as imagens finais
observáveis nos filmes para os quais foram realizados,
confirmando um trabalho meticuloso da préprodução, pelo que, como afirma (idem, p. 16) «…le
premier cinéma de Lang m’apparaît comme l’un des
cas les plus exemplaires de cinégraphie.»
8
17. Storyboard para Feras Humanas (1944).
26
chez moi 2 heures tous les soirs après les
“arquitetural”; não se limita a enquadrar a
rushes, 36 fois 2 font 72 heures, divisées par
cena e indicar o movimento, sendo mais
10 heures de travail (8 plus les supplémentai-
detalhado a nível da caracterização dos ele-
res) cela fait 7 jours de travail que je peux
mentos, e prestando atenção à luz num jogo
gagner en travaillant chez moi. C’est pour-
de claro-escuro. O segundo é um desenho
quoi j’insiste toujours pour avoir des dessins
mais técnico, uma planta dum quarto de
trés exacts des décors, et je me mets à mon
hotel para o filme The Big Heat, com indi-
bureau pour travailler mes plans, ou pour
cações de movimentos e colocações das
savoir si je dois utiliser un objectif de 35
câmaras para as filmagens.
millimètres, un 40 ou un 25.»9
19
18
Os dois desenhos de Lang reproduzidos a
seguir têm características diferentes do
storyboard de Feras Humanas. O primeiro,
20
feito para o filme Man Hunt, é menos
18. Desenhos de Lang para Feras Humanas (1944).
19. Desenho de Lang para Man Hunt (1941).
20. Desenho de Lang para The Big Heat (1953).
9 Fritz
LANG cit. in Benoìt PEETERS “Le cinéma
dessiné – Du crayon à la caméra” in Jacques FATON,
Benoît PEETERS e Philippe de PIERPONT –
Storyboard…, p. 156. O autor extraiu a declaração da
seguinte referência bibliográfica: Fritz Lang en
Amérique, entretien par Peter Bogdanovich, Cahiers
du Cinéma, Ed.de L’Etoile, 1990, p. 50.
27
S
que afirmou ser o cinema a síntese das artes e
ergei
Eisenstein
das ciências”» 10
Em 1931 viajou para o México, para come-
(Riga, 1898 – 1948, Moscovo)
çar a preparação do filme Que viva o
Filho dum arquiteto, estudou
México, projeto que ficou inconcluso
arquitetura e engenharia no Instituto de
Engenharia
Civil
de
Petrograd
co-
mo muitos outros; é o caso de American
(São
Tragedy (1931), que nem começou a ser
Petersburgo). Desde pequeno manteve uma
rodado mas do qual sobrevivem folhas com
paixão pelo desenho, que o acompanhou
esboços preparatórios, como aquela aqui
toda a vida. Após a revolução bolchevique
reproduzida [fig. 21] – por vários motivos:
de 1917 tornou-se um cartoonista satírico: as
um deles, a falta de financiamento. Eisens-
suas caricaturas foram publicadas no St.
tein desenhou antes e durante a rodagem do
Petersburg Gazette; por volta de 1920 interes-
filme, em papel de carta dos hotéis em que
sou-se pela cultura japonesa, particularmente
pelo
–
esteve hospedado, fazendo pequenas anota-
Kabuki e pela estrutura dos ideogra-
ções pessoais sobre as cenas [fig. 22]; aliás,
mas, que irá influenciar a sua teoria de mon-
grande parte desses desenhos parecem ter-se
tagem. Antes do cinema, começou por tra-
destinado mais a si próprio, eram registos de
balhar no teatro como cenógrafo, no Teatro
memória do trabalho cinematográfico que
Proletcult de Moscovo, em cerca de vinte
pretendia levar a cabo: ou seja, serviam para
produções: uma das suas contribuições mais
tornar consciente o processo de criação,
importantes consistiu nos cenários que con-
articular o pensamento; e não tanto, no meu
cebeu e desenhou para uma adaptação
entender, a um storyboard para discutir com
(1921) de “O Mexicano”, de Jack London.
os seus colaboradores.
“Segundo o próprio Eisenstein a encenação
Como menciona José Carlos Avellar, «De-
serviu-lhe para experimentar uma série de ideias
senha muito e desenha muito rapidamente – algo
novas referentes a iluminação e cor, e à relação
próximo de uma escrita automática, comenta o
entre os cenários e os intérpretes, que iria utilizar
pintor Jean Charlot (que em 1931 viu Eisenstein
exaustivamente em Ivan o Terrível.
desenhando em diversas ocasiões), num depoi-
No fim de contas, toda a carreira artística de
mento para o livro Sergei M. Eisenstein, a
Eisenstein parece resumir-se a este movimento
biography de Marie Seton (The Bodley Head,
que o leva, numa espiral ascendente, a cruzar
todas as formas artísticas até culminar numa
Manuel Cintra FERREIRA – “Statchka (A Greve)”
in SERGEI Eisenstein. Lisboa: Cinemateca Portuguesa
– Museu do Cinema, 1998, p. 11. Sobre o seu trabalho como cenógrafo, vd. Stéphane BOUQUET –
Grandes Realizadores. Nº 23 Serguei Eisenstein. Madrid,
Lisboa: Prisa Innova S. L. / Público, 2008, pp. 13-15.
10
síntese que é o filme. Ela é a melhor ilustração
dum aforismo famoso do próprio Eisenstein,
28
Londres, 1952): “Ele desenhava tão rapidamente
quanto necessário para não deixar escapar os
elementos subconscientes. Planejava o número
de desenhos de cada série e a ordem em que eles
seriam feitos; considerava cada um deles como
um fotograma de uma imaginária tira de um
filme ou uma anotação visual de seu pensamento. Costumava dizer que depois iria analisar os
desenhos para descobrir o que estava pensando
e como estava pensando.”»
11
Existem ainda outros desenhos mais elaborados, como um em que vemos três figuras com os seus sarapes listrados e sombreros [fig. 23], que acabou por ser apropriado
para os cartazes [fig. 24 e 25] que promoveram as montagens posteriores (apócrifas) do
filme.
21
São conhecidos centenas de desenhos
que fez para Alexander Nevky (1938), ou
para a longa e elaborada preparação de Ivan
o Terrível (1944 - 48), o último e mais ambicioso dos seus filmes. O desenho preparatório de Alexander Nevky aqui apresentado
[fig. 26] dá uma ideia muito aproximada, em
todos os aspetos, do plano efectivamente
filmado,
indiciando
ter
servido
como
storyboard. Os desenhos de Ivan o Terrível
pertencem à I Parte das duas concluídas
[fig. 28], da trilogia projetada, e remetemnos a algumas cenas conhecidas da mesma.
22
21. Esboços para American Tragedy (1931).
José Carlos AVELLAR – “As listras do sarape, as
linhas do engenheiro e a rã rechonchuda” in
<http://www.escrevercinema.com/que-viva-mexico.htm>
[consulta 19/11/2012]. Sobre outro tipo de desenhos
realizados durante a estadia no México, vd. Stéphane
BOUQUET – Grandes…, p. 21.
5
22. Esboços para Que viva o México (1931).
29
24
25
23. Desenho para Que viva o México (1931).
24 e 25. Cartazes para Que viva o México.
26. Desenho para Alexander Nevky (1938).
27. Fotograma do filme Alexander Nevky.
28. Desenhos para Ivan o Terrível, I Parte (1944).
23
26
27
28
30
A
kira Kurosawa
pintura, assim como as suas influências artís-
(Tóquio, 1910 – 1998)
ticas principais, os pintores Van Gogh e
Nasceu no seio de uma
Cézanne. Comentando os seus desenhos, diz
família de ascendência de
o cineasta: «¿Son dignos los dibujos de mis
samurais, cuja origem remonta ao século XI.
storyboards de ser llamados arte? Yo no me
Estudou Pintura nas Belas-Artes em Tóquio.
proponía pintar bien. Simplemente utilicé
Em 1935 ingressou nos estúdios cinemato-
con libertad los materiales y recursos que
tenía a mano. Como mucho me ayudaron a
gráficos Toho, trabalhando primeiro como
realizar las películas […] Es curioso que
guionista, e mais tarde como ajudante do
cuando de verdad intentaba pintar bien sólo
realizador Kajiro Yamamoto. É considerado
producía una obra medíocre, mientras que
um dos cineastas criadores da modernidade,
cuando sólo me preocupaba de esbozar las
e o mais universal dos do seu país, cuja obra
ideas para mis películas fue cuando produje
teve uma influência assinalável em muitos
obras que la gente considera interesantes.» 12
outros, tais como: John Sturges, Martin Ritt,
Francis Coppola, Martin Scorsese, Steven
Spielberg, George Lucas e Sérgio Leone.
Embora já antes, por vezes, Kurosawa
utilizasse o desenho como apoio para a preparação dos seus filmes – como podemos
ver no script com esboços de Donzoko
(1957) [fig. 29] –, foi só a partir da década
de 1970 que começou a desenhar storyboards mais elaborados para os filmes que realizou: tal se deve à dificuldade em encontrar,
naquela época, qualquer produtora japonesa
disposta a investir nos seus projetos, apesar
do enorme prestígio internacional de que
gozava. São dos mais famosos, porque in-
29. Script com esboços para Donzoko (1957).
vulgarmente detalhados devido à necessidade imperiosa de transmitir o imaginário de
Akira KUROSAWA cit. in Juan Pablo
BALLESTER – “La pintura en el cine y los
‘storyboards’ de Akira Kurosawa” in LOS dibujos de
Akira Kurosawa: la mirada del Samurái. Madrid: Museu
ABC e Tf Editores, 2011, p. 48. O autor cita o
cineasta a partir da seguinte fonte: James
GOODWIN – Akira Kurosawa and Intertextual Cinema.
Baltimore (MD), Londres: The Johns Hopkins
University Press, 1993, p. 221.
12
cada película, e convencer os financiadores
relutantes. Nos seus desenhos, que não nos
deixam indiferentes, é evidente a sua formação académica (não concluída) em
31
Em 2011, sobre a exposição “Los dibujos de
O storyboard do filme Kagemusha (1980) é
Akira Kurosawa: la mirada del Samurái”, a dire-
composto por 366 desenhos: «“el encuadre, la
tora do Museu ABC de Dibujo e Ilustración,
psicologia y las emociones de los personajes, sus
em Madrid, escreveu o seguinte na página
movimentos, el ângulo de la cámera adecuado
introdutória do catálogo da mesma: «(…)
para la captura de esos movimientos, la ilumi-
Muchas veces recordamos aquellos torpes pri-
nación, el vestuário y los accesorios […] Si antes
meros pasos de la fotografía que pretendía pare-
no he reflexinado especificamente sobre cada
cer pintura o las primeras escenas filmadas que
uno de estos elementos no puedo dibujar la
semejaban actuaciones teatrales contempladas
escena”»14
desde un único punto de vista, la pátina de lo
pictórico lo petrificaba todo, evitando que la
volumetría de la imagem real y el movimento de
los actores salieran del papel y del marco para
agilizar las historias que se representaban. Por el
contrario, cuando descubrimos los storyboards de
Akira Kurosawa percibimos que líneas y manchas sobre el papel llevan impresa desde su origen la esencia del movimiento cinematográfico
con tanta intensidad que el ojo a veces cree percibir el fotograma siguiente.
(…) Todos guardamos en nuestra memoria
30
algunas de sus imágenes, que ya forman parte de
nuestro universo visual; por eso es más sorprendente descubrir al Kurosawa dibujante que presenta sus sueños, trazándolos de forma rápida,
intuitiva y gestual. El creador parece desatar
todos sus instintos y refleja sus motivos e influencias preferentes – así se aleja de la estética
oriental y dibuja a la manera de los expresionistas, con los prototipos occidentales que tanto
valoró -, busca puntos de vista diferentes y encuadres insospechados que las técnicas cinemato-
31
gráficas le permitirán perfeccionar y completar.
(…)»13
30 e 31. Desenhos para Kagemusha (1980).
30. Lápis, aguarela, pastel sobre papel 360 x 270 mm.
31. Lápis, aguarela, pastel sobre papel 356 x 270 mm.
14 Juan
13
Pablo BALLESTER e Nerea LANDAJO –
Los dibujos de Akira Kurosawa. La Mirada del Samurai,
Guia del professorado. Bilbao: 2011, p. 4.
Inmaculada CORCHO in LOS…, p. 5.
32
32. Desenho para Kagemusha., lápis aguarela, pastel sobre papel 270 x 357 mm.
33. Desenho para Kagemusha, lápis, aguarela, pastel e marcador s/papel 275 x 355 mm.
33
Kurosawa começou a escrever o guião para
desenvolvidos
o filme Ran em 1976, e concluiu-o em 1985.
Kurosawa aplicou toda a sua memória
Ao
um
visual, e o profundo conhecimento da
storyboard com 862 desenhos, contendo
pintura simbolista, impressionista, fauvista,
minuciosamente cada detalhe do filme, in-
expressionista e surrealista.
longo
destes
anos
elaborou
a
partir
destes.
Neles,
cluindo desenhos do vestuário, aos quais dá
especial destaque. Para o exaustivo trabalho
de investigação contratou um prestigiado
desenhador japonês. O vestuário foi confecionado segundo os métodos tradicionais
para obter uma maior autenticidade. Ao longo de 3 anos foram produzidos 1400 trajes
para o filme. Em 1985, Ran ganhou o Óscar
para o melhor guarda-roupa.
O cineasta refere-se ao uso das cores no
34
filme: «“queria reproduzir los colores del siglo
XVI japonês, uma época en la que el vestuário
de los hombres era especialmente brilhante”. “
atribuyo un color a cada una de las partes enfrentadas, porque ayuda a hacerlo menos confuso, pero a la hora de elegirlos pense también en
los caracters que representaban.”»15
Sonhos (1990) é considerado pela crítica
internacional o seu testamento fílmico; o
argumento é composto por oito sonhos, que
representam as grandes preocupações morais, estéticas e intelectuais de Kurosawa. O
episódio “Corvos” foi concebido em home-
35
nagem a Van Gogh. Os desenhos das figuras
36 e 37 terão sido certamente dos primeiros
34. Desenhos para Ran (1985), lápis, aguarela, pastel,
lápis de óleo, lápis de cera s/papel, 271 x 383mm.
esboços quer para a rodagem do filme –
35. Desenhos para Ran, lápis aguarela, pastel s/ papel
405 x 320 mm.
tendo em conta as anotações que neles
constam – quer para outros desenhos
15
Idem, pág. 10.
34
36
38
40
37
39
41
36 e 37. Desenhos para Sonhos (1990). Lápis de grafite s/ papel.
38. Desenhos para Sonhos. Lápis, aguarela, pastel, lápis de cor s/papel 314 x 406 mm.
39. Desenhos para Sonhos. Lápis, aguarela, pastel s/ papel.
40 e 41. Fotogramas de Sonhos.
35
O
atmosférico alcançado através dum hábil
rson Welles
sentido da escala, volume e contraste.17
(Wisconsin, 1915 – 1985,
Califórnia)
Homem de múltiplos
talentos – ator, encenador
(criou a sua própria companhia de Teatro em
1937), autor de celebérrimos programas radiofónicos, e de televisão, jornalista – Welles cedo
revelou dotes para o desenho: pelo menos, foi
o que achou o doutor Bernstein, o seu tutor
42
desde a morte da mãe: confiou-o primeiro ao
pintor Boris Anisfield, depois ao Chicago Art
Institute. Desde muito jovem, pintou cenários
para o teatro, e dedicou-se à ilustração de
obras literárias, entre as quais duas de Shakespeare, editadas por ele próprio.
Com apenas 25 anos Orson Welles realizou Citizen Kane (1941). Truffaut disse um
dia tratar-se dum filme único: «(…) “o deve
ao facto de ser o único primeiro filme assinado
por um homem já célebre por outras razões”
(…)».16
43
A sua obra cinematográfica foi muito
influenciada pela pintura e pelo desenho.
Em 1947 pretendeu fazer um filme baseado
no drama Otelo de Shakespeare, mas por
imposição dos estúdios foi obrigado a mudar
o argumento; daí resultou uma adaptação de
Macbeth, um filme de baixo orçamento
44
rodado em cerca de três semanas. Os dese-
42, 43 e 44. Desenhos para Macbeth (1948).
nhos reproduzidos aqui são de Welles, para
os cenários do filme, e denotam um poder
Annette MICHELSON (cf. “Drawing into film” in
DRAWING Into Film: Directors’ Drawings. New York:
The Pace Gallery, 1993, p. 11) coloca-os dentro da
tradição do design teatral modernista, e vê neles a
influência de Gordon Craig, filtrada através de Robert
Edmond Jones.
17
François TRUFFAUT cit. in Maurice BESSY –
Orson Welles. Lisboa: Editorial Presença, 1965, p. 24.
16
36
S
em 45 segundos de filme, e Saul Bass terá
aul Bass
sido incumbido de filmar a cena, já que não
(Nova Iorque, 1920 – 1996 L. Angeles)
terá chegado a acordo com Hitchcock sobre
Designer Gráfico de formação,
o melhor modo de colocar a câmara, para
Bass celebrizou-se no cinema
que respeitasse os desenhos elaborados para
principalmente como autor dos genéricos
o efeito. Esta cena, para atingir a perfeição
extraordinários que realizou para muitos
pretendida por ambos, levou sete dias a ser
filmes de outros, ainda hoje considerados
concluída.
dos melhores, e de inúmeros (igualmente
O contributo fundamental de Bass, para
famosos) cartazes que concebeu para a
aquela que veio a tornar-se uma das cenas
divulgação dos mesmos, mas foi também
mais emblemáticas de entre todos os filmes
cineasta em nome próprio (galardoado com
um
Óscar
em
1968,
pela
de Hitchcock, foi ignorado durante muitos
melhor
anos por aqueles que escreveram sobre a
curta-metragem documental – Why Man
obra do mestre do suspense, mas hoje está
Creates): deixou a sua marca no cinema,
definitivamente assente. Isso ter-se-á devido
graças a um grafismo muito próprio,
à resposta evasiva que o cineasta inglês deu,
definidor duma época no Design (foi um
quando interrogado sobre o assunto, numa
dos maiores designers, e mais influentes, do
entrevista a François Truffaut em 1966: para
século XX) e no cinema. Sem esquecermos
além do genérico, Hitchcock apenas admitiu
os aspetos referidos, daremos mais atenção à
sua
faceta,
menos
conhecida,
que Bass estivera envolvido na cena onde o
como
detetive sobe pelas escadas acima; na ficha
desenhador de storyboards.
técnica do filme, só são atribuídos créditos a
Em 1958, Bass colaborou com Hitchcock
Bass pelo genérico e como “pictorial
em Vertigo (1958), para o qual realizou o
consultant”.
genérico, extraordinariamente gráfico, que é
Porém, entretanto outros intervenientes
um dos mais famosos da história do cinema,
durante
e executou os cartazes promocionais. Em
a
rodagem
de
Psico
(alguns
reiteradamente) admitiram ao longo dos
1959, voltou a ser o autor do genérico de
anos que tinha sido Bass a filmar a cena, que
Intriga Internacional (1959).
na realidade tem um estilo bastante diferente
Nas filmagens de Psico (1960) foi o
das outras do filme.18
responsável pela elaboração do storyboard
da cena mais famosa do filme, a do chuveiro
18 Sobre
esta questão, sobre a qual não nos podemos
alongar mais, vd. Jennifer BASS e Pat KIRKHAM –
Saul Bass. A Life in Film & Design. London: Laurence
King Publishing, Ltd., 2ª edição, 2012, pp. 185-187 e
pp. 405-406, a longa nota 92. Entre outros motivos
de interesse, as páginas da obra citada contêm várias
declarações de Saul Bass.
com a atriz Jane Leigh, além de ser o autor
do conhecido genérico do filme. Os setenta
e oito takes das filmagens resultaram apenas
37
Depois do storyboard da cena de Psico, Bass
de créditos [fig. 52], onde demonstrou todo
desenhou ainda os de filmes tão famosos
o seu génio gráfico.
como Spartacus (1960) de Stanley Kubrick
& Anthony Mann, e West Side Story (1961)
de Jerome Robbins & Robert Wise. Para
Spartacus foi contratado por Kirk Douglas,
ao mesmo tempo produtor e ator principal
do filme, como “consultor visual”: foi o
autor dos storyboards das sequências de
batalhas – reproduzimos aqui [fig. 47] uma
das muitas versões que desenhou para a
batalha final entre escravos e romanos19 – e
45. Cartaz do filme.
o responsável pela conceptualização e design
da escola de gladiadores, e por todo o
material gráfico de promoção do filme, mas
também realizou o genérico.
No musical West Side Story, Bass foi, mais
uma vez, “consultor visual”: desenhou (com
a colaboração de Elaine Makatura, a sua
esposa) os detalhados storyboards da sequência de abertura, que introduz o espectador na luta entre os dois gangs rivais, nas
ruas de Nova Iorque. São storyboards
invulgares, pois contêm muita informação
sobre a coreografia de movimentos dos personagens, e o seu percurso, em ambientes/cenários bem definidos. Além dos
storyboards,
Bass
realizou
também
o
genérico (com Elaine Makatura) [figs. 50 e
51] acompanhando a abertura musical de
Leonard Bernstein e a sequência que se lhe
segue da visão aérea dos arranha-céus da
46. Storyboard da cena do chuveiro de Psico (1960).
cidade, assim como a engenhosa ficha final
Sobre o porquê dessas muitas versões, ao sabor do
reforço sucessivo do orçamento para o filme, vd.
depoimento de Saul Bass, idem, p. 197.
19
38
47. Storyboard de Spartacus (1960) de Stanley Kubrick e Anthony Mann.
39
48
49
50
51
52
53
48. Diagrama dos movimentos dos personagens na rua.
49. Storyboard da sequência de abertura de West Side Story, personagens dos dois gangs integrados na paisagem urbana.
50 e 51. Fotogramas do genérico do filme.
52. Fotograma da lista final de créditos (fim do filme).
53. Cartaz do filme.
40
F
ederico Fellini
canvases in motion. (…) I believe that for
(Rimini, 1920 – 1993, Roma)
many directors the spoken word is more
Antes de se dedicar ao
important than the image, and they are
cinema, o cineasta italiano foi
literary directors. For me, film is a child of
desenhador de BD e caricaturista. Embora
painting.»20
autodidata, continuou sempre a usar o
instrumento do desenho ao longo da sua
carreira, para expor as suas ideias. Os seus
desenhos, rápidos sketches feitos com uma
caneta de bico-em-bola, canetas de filtro ou
lápis de cor, durante o processo de
conceção (muitas vezes, os personagens) e
na rodagem dos seus filmes, serviam umas
vezes como “ajudas-memória” gráficas ou
válvula
de
escape
para
posterior
54. Desenho para a cenografia de Casanova. A ideia desenhada é completada por algumas indicações escritas, assim
como um esboço posterior no qual modifica a posição da
cama, colocada desta vez junto à janela com grades.
desenvolvimento visual. Outras vezes funcionavam como um “interlocutor”, como
ponto de partida para dialogar com os seus
20 Federico
FELLINI cit. in Vincenzo MOLLICA –
“Fellini from the first to the last drawing” in
FELLINI!. Milão, New York: Skira Editores S.p.A./
Guggenheim Museum, 2003, pp. 32-33. A declaração
de Fellini foi publicada originalmente na seguinte
obra: Charlotte CHANDLER – I, Fellini, Mondadori,
1994 (existe uma edição inglesa: I, Fellini. London:
Random House, 1995). Não surpreende, portanto,
que noutra declaração (cit. in Vincenzo MOLLICA –
“Fellini…”, p. 18) tenha feito a seguinte confissão:
«I confess that there was a time when I thought
that I might spend my life as a painter.»
O Cinema foi reconhecido como uma arte mais tarde
que a Fotografia. Porém, em 1934, numa conferência
(“On Movies”, publicada no Departement of Art and
Archeologic Bulletin, Princeton University, em Junho de
1936) o historiador da arte Erwin Panofsky já iniciara
a sua defesa, procurando legitimar a sua presença nos
museus em pé de igualdade com outras obras de arte,
invocando paralelismos com exemplos extraídos da
história das outras artes – os mosaicos de Ravena, as
gravuras de Dürer, etc. A conferência foi republicada
por Panofsky (1947) com algumas alterações
significativas, anunciando a distinção, depois comum,
entre um cinema de “autor” e um cinema mais
“popular”, ou comercial. A propósito das posições de
Greenberg e de Panofsky, e as relações entre o
cinema e a pintura, vd. o ensaio de Jean-Claude
LEBENSZTEJN – “Em Pura Perda” in Cinema…, pp.
216-235.
distintos colaboradores das várias áreas, para
que entendessem melhor o que queria fazer:
destinados a discutir o trabalho a ser executado pelos designers de cenários e de guardaroupa, por exemplo.
Fellini era de opinião que o cinema era
uma arte, e considerava-o mais próximo da
pintura do que qualquer das outras, como se
depreende da seguinte declaração, citada no
catálogo da exposição Fellini! que foi dedicada aos seus desenhos no Guggenheim
Museum (Outubro 2003/Janeiro 2004), em
Nova Iorque: «The cinema is an art. I say it
with profound inner conviction. The cinema
is an art just like all the others. It is one of
the arts. To me, it is not like literature, it is
like painting, because it is made up of
41
Para além de ter sempre mantido, e
(Fellini: A Director’s Notebook, 1968).
manifestado, uma grande fascinação pelos
Fellini desenhou um storyboard prévio
desenhadores de todos os tipos, sejam os da
com várias indicações, e realizou ainda uma
“alta
e
sessão de fotos na Cineccità com o ator que
caricaturistas, o desenho terá sido encarado
tinha escolhido para o personagem principal
igualmente por ele como um meio auxiliar
de
de
como
desenhou depois um outro mais detalhado
transparece numa declaração em que se
antes da versão final, publicada primeiro na
refere ao escultor Henri Moore: «Drawing
revista A Suivre e depois em álbum. O
helps me to see the world. I have heard that
interessante é que Fellini passou a assumir a
Henry Moore thougt that he could see much
novela gráfica como um filme, e a inclui-la
more through his sketches because they
na sua filmografia: «The Voyage of G.
helped him to observe. When necessary, a
Mastorna (…) is still a film, but in comic
drawing helps to enhance your capacity for
strip form. The pencils, India inks, half-tints,
observation,
and felt-tip pens of my friend Manara are
cultura”
perscrutação
ou
os
do
especially
ilustradores
mundo,
when
you
are
Mastorna,
um
vioncelista;
Manara
depicting something that you have seen but
the equivalent of
which you no longer have before your eyes.
costumes, the faces of the actors, the props,
In my case, I give free rein to my
and the lights that I use to tell my stories in
imagination.»21
movies. With a considerable additional
Um caso à parte na sua carreira foi a
the set desigs, the
advantage: perhaps they cost a little less.» 22
colaboração com o ilustrador italiano Milo
Manara, a quem recorreu para a realização
de novelas gráficas, supletivas de dois
projetos
cinematográficos
que
nunca
conseguiu levar a bom porto: Viaggio a
Tulum (1989) e Il Viaggio di G. Mastorna ditto
Fernet (1992). O segundo é um dos filmes
não rodados mais célebres da história do
cinema, em cujo argumento Fellini começou
a trabalhar em 1965, e para o qual chegou
mesmo a construir alguns cenários em
Dinocitta (Pontine), que aparecem num
documentário que realizou para a NBC
Federico FELLINI – “Here is Mastorna a. k. a.
Fernet” in FELLINI!, p. 141. Sobre o filme e a
novela gráfica vd. também Vincenzo MOLLICA –
“Le rêve du Maestro”, A Suivre, nº 177, Octobre 1992,
pp. 2-7.
22
21 Federico
FELLINI cit. in Vincenzo MOLLICA –
“Fellini…”, p. 32. O depoimento de Fellini provém
da mesma obra de Charlotte Chandler, citada supra.
42
56
55
58
57
55. Página de storyboard de Fellini para Il Viaggio di G. Mastorna ditto Fernet (1992).
56. Storyboard de Manara.
57. Versão final da página publicada na A Suivre.
58. Imagem do personagem Mastorna no documentário A Director’s Notebook, (1968).
43
Antes de finalizarmos a nossa breve abordagem à relação de Fellini com o desenho,
destacamos ainda um extrato dum seu depoimento naquela obra que Vincenzo
Mollica, o comissário da exposição no
Guggenheim Museum, considera conter as
mais importantes declarações (raras) do cineasta italiano sobre o seu “amor ao desenho”, ao ponto de Fellini a considerar a sua
“Bíblia” e o único manual que permite entrar
59
no seu mundo, um livro em que ele se desvenda (e dissimula) e para o qual remetia os
jornalistas incómodos que encontrava. Intitula-se Fare un Film (Federico Fellini, Einaudi,
1974), e para Mollica «…no essay on Fellini as
an illustrator can do without these words of his:
“Why do I draw the caracters in my movies?
Why do I make graphic notes of the faces,
60
noses, whiskers, ties, pocketbooks, the way
they cross their legs, the people who come to
see me in my office?
Perhaps I have already said that it is a way to
start looking a movie in the face, trying to
figure out what sort of movie it is, an attempt to pin down something, however minimal, bordering on the meaningless, but
which seems to me to have something to do
with the movie, and which speaks to me in
veiled language about it. (…)”»23
61
59. Desenho para La Dolce Vita (1960).
60. Fotograma de La Dolce Vita.
61. Desenho para Ginger e Fred (1985).
23
Federico FELLINI cit. in Vincenzo MOLLICA, op.
cit., pp. 15-16.
44
S
atyajit Ray
(Calcutá, 1921-1992, Calcutá)
Nascido no seio duma família
com uma longuíssima tradição
artística em várias áreas, que remonta a pelo
menos 15 gerações, o indiano Satyajit Ray foi
escritor, crítico de cinema, ilustrador e designer gráfico profissional – nomeadamente,
trabalhou durante uma década para uma companhia de publicidade britânica24 –, antes de se
tornar um cineastamundialmente reconhecido.
Era um cinéfilo e foi na qualidade de crítico de cinema, durante um período em que
viveu em Londres, que conheceu Jean
Renoir (Paris, 1894 - 1979, Califórnia), o qual
62
o convenceu a tornar-se cineasta.
Ray iniciou a sua carreira com o filme
Pather Panhali (1955), baseado numa novela
com o mesmo título de Bibhuti Bhusan
Bannerjee: foi ao trabalhar no design duma
nova edição daquela, já ilustrada por si em
63
ocasião anterior [fig. 65], que tomou a resolução de se aventurar na sua antiga ambição
de se dedicar ao cinema. Com o objetivo de
arranjar financiamento para levar avante o seu
projeto
Ray
desenhou
um
storyboard
[fig. 62], apresentando-o com esse propósito
64
a várias produtoras de Calcutá. A rodagem
atribulada durou quase três anos devido
65
Note-se: mesmo depois de se tornar um cineasta
consagrado, de tempos a tempos Satyajit Ray continuou
a fazer ilustrações, mormente como autor regular das
capas da revista para crianças Sandesh, que foi lançada
pelo seu pai.
24
62. Storyboard para Palher Panhali (1955).
63 e 64. Fotogramas do filme Palher Panhali.
65. Ilustração de Ray que deu origem ao filme.
45
à falta de dinheiro; apesar dos vários percalços
e de ver ameaçada a sua finalização Pather
Panhali tornou-se a sua obra-prima, e conjuntamente com Aparajito (1956) e The World of
Apu (1959) constitui a chamada Apu Trilogy,
que deve o seu título ao nome do personagem
principal.
A película atraiu a atenção de Monroe
Wheeler, um dos diretores do MoMA de
Nova Iorque, que andava a preparar uma exposição sobre a arte indiana: a Wheeler interessou-lhe o método de rodagem quase arte66
sanal, e após uma entrevista propôs a Ray uma
estreia mundial do filme, concretizada um ano
depois.
Os desenhos de Ray [figs. 66 e 67], de um
alienígena, para um projeto intitulado The
Alien (1967), poderão ter servido – a questão é
controversa 25 – de inspiração para o ET
(1982) de Steven Spielberg.
67
66 e 67. Desenhos de Satyajit Ray.
25 Vd. Karl
46
FRENCH – Art…, p. 167.
R
oman
Polanski
(Paris, 1933)
Em 1937, mudou-se com a
família para Cracóvia, na Polónia. Iniciou aos
13 anos uma carreira profissional como ator.
Em 1950 deu continuidade aos seus estudos
na Escola de Belas Artes de
Cracóvia,
e
68. Storyboard para The Bicycle (1955).
concluiu-os em Katowice. De 1955 a 1959
estudou realização na Escola Nacional Polaca
de Cinema.
Polanski começou a desenhar storyboards
desde o início da carreira, com as primeiras
curta-metragens
que
realizou:
como
os
detalhados de The Bicycle (1955), filmada na
Croácia e tendo como tema um episódio
autobiográfico, quando com apenas 15 anos
quase foi assassinado – infelizmente, grande
parte do negativo foi destruído em laboratório, e o filme nunca foi concluído. Para a curta
Two Men and a Wardrobe (1958) [fig. 69],
69. Storyboard Two Men and a Wardrobe (1958).
desenhou 33 páginas de storyboards detalhados, incluindo diagramas com a posição da
câmara para cada filmagem.
Outro filme de que conhecemos alguns
Segundo F. X. Feeney, «A paixão da infância
desenhos feitos por Polanski, pertencem ao
de Polanski pela banda desenhada floresceu numa
storyboard para o filme Macbeth (1971),
habilidade para desenhar storyboards e numa predi-
sua
lecção por actores com aspecto de banda dese-
adaptação
da
peça
homónima
a
de
Shakespeare. A primeira folha [fig. 70] diz
nhada como Henryk Kluba e Jakub Goldberg.»26
respeito à cena de abertura do filme: o soldado solitário (enquadramento 2), o Rei a caval-
Paul DUNCAN (Ed.) e F. X. FEENEY – Roman
Polanski. Colónia,…: Taschen, 2006, p. 21. Para o
cineasta (cit. in idem, p. 20) «“As curtas-metragens
são, para mim, bandas desenhadas ou
documentários. Quando usamos pessoas numa
curta-metragem, se elas falam, pensamos que o
vão fazer durante duas horas. Não é natural, não é
adequado à forma.”
26
gar com os seus soldados ao longo do campo
de batalha costeiro (enquadramentos 3, 4 e 5);
e ainda um diagrama com legendas, que assinala as posições relativas e os movimentos das
47
personagens principais – o Rei, o sargento, e o
Cavaleiro de Cawdor.
A imagem [fig. 72] diz respeito à sequência de ataque ao castelo de Macbeth. Como
relata Wilfrid Shingleton, o designer de
produção do filme: «Polanski and I went
through the sript together and discussed each
scene. He then drew a little plan of the way in
70
which he wanted his actors to move across
the screen. This helped us design the set for
the action involved. For, example, when Macbeth and Lady Macbeth are talking about the
killing of the King we put them in the foreground and through the window in the background we could see the King in bed.»27
Para o filme O Pianista (2002), bem mais
71
recente, foram realizados storyboards apenas
para algumas sequências, e Polanski fez alguns
desenhos destinados a servir de referência ao
técnicos encarregues de fazer o reconhecimento dos locais para as filmagens, como
aquele aqui reproduzido [fig. 74].
72
73
74
70 e 71. Storyboard e fotograma de Macbeth (1971).
72 e 73. Storyboard e fotograma de Macbeth (1971).
74. Desenho para O Pianista (2002).
Wilfrid SHINGLETON cit. in St John MARNER
(ed.) – FILM DESIGN. London, New York: The
Tantivy Press, 1974, p. 30.
27
48
R
idley Scott
pensamentos” visuais – conhecidos no meio
(South Shields, 1937)
como Ridleygrams [fig. 75]; para ele «‘One
O produtor e realizador
sketch is infinitely more useful than the best
inglês diplomou-se primeiro
two-hour story conference.’» 29 – seja pelos
no West Hartlepool College of Art (1954 -
storyboards que costuma desenhar.
1958) – para onde foi estudar atraído pela
pintura, mas acabou seduzido pela fotografia e
o design; foi lá também que praticou o
desenho com grande intensidade
28
–, e
pós-graduou-se depois em Design Gráfico
(1958-1961) no Royal College of Art, em
Londres: e, no último ano, fez um curso de
pós-graduação extra em Design de cenários
75. Um Ridleygram para Reino dos Céus (2005).
(chamado então “Theatre Design”).
Contudo, cedo decidiu que não queria de-
O cineasta aprendeu a valorizar o potencial
dicar-se ao campo do Design; após ter traba-
económico que um bom storyboard pode ter
lhado na BBC, criou em 1965 uma empresa de
aquando do planeamento do filme Alien
publicidade (Ridley Scott Associates, RSA)
(1979): na verdade, foi graças a eles – muito
com Alan Parker (Islington, Londres, 1944) e
detalhados e inteiramente criados por si, inclu-
o seu irmão Tony Scott (1944 - 2012), ambos
indo já desenhos das naves espacias e das
igualmente cineastas. Notabilizou-se rapida-
roupas – que conseguiu convencer a 20th
mente em Inglaterra a fazer filmes publicitá-
Century Fox a duplicar o orçamento inicial-
rios, antes de se mudar para Hollywood
mente previsto. 30 Como afirmou a posteriori,
(1977) e iniciar a sua carreira de êxito no ci-
«“Storyboarding is critical to all the movies
nema.
I’ve done” (…) It’s the best way to get ideas
Ridley Scott é famoso no meio cinematográfico, pela facilidade com que comunica
29 Ridley
SCOTT cit. in Paul M. SAMMON – Ridley…,
p. 13.
30 Sobre este aspecto, vd. Paul M. SAMMON, op. cit.,
p. 53. Para um desenvolvimento mais aprofundado da
concepção visual do filme, Scott contou ainda com a
colaboração de vários artistas experimentados, como o
americano Ron Cobb – autor de centenas de desenhos
dos interiores e do exterior da nave espacial –, o
famoso desenhador françês de BD Moebius (Jean
Giraud), que fez durante alguns dias os esboços
preliminares dos fatos espaciais – servindo de base ao
trabalho do figurinista John Mollo –, e, sobretudo, o
pintor suiço H. R. Giger, criador da criatura
monstruosa desde o ovo até adulto.
através do desenho com os membros das
equipas com que trabalha (anda sempre munido com pelo menos três canetas de filtro, de
espessuras diferentes), seja através de pequenos diagramas ou esboços dos seus “primeiros
28 Cf. Paul
M. SAMMON – Ridley Scott: The making of his
movies. London: Orion Books Ltd, 1999, pp. 11-12.
49
across to everyone from studio heads to the
sua intervenção gráfica estende-se mesmo na
production team. You are literally working out
fase de pós-produção, pois também intervém
what you can do.”
31
quando os especialistas dos efeitos especiais
entram em ação: depois de ver as imagens
Embora às vezes recorra à colaboração de
filmadas com as adições resultantes daqueles,
artistas para a elaboração dos storyboards dos
seus filmes, como aconteceu no filme Blade
propõe aos artistas VFX, através de novos
Runner (1982) – no caso, a de Sherman
desenhos, as alterações que considera necessárias, adicionando detalhes ou sugerindo ajus-
Labby – Ridley Scott tem uma enorme
confiança
nos
seus
dotes
gráficos,
tamentos da luz, ou outras.
e
habitualmente prefere ser ele próprio a
desenhá-los, até por uma “economia de
tempo”: «It can take more time to explain
what I want to the artist than it would to do it
myself. Unless they are really good.»32
Amiúde, logo desde a sua primeira leitura
do script preliminar, começa a fazer esboços
nas margens e por cima das páginas do
mesmo, à medida que vão surgindo imagens
na cabeça, como podemos ver numa aqui
reproduzida [fig. 76], pertencente ao filme
Reino dos Céus (2005). É a partir desses
esboços iniciais que desenvolve depois os
storyboards [figs. 77 a 80]. Durante a rodagem dos filmes continua a desenhar – nem
sempre sobre papel; por exemplo, aquando
das filmagens de Reino dos Céus, em Marrocos,
chegou a fazer diagramas da colocação das
76. Página do script de Reino dos céus, com esboços
de Ridley Scott.
câmeras na areia –, sempre que é necessário
fazer alterações a planos previstos, ou para
introduzir detalhes considerados relevantes. A
Ridley SCOTT cit. in Diana LANDAU (ed.) –
Kingdom of Heaven: The Ridley Scott Film and the History
Behind the Story. New York: NewMarket Press, 2005, pp.
103-104.
32 Ridley SCOTT cit. in Diana LANDAU (ed.) –
Kingdom…, p. 104.
31
50
As quatro imagens de desenhos que apresentamos a seguir pertencem aos storyboards realizados por Ridley
Scott para o filme Reino dos Céus e dizem respeito a como foram ideadas as suas sequências iniciais.
77
79
78
80
51
M
storyboards, aos quais acrescenta por vezes
artin
Scorsese
anotações do movimentos dos atores e
posicionamento da(s) câmara(s).
(Queens, N.Y., 1942)
Frequentou a escola de
Numa entrevista fala sobre a utilidade
cinema da Universidade de Nova Iorque.
dos seus storyboards «"The storyboard for
Começou a desenhar muito jovem, e sentiu
me is the way to visualise the entire movie in
uma
narração
advance" (…) "they show how I would
cinematográfica: o primeiro storyboard que
imagine a scene and how it should move to
dele se conhece, para um imaginado épico
the next. My storyboards are absolutely
romano, data de quando tinha apenas 11 ou
essential for my team meetings."» (…)
12 anos de idade. [fig. 81]
«"The process is still the same for me, I shall
atração
precoce
pela
continue to make 'mini-storyboards' and
notes at the edge of my screenplay. These
drawings continue to serve as both a basis
of my meetings with cameramen as well as
any
preparatory designs we need. These
storyboards are not the only means of
communication for what I imagine, but they
are the point where I begin."» 34
81
Faz sempre o mesmo tipo de desenho liDesde o início da carreira ganhou o hábito
near ou de contorno, o que torna os seus
de desenhar storyboards para os seus filmes:
storyboards graficamente semelhantes, como
Os desenhos preparatórios [fig. 83] para o
podemos confirmar nas imagens [figs. 84 e
filme Cavaleiros do asfalto (1973) são os
85], mesmo tratando-se de temáticas e nar-
primeiros de que há conhecimento. As
rativas distintas: «"Pencil drawing is my
primeiras ideias são sempre dele, elaboran-
favourite,"» (…) «"The pencil line leaves
do-as com maior ou menor destreza
little impression on the paper, so if the sto-
gráfica33, através de desenhos preparatórios e
ryboard is photocopied it loses something. I
refer back to my original drawings in order
for me to conjure up the idea I had when I
A este respeito, Karl FRENCH (Art…, p. 173)
embora reconhecendo que os desenhos “ásperos”, de
“estilo primitivo”, dos storyboards de Scorsese – e,
como diz, podem assemelhar-se (com desconforto) a
extractos dos cadernos de notas ilustrados de Travis
Bickle, em Taxi Driver –, podem violentar a definição
de “arte”, reconhece mesmo assim que eles
evidenciam bem a compreensão inata de Scorsese do
medium, e o seu talento para enquadrar imagens e
construir sequências, que ficaram gravadas para
sempre nas mentes duma geração inteira de
espectadores.
33
saw the pencil line made."»35
Martin SCORSESE cit. in Sally ASHLEY–
COUND,
in<http://www.phaidon.com/agenda/art/events/2011/aug
ust/11/storyboards-are-the-point-where-i-begin-says-martinscorsese/> [consulta 15/04/2013].
35 Ibidem.
34
52
Recentemente pudemos visualizar no Portal
do Curta, unindo ideias “STORYBOARD FILME
TAXI DRIVER – MARTIN SCORSESE” 36 ,
um
excerto de Taxi Driver (1976) que apresenta
simultaneamente os desenhos de Scorsese e
as cenas do filme. Nele, é possível comparar
os desenhos prévios do storyboard de
Scorsese com a sequência das imagens
filmadas.
A invenção de Hugo (2011) constitui
82
um momento à parte na carreira de Scorsese,
por se tratar do seu primeiro filme em 3D,
baseado na obra A invenção de Hugo Cabret
(2007) de Brian Selznick, que a ilustrou com
294 desenhos originais da sua autoria. O
livro tem como tema a vida de Méliès, e a
conceção do filme seguiu quase à risca os
desenhos de Selznick, tanto no que diz
respeito à narrativa, como à época, espaços e
personagens. Neste caso, parece-nos, o
storyboard já estava feito, encurtando de
algum modo a fase de pré-produção. Não
83
obstante, Scorsese não deixou de desenhar
82. Storyboard para Cavaleiros do asfalto (1973).
os seu. [fig. 86]
83. Storyboard para Alice já não mora aqui (1974).
<http://portaldocurta.com/2012/07/10/storyboardfilme-taxi-driver-martin-scorsese/>
[consulta 15/04/2013].
36
53
84
85
87
88
86
8
84. Storyboard para sequência deTaxi Driver (1976).
8
85. Storyboard para O touro enraivecido (1980).
86. Storyboard com indicações do movimento de câmara para A invenção de Hugo (2011).
87 e 88. Desenhos de Brian Selznick.
.
54
P
eter
Greenaway
faire des esquisses sommaires qui me
(Newport, País de Gales, 1942)
servaient d´aide mémoire. Ces dessins ne
Em 1960, o cineasta britânico
constituaient pas un storyboard au sens
iniciou estudos de pintura no Walthamstow
classique du terme, mais ils étaient très
College of Art, que frequentou durante três
utiles pour me remettre de temps en temps
sur la bonne voie…”38
anos. Como David Lynch, Greenaway além
de ser cineasta manteve sempre uma carreira
enquanto
multimídias
artista
plástico
(mormente
e
artista
através
de
instalações). Mas, acima de tudo, sempre se
considerou um pintor: «Empecé mi vida
sintiendo, y todavía siento, que pintar es el
proceso supemo de crear imágenes».37
Por vezes, desenha os storyboards para os
seus filmes, mas não gosta de os seguir à
risca,
preferindo
o
acaso.
Além
dos
89
desenhos, acrescenta com regularidade notas
de detalhe que servem, segundo ele, como
auxiliar de memória na rodagem dos filmes.
Em 1992 numa entrevista, contida no
catálogo da exposição Storyboard, 90 ans de
dessins pour le cinéma, na qual participou, é-lhe
feita a seguinte pergunta pelos promotores
da referida exposição: «Est-ce que le storyboard
joue un grand rôle dans la preparation de vos films?
“… Comme j´avais une formation de dessi-
90
nateur, je pouvais très facilment griffonner
89. Storyboard para Z00 (1985).
90. Desenhos para os cenários do filme O cozinheiro, o
ladrão, a sua mulher e o amante dela (1989).
quelques idées au revers d´envoloppes ou
Peter GREENAWAY, Film Comment, XXVI/3,
Maio-Junho de 1990, p.55, cit. in Jorge GOROSTIZA
– Peter Greenaway. Madrid: Ediciones Cátedra, S. A.,
1995, p. 18.
37
Peter GREENAWAY cit. in Jacques FATON,
Benoît PEETERS e Philippe de PIERPONT, op. cit.,
p. 49.
38
55
T
im Burton
(Burbank, 1958)
tarde o realizador.»40
Com apenas vinte e um anos,
Ao longo da sua já longa carreira, Burton
começou a trabalhar nos
desenha os storyboards dos seus filmes
estúdios da Disney, onde permaneceu quatro.
(embora
Apesar da “casa-mãe” do Mickey e seus
colaboradores), cria personagens – parece-
amigos não corresponder, de todo, ao estilo
nos ser este o aspeto em que se destaca mais
de Burton, foi de qualquer modo a rampa de
a sua criatividade enquanto desenhador –, e
lançamento para iniciar a sua carreira como
guarda-roupa,
realizador. Para um artista que gostava, já na
híbridos que tanto podemos encontrar nos
altura, de desenhar esqueletos e figuras
filmes de animação como naqueles com
bizarras que oscilam entre o fantástico e o
atores de carne e osso. [figs. 91 e 93]
“fantasmagórico” terá sido difícil lidar com
Quando
outro tipo de desenho, mais estereotipado,
também
em
recorra
ambientes
criou Eduardo
a
outros
hostis
e
mãos de
tesoura – aliás, podemos afirmar, o estilo
quase imagem de marca dos referidos
desta personagem assemelha-se a muitas
estúdios. Sobre esse período em que lá
outras de outros filmes, exemplo disso são
trabalhou, na altura em que participou na
as imagens aqui reproduzidas – fez a seguin-
produção do filme Papuça e Dentuça, afirmou:
te declaração: «“A ideia surgiu de um dese-
«“Na Disney, querem que a pessoa seja
nho que fiz há muito tempo, uma imagem
artista e, simultaneamente, um trabalhador
que me agradava muito. Surgiu inconscien-
morto-vivo, sem personalidade”.»39
temente e estava ligada à ideia de uma
Desde muito novo, Tim Burton criou o
personagem que quer tocar nas coisas, mas
hábito de desenhar e criar personagens. Para
não consegue, que é simultaneamente
Vincent, uma curta-metragem de 6 minutos a
criadora e destruidora. Indubitavelmente,
preto e branco, concebeu um personagem
esta imagem surgiu na adolescência: é um
parecida com ele (nalguns aspetos físicos):
período em que tinha a sensação de não
«“Não
vou
conseguir comunicar. É um sentimento
desenhar uma personagem que se pareça
comum a essa idade: a ideia de que a nossa
comigo, mas sim, Vincent baseia-se em
imagem e o modo como as pessoas a veêm
sentimentos que conheci”, explicará mais
não tem nada que ver com o nosso
pensei
conscientemente:
verdadeiro “eu” interior…».41
Tim BURTON cit. in Aurélien FERENCZI – Tim
Burton. Lisboa; Madrid; Paris: Prisa Innova S.L. Jornal
Público, Cahiers du Cinema; col. Grandes
Realizadores nº 6, 2008, p. 14.
39
40 Idem,
p. 17.
BURTON cit. in Aurélien FERENCZI –
Tim …, p. 42.
41 Tim
56
«“Na maioria dos meus filmes, a narrativa é
o ponto fraco, é uma constante. Alguns
filmes de que gosto têm narrativas muito
bem construídas, outros, não. Cada um tem
os seus gostos. Será que os filmes de
Frederico
Fellini
têm
uma
estrutura
42
narrativa tão forte?”».
A exuberância visual, por vezes até
exagerada, faz parte de quase todos os seus
filmes; é a imagem de marca deste cineasta
singular, que não nos deixa indiferentes
mesmo
quando
a narrativa
é pouco
interessante, para alguns, todos os seus
filmes
têm
sempre
algo
visualmente
fantástico, que nos leva a esperar pelo
92
próximo.
Em Abril de 2012 esteve patente na
91. Desenho de personagem, A noiva cadáver (2005).
92 e 93. Desenhos de personagem, Eduardo Mãos
de Tesoura (1990).
Cinemateca de Paris uma exposição retrospetiva da obra de Tim Burton – a mesma
que foi organizada, em 2009, pelo MoMA –,
compreendendo mais de quinhentos desenhos realizados ao longo da sua carreira, e
outros objetos e maquetas utilizados em
vários dos seus filmes.
91
42 Idem,
93
p. 41.
57
94
95
97
96
94. Desenho88
do personagem Joker para Batman (1989).
95. Desenho do personagem Batman, para Batman (1989).
96. Desenhos de personagens para Marte Ataca (1995).
97. Desenho do personagem barbeiro para Sweeney Told (2006).
58
1.1. Storyboards de outros realizadores
59
60
F.W. Murnau (Alemanha,1888 – 1943, EUA)
98. Desenho para Le Fantôme (1922).
61
John Huston (Nevada, Missouri, 1906 – 1987, Middletown)
99. Desenhos para Moby Dick (1956).
62
Terry Gillian (Minneapolis, 1940)
100
101
100. Duas pranchetas para Brazil (1985).
101. Duas pranchetas para A fantástica aventura do Barão Munchausen (1988).
63
102. Storyboard de uma cena onírica para o filme Brazil, que não chegou a ser rodada.
64
Jane Campion (Wellington, 1954)
103. Storboard para O Piano (1993).
65
Todd Haynes (Encino, EUA, 1961)
104. Storyboard para Eu não estou lá (2007).
66
2
O desenho como parte
integrante do filme
67
68
Já tivemos oportunidade de salientar a
cinéma lui-même, faisant de beaucoup de ses
importância que o desenho assumiu no
filmes de quasi-dessins animés.»43
processo criativo de George Méliès; tal
parece ter-se devido, em primeiro lugar, a
este ter tomado rapidamente consciência de
algumas das especificidades da linguagem
cinematográfica, que o conduziram numa
direção oposta, pode-se dizer, à dos Irmãos
Lumière. A sua “desconfiança” em relação a
todos os objetos naturais fez com que
generalizasse
o
alargando-o
aos
emprego
de
105
desenho,
enquadramentos,
aos
cenários, às máquinas ou guarda-roupa: fazia
croquis detalhados, os quais eram seguidos de
maneira escrupulosa.
Durante a sua curta carreira de cineasta –
cerca de quinze anos – Méliès também terá
106
recorrido a quase todos os usos habituais do
storyboard mas, mais importante, terá sido o
primeiro a integrar o desenho na própria
imagem filmada: como vemos em cenas de
filmes como The Impossible voyage
(1904), Eclipse (1907) ou Voyage dans la
Lune (1902), o mais famoso de todos e
considerado um dos filmes mais importantes
da história do cinema, e justamente o
primeiro a ser classificado como património
107
mundial pela Unesco. Como refere Benoît
Peeters: «Chaque «tableau» est l’objet d’un
105. Méliès, fotograma de The Impossible voyage (1904)
106. Méliès, fotograma de Eclipse (1907).
dessin différent, qu’un croquis technique
107. Méliès, fotograma de Voyage dans la Lune (1902).
vient
souvent
compléter.
Mais
plus
fondamentale encore que l’ampleur de cette
préparation est la conception qui y préside:
Méliès intègre la texture graphique au
43 Benoît
69
PEETERS, op. cit., p. 12.
Passado mais de um século, Voyage dans la
Lune de George Méliès foi duplamente
homenageado, pelo escritor Brian Selznick e
por Martin Scorsese. O cineasta comprou os
direitos de “A Invenção de Hugo Cabret”
para o adaptar ao cinema, e tentou respeitar
fielmente a linguagem cinematográfica de
108
Méliès. Numa entrevista ao NY Times, em
Novembro de 2011, Scorsese disse «…que
um dos melhores momentos de rodagem foi
a construção do estúdio de vidro de Méliès:
“Começamos a replicar cenas dos filmes de
Méliès o melhor que podíamos. Filmámos
Méliès a rodar os seus filmes durante cinco
ou seis dias. E foi um dos melhores
109
momentos de filmagem que já tive.”»44
Em A invenção de Hugo a presença do
desenho é fortemente visível; para além dos
inúmeros desenhos esvoaçando numa das
cenas do filme, noutra vemos o pequeno
autómato a desenhar uma das imagens mais
famosas do filme Voyage dans la Lune
[fig. 108], e de toda a carreira de Méliès.
110
108, 109 e 110. Fotogramas de A invenção de Hugo (2012)
de Martin Scorsese.
Martin SCORSESE cit. in. Ana CARMO – “O
mecanismo da fantasia”, Público (Ípsilon), 17/2/2012, p.
14.
44
70
Como Méliès, o percursor do processo, o
françês Jean Cocteau (Maisons-Lafitte, 1889
–1963, Milly-La-Forêt) também usou o
desenho como parte integrante de cenas
cinematográficas, jogando com imagens reais,
com atores de carne e osso, dando ao filme
uma mistura de fantasia com a realidade:
exemplo clássico disso é o filme Sang d’un
111
poète (1930), no qual não recorreu para esse
efeito a quaisquer “efeitos especiais”, como
chamaríamos hoje.
Na
verdade,
servindo-se
da
sua
imaginação criativa Cocteau aplicou ao
cinema
um
método
mais
artesanal,
semelhante ao posteriormente designado
como foto-grafismo, segundo Albert Plécy 45, o
qual foi popular em França, mormente entre
os criadores publicitários, e consiste na
aliança da imagem fotográfica com o desenho.
O método é explicitado em fotografias
concebidas por Cocteau e registadas por
112
Philippe Halsmann em 1949 (conhecemos
duas, uma delas considerada por Plécy a foto
“símbolo” do foto-grafismo), nas quais
vemos o “artista-poeta” a desenhar com um
pincel sobre uma folha de papel, que oculta
parcialmente dois corpos, um masculino e
outro feminino.
45 Vd.
Albert PLÉCY – Grammaire élémentaire de l’image.
Verviers: Editions Gérard & Cº, marabout université,
1971, pp. 192-207.
71
111. Fotograma de Sang d’un poète (1930) de Jean
Cocteau.
112. Jean Cocteau/ Philippe Halsmann, foto-grafismo
(1949).
As referências de Peter Greenaway à
la cartografía, porque un mapa es una
história da arte são uma constante nos
representación en dos dimensiones de un
seus filmes, mesmo quando eles não
espacio
abordam diretamente a arte como tema
cuenta dónde se ha estado, dónde se está
principal. Não é, portanto, estranho que o
y dónde se está yendo, uniendo de algún
desenho ocupe um lugar privilegiado no
modo tres tiempos en uno solo. Un mapa
seu cinema. No seu processo de trabalho
según el director «es también un extraño
começa habitualmente por fazer guiões
ideograma de información que es muy
muito elaborados, que incluem muitos
útil y, quizás más pertinentemente,
detalhes gráficos, colagens e imagens
también inútil», la aparente objetividad
fotográficas, além dos escritos. Mais
del documento queda cuestionada por su
importante, porém, em muitas das suas
inutilidad,
películas Greenaway não se limita a ficar
especialmente los mapas que no son
atrás da câmara, porque muitos dos seus
entendibles por la cultura occidental,
desenhos, e obra pictórica, aparecem nas
como los antiguos de los chinos, quienes
imagens que vemos nos filmes: por
a su vez tampoco entendían los de
exemplo,
nuestra cultura.»46
são
personagem
seus
os
Stourley
croquis
do
Kracklite,
o
O
tridimensional,
pai
por
de
ello
que
le
Greenaway
además
fascinan
foi
um
arquiteto de Chicago que viaja até Roma
ornitólogo aficionado, e durante toda a
em O ventre de um arquiteto (1987);
sua vida reuniu uma enorme quantidade
também eram da sua autoria os 92 mapas
de documentação acerca do seu estudo
que vemos em A walk through H (The
das aves. Quando realizou o filme o
Reincarnation of an ornithologist),
cineasta estava preocupado, porque com a
1978; mais subtil é a presença em O
morte do seu pai, como com qualquer
contrato do desenhador (1982), em que
outra morte, uma grande quantidade de
a mão que vemos desenhar, a do artista
informação pessoal tinha-se perdido
Neville contratado para fazer desenhos
irremediavelmente; daí que o subtítulo do
de uma mansão, é a do próprio realizador.
filme se refira explicitamente ao seu pai: o
Peter Greenaway ainda hoje considera
tema de A walk through H é o caminho
A walk through H (The Reincarnation of an
que toma uma alma no momento da
ornithologist) o seu filme mais pessoal e
morte. O título, como acontece noutros
inovador.
Como
filmes do realizador, faz um “trocadilho”
Gorostiza,
«Greenaway
menciona
siempre
Jorge
ha
declarado su fascinación por los mapas y
46 Jorge GOROSTIZA – Peter…, p. 43. O autor
cita uma declaração do cineasta extraída de “A
Greenaway Inventory”, Film Comment, MaioJunho de 1990, p. 58.
72
com o H, que neste caso refere-se tanto à
inicial de Heaven como de Hell (Céu e
Inferno).
O filme começa por mostrar uma sala
de exposições com um movimento de
câmara num só plano, e a partir daí
vão-se apresentando todos os mapas,
113
enquanto uma voz off vai narrando como
é que eles se foram reunindo e como o
ornitólogo Tube Luper os organizou antes de morrer. No último mapa, a voz off
fornece a informação de que Luper usou
92 mapas e caminhou 1.418 milhas: o
comprimento em pés de uma bobina de
película em 16 mm, e portanto a distância
percorrida pelo filme que se acabou de
114
ver. Greenaway desenhou os seus mapas
com referências a todo o tipo de sistemas,
inspirando-se na região de Wiltshire, e
eles mostram o caminho da alma; os
mapas estão divididos em cinco secções,
representando um percurso através de
uma paisagem urbana, passando por
campos cultivados, bosques, fronteiras,
até
chegar
finalmente
a
115
territórios
113. Fotograma de O contrato do desenhador (1982)
de Peter Greenaway.
selvagens e desertos.
114 e 115. Fotogramas de A walk through H… (1978)
de Peter Greenaway.
73
Com o filme O sol do marmeleiro
(1992) estamos perante um caso peculiar
de demonstração da importância do
desenho numa obra pictórica. Nele, o
cineasta espanhol Víctor Erice (Cartranza,
1940) explorou o processo criativo de um
artista: o pintor Antonio Lopéz.
Um detalhe interessante neste filme
116
mostra a mão de Antonio Lopéz a
desenhar com um lápis muito afiado. Os
enquadramentos dos planos centrados
revelam todo o processo de trabalho do
artista, desde os primeiros esboços e
estudos para a composição pictórica. À
medida que vai desenvolvendo o seu
trabalho, o pintor procura demostrar a
117
influência e importância da luz do sol,
116 e 117. Fotogramas de O sol do marmeleiro (1992)
de Víctor Erice.
que penetra a certas horas do dia entre os
frutos dum marmeleiro.
Em American Splendor (2003), os
cineastas
americanos
Shari
Springer
Berman (Nova York, 1963) & Robert
Pulcini, (Nova York, 1963) retrataram a
vida de Harvey Pekar (Cleveland, 19392010), autor de sucesso de uma BD
autobiográfica. Neste filme a presença do
desenho é uma constante, mormente
através de algumas das pranchas de BD, e
118. Fotograma de American Splendor (2003) de
Shari S. Berman & Robert Pulcini.
dos
balões
que
apresentam
os
pensamentos de Pekar nas mais diversas
situações.
74
Quem tramou Roger Rabbit? (1988)
foi um dos primeiros filmes a misturar
imagem real com animação. Trata-se
duma comédia inventiva realizada pelo
cineasta americano Robert Zemeckis
(Chicago, 1951), na qual as sequências de
animação foram, contudo, dirigidas por
119. Fotograma de Quem tramou Roger Rabbit?
(1988) de Robert Zemeckis.
Richard Williams (Toronto, 1933).
Em Kill Bill (2003) de Quentin Tarantino (Knoxville, 1963) as cenas de violência
abundam desde o início ao fim, como é
habitual neste cineasta americano. Kill Bill
inclui uma pequena animação tradicional
japonesa, ao estilo das BD manga, no
momento em que uma das personagens
120
faz um flashback da infância traumática ao
recordar o assassinato dos seus pais.
Talvez não haja intenção da parte do realizador de poupar os espetadores às cenas
sangrentas, pois esta curta-metragem –
Origin of O-ren, com cerca de 7:47 –
121
inserida na narração também as contém
em número abundante. Aqui, o tipo de
120 e 121. Fotogramas de Kill Bill (2003) de Quentin
Tarantino.
desenho, como parte integrante do filme,
é
obviamente
diferente
dos
casos
referidos anteriormente, mas não deixa de
ser interessante esta opção de Tarantino,
conhecendo nós o percurso dele.
75
Incluída no filme Harry Potter e os
Outro caso, mais recente, é o filme
Talismãs da Morte: Parte I (2011) de
Detachment (2012) de Tony Kaye
David
a
(Leicester, 1946), no qual podemos ver
animação “Conto dos três irmãos” (com
com frequência desenhos que ajudam a
cerca de 3 minutos) dirigida pelo suíço
construir a narrativa, realizados numa
Ben Hibon (1977), aplica uma mistura de
lousa com giz branco, portanto a preto e
técnicas: recortes de silhuetas em papel,
branco. Por vezes, “servem” para des-
teatro de sombras chinesas, stop-motion,
comprimir da tensão gerada no espetador
entre outras. Hibon baseou-se na artista
ao longo do filme; não obstante, os pró-
alemã Lotte Reiniger (1899 – 1981) para a
prios desenhos (também eles pouco sua-
conceção da animação; a influência de
ves) remetem-nos para um faz de conta,
Reiniger é mais evidente na sequência
apanágio de algum cinema de animação.
inicial, e a sua estética, que o autor define
Estes pequenos fragmentos são sabia-
como “uma ilustração em movimento” 47,
mente introduzidos no filme, que aborda
encaixa bem na narrativa da saga Harry
um tema que nos é bastante familiar:
Potter.
educação e escolas problemáticas. Estes
Yates
(St.
Hlens,
1963),
desenhos, e os materiais utilizados, são
bastante pertinentes se tivermos em conta
o ambiente e temática do filme.
122
124. Fotograma de Detachment (2012) de Tony Kaye.
122 e 123. Fotograma do filme de Ben Hibon para
Harry Potter e os Talismãs da Morte, Parte I (2011).
47 Ben
HIBON cit. in
<http://harrypotterfanzone.com/2011/02/ben-hibonexplains-the-animated-sequence-in-deathly-hallows-part-1concept-art-reveals-more-gorgeous-detail/>
[consulta 23/03/2013].
76
Já no filme Tabu (2012), de Miguel
Gomes (Lisboa, 1972), os desenhos
aparecem no ecrã de uma certa maneira
ingénua e aparentemente casual, numa
cena em que o par romântico está sentado
na relva a olhar para o céu e a observar as
nuvens; para este, elas sugerem formas de
125
animais.
A atriz protagonista do filme, Ana
Moreira, numa entrevista concedida a
Mário
Augusto
para
o
programa
televisivo “Janela Indiscreta”, no dia 27
de Janeiro de 2013, referia-se ao método
usado pelo cineasta: «“ (…) o Miguel
126
está à espera que algo aconteça, e que
o ator traga algo de novo, quando
arrancamos para filmar a 2ª parte do
filme, ele disse o «guião vai para o
lixo», as informações que tínhamos do
dia anterior, era um planfleto colado
na
parede
que
apenas
dizia
«amanhã cena Aurora, piscina e
127
crocodilo» (…) ”».
125, 126 e 127. Fotogramas do filme Tabu (2012)
de Miguel Gomes.
As declarações de Ana Moreira levamnos a reiterar uma afirmação que fizemos
anteriormente: tal com Peter Greenaway,
Miguel Gomes dá importância ao acaso,
não se limitando unicamente ao guião.
77
O famoso desenhador de BD Jack Kirby
Ben Affleck (Califórnia, 1972) baseou-se
(Nova York, 1917 – 1994, Califórnia) foi
nestes factos, para realizar o oscarizado
contratado para fazer uma série de dese-
filme com o mesmo nome: Argo (2012).
nhos para um filme de ficção científica,
Uma sequência de desenhos e fotografias
que nunca se chegou a concretizar; em
são o preâmbulo da narrativa do filme;
1979, com a conivência de Hollywood, a
essas imagens narram a história do Irão
CIA resolveu aproveitá-los, incluindo-os
desde o Império Persa até à atualidade, e
no plano “surrealista” de retirar seis
a excelente mistura de desenhos com
diplomatas retidos em Teerão – na
imagem real [fig. 130] resume sucinta-
sequência
da
mente os 2 500 anos de história daquele
Embaixada americana após o derrube do
país até 1979, com a chegada de
regime do xá Reza Pahlevi, durante a
Khomeini, após o exílio, para governar o
“revolução” iraniana que alcandorou ao
Irão.
poder o
da
célebre
tomada
Ayatollah Khomeini –, usando
Quase no final do filme, no aeroporto,
como pretexto a rodagem dum filme de
o agente da CIA (Tony Mendez) deslum-
ficção científica no Irão: o filme, falso, foi
bra os soldados iranianos com os
rebatizado com o nome “Argo”.
storyboards [fig. 131] do filme de ficção
científica, que supostamente pretendiam
rodar naquele país; os soldados ficaram
entusiasmados e convencidos após a sua
visualização, e esses desenhos permitiram
a fuga dos diplomatas de território
iraniano e o regresso aos E.U.A.
Os storyboards da versão atual,
128
mostrados no início do filme, são da autoria do ilustrador Alex Hillkurt. Nunca é
feita qualquer referência durante o filme
de Affleck a Jack Kirby; o seu nome é
mencionado apenas na ficha técnica.
Michael Malter e Leonard Morganti são
os autores das pranchas do storyboard
mostrado no aeroporto, desenhadas ao
estilo de Jack Kirby.
128 e 129. Desenhos de Jack Kirby para o falso filme
“Argo” (1979).
78
130. Grupo de fotogramas com desenhos de Alex Hillkurtz, para sequência inicial de Argo (2012) de Ben Affleck.
131. Fotogramas de Argo (2012) de Ben Affleck.
79
Terminamos
este
capítulo
com
uma
referência ao filme Culpado por suspeita
(1991) de Irwin Winkler, (Nova Iorque,
1931) que aborda o período da “caça às
bruxas”
em
Hollywood
durante
o
macarthismo, no qual muitos realizadores,
actores
e
outros
técnicos,
foram
perseguidos em virtude da acusação de
serem comunistas. Segundo Sophie Kovess
132. Fotograma do filme Culpado por suspeita (1991)
de Irwin Winkler.
Brun, da Cinemateca Francesa, duas cenas –
das quais, infelizmente, não arranjamos
qualquer imagem – mostram Robert de
Niro (interpretando o personagem dum
realizador vítima da perseguição) em casa a
desenhar storyboards. Como realça Brun,
trata-se dum exemplo raríssimo, porque não
é comum o cinema dar-nos a ver um
“storyboarder” a trabalhar.48
48Cf.
Sophie Kovess BRUN – “Storyboards:
bibliographie commentée” in
<http://www.bifi.fr/public/ap/article.php?id=167>
[consulta 12/4/2012].
80
3
As funções do
diretor de arte e do
desenhador de
produção
81
82
Por volta do fim da era do cinema mudo o
o contratou como ilustrador; tornou-se
“sistema de estúdios” em Hollywood estava
rapidamente
completamente estabelecido; constituíram-se
prestigiado, ao ganhar em 1929 o primeiro
departamentos de arte dirigidos por um
óscar atribuído nessa categoria, na primeira
director artístico, que eram responsáveis em
edição da cerimónia de atribuição dos
larga medida pela mise-en-scène dos filmes aí
almejados
produzidos; e no início do período sonoro já
cinematográfica americana.
era
possível
distinguir
estilos
um
director
prémios
da
artístico
indústria
visuais
claramente diferenciados entre os maiores
estúdios, porque o chefe do departamento
artístico era responsável pela criação duma
estética própria, a qual constituiria uma
espécie de imagem-de-marca; na verdade,
cabia-lhe a tarefa de supervisionar a direcção
artística de todos os filmes saídos do estúdio
a que pertencia: ou seja, essa estética de cada
um dos estúdios mais importantes de
Hollywood (majors) esteve sujeita aos gostos
particulares do chefe de cada departamento
de arte.
133. W. C. Menzies, alguns desenhos a aguarela do
storyboard de E tudo o vento levou (1939); sequência do
incêndio em Atlanta.
Entretanto, o advento do cinema a cores,
com as novas possibilidades expressivas que
originou, foi acompanhado dum aumento
Consciente da complexa produção do filme,
progressivo da importância e influência do
e da amplitude do necessário trabalho prévio
departamento artístico. A esse respeito, o
de preparação gráfica, Selznick percebeu que
famosíssimo filme E tudo o vento levou
precisava
(1939) produzido por David O. Selznick é
envergadura de Menzies – o director
considerado um marco; foi com ele que
artístico foi Lyle Wheeler –, como deixou
surgiu a designação de desenhador de produção,
claro
“inventada” por Selznick para William
colaboradores em 1 de Setembro de 1937,
Cameron Menzies, em reconhecimento da
na qual explanou as funções que aquele iria
importância da sua contribuição artística: W.
desempenhar, bem como o grau de precisão
C. Menzies
(New Haven, 1896 – 1957,
que esperava alcançar através do seu
Los Angeles,) iniciou a sua carreira em
contributo: «Je crois que nous avons besoins
Hollywood quando Douglas Fairbanks (pai)
d’un homme du talent de Menzies et de sa
83
dum
numa
profissional
nota
escrita
com
aos
a
seus
formidable expérience pour les décors de ce film
Pouco a pouco, a função do desenhador de
et leur réalisation matérielle. J’espère pouvoir
produção, e do diretor artístico/diretor de
pousser la préparation d’Autant en emporte le vent
arte, ganhou lugar de destaque na arte do
jusqu’à prévoir l’angle de la dernière caméra
cinema. No entanto, o desenhador de
avant que nous ne commencions à tourner,
produção não se limita a desenhar os
parce qu’une préparation réellement minutieuse
cenários ou a tomar decisões relativas aos
de ce film nous fera économiser des centaines de
elementos visuais da estética dum filme;
milliers de dollars.»49
também aconselha o cineasta a escolher o
Richard Sylbert (1928 - 2002), considerado
melhor local para a rodagem do filme, em
um dos desenhadores de produção mais
influentes
estúdio ou num país (ou países) mais
da indústria cinematográfica,
indicado(s), e que esteja de acordo com o
resume o enorme papel de Menzies –
guião.
curiosamente, o primeiro filme no qual
Evidentemente,
estas
decisões
implicam um grande investimento financeiro,
Sylbert trabalhou como desenhador (em
e fazem parte do processo de pré-produção
1950) foi realizado por aquele – do seguinte
para
modo: «Trabajó para directores como Sam
levar
a
cabo
qualquer
projeto
cinematográfico, pois só depois se passa à
Wood, quien no hubiera sabido dónde situar la
etapa seguinte.
cámara de no haber sido por las ilustraciones de
Menzies. (…) El gran logro de Menzies consistió
Normalmente, o departamento artístico
en dotar de estructura al contenido visual de una
divide-se em dois grandes blocos, e o dese-
película. Tal fue la importancia de su aportación
nhador de produção está sempre com “uma
a Gone with the Wind, que Selznick creó para
perna em cada lado”. O primeiro gira em torno
él la denominación de diseñador de producción. Cada
do trabalho de desenho, aí onde os desenha-
toma se basaba en sus storyboards y la película
dores preparam os primeiros esboços dos
pudo rodarse íntegramente sin necesidad de salir
cenários, de onde saem os primeiros planos
del estudio. Aquello sí que era díseño de
técnicos e maquetas que a equipa (composta
producción.»50
por
pintores,
eletricistas,
marceneiros,
estucadores, pedreiros, etc.) utilizará na
David O. SELZNICK – Cinéma (mémos). Paris:
Editions Ramsay, 1984, p. 128. cit. in Benoît
PEETERS – “Le cinéma…”, p. 21.
50 Richard SYLBERT cit. in Peter ETTEDGUI –
Diseño de producción & dirección artística. Barcelona:
Océano Grupo Editorial, S. A., 2001, p. 40.
Acrescente-se que, como é sabido, embora a
realização de E tudo o vento levou tenha sido creditada
apenas a Victor Fleming, este último terá dirigido na
realidade apenas 45% do filme: o restante coube a
George Cukor, Sam Wood, Sidney Franklin, e ao
próprio Menzies, que filmou toda a sequência do
incêndio em Atlanta (da qual fez o storyboard [fig.
133], além de outras centenas de desenhos elaborados
de continuidade, para outras partes do filme) e veio a
receber um Óscar honorário como desenhador de
49
construção daqueles. O segundo bloco
centra-se na elaboração e seleção dos
móveis, e outros adereços que compõem os
diferentes cenários.
produção, pelas soluções encontradas para a cor.
Sobre o papel percursor de Menzies, vd. também
Steven D. KATZ – Film directing shot by shot: visualizing
from concept to screen. Studio City, CA: Michael Wiese
Productions, 1991, p. 9.
84
com A golpada (1973) de George Roy Hill
Henry Bumstead (Califórnia, 1915 –
(1921-2002), respetivamente.
2006), iniciou a sua (longa) carreira na época
Com o objetivo de encontrar inspiração
dourada de Hollywood, tendo sido o
para a conceção do filme Por favor, não matem
desenhador de produção mais solicitado pela
a cotovia, Bumstead viajou para Alabama
indústria cinematográfica. Trabalhou em
(EUA), em cujas paisagens se baseou nos
todos os géneros de filmes, pondo o seu
desenhos conceptuais para a criação de
talento artístico e a sua destreza técnica ao
dispor
de
inúmeros
cineastas;
cenários, pois o filme foi rodado em estúdio:
mas,
«“Cuando se estrenó, recebi llamadas de
provavelmente, a sua colaboração mais
algunos de los directores artísticos más
importante foi com Alfred Hitchcock, nos
importantes de otros estudios preguntándo-
filmes O homem que sabia demais (1954)
me en qué lugar de Alabama habíamos
e Vertigo : «Pero ni en mis mejores sueños
rodado la película. “Todo lo hemos rodado
habría podido imaginar que algún día
en el estúdio’, les contestaba, y ellos se reían
acabaría colaborando con Alfred Hitchcock,
y volvían a preguntarme, ‘en serio, Bummy,
quien, por lo que a mí respecta, será siempre
¿dónde rodasteis?. Fue entonces cuando
uno de los grandes directores de la historia
empecé a compreender que debíamos de
51.
de cine» .
haber hecho un trabajo bastante bueno”» .52
O esboço do clube desenhado por
Para A golpada [fig. 134] recorreu às suas
Hitchcock para Vertigo [fig. 135] dá uma
memórias da época da Depressão, «“todo
ideia geral do seu ambiente, mas coube a
parecía marrón en aquelles tiempos” 53
Bumstead fazer o desenho de continuidade.
disse, de forma a manter a coerência estética
Noutro esboço de Hitchcock [fig. 136] vê-se
do filme; para isso, trabalhou diretamente
apenas um pormenor da Coit Tower em San
com o diretor de fotografia, o cenógrafo e o
Francisco, vista através de uma janela;
designer de guarda-roupa.
Bumstead fez um desenho de continuidade
com muitos mais elementos, que ilustra o
apartamento de James Stewart (construído
em estúdio), no qual a incluiu: essa terá sido
a única exigência do cineasta.
Ganhou dois Óscares para o melhor
desenhador de produção, com os filmes dos
americanos Robert Mulligan (1925-2008)
134. Desenho de Bumstead para A golpada (1973).
Por favor, não matem a cotovia (1962) e
52 Henry
B1UMSTEAD cit. in Peter ETTEDGUI –
Diseno…, p. 19.
53 Henry BUMSTEAD, idem, p. 16.
Henry BUMSTEAD cit. in Peter ETTEDGUI–
Diseno…, p. 17.
51
85
135
137
136
138
139
135 e 136. Esboços de Hitchcock.
137 e 138. Desenhos de continuidade de Bumstead para Vertigo (1958).
139. Desenho de produção de Dale Hennessey, ajudante de Bumstead em Por favor, não matem a cotovia (1962).
141
142
143
144
140. Storyboard do filme Por favor, não matem a cotovia.
141 a 144. Fotogramas do mesmo filme.
86
aquella
Dante Ferrett54 (Itália, 1943) trabalhou
ocasión,
el
trabajo
no
podía
repartirse entre el diseñador de producción y
como ajudante de diretor artístico durante a
el disenãdor de vestuario como se hace
década de 1960. A sua colaboração com
habitualmente. Pensé que toda la película
Paolo Pasolini e Federico Fellini foi decisiva
debia tener el aspecto de un tapiz y que, por
na formação como desenhador de produção.
lo tanto, todas las cuestiones referentes al
Durante os anos 70 e 80 trabalhou em
diseño debían quedar en manos de una sola
simultâneo para os estúdio da Cinecittà e
persona.” (…) “Me sentía obligado a hacerlo,
para grandes produções norte-americanas,
puesto que el vestuario formaba parte del
nos filmes O nome da rosa (1986), e As
diseño global del film (…)”»55
aventuras do barão Munchausen (1988).
Saiu-se bem, pois este desempenho valeu-
A sua consagração internacional definitiva
lhe a nomeação para o Óscar do melhor
deu-se na década de 1990, com o filme
guarda-roupa.
Hamlet (1990) de Franco Zefirelli (Florença,
1923); nessa altura estabeleceu com Martin
Scorsese uma relação profissional, e desde
então
participou
em
vários
projetos
cinematográficos desse realizador.
As autoridades chinesas e indianas juntaramse para impedir a rodagem do filme
Kundun na Índia. Ferretti encontrou
145. Desenho de Ferretti para O Navio (1983) de Federico
Fellini.
alternativa em Marrocos, onde fez toda a
reconstrução do Tibete e das montanhas do
Himalaya [fig. 148]. Foi esta a primeira vez
em que se encarregou também do desenho
de figurinos; desenhou quase mil trajes,
adquirindo todos os tecidos na Índia: «“En
“ Nasci para ser deñador de producción. A la edad
de trece años, iba al cine a ver Ben-Hur o Quo
Vadis y, de la misma manera que otros chicos
soñaban com cvertise en estrelas de cine, yo anhelaba
poder construir algún día los decorados de aquel tipo
de películas. Realicé estúdios de Bellas Artes y
Arquitectura y trabajé durante ocho anos como
aprendiz en el departamento artístico de películas
italianas de serie B (y C y D). Pero basta que empecé
a trabajar cono disenãdor de producción para Pasolini
y Fellini, no aprendí de verdade el ofício del cine. (…)”
Dante FERRETTI cit. in Peter ETTEDGUI –
Diseno…, p. 49
54
146. Desenho de Ferretti para As aventuras do barão
Munchaususen (1998) de Terry Gilliam.
Dante FERRETTI cit in Peter ETTEDGUI –
Diseno…, pp. 59 e 61.
55
87
147
148
147 e 148. Lado a lado o Storyboard de Martin Scorsese e o desenho de continuidade de Dante Ferretti para Kundun (1997).
Ferretti voltou a trabalhar com Martin
Scorsese em vários projetos, entre os quais
os filmes Gangs de Nova York (2002) O
Aviador (2004) e A invenção de Hugo (2012).
Ferretti é casado com a cenógrafa Francesca
Lo Schiavo (Itália, 1943), com quem trabalha
à quase 30 anos. Foram nomeados para os
Óscares várias vezes, e ganharam com os
filmes O Aviador, Sweeney Tood (2007) e A
invenção de Hugo.
149. Desenho a pastel de Ferretti para O Aviador (2004).
88
150
151
153
152
154
155
150. Desenho de Ferretti para Gangs de Nova York (2002).
151 e 152. Desenhos Brian Selznick da estação de comboios.
153 e 154. Fotogramas de A invenção de Hugo (2012).
155. Desenho de Ferretti, quarto da personagem Hugo, para o filme A invenção de Hugo.
89
Stuart Craig
siciones. Desde entonces adopté ese método
(1942) iniciou a sua
y lo sigo empleando en la actualidad. (…)»56
carreira como aprendiz num departamento
artístico – o primeiro filme em que trabalhou
Apesar do filme Mary Reilly (1996), [fig.
foi Casino Royale (1967) –, e é hoje um
159] de Stephen Fears, não ter tido o sucesso
dos desenhadores de produção mais solicita-
comercial que era esperado, contou com um
dos na arte do cinema, responsável por vá-
enorme trabalho de desenho de produção.
rios projetos cinematográficos de sucesso.
Por fim, saliente-se que Craig foi o dese-
Ganhou prestígio internacional, como
nhador de produção de todos os filmes da
desenhador de produção, no filme O
série Harry Potter.
homem elefante (1980) de David Lynch.
Voltou a ver o seu trabalho reconhecido
com a atribuição de três Óscares, pelo desenho de produção dos filmes Gandhi (1982),
Paciente
Inglês
(1996)
e
Ligações
perigosas (1998), realizados respetivamente
por Richard Attenborough, (Cambridge –
1923), Anthony Minghella, (Ryde, 1954 –
Londres, 2008), e Stephen Fears (Leicesten –
1941).
156
Craig descreve o seu método de trabalho a
partir da sua experiência no filme Gandhi
«(…) En Gandhi el director artístico me enseñó un truco que jamás olvidaré. Tras viajar
por la India en busca de localizaciones, reunió todas las fotografías de exteriores que
habíamos tomado y las pegó en las paredes
de nuestra oficina respetando el orden
cronológico
del guión. Fue
una
idea
excelente, no sólo porque nos proporcionó
una visión global de un proyecto muy com157
plejo en términos logísticos sino porque
también nos ayudó a hacer una lectura rápi-
156. Desenho de Craig para O Homem Elefante (1980)
de David Lynch.
da de la evolución visual de la película con
157. Desenho de Craig para Harry Potter.
todos sus contrastes y yuxtaposicio yuxtapo-
56 Stuart
80.
90
CRAIG cit. in ETTEDGUI – Diseno…,, p.
158
159
158. Desenho de Craig para Paciente Inglês (1996).
159. Desenho de Craig para Mary Reilly (1996).
91
92
3.1. Storyboards
92
94
Os Storyboards são uma espécie de guiões
convencer eventuais investidores, e obter os
gráficos (os quais, consoante os realizadores,
financiamentos necessários à produção e
podem ser seguidos mais ou menos
realização de projetos, que de outro modo
escrupulosamente),
não teriam sido feitos: assim aconteceu com
que
consistem
em
ilustrações sequenciais e têm como objetivo
vários
filmes
de
Kurosawa
–
como
servir de planeamento visual do filme,
Kagemusha ou Ran, a que já nos referimos
organizando a sua narrativa em estrita
–, e mais recentemente, Matrix (1999) dos
relação com o guião, traduzindo visualmente
irmãos Larry e Andy Wachowski. Os
as imagens apenas sugeridas neste, ou “em
storyboards destes três filmes são famosos
potência”. Embora o storyboard não seja
pelo extremo cuidado nos seus detalhes.
mais do que uma sucessão de imagens
estáticas, pretende-se com eles definir já
muitos daqueles que virão a ser os aspetos
narrativos e visuais do filme: na verdade, são
feitos
na
etapa
importante
da
pré-
planificação, na qual se procede à elaboração
e preparação que antecede as filmagens.
«On pourrait à cet égard établir un classement
intéressant des storyboards en fonction des
paramètres qu’ils envisagent. Se préoccupent-ils
du seul cadrage ou vont-ils jusqu’à noter
l’objectif utilisé, la durée du plan, la lumière, les
couleurs et le jeu des acteurs? Décomposent-ils
160. Storyboard de Tavi Kunitake para Matrix (1999).
les mouvements de caméra? Analysent-ils les
raccords? Quelle place accordent-ils à la musique,
As vinhetas do storyboard foram, por assim
aux bruitages et, plus généralement, à tous les
dizer, “plagiadas” da Banda Desenhada, e a
éléments sonores?»57
origem da sua utilização corrente no cinema
Nalguns casos conhecidos, a função
desempenhada
por
storyboards
de “imagem real” é ainda obscura, ou não
bem
está
elaborados, e outro material gráfico realizado
completamente
estabelecida,
mas
pensa-se que terá acontecido por influência
na etapa de pré-planificação, revelou-se de
do cinema de animação58. Os formatos dos
tal modo importante que serviu mesmo
como o meio decisivo para conseguir
Como afirma Sophie Kovess BRUN (“Storyboards:
bibliographie commentée”
in<http://www.bifi.fr/public/ap/article.php?id=167>
[consulta em 12/4/2012]), «…l’histoire même du
geste graphique au cinéma, c’est-à-dire la place du
dessin, est un gouffre sans fond.»
58
Benoît PEETERS – “Du cinéma dessiné – Du
crayon à la caméra” in Jacques FATON, Benoît
PEETERS e Philippe de PIERPONT, op. cit., p. 166.
57
95
161. Storyboard de Steve Skroce para Matrix.
desenhos
prefiguram
de
outros há, mesmo não tendo qualquer
assim como o melhor
formação específica, que são responsáveis
posicionamento da câmara, determinando o
pelos mesmos (com maior ou menor
ponto de vista; em suma, o storyboard é
habilidade) em alguns dos seus filmes, como
uma
Martin Scorcese.
enquadramento(s),
planificação
disposição
o
bastante
precisa
Apesar do que dissemos atrás, existem
cinematográficos. Se, na maior parte dos
exemplos de outros tipos de storyboards que
casos, os realizadores delegam noutros a
não se assemelham a pranchas de BD, como
responsabilidade
dos
os “mapas diagramáticos” do cineasta suiço
–
Fredi Murer para Montagne verte [fig. 172],
geralmente artistas especializados, como é o
ou outros que, além da decomposição de
caso de Alex Tavoularis, um bastante
cada plano em vários desenhos, incluem
conhecido que tem colaborado com vários
esquemas muito precisos dos movimentos
realizadores
qual
de câmara, e até inclusive a duração de cada
escolhemos desenhos daquele que fez para o
plano e alusões aos elementos sonoros
Padrinho II de Francis F. Coppola59 –,
(música e ruídos), como os do georgiano
da
para as
de
dos
da
eventos
storyboards
visual
tipo
execução
suas
nomeada,
películas
e
do
Otar Iosseliani [fig. 170].
A Cinemateca Francesa possui uma grande
colecção de desenhos e storyboards de Alex
Tavoularis, irmão do famoso Art director Dean
Tavoularis, colaborador habitual de Francis Ford
Coppola, e com quem começou a trabalhar em
conjunto no filme Little Big Man (O Pequeno Grande
Homem, 1970) de Arthur Penn. Alex Tavoularis é o
autor dos storyboards de filmes como O Padrinho I, O
Padrinho III, Tucker, Rumble Fish, Os Marginais, Tetro e
59
Apocalipse Now, todos de Coppola, ou King of New
York e Snake Eyes de Abel Ferrara, bem como do
primeiro filme da saga Star Wars (1977) de George
Lucas.
96
162. Storyboard de Alex Tavoularis para O Padrinho II
(1974) de Francis F. Coppola.
163. Desenhos de Maurice Zubarano para Cittizen Kane
(1941) de Orson Welles.
Apesar da sua importância, o uso dos
metragem europeia. Impõe-se como sendo a
storyboards parece ter a certa altura caído
ferramenta ideal para os criadores que
em desuso, pelo menos na Europa, como dá
desejam comunicar aos seus investidores e à
conta o importante cineasta françês Jean-
multidão de técnicos que vão trabalhar sob a
Jacques Annaud (Draveil, 1943), autor de
sua orientação a visão que têm do seu futuro
filmes como A Guerra do Fogo e O Nome
filme.»60
da Rosa, entre outros: «Eu nunca tinha
O storyboard do filme A Sombra do
ouvido falar de storyboards na escola de
Caçador (1955), de Charles Laughton
cinema. No Idhec, no famoso Institut des
Hautes Études Cinématographiques (…)
(Scarborough, 1899 – 1962, Los Angeles), é
aprendia-se que o cinema se inventava no
um caso à parte na história do cinema, por
palco (…) O talento consistia em chegar ao
duas razões: a primeira, é que se trata, pelo
dia de rodagem sem guião, talvez com um
menos até à data da sua realização, do pri-
vago esquema em mente. Improvisar-se-ia
meiro
um diálogo in loco, no humor vibrante do
escritor, o do romance best-seller publicado
storyboard
desenhado
por
um
momento. (…) As duras leis do mercado
puseram fim a esta simpática utopia. Os
Jean-Jacques ANNAUD – “Prefácio” in Rémi
JACQUINOT; Olivier SAINT-VINCENT e Raphaël
SAINT-VINCENT – Guia prático do Storyboard.
Avanca: Edições Cine-Clube de Avanca, 2006, pp. 5-6.
Annaud fala do impacto duma visita que fez durante
uma tarde, na qual pôde consultar no escritório de
Léon Moussinac, o seu orientador de fim de estudos,
as centenas de pranchas de desenhos que Eisenstein
fez para o seu Alexandre Nevski, que deixou em
herança ao seu amigo françês. Como diz Jean-Jacques
ANNAUD (ibidem), «Desde aquela tarde de
deslumbramento, nunca me apresentei numa
rodagem sem ter previamente desenhado os
meus planos na minha cabeça e ter desenhado eu
próprio ou mandado desenhar num pedaço de
papel a imagem desenhada. O storyboard foi o
companheiro da minha vida.»
60
encenadores contemporâneos redescobriram
com naturalidade as virtudes do trabalho a
montante. O storyboard tinha-se refugiado
durante algumas décadas nas agências de
publicidade, destinado a dar a entender ao
cliente aquilo que poderia ser o spot
publicitário que lhe estavam a preparar. O
storyboard volta hoje a sair do seu
esconderijo e aparece em força na longa
97
em Nova Iorque no ano de 1953, que serviu
do Caçador. Apesar de não estar completo, faz
de base ao filme; embora Davis Grubb
parte integrante da preparação e da criação do
(1919-1980) se tenha recusado a escrever o
filme são ao mesmo tempo desenhos preparató-
guião do filme, Charles Laughton pediu-lhe
rios, porque foram executados antes da elaboração do guião e são também desenhos definitivos
para descrever o que imaginava quando es-
porque detalham de maneira bastante precisa a
tava a escrever o livro, porque queria man-
ação e as posições de câmara.»61
ter-se o mais possível fiel àquele, e Grubb
em resposta fez 117 desenhos que enviou ao
realizador; a segunda advém de A Sombra do
Caçador ter sido a única película realizada
pelo actor, que na altura da estreia foi incompreendido, mas depois se tornou um
filme de culto, e hoje é mesmo considerado
um dos filmes mais originais e importantes
da história do cinema americano. Esta coleção de desenhos encontra-se hoje na Academy of Motion Pictures Arts and Sciences,
164
onde foi depositada em Junho de 1995 por
Martin Scorsese, e foi o tema da tese de
mestrado de Inês Gil, publicada sob forma
resumida.
É Inês Gil quem faz a seguinte apreciação
sobre a importância desses desenhos: «Numa
carta enviada a Charles Laughton no dia 19 de
Abril de 1954, Davis Grubb anuncia ao realizador que lhe vai mandar os esboços que executou
para A Sombra do Caçador. O escritor tinha-os
desenhado antes da criação do argumento e estes
representavam o que pensou quando escreveu o
romance. (…) Ao analisar os esboços de Davis
164 e 165. Desenhos de Davis Grubb para A Sombra do Caçador (1955),
com fotogramas do filme.
Grubb para ilustrar A Sombra do Caçador, não
Inês GIL – A Sombra do Caçador. Do storyboard à
Direcção de Actores. Lisboa: Edições Universitárias
Lusófonas, 2002, p. 33. Saliente-se que, nalguns casos, Laughton não respeitou os desenhos de Grubb,
eliminando por exemplo, as cenas de nus, como
acontece na imagem que reproduzimos aqui [ vd.
ilustração da esquerda].
61
existem dúvidas da sua influência sobre Charles
Laughton para a conceção do filme. É evidente
que o realizador se inspirou nos desenhos. (…)
Por isso mesmo, é possível dizer que os 117
desenhos (…) formam o storyboard de A Sombra
98
166
167
168
170
169
166. Storyboard para Batman, o cavaleiro das trevas (2008) de Christopher Nolan.
167. Storyboard de Fassbinder para Berlim Alexanderplatz (1980).
168. Esboço de Jean Jacques Annaud para O Amante (1992).
169. Desenho de Maxime Rebière para O Amante.
170. Storyboard de Dimitri Eristavi para Et la lumiér fut (1990) de Otar Iosseliani.
99
171
172
171. Storyboard de Fredi Murer para J’ aime soeur (1984).
172. Storyboard de Fredi Murer para Montagne verte (1990).
100
3.2. Cenários
99
102
Nos Cenários do início, no cinema dito
Foi a partir desta altura que o cinema tentou
“primitivo”, aquele que se desenrola até
libertar-se da influência inicial do teatro,
meados dos anos 10 do séc. XX, como diz
mais os seus cenários pintados, e começou
Antonio Rodriges «…alterna a tela pintada, o
deliberadamente a ir em busca do espaço
cenário de teatro e, por vezes, alguns planos em
tridimensional, e fê-lo, é importante assinalar,
cenários urbanos naturais, geralmente breves (…)
construindo enormes cenários em tamanho
E é significativo que ao começar a construir
natural. Mesmo assim, em 1919 iria ser
cenários, a edificar espaços o cinema não se tenha
realizado um dos primeiros filmes a ser
voltado para a arquitectura do seu tempo e sim
para
a
da
Antiguidade,
baseando-se
considerado uma obra de arte, no qual os
em
cenários são pintados de acordo com uma
“lembranças do liceu”, segundo a cruel observação
estética
de Henri Langlois. Historicamente, o primeiro
não-naturalista,
marcadamente
expressionista: O gabinete do Dr. Caligari,
grande cenário construído de e no cinema é o de
CABIRIA, em 1914 (se não foi mesmo o
realizado por Robert Wiene. E se este filme
primeiro, foi visto como tal e por isto é o
cedo atingiu o estatuto de obra-prima, muito
primeiro), com o impressionante templo de
deve à qualidade dos seus cenários pintados.
Moloch (…)».62
Daí que, para muitos, não deva ser atribuída
a Robert Wiene a “autoria” do filme, mas
antes a Carl Mayer (autor do argumento) e
sobretudo aos três cenógrafos, os pintores
Hermann Warm, Walter Reinmann e Walter
Röhrig. Se continua a ser um filme
emblemático da história do cinema é porque,
como diz Antonio Rodriges, «…narra uma
acção imaginada em cenários absolutamente
não-realistas. E se há um filme cujo protagonista
é o cenário, este é CALIGARI, cujos cenários
pintados reflectem as convicções profundas dos
seus cenégrafos.»63
173. Em cima, desenho Walter Reinmann, para
os cenários de O gabinete do Dr. Caligari (1919).
63 Idem,
174. Em baixo, fotograma do filme.
p. 56. Temos pena de não poder incluir aqui
uma extensa citação de uma declaração de Hermann
Warm (idem, pp. 55-57), que dá bem a medida de
como foram os três pintores mencionados os
verdadeiros autores do filme, e onde se fala da
concepção dos primeiros desenhos. Vd. também a
este propósito Lotte EISNER – O Écran Demoníaco.
Lisboa: Editorial Aster, s.d., pp. 20-23, que destaca o
papel dominante dos decoradores no cinema alemão.
62 Antonio
RODRIGUES – “Cinema, Arquitecturas”
in CINEMA e Arquitectura. Lisboa: Cinemateca
Portuguesa – Museu do Cinema, 1999, p. 55. O
cenário de Cabiria seria uma referência determinante
para aqueloutros da Babilónia de Intolerância (1916) de
D. W. Griffith (1875-1948).
103
175
O alemão Otto Hunte (1881-1960) foi
comentando sobre ele (….). O jovem diretor e
colaborador de Fritz Lang em muitos dos
crítico de cinema Luis Buñuel foi o primeiro a
seus filmes, (principalmente até ao final do
reconhecer que os cenários para Metropolis
cinema mudo); entre eles, foi o desenhador de
tiveram sucesso nisso. Após a estreia espanhola
produção responsável pela construção da
em 1927, ele escreveu, ‘agora e sempre o
arquiteto irá substituir o cenógrafo. O cinema
cidade futurista de Metropolis (1927), e
será o tradutor fiel dos sonhos mais ousados do
juntamente com os seus colegas Karl
arquiteto’ (Buñuel 1927-8). Kettelhut dominou
Vollbrecht (1886-1973), Erick Kettelhut
facilmente uma variedade de estilos de desenho
(1893-1979) e Eugen Schüfftan (1893-1977),
(…) por vezes se referindo à construção de
nos efeitos especiais, executou pela primeira
cenários nas margens. Certo número de suas
vez uma técnica (conhecida por processo de
pinturas foi utilizado diretamente no filme. Dawn
Schüfftan) que permitiu unir num único plano
foi parte da montagem de abertura, a vista
atores e cenários em miniatura, utilizando
noturna da Torre de Babel pertencia a uma
para este efeito espelhos.
elaborada sequência de truque, na qual feixes de
Fritz Lang controlou todas as fases de pré-
luz são mostrados se movendo para cima e para
-produção interferindo várias vezes na
baixo na fachada da torre. Isso foi fotografado
quadro por quadro numa sequência em stop
elaboração dos desenhos e esboços dos seus
motion; uma nova posição para cada feixe era
colaboradores. Por exemplo, Kettelhut viu-se
pintada na superfície laqueada entre cada foto.
obrigado a alterar um dos primeiros
Para a impressionante visão dentro do ‘canyon’,
desenhos [fig. 176]: inicialmente existia uma
um modelo em perspectiva de seis metros de
catedral (está riscada com uma cruz), que
profundidade foi construído com madeira, gesso,
Lang quis eliminar, substituindo-a por um
tela e papelão. O efeito de movimento
arranha-céus.
novamente foi conseguido fotografando quadro
«“O
trabalho preparatório de
Kettelhut
a quadro e avançando individualmente cada
demonstrou que a cenografia tem de criar mais
carro, avião, trem e elevador entre cada
do que apenas um pano de fundo. Ela tem de
quadro.”»64
acompanhar o enredo, sublinhando e
Dietrich NEUMANN, cit in
<http://www.rua.ufscar.br/site/?p=9746 >
[consulta 10/04/2013].
64
104
O filme Metrópolis é uma referência da
história
do
cinema,
não
só
pelos
enormíssimos cenários; mas os visionários
profissionais estavam longe de imaginar de
que influenciariam também arquitetos em
todo o mundo.
176
177
178
179
175. Desenhos de Erick Kettelhut para Metropolis (1927) de Fritz Lang.
176 e 177. Desenhos de Erich Kettelhut.
178 e 179. Construção de cenários.
105
No filme A Casa Encantada (1945),
Hitchcock contou com a participação do
pintor surrealista Salvador Dalí para a
conceção e execução de alguns dos cenários,
aqueles pertencentes a uma sequência
onírica, na qual pretendia salientar aspetos
da teoria psicanalítica freudiana. Dali, para o
efeito, fez uma centena de desenhos e cinco
pinturas a preto e branco. Porém, algumas
180
das ideias propostas não foram usados no
filme, e outras depois de filmadas não
agradaram tanto a Hitchcock (nem a D.
Selznick, o produtor) como a Dali, e foram
eliminadas da montagem final, como uma
em que aparecia Ingrid Bergman como
estátua grega – sobreviveu uma foto na qual
se vê um desenho com estudos para o traje
que usaria [fig. 180]. No caso da cena do
181
baile, que reproduzimos aqui, Dali descreveu
a sua surpresa perante as modificações que
foram introduzidas: «(…) Quelques jours
plus tard, je me rendis aux studios de
Selznik, je constatai qu’il n’y avait là ni les
pianos
ni
les
silhouettes
découpées
représentant les danseurs. On me montra
alors
des
modèles
réduits
de
pianos
182
suspendus au plafond et une quarantaine de
nains
vivants
qui,
selon
donneraint précisément
les
experts,
180. Desenho de Salvador Dalí com estudos para traje grego a
envergar por Bergman na sequência onírica, junto a mesa
concebida pelo pintor.
l’impression de
perspective que je recherchais. Je croyais
181. Dali, projeto pra a cena do baile da sequência onírica de
A Casa Encantada (1945).
rêver. Ils s’y prirent donc ainsi, avec des faux
182. Alfred Hitchcock, a cena do baile de A Casa Encantada,
tal como se vê no filme.
pianos, mais avec des nains réels (qui
auraient dû être des figurines decoupées).
(…)»65
65 Salvador
le cinéma” in SALVADOR Dalí: rétrospective 19201980. Paris: Centre Georges Pompidou, 1980, p. 348.
DALI cit. in James BIGWOOD – “Dalí et
106
Ken Adam
(Berlim, 1921). O percurso
no cinema do alemão, como diretor artístico,
é já longo; data dos anos 60 e 70, com a saga
007 James Bond, para a qual desenhou os
espaços cénicos, naves e estações espaciais, e
os carros voadores do protagonista, exer183
cendo uma influência assinalável nos colegas
de profissão. Decidiu trabalhar no cinema
depois de conhecer em Inglaterra, para onde
a família se mudou durante a II Grande
Guerra, o diretor artístico Vincent Korda,
tinha apenas quinze anos.66
Estudou arquitetura, e é conhecedor dos
184
vários estilos arquitetónicos, de diferentes
períodos históricos, experiência que transportou para o cinema. Igualmente decisiva,
foi a aprendizagem junto do desenhador
russo Georges Wakhévitch, o diretor artístico do filme A Grande Ilusão (1937) de Jean
Renoir, com quem trabalhou nas décadas de
185
1940 e 1950: «“(…) Con él aprendí algo que
marcaria toda mi carrera y que resultó
tremendamente ilustrativo en mis inicios:
que un escenógrafo debe crear un universo
independiente ciñéndose a los límites del
escenario, que esos límites hacen imposible
186
dedicarse a la mera reproducción de la realidad y que, precisamente por eso, el
183 e 184. Desenho de Adam para 007, Goldfinger
(1964).
185 e 186. Fotograma do filme e desenho de Adam
para Chitty Chitty Bang Bang (1968).
diseñador está obligado a hacer uso
Como explica Ken ADAM (cit. in Peter
ETTEDGUI, p. 25), «“Llegué a este oficio de modo
natural. Lo cierto es que ya desde muy pequeño se me
dio bastante bien lo de dibujar. El hecho es que me
crié en Berlín, en pleno auge del nazismo. En aquellos
días, mi imaginación se alimentaba de películas del
cine expresionista alemán como Das Kabinett der
Dr. Caligari (…) y de las ideas y la estética del
movimiento de la Bauhaus. (…)”».
66
107
permanente de su tipo) en generadores de
nuevas ideas, en motores de mi propiá
imaginación. (…)”67
Kem Adam elaborou vários desenhos para o
filme A Familia Addams (1993) de Barry
Sonnenfeld, os quais foram fundamentais para
o trabalho do desenhador de produção definir o
contraste de luz e sombra, o volume, a escala
dos cenários e até a construção de maquetes.
187
188
190
187 e 188. Desenhos de Adam para A Familia
Addams (1993) de Barry Sonnenfeld.
189. Ilustração de Adam para As loucuras do
rei George (1994) de Nicolas Hytner.
190. Storyboard de As loucuras do rei George.
189
67
Ken ADAM cit. in Peter ETTEDGUI, p. 26
108
3.2.1. Desenhos técnicos e desenhos concetuais
106
107
193
191
194
192
195
196
197
191 e 192. Desenhos técnicos de Bill Beck para A guerra das estrelas, episódio I, A ameaça fantasma (1999) de George Lucas.
193, 194 e 195. Desenhos de Doug Chiang para A guerra das estrelas, episódio I, A ameaça fantasma (1999) de George Lucas.
196. Desenho de Alan Lee para Hobbit (2012) de Peter Jackson.
197. Desenho de Gemma Jackson para a série de TV, A guerra dos Tronos
108 (2011) de George Martin.
198
201
199
202
200
203
198 a 203. Conjunto de desenhos concetuais de Richard Sylbert para Dick Tracy (1990) de Warren Beatty.
Richard Sylbert (Nova Iorque, 1928 – 2002, Califórnia). No seu processo de trabalho este desenhador de produção começava
habitualmente por fazer plantas e alçados à escala, a partir dos quais elaborava esboços em perspetiva dos cenários. Esses esboços
eram entregues a ilustradores, juntamente com instruções da cor, que eles tinham de seguir.
112
204
205
206
204 e 205. Desenhos de Anton Furst para Batman (1989) de Tim113
Burton.
206. Desenhos de Chris Baker e cenário para A noiva cadáver (2005) de Tim Burton.
208
207
209
210
211
212
207 e 208. Desenhos de Ron Cobb e Chris Foss para Alien (1979) de Ridley Scott.
209. Desenho de H. R. Giger para Alien (1979) de Ridley Scott.
210. Desenho de a Geof Darrow para Matrix (1999) dos irmãos Larry e Andy Wachowski.
211. Desenho de Ken Adam para o carro de James Bond 007 (décadada 60 e 70).
212. Desenho de Nathan Crowley para o Batmobile, da trilogia de Christopher Nolan.
114
3.2.2. Desenhos de artefactos
115
214
213
215
216
217
213. Desenho de Adam Ellis para O senhor
dos Anéis (2001) de Peter Jackson.
214, 215, 216 e 217. Desenhos de Gareth
Jensen para O senhor dos Anéis (2001) de
Peter Jackson.
218. Desenho de Warren Mahy para O senhor
dos Anéis (2001) de Peter Jackson.
218
116
219
220
221
223
219. Desenho de Daniel Falconer para O senhor dos Anéis (2001) de Peter Jackson.
220. Desenhos de armas de combate, Gangs de New York, (2002) de Martin Scorsese.
222
221 e 222. Desenho de Warren Mahy para O senhor dos Anéis (2001) de Peter Jasckon.
223. Desenhos de Lindy Hemming para o personagem Bane, de Batman, o cavaleiro
das trevas renasce (2012) de Christopher Nolan.
117
114
3.3. Desenho de Guarda Roupa
111
120
Durante muito tempo, o trabalho dos
Os figurinistas trabalham diretamente com o
designers de guarda-roupa foi menosprezado
realizador e o desenhador de produção na
na indústria do cinema. Nos tempos do ci-
fase de pré-produção dum filme; cabe-lhes
nema mudo, os figurinistas não eram sequer
realçar o aspeto visual de cada personagem
creditados na ficha técnica dos filmes e, ao
através
contrário da contribuição de qualquer outro
Contudo, como mencionamos antes em
profissional ou técnico, é muito difícil hoje
capítulos
confirmar informação factual sobre o seu
também se dedicaram a desenhar o guarda-
trabalho num período alargado de tempo:
-roupa dos seus filmes. Alguns deles, ao
reconhecidos tardiamente, os livros de refe-
criarem as personagens, atribuem à partida
rência sobre o cinema ignoraram quase to-
um estilo de roupa démodé, dandy, pop, femme
dos os seus nomes.
fatale, gótico, punk, kitsch, etc. Certamente,
do
guarda-roupa e
anteriores,
acessórios.
alguns
cineastas
todos estes estilos, com maior ou menor
O Óscar para melhor guarda-roupa só co-
sucesso no cinema, exerceram influência
meçou a ser atribuído a partir de 1948, numa
(atribuída ao cinema desde a sua génese) em
primeira fase repartindo-o por filmes a preto
muitos jovens, por todo o mundo.
e branco e a cores; a partir de 1957 as regras
Nas grandes produções esta tarefa está
mudaram passando a ser atribuído um único,
destinada ao Costume Designer. Tratando-se
sem a distinção anterior, a qual foi retomada
dum filme de época, cabe à equipa
entre 1959 e 1966; a partir de 1967 regres-
responsável fazer uma pesquisa fiel sobre a
sou-se ao modelo de 1957, que se mantém.68
moda, costumes, etc., daquela época que o
Trabalharam para o cinema estilistas famo-
filme vai tratar; por vezes, assistimos a uma
sos como Coco Chanel, Christian Dior ou
fantasia romântica, própria do cinema, e até
Hubert de Givenchy, mas no seguimento só
a algumas gafes.
nos referimos a figurinistas mais recentes,
Nos filmes de ficção-científica é lícito o
não sem deixar uma referência a Edith
designer dar mais asas à sua
Head (Searchlight, 1898 – 1981, L. Angeles):
imaginação
criativa, mas os filmes históricos exigem um
é a figurinista mais galardoada de sempre,
trabalho mais sério, para serem credíveis aos
com oito óscares.
olhos do espetador mais atento. Para nós,
é evidente a importância do trabalho de
Sobre a dificuldade de estabelecer informação
credível sobre o trabalho dos figurinistas no cinema,
vd. Elizabeth LEESE – Costume Design in the Movies.
An Illustrated Guide to the Work of 157 Great Designers.
New York: Dover Publications, 1991. A autora
fornece fichas biográficas resumidas do trabalho
desenvolvido por muitos figurinistas, bem como a
lista completa de nomeados (e vencedores) para o
Óscar da categoria, entre 1948 e 1988.
68
desenho de figurinos ou guarda-roupa
nos filmes destes género.
121
Tim Burton já nos habitou às suas preferên-
Apesar das primeiras ideias em esboço
cias pela moda gótica e punk: gosta de vestir a
saírem das mãos de Burton, a figurinista
suas personagens de negro, com véus, ren-
Colleen Atwood
das e até de latex. Exemplos disso são os
(Yakima, 1948),
colaboradora habitual de Burton, desenvolve
filmes Os fantasmas divertem-se, pioneiro
e coloca em prática as ideias daquele.
nesta inclusão do estilo gótico no cinema
Atwood é uma figurinista muito conceituada
tanto no vestuário como na arquitetura,
em Hollywood: ganhou três óscares na
A noiva cadáver e Batman.
categoria Costumes Design pelo seu fantástico
trabalho em Chicago (2002), Memórias de
uma gueixa (2006) e
das
Alice
Maravilhas
nos País
(2010).
224 e 225. Desenho de Colleen Atwood e fotograma do filme Eduardo
mãos de tesoura (1990) de Tim Burton.
226 e 227. Desenhos de Colleen Atwood e fotogramas do filme
Sweeney Tood (2007) de Tim Burton.
224
226
225
227
122
228
229
230
228 e 229. Desenhos de Colleen Atwood e fotograma do filme Memórias de uma Gueixa (2006).
230. Da esquerda para a direita, desenhos de Tim Burton e de Colleen Atwood, e fotogramas do filme Alice nos País das
Maravilhas (2010).
123
É já longa a carreira da figurinista
O trabalho deste filme de ficção muito se
Ngila
deve a um processo criativo inerente à fase
Dickson (Nova Zelândia, 1958) mas foi
de pré-produção, que implica obviamente
com o filme O regresso do rei (2004) da
muitos estudos/esboços, desenhos, e muito
trilogia Senhor dos anéis de Peter Jackson
trabalho de equipa entre os vários departa-
(Nova Zelândia, 1961) que arrecadou um
mentos, para que tudo resulte bem no final.
Óscar, juntamente com o seu colega
Richard Taylor responsável pelos adereços e
efeitos especiais.
231
232
235
233
234
236
232, 233, 235 e 236. Desenhos da Ngila Dickson e fotogramas do filme de O senhor dos Anéis (2001) de Peter Jasckon.
231 e 234. Fotogramas de O senhor dos Anéis.
124
Sandy
Powell
(Londres,
Scorsese dá muita importância ao aspeto
1960),
visual das personagens dos seus filmes: por
figurinista do filme Gangs de Nova York
exemplo, em Gangs de Nova York queria que
(2002) de Martin Scorsese, descreve o seu
o líder do gang, interpretado pelo ator
método de trabalho: «“Pour préparer un film
Daniel Day-Lewis, se parecesse com um
comme Gangs of New York, ou n’importe quel
film historique, je regarde des objets datant
dandy. E segundo Sandy, gosta de ver os
vraiment de l’ époque en question. En l’
tecidos que são usados para o guarda-roupa
occurrence, il s’ agissait de la période allant de
e de dar a sua opinião.
1840 à 1860. J’ ai consulté des illustrations de l’
Sandy Powell foi nomeada várias vezes para
époque, et comme, heuresement pour nous, le
os óscares: saiu vencedora com A paixão de
daguerréotype existait déjà, nous disposions de
Shakespeare (1999), de John Madden
masses de photos. Sans compter que la maison
(1949), O aviador (2004) de Martin
de production de Marty avait déjà consacré
Scorsese, e A jovem Victória (2010) do
plusieurs années à faire des recherches. Je dispo-
canadiano Jean-Marc-Vallée (1963).
sais aussi de beaucoup de documents écrits. Jái
lu le livre de Luc Sante, Low Life, qui,
m´beaucoup appris sur ce quartier.”»69
237
239
238
237 e 239. Desenhos Sandy Powell para os personagens
interpretados pelos atores Daniel Day-Lewis e Cameron
Diaz, para Gangs de Nova York (2002).
238 e 240. Fotogramas de Gangs de Nova York.
Sandy POWELL cit in GANGS of New York:
L´aventure d´un film. Paris: Cahiers du Cinéma, 2003, p.
104.
69
125
240
241
243
242
244
245
241 e 242. Desenhos de Sandy Powell para
Gangs de Nova York (2002) de Martin
Scorsese.
243, 244 e 245. Desenhos de Sandy Powell
e fotograma do filme O aviador (2004) de
Martin Scorsese.
246. Grupo de desenhos Sandy Powell e
fotogramas do filme A invenção de Hugo
(2012) de Martin Scorsese.
246
126
A
figurinista
britânica
Jacqueline
Durran ganhou um Óscar para o melhor
figurino com Anna Karenina (2012), do
cineasta inglês Joe Wright (Londres, 1972).
Em 2005 já tinha visto o seu trabalho
reconhecido ao ser nomeada com o figurino
para Orgulho e preconceito, do mesmo
realizador.
247
248
250
249
251
252
247 e 248. Desenho de Jacqueline Durran e fotograma de Orgulho e preconceito (2005) de Joe Wright.
249. Desenho de Jacqueline Duran para Expiação (2007) de Joe Wright.
250 e 251. Desenhos de Jacqueline Durran para Anna Karenina (2012) de Joe Wright.
252. Fotograma de Anna Karenina.
127
A japonesa Eiko
Ishioka (1938 -2012),
figurinista e diretora de arte, foi nomeada
para o Óscar do melhor figurino com o
filme Mirror Mirror (2012) do indiano
Tarsen Singh (1961). Trata-se de mais uma
versão da história da Branca de Neve
adaptada ao cinema, entre muitas, mas o
exuberante guarda-roupa das personagens
253
254
difere-o de todos os outros. Só podíamos
esperar
esse
excelente
resultado
da
participação de Eiko, o qual não nos
surpreende, pois conhecemos o seu percurso
artístico: desenhou os figurinos do filme
Drácula (1992) de Francis Ford Coppola
(Detroit, 1939), com o qual ganhou um
Óscar; desenhou os figurinos do Cirque du
Soleil em 2002, o mesmo ano em que foi
responsável por um vídeo musical, da não
menos exuberante Björk; em 2008 desenhou
255
256
os figurinos para a cerimónia de abertura
dos Jogos Olímpicos de Pequim.
257
258
253, 255 e 257. Desenhos de Eiko Ishioka para Mirror
Mirror (2012) de Tarsen Singh.
254, 256 e 258. Fotogramas de Mirror Mirror.
128
3.3.1. Outros Figurinos
129
259
262
265
260
261
263
264
266
267
130
268
271
269
270
272
273
259 e 260. Desenhos de Walter Plunkett para E Tudo o Vento Levou (1939) de David O. Selznick.
261. Desenho de Joanna Johnston para o Lincon (2012) de Steven Spielberg.
262 a 264. Desenhos de Michele Clapton para A guerra dos Tronos (2011) de George Martin.
265. Desenho de Paco Delgado para Os Miseráveis (2012) de Tom Hooper.
266 e 267. Desenhos de Sharen Davis para Django o libertado (2012) de Quentin Tarantino.
268. Desenho de Janty Yates para O Galdiador (2000) de Ridley Scott.
269. Desenho de Janty Yates para O Reino dos Céus (2005) de Ridley Scott.
270. Desenho de Moebius para Alien (1979) de Ridley Scott.
271. Desenhos de Doug Chiang para A guerra das estrelas, episódio I, A ameaça fantasma (1999) de George Lucas.
272. Desenho de Ann Maskrey para Hobbit (2012) de Peter Jackson.
273. Desenho de Michael Kaplan para Fight Club (1999) de David Fincher.
131
126
3.3.2. Desenho de outros personagens
127
274
274. Desenhos de Terryl Whitlatch para A guerra das
estrelas, episódio I, A ameaça fantasma (1999) de
George Lucas.
275. Desenho de Warren Mahy para O senhor dos Anéis
(2001) de Peter Jackson.
276. Desenho de Kiran Shah para Hobbit (2012) de Peter
Jackon.
275
276
134
278
277
279
277 e 281. Desenho de Bem Wootten para O senhor dos Anéis (2001)
de Peter Jackson.
278. Desenho de Iain McCaig para A guerra das estrelas, episódio
I, A ameaça fantasma (1999) de George Lucas.
280. Desenho de Doug Chiang para A guerra das estrelas, episódio
I, A ameaça fantasma (1999) de George Lucas.
279 e 282. Desenho de Kiran Shah para Hobbit (2012) de Peter Jackson.
281
282
135
280
136
4
Outros processos
137
138
C
arlos Saura
sobre os lugares; e, cabe aqui referir que antes
(Huesca, 1932)
de se dedicar ao cinema Saura foi fotógrafo –
Irmão do pintor Antonio
e música: a escolha da música precede mesmo,
Saura, o cineasta Carlos Saura
algumas vezes, a escrita dos argumentos.
Atares, uma das maiores referências do
cinema espanhol, diplomado em realização
A conceção particular de Saura, da
pelo Instituto de Investigaciones y Estudos
pré-produção dum filme, é claramente
cinematográficos (1957) em Madrid, constitui
exposta numa passagem duma entrevista que
um exemplo claro duma conceção do
concedeu, na qual se refere ao filme El
trabalho preparatório que associa o desenho
Dorado (1988): «“(…) Alors, j´accumule du
com outros meios.
matériel visuel, parfois je fais des dessins et
Saura gosta de preparar minuciosamente
pour l’instant je privilígie surtout l´approche
os seus filmes, até porque entende ser
vidéo. Pour un film compliqué et coûteux
importante ter uma espécie de visualização
comme El Dorado, j’ai eu la possibilité de
mental antes de os começar a rodar. Todavia,
préparer les choses très à fond: j’ai été
não tem um método de trabalho fixo, que
plusieurs fois au Costa Rica, j´ai fait des
varia de filme para filme conforme as
dessins, j’ai enregistré des sons et maintenant
exigências. Normalmente, Saura é o autor dos
je réalise un petit film préparatoire (…) Et
argumentos e à medida que os vai escrevendo
ces petites vidéos me permettent de réliser
faz, paralelamente, desenhos; estes, neste
partiellement ce fantasme. Je mêle des
photos que j’ai faites, d’autres qui viennent
estádio, considera o cineasta, são apenas
de livres et de revues, des extraits d’emissions
esboços gerais indicativos, provisórios – não
de télévision, je filme certaines répétitions, je
se trata ainda, portanto, de storyboards –,
teste des effets, j’essaie plusieurs musiques
servindo como complemento do texto, como
différents sur les mêmes images…”»70
se pode ver em páginas do guião de Los
Zancos (1984) [fig. 283], particularmente
Quanto
para cenas mais importantes.
à
utilização
prática
dos
storyboards [figs. 284 e 285] durante as
No seguimento, além de storyboards
filmagens, o cineasta espanhol não obedece
realiza também montagens vídeo (presta-se
rigidamente a eles: se umas vezes o
bem, segundo ele, para fazer uma espécie de
cameraman segue os desenhos prévios, de
“caderno de ideias” para cada filme), nas
outras Saura – que até deixa os atores vê-los,
quais associa desenhos, fotografias – antes de
filmar,
costuma
reunir
uma
ampla
70 Carlos
SAURA cit. in “Entretien avec Carlos Saura”
in Jacques FATON, Benoît PEETERS e Philippe de
PIERPONT, op. cit., p. 85.
documentação fotográfica, principalmente
139
sem desejar que eles se prendam em demasia
a eles – vai recriando-os continuamente
durante a rodagem, e até depois da mesma
porque, como diz, «Ces dessins, c’est surtout
pour moi que je les fais. Parfois, il faut trois
heures pour installer la lumière, c’est horrible!
Alors, je dessine, sans trop me demander à
quoi ça sert.»71
283
Carlos SAURA cit. in “Entretien…”, p. 86.
Acrescentamos o seguinte apontamento: nesta
entrevista (idem, p. 87), demonstrando a sua contínua
abertura às novas tecnologías, Saura revelava que
entretanto, após alguns ensaios iniciais, começava os
seus storyboards usando um computador.
71
283. Páginas do guião de Los Zancos (1984).
284 e 285. Desenhos do storyboard para El Dorado (1988).
140
P
edro Costa
(Lisboa, 1959)
Todavia, o caderno só foi concluído muito
tempo após a rodagem do filme; entretanto
No seu processo de trabalho, o
foi transformado em livro, e publicado pela
cineasta português recorre muitas vezes a
editora Japonesa Cinematrix numa edição
colagens de imagens fotográficas, postais,
fac-similada,
recortes de imagens de jornais, etc., uma
intitulada
Casa
de
lava
Scrap-book.
prática que entende continuar (usando outros
meios) a montagem cinematográfica, como
aconteceu durante a conceção do filme Casa
de Lava (1994).
O
processo
criativo
começou
num
caderno quadriculado [figs. 286 e 287] onde,
para além das colagens, fez anotações sobre
as localizações, cenas, atores, e apenas um
desenho (explicando um movimento de
rotação da câmara). Serviu como guia
286
espiritual, para os seus colaboradores terem
uma noção dos pensamentos do realizador,
tal como o próprio afirma (…) «“Claro que
esta forma de “visualizar” o projecto serviu
muito o director de fotografia, alguns
técnicos e actores. Dava-lhes a impressão das
coisas de que eu gostava. Mas a pessoa que
passou mais tempo com o caderno nas mãos
foi o director de som. Discretamente, depois
dum plano rodado, sussurrava-me: “Pois,
estava no livro…”»72
287
286 e 287. Caderno de Pedro Costa, para Casa de Lava (1994).
Pedro COSTA cit. in Nuno CRESPO – “Pedro
Costa. Morrer mil mortes”, Público (Ípsilon), 27/4/2012,
p. 19.
72
141
P
eter
Greenaway
fotografias de possíveis acessórios até amos-
Muitas vezes, recorre a colagens
ceção de interiores e exteriores.
tras de tecidos para as decorações; eles serviam-lhe depois como referências para a con-
no seu processo criativo, misturando imagens
e texto, com a diferença, em relação a Pedro
Costa, que intervém plasticamente sobre elas.
O livro como artefacto, o texto como arte,
são temas recorrentes nos seus filmes, como
em Os Livros de Próspero ou O livro de
Cabeceira; aliás, existe uma grande continuidade temática, também neste aspeto, entre
os seus filmes e as obras que continua a pro288
duzir enquanto artista plástico. A colagem
289
In the Dark [fig. 288] alude a uma noção
cara a Greenaway, a de que o texto enquanto
limite é inerente à natureza do filme; na primeira frase, da primeira linha, pode ler-se:
“Cinema is text-driven” 73 . A colagem The
Keeper of Forbidden Books [fig. 289],
pertence à série de estudos que realizou para
as figuras alegóricas em Os Livros de Próspero.
Refira-se que o desenhador de produção
holandês Ben van Os (Haia, 1944-2012), que
acompanhou Greenaway ao longo de toda a
sua carreira, desde as curtas-metragens até às
longas, também costumava organizar cadernos de trabalho, onde ia colando os mais
diversos itens, desde referências picturais ou
289
73 Apesar
da importância que o cineasta dá às imagens
nos seus filmes, é ele quem afirma numa entrevista
(“Entretien…”, op. cit., p. 50): «(…) si j’essaie de
comprendre
rétrospectivement
pourquoi
j’ai
commencé à faire des films, je me dis que c’est parce
que ça m’a donné l’occasion de jouer avec des images,
mais aussi, et c’est très important, de jouer avec les
mots, parce que mes films sont trés fortement basés
sur le langage littéraire. (…)»
288. In the Dark (1996). Técnica mista s/papel.
289. The Keeper of Forbidden Books (1991). Técnica
mista s/papel, 29, 5 x 21 cm.
290. Caderno de trabalho de Ben van Os.
142
5
Do Cinema ao Desenho
136
137
G
ustav
Deutsch
(Viena, 1952)
na sua exposição individual Reflections,
apresentada na Solar – Galeria de Arte
Cinemática, em Vila do Conde.
Uma aplicação diferente
No extenso trabalho preparatório para a
do desenho no cinema é a que encontramos
recolha das imagens para os seus filmes –
no cineasta austríaco Gustav Deutsch um
sejam encontradas por acaso ou resultem da
dos nomes mais importantes do cinema
investigação em arquivos cinematográficos,
experimental que recorre a found footage,
coleções privadas e museus de todo o
termo de origem anglo-saxónica surgido
mundo –, por vezes comparado ao de um
para designar a prática apropriacionista de
arqueólogo, já tem recorrido ao desenho
material fílmico pré-existente no campo do
(contudo, os desenhos não saem das suas
cinema experimental ou vanguardista 74 –
mãos, mas das da sua companheira e cola-
porém, já tem ocorrido pontualmente no
boradora Hanna Schimek) como meio de
cinema dito comercial –, cuja obra mais
manter uma espécie de registo da memória
reconhecida é o filme em episódios Film
visual de todo o material analisado (milhares
ist, um work in progress iniciado em 1996, que
de películas), reduzido ao essencial, que
já tem sido exposto
igualmente em
mais tarde serve de base para as sequentes
instalações vídeo, como aconteceu em 2006
fases que envolvem uma seleção e montagem.
um resumo da história da génese do termo,
hoje consagrado, apesar de terem sido propostas
ao longo do tempo outras designações para esta
versão cinematográfica da prática da apropriação,
como échantillonnage – proposto na exposição retrospetiva dedicada a este tipo de cinema no Centre
Georges
Pompidou
(MonterSampler.
L’Échantillonnage Généralisé, em NovembroDezembro de 2000), dentro dum programa mais
vasto que quis dar conta dum sintoma mais geral
da cultura dita pós-moderna, que incluiu a apropriação no campo da música, com ênfase na electrónica –, vd. Antonio WEINRICHTER – Metraje
Encontrado. La Apropiación en el Cine Documental y
Experimental. Pamplona: Gobierno de Navarra,
Departamento de Cultura y Turismo – Instituición
Principe de Viana, 2009, pp. 14-20. Vd. também
Augusto M. SEABRA – “Found-footage”, Derivas,
12 de
Março
de 2007/Culturgest
in
<http://www.culturgest.pt/derivas/120307.htm>
[consulta em 9/12/2007].
Assim terá acontecido no episódio
74 Para
Film ist. a girl & a gun (2009), uma
película em 35 mm com 93 minutos de
duração: «During the research for Film ist. a
girl & a gun, Hanna Schimek drew innumerable sketches of single frames from the
films viewed – as she had done before
during previous research. These sketches
serve both the purpose of supporting the
optical memory as well as internal communication. With these quick, almost automatic sketches, she tries to document the
essential characteristics of the images,
thereby etching them into her memory. The
results – hundreds of pages of notes and
145
sketches – form the necessary basis for the
process
of
selecting,
arranging
and
editing.»75
O processo de trabalho de Deutsch,
pelo menos neste filme, está de acordo
com o que diz Steven Katz, também realizador e com experiência de montagem, o
qual refere que na fase de pós-produção
291
dum filme o editor (de montagem) pode
receber os storyboards e “anotações de
câmara”. E, dando conta da sua própria
experiência, refere: «Storyboards can
also be used in editing by drawing
panels based on actual footage. I have
used this method several times when
cutting on a flatbed editing table. By
placing a sheet of paper over the
screen on the flatbed, I am able to
quickly trace individual panels for
each shot. The shots are then laid out
292
on the floor in rows. I keep rearranging
291 e 292. Gustav Deutsch & Hanna Schimek
imagem e desenhos da pesquisa de Film ist.
a girl & a gun (2009).
the order until the graphic flow seems
to work smoothly. This saves an enormous amount of trial and error when
splicing the actual film.»76
Gustav DEUTSCH e Hanna SCHIMEK –
“Film ist.a girl & a gun. Drawings and film stills”
in Gustav Deutsch. Ed. Wilbirg BRAININDONNENBERG e Michael LOEBENSTEIN.
Viena: Österreichisches Filmmuseum/SYNEMA –
Gesellschaft für Film und Medien, 2009, p. 208.
Sobre o episódio Film ist, vd. igualmente Óscar
FARIA – “O filme é um filme é um filme”, Público
(Mil Folhas), 29/12/2006, p. 18.
77 Steven D. KATZ – Film…, p. 117.
75
146
W
gens de Kentridge aos primórdios do ci-
illiam
Kentridge
nema, mas ao mesmo tempo remetem
para a sua obra anterior, citando-a: por
(Joanesburgo, 1955)
exemplo,
como
salienta
Ruth
Um caso completamente
Rosengarten 77 , em Activos Móveis (um
distinto é o do multifacetado artista sul-
dos Sete fragmentos…) uma sequência com
africano William Kentridge conhecido
um desenho na parede, duma cena típica
sobretudo pelos seus desenhos, encena-
que se dissolve na imagem duma terra
ções de peças de teatro e filmes de anima-
arrasada, evoca Felix in Exile (1994); e
ção, que começou a realizar em finais dos
em Viagem à Lua um telescópio improvi-
anos 80: nestes, tem usado o desenho
sado foca uma fila de silhuetas de figuras,
como meio expressivo mas dum modo
apropriadas do seu filme Cortejo de
pouco habitual na animação tradicional.
Sombras (1999).
Trabalha quase sempre sem guião prévio,
fazendo pouquíssimos desenhos de grande formato – a carvão, com acrescentos
de pastel (e, às vezes, guache) –, que vai
apagando e redesenhando outra vez; são
essas modificações no desenho, as suas
metamorfoses, que sugerem o movimento
captado pela câmara, deixando sempre à
mostra as marcas no papel, vestígios das
293
sucessivas rasuras, alterações e acrescentos.
O estado final de cada desenho, que
pode conter uma sequência completa, é
uma espécie de palimpsesto a que
Kentridge chama “inteligência da cegueira”;
e, conjuntamente com os filmes, costuma
expor amiúde os desenhos resultantes do
294
seu idiossincrático processo criativo da-
293. Desenho de Kentridge para Viagem à lua (2003).
294. Desenho de Kentridge para Felix in Exile (1994).
queles.
Os filmes Sete fragmentos para
77 Cf. Ruth ROSENGARTEN – Sete fragmentos
para Georges Méliès e outros trabalhos de William
Kentridge. Lisboa: Museu do Chiado – Museu
Nacional de Arte Contemporânea, 2005, pp. 22-24.
George Méliès, Viagem à Lua e O Dia
pela Noite, todos de 2003, são homena147
Q
uentin
Tarantino
(Knoxville, 1963)
O
Django
filme
o
libertado (2012), ganhou um óscar para o
melhor argumento original. Talvez devido
ao sucesso que alcançou, foi anunciado
recentemente que terá uma versão em
295
Banda Desenhada (de 120 a 150 páginas)
em formato de novela gráfica, pelo autor
sérvio Rajko Milosevic Guéra, que mais
uma vez trabalhará em parceria com o
realizador.
Geralmente, tem sido o processo inverso
o mais habitual ao longo da história do
cinema, e inúmeros casos podiam ser
citados. Em 2009, Tarantino fez a
296
promoção original do filme Sacanas Sem
Lei entregando uma parte do guião à
295. Desenhos de Guéra para a BD, sobre o filme
de Tarantino, Django o libertado (2012).
revista
296. Desenhos de Guéra para a BD, sobre o filme
americana
transformado
de Tarantino, Sacanas sem lei (2009).
Playboy
numa
para
BD,
ser
cuja
concretização foi entregue a Guéra; esta
publicação antecedeu a estreia mundial do
filme nos cinemas.
148
Reflexões Finais
149
143
O desenho é uma ferramenta muito versátil, facilmente adaptável às várias tarefas
necessárias no processo de criação cinematográfica; o grau da sua utilização e o modo
como intervém nesse processo, dependem contudo do estilo pessoal e do método de
trabalho de cada realizador. Por isso mesmo, no que concerne à etapa de pré-produção,
encontramos uns que necessitam de desenhos e storyboards detalhados do guião inteiro,
outros que os usam apenas para cenas especialmente complexas de rodar (de ação, por
exemplo), ou outros ainda que usam apenas alguns desenhos para certas “cenas-chaves”,
para ajudar a visualizar a atmosfera e as sensações pretendidas, que o guião por si só seria
incapaz de descrever: acrescentaremos a estes usos, mais habituais, os casos em que os
desenhos e storyboards servem como “ajudas-memória” dum trabalho prévio de seleção de
imagens a usar, ou como instrumento auxiliar na fase de montagem final.78
Dado que os storyboards, e outros desenhos de produção, foram considerados durante
muito tempo como meramente material de trabalho, imagens criadas exclusivamente para a
preparação dos filmes, são muito poucos os do cinema clássico que sobreviveram intactos
até aos nossos dias. De facto, só a partir dos anos 90 do século XX começaram a despertar
mais interesse e alguma visibilidade, com uma sucessão de exposições dedicadas aos
desenhos preparatórios e storyboards de alguns realizadores, e outros profissionais:
Storyboard, 90 ans de dessins pour le cinéma (1992), no Palais de Tokyo, Paris; Drawing into Film,
na Pace Gallery de Nova Iorque (1993), e The Director’s Eye (1996), no Museum of Modern
Art de Oxford. Em anos mais recentes, há a registar as exposições dedicadas aos desenhos
de Fellini, Tim Burton e Kurosawa, às quais já nos referimos. De assinalar ainda a “exposição virtual” Story-board de cinéma, patente no site oficial da Cinémathèque Française79.
Muito mais haveria a dizer sobre a utilização do desenho como intermediário no
processo de trabalho de muitos cineastas, e outros podiam ter sido abordados; não
obstante, o limite de palavras para a redação da dissertação levou-nos a fazer escolhas,
incluir uns e “excluir” outros: as opções tomadas são discutíveis, mas não houve
tendencialmente preferência em falar só do que se gosta, ou com que temos mais
afinidades. Todos os aspetos visuais num filme são importantes, e o trabalho dos
profissionais incluídos nesta dissertação merece-nos todo o respeito. Deixamos alguns
aspetos do tema em aberto, para ulterior investigação, quiçá um futuro doutoramento.
78 Contudo,
quero reiterar que muitos cineastas não se limitam à rodagem dos seus filmes, controlando todos
as fases de produção e interferindo até no trabalho dos profissionais dos vários departamentos: foi o caso tanto
de Fritz Lang como de Stanley Kubrick, conhecidos como perfeccionistas, e é o de Ridley Scott.
79
Vd. <http://www.cinematheque.fr/expositions-virtuelles/storyboard/index.htm>.
151
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