JR ainda alternativa (1)
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JR ainda alternativa (1)
O desafio da responsabilidade. Justiça restaurativa procura seu lugar PEDRO SCURO NETO H Á MAIS DE UMA DÉCADA pesquisadores do Centro Talcott 1 abriram no Brasil uma senda que atualmente oferece milhares de oportunidades de trabalho com potencial criativo e transformador. Algo a princípio impossível de prever, até porque os gestores que aderiram à justiça restaurativa, um dos componentes do trabalho do Centro, queriam-na somente na base de trabalho voluntário. Os pesquisadores, por sua vez, estavam convencidos que procedimentos restaurativos devem ser testados, mostrar vantagens em comparação ao que habitualmente se usa para abordar conflitos, e a partir daí implantados em caráter experimental. Tinham plena consciência que todo procedimento inovador precisa contemplar os níveis de qualificação, competência e ética exigidos pela divisão de trabalho das redes e sistemas em que são aplicados. Rejeitavam, portanto, o “antiprofissionalismo” dos pioneiros da justiça restaurativa no estrangeiro, ainda hoje moeda corrente na maior parte das iniciativas brasileiras. O antiprofissionalismo revela-se, por exemplo, na obra do pioneiro norueguês que insistia na redução da dependência em relação a especialistas. Segundo ele, advogados, professores, psicólogos, policiais etc., simplesmente “roubam” os conflitos de seus legítimos “donos”, as pessoas envolvidas.2 Era o caso também do norte-americano que pregava a substituição do modo convencional de Justiça, “retributivo”, centrado em punição, rotulagem e atendimento, por um “novo paradigma” 3, a justiça restaurativa, protagonizado por “facilitadores” capazes de mostrar que os envolvidos podem resolver sozinhos seus próprios problemas. Processos como “círculos restaurativos”, em que simples objetos (“peças de palavra”) passam de mão em mão determinando a vez e o direito de cada participante dirigir-se aos demais. Na singeleza desses objetos está corporificado um dourado sonho de liberdade: os envolvidos progressivamente se desatrelam dos intermediários, incluindo de facilitadores. Algo desmentido, no entanto, pelo poder do facilitador de “convidar os envolvidos a participar, montar cenários e persuadir as pessoas que procedimentos restaurativos as autorizam [melhor dizendo, as fazem assumir responsabilidades] a buscar soluções”.4 Circunstâncias que obrigaram os pioneiros e seus seguidores a admitir que “encontros restaurativos” precisam de coordenação qualificada, profissional, exercida mediante regras rigorosas e princípios nítidos. Autor de Sociologia geral e jurídica (7ª edição, 2010) e de Eu e a sociedade: fundamentos de análise sociológica (2013). Consultor em transformação de cultura organizacional. Coordenou os primeiros projetos de justiça restaurativa no Brasil. Concebeu e foi o primeiro diretor do centro de pesquisas da Escola Superior da Magistratura (RS). 1 PSN, Justiça nas escolas: função das câmaras restaurativas. O Direito é aprender (L. N. Brancher, M. M. Rodrigues e A. G. Viei, org.). Fundescola/MEC/Banco Mundial, vol. 1, 1999: 47-58. 2 Nils Christie, Conflicts as property. British Journal of Criminology, vol. 17, 1977: 1-15. 3 Howard Zehr, Changing lenses. A new focus for crime and justice. Scottsdale, 1990. 4 Jennifer L. Sawin e Howard Zehr, The ideas of engagement and empowerment. Handbook of restorative justice (G. Johnstone e D. W. Van Ness, org.), Cullompton, 2007: 53. * Página 2 de 14 Insistem, porém, que essas regras são controvertidas e que o debate sobre se devemos nos ater a elas está longe de termina – até mesmo porque “à medida que as práticas restaurativas se expandem e exigem facilitadores profissionais, aumentam as dúvidas acerca da sua condição de legítimos representantes da comunidade e fidelidade ao espírito envolvente e autorizador da justiça restaurativa”. Ressaltam, a esse respeito, o caso da mediação, cada vez mais conduzida por profissionais, geralmente psicólogos e advogados.5 1. Subjetivismo em crise O modo restaurativo de fazer justiça concede grande valor ao fato de vítima e infrator se encontrarem pessoalmente, na presença de um coordenador (ou “facilitador de resolução de conflitos” focado num futuro ideal) que estimula diálogo, capacidade de ouvir, entender e considerar os sentimentos, experiências e posturas dos demais.6 Quando isso não é possível, pode ocorrer aproximação através de carta, fita gravada, mensagens etc. Contudo, somente encontrar não basta para dar ao procedimento um caráter restaurativo, que se configura pela convergência de cinco elementos (reunião, relato, emoção, entendimento, acordo), decisivos para dar ao encontro um sentido restaurativo. No procedimento judicial costumeiro as partes podem, quando muito, observar o que o outro diz a terceiros, ao passo que no padrão restaurativo vítima e infrator interagem, relatam o ocorrido com suas próprias palavras, mostram como os incidentes os afetaram, como encaram o ato infracional e as suas consequências. No encontro restaurativo, segundo a perspectiva original da JR, entra em jogo a subjetividade, que favorecia o interlocutor integral, bem como a emoção propiciada pelo relato e resultante do incidente. Uma e outra são fatores reprimidos pelos procedimentos da Justiça formal, impessoal e racional, descartando seu poder curativo. Outro fator é o entendimento, que surge da empatia, da pessoa se sentir na pele da outra; o que, se não faz o interlocutor encarar o outro de um modo positivo, pelo menos leva a considerá-lo de um ângulo mais “natural”, de acordo com a ordem das coisas, menos traumatizante. O derradeiro elemento é o acordo, que estabelece uma base produtiva e consequente para o que virá depois do encontro, dependendo do ponto de vista das partes, das circunstâncias e da vontade de cada um, da convergência de seus interesses e de suas decisões, e não simplesmente da perspectiva dos autos de um processo fundado apenas no contraditório. Dos cinco fatores talvez não resulte reconciliação. Mesmo assim, devem contribuir para elevar a capacidade de cada interlocutor de enxergar a si mesmo e ao outro como pessoa que merece respeito, identificar-se através de experiências, e eventualmente chegar a um acordo, independentemente das impressões que cada um tinha no príncípio e que davam razão de ter medo e sentir hostilidade. Contudo, a exagerada ênfase no subjetivismo, no encarar realidade, Reza a “lenda” entre os restaurativistas que enquanto a mediação serve apenas para resolver conflitos, a JR ajuda a transformá-los. 6 John Heron, The complete facilitator's handbook. Kogan Page, 1999 5 Página 3 de 14 verdade e valores a partir de “sentimentos humanísticos”, pode ter desviado a atenção da JR de algo mais importante: assumir responsabilidade pelas ações que causam incidentes e danos, o que não compete apenas a quem se imputa um ato nocivo. O foco em subjetividades é precisamente o fulcro de crítica pelos abusos cometidos pelo emprego indevido da justiça restaurativa: “corrupção do processo legal”, “trivialização” da violência, “criminalização de incivilidades”, “inclusão de conflitos banais na área de criminalização”, etc.7 Reparos justificados pelo embaraço restaurativista diante da necessidade de conceituar responsabilidade: Paul Mc Cold e Ted Wachtel dizem que um sistema social produz ‘janelas de disciplina social’ segundo uma combinação de duas forças vetoriais que denominam ‘controle’ e ‘apoio’. Esses fatores, que podem corresponder à clássica dicotomia punição-tratamento, podem ser também relacionados à combinação entre políticas públicas de ‘segurança’ e ‘assistência’, ou ainda ao que na Educação os pedagogos relacionam a uma combinação de ‘afetos’ e ‘limites’. Uma combinação ideal, ou seja, com boas doses de ambos os componentes, é o que, segundo os autores, daria lugar a uma disciplina social restaurativa, ou ao que poderíamos denominar de um modelo de um modelo de responsabilidade social restaurativa. 8 Responsabilidade coletiva “O procedimento restaurativo busca a responsabilização, não como punição, mas que o ofensor assuma a culpa, dê-se conta da gravidade do que fez, perceba quanta gente sofreu em função de um ato que cometeu”. 9 “Antes de encontrar um dos assassinos de meu pai eu não sabia o que era justiça restaurativa. Fui vê-lo depois que me escreveu, trinta anos depois do ocorrido, vinte dos quais cumprindo pena. Na ocasião nos uniu o espírito de perdão, e a partir daí por meio de emails e encontros desenvolveu-se um improvável relacionamento. Como ele mesmo diz, é incrível como “vítima e agressor têm tanta coisa em comum”. Sou facilitadora, trabalho com a capacidade de cura das palavras, das histórias, da poesia. Howard Zehr escreveu o prefácio de um livro meu, dizendo que ao encorajar o diálogo em profundidade sobre a vida depois de um crime, eu mostro como o encontro nos permite ver o nosso verdadeiro eu e tomar posse de tudo que somos”. 10 Na verdade, vítima e ofensor nesse caso estão atrelados por noções de responsabilidade, pessoal ou solidária, que a JR focada em subjetividades assim como a Justiça convencional encaram em relação à culpa que imputamos a um agente moral pelo dano causado por um ato que cometeu. Noções restritivas, individualizantes, indicativas de justiça baseada em retaliação, represália ou desforra, que restringe o Direito ao ator e ao ato a partir do princípio da retribuição, obscurecendo por sua vez a própria noção de responsabilidade.11 Diferentemente de Allison Morris, Critiquing the critics: a brief response to critics of restorative justice. The British Journal of Criminology, 42, 2002: 596-615; Leonardo Sica, Justiça restaurativa: críticas e contra críticas. Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal, 8 (47), dez. 2007/jan. 2008: 158-189. 8 Projeto Justiça para o Século 21, ‘Responsabilização’, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=83&pg=0 9 F. depoimento (condensado), funcionário. Fundação de Atendimento Sócio-educativo (Rio Grand do Sul) – Justiça para o Século 21, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=372&pg=0 10 Cf. Margot Van Sluytman (condensado), Forum Europeu de Justiça Restaurativa (grupo de debate), julho, 2012. 11 PSN, Sociologia Geral e Jurídica. Introdução ao estudo do Direito, instituições jurídicas, evolução e controle social. Saraiva, 2010: 16. 7 Página 4 de 14 responsabilidade coletiva, foco da justiça restaurativa, que não exige vinculação de culpabilidade ou responsabilidade moral a este ou aquele indivíduo, não localiza a fonte da “responsabilidade baseada em culpa” na livre vontade de um agente moral individual, mas na culpabilidade do grupo, estabelecendo a ação coletiva como descritor de responsabilidade moral. 12 “Existe entre os seres humanos uma solidariedade que faz de cada um de nós responsável por todo erro e toda injustiça, especialmente em caso de crimes cometidos na nossa presença e/ou do nosso conhecimento. Se não faço tudo que posso para prevenir tais crimes, também sou culpado”. 13 Escamotear o sentido verdadeiramente restaurativo de responsabilidade tem como consequência a continuidade dos sofrimentos até que se resolva prevenir os efeitos dos erros e injustiças – como ocorre com a sociedade brasileira em relação à síndrome de corrupção, violência e impunidade gerada pela ditadura militar, um período que a maioria concorda em esquecer. Da mesma maneira seguem sofrendo todos que, focados em subjetividades, retringem a noção de responsabilidade – caso da mencionada facilitadora acima, que só quis perdoar o matador arrependido: “O outro, há anos foi a um programa de tv e ficou se exibindo, falando do crime como se tivesse sido uma façanha. Minha família e eu fomos convidados, mas não aceitamos, e não me arrependo por isso”. O fascínio da justiça restaurativa advém principalmente da alegação que punir causa mais problemas do que resolve. Contudo, a possibilidade de “fazer justiça restautiva” continua a ser questionada, em particular em circunstâncias de endurecimento das leis. Restrições que têm a ver com a indigência teórica da justiça restaurativa e a confusão conceitual de seus adeptos, a quem falta clara perspectiva de controle social da violência e de redução de reincidência, especialmente no caso dos infratores mais graves. Carências peculiares a quem prefere conceituar de forma apaixonada e supor, por exemplo, a existência de um “consenso comunitário” resistente à delinquência, mas nunca dizer o que entende por “comunidade”. Avultam assim críticas à justiça restaurativa por ser “um movimento sem futuro”, que “não diz a que veio”, “mais preocupado com sentimentos humanísticos [amiúde confundidos com valores] que em demonstrar eficácia”, suscitando problemas sem solução. 14 2. Justiça restaurativa e desregulamentação “Sou a hora, e a hora é de assombros e toda ela escombros dela” (Fernando Pessoa, Hora absurda). Os fatores que contam para determinar o encanto da justiça restaurativa (ênfase no subjetivismo e denúncia da punição) se explicam no enraizamento da JR numa ampla tendência ideológica, a New Age ou “nova espiritualidade” marcada por esquemas desvinculados de hierarquias e focados nos valores, problemas e disposições do eu, individualidade apreendida metafisicamente. Tipicamente “pós-moderna” e do período histórico de hegemonia mundial dos Cf. Marion Smiley, Collective responsibility, http://plato.stanford.edu/entries/collective-responsibility/. Karl Jaspers, The question of German guilt. Capricorn, 1961: 36. 14 Robert M. Regoli, John D. Hewitt, Matt DeLisi. Delinquency in society: the essentials. Jones and Bartlett, 2011: 425 (citando Sharon Levrant, Adam Crawford, Todd Clear e outros). 12 13 Página 5 de 14 Estados Unidos, a New Age expressa ideias, apegos e opiniões que refletem uma busca frenética por “força e significação dentro de si mesmo” e pela determinação do “eixo” (da sociedade ou dos indivíduos) sem recorrer necessariamente aos padrões “paternalistas e autoritários” das instituições convencionais.15 Em vez disso, para manter o rumo os atores usam seus próprios “giroscópios” 16 alinhados às exigências do mundo moderno e em particular aos modos como os outros vivem, consomem, ganham, possuem, crêem e se posicionam em relação a trabalho, política, tempo livre, etc. Essa comunidade “majoritária” se tornou na prática a principal “fonte restauradora de confiança” em relação a qual o eu procura, usando “recursos comprometidos com a simbologia em curso”, expressar e resolver os problemas de identidade gerados pelas formas contemporâneas de viver.17 Por sua vez, as próprias instituições que por tanto tempo se impuseram mediante conhecimentos, práticas e padrões indiscutíveis, na pós-modernidade tiveram de “destradicionalizar-se”, adotar maneiras “flexíveis”, princípios e expectativas acomodados às circunstâncias, condições e ao prestígio de indivíduos e grupos “médios”. Conformismo que reflete os anseios, necessidades e interesses desses atores, e que mais do que simplesmente aceitar sem questionar padrões sociais estabelecidos repercute em escala generalizada uma disposição a se acomodar para obter a aprovação dos demais. 18 Num tal contexto não é incomum encontrar atores insatisfeitos com os meios e objetivos disponíveis, que flutuam entre a certeza e a incerteza e, por isso, procuram em “instituições alternativas respostas para seus anseios mais profundos”.19 Razão pela qual, desconfiados das estruturas tradicionais, “suspeitas ou desprovidas de genuína autoridade”, transferem sua lealdade a sedutores movimentos cuja normatividade supostamente mais arejada permite o que as “organizações estabelecidas” não toleram. Não obstante, segue vigorando a sacralidade do eu, a individualidade ressentida com determinações externas (tradição, autoridade), porém nas quais continua buscando refúgio, porém cada vez mais incomodada pela obrigação de colocar juízos “oficiais” acima dos seus. Essa personalidade pós-moderna não enjeita coerção nem alocação de direitos e responsabilidades, mas não perde a ocasião de mostrar sua preferência por desregulamentação, que previne os efeitos indesejáveis da ação institucional e produz resultados que através dessa ação não ocorreriam. O alvo preferencial da desregulamentação é o próprio Direito, a mais poderosa referência de vida civilizada, capaz de converter vínculos condicionados, por exemplo, através de Marilena Chauí, Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. Brasiliense, 1994: 108. David Riesman, Nathan Glazer e Reuel Denney, The lonely crowd: a study of the changing American character. Yale University Press. 2001 [1951]. 17 David Lyon, Jesus in Disneyland. Religion in postmodern times. Polity, 2000; Paul Heelas, The New Age movement. The celebration of the self and the sacralization of modernity. Blackwell, 1996: 173. 18 Não admira Robert K. Merton (Social theory and social structure, The Free Press, 1968) ter sugerido que na sociedade atual somos todos, mesmo oscarentes de estruturas e de meios, majoritariamente conformistas. Algo que no Brasil custamos a entender, achando que conformismo é temporâneo, politica e moralmente negativo, “disperso no interior da cultura dominante” (Chauí). 19 Pontifício Conselho para a Cultura, Jesus Christ, the bearer of the water of life. A Christian reflection of the ‘New Age’. Vaticano, 2003. 15 16 Página 6 de 14 grupo ou raça, em subordinação especificamente legal, o que permite à ordem normativa dispensar modalidades tradicionais de legitimação e autoridade. A erosão do rigor analítico do Direito e perda do seu potencial explicativo, no entanto, há bastante tempo contribuem para torná-lo objeto de constantes críticas. No início do século XX, por exemplo, produziram-se consistentes tentativas de mudar a “intenção” do Direito, deixando de lado o “formalismo”, positivista, calcado em normas enunciadas, e em vez disso buscando o “sentido real” da norma focada nos objetivos e necessidades da vida social.20 Contudo, os agentes, “veículos” de tal transformação somente se destacaram na pós-modernidade, associando o “real sentido” da norma à tendência dos setores a se autocomporem e regularem seus próprios conflitos. Um direito com intenções “pluralistas”, configurado através de [R]edes de legalidade justapostas ou paralelas, resultantes não apenas de decisões emanadas de instituições governamentais, como o Legislativo e o Executivo, mas, igualmente, de negociações e deliberações nos diferentes sistemas e subsistemas que compõem a economia e a sociedade. [Um direito] cuja produção normativa cada vez mais se dá em instâncias não legislativas, motivo pelo qual seu conteúdo normativo não é determinado apenas pelo Estado, mas pactuado por diferentes atores – empresas, fundações, associações comunitárias, entidades de classe, órgãos de representação corporativa e organizações não governamentais.21 Uma das versões mais singelas (e menos exclusivistas) desse direito é sem dúvida a justiça restaurativa, cujas diretrizes se definem pela via negativa, isto é, a partir da subversão das características do sistema convencional (ou “justiça retributiva”, caracteristicamente iluminista, formalista, estatal e punitiva). 22 Justiça retributiva Justiça restaurativa Infração: noção abstrata, violação da lei, ato contra o Estado Infração: ato contra pessoas, grupos, comunidades Controle: sistema de justiça penal Controle: atores Compromisso do infrator: pagar multa, cumprir pena Compromisso do infrator: assumir responsabilidades, compensar o dano Infração: ato e responsabilidade exclusivamente individuais Infração: ato e responsabilidade com dimensões sociais e individuais Pena eficaz: ameaça de castigo altera condutas e coíbe a criminalidade Castigo tão-somente não muda condutas, além de prejudicar a harmonia social e a qualidade dos relacionamentos Vítima: protagonista: vital para o encaminhamento do processo e a solução dos conflitos Infrator: definido por sua capacidade de reparar danos e relacionamentos Vítima: ator periférico no processo legal Infrator: definido por suas deficiências Hermann Kantorowicz, Die Epochen der Rechtswissenschaft (1914). Vorschule der Rechtsphilosophie (Gustav Radbruch, org.), Scherer, 1947: 63 e seg. 21 Cf. José Eduardo Faria, Sociologia jurídica: Direito e conjuntura. Saraiva, 2008: 7. 22 PSN, Por uma justiça restaurativa ‘real e possível’ (2004). Cf. Juliana Cardoso Benedetti. Tão próximos [e] tão distantes: a justiça restaurativa entre comunidade e sociedade. Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, 2009. 20 Página 7 de 14 Preocupação principal: estabelecer culpa por eventos passados (Quem foi e o que fez?) Ênfase: relações formais, adversativas, adjucatórias e dispositivas Preocupação principal: resolver o conflito, enfatizando deveres e obrigações futuras (Que precisa ser feito agora?) Ênfase: diálogo e negociação Finalidade: impor sofrimento para punir e coibir Finalidade: restituir para compensar as partes e reconciliar Comunidade: marginalizada, representada pelo Estado Comunidade: viabiliza o processo restaurativo Sem embargo, acentuar diferenças da era pós-moderna em relação aos períodos anteriores não é unamidade entre os analistas, cada vez mais desconfiados de periodizações que interpretam a história de forma sequencial como enredos que invariavelmente terminam em degeneração e declínio. Argumentam em contrário que no mundo real ocorre, por exemplo, uma “transferência entre destradicionalização e retradicionalização, configurando processos em que são preservados conhecimentos, valores, memórias e outros construídos”.23 Reafirmam assim a doutrina preferida da burguesia, o darwinismo focado na sociedade cada vez mais secularizada e “melhor” graças aos mais aptos, à ciência, à tecnologia e ao liberalismo (cada vez mais articulado à social-democracia e seu reformismo que rejeita a polarização entre capitalismo e socialismo).24 Secularização e secularismo Os analistas geralmente confundem secularização – conceito a princípio restrito a privatização ou estatização da propriedade eclesiástica, mas depois associado à perda de influência da religião “sobre as diversas esferas da vida social” [Anthony Giddens e Philip W. Sutton, Sociologia. Penso, 2012: 495-496] – e secularismo, espírito de oposição à religião. Este último denota transformação das estruturas sociais e separação dos valores, porém não como algo peculiar, restrito à sociedade moderna, mais “reflexiva” ou “secular” que as outras, mas uma série de modelos elaborados gradualmente em mudanças históricas que decurso há muito tempo: (1) deslocamento do “centro” do universo: homem → natureza → matéria (a realidade objetiva, independente da consciência e nela refletida); (2) diluição da dualidade homem/universo diante da primazia da matéria e do ser humano submetido à férrea lógica das leis naturais; (3) transformação do homem, de unidimensional a entidade funcional, estereotipada, programada e alienada da sua essência e sua própria existência; (4) desencanto (desmitificação) da natureza e transformação do mundo (homem, natureza e sociedade) em espaço assolado por conflitos permanentes (que “sempre foram desse jeito”); (5) mundo destituído de propósito, sentido ou objetivo, evolução não inerentemente progressiva nem predisposta a crescente complexidade, mas à diversificação cada vez mais acentuada (mesmo assim, o mundo pode ser controlado pelo conhecimento e os interesses de indivíduos, grupos e povos dispostos a conquistá-lo e explorá-lo); 23 24 Paul Heelas, op. cit. PSN, Eu e a sociedade: introdução à análise sociológica (2013, Capítulo VII). Página 8 de 14 (6) todas as sociedades acabam se encontrando e se submetendo ao modelo natureza/matéria, prevalecendo a racionalidade instrumental e dando ensejo (com a universalização da forma derradeira de governo, a democracia liberal ocidental) ao “fim da história” e da evolução ideológica da humanidade. A partir dessa ótica não existe contexto social propriamente “moderno” nem “pósmoderno”, mas cruzamento, “hibridação” de ideias e práticas, por exemplo, de justiça produzida e distribuída em “fragmentos”, frangalhos de natureza ética, intelectual, cultural e política, frequentemente contraditórios e até mesmo antagônicos. Caso da própria justiça restaurativa, em se combinam “formas jurídicas burocráticas com elementos de justiça informal”, justiça “bíblica” ou justiça “indígena” (as “primeiras nações” do mundo anglo-saxão, bem entendido).25 A intenção é dar à justiça um caráter subjetivo, “natural”, espontâneo, pré-predicativo, de condição preliminar ao processo de humanização (centrado preferentemente nos países que atualmente dominam o planeta). Procura-se desmentir, portanto, que a justiça seja produto histórico determinado pela consciência da classe social hegemônica, no caso a burguesia e a sua preferência por normatividade negociada, informal, flexível, não-legislativa, composta de regras genéricas que se ajustam às particularidades da situação. Tendências predominantes nos tribunais que julgavam questões comerciais já na Idade Média. Nesses tribunais, o procedimento era marcadamente rápido e informal, de vez que “tempo é dinheiro” e justiça algo que deve ser feito “enquanto os mercadores ainda estivessem com os pés empoeirados”, ou “entre uma maré e a próxima”. Não havia recurso nem advogado e “cada qual contava os fatos em sua defesa da melhor maneira que podia” [W. Mitchell, An essay on the early history of the law merchant. Cambridge University Press., 1904: 14-17, 20]. Procedimentos que retratavam a relativa autonomia da comunidade dos mercadores, mas também que eles eram pessoas sujeitas a princípios éticos, devidamente aprovados pelo Direito Canônico e concretizados em tribunais eclesiásticos. Contribuíram muito, nesse particular, as medidas sumárias do papa que o papa Clemente V introduziu em sua bula Saepe contingit, de 1306. Certos tipos de causa deveriam ser tratados de modo “simples, direto, sem a argumentação formal e ritualística do processo ordinário”. Aos tribunais também não caberia exigir a petição por escrito e o magistrado podia rejeitar qualquer medida percebida como protelatória. Desse modo, em vez de ficar ouvindo a “gritaria” dos advogados e promotores, o juiz tinha a prerrogativa de “interrogar as partes quando solicitado pelas mesmas ou por sua própria iniciativa, sempre que a disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um assim exigisse”. 26 3. Justiça restaurativa e sistemas sociais O real desafio é aclarar, à luz das questões fundamentais da justiça restaurativa, como os sistemas de justiça, ensino etc. concretamente funcionam. Só assim é possível fazer do processo de fazer justiça o núcleo da questão, reduzir a preocupação acerca do quantum de Chris Cunneen, Reviving restorative justice traditions? Handbook of restorative justice (G. Johnstone e D. W. Van Ness, org.), Willan, 2007: 117-118. 26 PSN, Globalização do Estado de direito: sentido e consistência (Parte I). Revista Sociologia Jurídica, nº 4, 2007. Disponível em http://www.sociologiajuridica.net.br 25 Página 9 de 14 punição alguém deve sofrer por ter infringido esta ou aquela norma, e avaliar se nossas normas e decisões dão mesmo conta dos danos. Menos focados em normas e decisões poderemos assumir a obrigação de reunir os envolvidos e ajudá-los a chamar para si a responsabilidade de colocar as coisas no seu devido lugar.27 Vimos até aqui que os vínculos da justiça restaurativa nos esquemas mentais de hoje em dia e nas formas contemporâneas de viver, assim como na própria gênese do Direito como o entendemos, comprovam a sua condição de modelo positivo e, se encarado corretamente, apropositado para mudar e melhorar o quadro atual. Bem diferente da perspectiva subjetiva e impressionista daqueles que, desconhecendo a complexidade dos sistemas sociais e as sutilezas das tradições jurídicas, procuram descartar a JR e impor-lhe a coima de ideia “fora de lugar” 28, destoante do contexto social, assumem uma atitude que inviabiliza intercâmbios, desvia esforços, desperdiça recursos e deita abaixo projetos preciosos para a sociedade. A ameaça concreta ao modelo JR é, além da mofada ênfase em subjetividades, sua identificação com a pós-moderna conjuntura de “estilhaçamento”, redutora de cidadãos à condição de meros solicitadores ou consumidores de direitos.29 Conjuntura que – na base de mensagens que dão curso a concepções levianas sobre “escolha racional”, “liberdade de opção”, “centralidade da inovação”, agentes facilitadores, etc. – submete as “estruturas que servem de obstáculo à lógica do mercado puro” a um sistemático questionamento. 30 A partir daí, ações políticas episódicas, refratárias a discursos universalizantes, as subclasses sociais são demonizadas administrativamente, os excluídos (“gente que não é e jamais será como a gente”) sujeitos a estratégias vingativas, relegados à condição de irremediável e perigosa alteridade: A orientação do desenvolvimento histórico das modernas instituições, notadamente o sistema carcerário, é deslocar o centro das emoções populares “do castigo para a pena”, mediante ampliação do poder de controle estatal exercido por profissionais. Deixando para trás o tradicional espetáculo em que o Estado e a turba se solidarizavam contra seus inimigos comuns, a instituição da pena tornou-se veículo para inculcar hábitos de ordem adequados à sociedade democrática. Políticas neoliberais, por sua vez, como a “Megan’s law” [designação informal para a obrigação das autoridades americanas de disseminar amplamente o registro dos condenados por infrações de natureza sexual] contituem desvios desse processo de modernização, em particular ao concederem aos promotores de justiça um papel preponderante na definição do que é “risco” para a sociedade.31 “Bandido que dá tiro para matar tem que tomar tiro para morrer. Lamento apenas somente um dos rapinantes tenha sido enviado para o inferno. Fica o conselho para o policial: melhore sua mira...”. Esta é a manifestação de um promotor de justiça que pede arquivamento do inquérito que investigava as circunstâncias em que um policial civil matou um homem que, acompanhado de um comparsa, tentara roubar o automóvel conduzido Restorative justice international (grupo de debates), julho de 2012, http://restorativejusticeinternational.com Luciano Oliveira, Pluralismo jurídico y derecho alternativo en Brasil. Notas para un balance. Derecho y sociedad en América Latina. Um debate sobre los estúdios jurídico críticos (M. García e C. A. Rodriguez, org.), Instituto Latinoamericano de Servicios Legales, 2003; Juliana C. Benedetti, op. cit. 29 Conforme, por exemplo, um curioso mapeamento que — empregando critérios mercadológicos e índices de confiança do consumidor — tenta inferir a percepção da população acerca dos serviços prestados pelo Judiciário e, a partir daí, deduzir a legitimidade da Justiça. Cf. Raio-X da confiança na Justiça. Revista Getúlio, Escola de Direito, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2009: 35-41. 30 Pierre Bourdieu, L’essence du neoliberalisme, Le Monde Diplomatique, dez. 1998. 31 J. Simon, Managing the monstrous. Sex offenders and the new penology. Psychology, public policy and law, 4, 1998. 27 28 Página 10 de 14 pelo agente. Na versão do policial o suspeito tentou atirar nele, motivo pelo qual reagiu. “O agente matou um fauno que objetivava cometer assalto contra ele, agindo absolutamente dentro da lei”, escreveu o promotor usando a tática de desumanizar o suspeito morto no episódio, comparando-o ao ser mitológico, meio homem meio animal. O pedido de arquivamento foi aceito pela Justiça.32 Na realidade, refletindo de um modo geral as draconianas consequências das políticas criminais da atualidade, a função do promotor de justiça incorpora as mesmas pressões a que os policiais e os infratores estão expostos. A alternativa seria o promotor encarar a sua função de forma diferente, a partir dos princípios e da prática de justiça restaurativa; contudo, não pode fazê-lo sozinho nem isoladamente, e somente com incentivo e/ou pressão externa. A maioria dos promotores de justiça configura sua ação como de proteção da cidadania cuja segurança torna-se viável somente através de virtual ou efetiva punição severa de quem, na visão dele, atenta contra os direitos ou prejudica o exercício dos deveres. Conspira nesse sentido a doutrina que acentua a necessidade de impor regras e decisões mais duras, ajustando-se incomparavelmente à ênfase no incremento das prerrogativas e do poder discricionário do Ministério Público. 33 Vale o mesmo em princípio para os demais sistemas sociais e todo agente com função de representar contra acusados de violar fórmulas indicativas ou prescritivas de maneiras corretas de agir e raciocinar. O Direito segue sendo, porém, em qualquer circunstância o indexador, conforme observou Durkheim há muito tempo: a “vida social não pode estender-se e prevalecer sem que ao mesmo tempo e em relação direta a vida jurídica também amplie o seu domínio”. As variações correm por conta do espírito da época, do clima intelectual e cultural, mas principalmente, acredito, em razão do regime político-econômico. Assim, nos regimes neoliberais a penalização tende a ser talvez mais sujeita ao clima eleitoral, mais vulnerável à opinião pública, e as políticas criminais consequentemente mais duras. Nos regimes corporativistas, por sua vez, [a que] correspondem “economias coordenadas de mercado” com coalizões partidárias e burocracia estatal atuante na formação de políticas e práticas de governo, ênfase em estabilidade, seguridade e inclusão, as políticas criminais são menos duras e procuram articular gestão racional do sistema com uma abordagem “humana”, focada em reabilitação. Tradições parecidas, mas com relativo desmantelamento do Estado previdenciário, endurecimento de políticas penais dependentes de poder estatal, encarceramento e determinação judiciária, condicionam regimes híbridos, como no Brasil.34 As tradições jurídicas e políticas de Brasil e Austrália, por exemplo, permitem identificar os membros das subclasses sociais como vítimas de mudanças estruturais sobre as quais eles “Promotor aconselha policial a melhorar mira para matar ladrão”. Reportagem, Folha de S. Paulo, 17 set. 2011. Liane Rozzell, Restorative justice international (grupo de debates), julho de 2012. 34 P. A. Hall e D. Soskice, An introduction to the varieties of capitalism, Varieties of capitalism (Hall e Soskice, org.). Oxford University Press, 2003; M. Tonry, Thinking about crime: sense and sensibility in American penal culture. Oxford University Press, 2004; N. Lacey, The prisoners' dilemma: political economy and punishment in contemporary democracies. Cambridge University Press, 2008; PSN, Regimes político-econômicos, Direito e globalização: autonomia ou engate estrutural? Departamento de Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. 32 33 Página 11 de 14 não têm qualquer influência. São considerados, portanto, “gente como a gente”, seus filhos são também “nossas crianças”, pois a sua situação atual é patogênica, passível de ser remediada por políticas públicas. Consequentemente, por conta dessa tradição, a Austrália, mesmo sendo um dos primeiros países do mundo a adotar políticas criminais neoliberais, depois de algum tempo as repeliu para implementar medidas de objetivos específicos: redução de reincidência mediante aumento das oportunidades de emprego e renda, redução dos riscos relacionados com o consumo de álcool e drogas, justiça restaurativa, parcerias para a reintegração de infratores, etc. 35 Enquanto isso, no Brasil ocorria algo parecido. O nível de emprego cresceu enormemente, mas desvinculado de políticas mais amplas, teve impacto apenas simbólico, à exceção dos trunfos angariados pela mensagem de que o Estado brasileiro se preocupa com as condições de vida de todos os seus cidadãos. 36 Isso não quer dizer, contudo, que somente determinado regime político-econômico torna o país imune à Justiça orientada basicamente à incapacitação dos infratores – e até mesmo quando os excluídos não representam perigo algum (caso recente da internação de imigrantes ilegais em campos de concentração no deserto meridional da Austrália). Afirmamos, em verdade, que o impacto dessa Justiça de exclusão pode ser abrandado de forma eficaz, como no caso da resposta das autoridades australianas ao consumo ilegal de drogas – bem diferente da abordagem militarista empregada com entusiasmo e aplicação pelos Estados Unidos e outros países: Uma ameaça é concebida e simultaneamente identificada com algumas fontes de risco (estrangeiros produtores de drogas, traficantes internacionais em países de democracia fracassada, drogas perigosas cujas propriedades “escravizam” os indivíduos, “monstros” – geralmente negros e latino-americanos – que comercializam e usam o produto), para compor uma agenda com objetivos morais e militares. O resultado é exclusão pela via das armas, com destruição ou neutralização dos identificados com fontes de risco que representam o “mal”. 37 As diferenças de abordagem também são de ênfase. A Justiça americana prioriza técnicas para enfrentar (e eliminar) riscos específicos associados à composição de substâncias e a categorias ou tipos de pessoas. No caso australiano, por outro lado, são concebidas estratégias de objetivos a longo prazo, focadas em modos operacionais de minimização dos riscos de saúde, corrupção, propriedade, produtividade, etc., criados pelos contextos e modos de fabricação, fornecimento, consumo e difusão das drogas. A ação do sistema de justiça é mínima, mediatizada por tecnologias e programas com os objetivos específicos acima elencados. Expedientes que permitiram refrear o crescimento de seus índices de encarceramento 38, ao J. Pratt, Governing the dangerous. Dangerousness, law, and social change. Federation Press, 1997. Perry Anderson, Lula’s Brazil. London Review of Books, 7 (31). 2011. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/nec/n91/a02n91.pdf 37 Pat O’Malley, Globalising risk? Distinguishing styles of neoliberal criminal justice in Australia and the USA. Criminal justice and political cultures. National and international dimensions of crime control (T. Newburn e Richard Sparks), Willan, 2004: 39. 38 Capacidade de gerenciamento que pode ser medida, por exemplo, pelo nível de ocupação das prisões, em números oficiais: 105% na Austrália (2000), 166% no Brasil (2010). International Centre of Prison Studies, 2011. 35 36 Página 12 de 14 passo que no Brasil, cujas taxas já foram menores que as australianas, com o recrudescimento das fórmulas políticas e econômicas neoliberais praticamente quadruplicaram. Índices de encarceramento por 100 mil habitantes Austrália Brasil Ano Índice Ano Índice 1992 89 1992 74 1995 96 1995 92 1998 107 1997 102 2001 116 2001 133 2004 120 2004 183 2007 129 2007 220 2011 129 2011 260 4. Síntese e conclusão A justiça restaurativa no Brasil foi a princípio proposta apenas com mais um utensílio em uma mesma caixa de ferramentas: o Projeto Jundiaí: viver e crescer em segurança, com múltiplas vertentes, quadrienal (um ano de planejamento e três de implementação), conjugando teoria e prática 39, ação afirmativa e pesquisa científica. Promovia um experimento social controlado com 26 escolas (aproximadamente 38.000 alunos), para testar um programa de melhoria de condutas e prevenção de desordem, violência e criminalidade. Os objetivos práticos incluíam (1) ajudar as escolas a estabelecer capacidade de auto-regulação da conduta de seus alunos, mediante normas inteligíveis, expectativas claras e condições físicas de segurança adequadas; (2) encorajar as famílias a estabelecer disciplina e vínculos emocionais nítidos e consistentes. Os resultados esperados: (1) aumentar a transparência das normas e a consistência da sua aplicação; (2) melhorar de forma sensível a organização e a administração das salas de aula; (3) incrementar a capacidade da escola de promover comportamentos adequados e elevar a frequência de sua comunicação com as famílias e a comunidade. 40 O Projeto percebia deficiências próprias a determinadas escolas e as integrava em uma matriz de transformação institucional gerada por protagonismo e corresponsabilidade de todos os atores, capacitando-os a transformar a realidade e melhorar as condições de existência mediante ações estratégicas, sistêmicas e multiinstitucionais. Criou, dessa maneira, “um novo sistema de disciplina e organização para as escolas brasileiras”, incorporando os componentes do empreendimento em um modelo para “resolver conflitos e problemas disciplinares, na ‘Paradigma de médio alcance’ que requer ativa participação da cidadania em “áreas anteriormente exclusivas do Estado, promovendo confiança nas reformas e na possibilidade de futura cooperação entre governo e comunidade”. Lynette Parker, op. cit. 40 PSN, Câmaras restaurativas: A Justiça como instrumento de transformação de conflitos. Encontros pela Justiça na Educação (Afonso A. Konzen, org.), MEC/Banco Mundial, 2000: 601-639. Variações tiveram efeito em projetos de Mairiporã, Guarulhos, Heliópolis, São Caetano do Sul, Campinas. 39 Página 13 de 14 perspectiva da construção de um sentido de ordem e segurança nas escolas”. 41 Na atualidade, esse modelo de “controle da escola pela própria escola” 42 pode estar ressurgindo, por exemplo, com a gradativa implementação do Sistema de Proteção Escolar na rede pública estadual de São Paulo. Nela, destaca-se o “professor mediador escolar e comunitário”, profissional cujas atribuições incluiriam “práticas de mediação de conflitos”, “ações e programas de justiça restaurativa”, análise de “fatores de vulnerabilidade e de risco” etc. 43 Por enquanto, contudo, o que a evolução confirmou foi apenas JR como ferramenta de atendimento, conforme preconizado na fórmula “se o crime machuca, a justiça deve curar”, que deveria tornar o encontro entre quem feriu e quem foi ferido o âmago do processo de fiat justitia. 44 Foi assim na Inglaterra, embora o próprio ministro da Justiça afirme que justiça restaurativa deva não somente cuidar de traumas, incluindo “traumas de crimes no futuro”, mas também abrir caminhos para “romper o ciclo da reincidência, economizar o dinheiro do contribuinte, e reabilitar o infrator”. Tudo isso baseado talvez nos índices positivos dos procedimentos JR acerca da satisfação das vítimas e, em escala bem menor, sobre a conduta positiva dos infratores pós-JR. Daí a disposição do governo de Sua Majestade em seguir implantando JR em bases localizadas em cada vez mais áreas e na maior parte das circunstâncias envolvendo crimes de menor potencial ofensivo, treinar 18 mil policiais e gastar quase dois milhões de libras na capacitação de servidores no sistema prisional e na Justiça de Infância e Juventude. 45 Justiça restaurativa essencialmente como atendimento parece estar decidido também pela sua inclusão na tendência pró-vítima, manifesta desde os anos setenta na legislação penal européia – assim como na Argentina. A saber, (a) obrigação da polícia de incluir no inquérito informações sobre as vítimas; (b) direito de a vítima anexar declaração e se manifestar em juízo; (c) menos penas menores e mais medidas extrajudiciais; (d) “transação pela promotoria” em casos de condenação improvável, falta de provas, interesse público, considerações técnicas; (e) persecução suspensa até que as condições sejam satisfeitas no tempo estabelecido pela promotoria, quando de compensação integral ou parcial dos danos, prestação de serviço não remunerado, medida sócio-educativa; (f) vítimas podem requerer reparação durante o inquérito; (g) projetos JR para tratar traumas e sentimentos de culpa (atualmente em mais de 60% dos casos), embora sem nenhuma influência no processo ou na sentença 46, de modo a "expandir além do juridicamente relevante, ao que está oculto ou subentendido”.47 Lynette Parker, El uso de práticas restaurativas en América Latina. Justicia restaurativa en Costa Rica. Acercamientos Teóricos y Prácticos (F. B. Acevedo e S. C. Vargas, org.), Comisíon Nacional de Mejoramiento de la Justicia (Costa Rica), 2006: 78-81. 42 Renato Tadelli Pereira, Projeto Jundiaí, relatório semestral do gerente de campo, agosto, 1998. 43 Resolução SE-1, de 20-1-2011 44 John Braithwaite, Restorative justice and de-professionalization. The Good Society, 13 (1), 2004: 28–31. 45 The future place of restorative justice in the criminal justice system, Grupo Parlamentar Pluripartídário sobre Assuntos Penais, jul. 2012. 46 PSN, curso de especialização em ciências penais, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, abril de 2011. 47 J. Braithwaite, op. cit. 41 Página 14 de 14 Nada a ver, portanto, com justiça restaurativa como “matriz de transformação institucional” ou “promessa de amplas transformações para a sociedade”, que os observadores mais atentos reconheciam nas minhas propostas.48 Muito a ver, no entanto, na mais conhecida iniciativa brasileira, cada vez mais inserida na “rede de atendimento ao adolescente em conflito com a lei a partir do sistema de justiça” e articulada com os demais sistemas sociais mediante políticas de Segurança, Assistência, Educação e Saúde. 49 Tudo a ver, por fim, com uma justiça restaurativa focada em subjetividades, psicologizante e relativista (todos os pontos de vista são igualmente válidos), componente menor de um estado de permanente tensão entre o modelo terapêutico e o modelo retributivo de justiça, direitos do infrator e necessidades da vítima, o dever de proteger a sociedade e a obrigação de reabilitar o execrado. 50 A solução dessas contradições, conforme ficou estabelecido neste curto ensaio, parece residir na disposição dos gestores de executar o que na Física e na Química se conhece por salto quântico, que ocorre quando uma partícula ganha energia, o movimento se acelera e os elementos se afastam do núcleo originário. No caso da justiça restaurativa, cheia de energia graças a décadas de experiência e debate, o “salto” seria a evolução do conceito primitivo de responsabilidade, ainda formatada segundo o padrão retributivista, à noção de responsabilidade coletiva, propriamente restaurativa. Algo obtido em larga margem já na primeira experiência JR no Brasil, há mais de trinta anos, pelo regime penitenciário conhecido pela sigla APAC: A metodologia APAC (Associação de Proteção e Assistência ao Condenado) cria um sentido de comunidade que constrói responsabilidade e uma ética de atendimento nos próprios prisioneiros. Primeiramente, eles aprendem a cuidar e a ser responsáveis observando os voluntários e os colegas que assumem a obrigação de administrar a penitenciária. Em segundo lugar, toda atenção é dada igualmente às diversas dimensões da existência dos prisioneiros, inclusive do ponto de vista espiritual. Terceiro, à medida que os prisioneiros respondem positivamente à confiança que lhes é depositada, adquirem maiores responsabilidades pelo funcionamento da penitenciária. 51 Soli Deo Gratia Lynette Parker, Developing restorative practices in Latin America. XI United Nations Congress on Crime Prevention and Criminal Justice, Bancoq, 2005: 11-12; Leoberto N. Brancher, comunicação pessoal, dez. 2006. Projeto Justiça para o Século 21, http://www.justica21.org.br/j21.php?id=99&pg=0 50 Marian Liebmann, Restorative justice: how it works. Jessica Kingsley Publishers, 2007: 33 51 Mario Ottoboni, Kill the criminal, save the person: The APAC methodology. Prison Fellowship International, 2000; Daniel W. Van Ness, Trends in prisons around the world and in Latin America. Seminario-taller: Análisis y perspectivas del sistema penitenciario en Panamá, PFI, mai. 2001. 48 49
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