O MINISTÉRIO ORDENADO COMO SERVIDOR DA UNIDADE NA

Transcrição

O MINISTÉRIO ORDENADO COMO SERVIDOR DA UNIDADE NA
O MINISTÉRIO ORDENADO COMO
SERVIDOR DA UNIDADE NA IGREJA:
hierarquia como serviço e orientação
para garantir o trabalho comum na
comunidade cristã
The Ordained Ministry as servant of the unity in the Church: hierarchy as a service
and guidance to ensure the common work within the Christian community
Carlos Eduardo Alves *
RESUMO: Para realizar a missão de ser Sacramento Universal de Salvação no mundo, a Igreja
conta com os diversos ministérios nela presentes. Dentre eles, está o ministério ordenado, que
tem na Igreja a missão de garantir a unidade, daí serem os presbíteros os servidores da unidade,
pastoreando o povo de Deus e o orientando para realizar o trabalho evangelizador em comunhão.
Tais ministros são ordenados pela Igreja, e não auto-intitulados; são escolhidos e confirmados
para garantirem a unidade em todos os serviços que a comunidade necessita; exercem seu poder
como serviço/autoridade e não como dominação. Para realizar seu ministério, devem basear-se no
modelo de Jesus dos evangelhos, que se fez o Servo de YHWH, para entregar a vida pelos seus. Só o
amor capacita a Igreja a trabalhar em profunda unidade, e só o amor torna possível que a autoridade
seja exercida pelos ministros ordenados em favor do serviço comum, sem o perigo de oprimir os
fiéis a eles confiados.
PALAVRAS CHAVE: Ministério ordenado. Autoridade. Comunhão. Unidade. Serviço.
ABSTRACT: To carry out the mission of being Universal Sacrament of Salvation in the world, the
Church has various ministries. Among them is the Ordained Ministry, whose mission is to ensure
the unity in the Church. Hence, these ministers should be the servants of unity, ministering God’s
people and guiding them to perform the work of evangelization in communion. These ministers
are ordained by the Church, and not self-appointed. They are chosen and confirmed to ensure
unity in all the services that the community carries out, exercising their power as authorities and
not as dominators. To accomplish this ministry they should be based on the model of the Jesus
in the Gospels, who became the Servant of YHWH and gave his life for his own. Only love enables
the Church to work in deep unity, and love alone makes possible for the authority to be carried
out, by the Ordained Ministers, in favor of the common service, without the danger of oppressing
the faithful entrusted to them.
KEY WORDS: Ordained Ministry, authority, communion, unity, service.
* Carlos Eduardo Alves é presbítero diocesano, bacharel e professor de teologia. Tem Especialização em Teologia
Contemporânea.
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INTRODUÇÃO
Entre os diversos ministérios na Igreja estão os desempenhados pelos
ministros ordenados, também chamados, principalmente pelos documentos
oficiais da Igreja, de ministérios hierárquicos, já que só são desempenhados
por cristãos que fazem parte da hierarquia da Igreja. De acordo com um dos
documentos da CNBB (1981, p. 55), desde os tempos apostólicos o ministério
ordenado se diversifica em três graus: o episcopado, o presbiterato e o diaconato,
e com as Cartas de Santo Inácio de Antioquia, por volta do ano 110, esta tríade é
fixada (OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 55).
As comunidades cristãs sempre tiveram líderes ou pessoas encarregadas
do governo, não se consta que tenha havido comunidades anárquicas ou acéfalas,
sem governo nem autoridade. (CASTILLO, 1990, p. 295)
A Igreja entende os ministérios ordenados como de instituição divina:
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“Cristo nosso Senhor, com o fim de apascentar o povo de Deus e
aumentá-lo sempre mais, instituiu na sua Igreja vários ministérios
que se destinam ao bem de todo o corpo. [...] instituiu a Santa Igreja,
enviando os apóstolos como ele próprio fora enviado pelo Pai e quis
que os sucessores destes, os bispos, fossem os pastores da sua Igreja
até o fim do mundo.” (LG, 18)
Também os entende como especial serviço ao povo de Deus, os ministros
que são revestidos do poder sagrado estão a serviço de seus irmãos (LG, 18). Daí
pensar o ministério ordenado não como o que manda e desmanda na Igreja, mas
como o que serve a Igreja desempenhando o papel de co-ordenador, que ouve
e sente a realidade para ajudar os cristãos a perceber o melhor caminho para
continuar fiel ao projeto de Deus, papel de pastor que caminha com suas ovelhas
e percebe o terreno em que ele e elas estão pisando, estando atento para que
nenhuma (e nem ele próprio) caia nalgum buraco.
Este artigo procurará apresentar o ministério ordenado sob a perspectiva
conciliar, embasada no modelo de Cristo que assumiu os moldes do servo de
YHWH para desempenhar seu ministério. Mostrando que os bispos, padres e
diáconos são ordenados pela Igreja, não se auto-intitulando servidores dela, mas
sendo escolhidos por ela para desempenhar tal serviço. Ao se tomar consciência
desta escolha e deste mandato eclesial, apresentar-se-á seu papel principal, o
de garantidores da unidade, servidores da harmonia, que devem exercer seu
poder como autoridade-serviço e não como meio para dominar-oprimir. A seguir,
mostrar-se-á o modelo para esta visão, o modo como Jesus realizou sua missão,
assumindo um papel de servo, que deve ser a inspiração para todos os que agem
in persona Christi, cabeça da Igreja, que fez de seu poder serviço e ordenou que
seus apóstolos e discípulos fizessem o mesmo. Por fim, refletir-se-á sobre a fonte
da unidade: a Trindade, e sobre o amor que torna possível fazer da Igreja ícone
do mistério trinitário, ajudando a entender que sem amor não se faz unidade,
e que os ministros ordenados precisam colocar o amor em primeiro lugar, em
suas convicções e ações, para conseguir realizar seu papel de serem servidores da
unidade.
1. Ministros ordenados e não auto-intitulados
Os ministérios dos bispos, presbíteros e diáconos é uma participação
especial no sacerdócio de Cristo, que se difere do sacerdócio comum dos fiéis,
tanto essencialmente quanto em grau (LG, 18), mas que se ordenam um para
o outro. Para que tais ministros desempenhem seu ministério é necessário que
recebam da Igreja o sacramento da Ordem, assim ninguém se auto-intitula
ministro ordenado, mas é instituído pela comunidade eclesial, que reconhece
nele o carisma e o chamado de Deus para o desempenho de tal função.
O Novo Testamento não descreve claramente como a Igreja Primitiva
destinava alguém para o ministério eclesial. Pelo que parece, a Igreja Primitiva
teve duas formas de ordenação, que talvez nem existissem desde o começo. Em
torno de Tiago, em Jerusalém, havia um conselho de anciãos, a recepção de novos
ministros nesse conselho se fazia por um rito de entronização, as comunidades
paulinas, de outro modo, conhecem o rito da imposição das mãos (FEINER e
LOEHRER, 1975, p. 171).
O gesto de imposição das mãos, mesmo que presente em quase todos
os povos e religiões (TABORDA, 2011, p. 241), se percebe na tradição bíblica, no
Antigo Testamento como gesto de bênção, gesto sacrifical, transferência de algo
do sujeito que impõe as mãos ao que recebe a imposição, imposição de uma
autoridade (TABORDA, 2011, p. 242-244). No Novo Testamento é um gesto de
bênção, de doação do Espírito, expressão da comunhão eclesial, transmissão da
força (TABORDA, 2011, p. 245). Na sinagoga era o gesto usado para a instituição
dos doutores da Lei. O Novo Testamento mostra três fatos de tal imposição
significando uma ordenação para o ministério eclesial: a ordenação dos sete
diáconos (At 6, 3.8), o envio de Paulo e Barnabé pela Igreja de Antioquia (At 13,
1-4) e Timóteo, que recebera o carisma pela imposição das mãos do presbitério
(ITm 4, 13). A imposição das mãos começou a existir nas igrejas da diáspora e,
por fim, na Igreja toda, depois que desapareceram as comunidades judeu-
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cristãs. O cristianismo se apropriou do gesto judaico e lhe deu uma forma nova,
expressando que o detentor do ministério eclesial está, mediante os apóstolos,
em ligação imediata com o próprio Cristo (FEINER e LOEHRER, 1975, p. 172).
No decurso do século XI, a ordenação é incluída entre os sacramentos.
A Ordem é um sacramento único, recebido originalmente e com plenitude
de poderes pelo bispo e comunicado parcialmente, pelo bispo, aos seus
colaboradores, os presbíteros e os diáconos (BRUNETTI, 1986, p. 85). É marca
característica na celebração da Ordem o ministério colegiado e a participação
da comunidade. Em nenhuma das narrações da imposição das mãos para a
instituição de ministros eclesiais, na Sagrada Escritura, está ausente a participação
dos Doze, pelo contrário, sua ação é fundamental, não a de um entre eles, mas
sempre se fala dos apóstolos (TABORDA, 2011, P. 247). A tradição cristã conservou
a característica colegial da ação de impor as mãos, tanto na ordenação episcopal,
quanto na presbiteral.
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A oração de ordenação episcopal usada atualmente é baseada na oração
ordenatória da Tradição Apostólica de Hipólito de Roma (FEINER e LOEHRER,
1975, p. 172). A epiclese da oração de Hipólito nomeia os dons impetrados para o
ministro, afim de que possa executar seu serviço.
Os dons não são os mesmos para os bispos, os presbíteros e os diáconos.
Para o bispo é pedida a graça do zelo salvífico, de fidelidade sacerdotal no serviço
de Deus pelo culto de louvor e oração, bem como a bonomia misericordiosa para
com os pecadores (PONTIFICAL ROMANO, 2001, p. 78). O bispo preside a ação de
graças, oferece o sacrifício de louvor, preside a comunidade.
A oração de ordenação associa os presbíteros, no essencial, ao múnus dos
bispos, a exemplo dos anciãos eleitos por Moisés, que foram associados a ele para
assisti-lo em todas as suas tarefas. Pede-lhes o dom de se tornarem cooperadores
da ordem episcopal, dispensadores dos mistérios divinos, unidade ao bispo para
implorar a misericórdia divina em favor do povo a eles confiados e de todo o
mundo. (PONTIFICAL ROMANO, 2001, p. 114-115)
Os diáconos não são ordenados para o sacerdócio e o pastoreio, mas para
o serviço. A prece de ordenação pede para eles a consagração para o serviço do
altar, para que resplandeçam neles as virtudes evangélicas, o amor, a solicitude
com os doentes e os pobres, a autoridade discreta, a simplicidade de coração e
uma vida guiada pelo Espírito. (PONTIFICAL ROMANO, 2001, 158-159)
À luz dessas indicações, evidencia-se que o bispo só é capaz de
corresponder plenamente aos seus compromissos, mediante a cooperação
de todos os ministros que tem ao seu lado, e que os presbíteros e diáconos só
exercem legitimamente seus ministérios em comunhão com o bispo.
Os dons pedidos na prece de ordenação se concedem em atendimento
das orações de todo o povo.
“Os consagradores não transmitem a Ordem como se ela se originasse
neles mesmos, nem transmitem um poder que pudessem passar
adiante por si mesmos a um outro. É o Pai quem concede a sua graça,
é Cristo quem transmite seus poderes, é a comunidade que participa
nessa transmissão.” (FEINER e LOEHRER, 1975, p. 174-175)
O ministro ordenado recebeu o ministério no seio da comunidade e terá
de exercê-lo a serviço dela.
2. Ministros da unidade
É papel dos ministros ordenados coordenar a Igreja, garantindo que em
todos os seus atos se mantenha a vontade de Deus e se realize a continuação da
missão salvadora de Cristo. Para que isso seja possível, é necessária a unidade de
todos os membros da comunidade eclesial, superando as diferenças de ideias,
visões de Igreja, interesses pessoais ou de grupos particulares. Respeitando as
diferenças entre os membros, deve o ministro ordenado ajudar a comunidade
a compreender a proposta comum e trabalharem juntos, para que o objetivo
evangelizador de realize. Para isso o ordenado recebeu autoridade sobre
o rebanho, para garantir que as ovelhas se mantenham fiéis à voz de seu
Pastor, Jesus Cristo, ouvida através dos pastores por ele enviados, os ministros
ordenados.
Reger a Igreja é mantê-la na unidade, na comunhão que a caracteriza
como a Igreja que recebe sua unidade da unidade da Santíssima Trindade. A
presidência ou direção da Igreja é um serviço à unidade, para que o bem de um
seja o bem de todos. O serviço da unidade é comparável ao do regente numa
orquestra, ele não é a orquestra, mas a orquestra se reconhece nele, e ele sem
a orquestra não é nada (TABORDA, 2002, p. 557). Tanto ele, quanto a orquestra,
obedecem à mesma partitura (no caso da Igreja, a Palavra de Deus).
A função do ministro ordenado não é pegar para si todas as funções, mas
despertar a todos e a cada um a que assumam o serviço, na diversidade de seus
carismas, na complementariedade mútua, no respeito e na valorização de todos
os carismas. Criar uma ordem harmônica na comunidade eclesial, em que cada
um exerça seu poder e sua liberdade.
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Pregar a Palavra não é função específica do ministro ordenado, o específico
dele é a responsabilidade de garantir a pregação, e garanti-la na unidade da fé, em
comunhão com as demais igrejas, com a Igreja de Roma e com a fé dos apóstolos
(TABORDA, 2002, p. 559). Guardião da fé para que não haja cismas nem divisões,
pois é ele ministro da unidade.
Os sacramentos são a celebração da práxis da Igreja à luz da memória de
Cristo. O ministro da unidade exerce na celebração dos sacramentos, sobretudo
da Eucaristia, seu serviço em favor da unidade. Somente no sacramento do
matrimônio a função de garantir a unidade não é do ministro ordenado, mas dos
noivos, porque na família, Igreja doméstica, não é alguém de fora, mas de dentro,
que deve fazê-lo.
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A unidade da Igreja é obra do Espírito Santo, e a função de servir à unidade
também vem dele, daí a necessidade de se receber a função de ministro da
unidade pela ordenação sacramental. O ministro é representante da Igreja, não
por obra da Igreja, mas do Espírito Santo, só pode representar Cristo estando
inserido na fé e na comunhão da Igreja, estando dentro da comunidade.
Nessa comunidade, Corpo de Cristo, o ministro representa
sacramentalmente Cristo-cabeça. O poder de Cristo é exercido por um membro
do corpo, irmão entre os irmãos, que remete ao poder de Cristo Ressuscitado
que está no corpo todo e em cada membro, segundo o carisma de cada um. O
ministro é ordenado para atuar no poder de Cristo existente na comunidade.
O ministro não divide poderes na Igreja, pois o poder não é dele e ele não
tem o direito de dividir o poder que não está nele, pois está no todo. Cabe-lhe
promover e reconhecer o exercício desse poder por todos os cristãos, de acordo
com o ministério de cada um (TABORDA, 2002, p. 561-562). O ministro ordenado
age in persona Christi, representa a Cristo, representando a Igreja unida na fé e
no amor.
As comunidades querem seus ministros em seu seio, querem que eles
caminhem com elas, assumam suas buscas e seus problemas, participem de suas
expressões populares e respeitem as demais funções que vão surgindo dentro do
povo de Deus. (BOFF, 1986, p. 61-62)
3. Autoridade como serviço
Pensadas essas duas características do ministério ordenado: ser dado
pela comunidade eclesial e ter o papel de garantir a unidade da comunidade,
é necessário refletir sobre a concepção de autoridade que reina no dia a dia de
nossas comunidades.
Apesar de se terem passados 50 anos do início do Concílio Ecumênico
Vaticano II e de a Igreja ter se redescoberto como Povo de Deus e Corpo de Cristo,
formada por todos os batizados, na opinião da maioria da população, e até mesmo
dos católicos, a Igreja aparece geralmente como uma instituição repousando
sobre um grupo de funcionários responsáveis, aos quais faz frente um grupo de
usuários. Existe a Igreja (o papa, os bispos e os padres) e seus fregueses.
A Igreja ainda aparece como representada pelo clero. Basta lembrar os
noticiários durante a transição entre o papado de Bento XVI e Francisco: as notícias
eram de uma Igreja dividida, não porque se percebessem discordâncias entre
seus membros todos (fiéis e hierarquia), mas por problemas na Cúria Romana,
como se a Igreja fosse resumida à estrutura administrativa do Vaticano ou fosse
os cardeais e o papa.
Uma comunidade eclesial consciente de seu papel e de sua essência talvez
se assuste com essa concepção exclusivista, mas é necessário lembrar que tal
opinião é resultado de definições dadas pela própria Igreja, como por exemplo:
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“A Igreja é, em sua essência, uma sociedade desigual, isto é,
compreendendo duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho,
aqueles que ocupam um cargo nos diferentes níveis da hierarquia
e a multidão dos fiéis. E tais categorias são tão distintas entre si,
que apenas no corpo pastoral residem o direito e a autoridade
necessários para promover e dirigir todos os membros em direção
da finalidade social. Quanto à multidão, não tem outro direito senão
o de se deixar conduzir e, como rebanho dócil, seguir seus pastores.”
(PIO X, Encíclica Vehementer apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 12)
“Na Igreja de Deus, pela vontade manifesta de seu divino fundador,
distinguem-se, de modo mais absoluto, duas partes: a discente e a
docente, o rebanho e os pastores [respectivamente]” (LEÃO XIII, 1885
apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 12)
Ou por informativos e pessoas ligados à Igreja:
“Sobre o plano da fé, o bispo é doutor. O diálogo entre o bispo e os
leigos cristãos é possível, todavia, neste terreno, o leigo somente
pode receber e ser ensinado” (Masses auvrières, jan. 1960, editorial
apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 13)
“O povo fiel não tem senão deveres de submissão a cumprir com
relação a seus diversos chefes hierárquicos. A massa do povo fiel
é essencialmente governada e radicalmente incapaz de exercer
uma autoridade espiritual, nem diretamente, nem por delegação.”
(D.GUÉRANGER, 1873 apud: OS MINISTÉRIOS, 1981, p. 13)
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Mesmo sendo citações de textos bem anteriores ao Vaticano II e à nossa
época, não se pode descartar a força que tais definições e ideias tiveram ao longo
de décadas e até séculos, inculcando a ideia de que o clero está mais próximo de
Deus e os leigos nunca vão ter a mesma proximidade, vivem no mundo (mau) e
por isso precisam rezar muito para serem ouvidos por Deus. Basta prestar atenção
no modo de falar do povo, inclusive católico: “assistir à Missa”, “acolher o nosso
Celebrante...” ou nos textos de alguns sites neo-conservadores, que exaltam a
Grande Disciplina, como Salvem a Liturgia! (www.salvemaliturgia.com) e Montfort
(www.montfort.org.br). A Igreja ainda é vista como governantes e submissos,
aqueles são os clérigos e esses são os leigos. O saber, o poder e a celebração estão
concentrados no clero.
No Vaticano II a Igreja foi definida de um modo diferente desse:
primeiramente ela é definida como Mistério e Povo de Deus e somente num
segundo momento é apresentada sua organização. Os ministérios podem ser
compreendidos a partir do que a Igreja é, e é ela que os faz, têm sentido em
função do serviço prestado à comunidade. A Igreja não deve ser compreendida
a partir dos ministérios, como se fossem eles (e neste caso, os ordenados) que a
fizessem.
Em nossos dias, quando parece retornar a sede por uma Igreja do
poder, do brilho, da glória exterior, mais que nas últimas décadas, é necessária a
passagem de uma Igreja fundamentada sobre o poder do clero para uma Igreja
com responsabilidades comuns, suscitando todos os ministérios necessários para
o serviço do evangelho, a fim de cumprir sua missão de ser sacramento do Reino,
sacramento universal de salvação, Igreja de Comunhão. Parece que a providência
de Deus nos providenciou augusta ajuda para se resgatar esta visão através do
Papa Francisco, que tem chamado a atenção para o essencial papel da Igreja, de
ser cada vez mais servidora.
Não se trata de repartir e conceder aos leigos pequenas responsabilidades,
nem de achar que o papel da hierarquia é dispensável. Trata-se de reconhecer a
própria natureza da Igreja como povo de Deus e a missão que cabe a todos e
a cada um, segundo sua vocação e seus carismas. A Igreja que deve realizar a
presença sacramental de Cristo no mundo, deve realizar em si mesma a verdade
da comunhão de fé e caridade, e a comum responsabilidade de todos os cristãos
na tarefa de ser instrumento de encontro com Deus e dos homens entre si
(LARRABE, 1992, p. 6-7). Os ministros ordenados estarem atentos aos carismas
de cada um, para serem os primeiros incentivadores para a prática ministerial de
todos os membros do povo de Deus, e os trabalhadores que ajudam a diversidade
dos serviços a caminharem em comunhão profunda, real e frutuosa.
É importante prevenir-se do perigo de confundir unidade e comunhão
com uniformidade. Onde todos fazem de tudo, pensando que todos podem
exercer todos os ministérios, acontece o contrário do projetado: se todos têm
todos os ministérios, nessa comunidade ninguém tem ministério específico.
Não há como exercer um serviço reconhecido pela Igreja e em nome da Igreja,
pois ninguém dá espaço para que alguém seja realmente ministro, já que todos
querem sê-lo.
Numa Igreja que valoriza todos os seus ministérios a autoridade continua
existindo, pois cada ministro (leigo ou ordenado) tem a autoridade que lhe
compete e a exerce sempre que exerce seu ministério específico. A autoridade, sob
este ponto de vista, que é o defendido neste artigo, não é direito de dominação de
um sobre outros, é, sim, dever de serviço do ministro em relação à comunidade.
“A melhor autoridade é aquela que faz muito pouco, mas que lembra
aos outros o essencial de sua função e de sua vida, que os chama
para assumir responsabilidades, os sustenta, os confirma.” (VANIER,
1982, p. 183)
No serviço específico de cada um, a comunidade percebe a necessidade
de respeitar o desempenho do papel de cada ministro, recebendo as orientações
dos pastores ordenados não como imposição, mas como ajuda para incentivar
a cada um para que exerçam seus ministérios. Sem centralizar tudo nas mãos
de poucos e sem deixar de repartir as tarefas, permitindo que cada um sirva à
comunidade em algum aspecto específico.
A autoridade nasce do serviço exercido em favor da unidade da
comunidade. O reconhecimento da autoridade deve ajudar cada membro da
comunidade a ser ele mesmo e a exercer seus dons próprios, para o bem de
todos. A hierarquia tem por dever dirigir o Corpo de Cristo, agindo na pessoa de
Cristo-cabeça, o que não significa que ela seja dona do corpo ou do rebanho,
mas é sim a servidora de todo o corpo, cuidando para que cada membro cumpra
seu papel unido aos outros membros, respeitando a diversidade de cada um e
tendo autoridade para incentivar os servidores que ajudam o rebanho a “pastar
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por verdes prados”, e para reprimir, na caridade e na misericórdia, os que se
esquecerem de que o rebanho tem um pastor, Jesus Cristo, ou que o corpo tem
vários membros, não permitindo que os interesses individuais ou particulares
impeçam a comunidade toda de caminhar unida.
Os três graus do ministério ordenado exercem tal serviço de garantidores
da unidade do corpo eclesial.
Os bispos são pastores e, no exercício deste ministério, devem comportarse como quem serve, como pastores que conhecem suas ovelhas e por elas são
conhecidos e como pais que agem com amor e solicitude para com todos (CD, 16).
Agindo assim, o bispo poderá tornar sua Igreja uma família que vive e caminha
na união e na caridade, consciente de seus direitos e deveres. Também é de
extrema importância que o bispo trate com carinho especial os sacerdotes, que
compartilham de suas funções e de sua solicitude no pastoreio da Igreja local, não
bastando ser ele a cabeça do presbitério, é preciso que seja também seu coração.
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O bispo e o presbítero não são mediadores, mas ministros do único
Mediador. O sacerdócio de Cristo é uma mediação descendente, exprime e realiza
visivelmente a benevolência de graça do Pai com os seus (SESBOÜÉ, 1998, p. 82).
Os presbíteros, como senado do bispo, ajudam-no a governar a Igreja Local e
constituem com o bispo um único presbitério (LG, 28). Assim, o presbiterato é
primeiramente colegial, sua experiência de unidade com a Igreja Local autoriza os
presbíteros a cuidar da unidade em cada uma das comunidades a eles confiadas.
Nenhum presbítero pode exercer autenticamente o ministério presbiteral fora
da comunhão com o presbitério (CNBB-CNC, 1985, p. 24). O bispo preside, o
presbítero co-preside. A diferença básica entre presbítero e bispo reside no
grau de responsabilidade que cada um tem por uma Igreja Local e na relação
mútua. O bispo condensa em si o poder da Igreja Local, o poder do presbítero é
fazer o bispo presente numa parcela da Igreja Local, ele é cooperador da ordem
episcopal. Nesta relação entre presidir e co-presidir a Igreja está a diferença entre
bispo e presbítero (TABORDA, 2002, p. 566-570). Ambos, em profunda comunhão
de coração e atitudes, cuidam de garantir a caminhada comum do rebanho,
servindo ao povo de Deus pela dedicação em fazê-lo ouvir a voz do Bom Pastor.
A função de representante de Cristo não separa o presbítero da comunidade
dos fiéis, dos quais permanece irmão (PO, 9). A edificação do Corpo de Cristo é
uma tarefa comum, pela qual todos os fiéis são responsáveis, o presbítero é o
presidente da comunidade, alguém que não absorve e monopoliza as múltiplas
funções e os diversos serviços, mas que os coordena e impulsiona. Quanto mais
exercer sua função em espírito de serviço e comunhão, tanto mais o presbítero
será efetivamente para a comunidade sinal da unidade e comunhão que têm por
origem o próprio Cristo e, com ele, o Pai e o Espírito (CNBB-CNC, 1985, p. 24-25).
O diácono, mesmo fazendo parte dos ministérios ordenados, não é
ordenado para o pastoreio, mas mesmo assim é também servidor da unidade,
“ele constrói a unidade da Igreja a partir dos menos favorecidos” (TABORDA,
2002, p. 571). Esse ministério não encontra sua fonte apenas na generosidade
humana e no desejo de ser útil aos outros, mas se enraíza na caridade que vem
do alto. O diácono é o animador oficial da diaconia de Cristo na Igreja e para o
mundo, é seu serviço unir toda a comunidade para se tornar a “Boa Samaritana”,
mostrar para ela os pobres e servir com ela a eles. Pelo tríplice múnus de servir à
Palavra, à Liturgia e à Caridade, este ministro ordenado pode garantir a unidade:
iluminando a caminhada da Igreja pela Palavra de Deus proclamada, ensinada e
vivida; celebrando a vida com Cristo, através dos atos litúrgicos da comunidade
congregada na comunhão da Trindade; e levando todos os membros do corpo
de Cristo a se saberem irmãos e servidores uns dos outros, preferencialmente dos
pobres e dos doentes.
A autoridade dos ministros ordenados precisa garantir a unidade, sempre
orientada pelo amor e pelo jeito de Jesus agir, pois ele é o primeiro pastor e a
fonte de toda autoridade na comunidade eclesial.
4. Atuação de Jesus como modelo
A mudança de mentalidade, de que a Igreja é servidora do Projeto
Salvador de Jesus, ou seja, do Reino de Deus, e não a controladora da Verdade e
de Deus, fundamenta-se como necessária se a prática de Jesus for o modelo que
a comunidade eclesial segue. Tal compreensão parecia crescer nas décadas de
1970 e 1980, estagnando-se na de 1990 e parecendo regredir na entrada do novo
milênio, principalmente na cabeça do clero mais jovem e dos futuros ministros
ordenados, os seminaristas. Nos últimos anos, voltou a ganhar força a visão de
que é necessário recuperar a “riqueza” da Igreja, como se compreendê-la como
serviçal, diminuísse seu poder ou seu valor. O que parecia ter sido superado,
depois de séculos de um clero aristocrático ou com ilusões de aristocracia, voltou
com toda força, entendendo poder como dominação (ά) e não
como autoridade (ί). Ao se esquecer o modo como Jesus
conduz seu ministério, esqueceu-se também que a verdadeira riqueza da Igreja
está na sua continuidade de missão, inspirada na missão de Cristo, não na
exibição de sua riqueza exterior, seja nos ritos, seja nas vestes ou nos móveis e
prédios. Ser sinal universal de Salvação (LG 48) é seu valor e sua riqueza.
A oposição de Jesus aos modelos religiosos de sua época parece
justamente se basear na constatação da preocupação dos líderes de serem fortes
e dominadores, fundando seu poder na ameaça (saduceus) ou na escravização
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a normas e regras (fariseus, escribas). Chegou Jesus, então, ao ponto de deixar
claro a seus discípulos que “entre eles não deveria ser assim” (Mt 20, 26-28),
quem quisesse ser o poderoso, deveria ser o mais servidor e estar pronto para
entregar sua vida pelos outros, entendendo poder como liberdade perante as
coisas e as pessoas (TABORDA, 2011, p. 47), capacidade de agir em comunhão,
colocando a necessidade do ser humano como razão última de suas decisões.
Não são as coisas que dizem o que devemos fazer, como se o perigo de perdêlas nos obrigasse a destruir tudo e todos para garantir sua posse, deveria ser
sim a pessoa a dizer e decidir o que fazer, para que as coisas respondam à
necessidade do todo, pois se cada indivíduo faz parte do todo, o todo estando
desequilibrado prejudica também o indivíduo. Sendo assim, servir a todos é
garantir o equilíbrio do todo, sendo verdadeira expressão de poder a autoridade
de decidir sobre o melhor, cuidando de toda a estrutura da qual se faz parte,
para que estando todos bem, o indivíduo detentor do poder também garanta
seu bem estar.
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A atuação de Jesus nas Escrituras aparece como a atuação do Servo de
YHWH, servidor da vontade do Pai, centro de suas atenções, sendo servidor de
cada pessoa humana, o que ele entende como sendo a vontade do Pai.
Jesus não teve uma atuação sacerdotal, segundo a compreensão do
sacerdócio aarônico, e nem poderia ter atuado assim, pois não era da raça
sacerdotal (Levi, Aarão), agiu sim de forma antissacerdotal, relativizando tudo
o que não fosse o Pai ou sua vontade, podendo ser acusado de blasfêmia
(TABORDA, 2011, p. 37) pelos fariseus, chefes do povo e saduceus. Sendo que,
se o poder de garantir a ordem na região de Jesus tinha sido dado ao sinédrio
pelo Império Romano, o fato de Jesus criar atrito com tais autoridades e com
os mestres populares deu ao Império condições de acusá-lo de subversão
(TABORDA, 2011, p. 37). Foram estes os dois motivos alegados para a condenação
e morte dele: blasfêmia e subversão.
O ser humano está acima da instituição, que não deve dominá-lo, mas
servi-lo. Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 30-37), Jesus deixa clara essa
visão, quando apresenta o levita e o sacerdote deixando de cuidar da pessoa
humana sob o pretexto de uma exigência ritual da instituição, a proibição de
se contaminar tocando um cadáver ou algumas feridas, valendo mais as regras
de sua função no templo do que a necessidade da pessoa humana. Outro atrito
com o poder sacerdotal aparece na expulsão dos vendilhões no templo (Mc 11,
15-17), o que poderia prejudicar a casta sacerdotal que se servia do comércio
praticado lá para se enriquecer e para garantir seu domínio sobre os fiéis, já que
só eles poderiam oferecer os sacrifícios de reconciliação com Deus, achandose no direito de determinar todos os meios válidos e aceitos para a realização
desses atos.
O único escrito bíblico que afirma que Jesus é sacerdote é a Carta aos
Hebreus, mas mesmo assim, o faz desmontando o conceito clássico de sacerdócio,
mostrando Jesus mais como vítima do que como sacerdote (TABORDA, 2011, p.
39), sendo um sacerdócio não mais ritual, mas histórico, vivencial, existencial.
O culto prescrito na Lei (Hb 8,5), oferecido por uma casta separada, não leva a
Deus. Jesus é o intercessor, verdadeiro sacerdote, não por sua separação dos
demais, mas justamente por se fazer semelhante aos que sofrem (Hb 7, 25; 2, 1718). Cristo oferece-se a si mesmo, é o fim do sacerdócio ritual. Fim, por mostrar
que não é mais a religião ritual, como era compreendida, que torna possível a
comunhão com Deus (significando fim, aqui, término), e fim também porque ele
faz vislumbrar uma nova concepção de sacerdócio, bem mais próxima da que
Deus teria (significando fim, aqui, meta, finalidade).
Não sendo uma prática sacerdotal ritual, a prática de Jesus nos evangelhos
é muito mais próxima da prática do Servo de YHWH.
“O Servo de YHWH renuncia ao poder, porque reconhece que só
chegará ao poder, se todos tiverem acesso ao poder. O Servo sabe
que só pode realizar-se humanamente junto com os outros e, com seu
aniquilamento, está contribuindo a que todos os humanos possam
realizar-se.[...] A missão do Servo de YHWH é por fim à opressão e
destarte contribuir para o progresso humano rumo à realização, e o faz
confiando que todos, mesmo os mais fracos e desprezíveis, têm poder.
É o respeito ao poder dos sem poder.” (TABORDA, 2011, p. 49-50)
O jeito de Jesus agir e demonstrar sua autoridade parece estar muito mais
próximo desta concepção, tanto que após o serviço prestado por ele aos seres
humanos descartados da sociedade de sua época e os ensinamentos por ele
proferidos, o evangelho conclui que ele ensinava como quem tem autoridade (Mt
7, 29). Seu poder não é força, é autoridade. Sua existência pobre e desapegada de
títulos, de condição financeira tranquila, de preocupações com posse de coisas
passageiras, bem como seu modo de agir, convidando os excluídos para realizar
consigo sua missão, colocando em primeiro lugar os que eram postos em último
ou até para fora da realidade, ensinando a ser o último e o servo de todos, tudo
isso mostra o modo de Jesus agir e de entender a autoridade.
Este é o modelo daqueles que na Igreja iniciada com Jesus têm o poder
de conduzi-la, coordenando seus trabalhos, como ele coordenou seu ministério
evangelizador. Jesus sabia de seu poder e o utilizou como serviço, chamando os
vários discípulos e ordenando-lhes que usassem os dons que receberam, cada
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um com sua capacidade, para realizar a vontade do Pai e anunciar a Boa Notícia
de que o Reino de Deus está próximo. Os ministros ordenados, inspirados nele
e ordenados por ele, assumem a continuidade de sua missão, conduzindo a
comunidade, ajudando-a a descobrir os dons e serviços próprios de cada um,
coordenando seus trabalhos para que a realização da pessoa humana seja a
primeira preocupação, e seu encontro com Deus seja pleno, pela compreensão
de sua vontade salvadora imanente e transcendente, “por dentro e por fora”. Na
Igreja a autoridade é poder-serviço, que não se exerce sobre um grupo, mas no
interior de um grupo, neste caso, de uma comunidade, não é imposto pela força,
mas reconhecido pela necessidade de organização e trabalho comum. Assim, o
poder é da Igreja e não do ministro ordenado, é a necessidade da comunidade
que exige do ministro o uso de sua autoridade, que também é serviço com, para
garantir que o serviço da Igreja de iniciar e realizar o Reino de Deus vá sendo
possível de acontecer. Não é simplesmente a vontade do ministro que o faz exigir
algo da comunidade, mas a caminhada da comunidade, comparada à proposta e
ao modelo de Jesus, que faz o ministro conduzir a comunidade (indo junto com
ela) à prática salvadora aprendida com o Mestre.
Entendendo o jeito de Jesus exercer sua autoridade na condução dos seus
discípulos como o modelo do ministério ordenado na Igreja, pode-se completar
esta reflexão com a figura do Bom Pastor, demonstrada por Jesus como sendo sua
própria figura, podendo ser também, já que o ministério ordenado pretende agir
na pessoa de Cristo, a figura-modelo para a realização de seu serviço na Igreja.
Desde os primórdios, a Igreja utilizou a designação de pastor para os
ministros ordenados (TABORDA, 2011, p. 71), mas como a figura bíblica do
pastor também era um título régio, messiânico, ligada ao poder temporal, aqui
precisamos compreendê-la como a compreende o evangelho de João, sob a ótica
do Servo de YHWH: o Bom Pastor que entrega sua vida pelas ovelhas (Jo 10, 11;
LG 6), e que para ser pastor é necessário primeiro amar, se não com um amor
profundo ( ά), pelo menos com
um amor
de amizade
(ί), pronto para cuidar dos cordeiros e das ovelhas do pastor-modelo
que é Jesus (Jo 21, 15-19). O pastor ama as ovelhas, serve-as, vive com elas. O
ministro ordenado, amando ao verdadeiro dono das ovelhas, o Bom Pastor,
precisa ir à frente do rebanho, mas não por coação e sim para ser o modelo do
rebanho (IPd 5, 2-3), alguém em quem os outros podem se espelhar. Se o pastorministro se espelha em Jesus, seu rebanho também pode ver transparecer nele o
jeito de Jesus pastorear.
Como a figura do pastor pode trazer consigo a ideia de distinção ovelhapastor, como ser irracional versus ser racional, não se pode perder a ótica do pastor
como aquele que entrega sua vida pelas ovelhas, a exemplo do Servo de YHWH.
Este é o espírito que deve animar a vida do ministro ordenado, como animou o
ministério de Cristo, que em sua paixão-morte-ressurreição concretiza o ideal do
Servo (TABORDA, 2011, p. 74).
Jesus age como o pastor, convidando seus discípulos a serem pastores
com ele (Lc 9, 1-6; 10, 1-9), a irem onde ele deveria ir e a realizar o que ele precisava
realizar. Pastor que cria ovelhas-protagonistas, dá a vida e ensina a fazer o mesmo
(Lc 22, 19), lava os pés e manda fazer igual (Jo 13, 4-17). Sua atuação é o modelo
de atuação dos atuais pastores da Igreja.
5. Só o Amor constrói e une
Os ministros ordenados, servidores do povo de Deus, a ponto de dar a
vida para servi-lo, como foi desempenhado o ministério pastoral de Jesus, só
conseguirão cumprir seu papel de garantir a unidade da Igreja se colocarem o
amor em primeiro lugar. O amor pode ser considerado aspecto fundamental da
Igreja, é ele que nos insere na vida trinitária, que nos faz constituir o Corpo Místico
de Cristo. “O amor de Deus se infunde em nosso coração pelo dom do Espírito
Santo” (Rm 5, 5).
Sendo a Igreja ícone da Trindade, chamada a ser una na diversidade de
ministérios, “realidade criada e divinizada que torna presente e participa o mistério
de Deus”(VVAA, 1984, p. 167), deve ser no mundo sinal do amor que une a Trindade.
É na Trindade que se encontra a origem do amor, quando a comunidade
de fé se abre à experiência de tal amor, ela cumpre seu papel de sacramento-sinal,
manifestando a presença de Deus expressa no amor vivido em comum. “Todo o
bem que o povo de Deus pode prestar à família humana durante o tempo da
sua peregrinação terrena deriva do fato que a Igreja é o ‘sacramento universal da
salvação’, manifestando e atuando simultaneamente o mistério do amor de Deus
pelos homens.” (GS, 45)
Tanto os leigos quanto os ministros ordenados encontram o último
fundamento de seu ser na Igreja na Trindade. A Igreja vem da Trindade, vive da
Trindade, caminha para a Trindade. Mesmo que união tão perfeita só aconteça
em Deus, a comunidade pode inspirar-se a viver de tal modo que busque sempre
tal perfeição no amor, fazendo da diversidade presente na Igreja não a origem
da divisão e da disputa, mas a motivação para a união de forças tão diversas e
tão necessárias, uma completando à outra. A Igreja, espelhando-se na Trindade,
tende a manter as distinções, as diferenças de ministérios e carismas. Eles, por
sua vez, podem entrelaçar-se de tal modo em comunhão que constituam uma
unidade. Para cuidar dessa dialética está presente o ministério ordenado, como
primeiro responsável, já que é o ministério da unidade.
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Libânio usa um comparação muito pertinente:
“Não se oferece um bolo pronto para todos participarem comendo dele,
mas se busca que todos, trazendo cada um seu ingrediente próprio e
diferente, componham o bolo da comunhão” (LIBÂNIO, 2004, P. 6)
Não existe primeiro a comunhão como obra da hierarquia a cuja
participação os fiéis leigos e leigas são convidados, mas existem primeiro os fiéis
construindo, pela força do Espírito, a comunhão, a cujo serviço está o ministério
ordenado.
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A Igreja se sente chamada pelo Amor a ser amor. As diferentes funções
na comunidade e o rendimento de cada um não criam situações de privilégio
nem são fontes de mérito, pois o serviço é apenas resposta ao chamado. Na
comunidade querida por Cristo não se trabalha no desejo de recompensa, mas
de forma espontânea e com a vontade de servir às outras pessoas (CNBB, 2004,
p. 35). É o amor que opera a unidade e a falta de cultivo do amor a ameaça. Pelo
amor, os cristãos estabelecem entre si uma harmonia interior, os fiéis podem
viver na concórdia e na paz e realizam a unidade. Uma missionária protestante
expressa numa frase o quanto a unidade é essencial na Igreja: “Sem unidade não
há testemunho” (RIBEIRO, 2013, p. 34) O papa na reabertura do Vaticano II, atento
a isso, mostra a centralidade do amor, o único capaz de gerar verdadeira unidade,
na vida da Igreja.
“A educação da caridade terá lugar de honra: deveremos aspirar
à ecclesia caritatis se quisermos que ela seja apta a renovar-se
profundamente a si mesma.” (PAULO VI apud: VVAA, 1984, p. 250)
Assim, só o amor constrói uma Igreja em que os ministérios trabalham
em harmonia, unindo-a no objetivo de ser serva do Reino de Deus. Dentro dessa
harmonia, está o responsável de mantê-la, não deixando o amor ser enfumaçado
pelos interesses particulares em detrimento do bem total da comunidade, tal
responsável é o ministro ordenado, que pode se inspirar no pensamento de Santo
Agostinho para cumprir sua missão:
“Nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em todas,
caridade.” (apud: BARREIRO, 2001, p. 165)
CONCLUSÃO
Numa Igreja, que se entenda como ícone da Trindade, não há espaço para
dominação, tudo é serviço e cooperação. Os diversos ministérios presentes nela
são os responsáveis de realizar o ministério comum que ela tem: servir ao Reino
de Deus, em profunda comunhão.
Os responsáveis por garantir tal comunhão são os ministros ordenados,
servidores da unidade. Coordenam a Igreja, e é seu papel coordená-la,
preocupados em fomentar a cooperação de todos os diferentes serviços que
garantem a vitalidade da comunidade eclesial. São eles os primeiros responsáveis
pela Igreja, não os únicos, e a ajudam a cumprir seu ministério de anúncio do
Reino se abrindo à cooperação entre si e entre eles e os leigos e as leigas.
Como foram ordenados pela Igreja, e não se auto-intitularam servidores
dela, exercem seu serviço com a autoridade de coordená-la, como o Bom Pastor
que dá a vida por suas ovelhas, agindo na pessoa de Cristo, que assumiu em sua
vida o modelo do Servo de YHWH, sendo assim o modelo de todos os que são
chamados por ele a representá-lo.
A autoridade não se confunde com a força dominadora, mas é o exercício
do poder a serviço do bem de toda a comunidade, trabalhando para que
os membros não se dividam nem se distanciem do amor, único capaz de unir
verdadeiramente. A autoridade é reconhecida pela comunidade, não imposta a
ela.
Cinquenta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II, que ajudou
a Igreja a redescobrir seu papel no mundo, e a lembrou de que deve assumir-se
como servidora, vivemos uma dicotomia entre o projeto do Concílio e a prática de
alguns clérigos, de modo especial o mais novo, tão exposto pela mídia. Um clero
dominador, dono da verdade, que se impõe pelo brilho de suas vestes e a apelação
a seu poder, não parece ser a proposta da Igreja, muito menos a do fundador e
fundamento da Igreja. Procurou-se, neste artigo, apresentar, então, uma visão de
um clero servidor, embasado na perspectiva conciliar, fundamentado no modelo
expresso por Jesus nos evangelhos. Um clero que se entenda como servidor
do povo de Deus e que, mesmo tendo autoridade, não pode utilizar seu poder
para dominar e escravizar, ou até alienar (como acontece), mas deve utilizar sua
autoridade para coordenar, ajudar a caminhar juntos, tendo a última palavra para
não deixar os cristãos se dividirem, não para satisfazer seus desejos egocêntricos.
O papa Francisco tem demonstrado fidelidade a esta perspectiva, quando
convidou os padres a não se sentirem funcionários, mas pastores, a não serem
intermediários, mas mediadores, a não se cansarem de ser misericordiosos,
principalmente no serviço aos mais fracos (L’OSSERVATORE, 28/04/2013, p. 9). Suas
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atitudes de visível serviço e humildade podem contribuir para que a realidade
mude, e a ideia de pastores-servidores volte a ser o sonho dos seminaristas e dos
ordenados, superando esta fase atual de regresso à Igreja das liturgias misteriosas
e solenes, das vestes retrógradas e demonstradoras de poder, pouco preocupada
com a vida real dos fiéis e a realização da salvação integral do ser humano,
demonstrando dar valor, no máximo, à salvação da alma.
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