ensaios de crítica - Centro de Documentação do Pensamento
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ensaios de crítica - Centro de Documentação do Pensamento
ARTHUR ORLANDO ENSAIOS DE CRÍTICA Introdução de ANTONIO PAIM EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO EDITORIAL GRIJALBO LTDA. SÃO PAULO 1975 1 ÍNDICE INTRODUÇÃO de Antônio Paim ....................................... 3 PARTE I – CRÍTICA DE FILOSOFIA, CIÊNCIA E DIREITO 1. O Problema da Morte ................................................. 40 2. Sílvio Romero ........................................................... 78 3. Tobias Barreto ................................................................119 4. O Crime..........................................................................153 5. Tobias Barreto, seu Ponto de Vista Religioso ................. 222 6. Filosofia Biológica .................................................... 239 7. Liberdade Moral e Livre Arbítrio ................................. 257 8. Concepção Nova de Matéria ........................................ 272 PARTE II – CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL 1. O Adultério .............................................................. 300 2. A Pena entre os Hebreus ............................................. 356 3. O Infanticídio ........................................................... 379 4. Reforma do Ensino .................................................... 391 5. Sociologia e Totalidade .............................................. 446 2 INTRODUÇÃO I. VIDA E ESCRITOS Arthur Orlando da Silva nasceu na cidade do Recife em 29 de junho de 1858, tendo se formado pela Faculdade de Direito aos 23 anos de idade, em 1881. Imediatamente após a formatura dedico u-se à advocacia e ao jornalismo, tendo feito duas tentativas mal su cedidas de ingressar no magistério, através de concurso. O primeiro, para a cadeira de retórica e poética, no Curso Anexo, foi anulado. No segundo, em 1885, para lente da Faculdade, na tese, que versava sobre o momento histórico das leis, procurou aplicar o haeckelismo ao direito, o que não agradou à Congregação, levando-o a retirar-se. Após a República, quando não mais se configurava qualquer interdição, deixou de interessar-se pela docência. É que encontrara, na atividade política, a forma de consagrar -se à reforma dos espíritos a salvo de preocupações pela sobrevivência. A propósito, diria Oliveira Lima, saudando -o na Academia: “O Brasil não está ainda fertilizado bastante para do seu solo brotar e medrar, como fruto opimo da cultura, uma classe de estudiosos isolados da vida agitada dos seus contemporâneos, libertos das instantes preocupações materiais, cuja pressão os distrai dos puros labores da ciência. Os homens de letras, como 3 os sábios, têm forçosamente de ser empregados de secretarias, advogados no foro, agentes de companhias industriais e corretores internacionais. Vós sois dos mais afortunados, porque na política armastes a tenda de onde saís para as algaras céleres e ruidosas da imprensa”. (1) O primeiro livro intitulou-o Filocrítica. Reúne cinco ensaios escritos, possivelmente, entre 1883 e 1885 (dos 25 aos 27 anos de idade) e a tese de concurso ao magistério da Faculdade de Direito. Na introdução, Martins Júnior observa que falta à obra “certo caráter de unidade” e sua leitura “não deixa uma impressão de larga segurança filosófica e científica sobre os problemas tratados”. Reflete entretanto a evo lução do autor do positivismo de Littré para o monismo, sob a influência de Tobias Barreto. Em 1881, como aluno da Faculdade, juntamente com Clóvis Beviláqua e Martins Júnior, lança incisivo manifesto sobre a propalada conversão do filósofo fran cês: “O homem, como as sociedades. Segue fatalmente, no desenvolvimento de seu espírito, a marcha ascensorial que lhe traçou Comte na lei dos três estados. Pode ocorrer que um indivíduo não passe do primeiro ou do segundo estado; pode mesmo acontecer que os três subsistam no mesmo indivíduo; mas de um estado superior voltar para um inferior é impossível, sem um desarranjo cerebral. ... Estamos convencidos de que o padre Huvelin batizou um cadáver ”. (2 ) A tese de 1885 é calcada sobre o monismo haeckeliano e a doutrina jurídica de Ihering. Termina-a 4 do seguinte modo: “São estas as soluções que damos ao problema da determinação do momento histórico das leis; podem não ser verdadeiras, porém ao menos têm um mérito; não estão contaminadas do vírus das idéias velhas, que não podem mais subsistir diante do sopro rude, mas ao mesmo tempo salutar, do espírito moderno”. (3) A Filocrítica registra a reação do autor à oposição vigente às idéias novas e que o levaram a abandonar o concurso de 1885. Escreve: “Quando foi apresentado esse estudo à Faculdade de Direito desta cidade, entre outras graves censuras so fri a de querer aplicar o monismo ao processo jurídico. Esta censura, porém, e digna irmã gêmea de uma crítica em que já incorri com Martins Júnior. A pedido de um amigo, a quem muito prezamos, nós fizemos para a Comissão Central Emancipadora um esboço de representação à Assembléia Geral propondo diversas medidas a bem da abolição da escravatura no Império. Neste trabalho dizíamos que a Comissão, convencida de que a agricultura moderna não é senão uma espiritualização da terra, uma aplicação das leis da física, da química e da biologia ao desenvolvimento das plantas e dos animais, e, mais ainda, uma série de observações, de experiências, de cálculos, de economia, de previdências, condições que seria difícil de conseguir com o escravo sem iniciativa, sem responsabilidade nem dignidade, vinha propor uma série de medidas, cujos fins não eram outros senão matar economicamente o trabalho escravo, tornando-o caro, prejudicial, repugnante, e proteger o 5 trabalho livre mas nobre, fecundo e produtivo. Demos, como vê-se, uma prova de bom senso; mas, apesar de tudo, o nosso esboço foi desumanamente mutilado, de maneira que veio a ficar um monstruoso aleijão; e tudo isso porque, como depois disse-nos o Presidente da Comissão, havíamos metido o monismo no meio. Impagável!”. (4 ) No ano do aparecimento da Filocrítica, escreve a introdução às Questões Vigentes, de Tobias Barreto. Embora este livro só tenha sido entregue ao público em 1888, da correspondência entre Tobias e Sílvio Romero infere-se que foi preparado em 1887, aliás o último de atividade fecunda para o pensador sergipano. Artur Orlando, mais tarde, ampliou esse texto, que se transformaria num dos mais importantes de sua obra, intitulando-o “Tobias Barreto”, para incluí-lo nos Ensaios de Crítica (1904). Com o advento da República, ingressa na polít ica e na administração, inicialmente como diretor da Instrução Pública, depois como deputado e senador, em seu Estado, para tornar-se deputado federal nas legislaturas subseqüentes a 1903. A circunstância não parece haver afetado sua ensaística. Em 1891 publica pequeno (81 páginas) e curioso livro: Meu Álbum, de difícil classificação, mesmo para um prefaciador, Clóvis Beviláqua. Contém reduzidos tópicos, sem título, despidos de toda a pretensão de expor teses e formular argumentos. Contudo, insere inúmeras idéias caras ao pensador e que acabariam 6 merecendo o tratamento adequado, nos textos de estilo diverso que desenvolveria nos anos subseqüentes. Ao longo da década de noventa, a atividade de Artur Orlando é sobretudo política. Seu nome figura entre os redatores de A Província, a partir de julho de 1895, jornal que veio a ser uma espécie de órgão oficial do Partido Autonomista, resultante de uma cisão no Partido Republicano. Esse periódico parece haver desempenhado importante papel no sentido de que o grupo Rosa e Silva, a que pertencia Artur Orlando, ascendesse à situação nos começos do século. Os trabalhos de outra índole, além dos políticos, são: “O Problema da Morte” (nos anos de 1896 e 1898) e “O Crime” (1896), ambos inclu ídos no livro Ensaios de Crítica, sendo que este último, ao aparecer como série de artigos no mencionado jornal, foi intitulado “O Crime como Fenômeno Social”. Limitam-se a estes os ensaios de certo desenvolvimento. Os números de 11 e 12 de julho de 1899 publicam dois artigos de filosofia do direito. É provável que se possa datar deste final de século sua maior aproximação com os pontos de vista de Sílvio Romero. A propósito do livro Juristas Filósofos, de Clóvis Beviláqua, insere quatro artigos em A Província, de outubro de 1897. Dentre os pensadores estudados por Beviláqua, trata apenas do autor da História da Literatura Brasileira. Escreve a introdução do livro Martins Pena, publicado por Sílvio Romero em 1901, cuja parte inicial reproduz os artigos antes 7 citados. O texto integral constitui um capítulo dos Ensaios de Crítica. Período deveras fecundo seria a fase em que dirigiu o Diário de Pernambuco (abril de 1901 a fins de 1911). Reúne em livro textos divulgados na imprensa periódica (Ensaios de Crítica, 1904 e Novos Ensaios, 1905); elabora a Propedêutica Política-Jurídica, editada em 1904; escreve uma obra sobre o pan-americanismo (1906); elabora um documento para as comemorações do centenário da abertura dos portos ( Porto e Cidade do Recife, 1908); inicia o grande projeto de proceder à mais ampla descrição do Brasil, de peculiar ângulo socio lógico, que se referirá, a seu tempo; ingressa na Academia Brasileira de Letras (1907) e mantém razoável participação na atividade legislativa da Câmara Federal, que integra a partir de 1903. A 20 de abril de 1901, o Diário de Pernambuco, passa a propriedade do conhecido líder político Rosa e Silva, assumindo Artur Orlando as funções de redator chefe. Durante sua gestão, o periódico, um tablóide de oito páginas, destina razoável espaço à promoção da cultura e à divulgação de teses e idéias. Atribui-se grande destaque às doutrinas pacifistas de Tolstoi. A política americana merece sempre toda a atenção. Busca-se familiarizar os leitores com a evolução da ciência, transcrevendo-se comentários e notas sobre suas conquistas. O aspecto filosófico do tema não é descurado, bastando referir os artigos dedicados ao livro A Ciência e a Hipótese, de Poincaré (seis e sete de agosto de 1904). 8 É amplo o círculo de colaboradores: os historiadores Pereira da Costa e Oliveira Lima; o crítico José Veríssimo; França Pereira, Prado Sampaio etc. A partir de 1907 começa a aparecer colaboração assinada por Gilberto Amado. Muitos dos ensaios de Artur Orlando são ali publicados em forma de artigos. O Diário de Pernambuco acompanha com interesse a atividade dos membros da Escola do Recife, em especial Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. Artur Orlando evita, entretanto, toda estreiteza sectária. Concomitantemente, a pregação do padre Júlio Maria merecerá a sua atenção. O clima de efervescência cultural, que o Diário de Pernambuco reflete, fez-se sentir também através da revista Cultura Acadêmica aparecida no segundo semestre de 1904 e que somente circulou neste e no ano subseqüente. Essa publicação dedicou um número especial a Martins Júnior. Reúne em seu derredor os remanescentes da Escola do Recife, que ainda nutrem certa esperança no debate filosófico – embora logo adiante busquem outros caminhos, segundo se indicará – mas também jovens afoitos como Artur de Araújo Jorge, matriculado na Faculdade aos 16 anos, aos 20 publicando a Filosofia Biológica (1904), para quem “a ciência atingirá um estágio em que desaparecerão todas as dificuldades e tudo quanto fomenta ainda hoje, discussões estéreis e palavrosas”. (5 ) Na Cultura Acadêmica Artur Orlando publicou alguns ensaios que, juntamente com outros, divulgados na imprensa no decênio anterior, foram reunidos nos 9 livros Ensaios de Crítica (1904) e Novos Ensaios (1905). Em 1905 publicou a Propedêutica PolíticaJurídica onde começam a assumir forma acabada certas idéias, predominantes em sua obra subseqüente, segundo as quais a abordagem da criação humana deixava de ser efetivada no plano filosófico, como pretendia Tobias Barreto, para tentar esgotá-la no plano sociológico, como queria Sílvio Romero. Clóvis Beviláqua observa, a propósito deste livro: “A doutrina jurídica de Artur Orlando acha -se exposta, mais particularmente, na Propedêutica Política-Jurídica. Para ele os problemas do direito são estudos de sociologia dinâmica, pelo que se prendem, intimamente, à elaboração gradual da idéia de progresso e à história da luta ativa pela civilização. Deste modo de ver resultado como conseqüência, que o jurista deve, em primeiro lugar, descobrir a relação entre os fatores da evolução cultural humana e as formas jurídicas, estabelecendo não somente o paralelismo como principalmente a conexão entre as sucessivas transformações do estado social e as variações correspondentes do direito. Como se vê Artur Orlando era partidário da sociologia e entendia que somente pelo caminho da sociologia era possível o conhecimento das instituições jurídicas. Neste modo de ver afastava-se de Tobias, o que torna claro que a Escola do Recife não era um rígido conjunto de princípios, uma sistematização definitiva de idéias, mas sim uma orientação filosófica progressiva, 10 que não impedia a cada um investigar por sua conta e ter idéias próprias, contanto que norteadas cientificamente”. (6 ) Em 1906 publica Pan-americanismo. Desenvolve a hipótese de que à América estaria reservada a tarefa de levar à esfera econômica a obra civilizatória e humanizante que ao cristianismo incumbira no âmbito da religião. A Europa achava-se, a seu ver, ameaçada de morte “pela luta de classes, a discórdia intestin a, a guerra econômica”, à sombra do que se fortalecia a perspectiva “de invasão por raças superiores em número e diferentes em cultura, em idéias e sentimentos, em alma”. A ameaça externa provinha do Japão, que acabara de vencer a Rússia; da China, ocupada em dar preparo militar à força potencial do número de seus habitantes; da Turquia, insatisfeita com sua situação e da Índia “que nada autoriza a supor que esteja eternamente disposta a suportar a dominação benéfica da Inglaterra”. Exauridos, os países europeus nada mais podiam fazer além de ganhar tempo. “À América cabe completar a grande tarefa de Alexandre no Oriente e de César no Ocidente, organizando o pan-americanismo em defesa da nova concepção de justiça, de moral, de religião, de arte”. Em 1907, é eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomando posse a 28 de dezembro. Em seu discurso limita-se ao elogio do patrono, Junqueira Freire (1832/1855) e do fundador, Franklin Dória, Barão de Loreto (1836/1906). (7) É saudado por Oliveira Lima (1867/1928). 11 O Diário de Pernambuco consigna suas sucessivas viagens ao Rio, a fim de participar dos trabalhos da Câmara dos Deputados, e refere sua atividade parlamentar. Do ano de 1907 ficou entretanto registro singular: o discurso pronunciado a propósito da reforma do ensino, amostra representativa da amplitude com que se lançava à análise dos problemas. O texto mereceu publicação autônoma, graças à iniciativa de amigos. Porto e Cidade do Recife é parte das comemorações da abertura dos portos, livro que deu a Luiz Delgado, em artigo no Jornal do Comércio (Recife, dezembro de 1960) “impressão de muita velocidade e de não muita ordem”. Nessa diversidade e aparente falta de unidade enxerga o seguinte: “se há premissas, ver dadeiramente, nessas páginas, resulta de uma intenção guardada na mente do escritor, intenção obscura que era, talvez, o segredo tanto de muitos sequazes da Escola do Recife como de vários dos seus adversários. Um sentimento, um desejo, um instinto de elevação do homem brasileiro, de efetivação de su as possibilidades”. A julgar por um artigo da autoria de Gilberto Amado, publicado no Diário de Pernambuco de 31 de março de 1909, em que anuncia a obra então intitulada A Terra, o Homem e o Meio Social no Brasil – por essa época deve ter amadurecido no espírito de Artur Orlando a idéia de lançar-se à caracterização das componentes físicas e biológicas da nacionalidade, na esperança de assim chamar a uma síntese totalizante. Na introdução do livro que afinal só vem a aparecer em 12 1913, afirma que “se pode avaliar a insuficiência de múltiplas teorias sociológicas tão -somente pelo seu unilateralismo considerando cada uma delas o meio, a raça ou qualquer manifestação de psiquismo individual ou coletivo como fator exclusivo da evolução social”. (8) Acham-se nessa linha as duas comunicações enviadas aos Congressos de Geografia realizados naquele início de século bem assim a colaboração publicada na Revista da Academia Brasileira de Letras. O projeto não logrou, entretanto, plena realização. Vitimado por prolongada enfermidade, que o imobilizou praticamente a partir de 1914, veio a falecer a 27 de março de 1916. O Diário de Pernambuco de 28 de março de 1916 publica nota: “Em sua residência, à Estrada de João de Barros, faleceu ontem o ilustre homem de letras dr. Artur Orlando da Silva em conseqüência de longa enfermidade que, há quatro anos, vinha minando a existência. O infausto acontecimento verificou-se pelas 22 horas e 40 minutos. Dotado de comprovada erudição e sólida cultura jurídico-filosófica, o distinto morto gozava de elevado conceito como um dos vultos mais conhecidos do país, quer nas letras, quer na política. Nesta, sua manifestada atividade de homem público foi sempre grandemente pronunciada. Como pensador consciente de seu aprimorado talento, escritor de numerosos e valiosos trabalhos dignos de nota e que lhe proporcionaram merecido renome, tanto no país como no estrangeiro. 13 Dentre as suas obras de maior relevo salientam-se Filocrítica; Pan-americanismo, Porto e Cidade do Recife, Ensaios de Crítica; Brasil, a Terra e o Homem, cuja segunda parte a morte não o deixou terminar. Notabilizou-se também no jornalismo, tendo durante largo período dirigido esta folha, quando pertencente ao sr. Senador Rosa e Silva. Na Província e no Jornal do Recife prestou relevantes serviços como redator, colaborando ainda em diversos outros jornais, assim como em várias revistas científicas ou literárias no país. Na política teve sempre posição de destaque, tendo sido senador estadual e deputado federal em mais de uma legislatura. Pertencia a diversas e distintas agremiações, sendo, notadamente, membro da Academia Brasileira de Letras e tendo-o sido da extinta Academia Pernambucana. Anteriormente exercera também o cargo de inspetor de instrução pública. A morte o veio encontrar no desempenho das funções de promotor de resíduos e fundações. Atacara-o ultimamente incurável septicemia, que resistiu a todos os recursos da ciência médica. Os doutores Frederico Curio, Arnóbio Marques, Simões Barbosa, Abelardo Baltar e Alberto Ferreira , o primeiro o seu médico assistente e os últimos auxiliares daquele facultativo, chegaram a tentar os últimos recursos a fim de salvar-lhe a vida. 14 Anteontem procederam-lhe a amputação da perna direita. Era já, infelizmente, fora de tempo, porque a doença havia completado a sua obra destruidora. Pernambucano, nascera o dr. Artur Orlando em 29 de junho de 1958, contando, conseguintemente, 58 anos de idade. Filho do tenente José Caetano da Silva, há muitos anos falecido, e da exma, srta. d. Belarmina Augusta de Moraes de Mesquita Pimentel da Silva, era casado com a dra. Maria Fragoso Orlando da Silva, e deixou três filhas de seu consórcio: d. Izabel, esposa do dr. Antônio Vicente de Andrade Bezerra, atual Secretário do Estado; senhorita Maria, noiva do dr. Francisco Paes Barreto, e senhorita Olívia. São irmãos do saudoso extinto o tenente Antônio Irineu da Silva e as exmas sras. dd. Olívia Augusta da Silva e Belarmina Dorneles Câmara, esta mãe dos drs. Nilo e Olívio Câmara”. II. A ESCOLA DO RECIFE O movimento que veio a ser denominado Escola do Recife nasce do processo de diferenciação do chamado “surto de idéias novas” dos anos setenta do século XIX. No ciclo inicial, tratava -se de combater os suportes teóricos da monarquia, entendida como obstáculo ao progresso, esgrimindo teses apanhadas indiscriminadamente na obra de Comte, Darwin, Taine, Renan e tantos outros. Não há facções ou tendências mas uma espécie de “frente” cientificista. Nesse am15 biente é que surge o positivismo como corrente filosófica, aparentemente dividida nas facções ortodoxa e dissidente, mas na verdade formando diversas vertentes e influindo de forma diversificada segundo os segmentos da cultura brasileira que se considere. Ao primeiro momento de diferenciação, com o positivismo, segue-se o processo de constituição da corrente que iria contestá-lo, sob o lema geral popularizado por Sílvio Romero de que, se constituía sintoma de atraso combatê-lo por se estar aquém, correspondia a sinal de progresso feri-lo por se estar além. A Escola do Recife notabilizou-se pela reforma na compreensão do direito, pela obra de muitos dos seus membros na elaboração sistemática da história da cultura brasileira, pela modernização de instituições, como é o caso do Código Civil. Pretendeu muito mais ao empreender incursões em diversos terrenos, desde a poesia à política, embora o seu lugar na cultura nacional seja assegurado sobretudo pelos aspectos antes enumerados. A filosofia é que se constituiu no elemento unificador de ação tão variada e dispersa, precisa mente o que faz sobressair a figura de Tobias Barreto (1839/ 1889). A elaboração teórica que iria impulsionar inicia se em 1875 quando Sílvio Romero (1851/1014) pro clama a morte da metafísica, num concurso na Faculdade de Direito do Recife. Por essa ocas ião, escreve Tobias, “já eu nutria minhas dúvidas a respeito da defunta, que o positivismo tinha dado realmente por morta, porém que ainda sentia-se palpitar”. O texto que 16 então elaborou, sob a denominação de “Deve a Metafísica ser Considerada Morta?” e q ue, desaparecido, não foi incluído na reedição de suas Obras completas, efetivada na década de vinte, acha -se em parte reconstituído, na reedição crítica patrocinada pelo INL. (9) Durante certo período, Tobias Barreto imaginou que a superação do positivismo poderia ser alcançada graças à filosofia monista de Ernest Haeckel. No aprofundamento dessa hipótese, acabou opondo -se ao caráter mecanicista do monismo haeckeliano e empre endendo a tentativa de aperfeiçoá-lo mediante a introdução da idéia de luta, do dinamismo, da polaridade, enfim. Mais tarde, embora sem renegar tais princípios, pretendeu que a filosofia devia limitar -se a uma inquirição sobre o conhecimento científico, abdicando de qualquer pretensão de aumentar o saber operativo (científico), já ago ra sob influência de representantes dos primórdios do neokantismo. Tobias Barreto não chegou a proclamar a incompatibilidade entre a acepção (neokantiana) da filosofia como epistemologia e o monismo. Este, na verdade, não chegava a distinguir -se do positivismo desde que atribuía ao saber filosófico idênticas funções de patrocinar a síntese das ciências. É provável que não o tivesse feito porque lhe restaram poucos anos de vida ativa, ainda assim ocupados na busca de uma esfera privilegiada, como objeto de inquirição eminentemente metafísica: a cultura. 17 Assim, Tobias Barreto suscitou a hipótese do monismo e, sem abandoná-la, difundiu o conceito neokantiano de filosofia. Artur Orlando é o único dos seguidores que se dá conta da incompatibilidade das duas posições e busca aprofundar a idéia da filosofia como epistemologia. Os demais integrantes da escola não se dispuseram a abdicar da sua acepção como síntese das ciências e supunham que a disputa era entre monismo mecanicista e monismo teleológico ou entre monismo e evolucionismo. Contudo, a grande significação do pensamento de Tobias Barreto, no empenho de restaurar a metafísica, consiste na abordagem do homem como consciência, a seu ver a única forma de retirá-lo do determinismo a que o havia cingido o positivismo. Tal é o tema central da parcela última de sua obra filosófica. (10 ) Para o pensador sergipano, a cultura é “a síntese da natureza, no sentido de que ela importa uma mudança do natural, no sentido de fazê-lo belo e bom”. Designase pelo nome geral de natureza “o estado originário das coisas, o estado em que elas se acham depois do seu nascimento, enquanto uma força estranha, a força espiritual do homem, com sua inteligência e vontade, não influi sobre elas e não as modifica”. A particularidade do mundo da cultura consiste no fato de que se subordina à idéia de finalidade, escapando a todo esquema que se proponha resolvê -lo em termos de causas eficientes. A seu ver, o equívoco dos contraditores da existência da liberdade na criação humana deve-se à 18 associação inadequada entre liberdade e ação imotivada. “Desde que se faz assim do acaso e do capricho irracional a essência da liberdade, desde que o verdadeiro ato livre se considera aquele que se pratica sem motivo, sem razão alguma, não é muito que os deterministas achem provas de sua teoria em todos os círculos da atividade humana, onde se nota uma certa ordem”. Acha entretanto que “a livre vontade não é incompatível com a existência de motivos; pelo contrário, eles são indispensáveis ao exercício normal da liberdade”. A chave para a solução do problema será encontrada no entendimento da cultura como um “sistema de forças combatentes contra o próprio combate pela vida”, isto é, radicalizando a oposição entre o império das causas finais e o império das causas eficientes, entre o mundo da criação humana e o mundo natural. O fato natural não o livra de ser “ilógico, falso e inconveniente”. A regularidade natural, isto é, a circunstância de que um acontecimento natural seja considerado segundo leis, não implica em que, transposto ao plano da cultura, possa ser encarado independentemente do ponto-de-vista moral. Tem em vista o seguinte: “Assim, e por exemplo, se alguém hoje ainda ousa repetir com Aristóteles que há homens nascidos para escravos, não vejo motivo de estranheza. Sim – é natural a existência da escravidão; há até espécies de formigas, como a polyerga rubescens, que são 19 escravocratas; porém é cultural que a escravidão não exista”. A natureza, concluirá, pode ser apontada como a fonte última de toda imortalidade e não foi certamente inspirando-se nela que o homem criou a cultura. Esta, a seu ver, forma-se precisamente no pólo oposto ao que supunha o autor do Contrato Social. “Rousseau deixou escrito que em assunto de educação – tout consiste à ne pas gâter l’homme de la nature en l’appropriant à la societé. Neste princípio que se lê na quinta carta do quarto livro da Nouvelle Héloise, culmina-se o edifício de suas idéias reformuladoras. Entretanto a verdade está do lado contrário. O processo da cultura geral deve consistir precisamente em gastar, em desbastar, por assim dizer, o homem da natureza, adaptando -o à sociedade”. Nessa luta por erigir algo de independente da natureza, o homem criou a sociedade, “que é o grande aparato da cultura humana” e deixa-se afigurar “sob a imagem de uma teia imensa de relações sinérgicas e antagônicas; é um sistema de regras, é uma rede de normas, que não se limitam ao mundo da ação, chegam até os domínios do pensamento”. No âmbito dessa imensa teia, o direito é uma espécie de fio vermelho e a moral o fio de ouro. O verdadeiro característico do ente humano é pois “a capacidade de conceber um fim e dirigir para ele as próprias ações, sujeitando-as destarte a uma norma de proceder”. Trata-se, em síntese, de um animal que se prende, que se doma a si mesmo. “Todos os deveres 20 éticos e jurídicos, todas as regras da vida acomodam-se a esta medida, que é a única exata para conferir ao homem o seu legítimo valor”. Assim se coloca, para a meditação brasileira, pela primeira vez, a hipótese de considerar-se o homem como consciência. Nesse momento inicial, é a idéia de arquétipo que está presente ao espírito de Tobias Barreto, na maneira como a entende Kant na “Dialética Transcendental” da Crítica da Razão Pura. A verdadeira problemática do tema ainda não se explicita de todo. Nem por isto, entretanto, pode-se deixar de reconhecer, como o faz Reale, que “registrou Tobias Barreto, no processo de sua formação monística, idéias destinadas a uma longa elaboração mental, e que, do culturalismo sociológico de Ihering, nos levariam ao culturalismo mais largo de um Kohler ou de um Berdzheimer, para atingir, afinal, a fase atual sob a inspiração de um Max Scheler ou de Nicolai Hartmann. O mérito imorredouro do autor dos Estudos Alemães está em ter visto o problema como um problema filosófico, não compreendido, infelizmente, que a sua formulação era, por si mesma, a mais cabal condenação das doutrinas monistas que abraçara, após reconhecer a impossibilidade de colocar completamente a vida espiritual sob o causalismo da natureza”. (1 1) Reale observa que, na obra de Sílvio Romero, o conceito de cultura deixa de ser um problema filosófico. Ao autor da História da Literatura Brasileira não parece adequada qualquer contraposição entre natureza e cultura. “A antítese de Tobias, prossegue Reale, opõe 21 uma conciliação, que diz ser possível à luz do evo lucionismo monístico spenceriano, que acabou com a antítese entre o naturalismo e o espiritualismo ”. Essencial parece ser a circunstância de que os seguidores não se tenham disposto, com exceção de Artur Orlando, a abdicar da acepção da filosofia como síntese das ciências. E, sem essa disposição, o plano metafísico propriamente dito acabaria sendo ignorado. Ainda em 1906, escreveria Sílvio Romero: “A metafísica que fo i dada por morta em 1875 era a metafísica dogmática, ontológica-apriorística, inatista, meramente racionalista, a metafísica do velho estilo, feita à parte mentis, a pretensa ciência intuitiva do absoluto, palácio de quimeras fundado em hipóteses transcendentes, construído dedutivamente de princípios, imaginados como superiores a toda verificação. Esta morreu e está bem morta para todo mundo. A metafísica que se pode considerar viva é a que consiste na crítica do conhecimento, como a delineou Kost nos seus, Prolegômenos e, mais, a generalização sintética de todo o saber, firmada nos processos de observação e construída por via indutiva. Esta vive e viverá sempre, porque, além de ser uma disposição natural do espírito, supre algumas falhas das ciências partic ulares, mas sem abrir luta com estas e antes nelas se apoiando, mantendo sempre ativos os largos surtos e aspirações da razão para o lado do desconhecido. (1 2) Clóvis Beviláqua (1859/1944) insistiria no mesmo aspecto ao dizer que a filosofia não deveria ser denominada de ciência porquanto “não determina 22 relaçoes entre fenômenos, nem tem por objeto que não lhe seja exclusivo e não comum, ao menos nalgum sentido, com as outras ciências”. Ao que acrescenta: “Mas, se não é uma ciência, é uma recapitulação ou, antes, um extrato de todas as ciências que tem isto de original: simplifica, unifica e completa os resultados de todas elas, sendo menos minuciosa do que qualquer delas, porém tendo mais amplitude e mais profundeza do que todas reunidas”. (13) Faltou, portanto, o aprofundamento da perspectiva neokantiana (a filosofia como epistemologia), de modo a explicitar a impossibilidade de conciliá -la com o monismo (Fausto Cardoso, 1864/1906) ou pretender substituí-lo pelo evolucionismo (Romero, Beviláqua, etc.). Desse modo, a Escola do Recife não logrou superar a atmosfera na qual viscejava o positivismo e acabou reforçando entendimento semelhante do saber filosófico. Ao invés de contribuir para impulsionar o culturalismo de Tobias Barreto, o que somente viria a ocorrer muito mais tarde. Registre-se que no empenho de determinação das relações entre filosofia e ciência, os membros da Escola do Recife avançaram algumas idéias acertadas do saber de índole operativa. Embora sem se dispor a renunciar seja ao monismo seja ao que chamava de “intuição de caráter sintético”, Graça Aranha (1868/1931), por exemplo, teria oportunidade de enfatizar que “a ciência decompõe o universo, conhece-o, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestações parciais. Só há ciência do que se pode fragmentar. Ela pode analisar, explicar cada ordem 23 de fenômenos que a sensação perceba, ela é es sencialmente divisível e analítica”. (14) A Escola do Recife não foi capaz de alcançar a derrota do comtismo como filosofia das ciências. Esta seria obra do grupo da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, capitaneado por Otto de Alencar (1874/1912) e Amoroso Costa (1885/1928). III. A MEDITAÇÃO DE ARTUR ORLANDO Artur Orlando foi o único dos integrantes da Escola do Recife que exerceu prolongada militância política. Tobias Barreto, talvez por excesso de doutrina, acabou incompatibilizado com os partidos em que se refugiara, Sílvio Romero escreveria no “Prólogo” à reedição dos Estudos Alemães: “os conservadores – se lhe afiguravam retrógrados, homens do rei, reacionários, compressores; os liberais – contraditórios, fantasistas, incapazes de cumprir o que prometia, estragados pela fraseologia retórica dos declamadores; os republicanos – incertos, vacilantes entre as parlamentarices francesas e o arrocho norte-americano”. O próprio Sílvio Romero teria participação direta na política estadual de Sergipe, após a República, chegando mesmo a integrar a direção de movimento popular que derrubaria o governo. Foi deputado federal na legislatura de 1901/1902, ocasião em que atuou como relator da comissão incumbida de dar parecer sobre o projeto de Código Civil, redigido por Clóvis Beviláqua. 24 Contudo, parece haver sucumbido vítima de equívoco semelhante ao de Tobias, incapaz de reconhecer a especificidade dessa esfera, o caráter ine lutável do compromisso. Em 1911, no prefácio ao livro A Verdadeira Revisão Constitucional, de Samuel de Oliveira, avançaria este desabafo bem no seu estilo: “À turba malta dos aduladores do poder aparecem sempre os seriganos como inteligentes nas letras, na poesia, na filosofia, no estudo do direito, mas desdotados de capacidade política. É que para esse cavejamento da incapacidade em torno aos governos – a capacidade política é igual à soma dos quadrados da desfaçatez e da impostura, especialmente quando estas se mostram em ação no bajulamento jornalístico ou nas manipulações infames das farsas eleitorais. Medido por esse padrão, Samuel de Oliveira não tem capacidade política, como não a tinha Tobias Barreto nem a tenho eu”. Tudo leva a crer que Artur Orlando buscou, deliberadamente, uma posição eqüidistante de seme lhante sectarismo. Exerceu a política de modo muito concreto, sem vincular-se a qualquer tipo de reformismo sonhador. É certo que aproveitaria a posição de proeminência que chegou a galgar na situação pernambucana, como responsável pelo Diário de Pernambuco, para colocar-se a serviço da elevação cultural da elite. Aliás, o primado do elemento moral sobre o material é evidente no conjunto de sua obra. “A política – escreveria nos Ensaios de Crítica – não tem por objetivo 25 aplicar leis existentes, anulando atos, como fazem, os tribunais civis, ou impondo penas como praticam os tribunais criminais; sua missão é implantar uma organização social mais eqüitativa no domínio da cultura econômica, jurídica, intelectual, filantrópica, estética, religiosa, em harmonia com as condições de uma dada época”. Contudo, é fora de dúvida que não iria além do empenho em favor do aprimoramento cultural. A filosofia política, como tal, não se inseria no seu círculo de interesses. Assim, embora proclamasse que “o fun dador do positivismo não se destaca senão pela sua antipatia às idéias e às instituições liberais”, considerando “uma crise feliz o golpe de estado, que substituiu pela república ditatorial a república pa rlamentar”, nunca se dispôs à análise mais profunda da política positiva, ainda que, pela vivência, a tivesse observado mais de perto que seus outros companheiros de movimento filosófico. A evolução dos temas de sua ensaística é bem elucidativa dessa posição peculiar em face da política. Sob o clima de agitação em que vive o país, ao longo da década de noventa, o que está em jogo, na verdade, é o estilo de vida política a que se ajustaria a República. José Maria Belo observa que “no Congresso, encontravam calorosos aplausos os radicais, os jacobinos, os exaltados de toda espécie. Ainda não libertos das tradições parlamentares do Império, os congressistas republicanos reivindicam uma primazia política que violava a natureza do regime”. Semelhante 26 entendimento parece ter contribuído para o sentido antiparlamentar de que se revestiria a ascensão e a consolidação da autoridade do Chefe do Executivo, consumada afinal nos fins do mandato de Prudente de Morais e logo formalizada, no governo Campos Sales, através da chamada política dos governadores, que institucionaliza o desinteresse pelo aprimoramento da representação, fenômeno que marcaria todo o período republicano. A teoria desse processo – consoante a posteridade o evidenciaria – achava-se integralmente elaborada por Júlio de Castilhos, sob a inspiração de Augusto Comte, o que não se patenteou desde logo. Talvez pela circunstância fortuita de que a facção castilhista acabaria vinculada à candidatura derrotada. Artur Orlando é participante ativo de toda essa movimentação. Nos anos noventa, em que pesem os compromissos político-partidários, encontra tempo para a meditação filosófica, ao elaborar o ensaio “O Problema da Morte”, mas está voltado sobretudo para a crítica político-social, sendo “O Adultério” e “A Pena entre os Hebreus” os textos mais representativos. Com o desfecho da crise, coincide a ascensão do grupo Rosa e Silva. Para Artur Orlando, o exercício do poder deixa de constituir tema de inquirição torna-se exercício diuturno. Tratando-se agora de por em execução o programa do Partido Autonomista, que ajudara a formular nos tempos de A Província, volta-se para outras questões. E começa precisamente pelo reexame da problemática da Escola do Recife. 27 Neste começo do século, preocupa-se mais uma vez com a meditação de Tobias Barreto. Publica, na Cultura Acadêmica, artigo sobre seu ponto-de-vista religioso. Na oportunidade da reedição do texto introdutório que redigira para as Questões Vigentes, efetivada nos Ensaios de Crítica (1904), acrescenta-lhe extensa nota, de enorme interesse desde que afronta o problema da acepção de filosofia. Escreve: “É preciso não esquecer que hoje filosofia já não quer dizer ciência do absoluto (metafísica), nem explicação do universo (cosmogonia), nem qualquer dessas grandes sistematizações conhecidas pelos nomes de seus autores (darwinismo, comtismo, spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina mental sobre a qual se apóiam todas as ciências constituídas e por constituir”. (15 ) A questão fundamental, prossegue, é a relação entre o real e o ideal. Parecia ter a intuição de que o problema conduzia inelutavelmente à avaliação do papel do espírito, e de sua capacidade de produzir sínteses ordenadoras, ou melhor, do exame do “a priori” kantiano. Questiona se seria algo independent e da experiência, como queria Kant, ou simples função que se desperta no contato com a experiência. Aventa a hipótese de que a solução estaria no conceito de substância. Mas não parece ter clareza quanto à sua condição de elemento constitutivo de objetivid ade. Pouco mais tarde, na comunicação apresentada ao 3º Congresso Científico Latino-Americano (1905), iria ten28 tar elucidar no plano psicológico, a atividade sinté tica da consciência. Assim, na oportunidade do reexame dos problemas legados à posteridade p ela meditação de Tobias Barreto, Artur Orlando dá-se conta da incompatibilidade entre o entendimento da filosofia como síntese das ciências (spencerismo, comtismo, etc.) e seu enunciado como epistemologia, na linha neokantiana. E coloca como questão centra l o problema do “a priori”. Se não logra resolvê-lo, se aprece haver perdido os vínculos que Tobias Barreto procurara estabelecer com o neokantismo, está de todos os modos muito distanciado dos outros membros da Escola do Recife. Artur Orlando dá o passo seguinte ao chamar a atenção para a nova física, no ensaio “Concepção Nova da Matéria” (16) . Embora circule na esfera mais geral do saber científico, não confunde os planos e tem noção clara da especificidade da ciência. Contudo, não daria a esse tema o sent ido de afrontamento ao positivismo, na forma como o fizeram Otto de Alencar e Amoroso Costa. No tema em que a Escola do Recife efetivamente deixa de circular nessa atmosfera cientificista, tão caudatária do positivismo a que tanto desejava se opor, isto é, naquilo que Reale denominou de culturalismo, Artur Orlando não soube dar continuidade à meditação do insigne fundador da Escola. Cedeu a Sílvio Romero na admissão da possibilidade de uma sociologia, e, como ele, buscou as descrições exaustivas e totalizan tes. 29 Este o sentido principal de sua obra a partir de 1909. Embora não a tenha concluído, em diversos ensaios e na parcela divulgada de Brasil, a Terra e o Homem (1913) acham-se suficientemente explícitos seus pontos-devista últimos. *** A reedição dos principais textos de Artur Orlando insere-se no programa que o Instituto Brasileiro de Filosofia vem realizando, com o inestimável apoio da Editora da Universidade de São Paulo, colaboração que já possibilitou o aparecimento de textos essenciais à compreensão de nossa evolução cultural, entre os quais cumpre destacar as Preleções filosóficas, de Silvestre Pinheiro Ferreira, as Investigações de Psicologia, de Eduardo Ferreira França e as Obras Filosóficas de Pereira Barreto. Dentre os trabalhos de Artur Orlando, foram selecionados os que melhor refletem o processo de amadurecimento de seus pontos de vista no entendimento do direito, da filosofia e da sociologia. Optamos por preservar a denominação de um de seus livros – Ensaios de Crítica – desde que reflete com propriedade o sentido principal de sua obra. No preparo desta reedição, contamos com a inestimável colaboração de Ricardo Velez Rodrigues, na pesquisa de periódicos, e de Generosa Amoedo Teixeira, no preparo dos originais para impressão. Queremos consignar também os agradecimentos do IBF a d. Eunice 30 Robalinho Cavalcanti, diretora da Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de Pernambuco, pela presteza com que nos franqueou cópias de textos do autor, preservados naquela instituição. IV. BIBLIOGRAFIA DE ARTUR ORLANDO (17 ) Filocrítica. Prefácio de Martins Junior. Pernambuco, Tipografia Apolo, 1886, 223 p. Introdução às Questões Vigentes de Tobias Barreto. Meu Álbum. Introdução de Clóvis Beviláqua. Recife, Apollo Editora, 1891, 81 p. “Dr. José Maria”. Carta sobre a morte do dr. José Maria de Albuquerque e Melo, datada de 4 de março de 1845. A Província, 11 de março de 1895 (Reproduzida no Jornal do Recife). (18) Discurso sobre os negócios de Pernambuco. A Província, 5 de julho de 1895. A Família e a Sociedade (Revista Jurídica). A Província, 23 de agosto de 1895. Discurso pronunciado na Câmara, em 7 de agosto último, a propósito da reforna do ensino nas Academias de Direito. A Província, 18 de setembro de 1885. O Problema da Morte. A Província, 5 de julho de 1896. “Código Penal”. Exposição de motivos apresentada na Comissão Especial encarregada da revisão do projeto de Código Penal do dr. João Vieira de Araújo. A Província, 10; 11; 12; 13; 14; 15 e 19 de novembro de 1896. “O Crime como Fenômeno Social”. A Província, 11; 12; 13; 15; 16; 17; 18; 19 e 20 de dezembro de 1896. 31 “Jurisprudência: Concordata Extrajudicial”. A Província, 20 de junho de 1897. “A Cisão”. A propósito da cisão do Partido Republicano Federal. Crítica ao intervencionismo federal na política interna dos Estados. A Província, 2 e 26 de junho de 1897. “Uma Ligeira Resposta”. Sobre as relações dos Estados com o governo federal. A Província, 11 de julho de 1897. “Sílvio Romero, Jurista”. A propósito de Filósofos Juristas, de Clóvis Beviláqua. A Província, 20; 22; 26 e 29 de outubro de 1897. “Partido Autonomista” (Manifesto). A Província, 19 e 20 de novembro de 1897. “José Mariano” (Manifesto contra a sua prisão) A Província, 21 de novembro de 1897. “Partido Autonomista”. A Província, 23; 25 e 28 de novembro de 1897. “Manifesto do Partido Autonomista”. (A propósito das eleições de 1º de março). A Província, 19 de fevereiro de 1898. “O Problema da Morte”. A Província, 14 e 15 de abril de 1898. “Sobre a Codificação do Direito Civil Brasileiro”. A Província, 9 de junho de 1898. “Partido Autonomista aos Eleitores do 5º Distrito”. A Província, 23 de setembro de 1898. “O Sr. Campos Sales e o Manifesto Inaugural”. A Província, 2; 3 e 6 de dezembro de 1898. “O Desarmamento Internacional”. A Província, 15 de janeiro de 1899. “Uma Página de História Experimental’. A Província, 25 de fevereiro de 1899. 32 “Um Caso de Misoneismo Jurídico”. A Província, 15; 17; 21 e 23 de março de 1899. “O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça” (Dr. Fonseca Galeão) A Província, 30 de março e 6; 8; 9 e 11 de abril de 1899. Prefácio ao livro de Inês Sabino Mulheres Ilustres. Rio de Janeiro, Garnier, 1899. 280 p. “O Direito e a Teoria do Realismo e do Idealismo”. A Província, 11 e 13 de julho de 1899. Introdução ao livro de Sílvio Romero Martins Pena, Porto, Livraria Chardron, 1901, 193 p. “Idéias Propedêuticas”. Diário de Pernambuco, 25 de maio de 1901. “Cristianismo e Socialismo”. Diário de Pernambuco, 24; 25; 26; 28 e 29 de janeiro de 1902. (Transcreve uma carta do padr e Júlio Maria a propósito do tema). “O Problema da Velhice”. Diário de Pernambuco, 16 e 17 de abril de 1902. “Cruel Convalescença”. Diário de Pernambuco, 18 de abril de 1902. “A Filosofia e o Problema da Vida”. Diário de Pernambuco, 3 de junho de 1902. “Parecer no Congresso Nacional”. Diário de Pernambuco, 8 de maio de 1903. Ensaios de Crítica. Recife, Cada Editora Diário de Pernambuco, 1904, 381 p. Propedêutica Político-Jurídica. Recife, Laemmert, 1904, 202 p. Tobias Barreto (Seu ponto-de-vista religioso). A Cultura Acadêmica, 1(1): 3-18, jul./dez., 1904. 33 Filosofia Biológica, A Cultura Acadêmica, 1(1):269-186, jul./dez., 1904. Martins Junior, Filósofo. A Cultura Acadêmica, setembro, 1904 (Número especial dedicado a Martins Junior). “Inquérito Literário”. ( Resposta às seguintes perguntas: 1) A que elementos deve a sua formação literária? 2) Qual o espírito mais bem organizado da atual geração de intelectuais de Pernambuco? 3) Como considera o jornalismo do Recife e quais is meios de remodelá-lo?). Diário de Pernambuco, 11 de junho de 1905. “Ligeiro Cavaco”. Diário de Pernambuco, 13 de junho de 1905. “O Inquérito”. Diário de Pernambuco, 20 d ejunho de 1905. Novos Ensaios. Recife, Tipografia J. B. Edelbrok, 1905, 155 p. “O Infanticídio”. A Cultura Acadêmica, 2(1):71-78, ago., 1905. “Concepção Nova da Matéria”. Diário de Pernambuco, 24; 25 e 30 de agosto de 1905. “Crime e Loucura” (A propósito de Menores e Loucos de Tobias Barreto). Diário de Pernambuco, 15 de setembro de 1905. “A Questão do Estilo” (A propósito de Poesia Científica, de Martins Junior). Diário de Pernambuco, 1 de outubro de 1905. “Maciel Monteiro”. Diário de Pernambuco, 14 de outubro de 1905. “Memória Apresentada ao 3º Congresso Científico LatinoAmericano”. A Cultura Acadêmica, 2(3):225-239, dez., 1905. “Missioneismo Jurídico”. Diário de Pernambuco, 17 e 24 de janeiro de 1906. “Uma Grande Descoberta”. Diário de Pernambuco, 4 de março de 1906. 34 Pan-Americanismo. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1906, 220 p. “Verificação de Poderes”. Diário de Pernambuco, 30 de maio de 1906. “Dois Belos Romances de Amélia de Freitas Beviláqua”. Diário de Pernambuco, 8 de julho de 1906. “Um Crítico Moderno: Augusto Franco”. Diário de Pernambuco, 26 de julho de 1906. “Um Livrinho Primoroso de Alfredo Carvalho”. Pernambuco, 5 de agosto de 1906. Diário de “A Ciência e a Religião sob o Ponto-de-Vista Social”. Diário de Pernambuco, 15 de setembro de 1906. “Organização de Importante Serviço” (A propósito da repartição federal de Geologia e Mineralogia), Diário de Pernambuco, 19 de janeiro de 1907. “General Júlio Rocca”. Diário de Pernambuco, 7 de março de 1907. “Um Grande Plano de Combate” (A propósito do combate à tuberculose). Diário de Pernambuco, 20 de março de 1907. “A Vida Universal”. Diáriod e Pernambuco, 7 de abril de 1907. “Discurso no Instituto Histórico”. Diário de Pernambuco, 12 e 13 de setembro de 1907. “A Reforma do Ensino”. Discurso na Câmara dos Deputados. Diário de Pernambuco, 10; 11; 12 e 13 de outubro de 1907. Reforma do Ensino. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1907, 41 p. “Discursos dos drs. Artur Orlando e Oliveira Lima na Academia Brasileira”. Diário de Pernambuco, 28 de dezembro de 1907. 35 Porto e Cidade do Recife. Pernambuco, Jornal do Recife, 1908, 123 p. “A História do Brasil” (A propósito do livro de Sílvio Romero). Diário de Pernambuco, 19 e 20 de dezembro de 1908. “Discurso na Câmara dos Deputados”. Diário de Pernambuco, 1; 2; 3 e 4 de setembro de 1909. “Joaquim Nabuco”. Diário de Pernambuco, 2 de fevereiro de 1920. “Pernambuco”. Diário de Pernambuco, 2; 5; 8; 12 e 16 de abril de 1910. “Joaquim Nabuco”. Discurso pronunciado na Câmara Federal. Diário de Pernambuco, 21 de abril de 1910. “São Paulo, Bandeirantes”. Diário de Pernambuco, 7 de julho de 1910. São Paulo vérsus Alexandre IV (Memória Apresen tada ao 2º Congresso Brasileiro de Geografia). Diário de Pernambuco, 26 de julho de 1910. São Paulo vérsus Alexandre IV, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1910. 23 p. (2º Congresso Brasileiro de Geografia). “Ideal Social”. Diário de Pernambuco, 29 de julho de 1910. Flora e Fauna Brasileira. Revista da Academia Brasileira de Letras, 2(3):39-64, jan., 1911. A Propósito dos Platirrínios Brasileiros. Revista da Academia Brasileira de Letras, 2(3):229-286, abril, 1911. Clima Brasileiro. Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1911, 22 p. (3º Congresso Brasileiro de Geografia). Brasil, a Terra e o Homem. Recife, O Tempo, 1913, 208 p. 36 NOTAS (1) Discursos Acadêmicos – Vol. I (1897-1917), Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1965, pág. 350. (2) Clóvis Beviláqua – “Emílio Littré” (1882), conferência realizada em nome da Sociedade Positivista do Recife; in Esboços e Fragmentos, Rio de Janeiro, Laemmert, 1899, págs. 146/147. (3) Filocrítica – Introdução de Martins Júnior . Pernambuco, Tipografia Apolo, 1886. (4) Idem. (5) 19 (6) Cultura Acadêmica – Tomo I. Fac. III, nov./dez., 1904, pág. Idem (7) Discursos Acadêmicos – Vol. I, edição citada, págs. 323344. (8) O Brasil, a Terra e o Homem – Recife, O Tempo, 1913 (9) “Deve a Metafísica ser Considerada Mort a?” )1875) in Estudos de Filosofia, Tomo I, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1966, págs. 135 a 138. (10) Incluída nos Estudos de Filosofia – Tomo II, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1966, 207 p. (11) Introdução ao livro Tobias Barreto na Cultura Brasileira: uma Reavaliação, de Paulo Mercadane e Antônio Paim, São Palo, Ed. Grijalbo/Univ. de São Paulo, 1972, págs. 22/23. (12) Zeverissimações Ineptas da Crítica, Porto, 1906, págs. 79/80. (13) Esboços e Fragmentos, Rio de Janeiro, 1899, págs. 8 e 9. 37 (14) Discursos Acadêmicos – Vol. I (1897/1919), Rio de Janeiro, Ed. da Academia Brasileira de Letras, 1965, págs. 180/171. (15) “Tobias Barreto” in Ensaios de Crítica, nota (1) às págs. 225 e seguintes. (16) Novos Ensaios – Recife, 1905. (17) Embora muitos estudiosos de sua obra refiram colaboração assídua no Jornal do Recife (fundado em 1857), na coleção da década de 90, consultada na Biblioteca Nacional, consta apenas na Seção de Avisos de 24 de março de 1891, anúncio do escritório d e advocacia de Artur Orlando (Rua do Imperador, 77) e um único artigo, de sua autoria, sobre o assassinato do líder político José Maria, aparecido na edição de 5 de março de 1895. (18) A Província foi fundada em 1877 e teve a Tobias Barreto entre os seus colaboradores. O nome de Artur Orlando aparece entre os colaboradores a partir da edição de 7 de julho de 1895, ao lado dos seguintes: Artur Henrique de Albuquerque Melo, Baltazar de Albuquerque Martins Pereira, Francisco de Albuquerque Melo, Francisco Faelante da Câmara Lima, Gaspar de Drumond, José Gonçalves Maia, José Mariano Carneito da Mota, José Nicolau Tolentino de Carvalho, Luiz Demétrio Dias Simões e Manoel Caetano de Albuquerque e Melo. 38 PARTE I CRÍTICA DE FILOSOFIA, CIÊNCIA E DIREITO 39 . O PROBLEMA DA MORTE O Problema da Morte é o título de um excelente livro, em que seu autor, Louis Bordeau, discute as mais interessantes questões. A vida, a alma, o paraíso, tudo ali é tratado com um profuso e profundo saber. Em uma de suas máximas afirma La Rochefoucauld que nem o sol nem a morte podem ser encarados fixamente. É um duplo erro, segundo nota Louis Bordeau. Em primeiro lugar o sol tem sido tratado como uma espécie de animal curioso pelos astrônomos, cada um destes, armado das mais aperfeiçoadas lentes, mirando com olhos indiscretos o leão dos céus, e procurando ler sua luminosa história na página azul do firmamento. Em segundo lugar a morte não somente sem sido encarada, ou melhor, afrontada por aqueles que se expõem às balas e às epidemias, mas ainda há fornecido assunto para os mais aprimorados motejos ou as mais pungentes ironias por parte dos espíritos galantes ou sarcásticos. Quem ignora que o desabusado Leopardi fazia a corte à morte com toda a ternura da alma, como outros fizeram a corte a Helena, Onfália, Cleópatra, e falava na gentileza de morir com o mesmo carinho e doçura, com que um poeta lírico fala no delicioso perfume de uma flor? (1) 40 Voltaire com seu sorriso escarninho exortava Mme. de Deffand a gozar, tanto quanto pudesse, a vida, que é pouca coisa, sem temer a morte, que não é coisa alguma, e escrevia a seu amigo Thiriot: “Me moquant de tout son orgueil, Toujours un pied dans le cercueil De l’autre faisant des gambades.” Assim como tem havido quem em vida haja chorado sobre seu próprio túmulo, compondo para si doridos epitáfios, da mesma sorte não tem faltado que, por centenas de escudos, haja comprado magníficos epigramas para ornarem sua própria sepultura. Tal é o caso do abade de la Rivière, Louis Barbier, que, legando em seu testamento cem escudos a quem fizesse seu melhor epitáfio, deveu a La Monnoye a nota mais harmoniosa: “Ci-gît um très grande pernonnage Qui fut d’um illustre lignage, Qui posséda mille vertus, Qui ne trompa jamais, qui fut toujours fort s age. Je n’en dirai pas davantage: C’est trop mentir pour cent écus.” Para o túmulo dos filósofos, que, atormentados pela dúvida, vivem a levantar eternas questões sobre tudo, Parny compôs um epitáfio, que é um primor de crítica: 41 “Ici gît qui toujours douta, Dieu par lui fut mis en problème Il douta de son être même; Mais de douter il s’enuy, Et, las de cette nuit profonde, Hier au soir il est parti Pour aller voir, en l’autre monde, Ce qu’il faut croire en celui-ci.” Nao seria dificil prolongar esta excu rsão pela cidade dos mortos para recolher a boca das tumbas os ditos mordazes contra a implacável triunfadora, que, como o camelo negro da lenda dos árabes, se ajoelha todos os dias às portas das casas; mas já é tempo de iniciar o indulgente leitor no Problema da Morte, cuja solução, esperamos, não irá aterrá-lo, como a Mme. de Sevigné apavorava o pensamento da honra suprema. Realmente, a adorável criatura perde todo seu bom humor, quando pensa na morte. “Embarquei na vida sem meu consentimento, diz ela em sua carta de 16 de março de 1672; é preciso que eu saia, isto me consome, e como sairei? Por onde? Por que porta? Quando será, em que disposição: Sofrerei mil e mil dores, que me farão morrer desesperada? Em me abismo nestes pensamentos, e acho a morte tão terrível que odeio a vida mais porque a ela nos conduz do que pelas dores que sofremos.” Um fenômeno da vida diária deu origem às idéias de alma e sobrevivência. É o sono. Dormindo, o homem primit ivo sonha, e ao despertar lembra -se de que visitou 42 tais e tais lugares, de que lhe apareceram tais e tais coisas, de que praticou tais e tais ações. Pelo seu estado de inferioridade intelectual não podendo explicar estes fatos por um trabalho espontâneo do cérebro, ele os atribui a um ser interior, que durante o sono abandona o corpo para se lhe unir de novo algumas horas depois. Ora, na morte é este mesmo ser interior, que abandona o corpo por mais algum tempo ou mesmo para sempre. A aparição de pessoas e animais mortos, que se afiguram vivos, ainda mais confirma a existência deste ser interior, independente do corpo, e agora sob o ponto de vista objetivo. São pessoas e animais, cujo ser interior continua a persistir depois da morte. Entretanto, além das pessoas e animais, aparecem em sonho coisas inanimadas, que não somente brilham como as estrelas, ou movem-se como as nuvens, ou crescem como as árvores, ou desabrocham como as flores, ou fulminam como os raios mas, até se metamorfoseam, tomando formas gigantescas ou desconhecidas, atacam ou pro tegem os seres animados, falam com eles; então o homem primit ivo explica sua aparição pela existência de um ser interior como nas pessoas e nos animais. Deste modo tudo se anima na natureza, e tal é o estado de cultura, a que Tylor dá o nome de animismo. Mas de que natureza é este ser misterioso, que ora se mantém unido ao corpo, ora o deixa por intervalos ou para sempre, a fim de se transportar ao longe? A alma humana nem sempre teve uma natureza espiritual; não foi senão após longas transformações que ela se tornou de uma pura imaterialidade. Primitivamente o espírito 43 significava sombra, e assim participava, de alguma sorte, da materialidade do corpo. Pelo menos, deixava se ver-se, tinha movimentos, podia ser atingido. Os Bassutos acreditam que, quando um homem caminha sobre a margem de um rio, um crocodilo pode agarrar-lhe a sombra, e assim arrastá-lo para fundo d’água. “Na língua asteca e nas da mesma família, diz Spencer, a palavra ehecatl significava ao mesmo tempo vento, sombra, alma. As tribos da Nova Inglaterra chamavam a alma chemung, sombra. Na língua quiché a palavra natub e da dos esquimós a palavra tarnak exprimem estas duas idéias”. (2 ) Mas para que multiplicar os exemplos de sinonímia entre as duas palavras? é um fato muito conhecido dos filólogos. Não somente as línguas selvagens, mas o grego, o latim e outras línguas civilizadas exprimem a mesma relação de identidade entre os dois vocábulos. Umbra, entre os romanos, significa a sombra dos vivos e a alma dos mortos. É o que explica certos povos acreditarem que o co rpo do morto não projeta sombra. Por atribuírem ao espírito as propriedades do corpo, é que alguns povos selvagens têm por costume ofertar aos mortos comida, utensílios de caça e pesca e outros objetos indispensáveis à satisfação de necessidades puramente fisiológicas. É muito comum entre os selvagens o uso de fornecer alimentos aos mortos. Dentre os inúmeros casos mencionados pelos etnologistas, lembraremos apenas o hábito de os mexicanos depositarem aos mortos, além de alimento, 44 vestimentas. Nota Spencer que este uso persistiu por muito tempo entre os incas, a cujos cadáveres embalsamados se dizia: “Quando vivíeis, tínheis o hábito de beber e comer; que vossa alma receba e se nutra onde quer que estejais”. (3 ) O mais interessante é que, segundo nos ensina ainda o eminente filósofo inglês, o costume tem lugar mesmo nos países, em que se dá a cremação. Assim, pratica-se entre os Kukis, de que fala Butler, e entre os antigos indígenas da América Central, a que se refere Oviedo. Acreditam os selvagens que os esp íritos fazem excursões, e que estas excursões são cercadas de dificuldades e perigos. Por isso não é de admirar que lhes dediquem instrumentos de defesa e até lhes sacrifiquem animais e servidores, que os acompanhem nas viagens de além túmulo. Portanto, na da mais natural do que o desejo desse chefe chinouk de matar a mulher para ela acompanhar ao outro mundo o filho. Os esquimós costumam imolar um cão na sepultura das crianças para lhes servirem de guia à região dos mortos. Em Anit ium, morta uma criança, estrangula-se a mãe, a tia ou a avó, para conduzi-la ao mundo dos espíritos. (4 ) Da concepção de uma alma material, não de u’a materialidade densa e compacta como o corpo, mas de u’a materialidade sutil e etérea, que, entretanto, toma alimentos, é devorada pelos animais ou persegue como fantasmas os inimigos, se passou à idéia de uma alma sopro. Além do ar. que levanta turbilhões de areia ou trombas d’água, encrespa a superfície dos lagos ou 45 abranda o calor das faces, a cessação respiratória, por ocasião da morte, também deu origem a esta crença. Entre os australianos Wang significa indiferentemente alma, sopro ou respiração. Da mesma sorte entre os hindus Brahma quer dizer sopro ou alma. O mesmo se dá com Kneph – o espírito divino dos egípcios – que deriva de nef sopro. Para muitos habitantes da Polinésia a alma é o sopro, que se exala, tanto assim que eles costumam tapar a boca e o nariz dos moribundos para impedirem que a alma se escapula. Não tem outra significação a prática romana descrita por Virgílio e por Cícero, em virtude da qual um dos parentes mais próximos devia aspirar o último sopro do agonizante. O fim era assimilar o espírito do finado, do mesmo modo que certos selvagens acreditam apropriar as forças do inimigo, devorando-lhe as carnes. É por isto que no Taiti, onde julga-se residir a alma nos olhos, pertence ao chefe da tribo o privilégio de comer os olhos do inimigo. Os hebreus não faziam outro conceito da alma. No Gênese o homem não é transformado em alma vivente senão depois que o Senhor lhe imprime na fronte o sopro da vida. Em Ezequiel não bata que os esqueletos revistam a carne para que revivam, é preciso que o espírito divino sopre sobre eles. Não foi sem viva oposição que a doutrina de Anaxágoras, desenvolvida por Platão, pôde atravessar os séculos para encontrar em Santo Agostinho seu mais esforçado e fervoroso defensor. Os primeiros cristãos não tinham uma idéia clara da espiritualidade da alma. 46 Esta doutrina não estava nas tradições do espírito judaico. Jesus ressuscitou em sua carne. Tal é o dogma fundamental do cristianismo. Além de Galeno, espírito prático que não via na distinção ente a alma e o corpo senão uma questão estéril, que não aproveita a saúde nem a virtude, muitos padres e doutores da Igreja consideravam a alma material, e outros não admitiam senão uma espiritualidade relativa. Entre os primeiros figura Santo Hilário, e entre os segundos Santo Irineu. Não é senão com Santo Agostinho que a alma vem a ser tida como uma substância puramente espiritual, que existe por si mes ma, independentemente da matéria, doutrina que atingiu seu pleno desenvolvimento em Descartes, além do qual o espiritualismo moderno não avançou um passo. Realmente, todos os argumentos, com que os espiritualistas defendem sua hipótese de uma dualidade de naturezas distintas, associadas durante a vida, e caracterizadas por qualidades antagônicas, estão contidos nas palavras do notável filósofo francês: “Examinando com atenção o que eu era, conheci que era uma substância, de que toda essência ou natureza não é senão pensar, e que para existir não tem necessidade de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material, de sorte que este eu, isto é, a alma, pela qual eu sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo...” É interessante notar que um povo, que fa zia de seu Deus a principal fonte de justiça, não tivesse cogitado de uma existência, futura, servindo de sanção à vida presente. Tal é o caso dos judeus, que punia os 47 culpados em sua descendência e não em sua alma sobrevivente. “O antigo semita, escreve R enan, repelia como quiméricas todas as formas, sob que os outros povos representavam a vida de além túmulo. Ele era levado a isto por um certo bom senso e também pela imagem exaltada, que fazia da grandeza divina. Só Deus é eterno; o homem não vive senão a lguns anos; um homem imortal seria um Deus, um rival de Deus, uma impossibilidade”. (5) O Pentateuco não fala em imortalidade do indivíduo, e nos outros livros do Velho Testamento os textos, que aludem à vida futura, têm uma significação negativa. Assim, interrogando Job, quando o homem morrer, que será dele, a resposta é que o homem, quando dormir, não ressuscitará nem se levantará de seu sono. “No ponto de vista do hebraísmo, diz Bourdeau, julgar se imortal seria para o homem uma impiedade arrogante, uma dupla injúria à majestade divina e ao senso comum”. (6 ) A história de Israel não é senão a de um povo, que durante muitos séculos lutou heroicamente para abolir as iniqüidades deste mundo, para implantar sobre a terra o império da justiça; e somente quando o s profetas, espécie de modernos socialistas, reconheceram que seu ideal não passava de um sonho irrealizável, de uma utopia, foi que eles imaginaram o reino de Deus para servir de recompensa à virtude desprezada neste mundo. Mas apelando para o céu na questão da vitória definitiva da justiça, Cristo não fez senão adiar 48 indefinidamente a solução de um problema, que foi a preocupação constante dos filhos de Israel. Associar a justiça divina à sobrevivência humana é a missão do cristianismo, porquanto a crença em uma existência futura nem sempre implica a idéia de uma divindade, que distribui recompensas ou castigos às ações boas ou más da vida presente. Os celtas acreditavam vivamente na imortalidade da alma; mas não associavam esta crença à doutrina de uma ju stiça de além túmulo. Para eles a existência futura não é senão um prolongamento da vida presente, em que não se pode contar com uma justiça absoluta. “Entre os Celtas, observa D’Arbois de Jubainville, a crença na imorta lidade da alma tinha um poder, que impressionou vivamente o espírito dos Romanos; mas esta crença não era, como entre os cristãos, associada à doutrina teológica do paraíso e do inferno. O morto, pensava -se, encontrava no outro mundo uma vida semelhante a esta, e onde, como nesta, toda just iça superior era ausente”. (7) Bordeau considera a doutrina judaica da ressur reição e das recompensas futuras assimilada do ma deísmo, (8 ) ao passo que Darmesteter julga-a emprestada da filosofia grega. (9 ) É verdade que a religião de Zoroastro consagra as idéias de uma sobrevivência individual e de uma remuneração futura; porém muito antes dos medas e dos persas já os egípcios se tinham salientado por uma noção nítida da justiça divina em uma vida futura. “No Egito, lembra D’Arbois de Jubainville, desde os t empos mais antigos, em que podemos remontar, vemos estabelecida a noção da 49 justiça divina na outra vida, e da justiça real nesta. O Livro dos Mortos, de que temos exemplares escritos no sexto, e talvez no sétimo século antes de nossa era, nos dá o texto oficial do arrazoado, que o morto em presença do juiz supremo devia fazer. O morto não devia somente firmar que tinha desempenhado suas obrigações para com os deuses, era preciso que tivesse também cumprido seus deveres para com os homens”. (10 ) Também a preocupação de conservar os corpos dos finados por meio do embalsamamento não deixa a menor dúvida de que aos egípcios não era estranha a idéia da ressurreição. Mas a ressurreição fazendo reviver o homem todo inteiro, alma e corpo, não é a mesma coisa que o conceito de uma alma distinta do corpo, sobrevivendo à morte. Não o é no sentido da imortalidade platoniana, isto é, de uma alma que existe individualmente antes e depois da morte, nem no sentido de imortalidade, como entendia a maioria dos filósofos gregos – uma emanação e absorção final da alma humana no ser infinito pela supressão dos limites da individualidade. Deste modo não se pode dizer que a fé na ressurreição futura seja uma filiação do madeísmo ou da filosofia grega, ela provém de uma fonte mais remota, dos egípcios, com quem os judeus estiveram sempre em contato. Renan pensa que as três histórias reunidas da Grécia, da Judéia e de roma constituem o que se pode chamar a história da civilização, e que a Grécia neste trabalho de colaboração representou um papel extraordinário, porque fundou, em toda a extensão do 50 termo, o humanismo racional e progressivo. Mas a Helade em sua esfera intelectual e moral teve uma enorme lacuna: seus filósofos, cogitando da imor talidade do espírito, não se preocuparam co m as iniqüidades da vida presente. Entre os gregos a religião é, com efeito, antes uma explicação mitológica do universo do que uma organização da sociabilidade da vida, não somente em relação aos seres reais e vivos, mas ainda aos seres ideais e imaginários. Após o animismo grosseiro dos primeiros tempos a indagação de uma vida futura na Grécia não tem lugar senão como questão metafísica da origem e destino das coisas, e não como problema da vida prática e suas diversas manifestações individuais ou sociais. Sócrates e Platão discorrem eloqüentemente sobre a imortalidade da alma. Mas para Sócrates a sobrevivência não passa de uma esperança, com que a pessoa se deve encantar. É bem significativa a peroração de seu discurso perante seus julgadores: “De duas coisas uma, ou a morte é o inteiro aniquilamento ou é a passagem para um outro lugar. Se tudo é destruído, a morte será uma noite sem sonho e sem consciência de nós mesmos, noite eterna e feliz. Se é mudança de morada, que felicidade encontrar os conhecidos e conversar com os sábios!” Platão afirma catego ricamente a imortalidade do espírito e a existência de castigos e recompensas além da vida presente; mas da forma mais pomposa e deslumbrante que real e convincente de seus argumentos dá testemunho Cícero, quando escreve: “Não sei como é isto, li e reli o Fédon, 51 de Platão, e lendo-o estou sempre de acordo com o autor; mas apenas fecho o volume, minhas dúvidas aparecem, e pergunto se sou imortal.” A doutrina de Platão não tem a nitidez, que ordinariamente se lhe atribui, e algumas vezes a falta de clareza toca à contradição. Segundo nos informa Draper, para Platão “cada ser é composto de duas partes, uma alma e um corpo; sua separação constitui a morte; a alma é composta de dois elementos, um elemento mortal, que lhe é dado pelos deuses criados, e um elemento imortal, que ela recebe do Deus supremo; um terceiro elemento é necessário para servir de laço entre estes dois elementos opostos: é o elemento demoníaco ou o espírito; da coexistência destes três element os, o apetite, o espírito e a razão, nascem os conflitos, que agitam nossa alma; só a razão é imortal, as duas outras partes são mortais; o número das almas, que o universo contém é invariável e constante; o sentimento da pre existência, que temos em nós, prova que a alma existiu antes de nós”. Ora é sabido que no Timeu Platão não admite a imortalidade senão na medida, em que a natureza humana a comporta. Portanto, além do dis parate, já notado por Lucrécio, de uma substância imortal associada a uma substância mortal, sofrendo ambas as mesmas vicissitudes por intermédio de uma terceira substância, o elemento demoníaco, temos uma imortalidade, que não é completa, absoluta, mas restrita, condicionada, o que importa absurdo, tanto mais despropositado quanto é certo que para Platão a alma existe desde toda a eternidade, ab aeterno. Mas a 52 eternidade, da mesma sorte que a infinidade, exclui toda a idéia de relatividade. A Platão, sonhando uma imortalidade individual, se pode dizer que se opõem todos os filósofos gr egos: céticos, epicuristas, estóicos, alexandrinos. Segundo o ceticismo, para que indagar sobre a vida futura, quando se desconhece a vida presente? Para o epicurismo, a alma não sendo senão uma reunião de átomos, que a morte separa, é inútil se preocupar com uma existência, que não passa de uma ilusão. O estoicismo não admite uma imortalidade senão para os sábios e os heróis. O alexandrino adota francamente a doutrina védica da emanação e absorção do Universo em Deus. Seu conceito não é outro senão o dos f ilósofos e poetas indianos – a alma voltando com a morte ao ser infinito pela supressão dos limites da individualidade. O ser infinito, diz um filósofo e ao mesmo tempo poeta indiano, é como cristal límpido, que recebe em si todas as cores, e as emite de novo, sem que sua transparência ou sua pureza seja alterada ou maculada. Resumindo a filosofia grega relativamente à natureza da alma, diz Draper: “Consideremos uma dessas bolhas, que flutuam sobre o mar; em razão de sua forma ela reflete todos os objetos d a margem, estejam em repouso ou em movimento; reflete mesmo este mar, sobre o qual flutua, e do qual nasceu, e reproduz suas formas múltiplas, tais como realmente são com suas luzes e suas sobras, sua perspectiva e suas nuances particulares, ajuntando a isto o jogo de suas próprias cores. Esta bolha é a imagem exata da alma. Saiu do mar 53 infinito e sem fundo; sob qualquer relação não difere da fonte, que lhe deu nascimento; procede da água e não será senão água. Estas propriedades, que ela vem de manifestar, as deve unicamente, pelo menos no que respeita à parte exterior do fenômeno, à sua forma particular e às circunstâncias, em que se achou colocada; segundo estas circunstâncias variam, flutua ora aqui, ora ali, fundindo-se em outras bolhas, que encontra, ora saindo ainda uma vez da escuma das águas. Aparece ora maior, ora menor, em um certo momento toma novas formas, em um outro se perde nas que a cercam; mas quaisquer que sejam as vicissitudes, a que está exposta em todas estas migrações, um inevitável destino a espera, a absorção e a reincorporação no oceano. Neste momento final, o que nesta bolha se perdeu, o que foi destruído? Não foi certamente sua substância essencial; porque antes de se desenvolver ela era água, água foi durante toda a duração de sua existência, e água permanecerá sempre pronta a se dilatar de novo”. (11 ) Por esta explicação magistral se vê que a filosofia grega em relação à alma humana não caminhou um passo além da concepção védica. A alma humana, esta partícula da inteligência univer sal, separada momentaneamente de sua fonte primitiva pelo corpo, tende a voltar a ela inevitavelmente como o rio volta ao oceano, que lhe deu origem. Entre filósofos, os poetas e os moralistas latinos reina a dúvida, senão a descrença, quanto à natureza d a alma. Todo o terceiro livro do grandioso poema de 54 Lucrécio se destina a provar que a alma nasce, cresce e sucumbe com o corpo. “As crianças não têm senão membros delicados e débeis, um passo incerto, a que acompanha a fraqueza do pensamento. Mais tarde, as forças se desenvolvem com a idade, a inteligência se alarga, e o espírito adquire vigor. Afinal, quando o corpo é abalado pelos violentos ataques do tempo, os órgãos se embotam e se enfraquecem os membros, então o entendimento cavila, a língua titubeia com o pensamento, tudo falece, tudo foge ao mesmo tempo”. Por que a alma, que sofre todas as vicissitudes do corpo, há de prolongar sua existência fora de seu abrigo natural? “Será com receio de permanecer encerrada num corpo em ruínas, temendo que a velha casa, desmoronando-se ao peso dos anos, ameace sepultá-lo? Mas há perigos para um ser imortal?” Para o De Rerum Natura não há maiores disparates do que a união do mortal com o imortal e a ação do corpóreo sobre o incorpóreo. Entretanto, segundo os espiritualistas a alma se acha tão intimamente ligada e subordinada ao sangue, aos nervos e aos ossos, que ela sofre ao contato da água gelada por intermédio dos dentes cariados. Plínio afirma que “depois da morte o corpo e a alma não sentem mais do que sentiam antes do nascimento... Isolada a alma dos sentidos, como verá, ouvirá e tateará?... É, portanto, uma loucura pretender sobreviver depois da morte”. (12) No entender de Sêneca não há razão para lastimarmos a morte dos seres, que nos são caros. Se com a morte desaparece o sentimento, o finado volta à condição que tinha antes de nascer. Se, 55 porém, persiste o sentimento, então a alma deve sentir se satisfeita, gozando o grandioso espetáculo da natureza. “Das alturas, em que é colocada, verá a seus pés as coisas humanas, e contemplará de perto as coisas divinas, cujas causas por muito tempo interrogou”. (13 ) Mas as conclusões finais do filósofo latino são sempre no sentido negativo contra a imortalidade. “A morte não é um bem nem um mal. Porque, para ser um bem ou um mal, seria preciso ser alguma coisa; mas o que não é coisa alguma, o que reduz tudo a nada, não impõe uma nem outra daquelas condições”. (14 ) Não há maior loucura do que temer aquilo que não será sofrido. (15 ) Nada mais doce de perder do que aquilo que não se pode lamentar quando se tem perdido. (16 ) Que importa não começar ou cessar de existir? Um e outro estado importam uma e a mesma coisa – não existir. (17) No mundo cristão, mesmo depois que o concílio de Latrão condenou aqueles que negassem a imor talidade da alma, lavra não menor divergência de idéias quanto à origem, natureza e destino do espírito humano. Ao lado de Santo Agostinho e seus discípulos surgem materialistas, idealistas, panteístas, combatendo a dou trina daqueles que separam o homem em duas substâncias, uma corpórea e outra imaterial, a primeira transitória e a segunda eterna. A prodigiosa diversidade de opiniões se mantém por afirmações tão contraditórias, que fazem descrer da unidade da razão humana, até se chegar ao conceito de uma psicologia, não diremos somente sem alma, como 56 alguém já se exprimiu, mas sem matéria e sem espírito, designando estes termos duas substâncias distintas e concomitantes. Então não se quer mais indagar se a alma e o corpo formam duas substâncias extrínsecas, o u se a alma é uma simples propriedade do corpo, ou se a matéria é uma aparência puramente fenomênica, ou se a personalidade individual é u’a manifestação da impes soalidade universal; apenas constatam-se estados fisiológicos e psíquicos, que se determinam, mas não se produzem uns aos outros. “A diferença entre determinar e produzir é capital, diz Sully-Prudhomme, produzir é fornecer os materiais da coisa que nasce, determinar é simplesmente fornecer as condições do nascimento”. (18 ) A necessidade de uma justiça futura, punindo os mais e recompensando os bons, é o grande argumento invocado em favor de um outro mundo para reparar as iniqüidades deste. “A história de Israel, escreve Renan, é um esforço de dez séculos para chegar à idéia das compensações ulteriores... A idéia de que a virtude deve ser recompensada, é a mais lógica das idéias, que compensam o espírito humano. A idéia de que a virtude é, com efeito, recompensada, é uma afirmação ousada, a que o israelita foi levado por uma confiança absoluta na justiça divina. Deus quer o bem e ordena -o; por conseguinte recompensa-o. Ele pode tudo; se abandonasse aquele que se conforma com sua vontade, seria absurdo, enganador, autor da iniqüidade”. (19) O próprio filho de Israel, porém, nem sempre teve a idéia de u m mundo superior como sanção da virtude: os maus são 57 punidos, não em sua sobrevivência, mas em sua descendência até a terceira e quarta geração. Primitivamente os selvagens não têm idéia alguma de uma outra vida. A morte não é senão a cessação momentânea da vida presente. Mais dias menos dias, o morto deve voltar à vida ordinária, como provam as precauções para impedir a decomposição dos cadáveres, os cuidados para que os corpos não sejam devorados pelos animais ou atacados e injuriados pelos inimigos, e tantas outras medidas e expedientes, de que usam os selvagens. Mais tarde, quando lhes vêm a noção de um outro mundo, este não passa de uma cópia da vida presente. Por isso não raras vezes vemos somente gozando das delícias paradisíacas os filhos da fortuna, enquanto os desprotegidos da sorte são atirados a regiões inóspitas. Mas nem sempre se estende a todos os espíritos o direito de sobreviver. A princípio é um privilégio dos chefes, dos heróis ou das classes superiores. Entre os comanches sobrevivem os bravos, que se salientam, matando os inimigos ou furtando cavalos. Nas ilhas Tonga apenas não morrem as almas dos chefes. O mesmo se dá na Nova Zelândia. Além dos selvagens e dos bárbaros não faltam povos civilizados, nos quais a vida futura depende da vontade dos deuses. Daí o uso das orações e mais expedientes propriciatórios para assegurar a sobrevivência. Em São Lucas e em São Paulo a ressurreição não é prometida senão aos justos; os ímpios devem per manecer no nada para seu castigo. (20 ) Lactâncio sus58 tentava que a imortalidade é “o salário e a recompensa da virtude e não um apanágio de nossa natureza”. (21) A maioria dos filósofos e poetas, antigos e modernos, não atribui a imortalidade senão à glória; a vulgaridade, depois da morte, se some no esquecimen to, como, em vida, se perde na obscuridade. Um paraíso de pobres e humildes como o de Jesus, é um fenômeno único, que não se explica senão como uma conseqüência das idéias e um desenvolvimento dos acontecimentos do povo judeu. Sempre sujeito aos vencedores deste mundo, o filho de Israel tinha necessidade de uma compensação futura. Jesus apelou para a vida futura como uma recompensa aos infortúnios de seu povo. Sabe -se como a doutrina cristã, prometendo o reino de Deus aos pobres e fracos, e dele excluindo os ricos e poderosos, levantou vivos protestos no mundo oficial dos judeus. Não é senão em um estado de civilização muito avançado que a sanção moral se alia à idéia de uma vida futura. Isto prova que é possível fundar uma moral independentemente de toda idéia de sanção em um outro mundo, o que, entretanto, não quer dizer que a doutrina, que adiou para depois da morte os efeitos da justiça divina, não tenha exercido uma ação mais poderosa e eficaz do que a que limitou aqueles efeitos à vida presente. A razão é que a falta de uma justiça divina em um outro mundo é muito mais difícil de constatar do que neste. Convém não esquecer que os israelitas não cessavam de exprobar Jeová de não ter favores senão 59 para seus inimigos, e falhando deste modo a justiça divina sobre a terra. Jesus não teve outro recurso senão apelar para o céu. Infelizmente “o Reino de Deus” não é feito para os virtuosos, mas para os pobres, os fracos e os oprimidos, sem se levar em linha de conta, como justamente observa Bordeau, o bem que, por ventura os ricos, os poderosos e os opressores tivessem praticado, e o mal de que os pobres, os fracos e os humildes não se houvessem isentado. Jesus opõe positivamente a pobreza à riqueza, a fraqueza ao poderio, a humildade à glória, e deste modo exclui os protegidos da sorte, os filhos da fortuna, da bem-aventurança eterna. Assim o reino de Deus importa uma formidável injustiça agravada pela desproporcionalidade de compensação, porquanto, ao passo que a felicidade do rico, por exemplo, é transitória, a do pobre vem a ser eterna. Entretanto a riqueza por si só não é uma falta, como a pobreza não é uma virtude. Não menos interessante que o estudo da condição é o da morada dos espíritos. A princípio os mortos habitam as mesmas regiões que os vivos. Segundo Cruickshank (22 ) os naturais da Costa do Ouro pensam que o espírito permanece no mesmo lugar em que o corpo foi sepultado. Levingstone afirma que ao norte do Zambeze é crença geral que os mortos erram entre os vivos e tomam os mesmos alimentos que estes. E porque o finado continua a habitar o lugar do falecimento, é que entre alguns povos selvagens a família abandona a casa, em que habiava o falecido, apenas dá-se a morte. Entre os Chipchas um óbito é sempre motivo para que os 60 sobreviventes mudem de cabana. (23 ) A razão é que os vivos temem o espírito malfazejo dos mortos. “Movidos por um melhor sentimento, diz Tylor, os negros do Congo se abstêm, durante um ano inteiro, de varrer uma casa em que a morte passou, com receio de que o pó fira a substância delicada do espírito”. (24 ) Bordeau nota com razão que mesmo entre os civilizados é preciso uma certa coragem para atravessar sem susto um cemitério, que se julga povoado de espíritos. (25 ) Com o tempo a região dos mortos se estende: os espíritos vão habitar os bosques, o cimo das montanhas, ou, em maior distância, as ilhas isoladas pelo mar. Refere Turner que os habitantes das ilhas Samoa supõem que os espíritos erram nos bosques. A mesma crença predomina na Nova Caledônia. (26 ) É sobre as mais altas colinas que os caraíbas e os comanches sepultam seus chefes. Entre os patagônios e os árabes orientais todos os mortos são enterrados nos píncaros das montanhas. Este costume deu origem à crença de que a morada bem-aventurada dos espíritos é nos montes. Em Bornéo o paraíso da raça Idaan é no cume do Kina balu, e na ilha de Java o éden dos Sajiras no cimo do Gummung Danka. No México o deliciosa Tlalocan, morada das almas das crianças sacrificadas a Tlaloc e das pessoas que morrem de lepra, hidropisia e moléstias agudas, floresce sobre o alto das montanhas. (27 ) A idéia de um paraíso coberto de vegetação luxuriante, fecundo de caça, fez com que entre alguns povos a habitação dos espíritos fosse transplantada para 61 os vales. Pelas condições de isolamento, porém, reu nidas às de fertilidade, as ilhas, mais do que os vales dos continentes, se prestam à morada dos espíritos. Daí o crescido número de ilhas afortunadas dos tempos heróicos. Mas fora da antiguidade clássica não faltam exemplos de ilhas servindo de paraíso aos deuses e aos espíritos dos mortos. Uma lenda do Tongo descreve a ilha de Boluto como uma região em que amadurecem os mais belos frutos, as flores se reproduzem, ao serem colhidas, enchendo o ar de delicioso perfume, e a cada passo se encontram pássaros de deslumbrante plumagem, e porcos, que não cessam de existir, exceto quando dados em alimentos aos deuses. O costume de enterras os cadáveres devia ter concorrido para a crença de um mundo subterrâneo dos espíritos, sem luz, como o desaparecimento diário do sol no horizonte, parecendo atravessar a terra, não deixou de contribuir para a concepção de uma morada de mortos no grande astro, ou de um paraíso de luz. Se por um lado vemos o Orcus dos romanos, o Hade dos gregos, o Sheol dos israelitas, o Tartaro dos etruscos, o Hel dos escandinavos, em uma palavra, o inferno, situado nas entranhas da terra, onde não reinam senão as trevas, não poder explicar-se senão pela escuridão que se faz ao morrer do sol no ocidente, por outro lado vemos que os natchez do Mississipe e os apalaches da Flórida, pensando que os seus chefes e heróis vão habitar o sol depois da morte, idéia que se encontra na teogonia do México e do Peru, não podiam ter imaginado seu brilhante mito senão pelo espetáculo 62 diário da descida do sol ao ocidente. O sol não passa pelas regiões do ocidente, senão para conduzir consigo as almas dos mortos ilustres sepultados na terra. Mas não é o sol o único formador de mitos; conhecido fenômeno metereológico parece ter sido a origem de uma outra morada dos espíritos. S ão os nevoeiros, que se formam no fundo dos vales ou no cimo das montanhas, lugares em que se enterravam os mortos. Eles aparecem para receber em seu seio as almas dos heróis. Nos poemas de Ossiam os guerreiros depois de mortos passam a morar nas nuvens. E m sua habitação aérea conservam os mesmos gostos, as mesmas paixões, que em vida. Combatem legiões de fumo, caçam javalis de vapor. Um herói caledônio, porém, não podia entrar no palácio aéreo de seus antepassados se os bardos não cantassem o hino fúnebre. Deitado o corpo sobre uma camada de argila, em fosso de seis ou oito pés de profundidade, e com o corpo estendidas uma espada e doze flexas, se o morto era um guerreiro, e sobre uma nova camada de argila o cão favorito do defunto, sendo finalmente coberta com terra escolhida a sepultura, cuja situação era marcada com quatro pedras colocadas nos quatro cantos do fosso, comparecia um bardo para cantar o hino dos mortos e abrir ao herói a porta do palácio das nuvens. O esquecimento desta cerimônia fazia com que a alma do morto ficasse envolvida no nevoeiro do lago de Lego. 63 No poema do Fingal Cuchulin increpando Connal de não ter conduzido o “fantasma de Crugal” à sua presença para revelar-lhe o destino, que o aguardava, o filho de Colgar responde: os espíritos sobem às nuvens e voam sobre os ventos. No Cathlin de Clutha, quando os guerreiros de Selma se retiram para a colina freqüentada pelas sombras de seus antepassados, é confundindo -se com as nuvens que aparecem a sombra majestosa de Tuenmor e as formas fant ásticas de seus companheiros de armas. Na Guerra de Temora Caibar aparece a Cathmor, envolvido na nuvem, de que se apoderava subindo para sua morada aérea. Ainda no mesmo poema, Cathmor ferido, para consolar seus companheiros de armas, afirma que, assentado sobre o nevoeiro do rio de Atha, verá correr sua água em ondas azuladas, e, morrendo, aparece à Sulmalla, sua esposa, que, ao levantar-se para abraçá-lo, transportada de alegria, vê o herói desaparecer no nevoeiro, seus membros de vapor descanecendo-se aos poucos e misturando-se com os ventos da montanha. “Então Sulmalla, diz Ossian, compreendeu que Cathmor tinha morrido”. O processus social é uma luta contínua entre elementos étnicos heterogêneos; e as hordas, as tribos, os povos, as nações, as raças, não lutam entre si senão para estabelecerem a dominação do vencedor sobre o vencido. Vae victis não é somente o grito de Brenno, e sim de todo triunfador. Sob qualquer forma que se manifeste, escravidão, vassalagem, contribuição, a sujeição é sempre o result ado de uma guerra, que atingiu seu fim. 64 Organizada a dominação entre os elementos étnicos, o vencedor procura por todos os meios manter sua supremacia, e esta supremacia tende a se perpetuar, estendendo-se até a vida futura. É o que explica a duplicidade de condição no mundo dos mortos, da mesma sorte que na região dos vivos. De um lado os dominadores, de outro lado os subjugados: para os primeiros o paraíso, para os segundos o inferno. Bordeau diz que o cristianismo produziu uma verdadeira revolução, transportando do inferno para o céu a morada dos eleitos. Mas não foi o cristianismo, e sim o antagonismo das classes de dominadores e dominados, e sim o antagonismo das classes de dominadores e dominados, a rivalidade das duas grandes camadas sociais de vencedores e vencidos, que opôs um céu de infinitos gozos a um inferno de eternos suplícios. O que fez o cristianismo foi povoar o céu de justos em vez de poderosos, e o inferno de maus em vez de humildes. “Duas grandes concepções dominam especialmente a idéia, que se fez de um mundo futuro, diz Tylor. A primeira é que a vida futura é, por assim dizer, uma simples imagem da vida atual; os homens, segundo esta doutrina, conservam num outro mundo, idealmente belo talvez, mas também fantasticamente melancólico, sua forma e sua condição terrestre; não cercados dos amigos que tinham sobre a terra; possuem o que possuíam aqui em baixo; continuam as ocupações deste mundo. Segundo a outra concepção, a vida futura é uma compensação da vida atual. Os homens, entrando para o outro mundo, mudam de condição, e esta mudança é a 65 conseqüência, e, sobretudo, a recompensa ou a punição de sua conduta sobre a terra”. (28) O cristianismo não fez senão sacrificar o pobre, condenando o rico. “Ai dos ricos, o céu ao é para eles”. Depois de uma tão brilhante excursão pelos domínios do outro mundo, a que resultado chega Bordeau, aproveitando os achados da ciência? – A duas conclusões: uma teórica e outra prática. Sob o primeiro ponto de vista, escreve o autor do Problema da Morte, “a razão se recusa a compreender que um ser continue a viver, quando cessou de existir, que o eu, cuja unidade ao mesmo tempo física e psíquica é manifesta para a consciência, se desdobre, e que um eu espiritual, que não poder-se-ia separar do eu material, pois que não aparece senão nele, subsista, entretanto, depois dele. É mais difícil ainda de conceber como estas duas metades do ser humano, separadas pela morte, poderiam se unir de novo, seja que, em contrário a mais constante das leis, o corpo destruído se recons trua, seja que um outro o substitua, ou que uma simples aparência venha a ocupar seu lugar. “O ser assim restabelecido numa integridade factícia não poderia se relacionar com o mundo físico sem obedecer às suas leis, nem escapar a seu império, sem se excluir de toda a realidade. Além disto não se lhe pode assinar um lugar no espaço, nem determinar suas fases de duração, nem especificar suas funções. Também não se vê como lhe seria possível se manter num estado fixo sem cessar de viver, ou evoluir sem se tor nar contingente, enfim se perpetuar indefinidamente, 66 quando uma lei de renovação universal condena a morrer tudo que nasce no tempo”. (29 ) Sob o ponto de vista prático não temos que indagar se a vida é boa ou má para desejarmos ou abominarmos a morte. Aceit amo-la como um fato, sobre o qual não fomos consultados, e nos arranjemos o melhor possível a respeito dele. É o conselho de Milton ao homem no Paraíso Perdido. “Não tenhais pela vida amor nem ódio; mas enquanto viverdes, vivei bem”. Sacrificar, porém, a vida presente à futura é realizar a fábula do cão, que deixou cair a presa pela sombra. Daí o conselho dado por Bordeau: “Vós pedis ‘um mundo melhor’ – melhorai aquele em que estais; fazei-o sobre a terra. Aplicai-vos a tornar ao redor de vós a natureza menos hostil e mais fecunda. Ainda não conhecemos toda a extensão de nosso poder para modificá-la. Ela se presta a transformações indefinidas no sentido de nossos interesses. Utilizai do melhor modo seus recursos, que por toda a parte abundam, e que a vossa incúria deixa que se percam; encaminhai, por meio de uma razão esclarecida pela ciência, suas forças brutas, mas dóceis, para um fim superior. Ampliai sua ordem no que ela tem de facultativo sem tentar em vão perturbá-la no que ela tem de necessário. Uni vossa atividade refletida à atividade cega das coisas, considerando-vos como investidos de uma função cósmica, encarregados de presidir ao governo da vida sobre o globo. Fareis assim pouco a pouco deste “mundo de miséria”, senão um éden, porque os édens 67 não existem senão em nossos sonhos, pelo menos uma estada suportável e mesmo cada vez mais atraente”. (3 0) O livro de Bordeau interessa o leitor curioso, como a narração de um desses exploradores ousados e aventurosos, que, arrastados pelo amor da descoberta, s e entregam a toda sorte de sofrimentos e perigos para esclarecerem um ponto obscuro nos anais da ciência de Marco Pólo; mas teria encontrado Bordeau alguma região desconhecida, na qual nenhum predecessor temerário ainda houvesse posto o pé? As ciências morais, como a terra, parecem ter entregue seus últimos segredos. Nem mesmo a sonda, penetrando no fundo do mar, descobre alguma coisa de novo. A reflexão armada dos mais rigorosos processos lógicos não está sujeita a menores decepções. É o que se sente com a leitura do Problema da Morte: seu autor, com a abundância de sua vasta erudição e com o brilho de sua pujante capacidade intelectual, seduz na exposição do complicado assunto, como Homero maravilha na Odisséia, contando as prodigiosas aventuras de seu famoso Ulisses; mas quando tenta desvendar algum segredo, decifrar algum enigma, percebe-se que a solução lhe foge como uma região encantada. No mundo teórico forçoso é reconhecer que Bordeau ficou muito aquém de Lucrécio, como prova qualquer página do livro III do inimitável poema Da Natureza das Coisas. Também a solução prática, que ferece Bordeau, é menos uma explicação do que uma consolação à maneira das consolações de Sêneca. Lendo-se o capítulo da conclusão prática do Problema 68 da Morte, como que se está em classe, traduzindo o velho filósofo latino. Coragem! Dentre todas as curio sidades que podem interessar o espírito humano, a morte não é senão a última; vale bem a pena sacrificar a vida! Os selvagens não acreditam que a morte possa se produzir naturalmente. Para eles a morte é sempre efeito de um golpe desfechado por ente invisível, ordina riamente um espírito vingativo ou um deus ofendido. Além de muitos outros exemplos, Spencer cita o caso dos taitianos, que atribuem o efeito dos venenos ao ódio dos deuses. Para eles os próprios guerreiros, que mor rem no campo de batalha são feridos pelos deuses. A feitiçaria, tão comum entre os selvagens, não tem outra explicação senão o atribuir -se a morte, a simples moléstia, a causas sobrenaturais. Dar-se-á que perante a ciência todos os seres vivos estejam fatalmente condenados à morte? Não: há seres que não morrem. Sirvam de exemplo os seres unicelulares, entre outros protozoários, que se repro duzem, dividindo-se em duas partes, que se completam depois da separação. Isto não quer dizer que sejam indestrutíveis, pelo contrário, são destruídos aos milhões por acidente; não morrem, porém, de velhice. Só os seres policelulares, entre eles o homem, são mortais. Entretanto, o homem não morre de todo. O ho mem tem filhos, que são a carne de sua carne, o sangue de seu sangue, e continua a viver neles. “Não se trata, segundo observa Delage, de uma simples metáfora, mas de um fato anatômico”. 69 O filho não é senão uma continuação de seus progenitores, da mesma sorte que o adolescente ou o adulto não deixa de ser uma continuação do infante, posto que o indivíduo esteja a mudar continuamente de substância. “Na realidade, o metazoário não morre senão em parte; ele se divide em duas partes, uma que morre e outra que continua a viver, e isto indefinidamente, continua o sábio biologista. Há nele duas coisas, uma mortal, o corpo, o Soma, outra imortal, as células germinais, que se poderiam chamar em seu todo o Gérmen. Este Gérmen é imortal, exatamente à maneira dos infusórios. Como estes e mais do que estes, é frágil; quantos ovos, sobretudo espermatozóides, não morrem assim todos os dias? Mas há para eles, como para os infusórios, uma possibilidade de continuar a viver, se dá-se a condição necessária, que é encontrarem-se e fundirem-se na fecundação”. Daí encarar Delage o plasma germinativo como um fato incontestável, e defini-lo – “a parte da substância dos pais, que não morre com eles, e se perpetua nos filhos ”. Considerando a continuidade do plasma germinativo menos uma teoria do que uma maneira de encarar a filiação das substâncias na geração, escreve ainda o autor d’A Estrutura do Protoplasma e as Teorias sobre a Hereditariedade: “Ela consiste em considerar, não como sucede ordinariamente, o indivíduo, que engendra um novo ovo, e assim por diante; mas o ovo se desdobrando em um corpo e em um ovo, aquele morrendo, este se desdobrando em um novo ovo e em um novo corpo, e assim por diante”. (31 ) 70 Admit indo que os seres unicelulares são imortais, resta saber como foi que a morte se introduziu, na passagem da vida unicelular à policelular, entre os metazoários. Como foi que no ciclo evolutivo quando o ser se tornou policelular, umas células conservaram a imortalidade, ao passo que outras adquiriram a mortalidade? Contra as teorias de Spencer – suficiência ou insuficiência de nutrição – de Bütschli – renovamento ou esgotamento de fermento – de Lendl – presença ou ausência de ballast – e outras hipóteses, em face das quais continua indecifrável o enigma da morte, Delage vê a causa da imortalidade do Gérmen e da imortalidade do Soma na diferenciação. “Sem exceção alguma, diz ele, todas as células de metazoários ou de metafitos, que servem à continuação da espécie por sai assexual ou sexual, são células pouco ou nada diferenciadas. Segue-se daí que cada célula não diferenciada é imortal, e não requer para continuar a viver senão ser colocada em condições que lho permitam; e que toda célula diferenciada é votada a uma morte inevitável, sem que haja para ela possibilidade alguma de escapar. O corpo dos metazoários morre, porque é formado, em sua maior parte, de células diferenciadas, e, se nele há células pouco ou nada diferenciadas por ocasião da morte, elas também morrem, porque a nutrição lhes é suprimida. (32 ) Do que fica dito resulta que nos metazoários, entre os quais figura o homem, há duas partes, uma constituída pelas células germinais ou imortais, outra 71 pelas células somáticas ou mortais. Só as células ger minais têm a capacidade de se dividir indefinidamente, porque sua divisão homogênea não diminui nunca a vitalidade das células. As células somáticas tendem a perder sua aptidão reprodutora pela sua divisão hete rogênea. É a diferenciação que traz a diminuição da capacidade de se dividir. Com a diminuição da aptidão a se dividir, surge a detenção do crescimento, e com a detenção do crescimento a detenção do nutrimento, o que importa dizer – a morte. A morte é uma conseqüência necessária da detenção da divisão e do crescimento dos seres vivos. A grande lei da vida é o crescei e multiplicai da Bíblia. Crescendo e multiplicando -se, é que a vida é vida, ou por outras palavras, é que o plasma, a substância viva pode viver indefinidamente. A vida não se mantém eternamente nem se desenvolve ilimitadamente senão por ciclos, mas ciclos em que a substância viva primordial, o plasma germinativo, se mantém idêntico a si mesmo, e, portanto, imortal, pela reprodução homogênea, ao passo que o plasma somático se diferencia em sua multiplicação, e deste modo perde sua imortalidade. A morte se introduziu no campo da vida por intermédio da diferenciação, e deste modo se pode dizer que ela é uma conseqüência lógica e necessária do desenvolvimento da própria vida. Tudo se esclarece facilmente, desde que se tem a idéia não de um indivíduo, que produz um ovo, que se torna um indivíduo, que por sua vez engendra um novo ovo, e assim por diante; mas de um Gérmen, que se desdobra em um Soma e em outro Gérmen, aquele 72 mortal e este imortal, a se desdobrar novamente em um outro Soma e em um outro Gérmen, e assim por diante. O papel do Soma é nutrir e proteger o Gérmen. Os seres policelulares morrem porque conforme afirma Delage, neles as células são em sua maioria somáticas, e se no momento da morte existem algumas células germinais, estas também morrem por falta de nutrimento em virtude da morte do Soma. Só não morrem as células germinativas, que em tempo encontraram as condições necessárias para crescerem e se multiplicarem, como se dá no caso de sexuação. Isto no ponto de vista objetivo; no ponto de vista subjetivo a questão muda de face, porquanto não é à ciência que a individualidade pode pedir a confirmação de sua persistência depois da mo rte. O eu, produto da evolução, dissolve-se necessariamente com a morte, resultado final da diferenciação. O que sobrevive é justamente o que menos se diferencia: são as células germinais, que se reproduzem homogeneamente. As cé lulas somáticas são mortais em virtude mesmo de sua produção heterogênea. Mortais as células somáticas, mortais são as funções resultantes de sua diferenciação. A mesma causa, que organiza o plasma, produz a morte do organismo. O amor, que leva o ser a sair de si mesmo, o amor que provoca o ser a se reproduzir ainda mesmo com sacrifício próprio, arrasta o indivíduo a protestar contra a morte não só de si mesmo como dos seres, que lhe são caros. Mas isto, porque o amor é filho da tendência de todo o ser vivo a crescer e a se multiplicar. Querer eternizar o indivíduo não é um resto 73 de egoísmo, como diz Guiau, é a lei lógica do “crescei e multiplicai”, agindo psicologicamente, por intermédio da consciência. Mas a consciência ou o sentimento da continuidade de estados internos, a consciência ou a permanência de funções mentais através dos elementos que mudam, não é senão um resultado da complexidade dos referidos estados internos ou funções mentais, não é senão a integração resultante da diferenciação. “Por seu lado físico, diz Wundt, como por seu lado psíquico, o corpo vivo é uma unidade; esta unidade não é fundada sobre a simplicidade, mas, pelo contrário, sobre uma composição muito complexa”. “A consciência, acrescenta Guiau, com seus estados múltiplos e, entretanto, unidos estreitamente, é para nossa concepção interna uma unidade análoga à do organismo corpóreo para nossa concepção externa”. Assim, o que nós chamamos eu ou alma, não é senão a unidade consciente de estados internos, como o corpo não é senão a unidade inconsciente de esta dos morfológicos. Se a organização, porém, não impede a morte, pelo contrário, a determina, a consciência, o eu, a alma, não justifica a imortalidade, pelo contrário a condena. Se a alma humana deve ser encarada como o produto evoluído de inumeráveis eleme ntos, se deste modo é que ela deve ser considerada o “espelho do mundo” na expressão de Leibnitz, é claro que quanto mais se estender a evolução das funções mentais, quanto mais se integrar a unidade da multiplicidade complexa dos elementos constitutivos da alma, menos duração 74 terão tais elementos, cuja transitoriedade cresce na razão direta da organização. Uma associação não se desenvolve senão com prejuízo dos indivíduos, que a compõem. É o que se dá com a consciência humana, associação de consciências celulares. Se o problema consiste, no entender de Guiau, em indagar se pode existir uma associação ao mesmo tempo bastante sólida para durar sempre, e bastante sutil, bastante flexível, para se adaptar ao meio sempre variável da evolução universal, pode-se responder com firmeza e segurança que quanto mais os seres se elevam na escala da evolução orgânica, mais progressiva se torna a mortalidade das células somáticas, cuja história não é outra senão a história de toda a evolução vital desde os movimentos monótonos dos animais inferiores até as mais originais criações do pensamento humano. (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 99-144). NOTAS (1) Il naufragar m’è dolce in questo mare. (2) 95. Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XIII, Parágrafo (3) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XII, Parágrafo 85. (4) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulos XIV e XV, Parágrafos 104 e 112. 75 (5) Histoire du Peuple d’Israel, Tomo IV, pág. 320. (6) Le Problème de la Mort, pág. 29. (7) Études sur le Droit Celtique, pág. 3. (8) Le Problème de la Mort, pág. 27. (9) Les Prophètes d’Israel, pág. 116. (10) Études sur le Droite Celtique, pág. 9. (11) Histoire du Développement Intelectuel de l’Europe, Volume 1, Capítulo 7. (12) História Natural, Capítulo VII, Parágrafo 56. (13) Consolatio ad Polybyum, n. XXVII. (14) Consolatio ad Polybyum, n. XIX. (15) Epist. XXX. (16) Epist. IX. (17) Epist. LIV. (18) Sully-Prudhomme, OEuvres, Prefácio, pág. LXXX. (19) Histoire du Peuple d’Israel, Volume IV, Capítulo XII. (20) Vide Renan, Vida de Jesus, Capítulos IV e XVII. (21) Apud Bordeau, Le Problème de la Mort, pág. 134. (22) Apud Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XIV, Parágrafo 110. 76 (23) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XV, Parágrafo 110. (24) La Civilisation Primitive, Volume I, Capítulo II. (25) Le Problème de la Mort, Capítulo VIII, pág. 176. (26) Spencer, Princípios de Sociologia, Capítulo XV, Parágrafo 111. (27) Vide Tylor, La Civilisation Primitive, Tomo II, Capitulo XIII. (28) La Civilisation Primitive, Tomo II, Capitulo XIII. (29) Le Problème de la Mort, Capitulo XII, pág. 292. (30) Le Problème de la Mort, pág. 332. (31) A Estrutura do Protoplasma e as Teorias s obre a Hereditariedade, Paris, 1895, págs. 178 e 179. (32) A Estrutura do Protoplasma e as Teorias s obre a Hereditariedade, pág. 769. 77 2. SILVIO ROMERO No último livro de Clóvis Beviláqua vemos, fazendo parte da famosa constelação dos juristas filósofos, os vultos lumino sos de Tobias Barreto e Sílvio Romero. O autor não tendo por fim escrever toda a história da filosofia do direito, porém salientar os espíritos superiores que do direito tiveram uma concepção original e fecunda, era de esperar que seu trabalho se limitasse a um pequeno número de cultores da ciência, e que ao lado de Cícero, Montesquieu, Ihering e Post, figurassem Tobias Barreto e Sílvio Romero. Do papel que entre nós representou Tobias Barreto como jurista filósofo já nos ocupamos na introdução às Questões Vigentes e no estudo publicado na Revista do Norte sob o título – Mundo Jurídico; hoje procuraremos mostrar a parte que cabe a Sílvio Romero em nosso desenvolvimento jurídico -filosófico. “Era naturalmente a mim, escreve Sílvio Romero na introdução aos Estudos de Direito, no caso de eu sobreviver a Tobias Barreto, que havia de caber a tarefa de organizar e dirigir a publicação póstuma de suas obras. Uma amizade de vinte e dois anos, nunca, fenômeno raro no Brasil entre homens de letras, desmentida por um ressentimento qualquer, dava-me este direito. A família assim espontaneamente o 78 compreendeu, e foi logo fazendo diligências que me habilitassem a por ombros à empresa”. Mas a Sílvio Romero coube não somente a tarefa de organizar a publicação póstuma dos traba lhos do grande morto, mas ainda a glória de lhe completar a obra, o que fez mesmo em vida de Tobias Barreto. Além de que, sem Sílvio Romero, o eminente reformador de nossos hábitos intelectuais teria morrido no meio do esquecimento de seus contemporâneos, além de que foi aquele dedicado companheiro de armas que tornou Tobias Barreto conhecido como uma individualidade representativa, como uma glória nacional, sucede que no Brasil, especialmente em Pernambuco, o livro que mais impulso tem dado ao desenvolvimento das letras sob qualquer das manifestações do pensa mento, é a História da Literatura Brasileira. A Sílvio Romero deve o Brasil a percepção clara de seu passado, a mais indispensável condição de toda superior existência social. Esquecendo-se de seus feitos, a sociedade como que perde a consciência de si mesma. Daí a necessidade da história, mas da história cientificamente organizada. É este o inestimável valor da obra capital de Sílvio Romero. Que vem a ser, porém, a história cientificamente organizada? Durante muito tempo se escreveu a história, fazendo dão somente a biografia dos homens célebres. Deste modo se caia na mais flagrante contradição: 79 desdenhava-se a vulgaridade e, entretanto, a ela é que se recorria para discernir e proclamas a glória. “Toda a reputação, nota judiciosamente Bordeau, vem dela. Sem a auréola que ela discerne, o mais sublime gênio seria não menos ignorado do que o mais desconhecido dos homens”. (1 ) Só mais tarde se deixou de lado o herói para atribuir a elaboração do progresso à multidão, e se abjurou o culto da fama para endeusar a vulgaridade. O principal fator do progresso é então a obscuridade. Referindo-se à Revolução, diz Mme. Roland: “a coisa que mais me surpreende... é a universal mediocridade; ela passa tudo que a imaginação pode representar e isto em todos os graus”. Um e outro sistema, porém pecam, pelo seu absoluto exclusivismo, senão pela ausência de senso científico.O gênio não é simplesmente o que afirma Macaulay quando escreve estas palavras: “O sol esclarece prime iro as montanhas, quando ele está abaixo do horizonte, e os espíritos superiores descobrem a verdade algum tempo antes que ela se torne visível para a multidão. Eis a que se reduz superioridade. Eles são os primeiros a recolher e a refletir uma luz, que, sem seu concurso, se tornaria visível um instante mais tarde a homens colocados muito abaixo deles”. Não é também o que pretendia Carlyle, para quem “todas as coisas que vemos realizadas no mundo não são senão o resultado material 80 exterior, a realização prática e a encarnação dos pensamentos que habitaram no cérebro dos grandes homens”. Também não se pode dizer que seja a multidão o novo Atlas a suportar todo o peso do mundo social. O equilíbrio e desenvolvimento do progresso humano assentam sobre bases mais sólidas e estáveis. A civilização não é trabalho exclusivo da soberania do pensamento ou da ação individual, nem tão pouco mera criação anônima da atividade coletiva. Era preciso seguir outro caminho nas inves tigações da história científica, e Bordeau pr etende tê-lo descoberto no desenvolvimento da razão por meio da estatística. A história não é mais, conforme define o dicionário da Academia Francesa, a narração das coisas dignas de memória, e sim “a ciência dos desenvolvimentos da razão”. “É pela razão que o homem se eleva acima de todo o mundo animal e constitui na ordem das funções psíquicas uma espécie de reino a parte, tão superior ao reino animal, quanto este o é ao reino vegetal, e um e outro o são ao reino dos corpos brutos”. Determinar as leis que imperam no reino da razão, tal é o fim a que se propõe a ciência da história. Classificar as funções da razão – arte, ciência, religião – e determinar suas relações de coexistência e sucessão no meio da variedade e complexidade dos fenômenos, eis a preo cupação constante daquele que quer fazer a história científica da vida humana. 81 Qual o meio, porém, de apreciar os desenvolvimentos da razão? A estatística, que, segundo a definição de Moreau de Jonnès, é a ciência dos fatos sociais expressos por termos numéricos. “As ciências da natureza, escreve Bordeau, a princípio entregues ao espírito de especulação e de hipótese, para se constituírem em estado positivo, tiveram que submeter suas noções às provas do cálculo. Fazendo matemática, a astronomia converteu em teoremas as quimeras dos filósofos antigos sobre o sistema do mundo. Armada da análise, cadastrou o céu, mediu as distâncias dos astros, traçou a curva de suas órbitas, avaliou suas atrações mútuas, calculou a duração de suas revoluções e deu conta dos movimentos mais complicados da mecânica celeste. Da mesma sorte, os progressos da física datam da época recente em que o método experimental, aplicando-se a graduar os efeitos das forças moleculares, pôde exprimi-los por número. Lavoisier fundou a química sobre o empreso sistemático da balança, e seus sucessores reduzem os fatos de combinação a cômputos de átomos, a fórmulas de proporção e equivalência”. Para Bordeau a estatística é a última palavra da ciência social: ela substitui o número às palavras, os diagramas às descrições; permite descobrir unifor midades, concomitâncias, relações que passariam des percebidas sem seus dados. O simples registro civil determina o número de casamentos, de óbitos, de nascimentos, e, portanto, o 82 desenvolvimento da população, o aumento da riqueza, o nível de moralidade, a salubridade do território, a mistura dos elementos etnográficos, e mil condições de progresso. A tarifa das alfândegas é a justa medida do que um povo produz, troca, consome; ela dá o exato conhecimento da economia social. Entretanto, não é sobre os fatos que a estatística revela sua eficácia; convém distinguir entre acontecimentos e funções. Acontecimentos são os fatos acidentais, transitórios, tais como as mudanças de governo, os sucessos bélicos, as descobertas científicas. Funções são os fatos ordinários, que se produzem com toda a regularidade, e que não passam desper cebidos senão em razão de sua própria freqüência. Por isso mesmo que tais fatos são os mais comuns, freqüentes, constantes e regulares , pode-se dizer que eles constituem o fundo da natureza humana, e, submetidos ao cadinho da estatística, não há que recear os erros e ilusões a que ordinariamente estão sujeitos os que abordam o estudo dos fenômenos sociais. Não é Bordeau o único escritor para quem há fatos menos importantes, dos quais o historiador não tem que se ocupar. P. Lacombe, outro teórico da história, em seu livro intitulado Da História Considerada como Ciência, depois de estabelecer a distinção entre homem geral, semelante a todos os indivíduos da mesma espécie, homem temporário, semelhante a todas as pessoas da mesma sociedade, e homem singular, distinto por 83 diversas particularidades de seus semelhantes, sustenta que há fatos insignificantes, que absolutamente não podem fazer objeto da história: tais são os que vêm do homem singular os quais não constituem senão acontecimentos. São os fatos do homem geral e mesmo do homem temporário os únicos que, por se apresentarem sob o caráter de instituições, isto é, sempre idênticos a si mesmos em uma série de circunstâncias, podem tornar-se o objeto da ciência da história. O método de Lacombe tem alguma coisa de original; mas nem por isso deixa de ser arbitrário. Com efeito, pode-se perguntar onde termina o homem singular e começa o homem t emporário ou geral. Além disto, se por um lado é admissível em abstrato a distinção entre acontecimentos e instituições, por outro lado, restringindo-se o objeto da história ao estudo das instituições, que, entretanto, vemos na rea lidade senão fortes individualidades, reagindo e influindo poderosamente sobre o mecanismo das ins tituições? Muitas vezes quanto mais original e, portanto, mais singular é o indivíduo, maior é a sua influência, sobre o meio em que vive. Voltaire, no dizer de Worms, representa alguma coisa de inteiramente único em seu gênero, poderíamos mesmo dizer que ele oferece o quer que seja de inédito na história, e, não obstante, nenhum historiador, ocupando-se do século XVIII, teria o direito de deixar de lado sua imponente figura. Lacombe não adiantou um passo a Bordeau, cuja tese capital não se pode dizer verdadeira; mas, segundo 84 observa Henrique Berr, obriga a pensar e convida a discutir. Existe realmente uma alma coletiva, tão imperecível quanto invisível. É a alma da multidão, herdeira do patrimônio intelectual das gerações passadas. Bordeau exprime sua marcha, que ele chama progresso, nos seguintes termos: “Da mesma sorte que a gravitação age na razão direta das massas e na inversa do quadrado das distâncias, o progresso parece realiz arse na razão direta da soma dos ganhos anteriormente realizados, e na inversa dos obstáculos, que se opõem à sua difusão no mundo”. Assim temos o gênero humano como uma espécie de vegetação, florescendo sobre o humos das gerações passadas. Mas ao lado desse desenvolvimento orgânico e sem abalos, que permite que a sociedade tenha consciência de si mesma, e guarde a lembrança de sua personalidade, de seu eu, como Vixnu em seu avatares conserva o sentimento de sua divindade, há mudanças permanentes, renovamentos sucessivos, que sujeitam a alma social a grandes crises e convulsões. Nestas condições por que razão restringir o objeto da história ao que é comum, permanente, idêntico? É preciso não esquecer que o progresso consiste em um processo simultâneo de integração e diferenciação. Assim, não é raro ver a demagogia e o despotismo coexistindo em uma mesma sociedade. Além disto, a estatística, sobre que Bordeau franca e decisivamente assenta a lógica da história, pode 85 dar a constatação de relações e conexões contínuas e constantes; mas não dará a razão, a explicação dessas relações e conexões. A que se deve então recorrer? À psicologia, conforme ensina Lacombe? Mas a psicologia de Bordeau assenta sobre noções bem vagas e confusas. A razão, pião sobre que gira todo o mecanismo de sua teoria, compreende todas as manifestações da atividade humana, desde as descobertas científicas e invenções religiosas até as criações estéticas e produções industriais. Como se vê, as funções da razão abrangem a integralidade da natureza humana, e, deste modo, Bordeau definindo a história – a ciência dos desenvolvimentos da razão, é como se dissesse que ela é a ciência do progresso das gerações sucessivas, a ciência da perfetibilidade humana, o que não adiante coisa alguma depois do s trabalhos históricos de um Riehl na Alemanha, de um Buckle na Inglaterra, de um Taine na França. Rumo bem diverso do caminho do Bordeau e Lacombe segue Sílvio Romero. Em 1880, em uma famosa dissertação de concurso intitulada Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos escreveu o eminente crítico: “O problema da liberdade tem sido mal compreendido. A liberdade é mais uma conquista da inteligência sobre o fatalismo da natureza do que o poder que dá a presunção a cada um para fazer disparates. A velha teoria das faculdades d’alma, desacreditada desde Hume e Herbart, é a fonte de todos os erros da velha psicologia sobre a liberdade. Criando 86 domínios exclusivos na vida espiritual, a antiga escola fez da vontade um ermo recluso do espírito, separado por uma trincheira de abstrações das outras faces da vida psíquica. A liberdade não é um predicado da vontade, é antes uma resultante do entendimento; consiste não em praticar ações caprichosamente, sem motivos e precedentes, mas no discernimento intelectual de abraçar um partido. Como diante de muitas teorias diversas e encontradas., o homem estuda, medida, trabalha para formar uma idéia de um assunto qualquer, e, as mais das vezes, só após muitos ensaios contraditórios e o abandono de umas quantas opiniões, é que chega a abraçar uma doutrina e abraçando -a, o faz em virtude de uma necessidade lógica; assim é com a liberdade. Ela tem sempre precedentes racionais; por isso mesmo não é, não pode ser o livre arbítrio indifferentiae. Aplicando tal ordem de idéias à marcha coletiva da humanidade, a liberdade desta consiste em se ir subtraindo à pressão do despotismo. Do despotismo da natureza, que a fustiga de todos os lados, e contra o qual ela vai obtendo triunfos por meio da indústria; do despotismo dos padres, que se arrogaram o direito de dispor das vitórias por meio da crítica; do despotismo dos tiranos, de todas as formas e tamanhos, e que se apossaram do poder de dispor de seus destinos, e contra o qual ela vai obtendo desforras por intermédio da ciência e da revolução”. 87 Transcrevemos esta página, não pelo prazer de mimosear o leitor com um delicioso fruto literário, mas porque ela contém em si toda uma filosofia da história. Desde alguns anos que se exagera a influência das circunstâncias exteriores sobre a ação individual. Sob o pretexto de que os acontecimentos são regidos por leis, de que o que sucedeu não podia deixar de suceder, temse feito do sucesso a suprema lei da história. Daí o enfraquecimento do sentimento de responsabilidade entre os dominadores, e o excesso de resignação entre os subjugados, em conseqüência de se querer estudar a natureza humana como se estuda a natureza bruta. É contra esta tendência que Sílvio Romero reage com toda a superioridade de sua crítica magistral. A questão não é somente de mecânica social, e sim de psicologia humana. Não basta constatar para prever, é preciso libertar-se para agir. A alma humana não é somente “o número em movimento”, e tanto basta para que a história não possa ser considerada uma simples “dedução geométrica” . No seio do determinismo universal há alguma coisa, que se desenvolve conhecendo -se – é a vontade imanente, que obedece menos à causalidade cega do que à finalidade consciente. É esta a superioridade da história humana sobre a história natural. Se a evolução social é um produto da colaboração da massa anônima, e, se por sua vez o indivíduo reage por suas idéias e sentimentos sobre o mundo externo – 88 físico ou social – é claro que o historiador não pode olvidar o que é individual, e, portanto, esquecer espe cialmente a literatura, que é o terreno em que as fortes individualidades mais acentuadamente se impõem. Mas, se não desdenhando o geral, o historiador tem que abordar o individual, mesmo para determinar as relações existentes entre os grandes homens e o meio exterior – físico ou social – isto não quer dizer que, ocupando-se da literatura de um povo, deva restringir seu método ao simples processo narrativo; pelo contrário, tem que descer à apreciação de todos os fatos e circunstâncias, para fazer a seleção, que se impõe ao espírito de todo hábil investigador. Em que sentido, porém, deve ser feita esta seleção? Eis o importantíssimo problema, a que, estamos convencidos, Sílvio Romero deu brilhante solução na História da Literatura Brasileira. Ali, com efeito, vemos Sílvio Romero estudando a configuração geológica do Brasil, as influências climatérias, os meios de alimentação, o que tudo importa dizer, as nossas condições econômicas; depois investigando os elementos, que entraram na formação do caráter nacional, o que em seu verdadeiro sentido não significa outra coisa senão uma análise dos fenômenos genéticos, quer sob o ponto de vista geral da etnografia, quer sob a relação especial da família; em seguida apreciando os cantos e contos populares, isto é, os fenômenos morais e religiosos antes de serem reduzidos à forma regida das regras jurídicas; por último 89 ocupando-se das instituições políticas da colônia e do império para então tratar das produções literárias. Parece à primeira vista um luxo de erudição o processo segundo na História da Literatura Brasileira; mas é que antes dos recentes trabalhos sobre a organização científica da história, já Sílvio Romero explanava o assunto de um modo completo; Antes, porém, de passarmos adiante, seja -nos permitido fazer uma ligeira digressão com o fim de mostrarmos a que maravilhosos resultados se pode chegar, quando se possui no cérebro mais do que uma filosofia da história, quando se tem no espírito uma completa ciência das idéias, uma verdadeira teoria dos conhecimentos humanos, o que os alemães chamam Ideekund. Em maio de 1888, referindo-se aos nossos problemas capitais, escrevia o autor da História da Literatura Brasileira: “Uns e outros – problemas capitais – na hora atual são, pela face política: federalismo, república e organização municipal; pela face econômica o velho e temeroso problema da emancipação dos escravos esta substituído por três outros: o aproveitamento da força produtora do proletário, a organização do trabalho em geral, a boa distribuição da propriedade territorial; pelo lado social; colonização estrangeira, grande naturalização, reforma do ensino teórico e técnico”. (2) Um ano depois, decretou-se a República com o federalismo e a autonomia dos municípios; mas se 90 deixou no mesmo pé o problema econômico, e sem solução a questão social. Enquanto os estados modernos procuram regular sua vida econômica de acordo com o princípio jurídico da igualdade, nós fechamos os olhos e cruzamos os braços em face do movimento destinado a regular as relações existentes entre os fenômenos jurídicos e os fenômenos econômicos, e deixamos que o mais in teressante problema deste fim de século – a organização jurídica do capital, da inteligência e do trabalho – esteja sendo explorado por simples especuladores políticos, que não fazem senão anarquizar o país e agravar ainda mais a sorte dos desprotegidos da fortuna. Onde estão as instituições destinadas a servir de órgão às funções da nova vida social? O Estado moderno não pode mais limitar seu papel à garantia da livre convivência dos indivíduos na sociedade, tem que estender sua ação além da livre atividade individual para regular juridicamente certos fenômenos econômicos, e particularmente para melhorar a condição do proletário miseravelmente explorado pelo capitalista. Quanto à propriedade territorial, esta continua a ser monopolizada por indivíduos que não a exploram ou não a querem explorar, senão à custa da escravidão, quaisquer que sejam a forma e a cor sob que apareça, ainda mesmo coberta com o manto da imigração, de maneira que se pode dizer que a colonização estrangeira é para nós menos um problema de economia social do que uma questão de tráfico de braços para aumento dos 91 grandes senhores da terra, em prejuízo da riqueza pública e do progresso nacional. A riqueza nacional é mas alguma coisa do que uma simples questão de exploração da força muscular em benefício tão somente do capital. É preciso subtrair as relações econômicas aos caprichos da plutocracia, e submetê -las à disciplina jurídica. Determinar as relações existente s entre a economia política e o direito constitui atualmente um dos problemas políticos mais interessantes, e sua so lução será o ponto de partida de uma nova organização social. No tocante ao ensino, é verdade que Benjamin Constant procurou reformar a instrução pública; mas em vez de reformar o ensino no sentido de torná-lo uma poderosa alavanca de progresso social, organizando a escola, de maneira a fornecer não somente métodos de pensar, mas também processos de agir, sob o pretexto de que é preciso acostumar a mocidade a observar, experimentar e induzir, baniu a parte interessante do saber, o lado humano do ensino, desde a psicologia até a filosofia, deixando apenas subsistirem os conhecimentos puramente especiais, “a enumeração e inventário dos fatos e das leis”. Os fenômenos sociais podem classificar -se em três grandes categorias: fenômenos econômicos ou de nutrição, fenômenos genéticos ou de reprodução e fenômenos políticos ou de relação. Os primeiros compreendem as relações de pro dução, circulação e consumo das riquezas; os segundos 92 abraçam as relações de família como parentesco, ca samento, adoção; os terceiros abrangem as relações de inteligência, sensibilidade e contractilidade social, relações correspondentes nos animais superiores às ações exercidas pelo cérebro sobre as outras partes do corpo, quer para defesa quer para locomoção do organismo. Nas sociedades, ainda mais que nos indivíduos o exercício regular da integralidade das funções está sujeito a centros superiores correspondentes aos centros nervosos nos animais. Tais são as instituições cien tíficas, artísticas, morais, religiosas e civis, que reunimos todas sob a denominação de políticas. Para nós as instituições jurídicas não formam uma categoria à parte de fenômenos sociais: são os mesmo s fenômenos econômicos, genéticos e políticos revestindo a forma de coação pública. Neste ponto estamos de perfeito acordo com Worms, para quem o direito não tem objeto que lhe seja próprio, ou antes, seu objeto é infinitamente extensivo: “Todos os fatos sociais são regidos por ele, tanto os da vida intelectual como os da vida material, desde que a sociedade se pos de acordo sobre certos princípios, que ela impõe a seus membros na realização destes fatos. Inversamente, não há talvez uma só ordem de atos que não possa ser idealmente deixada à livre iniciativa dos particulares, isto é, subtraída à dominação do direito. Seria interessante seguir a evolução que fez com que muitos fenômenos entrassem no domínio da legislação e muitos outros dele saíssem. Não pare ce que 93 haja sobre este ponto regra geral a estabelecer. Certas classes de fenômenos se libertaram das regras do direito, pelo menos em nosso país: a religião, por exemplo, desde que foi admitida a liberdade de consciência. Mas outras se submeteram a elas: os trabalhos estéticos, entre outros, desde que foi consagrada legislativamente a propriedade literária. Certas matérias caíram sob as malhas da legislação, depois se livraram, e finalmente tornaram a cair: tal é a organização da indústria, regulamentada sob o antigo regime, liberta pela revolução, e em nossos dias regulamentada de novo”. (3 ) Em seu notável livro O Transformismo Social, G. de Greef estabelece que o progresso se realiza nas sociedades por evolução, segundo a ordem da gene ralidade descrente e da complexidade crescente dos fenômenos, e o regresso por involução, segundo a ordem inversa do desenvolvimento dos fenômenos. Daí a classificação hierárquica dos fenômenos sociais em econômicos, genéticos, artísticos, religiosos, morais, jurídicos e políticos. Dez são as regras sob que, segundo G. de Greef, pode ser formulada a lei de interdependência, em virtude da qual se dão as ações e reações dos fenômenos sociais. 1ª – As ações ou reações sociais estão em relação com o grau de simplicidade e de generalidade dos fenômenos e das funções, a que elas se aplicam. Assim, as ações e as reações econômicas são mais simples e 94 mais gerais do que as ações e reações morais, jurídicas e politicas. 2ª – Os fenômenos e as funções mais simples e mais gerais agem de u’a maneira mais simples e mais geral sobre os fenômenos e as funções mais complexas e especiais. 3ª – Os fenômenos e as funções imediatamente anteriores agem mais imediata e diretamente sobre os fenômenos e as funções imediatamente seqüentes. 4ª – As ações e reações são menos imediatas e diretas entre fenômenos e funções pertencentes a classes diferentes, que não se seguem imediatamente, do que quanto a ligação entre as classes é direta. 5ª – São os fenômenos homogêneos de uma mesma classe que se associam ma is facilmente. 6ª – Salvo essas diferenças, todos os fenômenos e todas as funções agem uns sobre os outros. 7ª – Os fenômenos e as funções mais especiais e superiores reagem sobre os fenômenos e as funções menos elevados, mais simples e mais gerais. 8ª – Sua influência é tanto mais forte quanto ela se exerce por mais tempo sobre os fenômenos e as funções mais simples e mais gerais. 9ª – Geralmente sua influência não é senão indireta e fraca. 10ª – Os fenômenos e as funções mais elevados, sendo também em cada classe e no todo das classes os mais recentemente aparecidos, são os mais superficiais, os mais variáveis, os menos estáveis; pelo contrário, os fenômenos e funções interiores mais simples, mais 95 gerais, são também os mais antigos, ou mais profundamente integrados no organismo social, os mais fixos, por conseguinte os mais dificilmente, porém, em compensação os mais utilmente modificáveis. Quaisquer que sejam as suas aplicações, a idéia capital de G. de Greef é a hierarquia dos fenômenos sociais, e o poder reformador preponderante da função econômica sobre as demais funções da sociedade. Esta mesma supremacia do elemento econômico, não obstante o ponto de vista especial em que cada um se coloca, é doutrinada por Carlos Marx, Frederico Engels e, em geral, pelos representantes da chama concepção materialista da história. Dühring inverte completamente a ordem hierár quica de G. de Greef, e faz assentar o movimento econômico sobre o mecanismo político: “É a formação das relações políticas que é fundamental no ponto de vista histórico, e as dependências econômicas não são senão o seu efeito ou um caso particular, e, portanto, sempre fatos de uma ordem secundária”. Nem uma nem outra coisa: o que nos ensina a observação e dá testemunho a história, é que as relações sociais são coevas, reina entre elas homocronismo. Sirvam de exemplo a escravidão, a servidão, as corporações, as associações industriais, fatos ao mesmo tempo econômicos, morais, jurídicos, políticos, religiosos. Na evolução, que vai da escravidão ao sis tema atual da organização do trabalho, vemos as diversas 96 modalidades do fenômeno social, economia, moral, direito, política, sempre de envolta umas com as outras. É fácil mostrar o serviço incalculável que prestou Sílvio Romero à teoria e prática do progre sso social com sua classificação, discriminando os fatos sociais, mas banindo toda idéia de hierarquia. À conta de uma tal hierarquia devem ser levadas umas tantas iniqüidades, que imperam do ponto de vista político-social. E muito propositalmente falamos em iniqüidades político-sociais, porque há, com efeito, uma justiça distinta da justiça jurídica. Pode existir injustiça do ponto de vista polít ico sem que as regras do direito civil ou criminal sejam infringidas. Não faltará quem afirme que tal distinção não existe; entretanto, ela é real: são as injustiças políticas as mais revoltantes, as mais condenáveis, porque sob a capa da legalidade mais escarnecem das vítimas. Para mostrar que há diferença entre a injustiça jurídica e a política, basta lembrar que há lacunas que ferem as pessoas consideradas individualmente; mas ao lado destas há outras, como certas operações finan ceiras, certos negócios de bolsa que ferem a comunhão em geral, e se para elas é impossível a sanção do direito civil ou criminal, nem por isso falham aos poderes públicos meios de coibi-las. A política não tem por objeto aplicar leis existentes, anulando atos, como fazem os tribunais civis, ou impondo penas como praticam os tribunais criminais; 97 sua missão é implantar uma organização socia l mais eqüitativa no domínio da cultura econômica, jurídica, intelectual, filantrópica, estética, religiosa, de harmonia com as condições de uma dada época. Por desconhecer esta distinção é que até hoje se tem cometido o enorme erro de se considerar legíti mo tudo que não está em conflito com o direito civil ou criminal, como se fosse possível conseguir toda a justiça social somente por meio de códigos. Há uma justiça política que o jurista ignora, e que, entretanto, não se pode deixar de reconhecer à luz dos fatos. Não se pode negar que em nosso tempo muito se tem trabalhado para regular a esfera do direito civil e criminal; mas até hoje temos estado muito longe de atingir toda a soma de justiça que é possível existir na sociedade. Grande pode ser a soma de injustiças que reinam na sociedade, e entretanto, há quem, fazendo política, acredite que o Estado vai no melhor dos mundos, quando as estatísticas não acusam alças nas infrações ao direito civil e criminal. Não somente nas épocas de selvageria, mas de requintada civilização, se constatam lacunas que, não entrando em conflito com as disposições do código, constituem verdadeiras iniqüidades, que revoltam a razão e indignam a consciência. Certas formas de concorrência estão neste caso, e se até hoje não foram tomadas medidas contra elas, tem sido pelo receio de paralisar o espírito de iniciativa; mas 98 é de esperar que, dadas novas condições sociais, tais medidas serão adotadas a bem da justiça distributiva. A maior cabeça humana, Aristóteles, afirmou que a escravidão seria de todos os tempos; mas as novas condições sociais, que ele não podia prever, permitiram banir aquela grande injustiça política. O senhor do escravo alegava que tinha de seu lado o direito; porém uma civilização mais avançada permitiu acabar com a repugnante iniqüidade, tolerada, senão justificada, por um estado social menos adiantado. Esta observação mostra como pode existir uma deplorável situação econômica saturada de iniqüidades, sem que se dê infração das regras de direito civil e criminal. Por ter considerado a propriedade como um fato isolado, que existe por si, sem afinidades com a moral, com a religião, com a política, é que se têm sustentado as mais absurdas teorias e praticado as mais revoltantes injustiças. Daí a célebre teoria do laisser faire laisser passer, considerando ilegítima toda a intervenção dos poderes públicos na organização da propriedade por outro motivo que não seja o mais estéril, senão per nicioso, egoísmo. Justo ou não do ponto de vista político, a propriedade, considerada como direito, deve ser respeitada em toda sua plenitude, como deve sê -lo todo direito; mas isto não quer dizer que se deva conservar a situação econômica injusta, nem justifica a pretensão 99 daqueles que a todo transe querem conservar a le gislação existente por mais iníqua que seja. Há propriedades legitimamente adquiridas, quer do ponto de vista moral, quer jurídicos, outras adquiridas por meios legais, mas reprovados pela moral, outras que não passam de frutos, ao mesmo tempo, da imoralidade e da ilegalidade. Excluído este último caso, toda propriedade regularmente adquirida, conforme a legislação existente, deve ser respeitada; mas este respeito não impede que o legislador procure, de acordo com as condições do momento, eliminar as injustiças que po rventura existam do ponto de vista político. Nem há direito, por mais bem adquirido, que justifique o legislador cruzar os braços em face das injustiças e iniqüidades econômicas, quando este reconhece que é chegado o momento de dar nova organização social. Desde que existem sociedades humanas e instituições sociais, a preocupação constante tem sido procurar uma justa distribuição dos bens, não somente materiais, mas de toda a espécie. Por quererem equiparar a vida animal à vida social, e deste modo aplicar ao processus social a teoria da luta pela vida, é que alguns espíritos repelem em absoluto a idéia de uma justa repartição de bens. Mas na vida social, se nem tudo é concurso, também nem tudo é concorrência. É tendo os olhos fixos em um ideal de justiça que as massas se agitam mesmo do ponto de vista econô100 mico. Elas querem, em todas as relações da vida social, que o que reputam igual, seja tratado de um modo igual; não compreendem riqueza, honra, dignidade, posição, enfim toda e qualquer situação social que não seja submetida à idéia de proporcionalidade. A idéia de justiça distributiva surge sempre que se forma uma sociedade. A sociedade supõe a justiça como supõe a riqueza. Uma e outra são elementos histológicos do corpo social. Sempre que um grupo de indivíduos forma para nós um todo social, somos levados a considerá-lo sob o ponto de vista do que deve ser e apreciá -lo segundo suas tendências e aspirações para um ideal de justiça. Isto em todas as manifestações da vida social. Injustiça é a constituição em virtude da qual o poder não compete aos mais dignos; injusto é o código penal em que as penas não correspondem à idéia que se faz da gravidade dos crimes; injustiça é a empresa em que a gradação dos lucros não está em harmonia com a gradação dos serviços ou do capital. As massas não se insurgem contra as riquezas, honras e dignidades daqueles que são julgados realmente superiores pelos seus talentos, virtudes ou predicados; o que condenam e repelem é que sejam tratados desigualmente indivíduos que elas reputam iguais. Em um artigo publicado na Revista Brasileira José Veríssimo considera Sílvio Romero “o mais completo tipo representativo brasileiro”. (4 ) 101 Em face desta afirmativa vem logo à mente perguntar-se: – E Tobias Barreto? Deixando de parte o lado subjetivo da questão, sem entrarmos na apreciação de quem mais encarna em sua individualidade a fisionomia da alma coletiva, sem darmos, como assentado, que Tobias Barreto teve a alma muito contrastada para oferecer o cunho do caráter nacional, parece-nos que, colocando-nos em um ponto de vista puramente objetivo, com os olhos fixos tão somente sobre as produções dos dois filhos de Sergipe, pode-se dizer, sem falta à veneração devida à memória de Tobias Barreto, que a obra eminentemente nacional de nossas letras é a História da Literatura Brasileira. Além de que a História da Literatura Brasileira é um repositório inesgotável de informações sobre nossa vida mental e emocional, quer o passado, quer no presente, e, portanto, um manancial de previsões fu turas, sucede que Tobias Barreto revelou sempre uma organização muito refratária ao meio em que viveu, para poder ser considerado o representante supremo das tendências e aspirações nacionais. Mas aqui não caímos na mais formal contradição, depois de termos afirmado que Sílvio Romero completou a obra de Tobias Barreto? Na história das literaturas não é raro encontrarem-se organizações psíquicas diferentes com aptidões intelectuais diversas, concorrendo para um mesmo resultado. Além da diversidade de aptidões, q ue distinguia os dois heróis, é sabido que nem sempre reinou entre 102 eles completo acordo em muitos assuntos, sociais, políticos e mesmo científicos; mas, apesar da diver sidade de vistas no par homérico, esta divergência em nada prejudicou o êxito final. Para Tobias Barreto, em um país como o nosso, em que a política andou sempre divorciada da moral, como encarar a forma de governo senão como uma questão estética, própria para mascarar o despotismo mais absoluto, sob a aparência de uma forma liberal? Sílvio Romero, porém, possui, em alta dose, esta febre ardente de ideal, que reage contra a própria corrente dos acontecimentos, para não perder a confiança no futuro, para não duvidar da boa fortuna da república brasileira. Se lhe objetarem que, a julgar pelo pa ssado, este passado de ontem, que já vem com um longo cortejo de amargas experiências, a julgar pelo presente, este presente que se embrulha e se complica cada vez mais, enchendo de receios e inquietações a alma nacional, nada há a esperar do futuro da nossa República, ele responderá que “os governos nefandos hão de passar, os congressos criminosos e corruptos hão de atufar -se no nada, e o povo há de encontrar o seu estado de repouso e equilíbrio, de liberdade e honra nas suas próprias energias, nas forças nativas da sua própria constituição imorredoura”. Tobias Barreto, admitindo a existência de ciências sociais, entre elas o direito, negava, entretanto, a possibilidade de uma ciência geral dos fenômenos 103 sociais. Para ele a constituição de uma sociologia é “uma aspiração tão nobre quão pouco realizável”. Sílvio Romero segue caminho inteiramente opos to: o direito pode e deve ser estudado cientificamente, porque é um fenômeno sociológico, porque é uma das criações fundamentais da humanidade, cujo estudo constitui o amplo objeto da sociologia. É estranhável que a um espírito tão lúcido e penetrante, como o de Tobias Barreto, houvesse escapado que o estudo de certas instituições jurídicas foi em seus resultados muito além da esfera propriamente jurídica. Os trabalhos de Fustel de Coulanges, de Sumner Maine, de Kovalewsky sobre a patria potestas e outras instituições jurídicas, deram em resultado a descoberta de que não se podem reduzir a um tipo único as instituições primitivas. Assim, a poligamia e a monogamia devem ter sido fatos primordiais nas sociedades hu manas e não fases sucessivas uma da outra. Investigações sobre o patriarcado e o matriarcado, instituições jurídicas, fizeram repousar o parentesco menos sobre o fato genético do que sobre a consciência da espécie, fato importantíssimo, sobre que Giddings assenta toda sua teoria do processo social. Worms dá a razão porque são as instituições jurídicas as que mais têm concorrido para iluminar o espírito dos sociólogos: são elas as mais estáveis e precisas, as que, por assim dizer, se cristalizam nos costumes e nas leis. 104 Alguém já disse que basta um dicionário para conhecer toda a civilização de um povo. Com maioria de razão pode-se afirmar o mesmo de um código. Com os textos do Corpus Juris seria fácil reconstruir toda a civilização romana. A razão é simples: o que distingue o direito das outras instituições sociais, é que ele é construído por textos e costumes, tanto mais estáveis e definidos quanto mais genéricos e comuns. O direito abrange a integralidade dos fenômenos sociais sob a condição de que, dadas certas cir cunstâncias especiais, os fatos por ele regulados possam ser exigidos coativamente. O traço característico, o predicado conceitual do direito é a coação. Fenômenos morais, econômicos, genésicos, estéticos, políticos, religiosos, todos eles podem revestir a forma jurídica, desde que a coletividade esteja de acor do em exigi-los coativamente. Ora, desde que o direito compreende a integralidade dos fenômenos sociais, que por certas e determinadas circunstâncias revestem a forma legal, e desde que se reconhece que estes fenômenos estão sujeitos aos métodos e processos científicos, por que motivo negar-se a possibilidade de uma sociologia, síntese das ciências sociais, quando se atribui o caráter de ciência ao direito, que não é senão a investigação dos fenômenos sociais sob a forma da coação, da mesma maneira que se pode dizer que a estatística o é sob a 105 forma dos números, e a filologia sob a forma da linguagem? Quem tiver lido a História da Literatura Brasileira, notará que antes da publicação de seus interessantes e preciosos trabalhos sobre a história e filosofia do direito, já Sílvio Romero influía eficaz mente sobre a regeneração de nosso movimento jurídico pelo seu método de investigar e criticar; e, ciente, por experiência própria, do quanto influi sobre os diversos domínios do pensamento uma teoria do conhecimento humano, foi que o nosso hercúleo lutador teve a feliz idéia de escrever Doutrina contra Doutrina para combater o positivismo. “O positivismo no mundo, diz Sílvio Romero, e nomeadamente no Brasil, deve ser combatido larga, tenaz e sistematicamente, ponto por ponto, idéia por idéia, doutrina por doutrina”. Entretanto, sobre este assunto, até a presente data nos temos satisfeito com pilhérias de mau gosto, especialmente com relação a Clotilde de Vaux, a qual Augusto Comte chamava seu anjo da guarda, e que durante os treze últimos anos de existência do filósofo lhe absorveu toda a vida afetiva. A concepção da Virge-Mãe, hipótese científica para uns, desvario da razão para outros, não passa de um produto da mania da época – a influência mistagógica das virgens e das mães. “Em nosso mundo crítico, exclama Enfantin, discípulo, como Augusto Comte, de Saint -Simon, temos esquecido esta divina influência da dama da idade média 106 ou da virgem cristã sobre a vida do pagem ou do cavalheiro... mas nós ignoramos, sobretudo, o poder de uma virtuosa carícia, de um religioso beijo, de uma santa volúpia”. Depois da condenação de Enfantin perante os tribunais de policia correcional, dissolvem-se as igrejas de Toulouse, Bret, Metz, e partem Barrault, Lambert e outros apóstolos em busca desta outra mãe que este outro sumo pontífice não cessava de invocar para ajudá lo a proclamar o código do pudor e a por termo à cr ise em que a humanidade se debatia. Enquanto, porém, Enfantin, agraciado por Luiz Felipe, embarcava para o Egito, a fim de efetuar a abertura do canal de Suez, não voltando à França, sem realizar sua empresa, senão para administrar caminhos de ferro, Augusto Comte, que, como todos os discípulos de Saint-Simon, tinha a fibra teológica, cria a Religião da Humanidade, sob a invocação da Virgem-Mãe, que não é senão a imagem de Clotilde de Vaux, a mulher cujo “único sonho sendo a maternidade” – carta de 15 de setembro de 1845 – soube, entretanto, resistir a todas as solicitações do homem, que lhe votava “verdadeiro culto doméstico e público”. Clotilde de Vaux foi como Mme. Recamier: possuiu a virtude secreta da resistência, e daí para o seu adorador a fantasia de uma Virgem-Mãe, fruto tão extravagante como todas as outras citações religiosas do Falansterismo e do Saint-Simonismo. A 15 de setembro de 1845 escrevia Clotilde ao “seu caro filósofo”: “Si vous me contraigniez, par 107 quelque moyen que ce soit, à vous ceder sur le point en question, je ne vous reverrais plus de ma vie. Vous ne savez pas à quel degré d’exasperation me pousserait une violence de ce genre; une femme qui a vécu dans la continence pendant long-temps ne peut se donner qu’avec enthousiasme ou la résolution de devenir mère. Je connais le mariage et je me emnais mieux que le primier savant du monde. N’opposez, donc, plus la moindre observation à mes sentiments; elles ne me me ferraient pas changer et elles me rendraient profon demente malhereuse”. Por sua vez respondia Augusto Comte: “... Efforçons nous, donc, ma chère amie, d’oublier, comme um rêve orageus, la crise avortée, d’où sortons, pour reprendre paisiblement l’heureux cours de nos relations cordiales... Vous m’avez inspiré, il est vrai, la seu le passion que j’aie jamais resentie; et je sens trop qu’elle ne peut cesser qu’avec ma vie; mais elle est, j’ose le dire, aussi pure qu’energique. Depuis la Saint Clotilde, début de nos relations suivies, aucune pensée charnelle n’avait jusqu’alors, ni en votre présence, ni même en votre absence, jamais troublé mon intime adoration. L’ensemble de ma correspondance et de ma conduite tien certes beacoup plus du D. Quichotte que du D. Juan”. Nao menos curiosa e digna de estudo do que a afeição foi a política de Augusto Comte. 108 Sob este ponto de vista, o fundador do positivismo não se destaca senão pela sua antiparia às idéias e às instituições liberais. Já não falando de seu entusiasmo pela Companhia de Jesus, de sua apologia ao imperador Nicolau, de sua apoteose ao regime feudal, de sua instituição de um clero para evitar a anarquia intelectual, de sua criação de uma plutocracia para dirigir o proletariado, ninguém ignora que Augusto Comte, além do desdém que votava ao sistema representativo, considerava uma crise feliz o golpe de estado, que substituiu a república ditatorial à república parlamentar. Augusto Comte esteve sempre disposto a endeusar os atos de absolutismo. É assim que figura no Calendário Positivista, conforme já tivemos ocasião de notar, o célebr e ministro de D. José, marquês de Pombal, que levou o despotismo ao ponto de submeter a seu poder absoluto fatos consumados, acontecimentos passados, violentando deste modo o processo de filiação histórica da civilização portuguesa. Entretanto, apesar do crime de lesa-civilização, em que tão repetidas vezes reincidiu, o marquês de Pombal foi canonizado pelo fundador do positivismo, e por ele considerado um vulto digno do culto da humanidade. Destaquemos mais nitidamente a atitude do ilustre sergipano em face de seu patrício e amigo Tobias Barreto. 109 O desejo de Sílvio Romero foi sempre escrever uma história da literatura brasileira, mas uma história, que estudasse as produções literárias sob um ponto de vista científico, sem ódios nem simpatias, investigando as causas dos fatos, descobrindo as leis dos acontecimentos. Reconhecendo com Scherer que há duas tendências divergentes no modo de escrever a história literária de um povo, uma “pendendo para as considerações gerais, referindo os efeitos às suas causas, distinguindo, classificando”, outra “tomando por alvo reviver este mundo de poetas e escritores do meio que tão grandes causas produziu, procurando surpreender estes homens em sua vida de todo o dia, desenhando lhes a fisionomia, recolhendo as picantes anedotas a seu respeito”, Sílvio Romero não hesita em se decidir pela primeira tendência sob a judiciosa razão de que o encanto, que encontramos neste último gênero de história literária, proveniente de um conhecimento mais familiar do viver dos homens, não consiste especialmente no desenvolvimento de um ou outro segredo, na prática de uma ou outra singularidade, na convivência de uma ou outra anedota. “Tudo seria mais estéril, se não nos deixasse meios de elevar-nos a vistas mais amplas e concernentes à humanidade em geral. O conhecimento que se buscar ao surpreender os atos mais íntimos de um escritor, deve sempre visar uma maior compreensão de sua individualidade e das relações desta com o seu país e das deste com a humanidade”. 110 A história da literatura de um povo é mais alguma coisa do que a crítica literária no sentido de julgar boas ou más as produções estéticas. Este método, que durante muito tempo formou o fundo das histórias literárias, já não pode satisfazer as exigências do saber moderno. Nem é mais também uma série de biografias, dando conta dos antecedentes hereditários dos escritores, informando sobre sua infância, sua educação, suas leituras prediletas, suas opiniões a respeito de certas questões, suas simplatias, seus ódios, em uma palavra, tudo que diz respeito ao indivíduo. Depois que Taine escreveu a História da Literatura Inglesa, a história deixou de ser bibliografia, como praticavam La Harpe e Diderot, ou galeria de portrairs, admiravelmente desenhados e coloridos, como sabiam fazer Nisard e Scherer. Hoje o historiador literário tem vistas mais amplas e profundas: não restringe sua tarefa à notícia das produções antigas ou contemporâneas para informar o que nelas agrada ou descontenta, nem à caracterização do talento dos escritores como me io de determinar o valor de suas produções. São trabalhos estes, em que se admira a penetração de espírito de tantos ensaístas, notavelmente entre eles Paul Bourget nos perfis de Baudelaire, de Flaubert, de Sthendhal, de Renan, de Dumas Filho; porém que, por mais interessantes e instrutivos que sejam, não dão a conhecer o senso da história literária de um povo. 111 A história de uma literatura não é senão a caracterização do gênio de uma nacionalidade pelo mais significativo de todos os documentos humanos – o livro. Encarar o livro, não como objeto de crítica, mas sobretudo como documento histórico, elevar -se até a psicologia social, não limitando -se a estudar o mecanismo cerebral dos escritores e suas manifestações intelectuais, como procedia Sainte Beuve, nem restringindo-se a analisar as influências de meio e de here ditariedade, como se dá em Taine, eis a tarefa do moderno historiador literário. Com esta orientação foi escrita a História da Literatura Brasileira, cujo fito é determinar o que é e o que será o brasileiro, caracterizar nosso gênio social, descobrir as leis que presidem ao nosso destino, às nossas tendências e aspirações nacionais. Para tanto não batavam Le Brézil Litteraire, de Wolf, que não forma um tecido contínuo e completo de nossa literatura, nem os trabalhos de Abreu e Lima, Domingos Magalhães, Norberto e Silva, Pereira da Silva, Varnhagen, Fernandes Pinheiro, Antônio Joaquim de Mello, Soteri dos Reis, Joaquim Manoel de Macedo, mello Moraes Filho, Pereira da Costa, José de Alencar, Quintino Bocaiúva, Machado de Assis, Franklin Távora, Araripe Junior, trabalhos que não passam de monografias sobre assuntos destacados uns dos outros ou de biografias sobre escritores prediletos, realçando o valor literário desta ou daquela produção. “Era mister , com se lê no capítulo I da História da Literatura Brasileira, mostrar as relações de nossa vida intelectual 112 com a história política, social e econômica da nação. era preciso deixar ver como o descobridor, o colonizador, o implantador da nova ordem de coisas, o português e3m suma, se foi transformando ao contato do índio, do negro, da natureza americana, e como ajudado por tudo isso e pelo concurso de idéias estrangeiras se foi aparelhando o brasileiro, tal qual ele é desde já e ainda mais característico se tornará no futuro”. Daí o espírito geral do livro de que nossa história científica nem é a do inveterado barbarismo brasileiro, de que fala Bukle; nem a da combinação dos três elementos étnicos – o português, o africano e o índio – como entende O. Martins; nem a do prolongamento da civilização ocidental, passando para a América a luta entre latinos e germanos, entre portugueses e holan deses, segundo a fórmula dos discípulos de Comte. A história científica brasileira é a de uma metempsicose, filha da fusão de três raças distintas – a branca, a negra e a amarela – sob a influência de causas atmosféricas e de zonas topográficas diferentes, e ao contato das grandes correntes da civilização européia. Guiado por este pensamento, Sílvio Romero explica certas particularidades do caráter brasileiro pela influência direta do solo, do clima e do nutrimento. Temos um solo imenso, cortado por grandes rios, de norte a sul, de leste a oeste, formando duas vastas bacias hidrográficas, a do Amazonas e a do Prata. A região do norte é quente e ubérrima, a do sul rela tivamente fresca e mais ou menos fértil. 113 “É certo, porém, que a maior parte do país, o verdadeiro Brasil, está contido na zona tórrida, que encerra quase todas as terras baixas do litoral de um clima quente e úmido... As notas predominantes no clima do país são, pois, o calor e a umidade, com todo o cortejo formado pelo paludismo. Além disto a alimentação, apesar da extraordinária fertilidade da natureza, é pouco substancial, operando-se dificilmente a digestão pelo enfraquecimento das funções centrais; a exalação do ácido carbônico pelos pulmões não é completa, encarregando se da eliminação daquele elemento prejudicial à vida do fígado, que a realiza sob a forma de bílis; a depressão da respiração não permitindo que o quilo se transforme em sangue, este, seroso, se arterializa dificilmente. A dificuldade da arterialização, o enlanguecimento da grande circulação, traz, o enfraquecimento dos órgãos, o depau peramento da vida. O calor, desenvolvendo uma transpiração abundante, distende os tecidos cutâneos, e a pele torna-se extraordinariamente sensível. Então, como diz Levy, “os órgãos, que simpa tizam diretamente com a pele, recebem um igual impulso, especialmente os sentidos e o aparelho genital”. Na diminuta eliminação, pois, do ácido carbônico pelas vias respiratórias, na exagerada secreção de bílis pelo fígado e na superexcitação cutânea por uma copiosa transpiração, em poucas pa lavras, nesse pernicioso antagonismo entre o fígado, o pulmão e a pele, produzido pelo solo, pela alimentação e pelo clima, está a causa genérica desse histerismo, desse 114 hepatismo e desse afrodisismo, que se manifestam em nossa literatura e que exercem uma tão decisiva influência sobre o caráter de nosso povo e sobre o destino de nossa civilização. Tal a intuição geral do grande livro de Sílvio Romero. Edmundo Scherer, criticando a História da Literatura Francesa, por D. Nisard, diz: “O livro de M. Nisard tem, antes de tudo, alguma coisa de imponente. É uma obra considerável, e isto em um tempo em que não se escrevem mais senão artigos de jornais e brochuras. É fruto de vinte e cinco anos de trabalho, fruto lentamente amadurecido, em uma época em que todo o mundo improvisa. O leitor inclina -se diante de um poder de labor e de vontade a que quase não está mais acostumado”. Estas palavras podem ser justamente aplicadas à História da Literatura Brasileira por Sílvio Romero. Os imponentes volumes do ilustre sergipano constituem uma vasta produção, um trabalho de longo fôlego, onde se sente a espontaneidade, que inspira, e a força de vontade, que executa uma grande empresa. É que o autor da História da Literatura Brasileira, além de sede de saber, tem a febre da atividade, mas da atividade, que realiza uma nobre tarefa. O livro de Sílvio Romero, além de ser uma obra considerável, engenhosamente planejada, belamente executada, era uma necessidade para a nossa literatura, que carecia de uma história. 115 Tudo que possuímos, como os trabalhos de Antônio Joaquim de Mello, de Franklin Távora, de Ararip e Junior e outros, se atraía a atenção como matiz, não tinha importância como contextura. Os magníficos escritos de Tobias Barreto não se ocupam do assunto em seu todo: são fragmentos colossais, é verdade, por onde se poderia avaliar da grandiosidade do mo numento a levantar; mas como pedaços de história, desatacados uns dos outros, sem conexão entre si, sem formarem um tecido contínuo e completo, podem ser comparados a frutos exóticos, que deixariam a boca do leitor cheia de cinza depois de saborosamente devorados. A razão é simples: a crítica de Tobias Barreto é tanto mais admirável e encantadora quanto mais cruel e desapiedada. Para provar o que digo, basta lembrar os artigos Sobre os Fatos do Espírito Humano e o Atraso da Filosofia entre nós, publicados no Jornal do Recife, o primeiro em 1869 e o segundo em 1871. Sílvio Romero pertence à família dos individualistas, dominados pelo forte sentimento da perso nalidade humana. O autor da História da Literatura Brasileira é uma natureza semelhante ao autor da Democracia na América, dirige e encaminha mais do que explica e raciocina. Hão de ver q eu sua obra é mais a orientação para um fim do que a descoberta de uma origem: é uma obra em que predomina mais o senso da direção do que o da visão. 116 Comparando-o com Tobias Barreto, vemos que este é um lúcido, que por trás dos fatos vê, compreende tudo, afirmando a verdade como uma causa; Sílvio Romero sente as transformações sucessivas da natureza, põe-se à frente dos acontecimentos e afirma a verdade como um efeito. O primeiro explica como da lagarta sai a borboleta, o segundo afirma convencidamente que a semente se transformará em flor. Se o primeiro possui essa calma, essa claridade de espírito, que vai até a mais ampla filosofia, o segundo tem essa sede, essa febre de propaganda, mas da propaganda no bom sentido da palavra, como direção para um ideal, qualidade que o torna um excelente crítico. Se nos fosse permitida ainda uma comparação, nós diríamos que Sílvio Romero acompanha o processo da natureza, caminha do simples para o composto, do homogêneo para o heterogêneo; Tobias Barreto segue uma ordem inversa, parte do particular para o geral, da variedade para a unidade. Estamos convencidos de que, se Tobias escre vesse uma história de nossa literatura, não considerar ia os indivíduos senão como ponto de partida para uma conclusão geral. A História da Literatura Brasileira, porém, simples e genérica em seu início, pouco a pouco se vai diferenciando e especializando, passando do geral para o particular, do meio para a raça, da raça para o indivíduo. 117 É por isso que no livro de Sílvio Romero há uma como que aparente oposição entre a primeira e a se gunda parte: naquela o autor, se entrega a considerações gerais, o indivíduo desaparece diante da raça, a raça diante do meio, reduzindo-se tudo a uma simples questão da fisiologia, ou melhor, de mecânica; neste estuda os indivíduos, desenha caracteres, biografa per sonalidades, conta anedotas e até faz larga antologia. Esta disposição prova o que dissemos: Sílvio Romero, por mais preocupado que se mostre com as influências da raça e do meio em que se desenvolveu a literatura brasileira é, sobretudo, uma natureza individualista, dominada por um vivo sentimento da per sonalidade, por uma consciência nítida da dignidade humana. (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 145-193). NOTAS (1) A História e os Historiadores, Paris, 1888. (2) História da Literatura Brasileira, Introdução, pág. XIII. (3) René Wiorms, La Sociologie et le Droit. (4) Revista Brasileira, Tomo IV, pág. 297. 118 3. TOBIAS BARRETO As Questões Vigentes são mais alguma coisa do que um livro notável, escrito com saber e arte por um vigoroso pensador, que é ao mesmo tempo um brilhante escritor: são um monumento para a literatur a brasileira, simbolizam as sucessivas e múltiplas manifestações de uma pena magistral, estereotipam a psicologia de uma natureza genial, constituem uma obra tão grandiosa como a alma de Tobias Barreto em seu movimento progressivo, em suas diferentes metamorfoses, livrando se das cadeias e convenções correntes, e elevando -se as mais altas regiões do pensamento, em que dominam como reis no espaço e no tempo os Lucrécios, os Dantes, os Shakespeares, os Goeths. As Questões Vigentes formam a história autônoma do desenvolvimento de nossa literatura, pelo que bastaria sua leitura para conhecer -se sua característica, se seu autor as tivesse apresentado na ordem, em que foram escritas; porém, natureza mais nobre do que vaidosa, Tobias Barreto preferiu dispor sua obra de maneira a constituir antes um monumento para a literatura brasileira do que um pedestal de glória para sua individualidade. Portanto, a presente introdução, se não é filha tão somente da necessidade, que sente um discípulo, de dar expansão ao sentimento de afeição, que tem ao mestre, 119 também não pretende mais do que mostrar como e quando nasceram as Questões Vigentes( * ). Mas tanto bastará para conhecer-se a natureza superior de Tobias Barreto, e a influência, que há exer cido sobre nosso movimento intelectual; para convencer-se de que é ele o regenerador de nossa literatura, desbravando o terreno e lançando as sementes, que têm produzido os mais belos frutos, para persuadir-se de que não se trata simplesmente de um poeta, de um crítico ou de um jurista, mas, sobretudo, de um filósofo adorável da poesia, da crítica e do direito, notando -se em todas as suas produções essa unidade de vistas, essa mecânica de espírito, em virtude da qual todos os seus trabalhos se prendem, se ligam, se combinam e formam um todo harmonioso, de maneira que cada um deles não é senão como um fragmento dessa grande alma, espécie de câmara de árvore de natal, repetindo umas palavras de Schopenhauer, iluminada, quente, alegre, no meio das neves e dos gelos de uma noite de inverno. O leitor então verá que nessa esquisita e grandiosa vegetação, que constitui a vida literária de Tobias Barreto mais de um botão tem rebentado, que, depois colhido por mãos estranhas, há desabrochado na mais bela flor, excitando a admiração e a volúpia * O presente escrito serviu de introdução às Questões Vigentes, livro de que tinha razão para se orgulhar seu autor, e cujo nome só desapareceu em virtude da nova organização, que Sílvio Romero deu aos trabalhos de Tobias Barreto, que de filosofia passando para os Estudos Alemães, o que era de jurisprudência para os Estudos de Direito. 120 daqueles que receariam aspirar o perfume de uma página assinada pelo ilustre pensador. Como quase todas as naturezas geniais, Tobias Barreto começou poeta. No princípio de sua vida, quando ainda habitava a província de Sergipe, ver versos, que nunca foram publicados, porém que ainda hoje são repetidos como a produção mais espontânea e característica do meio inculto e ao mesmo tempo sadio, em que apareceram. É uma poesia simples, inspirada por um vivo sentimento da natureza, sem o desespero triste de Byron ou a fanfarra retumbante de Hugo, de quem depois assimilou a forma, quando mais tarde veio estudar o curso jurídico aqui no Recife, assimilação que se explica menos pela afinidade do temperamento meridional do poeta sergipano do que pelo período guerreiro, por que passava o país. A ardente paixão pela pátria se dava bem com o tom elevado da poesia hugoana, que Tobias Barreto chegou mesmo a ultrapassar para depois tornar -se natural, quero dizer, para tornar-se Tobias Barreto mesmo, com todas as suas qualidades e defeitos, dos quais, no entender de seu mais sincero, dedicado e distinto admirador – Sílvio Romero, o maior é baratear sempre e sempre seu talento. A influência de Hugo, porém, não durou senão um instante, livrando -se dentro em breve tempo o poeta de todo o convencionalismo da forma, e readquirindo toda a sua espontaneidade, caracterizada mais pela nota vibrante do sentimento do que brilho cambiante da imaginação. 121 Sob esta relação Tobias Barreto marca u’a nova era para nossa literatura; é um poeta que tem o sentimento de sua raça e o espírito de seu tempo; é o nosso Shelley pela naturalidade e espontaneidade de suas produções; sua poesia é uma fonte inesgotável de inspiração e de amor; sua alma alada voa para as alturas do pensamento como as águias para os píncaros dos montes. Tobias Barreto possuía, entretanto, muito o sentimento de seu tempo para ficar poeta, para fazer da poesia sua ocupação habitual; interrogou as ciências e entreviu novos mundos na política, no jornalismo, na crítica, na filosofia. Uma vez começada sua peregrinação científica, não parou mais, caminhando sempre para a verdade. A fim de conseguir a tranqüilidade de espírito, de que sente nec4essidade toda a natureza rica de vida interior, deixou o Recife e se isolou na Escada. Ali passou dez anos na companhia daquela, a quem tinha ligado seu destino, e na convivência dos bons livros alemães, de cujos autores, por diferentes vezes, recebeu testemunhos de admiração, como este: “Há muito que tinha desejo de dirigir-vos algumas linhas. Eu vos admiro, eu vos venero, e isto na minha idade quer dizer alguma coisa, pois que a admiração e a veneração, que se consagram aos homens, desaparecem com o tempo, quando já se tem acumulado uma boa soma de túrbidas experiências. Do meio do povo brasileiro, a quem eu estimo do mesmo modo que 122 sois um amigo do povo alemão, vós sobressais como um gigante do espírito”. (1 ) Nada mais honroso nem mais justo para quem, levado por uma sede insaciável de saber, aprendeu o alemão consigo mesmo, e, não satisfeito com is to, publicou jornais em língua tedesca numa pequena cidade como a Escada! Foi isolado na Escada que Tobias Barreto come çou seu magistral trabalho sobre o Poder Moderador, no qual não se sabe o que mais admirar: se a superioridade do talento, se a integridade do caráter do autor. Naquele tempo era uma temeridade ir de encontro aos três escritores, que se ocuparam com o Poder Moderador, o Conselheiro Zacarias de Góes, o Visconde de Uruguai e o Dr. Braz Florentino; mas pensando com Huet que nosso século tem necessidade de todas as coragens, que ele carece, antes de tudo, da coragem intelectual, o solitário da Escada dissipou de tal sorte as nuvens, em que se envolvia o assunto, que a arca santa desapareceu como por encanto, e o rebelde foi acolhido com entusiasmo, tal era a simplicidade da exposição, a clareza da argumentação, a sinceridade da crítica. Ao Poder Moderador prendem-se outros trabalhos, dados à luz em 1872: o Direito Público Brasileiro, análise ao livro do Marquês de São Vicente, e a Província e o Provincialismo, crítica ao livro de Tavares Bastos – A Província. De todas estas obras criticadas por Tobias Barreto, a única que ainda hoje se lê, é a Província, que, entretanto, pode ser tudo, menos um livro. A impressão, 123 que deixa a obra capital de Tavares Bastos é a de um longo discurso dividido em capítulos. Admita-se a palavra fácil e eloqüente do autor com seus entusiasmos e ilusões de moço, mas sente-se que o livro é despido de todo senso científico. Na Província, ao lado de pomposas tiradas oratórias, encontram-se apenas fracos e tíbios raciocínios. Em 1873 Tobias Barreto nada produziu, tão grande foi a dor causada pela morte de sua mãe! Em 1874 publicou o famoso Sinal dos Tempos. Saíram apenas dez números; mas foram dez brasas inflamadas, aplicadas à nossa comédia político-social. Em 1875 deu à luz da publicidade seu primeiro livro, que modestamente intitulou Ensaios e Estudos de Filosofia e Crítica, obra notável pela profundez das idéias, pela franqueza da crítica, crítica sincera de quem tem bastante rigidez de caráter para exprimir corajosamente suas predileções e antipatias. A crítica puramente objetiva, como a compreende Taine, não é fecunda senão procurando descobrir o nexo de causalidade entre os acontecimentos históricos, mas não como meio de seleção, aplicado às obras dos contemporâneos. Sob esta relação a crítica há de ser rigorosamente subjetiva, forçosamente parcial, agindo o crítico com todas as suas convicções e entusiasmos para eliminar as irregularidades e monstruosidades literárias. Nos Ensaios e Estudos há uma coisa digna de toda a atenção: o segundo capítulo é um magnífico 124 ensaio de crítica religiosa, o que importa dizer que foi a primeira palavra sobre o assunto no Brasil. Nem se fale nas Bíblias Falsificadas, de Abreu e Lima, ou na Igreja e Estado, de Saldanha Marinho, que nada têm que ver com as ciências das religiões: são meras obras de polêmica, em que seus autores se mostram além de intolerantes, atrasados, acreditando em falsos e verdadeiros deuses, atacando dogmas e cultos, que servem para marcar as diversas metamorfoses, por que tem passado o espírito dos povos, como as pedras erráticas atestam as revoluções do globo terrestre. Ocupa-se o segundo capítulo dos Ensaios e Estudos com a realeza e o profetismo hebreu, “essas duas forças que derramam, por seus combates, na vida histórica dos judeus tão dramático interesse”. A um espírito superior como Tobias Barreto não podia escapar o mais original elemento da história do povo hebreu – o profetismo, tão mal compreendido pelo rabinismo, que o deturpou, dando como singularidade o que apenas foi uma superioridade étnica. Não há muito tempo James Dermesteter, refe rindo-se à História do Povo de Israel, de Ernesto Renan, dizia que duas coisas fazem a originalidade e o poder de atração da grande obra do famoso escritor francês. A originalidade é ter feito do profetismo o pivot da história de Israel; o poder de atração e a harmonia, que salienta entre o coração dos profetas e a alma moderna do século XX. Note-se que o profetismo não é um fenômeno exclusivo do judaísmo. Todos os povos antigos, escreve 125 Darmesteter, tiveram seus profetas, isto é, homens falaram em nome de Deus ou dos poderes sobrenaturais. O profetismo é um fenômeno da vida espiritual, como o é a filosofia. Esta organiza as relações das coisas no espaço, aquele regulariza as relações dos acontecimentos no tempo. Assim como há um sentimento da ordem ente os sons, sentimento da harmonia entre as linhas, o qual se traduz pela arquitetura, há também um sentimento de conformidade entre os acontecimentos, que se manifesta pelo profetismo, tão cultivado entre os antigos, principalmente pelos semitas. Ora. o profetismo não é a flor e sim a raiz mesma do judaísmo. Jeová é invisível; mas não cessa de falar a seu povo pela boca dos profetas. Os profetas israelitas são os órgãos do pensamento e da vontade de Jeová. O profeta, diz Darmesteter, é outra coisa que o padre, que é um personagem sem grande originalidade, ministro de um ritual estabelecido, cujo poder age por si mesmo, sem que a pessoa do padre intervenha em coisa alguma. O profeta é um homem possuído de Deus e por quem Deus se revela aos homens. O profeta israelita era o grande porta-voz do pensamento e da vontade divina, não somente do ponto de vista moral, mas principalmente do po nto de vista civil e político. Sua principal preocupação eram os negócios públicos. Por isso foram comparados com razão a tribunos do povo, e diz Colani que esta comparação é justa no sentido de que eles tinham por fim esclarecer 126 Israel sobre seus verdadeiros interesses, e modificar a marcha do governo pelo poder único da persuasão. Nem sempre reina harmonia de vistas entre os profetas, é verdade; mas todos eles pertencem a um mesmo partido, todos eles advogam a mesma causa – o progresso. O profeta israelit a não é um reacionário, um apóstolo do passado, e sim um precursor, um missio nário do futuro. O profeta antigo não se distinguia do revo lucionário moderno senão por ser mais pertinaz do que este e porque era o que havia de mais nobre e mais puro no seio da massa popular. Era o profeta que, condenando os abusos e os vícios contemporâneos, consolava o povo em seus dias azíagos e inspirava-lhe esperanças acalentadoras. O cristianismo é o complemento do judaísmo, é a continuação desse movimento que se encontr a através das religiões da Caldéia, da Assíria, do Egito, da Fenícia. O nabi tinha espalhado em Israel uma esperança tão ardente em um salvador, em um Cristo, que este devia necessariamente se produzir, e assim Jesus foi o Deus de justiça, de piedade, de c lemência, de misericórdia, de caridade, de que falam as profecias da Bíblia. Em 1876 Tobias Barreto começa u’a nova fase de sua vida: deixa a publicística e a crítica, e se atira de corpo e alma no jornalismo. 127 Bem poucos têm sido jornalistas como ele, bem poucos têm manifestado uma tão grande vocação para a imprensa periódica. O solitário da Escada não foi no jornalismo um lisonjeador das paixões públicas; mas uma espécie de vidente, que lia no futuro como em um livro aberto no presente. Seu admirável talento sondava as profundezas das correntes do dia, como levantava os arcanos dos acontecimentos vindouros. Em 1876 publicou o Povo da Escada e o Desabuso; em 1878 o Aqui para Nós e a Igualdade, da qual apenas saiu um número, mais uma página solta que, pelo arrojo dos conceitos políticos, vale bem a célebre ode de Pushkin, sob o mesmo título; em 1778 e 1880 o Contra a Hipocrisia, onde a cabeça luminosa do jornalista por seus vastos conhecimentos brilha como uma estrela no espaço. Mas, coisa incrível, até o saber vale perseguição! Na admirável obra de regeneração intelectual, que arquitetava, Tobias Barreto não escapou ao ódio das naturezas medíocres, e foram tantas as perseguições movidas, que se viu forçado a deixar seu refúgio intelectual e vir para o Recife. Há muito que Tobias Barreto trabalhava com todas as energias de seu talento para colocar o direito na altura do espírito de seu tempo, há muito que se esforçava sinceramente para “acomodar o direito às exigências do saber moderno”. 128 Já em 1878 tinha escrito, na Província, na Jurisprudência da Vida Diária, e no Contra a Hipocrisia as brilhantes páginas, que mais tarde foram reproduzidas nos Estudos Alemães sob o título de Delitos por Omissão. A Jurisprudência da Vida Diária, sob o ponto de vista crítico e científico, é o menos importante de todos os capítulos das Questões Vigentes; mas nem por isso deixa de ter uma alta significação. Em março de 1875 Sílvio Romero, por ocasião de sua defesa de teses perante a Faculdade de Direito do Recife, apresentou uma belíssima dissertação, na qual citava o notável jurista alemão Von Ihering. A novidade da citação causou espanto à Congregação, e foi talvez essa uma das circunstâncias, que concorreram para que contra o ilustre candidato fosse instaurado um processo. Tobias Barreto, que a uma extraordinária largueza de vistas reúne uma prodigiosa generosidade de coração, tomou a peito vingar, algum tempo depois, seu conterrâneo e amigo, e fê-lo, escrevendo aquelas brilhantes páginas, onde respira-se um tão delicado perfume de amizade, ao mesmo tempo que se trava conhecimento com um dos mais ilustres jurisconsultos da Alemanha. É assim com todos, e aproveito a ocasião para declarar que me sinto tão orgulhoso quanto agradecido pela defesa a mim feita perante aquela mesma Congregação nos seguintes termos: “A ciência do direito é uma ciência de seres vivos; ela entra por conseguinte na categoria da 129 fisiofilia ou filogenia das funções vitais. O método, que lhe assenta, é justamente o método filogenético, do qual Eduardo Strasburger diz ser o único de valor e importância para o estudo dos organismos viventes. Se o leitor entende, tanto melhor para si; caso porém não entenda, não é culpa nossa. Talvez nos perguntem: quem é esse Sr. Eduardo Strasburger? Só podemos responder que não é lente da nossa faculdade nem candidato à deputação geral”. Nos Delitos por Omissão, ao terminar, predisse que, “persistindo nesse terreno, bem podia, depois de alguns anos, vestir sua clâmide de criminalista”. Não se iludiu: em março de 1881 publicou o belíssimo trabalho sobre o Chamado Fundamento do Direito de Punir, e em 1882, quando concorreu ao lugar de lente substituto da Faculdade de Direito, apresentou uma dissertação de direito criminal, que é um modelo de aplicação dos modernos processos científicos a fenômenos da ordem jurídica. Mas em agosto deste mesmo ano foi que a clâmide do criminalista se mostrou em todo seu fulgor com a substanciosa análise do artigo 10 do velho Código Criminal. Dos Menores e Loucos ressalta, como já uma vez notei, a idéia completamente original, exclusivamente própria de Tobias Barreto, considerando o crime não tanto um caso de patologia ou atavismo, mas antes uma mostruosidade ou irregularidade, que deve ser eliminada por meio da pena, e a pena como um meio de seleção jurídica, pelo qual as monstruosidades ou 130 irregularidades sociais vão sendo excluídas do organismo comum. Se a ordem é o fim supremo a que tendem todas as categorias de seres, especialmente os homens, aqueles que infringem esta ordem, principalmente os criminosos, são irregularidades, monstruosidades, que devem desaparecer como notas díssonas no concerto universal da natureza, concerto de que a sociedade humana procura se aproximar. Tobias Barreto, porém, não parou na teoria da pena, foi adiante, escrevendo em 1 881 a Nova Instituição do Direito, em 1882 o Direito Autoral, que causou espanto aos nossos juristas como uma espécie nova, que nunca houvesse aparecido, e em 1883 a célebre oração acadêmica, que lhe valeu uma longa série de insultos e calúnias por parte d a imprensa clerical do Maranhão. A Nova Intuição do Direito é a concepção darwinico-haeckeliana no mundo jurídico. O direito “não é um filho do céu”, perfeito e acabado em si mesmo, fora do desenvolvimento universal: mas um fenômeno histórico, sujeito a uma metamorfose constante, a um fieri perpétuo. E além de um fenômeno histórico, que varia no tempo e no espaço segundo uma infinidade de circunstâncias, o direito é filho da luta, princípio superior, que preside o desenvolvimento de todos os indivíduos e de todos os acontecimentos. 131 Antes da Nova Intuição do Direito nada se encontra entre nós, que mostre o direito invadido pelo espírito darwiniano. (2) Quanto ao chamado Direito Natural, é uma criação da arte humana e não uma produção espontânea da natureza. A etnografia, estudando os elementos de cultura, que se tornaram partes integrantes da psique humana, mostra o homem inventando seu direito, como inventou suas armas ou seus instrumentos de trabalho. A natureza não conhece direito, como não conhece polidez. Em 1883, banido o compêndio das Faculdades de Direito, foi publicado um programa, no qual seu autor, o dr. José Higino, elevando-se um tanto acima da rotina, considerava o homem como uma resultante dos três reinos, mineral, vegetal e animal, e reconhecia q ue as ciências formam todas um vasto organismo, mantendo entre si as mais estreitas relações; mas, em vez de se limitar a subordinar o estudo do direito ao mecanismo da ciência em geral, procurou sujeitá -lo aos pretensos princípios da chamada Sociologia. Com relação a este programa, que teve de explicar em 1884, quando regeu a cadeira de Direito Natural, foi que Tobias Barreto escreveu as Notas a Lápis sobre a Evolução Emocional e Mental do Homem, e as Glosas Heterodoxas a um dos Motes do Dia, ou Variações Anti-Sociológicas. A questão da evolução mental e emocional, a que se poderia acrescentar a volicional, porque a vontade humana também é progredido, ou é simplesmente 132 “ociosa”, ou inteiramente “insolúvel”: ociosa, se investigar-se “se tem havido” uma evolução das idéias e sentimentos? Insolúvel se indagar -se como tem havido esta evolução. Com efeito, hoje que já se possui uma história da vida sideral – Astronomia, uma história da vida mineral – Geologia, uma história da vida vegetal – Botânica, uma história da vida animal – Zoologia, uma história da vida humana – Antropologia, lançando esta última os mais vivos clarões sobre as diferentes causas, que têm modificado e aperfeiçoado o sistema nervoso do homem, sobre os diversos elementos constitutivos da cultu ra psíquica em toda a superfície do globo, seria ridículo se indagar se tem havido um desenvolvimento da inteligência e da sensibilidade. A questão, porém, muda de face para se tornar insolúvel, quando se pretende saber como se operou a evolução das idéias e dos sentimentos. Com efeito, escrevíamos, há alguns anos: “se ainda hoje está por acabar-se a história morfogênica e morfofílica dos seres vivos, de maneira que ainda não se pôde explicar como de um organismo amorfo saiu por evoluções contínuas a beleza plástica da mulher; se é terreno ainda menos explorado a fisiogenia bem como a fisiofilia, de tal sorte que seria impossível explicar como dos movimentos monótonos dos animais inferiores proveio a graça feminina com todos os seus encantos e seduções, seria loucura pretender fazer psicogenia e psicofilia, explicando como se tem operado a evolução mental e emocional do homem”. 133 Mais proveitoso seria investigar se tem havido uma evolução volicional, se a cadeia dos para que tem progredido na série dos porque, se ho homem as cxausas finais têm adquirido preponderância sobre as causas eficientes. Ainda mais complicar-se-ia o enigma, pretendendo-se levantar o véu, que oculta o futuro, para se determinar até onde aumentará o poder do homem sobre a natureza, até o nde melhorará seu destino, que idéias e sentimentos prevalecerão nas gerações vindouras, em que sentido deve ser dirigida a marcha da humanidade para o futuro, quais os elementos de civilização que substituirão e quais os que desaparecerão. São questões interessantes, mas de bem difícil solução. Mais fácil seria indagar se a idéia e o sentimento têm marchado paralela e sincronicamente, se existe homocronismo entre o desenvolvimento mental e o emocional. Os fatos são pelo anacronismo sentimental: enquanto muita idéia se tem apagado do céu do pensamento, as primeiras emoções do homem continuam a cintilar-se n’alma. Chegando a este ponto das Questões Vigentes, o leitor verá o que é ter um profundo talento de obser vação, um delicado tato crítico; admirará a s agacidade com que Tobias Barreto explica um grande número de fenômenos até hoje mal interpretados; saberá como deve ser compreendido o padre, que prega o bem e pratica o mal, o materialista, que pretende conhecer o segredo de todo o universo e receia entrar à noite em um cemitério, 134 o amante, que conhece todo o seu aviltamento e, entretanto, vai onde o leva a paixão. Mas de todos os capítulos das Questões Vigentes aqueles em que o autor mais abala, mais empolga, mais encanta o espírito do leitor, são as Notas Heterodoxas ou Variações Anti-Sociológicas e a Irreligião do Futuro. Tobias Barreto pensa que a Sociologia é “apenas o nome de uma aspiração tão elevada, quão pouco realizável”. O universo inteiro vive numa transformação contínua, num fieri perpétuo; mas à proporção que a natureza evolui, passando do homogêneo, vai perdendo a estabilidade e a fixidez, e a ciência se torna pouco a pouco irrealizável. A instabilidade dos estados está na razão direta da complexidade dos fenômenos, e é por isso que a proporção que os fenômenos se multiplicam, passando de estados homogêneos a estados heterogêneos, a possibilidade de ciência vai desaparecendo, e a necessidade de ideal surgindo. Como se vê, a instabilidade dos fenômenos de ordem superior não é coisa estranha à economia geral da natureza, e a temeridade, senão impossibilidade, da constituição de uma Sociologia nasce daquela instabilidade, filha da grande heterogeneidade dos estados superiores da evolução universal. As Notas Heterodoxas se ocupam em primeiro lugar com o debate entre os partidários e os adversários 135 da liberdade, assunto que tem merecido especial atenção da parte dos sociólogos. Para estes a liberdade é uma ilusão, desde que todos os fenômenos são regidos por leis; daí a necessidade de um determinismo para a vontade como para qualquer fenômeno físico. A verdade, porém, é que a vontade, como diz Wundt, tem permanecido até hoje “como um ponto negro no meio da brilhante luz das causas e efeitos”. Os sociólogos não vão com a experiência, quando pretendem submeter a vontade ao princípio da causalidade. Interrogada a experiência ela não nos diz senão uma coisa: é que existe um fator pessoal, causa imediata de nossas ações e das quais os motivos não são senão causas mediatas. Nesse ponto o vigor do pensamento de Tobias Barreto está na altura do primor da expressão: “Para o monismo filosófico, o movimento e o sentimento sendo inseparáveis, dá-se entre eles somente uma questão de grau: onde mais domina o movimento, aparece então a causa eficiens; onde mais o sentimento, prepondera também a causa finalis. O mundo não é só uma cadeia de porquês, como pretende o materialismo acanhado, mas ainda uma cadeia, uma série de para ques, de fins ou de alvos, que reciprocamente se apóiam, se limitam que saem uns dos outros. A intuição mecânica porém não quer saber do que vai além da simples concatenação de causas e efeitos. O monismo naturalístico, que representa a unidade de vistas adquiridas no domínio das ciências 136 naturais, está preso, como elas, à exclusiva consideração da causalidade, que é a lei capital da empiria, o princípio gerador de toda experiência”. É desta distinção entre motivo e causa, aquele consciente e finalístico, esta cega e fatal, que o autor parte para refutar o mecanicismo de Haeckel, reabilitar o monismo de Kant e mostrar a impossibilidade de constituir uma Poliologia científica pelo arbitrário, que a liberdade introduz na sucessão dos acontecimentos. Além da liberdade há uma outra dificuldade, com que lutam os sociólogos: é a aparição dos grandes homens, que até hoje tem permanecido como um enigma na sucessão dos séculos, Mas, quando mesmo a determinação das condições, em que aparecem os gênios não ultrapasse os limites do saber humano, ainda assim a constituição de uma Sociologia seria impossível, porque não se podem prever todas as transformações e resultados, que produzem as invenções e descobertas. Nem se diga que tendemos para restringir o domínio da liberdade e das ações individuais, ampliando o da lei e das causas gerais, porque dia a dia surgem novas descobertas e invenções, e a parte do imprevisto e inadivinhável nas invenções humanas se torna cada vez maior. Além disto, a civilização tal como é geralmente compreendida, tende mais e mais a restringir a ação da natureza. Com este conceito, que lhe é próprio, e que é novo, Tobias Barreto dá a chave de uma infinidade de enigmas, que eram um tormento para outros, que não achavam meio de sair-se da dificuldade senão con137 denando instituições sociais, como hospitais, asilos, misericórdias. O próprio Darwin não escapa aos rudes golpes do crítico, que logo em seguida se mostra o mais liberal e tolerante dos pensadores nas belíssimas reflexões, feitas sobre o acaso e Deus. Sem entrar em considerações metafísicas sobre a natureza de um e de outro, põe em relevo o papel importante, que ambos representam na vida social, como forças ideais. Mas relativamente a estas duas forças sociais, sendo maior os erros e injustiças sobre o papel da divindade, Tobias Barreto aproveitou a ocasião do aparecimento do livro de Guiau – a Irreligião do Futuro – para descarregar mais rudes golpes sobre a Fronteira da Sociologia, de que fala Froebel. O ensaio escrito a propósito do livro de Guiau é uma produção toda nova, como gérmen de uma filosofia do futuro, como uma aspiração da alma contemporânea, como uma satisfação à necessidade de afeição, que exis te em nossa natureza, como uma obra de paz entre a afirmação e a negação da divindade, como uma concepção, que, se não nos aponta um futuro, cuja perspectiva nos deslumbra, inspira-nos uma tolerância, que será a verdadeira vitória da civilização sobre a barbaria. Quaisquer que sejam os progressos realizados pelo espírito humano, por mais que tenha aumentado o poder do homem sobre a natureza, por mais que o império das leis gerais t enha restringido o domínio das vontades individuais, a verdade é que a religião continua a representar papel preponderante na maioria dos espíritos. 138 Não raras vezes ao lado da negação intelectual está a afirmação do sentimento, não raras vezes no espírito de um livre pensador está a alma de um religioso. Não se trata de saber se os benefícios da religião são ilusórios ou caramente comprados, o fato é que o homem não pode desprezar o que passa os limites de sua observação nem renunciar o que constitui sua fé. Aí estão os trabalhos de François Lenormant – Origines des l’Histoire e Traduction de la Genese, de Pressensé – L’Ancien Monde et le Christianisme, de Maurice Vernes – L’Histoire des Religions, de Gustave d’Eichthal – Melanges de Critique Biblique, de E. Ledrain – La Bible, tomo 1 e 2, Lres Juges, Samuel, Rois, Esdras, Néhémie, Chroniques, Macchabées, do abade G. Fremont – Jesus-Christ Attendu et Prophétisé, de H. Derenbourg – L’Islamisme et l’Histoire des Religions, de Goblet d’Avilla – Introduction à l’Histoire générale des Religions, de Josef Koup – Zur Judenfrag, de James Darmesteter – Les Prophetes d’Israel, de Guiau – L’Irreligion de l’Avenir, e tantos outros livros notáveis de brilhantes escritores, ao mesmo tempo profundos críticos, pensadores ou filósofos, para que não nos seja permitido desconhecer toda a importância do problema religioso, não, como simples assunto de curiosidade, capaz de interessar um certo número de espíritos, mas como manifestação de uma tendência humana, que se afirma numa direção especial, da mesma sorte que o movimento científico, artístico, jurídico. 139 Existe um movimento religioso, contra o qual são impotentes os prejuízos de seita ou os preconceitos antidogmáticos, e o catolicismo ortodoxo oferece o mais notável exemplo de um movimento religioso. Qualquer que seja o modo de pensar sobre o valor dogmático do cristianismo, não se pode deixar de reconhecer que o catolicismo é o fato capital da história do Ocidente. No desenvolvimento da civilização ocidental o catolicismo é o fato histórico por excelência, encerrando em si uma força de expansão, que desafia todas as dificuldades e obstáculos. Ve-lo-emos não somente se impondo às consciências, modelando à sua imagem indivíduos, famílias, sociedades, mas ainda esforçando se por elevar à altura de sua moral o nível das raças inferiores. Hoje o movimento religioso não interessa somente aos crentes ou aos céticos, aos adversários ou aos fiéis de uma seita, interessa aos epigrafistas, aos etnó logos, aos filósofos, aos estudiosos em geral, a todos que se esforçam pelo desenvolvimento intelectual e moral das sociedades. Não há muito tempo uma revista religiosa, depois de frisar o progresso do catolicismo na América e do protestantismo na França, concluía nos seguintes termos: “O importante não é o progresso de uma e outra Igreja, é o progresso evidente na concepção de uma vida verdadeiramente religiosa”. Este espírito de tolerância entre as diversas igrejas, que não suprime a fé, mas a torna simplesmente 140 mais humana, é o traço caracter ístico de nossa época, importando um verdadeiro progresso a bem do sentimento religioso. E, como se não bastasse o sentimento da tolerância para tornar uma realidade o sonho de Jacob, profunda metamorfose se operou na concepção do dogma entre os católicos. Já o dogma não é mais uma forma inerte, imóvel, como na ortodoxia oriental; pelo contrário, é o Verbo em ação. Nesta concepção do dogma inseparável da moral, e como esta participando da vida, vai toda diferença entre o catolicismo e a ortodoxia oriental, e aí está talvez o segredo da extraordinária força de expansão da igreja católica, a explicação de seu humanismo vivaz e progressivo. Destinada à vida, a religião não pode ser reduzida à simples tradição; ao lado desta deve estar a autoridade suprema do soberano pontífice como intérprete do pensamento divino em ação, e deste modo concorrendo para a grandiosa obra de unificação da espécie humana em Deus único, que tornou o homem capaz de conhecê lo e de imitá-lo. Diz-se que o cidadão e o crente vivem em luta, e é na independência recíproca das duas personalidades que está o remédio. Incompetência religiosa do Estado, incompetência política da Igreja, eis a verdadeira fórmula do progresso religioso. Mas o Estado pode ser absolutamente incompetente em relação aos negócios da Igreja, e nem por 141 isso a Igreja deixará de se relacionar com todos os fenômenos sociais. “Colombo, diz Scherer, não pode desembarcar na América, Copérnico não pode mudar a astronomia, Cuvier não pode reconstruir fósseis, Bopp não pode dissertar sobre a composição dos poemas homéricos, ninguém pode tocar em uma questão, fazer uma descoberta, propor uma hipótese, sem que o dogma seja interessado”. É falsear inteiramente a doutrina católica pretender que a Igreja abandone toda ação sobre as co isas da terra, renuncie toda direção sobre as forças sociais. “Seria exigir que o Sinai se calasse, que Deus se eclipsasse, que Jesus Cristo se perdesse na multidão como um homem comum”. Como remate de todos os estudos anteriores figura a Recordação de Kant. No Brasil bem poucos são os que podem ser lidos em questões de filosofia além de Tobias Barreto, cujos escritos são, entretanto, numerosos, como provam o A Propósito de S. Tomaz de Aquino na Regeneração, de 1868, Sobre os Fatos do Espírito Humano e A Força Motriz no Jornal do Recife, de 1869, a Theologiae Rationalis Confulatio na Crença, de 1870, o Atraso da Filosofia entre Nós no Jornal do Recife, de 1871, e muitos outros indicados por Sílvio Romero na História da Literatura Brasileira. A Recordação de Kant, porém, é o mais importante de seus trabalhos filosóficos como exposição clara e lúcida da filosofia alemã nas diversas fases de seu desenvolvimento, como justa e apurada crítica da 142 filosofia francesa e especialmente do positivismo de Augusto Comte, como reabilitação da metafísica de Kant, e sobretudo, como manifestação de elevado senso filosófico, opondo ao inconsciente de Jartmann e ao mecanicismo de Haeckel o monismo largo e e fecundo de Noiré. (3 ) Agora que o leitor já sabe o que são as Questões Vigentes, como foi arquitetado este gigantesco monumento de nossa literatura, que exigirá mais para curvar-se reverente perante o vulto majestoso de Tobias Barreto? Estilo? Ninguém como o autor das Questões Vigentes possui o dom da expressão: por um gesto, po r uma palavra, faz do leitor e do ouvinte um cúmplice. Dele pode-se dizer o que de Settembrini afirmou De Sanctis: “possui um estilo pessoal como a própria fisionomia, que ninguém pode reproduzir; um estilo todo sentimento que se comunica ao pensamento e lhe interdiz a imparcialidade, fazendo-o cúmplice das emoções ardentes, tornando-o batalhador e apaixonado, como se o cérebro descesse ao coração e lhe tomasse as pulsações”. Entretanto, Tobias Barreto não se distingue somente pela construção estética do pe ríodo, mas pelas mil palavras e expressões novas, com que sabe embelezar e enriquecer nossa língua. Com seu estilo nossa língua não se imobiliza, como se dá com a maioria de nossos escritores; pelo contrário, cresce, desenvolve -se, 143 aperfeiçoa-se, aprimora-se pela assimilação de novas expressões. Um ponto interessantíssimo da História da Literatura Brasileira, é aquele em que Sílvio Romero se ocupa das palavras e frases aladas, criados por Tobias Barreto. Sob a ação da pena de nosso magistral escritor uma grande inovação se tem operado em nossa língua, modificando-se muitas palavras e transformando -se ao mesmo tempo sua significação. Entretanto, é difícil de conceber-se um estilo mais simples e natural: cada palavra tem seu lugar certo, próprio, sua significação rigorosa, matemática, que exclui toda e qualquer alteração, toda e qualquer substituição. O estilo de Tobias Barreto em nada se parece com esta pedantesca ostentação de vocábulos, com esta estranha exibição de frases, em que se esgotam tantos espíritos, que parecem desconhecer que a primeira qualidade de um escritor deve ser poupar a atenção do leitor, não fatigando-o com ornamentos parasitas, que não servem senão para encobrir a vacuidade das idéias. Em todas as suas produções vê-se que não se trata de um escritor, cuja preocupação seja a indagação da forma; e sua prosa vigorosa e vibrante, toda espontaneidade e estímulo, vivifica o espírito, rejuvenesce o sentimento, é força e luz ao mesmo tempo, fonte de serenidade e reflexão. E digo que o estilo de Tobias Barreto é uma fonte de reflexão, porque não só desperta o pensamento, 144 evocando idéias, como também obriga o leitor a descobrir mil relações entre as numerosas e diversas idéias sugeridas. Essas relações podem escapar aos espíritos pouco compreensivos; mas constituem a suprema alegria daqueles que se ocupam em sondar todas as riquezas de uma natureza genial. Nestas condições compreende-se que Tobias Barreto não seja um escritor popular, sendo o nosso maior vulto literário. O público não é acessível s enão à retórica, que gira em torno de um saber rudimentar, fundo da razão comum. Uma outra excelente qualidade a notar no estilo de nosso prosador é a construção do período com uma tournure toda alemã, prendendo até ao fim da frase a atenção do leitor, que deste modo é forçosamente obrigado a pensar à medida que lê. É pena que o estilo de Tobias Barreto seja tão pessoal, que ninguém possa imitá-lo, porque aqui a imitação seria um grande benefício para nós, acostumados à construção francesa, que pensa pelo escritor e dispensa o leitor de refletir. (4) Reformador no círculo inteiro dos conhecimentos humanos, na poesia, na crítica, na política, na filosofia, Tobias Barreto não o é menos no estilo. Nem se devia esperar outra coisa, porque a linguagem sofre a influência do pensamento como o vegetal a do terreno, em que se desenvolve. Uma língua, que se imobiliza, é uma literatura, que se esteriliza. 145 Tal é a obra gigantesca de quem nem a ma turidade, nem a intolerância, nem a perseguição conseguiram fazer desaparecer esse vigor e esse calor de mocidade, que rejuvenescem o espírito e o coração no meio da indiferença, que nos mata, ou do desfa lecimento, que nos atrofia. Ainda não chegou a hora da apoteose de Tobias Barreto; mas virá: a respeito de glória escreveu Sêne ca em sua linguagem de bronze que a glória segue tão infalivelmente o mérito como a sombra segue o corpo, posto que ela marche como a sombra, ora adiante, ora atrás. Ao autor das Questões Vigentes está reservada uma glória póstuma; mas esta será tanto maio r quanto o sol do pensamento brasileiro se achar mais avançado na trajetória do progresso. (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 195-235). NOTAS (1) Carta do Dr. Lange. (2) O discurso pronunciado pelo Dr. Tavare s Belfort, a 16 de novembro de 1882, além de posterior, não é um trabalho original. Lendo-se a peça como que se ouve falar Tobias Barreto com toda a sua largueza de vista e com todo seu vigor de expressão. O Dr. Tavares Belfort, porém, era um espírito sup erior; tanto no campo abstrato das ciências, como no domínio concreto das letras. 146 (3) Já se vê que muito injusto foi o sr. Garcia Merou, quando em seu El Brasil Intelectual nega a Tobias Barreto capacidade filosófica, a respeito do que tive ocasião de escrever: O trabalho que publicou Sílvio Romero na Revista Brasileira, sob o título Classificação dos Fenômenos em Sociologia ou Teoria das Criações Fundamentais da Humanidade, é um desmentido cabal do preconceito que o horizonte intelectual brasileiro não se estende aos domínios da filosofia. Não possuí mos, é a linguagem comum, senão pseudo-filósofos, sem a vocação e cultura necessárias, espíritos sem originalidade, sem feição própria, sem expressão característica, os quais com suas acanhadas e frívolas produções não fazem senão dar testemunho de nossa miséria intelectual, relativamente a tão elevada mani festação do pensamento humano. Note-se que foram Tobias Barreto e Sílvio Romero os pri meiros a certificar nossa inópia em matéria de filosofia, cer tificado de que hoje se servem contra eles os próprios virtuosi estrangeiros que se têm ocupado de nossa vida espiritual. Ainda ultimamente escrevia o Sr. Martin Garcia Merou em El Brasil Intelectual: “O que acho é que nada do que diz Tobias Barreto é uma novidade para os espíritos cultos de nossa época, para os mais ou menos ilustrados que tenham freqüentado bibliotecas e estejam um pouco ao corrente do movimento das letras da Europa. O que desejaria achar nele não é o que dizem Ewald, Hartmann, Jellinek, Ranke e outros, o que me é fácil averiguar, lendo suas obras, mas alguma coisa de original, de nativo, tirado de sua própria substância...” A Sílvio Romero não menos perfidamente se contesta ca pacidade filosófica. Seus trabalhos, sempre interessantes, inst rutivos, proveitosos, são, entretanto, increpados de carência de sistematização, de falta de unidade de vista, de ausência de plano filosófico. “No seu conjunto, afirma o crítico argentino, a obra do Sr. Romero apresenta um quadro colorido da vida psíqui ca de sua pátria, desde a época da conquista até os nossos dias. É a mais particularizada e extensa que sobre a matéria se haja no país escrito. Revela seu autor uma inteligência poderosa, um amor apaixonado das letras, uma independência de juízo e um valo r moral que inspiram respeito, Mas, sem embargo, acabo de relê -la 147 com atenção, e reconhecendo todas estas condições, ela me deixa no espírito um vazio, me parece confusa e pouco ponderada, me dificulta construir mentalmente o vasto todo que procurou animar com o brilho de sua palavra cálida e vibrante”. Mas como conciliar a falha apontada com a “ação fecunda”, que “em nossas letras”, com a influência direta, que “em todo o nosso movimento intelectual” tem exercido a obra de Sílvio Romero, “acontecimento literário de primeira ordem”, no dizer de José Veríssimo? A História da Literatura Brasileira não se tornou tão fecunda senão pelo que ela em si contém do que os alemães denominaram Ideenkunden, expressão que, em seu verdadeiro sentido, não significa outra coisa senão filosofia. É preciso não esquecer que hoje filosofia já não quer dizer ciência do absoluto (metafísica), nem explicação do universo (cosmogonia), nem qualquer dessas grandes sistematizações conhecidas pelos nomes de seus autores (darwinismo, c omtismo, spencerismo); mas teoria do conhecimento, disciplina mental, sobre a qual se apóiam todas as ciências constituídas e por constituir. Acreditavam os posivitistas que bastava uma classificação das ciências constituídas para se ter a chave de todo o saber humano. Mas definir o objeto das ciências, traçar os limites de suas investigações, subordinar suas questões a um princípio de coordenação, a um processo lógico, não é tudo, quanto se tem em vista além dos conhecimentos adquiridos o progresso do lab or humano, a descoberta de novas verdades, a exploração de mundos desconhecidos. É preciso, além do que já é conhecido, dar conta do que resta conhecer e do modo por que há de ser conhecido. Somente deste modo se terá essa Summa Sciencie, conforme sonhou Leibnitz, em substituição à Summa Theologiae de S. Tomaz. O problema fundamental da filosofia é a teoria do real e do ideal. Descartes, escreve Arthur Schopenhauer, passa com direito como pai da filosofia moderna: antes de tudo, e de um modo geral, porque levou a filosofia a sustentar -se sobre seus próprios pés, ensinando os homens a fazerem uso de sua própria cabeça em lugar da qual funcionaram até ele de um lado a Bíblia, e, de outro Aristóteles; porém mais particularmente, e num sentido mais restrito, porque foi o primeiro que apanhou o problema em redor 148 do qual gira desde então toda a filosofia: o problema do ideal e do real, isto é a questão de saber o que há de objetivo e subjetivo em nosso conhecimento, ou, por outras palavras, o que é preciso atribuir a nós ou às coisas diferentes de nós. Eis o problema e desde que ele foi posto, há 200 anos, o esforço principal dos filósofos tem sido distinguir nitidamente por uma linha de de marcação bem justa o ideal, isto é, o que pertence a nosso conhecimento com o tal, do real, isto é, o que existe indepen dentemente de nosso conhecimento, e estabelecer assim de um modo estável sua mútua relação. Pois bem, nos livros de Sílvio Romero, e especialmente na História da Literatura Brasileira, a questão do real e do ideal tem sido tratada de um modo todo original, exclusivamente próprio do regenerador do nosso movimento intelectual, sendo considerada não do ponto de vista da psicologia puramente individual, como praticaram Malebranche, Leibnitz, Spinoza, Berkley, Locke, e até Schopenhauer, mas de ponto de vista da psicologia social da Volker-Psicologie. A filosofia de Sílvio Romero é o que se poderia denominar teoria psicológica do processus social, estudando os fenômenos sociais à luz da psicologia coletiva, inter-individual. É a psicologia que nasce do contrato dos indivíduos entre si, psicologia diversa da que resulta das relações intra-cerebrais em um mesmo indivíduo. Tobias Barreto tomará a si a tarefa de estudar a questão pelo lado da psicologia fisiológica, orgâ nica, puramente individual, considerando o ideal e real como assunto exclusivamente intracerebral, tarefa que desempenhará magistralmente, na Recordação de Kant, o mais importante de seus trabalhos filosóficos, dissemos na introdução às Questões Vigentes de Filosofia e de Direito, como exposição clara e lúcida da filosofia alemã nas diversas fases de seu desenvolvimento, como justa e apurada crítica da filosofia francesa e especialmente do positivismo, como reabilitação da Crítica da Razão Pura, como manifestação de alevantado senso filosófico, mostrando todo o valor da teoria do conhecimento humano. A teoria do conhecimento, conforme nota Lachelier, dá lugar a dois estudos distintos: um psicológico, que tem por objeto a engrenagem de nosso mecanismo representativo, e outro lógico, 149 que tem por fim indagar as relações dos fenômenos com o pensamento. Dentre os discípulos de Kant uns atribuem uma combinação artificial ao mecanismo do pensamento com o exagerado aparelho das instituições e dos conceitos a priori; outros entendem que é preciso restringir o domínio do a priori e explicar o conhecimento por uma combinação menos artificial que a das formas ou categorias do pensamento. Assim Fichte e Hegel entendem que a filosofia deve vir de um ponto mais elevado que o das simples formas do pensamento e das diversidades de intuição, isto é, deve vir das funções, das atividades internas que são a essência mesma do pensamento. Que será, porém, esta atividade interna do pensamento? Será um modo especial de crer alguma coisa dos objetos, alguma coisa que existe independentemente de toda experiência, alguma coisa de imediatamente certo e necessário, que não se acorda com os dados da experiência, conforme entende Spir, ou não será senão uma função, que só se desperta ao contato da experiência, porém que traz em si mesma uma certeza imediata e absoluta? “Não chegaríamos nunca a conceber o princípio de identidade, diz Lachelier, se a intuição imediata de nossas representações não nos oferecesse objetos constantes, nem o princípio de razão, se não achássemos na experiência objetos iguais entre si, ou pelo menos sensivelmente iguais. Esta condição empírica de formação das leis lógicas não tira coisa alguma a seu caráter de aprioridade”. Mas o pensamento não se satisfaz em n ão se contradizerem os dados da experiência, quer descobrir entre eles uma ligação, uma coordenação. Tal é a função primordial do pensamento, e o princípio de razão. A igual a B, B igual a C, logo A igual a C, não é senão a expressão mais simples desta fun ção. É uma necessidade do espírito exigir que os fenômenos se encadeiem, sejam conexos entre si. Mas esta conexão existe realmente, isto é, aquela neces sidade do espírito corresponde a uma realidade entre os dados da experiência? Para Wundt, esta reali dade existe efetivamente, há conexão entre os dados da experiência, e então o mecanismo do espírito é antes um aparelho que ilumina a realidade existente do que um 150 modelo, sobre o qual é calcada uma ordem de coisas, que, se pode dizer, não existia antes dele. Daí a necessidade de um novo conceito a priori, além das funções lógicas que constituem a essência do pensamento, e que é por assim dizer, o support daquela conexão. Para Wundt este novo conceito é o de substância, que não se confunde de maneira alguma com a noção de coisa. A coisa é um complexo de fenômenos relacionados entre si, e, por conseguinte, condicionados, ao passo que a substância existe por si, de um modo incondicionado, e portanto, absoluto. Variando sempre, as coisas persistem distintas umas das outras; além disto, as variações, que elas sofrem, são sempre filhas umas das outras. A substância, porém, é sempre idêntica a si mesma no espaço e permanente no tempo. A relação entre a substância (incondicionada) e as coisas (condicionadas) se não é uma relação de causa e efeito (científica), nem por isso deixa de ser uma função lógica (metafísica), que não pode ser desprezada pela verdadeira filosofia. Em face da Recordação de Kant sente-se toda a injustiça do que escreveu o Sr. Garcia Merou em relação aos Estudos Alemães: “Não é este livro uma explicação do pensamento alemão, uma síntese alemã, nem sequer um alegado da cultura germânica, oposta à cultura latina”. Mais do que como esboço histórico das teorias alemães ou arrazoado em favor da cultura germânica vale a Recordação de Kant, reabilitando a Crítica da Razão Pura, o cimo que domina todo o horizonte do pensamento filosófico moderno. A chave do saber real, positivo, é a teoria do conhecimento, quando estuda o mecanismo do pensamento e indaga o critério da certeza. A razão de ser da verdadeira filosofia é a resposta à questão de saber o que o espírito humano possui de positivo, quer como certeza imediata, como função lógica, como lei do pensamento, quer como relação fenomênica, que se c onstata senão pela experiência, o que constitui objeto da ciência propriamente dita. Separando os domínios da metafísica e da ciência, sem, entretanto, sacrificar uma a outra, é que o sistema kantesco se pode dizer a disciplina mental por excelência, e foi para mostrar a evidência que a Crítica da Razão Pura é a mais elevada expressão 151 da filosofia que Tobias Barreto escreveu a inolvidável Recordação de Kant”. (4) Há atualmente na França um grupo de escritores, que procuram dar à expressão do sentimento u’a nova forma, que vibre a emoção, mas a emoção com todas as suas irradiações, com todas as suas refrações. São os Simbolistas, que, para conseguirem o seu fim, tiveram necessidade de recorrer à tournure alemã. Tanto bastou para que o chauvinista Maurício Peyrot os atacasse. É bom lembrar que os Simbolistas não são em sua maioria fraceses: René Ghil é belga, João Moreas grego, Stuart Merril e Ville Grifin americanos. 152 4. O CRIME Ordinariamente considera-se o Direito como uma espécie de modelo, sobre o qual os homens vazam suas ações, como alguma coisa de anterior e superior à conduta humana. É o mesmo que se dá em relação às ciências, em cujos domínios não raras vezes supõe-se a lei anterior e superior aos fenômenos, concepção dualística, em que a lei é colocada acima da realidade das coisas para regularizar e uniformizar os fatos. Mas é da própria realidade dos atos que nasce o Direito, como é da própria realidade dos fatos que nasce a lei. Tão errônea e absurda é a concepção de um Direito, que subsiste por si, pairando acima das ações, quanto o é a de uma lei anterior e superior aos fenômenos, regulando sua produção e normalizando sua seqüência. É preciso, portanto, protestar contra a distinção antitética entre direito e fato, lei e fenômeno, da qual certos espíritos, aliás inclinados à concepção monística, não têm sabido desembaraçar -se. Afastado o conceito dualístico de um Direito anterior e superior aos atos, como o de uma lei diferente e separada dos fenômenos, resta determinar as relações do Direito com a ciência e especialmente com a Antropologia. 153 O Direito será uma ciência ou uma arte, e num ou noutro caso, qual a sua posição relativamente à hierarquia dos conhecimentos humanos? Para respondermos à questão proposta, precisamos recorrer à classificação dos conhecimentos humanos, conquista esta que não pode dizer -se uma criação deste ou daquele filósofo, mas uma produção necessária e espontânea, filha do desenvolvimento da cultura científica. Os conhecimentos humanos podem ser classificados em três grandes categorias: 1ª) Ciências que se referem às diferentes ordens de fenom,enos. 2ª) Ciências que se ocupam com as diversas espécies de seres. 3ª) Artes, as quais têm por fim o emprego das descobertas e achados científicos sobre a natureza, exterior e interior. A primeira categoria compreende as ciências cha madas abstratas, e as segundas as chamadas concretas. Aquelas investigam cada ordem de fenômenos onde quer que eles se apresentem; estas estudam cada aspecto de seres em toda a sua compreensão, isto é, acompanhando em cada espécie de seres todas as ordens de fenômenos, que apresentam. Estas duas categorias de conhecimentos não se hostilizam; pelo contrário, se auxiliam mutuamente. O pleno conhecimento de um fenômeno exige que seja estudado em todos os seres, em que aparece; o 154 perfeito conhecimento de um ser requer que se estudem todas as ordens de fenômenos que nele se manifestam. Fazem parte da primeira categoria a Matemática, a Física, a Química, a Biologia e a Sociologia, e da segunda a Cosmografia, a Metereologia, a Geografia, a Geologia, a Mineralogia, a Botânica e a Zoologia. Compreendendo a necessidade de estudar cada espécie de seres em sua complexidade e integralidade, o homem não poda abrir exceção para si próprio. Daí a formação da Antropologia, visando o estudo completo do homem, sob qualquer ponto de vista, desde o numérico até ao social. As artes compreendem os processos, que têm por fim a ação do homem sobre a natureza e sobre si mesmo. Mas as artes repousando sobre as leis formuladas pela ciência, cada uma delas corresponde mais ou menos a uma ciência. Assim, para não citar senão um exemplo, basta lembrar que as artes mecânicas correspondem às ciências físicas. O mesmo se dá com a ciência social, abstrata ou concreta. Ao lado da Sociologia e da Antropologia está o Direito, a arte social por excelência, tendo por fim regular as relações sociais, a bem dos interesses da comunhão. Sendo o Direito uma arte antropotécnica, como o é a Medicina, claro está que ele não pode fechar os olhos às luzes da Antropologia. É esta uma verdade, cujo desconhecimento não pode ser explicado senão pela idéia falsa, que se fazia do Direito e da Antropologia. Mas, desde que se 155 considera o Direito uma arte antropotécnica, e a Antropologia a ciência do homem, e não um s imples estudo genealógico das raças humanas, a necessidade de aplicar os achados antropológicos à arte jurídica se torna evidente como qualquer axioma matemático. O Direito é uma arte antropotécnica como a medicina; porém, só muito mais tarde veio aproveit ar as conquistas da Antropologia. A razão se nos afigura que para os fins da medicina bastam conhecimentos anátomo-fisiológicos, muito menos complicados que os conhecimentos etnológicos e demográficos, sobre que se baseia a arte jurídica. Também de que a Medicina se embebeu primeiro dos conhecimentos científicos, resultou que mais tarde, sendo os méditos consultados pelos tribunais a respeito de certas questões anátomo-fisiológicas, se pretendeu subordinar o Direito à Medicina. A criação do que hoje impropr iamente se denomina Medicina Legal ou Medicina Pública, concorreu para este resultado. Entretanto, quando o médico comparecia perante os tribunais para ocupar-se de certas questões, não era no caráter de profissional, e sim de homem de ciência. O consultado não era o médico, pois que não se tratava de socorrer algum doente, e sim o antropólogo. O que se pedia ao médico em nada dependia da profissão, da arte de curar; mas como o consultado era o homem de ciência, dobrado do homem de arte, esquecendo-se facilmente o antropologista para só enxergar-se o médico, deste modo se veio a con156 siderar certas questões jurídicas como pertencentes à esfera da medicina. Assim, a teoria de Lombroso considerando o criminoso uma variedade da espécie humana, um tipo etnográfico em virtude do atavismo, embora de caráter puramente antropológico, tratada quase exclusivamente por médicos, tomou bem depressa feição psiquiátrica, para o que mais tarde concorreu eficazmente o próprio Lombroso, considerando o crime um caso de epilep sia. A doutrina de Lombroso era falsa; mas a denominação de que se serviu o professor de Turin para batizá-la – Antropologia Criminal – foi feliz, porquanto, se por um lado contribuiu para as exagerações dos patologistas do crime, por outro lado concorreu para a adoção de reformas, que honram os confeccionadores dos modernos códigos penais. Com efeito, “a nova escola positiva”, exagerando as proporções da gênese atávica ou patológica do crime, concorreu para que, em nome da Antropologia, se operasse viva reação em favor da gênese normal da criminalidade, e assim resultassem efeitos mais bené ficos não somente para o Direito, mas também para a Moral, para a Pedagogia, para a Política. Do que fica dito, facilmente se conclui que as nossas Faculdades Jurídicas só teriam que lucrar, se fosse criada uma cadeira de Antropologia jurídica, para estudar-se cientificamente o homem, tendo em mira a arte do Direito. Seria o meio mais pronto e eficaz de dar ao Direito, quer Civil, quer Penal, a amplitude e vitor, que 157 comporta a possante vitalidade dos modernos estudos sobre o homem. Uma profunda transformação se operaria em todo o campo da arte jurídica: o Direito Penal viria a ser uma espécie de nosologia, e o Direito Civil uma sorte de higiene social. A matéria toda concreta da aplicação do Direito Penal, estudando o criminoso em todas as múltiplas e variadas circunstâncias, que influem sobre a sua vontade, foi a razão de ter sido o Direito Criminal o primeiro a sentir necessidade de aproveitar os achados da Antropologia; mas a aplicação dos dados antro pológicos à arte jurídica abrirá por sua vez ao Direito Civil os mais largos horizontes. É verdade que relativamente à aplicação da lei, a Antropologia aproveitaria menos ao juiz civil do que ao criminal; mas quanto à formação jurídica, quanto ao que diz respeito à tarefa do legislador, as luzes da antropologia projetariam sobre o direito civil o mais vivo clarão, e, espancando as trevas de prejuízos seculares, impeli-lo-ia a marcha desassombradamente no sentido do progresso. Da necessidade da Antropologia na execução do Direito penal foi fácil concluir -se que o legislador criminal não podia dispensar o estudo científico do homem na formação daquele Direito; porém o mesmo não se manifestava tão evidentemente na execução, se concluiu que a ciência antropógica era dispensável para a gênese do Direito Civil. 158 Tarde, a quem aliás muito deve o estudo científico do Direito, levantou contra a Antropologia jurídica a objeção de que “não é fácil saber o que se entende por aplicação da Antropologia ao Direito Civil”. “Em Direito Criminal, escreve o autor das Transformações do Direito, sabemos, consiste em se preocupar do criminoso mais do que do crime, em individualizar a questão. Muito bem: mas, se para fazer pendant à Antropologia criminal, procura-se edificar a Antropologia jurídica, poder-se-á conseguir da mesma sorte e com um igual sucesso? Dar-se-á que, por acaso, se pense em individualizar as disposições legais, em ajustá-las aos diversos indivíduos separamente, como fazem em relação aos nossos vestuários os alfaiates?... Mas eu não posso admitir que as necessidades com que se trata de se conformar, sendo em parte, e em grande parte, o produto da cultura e dos acidentes históricos, seja bastante ter medido muitos crânios humanos de todos os tempos e de todas as raças, e mesmo ter feito muita psicologia fisiológica, para poder dizer a última palavra a este respeito”. Mas, além de que as aplicações da Antropologia não se limitam à execução, estendendo -se também à formação do Direito, dá-se que, mesmo dentro dos limites da execução, a Antropologia encontra um vasto campo de aplicação no que diz respeito às questões de sugestão nos diversos ramos do Direito, além do Penal. O juiz tem necessidade de fazer aplicação dos dados antropológicos às questões de capacidade civil, 159 como o faz em relação às questões de responsabilidade criminal. Aí estão inúmeros trabalhos, entre eles so bressaindo o do professor Liégeois – A Sugestão Hipnótica em suas Relações com o Direito Civil e o Direito Criminal, e o de Alberto Bonjean – O Hipnotismo, suas Relações com o Direito e a Terapêutica, nos quais se assinalam os abusos da sugestão hipnótica em matéria de contratos e casamentos. “No domínio do Direito Civil, o magnetismo pode ser chamado a representar um dos papéis mais ativos, e isto não somente no ponto de vista de um reco nhecimento de dívida ou de uma doação testamentária, mas ainda em todas as manifestações da vida jurídica, e elas são inumeráveis”. O que há concorrido para que à primeira vista não seja reconhecida toda importância dos dados antro pológicos em relação aos diversos ramos do Direito, é que não se tem feito uma idéia completa da do objeto da Antropologia. Considerada, porém a Antropologia como o estudo completo da espécie humana, da mes ma maneira que a Astronomia é o estudo completo dos astros, e devendo, portanto, estudar o homem não somente sob o ponto de vista anátomo -fisiológico, mas ainda sob o ponto de vista psíquico -social, sua utilidade se impõe de um modo evidente no estudo do D ireito. Nem se pense que as luzes da Biologia e da Sociologia dispensam as investigações da Antropologia. As ciências abstratas não estudam senão cada uma das categorias de fenômenos separadamente, ao 160 passo que as ciências concretas estudam os seres em toda sua variedade fenomênica. a Biologia e a Sociologia estudam os fenômenos vitais e sociais onde quer que eles se apresentem; a Antropologia estuda o ser humano sob todas as suas relações, quer físicas, quer químicas, quer vitais, quer sociais. A proporção que se passa do simples ao composto, do homogêneo ao heterogêneo, nota-se que mais complexa é a natureza de um ser, menos eficaz é a ação de qualquer ciência abstrata sobre ele. Daí, segundo nota Manouvrier, a razão de ser das ciências naturais. É preciso estudar os seres sob todos os pontos de vista fenomênicos, para poder agir eficaz mente sobre eles. O cristal manifesta em si fenômenos geométicos, físicos e químicos; mas nem a Matemática, nem a Física, nem a Química, por si só, bastam para que se conheça o cristal em toda a sua complexidade: este conhecimento só pode ser obtido por meio da Mineralogia. Ninguém tem, portanto, que se admirar de ver o objeto da Antropologia estendido além dos limites da Etnologia. Ela foi definida com grande clareza e precisão por Quatrefages – com a história natural do homem; e neste sentido, que está de acordo com a verdadeira classificação dos conhecimentos humanos, compreende todas as relações em que se acha o homem com o resto da natureza, relações físicas, químicas, biológicas e sociais. 161 O crime não é um fenômeno exclusivamente biológico ou social, e sim uma combinação binária de elementos biossociais. Também não se poderia considerá-lo rigorosamente um puro fato antropológico, porque ele não é exclusivo da espécie humana, existindo entre outras espécies animais. Todo o erro tem sido querer-se resolver problemas biossociais exclusivamente por meio da Biologia ou da Sociologia, quando é certo que na formação de idéias, sentimento e atos individuais variam as circunstâncias sociais conforme os estados biológicos, com os quais elas entram em combinação. “Nem a Biologia nem a Sociologia, escreve Manouvrier, utilizadas isoladamente, seriam suficientes para fazerem compreender a conduta de um homem e sobretudo de um grupo, ou para dirigirem a conduta, que se deve ter a seu respeito. É preciso para prever e para prover cientificamente, em semelhante matéria, um conhecimento ao mesmo tempo biológico e sociológico, isto é, antropológico”. Figuremos exemplos. A tendência em não respeitar o alheio, no pobre, degenera em furto ou roubo; no rico, engendra toda a longa série de falcatruas, trapaças e manobras fraudulentas, que não são punidas. O furto ou o roubo nem sempre pode ser comparado, como fez Tarde, a uma arte, para a qual se faz precisa a inclinação ou vocação. Vemos, pelo 162 contrário, muitas vezes o estreante reagindo contra o ofício; mas todos os seus esforços tornando -se inúteis em virtude da pobreza ou da camaradagem. Somente em certos casos é que se trata de verdadeiros profissionais, que têm a inclinação, o gosto e a prática do ofício, e que não abandonam a carreira senão pelo decrescimento das forças e da destreza. Não raras vezes também vemos que são condenados por ferimentos indivíduos, que se possuíssem fortuna ou posição, gozariam da maior estima e consideração como duelistas. O crime é uma combinação binária de pro priedades e condições individuais e sociais, e cujo conhecimento só nos pode ser fornecido pelo estudo concreto das espécies animais, e especialmente pela Antropologia, da mesma forma que o conhecimento do cristal só nos pode ser dado pelo objeto concreto da Mineralogia, em seu tríplice ponto de vista, geométrico, físico e químico. Daí resulta que se equivalem por seu exclu sivismo as duas doutrinas: a que considera o crime um produto da organização físico -psíquica do criminoso, e a que o atribui ao meio exterior, à atmosfera social; a primeira imputando toda a responsabilidade ao indi víduo como uma criação autogenética, a segunda ao meio exterior como uma produção heterogenética. Contra a teoria que considera a sociedade a única culpada na produção dos crimes, protesta o próprio criminoso, que em sua consciência se reconhece responsável. 163 Tanto basta para que a responsabilidade, individualizando-se, se torne efetiva e não se desvaneça no seio da coletividade, como toda responsabilidade que vai estendendo-se por círculos cada vez mais extensos. Mas, antes de entrarmos no estudo do fenômeno tão complexo da responsabilidade, pois diz respeito à vida normal e anômala dos indivíduos, a todas as condições internas e externas, que podem influir sobre as suas idéias, sentimentos e atos, será de grande proveito lançarmos uma vista de olhos sobre as diversas teorias, que se têm ocupado da gênese do crime. Estas teorias podem ser classificadas em três grandes categorias: a primeira considerando o crime um efeito de causas bio -psíquicas, a segunda um produto de circunstâncias sociais, e a terceira um resultado de causas telúricas. A primeira categoria compreende as doutrinas do atavismo orgânico ou psíquico (Lombroso, Colajanni), da patologia, por epilepsia (Lombroso), por neurastenia (Benedikt), por nevrose (Dally, Maudsleu, Minzloff, Virgílio), por degenerescência (Morel, Sergi, Magnan, ZUccarelli, Dallemagne), por anomalia moral (Garofalo), por falta de nutrição do sistema nervoso (Marro). À segunda categoria pertencem as doutrinas da falta de adaptação político-social (Vaccaro), do “meio social” (Lacassagne), do “tipo profissional” (Tarde). Na terceira categoria se compreendem aqueles que não vêem no crime senão a expressão da relação necessária entre o homem e meio cósmico, como dá-se 164 com a doutrina de Turati, que considera o fator eco nômico a base fundamental do crime. Além dessas três grandes categorias há a teoria, não diremos absurda, mas paradoxal, que vê no crime simplesmente uma normalidade biológica (Albrecht), ou uma normalidade social (Durkheim). É uma idéia tão paradoxal como a de certos filósofos, que retiram a vida aos indivíduos para atribuíla à sociedade; mas nem por isso deixou de prestar grandes serviços à investigação da gênese do crime, o qual se nos afigura uma irregularidade social por falta de adaptação, simples ou complexa, sob qualquer relação, em que possam e devam ser considerados os animais, e especialmente os homens. Para Albrecht é o criminoso que é o homem normal, pois é ele que personifica a humanidade, ou melhor, a animalidade inteira em seus atributos essenciais, que são a carnificina e a depredação. Deste modo o crime representaria o estado normal da vida, ao passo que a piedade e a propriedade não seriam senão anormalidades. Se se tratasse da vida animal propriamente dita, onde a luta pela existência produz tão lúgubres combates e violentas depredações, Albrecht poderia ter aparências de razão; mas a questão é que se trata da vida social, em que tais atos são considerados ver dadeiras irregularidades. Ferri responde que a idéia de Albrecht não é exata, porque a ação, que entre os animais corresponde ao assassinato entre os homens, não é a morte de um 165 animal por outro qualquer, porém por animal da mesma espécie. Para Ferri a morte não é crime senão quando sacrificador e vítima pertencem à mesma espécie. “Matar para viver é a lei de bronze da natureza entre animais de espécies diferentes”. Não procede a argumentação de Ferri, porque mesmo entre os homens a morte do indivíduo por indivíduo da mesma espécie nem sempre constitui crime, tal é o caso da antropofagia entre os selvagens. Entre as espécies animais é bem conhecido o fato de pais devorando os próprios filhos. Mas, se por um lado nem sempre o fato praticado por um animal em relação a animal da mesma espécie constitui crime, por outro lado não é raro ver constituindo crime fato praticado por um animal em relação a animal de espécie diferente. Sabe-se que durante a idade média os animais estiveram sob o mesmo pé de igualdade que os homens quanto a criminalidade. “Na idade média, diz Lacassagnel, julgavam-se os animais, que se tornavam culpáveis de morte, ou que se constituíam flagelos de um país, ou as fêmeas que, dando a luz um monstro, eram suspeitas de coabitação criminosa”. (1 ) E entre muitos outros exemplos curiosos cita ele o de uma porca, que matou uma criança e começou a devorá-la, sendo afinal condenada a morte. E, como ela tivesse devorado um braço e comido parte da cabeça, antes de inflingir -lhe a morte, julgou-se 166 do direito impor-lhe a pena de talião, cortando-se-lhe uma pata e mutilando-se-lhe o focinho. Depois foi conduzida ao suplício, coberta de vestimentas próprias, recebendo afinal o carrasco seu soldo e seu par de luvas. Os processos contra ratos, lagartas, caracóis, pululam no século XVI entre os povos mais civilizados da Europa. Em 1516 João Milon oficial de Troyes, deu a seguinte sentença, datada de 9 de julho: “Ouvidas as partes, fazendo justiça a reque rimento dos habitantes de Villeneuve, advertimos às lagartas que devem retirar-se dentro de seis dias, e caso não o façam, as declaramos malditas”. Na antiguidade clássica Demócrito entendia que devia ser punido de morte o animal, que causava um dano maior. Segundo refere Marcial, sob o império de Domiciano, foi severamente punida a ingratidão de um leão para com seu senhor. (2 ) N mudo biológico a destruição e a pilhagem são considerados fator normais, porque constituem condições de desenvolvimento para os seres vivos; mas ninguém pretenderá sustentar que nas sociedades o assassinato e o roubo constituem elementos de progresso. Aqui torna-se bem patente o erro daqueles que querem explicar fatos sociais por um processus puramente biológico. 167 Todas as vezes que se pretende dar dos fenômenos sociais uma outra explicação, que não seja um processus social, há o perigo de escapar aquilo que eles têm de específico, aquilo que diz respeito à sociabilidade. Entre certas sociedades animais, principalmente nas sociedades humanas, o que há de específico é a anormalidade do assassinato e do roubo entre os membros de uma coletividade, e esta anormalidade é que constitui o fenômeno chamado crime. (3) É, portanto, uma explicação falsa a do cr ime, fenômeno social, pelo processus biológico da luta pela vida. Do que fica dito, se conclui que menos aceitável ainda é a idéia de Durkheim, considerando o crime um fenômeno normal sob o ponto de vista social. Qual a razão por que o autor das Leis do Método Sociológico chega à conclusão de que o crime é um fenômeno normal nas sociedades humanas? Por dar-se constantemente, sem exceção de tempo e de lugar? Seria o mesmo que sustentar, conforme observa Ferri, que a moléstia é um fenômeno normal da vida, porque em todos os tempos e lugares têm havido doentes. Entretanto, as moléstias tendem a prejudicar os organismos sociais. É possível que em alguns casos o crime seja condição de progresso, como em outros a moléstia é condição de desenvolvimento; mas são casos excepcionais, que não autorizam a conclusão de que a 168 moléstia e os crimes são fenômenos normais para os indivíduos e para as sociedades. Das teorias que consideram o crime uma anormalidade biológica, tornou-se célebre a de Lombroso, encarando o crime co mo um caso de atavismo. Para Lombroso o homem delinqüente não é senão anacronismo, um selvagem aparecendo em país civi lizado, uma monstruosa ressurreição das épocas pré-históricas, alguma coisa de comparável ao animal que, nascendo de pais domésticos, aparecesse com os instintos e as paixões de seus primitivos antepassados. “O crime entre os selvagens, diz o notável professor de Turin, não é uma exceção, mas a regra quase geral”. Em apoio de sua hipótese Lombroso cita os freqüentes cavos de abortos e infanticídios entre os selvagens, o uso de matar os velhos e os enfermos, o roubo como instituição legal, o canibalismo sob todas as suas formas, e uma infinidade de costumes, que dão a perceber que o crime é a ressurreição da selvageria primit iva no mundo civilizado. A idéia de Lombroso não era uma novidade; antes dele já Edgar Quinet considerava o crime um anacronismo sanguinolento, e o criminoso um indivíduo que sai da humanidade e entra na animalidade do mundo terciário. A teoria de Lombroso não tem, porta nto, o mérito da originalidade, que se lhe quer atribuir; mas o erudito antropologista soube dar o vigor e brilho de seu vasto 169 talento e ilustração ao que se achava disperso em Quinet, Despine, Lubbock. Lombroso salientou os traços orgânicos e psíquicos que, dos selvagens e até dos animais, existem nos criminosos; mas, compreendendo que o atavismo era uma explicação insuficiente para todas as categorias de crimes, nas últimas edições do Homem Delinqüente junta ao atavismo a loucura moral, especialmente a epilepsia, para a explicação do crime. A epilepsia é o traço de união entre o louco moral e o criminoso nato. Ela funde o criminoso nato e o louco moral em um todo sintético, que é a fórmula geral da criminalidade. Sob o ponto de vista anatômico, fisiológico e psíquico descobre Lombroso nos criminosos natos os mesmos traços característicos que nos epiléticos, as mesmas anomalias faciais e cranianas, as mesmas anormalidades cerebrais e fisionômicas, as mesmas emoções e impulsões, as mesmas antipatias e preferências. A objeção de que o furor epilético, pela instantaneidade, pela ausência de fim útil, se revela imediatamente como um estado patológico, Lombroso responde que mesmo no furor epilético nem sempre se nota ausência de premeditação ou de interesse, de so rte que vem a se confundir de um modo absoluto com o delito. Em seu segundo avatar a teoria lombrosiana não exclui a doutrina da degenerescência. Apenas o notável antropologista italiano pensa que “esta abraça um muito 170 grande número de regiões do campo pat ológico, indo do cretino ao homem de gênio, do surdo -mudo ao canceroso e ao tísico, e que é impossível aceitá-la sem restrição”. Lombroso, que censura na teoria da degenerescência sua demasiada esfera de compreensão, cai na falta, notada por Jelgersma, de atribuir uma extensão pouco razoável ao síndrome patológico da epilepsia. Colajanni, seguindo as pegadas de Fauvele e Mantegazza, sustenta engenhosamente que o crime é uma manifestação de atavismo moral. O criminoso para ela não é um louco, nem um epilético, nem um degenerado, “porque as províncias italianas, que se distinguem pela saúde física e pela perfeita conformação orgânica, se assinalam também pela superioridade criminosa; e onde, pelo contrário, a degenerescência se impõe, a moralidade relativa rei na comumente”. “Quanto ao atavismo moral, diz o autor da Sociologia, é essencial não confundi-lo com o atavismo físico. A evolução física, que vem de longe, não é paralela à evolução moral de data mais recente. Esta circunstância explica sua não localização”. Além de que seria difícil imaginar um fenômeno físico qualquer sem base orgânica, ignoramos o que se adianta para solução da questão com o reconhecimento da falta de paralelismo entre o atavismo moral e o físico. A gênese patológica do crime tem dado lugar a mais de uma explicação. Entre as várias modalidades 171 sobressai a de Maudsley, cuja famosa “zona inter mediária” é bem conhecida. “Entre o crime e a insânia existe uma zona neutra. em uma das extremidades observa-se um pouco de loucura e muita perversidade; no limite oposto menos perversidade e mais loucura”. Não se pode negar a relação que em alguns casos existe entre o crime e a loucura; mas há certamente exagero, quando se pretende elevar a categoria de regra a subordinação do crime à loucura. Diz Ferri que para notar a grade diferença que existe entre o crime e a loucura basta visitar um asilo de alienados comuns e alienados criminosos. Para Benedickt o crime provém da neurastenia, física ou moral, hereditária ou adquirida. Servindo de boa explicação para a vagabundagem, a ponto de Charcot equiparar o vagabundo ao neurastênico, e Meige compará-lo ao tipo legendário do Judeu errante, a neurastenia está longe de dar conta da origem da maioria dos crimes. Mais completa, porém ainda insuficiente, é a explicação de Marro, fazendo derivar a perturbação psíquica, de que o crime não é senão uma exteriorização, de “uma nutrição defeituosa do sistema nervoso central”. A aceitar a opinião de Mosso, que entende que as perturbações de nutrição dos centros nervosos são as primeiras condições mórbidas da origem da epilepsia, vê-se que pouca distância vai da explicação de Lombroso à de Marro, e a admitir a doutrina, sustentada por Bouchar e Hayem, de que o 172 quimismo estomacal perturbado constitui o fator essencial da neurastenia, nota-se que Marro não adiantou um passo a Benedickt. Mas a idéia, que vai ganhando a maioria dos espíritos, é a de degenerescência, idéia com a qual nestes últimos tempos têm sido arquitetados vários sistemas não somente de criminologia, mas até de estopsicologia. Com efeito, na dedicatória feita a Lombroso em sua obra – Degenerescência, Max Nordau declara formalmente que os degenerados não formam somente prostitutas, criminosos, anarquistas e loucos declarados; eles tornam-se também escritores e artistas. Como a degenerescência foi elevada ultimamente a categoria de grande síntese etiológica, temos necessidade de proceder a uma análise um tanto detalhada do maravilhoso fator de obras geniais como de crimes horrorosos. A idéia de degenerescência não é uma idéia precisa, determinada, e o próprio Dallemagne, que escreveu a respeito um grosso volume, reconhece que é impossível dar uma completa definição, não se podendo fazer mais do que assinar-lhe um lugar médio entre a saúde a moléstia, a razão e a loucura. Segundo Morel, a quem se deve a teoria, “a idéia mais clara, que podemos formar da degenerescência humana, é representá-la como uma desviação doentia de um tipo primitivo. Esta desviação, por mais simples que suponhamos em sua origem, encerra, entretanto elementos de transmissibilidade de uma tal natureza, 173 que aquele que traz o gérmen dela, torna-se cada vez mais incapaz de desempenhar sua função na huma nidade, e o progresso intelectual, já enraizado em sua pessoa, acha-se também ameaçado em seus descendentes”. É nem mais nem menos o conceito bíblico da degradação humana. Foi preciso que a corrente transformista se impusesse com toda a sua impe tuosidade aos espíritos, para que a idéia de Morel perdesse sua primitiva feição mística e assumisse um caráter mais objetivo com Magnan e Dailly. Distando apenas vinte cinco anos uma da outra, há entre a idéia de Morel e a de Dailly toda a diferença, que vai entre a maneira de ver de um teólogo e a de um antropologista. (4) Morel imaginava a existência de um tipo primit ivo perfeito, encerrando em si os elementos da vitalidade e da continuidade da espécie. A degene rescência não á para ele senão a degradação deste tipo perfeito e acabado. “A existência de um tipo primitivo, que o espírito humano se compraz em construir em seu pensamento como a obra-prima e o resultado da criação, é um fato tão conforme às nossas crenças, que a idéia de uma degenerescência de nossa natureza é inseparável da idéia de um desvio primit ivo, que encerra em si mesmo os elementos da continuidade da espécie”. Este critério do homem normal não pode se manter em face da grandiosidade da doutrina transformista, e veio a tomar uma feição nova. O equilíbrio do homem figura não mais como o início, mas como o fim da vida individual, 174 e a degenerescência deixa a sua base teológica para assentar sobre o eixo cérebro-espinhal, centro de elaboração e transformação de todas as regressões. A teoria da evolução e a base biológica do desenvolvimento humano deram em resultado esta vasta síntese que vai “das enfermidades congênitas do cérebro, fa lando das lesões gerais e manifestas do idiota profundo, para chegar sucessivamente às lesões locais parciais dissimuladas dos irregulares”, síntese que valeu a ce lebridade do clínico de Santa-Anna, dando à sua doutrina a unidade e a continuidade, que faltavam à teoria de Morel. Mas a larga e progressiva idéia da degene rescência, com a extensão a amplidão, que constituem a originalidade da doutrina de Magnan, se por um lado deu em resultado uma importante sínt ese, indo do idiota profundo ao desequilibrado ou simples extravagante, por outro lado veio colocar sob uma mesma categoria fenômenos, que não têm entre si senão longínquas relações biológicas e que, sob o ponto de vista social, o único importante para o caso, têm significações inteiramente diferentes e conseqüências completamente diversas, como se dá com a relação genética entre o crime monstruoso e a imponente obra de gênio. É verdade que Magnan sabe fazer engenhosas comparações para defender a extensão de sua doutrina. Assim diz o clínico de Santa-Anna: “Tomemos, por exemplo, um desequilibrado que, em um momento dado, projeta impulsivamente uma palavra, que ele não pode reter, e comparemo-lo àquele que projeta um golpe 175 e fere sem razão um transeunte desconhecido. Não vemos aí dois fenômenos análogos? Não são dois doentes análogos quase idênticos? Comparemos um inomatomano, que busca sem tréguas uma palavra, a um dipsomano, que procura com o mesmo furor uma bebida. Um e outro estão à cata de uma sensação, que deve por momentaneamente um termo a seu desejo. Pertencem, pois, ambos a um mesmo grupo”. Recordamo-nos de que lá lemos, mas já não nos lembramos onde, que todas as vezes que um fenômeno social é diretamente explicado por um fenômeno psíquico, se pode estar certo de que a explicação é falsa. Com efeito, todas as vezes que se quer explicar fenômenos de ordem superior por outros de categoria inferior, não escapa aquilo que eles têm de específico? Toda explicação direta e imediata de fatos sociais por fenômenos biológicos é necessariamente errônea. A mesma causa, que explica a imbecilidade e a idiotia, a esterilidade e o suicídio, serve para explicar o crime, o gênio e até a marcha social. Falamos em marcha social, porque é sabido que Guilherme de Greef introduziu a noção de degenerescência no domínio da Sociologia. Aí estão os seus trabalhos, desde As Leis Sociológicas até ao Transformismo Social ocupando-se largamente da deformação regressiva social. À força de tudo se querer explicar por meio da degenerescência, tornou-se esta noção vaga, indeterminada, flutuante, apanhando em sua amplitude os mais variados e múltiplos fenômenos, para em seguida 176 deixar escapar entre as suas largas malhas tipos da mesma espécie. Depois, não é um visível círculo vicioso e xplicar certos fenômenos sociais pela degenerescência, e ao mesmo tempo explicar a degenerescência por esses mesmos fatos sociais? É o que se dá com o curioso fenômeno da criminalidade das multidões, que se explica tanto pela degenerescência da raça, como pelo que se tem chamado psicologia das massas. O crime das multidões é um sintoma da decadência social; mas o que produz regressão não é o movimento político, religioso ou financeiro? É verdade que Dallamagne, prevendo a objeção, alega que as grandes como ções políticas e religiosas não engendram ordinariamente senão desequilíbrios. Mas a explicação do notável psiquiatra belga não está indicando, que é um erro perigoso submeter a explicação de fenômenos de categorias diversas a uma causa única, sendo de mais a mais esta de natureza diferente dos referidos fenômenos? No círculo da esto-psicologia pode-se avaliar da aplicabilidade do conceito da degenerescência pelo livro de Max Nordau. Max Nordau, depois de passar em revista uma série de casos, em que se vê um rei renunciando, mediante a quantia de um quinhão de francos, todos os seus direitos ao trono, um chefe de polícia secreta arrancando ao cadáver do assassino Pranzine um pedaço de pele para transformá-la em charuteiras e arteiras para 177 si e para os amigos, um casal americano indo fazer a sua viagem de núpcias, não pela Europa em estradas de ferro, mas pelas nuvens, em um aerostato, um estudante, filho de banqueiro, mostrando em passeio, a um seu colega o edifício, em que seu pai estivera tantas vezes preso por quebras fraudulentas e outros crimes proveitosos, acrescenta: “A primeira vista um rei, que vende os direitos de soberano por um cheque considerável, parece ter pouca semelhança com os recémcasados, que fazem a sua viagem de núpcias num balão; e a relação entre a dignidade episcopal e a jovem bem educada que aconselha à sua amiga um casamento de dinheiro, mitigado pelo amigo da casa, não é fácil de reconhecer-se imediatamente. E, entretanto, todos estes casos “fin de siècle” têm um traço comum: o desprezo das conveniências e da moral tradicionais”. É o que o autor da Degenerescência chama, não o “crepúsculo dos povos”, para significar as formas vagas e indefinidas de um momento histórico, em que con forme diz o escritor polaco Casimiro de Krauz, ningu ém é pessoa, querendo todo mundo ser original. Este estado de coisas, que para os filisteus se explica por capricho, excentricidade, paixão de novidade, gosto de imitação, para o médico, e principalmente para o especialista, que se dedicou ao estudo das moléstias nervosas e mentais, não quer dizer senão degenerescência e histeria, cujos graus inferiores cons tituem a neurastenia. Pelos estigmas seria fácil de provar que os diretores das atuais correntes literárias são degenerados; 178 mas encontrar-se-ia a maior oposição por parte das famílias nesta espécie de escalpelamento vivo. Felizmente ao lado dos estigmas físicos estão os estigmas psíquicos, que os próprios degenerados se encarregam de divulgar não somente nos hospitais, mas nos livros, que escrevem. Estes estigmas são: egoísmo desmarcado, impulsividade, impressionabilidade, adinamia ou receio de tudo, preguiça, que pode estender-se até à falta absoluta de vontade-embolia. À ausência do querer vem juntar-se o desalento da dúvida, e ao vácuo da incerteza o desespero do pessimismo. “O degenerado, escreve Max Nordau, que afu genta a ação, desprovido de vontade, que não suspeita que sua incapacidade de agir é conseqüência das eivas cerebrais hereditárias, acredita que é por livre deter minação que despreza a ação, e se deleita na inatividade; e para justificar-se a seus próprios olhos, constrói uma filosofia de renunciação, de afastamento do mundo e de desprezo dos homens, pretende que se acha convencido do quietismo, qualifica -se com orgulho budista e exalta, com fraseado poeticamente eloqüente, o nirvana como o mais elevado e digno ideal do espírito humano. Os degenerados e os alienados são o público predestinado de Schopenhauer e de Eduardo de Hartmann, e basta conhecerem o budismo para serem convertidos”. À multidão que apoteosa os inovadores e jura em suas palavras, aplica-se segundo diagnóstico – a histeria 179 ou, pelo menos, a neurastenia. Os traços característicos da histeria são uma excessiva impressonabilidade, um desmedido egoísmo, que se manifesta pelo prurido das exibições e pelo requinte da vaidade, e uma pronunciada tendência para a sugestão. À sugestão se deve o nascimento das chamadas escolas artísticas ou literárias, as quais em substância não passam de grupos de histéricos hipnotizados por um degenerado superior. Depois de ter enumerado os estigmas, Max Nordau procura classificar os artistas e escritores degenerados, e divide-se em duas grandes categorias – os místicos e os egotistas. Deixando de parte as curiosas explicações, que dá Nordau do misticismo e do egotismo, aquele tendo suas raízes na fraqueza de vontade e na conseqüente falta de atenção, este no irregular funcionamento do mecanismo da consciência, veremos o autor dos Paradoxos e das Mentiras Convencionais percorrendo todo o edifício da literatura contemporânea, e encerrando em cada compartimento do grande asilo de alienados tal ou tal grupos de escritores. Os mais salientes têm uma célula especial. Prérafaelistas, românticos, simbolistas, decadentes, satânicos, parnasianos, todos oferecem estigmas de degenerescência. Além de sua excursão pelos domínios da lite ratura, Nordau percorre as regiões da música, da política e até da terapêutica. Wagnerismo, jacobismo, kneipismo, tudo isto traduz decadência psíquica. Logo à entrada da casa dos degenerados aparece a majestosa figura do cone Leão Tolstoi. 180 Que importa que o famoso pensador tenha pro duzido obras cheias de seiva e perfume? Que importa que tenha escrito Guerra e Paz, esta grandiosa dramatização de todas as situações e circuns tâncias ordinárias da vida humana? É um apóstolo do socialismo místico, um revoltado contra as opressões da sociedade, um inimigo da mentira da observação. “Desde que o mundo existe, escreve, com efeito, o filósofo, os seres racionais têm distinguido o bem d o mal; aproveitando os esforços de seus antepassados, lutavam contra o mal, procuravam o justo, o melhor caminho, e lentamente, mas incessantemente, marcha vam nesta direção. E, sempre lhes tolhendo o passo, achavam a sua frente os fautores de mentiras, os quais lhes pretendiam provar que é preciso tomar a vida como ela é. Eles, à custa de esforços e de lutas, se libertaram pouco a pouco destas mentiras. Mas eis que uma mentira nova, a pior de todas, aparece-lhes no caminho: a mentira científica. Esta nova mentira é no fundo a mesma que as antigas; sua essência é substituir a atividade da razão e da consciência, a nossa e a de nossos antepassados, por alguma coisa de exterior; na mentira científica está alguma coisa de exterior: é a observação”. Bastava esta página para que Nordau fizesse entrar Leão Tolstoi em uma das princiáis celas de seu grande asilo. 181 Para o crítico alienista um dos traços característicos do degenerado é a sua incapacidade de se adaptar às circunstâncias da vida. “O egotista, lê -se em Degenerescência, é o tipo do ser inadaptável... O fundo de seu ser é o mau humor, e ele volta-se com um descontentamento odiento contra a natureza, a socie dade, as instituições públicas, que o irritam e o ferem, porque não sabe acomodar-se com elas. Permanece em um estado constante de revolta contra o que existe, e trabalha para destruí-lo ou pelo menos, sonha a sua destruição. No segundo pavimento do edifício, trazendo camisa de força, figura Henrique Ibsen com ares de sumo pontífice intelectual. “Não se pode negar que Henrique Ibsen seja um poeta cheio de temperamento e vigor; mas é um místico, dominado por três obsessões, que são o pecado original, a confissão e o sacrifício de si mesmo ou a redenção”. (5 ) Além de suas obsessões teológicas, de seu simbolismo, de suas criações fantásticas, que lhe dão direito a um lugar entre os místicos, Henrique Ibsen é um decidido egotista, “porque em seu pensamento a exacerbação doentia de sua consciência do ‘eu’ é ainda mais notável e mais característica do que seu próp rio misticismo. Seu egotismo toma a forma do anarquismo. Ele acha-se em estado de constante revolta contra tudo que existe. Não exerce a respeito uma crítica arrazoada, não mostra, por exemplo, o que é mau, porque razão é mau, 182 e como se poderia melhorar; não. Crimina simplesmente de existir e não tem senão um desejo: destruir”. Frederico Nietsche, filósofo, Georges Brandes crítico, não são menos severamente tratados: o primeiro parece um “louco furioso, de olhos cintilantes, boca escumante, gestos selvagens”; o segundo não passa de “um dos fenômenos literários mais repelentes de nosso século”. Do exposto vê-se que a aplicação da degenerescência não se restringe ao grupo dos criminosos, estende-se a artistas, beletristas, filósofos, sábios. Sob rúbricas particulares são classificadas como anomalias ou monstruosidades regressivas as mais divergentes manifestações da atividade humana, desde o assassinato, que rouba a vida, até a fantasia, que encanta o espírito. Em Degenerescência não raras vezes o leitor sente que ele próprio não escapa ao interminável quadro sintomatológico de Nordau, e não raras vezes acredita que traz colados a pele, como a túnica de Nessus, os estigmas da degradação. Para mais obscurecerem a questão dos casos de degenerescência individual vieram juntar os de regressão coletiva, como se os chamados casos de in volução social pudessem ser equiparados aos de degenerescência individual. “Nós distinguimos, diz Dallemagne, a involução individual e a involução social. Certas causas que explicam uma podem intervir na inteligência da outra. Entretanto, a primeira não implica inevitavelmente a segunda. 183 A regressão individual é um fato normal, contínuo, regular, mesmo na evolução das coletividades. É, portanto, necessário separar em nossos espíritos o processus particular do processus coletivo”. (6 ) Algumas páginas mais adiante, acrescenta: “A regressão individual, a degenerescência limitada aos indivíduos, gostamos de repetir, é um fato contínuo, permanente, mesmo nas sociedades em evolução. Os degenerados são ao mesmo tempo os atrasados dos exércitos vitoriosos e os estropiados dos exércitos derrotados. Mesmo as sociedades em evolução as degradações particulares fazem parte do processo social normal fisiológico”. (7 ) A patologia social não se confunde d e maneira alguma com a patologia individual Aquela traduz anormalidade de condições sociais; esta anormalidade de condições fisiológicas. A respeito da tendência a exagerar a importância e aplicação da degenerescência refere Sanson a anedota, cuja veracidade garante, de que, narrando uma pessoa que seu filho havia recusado a proposta de uma medalha de campanha sob o fundamento de não ser motivo para recompensa a infelicidade de achar-se sobre o trajeto da bala, à qual devia o seu ferimento, o fato foi aprec iado por alguém nos seguintes termos: “Isso não se admira, eu sabia desde muito tempo que em vossa família se é mal equilibrado”. “Acredita-se, ajunta Sanson, que uma tal maneira de julgar os atos de desinteresse e de retidão seja uma rara exceção? Seria infelizmente um erro. Em nosso 184 mundo atual, em que as distinções honoríficas de toda espécie são tão ardentemente ambicionadas e solicitadas, dá-se que aquele que as desdenha, aquele que pensa que o título de membro, de uma academia principalmente, não vale os sacrifícios de dignidade ou, pelo menos, de altivez, que custa, o mais das vezes adquirir, não seja considerado geralmente como um original, por conseguinte, como um desequilibrado, como um daqueles que Magnan chama degenerados superiores? É evidentemente uma bizarria de caráter para todos aqueles que pensam e agem de outro modo, e que não podem deixar de achar que sua maneira de pensar e de agir é a única acertada; pois é, com efeito, a do maior número”. O alienista, como todo especialista, é inclinado a alargar além da justa medida o círculo de suas investigações. Do mesmo modo que aquele sábio, que, por estudar baleias, via até nas mulheres mais bonitas a figura daqueles cetáceos, os alienistas tendem a ver por toda parte sinais de loucura, estigmas de degenerescência. Assim, conforme observa mordazmente Sanson, se se devesse tomar ao pé da letra as definições dos alienistas sobre desequilíbrio mental, eles ocupariam um bom lugar na lista dos desequilibrados e figurariam em excelente companhia. É o que se nota em Degenerescência, onde existem admiráveis páginas de fisio -psicologia; mas onde o especialismo do autor prejudica de um modo violento a solução das questões. Nordau padece do que 185 Casimiro de Krauz denomina com toda propriedade de expressão: estigma profissional. Médico, pretende explicar todas as manifestações da vida espiritual por meio da psiquiatria sem atender às influências sociais no desenvolvimento do espírito humano. Daí toda a estreiteza e inanidade de uma crítica “verdadeiramente científica, completamente objetiva”, em que Poe, Baudelaire e Rollinat são qualificados de necróficos degenerados, ao passo que Valdès é apoteosado como artista filo-social por ter pintado um bispo metido em um esquife, e devorado por vermes. (8) O pior é que o estigma do especialismo não influi somente sobre a etiologia das manifestações artísticas e literárias; a sua ação se faz sentir igualmente sobre a terapêutica. No último capítulo de Degenerescência, consagrado ao tratamento das classes cultas atacadas em seu sistema nernovo, Nordau propõe a instituição de uma associação composta de professores, juízes, deputados, altos funcionários, à maneira da “Aliança dos homens contra a imoralidade”, tendo por fim cuidar da saúde e da moralidade dos escritores e dos artistas, da pureza das produções estéticas e literárias. “Seus membros, diz Nordau, possuiriam bastante cultura a gosto para distinguirem a franqueza de um artista moralmente são da baixa especulação de um rufião escrevinhador”. O remédio proposta é nem mais nem menos do que a condenação ao index em nome da psiquiatria. 186 O crime, como o livro, como todas as manifestações da atividade humana, é o produto dos fatores, que presidem aos nossos atos. Estes atos traduzem sempre uma ação simultânea de elementos biológicos, psíquicos e sociais. Explicá-los, portanto, pela influência única e exclusiva de qualquer destes fatores é dar explicação errônea, falsa, uma explicação unilateral do que é complexo. As relações de causa e efeito entre a dege nerescência e a criminalidade foram magistralmente determinadas por Legrain, que, entre muitas considerações feitas com toda clareza e nitidez, reduz a três os pontos de contato. 1º) Os degenerados podem tornar-se criminosos, e eles tornam-se mais vezes do que os seres não degenerados, porque se adaptam menos do que estes últimos às condições da vida regular e às convenções incompatíveis com as ações legalmente qualificadas de crimes. 2º) Certos criminosos apresentam estigmas de degenerescência; bem que estes estigmas não possam ter relação alguma de indicação com as ações cometidas por aqueles que são seus portadores, significam pelo menos que estes criminosos são degenerados. 3º) Se o degenerado pode ser criminoso, e se o criminoso pode ser degenerado, há criminosos que n ão têm caráter algum de degenerescência. A doutrina de Garofalo é uma peça completa e inteiriça, e seu autor a descreve com a máxima clareza e precisão. 187 O Estado, como todas as formas de associação, supõe condições de existência, quer o ataque provenha do exterior, quer parta dos próprios associados. Entre as condições de existência social figura principalmente o respeito à integridade individual dos associados e às livres manifestações da sua atividade. Daí duas categorias principais de crimes, conforme se trata de atentados contra a individualidade dos associados ou contra as manifestaçoes de sua atividade. O respeito às duas condições elementares de sociabilidade constitui os dois sentimentos fundamentais de justiça, que são a piedade, respeito à integridade individual, e a probidade – respeito às manifestações da atividade individual. O crime, aquilo que Garofalo chama delito natural, é, portanto, a violação dos dois sentimentos primordiais, sobre que assentam todas as relações sociais. Vê-se que esta concepção do crime não exclui a idéia de que o crime, como anomalia moral, possa achar-se sob a dependência de um estado patológico, loucura, epilepsia, neurastenia ou outra qualquer moléstia. Garofalo apenas afirma que o crime pode existir em indivíduos dotados de saúde perfeita. É verdade que a psico-fisiologia se recusa a admitir um desvio psíquico sem base numa anomalia orgânica, consiste ela em uma especial disposição das moléculas do cérebro; mas, enquanto não se determinar em como e em quanto o desvio psíquico influi sobre a saúde 188 propriamente dita, pode-se falar em um estado de saúde coexistindo com u’a moralidade inferior. Pelo menos é preciso admitir que o desvio psíquico, que importa uma anomalia dos sentimentos de piedade e probidade, pode existir d e um modo congênito, como fazendo parte da organização individual por efeito da hereditariedade ou do atavismo, ou apenas ser efeito de uma circunstância passageira, desapa recendo a qual, tudo volta ao seu estado. Em todo caso é preciso não confundir a moléstia no sentido estritamente patológico com o puro e simples desvio psíquico. É preciso não esquecer que os equilíbrios, medular e ganglionar, indispensáveis à existência individual e especifica, podem efetuar -se sem intervenção do equilíbrio psíquico. “Os equilíbrios vegetativos e afetivo interessam no mais grau à existência individual e à persistência da espécie. O equilíbrio psíquico se traduz sobretudo na evolução sociológica. Sem os dois primeiros, toda vida pessoal ou específica é impossível. O ter ceiro preside à evolução sociológica; conduz à adaptação cada vez mais perfeita do intelecto às coisas da natureza; é o artista por excelência de todos os progressos em todos os domínios do pensamento”. (9 ) Dentre as doutrinas, que atribuem o crime a anomalias sociais, sobressai a de Turati, e, em regra, a dos socialistas, que consideram como causa única, direta ou indireta, dos crimes as condições econômicas, base fundamental, segundo a teoria de Marx, largamente 189 desenvolvida por Greef, de todos os outros fenômenos sociais, quer morais, quer políticos. É verdade que a miséria é uma grande genetriz de crimes, sobretudo de crimes contra a propriedade; mas não pode ser considerada o fator único dos crimes de improbidade e crueldade, porque vemos a riqueza tocando ao fausto coexistir com uma e outra. Contra os criminólogos marxistas, que derivam o crime exclusivamente do determinismo econômico, observa brilhantemente Garofalo que “a estatística de monstra que se as formas grosseiras dos atentados à propriedade são o apanágio das classes pobres e ignorantes, como o roubo, a apropriação ilícita, etc., encontra-se o equivalente substancial destes delitos, em todas as outras classes, sob a forma de gatunice, velhacaria, falsidade, bancarrota fraudulenta, etc. De sorte que se pode concluir que não é a uma condição econômica dada, que se deve atribuir esta parte da criminalidade, mas antes a uma condição moral especial, a saber – a ausência do instinto de probidade e o descuido de uma boa reputação, pela qual muitos in divíduos, posto que seu senso moral seja muito fraco, evitam, entretanto, cometer delitos. Quanto à extrema indigência, seu efeito quase nunca é o crime, porque aqueles que são verdadeiramente esfomeados, caem num estado de prostração ou apatia, que não lhes deixa energia para o crime como para qualquer outro esforço. Enfim, se a degenerescência acompanha geralmente a miséria, nada prova que a última tenha sido a causa da 190 primeira; é, pelo contrário, o inverso, de que muitas vezes se pode dar a prova”. (10 ) Vaccaro entende que o crime é o efeito de uma falta de adaptação à constituição político -legal de uma sociedade. É nada adiantar a Garofalo, que não considera o criminoso outra coisa senão um revoltado contra a organização legal do Estado. “O Estado, diz realmente o elegante escritor, tem seus rebeldes, da mesma sorte que cada associação particular tem os seus; mas os verdadeiros criminosos são os rebeldes ao que constitui o fundo da moral social no que ela tem de universal e de indispensável para todas as relações sociais, de qualquer natureza que sejam”. (11) Poder-se-ia perguntar a Vaccaro por que em um mesmo meio político-social a falta de adaptação nem sempre conduz ao crime, muitas vezes levando à loucura, à degenerescência ou ao suicídio. Garofalo já havia dito com maior profundez de vistas que o crime não é senão “a violação dos sentimentos de piedade e de probidade em sua medida média, nos povos civilizados, com ações prejudiciais à comunhão”. Para Tarde o crime é uma questão de tendência, de inclinação, de ofício, de profissão. O indivíduo é criminoso como é músico ou poeta. “Como todo outro ofício escreve o autor da Filosofia Pena, o crime tem seu idioma especial – a gíria: que profissão antiga e enraizada não tem a sua, 191 desde os marinheiros e caldeireiros até aos agentes de policia, que dizem se camoufler por se déguiser, coton por rassemblement etc.? Tem finalidade suas associações especiais, temporárias ou permanentes, epidêmicas ou endêmicas. Exemplo de umas, a Jacquerie e a certos respeitos o Jacobinismo, que passageiramente devastaram a França; exemplo de outras, a Camorra e Mafia que flagelam tradicionalmente a Itália. São grandes sindicatos profissionais do crime, que representaram um papel histórico muito mais importante do que se acredita. Quantas vezes um bando guerreiro, que se organizou no seio das tribos pastoris, não foi uma associação de salteadores? Quantas vezes este banditismo não foi o fermento necessário, que ergueu um império e assentou a paz sobre a vitória do forte? Não se me c ensure, pois, por fazer muita honra ao delito, colocando -o no número das profissões. Se a pequena indústria do crime, que vegeta nas baixas camadas de nossas cidade, como tantas bodegas em que sobrevivem produtos de uma fabricação atrasada, não faz senão mal, a grande indústria do crime tem seus dias de grande e terrível utilidade no passado sob sua forma militar e despótica, e, sob sua forma financeira, se pretende que ela preste serviços apreciáveis. Onde estaríamos nós, se ao tivesse existido, sempre felizes, criminosos ardentes em saltar por cima de escrúpulos e de direito, de preconceitos e costumes, em levar o gênero humano da égloga ao drama da civilização?”. (12 ) 192 Como estas, muitas outras páginas poderiam ser transcritas, em que Tarde procura provar que o criminoso “é obra de seu próprio crime tanto quanto seu crime é sua própria obra”. Mas esta concepção do crime como produto da vocação, além de estar em contradição com as leis da imitação do próprio Tarde, nada adianta à solução da questão. Que importa que o crime seja um produto da vocação? É um achado tão inútil e estéril quanto o afirmar que a obra de arte é um fruto da inspiração. Ou a vocação é um efeito da heredirariedade ou da invenção. Mas tanto em um como em outro caso a lacuna é enorme, porque é Tarde quem, em resposta a um trabalho de C. de Krauz sobre a Lei da Retrospecção Revolucionária, confessa que as leis da hereditariedade ainda não foram descobertas e muito menos as da invenção. (13 ) Não menos deficiente é a explicação do crime como produto do meio social. “O meio social, diz Lacassagne, é o caldo de cultura da criminalidade: o micróbio é o criminoso, um elemento que não tem importância senão no dia em que encontra o caldo, que o faz fermentar”. A sociedade pode ser o caldo de cultura do crime, pode fornecer-lhe as condições de existência; mas ela não engendra por si só o micróbio do roubo ou do assassinato. 193 Ferri e Manouvrier são os dois campeões da doutrina, que atribui o crime à combinação de in fluências físicas, biológicas e sociais. Ferri entende que o crime é “um fenômeno de origem complexa, ao mesmo tempo biológica, física e social”. (14 ) “De certo, diz o notável professor de Bolonha, a predominância de tal ou tal fator determina variedades biossociais de criminosos – mesmo se cometem o mesmo crime, por exemplo, o assassinato ou o roubo; mas todo crime de todo criminoso é sempre o produto da ação simultânea das condições biológicas, físicas e sociais”. (15 ) A doutrina de Ferri, se escapa à pecha de unilateralidade, peca pela sua vaga amplitude. Ela se aplica a todas as manifestações da atividade, desde os atos de improbidade ou perversidade até aos de fantasia ou galanteria. Ferri, compreendendo que sua fórmula era tão extensa quanto indeterminada, sentiu necessidade de corrigi-la, dando-lhe mais precisão; mas não o fez senão para incorrer na censura, por ele increpada às teorias adversas, caindo na mesma balda de unilateralismo. A principal objeção oposto por Ferri às teorias adversas, principalmente às biológicas, é que nenhuma delas “dá a razão precisa e fundamental, pela qual a mesma condição de anormalidade biológica (loucura, neurastenia, epilepsia ou degenerescência) chega a determinar em tal indivíduo o crime, enquanto que em tal outro, nas mesmas condições de meio físico e so cial, 194 não determina senão o suicídio ou a loucura, ou então uma simples inferioridade bio -psíquica”. “Se se dissesse, acrescenta o autor da Sociologoa Criminal, que isto depende da diferença das condições exteriores, que nunca são as mesmas para os dois individuos, isto não bastaria. Há muitas vezes diferenças tão pequenas nestas condições exteriores, que não são uma razão proporcionada da enorme diferença entre aquele que, por exemplo, reduzido à miséria, mata -se em lugar de matar, e aquele que mata em lug ar de se matar. Por que de dois idiotas de u’a mesma família, tratados da mesma maneira, um responde às zombarias com a indiferença ou a dor concentrada, e o outro com o assassinato? E por que de dois degenerados ou loucos, a quem a nova recusa sua mão, um em face da bem amada mata-a, e o outro prefere matar-se? E por que de muitos degenerados, tendo vivido todos na mesma miséria física e moral, um não se torna senão um vagabundo, outro não chega senão ao simples roubo, com uma repugnância invencível para o assassinato, e outro, pelo contrário, começa por matar a vítima antes de roubá-la?”. (16) Aqui se poderia retorquir contra Ferri o argumento, que ele costuma opor aos adversários: se o crime é um fenômeno de origem complexa, ao mesmo tempo física, biológica e social, por que razão, dadas as mesmas causas, nem sempre se produzem os mesmos efeitos, originando-se aqui o crime, ali o sacrifício, acolá a indiferença? Acossado pela dificuldade, responde ele que “o fator biológico é alguma coisa de específico, que ainda 195 não se determinou, mas sem o qual todas as outras condições biológicas, físicas e sociais, não bastam para explicar todas as formas do crime, e o próprio crime”. “O crime é, portanto, o produto de uma especial anomalia biológica, que por falta de me lhor expressão, chamarei com Maudsley, uma “nevrose criminal”, que o distingue de toda outra forma de degenerescência, e sem a qual o meio físico e o meio social não bastam para explicar o crime. “Nevrose criminal, que é acompanhada quase sempre, em proporções diferentes segundo a categoria dos criminosos, das anomalias do atavismo, da epilep sia, da degenerescência, e que é verdadeiramente o ator específico, pelo qual tal indivíduo com tais caracteres bio-químicos em tal meio físico e social comete tal crime”. (17 ) Temos, portanto, a “nevrose criminal” elevada à categoria de causa específica, e a teoria de Ferri saturada da mesma eiva de unilateralidade. Desde então, os fatores físico e sociais perdem quase toda a sua importância como elementos etioló gicos, deixam de ser causas efetivas para tornarem-se simples condições. Deste modo compreende-se que o sagaz criminologista não podia chegar à conclusão de que todo crime de todo criminoso é sempre o produto da ação simultânea das condições biológicas, físicas e sociais. O mais que podia concluir é que o crime é um fato produzido por causas bio-químicas em um meio físico social. 196 Mas para constituir a ciência do direito penal não foi preciso definir o crime, como para se formar a estética não houve necessidade d e definir o belo. Basta que se esteja convencido de que é uma irregularidade social, a qual pode ser produzida por uma causa normal ou anormal, interna ou externa, pouco importa, porque o que constitui seu caráter específico é ser uma anomalia em relação ao grande tesouro de idéias, sentimentos e bens comuns, que constituem o patrimônio social, e que se chama ora Opinião pública, ora Crédito público, ora Moral pública, domínio imenso, cuja invasão constitui o crime. O resultado da multiplicidade das teoria s foi uma infinita variedade de classificação de criminosos, não diremos para determinar os diversos tipos de criminosos segundo os seus caracteres específicos, mas para indicar as principais categorias de criminosos segundo as várias causas do crime, desde a simples e primitiva divisão dos criminosos de hábito e criminosos de ocasião até às enumerações mais ou menos complexas, que apareceram depois da classificação de Ferri. Assim deixaremos de lado as classificações de Royce, Siciliani, Tallack, Garrau, Garofalo, Fouillé, Espinas, Reinach, Ten Kate e Pavloviski, Soury, Oettingen, Desporres, Du Cane, Zucarelli, Acollas, Beaussire, Joly e todos que reproduziram mais ou menos a distinção primitiva dos criminosos de hábito e criminosos de ocasião, e indicaremo s tão somente as tentativas feitas depois dos trabalhos de Ferri, sobre classificação de criminosos, tentativas mais ou menos 197 interessantes, segundo o ponto de vista especial em que se colocam os seus autores. Ferri distingue: 1º) CRIMINOSOS ALIENADOS. Antropologicamente idênticos aos instintivos, mas distinguindo -se, conforme nota Paolo Riccardi, pelo ato deliberativo do crime, pelos motivos, pelo modo de agir e de comportar se antes, durante e depois da ação criminosa. 2º) CRIMINOSOS INSTINTIVOS. Ausência hereditária do senso moral, imprevidência, insensibi lidade, ausência de remorsos. 4º) CRIMINOSOS DE OCASIÃO. Fraqueza de senso moral, sujeição às circunstâncias exteriores. 5º) CRIMINOSOS POR PAIXÃO. Impulsi vidade, indiferença para com a comunhão, imprevidência. Minzloff propõe classificar os criminosos em quatro categorias: 1ª) Indivíduos inteiramente, ou em parte, selva gens por efeito de atavismo. 2ª) Loucos e doentes. 3ª) Descendentes de loucos, doentes e criminosos. 4ª) Indivíduos sem meios de subsistência, que agem sob ação de influências psíquicas, que não podem combater por efeito da educação recebida. Serge divide os delinqüentes em: 198 1º) Delinqüentes por degeneração morfológica, compreendendo: a) Os delinqüentes por anomalia regressiva. b) Os delinqüentes por ausência de adaptação bio lógica. c) Os delinqüentes por degenerescência secundária. 2º) Delinqüentes por degeneração funcional, compreendendo: a) Causas biológicas. b) Causas sociais. Colajanni aceita a classificação de Ferri, acres centando a categoria dos delinqüentes políticos, e assim reconhece: 1º) Delinqüentes políticos. 2º) Delinqüentes por paixão. 3º) Delinqüentes de ocasião. 4º) Delinqüentes habituais. 5º) Delinqüentes natos. 6º) Delinqüentes alienados. Marro classifica os criminosos nas seguintes categorias: 1ª Categoria – Delinqüentes, nos quais as causas externas agem ou como causas predisponentes ou como causas determinantes: delitos acidentais, ferimentos, rixas, rebeliões, etc. 2ª Categoria – Delinqüentes, nos quais a influência das causas externas e interna se equilibra: 199 escroqueries, furtos domésticos e participação secundá ria em delitos graves. 3ª Categoria – Delinqüentes, nos quais as causas internas têm pronunciada preponderância sobre as externas: assassinatos, raptos, incêndios, etc. Do mesmo modo que Marro, Lombroso dividia os criminosos em duas grandes categorias: 1ª) Criminosos por defeito orgânico, inato ou adquirido. 2ª) Criminosos por causas estranhas ao organismo. Na primeira categoria eram compreendidos os epiléticos, os loucos morais, os matoides, etc.; na segunda os delinqüentes de ocasião, os delinqüentes por paixão, etc. Na última edição, porém, d’Uomo delinquente Lombroso modificou sua classificação nos termos seguintes: 1º) Delinqüente – nato e pazzo morale. 2º) Delinqüente – epilleptico. 3º) Delinqüente d’impeto de passione (forza irresistible). 4º) Delinqüente pazzo. a) Delinqüente alcoolista. b) Delinqüente isterico. c) Delinqüente mattoide. 5º) Delinqüente d’occasione. a) Criminaloidi. b) Psedo-criminali. c) Rei d’abitudine. 200 d) Rei latenti. e) Epilettoidi. Benedikt classifica os homens em: Homo nobilis (seres superiores). Homo mediocris aut typicus (tipo humano médio) Homem canalha, vicioso e criminoso. Os homens criminosos são divididos em 4 grupos: 1º) Delinqüente acidental. 2º) Delinqüente profissional. 3º) Delinqüente por moléstia ou intoxicação. 4º) Delinqüente degenerado. Maudsley, Bella, Corre reproduzem quase textualmente a classificação de Ferri. Nenhuma dessas classificações está isent a de crítica, nenhuma delas pode ser aceita senão a título provisório. Basta atender a que todas elas foram feitas segundo o ponto de vista, em que se coloca cada um de seus autores, considerando este o criminoso um atávico, aquele um doente, aquele outro um louco, um degenerado, um profissional, um anti-social, e assim por diante. A verdade é que, apesar de todos os esforços dos antropólogos e dos criminalistas, ainda não foi possível determinar o que seja o delito, e o que seja o homem delinqüente. É preciso convir com Paolo Riccardi que, não obstante o enorme material de teorias, de observações e 201 de críticas relativamente ao crime e ao criminoso, a natureza de um e de outro permanece um problema de difícil solução. Os trabalhos de Lombroso, Lacassagne, Bordier, Manouvrier, Magitot, Lucchini, Ga,ba, Ave -Lallemant, Garofalo, Ferri, Olivecrona, Almquist, Bastian, Tardieu, Derselbe Friedaelnder, Emminghaus, Moreau, Zirn, Magnan, Lentz, Henry Jolly, Gustavo Le Bom, Paul Aubry, deixam ver claramente, após longa e aturada reflexão, que o criminoso não é um tipo anatômico, psíquico ou social, e que é uma utopia procurar um traço especial, que caracterize o criminoso em sua complexidade anatômica, psíquica e social. Nem se pense que resolve a questão a doutrina tão lata quanto vaga, que considera o delinqüente um homem inferior, assunto interessante, de que se ocupa largamente Paolo Riccardi, tratando do suicídio, do idiotismo, da prostituição, da imbecilidade, do cretinis mo, da epilepsia, do histerismo, da vagabundagem, do parasitismo, etc. Não é absolutamente exata a idéia de considerar como indivíduo inferior o criminoso, que até pode ser uma natureza superior, um grande homem considerado sob todos os pontos de vista. Tal é o caso do revolucionário, que muitas ve zes é um missionário do progresso, um apóstolo do futuro, um precursor da civilização. Não contestamos que o criminoso tenha uma organização psíquica, fisiológica, e até anatômica, anômala relativamente ao homem normal, o que não se 202 pode dizer um achado dos tempos modernos, porque desde muito que os filósofos e todos aqueles que se têm dado ao estudo do homem, notaram uma certa relação, mais ou menos verificada pela observação, entre a figura do corpo, especialmente a fisionomia, e o estado da alma. “A fisionomia, nota Vidal, foi o objeto de preocupações numerosas e de tentativas mais ou menos felizes desde a antiguidade até aos nossos dias, desde os poetas e os filósofos antigos, Homero, Zapiro, Sócrates e Aristóteles, até os sábios contemporâneos, passando por Porta, Lavanter e Gall”. O que afirmanos é que até o presente ainda não foi possível determinar as relações etiológicas entre o crime e a organização anatômica, fisiológica e psíquica do criminoso. As dificuldades de caracterizar o tipo do criminoso assume proporções, que fazem desesperar de uma solução em sentido positiva, se considerar -se que em relação ao crime será preciso atender-se muito especialmente ao meio social. É o que faz sobressair com muita justeza Lacassagne, quando diz que o criminoso é um elemento que não tem importância, senão no dia, em que encontra o caldo, que o faz fermentar. “O criminoso com seus caracteres antropométricos não nos parece ter senão uma importância muito medíocre. Todos esses caracteres podem encontrar-se em pessoas muito honestas. Daí o alcance social diferente segundo estes dois pontos de vista. Ao fatalismo imobilizante, que decorre inevitavelmente da teoria antropométrica, se opõe a iniciativa social. Se o meio social é tudo e se é 203 bastante defeituoso para favorecer o desenvolvimento das naturezas viciosas ou criminosas, é sobre este meio e suas condições de funcionamento que devem versas as reformas”. Para Lacassagne o crime é sobretudo, um fenômeno social, e assim, “as sociedades têm os criminosos, que estas merecem”. Lombroso, Ferri, Marro reconhecem bem que pessoas honestas podem ter uma organização anormal, e, à inversa, delinqüentes podem possuir uma organização normal; e tanto basta para que o tipo criminoso perca o caráter especial, o traço específico, que o distingue do tipo normal humano. Sob o ponto de vista fisionômico a existência de um tipo geral do criminoso é contraditada pela in teressante experiência de Galton. Sabe-se que, graças aos progressos da fotografia, é possível superpor muitos retratos de membros de uma mesma família ou de uma mesma raça, e assim obter um retrato, uma figura comum representando o tipo geral da família ou da raça. Pois bem, o distinto sábio inglês superpôs um certo número de retratos de criminosos, e não obteve senão uma figura comum sem traço algum, que caracterizasse um tipo especial. “Ora tomados separadamente, cada um destes retratos tinha alguma coisa de repelente; mas, operada a mistura, o retrato que resultou, era um retrato ordinário, banal, humano, não apresent ando caráter algum saliente, e no qual em vão procurar -se-ia o traço, que perturbava a serenidade de cada rosto”. Que tipo criminoso é este que nem sempre caminha fatalmente para o crime, e que muitas vezes 204 não se manifesta senão pela loucura, pelo suicídio, pela prostituição, pela imoralidade, pela simples excen tricidade ou bizarria de conduta pelo caráter desa busado, pelo espírito de aventura, e até pela mais estrita observância das leis penais? A revelação, feita pelo próprio Lombroso no Congresso de Antropologia criminal, reunido em Roma em 1885, da confidência sincera desse homem muito rico, que confessava que, se fosse pobre, seria assassino ou ladrão, não é prova de não raras vezes o crime é devido à influência de causas sociais, como miséria, ignorância ou ociosidade? A simples riqueza ou posição social tanto basta para transformar o bandido em agiota ou o ladrão em explorador de empresas fraudulentas. Contestando que a Criminologia constitua um tipo antropológico, escreve Topinard que se pode falar em tipo criminoso, como se fala em tipo de militar, de magistrado, de padre, de negociante, de proletário; mas são tipos coletivos acidentais, que aparecem e desaparecem com a ação dos meios no dizer de Buffon, ou das circunstâncias na linguagem de Lamarc k. Não são tipos congenitais e hereditários, como pretende Lombroso que seja o criminoso; são o que se poder4ia chamar – tipos mesológicos, devidos às condições gerais de existência ou antes tipos sociais, criados pelas distinções sociais, pelos gêneros de vida, pelas diferenças de ocupação. “O tipo coletivo acidental, diz Topinard tem por característico ser essencialmente ligado aos indivíduos, aparecer e desaparecer com as condições comuns, que lhe deram nascimento, e não se 205 transmitir por gerações. Os tipos coletivos acidentais não passam à geração, que os viu nascer, se repetem, não se continuam. Os tipos de profissão, de habitat, de classes sociais, de que demos exemplos, não são senão tipos coletivos acidentais, isto é, semelhanças entre indivíduos submetidos às mesmas influências, desde o nascimento até a idade adulta. Não é duvidoso, depois do exposto, que possa haver um tipo coletivo secundário de criminoso, senão muitos, correspondendo cada um aos diversos gêneros de meio, em que se acham. A educação primeira dos criminosos ou de família, sua educação secundária ou pela sociedade, sua precocidade, seu modo de existência, são muito espe ciais para que não resulte em cunho comum. Mas não se segue por isto que haja um tipo de família, e por conseguinte, congenital de criminoso. São questões distintas”. Se existisse um tipo de homem delinqüente no sentido lombrosiano da palavra, este tipo permaneceria idêntico a si mesmo através dos tempos e dos lugares. Mas pode-se pretender que os criminosos de todos o s séculos e países formem um povo a parte no seio dos outros povos? Não vemos muitas vezes a figura do criminoso se transfigurar na do herói, quando os atos de depredação e impiedade, de perfídia e crueldade, são dirigidos contra o estrangeiro, contra o in imigo? Não falando do infanticídio, do aborto, e tantos outros delitos elevados à categoria de ações louváveis entre certos povos, os chamados delitos naturais na expressão 206 de Garofalo, o roubo e o assassinato, não perdem o caráter de criminalidade, quando são cometidos fora do clã ou da cidade, da família ou da casta? “Mas estes Cossacos, interroga Gabriel Tarde, esses Prussianos, tão numerosos que, em 1814, violavam as mulheres, e depois as degolavam em face de seus maridos garrotados, não eram cidadãos honestos em suas aldeias, onde nunca cometeram o menor delito, e onde mais de um teve de ganhar a medalha militar? Deste modo, transpondo as fronteiras de sua nacionalidade, o tipo de homem criminoso perde os traços, que deveria conservar inalterável atravé s de todas as épocas e latitudes. É verdade que existe um flair que revela ao observador sagaz a existência do homem perigoso ou criminoso no seio das pessoas honestas ou inocentes. Mas, conforme nota Tarde “não é o olho, é o olhar; não é a boca, é o sorriso; não são os traços, é a fisionomia; não é a estatura, é o andar, que esclarece o advinho sem este mesmo dar por isto”. Este flair especial é antes o rastro deixado pelo crime do que o sinal de uma predisposição criminosa. Dizia Vidocq que não tinha necessidade de ver todo o rosto de um criminoso, bastava-lhe poder fixá-los nos olhos. Mas isto pelo estado de espírito, traduzido, ou melhor traído, pelo olhar do criminoso, estado de espírito, que apesar de todas as dissimulações o indivíduo não consegue ocultar nas profundezas mais íntimas de seu ser, e não porque o olhar do criminoso 207 tenha uma expressão particular sempre idêntica a si mesma entre os criminosos. Mas não sendo possível definir o crime, nem caracterizar o tipo de delinqüente, de que modo determinar a responsabilidade do criminoso? As doutrinas principais sobre a responsabilidade criminal são: 1ª – O homem é dotado de livre arbítrio, e se escolhe o mal, deve ser punido. Esta doutrina supõe como condições essenciais da responsabilidade – o conhecimento do mal e sua livre escolha. 2ª – As ações humanas são produtos de causas físicas e morais, que as determinam. A vontade não é senão a consciência, em um dado momento, do conflito de forças externas e internas. Consoante a esta doutrina, o homem não é responsável senão porque vive em sociedade e suas ações não são punidas senão quando determinadas por motivos anti-sociais. 3ª – Entre as doutrinas do livre arbítrio e do determinismo surge a da voluntariedade. A liberdade e o determinismo, dizem alguns, podem ser contestados; mas não se dá o mesmo com a vontade. Se o homem quer os atos que pratica, é por eles responsável. Eis como Villa em seu relatório à Câmara dos Deputados expunha o conceito da voluntariedade, no projeto do novo código penal da Itália : “Um dos problemas, que fatigaram mais as inteligências dos 208 jurisconsultos e dos filósofos, é o da imputabilidade do crime... Sem nos ocuparmos das opiniões isoladas ou intermediárias, devemos notar que há três doutrinas, que hoje separam o campo da discussão a respeito. Uma delas, a mais antiga e a mais espalhada, nos ensina – que o homem não pode ser imputável de um crime, se o fato não foi o produto da livre determinação de sua vontade... Entretanto, os ataques à teoria do livre arbítrio são muito antigos na filosofia; mas, hoje foram renovados mais audaz e vivamente, passando da tese abstrata à tese especial e concreta da imputabilidade do crime... Negou-se o livre arbítrio, e que, portanto, a imutabilidade e a responsabilidade possam ser fundadas sobre ele. Acreditou-se mesmo poder tornar responsável o homem sobre o fundamento da idéia pura e simples da necessidade social, que quer que ao delito suceda a pena, como sanção ou reação correspondente. De sorte que não seria mais necessário indagar se um ind ivíduo é mais ou menos livre em suas volições para estabelecer o fundamento de sua responsabilidade penal, que deveria ser a conseqüência de sua existência em sociedade... É preciso reconhecer que estas doutrinas, sustentadas hoje com o apoio das ciências mais modernas, tais como a sociologia, a estatística, a fisiologia e a antropologia... exerceram um encanto singular... Mas a história, a tradição, a consciência humana são também forças vivas para a ciência... A luta ardente preparou um novo postulado que, entre as duas teses opostas do livre arbítrio e de sua negação, é talvez a solução verdadeira do problema”. 209 Se por um lado, porém, atos há que são puníveis, posto que sejam involuntários, por outro lado, existem atos que, não obstante voluntários, não po dem ser punidos, como no caso do indivíduo que mata outrem em legítima defesa. “Não basta, diz Ferri, ter querido o fato, é preciso demais uma intenção ofensiva, com um fim anti-social ou anti-jurídico. É o que os juristas e os legisladores exprimem menos completamente, dizendo que o elemento psicológico do crime é constituído pelo dolo ou malícia, ou má intenção; ou então ajuntando que com o dolo geral em cada crime é necessário o dolo específico (animus diffamandi, animus occidenti, etc.). Dizer, portanto, que uma ação é punível, só porque é voluntária – eis um erro psicológico. Dois homicídios igualmente voluntários podem ser – um punível e outro não, segundo há ou não uma intenção ofensiva e um fim anti-social”.(18) Também nem sempre se requer a voluntar iedade para que um ato possa ser punido, como nos casos de negligência ou imperícia, sobretudo se trata -se de um crime por omissão. Neste caso, não colhe mesmo a alegação de que, embora a conseqüência não tenha sido querida nem prevista, todavia o ato inic ial foi voluntário. Não se pode dizer voluntário o ato inicial, porque a omissão consiste justamente em não ter o indivíduo querido o ato, que a lei exige. O indivíduo poderá alegar que não se lembra do ato exigido por lei, e nem por isso ficará isento de pena. 210 Daí a dificuldade, sentida por aqueles que fundam a responsabilidade sobre a voluntariedade, de justificar a punibilidade dos crimes culposos, dando em resultado alguns juristas sustentarem – que a culpa não é punível. Para sairem-se da dificuldade alegam alguns – que a culpa é uma falta de vontade e não de inteligência. Mas, é justamente por ser uma diminuição, senão uma eliminação, de vontade, que na deve ser punida, desde que funda-se a responsabilidade sobre a vo luntariedade. A verdade, porém, é que a culpa não vem a ser uma falta de vontade, senão porque ela é um defeito de inteligência. Assim, não se pode dizer com Carrara que há culpa, quando o indivíduo voluntariamente deixou de calcular os efeitos de seu ato. Não é falta de vontade que traz a imprevidência, mas antes a imprevidência que produz a falta de vontade De duas uma: ou a definição de Carrara importa contradição nos próprios termos, ou, se é possível compre ender alguém deixando voluntariamente de calcular os efeitos de seu ato, dar-se-ia então o caso do dolo. Se voluntariamente atiro sobre uma moita, tendo previsto que por trás dela pode estar oculta alguma pessoa, já não se dá mais o caso de negligência ou imprevidência, há verdadeiro dolo, posto que indeterminado. Para mostrar que a responsabilidade pode variar indefinidamente, havendo em todos os casos a mesma voluntariedade, figura Carrara o exemplo do caçador, que dispara voluntariamente um fuzil sobre uma moita por trás da qual está um homem. 211 Se descarrega a arma para vingar-se por meio da morte, há homicídio ou tentativa de homicídio, con forme sua intenção se realiza ou não; se atira por mo tivo de legítima defesa, ainda mesmo que cause a morte, não é punido; se, sem ser por motivo de vingança ou de legítima defesa, na ocasião de despejar a carga lembrouse de que alguém podia estar por trás, é caso de crime doloso, posto que indeterminado, e como tal punido com as penas de crime consumado ou tentado, conforme o efeito; se não previu os efeitos possíveis do seu ato, é apenas responsável de culpa; e se o fato não podia absolutamente ser previsto, então não há crime, por ser considerado casual. Segundo os dados da psicologia moderna, o eu não é uma substância simples, mas uma combinação de elementos, um sistema de estados. Esta combinação de elementos, este sistema de estados é de tal sorte integralizado que, apesar de múltiplas e variadas mudanças, realiza -se uma continuidade, uma duração, u’a memória. O produto evoluído desta vasta associação, importando uma unidade, constitui o eu que, elevado à categoria de força, toma o nome de liberdade, sempre que age autonomicamente. A liberdade, portanto, não é, como geralmente se pensa, arbitrária; pelo contrário, ela é determinada, porquanto a autonomia não exclui a influência dos motivos. Não se compreende a autonomia sem a integridade do eu, e a falta desta integridade pode resultar 212 ou de um estado anormal da combinação de seus ele mentos constitutivos (tal é o caso de moléstia ou falta de desenvolvimento mental), ou da ação de qualqu er causa, que não seja a simples influência dos motivos (tal é o caso do constrangimento ou da violência). A vontade não é outra coisa senão o eu desposando o motivo. Sendo assim, compreende-se facilmente que, dada a integridade do eu, deve-se atribuir-lhe o ato querido, não como emanação do livre arbítrio, mas como conseqüência do consórcio do eu como o motivo. Um eu, que quer uma perversidade, se a realiza, é de fato seu criador, e então o ato lhe deve ser imputado. Não se trata de uma imputabilidade filh a do votum arbitrium indifferentiae, nascida segundo a expressão de Tarde, ex abrupto et ex nihilo, ou de uma imputabilidade estribada sobre a temibilidade, sem indagar da integridade do eu ou da voluntariedade da ação. Na realidade, que vemos? A sociedade absolvendo aqueles que não têm a determinação autônoma de seus atos, por mais temíveis que eles sejam. O crime como simples ofensa à comunhão, e a pena como meio de defesa social, não são critérios suficientes para organização da justiça criminal. Nota com toda a razão Tarde – que nos vários tempos, e entre as diversas nações, não têm sido as ações mais prejudiciais ao interesse geral as consideradas mais criminosas e punidas mais severamente. “Se o maior crime entre os antigos persas era sepultar os 213 mortos, e entre os gregos não sepultá-los, não é que o maior interesse prático desses povos fosse referente aos usos fúnebres... O maior crime, na idade média, era a sodomia... A criminalidade de um ato não se pro porciona, pois, em um lugar e em um tempo dado, ao prejuízo que resulta, nem mesmo ao prejuízo suposto e imaginário, como no caso da feitiçaria”. (19) Nas tribos selvagens e nos povos bárbaros, onde o sentimento da honra e da dignidade é muito menos desenvolvido do que entre as nações civilizadas, pun e-se o adultério com penas atrozes, ao passo que a infidelidade conjugal não figura entre os artigos dos códigos mais adiantados. Por serem as ações humanas motivadas, nem por isso deixa de haver solidariedade entre elas e o eu. É certamente uma ilusão da consciência que o eu seja a causa exclusiva de seus atos; mas também é uma verdade incontestável que não se pode divorciar o eu de seus atos. Basta que o homem reconheça seus atos como um prolongamento do seu eu, para que não possa deixar de imputá-los a si próprio. Nosso eu é um produto de acontecimentos, que lhe dão um cunho especial e lhe imprimem mesmo uma direção; mas, porque não criou sua própria natureza, e porque seus atos têm sua origem nesta natureza, que ele não criou, segue-se que não lhe devam ser imputados, quando aliás ele próprio reconhece sua solidariedade com esses mesmos atos? 214 Nós compreendemos que, à proporção que o tecido das causas e efeitos se torna cada vez errado e consistente, a ponto de se dizer que se fosse possível conhecer todos os antecedentes, as ações do homem seriam preditas com a mesma certeza que um eclipse, a idéia do livre arbítrio, isto é, de querer ou não querer no mesmo tempo, vá desfazendo-se como uma ilusão; mas o mecanismo do mundo moral, sendo mesmo análogo ao do mundo físico, de certo não elimina a solidariedade do eu e seus atos. “Vêem-se algumas vezes, diz Kant, homens que, tendo recebido a mesma educação que outros, a quem foi ela salutar, mostram desde a infância uma maldade tão precoce, e fazem tantos progressos em sua idade madura, a ponto de se dizer que nasceram celerados, e serem tidos como incorrigíveis. E, no entanto, não se deixa de julgá-los pelo que eles fazem, de exprobar -lhes os crimes como faltas voluntárias; e eles mesmos acham estas exprobrações fundadas”. Nem podia ser de outro modo, porque as ações humanas não são simples efeitos de causas exteriores. Desde que o homem se reconhece solidário com as suas ações, ele próprio as imputa a seu eu. A imputabilidade é uma conseqüência lógica, necessária, fatal mesmo, da atividade consciente. Os animais, que possuem uma consciência mais ou menos obscura da sua atividade, têm a noção da imputabilidade propriamente dita, que importa mérito ou demérito. 215 Para esta condição, além do reconhecimento da solidariedade com os seus atos, é mister que o eu tenha idéia do justo, noção primeira, como a do verdadeiro ou a do belo, e que não precisa ser definida para ser compreendida. Somente quando o eu reconhece a sua ação de harmonia com a idéia, que tem, de justiça, é que a considera meritória, digna da simpatia alheia; no caso contrário, sofre até vexame, como Safo sentia -se mal em face da própria fealdade. O prazer, quando fazemos bem, e o prazer, quando praticamos o mal, nascem da harmonia ou de desarmonia entre nossa ação e a idéia que temos do bem ou do mal. A simpatia e a antipatia, que sentimos pelas ações alheias, se fundam na mesma relação de conformidade ou desconformidade com o nosso símbolo de justiça. A perversidade provoca – indignação, como a estupidez – aborrecimento, e a fealdade – aversão. Entretanto, não se é, de certo, estúpido ou disforme, porque se queira. O criminoso não é punido, somente porque tenha praticado o ato; indaga-se também se ele tinha consciência do ato praticado. É a pergunta que se fa z em face dos atos mais monstruosos e daninhos à sociedade. Sem conhecimento de que o ato é, ou não, conforme à idéia que se tem do justo, não há responsabilidade possível. 216 A noção de responsabilidade implica a de mérito ou demérito, no sentido de que o at o está, ou não, de conformidade com o postulado de justiça. Já mostramos que, por não ser causa absoluta da vontade, nem por isso o eu deixa de ter mérito ou demérito; para tal, basta que o eu se reconheça como uma força motivada, e não como um simples efe ito causado. É o que vemos na prática. Sempre que por qualquer circunstância desaparece o equilíbrio, que faz com que o eu se reconheça uma força motivada, passando então a ser considerado um simples efeito causado, desaparece toda a idéia de mérito, e, p ortanto, de responsabilidade para o indivíduo ou para a sociedade. Mesmo em desarmonia com o conhecimento do justo, o homem reconhece o ato como seu, como uma revelação de seu eu. Assim, a responsabilidade social não exclui o conceito de mérito ou demérito ; pelo contrário, supõe no agente a idéia do justo ou injusto. O que se dá, é que não se exige que o postulado de justiça, tomado para medida da responsabilidade, seja o do autor: basta que o indivíduo tenha conhecimento do postulado social, e reconheça que sua ação está em desarmonia com este postulado, o que sucede toda vez que existe integridade do eu. Afinal de contas, não há responsabilidade senão porque o eu é complexo, senão porque a parte volicional 217 do eu, se assim podemos exprimir, nem sempre esta de acordo com a outra parte, representada pela inteligência. A responsabilidade é produto da desarmonia entre a ação e a idéia do eu sobre a justiça. Estivessem invariavelmente as ações de acordo com a noção do justo, e desapareceria da consciência humana o conceito da responsabilidade. O homem, para quem se faz patente a consciência desta desarmonia, sofre uma espécie de mal-estar, que é a origem do remorso. É seu sentimento, interposto entre a idéia e o ato, combinado com o conhecimento da desarmonia entr e uma e outro, que dá em resultado o remorso. Se faltasse o sentimento, o indivíduo poderia ter pleno conhecimento do mal, mas não existiria o remorso. A idéia de responsabilidade, porém, não implica a de sanção. Pode-se compreender a consciência da culpab ilidade sem a previsão da pena. As idéias de demérito e castigo, posto que estreitamente ligadas, não se confundem. As idéias de responsabilidade e de punibilidade não se evocam senão pelo princípio de associação, em virtude do qual uma idéia desperta outras, com que tem afinidades. A noção de responsabilidade se formou em face do postulado de justiça; mas é prudente abandonar o preconceito de que a justiça envolve a idéia de re compensa ou de punição social. 218 Segundo a organização emocional do indivíduo, a idéia de justiça pode produzir mais ou menos remorso, mais ou mesmo satisfação íntima; não acarreta, porém, como conseqüência necessária a punição ou a recompensa. Kant, que teve sempre a clarividência das coisas, não deixou de notar o disparate de tornar a justiça uma forma do receio ou do cálculo, desconhecendo -se a natureza essencialmente desinteressada do dever. Rénan se revolta contra a idéia de que o bem não tenha uma recompensa e o mal um castigo. É, como se vê, o mesmo espírito da moral dos profet as de Israel; mas reclamar uma sanção em nome da justiça não é senão fazer antropomorfismo. Não foi senão por ter ajuntado a sanção à responsabilidade, que o homem mais tarde imaginou entre elas uma necessária relação de coexistência. Entretanto, a pena não passa de um processo criado pelo homem para desenvolver sempre a idéia do justo, tornando cada vez mais efetivo o sentimento de responsabilidade. (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 277-356). NOTAS (1) Lacassagne, La Criminalité chez les Animaux. (2) Vide Emílio Laurent, L’Anthropologie Criminelle, pág. 20. 219 (3) Entre certas sociedades animais existe bem nítido e determinado o conceito do crime em suas diversas modalidades, roubo, adultério, assassinato, etc. Os macacos se associam para pilharem os vergéis de acesso difícil. Têm pleno conhecimento do mal e direta intenção de praticá-lo, como se diz na técnica jurídica, tanto assim que colocam uma sentinela avançada no ponto mais conveniente para avisar qualquer perigo. Dado o sinal, todos fogem. Refere Neander que na pequena aldeia de Bangue, na Baviera, muitas cegonhas viviam no melhor acordo entre si. Certo dia uma fêmea, na ausência do macho, se deixou seduzir por um outro macho. De volta, o esposo, sentind o-se traído, convocou um tribunal de toda a coletividade, e a adúltera foi condenada a ser morta, senão a pedradas, pelo menos a bicaradas. Sabe-se como, dóceis e pacientes para com os de sua espécie, os animais cometem verdadeiros assassinatos, por vin gança, rivalidade ou provocação. (4) Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 147. (5) Degenerescence, tradução do alemão por Augusto Districh, volume 29, pág. 205. (6) Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 147. (7) Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. VEE. (8) Vice La Psychiatrie et Science des Idées por Casimiro de Krauz, Annales de l’Institut Internacional de Sociologie. (9 Dallemagne, Dégénérés et Déséquilibrés, pág. 130. (10) Vide Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 433. (11) Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 438. (12) La Philosophie Pénale, págs. 255 e 256. (13) Vide Anais de Sociologia, ano de 1895, pág. 341. 220 (14) Anais de Sociologia, ano 1895, pág. 433. (15) Ferri, La Sociologie Criminelle, 1883, págs. 75 e 76. (16) Ferri, La Sociologie Criminelle, págs. 73 e 74. (17) Anais de Sociologia, ano 1895, págs. 426 e 427. (18) La Sociologie Criminelle, 1893, pág. 367. (19) Tarde, Études Pénales et Sociales, pág. 329. 221 5. TOBIAS BARRETO, SEU PONTO DE VISTA RELIGIOSO Além das linhas que serviram de introdução às Questões Vigentes, conhecemos quatro estudos, dada qual mais precioso, sobre o vulto de Tobias Barreto, de João Bandeira, o de Faelante da Câmara, o de Clóvis Beviláqua, o de Sílvio Romero. Na História da Literatura Brasileira Tobias Barreto é estudado nas múltiplas manifestações de sua natureza genial, como poeta, como orador, como jurista, como filósofo, como musicista. Procuraremos analisá-lo do ponto de vista religioso, feição interessantíssima da alma grandiosa de Tobias Barreto. Hoje, o fenômeno religioso não interessa somente aos crentes ou aos céticos, aos adversários ou aos fiéis de uma seita; ele interessa aos epigrafistas, aos etnólogos, aos filósofos, como interessa aos teólogos, como interessará a todos que estudam, a todos que se esforçam pelo desenvolvimento intelectual e moral das sociedades. Hoje, examina-se um dogma ou um culto, como se examina um arco ou uma flecha e nem por isso a fé religiosa perdeu coisa alguma no coração da humanidade. Há bem pouco tempo uma revista religiosa, depois de frisar o progresso do catolicismo na América 222 e do protestantismo na França, concluiu bis seguintes termos: “O importante não é o progresso de uma e de outra Igreja, é o progresso evidente na concepção de uma vida verdadeiramente religiosa”. Este espírito de tolerância entre as diversas Igrejas, por mais divergentes que sejam suas vistas, é o traço característico de nossa época, importando um verdadeiro progresso a bem do sentimento religioso. Quaisquer que sejam os progressos realizados pelo espírito humano, por mais que tenha aumentado o poder do homem sobre a natureza, por mais que o império das leis gerais tenha restringido o domínio das vontades individuais, a verdade é que a religião continua a representar papel preponderante na maioria dos espíritos. Não raras vezes ao lado da negação intelectual está a afirmação do sentimento, não raras vezes no espírito de um livre pensador está a alma de um religioso. Não se trata de saber se os benefícios da religião são ilusórios ou têm sido claramente comprados, o fato é que o homem não pode desprezar o que passa os limites da observação nem renunciar o que constitui sua fé. A religião não é uma invenção humana, uma invenção que o homem possa fazer e desfazer à vo ntade; ela foi dada com a inteligência humana, ela é uma função da razão, tanto assim que cada síntese religiosa é menos criação de um profeta que de seus precursores, apóstolos, discípulos e fiéis. 223 Não é senão porque existe em cada crente um filho da divindade que a fé se propaga. Cada profeta não trás senão a boa nova, que é reclamada pela lógica de seu tempo. Por isso teve razão Vera para afirmar que o lugar da religião não é a consciência individual, mas a consciência nacional, a consciência dos povos, consciência coletiva, comum, em que a consciência individual acha a fonte, a sanção e o alimento de sua religiosidade. Sob o ponto de vista social, porém a religião é menos uma filosofia do que u’a moral. Não é aquele que mais pensa no absoluto ou no infinito que melhores provas dá de sua religiosidade, e sim aquele que maior soma de bem pratica. É o que veremos mais adiante. O esforço intelectual, que produz a ciência, e o sentimento profundo, que gera a religião, nascem de u’a mesma fonte, e tendem para um mesmo fim. É assim que a verdade e a piedade não se excluem, dão-se as mãos. Nada mais tocante do que a espécie de misticismo, que as descobertas inspiram aos sábios. Aqueles mesmos que têm desfechado os mais rudes golpes sobre a religião, quantas vezes não se entregam a transporte de piedade? É vem conhecida a aventura de Augusto Comte, combatendo não só os teólogos, mas ainda os metafísicos. Para ele o espírito humano, chegando ao estado positivo, se limita a constatar fatos e determinar leis. 224 Pois bem, o filósofo positivista, depois de ter varrido de seu pensamento toda idéia de divindade, escreveu uma obra em quatro volumes para criar a religião da humanidade e instituir uma igreja com padres, súplicas, sacramentos, todas as cerimônias de um verdadeiro culto. Tudo isto está dando a entender que hoje já não existe ciência especificamente divina e que não seja um produto do esforço humano; mas não quer dizer que não tenhamos mais necessidade de fazer teologia. Trata-se justamente de determinar o lugar que ocupará a teologia entre as ciências modernas. Não é exato que a ciência tenha de dar cabo da religião. Na vida nem tudo é ciência, como na alma nem tudo é pensamento. Bem diverso do sistema de Comte é o processo de Renan, pretendendo que o mundo vir a a ser governado exclusivamente por um poder único – a ciência. Que será o mundo, escreve Renan, quando um milhão de vezes se houver reproduzido o que se tem passado desde 1763, quando a química em lugar de oitenta anos de progresso, tiver cem milhões? To do ensaio para imaginar um semelhante futuro é ridículo e estéril. Entretanto este futuro existirá. Quem sabe se o homem ou outro qualquer ser inteligente não chegará a conhecer a última palavra da matéria, a lei da vida, a lei do átomo? Quem sabe se, sendo senhor do segredo da matéria, um químico predestinado não transformará tudo? Quem sabe se, senhor do segredo da vida, um 225 biologista onisciente não modificará suas condições, se um dia as espécies naturais não passarão como restos de um mundo envelhecido, incômodo, de que guardar-se-ão curiosamente os restos nos museus? Quem sabe, em uma palavra, se a ciência infinita não trará o poder infinito, segundo a bela expressão de Bacon: “Saber é poder?” O ser em posse de uma tal ciência e de um tal poder será verdadeiramente senhor do universo. O espaço não existindo para ele, transporá ele os limit es de seus planetas. Um só poder governará realmente o mundo: será a ciência, será o espírito. Deus então será completo, se é que a palavra Deus é sinônima da total existência. Como se vê, Renan fala o mais irreligiosamente possível da Ciência; mas nem por isso o culto da ciência deixa de fazer parte da religião integral. Existe uma verdadeira religião da ciência, que não é outra coisa senão a ascensão do espírito para a luz. Está no mesmo pé de igualdade o sábio que nega à ciência toda função religiosa, como o teólogo, que teme todo o contato da ciência. A verdade é que tanto da descoberta realizada quanto do dever cumprido se desprende um delicioso perfume místico, a que não foram estranhos Descartes, Newton, Pasteur e tantos outros cultores da ciência. Sob que condições, porém, a teologia se constituirá ciência? Sob duas cláusulas: 1ª) ter objeto próprio; 226 2ª) não empregar como instrumentos de inves tigação a observação e a indução. Qual o objeto da teologia? Schleiermacher o determinou claramente – é o fenômeno religioso. Mas este não será uma ilusão do espírito humano? O que nos mostra a história, apoiada sobre a observação dos fatos e a experiência dos acontecimentos, é que a vida religiosa é u fato social e humano por excelência. Nestas condições é preciso fazer a teoria da vida religiosa. Este trabalho está começando, resta terminá -lo, Que nos falta para fazermos uma teoria da vida religiosa, para termos uma disciplina com todos os atributos de uma ciência positiva? Sem dúvida ignoramos até onde irão as descobertas científicas, até onde crescerá o poder mental do homem; mas já possuímos uma grande soma de material acumulado: graças ao desenvolvimento da etnologia é enorme a massa de informações sobre a evolução mental das raças e dos povos desde a pura selvageria até a civilização mais refinada. Guyau escreveu a respeito um notável livro A Irreligião do Futuro, no qual se ocupa: 1º) da gênese das religiões nas sociedades primit ivas; 2º) da dissolução das religiões nas sociedades contemporâneas; 227 3º) da substituição das religiões por outras criações do espírito humano. Como se vê, é uma obra de história, crítica e profecia ao mesmo tempo. O título do livro desvenda o pensamento do autor. Guyau está convencido de que as religiões representam ainda um papel considerável, mas tendem a desaparecer. Tobias Barreto, porém, considera a admissão de um estado ulterior da humanidade, que se distingue de todos os precedentes pela completa eliminação do sentimento religioso como uma tese desacreditada. “Os apóstolos da futura anomia religiosa não têm direito de inferir o seu advento do fato ocasional e transitório da descrença, que lavra em todos os domínios do espírito na época vigent e. Eu não sei que grande distância medeia entre o ponto de vista do homem do povo que, observando um terremoto, uma inundação, ou a passagem de um cometa, conclui logo que o mundo vai se acabar, e o ponto de vista de certos filósofos que, diante da incredulidade e indiferença religiosa dos nossos dias, induzem como lei o fim da religião”. A ilusão provém da confusão da fé e da crença; mas a fé não se confunde com a crença, da mesma sorte que a impiedade não se confunde com a dúvida. A crença e a fé não se extinguem nem renascem do mesmo modo. A crença uma vez extinta, não renasce mais. Para a dúvida só há um remédio: uma crença nova em substituição à antiga. O mesmo não se dá com a fé, que pode reviver com o arrependimento. 228 A crença, erigida a princípio em d ogma, torna-se mais tarde opinião, e acaba por ceder o lugar a outra. Outro é o caminho da fé, ato todo do coração e da vontade, e que não implica adesão a um fato histórico ou a uma doutrina, como sucede com a crença. Esta confusão da fé com a crença tem dado lugar a lamentáveis erros. O cristianismo é a confirmação do que vem dito. Jesus não faz teoria, ela não tem em vista senão a prática da vida. O que lhe importa não é o título de doutor e sim o papel de salvador. Sua obra não é uma renascença intelect ual e sim uma terapêutica moral. O que ele deseja não é iluminar a inteligência e sim curar os sofrimentos da hu manidade. Jesus nos ensina uma doutrina nova, ele sugestiona a seus discípulos o que de piedade existe em seu próprio ser. Sua tarefa não é de um iluminado e sim de encantador. Atraindo o homem a si, é que Jesus aproxima de Deus, dupla revelação de amor de Cristo e de fé no homem. “Vinde a mim, dizia Jesus, que achareis em mim o repouso de vossas almas; seguii-me, acreditai em mim; eu vivo no Pai, e o pai existe em mim”. Tal é a missão do Cristo, tal é a força de sua obra. Jesus procura ligar a si o homem na terra tanto quanto no Céu está ligado ao Pai. É uma espécie de mediador plástico. 229 O que faz a grandeza do cristianismo não é a letra do Evangelho e sim a pessoa de Cristo. Não é porque Jesus seja mais humano e mais acessível que o Pai, que a ele se dirige o cristão e sim porque ele é mais do que uma lição, é um exemplo, mais do que um exemplo, é um modelo de piedade. “Deus, escreve Sabatier, pede o coração do homem, porque o coração mudado e ganho arrasto tudo mais, ao passo que o dom de tudo mais sem o do coração não é senão aparente, e deixa o homem em seu primeiro estado”. Isto não quer dizer que, psicologicamente, a fé possa existir sem a crença, da mesma sorte que o sentimento não pode existir sem a idéia; mas na religião o elemento importante é o moral, que diz respeito à pureza do coração e à retidão da vontade. Toda fé religiosa ou piedade precisa de uma forma intelectual ou crença para se desenvolver. É esta forma intelectual que sofre com o tempo interpretações profundas e até completas substituições. A fé que é a raiz mesma da religião importa dois estados da alma: a autonomia da vontade toma posse de si mesma e se afirma como força, e o amor, pelo qual ela se distende e se comunica com a natureza inteira. A primeira forma a alma capaz de resistir a todas as iniqüidades, enquanto a conduz a todos os sacrifícios. É por isso que o homem pode não crer numa revelação, nem na existência da divindade, nem na vida futura, sem que por isto seja menos piedoso, e tenha uma atitude anti-religiosa. 230 Que importa a dúvida? É o próprio Guyau quem diz: “A dúvida não é, no fundo, tão oposta, como se poderia acreditar, ao sentimento religioso mais elevado; é uma evolução desse próprio sentimento. A dúvida, com efeito, não é senão a consciência de que nosso pensamento não é o absoluto nem pode apanhá-lo direta ou indiretamente. Neste ponto de vista a dúvida é o mais religioso dos atos do pensamento humano”. Deixemos de lado a parte do livro em que Guyau, historiador, se ocupa da gênese das religiões nas sociedades primitivas bem como aquela em Guyau, crítico, trata da extinção mais ou menos próxima das crenças religiosas. O que nos interessa saber no momento é se a sociedade futura passará sem religião. Guyau, profeta, gasta grande parte em expor e criticar os sistemas filosóficos que pretendem substituir a religião. Mas na questão do panteísmo ou do monismo o que está em causa não é a fé, raiz da religião, e s im a crença, sua forma intelectual ou doutrina filosófica. Diz Guyau: “A religião é um sociomorfismo universal. A sociedade com os animais, a sociedade com os mortos, a sociedade com os espíritos, com os bons e maus gênios, a sociedade com as formas da nat ureza, não são mais do que formas diversas desta sociologia universal, em que as religiões têm procurado a razão de tantas as coisas, tanto dos fatos físicos, como o trovão, a tempestade, a doença, a morte, como das relações 231 metafísicas, origem e destino, ou das relações morais, virtudes, vícios, lei e sanção”. Mas, no panteísmo como no monismo, não se encontra “esta sociologia universal, em que as religiões têm procurado a razão de todas as coisas, tanto dos fatos físicos, como das relações metafísicas, co mo das relações morais?” Imaginando, porém, com Renan, o infinito da ciência, e com o infinito da ciência o infinito do poder, vindo o ente em posse de uma tal ciência e de um tal poder a ser o senhor do universo, em que esta hipótese é superior à hipótese da criação? Valia a pena cansar o espírito em combater velhas crenças para povoá-lo de tais quimeras? “Se não podemos, diz Raul Frary, nos impedir de concebermos um deus ou deuses, imaginarmos o infinito da ciência e da força realizado em seres pessoais e conscientes, temos o direito de condenar os teólogos em nome das modernas doutrinas científicas? A hipótese desse futuro Júpiter é menos contrária ao que sabemos sobre as leis da natureza do que a hipótese da criação? Vale a pena aplicar uma crítica sem t réguas às velhas crenças para alimentar o espírito de tais quimeras? “Poesia por poesia, o Ramayana, Homero, a Bíblia, valem bem essas efusões de um profetismo, que duvida de si própria. É preciso confessar que os Deuses presentes, em ação, amados e temido s, dão à imaginação um pasto muito mais substancial do que esses deuses futuros ou longínquos que, diz-se, devem surgir algum dia, não somente fora da terra, mas fora do sistema 232 solar, e das porções do universo atingidas por nossos telescópios. A grandeza desses parvenus não é bastante para consolar-nos de nossas misérias”. Esta crença em um progresso indefinido, esta idéia de marcha da humanidade para um destino quase divino não está dando a entender que a alma humana é trabalhada por uma espécie de instinto religioso? Em todo caso, resta saber se com a ciência e poder infinitos, os futuros habitantes da terra serão mais felizes do que nós. Renan figura a hipótese nos Diálogos Filosóficos: “A elite dos seres inteligentes, senhora dos mais importantes segredos da natureza, dominaria o mundo pelos poderosos meios de ação, que estariam a seu alcance... No futuro, poderão existir máquinas que, fora de mãos sábias, sejam de nenhuma eficácia. Assim é que se imagina o tempo, em que um grupo de homens reinaria por direito incontestado sobre o resto dos homens. Então, seria reconstituído como uma realidade o poder que a imaginação popular prestava outrora aos feiticeiros. Então, a idéia de um poder espiritual, isto é, tendo por base a superioridade intelectual, seria uma realidade... As forças da humanidade seriam assim concentradas em um pequenino número de mãos e tornar-se-ia a propriedade de uma liga capaz de dispor da existência do planeta e de aterrorizar por esta ameaça o mundo inteiro. No dia, com efeito, em que alguns privilegiados da razão possuíssem o meio de destruir o planeta, sua soberania seria criada; esses privilegiados 233 reinariam pelo terror absoluto, pois que teriam nas mãos a existência de todos; pode-se dizer que seriam deuses, e que então o estado teológico, sonhado pelo poeta para a humanidade primit iva, seria uma realidade. “Primus in orbe deus fecit timor”. Eis o resultado a que chegaria a divinização da ciência – a tirania absoluta de uma elite intelectual por meio do terror. Caso, porém, a ciência sem limites se estendesse ao vulgo, então imperaria a anarquia. Espírito superior, Tobias Barreto não acredita que a humanidade se ache em caminho para o estado de irreligião. “Não há, escreveu em 1878, não há razão suficiente, máxime entre nós, para ter-se a religião como dispensada do seu mister de iludir e consolar. Ainda por muito tempo, e quem pode assegurar que não sempre? O organismo social terá funções religiosas e carecerá, para elas de órgãos especiais. Enquanto o homem, encontrando este mundo somente durezas, injustiças e misérias, criar-se pela fantasia um mundo melhor, uma ilha encantada, onde ele irá repousar das fadigas e enjôos da existência, a religião será, como até hoje, um fator poderoso na história das nações”. Já em 1870 dizia ela no Americano: “Dizer que a religião não tem raízes profundas no mais íntimo da alma humana é uma calúnia psicológica. Se porque o estado religioso de alguns espíritos pode atenuar -se a ponto de parecer nulo, daí se deduz que ele é provisório e não corresponde a uma faculdade permanente, não seria injusto assegurar também que o estado filosófico é 234 da mesma natureza, porque vêmo-lo muitas vezes tornar-se vagamente indeciso e perder-se nos vapores de místicas visões. É certo que não pertencemos ao grupo dos que pensam que o pássaro, a que se cortou as asas não pode mais viver, ou que a alma de que se tiram as esperanças e belas perspectivas de além túmulo, perde, perde por isto as forças e rola no abismo da abjeção de miséria. Este insulto que se faz à razão e à l iberdade, julgadas incapazes de abraçar a virtude por si mesma, quando não se lhe deixa cair no seio um título de débito pagável em outro mundo; este suborno hediondo, praticado em nome de Deus, é a mais viva prova da tacanhice humana, é a teoria do ganho transcendental. não a discutimos, desprezamo-la. Mas também não podemos admitir que a filosofia venha podar estes lances primitivos, estas primeiras folhas do coração, como estéreis e caidiças para produzir mais vigorosos rebentos”. Tobias Barreto, porém, estuda com verdadeira fé científica o fenômeno religioso e mais especialmente o cristianismo, que não é senão uma forma superior daquele. Que é o cristianismo para Tobias Barreto? Diga a esplêndida página, a que dificilmente encontrar-se-á igual em crítica religiosa: “Quando se estuda a história do povo judeu observa-se um fenômeno admirável que não se encontra na vida dos outros povos antigos. Queremos falar da fé ardente, com que essa nação inditosa teve, de contínuo, 235 os olhos cravados no futuro, cuja pur a claridade não se lhe empenava pela nuvem da desgraça. Daí resulta o espetáculo majestoso que oferece a procissão imensa da família de Israel sempre altiva e magnânima, resumindo em sua vida o destino da humanidade. E por isso diz Ewal que a história dest e velho povo é a história da verdadeira religião, aperfeiçoando se gradualmente e, no meio de todo gênero de lutas, elevando-se à vitória suprema, para daí irradiar com toda a sua força de modo a constituir -se o eterno patrimônio e a eterna benção ( ewiger Besitz und Segen) de todos os outros povos. Ao passo que por outras partes, diz Reuss, nós vemos a imaginação dos homens traçar complacen temente o quadro de uma idade de ouro para sempre esvaecida, Israel, guiado por seus profetas, persistia em volver as vistas para o lado oposto e aferrava -se à idéia de uma felicidade futura com tanto maior firmeza, quanto a situação presente parecia dever dar às suas esperanças o mais solene desmentido. Este nobre distintivo que é hoje de todos reconhecido, não tem recebido de todos seu verdadeiro valor e apreciação merecida. No juízo que se forma geralmente da civilização moderna, já é erro habitual ceder uma larga parte, uma parte demasiada ao gênio helênico. Não basta reconhecer, com Bordes Dumoulin, a influência renovatriz do espírito cristão, distinguindo -a da ação contrária dos chefes eclesiásticos. Menos ainda 236 basta admitir, com Huet, que o cristinanismo e o gênio grego-latino são os dois elementos necessários, irredutíveis da nova civilização. Melhor que tudo isto, um escritor eminente que convém ter sempre em vista, Guizot, disse também sobre o espírito civilizador das sociedades atuais, que os Gregos foram o elemento humano e intelectual, os Judeus o elemento divino e moral. E todavia nós achamos este dizer um pouco vago. O elemento divino, de que fala o ilustra autor, não é simplesmente uma fibra demais que a Bíblia tenha dado para vibrar ao impulso de místicos oradores; não é mesmo a idéia monoteica, depurada de qualquer mácula idolátrica pelo bafo ardente de profetismo exaltado. É porém alguma coisa de profundamente vivido e agitado, o pressentimento enérgico do futuro, o ideal político e social que modera o caráter descontente e as aspirações indômitas do espírito moderno. E de feito os povos que se afeiçoam à civilização cristã, são todos messianistas, quer o saibam, quer não; todos sonham, todos visam além uma época mais feliz. O futuro que entre os antigos era apenas uma divisão do tempo e só tinha um nome próprio e distinto na gramática, é agora um poder para que se apela, uma estrela atrás da qual vão as idéias, um braço invisível que sai da imensidade e suspende as nações acima do planeta”. O cristianismo é a religião do ideal, e segundo o cristianismo nos não servimos o ideal, porque ele se 237 realiza, mas o ideal se realiza, porque nos esforçamos para que ele seja uma realidade. Falando em ideal não queremos dizer que Cristo fosse um filósofo ou um poeta, ele foi sobretudo a encarnação da piedade. Cor Cordium. O que vibra todo o seu ser não é a contemplação do universo, a investigação das leis naturais, e sim o império da injustiça, o espetáculo da iniqüidade, contra o que ele irá até o martírio. “O moço doutor da Lei, são palavras de Tobias Barreto, que sem ter sido discípulo, tornou-se mestre, e à primeira palavra que proferiu ante a multidão, embebeu de esperanças e consolações até às raízes da alma humana, se não deu, por felicidade nossa, às idéias correntes de seu tempo o esplendor de um palavreado platônico, fez muito mais do que isso: aqueceu-as em seu peito, e mandou que elas bebessem no seu coração o orvalho que as alimenta e o aroma que as diviniza”. (Transcrito de A Cultura Acadêmica. Tomo 1º, volume 1. Recife, Imp. Industrial, 1904, págs. 3 a 18). 238 6. FILOSOFIA BIOLÓGICA Devido à gentileza do Dr. Frota e Vasconcellos tivemos o prazer de ler os Problemas de Filosofia Biológica, do jovem Artur de Araújo Jorge. Editou a obra o Dr. Frota e Vasconcellos, que está prestando grande serviço às letras brasileiras, e especialmente a Pernambuco, do pont o de vista da produção intelectual e seus esforçados cultores. Ainda agora temos sob os olhos uma carta de Angelo de Gubernatis, na qual este glorioso homem de letras, que é objeto de justo orgulho para a Itália, afirma que as edições d’A Cultura Acadêmica, dirigida pelo Dr. Frota e Vasconcellos muito o interessaram, e que ele aproveitará os exemplares, que lhe foram remetidos, para, em seu Dicionário Biobibliográfico dos Latinos, que deverá aparecer em junho próximo, dar conta do movimento intelectual de Pernambuco. O livro do Dr. Artur de Araújo Jorge revela uma vasta cultura e uma inteligência aberta aos eflúvios luminosos da filosofia, supremo gozo do homem que sente necessidade de conhecer em sua totalidade o Universo, esse grande ser vivo dos Estóicos, no qual a terra constitui o corpo da humanidade e a humanidade o espírito da terra. Estamos em pleno desacordo com o jovem filó sofo sob muitos pontos de vista; mas nem por isso sentimos menos calorosa simpatia por um moço, cujo 239 precoce desenvolvimento intelectual parece informar o aforismo de Bacon: Veritas filia temporis. *** Os problemas da vida, desde a vida das plantas, com a elegância de suas formas, o brilho de suas cores e a suavidade de seus perfumes, até a vida dos gênios, laboratório em que a natureza se transforma em ciência, continuam envoltos em densas trevas. O espírito humano busca resposta para as suas interrogações na especulação filosófica, que oferece as mesmas soluções há trinta, há cem, há dois mil anos: é o animismo, o vitalismo e o materialismo. Há ainda atualmente, escreve A. Dastre, representantes desses três sistemas que em todos os tempos disputaram a explicação dos fenômenos vitais: há animistas, vitalistas e unicistas. Mas se adivinha que de ontem para hoje há alguma coisa d e mudado no assunto. Não foi em vão que a ciência em geral e a própria biologia fizeram progressos desde o tempo da Renascença e sobretudo durante o curso do século XIX. As velhas doutrinas foram obrigadas a se reformar, a renunciar partes caducas, falar uma outra linguagem, em uma palavra, rejuvenescer os neo -animistas de nosso tempo. Chaufford, em 1868, Von Bunge, em 1889 ou Rindfleisch, mais recentemente, não pensam exatamente com Aristóteles, S. Tomás ou Stahl. Os neo -vitalistas 240 contemporâneos, sejam ilustrados em fisiologia, com Heidenhain, ou em química biológica, como Armand Gautier, ou em botânica como Reink, não falam de 1880 a 1900 a mesma linguagem que Paracelso, no século XV, e Van Helmont, no século XII, que Barthez e Bordeau, no fim do século XVIII, ou somente Cuvier e Bichat, no começo do século passado. Enfim, os próprios mecanicistas, quer sejam discípulos de Darwin e Haeckel, como o maior número dos naturalistas de nosso tempo, ou discípulos de Lavoisier, como a maior parte dos fisiologistas atuais, estão longe das idéias de Descartes. Profundas transformações se operaram em cada uma dessas teorias, permitindo apreciar sua influência sobre a Biologia em geral e especialmente sobre a Fisiologia e avaliar o resultado a que elas chegaram. Sob este título vale bem a pena examinar as modificações por que passaram aquelas diversas teorias desde o animismo grosseiro dos tempos primitivos até o materialismo mecanicista ou finalístico. O animismo é a mais antiga das concepções filosóficas do espírito humano. Um fenômeno da vida diária deu origem às idéias de alma e sobrevivência. É o sono. Dormindo, o homem primit ivo sonha, e ao despertar lembra -se de que visitou tais e tais lugares, de que lhe apareceram tais e tais coisas, de que praticou tais e tais ações. Pelo seu estado de inferioridade intelectual não podendo explicar estes fatos por um trabalho espontâneo do cérebro, ele os atribui a um ser interior, que durante o sono abandona o 241 corpo para se lhe unir de novo algumas horas depois. Ora, na morte é este mesmo ser interior que abandona o corpo por mais algum tempo ou mesmo para sempre. A aparição de pessoas ou animais mortos, que se afiguram vivos, ainda mais confirma a existência deste ser interior, independente do corpo, e agora sob o ponto de vista objetivo. São pessoas e animais, cujo ser interior continua a persistir depois da morte. Entretanto, além das pessoas e animais, aparecem em sonho coisas inanimadas, que não somente brilham como as estrelas, ou movem-se como as nuvens, ou crescem como a s árvores, ou desabrocham como as flores, ou fulminam como os raios, mas até se metamorfoseam, tomando formas gigantescas ou desconhecidas, atacam ou protegem os seres animados, falam com eles; então o homem primit ivo explica sua aparição pela existência d e um ser interior como nas pessoas e nos animais. Deste modo tudo se anima na natureza, e tal é o estado de cultura, a que Tylor dá o nome de animismo. Mas de que natureza é este ser misterioso, que ora se mantém unido ao corpo, ora o deixa por intervalos ou para sempre, a fim de se transportar ao longe? A alma humana nem sempre teve uma natureza espiritual; não foi senão após longas transformações que ela se tornou de uma pura imaterialidade. Primitivamente o espírito significava sombra, e assim participava, de alguma sorte, da materialidade do corpo. Pelo menos, deixava se ver-se, tinha movimentos, podia ser atingido. Os Bassutos acreditam que, quando um homem caminha sobre a margem de um rio, um crocodilo pode 242 agarrar-lhe a sombra, e assim arrastá-lo para fundo d’água. “Na língua asteca e nas da mesma família, diz Spencer, a palavra ehecatl significava ao mesmo tempo vento, sombra, alma. As tribos da Nova Inglaterra chamavam a alma chemung, sombra. Na língua quiché a palavra natub e da dos esquimós a palavra tarnak exprimem estas duas idéias”. Mas para que multiplicar os exemplos de sinonímia entre as duas palavras? é um fato muito conhecido dos filólogos. Não somente as línguas selvagens, mas o grego, o latim e outras línguas civilizadas exprimem a mesma r elação de identidade entre os dois vocábulos. Umbra, entre os romanos, significa a sombra dos vivos e a alma dos mortos. É o que explica certos povos acreditarem que o corpo do morto não projeta sombra. Por atribuírem ao espírito as propriedades do corpo, é que alguns povos selvagens têm por costume ofertar aos mortos comida, utensílios de caça e pesca e outros objetos indispensáveis à satisfação de necessidades puramente fisiológicas. É muito comum entre os selvagens o uso de fornecer alimentos aos mortos. Dentre os inúmeros casos mencionados pelos etnologistas, lembraremos apenas o hábito de os mexicanos depositarem aos mortos, além de alimento, vestimentas. Nota Spencer que este uso persistiu por muito tempo entre os incas, a cujos cadáveres embalsamados se dizia: “Quando vivíeis, tínheis o hábito de beber e comer; que vossa alma receba e se nutra onde quer que estejais”. 243 O mais interessante é que, segundo nos ensina ainda o eminente filósofo inglês, o costume tem lugar mesmo nos países, em que se dá a cre mação. Assim, pratica-se entre os Kukis, de que fala Butler, e entre os antigos indígenas da América Central, a que se refere Oviedo. Acreditam os selvagens que os espíritos fazem excursões, e que estas excursões são cercadas de dificuldades e perigos. Por isso não é de admirar que lhes dediquem instrumentos de defesa e até lhes sacrifiquem animais e servidores, que os acompanhem nas viagens de além túmulo. Portanto, nada mais natural do que o desejo desse chefe chinouk de matar a mulher para ela acompanhar ao outro mundo o filho. Os esquimós costumam imolar um cão na sepultura das crianças para lhes servirem de guia à região dos mortos. Em Anit ium, morta uma criança, estrangula -se a mãe, a tia ou a avó, para conduzi-la ao mundo dos espíritos. Da concepção de uma alma material, não de u’a materialidade densa e compacta como o corpo, mas de u’a materialidade sutil e etérea, que, entretanto, toma alimentos, é devorada pelos animais ou persegue como fantasmas os inimigos, se passou à idéia de uma alma sopro. Além do ar. que levanta turbilhões de areia ou trombas d’água, encrespa a superfície dos lagos ou abranda o calor das faces, a cessação respiratória, por ocasião da morte, também deu origem a esta crença. Entre os australianos Wang significa indiferentemente alma, sopro ou respiração. Da mesma sorte entre os hindus Brahma quer dizer sopro ou alma. O 244 mesmo se dá com Kneph – o espírito divino dos egípcios – que deriva de nef sopro. Para muitos habitantes da Polinésia a alma é o sopro, que se exala, tanto assim que eles costumam tapar a boca e o nariz dos moribundos para impedirem que a alma se escapula. Não tem outra significação a prática romana descrita por Virgílio e por Cícero, em virtude da qual um dos parentes mais próximos devia aspirar o último sopro do agonizante. O fim era assimilar o espírito do finado, do mesmo modo que certos selvagens acreditam apropriar as forças do inimigo, devorando-lhe as carnes. É por isto que no Taiti, onde julga-se residir a alma nos olhos, pertence ao chefe da tribo o privilégio de comer os olhos do inimigo. Os hebreus não faziam outro conceito da alma. No Gênese o homem não é transformado em alma vivente senão depois que o Senhor lhe imprime na fronte o sopro da vida. Em Ezequiel não bata que os esqueletos revistam a carne para que revivam, é preciso que o espírito divino sopre sobre eles. Não foi sem viva oposição que a doutrina de Anaxágoras, desenvolvida por Platão, pôde atravessar os séculos para encontrar em Santo Agostinho seu mais esforçado e fervoroso defensor. Os pr imeiros cristãos não tinham uma idéia clara da espiritualidade da alma. Esta doutrina não estava nas tradições do espírito judaico. Jesus ressuscitou em sua carne. Tal é o dogma fundamental do cristianismo. Além de Galeno, espírito prático que não via na d istinção ente a alma e o corpo senão uma questão estéril, que não aproveita a saúde 245 nem a virtude, muitos padres e doutores da Igreja consideravam a alma material, e outros não admitiam senão uma espiritualidade relativa. Entre os primeiros figura Santo Hilário, e entre os segundos Santo Irineu. Não é senão com Santo Agostinho que a alma vem a ser tida como uma substância puramente espiritual, que existe por si mesma, independentemente da matéria, doutrina que atingiu seu pleno desenvolvimento em Descartes, além do qual o espiritualismo moderno não avançou um passo. Realmente, todos os argumentos, com que os espiritualistas defendem sua hipótese de uma dualidade de naturezas distintas, associadas durante a vida, e caracterizadas por qualidades antagônicas, estão contidos nas palavras do notável filósofo francês: “Exa minando com atenção o que eu era, conheci que era uma substância, de que toda essência ou natureza não é senão pensar, e que para existir não tem necessidade de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material, de sorte que este eu, isto é, a alma, pela qual eu sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo...” Para o animista é a alma que faz viver o corpo, agindo diretamente sobre os órgãos. Assim é ela que faz “bater o coração, contrair o s músculos, secretar as glândulas, funcionar todos os aparelhos”. Mas como a alma, substância espiritual, pode agir diretamente sobre o corpo, substância material? Leibnitz pretendeu cortar o nó gordio com a célebre teoria da harmonia preestabelecida. “As almas se acordam com os corpos em virtude desta harmonia, 246 preestabelecida desde a criação e não por uma influência física, mútua e atual. Tudo isto se passa na alma como se não houvesse alma”. Outra dificuldade com que lutava o animismo é que, pensava-se, os fenômenos psíquicos são conscientes, reflexos e voluntários ao passo que os fenômenos fisiológicos são automáticos, involuntários e inconscientes. E então como compreender o comércio entre eles? Para conciliar a oposição atribuíram-se à alma dois modos de ação: um exercendo-se sobre os fenômenos de pensamento e em que age com reflexão, consciência e vontade; outro exercendo -se sobre os fenômenos fisiológicos e em que sua ação é automática, inconsciente e involuntária. Os vitalistas consideram os fenômenos vitais como fenômenos específicos, completamente irredu tíveis aos fenômenos físico -químicos e aos fenômenos psíquicos. O isolamento, porém, se tem mentido mais firme o lado espiritual que do lado inorgânico. Com efeito, os neo-vitalistas não desconhecem que as leis da física e da química agem sobre o organismo, e, à proporção que eles foram reconhecendo esta influência, a força vital se foi modificando desde a primitiva forma de espécie de divindade a arquitetar-se com suas próprias mãos até à concepção da idéia diretriz, sem existência objetiva, sem virtude eficiente, sem papel executivo, necessidade do espírito, conceito metafísico, pelo qual a inteligência 247 reúne e explica uma sucessão de fenômenos físico químicos. Do lado psíquico, porém, a barreira subsiste nítida. Nós não sentimos as pancadas do coração, os movimentos do pulmão, as dilatações das artérias. A alma que tem consciência de seus atos ignora o que passa no corpo. Pitágoras, diz Dastre, distinguia a alma verdadeira, a alma pensante, o nós, princípio inteligente e imortal, caracterizado pelos atributos da consciência e da vontade, do princípio vital da Psique, que dá ao corpo o sopro e a animação, que é uma alma de segunda majestade, ativa, passageira e mortal. Aristóteles fazia o mesmo: punha de um lado a alma propriamente dita, mens ou intelecto, isto é, o entendimento com suas luzes racionais; do outro lado era o princípio diretor da vida, a psique, irracional e vegetativa. A falta de univitalistas, atribuindo a explicação dos fenômenos vitais a uma causa estranha à matéria viva, causa imaterial, sem substância, foi atenuada pela concepção dos plurivitalistas, que consideram os fenômenos vitais como manifestações da atividade da substância viva proveniente do arranjo das moléculas, de que é formado o organismo. Considerando os fenômenos vitais como manifestações de atividade da substância viva, Bichat e os sábios de seu tempo cometeram o erro de considerar as propriedades vitais não somente como distintas das propriedades físicas, mais ainda como opostas a elas. É bem conhecido o quadro que a propósito pinta Cuvier. É uma rapariga em todo o vigor e brilho da 248 mocidade ferida violentamente pela morte. As formas esculturais se apagam para aparecer a saliência angulosa dos ossos; os olhos outrora cintilantes se tornam turvos, a cor de rosa da tez cede lugar à palidez, a flexibilidade graciosa do corpo à rigidez do cadáver. Depois, mais horríveis transformações se operam: as carnes passam do azul ao verde, do verde ao negro: uma parte se desfaz em matéria pútrida, a outra em emanações infetas. Cuvier atribuiu estas modificações à ação do ar, do calor, da umidade. Enquanto o corpo estava vivo estes agentes eram importantes em face das proprie dades vitais, que reagiam contra eles, mas uma vez morto o organismo, sua ação se torna eficaz. Bichat, porém, teve uma idéia genial: foi a descentralização da vidal. A vida deixou de ser localizada no estômago, como entendia Von Helmont, no sangue, como pen savam os judeus, ou no bulbo raquidiano, como queriam Legallois e Flourens, e passou a ser considerada como a soma total da atividade dos diversos seres de que se compõe o organismo. Esta descentralização foi pouco a pouco estendendo-se dos órgãos aos tecidos, dos tecidos aos elementos anatômicos, dos element os anatômicos às células. Para os unicistas no admirável encadeamento dos reinos mineral, vegetal e animal, tão intimamente ligados entre si, de maneira que não se pode compre ender um independente do outro, a solução do problema está em atribuir a vida ao átomo e em não ver nos diversos modos de ser dos indivíduos senão uma questão 249 de maior ou menos complexidade de agrupamentos de átomos. Assim a combinação de átomos produziria a vida química, a combinação de moléculas a vida física, a combinação de células a vida fisiológica, a combinação de órgãos a vida psíquica. Pode-se admitir que a matéria seja móvel e não movida, ativa e não inerte, e, entretanto, não identificá la com a vida. É o que resulta das experiências de Bohr, o famoso fisiologista de Copenhague, e de Heidenhain, o célebre professor de Breslau. O ar e o sangue estão em presença um do outro no pulmão, separados simplesmente por uma membrana muito fina, formada de células vivas. De que modo se vai portar esta membrana? Tão-somente segundo as leis da difusão gasosa? As experiências de Bohr não deixam dúvida a respeito: as coisas se passam de modo diferente, de conformidade com as leis da secreção, fenômeno fisiológico, que se não confunde com a simples difusão. O mesmo se dá com o que se refere à s trocas que se realizam na intimidade dos tecidos ente os líquidos (linfas), que banham exteriormente os vasos sangüíneos e o sangue que eles contêm. Uma perfeita metábole se realiza, a passagem do líquido assume uma feição fisiológica. Sim, impossível de definir a matéria tão-somente pelo pensamento; esta matéria que não consiste senão na extensão, e esta alma que não consiste senão no pensa mento são puros conceitos do espírito. Mas, porque as 250 forças fisico-químicas e fisio-químicas se influenciam, nem por isso se podem dizer idênticas. “Quando o escultor modela a estátua, diz Dastre, há em cada golpe que faz saltar um pedaço de mármore, mais alguma coisa do que a força viva do martelo; há o pensamento, a vontade do artista, que realiza um plano”. Se as transformações por que passaram as doutrinas filosóficas da vida foram no sentido de cessarem de exercer sua tirania sobre as investigações científicas e se, hoje, os biólogos se esforçam por se livrar de compromissos filosóficos, esta prudência não exclui a tendência para explicações mecanicistas ou teológicas. Por este lado não é rigorosamente exato dizer -se que a ciência ganha todos os dias o que perde a filosofia. Ciência e filosofia giram em esferas distintas; mas nem por isto se movem em campos inimigos. Na parte relativa à etiologia do gênio ainda estamos em desacordo com o Dr. Artur de Araújo Jorge, por considerá-la mais uma questão de filosofia social do que de filosofia biológica. “Considerando o problema na posição em que eu o coloco e ressalvo, diz o jovem filósofo, ela assume como é fácil averiguar com a leitura atenta das seqüentes considerações, uma feição nova, ignorada e desconhecida a todos quantos fizeram dele objeto de suas meditações. Em autor algum dos que me auxiliaram na feitura deste trabalho, encontrei formulada a doutrina que perfilo e creio possuo elementos para julgá-la senão verdadeira, em vista da fragilidade das que se têm apresentado na investigação da etiologia do gênio, pelo 251 menos provável, não somente devido a uma convicção minha, íntima e inabalável, haurida no estudo acurado feito sobre alguns destes grandes vultos que a humanidade guarda carinhosamente no panteão de suas glórias, como também mercê de um certo número de fatos arduamente obtidos e que parecem comprová-lo; limito-me ao que fez Bovio quando teve de expor a sua opinião, fragílima aliás, sobre o gênio: io ho sbozzato uma dottrina con esiguo numero di nomi e de esempi. Sendo assim é claro que me assiste o direito indiscutível de avocar a autoria da doutrina que su stento, enquanto não se provar a inexistência dos fatos que estudo ou a sua sintetização em doutrina alheia”. Antes de tudo o autor indaga o que constitui o gênio e como ele pode e deve ser definido. Para o Dr. Artur de Araújo Jorge o que caracteriza o gênio é a originalidade, esta faculdade inventiva que divisa sempre “nas coisas um aspecto novo além do reservado à generalidade dos mortais”, como transuda de suas próprias palavras: “Segundo o meu modo de ver e também de quantos têm procurado estudar o fenômeno da genialidade, o gênio em si, em sua essê ncia íntima, abstração feita de sua causa genética, é a mais elevada faculdade de sintetização mental, afetiva ou volitiva que se pode encontrar num cérebro humano. À primeira vista este conceito geral parece vago, inconsistente devido à essência de um critério seguro para diferenciar as faculdades ordinárias da psique humana; entretanto aquela fórmula encobre um característico saliente, 252 essencial à genialidade e que se encontra fatalmente, todas as vezes que defrontamos um homem verdadeiramente superior; é a originalidade no modo de ser impressionado pelos fenômenos do mundo exterior e de explicá-los à luz do seu espírito, é esta faculdade inventiva que descobre sempre em todos os problemas uma face então velada à investigação humana. Kepler ou Newton, Galileu ou Laplace, Hugo ou Byron, Shakespeare ou Goethe, todos são vítimas deste fenômeno de diplopia mental pelo qual eles divisam nas coisas um aspecto novo além do reservado à generalidade dos mortais, criando assim um mundo ideal e fantástico, à semelhança daquele em que vivia mergulhado Fídias que, quando esculpia uma estátua de Júpiter, não tinha sob as suas vistas um modelo comum, mas um tipo perfeito, ideal de beleza que lhe guiava a mão e a arte, segundo a expressão de Cícero. É a mesma idéia de Antônio Rand, o erudito italiano que consagrou à dinâmica genial um livro que não será esquecido, quando inquirindo, no gênio, dos característicos que o elevavam acima do nível da vulgaridade, disse: “considerando le note differeziali del genio si trovano queste due, l’originalitá, rispetto alla potenza, la scoperta del vero, dispetto al termine ”. Se o que caracteriza o gênio, fosse o que há no grande homem de original, exclusivo, pessoal, seria impossível fazer dele assunto de ciência. A ciência não se ocupa senão do que é geral, comum, permanente. O mundo psíquico apresenta uma face diferencial ao lado da semelhança, quer dizer, oferece uma soma de 253 caracteres comuns, gerais, e ao mesmo tempo um quantum de elementos próprios, individuais, exclusivos. No gênio não falta esta dualidade: ele tem um lado comum com os outros indivíduos e um lado próprio, individual, exclusivo. O progresso de um acompanha o progresso do outro, e por isso é que o homem é sociável na medida, em que é original. Esta correlação dá bem a entender que o gênio não pode ser encarado exclusivamente pelo que ele tem de próprio, de pessoal, de original. Ao contrário, não é senão o que o gênio tem de comum com os outros indivíduos que explica o prest ígio e a influência que ele exerce sobre a comunhão. Esta influência e prestígio se exercem por muitos modos, pela força, pela inteligência, pela astúcia, e até pelo dinheiro, quando aquele que o possui sabe aproveitar-se dele para impor à multidão respeit o. Aqui está porque Draghicesco considera o grande capitalista uma das manifestações do gênio econômico, pela ascendência considerável que ele mantém na sociedade. A questão é o modo pelo qual ele administra esta fortuna, que lhe dá prestígio. É difícil dizer se Cícero exerceu mais influência pela maravilhosa eloqüência do que pela colossal riqueza que possuiu. O gênio se caracteriza mais elo que tem de exterior do que pelo que ele possui de íntimo, de maneira que se pode dizer de um modo um tanto paradoxal, porém não menos expressivo, que o gênio é mais o panteão, o monumento, a estátua do que o 254 próprio grande homem, e isto por uma razão muito simples: é que o monumento traduz a influência e o prestígio do gênio sobre o comum dos mortais, sem as falhas que foram próprias do grande homem. A reputação, a fama, a consideração, embora exterior, é elemento integrante, essencial do gênio. Assim concebido, o gênio perde a feição misteriosa, enigmática que lhe atribui a psicologia individualista, e todo o homem, por mais humilde que seja sua posição social, fica habilitado a tocar às raias da genialidade, conforme a influência que ele venha a exercer sobre seus semelhantes. O gênio é ao mesmo tempo uno e coletivo, e ele não se distingue do comum dos homens senão em q ue é mais semelhante aos que não são tão semelhantes entre si. É esta semelhança, esta analogia com a massa que dá ao indivíduo aquela força psíquica extraordinária, aquele poder de sugestão excepcional, que o transfigura em gênio aos próprios olhos e aos olhos da sociedade. Alguém já comparou o grande homem, artista, poeta, sábio ou político, a uma espécie de capitalista: ele acumula em sua alma as idéias e os sentimentos de sua época como o capitalista acumula em seu cofre os haveres da sociedade. Assim como, referindo-se ao mundo econômico, “Proudhon exclamou: a propriedade é um roubo”, da mesma sorte, um revolucionário moderno, referindo -se ao mundo psíquico, poderia com igual propriedade de 255 expressão repetir o mesmo paradoxo – o gênio é um roubo. A verdade é que o gênio muito se assemelha à moeda, desempenhando entre as relações psíquicas o mesmo papel que a moeda representa entre as relações econômicas. O gênio é o intermediário, o agente de circulação, o veículo de troca entre as idéias e os sentimento s de seu país ou de sua época como a moeda o é entre os gêneros e mercadorias de um dado lugar ou tempo. Nem há que recear que se democratize o gênio, porque no processus de democratização do gênio, se baixam os superiores, em compensação os inferiores se elevam. Se o gênio desce do cimo à planície, o simples mortal sobe da obscuridade de seu nascimento à glória de seus feitos. É preciso varrer do espírito essa concepção pseudo-científica, que busca a causa unida do gênio na hereditariedade, próxima ou remo ta, direta ou colateral. Já lemos que o gênio é como o pedaço de cristal caído em uma solução química, cuja composição é igual à sua: se ele modela a massa à sua imagem é porque sua natureza íntima é idêntica à da massa, como a natureza atômica do cristal é idêntica à sua solução, que toma a forma cristalina. (Transcrito de A Cultura Acadêmica. Tomo 1º, volume 1. Recife, Imp. Industrial, 1904, págs. 269 -286). 256 7. LIBERDADE MORAL E LIVRE ARBÍTRIO MEMÓRIA APRESENTADA AO 3º CONGRESSO CIENTÍFICO LATINO-AMERICANO Tema: “É possível admitir-se a liberdade moral como fundamento da imputabilidade criminal, independente do livre arbítrio?” O Eu é um esforço contínuo para a unidade, e esta atividade sintética é o traço característico de todas as manifestações psíquicas: da vontade, da inteligência, da sensibilidade. Kant, com a profundez de seu olhar, já considerava a consciência uma síntese a unificar elementos diversos, e afirmava que esta função totalizadora “provém de uma tendência cega, posto que necessária, da alma”. Segundo Wundt, “a consciência, com seus estados múltiplos e, entretanto, unidos estreitamente, é, para nossa concepção interna, uma unidade, análogo à que é o organismo corpóreo, para nossa concepção externa”. Para Pierre Janet “a atividade da consciência é antes de tudo uma atividade sintética, que reúne fenômenos dados, mais ou menos numerosos, em um fenômeno novo, diferente dos elementos”. 257 Hoffding, acentua ainda mais esta atividade unificadora, quando escreve: “Em nós cada elemento da consciência não existe isolado; existem todos em uma conexão mais ou menos estreita”, “sem análogo na esfera de nossa experiência”. Em termos ainda mais incisivos e4xprime -se Spir: “Em nosso corpo orgânico o todo governa as partes e a forma da matéria, enquanto ao mesmo tempo o todo é em cada momento um produto mesmo do concurso de suas partes; o mesmo se dá com o Eu. Há, entretanto, uma diferença, uma diferença essencial, entre os dois casos, e ei-la: nosso Eu não pode, como um corpo orgânico, ser reduzido a elementos que, depois de sua separação, continuem a subsistir. Os elementos de nosso Eu, sentimentos, desejos etc., não existem indepen dentemente uns dos outros,, e se distinguem em sua sucessão somente por suas vicissitudes”. O Eu não é, pois, uma substância, como entendem os espiritualistas, nem a resultante de uma combinação físico-química, como ensinam os materialistas; mas um processus que tende para uma unidade, ainda mais profunda e real do que a de um corpo orgânico. Por aí já se vê que não se pode consider4ar simplesmente a unidade orgânica dos corpos como base exclusiva da atividade sintética da consciência, e nisto vai precisamente toda a distância entre o processus psíquico e o processus fisiológico. Entretanto, não têm faltado psicólogos que haviam reduzido a atividade sintética da consciência à unidade orgânica do corpo. Assim procede Ritob, 258 quando escreve: “O consensus da consciência, sendo subordinado ao consensus do organismo, o problema da unidade do Eu é, sob sua forma última, um problema biológico. À biologia cabe explicar, se ela pode, a gênese dos organismos e a solidariedade de suas partes. A interpretação psicológica não pode senão acompanhá la. É sobre a base física do organismo que repousa o que se chama a unidade do Eu, a solidariedade que liga os estados de consciência”. Antes de tudo, nota Draghicesco, “as espécies animais superiores se caracterizam por uma unidade orgânica perfeita, sem que por isso sua consciência seja comparável à dos homens”. Assim, deve existir alguma coisa, alé m da unidade orgânica, que sirva de base à atividade sintética da consciência. Em vez de servir de explicação única da unidade da consciência, pelo contrário, a constituição do encéfalo está precisando de explicação. Se a função do encéfalo é inerente à natureza do organismo, sua origem só pode ser explicada por uma adaptação ao meio cósmico. Entretanto, no meio cósmico não se notam fenômenos centralizados, que possam ter dado lugar a esta função centralizadora. “No mundo físico, observa Draghicesco, não há hierarquia nem processus sintético centralizador, a que o organismo tenha devido adaptar-se por meio do encéfalo”. Depois, o cérebro não é um órgão indispensável à vida; pelo contrário, em alguns casos pode ser uma 259 condição restritiva da vida puramente animal, e se nem sempre constitui um impedimento, muitas vezes não passa de um luxo. O certo é que o encéfalo não se desenvolve senão nas espécies superiores da escala zoológica, que vivem em sociedade. Aqui está porque Hoffding, recusando -se a derivar a consciência da unidade orgânica, limita -se a fazer um paralelo entre a atividade sintética da consciência e o funcionamento do sistema nervoso. “O grande valor do sistema nervoso, nota Hoffding, lhe vem de que ele põe todas as ações em harmonia íntima, e torna possível, em face do mundo exterior, um sistema fechado de manifestações. A consciência se desempenha, a seu modo, da mesma tarefa. Ela une o que se acha esparso no tempo e no espaço, traduz um ritmo de prazer e de dor o choque alternativo das condições vitais, e nos revela na lembrança e no ato do pensamento a concentração a mais íntima, que o círculo inteiro de nossas experiências nos permite constatar”. Não sendo possível considerar a atividade sintética da consciência um produto exclusivo da unidade orgânica, é preciso assentar a unidade da consciência sobre outras bases que simples condições fisiológicas. “A consciência, diz Boutroux, não é um desenvolvimento, um aperfeiçoamento das funções fisiológicas. É um elemento novo, uma criação. O homem, que é dotado de consciência, é mais que um ser 260 vivo, e mais que um organismo individual: a forma na qual a consciência é superposta à vida, é uma síntese absoluta, uma adição de elementos radicalmente heterogêneos”. Se a unidade orgânica por si só não basta par a explicar a consciência, qual será a explicação, que pode ser dada do fenômeno? Acima do indivíduo está a sociedade, e então por que não procurar no meio social a gênese e o desen volvimento da consciência individual? O cérebro, órgão de luxo em relação ao funcionamento vital, propriamente dito, seria então um órgão de primeira necessidade em relação ao funcionamento psíquico. Deste modo seria o meio social que concorreria para a formação do cérebro por meio do desenvolvimento excepcional dos últimos cent ros da medula espinhal. A sociabilidade seria a fonte donde brota a consciência. Tal é o modo de ver de Durkheim, quando escreve: “O grande serviço que os filósofos espiritualistas prestaram à ciência, foi combater todas as doutrinas que reduzem a vida psíquica a não ser senão uma aflorescência da vida física”. E sem cair no espiritualismo, acrescenta que todos os fatos, de que se não pode achar a explicação na constituição dos tecidos, “se tornam propriedade do meio social”. De modo brilhante Draghicesco faz ressaltar que a sociedade é a explicação causal da consciência. 261 “Os psicólogos, observa o perspicaz investigador, não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e adaptação ao meio social. A consciência para eles é indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não pode ser mais atribuída a influências causadas pelo meio físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico é, por assim dizer, constante, invariável. Por outro lado, estabelecemos também que a constituição orgânica do homem é precisamente o resultado da adaptação a esse meio. A adaptação, uma vez feita e consolidada em hábitos para sempre invariáveis, não poderia mas ser questão de novas adaptações, este meio não mudando mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade, em a natureza e no homem adaptado. Se, porém, ainda se constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir senão do meio social: sim, estabelecemos que é ela que, por sua variabilidade e pela luta pela vida, impõe a adaptação. De hoje por diante não seria mais possível procurar explicação para a consciência senão nas adaptações às condições sociais. A consciência não pode ser o produto senão do meio social, exclusivamente”. Sob o ponto de vista volicional, não é menos o esforço do Eu para a unidade, dando em resultado a Liberdade, atual base da responsabilidade. Antes de passarmos adiante, notaremos que a responsabilidade a princípio foi coletiva, respondendo pelo crime a tribo ou a família; ela não se tornou 262 individual senão com a afirmação da personalidade humana. Para nós a liberdade é a mais bela conquista do esforço humano. O homem se faz cada vez mais livre, à medida que seu Eu se integra e adquire consciência de seus atos. E com a idéia de liberdade se afirma, por sua vez, a noção de responsabilidade, tanto mais nitidamente quanto mais intensamente o homem atribui a si mesmo a causa de seus atos. Mas para que o sentimento de liberdade se desenvolvesse cada vez mais no homem, foi preciso que a integridade do Eu se tornasse cada vez mais profunda, o que não sucedeu senão após um longo período de evolução social. Produto do desenvolvimento humano, a liberdade não é a mesma em todos os tempos e lugares: está sujeita a uma variedade infinita de circunstâncias. Daí os diversos sentidos em que pode ser tomada a palavra liberdade. Assim pe que se diz livre aquele que não é obrigado por alguma causa externa, por exemplo, a violência, ou aquele que não é arrastado por alguma causa interna, como a paixão irresistível, ou aquele que não age contra a vontade, ou aquele cuja deliberação é refletida. O homem é mais ou menos livre, conforme obedece a móveis mais ou menos irrefletidos, ou a motivos mais ou menos esclarecidos e ponderados. Em suas ações o homem pode ir desde a impulsão mais cega até à decisão mais refletida; mas, em todo 263 caso, seus atos são determinados sempre por causas que, quando mesmo inerentes ao Eu, nem por isso são menos influentes e menos dignas de consideração. O que não existe é liberdade no sentido de escolher arbitrariamente entre motivos diversos, e ainda menos no de agir sem causa. O indeterminismo é a negação de todo o espírito científico; o princípio da causalidade é o postulado com que abordamos toda a ordem de investigações. Nem há razão para subtrair a vida volicional ao princípio da causalidade, quando toda a vida psíquica a ele é sujeita. Toda psicologia, portanto, tem de ser deter minista, quer se trate da inteligência, quer do sentimento, quer da vontade. Por que motivo subtrair ao princípio da causalidade a vontade humana? Será que não se possa falar em responsabilidade sem que a vontade humana seja colocada acima da série causal? Seria realmente admirável que para fazer moral o homem tivesse de despedaçar o laço que existe entre sua vida e o vasto todo da existência universal. “Os efeitos poderosos das causas externas, da condição social em que se nasce, do modo pelo qual se vive física e moralmente, da educação que se recebeu, da herança física recebida dos progenitores; das moléstias de todo o gênero, especialmente do cérebro; das tendências a delinqüir inerentes à própria natureza; do grau de contínuo ou momentâneo nervosismo em que 264 se acha o agente; das idéias e superstições sociais que influem sobre o nosso organismo; dos defeitos mole culares íntimos e invisíveis da matéria central do homem; os efeitos poderosos de tudo isto são os fatores da vontade humana, e, portanto, não se pode mais aceitar o antigo conceito de uma responsabilidade fundada sobre uma liberdade indeterminada e ilimitada” . O princípio da causalidade exclui toda possibilidade de escolha. Ao espectador é que parece que o indivíduo poderia ter querido o contrário do que quis. A indeterminação de escolha é incompatível com o princípio de causalidade. A determinação por si mes mo exclui toda idéia de livre arbítrio. “A razão é que o Eu é alguma coisa de completamente determinado. Pensamentos, sentimentos, instintos, tendências, tudo isto influi sobre o Eu e em tudo isto é preciso ver a origem da volição. Assim, diz bem Hoffding, as duas idéias, determinação por si mesmo e liberdade causal, que se consideram muitas vezes como idênticas, suprimem-se na realidade mutuamente, desde que se liga à palavra ‘si mesmo’ um sentido preciso”. O indeterminista subtrai a volição à lei da causalidade com receio de reduzir o indivíduo a uma pura máquina, entretanto faz dele um joguete do acaso, ou uma vítima do capricho. A volição equivale à soma total dos elementos que entraram para sua formação, e assim não admitimos liberdade senão no sentido de confluência de motivos 265 superiores, ente os quais principalmente o Eu, para realização de um Ideal tanto mais nobre quanto mais elevado. É por isso que entre os antigos se chamava escravo o homem que não dominava suas paixões e livre o que não era movido por motivos egoístas. Daí o conceito de liberdade, como a entenderam Sócrates, Santo Agostinho e Spinoza, isto é, vontade governada por motivos morais. Hoffding explica o conceito da liberdade moral nos seguintes termos: “Neste sentido só o homem de bem é livre. É preciso supor aqui uma evolução mental tão alta e um hábito tão forte que a consciência possa tomar uma importância decisiva em cada deliberação e cada evolução. Mas isto supõe por sua vez a existência de uma ligação causal psicológica. É precis o que a necessidade ou a ocasião de agir possa então despertar a consciência em virtude das leis que regem a associação das representações entre si ou com os sentimentos”. A liberdade, portanto, não é um dado primum, donde todos os homens partem igualmente ; mas um fim a alcançar, e ao qual nem todos chegam, ou, pelo menos, com a mesma facilidade. A nossa volição surge, dados os motivos que a determinam, e dizemos que a nossa volição é livre, quando nossa consciência nos dá a entender que o ato é nosso, isto é, que o nosso Eu o reconhece como seu. Querer livremente não quer dizer querer sem causa, sem depender de antecedente algum; pelo 266 contrário, liberdade significa que existe a mais estreita solidariedade entre a volição e os motivos, que a determinam. É a conexão psicológica dos motivos com a volição que constitui o fundamento da responsabilidade. É por isso que os códigos penais consideram a superexcitação de espírito e a falta de reflexão como circunstâncias atenuantes, e a reincidência e a preme ditação como circunstâncias agravantes. Isto quer dizer que a responsabilidade é tanto maior quanto a violação criminal decorre mais diretamente dos antecedentes que constituem o caráter do criminoso. Por aí, se pode avaliar da iniqüidade desses julgamentos judiciários, que se limitam a indagar se o réu praticou realmente o crime, sem dar conta de todas as circunstâncias externas e internas, em que o crime foi cometido. Eis a razão, pela qual Anselm von Feuerbach sustentava que o juiz jamais devia pronunciar senten ça capital sem poder explicar como o ato pôde ter nascimento. A volição não é uma causa absolutamente primeira, o começo absoluto de uma série causal; nem há necessidade de um tal indeterminismo para firmar a responsabilidade: basta que o homem reconheça s eus atos como filhos de seu Eu, para que não possa deixar de imputá-los a si próprio. Nosso Eu é uma resultante de antecedentes, que lhe dão um cunho especial e lhe imprimem mesmo uma direção; mas, porque não criou sua própria natureza, e 267 porque seus atos têm sua origem nesta natureza, que ele não criou, segue-se que lhe não devam ser imputados, quando aliás ele próprio reconhece sua solidariedade com esses mesmos atos? Nós compreendemos que, à proporção que o tecido de causas e efeitos se torna cada vez ma is cerrado e consistente, a ponto de se dizer que se fosse possível conhecer todos os antecedentes, as ações do homem seriam preditas com a mesma certeza que um eclipse, a idéia do livre arbítrio vá desfazendo -se como uma ilusão; mas, por isso mesmo que existe um determinismo psíquico, é que a solidariedade do Eu com seus atos se torna cada vez mais efetiva, e deste modo se afirma cada vez mais a responsabilidade humana. O homem se julga tanto mais digno quanto mais ele assume a responsabilidade de seus atos. “Vêem-se algumas vezes, diz Kant, homens que, tendo recebido a mesma educação que outros, a quem foi ela salutar mostram desde a infância uma maldade tão precoce, e fazem tantos progressos em sua idade madura, a ponto de se dizer que nasceram celerados, e serem tidos como incorrigíveis. E, no entanto, não se deixa de julgá-los pelo que eles fazem, de exprobar -lhes os crimes como faltas voluntárias; e eles mesmos acham estas exprobações fundadas”. Nem podia ser de outro modo, porque as ações, ele próprio as imputa a seu Eu. A responsabilidade é uma conseqüência lógica, fatal, necessária, do determinismo psíquico. 268 A ilusão do livre arbítrio não vem justamente senão de que em cada volição nós não podemos determinar os motivos, que entraram em sua formação. “Além disso, nota Pietro Cogliolo, a volição nasce tão subitamente da composição dos motivos, que nós somente a percebemos depois de nascida, de sorte que devemos fazer com o pensamento um difícil trabalho de regresso para ver as suas causas”. Deve-se reconhecer a responsabilidade como uma conseqüência lógica, necessária do determinismo psíquico, tanto mais quanto é certo que os motivos não exercem sobre nosso Eu uma ação análoga à dos pesos sobre uma das conchas da balança. Nosso motivo principal é nosso próprio Eu, todos os mais se podem dizer acessórios. É quanto a decisão é determinada pelo Eu, pelo todo de pensamentos, sentimentos e inclinações, que, em virtude de predisposições originárias, tomaram raízes nas profundezas de seu ser, que o indivíduo po de dizer que quis o seu ato, que o seu Eu se determinou a si próprio. Bem se vê que a responsabilidade tem sua base no determinismo psíquico, cuja manifestação fundamental é a tendência da consciência para a unidade. O indeterminismo, teoria que admite volições sem causa, quebra a unidade da vida consciente, sobre que assenta solidamente a responsabilidade humana. “O projeto e a resolução, escreve Hoffding, dependem da memória, e por conseguinte não podem admitir regras em leis válidas para a memória e 269 associação de idéias que não o sejam igualmente para a vontade Dizer que a vontade é intimamente ligada à memória, é dizer em suma que ela é intimamente ligada ao Eu, à unidade formal e real da consciência. Um ato sem causa não poderia provir de um Eu, nem ser nosso próprio ato, porque um ato não é verdadeiramente nosso, se não é u’a manifestação necessária do nosso próprio ser”. Se o Eu reconhece o ato como próprio, considerao como um produto de si mesmo, e então toda responsabilidade lhe cabe. Um Eu que quer uma perversidade, se a realiza, é de fato seu criador, e então o ato lhe deve ser imputado. Dada a integridade do Eu, deve-se-lhe imputar o ato praticado em virtude da unidade sintética, para a qual tende toda atividade psíquica. Não se trata, portanto, de uma imputabilidade, filha do votum arbitrium indifferentiae, nascida segundo a expressão de Tarde ex abrupto et ex nihilo, nem de uma imputabilidade baseada sobre a simples temibilidade do criminoso, sendo excluído todo o mecanismo do mundo psíquico; mas de uma imputabilidade, que tem raízes profundas na natureza do próprio Eu. De que reconheço o ato como próprio, como uma irradiação da natureza íntima de meu ser, por isso mesmo assumo toda a responsabilidade. “O julgamento moral de minha ação parte do fato que a ação é realmente minha. Também não é ele claro e nítido senão quando a conexão psicológica dos motivos com a resolução é evidente. Menos minha ação é 270 inteligível pelo conhecimento de meu caráter e das condições que me são próprias, maior será a facilidade que se terá para se me encarar como irresponsável e menos poderei ser considerado como o autor dela. Abandonar a conexão causal da vontade é precisamente abandonar o caráter da responsabilidade”. Segundo os dados da psicologia moderna o Eu não é um primum dado, mas um processus, que não se desenvolve senão paulatinamente, uma combinação de elementos, uma sucessão de estados, é de tal sorte integralizada, que apesar das múltiplas e variadas mudanças, dá-se uma unidade, que, em relação ao Tempo, chama-se Imortalidade, e, em relação ao Espaço, Liberdade. A Liberdade pode não ser uma realidade; mas é um ideal que, não contradizendo o determinismo, pois que no mundo moral predominam as causas finais, em oposição ao mundo físico, em que imperam as causa s eficientes, dá plena satisfação ao dogma socialmente inviolável e sagrado da Responsabilidade. (Transcrito de A Cultura Acadêmica. Recife, 2 (1-1), págs. 225 a 239, dezembro, 1905). 271 8. CONCEPÇÃO NOVA DA MATÉRIA A concepção da matéria como uma substância inerte e indestrutível já não pode satisfazer as vistas largas e extraordinariamente belas do espírito moderno. Este se elevou a um plano superior ao mundo da matéria propriamente dita com suas conhecidas propriedades cinéticas, físicas, químicas, e létricas, magnéticas. Nós sabemos hoje que além dos sólidos, dos líquidos e dos gasosos, além dos astros, das moléculas, dos átomos, existe o que quer que seja, que não sendo luz, calor, gravitação, serve, entretanto, de base a todas estas coisas. Qual será a natureza dessa substância sui generis, que não se confunde com a matéria propriamente dita? Foi somente no último século, segundo nota de William Crookes no Congresso de Química Aplicada, de Berlim, a 5 de junho de 1903, que se ousou avançar pela primeira vez que era possível que os metais fossem corpos compostos, o que teve lugar em uma conferência realizada em 1809 por Sir Sumphry Davy na “Royal Institution”. Nesta conferência afirmava o ousado precursor: “Se tais generalizações viessem a se verificar por fatos, resultaria uma filosofia nova ao mesmo tempo simples e grande. As substâncias materiais em toda sua diver sidade poderiam ser concebidas como devendo sua 272 constituição a duas ou três espécies de matéria ponderável combinadas em quantidades difer entes”. Em 1811 acrescentava: “Procurar-se-ia em vão imaginar as conseqüências, que trariam um progresso na química, tal como a decomposição e a composição dos metais... É dever do químico ser audacioso na busca do seu fim. Não deve considerar as coisas co mo impossíveis pela razão única de que ainda não foram feitas. Não deve encará-las como desarrazoadas, porque estão em desacordo com a opinião comum. Deve lembrar-se de quanto a ciência é algumas vezes contrária ao que parece ser a experiência. Indagar se os metais podem ser compostos e decompostos, é uma tarefa magnífica e verdadeiramente filosófica”. Pouco tempo depois Faraday, em uma de suas conferências na “Royal Institution”, exprimia-se nos seguintes termos: “Se concebermos uma mudança que vá além da vaporização, tanto quanto esta vai além da fluidez, e se dermos conta também do aumento proporcional das modificações, que têm lugar à medida que essas mudanças se operam, chegaremos sem dúvida (se é possível formarmos alguma concepção a este respeito) muito perto da matéria radiante: e como na última mudança havíamos constatado a desaparição de um grande número de qualidade, na mudança do estado, que nos ocupa, estas desaparecerão muito mais”. Em outra conferência dizia: “Presentemente começamos a prever com o mais vivo interesse a descoberta de um novo estado dos elementos químicos. 273 A decomposição dos metais, sua composição, a realização da idéia outrora absurda, da transmutação, eis os problemas que a química tem de resolver”. A William Cookes se deve, em 1879, o ressurgimento da idéia de uma “matéria radiante”, emitindo a hipótese de que nos fenômenos, que se passam em um tubo, em que se fez o vácuo, as partículas que constituem a corrente catódica, não são sólidas, nem líquidas, nem gasosas, não consiste m em átomos que se movam através do tubo e produzam fenômenos luminosos, mecânicos ou elétricos, no ponto em que elas batem; mas consistem em alguma coisa menor do que o átomo, fragmentos de matéria, corpúsculos ultra-atômicos, coisas infinitamente tênues, muito menores e muito mais sutis do que os átomos, e que parecem ser a própria base dos átomos”. Além disto, William Crookes aludia à fronteira, em que a matéria e a força parecem fundir -se uma na outra, reino obscuro, estendendo -se entre o conhecido e desconhecido. “Eu creio, afirmava o distinto sábio inglês, que os maiores problemas científicos do futuro acharão sua solução sobre esta fronteira, e mesmo além; aí, parece, estão as realidades últimas, sutis, cheias de conse qüências maravilhosas”. A existência de uma substância pré-atômica era idéia que pairava no ar desde algum tempo, como se poderia p´rovar com citações de Benjamin Brodie, Graham, George Stokes, sir William Tomson, sir Norman Lockyer, quando das vistas de William Crookes 274 sobre o estado pré-atômico da matéria, da descoberta dos raios catódicos, da dos raios-X, a dos corpos chamados radioativos, e a demonstração por Gustave Le Bon, de que a radioatividade não pertence a certos corpos, mas constitui uma propriedade geral da matéria. Vieram abalar profundamente o espírito humano em relação a várias concepções científicas e filosóficas. Com efeito, a constituição complexa dos átomos, a natureza atômica da eletricidade, a dessassociação dos elementos atômicos, e tantas outras hipóteses confir madas pelas maravilhosas descobertas apontadas, convergiram para uma nova orientação intelectual, que atirou por terra não poucos dogmas científicos, entre outros os da inércia e indestrutibilidade da matérias, base fundamental da física e da química. Spencer foi ao ponto de afirmar que se “fosse possível supor que a matéria pode tornar-se não existente, seria necessário confessar que a ciência e a filosofia são impossíveis”. Naquet, professor da Escola de Medicina de Paris, escreve: “Nunca vimos a volta do ponderável ao imponderável. A química toda inteira é fundada sobre a lei de que uma tal volta não tem lugar, porque se tivesse, adeus as equações químicas”. Apesar de todas as transformações a que está sujeita a matéria, a massa dos corpos parecia per manecer invariável, irredutível. Assim pensavam os químicos em face das constatações de sua balança. 275 No oceano móvel dos fenômenos físico -químicos o peso era o ponto fixo e luminoso, que servia de guia ao físico e ao químico em suas pesquisas sobre as incessantes transformações da matéria. Nada, porém, existe de invariável em a natureza inteira, a ponto de William Crookes pode dizer que o átomo partilha com o resto da criação os atributos do nascimento, da decrepitude e da morte, e Gustavo Le Bom pensar que é preciso inverter o adágio clássico – nada se cria, nada se perde. Sim, tudo nasce, tudo morre em a natureza, desde o infinitamente pequeno até ao infinitamente grande, desde o mais insignificante átomo até ao mais volumoso sol com todo seu cortejo de planetas e satélites. A natureza inteira é como Penélope, não faz senão para desfazer em seguida, e da mesma sorte que a figura mitológica, em sua obra destruidora, não é menos fecunda do que em sua tarefa de construção. A evolução da matéria se opera sob um duplo ponto de vista, ela vai do imponderável ao ponderável pela associação de seus elementos, e do ponderável ao imponderável pela desassociação. Assim foi que os dogmas da indestrutibilidade da matéria e da separação do ponderável e imponderável se desvaneceram em face dos últimos achados da ciência, sobre a energia intra-atômica. Com efeito, esta nova forma de energia veio ligar o mundo da matéria ao mundo do movimento, o mundo do ponderável ao mundo do imponderável, mundos pro 276 fundamente separados até hoje e que nenhum medidor parecia ligar. A energia intra-atômica, porém, veio provar que não há separação essencial entre a matéria e o mo vimento: uma e outro não passam de estados de u’a mesma realidade. “A matéria, diz Peladan, é uma cris talização do movimento; o movimento é uma fluidificação da matéria”. Até hoje sábios e filósofos não se têm ocupado senão da evolução da matéria no ponto de vista da integração, deixando de lado a outra face do problema, que é a desassociação de seus elementos. Tratam da materialização progressiva sem se lembrarem da ordem inversa, que é o processus de desmaterialização, pela desassociação contínua dos elementos, que constituem a matéria. É o produto dessa desmaterialização da matéria pela desassociação de seus elementos, que constitui a nova forma de energia, chamada intra-atômica, a qual serve de laço entre o mundo do ponderável e o do imponderável, o que importa dizer que é esta sorte de energia que faz desaparecer a dualidade clássica entre a matéria e o movimento. Não há, pois, separação entre matéria e movimento, uma e outro são aspectos de u’a mesma realidade. Deixando de lado o processus da materialização progressiva da energia, trataremos tão -somente da evolução regressiva da matéria, isto é, do processus da desmaterialização de seus elementos constitutivos. 277 A evolução regressiva, ou desassociação da ma téria, se opera por meio da emissão, no espaço, de eflúvios com uma rapidez como somente possui a luz, e tendo propriedades análogas às dos raios catódicos, principalmente a de produzir raios-X sempre que encontram um obstáculo. São estes eflúvios que constituem o maravilhoso fenômeno da radioatividade, cuja universalidade foi posta fora de toda dúvida por Gustavo Le Bom. Assim, a maior força até hoje conhecida, a radioatividade, ou energia intra-atômica, força maravilhosa, cujo poder imenso excede a tudo que de enérgico se poderia produzir pelos meios físicos ordinários, é devida à desassociação dos elementos da matéria. Estudemos, pois, o miraculoso fenômeno que em poder excede a todas as forças até hoje conhecidas. O dogma fundamental da termodinâmica é que a matéria não faz senão restituir a energia que se lhe empresta por um meio qualquer. Pois bem, nós vamos mostrar que, pelo contrário, a matéria é em si mesma um vasto reservatório de energia, ou por outros termos, não é senão energia concentrada, em forma estática, e que para produzir forças imensas basta que seus elementos se desassociem. As emissões radioativas são todas da mesma natureza, ou se produzam nos tubos de Crookes, ou provenham da irradiação de um metal sob a influência da luz, ou resultem de certos corpos muito ativos, tais como o uranium, o thorium e o radium. 278 Foi nos tubos de Crookes que começaram as belas experiências sobre a radioatividade. Crookes atribuía o fenômeno a um estado particular da matéria, que ele chamada estado radiante. O sábio inglês atribuía um papel considerável a este quarto estado da matéria, pape que foi adiado até à descoberta dos raios-X pelo famoso Roentgen. Antes, porém, de Crookes, já o físico alemão, Hittorf, havia descoberto os raios catódicos, que bem mereciam o nome do seu descobridor, como os raios X o de Roentgen. No dizer de Dastre, sucederam-se então as peripécias: “Com Crookes, em 1880, é a missão que triunfa: o raio catódico parece decididamente uma projeção material, uam trajetória balístia; com Lenard, em 1894, que faz penetrar os raios catódicos no vácuo, sem que este deixe de se manter, pensa-se em um substractum unimaterial, em radiações etéreas; J. J. Thomson, em 1897 volta à emissão das partículas, mas esses projéteis não são mais moléculas, átomos ou íons – último grau admitido até então da divisibilidade da matéria – são fragmentos de átomos, corpúsculos atômicos. Enfim, Villard, em 1899, precisa a natureza desses corpos, mostra-os formados de hidrogênio, considera-os corpúsculos ou fragmentos do átomo de hidrogênio. Físicos e químicos têm prestado a maior atenção a todos os fenômenos de que são teatro os tubos de Crookes, mas os detalhes em que eles entram e a s minuciosidades, de que nos dão conta, são sem 279 importância para o fim que temos em vista. Basta que saibamos que as emissões catódicas são retilíneas, desviáveis por um campo magnético e eletrizadas. Os raios catódicos produzem eletricidade sobre todos os corpos, gases ou matérias sólidas, que encontram. Sendo assim, os raios catódicos devem ser considerados como materiais, porque a matéria é o suporte obrigatório da eletricidade. Onde há eletricidade, há necessariamente matéria. O raio catódico é, portanto, formado por partículas materiais, emitidas com uma prodigiosa rapidez, que se aproxima da rapidez de emissão da luz. A prodigiosa rapidez, porém, dos eflúvios catódicos está em contraste com a maravilhosa pequenez de sua massa. Segundo os cálculos feitos, a partícula catódica representa a milésima parte do átomo de hidrogênio, o menor dos átomos conhecidos. O átomo, portanto, não é mais, como era para nossos antepassados, a mais elevada expressão do infinitamente pequeno, o último termo da divisão da matéria. Pelo contrário, os raios catódicos revelaram que os átomos constituem verdadeiros mundos, formados de miríades de “miliátomos”. “Cada átomo, diz Perrin, seria constituído de um lado, por uma ou muitas massas fortemente carregadas de eletricidade, espécie de sóis positivos; e de outro lado por uma multidão de corpúsculos, espécie de 280 planetas negativos, gravitando sob a ação das forças elétricas”. Deixando de parte os raios catódicos que não tem importância prática, tratemos dos raios-X, férteis em aplicações úteis sobretudo na medicina e na cirurgia. Imaginem-se os serviços prestados pelos raios de Roentgen à anatomia, normal ou patológica, desnudando interiormente os organismos, tornando os corpos transparentes em sua plenitude. Derivados dos raios catódicos, pois que tomam nascimento no ponto de encontro daqueles com as substâncias sólidas, os raios de Roentgen se distinguem nitidamente dos raios catódicos. São extraordinariamente penetrantes e não se deixam desviar por um campo magnetizado, enquanto os raios catódicos são sensíveis à influência magnética e possuem diminuta força de penetração. O raio-X atravessa um grosso volume como um raio de luz o vidro. Entretanto a proeza da natureza no primeiro caso não é maior do que no segundo, e se este no s não causa admiração, é por ser muito conhecido. Inflexível em seu trajeto, atravessando os obstáculos que encontra em sua passagem, o raio -X deve ser encarado como o símbolo da retidão. Conhecidas as propriedades dos raios catódicos e dos raios-X, vejamos que espécie de radiações emitem os corpos chamados radioativos. Estes emitem três espécies diversas de radiações. 281 As radiações a, carregadas de eletricidade positiva, são muito pouco penetrantes, e emit idas em grande número. As radiações b, são, como os raios catódicos, carregadas de eletricidade negativa, e como eles desviáveis por um campo magnetizado. São eles que produzem os efeitos fotográficos. As radiações c, insensíveis a um campo magnetizado, são completamente semelhantes aos raiosX, e como eles muito penetrantes. Os corpos radioativos possuem a propriedade de transmitir uma radioatividade, temporária, aos outros corpos, com os quais entram em contato. É a radio atividade induzida. Há, além disto, uma propriedade comum às três espécies de radiações, e consiste em que elas provocam a condensação do vapor, conforme a experiência muito simples de que fala Dastre: “O vapor escapa, invisível, do tubo estreito de um balão cheio de água fervendo. Aproxima -se uma ponta metálica fortemente eletrizada, do nde o fluido escapa sob forma de popa, que se poderia distinguir na escuridão. Desde que a aproximação tem lugar, vê -se o jato de vapor tomar o aspecto de bruma muito densa ou de espesso fumo”. Qual a causa da radioatividade? Donde provém a energia, que os corpos radioativos parecem gastar de um modo indefinido? Descoberta a radioatividade, como esta aparecesse principalmente sob a influência de algum agente 282 estranho, luz, calor, etc., entraram os físicos a indagar a que causas exteriores deve a energia intra-atômica sua origem. Admit indo como princípio fundamental que a matéria é indestrutível e que ela não faz senão restituir sob uma forma qualquer a energia que lhe foi fornecida, Despaux entende que a energia, que os corpos radioativos gastam incessantemente, é mantida pelo meio ambiente, como no caso de um litro de água, em que se lançasse um pedaço de gelo. A água resfriaria, mas o meio ambiente restituiria seu calor, e assim sucessivamente, de modo a poder dissolver milhares de quilos de gelo, sem que sua energia viesse a ser afetada. “Não viria ao espírito de ninguém, escreve Despaux, pretender que a energia despendida provenha do litro da água em experiência”. A água não foi senão o canal por onde se escoou a grande quantidade de gelo, por onde poderia ter-se escoado todo o gelo da terra. Um fenômeno particular parece justificar as vistas do cientista francês: é que certos corpos radio ativos, principalmente os metais se fastigam. O exemplo do litro da água vem ilustrar o caso. Se obrigarmos a água a esfriar muito gelo, ela se fatigará, e resfriando -se cada vez mais, sem que se lhe dê tempo para recuperar o calor perdido, acabará por não dissolver mais o gelo. De modo bem diverso pensa Gustavo Le Bon, para quem a radioatividade é filha da própria maté ria pela desassociação dos elementos atômicos. 283 Os átomos são reservatórios imensos de energia, e podem gastá-la em alta dose, sem pedirem emprestado qualquer auxílio ao mundo exterior. O átomo químico, caminhando de desassociação em desassociação até ao átomo do éter, toca as raias do imponderável, causa suprema de toda energia. A matéria, emitindo radioatividade, restitui ao éter imponderável a energia com que se articulou a si própria. Sim, do mesmo modo que a energia por si mesma se articula em matéria, a matéria por si mesma se desarticula em energia. Transformar a energia em matéria e a matéria em energia, sem que nada de exterior lhe seja fornecido, é o grande ciclo da evolução universal. Na transição entre o ponderável e o imponderável produz-se uma substância intermediária, que não é puramente matéria nem puramente éter, e que Max Abraham e Kaufmann, consideram átomo de eletricidade, elétron, como atualmente se denomina. No estado atual da ciência não se pode definir o elétron; mas com Gustavo Le Bon se pode dizer que ele constitui uma substância, que não é um sólido, nem um líquido, nem um gás, não pesa, atravessa sem dificuldade os obstáculos que encontra, não tem de comum com a matéria senão uma certa inércia, aproximando -se mais do éter que da matéria, e formando uma transição entre ambos. Se é difícil definir o elétron, as dificuldades crescem desproporcionadamente quando se procura definir o éter, realidade misteriosa, que enche o espaço, 284 serve de laço aos diversos mundos, penetra os corpos e unifica o universo. A razão é que imponderável, intangível, invisível, diferindo de tudo que nos é dado conhecer, foge a todo termo de comparação e deste modo escapa a toda definição. Entretanto, seu conhecimento se impõe, porque nenhum fenômeno se poderia conceber sem sua existência. Sem ele não haveria calor, nem luz, nem eletricidade, nem vida, nem pensamento. O universo seria o vácuo, o sol não agiria sobre nosso planeta, os corpos não gravitariam para o centro da terra, a idéia do homem não influiria no tempo nem no espaço. Deste modo, não admira que a concepção do éter remonte aos filósofos antigos. Aristóteles considera-o um “corpo animado de movimento eterno”, complemento necessário dos quatro elementos terrestres. Entre os modernos, Descartes exalta sua função no mecanismo do universo. Newton com seu olhar genial viu nele a causa da gravitação. “Eu procuro no éter a causa da gravitação”, escrevia a R. Baylo em 28 de fevereiro de 1678. Lesage durante toda sua vida fez da existência de um meio intercósmico o objeto de suas constantes investigações, e posto que imponderável, intangível, invisível, o éter sempre se figurou a Lamé mais 285 manifesto para o pensamento do que a matéria para os sentidos. Quando os tratados de física em relação ao éter falam em uma substância imponderável, intangível, invisível, acredita-se que eles figuram um gás leve, tênue, de uma densidade extraordinariamente rarefeita. Entretanto nada menos semelhante ao gás do que o éter. Os gases são muito compressíveis, ao passo que o éter quase não pode sê-lo. Além disto, o éter é de uma rigidez superior à do aço, a ponto de Kelvin considerá-lo um “sólido elástico a encher o espaço”. Entretanto, sua extrema rigidez está na proporção de sua diminuta densidade, para que não possa enfra quecer a translação dos astros no espaço. Por mais ininteligível que pareça a idéia de uma substância mais rígida do que o aço e ao mesmo tempo menos densa do que o gás, é preciso imaginá -la para se compreender a transmissão quase instantânea das vibrações luminosas bem como o movimento e atração dos corpos no espaço. Substância maravilhosa o éter: invisível, intangível, imponderável, entretanto conseguimos vibrá -lo e desviá-lo a vontade. Com um pedaço de vidro talhado de certo modo, é possível desviar o curso do éter luminoso. Se o éter não está sujeito às leis da gravitação, se não tem peso, se é uma substância imaterial, é preciso, porém, que seja u’a massa para que oponha resistência ao movimento. 286 Se assim não fosse, a propagação das vibrações luminosas seria instantânea, e nós sabemos que a transmissão da luz, embora muito rápida não se faz instantaneamente. Qual a constituição do éter? Concebendo-o como uma reunião ilimitada de átomos animados de um duplo movimento de translação e de rotação, a distinção entre a substância etérea e a substância material, estaria em que os elementos da primeira se moveriam sob as leis únicas de sua própria atividade, de seu automobilismo ingênito, ao passo que os elementos da segunda constituiriam agregados fixos, sujeitos às influências do meio. As concepções, uma segunda a qual os átomos devem ser considerados coisas distintas do meio que os cerca, outra segundo a qual eles são parte do meio em que se movem, não se excluem, e representaram uma e outra papel importante na hist ória da hipótese atômica do éter. Segundo a teoria da continuidade, não há par tículas constitutivas, descontinuas, chocando -se umas nas outras como bolas de bilhar; mas um meio único, sem solução de continuidade, meio em que se banham tanto o imperceptível átomo como a estrela de primeira grandeza. Imaginemos agora o universo assim constituído: de um lado u’a massa espalhada por toda parte, um todo homogêneo e contínuo, dotado de geral elasticidade, e de outra parte uma infinitude de corpúsculos descontínuos e heterogêneos, sujeitos à influência do meio, a 287 que estão sujeitos, e vejamos como as duas substâncias vão se portar. É a história da materialização progressiva do mundo, cujo repouso final seria sua forma perfeita e acabada, se fosse possível conceber um semelhante estado para a matéria. Físicos e químicos são levados cada vez mais a considerar o éter como o verdadeiro substrato do mundo e de todos os seres que nele vivem. Neste caso, como explicar a existência dos átomos, sujeitos à influência do meio etéreo? Kelvin, fundado em cálculos matemáticos, chegou à conclusão de que o éter não está sujeito às leis da gravitação, quer dizer, é imponderável; mas isto não significa que seja incompressível. “Nós não temos razão alguma, escreve o maior físico dos últimos tempos, para considerarmos o átomo como absolutamente incompressível, e assim podemos admitir que uma pressão suficiente pode condensá-lo”. Ignoramos inteiramente o mecanismo pelo qual na origem das idades se geraram no seio do éter os primeiros átomos; mas qualquer que tenha sido o processo, é claro que eles não podiam ter sido formados senão de éter, fonte primeira e termo último de todas as coisas. Condensando-se o éter em partículas atômicas, nem por isso essas deixam de ser frações do todo, ao mesmo tempo uno e múltiplo, elástico e concentrado, difuso e condensado, justamente como se dá no mundo 288 moral, em que se manifesta a unidade simultânea com a multiplicidade. A alma humana é, com efeito, uma e múltipla ao mesmo tempo: múltipla em relação à sensibilidade, inteligência e vontade, uma em relação ao Eu. Acreditamos que a existência dessa substância, ao mesmo tempo una e múltipla, homogênea e heterogênea, contínua e descontínua, como é o éter, explicará suficientemente a formação não somente do mundo cósmico mas ainda do mundo moral quer dizer, o duplo processus de materialização do Pater Omnipotens OEthers, de que inspiradamente fala Virgílio. O que é preciso é que no processo de materialização progressiva do éter, relativamente à formação do mundo físico, não se deixe de lado a evolução química, e em relação ao mundo moral não se esqueça a evolução coletiva, socionômica, ao lado da evolução individual, bionômica. Somente aplicando o quimismo à teoria da condensação física, poderemos compreender a formação do Cosmos; da mesma sorte somente associando a psicologia individual à social poderemos explicar a formação do mundo moral. Skwortzow em uma notável memória apresentada à seção astronômica do 10º Congresso dos naturalistas e dos Médicos Russos, reunido em Kiew, mostrou como os exclusivismos da teoria da condensação física, que ainda hoje impera no ensino, não se explica senão pelo fato de sua prioridade no tempo. 289 “Newton, Laplace, Kant, escreve o autor do notável trabalho “O Sol, a Terra, a Eletricidade”, estabeleceram suas concepções físico -mecânicas do Universo e da formação dos mundos em uma época, em que a química científica não existia ainda ou não se fazia senão nascer, em uma época em que ainda não se tratava de corpos simples e em que não s e falava senão dos elementos, como o ar, a água, a terra e o fogo. Hoje negligenciar a evolução química na formação dos mundos não é senão uma espécie de anacronismo, em favor do qual se torna menos profunda, sem lhe dar base suficientemente sólida, nossa concepção positiva atual do Universo”. Somente colocando-se no ponto de vista físico químico, é possível explicar a formação dos sóis e das estrelas, dos planetas e seus satélites. Kelvon escreveu em sua Mecânica Molecular que somente as explicações mecânicas são claras.Assim, se ele pode fazer uma idéia mecânica do objeto, ele o compreende; no caso contrário, não. É o vezo de todo especialista querer resolver todas as questões pelo prisma de sua especialidade. Mas como dar uma explicação puramente mecâ nica de todos os fenômenos cósmicos? Somente o quimismo de mãos dadas ao fisicismo constitui a integralidade do processus de materialização do Cosmos. Augusto Comte imaginou fases sucessivas de energia segundo fases sucessivas de evolução da matéria. 290 É assim que para ele o processus químico assenta sobre o processus físico, o processus biológico sobre o processus químico, e assim por diante. Tal é a base de seus sistema filosófico. O Pater Omnipotens Oethers, porém, uno em si e múltiplo em suas manifestações, é ao mesmo tempo mecânico, químico e até socionômico. Socionômico, sim, desde que de seu seio surgem partículas de átomo, distintas umas das outras, mas subordinadas a um só todo. Os fenômenos físicos, químicos, biológicos, psíquicos, socionômicos, são coevos, interdependentes, não existindo uns senão conjuntamente com os outros. O universo é um organismo, como o é nosso cor po, dotado de propriedades físicas, químicas, psíquicas, sociais, e o éter influi sobre nós como nós sobre ele. Posto que invisível, intangível, imponderável o éter, nós conseguimos vibrá-lo e desviá-lo à vontade. É sabido que com um pedaço de vidro talhado de um certo modo podemos desviar seu caminho e separar suas vibrações. Além do ponto de vista físico -químico, a evolução da matéria, ou a materialização da substância etérea, do Pater Omnipotens Oethers, opera-se sob o ponto de vista moral por meio do desenvolvimento do sistema nervoso e das instituições sociais. Na Memória, que apresentamos ao 3º Congresso Científico Latino-Americano, fizemos ver como o funcionamento do sistema nervoso corresponde ao desenvolvimento da atividade psíquica. 291 Estamos de acordo com Skwortzow quando sustenta que não se pode fazer abstração do quimismo, tendo-se de explicar em sua integralidade a evolução do Universo; mas não podemos concordar com ele, quando reduz toda a marcha de materialização da substância imponderável, que é o éter, a um processo puramente físico-químico. O processo de materialização se opera em todo o vasto campo da fenomenologia física, química, biológica, socionômica, e nos seres vivos ela vai desde a concepção até a morte. Somente com a morte começa para os organismos a desmaterialização da substância, a regressão para o éter. Bem se vê que, para nós, desmaterialização não significa o mesmo que espiritualização. Não admitimos a existência de duas substâncias: uma espiricual, outra material. Uma substância único é que se materializa progressivamente indo, por fases sucessivas, até ao cérebro humano, como se des materializa regressiva mente, voltando, por desassociações contínuas, ao primitivo estado de éter, princípio e fim de todas as coisas. Deste modo, o que chamamos espírito não se desenvolve senão com a materialização progressiva de si próprio, com a formação de novos sentidos, com o desenvolvimento do sistema nervoso. A sociabilidade, além de universal, comum a todos os seres – átomos, moléculas, células – deve ser 292 encarada como a primeira das manifestações da energia primordial. A comunhão existe, desde que o éter universal se diferencia em átomos, formando um todo ao mesmo tempo uno e múltiplo. Neste duplicidade fenomenal do éter, ao mesmo tempo uno e múltiplo, estático e dinâmico, julgamos repousar a fonte suprema da solidariedade que reina entre todos os seres, e faz do Unive rso um todo orgânico. Vimos que o éter é como a alma no sistema animista: dá-se um corpo, articula-se. Somente então surge a matéria, a qual conserva invariável sua massa através de todas as transformações até que começa seu desvanecimento pela desassociaç ão dos átomos. Os átomos, pois, da mesma sorte que as plantas e os animais, estão sujeitos à morte; mas uma morte bela, que se manifesta pela radioatividade. “Até uma época muito recente, escreve Gustavo Le Bon, a indestrutibilidade dos elementos, que comp õe a matéria, era considerada o dogma mais fundamental da química. E não era somente a observação vulgar que ensinava a permanência da matéria. Todas as ex periências da química não faziam senão confirmar esse dogma, pois, através de todas as transformaçõe s que a matéria pode sofrer, sua massa, medida por seu peso, permanecia invariável. Esta invariabilidade da massa havia acabado mesmo por se tornar o único caráter verdadeiramente irredutível da matéria, o único que 293 aparecia como independente das influências de meio a que ela está sujeita. As outras propriedades, sendo sempre condicionadas pelo meio, apareciam como simples relações”. Mas os fatos vieram demonstrar que os átomos podem desassociar-se em elementos imponderáveis, que, não sendo mais matéria, porquanto deixam de ter peso, forma e fixidez, não são, entretanto, éter. Que vão ser estas partículas? Ignoramô -lo completamente, sabendo apenas que com elas não podemos recompor a matéria. Guardarão sua individualidade ou voltarão definitivamente ao éter, espécie de Nirvana, dos budistas? (1 ) É possível que percam sua individualidade e voltem ao oceano sem margem do éter imponderável. Assim, as étapes da evolução universal seriam em primeiro lugar o éter imponderável; em segundo lugar a matéria, estado de energia condensada, em que a substância adquire peso, forma e fixidez; em terceiro lugar o império da radioatividade pela desarticulação do átomo em elementos intermediários entre a matéria e o éter; em quarto lugar novamente o éter imponderável, princípio e fim de todas as coisas. A idéia da indestrutibilidade dos átomos nasceu em uma época, em que os químicos não possuíam instrumento mais aperfeiçoado de investigação do que a balança. Mas na química moderna nem tudo pode ser resolvido por meio de balança, porque nem tudo é peso. 294 O peso – último reduto da matéria – desvanece-se em face da instabilidade e retrogradação do átomo, constatada pela experiência dos fatos. É a conclusão, a que chega William Crookes nos seguintes termos: “Esta fatal desassociação dos átomos parece universal.Ela se manifesta, quando esfregamos um bastão de vidro, quando o sol brilha, quando um corpo queima, quando a chuva cai, quando as vagas do oceano de despedaçam. E bem que a data do desvanecimento do Universo não possa ser calculada, devemos constatar que o mundo volta lentamente à bruma informe do aos primit ivo. Neste dia o relógio da eternidade terá marcado um ciclo”. Nós ignoramos como o éter se transforma em átomo, e como este volta ao primitivo estado de imponderabilidade; mas sob este ponto de vista a astro nomia, que não é outra coisa senão a matemática de mãos dadas à física, à química e à biologia, parece que nos reserva bem extraordinárias surpresas. Não há muitos anos temerário seria o espírito que ousasse imaginar que outras energias, além da gravitação e da luz, atravessam tão grandes distâncias como as que separam as estrelas; hoje, há se não põe em dúvida que a ação de tais agentes se exerce entre os sistemas planetários. Sirva de exemplo ilustrativo a relação que existe entre a aparição das manchas solares e as tempestades magnéticas da terra. 295 O fenômeno tem sua explicação no que de idêntico a corpúsculos, elétrons e diversas espécies de raios de produz nos laboratórios. Contra a teoria do éter levanta-se a objeção de que ela não esclarece senão o lado inanimado da natureza, deixando na obscuridade a matéria viva. Mas sem irmos ao extremo de atribuir, com Wogt e Haeckel, aos átomos uma faculdade de sentir e de querer, notaremos que a fisiologia não tem feito senão progressos depois que os fisiologistas deixaram de considerar a vida como alguma coisa de oposto às leis da física e da química, e passaram a fazer das propriedades físico -químicas dos seres vivos o objeto especial de seus estudos. Insistem, porém, em que uma profunda diferença existe entre os seres vivos e os corpos inanimados. Os primeiros têm um processus finalístico, os segundos puramente mecânicos. Com efeito, dizem, os seres vivos tendem a viver, e são organizados para a vida. Há um encaminhamento para um fim, um esforço para a vida que se pode dizer o completamento da luta pela vida. “As causas finais, escreve Charles Richet, ocupam um lugar importante nas ciências biológicas. Guardemo-nos contra as exagerações perigosas e pueris; mas reconheçamos francamente que tudo no ser vivo tem um destino; que todas as suas partes e todas as suas funções servem para proteção e propagação da parcela de vida que existe nele”. 296 Mas não será a consideração, aliás interessante da finalidade, que informará a teoria atômic a. Todas as coisas que tomam uma forma, cessam de ser amontoados confusos e passam a ser aglomerações homogêneas, obedecem a um plano. A configuração dos seres animados ou inanimados não se explica senão por um acordo das partes integrantes entre si e com o todo. O cristal impõe sua forma às partículas da solução em que foi mergulhado. É o nisos formativus, o archoeus faber, de Van Helmont, que põe em ordem os elementos dos corpos brutos ou vivos, e lhes dá harmonia e unidade. “A plasticidade, ensina Bordeau, igual à gravitação e à afinidade, é, da mesma sorte que estas forças a que ela se liga e de que sem dúvida procede, desconhecida em essência, mas por toda parte visível em seus efeitos”. A hipótese do desvanecimento da matéria pela desarticulação dos átomos em elementos intermediários entre o ponderável e o imponderável, pode não ser verdadeira, mesmo porque em rigor não há hipótese verdadeira nem falsa; porém será a mais fecunda, porque está mais de acordo com os fatos, e o valor de uma hipótese se deve medir não tanto pela sua exatidão quanto pela sua utilidade. (Transcrito de Novos Ensaios de Crítica, Recife, Tipografia JB Edelbrock, 1905, págs. 5 a 42). 297 NOTA (1) “O Nirvana, nota Hudry-Menos, não é a aniquilação, como se diz; mas um estado pelo qual os elementos, entre eles o substratum da consciência humana, passam para irem a outros destinos cósmicos”. É uma concepção tão grandiosa como a do Pater Omnipotens OEthers, de Virgílio. 298 PARTE II CRÍTICA POLÍTICO-SOCIAL 299 1. O ADULTÉRIO Ocupemo-nos com a tão velha e, entretanto, sempre nova questão da infidelidade conjugal. Antes de tudo examinemos de que espécie de adultério se trata, se do homem, se da mulher. A pergunta não vem de fora de propósito, porquanto nesta questão a parcialidade tem ido ao ponto de o homem cometer a falta e atribuir a culpa à mulher. É o que em sua forma tão brilhante de dizer dá a entender Alphonse Karr: “Quando a moça consegue apanhar na armadilha o pássaro raro, um marido, ela crê ser tudo, e, entretanto, se engana. Soube armar o laço, mas ninguém lhe ensinou a fazer uma gaiola, onde o pássaro possa viver, acostuma-se e comprazer-se. Falaime de gaiolas bem feitas, bem sortidas daquilo, de que o pássaro possa gostar”. Os juristas definem o adultério – a violação da fé conjugal, o crime que ofende a ordem da família em geral, e em particular o direito de o cônjuge ter relações sexuais com outros cônjuge, com exclusão de qualquer outra pessoa. (1 ) Entretanto, que vemos? Não somente juristas, mas filósofos e moralistas cheios de indulgência para o adultério do marido e ao mesmo tempo indignados contra a infidelidade da mulher. Há até quem esteja convencido de que o homem casado não ter amantes é dar mostra de pobreza física, ao passo que o menor desvio feminino é uma repugnante perversidade, 300 uma abominável depravação, que na família pode dar lugar à encarnação da ignonímia do marido. Alexandre Dumas, que fez do adultério o estofo de seus melhores dramas e romances, e discutiu a respeito as mais ousadas teses, se aconselha à mulher indignada das faltas do marido a resignação cristã, (2) incita o homem a matar a esposa infiel. (3 ) Por seu lado Hartmann, bastante filósofo para não fulminar as faltas femininas com a intolerância e se veridade dos moralistas, nem por isso deixa de acentuar a profunda diferença, que vai entre a infidelidade do homem e a da mulher. “Se o homem, escreve o autor da Filosofia do Inconsciente, tem tanta dificuldade em dominar suas inclinações adúlteras, isto não pode resultar senão de seu instinto poligâmico. Se u’a mulher, que tem em seu marido um homem completo, sente de sejos adúlteros, é o efeito de uma completa depravação ou de um amor levado à paixão. A diferença dos ins tintos, que sobre este ponto predominam no homem e na mulher, se explica facilmente. É preciso não esquecer que um homem no espaço de um ano pode facilmente com um suficiente número de mulheres procriar mais de cem filhos; com um número igual de homens u’a mulher não pode dar à luz no mesmo prazo senão um filho. O homem favorecido pela fortuna pode nutrir muitas mulheres e seus filhos. A mulher não pode habitar senão a casa de um só homem; sua situação e a de seus filhos seriam minguadas pela introdução de um rival. Enfim, só o homem, não a mulher, corre o risco, por efeito do adultério, de tomar filhos estranhos por seus, e de ver o 301 amor para com seus próprios filhos desenraizado de seu coração pelas suspeitas, que lhe inspiraria a fidelidade de sua esposa”. Assim, conclui Hartmann, “por toda parte, em que o homem é senhor absoluto, a poligamia domina de direito; onde o progresso dos costumes trouxe à mulher uma situação mais digna, a monogamia se tornou a única forma legal da união dos sexos, posto que, do lado dos homens, não seja na realidade rigorosamente respeitada em parte alguma do mundo”. (4) É costume nesta questão se recorrer às fórmulas absolutas dos filósofos e moralistas, ou se apelar para o convencionalismo teimoso da opinião corrente; mas, seguindo um outro rumo, limitar-nos-emos a pedir informações aos dados da etnografia e da história, e deste modo, parece-nos, evitaremos soluções tanto mais paradoxais quanto mais absolutas. O estudo dos fatos etnográficos e dos documentos históricos nos mostra desde a mais remota antiguidade, e entre as raças mais diver sas, o adultério punido com as mais severas penas, sendo que entre bárbaros e selvagens a severidade toca à crueldade. Como explicar o fato? Dar-se-á que aqueles povos tenham o senso de moralidade mais desenvolvido do que as nações civilizadas, em que a repressão do crime é menos rigorosa? O que nos ensina a lição dos fatos é que antes de chegar a um estado superior de civilização, a sociedade humana passou por uma fase, em que a mulher tem um valor exclusivamente econômico, e então o adultério vem a ser considerado um roubo à propriedade conjugal. 302 É o que se nota entre os aborígenes da Índia, entre os negros da África, entre os selvagens da América, entre os bárbaros da antiga Europa. Em Sumatra aquele que perdoa o amante da mulher, pode exigir -lhe cinqüenta piastras. O mesmo se dava no antigo Sião, onde o marido tinha o direito de matar os adúlteros ou lhes cobrar uma indenização. Os habitantes do Boutan têm por costume matar os acusados de adultério ou lhes impor uma multa. Na África, onde o castigo vai à atrocidade, é geral a prática de compensar o marido lesado. Nas costas da África Ocidental o marido traído pode pedir de indenização um certo número de escravas, e no interior, segundo o testemunho de Levingstone, tem o direito de vender a mulher. Os Bambaras confiscam os bens do sedutor, quanto este pertence à classe dos nobres. Entre os Mexicanos as relações ilícitas com uma escrava davam lugar a uma ação de perdas e danos. Quem ignora que os antigos Germanos impunham ao adultério, além de outras penas, a de compensação? Pelos estatutos de S. Luís o vassalo adúltero com a mulher do suzerano perdia o feudo, e o suzerano cúmplice de adultério com a mulher do vassalo a suzerania. As ordenações de Philippe de Valois, de Philippe o Belo, de João o Bom, de Carlos V, e de Carlos VI fulminavam o adultério com uma multa, que devia ser paga ao rei. (5 ) A prova de que o adultério entre os bárbaros e selvagens não tem sido punido senão a título de roubo à propriedade, está em que são justamente os povos que menos prezam o sentimento da honra, os que mais 303 atrozmente se vingam contra o ultraje à fidelidade conjugal. Na Nova Zelândia os maridos, ao mesmo tempo que matam os culpados de adultério, não hesitam em alugar e emprestar as mulheres. “Que o castigo visa o roubo, escreve Tito Lívio de Castro (6 ) e não um crime correspondente ao criado pela moral moderna, provamno esses mesmos povos, não prezando de modo algum a honra (à moderna), não tendo mesmo noção do que ela seja. O mesmo povo, que pune de morte o adultério, aluga ou vende a mulher, oferece-a a estrangeiros, não cogita da vida livre dessa mulher antes de ser a escrava de um homem. Em quase toda a África a mulher adúltera é punida com a morte; em quase toda a África os maridos alugam, emprestam e vendem as mulheres. O castigo do adultério em alguns países é ser o homem criminoso obrigado a pagar grandes quantias ou dar valiosos presentes ao marido queixoso”. Um fato muito curioso e instrutivo é que há povos em que o adultério é severamente punido, e, entretanto, os maridos têm por dever cívico ou religioso ceder as mulheres aos parentes, aos hóspedes, aos amigos e aos chefes espirituais. Os Pele-Vermelha, que mata a adúltera depois de arrancar-lhe o nariz e as orelhas, julga dever de hospitalidade fornecer a mulher ao estrangeiro. “Nada seria mais fácil, afirma Letourneau, do que enumerar um grande número de fatos do mesmo gênero, observados na Austrália, na África, na Polinésia, na Mongólia, um pouco por toda parte”. (7) Em Roma vemos o rígido 304 Catão de Utica ceder a mulher a Quintius Hortensius por motivo de civismo. “É tão honesto quanto útil à República, alegava Quintius Hortensius, que u’a mulher bela, na flor da idade, não fique inútil, deixando passar a idade de ter filhos. Liberalizando assim as mulheres ao cidad ão honesto, a virtude se multiplicaria e se tornaria comum nas famílias; por estas alianças a sociedade se fundiria, por assim dizer, em uma só família. Se Bibulus quer conservar absolutamente sua mulher, eu lha restituirei desde que ela se torne mãe”. Neste ponto Roma não se afastava uma linha da antiga Grécia. “Não era reprovável, atesta Plutarco, a um homem já de idade, casado com u’a moça, levar para casa um jovem agradável e de natureza gentil, a fim de dormir com sua mulher e fecundá-la com boa sement e, adotando depois o fruto que nascia, como se tivesse sido engendrado por ele mesmo. Também era lícito a um homem honesto, que estimava a mulher de outro por vê la discreta, pudica e tendo filhos belos, obter do marido consentimento para dormir com ela, a fim se semear, como em terra fecunda e fértil, belas e boas crianças, que por este modo vinham a ter relações de sangue e de parentesco com pessoas de bem e de honra”. (8 ) Atenas segue as pegadas de Esparta, e Solon não impõe às leis de Licurgo outra restrição senão a mulher escolher o amante entre os parentes mais próximos do marido. (9 ) Refere ainda Plutarco que, os costumes indo além das leis, Simon emprestou sua mulher a Calias, e Sócrates fez a mesma liberalidade a Alcebíades. 305 Por dever religioso as mulheres da Babilônia deviam se entregar, pelo menos uma vez na vida, aos estrangeiros, em homenagem à deusa Milita, e, segundo Estrabão, o mesmo culto era prestado entre os Armênios à deusa Anaites. (10 ) Enquanto a mulher não passa de um instrumento econômico, é claro, o adultério não pode ser punido senão como um roubo à propriedade conjugal; mas com a instituição do dote uma profunda transformação se opera na família. Deixando de ser comprada para comprar, pode-se dizer, um marido, a mulher se eleva da condição inferior de animal doméstico ou de escrava à situação opressora, em que os homens gemem como Menandro ou se indignam como Marcial. Por aí se vê a grande influência que exerce a propriedade sobre a família, como o destino da família está ligado à sorte da propriedade. A prática geral e quase constante entre certos povos, principalmente da Índia, de queimar as mulheres sobre a fogueira funerária dos maridos não tem outra explicação. É possível que vistas filosóficas e religiosas tenham influído sobre o desenvolvimento do suttee, terrível costume, que tanto impressionou os ingleses em Bengala; mas a causa direta e imediata não pode ser outra senão o direito de propriedade do marido sobre a mulher. A viúva era queimada ou enterrada com o cadáver do marido, como o eram as armas e mais objetos incorporados à pessoa do possuidor. 306 Referindo-se ao Taiti e à Austrália, observa Thulié que “na vida selvagem, como na vida civilizada, a influência da riqueza é fatal. Na ilha rica a mulher é um elemento de gozo, e matam-se-lhe os filhos, novas bocas, que podem diminuir o bem-estar. No país pobre a mulher é um instrumento de trabalho, é verdade; mas pode produzir filhos e os filhos, são uma riqueza, forças novas para a luta contra a avareza da terra”. A história comparada de Roma e da Grécia mostra claramente a influência da propriedade sobre as instituições sociais, e especialmente sobre a família. A natureza não era madrasta para o Grego. O ar e o solo da Hélade tinham a doçura das carícias e dos afagos maternos. “Nada é enorme, gigantesco naquele país; as coisas exteriores não têm dimensões desproporcionadas. opressoras. Ali não se vê coisa alguma semelhante a esses labirintos infinitos de vegetação pululante, e esses enormes rios, que os poetas indianos descrevem; coisa alguma de semelhante às planícies ilimitadas, ao oceano sem limites e selvagem da Europa do Norte. O olhar apanha sem dificuldades as formas dos objetos e deles recolhe uma imagem precisa. Tudo é mediano, proporcionado, fácil e nitidamente perceptível pelos sentidos. As montanhas de Corinto, da Ática, da Beócia, do Peloponeso, têm três ou quatro mil pés de altura; somente algumas vão até seis mil; é preciso ir ao extremo da Grécia, completamente ao norte, para encontrar um cimo semelhante aos dos Pirineus e dos Alpes; é o Olimpo onde foi feita a morada dos deuses. Os maiores rios, o Peneu e o Aquelos, têm no máximo 307 trinta ou quarenta léguas de curso; os outros não são ordinariamente senão regatos e levadas. O próprio mar, tão terrível e ameaçador do norte, é aqui uma espécie de lago”. (11) Não tendo senão que abrir os olhos para admirar apoteoses de luz e de cor das pedras preciosas, os compatriotas de Anacreonte amavam seus bosques, suas fontes, suas montanhas com sentimento de ternura filial. Tão sóbrio quanto curioso, tão sereno quanto inventivo, o engenhoso filho da Grécia se preocupava mais com gozos do espírito do que com as necessidades da vida. Assim, não é para admirar que, adorando mais o belo do que o útil, mais embriagado de eloqüência do que de fortuna, o grego abandonasse a riqueza pela arte, pela política e pelo amor, esquecesse o gineceu pelo teatro, pelo ginásio e pela praça pública. Daí o Estado intervindo, justamente como aconselham os modernos socialistas, nas relações de família para regula r a capacidade e elevar a dignidade feminina. “Seja solteira, esposa ou viúva, diz Thulié, (12 ) o Estado a protege contra seu pai, contra seu marido, contra seu tutor. Todos os cidadãos são seus defensores perante a lei; é ainda muito fraca para sustentar por si mesma seus direitos e acusar aquele que lhe causa algum dano; mas tem por apoio todo o mundo; o primeiro cidadão, que aparece, pode ser seu campeão. Quanto o pai, o marido ou o tutor administra mal os seus bens, quando por eles é maltratada, todo cidadão pode tomar a si sua defesa, citar o culpado perante os tribunais e fazer condená -lo 308 ou torná-lo interdito”. O romano, porém, ainda mais opressor e tirano do que ocioso e superficial, não faz senão implantar na família sua idéia predominante de que a base de toda a ordem, quer no mundo físico, quer no social, é a força. Exercer onipotência sobre os seres animados e inanimados, sobre as pessoas e as coisas, tal é a preocupação desse povo, que não deixou de dominar pelas armas senão para oprimir consciênc ias. Neste ponto o direito romano é de uma transparência cristalina, deixando ver nitidamente, que não há diferença entre o poder marital e o direito de propriedade. “Sobre a mulher, como sobre as coisas, a posse ou o uso contínuo durante um ano faz adquir ir o direito de propriedade. Aplicada às coisas, esta posse contínua se chama usucapião; aplicado à mulher, chama se usus”. (13 ) A história do casamento romano, sob as três formas do usus, da coemptio e da confarreatio, conferindo todas elas ao marido a manus, é a história mesma da força e da violência da família. Mas se o pater-familias é onipotente, enquanto a mulher e os filhos são equiparados às coisas em geral, sua terrível autoridade se desmorona completamente no dia em que permite que eles possuam e possam dispor de seus bens. “O pai, ensina-nos Thulié, (14 ) em redor do qual tudo gravitava, perde seus direitos tirânicos; o filho é o único proprietário do que soube ganhar; pode gozar exclusivamente de sua fortuna, usar dela à sua vontade, pode mesmo dá-la depois de sua morte. Não somente o pai deve um dote à filha, mas até não pode se opor ao 309 seu casamento, ou então o tribunal o condena. É uma revolução completa, que teria parecido monstruosa a um antigo romano”. Em relação à influência da propriedade sobre a organização da família, que de mais exato e engenhoso se poderia dizer que o que escreveu E. Legouvé na História Moral das Mulheres? “A primeira questão, que se nos apresenta, lê-se no delicado livro, é a questão dos bens. Este único ponto, com efeit o, resume por um lado todos os outros; porque nada assinala tão vivamente a subordinação moral quanto a dependência pecuniária. Como pune a lei o pródigo? Tirando -lhe a administração de seus bens. Como encadeia a lei o incapaz? Tirando lhe a administração de seus bens. Como domina a lei o menor? Tirando-lhe a administração de seus bens. Não poder possuir é ser assimilado ao morto civil e moralmente: porque possuir é usar, é dar, é socorrer, é agir, é viver. As questões de delicadeza e dignidade se acham, portanto, estreitamente ligadas às questões de dinheiro, e entregar ao marido a fortuna da mulher é condená -la a uma eterna minoridade, e torná-lo senhor absoluto das ações e quase da alma de sua companheira”. (15 ) O homem primitivo, não tendo consciência de sua individualidade, vive escravizado ao grupo, de que faz parte, e ai! daquele que dele se afasta, porque então não será mais admitido na horda. O selvagem, escreve o autor da Origem e Evolução da Propriedade, é assaltado por tantos perigos reais, e ator mentado por tantos receios imaginários, que não pode existir no estado isolado, não pode mesmo conceber tal idéia. Expulsá -lo 310 de sua gens, de sua horda, equivale a condená-lo à pena de morte: entre os Gregos e os Semitas pré-históricos, assim como entre todos os bárbaros, o assassinato cometido contra um dos membros da tribo não era punido senão com o exílio. Orestes, depois do assassinato de sua mãe, e Caim, depois do seu irmão, foram simplesmente obrigados a deixar o país. Em civilizações muito avançadas, como as da Grécia e da Itália histórica, o exílio continua a ser a pena mais temida. O exilado, diz o poeta grego Teógnis, não tem amigos nem companheiros fiéis: é o que há de mais duro no exílio. Ser separado dos seus, levar uma existência solitária, aterra o homem primitivo, habituado a viver em bando. (1 6) É o mesmo que se dá entre certos animais: o elefante criminoso, por exemplo, uma vez expulso do bando, não pode mais entrar para ele. O mais interessante é que o isolamento, a que é condenado, torna o animal mau, furioso. Assim, o Rogue, conforme observa Lacassagne, está sempre disposto a atacar o homem. (17 ) Completamente identificado com a horda, de que faz parte, o homem primitivo não tem idéia da propriedade. O Fogueano, que encontra uma baleia, ainda que esteja morrendo de fome, não a devora, vai chamar a gens. É rara a tribo selvagem em que a caça e a pesca não se façam em comum, e quanto este costume desaparece, o comunismo primitivo surge sob a forma do comensalismo. 311 Só muito tarde é que o selvagem consegue objetivar sua individualidade nos objetos exteriores, e deste modo ter a idéia de propriedade. Ainda assim, a propriedade se limita aos objetos, por assim dizer, incorporados à pessoa, tais como os ornamentos dos lábios e das orelhas, e mais tar de aos instrumentos de caça e de pesca. O uso dos banquetes públicos na Grécia e em Roma, de que dão testemunho Xenofonte, Heráclito, Aristóteles e Diniz de Halicarnaso, é uma sobrevivência dos tempos primitivos: a sissítia dos gregos e o copo dos romanos, circulando pelos convivas, não passam de restos do comensalismo selvagem. Deste modo se compreende como entre os selvagens do período comunista a hospitalidade não seja uma virtude muito rara. Não conhecendo o meu e o teu, que razão haveria para que eles não exercessem a hospitalidade em larga escala? Notando que entre muitos poucos antigos imperava o parentesco pelo lado materno, procurava Bachofen explicar o fenômeno pela supremacia das mulheres sobre os homens na antiguidade. Mais tarde, Mc Lenan, constatando o mesmo fato, o considerava uma resultante da incerteza paterna, ou melhor, da promiscuidade primitiva. “A relação entre essas duas coisas – a paternidade incerta e o parentesco somente pelas mulheres – parece tão necessária e ser de tal sorte uma relação de causa e efeito, que podemos com toda confiança supor uma onde achamos a outra”. 312 Mas, se por um lado depois da crítica profunda de Westermack seria impossível atribuir a metrocracia à incerteza da paternidade, por outro lado seria mostrar -se pouco exigente satisfazer-se com a explicação de Sumner Maine, isto é, que a paternidade é uma questão de indução em relação à maternidade, que é uma questão de observação. A razão da metrocracia entre vários povos primitivos ou selvagens nos parece não ser out ra senão a influência da propriedade sobre a organização da família. Artur Orlando princípio a mulher nada possui; pelo contrário, ela é que pertence à tribo. Não é senão quando a horda deixa de erras pelos campos e pelas margens dos rios em busca de caça e de pesca, não é senão quando a gens inicia um período de agricultura rudimentar, não é senão quando se estabelece e se acentua pela diferença de ocupações a separação dos instrumentos de guerra para o homem e dos utensílios domésticos para a mulher, que a família pode surgir sob a forma matriarcal. Desde que o selvagem, preocupado com a necessidade da caça e da guerra, deixa à mulher o resto das ocupações e a propriedade dos objetos ade quados ao seu gênero especial de trabalho, compreende se facilmente que a mãe de família se torne soberana, despoina, como diziam os lacedemônios. Deste modo se pode afirmar que foi a divisão do trabalho, a diferenciação das ocupações, a distinção dos bens incorporados à pessoa do homem ou da mulher, que fracionou a família comunista, a gens, em famílias matriarcais ou patriarcais. Assim seria demasiadamente ousado afirmar que por toda parte o parentesco pelas 313 mulheres precedeu o parentesco pelos homens, como seria escurecer a verdade negar que é considerável o número dos povos selvagens, quer antigos, quer mo dernos, entre os quais a descendência e a herança não seguem exclusivamente o lado materno. Onde predomina a propriedade materna, a gens se divide em famílias matriarcais; onde impera a propriedade paterna, a gens se fraciona em famílias patriarcais. Em relação ao nome, o filho herdava o nome materno, como herdava qualquer objeto. Entre os selvagens o nome é o mais precioso bem. A respeito dis indígenas da Austrália Ocidental nota George Grey que a obrigação do nome de família é muito mais forte do que a do sangue. O nome é menos uma questão de parentesco do que de propriedade. Assim se explica que em alguns povos se dê a herança do nome como se dá a herança dos objetos, pela influência, não diremos exclusiva, mas preponderante, da mulher. Sem atribuirmos a família matriarcal a incerteza da paternidade resultante da promiscuidade primitiva, como quer Lc Lenan, ou à simples supremacia feminina, segundo entende Bachofen, temos como certo que a metrocracia se explica pela influência da propriedade sobre a organização da família. “É um fato digno de nota, escreve Westermarck, que onde os dois costumes – a mulher recebendo o homem em sua cabana e o homem lavando a mulher para a sua cabana – se produzem lado a lado, no mesmo povo, a linha de descendência no primeiro caso é feminina, e no segundo masculina”. Entre os Tuaregs, onde impera o “direito materno”, onde 314 “o filho segue o sangue da mãe, onde o filho de um pai escravo ou servo e de uma mãe nobre é nobre”, a mulher, principalmente a mulher rica e nobre, é “senhora absoluta de sua fortuna, de seus atos, dos filhos, que lhe pertencem e que trazem seu nome”. (18) Letourneau, por sua vez, lembra que a influência da dama Tuareg é devida à riqueza. Em That, por exemplo, quase toda a propriedade territorial está nas mãos das mulheres. Mas assim como a gens se divide em famílias matriarcais, ou patriarcais, segundo a propriedade comum se fragmenta em propriedade coletiva, do mesmo modo o matriarcado ou o patriarcado assume a forma da família moderna, conforme o coletivismo se fraciona no individualismo burguês, servindo de termo de transição a propriedade feudal. Quando os bárbaros invadiram o Império Romano, não se limitaram a saquear as cidades; deixando os vencidos viverem segundo suas leis e tradições, todavia lhes tomaram as terras e as distribuíram entre suas hordas. Não o fizeram, porém, arbitrariamente, e sim de acordo com seus usos e costumes. Cada tribo recebia para si uma ou muitas aldeias, que eram divididas entre suas gentes. Estas aldeias ocupadas pelas gentes de cada tribo formavam uma centena, muitas centenas um condado, muitos condados um ducado. A terra que não tocada à aldeia, competia, ao condado, a que não cabia ao condado, pertencia ao ducado. A propriedade territoria l era, portanto, comum. De possa das terras conquistadas, as tribos bárbaras foram perdendo seus hábitos 315 guerreiros e dedicando-se à cultura da terra. A proporção, porém, que os vencedores cultivavam o solo conquistado, novas ondas de bárbaros invadiam os terrenos cultivados, pilhavam, escravizavam, e massa cravam. Para se defenderem contra a irrupção constante dos invasores, os bárbaros, então possuidores dos campos, fortificavam suas aldeias e elegiam um chefe encarregado da defesa. A princípio esses che fes eleitos, além de executores das deliberações das assembléias populares, eram apenas encarregados da percepção dos impostos e do desempenho do serviço militar sem direito algum territorial. “As leis do país de Gales, dis Paulo Lafargue, coligidas em 940 por ordem do rei Hoel-Da e publicadas em 1841 por A. Owen, indicam o modo de eleição, as qualidades e as funções destes chefes, que são as mesmas, pouco mais ou menos, em todas as tribos bárbaras. O chefe da gens ou do clã era eleito por todos os chefes de família, que tinham mulheres e filhos legítimos; exercia seu poder durante a vida; entre outros povos suas funções eram temporárias; em todo caso, porém, podia ser destituído. Era preciso que estivesse sempre pronto a “falar em favor de seus parentes e q ue fosse escutado; que estivesse sempre pronto a se bater por seus parentes e que fosse temido; que estivesse sempre disposto a ser o garantidor de seus parentes e que fosse aceito”. Quando pronunciava sentença, fazia se assistir pelos sete velhos de mais idade; tinha sob suas ordens um vingador (avener) encarregado de executar as vinganças, porque a justiça não era então 316 senão a lei de talião, senão a vingança, golpe por golpe, ferida por ferida, dano por dano. Ao primeiro grito de alerta, quando se tinha proferido o clamor – o haro dos Normandos, o biafor dos Bascos – todos os habitantes deviam sair em armas de suas casas e se por sob suas ordens: era chefe militar e todos lhe deviam obediência e fidelidade. Aquele que não correspondia ao apelo, era condenado a multa. Os habitantes eram organizados militarmente; assim em Tarbes eram agrupados por dezenas, tendo a sua frente um dizainier, encarregado de velar para que todo o mundo estivesse armado e para que as armas estivessem em bom estado”. (1 9) Mas ao lado desses chefes de aldeia eleitos havia chefes militares colocados pelos vencedores nos postos estratégicos. A ocupação desses postos foi a princípio temporária, depois perpétua, e acabou por ser hereditária. Substituindo os chefes eleitos, os donatários dos postos militares empregaram todos seus esforços para converterem os benefícios em verdadeiros patrimônios. Se, porém, compreende-se facilmente o beneficiário militar transformando -se em senhor feudal, o mesmo não sucede com o chefe eleito pela comunidade. Não reinava entre os membros da comunidade o mais vivo sentimento da igualdade? Pelos costumes e tradições esta igualmente não tendia a persistir? Realmente, sob o regimen feudal não se encontram traços desta primit iva igualdade? Verdade é que, segundo nota Lafargue, o fato de serem escolhidos sempre os chefes da comunidade na mesma família acabou por constituir um privilégio, que 317 se transformou em direito hereditário; mas isto não explica como se operou a incorporação da propriedade territorial à pessoa do chefe da comunidade. A razão afigura-se-nos ser que embora reinasse nas comunidades da aldeia o mas intenso sentimento de igualdade, não obstante elas concediam nas divisões agrárias a seus chefes eleitos uma parte maior do que a que cabia aos demais membros por ocasião de conquista sobre as outras comunidades. De posse de tais porções de terras, os chefes de comunidade, tendo além disto diante dos olhos o exemplo vivo dos beneficiários nos postos militares, puderam isolá-las do patrimônio comum, a transformá-las em propriedade feudal. Assim, a transformação do coletivismo de aldeia em propriedade feudal obedeceu a uma dupla corrente de influência. Em primeiro lugar foi o ardor quereloso das próprias co munidades, dando em resultado o chefe da comunidade vencedora se apropriar de uma grande parte das terras anexadas ao patrimônio comum; em segundo lugar foi a força sugestiva dos benefícios militares, em que os chefes impunham às comunidades vencidas o sistema individualista do Direito Romano. Assistindo à gênese da propriedade feudal, vê-se que haveria grande erro em confundi-la com a propriedade romana, quer móvel, quer imóvel. Assim, o escravo da idade média não é empregado no serviço doméstico. Este pertence à dona da casa. O escravo é simples cultivador do solo conquistado. “As leis bárbaras, afirma Laurente, (2 0) mostram os escravos em sua maior parte empregados no trabalho da terra; esses 318 escravos se vendem e se compram com a propriedade que cultivam, são parte integrante do solo”. Para mostrar a grande diferença, que vai entre o escravo romano e o da idade média, basta lembrar que entre os Lombardos era permitido que o escravo, surpreendendo sua mulher em adultério, matasse os culpados, ao passo que os Romanos não compreendiam o casamento dos escravos, inventando para ele uma palavra ignóbil. Depois da invasão dos bárbaros a grande propriedade territorial sob a influência das concessões beneficiarias, das conquistas e das usurpações, ainda mais se alargou e se estendeu, mas sem perder seus caracteres especiais, que não deixam confundi-la com a propriedade romana. A propriedade feudal estava sujeita a uma organização hierárquica, que de nenhuma sorte se concilia com a plena in re potestas, com o direito de usar e abusar dos Romanos. “A terra, assevera Lafargue, não se compra nem se vende, é gravada de servidões, e se transmite segundo costumes a leis, que o proprietário não pode infringir; o proprietário é obrigado a cumprir deveres para com seus superiores e inferiores hierárquicos. O feudalismo em sua essência é um contrato de serviços recíprocos: o barão não possui uma terra e direitos sobre o trabalho e colheita de seus servos e vassalos senão sob condição de prestar serviços a seu superiores e inferiores. O senhor feudal, recebendo “a fidelidade e a ho menagem” de seu vassalo, “se obrigava a protegê-lo para com todos contra todos, e a socorrê -lo, em todas as circunstâncias”; o vassalo, para assegurar a 319 si esta proteção, devia acompanhar na guerra seu senhor e lhe pagar certas prestações em serviços pesso ais e em dízimos sobre as suas searas e animais domésticos. O barão para achar, em caso de necessidade, auxílio e apoio, se ligava a um senhor mais poderoso, que, por sua vez, é vassalo de um dos grandes feudatários do rei ou do imperador”. Mais tarde, o individualismo burguês despedaçou esta vasta organização recíproca de direitos e deveres territoriais; mas não em benefício dos proletários, como fazem acreditar certos apologistas da revolução fran cesa. A revolução de 1789, nem arrancou o solo das mãos dos grandes proprietários, nem melhorou a condição dos camponeses; pelo contrário, não serviu senão para que os burgueses aumentassem seus domínios à custa dos bens dos emigrados e do clero, e para que a grande classe dos enjeitados da fortuna fosse privada de seus direitos sobre as terras dos nobres. Precisamos, porém, antes de passarmos adiante, tornar bem acentuada a distinção entre a propriedade antiga e a propriedade moderna, às quais serviu de termo de transição a propriedade moderna, às quais serviu de termo de transição a feudal. O que caracteriza a civilização romana, sob o ponto de vista econômico, é que ela desconheceu a riqueza móvel. “O solo, descreve Fustel de Coulan ges, (21 ) se conservou sempre nesta sociedade a fonte principal e, sobretudo, a medida única da fortuna. Não é que houvesse comércio, indústria, profissões ao mesmo tempo honrosas e lucrativas; porém nunca saiu de tudo 320 isto uma classe poderosa como a que se vê nos Estados modernos. O comerciante, o banqueiro, o industrial, podiam ter individualmente uma existência opulenta; não constituíam como em nossos dias uma força social; não formavam um grupo de interesses e um feixe de valores, com o qual o Estado devesse contar, e que pudesse exercer alguma ação sobre a natureza do governo. É por este motivo que os povos submetidos ao império romano tiveram outras necessidades que não as nossas, e nunca reclamaram as instituições, que se tornaram necessárias às nações modernas”. A importância do solo era decisiva, pois dele vinha não somente riqueza, mas ainda consideração. Quem não possuía terra, valia pouco. Aos proprietários do solo competiam as principais funções públicas, a magistratura, o sacerdócio, enfim tudo que, no dizer de Fustel de Coulanges, dava dignidade ou brilho à vida. Os senadores, a mais privilegiada classe do Império, não eram escolhidos senão entre os proprietários. De tal sorte a riqueza do solo influía sobre a alta dignidade de senador, que esta se perdia, quando aquela desaparecia. Era a terra que constituía a mola principal, o pivô sobre que girava todo mecanismo do mundo romano. “Esta ausência quase completa do que chamamos hoje os capitais ou os valores móveis, e esta importância única do solo, este apagamento da população industrial e urbana e esta supremacia incontest ada da classe dos proprietários, são os fatos que dominam e regem o estado social daquele tempo”. 321 Bem diferente é a forma principal da propriedade moderna. A classe média fabricou, comerciou, e, não satisfeita com o produto de seu trabalho, procurou emprego para sua fortuna, para sua riqueza, e conseguiu, apoderando-se dos instrumentos de trabalho. Deste modo começou a preponderância da propriedade capitalista, a exploração do operário pelo patrão. Desde que são abolidos os privilégios ligados à terra e os utensílios passam das mãos do artífice para as do capitalista, este se torna o supremo árbitro da condição do proletariado, a ponto de Carlos Marx poder dizer com razão “que a acumulação da riqueza em um dos pólos da sociedade marcha com o mesmo passo que a acumulação, no outro pólo, da miséria, da sujeição e da degradação moral da classe, que, com o seu produto, faz nascer o capital”. Com a invasão do império romano pelos bárbaros, deu-se uma verdadeira fusão de costumes e instituições. O que então se realizou, não foi simplesmente uma amálgama de legislações, foi uma profunda penetração de tradições e conceitos econômicos, artísticos, morais e políticos. O mais curioso é que do choque das relações entre vencedores e vencidos resultou uma sorte de retrogradação do presente, uma espécie de ressurreição do passado. Com o mundium dos Germanos, e especialmente dos Lombardos, não volta a mulher à sua antiga condição de escrava? Absorvida por uma ferrenha e constante tutela, não deixa de ser senhora de sua pessoa e bens? Não é o tutor que desfruta e herda os bens da 322 pupila? Não é ele quem estipula o dote, e anula o casamento, quando não recebe a quantia convencioada? A absorção feminina não vai ao ponto de ser o homem o responsável pelas faltas e crimes da mulher? Não vem fora de propósito notar que perante os Germanos e os Escandinavos o dote passava como condição essencial para a validade do casamento. Primitivamente, tanto os gregos como os romanos consideravam toda a união contraída sem dote antes um concubinato do que um verdadeiro casamento. Em alguns países da África é nulo o casamento em que a família da noiva não recebe o preço desta. Entre os karocks são tidos na conta de bastardos os filhos da mulher casada, cujo marido não paga a importância, por que a compra. No seio do convulsionamento, que marca uma era nova na história da civilização, a mulher cai de novo sob o poder brutal e cruel do homem, e então ressurgem as mais odiosas e abomináveis penas contra o adultério. Como se não bastasse a tortura, junto u-se a ignonímia. Antes de ser supliciada, a adúltera era conduzida nua pelas ruas da cidade, tendo muitas vezes o nariz, as orelhas e os lábios arrancados. Também não era raro que a atirassem aos circos para lutar com os touros bravios. Além de tudo isto, havia a prática infamante de encerrá-la em um cubículo, e assim expôla indefesa à volúpia dos transeuntes. Que fazia o cristianismo conquistando as cons ciências, enquanto os bárbaros conquistavam o solo? É bem conhecida a linguagem malsoante dos padres da igreja contra a mulher. Para eles, a mulher é uma 323 natureza impura e diabólica. São Paulo, Orígenes, Tertuliano, Santo Agostinho, todos eles aconselham o celibato. Além das apóstrofes pungentes de S. Jerônimo, Santo Anastácio, S. João Crisóstomo, Santo I nácio e S. Boaventura, contra a influência perniciosa da mulher, não vemos o próprio Cristo dizer a Maria, o tipo ideal de virtude: “Mulher, que há de comum entre nós?” Entretanto, não se pode negar que o cristianismo tivesse concorrido para a dignificação da mulher; mas fê-lo indiretamente por suas vistas e aspirações socialistas, pregando a glorificação dos pobres e dos humildes. Para S. Basílio o rico é um ladrão, S. João Crisóstomo entende que todos os bens devem ser comuns. S. Jerônimo sustenta que a o pulência é sempre produto de um roubo. Santo Ambrósio afirma que foi a usurpação e não a natureza, que estabeleceu a propriedade particular. S. Clemente reproduz quase textualmente o pensamento de Santo Ambrósio. Jesus, o redentor dos enjeitados da fortuna, não colocou seu reinado fora deste mundo senão como um protesto contra a apropriação da terra. A invasão dos bárbaros trouxe o retrogradamento social; mas o regresso não tocou à dissolução. A sociedade não recuará senão para marchar depois com maior firmeza e segurança, A involução tornar -se-á o ponto de partida de transformações e desenvolvimentos, que a antiguidade não conheceu. Dado o desmembramento político, o Império se transformará em nações, e o despedaçamento da unidade romana influirá sobre a organização da propriedade e da família mas, voltando a 324 formas relativamente rudimentares, as duas instituições não ficarão estacionárias, revestirão modalidades, que não se confundirão com os tipos gregos e romanos. Por uma feliz transformação, o mundium, o morgengabe e o osculum se converterão em donaire, e, mais tarde, em regimen da comunhão, principalmente na Dinamarca, na Alemanha, na Síça, na Holanda e em Portugal. Carlos Magno, concentrando em suas mãos todos os poderes públicos e absorvendo todos os d ireitos privados, sujeitará a mulher à tutela do Estado; mas em compensação as comunas, levantando -se contra os senhores feudais, garantirão tanto às filhas da nobreza como às do povo o gozo de seus bens. Liberta da tutela eterna, herdando igualmente com seus irmãos, participando dos bens adquiridos na constância do matrimônio, podendo na qualidade de herdeira de um feudo presidir os juízes civis e criminais, cunhar moeda, levantar tropas, outorgar cartas, a mulher se torna soberana, e a galanteria suprema razão de Estado. Não impera somente pelas suas graças e encantos, domina por privilégios ligados à propriedade territorial. Era impossível que a mulher, unindo à força da beleza o domínio da terra, não se constituísse senhora absoluta de seus feudatários, vassalos e clientes. É preciso não esquecer que os clientes embora não fossem escravos, todavia dependiam em todas as coisas da vontade daquele, cujas terras ocupava. Sendo assim, é bem de presumir que esta subordinação entrasse em grande dose para a formação do sentimento cava325 lheiresco, que faz da fidelidade uma questão de honra e da cortesia um objeto de culto. A supremacia feminina é devida a outras causas que não exclusivamente as influências etnográficas. Em mais de um povo o homem tem sido escravo d a mulher. Na Grécia vemos na lenda Hércules fazer garbo de não falar senão de joelhos aos pés de Onfália. “Em Roma, escreve Thuilé, (22) a mulher recebeu a liberdade, usou dela até a licença mais abominável, se lançou de olhos fechados nas intrigas, nas aventuras; não somente se chafurdou em todas as devassidões, mas teve todas as ambições e se entregou a todos os crimes para satisfazê las. As mulheres conseguiram um poder sem limites, destruíram tronos, fizeram e desfizeram imperadores, misturaram o amor co m a política, transformaram em senhores e em ministros seus amantes, quem quer que eles fossem, os mais vulgares, os mais imundos. Ho mens do nada, histriões, dançarinos, libertos, escravos, são elevados às mais altas posições do Estado pelo capricho de suas poderosas amantes; é o reinado da paixão bestial, é a dominação da mais baixa sensua lidade, e se é grande homem somente porque se é solidamente organizado”. Se a mulher do império romano é mais volutuosa e corrupta, a mulher da cavalaria, dos tribunais do amor, da Fronda, é mais ousada e aventurosa. Nesses velos tempos a dominação feminina não conhece termos; o sexo fraco é de uma energia e de uma audácia sem limites. É a paixão romanesca que inspira as mais ilustres empresas, os mais ousados cometimentos. No 326 salão a suprema direção pertence à mulher. Aí ela se insurge contra o rei, contra a igreja, contra o próprio Aristóteles. A conversação tem um tom picante, nada discreto e reservado. Mme, de Sévigné, censurada por ter posto a maior parte de sua fortuna sobre a cabeça do marido, responde desabusadamente: “uma vez que não lhe ponho sobre a cabeça senão isto, paciência”. Quando a galanteria se constitui a norma de conduta, o móvel principal, a razão suprema de todas as ações, surge uma devoção desregrada e tortuosa, uma moral desabusada e licenciosa, uma política, que é um embróglio, de rivalidades e ambições, de astúcias e dissimulações. Armauld d’Andilly, o grande convertedor de damas, leva seu zelo religioso a ponto de beijar a boca de cada extraviada durante um bom quarto de hora. O abade Fouquet ameaça de retomar a Mme. de Chatillon todos os vestidos, móveis, jóias, que lhe havia dado. Mlle. de Coligny recebe todas as tardes seu namorado disfarçado em padre. Mme. de Rohan cria e educa, às escondidas do marido, u seu filho adulterino, e mais tarde pretende reconhecê-lo como herdeiro de seu nome e bens. Referindo-se a Mme. de Montabason, escreve Retz que nunca viu uma pessoa que no vício conservasse tão pouco respeito à virtude, e em relação a Mme. de Chevreuse diz que ela não conhecia senão um dever – o de agradar o amante. São costumes que fazem lembrar os famosos tempos da Grécia, em que as Laís, as Frinés e as Aspásias dirigem artistas, filósofos e estadistas. Na própria guerra é a dama que guia o c avalheiro, 327 despertando-lhe coragem, clemência e generosidade. M. de Chatillon não vai ao combate senão levando no braço a jarreteira de sua amante. O duque de Loraine concede a vida e a liberdade a dois cavalheiros franceses sob a condição de irem beijar as fímbrias do vestido de Mlle. de Hautefort. A mulher, porém, não se contenta com inspirar aventuras, ela quer representar o primeiro papel na cena da guerra. Presos seus dois irmãos e seu marido. Mme. de Longueville se faz porta-bandeira da revolta. Ameaçada de ser detida no castelo da cidade, depois de ter tentado levantar Dieppe, foge à noite, tomando um barco; mas uma grande tempestade a atira sobre o mar, dio qual não consegue se salvar senão com grandes dificuldades. Ao ganhar a margem, erra durante o resto da noite em busca de um asilo. Conseguindo embarcar em um navio, no qual passa como um cavalheiro que havia se batido em duelo e procurava se refugiar em Inglaterra, salta na Holanda, e se instala em Stenay, onde aguarda o momento oportuno para agra vessar a França, alcançar Bordeux, e ai conseguir ser quase rainha. Afinal derrotada, não se dá por vencida, e continua a guerra. Mme. de Condé, preso o marido, segue para Bordeaux, coberta de luto, conduzindo o filho nos braços. Uma vez na cidade, levanta homens e mulheres, e repele o exército real que tinha vindo por cerco a Bordeaux. Mlle. de Montpensier não se mostra menos ousada e intrépida. Em Orleans, encontrando as portas fechadas, mas avistando uma poterna mal 328 guarnecida, aproxima-se, sobe por uma escada meio quebrada, e ei-la dentro da cidade. “É conduzida em triunfo, nota George Renard, chamam-lhe uma nova Joana d’Arc; cantam-se por toda a parte estrofes, consagrando sua glória, e mais tarde quando ela aparece perante seu exército, é recebida com todas as honras militares, cumprimenta-se sua chegada ao som de trombetas e de canhões, bebe-se de joelhos à sua saúde, fazem-se-lhe passar tropas em revista, segue-se sua opinião sobre as manobras; ela é de ofício”. Da prática as mulheres elevam-se à teoria. Modesta de Pazzo de Zorzi escreve uma calorosa apologia de seu sexo, e mais tarde Lucrécia Morinella publica seu livro, que se ocupa da nobreza e excelência das mulheres comparadas com as faltas e as imperfeições dos homens, assunto de que também se ocupou Margarida de Navarra, primeira mulher de Henrique IV. Em 1665 a pretensão feminina se ostenta faustosamente no livro, que traz o pomposo título de Damas Ilustres, onde por Boas e Fortes Razões se Prova que as Mulheres Sobrepassam os Homens. Mas estes escritos, maneiras e costumes não eram os mais próprios para refrearem o comportamento das imodestas. Ninon de Lenclos se torna então o tipo da moda, dando o tom à sociedade e servindo de modelo àquela que depois devia chamar -se Mme. de Maintenon. A intervenção das favoritas nos negócios do Estado é manifesta, e sua influência se torna decisiva nos destinos do país. A partir de Carlos VI as favoritas fazem parte integrante da corte. Carlos VI tem junto a si 329 Odete de Champdivers, a filha de um mercador de cavalos, para a qual inventa uma árvore genealógica, que a eleva de seu baixo nascimento à altura da proteção que lhe é dispensada. Carlos VII vive no seio de um verdadeiro serralho, entre Agnes Sorel, Antonieta de Meignelai, Gerarde Cassignol. Luís XI se d istinque, além do número, pela variedade de escolha: entre suas favoritas figuram Margarida de Sassenaye, Huguette de Jacquelin, representantes da nobreza, Félisa Renard, Gigonne e Passefilon, filhas do povo. Francisco I, o rei galante, que dizia que uma corte sem damas é um ano sem primavera ou uma primavera sem rosas, não pode dispensar as graças e encantos de Cureon, Éampes, Chateaubriand, Féronnière, Ana de Boleyn e Diana de Poitier. Henrique II tem por amantes Philippa Duc, Flovim de Leviston, Nicole de Savigny. Henrique III, Renée de Rieux, Maria de Clèves. Henrique IV não se mostra menos exigente do que Luís XI e Francisco I, nem em número nem em variedade. Cercam-no cheias de exigências e fantasias Avelle, Gabriela, Tignonville, Martine, Luc, Armandina, Montaigu, Fleurette, Glandée, Boinville, Maria de Beauvilliers. Luís XIV, aos quinze anos já desfruta Mme. de Beauvais, e, mais tarde, Lamotte d’Agencourt, La Vallière, Fontanges, Montespan, a marquesa de Soubise e uma infinidade de filhas de lacaios. Luís XV se mostra digno sucessor das galanterias capetianas, deixando -se conduzir ao teatro da guerra pela duquesa de Châteauroux, e aviltar pela dominação perniciosa de Mme. de Pompadour. 330 Mais que tudo, porém, sofrem as finanças do Estado com os excessos poligâmicos da corte. Muito caro custam ao tesouro público as liberalidades femininas. Para não falar senão de Luís XIV e Luís XV, basta lembrar que Fontanges recebe a título de pensão 1000.000 escudos por mês, além de suntuosos móveis, luxuosos vestidos, tecidos com fios de ouro e pérolas no valor de 150.000 libras, e Mme. de Pompadour figura no orçamento com 36,727,000 francos, afora os presentes e abonos que recebia dos rendeiros gerais para conceder favores sobre o preço dos arrendamentos e assegurar a impunidade das exações. (23) Felizmente nem todos os homens se deixavam arrastar por esta febre de imoralidade e corrupção: havia espíritos, que refletiam e raciocinavam, sem estarem dispostos a sacrificar tudo à embriaguez da galanteria. Despojada das imunidades e privilégios, imunidades e privilégios, oriundos da antiga estrutura feudal, a mulher deixa de ser o que de seus compatriotas afirmam os irmãos Goncourts: “a alma desse tempo... o ponto donde tudo irradia, a imagem sobre que tudo se modela... o princípio que governa, a razão que dirige, a voz que ordena... a causa universal e fatal, a origem dos acontecimentos, a fonte das coisas”. Com o predominância da indústria e do comércio a riqueza móvel não somente suplanta a propriedade territorial, mas toma uma feição nova, revestindo a for ma capitalista. “O que é relativamente novo e constitui um dos traços de nossas sociedades modernas, é a pre 331 dominância, entre os povos contemporâneos, da riqueza móvel ou como dizem alguns, do capitalismo”. (2 4) A propriedade territorial é firme, fixa, uniforme; a móvel é variável, cambiante, proteiforme. A primeira é o que se poderia chamar uma propriedade estável, disposta ao repouso e à inércia; a segunda uma propriedade instável, levada ao movimento e à ação. Isto não quer dizer que a propriedade móvel não esteja sujeita a equilíbrio; mas, este equilíbrio é passageiro, transitório, instável, enquanto que o da propriedade territorial é durável, permanente, estável. A propriedade territorial acha em si mesma garantias de duração, enquanto que a propriedade móvel para perdurar precisa ser refeita pelo trabalho. O equilíbrio da propriedade territorial se mantém somente por efeito da posse, como o equilíbrio estável pela ação preponderante da gravidade; o equilíbrio da propriedade móvel, porém, se mantém por outras circunstâncias que não exclu sivamente a posse, da mesma sorte que o equilíbrio instável se conserva por outras causas que não somente gravitação. O equilíbrio da propriedade territorial tende a persistir como o da propriedade móvel a acabar. Em dinâmica desde que uma causa estranha faz oscilar o centro de gravidade, não somente a massa não volta à sua posição anterior, mas ainda se desvia cada vez mais. É o mesmo que se dá com a propriedade móvel que, dada uma modificação em seu centro de gravidade – na posse – tende a não voltar a seu estado anterior e a se afastar dele cada vez mais. O valor da propriedade territorial persiste pelo fato da posse, ao 332 passo que o valor da propriedade móvel diminui pela ação do tempo. Rigorosamente o tempo não faz nem desfaz coisa alguma: já tivemos ocasião de escrever que assim como não se pode dizer que ele seja bom ou mau, belo ou feio, longo ou curto, rápido ou lento, também não se pode afirmar que ele construa ou destrua coisa alguma; mas a verdade é que com os anos a propriedade móvel diminui de valor, se ela não se refaz pela ação do trabalho e pelo espírito de empresa. Esta verdade é posta em toda a evidência por Anatole Leroy Beaulien em seu magistral trabalho sobre o capitalis mo e o feudalismo industrial e financeiro. “Se não têm o cuidado de renovar a fortuna pela economia e pela inteligência, isto é, pelo esforço pessoal, os netos dos reis do ouro são condenados a ver sua situação diminuir em cada geração. Neste sentido, por mais que a lei garanta aos filhos a herança paterna, a riqueza não se transmite por longo tempo. A nova aristocracia do dinheiro, o que chamais o novo feudalismo, está votada a uma decadência rápida, a menos que ela tenha a energia de elevar incessantement e o nível sempre decrescente de sua fortuna. O capitalista, ao inverso do que se atribuía outrora ao proprietário territorial, não possui monopólio, que lhe garanta para sempre os gozos da riqueza. O capital, o odioso capital, longe de engordar naturalment e sem fazer coisa alguma, ou de guardar sua nediez no repouso, o capital emagrece com a idade, perdendo pouco a pouco seu peso, de ano em ano, por toda parte, em que vive sobre si mesmo, 333 sem se refazer pelo trabalho ou pelo espírito de empresa”. (25) A forma, porém, mais precária, mais dilatável, mais fluida, e por isto mesmo mais perfeita e acabada, da propriedade móvel, é a moeda, a mercadoria por excelência, a mercadoria que, no dizer de Lafargue, “encerra em estado latente todas as outras, e tem o poder mágico de se transformar à vontade em todas as coisas desejáveis e desejadas”. Com um tão poderoso instrumento econômico inaugura-se uma nova era financeira: concentram-se nas mãos dos capitalistas e empresários as economias individuais, e realizam-se obras gigantescas, como só se encontram iguais nos monumentos das épocas, em que o povo era obrigado a trabalhar em massa. É a época do feudalismo industrial e financeiro, do capitalismo, época em que pela transformação da propriedade, pela predominância da riqueza móvel, a mulher perdeu a supremacia, que teve no século XVIII. A mulher solteira herda igualmente com seus irmãos; mas em suas mãos a riqueza vai constantemente diminuindo por falta de movimento. Precisando ser refeito pelo trabalho, a fortuna móvel perde de valor, sempre que é conservada inativa. Por inércia a mulher vê diminuir sua riqueza, à medida que aumenta o nível comum da propriedade nas mãos do homem. Em relação à mulher casada, a incapacidade feminina foi decretada por lei. Se a Revolução Francesa proclamou a igualdade civil dos esposos, as leis posteriores, submetendo a mulher casada ao poder marital, a declararam incapaz 334 quanto à sua pessoa e bens. Ninguém ignora que a mulher a princípio foi incapaz quanto à sua pessoa e bens, qualquer que fosse seu estado ou idade, e que nesta condição se manteve até bem pouco tempo em muitos países da Europa: na Dinamarca até 1857, na Suécia até 1863, na Noruega até 1869, em vários cantões da Suíça até 1881. A tutela feminina, porém, continuou a persistir em relação à mulher casada. Gozando em solteira dos mesmos direitos civis que o homem, salvo um pequeno número de casos excepcionais, a mulher se torna incapaz desde o dia do casamento. Todavia, mesmo fora do casamento, sua capacidade não é completa, está sujeita a restrições. É assim que em face de um grande número de legislações não pode ser tutora nem servir de testemunha dos testamentos e outros atos da vida civil. Pelo artigo 37 do Código Napoleão a mulher não pode figurar como tes temunha nos atos de estado civil. Entretanto nem sempre foi assim na Europa: no ato do nascimento de Vitor Hugo vemos Mme. Dessirier, esposa do coronel Jacques Delelée, ajudante de campo do general Moreau, assinar como testemunha ao lado de seu marido. Não vem de fora de propósito lembrar uma curiosa disposição do código de processo do cantão de Vaud antes de 1825, em virtude da qual o testemunho de duas mulheres equivale ao de um homem, e o de quatro mulheres ao de dois homens, e assim por diante. Hoje a incapacidade das mulheres no referido cantão não subsiste senão como testemunha instrumentária, sendo plenamente aceito seu depoimento nos tribunais civis e 335 criminais; mas daí a incoerência de ser nulo o testemunho de uma mulher para constatar o nascimento de um indivíduo, e válido para acarretar a pena de morte nos países onde se mantém o cadafalso. (26 ) O Código Civil francês não é menos incoerente: pelo artigo 71 o ato de notoriedade que, dadas certas circunstâncias, é destinado à reconstituição do estado civil, vale ainda mesmo que todas as sete testemunhas sejam mulheres. Neste ponto a lei francesa não está mais adiantada do que a velha lei de cantão de Vaud, pois que, para a reconstituição do estado civil o testemunho de sete mulheres tem tanto valor quanto o de dois homens. Já é tempo de eliminar a injusta e odiosa exceção de a mulher não poder figurar como testemunha nos testamentos e outros atos da vida civil, exceção injustificável e chocante, que tem produzido conseqüências desastrosas e irreparáveis. É bem instrutivo o caso do contador Leon Richer em seu excelente livro – O Código das Mulheres. Em 1873 o cocheido de Mme. X... viúva de um antigo conselheiro de Estado, sentindo que estava para morrer, fez chamar o tabelião do lugar. Sua intenção era deixar sua fortuna, doze a treze mil francos, a uma digna rapariga de dezenove anos de idade, órfã de pai e mãe, e por cujo futuro muito se interessava. Chega o tabelião, e o doente manifesta sua última vontade. São preciso quatro testemunhas, e Mme. S... manda chamar o porteiro e o jardineiro. A respeitável senhora não pode ser testemunha, e, enquanto o jardineiro corre a chamar o primeiro homem que aparecesse, morre o cocheiro. Na Itália a 336 desigualdade feminina subsistiu até 1878, ano em que foi adotado como lei o projeto de Salvatore Morelli, sendo abolidas todas as disposições legais, que excluíam as mulheres do direito de servir de testemunhas nos atos públicos ou privados. Segundo o Código Civil francês, salvo a exceção geralmente admitida em favor da mãe e algumas vezes em favor das avós, a mulher é excluída da tutela. Basta comparar os artigos 442, 443 e 444 do citado código para ver que neste ponto a mulher é equiparada aos menores, aos interditos, aos indivíduos de notória má conduta e aos condenados. Entretanto nota Louis Bridel, não vale grande coisa a razão, que se invoca para justificar a exclusão da mulher em matéria de tutela. (27 ) Se a mulher não tem bastante experiência para poder se encarregar de uma tutela, não devia ser aberta exceção em favor da mãe, porque a ternura materna não supre a inteligência nem a atividade. Se prevalecesse o argumento da ternura, neste caso não haveria razão para excluir a mulher, quando esta fosse protetora real do menor, quando, por exemplo, no caso citado por Leon Richer, tivesse tido sempre a seu cargo o sustento e a educação do órfão. Afora as exceções relativas à tutela e ao testemunho, a mulher solteira, viúva ou divorciada, se acha no mesmo pé de igualdade que o homem; mas entrando para o casamento, perde nome, condição, domicílio, grande soma de sua capacidade, sendo que em alguns países sua personalidade é eliminada de modo absoluto em favor do marido. “Solteira, diz Thuilé, (28 ) é 337 senhora de si mesma e de seus bens; viúva reconquista a autonomia de sua pessoa; casada é menor. E é no momento, em que ela deveria entrar em seu apogeu de grandeza e dignidade, é quando ela desempenha o maior dos deveres humanos, vai ser mãe, consagrando sua vida a perpetuar a espécie, que então é amesquinhada”. Em relação ao domicílio a mulher casada é tratada como o menor ou o interdito: segue o domicílio do marido como o órfão o do tutor, e o interdito o do curador. (29) Há quem pense que a mulher, que desposa um estrangeiro, segue a nacionalidade do marido, o que traria como resultado ter muitas vezes a mulher renegar sua pátria para não se divorciar do marido. Felizmente o artigo 69 nº 5 da Constituição Federal com a expressão – estrangeiros casados com brasileiras exclui tão iníquo modo de desnacionalização. Não é tudo: insultada, injuriada, vilipendiada, a mulher casada não pode defender seu caráter, honra ou dignidade sem consentimento do marido. Quanto aos bens, ninguém ignora que em regra a incapacidade da mulher casada é completa. O artigo 217 do Código Civil francês diz claramente: “A mulher, mesmo não comum ou separada de bens, não pode dar, alienar, hipotecar, adquirir, a título gratuito ou oneroso, sem o concurso do marido no ato ou seu consentimento por escrito”. Entre nós o marido pode dissipar livremente a riqueza da família em tolas especulações ou loucas fantasias; a mulher, porém, não pode dar, alienar, hipotecar seus próprios bens sem autorização do marido. Até mesmo para receber o título gratuito precisa de 338 permissão marital. Não têm faltado apologias ao regimen da comunhão com a forma patrimonial, que melhor se harmoniza com a fusão de vidas e de in teresses, que se opera no casamento. A verdade, porém, é que, sendo a mulher excluída da administração da propriedade comum, o marido pode dizer-se o senhor único dos bens do casal. Nós já vimos o que é a propriedade moderna, e como seu prodigioso desenvolvimento ou rápida depressão depende do modo de administrá-la. “Nada é comum no regimen da comunhão, diz Thuilé, salvo o título. A fortuna comum, com o fundo comum composto de todos os móveis presentes e futuros, e de todos os imóveis adquiridos a títulos onerosos depois do casamento, de qualquer lado que venham, este fundo comum está à disposição, à discrição de um só dos esposos, do marido, bem entendido. Tudo entra neste fundo, para r eceber é, com efeito, comum, tudo cai nele, rendimentos e salário da mulher, bem como os ganhos do marido. Mas é somente o marido que dispõe deles, negocia com eles e os desfruta; ambos os alimentam, um só gasta-os”. (30 ) No caso de simples fusão de aqüesto s, conservando cada um dos esposos os bens, que possuía no momento da celebração do casamento, e não recaindo a comunhão senão sobre os ganhos provenientes do trabalho comum ou individual dos cônjuges, e sobre os frutos e rendimentos dos bens próprios de cada um deles e as aquisições a título oneroso na constância do matrimônio, é certo que o marido não pode delapidar a fortuna, com que a mulher entrou para o casamento; 339 mas, como lhe compete a administração de todos os bens da família, e como a mulher não d ispõe de seus próprios bens sem autorização marital, segue -se que é o marido quem realmente goza de toda a propriedade comum ou não, cabendo somente à mulher a satisfação de contemplar sua riqueza. Sob o regimen dotal ainda ao marido compete exclusivamente a administração do dote, do qual percebe os frutos e rendimentos, deles dispondo a seu talante. Todas as variedades de regimen legal podem reduzir-se a três categorias: 1ª) regimen da comunhão, figurando como principais formas a comunhão universal, a de móveis e aqüestos, e a de simples aqüestos; 2ª) regimen sem comunhão, cujas principais espécies são o regimen dotal, e o que os alemães chamam Güterverbindung (união de bens); 3ª) regimen de separação. Pela comunhão universal, a partir da consumação do matrimônio, dá-se a fusão de todos os bens – móveis e imóveis, presentes e futuros – dos esposos; mas esta fusão se opera exclusivamente em favor do marido, conforme já mostramos. É o regimen legal dos Países Baixos, dos cantões de Bailéa e da Turgóvia, de Portugal e do Brasil. Pela comunhão de móveis e de aqüestos ficam pertencendo exclusivamente a cada um dos esposos os imóveis, que eles possuem por ocasião do casamento, e os que adquirem depois por sucessão ou doação, caindo em comunhão, além dos móveis existentes antes do casamento, todos os móveis ou imóveis posteriormente 340 adquiridos a título oneroso, e bem assim os frutos e rendimentos dos bens exclusivos de cada um dos esposos. É o regimen legal da França, Bélgica, Gênova e Jura Bernense. Pela comunhão de aqüestos não se comunicam os bens, que os esposos possuem por ocasião do casamento, bem como os que adquirirem depois, por sucessão ou doação. A comunhão recai somente sobre os ganhos do trabalho comum ou particular dos esposos, sobre os frutos e rendime ntos dos bens próprios de cada um deles, e sobre os móveis ou imóveis adquiridos a título oneroso durante o casamento. É o regimen legal da Espanha e dos cantões de Neuchâtel, Valais, Schaffhouse e Grisões. No regimen dotal a mulher conserva a propriedade e administração dos bens parafernais; (3 1 ) ao marido, porém, pertence a exclusiva administração do dote, além da propriedade e administração dos bens, que permanecem incomunicáveis em si e em seus rendimentos. Na união dos bens (Güterverbindung) não se dá a fusão das fortunas: os bens adquiridos pelo marido ou pela mulher, antes ou depois do casamento, ficam pertencendo a cada um dos esposos; o marido, porém, tem a administração e o gozo dos bens da mulher. Ao marido, na qualidade de usufrutuário dos bens da mulher, compete os respectivos frutos e rendimentos, os quais deste modo são incorporados ao seu patrimônio. A mulher continua proprietária, mas sem a administração e o gozo de sua propriedade. (32 ) Na unidade de bens (Gutereinheit) os bens da mulher passam para o domínio do marido, conservando, porém, 341 aquela um direito de crédito relativo ao valor de seus bens. Sob uma ou sob outra das formas apontadas é este o regimen legal na Áustria, nas Províncias Bálticas e na maioria dos cantões suíços: Berna, Zurich, Vaud, SaintGall e Lucerna. A separação de bens, como o próprio nome está indicando, é o regimen em que cada um dos esposos mantém a propriedade, gozo e administração de seus próprios bens. Tal é o regimen legal da Itália, da Rússia, da Inglaterra, de mu itos Estados da União Americana e do Canadá. Com estas noções, que não procuramos dar senão para determinar os países, em que as categorias definidas predominam como regimen legal, já se torna fácil apreciar a capacidade feminina em cada um deles, e, portanto, sua influência na família, ou quer dizer na civilização, porque a família é órgão de conservação e educação da espécie. Nos cantões da Suíça alemã a mulher casada é completamente incapaz “O marido, diz o artigo 589 do Código de Zurique, é de direito tutor marital de sua mulher”. A mulher casada é equiparada ao menor ou ao interdito. Submetida ao poder marital, que é uma espécie de tutela ou curatela, não tem o livre exercício de seus direitos. O marido é encarregado de agir por ela, como o é o tutor pelo menor, o curador pelo interdito. Na França a mulher casada para agir precisa de autorização do marido; mas é ela quem age, e são o marido, como se dá na Suíça alemã. Esta autorização é 342 sempre necessária, e não pode ser suprida pelo tribunais senão em casos especiais: menoridade, interdição, condenação, ausência ou recusa injustificável do marido. Somente para os atos de administração relativos aos próprios bens no regimen da separação é que a mulher casada prescinde da autorização marital; em todos os demais atos da vida civil, quer judiciais, quer extrajudiciais, ela não pode agir sem permissão do marido. Deste modo, salvo um pequeno número de exceções, a mulher casada tem necessidade do consentimento marital para estar em juízo, dar, receber, alienar, adquirir, contratar, aceitar ou repudiar uma sucessão. A falta de autorização importa nulidade do ato, a qual pode ser pedida pela própria mulher, por seu marido ou por seus herdeiros. Mais ou menos modificado, seguem o mesmo sistema a Bélgica, os Países Baixos, a Espanha e diversos cantões da Suíça como Gênova, Vaud, Friburgo, Tessino e Valais. Na Itália, por ocasião de elaborar-se o código civil, cogitou-se da supressão de qualquer consentimento do marido; mas afinal prevaleceu o sistema de exigir -se a permissão marital para certos e determinados atos. Louis Bridel, a cujo excelente livro Le Droit des Femmes et le Mariage, devemos estas informações sobre regimens legais de bens no casamento e seus efeitos sobre a personalidade da mulher casada, (33 ) nota as seguintes diferenças entre o direito francês e o italiano: 1ª) O Código italiano exige autorização para um pequeno número de atos, enquanto o francês não a dispensa à quase totalidade deles; pela lei francesa a 343 autorização deve ser especial, pela italiana pode ser genérica; 2ª) a mulher italiana não tem necessidade de suprimento de autorização nos casos em que o marido é menor ou acha-se interdito, ausente ou condenado a mais de um ano de prisão, casos a que é preciso acrescentar a separação de corpo por fa lta do marido e a condenação por motivo de adultério; 3ª) o Código italiano exige autorização judiciária nos casos de separação do corpo ocasionada por falta da mulher ou por mútuo consentimento, ao passo que na França, pela lei de 6 de fevereiro de 1893, a mulher separada de corpo readquire plena capacidade civil. O Código Civil alemão adotou como regimen legal a união dos bens; mas a incapacidade feminina não sendo uma conseqüência necessária do casamento, a mulher casada pode adotar o regimen da separação e deste modo fazer desaparecer toda espécie de restrição quanto a seus bens. Da mesma sorte pelo Código Civil do cantão de Neuchâtel, desde que os esposos adotam outro regimen que não o legal da comunhão, a mulher adquire uma completa capacidade quanto a seus bens. Na Inglaterra, depois da lei de 18 de agosto de 1882, a mulher casada adquire a plena propriedade, gozo e administração de sua fortuna. Sua capacidade jurídica é completa, podendo praticar qualquer ato judicial ou extrajudicial independente de autorização do marido. Nenhum de seus bens responde pelas dívidas do marido. O mesmo se dá nos Estados Unidos, onde a mulher casada não tem necessidade de autorização marital para exercer qualquer direito civil. Pode figurar 344 em juízo, demandar contra os danos causados à sua propriedade, à sua pessoa, a seu caráter, à sua honra, à sua dignidade, dispor à vontade de todos os seus bens móveis ou imóveis, dando, vendendo, hipotecando, legando sem a menor restrição. “A esposa nos Estados Unidos, diz Leon Donnat, (34 ) é mais favorecida pela lei do que o marido. As disposições novas, que estenderam os direitos da mulher, não diminuíram obrigação alguma do esposo. Enquanto aquela tem a livre disposição de sua fortuna, este tem o dever de nutri-la, de lhe fornecer um domicílio, de prover suas necessidades segundo a posição que ele ocupa, podendo a mulher obter o que lhe é necessário à custa do marido. No ponto de vista estrito da lei a esposa não é forçada a coabitar com seu esposo, nem a prestar seus cuidados à casa. É, sem dúvida, uma obrigação moral, admitida por toda parte, porém que repousa unicamente sobre as conveniências sociais, e não pode ser exigida pelo constrangimento. A mulher, que abandona o domicílio conjugal, somente perde o direito a ser mantida por seu marido. Conhecidos os efeitos dos regimens legais sobre a capacidade da mulher casada, é fora de dúvida a influência da organização da propriedade sobre a instituição da família. Passando de comum a coletiva, de coletiva a individual, a princípio sob a forma territorial e depois sob a forma móvel, a propriedade tem influído sempre sobre a família, e a razão é, conforme afirma G. de Greef, que o grito do estômago domina o do amor; Tornando-se flexível, fluida, expansiva sob a forma do capitalismo, a propriedade predomina hoje, mais do que 345 nunca, sobre todos os fenômenos sociais, e principalmente sobre a família. Temos a prova diante dos olhos. A Revolução Francesa proclamou a igualdade civil do homem e da mulher; mas a organização da propriedade falseou, burlou esta igualdade. A mulher herda, com efeito, igualmente com o homem; mas a preponderância da fortuna móvel tornou de fato a condição feminina inferior à do homem. Portanto, não é rigorosamente exato afirmar -se que enquanto não é casada e desde que não o é mais, a mulher é civilmente igual ao homem. A lei pode proclamar que a capacidade jurídica da mulher é igual à do homem, e nem por isso ela deixa de lhe ser inferior. Não é o fato do casamento que inferioriza a mulher na família e na sociedade, é a influência da riqueza sobre os vários fenômenos sociais. Precisando ser refeita pelo trabalho, a riqueza móvel diminui de valor, sempre que é conservada inativa. Daí a necessidade de trazê-la constantemente em movimento. A lei pode garantir a igualdade de herança a todos os filhos; mas esta igualdade não se manterá, se todos eles não tiverem igual poder mental para imprimirem o mesmo giro econômico. Por falta de mo vimento, causada por inatividade mental, a riqueza móvel nas mãos da mulher tende a baixar de nível, a diminuir de valor. Ora, é esta incapacidade mental que torna a mulher inferior ao homem, independentemente do casamento. O casamento não faz senão agravar esta inferioridade, concorrendo pela organização das relações patrimoniais para fomentar a incapacidade feminina. 346 Em uma civilização, em que sobre os destroços de todas as supremacias impera a supremacia da riqueza, pode-se avaliar dos efeitos de uma organização da propriedade, em que ao se procura senão amesquinhar a capacidade feminina. Entretanto, a educação, que os pais se esforçam para dar aos filhos, não é feita senão no sentido da luta pela fortuna. Médicos, advogados, artistas, políticos, todos distendem os músculos para a riqueza. Não há maior hipocrisia do que proclamar a igualdade civil do homem e da mulher, e tirar a esta a administração de sua fortuna, ou colocá -la em uma posição – por sua educação ou outro qualquer motivo – que não lhe permita enriquecer, enriquecer cada vez mais, conforme o voto das sociedades modernas. A pobreza pode servir de assunto à poesia, como sucedeu a Pierre Loti, que soube dizer tão belas coisas a respeito das privações, por que passou depois de sua infância; mas a mola real da civilização moderna é a riqueza, o que Balzac com seu admirável talento de observação compreendeu bem, quando fez do ouro, do vil metal, da obscoena penucia, como chamava o irônico Juvenal, o pivô da Comédia Humana. Para Balzac o motivo principal, determinante das ações humanas, é o dinheiro, do qual “foi ele a presa e o escravo por necessidade, por honra, por imaginação, por esperança”. “Ele contou a fortuna de seus personagens, explicou sua origem, seus acréscimos e seu emprego, balanceou suas receitas e despesas, e trouxe para o romance as práticas do orçamento. Expôs as especulações, a economia, as compras, as vendas, os contratos, as aventuras do 347 comércio, as invenções da indústria, as combinações da agiotagem. Pintou os advogados, as belegins, os banqueiros, fez entrar em toda parte o código civil e a letra de câmbio. Daí uma parte de sua glória”. (35 ) Com uma semelhante concepção da vida é fácil de compreender o papel puramente estético, que o amor passou a representar no casamento. Se não se tratasse senão de amar, afirma Marie Anne de Bovet, (36 ) não haveria necessidade de todo este aparelho. A própria fidelidade não encontra no amor garantias. A fidelidade supõe a persistência, a coerção, a disciplina, e nada de mais insubmisso, caprichoso, indomável do que “a bela flor, que vive de febre e fantasia”. O amor não é o terreno mais próprio para a cultura da fidelidade. O amor não reconhece outra força nem obedece a outro princípio senão a beleza. É por isso que todos os D. Juans, seja o de Molière, o de Mozart, o de Byron ou o de Lenau, são sempre os mais belos homens. No poema de Lenau, Constância, revendo aquele que tanto tinha amado e que depois tanto odiou, diz: “é a mais bela recordação da mais bela hora de minha vida”. Se o casamento fosse o amor legalizado, como pretendem alguns espíritos galantes, teria razão Henry Maret, quando sustenta que a prostituição não é o amor livre, e sim toda união, que não é determinada pelo amor. A grande falta seria então não se entregar a mulher àquele que deseja com ternura, e sim deixar -se possuir por aquele que tolera com aversão. Deste modo, a falta no casamento viria a ser a venalidade, e não a infidelidade, e se reabilitaria a mulher que, tendo -se casado por 348 interesse, se prostituísse por afeição. O amor servindo de garantia à fidelidade conjugal tem contra si o testemunho dos fatos. O que nos ensina a etnografia, é que nas hordas, em que o amor é muito fraco entre os esposos, impera a ferocidade do ciúme. Que amor pode existir entre marido e mulher, quando estes se viram pela primeira vez na noite do casamento? Entretanto, já vimos que onde existem tais costumes, a infidelidade é cruelmente punida. Sabe-se que os Fogueanos são muito ciumentos de suas mulheres. O mesmo se dá com os Australianos, a respeito dos quais escreve George Grey que um ciúme severo e vigilante existe em todo homem casado, e assevera Curr que na maior parte das tribos não se permite a uma mulher falar com um homem ou ter alguma relação com ele, se não é o marido. Westermarck nos informa ainda que são muito ciumentos os Aleoutas de Atkha. segundo Yakof; os Kutchins, segundo Richardson e Hardisty; os Haidahs, segundo Dixon; os Taculias, segundo Harmon; os Crees, segundo Richardson; os habitantes das ilhas Havaí, segundo Lisiansky; os Samoiedas, segundo Arnesen; os Tártaros, segundo Heikel; os Coroados do Brasil, segundo Martins e Spix; os Vedas de Ceilão, segundo Bailey. De tal sorte predomina o ciúme entre os selvagens, que não é raro ver as mulheres se afeiarem, e até se deformarem, para não despertarem suspeitas nos maridos. É costume em certas tribos as mulheres casadas se desfazerem dos adornos para não atraírem admiradores. 349 Como, porém, explicar o curioso fenômeno do excesso ou cúmulo de ciúme com a parcimônia ou falta de amor? É que só em aparência estes sentimentos se relacionam. No amor há atração, no ciúme repulsão. O ciúme é um sentimento todo egoísta, ao passo que o amor vai até ao devotamento, até à abnegação, até ao sacrifício. O ciúme se funda sobre a posse da mulher casada. É a vontade firma de deter a mulher capturada ou comprada, que gera na alma do selvagem o ciúme. “Onde as uniões se realizam sem método, onde a mulher é considerada propriedade de todos, não há ciúme... Entre os povos políbanos somente o homem pode ser ciumento; entre os povos poliândricos somente a mulher tem o direito de se mostrar ciumenta”. (37 ) Mas enquanto o ciúme é um sentimento todo egoístico, tendendo sempre para a exclusão, o ideal do amor é “encontrar a mulher que encarne todas as outras”, o que vale dizer – “amar todas as belas”. O casamento é uma instituição destinada a regular não o amor – o que seria um contrasenso porque ele é tão perfidamente inconstante quanto diabo licamente belo – mas a família, que compreende três ordens de relações – patrimoniais, pessoais e sociais. As primeiras têm por objeto os bens do casal, as segundas os direitos e deveres dos esposos entre si, as terceiras a conservação material e a educação moral da espécie. Estas relações nem sempre se distinguiram, elas não se diferenciaram senão com o tempo. Não foi senão quando se deu a especialização entre as fu nções patrimoniais e as pessoais, que o adultério deixou de ser punido como 350 um roubo à propriedade conjugal para ser considerado uma infração do dever matrimonial. Também enquanto as relações individuais se confundiram com as sociais propriamente ditas, o adultério passou como um odioso crime contra a comunhão, punindo a lei com degradação cívica o marido complacente, que procurava ocultar o adultério da mulher; hoje, dada a especialização das relações, é uma falta, cuja punição depende exclusivamente da vontade do cônjuge ofendido. Aqui se aplica o princípio, que Taine estendeu a todos os instrumentos, órgãos e associações: mais suas funções se distinguem e se especializam, mais se circunscrevem e se opõem. (38 ) Mas dizem Cheveau e Helie: “A lei não estabelece penas em favor do marido, e sim em favor da sociedade. Não é porque o adultério ultraje o espo so em suas afeições e sua honra que o erige em delito, é porque o adultério é um mal moral, a violação de um dever; é porque fere direitos que ela consagrou, que são uma das bases da ordem social, e que ela deve proteger; é, sobretudo, porque a imoralidade e a desordem, que ele lança no seio da sociedade, quando se torna público, exigem uma repressão, que não é senão a justa sanção da moral pública”. (3 9) Se não estivéssemos no firme propósito de evitar o processo de opor argumento a argumento, poderíamos responder que a tentativa de suicídio também é um mal moral também fere direitos, que a sociedade consagrou, e que ela deve proteger; mas a lei não pune aquele que tenta suicidar-se. Entre o terrível dilema – matar ou 351 suicidar-se, o marido traído, que mata o amante da mulher, é punido; se suicida-se, a sociedade lastima simplesmente sua infeliz sorte. O negociante falido, que foge para salvar sua liberdade, é perseguido pela justiça; o que se suicida para não sobreviver à sua desonra, fica reabilitado em sua memória. Só por ironia poder -se-ia punir o adultério em nome de uma sociedade, que só tem escárnio e ridículo para as vítimas da infidelidade conjugal. Se a observação dos fatos e a lição dos acontecimentos valem alguma coisa em lógica social, então imitemos o exemplo da Holanda, de Gênova, de Hamburgo, da Inglaterra e dos Estados Unidos, onde o divórcio foi aceito como a única sanção contra a infidelidade conjugal. (40) (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 1-67). NOTAS (1) Impalloment, Il Codice Penale Italiano, volume III, pág. 108. (2) Princesse Georges, ato I, cena II. (3) Carta a Cuvillier Fleury. (4) Eduardo de Hartmann, Filosofia do Inconsciente, tradução Nolen, volume 1, pág. 249. 352 (5) Letorneau, A Humanas, pág. 477. Evolução Jurídica nas Diversas Raças (6) A Mulher e a Sociogenia, pág. 60. (7) Letorneau, A Evolução do Casamento e da Família, pág. 65. (8) Plutarco, Licurco, XXIX. (9) Plutarco, Solon, XXXVI. (10) Estrabão, y. XI, 14. (11) Taine, Filosofia da Arte, Tomo II, págs. 121 e 122. (12) Thuilé, La Femme, Essai de Sociologie Phisiologique, pág. 39. (13) Letorneau, L’Évolution du Mariage, pág. 150. (14) Letorneau, L’Évolution du Mariage, pág. 50. (15) Histoire Morale des Femmes, pág. 147. (16) Lafargue, Origem e Evolução da Propriedade, Capítulo II, parágrafo 2. (17) Lacassagne, De la Criminalité chez les Animaux, Revue Scientifique, 1882. (18) Duveyvrier, Tuareg do Norte, pág. 337. (19) Paul Lafargue, Origine et Évolution de la Proprieté, n. II. (20) Laurent, Études sur l’Histoire de l’Humanité, pág. 30. (21) Fustel de Coulanges, Revue des Deux Mondes, tomo 105, pág. 439. 353 (22) Thilié, La Femme, Essais de Sociologie Physiologique, pág. 53. (23) Charles Louandre, Du Rôle des Femmes dans l’Histoire de France. (24) Anatole Leroy Beaulieu, Revue des Deux Mondes. Le Regne de l’Argent, tomo 123, pág. 513. (25) Leroy Beaulieu, Obra citada, pág. 518. (26) Louis Bridel, Le Droit des Femmes, pág. 44. (27) Louis Bridel, Le Droit des Femmes, pág. 42. (28) Thuilé, La Femme, Essai de Sociologie Physiologuique, pág. 381. (29) Código Civil francês, artigo 108. (30) Thuilé, Obra citada, pág. 439. (31) Código Civil francês, artigo 1576, Código Civil italiano, artigo 1427, Clóvis Beviláqua, Direito da Família, pág. 294, contra a opinião de Lafayette. (32) Emile Acollas, Manuel de Droit Civil, tomo III, pág. 177. (33) Louis Bridel, Obra citada, capitulos III e IV. (34) Leon Donnat, Lois et Moeurs Republicaines, pág. 180. (35) Taine, Nouveaux Essais de Critique et d’Histoire, pág. 66. (36) Marie Anne de Bovet, Nouvelle Revue, l’Amour dans le Mariage, pág. 788. (37) Mantegazza, Physiologie de l’Amour, pág. 159. 354 (38) Taine, Les Origines de la France Contemporaine, Le Regime Moderne,Tomo I, pág. 142. (39) Cheveau et Helie, Theorie du Code Penale, número 2863. (40) Completo Tratado Teórico e Prático de Direito Penal, volume II, parte I-A. 355 2. A PENA ENTRE OS HEBREUS A pena é uma necessidade de ordem jurídica. Onde há direito, aparece a pena em repulsa à agressão. É a agressão que provoca a reação, e deste modo se pode dizer que o crime engendra a pena. A reação, porém, pode se operar no momento da agressão, assumindo a forma de defesa, ou ter lugar depois dela, tomando a feição de vingança. A vingança, em gérmen, não passa de um caso de defesa, tendo o ofendido em vista o futuro, para que a agressão não se reproduza. Nos organismos coletivos, como é a sociedade humana, a reação se opera, quer pela comunhão, quer pelos indivíduos, que a compõem. É um fenômeno ao mesmo tempo individual e social. Mas a proporção que se sobe na escala zoológica, nota-se, além da existência de uma defesa comum ao lado da defesa individual, a organização de uma defesa superior, que se manifesta por um órgão especial, encarregado de acautelar os interesses da comunhão. Tal é o caso do chefe de rebanho, encarregado o ministério punitivo nas sociedades animais. A vingança primitiva foi durante muito tempo indeterminada; não é senão em um período de civilização já avançado, que ela passa a ter limites. Entre os muçulmanos, somente um século antes de Maomé, vemos o preço de sangue fixado em cem camelos. (1 ) Aqui assistimos no vivo à primeira 356 transformação do direito de punir. É a metamorfose da vingança na composição, que é a satisfação dentro de certos limites, servindo de medida os bens. A vida tem então uma medida, e esta medida é a propriedade. O pagamento do preço de sangue era costume entre os Israelitas, os Persas, os Egípcios, os Celtas e os Germanos. Na Boemia um estatuto do rei Oton, de 1229, dispõe que o assassino pagará 200 dinheiros à Corte, e deixará o país até que tenha pago à família da vítima o preço da compensação . Entre os Polacos o preço de sangue não foi abolido senão no século XV por um estatuto de Casimiro Jagelão. Nos assassinatos cometidos sobre as grandes estradas, além da composição, que era de cinqüenta marcos para um cavalheiro, e de trinta para um aldeão, o assassino pagava ao rei uma multa de 50 marcos. Os Ossetas, afora a composição paga pelo assassino, impõem um banquete de reconciliação aos parentes do criminoso. Na rússia a Russkaia-Pravda, ou o código de Iaroslav, consagra o preço de sangue, que é de quarenta grivnas, seja qual for a condição do assassino, russo ou estrangeiro, nobre ou plebeu. Reformada pelos filhos de Iaroslav, a Russkaia-Pravda alterou a taxa em relação a qualquer assassino. Em regra, a família é responsável pelo preço de sangue. O pai responde pelo filho, o irmão pelo irmão, os parentes pelos parentes. Sendo a compensação um meio de restabelecer a paz e reconciliar as famílias, tanto assim que entre alguns povos, os antigos Suecos, por exemplo, o assassino deve deixar o país, até que 357 satisfaça a família do morto, não é de estranhar que várias legislações deixem impunes os crimes cometidos no seio da própria família. É que entre membros de uma mesma família é impossível a satisfação penal, sob a forma ilimitada da vingança, ou limitada da compensação. Por isso nada mais lógico do que várias leis, à maneira do código de Solon, guardarem silêncio sobre o parricídio, pois que não impondo elas outra penalidade senão a compensação, esta não pode ter lugar no seio da própria família. O mais que pode acontecer, é a expulsão daquele que perturbou a paz doméstica. Hermann Post considera o sacrifício como o primeiro estádio da pena. “Não é raro afirmar, escreve o citado jurista, que primitivamente pena o sacrifício humano foram uma e mesma coisa, e que destarte a origem do direito de punir deve ser procurada nesse mesmo sacrifício”. Mas as idéias de sacrifício importa a de expiação, de purificação. Imposto pelos homens ou pelos deuses, o sacrifício é sempre um exorcismo. O conceito do sacrifício ou expiação é muito mais espiritualizado do que o da defesa ou vingança. Não é senão quando o crime vem a ser considerado sob o ponto de vista psíquico, em relação à vontade, que a pena assume a feição de sacrifício ou expiação. Os animais se defendem ou se vingam dos outros animais; mais não sacrificam em expiação da culpa cometida por algum membro da comunhão. Somente quando o homem tem atingido a um certo grau de cultura, é que vem a considerar o crime como uma 358 mácula, da qual deve se purificar por meio do sacrifício; e antes disto o crime não passa de uma simples agressão, da qual não tem senão que se defender ou se vingar. Proal gasta não poucas palavras para mostrar o equívoco de Littré traduzindo em Homero e Heródoto como compensação o que não significa senão sacrifício, expiação. (2 ) Em relação à Ilíada opõe o autor do Crime e a Pena as traduções de Dugast-Montbel, Leconte de I’Isle e de Planche, em que a palavra, que para Littré significa compensação, é traduzida por expiação. Da mesma sorte, insiste Proal, em Herédoto a mesma palavra não pode ter o sentido que Littré atribui e sim o de expiação. Dado que a palavra pena primit ivamente significasse compensação, como entende Littré, ou que ela se derivasse do sânscrito punia, cuja raíz é pu, que significa purificar, uma ou outra etimologia não prova senão que os Árias tinham chegado à concepção de uma pena-compensação, ou, ainda mais, de uma pena expiação. Não quer, porém, dizer que o primeiro momento histórico da pena fosse a compensação ou a expiação, pois que uma e outra supõem a existência das instituições da propriedade e da religião, que são posteriores à necessidade não somente social, mas biológica, da defesa e da vingança. Antes de qualquer concepção de propriedade e de religião, os indivíduos que vivem em sociedade, têm precisão de se defender ou de se vingar contra as agressões presentes ou passadas. Daí a origem da pena. Não falta quem pense que o crime foi sempre con 359 siderado como uma marcha e a pena como uma expia ção. Mas uma e outra coisa supõem a responsabilidade moral, a voluntariedade da ação, e é sabido que vários povos primitivos e selvagens punem tanto os crimes voluntários como os involuntários. Os muçulmanos puniam o assassinato involuntário com um maior ou menor número de camelos ou de dinars, conforme o crime tinha sido preterintencional ou casual. Em face de tais documentos não se pode afirmar que primitivamente a pena fosse uma expiação. A vida humana tinha a princípio um valor puramente econômico, e a pena era a justa medida d este valor. O assassino se r4esgatava do crime, pagando uma certa quantia à família do morto. “Acreditou-se por muito tempo, escreve D’Arbois de Jubainville, que este processo de pacificação, ainda em uso no direito internacional, era especial aos Gregos. Em nossos dias demonstrou-se que ele foi geral no direito privado das populações arianas, e que foi conhecido fora deste grupo: por exemplo, entre os Hebreus, os Árabes, os Húngaros, A lei de Moisés proíbe receber o preço de sangue; decide que o assassino seja punido de morte. É uma inovação. Moisés é um reformador; mas sua legislação oferece ainda do antigo direito alguns vestígios, que Dareste recolheu”. (3) Realmente, entre os Hebreus o homem, que desfechava golpes em uma mulher grávida, se esta morria, era punido com a morte; se, porém, não morria, era obrigado a pagar uma compensação. O senhor do boi que matava um homem, era punido com a pena de 360 morte, se, prevenido, em tempo, do que pudesse suceder, não tomava as necessárias providências; mas podia resgatar sua vida, pagando uma compensação, Dado que o morto fosse um escravo, a compensação era invariavelmente de trinta ciclos de prata. O sedutor de uma virgem era obrigado a dar ao pai dela o preço, que teria de pagar por uma noiva, caso se tratasse de um casamento. O criminoso de contusões e ferimentos, além das despesas de médico, era obrigado ao pagamento de uma compensação. A Idade Média oferece um curioso fenômeno; é a venda das indulgências, que em suma não é outra coisa senão o sistema das composições, aplicado entre o homem e a Divindade. Entre os Hebreus já se havia realizado – igual fenômeno: enquanto Moisés, por um lado, proibia o uso das compensações para o caso de homicídio, por outro lado no Levitício encontra-se todo o capítulo, cujo assunto não é outro senão o resgate, por meio de compensações, de votos feitos a Deus. O que possuímos sobre egiptologia ainda não nos permite fazer a história do direito penal e egípcio; mas o Livro dos Mortos, a que se costuma recorrer para provar que desde a mais remota antiguidade o crime foi considerado mácula, não pode servir de argumento em favor da primitiva qualidade expiatória da pena. Basta considerar que se trata de uma coleção de orações, e a oração marca um adiantado grau na escala das medidas expiatórias, conforme teremos ocasião de ver. Se, porém, ignoramos o desenvolvimento do direito penal no Egito, não se dá o mesmo em relação 361 aos Hindus, Gregos e aos Romanos. “Quando os Árias, ensina Dareste, desceram das montanhas do noroeste às planícies dos Hindus e do Ganges, se pareciam com os heróis de Homero. A compra da mulher era a forma do casamento, e o direito criminal consistia todo ele em uma série de composições exatamente taxadas conforme a gravidade do dano. O preço de sangue se pagava em um certo número de vacas com um touro. Guatama não conhece outra moeda”. (4) Na Grécia proto-histórica competia à família vingar a morte dos parentes. A princípio este direito pertencia a todos os membros do clã; mas Dracon o restringiu aos parentes. Os costumes, porém, não proibiam as composições. Somente quando o preço de sangue não era pago ou não era aceito, o assassino tinha necessidade de se exilar para evitar a morte. Entre os Gregos dos tempos heróicos o crime nada tinha de infamante. A ninguém repugnava aco lher um homicida. Assim, quando Telêmaco estava para deixar o Peloponeso, na ocasião em que à margem do amr praticava um sacrifício em homenagem a Atenas, sua deusa protetora, viu aproximar -se um desconhecido, Teoclimenes, profeta, que lhe disse: “Venho de Argos, minha cidade natal, onde tirei a vida de um de meus concidadãos, pertencente à mesma tribo que eu. Em Argos, que nutre muitos cavalos, o finado deixou irmãos e amigos onipotentes; escapei à morte e ao negro destino, com que me ameaçavam; eu fujo, e stou para sempre, fatalmente, condenado a errar entre os homens. Recebe-me em teu navio, pois que, exilado, eu te 362 suplico, impedirás meus inimigos de me matarem, porquanto acredito que eles me perseguem”. Telêmaco não hesitou, aceita Teoclimenes em seu nav io, fê-lo assentar a seu lado, e o profeta pagou a hospitalidade, predizendo a realeza para Telêmaco e para sua posteridade. Em Atenas, no quinto ou quarto século, nos informa D’Arbois de Jubainville, o assassinato preme ditado era punido com a morte e a confiscação dos bens do assassino; se, porém, não tinha havido premeditação, os parentes do finado podiam optar entre o pagamento de uma composição e o exílio do homicida. Se pela Lei das XII Táboas era sacer o condenado à morte, justamente como no Levítico é santo o animal dado em voto a Jeové, não é menos exato que a mesma Lei das XII Táboas contém texto fixando em trezentos as a compensação devida pela fratura de um membro, quando o ofendido é um homem livre, e cento e cinqüenta, quando é um escravo, “Manu fustive, si os fregit libero CCC: si servo, CL poenam subito ”. O conceito da expiação supõe a existência de um Deus e a intervenção desse Deus como fator de moral na vida de um povo. Por isso nenhuma fonte mais fecunda para o estudo do conceito da expiação do que a história do povo de Israel. O povo hebreu possui um Deus, que não distribui castigos ou recompensas em uma outra vida, é um Deus que não se preocupa senão com o destino terrestre de seu povo. O que lhe importa não é a vida futura, tanto assim que para ela a morte é um castigo. O judaísmo 363 não é uma religião feita para a alma, para o espírito, e sim para a carne, para a vida. No Genesis, o Senhor diz a Moisés: “Eu resolvi dar cabo de toda a carne. Os homens encheram a terra de iniqüidades, e eu os farei perecer com a terra. Eu lançarei as águas do dilúvio sobre a terra para fazer perecer toda a carne que respira vida. Tudo que existe sobre a terra, será consumido”. (5 ) O dilúvio é a destruição da carne, a submersão de tudo que tem vida. “Toda a carne, que se move sobre a terra, foi consumida; todas as aves, todos os animais, todas as bestas, e tudo que anda de rastos sobre a terra. Todos os homens morreram, e geralmente tudo que respira vida na terra. Todas as criaturas que existiam sobre a terra, desde o homem até as bestas; tanto as que andam de rastos, como as que voam pelo ar, tudo desapareceu da terra. Ficaram somente Noé, e os que estavam com ele na arca”. (6) O paraíso dos Hebreus não é, como o de Dante, uma região etérea, habitada por seres ima teriais; é sobre a terra, num delicioso sítio, coberto de árvores, povoado de animais, encantador jardim, ao mesmo tempo botânico e zoológico. Os Israelitas conceberam um paraíso; mas eles não têm noção alguma de morada celeste. Enquanto as outras religiões não vivem senão de mortos, de puros espíritos, o judaísmo ressuscita os mortos, reencarna os ossos dos finados. Há em Ezequiel uma página admirável, que dá o traço predominante do jeovismo, religião de carne e osso, se assim podemos nos exprimir, 364 e não uma religião de fantasmas. É o renascimento de Israel, figurado por ossos secos, que se aproximam uns dos outros, se cobrem de músculos, de carne, de pele, e de novo se animam ao sopro do espírito. “E ele me disse: Profetiza acerca destes ossos, e dir-lhes-ás: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Eis o que diz o Senhor Deus a estes ossos: Aí vou introduzir em vós o espírito e vós vivereis. E porei sobre vós nervos, e farei crescer carnes sobre vós e sobre vós estenderei pele; e dar-vos-ei espírito, e vós vivereis e sabereis que eu sou o Senhor. Eu, pois, profetizei como o Senhor me tinha mandado; e quando eu profetizava, ouviu-se um ruído, e eis que se fez um reboliço: e os ossos se chegavam uns para os outros, pondo -se cada um em sua juntura. E olhei e vi que vieram sobre os ossos nervos e carnes para os revestirem, e neles foi estendida a pele por cima; mas eles ainda não tinham espírito. Então, me disse o Senhor; profetiza ao espírito, profetiza filho do homem, e dirás ao espírito: Eis o que diz o Senhor Deus: Espírito, vem dos quatro ventos e sopra sobre estes mortos, para que revivam. Eu, pois, profetizei, como o Senhor me tinha ordenado; e entrou o espírito naqueles ossos, e viveram, e se levantaram sobre seus pés, como um exército feito em grande extremo. E me disse o Senhor: Filho do homem, todos estes ossos são a casa de Israel; eles dizem os nossos ossos se tornaram secos, e a nossa esperança se perdeu, e nós fomos cortados do número dos homens. Profetiza, pois, e lhes diz: Eis o que diz o Senhor Deu s: povo meu, 365 vou abrir vossos túmulos, tirar-vos-ei de vossos sepulcros, e vos farei entrar na terra de Israel”. (7 ) Jeová é invisível; mas não cessa de falar a seu povo pela boca dos profetas. Os profetas israelitas são os órgãos do pensamento e da vontade de Jeová. “O profeta, diz Darmesteter, é outra coisa que o padre, que é um personagem sem grande originalidade, ministro de um ritual estabelecido, cujo poder age por si mesmo, sem que a pessoa do padre intervenha em coisa alguma. O profeta é um homem possuído de Deus e por quem Deus se revela aos homens”. O profeta israelita, porém, era porta-voz do pensamento e da vontade divina, não somente sob o ponto de vista moral, mas especialmente sob o ponto de vista civil e político. Sua principal preocupação era m os negócios públicos, Por isso foram comparados com razão a tribunos do povo, e diz Colani que esta comparação é justa no sentido de que eles tinham por fim esclarecer Israel sobre seus verdadeiros interesses, e modificar a marcha do governo pelo poder único de persuasão. Nem sempre reina harmonia de vistas entre os profetas; mas todos eles pertencem a um mesmo partido, todos eles advogam a mesma causa – o progresso. O profeta hebreu não é um conservador, um apóstolo do passado, e sim um precursor, um missionário do futuro. Do que fica dito facilmente se depreende que não se poderia encontrar um norte mais firme, uma fonte mais fecunda para o estudo do conceito da expiação do 366 que a história do povo eleito e especialmente a história de seu movimento profét ico. Segundo Moisés, no Gênesis, Jeová, para punir a iniqüidade e a corrupção, fez cair sobre a terra o dilúvio, a fim de destruir toda a criação desde o homem até aos animais, desde os répteis até às aves do céu. É um extermínio geral; pagam culpados e inocentes, racionais e irracionais, tudo que tem vida sobre a terra. Depois do dilúvio vem a destruição pelo fogo. Sodoma e Gomorra são devoradas pelas chamas. A esta forma geral de expiação sucede o adoçamento do castigo sob a forma do sacrifício. Para expiar a falta comum é sacrificada a mais preciosa vida da comunhão. E quanto não é mais a comunhão a responsável pela culpa de seus membros, as vítimas vêm a ser os animais pertencentes aos indivíduos culpados. Na Bíblia é bem conhecido o caso do bode expiató rio. Se o sacrifício diminui a efusão de sangue, a compensação a elimina. A este processo de eliminação de sangue nas relações familiais ou internacionais corresponde o sistema das indulgências, espécie de composição paga à divindade, “wergeld mystico” no dizer de Tarde. O jejum, a castidade, a súplica, a confissão, a esmola, são outras tantas metamorfoses da expiação. Em Amós o Senhor diz a seu povo: “Eu aborreço e abomino vossas festas; e não posso suportar o odor de vossas reuniões. Em vão me ofereceis holocaustos e presentes, eu os não aceitarei e não porei os olhos nos sacrifícios das hóstias pingues, que me ofereçais no cumprimento 367 de vossos votos. Afasta de mim o ruído de seus cânticos; nem ouvireis as árias, que cantares em tua lira. E meus juízos se darão contra vós como uma torrente, que transborda, e a minha justiça como uma corrente impetuosa. (8) Como se vê, não é mais um Deus, que tem fome de vítimas e dízimos, um Deus que abranda com festas e cantigas; porém é um Deus de justiça, que quer coraçõ es puros e não mãos cheias de oferendas. Em Oséas Jeová é um personagem terno e amoroso, ao mesmo tempo melancólico e carinhoso, um Deus, que, abominando tudo que é brutal e iníquo, sente necessidade de ser amado com doçura e fidelidade. “Depois disto eis aqui estou eu que a atrairei, a levarei à soledade, e lhe falarei ao coração. E lhe darei vinhateiros do mesmo lugar, e o vale de Achor, para esperança: e ali cantará ela cânticos como nos dias em que fez sua saída da terra do Egito. E sucedendo isto naquele dia, diz o Senhor, ela me chamará meu esposo, e não me chamará mais Baali”. (9) “E naquele dia farei aliança entre eles e as alimarias do campo, as aves do céu, e os répteis da terra, despedaçarei o arco e a espada, e suprirei a guerra de cima da terra: e eu os farei dormir com toda a segurança. E me desposarei contigo para sempre; me desposarei contigo com uma aliança de justiça, de juízo, de misericórdia, de compaixão. E me desposarei contigo com uma inviolável fidelidade,e saberás que eu sou o Senhor”. (10 ) As faltas de seu povo não inspiram a Jeová senão compaixão e piedade. Se este ameaça de sair ao 368 encontro dos filhos de Israel, como uma ursa a que roubaram os filhos, e de lhes rasgar as entranhas até chegar ao fígado, não se demora em se mostrar arrependido, e em lhes prometer o resgate da morte. Se lhes promete tomar o trigo e o vinho, a lã e o linho, as vinhas e as figueiras, é para lhes impor a provação da necessidade, a penitência do deserto, onde outrora vibraram as cordas do amor. Jeová não pode abandonar aquela que lhe deu os amores de jovem; a atrairá à solidão, e ali a desposará com uma aliança de justiça e misericórdia. O mal de Israel não é a miséria: não lhe falta trigo, nem vinho, nem ouro. O que a atormenta é a dúvida, o vago, o indefinido, esse estado de alma, que lembra a situação do espírito de René, de Werther ou de Manfredo. Daí esses tocantes acentos líricos, como não se encontram iguais senão no romantismo moderno. A voz de Jeová, até então grave e severa, tem agora a doçura da promessa da vinha daquele que há de ensinar a justiça. “Semea para vós na justiça e segai na boca da misericórdia, alqueivai vossos pousos; o tempo, porém, de buscar o Senhor será quando tiver vindo aquele que vos há de ensinar a justiça”. (1 1) Com Isaias continua a evoluir o conceito da expiação: Jeová abomina os sacrifícios, sobretudo se ao cheiro do sangue ou da gordura das vítimas vem juntar se o perfume de incenso; aborrece as penitências, revistam elas a forma de jejum, abstinência ou confissão. Condena neomênias, sábados e calendas; despreza as orações para não atender senão à pureza de 369 pensamento e à bondade de ação. Para o mal só há um remédio, é o bem Proteger o humilde, socorrer o necessitado, é que torna a alma pura, alva como a neve. “Ouvi a palavra do Senhor, príncipes de Sodoma, escutai a lei de vosso Deus, povo de Gomorra. De que me serve a multidão de vossas vítimas? Diz o Senhor, já estou farto delas: não quero mais holocaustos de carneiros, nem gorduras de animais nédios, nem sangue de bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Quando vinheis à minha presença, quem vos exigiu que trouxésseis estas coisas para entrardes em meus átrios? Não ofereçais mais sacrifícios em vão; o incenso é para mim abominação. Neomênia, sábado e outras festividades não suportarei, vossa reuniões são iníquas. Minha alma aborrece vossas calendas e vossas solenidades: elas se me têm tornado molestas, cansado estou de suportá-las. E quando estenderdes vossas mãos, apartarei de vós meus olhos: e quando multiplicardes vossas orações, não as atenderei, porque vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai de diante de meus olhos a malignidade de vossos pensamentos: cessai de obrar perversamente, aprendei a fazer o bem: procurai o que é justo, socorrei ao oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva. E vinde e me argüi, diz o Senhor, se vossos pecados forem como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; e se forem roxos como o carmesim, ficarão alvos como a branca lã”. (12) E não é somente a seu povo que contra o mal Jeová prega a prática do bem, e a todas as gentes. A 370 justiça não é um monopólio nacional, ela se estende à universalidade dos homens. “E nos últimos dias, sonha o profeta, estará preparado o monte da casa do Senhor no cimo dos montes, e se elevará sobre os outeiros e correrão a ele todas as gentes. E irão muitos povos, e dirão: vinde e subamos ao monte do Senhor e à casa de Deus de Jacó, ele nos ensinará seus caminhos, e nós andaremos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor. Porquanto já um pequenino se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado a nós, e foi posto o Principado sobre seu ombro: e o nome com que se apelidará, será Admirável, Conselheiro, Deus, Forte, Pai do futuro século, P ríncipe da paz. Seu império se estenderá cada vez mais e a paz não terá fim; assentar-se-á sobre o trono de David, e sobre seu reino para firmar e fortalecer em juízo e justiça, desde então e para sempre: fará isto o zelo do Senhor dos exércitos. (13 ) No tempo de Isaias se há expiação severa é para as pequenas faltas femininas. Jeová tem aversão aos artifícios da coquetterie. O porte e os modos desenvoltos, provocantes, são punidos com as mais rigorosas penas. “Ainda disse mais o Senhor: Pois que as filhas de Sião se elevaram e andaram com o pescoço levantado, fazendo acenos com os olhos, e gestos com as mãos, passeando com ruidosos pés, e caminhando a passo medido, o Senhor tornará calva a cabeça das filhas do Sião, e despojá-las-á o mesmo Senhor de seus cabelos. Naquele mesmo dia tirará o Senhor o adorno dos calçados, as fivelas, os colares, os braceletes, os 371 fios de pérolas, as coifas, os crescentes, as ligas das pernas, as cadeias de ouro, os frasquinhos de perfume, os brincos, os anéis, as pedras preciosa s, pendentes da fronte, os vestidos de reserva, as charpas, os linhos finos, os alfinetes, os espelhos, as delicadas camisas, os listões e as roupas de verão”. (14 ) E não satisfeito de despojar as elegantes penitentes do arsenal inteiro da toilette, Jeová acrescenta: “E em lugar de suave perfume terão mau odor, e por cinta corda, e por cabelo frisado calva, e por corpete cilício”. (15 ) Não cessam as iniqüidades de Israel; mas nem por isso Jeová deixa de amá-la com uma afeição sem limites. De sua parte o cast igo não é senão o começo de um arrependimento ou a promessa de um futuro glorioso. Ao lado das censuras e ameaças estão as palavras de perdão e esperança. Algumas vezes a felicidade prometida é tão maravilhosa que provoca o riso. “O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo se deitará aos pés do cabrito; o novilho, o leão e a velha viverão juntos, e uma criança os conduzirá. O novilho e o urso irão comer as mesmas pastagens, suas crias descansarão umas com as outras, e o leão comerá palha como o boi. E brincará a criança de peito sobre a toca do áspide, e na caverna do basilisco meterá sua mão a que estiver já desmamada”. (16 ) É mais alguma coisa do que o sonho moderno da paz perpétua, é a supressão da luta pela existência, 372 porque a terra inteira estará cheia do espírito do Senhor, espírito de sabedoria e de piedade. O cunho do profetismo é a fé tenaz de regeneração no seio das tremendas catástrofes. Os profetas de Israel foram, como diz Colani, otimistas apaixo nados, que sustentaram com suas palavras muito s indivíduos e muitos povos nas horas de desfalecimento. (17 ) A primeira vista Jeremias parece um descrente do futuro, um desesperado da sorte. Mas o sucessor de Isaias, se tem asperezas de palavras, que lembram a linguagem dos modernos niilistas, se acons elha a destruição nacional, é porque sonha uma pátria futura. Já que a nação não pode ser reformada de outro modo, que se recorra ao extremo. Por patriotismo é que Jeremias insiste em que Jerusalém seja entregue aos Caldeus. “Julgado por nossas leis e nossos costumes modernos, escreve Darmesteter, Jeremias seria um traidor: ele o era aos olhos dos últimos chefes do exército de Jerusalém. Mas o que faz justamente a grandeza inaudita do homem, é que este traidor à pátria é o patriota dos patriotas. Jeremias não é o santo ou o fanático, que destrói a cidade terrestre por uma cidade celeste. O que ele sonha, como todos seus predecessores, é uma pátria judaica, com uma dinastia nacional, a de David, mas com uma lei de justiça, de piedade, de moralidade, a de Jeová”. (18 ) Pela sua bravura moral, Jeremias sofre per seguições; mas os sofrimentos não alteram uma linha sua norma de conduta. Fassur, prefeito da casa do Senhor, o 373 mete no trono; mas o profeta, apenas solto, descreve detalhadamente a sorte, que aguarda Judá. Sedecias manda consultá-lo em relação a Nabucodonosor, rei da Babilônia, e ele prediz com toda franqueza os males que estão para suceder a Jerusalém. “E depois disto, diz o Senhor: Entregarei Sedecias, Rei de Judá, seus servos, seu povo, e quantos nesta cidade têm escapado da peste, da espada, e da fome nas mãos de Nabucodonosor, rei da Babilônia, nas mãos de seus inimigos e nas mãos dos que procuram tirar-lhes a vida, os quais passá-lo-ão ao fio da espada, e Nabucodonosor não se dobrará, nem perdoará, nem se compadecerá”. (19) Profetizando na casa do Senhor a destruição de Jerusalém, não somente os sacerdotes, mas também os profetas, o prendem e pedem sua condenação à morte. Absolvido pelos Príncipes e pelo povo, não hesita em ferir o convencionalismo do povo e dos sacerdotes, contestando Ananias, que profetizava o levantamento e o jugo de Babilônia. Joaquim manda queimar o livro das profecias, que Baruch havia copiado, e Jeremias as dita segunda vez a Baruch, ajuntando novas profecias. O lago de lodo em que foi metido, por ter aconselhado submissão a Babilônia, e do qual foi salvo por ordem de Sedecias, não serviu senão para que, consultado pelo rei, lhe respondesse com toda franqueza: “Se fores entregar -te aos príncipes do rei de Babilônia, viverá tua al ma, e não arderá em fogo esta cidade, e tu serás salvo bem como tua casa. Mas se não fores entregar-te aos príncipes do rei da Babilônica, cairá esta cidade nas mãos dos 374 Caldeus, que a farão arder no fogo; e tu não escaparás das mãos deles”. (20 ) Consultado pelos judeus, que desejavam se retirar para o Egito, aconselha, em nome do Senhor, que não se retirem, e não tendo sido atendido, em Tafnis, para onde fora conduzido pelo seu povo, anuncia que Nabuco donosor revertir-se-á da terra do Egito como se veste o pastor com sua roupa. As palavras de Jeremias soam aos ouvidos dos filhos de Israel como um toque de agonia; mas quando vier o aniquilamento nacional, elas farão surgir Jerusalém de suas próprias cinzas: elas serão o sopro que animará a comunhão de ossos, de que fala Ezequiel. E quando Israel disser: “Nossos ossos se tornarão secos, nossa esperança se perdeu”, o Senhor responderá: “Povo meu, eis aí vou eu abrir vossos túmulos e vos tirar de vossos sepulcros; e eu vos restituirei à terra de Israel”. Devido ao desprendimento dos interesses, à intensidade das convicções, à coerência da conduta, aconselhando sempre a aliança com Babilônia contra o Egito, pode dizer-se que foi Jeremias o fundador da nova pátria de Israel. Ezequiel não é um simples sucessor, é um continuador de Jeremias: mesma fé inabalável no renascimento da pátria, mesma indignação contra os profetas insensatos, que não têm a precepção do destino nacional, mesmos conceitos morais, muitas vezes revestidos das mesmas formas, mesma guerra contra a aliança de Faraó, rei do Egito, comparado a um crocodilo enorme, que tirado para fora das águas do 375 Nilo, será lançado no deserto com todos os peixes de seu rio, a fim de servir de pasto aos animais da terra e às aves do céu. Em Ezequiel reina confiança absoluta em Jeová, conseqüência necessária da ternura sem limites, que o Senhor tem a seu povo. Israel é a esposa infiel, que apanhada nua no deserto, apenas se vê lavada, ungida com óleo, vestida com roupas bordadas de diversas cores, calçada com jacinto, or nada com preciosos enfeites, braceletes nas mãos, colar ao pescoço, argolas nas orelhas, coroa na cabeça, se prostitui, se entrega a todos os que passam, aos filhos do Egito, aos filhos da Assíria, a todos os estrangeiros; edifica casa de impudicícia em to das as praças públicas, e corre atrás dos amantes, fazendo-lhes presentes. Apesar de tudo, Jeová perdia aquela, com quem fez pacto no deserto, e promete fazer com ela um novo pacto, que então será eterno. Esta alegoria, que aparece a cada canto da Bíblia, é a história figurada do judaísmo; ela representa a ternura imensa, infinita de Jeová a seu povo, ternura de marido, que perdoa a infidelidade da esposa, ternura que vai além do amor materno. “O Senhor me desamparou, o Senhor se esqueceu de mim”, diz Sião. E Jeová responde pela boca do grande Anônimo, cuja obra se acha compilada nos capítulos XL a LXVI do Livro de Isaias: “Acaso pode uma mulher se esquecer do filho, de sorte que não tenha compaixão do fruto de suas entranhas? E quando ela se esquecesse, eu não me esqueceria de ti”. (21) 376 Mas este Deus de ternura, sempre disposto à indulgência, este Deus que aplaude o Messias, quando este entrega o corpo aos que o ferem, as maçãs do rosto aos que lhe arrancam os cabelos da barba, quando não oferece a face aos que o injuriam e lhe cospem em cima, este Deus de clemência, de piedade, de misericórdia, de caridade, conseguiu o triunfo efetivo da justiça sobre a terra? Conseguiu efetivamente Jeová “quebrar as ca deias da iniqüidade, despedaçar os laços da opressão, apesar de ser este o culto, que lhe agradava?” A verdade é que o cristianismo, apelando para um reino, que não é deste mundo, com a noção de um Deus, que recompensa ou castiga em uma outra vida o homem justo ou culpado, noção inteiramente desconhecida do judaísmo, adiou indefinidamente a solução de uma questão, que fez o tormento e ao mesmo tempo a grandiosidade dos profetas de Israel. (Transcrito de Ensaios de Crítica, Recife, Diário de Pernambuco, 1904, págs. 69-97). NOTAS (1) Vide Rodolphe Dareste, Études d’Histoire du Droit, pág. 64. (2) Le Crime et la Peine, Capitulo XV. (3) Cours de Litterature Celtique, por D’Arbois de Jubainville, pág. 76. (4) Cit. Dareste, pág. 71. 377 (5) Gênesis, Capitulo VI, vv. 13 e 17. (6) Gênesis, Capítulo VII, vv. 21, 22, 23. (7) Ezequiel, capítulo 37, vv. 4 a 11. (8) Amós, capítulo V, vv. 21 a 24. (9) Oséas, Capítulo II, vv. 14, 15, 16. (10) Oséas, Capítulo II, vv. 18, 19, 20. (11) Oséas, Capítulo X, v. 12. (12) Isaias, Capítulo I, vv. 10 a 18. (13) Isaias, Capítulo IX, vv. 6 e 7. (14) Isaias, Capítulo II, v. 24. (15) Isaias, Capítulo III, vv. 16 a 23. (16) Isaias, Capítulo XI, vv. 6, 7 e 8. (17) Vide Essais de Critique Historique, Philosophique et Litteraire, por T. Cotani. (18) Les Prophetes d’Israel, por James Darmesteter, págs. 89 e 90. (19) Jeremias, Capítulo 21, v. 7. (20) Jeremias, Capítulo XXXVIII, vv. 17 e 18. (21) Isaias, Capítulo XLIX, v. 15. 378 3. O INFANTICÍDIO No direito penal a palavra infanticídio perdeu sua significação etimológica, tanto que, vindo de intans e coedere, hoje é empregada no sentido restrito de morte do recém-nascido e por motivo de honra. A característica do infanticídio está em que a morte do recém-nascido tenha tido por móvel o ocultamento da desonra da mãe. Fora desta circunstância não há razão alguma para destacar o infanticídio da figuração geral de homicídio. A disposição única, que o Código diz respeito ao infanticídio, é a concebida nos seguintes termos: “Se o crime for perpetrado pela mãe para ocultar a desonra própria”. Dos termos – ocultar a desonra própria – se deduz a necessidade de que a mãe do recém-nascido seja mulher honesta ou geralmente tida como tal. No infanticídio não se trata, pois, de um homocídio cometido por mãe de vida livre ou manifestamente licenciosa. Dos termos – ocultar desonra própria – resulta ainda que não se pode admitir a minoração do infanticídio no caso, em que a mãe, os avós maternos, o marido ou o irmão, não se acham no estado de espírito, em que o nascimento da criança seria a prova evidente da desonra materna. 379 Assim, não aproveitaria a minoração da pena à mulher que quatro meses depois de casada desse à luz uma criança filha do próprio marido. A mulher não pode alegar desonra perante o marido, e este desonra perante o público. O Código fala nos sete primeiros dias do nascimento, deixando no esquecimento o momento do parto, o qual pode prolongar-se por muito tempo, desde as primeiras dores até que a criança se desprenda da mãe, pela secção do cordão. O Código em vigor considera infanticíd io a morte do infante praticada por qualquer pessoa dentro de sete dias depois do nascimento. Em sua noção lata compreende toda e qualquer pessoa, que por atos negativos ou positivos pratica a morte de um infante. É assim que pune com as mesmas penas a mãe que mata o filho, recusando-se a amamentá-lo, o pai que produz a morte do filho, deixando de dar ama de leite na impossibilidade da mulher; a ama que assassina a criança, que lhe fora confiada, furtando -se à obrigação de amamentá-la. Com a acepção lata que deu ao infanticídio, e punindo-o com as mesmas penas que o homicídio em geral, não se compreende para que o Código vigente fez do infanticídio uma figura especial de crime. Para conseguir o resultado a que chegou, bastava considerar a causa honoris circunstância atenuante. Não se compreende a razão, pela qual o Código submeteu a figura do infanticídio ao círculo de ferro dos sete dias depois do nascimento da criança, a qual precisa 380 de defesa social tanto com um dia quanto com um ano, e até mais, depois de nascida. O motivo da especialização não provém da circunstância de tempo, e assim pouco importa o maior ou menor número de dias do recém-nascido para figuração do infanticídio. A determinação de um prazo só tem razão de ser na hipótese honoris causa. A menos que o Código tivesse em vista exclu sivamente proteger os assassinos de recém-nascidos, não se compreende a figura especial do infanticídio, tanto mais quanto em sua especialização o Código passa uma esponja sobre as circunstâncias agravantes, não esquecidas aliás pelo Código Português. Compreende-se, em relação ao infanticídio praticado por mãe ilegitimamente fecundada, que o Código estabeleça um prazo, dentro do qual supõe não ser notório o nascimento, falta de notoriedade sobre a qual se baseia a circunstância honoris causa; mas não se explica que a todo e qualquer caso de infanticídio o Código houvesse imposto o barbicacho dos sete dias. Além de sua falta de senso quanto à primeira semana depois do nascimento. o Código não foi mais feliz, quando deixou sem amparo a criança por ocasião do parto. Pela letra do Código está entregue ao desamparo a criança que as nascer foi asfixiada, quer pela parturiente, quer pela parteira. Considerando a causa honoris o traço característico do infanticídio, a razão de ser de sua 381 figuração especial, o infanticídio vem a ser a morte de uma criança na ocasião de nascer, ou recém-nascida, por atos negativos ou positivos, com o fim de ocular a desonra, que o autor do crime faz valor. Assim é infanticida o pai ou o marido que, por se julgar desonrado, mata o produto dos amores ilícitos da filha ou mulher. O Código, porém, só admite a minorante causa honoris para a mãe, seja, entretanto, esta legítima ou ilegítima, como se no caso de concepção legítima pudesse militar em favo r da mãe, que mata o fruto de suas entranhas, a circunstâncias honoris causa. Nem há razão para não estender a minorante aos avós maternos, ao marido e até ao próprio irmão, que procura ocultar a desonra da irmã. O motivo, que influi sobre o espírito de ta is pessoas, é o mesmo que leva a mãe a matar o filho: a desonra. Antes nosso Código houvesse seguido o exemplo de outros, incluindo o infanticídio na configuração geral do homicídio, admitindo, porém, a minorante causa honoris não só para a mãe criminosa como para o marido, para os pais e até para os irmãos no caso de concepção ilegítima. O Código Brasileiro considera infanticídio somente a morte do filho ilegítimo praticado pela mãe para ocultar a própria desonra; mas o Código Italiano, reconhecendo que o nascimento do filho ilegítimo desonra não só a mãe, mas toda a família, inclui na categoria de infanticídio a morte praticada pelo marido, 382 pelos ascendentes, pelos filhos, pelos irmãos com o fim de ocultar a desonra da esposa, da mãe, da descendente, da filha adotiva, da irmã. O Código do Uruguai em seu artigo 330 também equipara o infanticídio praticado pela mãe ao que cometem o marido, os irmãos, os filhos, os pais legítimos, naturais ou adotivos. *** Para ter lugar o infanticídio é preciso que em relação à mãe haja necessidade de ocultar sua desonra, e em relação ao marido, avós maternos, irmãos ou filhos, estes se sintam ofendidos em sua honra com o nascimento da criança. Se trata-se, por exemplo, de mulher seduzida, e cujo amante foi processado por iniciativa da ofendida ou de seus parentes, neste caso não há honra que ocultar. Da mesma sorte, se o marido tinha ciência e consciência do adultério, é ele o menos competente para alegar em seu favor a desonra da família. Nas mesmas condições estão os pais, avós ou irmãos que vendem a honra das filhas, netas ou irmãs. Figuremos a hipótese que, quatro meses depois de casada, a mulher dá à luz uma criança que concebeu do marido antes do casamento. Neste caso nem a mãe, nem o marido, nem os pais, nem os avós, nem os irmãos podem alegar desonra, por se achar legitimado o filho pelo matrimônio subseqüente à concepção. 383 Mas não é somente a desonra que leva a mãe a dar cabo de crime de infanticídio perante o Tribunal de Limoges: “Eu era criada há dois anos; fiquei grávida. Como se aproximava a ocasião do parto, o patrão me despediu, dando meus salários, que montavam a 35 francos. Fui ter a Limoges, em casa de uma parteira. A 22 de dezembro dei à luz, em casa desta mulher, uma menina. Antes do parto já tinha uma fort e inflamação. Faltando o leite, não pude dar o seio a minha filha. Como não tinha leite e continuava sempre doente, a parteira me apresentou conjuntamente com minha filha ao Hospício de Limoges; mas não fomos aceitas. Como não havia mais dinheiro, declarou-me a parteira que não podia conservar-me por mais tempo em sua casa, e tive de partir neste mesmo dia entre meio dia e uma hora, levando comigo minha filha. Até então ela tinha sido alimentada com água açucarada; mas desde aquele momento até ao dia seguinte, em que morreu, não tomou ceia da mesma sorte que eu. A 28 de dezembro, à noite, parei em uma aldeia, e pedi em uma casa agasalho, que me foi concedido. Fazia muito frio, Como não havia leito, tive de passar a noite em um curral, com minha filha. Na manhã seguinte continuei meu caminho. Passei ainda o dia sem comer coisa alguma, não ousando implorar a caridade. Eu caminhava difi cilmente, e não cheguei senão às nove horas, conduzindo sempre minha filha nos braços. Ambas estávamos 384 transidas de frio; então não tinha mais cabeça. Estrangulei minha filha e a lancei num poço, que existia perto da estrada. Quis matar-me, mas faltou-me a coragem”. Não menos pungente é o drama de Maria Darthiailh, contado por R. Davenne no Droit des Femmes, edição de 1884: “Maria Darthiailh habitava Villandraut, perto de Bazas, no departamento da Gironda. Na idade em que nossos filhos vão à escola, aos dez ou doze anos, seus pais, carregados de família e vivendo miseravelmente, a colocaram como criada em casa de outros camponeses menos indigentes. Eu não sei se os leitores – e as leitoras – do Droit des Femmes poderão facilmente figurar o que é uma criada no campo. Desde os primeiros clarões da manhã até horas adiantadas da noite, sob a chuva, o vento, a geada, sob um sol de brasa no verão, ela trabalhava, cava a terra ou ceifa o trigo. Pés nus, cabeça descoberta, vai nos regos com água até aos joelhos, ou caminhando sobre as hastes pontudas, que deixa o trigo depois de cortado. A besta de carga – a vaca, o cavalo ou o asno – que trabalha menos do que ela, tem direito a mais cuidados. É a criada que lhe faz a cura e dá o feno, enquanto os homens tomam sua refeição. Muitas vezes não come, indo e vindo, senão um pequeno pedaço de pão, que se lhe dá como por caridade, e com o qual de ve contentar-se até tarde da noite. 385 Este ofício, este regimen, esta existência de condenado aplicada a uma criança, Maria Darthiailh suportou até ao dia em que veio sentar-se sobre o banco dos réus. Aos dezessete anos Maria Darthiailh ficou grávida. Para nutrir seu filho e a si própria, redobrou de esforços e de trabalho. Muitas vezes repelida, permanecendo longos dias sem comer, ela se deixa arrastar novamente pela obsessão da miséria e se torna grávida uma segunda vez. Então, sempre repelida, a infeliz, nos últimos momentos de gravidez, mais morta do que viva, aceita como um benefício a hospitalidade de uma mulher da localidade num telheiro, exposto ao ar, à chuva, a todas as intempéries do inverno. Ali deu à luz entre sofrimentos atrozes. Deitada sobre a terra úmida, quase na lama, levou semanas a se restabelecer, e, diz uma testemunha, mais abandonada do que um animal. Enfim, põe-se de pé e se retira para casa dos parentes que moram a certa distância. Ah! O pão também lá faltava. Sua última criança era uma menina. Ela a conduziu em seus braços, mas seu seio que nada alimentava, não podia fornecer leite à recém-nascida, que morria lentamente aos olhos da mãe. Foi em tão horríveis circunstância que, esta, em um indômito movimento de desespero, tomou a crianç a e a lançou n’água. Eis o fato brutal, em toda sua atroz ingenuidade”. 386 Comrpeende-se a sociedade absolvendo a mãe, que mata o filho por falta de meios para sustentá-lo. Não é por egoísmo, por cálculo, por perversidade que ela o mata, é para arrancá-lo à fome. “Seu crime, no dizer de Ernesto Legouvé, não foi senão o desespero da ternura”. Para condenar a mãe infanticida, a sociedade deveria condenar em primeiro lugar a si própria e ao sedutor, porque o crime não é senão o resultado da má organização social, deixando impune o pai criminoso e abandonando na estrada pública pessoas, que não podem lugar pela existência. Mas haverá razão para ser menos rigoroso com a mãe que mata o filho a fim de ocultar sua desonra? Não será um absurdo minorar a pena do crime, q ue é cometido para ocultar a falta? Qual será o motivo que explica, se não justifica, esta incongruência? Por que colocar a maternidade ilegítima em um plano superior à maternidade indigente? Parece que não há maior falta de lógica social. A mãe que mata o filho para ocular sua desonra, como que é a negação da maternidade, benfeitora para a raça, protetora para a infância, sacrificando a inocência à falsa honra. Donde vem a contradição de minorar a pena da mulher, que comete um crime para ocultar uma falta: Não será inepta e hipócrita a sociedade, que minora a pena da mulher, que mata o filho para ocultar a desonra, proveniente da concepção ilegítima? 387 O que explica e justifica a minoração da pena causa honoris é que a mulher que mata o filho para ocultar a desonra, dá testemunho de que o indivíduo não vale senão pelo conceito que a sociedade forma a seu respeito. O infanticídio é uma espécie de sacrifício de Abraão do mundo feminino: a mãe imola o filho ao sentimento da honra, elevada à altura de dever supremo, acima mesmo do sentimento da maternidade. Tal é a lógica do infanticídio, lógica à primeira vista contraditória, incongruente, absurda; mas, entretanto, de harmonia com o fundo da alma coletiva, de acordo com o raciocínio afetivo da comunhão, expresso nos códigos penais. Pelo infanticídio a mulher afirma, certamente de um modo feroz, que ela vale menos pela sua pessoa individual, pelo seu eu do que pela sociedade, a cujas idéias e sentimentos ela se sacrifica e sacrifica o fruto de seus amores. Que importa que as idéias e sentimentos da sociedade sejam prejuízos? São prejuízos que constituem o trama da lógica social, a qual contribui para reforçar o laço da comunhão. “Mas na cidade antiga, na comuna da Idade Média, escreve Tarde, os indivíduos estão pront os a sacrificar, seja sua própria vida, seja a de seus semelhantes, a um fim que ultrapassa seu interesse particular, a uma opinião que não é sua idéia particular, ou por outras palavras, mais há ao mesmo tempo devotamento e desumanidade nos costumes, e mais o 388 grupo social, em lugar de ser uma simples pessoa moral, torna-se uma pessoa real e viva, independente das vidas humanas que a compõem”. É possível que o infanticídio desapareça algum dia, como desapareceu a escravidão, e tende a desa parecer o duelo; mas é preciso que se dê uma outra organização social, em que se modifique profundamente o conceito de honra feminina. Por enquanto é uma conseqüência necessária da lógica social, que eleva a honra feminina à categoria de suprema virtude, base de toda pureza de costumes. Houve um tempo em que a escravidão teve sua utilidade prática, da mesma sorte que a tortura, o corso, o duelo; hoje o infanticídio tem, senão sua beleza, como alguém já disse do duelo, ao menos sua explicação, e justificativa em face da lógica social, que considera a honra feminina o valor moral por excelência. Sim, a honra constitui um valor não menos precioso do que a riqueza. Ihering considera a honra um bem sui generis, imaterial; mas, nem por isso, deixa de ser um bem jurídico. É o sentimento da honra é menos um bem individual do que um bem público. A honra constitui um elemento histológico do corpo social, e, mais do que a riqueza, sua conservação interessa cada vez mais à sociedade. Nestas condições os códigos minoram a pena da mãe, que mata o filho para ocultar a falta, que a sociedade considera uma ofensa ao sentimento de honra 389 da coletividade, e assim procedendo, eles não fazem senão agir de acordo com a lógica dos sentimentos, ou melhor, com a metafísica do coração. Além da lógica racional, o direito faz questão de lógica afetiva, e as duas lógicas, no dizer de T. Ribot, desenvolvem-se por processos especiais, como expressões e tendências opostas da natureza humana. (Transcrito a A Cultura Acadêmica, Recife, 2 (2-1) – 71?78, agosto de 1905). 390 4. REFORMA DO ENSINO (Discurso pronunciado na Câmara Federal) O Sr. Artur Orlando – Sr. Presidente, é sempre perigoso falar depois de um deputado como o que acabou de ocupar a tribuna; mas o Sr. Castro Pinto falou ontem com tanta bravura intelectual e moral, com tanto desassombro, com tanta eloqüência que, ao calor de sua palavra, vibrou minha alma como vibra a terra aos raios do sol. Sr. Presidente, ao calor de sua palavra, dei um aparte. S. Exa. contestou o meu aparte; eu repliquei; S. Exa. treplicou: eu pedi então a palavra. Foi o meu mal, ou antes, foi o meu castigo... Um Sr. Deputado – Foi um bem. O Sr. Artur Orlando - ... porque, Sr. Presidente, tive de passar uma noite em claro, a copiar páginas e páginas de relatórios de ministros, para hoje poder responder condignamente a S. Exa. E pela manhã, antes de vir para a Câmara, tive de ir a um consultório médico. Narrei o acontecido. O médico censurou o meu procedimento e disse-me ele: “Você não sabe que padece de artritismo com fundo neurastênico?” Eu pensei que seria preferível a inversão dos termos: “Você não padece de neurastenia com fundo artrítico?” 391 Mas a musa da medicina é digna irmã da musa da felicidade. A gente deve respeitá-la muito, mesmo porque, quando ela entra em casa, a gent e, quer queira, quer não, há de ser feliz. Depois disse: “Que vai fazer?” “Vou responder a um meu colega”. “Faça, mas reduza a escrito o que tem a dizer. Não é muito comum, não é usual, mas faça -o. Aliás, o senhor tem necessidade de poupar muita força mental, sobretudo a memória, e o senhor, reduzindo a escrito o que tem a proferir, mesmo pela preguiça de escrever, necessariamente poupará muitas palavras”. “E se me derem apartes?” Ele ficou embaraçado, mas depois disse: “Não responde absolutamente. (Riso) O aparte é contra-indicado. Continue no seu regimen dietético, no regime lácteo vegetal”. “E as carnes?” “As carnes brancas, a caça, respondeu: a alta caça”. “E as frutas? “Bem cozidas”. Disse ele: “As frutas são boas para a alimentação mas devem ser bem cozinhadas, é o processo empregado ultimamente pelo célebre professor Metchnikoff”. “Não está contente, perguntou-me ele, com o regime prescrito? Se não está satisfeito, posso passar outro, modifico à sua vontade”. “Não senhor, muito obrigado, estou satis feitíssimo”. Sr. Presidente, recordo-me de ter lido, sem me lembrar onde, porque, pelo horror que tenho à tribuna, sinto que foge-me a memória, essa deusa magnânima 392 que os gregos, com o seu admirável senso prático e incomparável gênio poético, fizeram companheira inseparável de Júpiter, quer no Olimpo, quer no Parnaso, e de cujo consórcio nasceram as primeiras musas, à mais velha das quais, Memória, que era assim o seu nome, prestava homenagem o filho querido de Apolo, o popularíssimo Esculápio (os médicos se mpre tiveram muita popularidade) e se curvava reverente o próprio tempo, que tudo destrói, Saturno que devora os próprios filhos, como dizia, recordo -me de que li em alguma parte, que há na vida moral, uma lei terrível, muito embora proteste a consciência – é a que pune as falas dos pais sobre os filhos até a terceira e quarta geração, e esta lei existe mais terrível ainda no mundo político, onde muitas vezes é a centésima geração que paga as faltas que não cometeu. Com efeito, todos se julgam com competência para discutir esta questão e com direito para propor reformas que afirmam ser a solução do problema. Mas poucos, bem poucos são os que têm bastante coragem para confessar a sua ignorância e bastante escrúpulo para vacilar diante da formação de um juízo definitivo. Cada um quer impor o seu sistema, sem se lembrar que pelo simples gosto de fazer um ensaio submetem-se milhares de consciências, milhares de inteligências a uma regra uniforme, que muitas vezes não passa de uma criação fantasiosa de um espírito utopista, porém, que pode prejudicar perniciosamente a centenas de gerações. 393 Entretanto, senhores, a mocidade é o orgulho, a maior riqueza de um país! Seus destinos, portanto, não podem ser abandonados àqueles que não trepidam fazer dela, mocidade, um objeto de experiência em anima vili! O que vem dito não se aplica a nenhum dos membros da Comissão e muito menos ao emérito relator do projeto; conheço-os todos: o Sr. Teixeira Brandão, tão notável por seus trabalhos sobre medicina, quer pública, quer privada; o Sr. Leão Veloso, de cuja exuberância de saber e louçania de estilo, todos os dias dá testemunho à imprensa desta Capital; o Sr. José Bonifácio herdeiro do talento e eloqüência dos Andradas; o Sr. Campos Cartier, sempre tão refletido e ponderado; o Sr. Antero Botelho, tão modesto, quanto ilustrado; o Sr. João Vieira, portador de vasta erudição; o Sr. Passos Miranda, tão artista da palavra, quão meticuloso investigador, o Sr. Valois de Castro, que desempenha o seu mandato com tanto proveito ara o país, quanto brilho para a Igreja, e o Sr. Afonso Costa, autor da excelente memória que vem ilustrando o projeto. Mas, Sr. Presidente, como dizia, qualquer que sema a importância dos outros problemas sociais, para mim a grande questão é a do ensino público; para m im esta é a questão de todos os tempos e lugares, a que surge cada vez mais complicada, a que vai do nascimento à morte das sociedades. A razão é simples: a sociedade caminha e nós procurando saber para onde ela vai; não nos contentamos de olhar somente para o passado, queremos 394 adivinhar o futuro. Senhores, o que vou dizer sobre matéria de nacionalização do ensino não passa de reprodução – devo confessar – do que tenho, por mais de uma vez dito e escrito sobre o assunto. Mas confesso, que sinto o maior prazer nesta reprodução, porque vejo que não é de hoje, vem de longe a minha harmonia de vistas com tão eminentes espíritos, em assunto de tamanha importância. Coma teoria do causalismo psíquico, aceitando as idéias e os sentimentos como força evolutiva do seio do determinismo universal, o problema pedagógico assumiu importância capital, tornou-se o problema dos problemas. Como já tive ocasião de dizer, sua solução definitiva seria a realização presente de todo o aperfeiçoamento futuro, se as sociedades, em sua ascensão evolutiva, não fossem embaraçadas pela força da hereditariedade. (Muito bem). Não desconheço a importância da organização do trabalho, da organização do crédito, da organização da previdência. Mas todos estes expedientes econômicos, para produzirem todos os seus salutares efeitos, precisam assentar sobre a base mais larga e mais sólida da educação. Senhores, enquanto não se fizer uma educação que dê o sentimento da eficácia do trabalho, que coloque a força mental do homem acima das convenções sociais, que faça do cérebro do homem um centro de atividade, e ao mesmo tempo um foco de luz, por mais deslumbrantes que sejam os resultados da civilização, por mais que melhore as indústrias, não melhorará a 395 sorte do trabalhador; pelo contrário, ela se agrav ará, tornando cada vez mais desproporcional a troça de serviços, submetendo cada vez mais o trabalho ao capital. Tratando dos efeitos perniciosos da plutocracia, esse estado da sociedade, em que a riqueza é o nervo de todas as coisas, afirma Renan, que o r emédio para o mal não está em fazer com que o pobre possa se tornar rico, nem excitar nele esse desejo, mas fazer com que a riqueza seja uma coisa insignificante e secundária, com que sem ela se possa ser muito grande, muito nobre, muito feliz, com que sem ela se possa ser influente e considerado no estado. A propriedade, diz o conde de Leão Tolstoi, significa o que me foi dado, o que pertence exclu sivamente a mim aquilo sobre que eu possa fazer tudo que quero, o que ninguém pode tirar-me o que permanece meu até o fim de minha existência. Ora, diz ele, esta propriedade para o homem é ele mesmo, e somente ele. Senhores, não somente as reformas econômicas, mas ainda as políticas, estão subordinadas ao problema pedagógico. O absolutismo no mundo moderno, afirma um profundo pensador, não se baseia sobre a força dos que governam, mas sobre a ignorância dos governados. Senhores, como organismos que se desenvolvem, as sociedades estão sujeitas a uma variedade infinita de condições, mas todas elas podem reduzir-se a três principais: solo, língua e tradições comuns. 396 Nós temos continuidade de solo, unidade de língua; mas falta-nos comunhão de tradições. Em geral ignoramos o que pensaram e sentiram os nossos antepassados, que virtudes os animaram, que concepções se aninharam em seus cérebros, que idéias presidiram os seus atos. Daí concluo a necessidade de nacionalizar a nossa educação, de organizar a escola, de acordo com os nossos usos, costumes e tradições e de aproveitar as forças vivas do país na formação do caráter brasileiro. “Não convém encarar – diz Dreyfus Brisac – as instituições escolares como seres abstratos e isolados, mas pelo contrário, colocá-las em seu quadro natural, no meio social e político, em que são destinadas a viver e a desenvolver-se”. “Costumam perguntar, escreve Guyot – se a educação tem um fim individual ou um fim social. Ela tem esses dois fins ao mesmo tempo: é precisamente a investigação dos meios para por de acordo a vida individual mais intensa, com a vida social mais extensiva”. Senhores, para mim é preciso elevar a questão, abandonar o velho e gasto lema da centralização ou descentralização para considerar a educação, segundo entende Dreyfus Brisac, isto é, “não como a criação de tais ou tais corporações livres ou oficiais, como a função de tais institutos públicos ou privados, mas como esforço contínuo e perseverante da própria nação, trabalhando com todas as suas forças e por todos os meios a seu alcance para uma cultura enérgica intensiva, 397 para o desenvolvimento normal e progressivo de todos os poderes intelectuais e morais”. (Muito bem) Entendo por educação nacional a que sai do próprio seio da nação, de harmonia com a economia geral do organismo social sob a influência do solo, do clima, da raça, dos costumes, das tradições, de todas as circunstâncias em cujo meio o Estado vive e se desenvolve. (Muito bem) Sabido o que seja educação nacional, façamos um pouco de história. é possível que a experiência do passado derrame alguma luz sobre o presente e produza talvez alguns frutos sazonados para o futuro. A história da pedagogia no Brasil pode ser dividida em diversos períodos: Primeiro período: Desde a descoberta do Brasil até a expulsão dos jesuítas. Segundo período: Desde a expulsão dos jesuítas até a vinda da família real para o Brasil. Terceiro período: Desde a vinda da família real até a proclamação da Independência. Quarto período: Desde a proclamação da Independência até a chamada para o Ministério do Império do Dr. Luiz Pedreira do Couto Ferraz, que foi o primeiro ministro organizador da instrução pública entre nós. Outro período vai desde a retirada do Dr. Couto Ferraz, até a proclamação da República. Finalmente, o período que vai da proclamação da República, até o projeto que se acha em discussão. Senhores, o período mais fecundo da pedagogia brasileira é o período do ensino jesuítico. 398 Para não gastar palavras basta lembrar que Anchieta, com a sua gramática tupi, abriu as portas do Brasil Ocidental aos descobridores do Brasil Oriental. Mas, além disso, é o período em que florescera m Basílio da Gama Rocha Pitta, o baiano Gregório de Matos, e o pernambucano Bento Teixeira Pinto, autor da Prosopopéia, em que ele vaticinou os altos destinos de Pernambuco e também autor dos Diálogos das Grandezas do Brasil em que profetizou, de modo claro e preciso, a vinda da família real para a nossa terra. O segundo período é talvez o mais estéril, apesar da criação do subsídio literário e das medidas violentas do Marquês de Pombal. Não satisfeito com a expulsão dos jesuítas, o ministro de D. José I ba niu os próprios compêndios, castigando com pena de prisão quem continuasse a lecionar pela Arte de Manoel Álvares e ordenando que o ensino de latim fosse dado tão -somente pelo Novo Método do Padre Antônio Pereira, que ainda hoje é usado. O subsídio literário consistia em cobrar um real sobre cada arratel de carne vendida nos açougues e 10 réis sobre canada de aguardente fabricada no país. Apesar de tudo, o ensino público caiu em tal degradação que, neste longo período que vai desde a expulsão dos jesuítas até a vinda da família real para o Brasil, nada se encontra digno de menção, exceto a criação da cadeira de retórica e poética, para ser dada a Silva Alvarenga, a cujos ensinamentos se deve a formação de S. Carlos, Mont’Alverne e outros oradores de igual coturno. 399 Com a vinda da família real para o Brasil, como era natural, desenvolveu-se o movimento intelectual brasileiro, e D. João VI, que era dado às letras, encarregou o general Francisco Stockler de organizar um projeto de instrução pública. O general Fra ncisco Stockler apresentou o seu projeto a D. João VI, projeto cuja organização consistia em dividir o ensino em quatro estádios. O primeiro compreendia todos aqueles conhecimentos, sem os quais, dizia o general Stockler, não se compreende um cidadão. O segundo estádio compreendia todos aqueles estudos que vinham dar ao cidadão uma educação integral, uma educação que dizia respeito a todas as manifestações da alma humana. Era a educação de um cidadão perfeito e acabado. O terceiro estádio exigia todos os estudos que eram necessários e indispensáveis para que o cidadão pudesse matricular -se em qualquer academia de direito, de medicina ou de engenharia. Finalmente, o quarto estádio compreendia os estudos particulares que constituíam o objeto das escolas de direito, medicina, engenharia e até de teologia. As primeiras escolas chamavam-se pedagogias e os mestres pedagogos; as segundas institutos e os mestres institutores; as terceiras liceus, como hoje os mestres professores, e as quartas academias e os mestres lentes, como ainda hoje. A proclamação da Independência do Brasil devia trazer como conseqüência o melhoramento da instrução pública, mas assim não sucedeu, porque os nossos estadistas, preocupados com as grandes agitações 400 políticas, então, não puderam prestar atenção ao problema que, entretanto, mais diz respeito ao progresso e ao desenvolvimento dos povos, como é da instrução pública. Além disto, predominavam então as idéias dos teoristas franceses para os quais tudo que diz respeito à instrução pública deve ser deixado, como eles diziam, à influência salutar da liberdade, da emulação e da concorrência. A Lei de 15 de outubro de 1827 mandou criar escolas de primeiras letras em todo o Brasil, isto é, em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos. Seria adotado o sistema mútuo de ensino e os professores seriam obrigados a ensinar a ler, escrever, as quatro operações fundamentais da aritmética, frações, sistema decimal, proporções, rudimentos de geometria e doutrina cristã. Essa reforma, acanhada no fundo e na forma, foi um verdadeiro fiasco, que os ministros que se sucederam na pasta do Império não fizeram senão agravar ainda mais, alegando em seus relatórios, como se lê, ora, a falta de estabelecimentos, ora a in competência dos professores, ora a insuficiência dos vencimentos. Menos desafortunado se pode dizer o ensino secundário. Restabelecido desde 1821, dez anos depois, em 1831, passou o seminário de São Joaquim por uma reforma, em virtude da qual foi criada uma cadeira de manejo e exercício da guarda nacional. 401 Somente em 1837, deixou o Seminário Imperial, como então era conhecido, de ser um seminário dobrado de uma escola militar, para se transformar em um verdadeiro instituto de ensino secundário sob a denominação de Colégio de Pedro II, reforma importantíssima por ser o início de uma educação integral. O curso constava do ensino das línguas latina, grega, francesa e inglesa, de retórica, dos princípios elementares de geografia, história, filosofia, zoologia, botânica, mineralogia, química, física, ar itmética, geometria, álgebra e astronomia. Mais tarde, em 1841, foi reformado o regulamento, não só por ter parecido ao Governo insu ficiente o prazo de seis anos para o ensino de todas as matérias, como porque nos primeiros anos eram exigidos dos alunos, estudos para os quais não tinham a inteligência bastante desenvolvida. Nestas condições, foi o curso elevado para sete anos, em vez de seis, sendo o primeiro ano aliviado do ensino de aritmética e geografia, que só aparecia no segundo; a latinidade que ocupava três anos, passou a ser lecionada em cinco, a história natural foi transferida do terceiro ano para o quinto; a física e a química do quarto e quinto ano para o quinto e sexto, a filosofia do quinto e sexto para o sexto e sétimo. Criadas pela Lei de 11 de agosto de 1827, as Academias de Direito de São Paulo e do Recife, mais tarde o Seminário de Olinda foi convertido no Colégio das Artes, de acordo com os estatutos anexos àquela 402 Lei, e em cujo capítulo relativo às matrículas se lia o seguinte: ‘Sendo necessário que os estudantes, que houverem de matricular-se nas aulas jurídicas tenham a conveniente idade e os estudos prévios que preparam o entendimento para prosperar nos maiores, nenhum poderá matricular-se sem apresentar certidão de idade, pela qual conste que tem 16 anos para cima, porque só desta época em diante poderão ter os necessários preparatórios e o espírito medrado e disposto para bem conceber as matérias da ciência a que se dedicam e discorrer sobre ela com mais madura reflexão. Juntarão também certidão de exame e aprovação das línguas latina e francesa, de retórica, filosofia racional e moral, aritmética e geometria. O conhecimento perfeito das línguas latina e francesa, sobre dever entrar no plano de uma boa instrução literário para conhecimento dos livros clássicos de toda a literatura é peculiarmente necessário para os estudantes juristas. Na primeira está escrito o Digesto, o Código, as Novelas, os Institutos e os bons livros de direito romano, o qual, posto que só há de ser elementarmente ensinado neste curso jurídico, deve de força ser estudado, bem como as instituições de Pascoal de Melo Freire e algumas outras obras jurídicas de autores de grande nota que andam escritas na mesma língua. E na segunda se acham também escritos os melhores livros do direito natural, público, e das gentes, marítimo e comercial, que convém consultar, maior 403 mente entrando estas doutrinas no plano de estudos do curso jurídico, e sendo escritos em francês muitos dos livros que devem por ora servir de compêndios. O estudo da retórica é também indispensável aos que se dedicam à jurisprudência, porque o advogado deve saber a eloqüência do foro; e a arte de bem falar e escrever, muito necessária é aos que houverem de ser deputados nas assembléias ou empregados na diplomacia, e uma vez que a retórica se ensina como convém, mais por modelos do que por áridos preceitos, será mui proveitosa aos fins propostos, não sendo também indiferente, antes necessária e útil aos magistrados que têm muitas ocasiões de falar e escrever. A filosofia racional apura o entendimento e ensina as regras de discorrer e tirar conclusões certas de princípios; o que é assaz necessário a todo homem literato e particularmente ao jurisconsulto não só porque tem necessidade de saber discorrer com pr ecisão todas as matérias; mas porque sendo certo que nem todos os casos podem especialmente prevenir -se e acautelar-se nas leis, de força há de estender-se para casos idênticos a idêntica razão de direito. Parte dela é além disto a arte crítica, que ensina avaliar os quilates das provas e conhecer onde se encontra a evidência moral ou a certeza de dúvida do testemunho por documentos e afirmações verbais; e a moral ou ética é como a base, ou antes o primeiro degrau para o estudo do direito natural, que é a primeira e a mais fundamental ciência que deve ocupar o ânimo de jurisconsulto, como o primordial assento da jurisprudência. 404 “Não é menos necessário nem menos útil o ensino de aritmética e geometria; esta pelo muito que concorre para se discorrer com método, clareza, precisão e exatidão, e aquela porque convém que a saiba todo o homem, a fim de conhecer o melhor método de contar, e tirar desse conhecimento os multiplicados subsídios que ele pode prestar nos usos da vida; além disso, aproveitam muito particularmente ao magistrado, advogado ou diplomata que no exercício de seus respectivos empregos acharão repetidas ocasiões de aplicar com proveito os princípios que tiveram destes dois importantíssimos ramos de ciências matemáticas”. Admira que deste modo ainda discorresse o visconde de Cachoeira, autor dos estatutos, quando já em 1792, Condorcet tinha apresentado à Assembléia Legislativa Francesa os seus importantes projetos, e Diderot em 1885, havia publicado sua notável exposição, que escrevera a pedido de Catarina II, a “Semíramis do Norte”, tratando da organização de uma universidade na Rússia. “É nas mesmas escolas, dizia Diderot, que se estudam ainda hoje, sob o nome de belas letras, duas línguas mortas, que não são úteis senão a um pequeno número de cidadãos; é aí que se as estudam durante seis a sete aos sem aprendê-las; que sob o nome de retórica se ensina a arte de falar antes da de pensar, a arte de bem dizer antes de ter idéias; que sob o nome da lógica se enche a lista das sutilezas de Aristóteles, e de sua muito sublime e muito sutil teoria do silogismo; que se desenvolve em cem páginas obscuras o que se poderia 405 expor claramente em quatro; que sob o nome de metafísica se trata do tempo, do espaço, do ser, da possibilidade, da essência e outras teses frívolas... e nem uma palavra de história natural nem uma palavra de boa química, muito pouca coisa de física, quase nada de experiências, ainda menos de anatomia, nada de geografia”. O primeiro ministro reformador da instrução pública que tivemos, foi o Dr. Luís Pedreira do Couto Ferraz, pela extensão das medidas que pôs em prática, abrangendo a esfera inteira do ensino primário, secundário e superior. Muito concorreu para o novo estado de coisas o Dr. Justiniano José da Rocha, que, sendo encarregado pelo Governo de visitar e examinar os estabelecimentos de instrução pública, apresentou um luminoso relatório, em que põe a dedo na ferida de nossa educação. “Os pais dos alunos, escrevia o Dr. Justiniano da Rocha, iludidos por deplorável erro, não pedem aos diretores de colégio que ensinem a seus filhos, mas simplesmente que os habilitem no menor prazo possível e com o menor incômodo deles pais e de seus filhos, para os exames preparatórios das nossas aulas superiores. Sob esta condição, os estudos acanhavam-se e perdiam-se. Os alunos mal começavam a habilitar-se, afluíam para o colégio de Pedro II, onde ganhavam, a cabo de um ou dois anos, diplomas de bacharel, que os dispensava do receado exame de preparatórios, ou aproveitando a benignidade de empenhos, que n as escolas superiores desta Capital tanto facilitavam os 406 exames de preparatórios, faziam-se aqui aprovar e iam concluir em São Paulo com o estudo de história e retórica e filosofia, como o entendiam os examinadores daquela cidade, as suas habilitações para o ingresso no curso jurídico, único fim que almejavam alcançar”. Em 1854 pôde o Dr. Luís Pedreira do Couto Ferraz expedir o seu regulamento, que, se não é uma obra perfeita e acabada, contém salutares preceitos sobre a instrução primária e secundária e sobre a inspeção e fiscalização escolar. Quanto ao magistério, o Dr. Luís Pedreira do Couto Ferraz organizou escolas normais, pelas razões que expôs em seu relatório: “Basta, pois, que por agora vos observe que, sem pessoal habilitadíssimo e dedicado para manter e dirigir uma instituição de tal ordem, e tendo diante dos olhos o exemplo das escolas normais estabelecidas em algumas províncias, que nenhum fruto deram por causa daquela falta, pareceria por sem dúvida imprudente arriscar grandes somas e perder inutilmente o tempo preciso para no fim de alguns anos suprimir -se a escola que se criasse. Teve por isso o Governo por melhor experimentar uma nova instituição e achou mais acertado ir educando os futuros mestres nas próprias escolas públicas, aproveitando-se neste intuito alguns meninos inteligentes. Serão estes colocados como adjuntos dos professores mais hábeis com módicas retribuições, até que vão gradualmente progredindo no ensino, a ponto de poderem reger as mesmas escolas, quando vagarem, ou as que de novo se instituírem. Para 407 evitar que este sistema, que em parte já foi adotado na Áustria e na Holanda, e que até certo ponto o foi também em França, pudesse embaraçar o progresso do ensino, tornando-o algum tanto estacionário. Foi a sua adoção, entre nós acompanhada dos convenientes corretivos, tais como a instituição das conferências dos professores em épocas designadas, os exames repetidos todos os anos e outros, além de ficar subordinado ao zelo e a vigilância de uma constante e severa inspeção. Paralelamente aos adjuntos das escolas primárias, criou se para a instrução secundária no Colégio de Pedro II uma classe de repetidores. Esta classe tem de prestar duas vantagens: não só preenche uma lacuna, que a muito se notava na organização do ensino naquele colégio, auxiliando o estudo dos alunos internos, e prestando -lhes os serviços que a sua própria designação indica como também ainda pode vir a preparar excelentes professores afeitos ao estudo e a disciplina, e sem os hábitos do magistério”. De acordo com a reforma, foi regulamentado o plano de estudos do Colégio de Pedro II, sendo dividido o curso em dois ciclos: Primeiro ciclo – 1º ano: Leitura e recitação de português; exercícios ortográficos; gramática nacional, aritmética; gramática latina; francês, compreendendo simplesmente leitura, gramática e versão fácil. – 2º ano: Latim, versão fácil e construção de períodos curtos, com o fim especial de aplicar e recordar as regras gramaticais; francês, versão, temas e conversas; inglês, leitura, gramática, versão fácil; continuação de 408 aritmética e álgebra, até equações do 2º grau; ciências naturais, compreendendo a primeira cadeira zoologia e botânica e a segunda, física. – 3º ano: Latim, versão gradualmente mais difícil e temas; francês, aperfeiçoamento da língua; geometria; ciências naturais, compreendendo a primeira cadeira, mineralogia e geo logia e a segunda química; explicação dos termos técnicos necessários para o estudo da geografia; geografia e história moderna. – 4º ano: Latim, versão e temas; inglês, aperfeiçoamento do estudo da língua e conversa, trigonometria retilínea; ciências naturais compreendendo a primeira cadeira repetição de mine ralogia e geologia e a segunda repetição de física e química, continuação da geografia e da história moderna; corografia brasileira e história natural. Segundo ciclo – 5º ano: Latim, versão para a língua nacional de clássicos mais difíceis e temas; alemão, leitura, gramática, versão fácil; grego, leitura, gramática, versão fácil; filosofia racional e moral; geografia e história antiga. – 6º ano: Latim, continuados das matérias do ano anterior; filosofia, sistemas comparados; alemão, versão mais difícil, temas fáceis; grego, versão mais difícil, temas fáceis; retórica, regras de eloqüência e de composição; geografia e história da Idade Média. – 7º ano: Alemão, aperfeiçoamento; grego, aperfeiçoamento; eloqüência prática, composição de discursos e narrações em português, e quadro da literatura nacional; história da filosofia, latim, composição de discursos e narrações; it aliano. 409 Também foram reguladas as aulas dos cursos anexos às faculdades de direito, bem como as condições para a matrícula nas diversas academias, quer de direito, quer de medicina. Para as faculdades de direito se exigiam as seguintes matérias: português, francês, inglês, latim, retórica, aritmética, geometria, geografia, história e filosofia. Para as faculdades de medicina as mesmas ma térias, sendo substituída retórica pela álgebra. Com a retirada, em princípios de 1857, do Dr. Luís Pedreira do Couto Ferraz da pasta do Império, declinou de tal sorte o ensino público, que em 1865 pôde o Dr. Joaquim Caetano da Silva, o ilustre autor do Oiapoque e Amazonas, escrever o seguinte em favor do ensino particular: “Aparato grande. Despesa grande, resultado pequenino. Eis aí o que apresenta no município da Corte o magistério público, e ao lado dele, o ensino particular, dando à capital do Brasil, sem ônus algum do Tesouro, proveito muito maior. Por que será? Sustentam muitos que é por falta de execução do art. 64 do Decreto 1.331A, de 17 de fevereiro de 1854, o qual comina penas aos pais, tutores e curadores, que tiverem em sua companhia, meninos menores de sete anos sem impedimento físico ou moral, e lhes não proporcionarem instrução. Assim opinou o Senado, em 7 de julho de 1864, uma autoridade gravíssima. Mas é inegável que em todas as partes do mundo, máxime no Brasil, tem a questão do ensino obrigatório árduas escabrosidades. Pretendem 410 outros que a perpetuidade do professor público redunda em ruína do magistério. Dizem que, galgados os cinco anos para vitalício, já não empenha esforço, quando o professor particular ufana-se em incessante desvelo. Lástima seria que assim fosse alguma vez; mas no geral o professor público acende-se em novos brios com a segurança do futuro, e de fato temo-los exímios. Não há de esquadrinhar razões, que a todos ferem os olhos. O magistério particular estende-se por onde quer. O magistério público mal se volve em espaço estreito – em poucas casas e essas acanhadas. Visitemse os estabelecimentos públicos de instrução, e na máxima parte achar-se-ão entupidos com um punhado de crianças. Concedamos que, compelidas pela obrigação legal, acudissem a eles toda as que não fazem, onde caberiam? Para aumentar-lhes o número, para lhes dar amplidão, é indispensável dinheiro. E falta o dinheiro. A conseqüência é palpável. Já que o Governo não pode, não ate as mãos aos que podem, ou antes, aos que poderiam. O magistério particular anda entre nós es cravizado por lei; e mesmo assim prospera mais que o magistério público. Tanta é a sua força. Dê-se-lhe carta de alforria e muito mais se desenvolverá. Este vai sendo o voto do Brasil. No extremo setentrional do país fez a Assembléia Provincial do Amazonas uma Lei, em 9 de outubro último, infelizmente não sancionada, mandando que em toda a província fosse livre o ensino, tanto primário como secundário. Na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro apresentou-se em 9 de novembro um 411 notável parecer no mesmo sentido, e anteriormente, em 21 de maio, ecoara a mesma aspiração no seio da Assembléia Legislativa. Seria bem próprio da sua elevada categoria ostentar o município da Corte o primeiro exemplo desta fecunda liberdade”. Felizmente, neste mesmo ano foi chamado para a pasta do Império o Dr. José Liberato Barroso, que havia dado prova de sua competência em matéria de instrução com a publicação de seu livro A Instrução Pública no Brasil. O Dr. José Liberato Barroso, porém, durou pouco no governo, não tendo tido tempo, senão para dar novos estatutos às Faculdades de Direito e de Medicina. Nas Faculdades de Direito dividiu o curso em duas secções: uma de ciências jurídicas e outra de ciências sociais. Em 1869, o Sr. conselheiro Paulino José Soares de Souza, em seu relatório do Ministério do Império, chamou a atenção para a falta de estabilidade em matéria de instrução pública e para a influência perniciosa da política em tão importante assunto; mas, por sua vez convencido da necessidade de reformar a instrução apresentou à Câmara dos Deputados um projeto de lei, manifest ando-se partidário da obrigatoriedade do ensino primário e da liberdade do ensino superior e propondo diversas medidas, entre outras a criação de uma universidade com quatro faculdades, uma de direito, outra de medicina, outra das mate máticas e ciências naturais, outra de teologia; a su pressão dos cursos anexos às Faculdades de Direito do Recife e São Paulo, a criação de externatos naquelas 412 cidades e na da Bahia modelados sob o tipo do colégio de Pedro II, transferência do Internato de Pedro II para uma cidade do interior do Rio de Janeiro ou de Minas, criação de uma escola normal, e reorganização do ensino primário e secundário do Município Neutro. Combatido no Senado pelos Senadores Zacarias e Pompeu, o projeto não foi aprovado naquela casa do parlamento em conseqüência da retirada do gabinete, em 1870. Como seus antecessores na pasta do Império, salvo raras exceções, não se dispensou de reformar o Colégio Pedro II, que não havia muito tempo tinha sido reformado pelo sucessor de Couto Ferraz. Com efeito Couto Ferras dividira o curso do Colégio de Pedro II em dois ciclos com o fito de diminuir a simultaneidade de múltiplas matérias, e ao mesmo tempo de tornar o ensino de tal sorte maleável, que ele pudesse aproveitar com igual vantagem tanto aos que aspiravam seguir as carreiras literárias como aos que desejavam se preparar para as carreiras comerciais e industriais. Seu sucessor, atendendo a que no quarto ano do primeiro ciclo se acumulavam muitas matérias e estas acima das forças intelectuais dos alunos, acabou com a divisão do curso em dois ciclos e seus respectivos exames de maturidade; mas permitiu que aqueles que houvessem cursado os quatro primeiros anos, mediante mais um ano, empregado no estudo da trigonometria retilínea, da física e química da mineralogia, e na 413 repetição da botânica e da corografia e história do Brasil, obtivessem um diploma especial. Ao Sr. conselheiro Paulino Soares de Souza sucedeu como titular da pasta do Império o Sr. conselheiro João Alfredo Corrêa de Oliveira, que deu extraordinário impulso à instrução pública, tanto pelas reformas que propôs, como pelas medidas que adotou, destacando-se em um e outro caso, quer pela largueza e firmeza de vistas, quer pelo profundo conhecimento, que manifestou, de todas as questões anteriorme nte ventiladas. As reformas, dizia o Sr. conselheiro João Alfredo em seu relatório de 1871, versarão sobre os seguintes pontos: “1º) Realização da idéia do ensino obrigatório. Esta idéia, cuja necessidade e justiça não carecem de demonstração, e que está praticamente admitida nos países mais adiantados em matéria de instrução popular, acha-se já estabelecida no art. 64 do regulamento que acompanha o Decreto nº 1.331-A, de 17 de fevereiro de 1854. Nunca se tratou, porém, de dar execução a este preceito legal, por ser impraticável nas circunstâncias existentes. Certamente, enquanto não se fundarem tantas escolas públicas, gratuitas quantas forem necessárias, para que se torne possível e fácil a sua freqüência aos menos de todas as localidades o emprego de meio s coercitivos para que os pais e pessoas que tiverem menores sob sua direção lhes dêem o ensino elementar, seria uma clamorosa violência, principalmente em relação às classes cujos deficientes recursos não 414 comportam os dispêndios que exige aquele ensino da do particularmente. Ao mesmo tempo, pois, que no projeto se tratar de tornar real aquela obrigação, estabelecendo -se as condições de seu cumprimento e regulando -se a aplicação da penalidade imposta, se satisfará a necessidade da elevação do número das escolas do 1º grau na proporção devida, e, para generalizar o mais possível a instrução, serão criadas aulas noturnas destinadas não só aos menores de idade superior fixada para a freqüência das diurnas, mas também aos adultos que, por suas ocupações, só das horas da noite podem dispor para tal fim. 2º) Execução da disposição do art. 1º da Lei nº 630, de 17 de setembr de 1851, e do art. 47 do já citado regulamento de 17 de fevereiro de 1854 a criação de escolas de instrução primária do 2º grau. Destinadas estas escolas ao ensino de matérias complementares da instrução primária ou o conhecimento é a imediata utilidade, tanto na prática da vida individual, como nas relações sociais, não pode ser por mais tempo adiada a sua fundação. 3º) Melhoramento do professorado. É geralmente conhecido que o vício radical do ensino primário entre nós está na insuficiência das habilitações teóricas e práticas da maior parte dos professores. Possuindo apenas conhecimentos imperfeitos sobre as matérias que deve assinar, não pode m tais professores exercer bem e cumpridamente suas funções. 415 Ninguém ignora quanto imprópria para este fim que a instrução do professor não se limite aos conhecimentos que restritamente se referem ao assunto, a cujo ensino se propõe, além disto, que, sem o conhecimento da pedagogia ou do método do ensino, este não pode ser completamente profícuo, embora abundem habilitações teóricas em que o dá. Eis porque, em geral, são pouco satisfatórios os resultados que apresentam as nossas escolas, apesar da boa vontade dos esforços com que muitos professores procuram desempenhar seus deveres. Cumpre, pois, proporcionar os meios indis pensáveis para formarem-se professores completamente habilitados. No projeto se satisfará esta grande neces sidade com a organização das escolas do 2º grau, e de duas escolas normais, sendo uma destas para cada sexo. Abrangendo o ensino, nessas escolas do 2º grau, assuntos científicos e literários e a pedagogia, nelas irão os adjuntos das de 1º grau, sem, todavia, deixarem de praticar nestas o ensino, alargar a esfera de seus co nhecimentos e completar suas habilitações, obtendo o título de professor do 1º grau, depois de aprovados em todo o curso daquelas escolas superiores; e só dentre os que estiverem habilitados com este título, poderão ser nomeados professores efetivos. A instituição dos adjun tos não tem trazido todas as vantagens que se tiveram em vista e devem esperar-se, porque, circunscritos constantemente ao estreito círculo das noções adquiridas na prática das escolas elementares, faltam-lhes os meios para aperfeiçoarem e elevarem seus conhecimentos; e quando professores, não passam de simples conti416 nuadores daqueles de quem foram discípulos e cujos sucessores são. Nas escolas normais constituídas para dar ainda mais larga e desenvolvida instrução, se habilitarão os que aspirem o magistério do 2º grau. Nestas escolas, será conferido o título de professor do 2º grau, com o qual se habilitarão para o provimento efetivo nas respectivas escolas, os alunos que tendo já o de professor de 1º grau, freqüentarem o curso completo dos estudos das mesmas escolas e neles forem aprovados ou que, sem possuírem este último título, houverem provado por exame antes da matrícula, terem todos os conhecimentos teóricos e práticos necessários para obtê-lo. Creio que por este modo, aqui apenas indicado, se alcançará o grande desideratum de verem-se colocados no ensino primário de ambos os graus, professores capazes de preencherem cabalmente, sua importante missão. 4º) Melhoramento de sistema de direção, inspeção e fiscalização do ensino. Achavam-se incumbidas estas importantes funções, pelo modo estabelecido no referido regulamento de 17 de fevereiro de 1854, a um inspetor geral, a um conselho diretor e a delegados de distrito. Na organização dos serviços há, porém, defeitos que, como a experiência tem mostrado e é de fácil intuição, tornam incompleta e pouco eficaz a sua execução. No projeto se tratará de corrigir estes defeitos: 417 Definindo-se mais precisamente as funções daquelas autoridades e regulando -se o seu exercício de modo que assegure o rigoroso cumprimento de todas as obrigações estabelecidas. Dando-se ao inspetor geral vantagens que tornem possível ser esse cargo aceito por pessoa que, tendo as altas habilitações precisas, dedique-se exclusivament e ao desempenho de suas funções. Constituindo-se o conselho diretor, de forma que fique habilitado para discutir e tratar proficientemente de todos os negócios concernentes à instrução pública, de sua competência, estabelecendo -se perfeita regularidade em seus trabalhos. Substituindo-se os delegados de distrito os quais apesar da boa vontade e patriotismo com que se prestam a exercer as funções do seu cargo, não podem nele empregar senão o tempo que lhes resta de suas ocupações habituais, pois que servem g ratuitamente por inspetores de distrito, pecuniariamente remunerados, para que cumpra todas as funções que lhes são incumbidas com a assiduidade que a natureza destas requer. Quanto ao ensino particular, o projeto conterá melhoramentos importantes. Primeiramente, com a instituição das escolas de segundo grau e das escolas normais, se proporcionaram os meios que hoje faltam para habilitarem-se professores particulares. Estabelecer-se-á ao mesmo tempo a liberdade do ensino, pondo-se a esta uma única restrição; a obrigação 418 de darem provas de sua moralidade os que a ele se dedicarem. É tempo de realizar-se esta idéia. A intervenção oficial na parte relativa às habilitações intelectuais dos professores particulares, além de ser uma tutela desnecessária, porque o interesse dos pais é a melhor e a mais eficaz garantia da boa educação de seus filhos, traz inconvenientes práticos e impede o desenvolvimento da instrução. Em verdade os exames de capacidade profis sional, a que são obrigados os que pretendem exercer aquele magistério, nem sempre dão a melhor prova de suas habilitações reais. Apenas se podem apreciar, nesses exames, os conhecimentos dos candidatos em todas as matérias sobre que versam, mas como ninguém ignora, não basta possuir esses conhecimentos para ensinar bem; há outra condição essencial – a de saber ensinar, qualidade que só se pode adquirir pela ciência do método e pela prática. Por isso, muitas vezes estará efetivamente mais habilitado para ensinar certas matérias um indivíduo que, tendo essa qualidade, não possa satisfazer todas as exigências de tais exames, do que outro que simplesmente para estes se acha preparado; entretanto, àquele se negará o título de capacidade profissional de que se julgará digno somente o último. A denegação deste título, nas circunstâncias a que aludo, traz inconvenientes óbvios, sobretudo em relação às localidades de pouca população e riqueza, onde, não sendo fácil encontrar professores legalmente habilitados, ficam os pais privados de darem instrução a 419 seus filhos fora das escolas públicas, direito que sem injustiça lhes não pode ser tirado. No projeto se atenderá também à conveniência de melhorar a condição dos professores e dos adjuntos, pois que, só o magistério não oferece vantagens que atraiam pessoas de verdadeiro merecimento e de vocação especial, nunca se conseguirá elevá -lo à altura a que deve chegar”. Isto quanto à instrução primária; quanto ao ensino secundário e superior, estava o Sr. conselheiro João Alfredo de acordo com o seu antecessor na fundação, nas Províncias de estabelecimentos congêneres ao Colé gio de Pedro II e na criação, nesta Capital, de uma universidade. Sobre a instrução primária, secundária e profis sional, formulou o Sr. conselheiro João Alfredo um projeto, no qual, em relação às Províncias, d e acordo com o ato adicional, cingia-se a auxiliar o incremento da instrução primária e secundária, e em relação ao Município Neutro estabelecia: “A liberdade de ensino particular restringindo a intervenção do Governo às condições de moralidade e higiene. A obrigação de instrução elementar para rodos os indivíduos de 7 a 14 anos e, também, nos lugares do mu nicípio em que houvesse aulas de adultos, para os de 14 a 18 que não a tivessem recebido. A fundação de escolas diurnas e noturnas para adultos. 420 A criação de duas escolas normais, uma para cada sexo, nas quais se preparariam professores para o ensino primário, compreendendo o seu programa as disciplinas que se professarem nas escolas primárias e o estudo de pedagogia com escolas práticas. A faculdade de criar o Governo escolas mistas, instituir escolas de trabalho para o sexo feminino e auxiliar os estabelecimentos particulares de instrução gratuita, primária e profissional, que se mostrarem dignos deste favor. A livre admissão a exames no Imperial Colégio de Pedro II, assim como nos que semelhantemente se fundassem nas províncias, de todos os indivíduos que o requeressem, e a expedição dos respectivos diplomas àqueles que fossem aprovados nas matérias do curso do bacharelado. A divisão do município em dist ritos literários, quando fossem necessários para uma assídua fiscalização, sendo remunerados os inspetores de distritos. A reorganização do conselho diretor e da Secretaria da Instrução Primária e Secundária do Município”. Quanto às Províncias, estabelecia as seguintes disposições, sendo feitas as despesas necessárias pelos cofres gerais e por caixas especiais, instituídas para sustentação das escolas em cada uma das mu nicipalidades: “A criação nos municípios de escolas profis sionais, em que se ensinasse m as ciências e suas 421 aplicações, que mais conviessem às artes e indústrias dominantes ou que devam ser criadas e desenvolvidas. A concessão aos estabelecimentos de instruções secundária, mantidos pelas províncias e que seguissem o plano de estudos do Colégio de Pedro II, das mesmas vantagens de que goza este, concorrendo o Governo com um subsídio para os daquelas províncias cujos meios não bastassem para toda a despesa precisa. A extinção dos cursos preparatórios, anexos às faculdades de direito. A fundação de bibliotecas populares ou a prestação de auxílios para este fim”. Como o de seu antecessor, o excelente projeto do Sr. conselheiro João Alfredo não chegou a ser convertido em lei, mas o eminente estadista não passou pelo Governo sem que deixasse pegadas de luz: entre outros atos citaremos o Decreto de 2 de outubro de 1873, concedendo aos exames efetuados nas Províncias os mesmos efeitos que aos feitos nesta Capital e nas Províncias onde existiam faculdades. Infelizmente algumas Províncias abusaram de tal forma, que nelas o Governo teve necessidade de suspender a concessão. Lembro-me de ter lido uma carta escrita por um venerado amigo a um outro, que era presidente do Rio Grande do Norte, mais ou menos nos seguintes termos: “Aí vai Fulano fazer exames. Peço benevolência e não justiça, porque bem sabes, nas Províncias, quem faz exame é como quem compra um par de botas e pede mais ou menos frouxas, conforme os calos de que 422 padece. Não sei onde, se na cabeça ou nos pés; mas a verdade é que meu recomendado sofr e de calos e não pode usar botas justas”. Ao Sr. conselheiro João Alfredo, sucedeu na pasta do Império o Sr. conselheiro José Bento da Cunha Figueiredo que, não obstante tudo confiar à Divina Providência, não resistiu à tentação de reformar o Colégio de Pedro II, tal é a sorte deste Instituto de contar as suas reformas pelos Ministros que se sucedem no ministério, a cujo cargo ele se acha, e ao Sr. conselheiro Leôncio de Carvalho antecedeu o Sr. conselheiro Costa Pinto, que declarou para sempre em vigor os exames uma vez feitos. A idéia capital da reforma do Sr. conselheiro Leôncio de Carvalho é a de ampla liberdade de ensino, no sentido não só de ser permitido a todo particular lecionar como entender e quiser, mas ainda de ser suprimida a freqüência obrigat ória dos alunos e, portanto, as lições, as sabatinas, as notas, fazendo depender toda prova de habilitação exclusivamente do exame. Em defesa de sua idéia, transcrevia o Sr. conselheiro Leôncio de Carvalho as palavras da Memória Histórica apresentada pela Faculdade de Direito do Recife em 1870: “Com o sistema, entre nós seguido, de serem os estudantes chamados às lições e sabatinas, notando -se nas cadernetas o mérito de umas e outras, o ato é para muitos estudantes, senão para a generalidade deles, uma mera formalidade: o juízo do lente está feito pelas notas e, ordinariamente, quando desmentido pela prova 423 produzida no ato, não prevalece esta sobre aquela, senão quando favorece o estudante. Nada de lições, nada de sabatinas, e, conseguintemente, de notas: a única prova de habilitação seja o exame público, em que o juízo do lente sobre o mérito do estudante se forme sem prevenção favorável ou contrária, e em que, portanto, a argumentação seja igual e não varie conforme e reconhecida inteligência do estudante”. Deste modo, o professor deixa de ser um produtor de ciência para tornar-se um mero expositor de idéias alheias, e o discípulo deixa de ser um colaborador do mestre para fazer-se um simples repetidor do magister dixit. É o maior erro que se pode cometer em pedagogia pretender avaliar da habilitação e aproveitamento de um estudante, pelas eventualidades e contingências do exame. O estudante, antes de tudo, deve aprender o que é a ciência, como se faz o trabalho científico, o que significam as palavras produção científica, e não somente se preparar para responder às perguntas que lhe serão feitas no fim do ano. Ensinar a um moço, dizem João Terrel e Luís Durant, as diversas soluções que tem de dar às diversas dificuldades que encontrar na sua carreira, não é dar-lhe a alta educação intelectual a que tem direito; é preciso não lhe ensinar essas soluções, mas os métodos que lhe permitiram achá-las; é preciso fazer dele, não um indivíduo admiravelmente ensinado que, graças às 424 recordações de sua educação e aos hábitos que tiver contraído em sua juvenilidade, se conduzirá como faria um homem inteligente, mas um homem que pensa, que sabe, que conhece e que se conduz segundo as luzes de sua própria razão. De acordo com suas idéias, publicou o Dr. Leôncio de Carvalho o Decreto de 19 de abril de 1879, reformando o ensino primário e secundário no Município Neutro e superior em todo o Brasil, e deu nova organização ao Colégio Pedro II, tornando facultativa a freqüência do externato, restabelecendo a cadeira de italiano, etc. Ao Dr. Leôncio de Carvalho, sucedeu na pasta do Império o Dr. Francisco Maria Sodré Pereira, e a este, l Sr. Homem de Melo. O primeiro criou a Escola Normal do Município Neutro, de acordo com o Decreto de 19 de abril de 1879, e o segundo limitou-se a reformá-la. Seguiu-se na pasta do Império o Dr. Rodolfo Epifânio de Souza Dantas que, entretanto para o governo com tanto ardor pelas questões de ensino público quando o Dr. Leôncio de Carvalho apresentou às Câmaras um extenso projeto de reforma, que deu lugar ao notável parecer do conselheiro Ruy Barbosa, extraordinário monumento de saber e erudição. Daí por diante, até a proclamação da República, destacam-se apenas o regimento interno para as escolas públicas do primeiro grau do Município Neutro, elaborado pelo Dr. Antônio Herculano de Souza Bandeira e o parecer do barão de Tautfoeus em contraposição às idéias da congregação do Colégio de 425 Pedro II, a qual se manifestara no sentido ser mantido o sistema dos exames finais, com exclusão do exame de madureza, que era sustentado pelo conselheiro Ferreira Viana, então Ministro do Império. “O plano de estudos, dizia o barão de Tautfoeus, sobre o qual a congregação foi agora convidada a dar o seu parecer, distingue-se das muitas reformas anteriores que este colégio sofreu, depois que se começou a alterar o plano de sua instituição primit iva, pela adoção de um princípio que era expressamente enunciado como uma das bases da organização dos estudos, e cujo abandono foi, segundo a minha opinião, a principal causa da decadência científica deste colégio, a saber: a simultaneidade dos exames finais, feitos todos no fim do sétimo ano e constituindo em seu conjunto o exame do seu bacharelado, pelo qual o candidato aprovado em todas as matérias obtinha o seu grau literário. Este plano ficou em vigor por quase 20 anos depois da fundação do colégio: são muito numerosos os antigos estudantes daquele tempo, que se acham agora em posição eminentes e que podem comparar os resultados obtidos então com os que vemos hoje, depois de adotado o funesto sistema do fracionamento dos estudos, introduzido não em virtude de algum novo princípio pedagógico mas arrancado gradualmente à fraqueza de diversos ministros por mesquinhas con siderações de concorrência material com os colégios particulares, quando o motivo expresso da fundação deste colégio foi precisamente estabelecer um foco de estudos literários que, por ser independente da maior ou 426 menos afluência de alunos, pudesse conservar -se em uma altura literária e científica, superior ao nível g eral da instrução secundária, dada até então, salvo algumas aulas públicas destacadas, unicamente em colégios particulares. Este triste sistema de fracionamento não tardou a produzir suas inevitáveis conseqüências. O professor não piorou repentinamente, e por certo ninguém, que possa comparar as duas épocas, dirá que ele seja agora, a qualquer respeito, inferior ao dos primeiros vinte anos do colégio; o contrário é evidente. Tão pouco há razão para pensar que a raça brasileira tenha degenerado e que a mocidade atual seja menos talentosa ou tenha menos curiosidade intelectual e menor desejo de saber. A inquestionável inferioridade dos resultados obtidos agora não pode, pois, ter outra causa senão o vício radical do atual plano de estudos, que, desprezando a lei do desenvolvimento das faculdades intelectuais na transição da meninice à virilidade, quer em umas matérias colher frutos sem esperar a época da maturidade e em outras semear, quando já está na estação da colheita. O professorado do colégio, consultado diversas vezes pelo Governo sobre reformas dos estudos, opinou sempre nesse sentido e recomendou, como primeiro passo para todo melhoramento, a volta a este princípio da unidade dos estudos humanitários, realizada pela continuação das matérias até o fim do curso e pela prestação de todos os exames finais no 7º ano. Creio, pois, que para ficar coerente consigo mesma, para não 427 se por em desacordo com as leis da psicologia, com a experiência feita no próprio colégio e com o exemplo das nações mais adiantadas em instrução, a congregação deve aprovar o plano de reforma, formulado pelo Governo nessa sua principal idéia”. Proclamada a República e criado o Ministério da Instrução Pública, o primeiro ato do Dr. Benjamin Constant, nomeado Ministro, foi a fundação do Pedagogim, destinado a servir de centro propulsor da instrução pública. Nesse instituto haveria um museu pedagógico, conferências didáticas, laboratórios e gabinetes de ciências físicas e naturais, exposições escolares, uma escola primária modelo e publicaç ão de uma revista. Depois, publicou o eminente Ministro sua reforma tão vasta quão detalhada, porém, por mais reverência que nos mereça a magistral obra, ela se nos afigura lacunosa, por ter banido do ensino o lado humano, desde a psicologia até a lógica, substituindo pelos chamados conhecimentos especiais, aqueles estudos que mais têm contribuído para a crença no progresso humano. O discípulo, diz excelentemente A. Fouillée, é entregue a uma sucessão de mestres, cada um dos quais ensina isoladamente sua especialidade, resta saber se uma série de especialidades forma uma verdadeira unidade; se as forças intelectuais da mocidade, que são também forças sociais, não são em partes desperdiçadas por falta de concentração e direção. 428 Sob o pretexto de acostumar-se a mocidade brasileira a observar, experimentar e induzir, sacrificou se o que nas ciências há de verdadeiramente educador, a sua história, a sua filosofia, a sua poesia, à parte puramente objetiva, “a enumeração e inventário dos fatos e das leis”; e, deste modo, cortou-se barbaramente o vôo da alma nacional para as mais altas regiões do pensamento, e sua marcha para os mais nobres destinos da humanidade. Senhores, as nossas reformas sobre a instrução pública, com raríssimas exceções, fazem lembrar a anedota daquele inglês que, em uma de suas viagens, encontrando uma casa de extraordinária acústica, comprou-a por avultada soma, numerou as diversas peças e fê-las transportar para a Inglaterra. Ali chegando, reconstruiu a casa, dispondo as peças na mesma ordem em que se achavam por ocasião da compra; mas qual foi o seu espanto, quando, ao dar o primeiro concerto, reconheceu que a casa tinha perdido toda a sonoridade. Da mesma sorte as nossas reformas sobre a instrução pública não possuem sonoridade, porque não passam de criações exóticas, em contravenção com o nosso meio social, com os nossos usos, costumes, tradições, tendências e aspirações. São reformas que não repercutem na alma nacional; não ecoam no coração do povo. O projeto exige, além do conhecimento de língua moderna, o estudo prático de duas línguas: seria 429 preferível que a exigência fosse pelo menos de quatro línguas estrangeiras: francês, inglês, alemão e italiano. Não é muito, desde que se atenda a que na Rússia para a matrícula nos ginásios de mulher es se exige de uma menina de oito anos o conhecimento de três línguas de gênios tão diversos, como o russo, o alemão e o francês. É certo que os russos das mais elevadas camadas sociais têm o talento do poliglotismo; mas Wallace vê nesta aptidão especial um resultado mesmo da educação. Senhores vou referir um fato curioso, interessante, que mostra quanto aproveita a um povo o conhecimento de línguas estrangeiras. Em 1873 o Ministro da Instrução Pública em Yedo fundou uma escola de russo para iniciar os jove ns japoneses nos progressos do Ocidente, principalmente a Rússia. O resultado foi essa obra maravilhosa, única nos últimos tempos, a transformação de quarenta milhões de homens em uma civilização nova e a subseqüente vitória do Japão sobre a Rússia. Foi encarregado dessa obra gigantesca Leão Mateknikoff, autor do belo livro A Civilização e os Grandes Rios Historicos. A edição dessa obra se acha esgotada, mas existe um exemplar nas mãos do Sr. Presidente, o Sr. Carlos Peixoto, e o líder da Câmara que com S. Exa. forma um par homérico, poderá informar se o que refiro vem ou não narrado detalhadamente na introdução e escrita por Eliseu Reclus. 430 Um mais exato conhecimento de nossa geografia, tomada a palavra geografia em sua mais larga acepção, no sentido não somente de descrição pitoresca da superfície da terra, das montanhas que se elevam tantos metros acima do mar ou dos rios, tantas léguas de curso, mas ainda de influência climatérica (metereologia), de influência geométrica e aritmética (território e população), de influência física e química do solo e subsolo (geologia e mineralogia), influência das plantas e animais (botânica e zoologia) nos fará compreender melhor nossa história, entrever melhor nosso futuro, e dirigir melhor nossa política interna e externa, nossa economia nacional e nossa higiene social. Far-nos-á compreender melhor nossa história, eliminando a rivalidade que se quer estabelecer entre os rios Tietê e São Francisco. Se o Tietê, corrente transversal, até hoje tem exercido uma função eminentemente econômica, o São Francisco, corrente ao mesmo tempo transversal e longitudinal, por correr em forma de crescente ou semicírculo, de sul a norte, tem exercido a dupla função de economia e defesa nacional. Ora, o Amazonas correndo transversalmente do ocidente para o oriente e com a disposição longitudinal de seus afluentes, está destinado a ser o eixo de toda a nossa política, quer nacional, quer internacional. Não há muito tempo dizíamos que se de cima de nosso planalto, todo coberto de ouro e pedras p reciosas, lançássemos o olhar para o extremo norte do Brasil, para o Amazonas, essa monstruosidade geográfica, que faz 431 pequeno tudo que é grande no Brasil, uma fantástica e mirabolante visão nos empolgaria o espírito, veríamos diante de nós uma pátria de cuja grandiosidade futura se pode avaliar pelas oscilações desmedidas desse desmarcado pêndulo – o rio mar, com que a natureza dotou o Brasil para servir de supremo regulador de seu destino. Afirmam os competentes que o Brasil foi ligado ao continente americano por uma grande revolução geológica; no século atual prevemos um acontecimento ainda maior, que é a ligação de todos os Estados brasileiros por linhas fluviais e vias férreas e a juntura dessas linhas e dessas vias em um ponto determinado do território nacional, o Recife, por exemplo, aos múltiplos caminhos marítimos do mundo inteiro. Só nos falta um estadista que queira ligar seu nome à história da civilização, ligando todo o Brasil à rede universal de comunicação e transportes. Mas é principalmente do ponto de vista geológico que o conhecimento da geografia se impõe, quer em relação à economia, quer em relação à higiene social. Quando o Sr. Ministro da Agricultura, tão jovem quão competente, desmentindo assim o aforismo de Bacon – Veritas filia temporis, nomeou a comissão encarregada de organizar a carta geológica brasileira, serviço de cuja direção se acha encarregado o professor Orville Derbu, que tanto se tem imposto à admiração e reconhecimento de nossos compatriotas, pelos serviços prestados ao Brasil publicamos as seguintes linhas: 432 “Múltiplas são as influências do solo e subsolo sobre o desenvolvimento social; mas suas se destacam pela sua magna importância: uma econômica, relativa à exploração das minas, outra higiênica, referente à habitação e principalmente à alimentação das coletividades humanas em água potável. Já se foi o tempo em que se considerava uma fonte sã, porque era clara, fria e agradável ao paladar. Hoje nem mesmo as análises bacteriológicas e químicas por si só bastam para se avaliar de uma fonte, porque o exame não faz conhecer seu estado senão no momento em que foi ele feito; mas não impede que a fonte venha a ficar contaminada, dando-se, por exemplo, um caso de febre tifóide em um dos pontos de infiltração. Neste caso se fazem necessários os recursos da geologia para determinar o ponto de infecção. Em todas as questões de higiene, que dizem respeito à circulação das águas, e são as mais importantes, porque a água é elemento indispensável à vida, principalmente à existência humana, tanto para a alimentação, como para outras necessidades dos indivíduos (abluções, banhos, lavagens), a utilidade da geologia é manifesta pelas relações estreitas que existem entre a natureza dos terrenos e a qualidade das águas subterrâneas. É assim que camadas de rocha ígnea, na profundeza compactas e impenetráveis, mas na sua superfície permitindo que resultante de sua trans formação, constituem excelente filtro, ao passo que as 433 camadas de argila formam verdadeiras paredes que acarretam a estagnação das águas. Nos terrenos calcários muito insuficientemente se opera a ação filtrante, e em regra as fontes neles existentes devem ser consideradas suspeitas. Os terrenos xistosos oferecem drenagem à circulação das águas, quando os xistos existem, não em forma horizontal, mas levantados por movimentos tetônicos do solo, uma das concepções mais engenhosas e ao mesmo tempo mais complicadas dos geólogos modernos. Pelo que vem dito se podem avaliar as grandes vantagens, que para a higiene social resultam do conhecimento do solo e da organização das cartas geológicas, sobretudo para o que diz respeito à captação das águas potáveis e à luta contra a poluição deste imprescindível elemento de vida. Mas, além de importância capital das inves tigações geológicas na solução do grande problema das águas potáveis, elas se prendem intimamente ao de senvolvimento das indústrias extrativas, pelas relações existentes entre a natureza dos terrenos e os diversos minérios, pedras preciosas e metais. Oouro, nota um prático, aparece ord inariamente em veios de pirita, em ditos de quartzo, em camadas de quartzito ferruginoso (itabirito) e em cascalhos e areias superficiais, sendo os primeiros os melhores e mais ricos, como os do Morro Velho, Cuiabá, Santa Bárbara e outros; seguindo-se os de quartzo e os de itabirito, como 434 de Congo Soco e Maquiné, etc. e em último lugar os de cascalhos e areias. Investigações recentes parecem confirmar as vistas dos professores Gorceix e Derby sobre a gênese do diamante. “Naturalmente, escreve o último, toda s as rochas mais novas do que a formação original e formadas dos seus destroços podem conter o diamante; a formação original é provavelmente da idade cambriana”. A litomargia é a substância que acompanha mais frequentemente os topázios, e no Brasil deve ser considerada o melhor guia para a pesquisa deles. Porém, mesmo sob o ponto de vista histórico, não deixam de ser interessantíssimas certas conclusões da geologia. Para nós tal é o caso, a que se refere Gerber: “Tendo Elias de Beaumont com evidência demonstrado que a idade das diversas partes do nosso globo, isto é, a época do levantamento das mesmas acima do nível do mar, deve ser anterior à mais antiga formação limítrofe, cujas camadas se conservam horizontais, assim como posterior à idade das formações que por efeito do próprio levantamento, se acham inclinadas, é claro que em vista do referido fato, de se acharem as formações de transição (paleozóicas) horizontalmente estratificadas; sem serem cobertas por formações secundárias ou terciárias, fenômeno de que não consta haver completo em outra parte do mundo, é claro repito, que esta parte do continente sul-americano já se achava elevada acima do nível dos mares em uma época anterior ao tempo que em começavam os depósitos submarinos; ou, em outros 435 termos, o Brasil central já existia como um continente extenso, quando o resto do mundo ainda estava submergido no oceano universal, ou apenas surgiam pertos dele com ilhas insignificantes. É pois, o Brasil, e em particular o Estado de Minas Gerais, a quem toca a honra de ser o mais antigo continente do nosso planeta. Bem se vê que a geologia, além do alto valor histórico, paleográfico, com o fim de notar as diferentes idades do solo e reconstruir a figura da terra nas fases sucessivas de sua longa evolução, interessa sobretudo ao higienista, como a ciência que se destina a fazer conhecida a natureza dos terrenos, que existem nas diversas profundezas do nosso globo, e as relações que eles mantém com a zona circunvizinha, por onde cir culam as águas subterrâneas. Referindo-se à lógica, não trata o projeto de dialética da teoria sublime e sutil do silogismo, de que fala Diderot, mas da ciência das idéias, do que os alemães chamam idenkund. Neste sentido a lógica é tão necessária à investigação da verdade, com a hermenêutica à aplicação do direito. Com efeito, como investigar sobre qualquer ramo do saber humano sem se saber o que é observação e experimentação, indução e dedução, análise e síntese, sem se conhecerem os processos especiais da matemática, da física, da biologia? A base do saber, real positivo, é a teoria do conhecimento, quando estuda o mecanismo do pensamento e indaga o critério da certeza. 436 Descartes, escreve Arthur Schopenhauer, passa com direito como pai da filosofia moderna: antes de tudo, e de um modo geral, porque levou a filosofia s sustentar-se sobre seus próprios pés, ensinando os homens a fazerem uso de sua própria cabeça em lugar da qual funcionaram até ele de um lado a Bíblia e de outro Aristóteles; porém, mas particularmente, e em um sentido mais restrito, por que foi o primeiro que apanhou o problema em redor do qual gira desde então toda a filosofia: o problema do ideal e do real, isto é, a questão de saber o que há de objetivo e subjetivo em nosso conhecimento, ou, por outras palavras, o q ue é preciso atribuir a nós ou às coisas diferentes de nós. Eis o problema; e desde que ele foi posto, há 200 anos, o esforço principal dos filósofos tem sido distinguir o ideal, isto é, o que pertence a nosso conhecimento como tal, do real, isto é, o que existe independentemente de nosso conhecimento, e estabelecer assim de um modo estável a sua mútua relação. Acreditavam os positivistas que bastava uma classificação das ciências constituídas para se ter a chave de todo o saber humano. Mas definir o objeto das ciências, traçar os limites de suas investigações, subordinar suas questões a um princípio de coor denação, a um processo lógico, não é tudo quando se tem em vista, além dos conhecimentos adquiridos, o progresso do saber humano, a descoberta de novas verdades, a exploração de mundos desconhecidos. É preciso, além do conhecido, dar conta do que resta conhecer e do modo porque há de ser conhecido. 437 Somente assim se terá essa Suma Ciência, que sonhou Leibniz, em substituição a Suma Teológica de S. Tomás. A teoria do conhecimento, conforme nota Lachelier, dá lugar a dois estudos distintos: um psico lógico que tem por objeto a engrenagem de nosso mecanismo representativo, e outro lógico, que tem por fim indagar as relações dos fenômenos com o pensamento. Dentre os discípulos de Kant, uns atribuem uma combinação artificial ao mecanismo do pensamento com o exagerado aparelho das instituições e dos conceitos a prior; outros entendem que é preciso restringir o domínio do a priori a explicar o conhecimento por uma combinação menos artificial que a das formas ou categorias do pensamento. Assim Fichte e Hegel entendem que a filosofia deve vir de um ponto mais elevado que o da simples forma do pensamento e das adversidades de intuições, isto é, deve vir das funções das atividades internas, que são a essência mesma do pensamento. Que será, porém, esta atividade interna do pensamento? Será um modo especial de crer alguma coisa dos objetos, alguma coisa de imediatamente certo e necessário, que não se acorda com os dados da experiência, conforme entende Spir, ou não será senão uma função, que só se desperta ao contato da experiência, porém que traz em si mesma uma certeza imediata e absoluta? “Não chegaríamos nunca a conceber o princípio de identidade, diz Lachelier, se a intuição de nossas 438 representações não nos oferecesse objetos constantes, nem o princípio de razão, se não achássemos na experiência objetos iguais entre si, ou pelo menos sensivelmente iguais. Esta condição empírica de formação das leis lógicas não tira co isa alguma a seu caráter de a prioridade”. Mas o pensamento não se satisfaz em não se contradizerem os dados da experiência, quer descobrir entre eles uma ligação, uma coordenação. Tal é a função primordial do pensamento, e o principal de razão. A igual a B, B igual a C, logo A igual a C, não é senão a expressão mais simples desta função. É uma necessidade do espírito exigir que os fenô menos se encadeem, sejam conexos entre si. Mas esta conexão existe realmente, isto é, aquela necessidade do espírito corresponde a uma realidade entre os dados da experiência? Para Wundt esta realidade existe efetivamente, há conexão entre os dados da experiência, e então o mecanismo do espírito é antes um aparelho que ilumina a realidade existente do que um modelo, sobre o q ual é calcada uma ordem de coisas, que, se pode dizer, não existia antes dele, conforme pensavam os filósofos gregos. Tratando o projeto de sociologia, cumpre notar que a associação é um princípio ainda mais genérico que a gravitação. Até hoje a tendência dos cientistas tem sido subordinar todos os fenômenos do Universo à lei da gravitação, em virtude da qual o Universo inteiro é 439 mantido não só na mais estreita solidariedade, porém ainda na mais íntima continuidade. Um mesmo princípio, diz Mismer, liga o ma is pequeno corpo ao maior através do espaço inter planetário; o organismo mais humilde ao mais complexo através das camadas geológicas, a humanidade a sua moradia terrestre, o homem a seu semelhante. Segundo Mismer, este princípio é o da gravitação que expulsará a teologia e a metafísica dos domínios da sociedade, como já o fez nos domínios da física, da química e da biologia. Eu mesmo em uma dissertação apresentada à Faculdade de Direito do Recife sobre a determinação do momento histórico das leis, escrevi: “É preciso convir que o insuspeito Cláudio Bernard estabelecendo que os seres vivos são pequenos mundos, em cujo meio os fenômenos se encadeiam como em nossa terra e em todas as terras, que flutuam no espaço, derribou as barreiras que separavam o mundo orgânico do mineral, e predispôs assim os espíritos para esta concepção mecânica do universo, pela qual todos os segredos da natureza parecem prestes a desvendar -se em face da luz derramada pela descoberta de Newton. Kelvin, porém, o maior físico dos último s tempos, fundado em cálculos matemáticos, chegou a conclusão de que o éter não está sujeito à lei da gravitação. Hoje, depois das investigações de William Crookes sobre o estado pré-atômico da matéria, da descoberta dos raios catódicos, dos raios-X, da dos chamados corpos radioativos, da demonstração tão 440 brilhantemente feita por Gustave Le Bon, de que a radioatividade não pertence a certos corpos somente mas constitui uma propriedade geral da matéria, não se pode mais dizer que o princípio regulador de tod a solidariedade e continuidade universal, princípio no qual se resolvem todas as leis do mundo orgânico e inorgânico, seja a gravitação, e sim a sociabilidade, principal manifestação da energia primordial do universo, e, portanto comum a todos os átomos, moléculas, células, órgãos animais, Estados. Esta energia suprema que, apesar de imponderável, intangível, invisível, enche todos os pontos do espaço e todos os momentos do tempo, servem de laço aos diversos mudos e penetra todos os corpos, é o éter, no qual Newton, com o seu olhar genial, viu a causa da gravitação. “Eu procuro no éter a causa da gravitação, escrevia Newton a R, Bayle em 28 de fevereiro de 1678”. Pela existência dessa substância, ao mesmo tempo, uma e múltipla e heterogênea, contínua e descontínua, contínua descontínua, é que se explica sufientemente a formação não somente do mundo cósmico, mas ainda do mundo moral. Montesquieu em uma definição que parece resumir todo o passado científico do espírito humano, disse que: leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas. Mas, se nós não podemos conhecer a natureza das coisas, senão podemos conhecer as relações das 441 coisas, não será mais exato dizer que a natureza das coisas deriva das relações delas entres si? E, deste modo, a sociologia não será a ciência fundamental do saber humano, e todas as ciências, mesmo as mais positivas, não serão ciências sociais? Com feito, de que trata a matemática? Trata dos corpos, sob o ponto de vista das quantidades umas de relações às outras. De que trata a física? Trata dos corpos sob o ponto de vista das moléculas umas em relações às outros. De que trata a química: Dos corpos sob o ponto de vista dos átomos em relação duns aos outros. De que trata a biologia? Dos corpos sob o ponto de vista das células em relação umas às outras. A própria ontologia ou ciência da natureza das coisas seria uma ciência eminentemente social, porque a natureza das coisas deriva das relações destas entre si. Com efeito, de tal sorte a natureza das coisas depende das relações destas entre si, que toda alteração nessas relações altera a natureza das coisas. É assim que os corpos passam de sólidos a líquidos e gasosos, conforme a alteração das relações das moléculas entre si. A única ciência que, à primeira vista, pared e escapar ao princípio da socialidade, é a psicologia, por causa do esforço contínuo do Eu para a unidade; mas, acredito, senhores, ter demonstrado em uma memória apresentada ao Congresso Latino -Americano que a psicologia, mais do que as outras ciências, s e baseia sobre relações sociais. A consciência, diz Boutroux, não é um desenvolvimento, um aperfeiçoamento das funções fisioló 442 gicas, é um elemento novo, uma criação. O homem, que é dotado de consciência, é mais que um ser vivo, e mais que um organismo individual: a forma na qual a consciência é superposta à vida é uma síntese absoluta, uma adição de elementos radicalmente heterogêneos”. Se a unidade orgânica por si só não basta para explicar a consciência, qual será a explicação que pode ser dada do fenômeno? Acima do indivíduo está a sociedade, e então por que não procurar no meio social a gênese e o desen volvimento da consciência individual? O cérebro, órgão de luxo em relação ao funcionamento vital, propriamente dito, seria então um órgão de primeira necessidade em relação ao funcionamento psíquico. Deste modo seria o meio social que concorreria para a formação do cérebro por meio do desenvo lvimento excepcional dos últimos centros da medula espinhal. A socialidade seria a fonte donde brota a consciência. Tal é o modo de ver de Durkheim, quando escre ve: “o grande serviço que os filósofos espiritualistas prestaram à ciência, foi combater todas as doutrinas que reduzem a vida psíquica a não ser senão uma eflo rescência da vida física”. E sem cair no espiritualismo, acrescenta que “todos os fatos, de que não se pode achar a explicação na constituição dos tecidos, torna-se propriedades do meio social”. 443 De modo brilhante Draghicesco faz ressaltar que a sociedade é a explicação causal da consciência. “Os psicólogos, observa o perspicaz investigador, não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e adaptação ao meio social. A consciência para eles é indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não pode ser mais atribuída a influências causadas pelo meio físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico é, por assim dizer constante, invariável. Por outro lado, estabelecemos também que a constituição orgânica do homem é precisamente o resultado da adaptação a esse meio. A adaptação, uma vez feita e consolidada em hábitos para sempre invariáveis, não poderia mais ser questão de novas adaptações, este meio não mudando mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade, em a natureza e no homem adaptado. Se, porém, ainda se constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir senão no meio social: sim, estabelecemos que é ele que, por sua invariabilidade e pela luta pela vida, impõe a adaptação. De hoje por diante não seria mais possível pro curar explicação para consciência senão nas adaptações às condições sociais. A consciência não pode ser o produto senão do meio social, exclusivamente. Senhores, do exposto se vê que estas três ciências – psicologia, lógica e sociologia – se prendem, se ligam, se combinam, formam um todo harmônico e constituem 444 a parte mais interessante de toda a pedagogia, pois que diz respeito àqueles estudos que mais têm influído para a crença no progresso da humanidade. Portanto, dou o meu voto para a aprovação do projeto, e dou-o confiando no honrado Sr. Presidente da República, no qual vejo a encarnação do tipo do verdadeiro estadista americano tão belamente descrito por Horácio Mann. O Sr. José Bonifácio – Apoiado, muito bem. O Sr. Artur Orlando – Diz Horácio Mann: “O primeiro dever dos nossos magistrados e dos chefes da nossa República é subordinar tudo a este interesse supremo. Em nossos países e em nossos dias ninguém é merecedor do título de homem de estado, se a educação prática do povo não tem o primeiro lugar no seu programa. Pode um homem ser eloqüente, conhecer a fundo a história, a diplomacia, a jurisprudência, o que lhe basta aliás para pretender a elevada condição de homem de estado, mas, se suas palavras, seus projetos, seus esforços não forem por toda a parte constant emente consagrados à educação do povo, ele não é, não pode ser homem de estado americano”. Tenho dito. (Muito bem; muito bem. O Orador é vivamente cumprimentado e abraçado por todos os seus colegas presentes). (Transcrito de Reforma do Ensino, Rio de Janeiro, Jornal do Comércio, 1907, 41 páginas). 445 5. SOCIOLOGIA E TOTALIDADE Para a maioria dos espíritos a natureza inteira não passa de uma cadeia de contrastes, importando a afirmação de um termo a negação do outro: finito e infinito, uno e múltiplo, real e ideal, objetivo e subjetivo, e assim por diante. Ao número destas antíteses pertence a antinomia de indivíduo e sociedade. Poucos são os moralistas, filósofos, políticos, religiosos, artistas, que não consideram o indivíduo e a sociedade como entidades distintas colocadas em extremos opostos. Na Bíblia a salvação é sempre individual. A torre de Babel, que devia garantir a salvação geral, acabou pela confusão das línguas, ninguém entendendo-se mais sobre o bem comum. Entre os moralistas, mesmo tratando-se de moral social, o princípio diretor das ações humanas é a consciência individual. Sob o ponto de vista filosófico Nietzche junta ao omne individ um ineffabile de Schopenhauer, o sentimento da distância, das Pathos der Distanz, que coloca o “super-homem” acima da sociedade. Enquanto os carneiros de Panurgio vivem em rebanho, o leão, consciente de sua força desdenha o “pecurismo”. Em política é clássico o antagonismo entre o indivíduo e o Estado, e grossos volumes insinuam a tendência daquele para o anarquismo e a deste para o despotismo. 446 É, porém, nas regiões da arte que se acentua mais nitidamente a antinomia entre o indivíduo e a sociedade. Tornar a obra de arte parte integrante de sua individualidade, imprimir-lhe o cunho de sua personalidade, eis o que distingue o artista de vulgo, e lhe assegura a admiração da posteridade. Pensar e sentir pela cabeça dos outros, produzir somente com o que vem do exterior, pode ser tudo, menos arte. A primeira condição para ser artista é ter espontaneidade. Escusado, p ortanto, é fazer esforço: o artista espera que chegue a inspiração, e nada mais avesso a todo nariz de cera do que a inspiração. “Quantas vezes, escreve Guy de Maupassant, constatei que a inteligência engrandece e se eleva, quando vivemos só, que ela decresce e se abaixa, desde que nos misturamos com outros homens. Os contatos, tudo que se diz e que se é obrigado a escapar, ouvir e responder, como age sobre nosso pensamento! Um fluxo de idéias vai de cérebro em cérebro, e se estabelece uma média para toda extensa aglomeração de indivíduos. As qualidades de iniciativa individual, de reflexão judiciosa, e mesmo de penetração, de todo homem isolado, desaparecem desde que a pessoa se junta a um grande número de outros homens”. Toda grande obra de arte é mais uma criação do homem que uma imitação da natureza. Por isso, a suprema expressão de arte é a música, filha tão -somente da alma do artista a exalar -se em ondas de harmonia. A antítese, porém, não existe: o indivíduo e a sociedade, considerados isoladamente, são puras abstrações sem 447 existência real, sem realidade objetiva. O antagonismo entre o indivíduo e a sociedade na passa de pura ilusão: o indivíduo e a sociedade são forças polares, que se completam formando o ser indivíduo -social ou a entidade sócio-individual. “Não há senão um meio de individualizar as pessoas, nota A. Fouillée, é socializá -las; não há senão um meio de socializar as pessoas, é individualizá -las. Para alargar as funções do organismo público, é preciso tornar mais larga a personalidade de cada um de seus membros; mas a recíproca não é menos verdadeira: a personalidade não se alarga senão pela extensão de seus laços sociais e pelo engrandecimento da sociedade a que pertence”. Além de que o indivíduo e a sociedade não são entidades distintas e opostas, sucede que a sociedade não se compõe exclusivamente de unidades humanas, é uma combinação binária de pessoas e coisas. Da combinação do território e da população é que resulta a existência das nacionalidades. Assim, o indivíduo, ao mesmo tempo fator e produto da sociedade, não é o seu elemento único: há ainda o meio físico que, associado ao homem, forma a sociedade. Bem se vê que a natureza inorgânica entra com sua quota de matéria para a constituição das sociedades. Exemplos: o ninho é condição necessária de toda sociedade de pássaros, a colméia de toda sociedade de abelhas, não falando nas cidades, com seus templos, edifícios e monumentos, tratando -se de nações civilizadas. Para ver como a natureza inteira, orgânica e 448 inorgânica, se socializa, basta abrir um código e ler qualquer de suas páginas. O leitor se convencerá facilmente de que o direito não é senão uma socialização das três ordens de relações, físicas, fisiológicas e psíquicas, que se prendem, se ligam, se combinam e se penetram reciprocamente. O direito não é esse monossilabismo, tão simples quanto falso, que imaginam os espíritos unilaterais; sua gênese é simultaneamente física, biológica e psíquica, filha da multiplicidade fenomenal do universo. Que significam os fatos jurídicos que modificam a personalidade jurídica humana, que fazem com que as pessoas gozem ou não de certos direitos, senão que a natureza entrou para a gênese jurídica com todas as suas diferenças de tempo, de lugar, de sexo, de idade, de atividade? Daí as instituições do casamento, da prosperidade, do domicilio, da prescrição e tantas outras, que não passam de socializações da natureza, tenham por base as pessoas ou as coisas, o tempo ou o espaço. Os fatos jurídicos mais importantes, quer se trate da aquisição, quer da extinção de direitos, o nascimento e a morte, não passam de fenômenos puramente biológicos. Nos códigos modernos não aparecem mais pessoas figurando como coisas; mas não é raro ver coisas elevadas à categoria de pessoas. Se da órbita do direito passarmos à esfera da psicologia, notaremos que a própria consciência individual, o eu, não é uma unidade real, objetiva, mas uma atividade sintética, um 449 processus de socialização. Kant, com a profundeza de seu olhar, já considerava a consciência uma síntese a unificar elementos diversos, e afirmar que esta função totalizadora é o traço característico de todas as manifestações psíquicas. Do mesmo modo pensa Spir: “Em nosso corpo orgânico o todo governa as partes e a forma, a matéria, enquanto ao mesmo tempo o todo é em cada momento um produto mesmo do concurso de suas partes; o mesmo se dá com o Eu”. Para Durkeim a consciência é um processus sintético, que tem sua origem e desenvolvimento no meio social. No mesmo ponto de vista se coloca Draghicesco, considerando a sociedade como a explicação causal da consciência individual: “Os psicólogos não fazem diferença entre adaptação ao meio físico e adaptação social. A consciência para eles é indiferentemente o produto de uma ou de outra. Ora, a origem da consciência, senão seu desenvolvimento, não pode mais ser atribuída a influências causadas pelo meio físico. Com efeito, estabelecemos que o meio cósmico e, por assim dizer, constante, invariável. Por outro lado estabelecemos também que a constituição orgânica do homem é precisamente o resultado da adaptação a esse meio. “A adaptação, uma vez feita e consolidada em hábitos para sempre invariáveis, não poderia mais ser questão de novas adaptações, este meio não mudando mais. Uma vez por todas está feita a estabilidade na natureza e no homem adaptado. Ser, porém, ainda se constatam adaptações, mudanças, estas não podem vir 450 senão do meio social; sim, estabelecemos que é ele que, por sua variabilidade e pela luta da vida, impõe a adaptação. De hoje por diante não seria mais poss ível procurar explicação para a consciência senão nas adaptações às condições sociais. A consciência não pode ser o produto senão do meio social, exclusivamente”. Reina completa solidariedade no universo, que, da mesma forma que o nosso corpo, é dotado de propriedades físicas, orgânicas e psíquicas. Calor, luz, eletricidade, pensamento, tudo se relaciona, formando um só todo, ao mesmo tempo, uno e múltiplo, contínuo e homogêneo e heterogêneo. Não seria difícil mostrar quanto o sol, os insetos, os pássaros e os jardineiros colaboram no desenvolvimento da beleza das flores, da elegância de suas formas, do brilho de suas cores, da suavidade de seus perfumes, e quanto por uma vez as flores concorreram para se desenvolverem entre os homens e os animais o senso e o gosto das formas, das cores e dos perfumes. Na economia universal os fenômenos físicos, biológicos e psíquicos são solidários e interdependentes; na economia social cada fenômeno é ao mesmo tempo físico, fisiológico e psíquico. Daí diversas espécies de fenômenos sociais (econômicos, jurídicos, estéticos) sem que, entretanto, nenhum deles se possa dizer exclusivamente econômico, jurídico, político, estético. Assim é que se pode avaliar a insuficiência das múltiplas teorias sociológicas tão -somente pelo seu unilaterismo, considerando cada uma delas o meio, a 451 raça ou qualquer manifestação de psíquico individual ou coletivo com o fator exclusivo da evolução social. Rompendo com todo seu passado teorético de uma finalidade das ações humanas, R. von Ihering, que em Zweeck im Recht havia sustentado que a distinção entre a natureza inanimada e o homem está em que no mundo físico a causa engendra necessariamente o efeito, ao passo que nas ações humanas predomina a vontade, impondo a si mesma um fim e escolhendo os meios próprios de atingi-lo, no livro, que é uma espécie de cristalização de sua vida de sábio – Vorgeschicht der Indo-Europaer – afirma positivamente que tanto no mundo moral como no físico impera a lei da causalidade, em virtude da qual os seres se desenv olvem sob a influência das circunstâncias exteriores. Partindo da origem comum dos povos indo europeus e analisando as transformações profundas, por que passaram, e as modificações contínuas que neles se produziram, o famoso jurista atribui umas e outras a puras influências de habitat. À diversidade do solo devem os gregos, os germanos e todos os povos de origem ariana, suas aptidões particulares, seus traços característicos, seus temperamentos especiais, em uma palavra, sua individualidade étnica. Todos os povos indo-europeus, escreve o sábio alemão; se formaram desta maneira, pertencendo originariamente a um só e mesmo povo, por conseguinte, à mesma raça, não se diferenciaram senão no curso dos tempos, e é, portanto, pela história que eles se tornaram o que hoje são. A raça é o produto sedimental de toda a 452 ação histórica da nação, ela não pode ser outra coisa, se é verdade que a lei da causalidade também rege o mundo humano. Nenhum povo foi dotado pela natureza de modo diverso dos outros povos; todos saíra m das mãos dela perfeitamente iguais; a diferença ulterior é exclusivamente obra do desenvolvimento histórico. O todo dos caracteres particulares não é senão o produto das condições especiais de seu território, ou por outras palavras, a raça e o solo. Onde, para os povos equivale a como, e porque; a geografia é a história traçada de antemão, a história é a geografia em ação. Opinião bem diversa seguem os antropo -sociológos, sustentando que a causa determinante das evoluções históricas é a pureza ou a mistura das raças, ou, segundo a expressão que lhes é usual, a química das raças. (1 ) Para estes, se a história registra as datas e os detalhes dos acontecimentos, não é senão a histologia que dá a chave do enigma, montando e desmontando as molas da grande máquina da vida, tornando conhecidas as verdadeiras causas das migrações, das revoluções, das decadências, das renascenças. As raças se dis tinguem por caracteres especiais, e são esses caracteres que determinam a função social de cada uma delas. “As raças árabes, a raça indiana, já dizia um velho escritor francês, são intuitivas, falta-lhes dialética, falta-lhes controle; todos os grandes fundadores de religião pertencem a estas raças. A raça greco-latina, menos poderoso como intuição, era uma raça dialética, organizadora, uma raça que agrupa, classifica; é a ela que se deve o monumento católico, 453 monumento latino sobre uma base semítica. Lineu, Jussieu, Blainville, eram espíritos latinos; Buffon um semita. A raça galo-germânica, enxertada sobre a raça greco-latina, parece acusar a presença das faculdades dialéticas ao lado das faculdades intuitivas, e é a raça mais notável, que a história constato. É a raça que instituiu a sã teoria dos controles ou criterium de certeza”. Os próprios gênios, que aparecem como pontos culminantes na história, os dominadores do tempo, e do espaço, não escapam à influência da raça. Por mais original que seja um grande homem, suas palavras, gestos e ações conservam inalteráveis os traços da origem comum, a feição da raça. Não se compre enderia Goethe escrevendo os Lusíadas, Camões produzindo o Fausto. O grande homem, seja profeta, filósofo, poeta, é um fundador, um revelador, um criador; suas produções servem de lição, de modelo, de exemplo, mas são lições, modelos e exemplos, que trazem o cunho da comunhão, a que pertencem. Sim, existe uma alma coletiva, e os semitas oferecem o curioso exemplo de uma raça que ao mesmo tempo que sofre mudanças e modificações nos países por onde passa, ao mesmo tempo que se adapta aos usos e costumes estrangeiros, conserva inalterável o cunho de sua individualidade primitiva, a ponto de construir um povo à parte entre as nações, em que adquire direito de cidade. Daí para os antropologistas e etnólogos a necessidade de se estar prevenido com a teoria exclusivista dos fatores mesológicos. Toda raça é 454 um produto do meio em que vive; os povos não surgem no mundo predestinados para esta ou aquela missão especial; sua vocação é determinada pelas circunstâncias ambientais. Tudo isso é verdade; mas seria impossível negar a influência decisiva do elemento étnico, como prova a história da raça ariana. As principais correntes da rala ariana foram os celtas, que ocuparam a Espanha, e Bretanha e a Irlanda; os helenos, os ítalos e os germanos, que se estabeleceram no meio-dia da Europa; e os latino-eslavos, que invadiram o norte. Entre estas diversas correntes de migração se distinguiram os helenos, os ítalos e os germanos, representando cada um destes povos saliente papel na civilização ocidental pela feição especial, com que cada um deles entrou na luta jurídica. Os helenos se afirmam como inteligência que arquiteta um ideal, os romanos como sentimento que se afirma pela afinidade, os germanos como vontade que reage contra os obstáculos. Assim, para os helenos o direito é uma arte, para os romanos, uma religião, para os germanos, uma mecâ nica. Na própria biologia é preciso corrigir os exageros de Darwin e Spencer, atribuindo a evolução dos orga nismos a causas puramente exteriores, quando a explicação deve ser procurada antes em uma espécie de desenvolvimento interno, de determinismo congênito. Em seu notável livro Evolução dos Sexos, Geddes e Thompson mostram como o desenvolvimento do pelo e o brilho do colorido entre os animais machos são devidos 455 ao sexo. Já Alfredo Wallace atribui a beleza dos animais do sexo masculino às leis gerais do crescimento. Ora, assim como os fenômenos estéticos têm sua origem e explicação no temperamento e desenvolvimento interno dos organismos, da mesma sorte os fenômenos sociais não se podem dizer uma simples resultante do meio exterior, físico ou mesmo social, são antes uma questão de temperamento etnográfico. Dez raças podem se misturar com uma outra, e, entretanto, esta não cessar de manter no tempo e no espaço as formas imanentes de sua constituição, os elementos irredutíveis de seu temperamento. É preciso estudar as raças em sua fisionomia particular, sempre idêntica a si mesma através dos séculos e dos climas, e bem assim suas diversas modificações sob a influência dos cruzamentos, não somente para reconstituir o passado, mas ainda compreender as grandes transformações, por que estão passando as sociedades humanas sob todos os pontos de vista, quer se trate de moral, quer de direito, quer de economia, quer de literatura. É fácil ver como as raças se distinguem por caracteres especiais em relação ao movimento, jurídico, religioso, literário. Movimento Jurídico Segundo o direito romano, que é o direito do Velho Mundo, compete ao soberano regular de modo absoluto as relações entre os part iculares e os poderes públicos; no direito anglo-saxônico, que serve de base 456 às Constituições Americanas, a idéia capital é colocar os individuais ao abrigo de qualquer ataque por parte do governo ou dos particulares. Movimento Religioso A igreja católica é filha da alma latina, a alma, por excelência, imperialista, mas de um imperialismo cesariano, que impõe a escravidão em nome da fraternidade. Movimento Literário Júlio Case, ocupando-se do célebre romancista Gorki, salientou a grande dificuldade de compreender uma raça estrangeira. Mais tarde, a propósito do drama de Bjoernson, acima das forças humanas, repetiu a mesma observação, ilustrando-a com as seguintes palavras de Henrique Ibsen: “Quanto aos franceses confesso que não posso compreendê-los. São uma raça à parte, e não estamos em condições, nem possuímos os dados necessários para compreendermo-los. Nós outros escandinavos ou cosmo politas não devemos julgá-los, porque o faríamos injustamente”. O psiquismo, individual ou coletivo, não se mostra menos unilaterista, considerando exclusivamente fator social o grande homem, segundo pensa Carlile, ou o “pecurismo”, no entender de Ammon. É da comunhão da terra e do homem, da combinação do território e da 457 população, que surge a sociedade; mas não basta esta interpretação global, resta determinar o traço característico da fenomenalidade social, considerada esta como o produto da fusão de todos os elementos: físicos, orgânicos e psíquicos. Segundo Korkonov, o fator social por excelência é o futuro, da mesma sorte que o presente no mundo físico e o passado no mundo orgânico. “Um montão de pedra, escreve o distinto professor de Petersburgo, se mantêm por um tempo indeterminado, enquanto as condições de equilíbrio não são perturbadas, ao passo que os seres vivos têm um desenvolvimento, uma história, uma embriologia, que é determinada segundo as forças que receberam desde o início de sua formação. Cada feto recebe uma certa provisão de energia, que é gasta depois pela adaptação do indivíduo às condições exteriores da vida. Se as condições exteriores são desfavoráveis, o gasto de energia é maior; se são favoráveis, este mesmo gasto é mais lento; porém, por mais favoráveis que sejam essas condições, chegará um momento em que elas serão completamente esgotadas. Os indivíduos não perecem pelo acaso, mas poque gastaram toda sua energia na luta contra as condições exteriores da vida”. Na sociedade não se dá esse esgotamento, porque os individuos são substituídos uns pelos outros. guiados e inspirados sempre por uma força nova – o futuro. É sempre para o futuro que os pvos têm os olhos voltados não obstante o seu honroso passado, as suas gloriosas tradições. Certamente o passado e o presente exercem 458 poderosa influência sobre a vida das sociedades, pois todos sabem quanto as mais extraordinárias transformações sociais são devidas ao contágio ou à hereditariedade; mas a influência decisiva é a imagem do futuro. Daí três fatores sociais: as circunstâncias presentes, as condições passadas e as influências fu turas. Entre as circunstâncias presentes se salientam o solo e o clima; entre as condições passadas, os costumes e as tradições; entre as influências futuras, as tendências e as aspirações por um lado, e por outo, as descobertas e as invenções. Assim, as nacionalidades, além do solo, clima, costumes e tradições, supõem novas idéias, novas vocações, novas descobertas, novas invenções, que constituem todas a mais poderosa alavanca de progresso – o Ideal. (Transcrito de Brasil, a Terra e o Homem. Recife, O Tempo, 1913, págs. 7 a 16). NOTA (1) Vide Gobineau, Essai sur l’Inégalitè des Races Humaines; Lapouge, Séections Sociales. 459