anais do iii encontro intermediário grupo de pesquisa confluências
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anais do iii encontro intermediário grupo de pesquisa confluências
ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO GRUPO DE PESQUISA CONFLUÊNCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS 1 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ – UNIOESTE REITOR Paulo Sergio Wolff VICE-REITOR Carlos Alberto Piacenti PRÓ-REITOR DE GRADUAÇÃO Liliam Faria Porto Borges PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO Gilmar Baumgartner PRÓ-REITORA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO Silvio César Sampaio EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ EDUNIOESTE DIRETORA Aparecida Feola Sella ASSISTENTE EDITORIAL Daiane Soraia de Souza EDITORA CIENTÍFICA Sanimar Busse ESTAGIÁRIA Jocineli Polis Colombo CONSELHO EDITORIAL Silvio César Sampaio Liliam Faria Porto Borges Gilmar Baumgartner Aparecida Feola Sella Clodis Boscarioli Marina Kimiko Kadowaki Loreni Teresinha Brandalise Beatriz Helena Dal Molin Lavínia Raquel Martins Samuel Klauck José Ricardo Souza Adílson Francelino Alves Yolanda Lopes da Silva Antonio de Pádua Bosi 2 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Mário Luiz Soares Gustavo Biasoli Alves Jefferson Andronio Ramundo Staduto Soraya Moreno Palácio COMISSÃO CIENTÍFICA DO EVENTO Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza Antonio Donizeti da Cruz Lourdes Kaminski Alves Ximena Antonia Díaz Merino 3 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Organização Elis Regina Basso Ruane Maciel Kaminski Alves Ximena Antonia Díaz Merino ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUÊNCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS EDUNIOESTE Cascavel 2014 4 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS © 2014, EDUNIOESTE Diagramação Ximena Díaz Merino Ficha Catalográfica Marilene de Fátima Donadel - CRB 9/924 III Encontro Intermediário do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas diversas Linguagens. (2014: Cascavel, PR) Anais do Seminário Nacional de Literatura, História e Memória, realizado no dia 27 e 28 de novembro de 2014, Cascavel, PR [CD-ROM] /Organização de Ximena Díaz Merino; Elis Regina Basso; Ruane Maciel Kaminski Alves. Cascavel: EDUNIOESTE, 2014. 1 disco laser ISSN: 2175-943X 1. Literatura. Congressos 2. Estética literária. Congressos 3. Texto literário. Congressos I. Díaz Merino, Ximena, Org. II. Basso, Elis Regina, Org. III. Alves, Ruane M. K. CDD 20. ed. CDD 806E56a Impressão e Acabamento Editora e Gráfica Universitária -EDUNIOESTE Rua Universitária, 1619- E-mail: [email protected] Fone (45) 3220-3085-Fax (45) 3324-4590 CEP 85819-110 – Cascavel - PR-Caixa Postal 7016 5 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .................................................................................................10 PROGRAMAÇÃO ..................................................................................................13 HISTÓRICO ...........................................................................................................15 ARTIGOS EDUCAÇÃO LITERÁRIA E EDUCAÇÃO LIBERAL ...............................................22 Fausto José da Fonseca Zamboni EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA: UM SCRIPT PARA MUITOS ATORES ....................34 Francieli Motter Ludovico DIÁLOGOS COM DOSTOIÉVSKI, BAKHTIN E CALVINO ....................................47 José Kuiava. LINGUAGENS EM CONTEXTOS INCLUSIVOS E IDIOSSINCRÁTICOS: PRODUÇÃO DE OBJETOS DIGITAIS DE ENSINO-APRENDIZAGEM ................62 Julia Cristina Granetto DESENCANTAMENTO E APATIA: PERSPECTIVA TRÁGICA EM CAETÉS, DE GRACILIANO RAMOS ............................................................................................76 Pedro Leites Jr RESUMOS EXPANDIDOS NARRATIVA LITERÁRIA E SACRALIDADE DA VIDA EM RUBEM FONSECA ..100 Adriano Rodrigues Alves ESTUDO DE MITOS E ARQUÉTIPOS EM NELSON RODRIGUES ....................106 Alessandra Camila Santi Guard “NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA POROSA”: UM ESTUDO SOBRE O ROMANCE METAFICCIONAL DO INÍCIO DO SÉCULO XXI............................110 Alessandra Cristina Valério MEMÓRIA SOCIAL EM: A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO (2011) ...................122 Amanda Caldeira Gilnek 6 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS DE SEDUTORAS A DEMONÍACAS: AS DIFERENTES FACETAS DAS MULHERES NOS ESPAÇOS URBANOS DE RUBEM FONSECA ......................126 Ana Lúcia Moreira Rios Coimbra de Araújo FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: O HABITANTE DO ESQUECIMENTO EM FIGURA NA SOMBRA ......................................................................................... 131 Ana Maria Klock GÊNERO E REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS FEMININAS EM MARIA JOSÉ SILVEIRA E JORGE AMADO ....................................................................135 Anna Deyse Rafaela Peinhopf CLAUDIA ROQUETTE PINTO E SUZY DELGADO: ESTUDO COMPARADO DA LÍRICA LATINO-AMERICANA ..............................................................................139 Antonio Rediver Guizzo ALBERTO CAEIRO À LUZ DE FRIEDRICH NIETZSCHE: DO RETORNO À NATUREZA PARA ALÉM DO BEM E DO MAL ....................................................145 André Boniatti OS DEGREDADOS E DEGREDADAS NAS OBRAS TERRA PAPAGALLI E DESMUNDO .........................................................................................................152 Beatrice Uber REPRESENTAÇÕES ANTROPOFÁGICAS NO NOVO E NO VELHO MUNDO. UMA LEITURA COMPARATIVA DO CANIBALISMO NA LITERATURA ..............156 Bernardo A. Gasparotto QUANDO O LEITOR VIRA PERSONAGEM: A REPRESENTAÇÃO FICCIONAL DO PROCESSO DE LEITURA ....................................................................................160 Clarice Lottermann REINVENÇÃO DO ENREDO MÍTICO NAS OBRAS “O SONHO DE ELECTRA” DE BIDISHA BANDYOPADHYAY E “SENHORA DOS AFOGADOS” DE NELSON RODRIGUES ........................................................................................................166 Claudiane Prass RELEITURAS DE CONTOS DE FADAS NO ACERVO DO PNBE 2012 .............173 Elesa Vaness Kaiser da Silva VOZES DA CIDADE: O MÉXICO ORIGINÁRIO DE ALFONSO REYES E O MÉXICO POLIFÔNICO DE CARLOS FUENTES ...............................................................178 Elis Regina Basso O OLHAR ATRAVÉS DA CULTURA DO OUTRO ................................................183 Franciele Alves Pereira LÍLIA SILVA: PSICANÁLISE E FAZER POÉTICO ................................................................189 7 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Job Lopes MEMÓRIA SOCIAL E POETICIDADE EM SUSY DELGADO .............................193 Leda Aquino DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS: A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FLORA TRISTÁN NO ROMANCE EL PARAÍSO EN LA OTRA ESQUINA DE MARIO VARGAS LLOSA ..................................................................................................198 Leila Shaí del Pozo González ENTRE A OBRIGAÇÃO E O DESEJO: A LEITURA PARA A ESCOLA E A LEITURA PARA A VIDA .......................................................................................204 Luciana Alves Bonfim A LÍRICA DE VIRGÍNIA VENDRAMINI: MEMÓRIA E INFÂNCIA ........................210 Lucilaine Tavares da Silva LA INVENCIÓN DE MOREL: A POÉTICA DOS ESPAÇOS FÍSICOS E METAFÍSICOS NAS IMAGENS SURREALISTAS QUE EMERGEM DA NARRATIVA .........................................................................................................214 Ludmilla Kujat Witzel CONSTRUÇÕES DO IMAGINÁRIO E DO MITO NA POÉTICA DE ADÉLIA MARIA WOELLNER .........................................................................................................218 Marcia Munhak Speggiorin O CÔMICO AMBIVALENTE E A CULTURA POPULAR NAS PEÇAS A FARSA DE MESTRE PTHELIN, FARSA DE INÊS PEREIRA, FARSA Y LICENCIA DE LA REINA CASTIZA E FARSA DA BOA PREGUIÇA ............................................................223 Maricélia Nunes dos Santos AMORES DE PERDIÇÃO: A HISTÓRIA SECRETA DE MANOELA E GARIBALDI ...........................................................................................................227 Marina Luísa Rohde O ANTIILUSIONISMO REFLEXIVO DA IMAGEM EM CORTÁZAR .....................232 Mayara Regina Pereira Dau Araujo A HISTÓRIA E A PROVIDÊNCIA NA TRILOGIA “O MOINHO DO PÓ” DE RICCARDO BACCHELLI ......................................................................................236 Odete da Glória Oliveira Tasca PROCESSOS INTERTEXTUAIS EM NELSON RODRIGUES: A VIDA COMO ELA É NA LITERATURA E EM OUTRAS LINGUAGENS ............................................242 Patricia Barth Radaelli DIALOGISMO E POLIFONIA EM VIOLETA PARRA .................................................250 8 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Patricia Cuevas Estivil A ESTÉTICA DO HORROR EM AMÁLGAMA DE RUBEM FONSECA ................254 Regina Coeli Machado e Silva O OUTRO ESTRANGEIRO: ENCONTROS CULTURAIS NA AMÉRICA .............258 Robert Thomas Georg Würmli HISTÓRIA E FICÇÃO EM AGE FO IRON E DISGRACE ......................................263 Ruane Maciel Kaminski Alves LITERATURA INFANTOJUVENIL AFRO-BRASILEIRA: UMA LEITURA DE OS REIZINHOS DE CONGO ......................................................................................268 Ruth Ceccon Barreiros DESCONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO ESPACIAL DE FRONTEIRA: CONTOS DE HORACIO QUIROGA .....................................................................279 Scheila Stahl SOBRE O RISO E SUA CONSTITUIÇÃO NA LITERATURA ...............................283 Toani Caroline Reinehr OS KAINGANG DE RIO DAS COBRAS NAS FOTOGRAFIAS DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO .........................................................................................291 Toni Juliano Bandeira IMAGENS POÉTICAS E MEMÓRIA LÍRICA EM CHLORIS CASAGRANDE JUSTEN ................................................................................................................298 Vanessa Micheli Faraom Zanesco OSWALD DE ANDRADE: DO MANIFESTO Á CRÍTICA LITERÁRIA E ARTÍSTICA ......302 Wallisson Rodrigo Leites 9 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS CENTRO DE EDUCAÇÃO COMUNICAÇÃO E ARTES–CECA COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS/INGLÊS/ESPANHOL/ITALIANO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS, NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO, ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LINGUAGEM E SOCIEDADE APRESENTAÇÃO ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUÊNCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS – EDIÇÃO 2014 – O Seminário Nacional de Literatura, História e Memória representa uma das ações anuais do grupo de pesquisa: Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas diversas linguagens. O Seminário teve sua origem a partir das discussões dos estudos do corpo docente e discente da área. Este Seminário fortaleceu-se em suas atividades, instigando projetos de pesquisa que integram docentes pesquisadores da Graduação, da Pós-Graduação e respectivos orientandos. O grupo articula quatro linhas de pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados; Linguagens em contextos inclusivos e idiossincráticos; Memória, Cultura e Ensino; Literatura, História e Memória, esta última faz parte das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, nível de Mestrado e Doutorado da UNIOESTE. O Seminário constitui-se como evento permanente no Calendário Acadêmico das atividades científicas e culturais do Colegiado do Curso de Letras – Português/Inglês/Espanhol/Italiano e do Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, nível de Mestrado e Doutorado da UNIOESTE. Nos dias 27 e 28 de novembro de 2014 realizou-se na Unioeste, campus de Cascavel, o III Encontro Intermediário do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas diversas linguagens que teve como objetivo reunir os pesquisadores das quatro linhas de pesquisa em torno das temáticas estudadas pelo referido grupo. Participaram pesquisadores docentes da Graduação e da Pós-Graduação, pesquisadores externos convidados, alunos de Iniciação Científica, orientandos de TCC do curso de Letras, alunos de mestrado, de doutorado e egressos da pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade. O III Encontro Intermediário realizou-se no formato de simpósios por linha de pesquisa e uma conferência. O Encontro Intermediário também promoveu reunião com seus membros 10 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS pesquisadores para a preparação do III Congresso Internacional de Pesquisa e Em Letras no Contexto Latino-Americano e XII Seminário Nacional de Literatura, História e Memória, que ocorrerá nos dias 25 a 27 de novembro de 2015, na Unioeste, campus de Cascavel. O evento contou com a coordenação da Profa. Dra. Ximena Díaz Merino e da Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves, Líderes do Grupo de Pesquisa. No dia 27/11, ocorreram dois simpósios e a conferência intitulada “Livros que andam e fala na tela: Guataha” sobre narrativas, culturas e poéticas Indígenas, proferida pela Profa. Dra. Alai Garcia (UFSC/UNILA), também membro do grupo de pesquisa. Na linha de pesquisa Literatura, História e Memória, a Profa. Dra. Adriana de Figueiredo Fiuza apresentou o projeto interinstitucional “A história revisitada pela ficção: a Guerra Civil e o franquismo na narrativa e na filmografia espanhola contemporânea” e discutiu dados da pesquisa; o Prof. Dr. Wagner de Souza apresentou uma reflexão sobre o potencial das narrativas literárias como releituras do discurso histórico oficial e resultados da pesquisa que acolhe diversos projetos de Iniciação Científica; o Prof. Dr. Fausto José da Fonseca Zamboni refletiu sobre Educação literária e educação liberal no contexto da formação de professores de Língua, literatura e cultura; o Prof. Ms Stanis David Lacowicz expôs uma leitura sobre a obra El imperio eres tú, de Javier Moro, obra que aborda a independência do Brasil pela perspectiva espanhola. Na linha de pesquisa Linguagens em Contextos Inclusivos e Idossincráticos, a Profa. Dra. Rose Maria Belim Motter abordou sobre o ensino de línguas na era da tecnologia digital e suas relações com as diferentes culturas e contexto de inclusão, a Profa. Ms Julia Cristina Granetto apresentou dados e refletiu sobre o projeto Linguagens em contextos inclusivos e idiossincráticos: produção de objetos digitais de ensino-aprendizagem, projeto articulado ao Núcleo de Estudos, Concepção e Produção de Recursos Educacionais Impressos e Digitais para Formação Continuada – NUPREADUNI, coordenado pela Profa. Dra. Beatriz Helena Dal’Molin, a mestranda Francieli Motter Ludovico refletiu sobre “Educação a distância: um script para muitos atores”, recorte de dissertação de mestrado. No dia 28/11 ocorreram mais dois simpósios. Na linha de Pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, a Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves apresentou o tema “Oswald de Andrade: encontros com a Filosofia e com a História” e discutiu dados da pesquisa; o Prof. Dr. Antônio Donizeti da Cruz explanou sobre o projeto “Mapas do imaginário e da memória em narrativas líricas e textos poético-plásticos: interseções entre 11 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS literatura, pintura e artes visuais” e discutiu dados da pesquisa; a Profa. Dra. Ximena Díaz Merino abordou o tema “Textualidades, imaginários e representações da cidade na prosa, na poesia e no ensaio” e apresentou dados da pesquisa; a Profa. Ms. Maricelia Nunes apresentou uma reflexão sobre o projeto “O cômico ambivalente e a cultura popular nas peças a Farsa de mestre Pathelin, Farsa de Inês Pereira, Farsa y Licencia de la Reina Castiza e Farsa da Boa Preguiça”, recorte da pesquisa de doutorado em andamento; a Profa. Dra. Regina Coeli Machado e Silva, representada pela orientanda de doutorado Alessandra Valério refletiu sobre “A estética do horror em Amálgama de Rubem Fonseca”. Na linha de pesquisa Literatura, memória, cultura e ensino, a Profa. Dra. Clarice Lottermann trouxe reflexões sobre “Quando o leitor vira personagem: a representação ficcional do processo de leitura”; a Profa. Ms Dhandara Lima falou sobre um recorte de estudos “Puro açúcar branco e blue: considerações sobre a poesia de Ana Cristina Cesar”, o Prof. Dr. José Kuiava refletiu sobre o “Diálogo com Fiódor Dostoiévski, Mikhail Bakhtin e Ítalo Calvino”, relações filosóficas e literárias, o Prof. Dr. Paulo Humberto Porto Borges apresentou estudos sobre “Linguagem fotográfica e representação”. A presente publicação conta com Artigos e Resumos Expandidos apresentados pelos professores pesquisadores no III Encontro Intermediário do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas diversas linguagens. Organizadores 12 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS CENTRO DE EDUCAÇÃO COMUNICAÇÃO E ARTES–CECA COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS/INGLÊS/ESPANHOL/ITALIANO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS, NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO, ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LINGUAGEM E SOCIEDADE PROGRAMAÇÃO ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUÊNCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS – EDIÇÃO 2014 – 27 / 11 / 2014 - Mini Auditório 3 ABERTURA 08:00 – 08:15 Líderes do Grupo de Pesquisa: Profª. Drª. Lourdes Kaminski Alves Profª. Drª. Ximena Díaz Merino SIMPÓSIO 1: LITERATURA, HISTÓRIA E MEMÓRIA Horário Professor Pesquisador Tema 08:20-08:40 Adriana de Figueiredo Fiuza A história revisitada pela ficção: a Guerra Civil e o franquismo na narrativa e na filmografia espanhola contemporânea 08:40-09:00 Wagner de Souza De baixo para cima 09:00-09:20 Fausto José da Fonseca Zamboni Educação literária e educação liberal 09:20-09:40 Stanis David Lacowicz El imperio eres tú: a independência do Brasil pela perspectiva espanhola 09:40-09:55 Debate INTERVALO 09:55-10:10 SIMPÓSIO 2: LINGUAGENS EM CONTEXTOS INCLUSIVOS E IDOSSINCRÁTICOS Horário Professor Pesquisador Tema 10:10-10:30 Julia Cristina Granetto 10:30 - 10:50 Rose Maria Belim Motter Linguagens em contextos inclusivos e idiossincráticos: produção de objetos digitais de ensino-aprendizagem. O ensino de línguas na era da tecnologia digital 10:50 -11:10 Francieli Motter Ludovico 11:10– 11:25 Educação a distância: um script para muitos atores Debate 13 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS 28/11 08:00 - Sala 21 SIMPÓSIO 3: LINGUAGEM COMPARADOS LITERÁRIA E INTERFACES SOCIAIS: ESTUDOS Horário Professor Pesquisador Tema 08:20-08:40 Lourdes Kaminski Alves Oswald de Andrade: encontros com a Filosofia e com a História Mapas do imaginário e da memória em narrativas líricas e textos poético-plásticos: interseções entre literatura, pintura e artes visuais. 08:40-09:00 Antonio Donizeti da Cruz 09:00-09:20 Ximena Díaz Merino Textualidades, imaginários e representações da cidade na prosa, na poesia e no ensaio. 09:20-09:40 Maricelia Nunes 09:40-09:55 Regina Coeli Machado e Silva O cômico ambivalente e a cultura popular nas peças a farsa de mestre pathelin, farsa de inês pereira, farsa y licencia de la reina castiza e farsa da boa preguiça A estética do horror em Amálgama de Rubem Fonseca 09:55-10:10 Debate INTERVALO 10:10-10:25 SIMPÓSIO 4: LITERATURA, MEMÓRIA, CULTURA E ENSINO Horário Professor Pesquisador Tema 10:25– 10:45 Clarice Lottermann Quando o leitor vira personagem: a representação ficcional do processo de leitura 10:45-11:05 Dhandara Lima Puro açúcar branco e blue: considerações sobre a poesia de Ana Cristina Cesar 11:05-11:25 José Kuiava Diálogo com Fiódor Dostoiévski, Mikhail Bakhtin e Ítalo Calvino 11:25-11:45 Paulo Humberto Porto Borges Linguagem fotográfica e representação 11:45-11:55 Debate 14 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS CENTRO DE EDUCAÇÃO COMUNICAÇÃO E ARTES–CECA COLEGIADO DO CURSO DE LETRAS PORTUGUÊS/INGLÊS/ESPANHOL/ITALIANO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS, NÍVEL DE MESTRADO E DOUTORADO, ÁREA DE CONCENTRAÇÃO LINGUAGEM E SOCIEDADE 1. HISTÓRICO DAS AÇÕES E DAS RELAÇÕES DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUÊNCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS 1.1IDENTIFICAÇÃO TÍTULO: GRUPO DE PESQUISA: Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas diversas Linguagens. Cadastrado no diretório de grupos no CNPq em 2007. LINHAS DE PESQUISAS Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados Linguagens em Contextos Inclusivos e Idiossincráticos Literatura, Ensino e Cultura Literatura, História e Memória Líderes do Grupo: Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves Prof. Dra. Ximena Antonia Díaz Merino 1.2 PESQUISADORES/MEMBROS DO GRUPO: 1.2.1 Pesquisadores Acir Dias da Silva Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza Alai Garcia Diniz Antonio Donizeti da Cruz Antonio Marcio Ataide Beatriz Helena Dal Molin Clarice Lottermann Elizabete Arcalá Sibin Fausto José da Fonseca Zamboni Flávio Pereira Gilmei Francisco Fleck Iracy de Almeida Gallo Ritzmann José Carlos Aissa José Carlos da Costa Lourdes Kaminski Alves Luís Eduardo Wexell Machado Maricélia Nunes dos Santos Paulo Humberto Porto Borges 15 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Pedro Leites Junior Regina Coeli Machado e Silva Rita das Graças Felix Fortes Ruth Ceccon Barreiros Wagner de Souza Ximena Antonia Díaz Merino 1.2.2 Estudantes Abel Santos de Oliveira Junior Alessandra Camila Santi Guarda Alessandra Cristina Valério Amanda Caldeira Gilnek Ana Maria Klock André Boniatti Anna Deyse Rafaela Peinhopf Anthoni Cley Sobierai Antonio Rediver Guizzo Beatrice Uber Bernardo Antonio Gasparotto Bruna Eloiza ALves Bruna Otani Ribeiro Camila Lacerda Schneider Caroline Arenhart De Bastiani Claudiane Prass Cleiser Schenatto Langaro Débora Karine Vollmann Elesa Vanessa Kaiser da Silva Elis Regina Basso Elizabete Arcalá Sibin Fernanda Vaz Cordeiro Soares Teixeira Francielee Cristina dos Santos Guilherme Luiz Levinski Marins Jacqueline Bohn Couto Joanir Rocha Pidorodeski Job Lopes Julia Cristina Granetto Moreira Jéssyca Finantes do Carmo Bózio Kaline Cavalheiro da Silva Leda Aquino Leila Shai Del Pozo Gonzalez Luciana Alves Bonfim 16 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Lucilaine Tavares da Silva Anschau Ludmilla Kujat Witzel Marcia Munhak Speggiorin Maricelia Nunes dos Santos Marilia Manfredi Gasparovic Marina Luísa Rohde Mayara Elisa de Lima Cirico Odete da Glória Oliveira Patricia Barth Radaelli Patricia Dal moro Mendes Patricia Cuevas Estivil Pedro Leites Junior Raquel Cardoso de Faria e Custódio Robert Thomas Georg Würmli Ruane Maciel Kaminski Alves Scheila Stahl Tiago Ochôa Tesser Toani Caroline Reinehr Toni Juliano Bandeira Vanessa Micheli Faraom Zanesco Wallisson Rodrigo Leites 1.2.3 Técnico Paulo César Rodrigues Diógenes - Mestrado - Assistente de Pesquisa Tatiana de Oliveira Borges - Graduação - Assistente de Pesquisa 2 BREVE HISTÓRICO E PROPOSTAS DO GRUPO DE PESQUISA 2.1 Objetivos: a) Desenvolver estudos sobre as relações entre Literatura, História e Memória a partir da seleção de um corpus de narrativas contemporâneas, em especial o romance histórico latino-americano para o exercício da análise comparada e da crítica literária. b) Realizar pesquisa sobre a literatura e suas relações com outras Artes, observando as com fluências da ficção, história e memória nas narrativas de extração histórica e a produção literária nas Américas, abordando os principais autores e seus respectivos projetos estéticos e ideológicos na busca de suas contribuições para a formação das identidades em nosso continente. c) Efetuar estudos comparados no campo da literatura em suas diferentes vertentes artísticas, bem como em suas relações com outros campos da Arte, a fim de 17 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS evidenciar o alcance dos projetos estéticos literários e sua importância para a formação integral do indivíduo. d) Realizar investigações sobre abordagens metodológicas para o Ensino da Literatura e da Cultura nos diferentes níveis de nosso sistema de educação, apontando a importância da inserção dos textos literários na escola como meio eficaz de desenvolvimento da leitura, da análise crítica e do desenvolvimento do raciocínio e, por meio da abordagem dos aspectos culturais dos diferentes povos, promover a preservação e reconhecimento de valores próprios e alheios. e) Manter, incentivar e promover a organização de seminários temáticos anuais e a produção bibliográfica de caráter científico, com a finalidade de compartilhar resultados e estabelecer diálogos com outros pesquisadores destas áreas. f) Estudar o tema das narrativas de extração histórica e a produção literária na América Latina, promovendo a interlocução entre grupos de pesquisa e intercâmbios com universidades do Brasil, da Argentina, do Paraguai e da Venezuela. g) Realizar levantamento junto aos grupos de pesquisa dos Programas de pósgraduação em Letras das Universidades: Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Brasil), Universidad Nacional de Rosário (Argentina), Universidad Central de Venezuela (Venezuela), Universidad Nacional de Misiones (Argentina) e Universidad e Nacional do Leste do Paraguai (Paraguai), objetivando verificar estudos realizados e focos de interesse sobre narrativas de extração histórica e a produção literária na América Latina. h) Promover estudos temáticos, que articulem grupos de pesquisa interinstitucionais com enfoque na Literatura comparada latino-americana, aproximando pesquisadores nas diferentes universidades por meio de atividades conjuntas, tais como: simpósios, minicursos, publicações e outras. 2.2 Eventos do grupo de pesquisa: Uma das ações do grupo de pesquisa é a realização anual do Seminário Nacional de Literatura, História e Memória, evento temático, permanente no calendário acadêmico das atividades científicas e culturais do Colegiado de Letras e Do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, nível de Mestrado e Doutorado, da UNIOESTE. O seminário teve sua origem a partir das discussões dos estudos do corpo docente e discente da área. Este Seminário fortaleceu-se em suas atividades, instigando projetos de pesquisa que integram docentes pesquisadores da Graduação, da Pós-Graduação e respectivos orientandos. O grupo articula as linhas de pesquisa: Literatura, história e memória; Literatura, ensino e cultura; e Linguagem literária e interfaces sociais: estudos comparados, esta última faz parte das linhas de pesquisa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, nível de Mestrado e Doutorado, da UNIOESTE. A primeira edição do seminário, em 2001, trouxe discussões introdutórias sobre Literatura e História: Confluências. Em 2002, a presentou estudos e pesquisas do corpo docente e discente em torno do Romance Histórico. Em 2003, propôs um resgate dos clássicos da literatura universal a partir do tema Literatura e História: o Cânone como Intertexto da Narrativa Contemporânea. A edição de 2004 propôs estudos que pudessem contribuir com as necessidades dos professores do Ensino 18 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Fundamental e do Ensino Médio em relação aos conteúdos e temáticas relacionados à inserção de algumas Culturas Latino-americanas e Africanas. Essa edição apresentou estudos sobre as Confluências estéticas entre as literaturas no Brasil e na África. Em 2005, o seminário desenvolveu o tema Figurações da Nacionalidade no Texto Literário Contemporâneo, com a proposta de socializar estudos e investigar aspectos estruturais e estéticos na produção literária brasileira, cuja permanência ao longo da história permite vislumbrar um projeto ideológico e estético de certa forma recorrente desde a produção do período colonial ao contemporâneo, evoluindo apenas no tom, às vezes mais idealizado e ufanista, às vezes, irônico e satírico, assumindo nuances sócio-críticos que chegaram à criação de elementos estruturais bem definidos na literatura brasileira. Em 2006, com o tema Narrativas da memória: o discurso feminino, lançou-se um olhar sobre a voz feminina na literatura. Em 2007 o Seminário Nacional de Literatura, História e Memória passou a integrar as ações do grupo de pesquisa Confluências da ficção, história e memória na literatura e abordou a temática Narrativas de Extração Histórica, abrindo um importante espaço para as discussões sobre a questão do gênero no âmbito das narrativas de memória, buscando, ainda, discutir a representação cultural, histórica e identitária na tessitura textual. A continuidade desta trajetória deu-se em 2008, com reflexões sobre as relações da Literatura e da Cultura no âmbito latino-americano, oportunizando intercâmbios nesta área, aproximações entre pesquisadores de diferentes universidades nacionais e estrangeiras, fundamentando as questões identitárias na América. Em 2009 o seminário adquiriu uma dimensão interinstitucional, congregando a Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste/Cascavel e a Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho–UNESP/Assis, uma vez que as discussões sobre as relações entre Literatura e cinema, eleitas para a referida edição, foram compartilhadas, em primeira instância, entre os membros dos grupos de pesquisa Confluências da ficção, história e memória na literatura, da Unioeste/Cascavel e Narrativas Estrangeiras Modernas: Gêneros Híbridos da Modernidade, da UNESP, campus de Assis. Em 2010, ano de avaliação trienal do Grupo de pesquisa que congrega o seminário, a proposta foi realizar um encontro intermediário reunindo os pesquisadores das três linhas de pesquisa e pesquisadores parceiros para juntos preparar a edição de 2011, que ocorreu nos dias 15, 16 e 17 de setembro de 2011 (X Seminário Nacional de Literatura, História e Memória e I Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano). A edição de 2010 realizouse no modelo de simpósios e mesas temáticas com o objetivo de avaliar os rumos da pesquisa realizada no grupo. Em 2012, reuniram-se os pesquisadores do referido grupo de pesquisa na modalidade de Encontro Intermediário. Na continuidade deste diálogo, em 2013, ano da segunda avaliação trienal do Grupo de Pesquisa, o – XI Seminário Nacional de Literatura, História e Memória e II Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino- Americano – convidou os pesquisadores a refletir sobre o tema das Confluências Entre Literatura, Cultura e Outros Campos do Saber. Na edição 2013 do XI Seminário Nacional de Literatura, História e Memória e II Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano registrou 1087 inscritos, 01conferência, 06 mesas de debate, 03 sessões de diálogos 19 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS entre leitores e escritores, 33 simpósios, 495 comunicações de pesquisa, lançamento de livros de autores e escritores da Unioeste, de diversas regiões do País e do exterior, além de diversas atividades culturais. Este grupo de pesquisa realiza intercâmbios com pesquisadores de outras IES e demais Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu, por meio da participação integrada em simpósios temáticos, outros eventos acadêmico-científicos, publicações em periódicos e publicações de livros. Os organizadores 20 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ARTIGOS 21 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS EDUCAÇÃO LITERÁRIA E EDUCAÇÃO LIBERAL Fausto José da Fonseca Zamboni RESUMO: Educação Liberal é um termo cunhado na Idade Média para designar um tipo de estudo que existia desde a Antiguidade e que, com algumas transformações, continua até os nossos dias. Centenas de universidades em todo o mundo, especialmente nos Estados Unidos, oferecem um currículo baseado na Educação Liberal. Ao contrário do que se poderia imaginar, o termo não reveste uma conotação política nem se confunde com anarquismo educativo. A Educação Liberal está voltada aos estudos dos clássicos que marcaram a história intelectual da nossa civilização. Ela complementa a educação profissional, que é mais propriamente um adestramento, uma vez que não visa senão a conferir uma licença pública para o exercício de uma profissão, deixando a formação geral ou para o ensino secundário, quando o aluno ainda é imaturo, ou para os veículos de comunicação de massa. O ensino da literatura, na perspectiva da educação liberal, é voltado principalmente à formação da personalidade. Na formação dos professores de literatura, é comum a eleição do “leitor crítico” como um ideal educativo. No entanto, antes que possam partir para estudos especializados, é importante insistir na convivência e na identificação emocional “o que significaria a abertura do espírito para toda poesia” (CARPEAUX, 1999, p. 278). O estudo do ensino literário, na perspectiva da Educação Liberal, permite uma nova perspectiva de vários dos principais dilemas da educação nos dias de hoje, desde o sentido mais amplo do termo educação até a prática concreta de introdução do leitor no universo literário. PALAVRAS-CHAVE: Educação Liberal; ensino; literatura. RESEN: Educación Liberal es un término cuñado en la Edad Media para designar un tipo de estudio que existía desde la Antiguiedad y que, con algunas transformaciones, continúa hasta nuestros días. Centenas de universidades en todo el mundo, especialmente em los Estados Unidos, ofrecen un currículum con base en la Educación Liberal. Al contrario de lo que se podría imaginar, el término no concentra una connotación política ni se confunde con anarquismo educativo. La Educación Liberal está direccionada para los estudios de los clásicos que marcaron la história intelectual de nuestra civilización. Ella complementa la educación profesional, que es propriamente um adiestramiento, ya que visa conferir una licencia pública para el ejercicio de una profesión, dejando la formación general para la enseñanza media, cuando el alumno aún es inmaduro, o para los vehículos de comunicación de masa. La enseñanza de literatura, en la perspectiva de la educación liberal, es direccionado principalmente a la formación de la personalidad. En la formación de profesores de literatura, es común la elección de un “lector crítico” como un ideal educativo. Sin embargo, antes que pouedan partir para estudios especializados, es importante insistir en la convivencia y en la identificación 22 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS emocional “o que significaria a abertura do espírito para toda poesia” (CARPEAUX, 1999, p. 278). El estudio de la enseñanza literaria, en la perspectiva de la Educación Liberal, permite una nueva perspectiva de vários de los principais dilemas de la educación en la actualidad, desde el sentido más amplio del termino educación hasta la práctica concreta de introducción del lector al universo literario. PALABRAS-CLAVES: Educacion Liberal; enseñanza; literatura. O QUE É EDUCAÇÃO LIBERAL “Educação Liberal” é um termo que pode ser entendido em vários sentidos, de acordo com o significado a que se atribui à palavra “Liberal”. Uso o termo, aqui, no seu sentido originário, de uma tradição que remonta à Grécia antiga, passando pela Roma do período clássico e adquirindo sua forma mais conhecida à época do surgimento das universidades, na Idade Média. A Educação Liberal estava relacionada às artes liberais ou profissões livres, como diríamos hoje, em oposição às profissões servis, em que o trabalhador exercia uma função em troca de um salário. O profissional liberal trabalhava movido por um mandamento interno, independentemente da remuneração que, quando existia, era chamada “honorário”. As artes liberais, ou seja, o conjunto de conhecimentos e técnicas que formam o homem apto a participar dos debates públicos, constituía-se de uma formação em duas etapas, o Trivium (três vias) e o Quadrivium (quatro vias). O Trivium lidava com as artes da linguagem, expressão e participação na cultura, enquanto o Quadrivium tratava dos números, visando a aprimorar o senso das proporções, ou o senso da forma do mundo. EDUCAÇÃO LIBERAL AO LONGO DA HISTÓRIA A história das grandes civilizações, como a China tradicional e o Império Romano, permite vislumbrar a importância da educação como fenômeno permanente que garante a continuidade civilizacional. Na época da queda do Império Romano, mesmo quando vencedores no campo militar, os conquistadores bárbaros tiveram seus filhos educados pelos intelectuais do povo subjugado, adotando assim 23 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS a sua cultura. A história greco-romana-judaico-cristã foi assumida e preservada como patrimônio ancestral, enquanto que a herança bárbara se diluiu e perdeu a unidade e continuidade no contato com os vencidos. Dito de outra forma: a cultura dos bárbaros se integrou como um elemento a mais na cultura ocidental, sem modificála substancialmente. A unidade de uma civilização, portanto, não é decorrente do poderio militar, político ou econômico. O Ocidente não apresenta esse tipo de continuidade. A sua unidade está na religião cristã e na educação humanística, que lhe dão um senso de continuidade e uma memória. Somente uma educação que privilegie os aspectos mais permanentes sobre os quais se funda a civilização poderá ter alguma consistência, e concorrer para manter a sua unidade. Basta percorrer o panorama da história da educação ocidental, desde a Grécia antiga aos nossos dias, para notar uma surpreendente unidade. O programa de estudos de Isócrates (392 a.C.), a “Enkiklos Paideia” (de onde vem a palavra “enciclopédia” – círculo dos conhecimentos, ou Cultura Geral), inclui a Literatura, a Lógica, a História, a Ciência Política, a Arte, a Poesia, a Música e a Ética. Mas não é uma educação disciplinar: o seu objetivo é a formação do homem inteiro, honesto, de boas maneiras, que domina os desejos e não se deixa dominar pela cobiça. Em Roma, Cícero (106-43 a.C) e Quintiliano (35-95 d.C.) seguem, com algumas adaptações, o modelo de Isócrates, com o nome de artes liberales. Dentro da tradição cristã que surge no Império Romano não há ruptura com o modelo grecoromano. O processo educativo se inicia com os estudos da Gramática, da Retórica, da Literatura, da Aritmética, da Geometria e da Astronomia. Para o filósofo cristão Orígenes de Alexandria (185-253) “o conhecimento religioso alcança maior progresso quando se fundamenta nos estudos formais” (GILES, 1987, p.59). Os autores cristãos buscaram conciliar a fé com a cultura helenista: Clemente de Alexandria (150-215) acredita que “os ideais básicos do cristianismo já estão implícitos na filosofia grega” (GILES, 1987, p.58). Santo Agostinho (354-430) concilia fé cristã e a cultura clássica: “podem-se utilizar os clássicos como instrumentos, como auxiliares para a compreensão da fé, reconhecendo, no entanto, os limites da cultura clássica” (GILES, 1987, p.61); 24 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS devem-se utilizar as artes liberais a fim de possuir a expressão exata no ato de dar respostas aos alunos (GILES, 1987). Em geral, os educadores medievais seguem as orientações de Santo Agostinho e usam as artes liberais na educação. Em 500, Boécio (c. 476/80-525) “elabora um compêndio das artes liberais, iniciando a tradição enciclopédica” (GILES, 1987, p.66). Cassiodoro (c. 480-c. 575) dá forma à divisão que será usada nos séculos seguintes. As sete artes liberais são: a Gramática, a Retórica, a Dialética, a Aritmética, a Música, a Geometria e a Astronomia. Os mosteiros e as escolas das catedrais se organizam como centros de ensino e transmissão da cultura baseando o programa de estudos em torno das sete artes liberais (NUNES, 1979). Na época da formação das universidades o ensino das artes liberais adquiriu uma forma bem definida através do trivium e do quadrivium. No início da modernidade, o ensino das artes liberais é um dos pilares da Ratio Studiorum, o plano de ensino dos jesuítas, que foram os grandes educadores da elite europeia até a dissolução da ordem, em 1773. Desde então, a educação se torna, aparentemente, mais diversificada e abrangente, tornando-se cada vez mais presente e impositiva a mão dos Estados Nacionais. Contudo, grande parte das elites continua a ser educada em colégios religiosos, que seguem um modelo educativo baseado nas artes liberais. Muitas das mudanças pedagógicas introduzidas desde a modernidade – especialmente depois da revolução industrial – visavam mais a instrução do povo do que a educação das elites, cujos membros eram mais resistentes a expor seus filhos às novas experimentações no campo da pedagogia. Woodrow Wilson, presidente dos EUA de 1912 a 1921, defendia a existência de um grupo de pessoas formadas pela educação liberal, e outro, muito maior, destinado a compor um contingente de mão-de-obra instruída (GATTO, 2009, p. xx). Muitas das experimentações e dos “avanços” da educação são etapas da tentativa de adestrar este amplo conjunto de alunos que constituirá a massa mão-de-obra. EDUCAÇÃO LIBERAL HOJE 25 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O principal responsável pela reintrodução do conceito de Educação Liberal, no Brasil, foi o filósofo Olavo de Carvalho. Para ele: O que hoje chamamos de educação liberal é uma adaptação das artes liberais antigas, feita sobretudo por dois educadores, Robert Hutchins e Mortimer Adler 1 3, no começo de século. Nesta adaptação, as artes liberais deixam de se distinguir das artes servis e começam a se distinguir do ensino profissional. Todas as áreas de ensino visam a transmitir determinadas habilidades profissionais; as artes liberais, em contrapartida, visam a formar o cidadão em geral, o cidadão não especializado. Mais especificamente com a ênfase na ideia de cidadão da democracia, subentendendo-se democracia pelo sistema onde vale a pena discutir, onde é possível haver uma discussão e onde há uma possibilidade de que as questões sejam arbitradas por meio da razão e não de motivos desconhecidos que uma autoridade possa ter para decidir (Olavo de Carvalho, Educação Liberal). A Educação Liberal foi apreciada pelos defensores da democracia porque este regime depende do debate de ideias e, portanto, de cidadãos educados que possam conduzi-lo. É uma educação, portanto, que permite formar líderes e de pessoas capacitadas a orientar intelectualmente a sociedade. Como um governo composto por especialistas, competentes apenas num setor particular, poderia atender às expectativas gerais da população? Como observou Hannah Arendt (2000, p. 52), a preparação para a vida profissional, nas universidades “não aspira já a introduzir o jovem no mundo como um todo, mas apenas num setor particular e limitado do mundo”. A educação liberal se distingue dessa educação profissionalizante e utilitarista – que se limita a transmitir conhecimentos específicos e habilidades para o desempenho de uma profissão – por privilegiar a formação do homem em vista das questões mais importantes. Atualmente, a Educação Liberal procura seguir a inspiração filosófica, e não apenas o modelo de ensino das artes liberais. Em todo o mundo – especialmente nos Estados Unidos – os currículos inspirados pela Educação Liberal privilegiam a leituras dos clássicos que marcaram a cultura da civilização ocidental, como é o caso do Thomas Aquinas College. 1 Mortimer Adler é autor do livro "Como ler um livro". 26 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Quando falamos da leitura dos clássicos convém esclarecer alguns pontos. Não se trata, aqui, de uma idolatria do clássico como portador de prestígio ao seu leitor. Os clássicos não devem ser vistos como fins em si mesmos, mas como instrumentos educativos, ou seja, meios para a formação humana. O que se quer valorizar não é o hábito da leitura, mas a busca do conhecimento do qual a leitura não é senão um instrumento. Uso, aqui, o termo “clássico” para indicar ...uma obra que tem valor e interesse permanente, que tenha dado alguma contribuição que permanece eficaz ao longo dos tempos; aquela obra que, a despeito do tempo que passou depois que ela foi escrita, ainda tem algo a nos ensinar. [...] mais precisamente, se designam como clássicas obras que estabeleceram certas noções ou transmitiram certos ensinamentos, que vão formando patamares sucessivos de consciência humana, de tal modo que a discussão de determinados assuntos não tenha mais o direito de descer abaixo daquele patamar. (Olavo de Carvalho, Educação Liberal). ENSINO DE LITERATURA E EDUCAÇÃO LIBERAL O ensino da literatura pode ser compreendido como uma parte do Trivium, isto é, das artes da linguagem. Pode-se dizer que o Trivium começa com a literatura ou a pressupõe, porque não é possível haver nenhuma comunidade linguística sem que haja um conjunto de histórias e de mitos que veiculem a língua da comunidade para além das flutuações e instabilidades da linguagem quotidiana. Uma comunidade linguística só pode se perceber como unidade quando possui uma memória comum que é veiculada numa língua comum, e esta é dada pelos mitos que explicam a origem do universo, do homem e instauram os valores fundamentais que as pessoas respeitam e usam para se orientar e balizar as suas relações interpessoais. Os mitos fundantes são expressos em linguagem literária e, portanto, é esta que cria o substrato linguístico em que se podem erguer outros tipos de discursos mais especializados, como o discurso histórico, técnico, filosófico ou científico. O discurso literário constitui, portanto, a forma mais básica de formação da cultura. A linguagem literária, além de ser a base da cultura, é também a base da educação. Aristóteles distinguia quatro tipos de discurso: poético, retórico, dialético, 27 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS analítico (ou lógico). Estes discursos são como diversos andares sobre os quais se edifica a imponente catedral da linguagem humana, cujo fundamento é o discurso poético que sustenta, por sua vez, os demais (que constituem, por assim dizer, uma especialização do discurso poético). O poeta austríaco Hugo von Hoffmansthal disse que nada está presente na vida de um povo que não tenha estado, antes, em sua literatura: o homem não pode fazer o que não tenha imaginado antes. Reunindo um amplo repertório de imagens, que representam a visão que o homem tem de si mesmo e do universo, ela influi no surgimento e na revogação de leis, inspira os objetivos pessoais e os projetos coletivos. A falta de cultura literária limita, portanto, a capacidade operativa. A literatura permite ao estudante transcender o ambiente imediato e personalizar o seu mundo interior. Torna possível a empatia com personagens de padrões culturais diferentes e a aprendizagem de novas maneiras de ser. Constituise como uma forma de autoconhecimento: e se os homens não conhecem os próprios desejos, temores e aspirações, não podem se entender uns aos outros. É imprescindível no julgamento moral, por permitir nomear condutas, ordenar os estados interiores, ter um senso de continuidade temporal e conseguir julgar “a vida inteira”. A própria noção de história pessoal, com uma linha de continuidade, depende da assimilação das narrativas mitológicas e literárias, e por isso a noção da existência do Eu, diz Carvalho (2010), não é encontrada nas culturas mais primitivas, onde a tradição literária é pouco desenvolvida. Literatura é, como dizia Aristóteles, o conhecimento do possível. O julgamento da história só tem sentido em comparação a alternativas possíveis, melhores ou piores. Os fatos, em si, nada significam sem um padrão de comparação. Igualmente acontece com a história pessoal. Num mundo literariamente pobre, os homens estão intelectualmente limitados, com dificuldade de orientar-se: têm, do Bem e do Mal, apenas uma intuição genérica e abstrata, com poucos parâmetros de comparação, sem as variações, as nuances e sutilezas que a literatura oferece. Os adolescentes, por falta de experiência da vida, imaginam ser sui generis. Essa suposta anormalidade os aterroriza, e instintivamente eles abandonam o processo de autoconhecimento para se concentrar na adaptação ao meio social. Imitando as condutas alheias, procuram 28 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS integrar-se na “normalidade coletiva”, a qual é apenas uma ilusão, baseada na incompreensão recíproca. Ocorre, desta forma, uma ruptura com o mundo interior, uma cisão entre o comportamento público e a consciência de si, que pode ser causa de inúmeras neuroses e conflitos interiores insolúveis. Daí a importância da educação literária na formação escolar, não apenas como um conhecimento técnico, mas como um exercício espiritual que permitirá ao estudante sair do seu mundo interior limitado e incomunicável (ou comunicável apenas por fórmulas estereotipadas que reduzem todas as vivências em poucas camisas-de-força verbais) para o ilimitado universo ao seu redor. Tal é o sentido etimológico do termo educação: ex-ducere, conduzir para fora. A LEITURA INGÊNUA E O ENSINO DE LITERATURA No seu curso Educação Liberal o filósofo Olavo de Carvalho traz algumas contribuições valiosas para a reflexão sobre a educação literária, que são válidas para muitos dos alunos dos cursos de Letras, que chegam à universidade sem o hábito da leitura literária. Não se deve, diz ele, começar a educação literária com interpretação de texto. Pelo contrário, é o texto que deve servir para interpretar a vida, pois o livro não fala de si mesmo, mas fala da vida, serve para iluminar a vida. O aluno deve estar consciente do ditado latino: De te fabula narratur (a história fala de ti). Se o leitor não está profundamente consciente de que as vivências representadas na narrativa são dimensões suas, a leitura não terá a função educativa de desenvolvimento do imaginário. Se, ao ler uma obra literária, o estudante adota a atitude do analista que fará a dissecção do cadáver, cria-se um hiato entre o leitor e o seu objeto de estudo. Transformar um romance num objeto de estudo é inverter a perspectiva que deve nortear as relações entre leitor e livro. Os signos linguísticos só adquirem a plenitude de sua função quando são revivenciados imaginativamente pelo leitor, ou seja, a participação do leitor como sujeito que se impregna da obra é condição sine qua non para que a leitura se efetive. Desta forma, o texto nunca poderá ser encarado como um objeto que ser decomposto analiticamente pelo leitor como se faz com um objeto qualquer num experimento de laboratório. 29 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ler analiticamente um texto, evitando a leitura “ingênua” de identificação emocional com a obra, equivale, diz Carvalho, a construir um telescópio e dedicarse à sua análise, esquecendo-se de olhar para as estrelas: nunca se poderá descobrir o que ele é realmente. Da mesma forma, devemos olhar não para o texto, mas para a direção que ele aponta. Isso não é o mais correto apenas do ponto de vista didático, mas também respeita mais adequadamente o estatuto fundamental da obra literária, que é uma obra antes de tudo imaginativa, e só depois linguística: é preciso imaginar antes de escrever. A partir desta perspectiva, o teste ideal compreensão da obra literária passaria muito longe das habituais avaliações acadêmicas: mais importante do que discorrer sobre o texto seria discorrer sobre o mundo por meio da obra literária. Os textos devem ser vistos em termos das conquistas cognitivas que proporcionam, mais do que como pretextos para demonstração de habilidade interpretativa. Várias consequências podem ser deduzidas desta concepção de educação literária. Uma delas é que seria incorreto iniciar o estudo literário por meio de estudo de estilos de época, que é um interesse erudito que só pode interessar de forma secundária o leitor iniciante. O correto, diz Carvalho, é ler as histórias como se elas tivessem realmente acontecido, porque desta forma não se colocam artificialmente interesses secundários no lugar dos fundamentais. Quando se inverte a perspectiva, a estrutura do ensino torna-se ela mesma deseducativa, pois induz o estudante a esquecer de seus problemas humanos mais importantes e a fixar a atenção em interesses postiços que lhe garantirão uma boa nota e uma ascensão no ambiente acadêmico. Um sistema educativo assim estruturado privilegia o fingimento em detrimento da sinceridade, promove o desinteresse dos mais sinceros e a ascensão dos mais cínicos, que passam a acreditar, mesmo que inconscientemente, que a vida social é sinônimo de hipocrisia e que “o mundo é dos espertos”. Outra grave consequência da predominância de estudos que enfatizam aspectos secundários das obras é que eles podem ser ocasião de uma “fuga” por parte do leitor. A leitura “ingênua”, de identificação emocional, está sempre expondo debilidades e incertezas que todos nós temos, e o estudo “sério” pode ser uma válvula de escape daquele que não suporta a consciência de como as coisas são 30 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS realmente. A fuga da tensão para um domínio mais estável assemelha-se à situação controlada de laboratório, que tem ainda a pretensa vantagem de mascarar o complexo de inferioridade de muitos praticantes das ciências humanas em relação a ciências mais exatas ou mais úteis. São, diz Carvalho, como as máscaras mortuárias, onde se escapa da tensão da vida real para um domínio mais estável 2; são também o caminho mais fácil para o emburrecimento, ao induzir o estudante a concentrar as energias em algo complicado que não diz nada. A tensão, diz Carvalho, é a marca da consciência: ou o estudo literário é uma intensificação da consciência, ou não é nada, é uma fuga da responsabilidade. O abandono da escrita literária, nos próprios cursos de Letras, em detrimento da produção de artigos científicos, reflete uma perda coletiva da consciência da real importância e da função da literatura na sociedade. O desenvolvimento da linguagem literária não é considerado parte fundamental do aprendizado da linguagem; a literatura é antes um corpus ao qual se aplicam métodos científicos de estudo e análise. LITERATURA E CIÊNCIAS Nas ciências humanas, em geral, não podemos nos empenhar no estudo dos fenômenos, aplicando simplesmente um método qualquer a certo conjunto de dados, sem considerar, antes, o seu significado. Todo dado humano é portador de um significado, de uma intencionalidade significativa que remete a complexos de símbolos e associações de ideias. Os símbolos e ideias, por sua vez, não são objetos externos ao pesquisador, mas remetem à mesma linguagem humana e aos conteúdos da psique humana que devem ser revivenciados imaginativamente na busca da sua compreensão. (CARVALHO, 2012, p. 6). 2 Wilhelm Worringer, em Abstraction and empathy, demonstra que também na arte a fuga para a abstração é um reflexo do medo que o homem primitivo tem do universo hostil ao seu redor. A geometrização é uma tentativa dominá-lo. A grande voga de doutrinas formalistas pode ser compreendida nesta clave. Tzvetan Todorov, em A literatura em perigo (2009) confessou que a adesão aos estudos formalísticos era uma forma de fuga da censura do governo comunista, que não permitia a livre discussão dos temas vitais. 31 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O próprio pesquisador é um instrumento, que pode ser mais ou menos eficaz, dependendo do seu domínio da linguagem, da sua capacidade de revivenciar imaginativamente os fenômenos, dos seus conhecimentos literários, históricos e filosóficos, e do seu próprio amadurecimento pessoal. Assim, a formação da personalidade é uma etapa fundamental das pesquisas em ciências humanas. Por isso, desde a antiguidade grega a educação esteve inseparavelmente ligada à formação da personalidade: consistia na busca contínua, e jamais alcançada plenamente, da sabedoria, da virtude ou da santidade. A aquisição desta habilidade é, em geral, negligenciada por ser considerada pré-científica, mas, por ser a base sobre a qual se originam todas as investigações, tem uma consequência profunda em qualquer atividade intelectual. Ela vai propiciar, ao investigador, a capacidade de reconhecer a importância do material selecionado, ou seja, a percepção de que está diante de um fenômeno digno de ser estudado. Esta percepção não pode ser proporcionada por nenhuma ciência em particular, mas depende de uma cultura adquirida anteriormente no contato com a literatura, as artes, a música e a história. A noção básica segundo a qual a formação adequada da personalidade é uma condição preliminar necessária para o sucesso das investigações foi aos poucos relegada ao esquecimento. No entanto, a tradição educativa da Educação Liberal, a mais antiga da nossa civilização, está voltada para a formação da personalidade, seja para o cultivo das artes ou das ciências, seja para a participação na vida política. Cumpre revalorizar esta tradição, como um antídoto contra a instrumentalização do sistema educativo, que tem contribuído para tirar toda a vitalidade à educação literária. REFERÊNCIAS ADLER, Mortimer. A arte de ler. Rio de Janeiro: Agir, 1954. ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: POMBO, Olga. Quatro textos excêntricos. Lisboa: Relógio D'água, 2000. CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. Disponível em: < 32 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS http://www.olavodecarvalho.org/livros/4discursos.htm#18 >. Acesso em: 4 fev. 2004. ___. 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Estes atores são humanos e não-humanos, entre eles temos os tutores presenciais e a distância, os próprios estudantes, o Ambiente Virtual de Ensino-Aprendizagem (AVEA), os Objetos Digitais de Ensino-Aprendizagem (ODEA). Este artigo tem por objetivo conceituar e demonstrar a importância de alguns atores necessários para que o cenário, as cenas e o espetáculo da Educação a Distância sejam possíveis. O artigo embasa-se em uma pesquisa bibliográfica e tem como aporte teórico Assmann (2000), Dal Molin (2003), Deleuze (2000), Hack (2011), Lévy (1993, 1999) Motter (2013), Roncarelli (2012) entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Educação a Distância; Actantes; Processo de aprendência, rizoma. ABSTRACT: Along with technological development, Distance Education has gradually occupied, a considerable position in the national and world sceneries presenting results of quality and innovations towards strategies and methodologies. Here it is considered that DE should happen in a rhizomatic way, that is, as a weave in which everyone is responsible for the learning process. So, this scene depends on many actors for the new educational demands to be accomplished competently. These actors are human and non- human, among them we have the present tutors and the distance ones, the students themselves, the Virtual Environment for Teaching and Learning (VETL), the Digital Object of Teaching and Learning (DOTL). This article aims to conceptualize and demonstrate the importance of some needed actors to the setting, the scenes and the spectacle of Distance Education be possible. This article underlies in a bibliography research, and has as the theoretical base Assmann (2000), Dal Molin (2003), Deleuze (2000), Hack (2011), Levy (1993, 1999) Motter (2013), Roncarelli (2012) among others. KEYWORDS: Distance Education; actors; Learning Process. 3 Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel, Paraná. E-mail: [email protected] 4 Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Cascavel, Paraná. eEmail: [email protected] 34 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS INTRODUÇÃO A Educação a Distância vem rompendo os paradigmas do que se entende por educação, ensino e aprendizagem e também vem superando expectativas, uma vez que é notório seu crescimento e, principalmente, sua colocação como modalidade de ensino de qualidade. Esta modalidade tem potência para apresentar-se aos moldes do que gostamos de denominar de uma concepção rizomática 5 , cuja, constituição, competências, performance e mediação do conhecimento são constituídos por atores humanos e não-humanos, Roncarelli (2012) explica: O processo ensino-aprendizagem, mediado por humanos e nãohumanos, atualiza-se nas ações que são decodificadas, dependendo de outras associações, como a interação, a cooperação e a autonomia. Não é nem o humano, nem o não-humano em sua singularidade que potencializa o processo de ensino-aprendizagem, mas a responsabilidade da ação “entre” a associação, composição destes actantes, […] Os objetos de aprendizagem não-humanos necessitam de procedimentos pedagógicos claros e estratégias bem delineadas para que possibilitem interações entre todos envolvidos (RONCARELLI, 2012, P. 41). Todos os atores ou actantes6, humanos e não-humanos são necessários e têm sua importância no processo de aprendência. Defendemos que esta modalidade de ensino apresenta potencialidade para uma práxis rizomática e não arbórea, ou seja, uma práxis na qual todos os que se encontram no mesmo cenário possam estabelecer relações de cooperação, ou seja, professores e tutores propõem desafios transdisciplinares e transversais para os aprendentes, que ao corresponderem deixam de lado o universo linear para entrar em um universo hipertextual, perpassado pelos links do conhecimento produzido pela humanidade ao longo do tempo e, pelo desafio de construir um novo conhecimento a partir de seu contexto existencial e contextual, empregando a criatividade, autonomia e a 5 Rizomática: conceito tomado da noção de rizoma de Deleuze e Guattari (2000), cujo inferência nos leva a associar o termo a modalidade de educação a distância que se realiza a partir de uma práxis hipertextual, ou seja de maneira analógica a um rizoma, “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. (DELEUZE E GUATTARI, 2000, p.5) 6 O termo actantes na concepção de Bruno Latour (2001) inclui aos atores não humanos, ou seja, à ecologia cognitiva também propiciada pela participação das máquinas e objetos técnicos. 35 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS motivação para aprender a aprender, em um gesto de protagonismo de quem toma seu processo de conhecer sob sua tutela e desempenho. Na Educação a Distância a construção do conhecimento não parte tão somente de conceitos sistematizados e como um processo de mão única na qual o professor ensina e o estudante aprende, mas como um processo de ensinoaprendizagem no qual as multiplicidades e as singularidades sejam consideradas, passando assim o processo a ser uma via de várias mãos, na qual a liberdade oferecida aos estudantes lhes torne autônomos e criativos ao invés de seguidores de modelos, como destaca Lévy (1999, p.158) quando diz que “os percursos e perfis de competências são todos singulares e podem cada vez menos ser canalizados em programas ou cursos para todos”. Dal Molin (2003) explica o valor de uma práxis condizente e rizomática: Analogamente, quando se desenvolve um processo educativo flexível, em sintonia com os avanços científicos e tecnológicos, consoantes com uma vontade política embasada na clareza de objetivos e em ações decisivas de mudança comprometida com a verdadeira renovação do fazer pedagógico, cada ato de ensinar será sempre uma ação diferente, seja pela mediação das tecnologias digitais e outros actantes não-humanos presentes, seja pelas trocas com o docente ou com os colegas que vão alterando e acrescentando nos aprendentes algo substancial às suas vidas privadas e ao coletivo escolar e social (DAL MOLIN, 2003, p.28). Usamos nesse artigo os termos humano e não-humano, que segundo Latour (2001) são actantes, pois compõem o elenco que se entrelaça no processo da EaD, e que Serres (1995), nos leva a compreender o papel e sua importante função: - Você acredita, então, que máquinas e técnicas construíram os grupos e mudariam a história, se elas se reduzissem a coisas passivas? Tanto quanto falar de melro branco, pura contradição. Penas, tinteiros, mesas, livros, disquetes, consoles, memórias [...] produzem o grupo que pensa. Certamente, não podemos chamar tais objetos de sujeitos; melhor seria dizer: quase sujeitos técnicos [...]. Como se dotados de qualidades? - Quase! Considerá-los simplesmente coisas, é desprezar, ainda e sempre, o trabalho humano. (SERRES,1995, p. 49-50). Roncarelli, por sua vez (2012, p. 41) explica que “o ambiente virtual e os objetos de aprendizagem são instrumentos de mediação na Educação a Distância. 36 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Estes artefatos são representados como não-humanos. O professor e a equipe multidisciplinar são os atores humanos”. Esses atores devem estar sempre em interação, trabalhando juntos em prol da aprendência, como afirma Assmann (2000): Precisamos visualizar conjuntamente os agentes humanos e a tecnologia versátil de modo a superar uma concepção em demasiado maquínica da interação entre seres humanos e ambientes cognitivos artificiais. Trata-se de entender que, embora preservando uma série de aspectos típicos das racionalidades instrumentais e das linguagens reducionistas, as tecnologias adquiriram tamanha versatilidade e disponibilidade cooperativa que podemos chamá-las sistemas cooperativos ou interfaces de parceria entre o homem e a técnica (ASSMANN, 2000, p.11). A EaD é uma modalidade que oferece possibilidades e tem em si a potência de convidar os atores a desenvolverem um trabalho conjunto de maneira interativa e criativa, cooperando para que cada um possa construir seu conhecimento de forma significativa, prazerosa e livre para traçar seus caminhos, na linha de uma inteligência coletiva que segundo Lévy ( 1999) aponta para uma engenharia do laço social, considerada como uma verdadeira arte de suscitar coletivos inteligentes, valorizando ao máximo a diversidade das qualidades humanas. Passamos agora, a conceituar e demonstrar a importância dos actantes presentes no processo de aprendência da EaD. OS ATORES NÃO-HUMANOS Os atores não-humanos segundo Latour (2001), referem-se aos materiais, equipamentos e artefatos de inscrição e armazenamento dos dados científicos, destacando que, os mesmos só podem ser pensados em relação com os humanos. Cabe destacar que o que esta denominado por atores (não-humanos) precisa ser elaborado com clareza para promover a aprendizagem colaborativa, a investigação e possibilitar a interação de todos os estudantes, conforme Hack (2001): Ao mediar a construção do conhecimento, com o uso de múltiplas tecnologias sem muitas vezes poder visualizar, ouvir as palavras nem perceber as reações imediatas do interlocutor, o docente precisa potencializar os processos comunicacionais para que haja 37 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS cooperação, dialogicidade, cumplicidade e afetividade entre os envolvidos (HACK, 2001, p. 17). Na maioria das vezes o estudante irá fazer uso dessas ferramentas sozinho, sem o auxilio do professor ou do tutor. A preocupação na elaboração desses materiais está centrada também na questão em que os cursos possuem estudantes que são nativos digitais e outros que são imigrantes digitais. Segundo Prensky (2001) os nativos digitais são aqueles que nasceram na era da tecnologia, estão ligados as Tecnologias de Comunicação Digital (TCD) desde pequenos e, por isso, pensam de maneira diferente e hipertextual; Os imigrantes digitais são os que mais tarde em suas vidas se apropriaram das TCD, por necessidade ou vontade e tem maior dificuldade na adaptação a estas, consequentemente a compreensão não será a mesma. Ao mesmo tempo os atores não-humanos devem possuir características para instigar, despertando no estudante a vontade de aprender e de participar, até que se instaure uma cultura da aprendizagem protagonista, na qual cada ator procura juntamente com o coletivo, desenvolver sua capacidade singular de assimilar e produzir conhecimentos e vivencias de aprendizagem. O palco da Educação a Distância é o Ambiente Virtual de EnsinoAprendizagem (AVEA), é neste ambiente que os estudantes devem encontrar a liberdade para desenvolver seus estudos e a oportunidade de interagir com professores, tutores e colegas, criando assim uma aprendizagem colaborativa e ao mesmo tempo autônoma. Existem muitos ambientes disponíveis, os pagos e os gratuitos, falaremos agora do ambiente Moodle (Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment), também chamado de Plataforma Moodle, que é um software livre, um espaço bastante usado e dispõem de um design de fácil acessibilidade. Um sistema de Gerenciamento de Aprendizagem (conhecido por LMS - Learning Management System), ou seja, um aplicativo projetado para auxiliar educadores a criar cursos online de qualidade. Tanto para cursos a distância, bem como suporte para cursos presenciais, disponibilizando muitos recursos. Ferramentas que facultam oportunidade de esclarecer dúvidas, aprofundar conhecimento, promover debates, entre outros. 38 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Este palco permite realizar atividades síncronas e assíncronas, ou seja, síncronas que são em tempo real, em cujo dispositovo o estudante troca mensagens simultâneas com colegas e professores. Já as atividades assíncronas são desenvolvidas e a comunicação e interação acontecem em momentos diferenciados, pois cada estudante tem a liberdade de desenvolver seus estudos na hora que quiser ou puder É na plataforma que professores e tutores disponibilizam materiais de apoio às aulas, o estudo sempre começa e termina na plataforma, mas durante o processo de aprendência o estudante tem todo um universo hipertextual para descobrir e aprimorar conhecimentos. Lévy (1993, p.33), explica o que seria um hipertexto: “tecnicamente, um hipertexto é um conjunto de nós ligados por conexões”. Assmann (2000) completa: Do ponto de vista diretamente cognitivo, o hipertexto não é uma simples metáfora de novas atitudes aprendentes, que buscam criativamente novas maneiras de conhecer. É, também e, sobretudo, um desafio epistemológico, ou seja, o processo do conhecimento se transforma intrinsecamente em uma versatilidade de iniciativas, escolhas, opções seletivas e constatações de caminhos equivocados ou propícios (ASSMANN, 2000, p.11). É nos fóruns, nas wikis e nos chats que a interação acontece. Nestas ferramentas os estudantes cumprem suas tarefas e participam de discussões, onde se aproximam dos colegas e, essa relação faz com que aprimorem seu aprendizado. Destas participações coletivas pode-se, ainda, incluir avaliações das postagens efetuadas, exibir imagens e arquivos. Os professores avaliam as tarefas eletronicamente, pois possuem um relatório de todas as atividades realizadas na plataforma e também podem entabular diálogos significativos com os estudantes e sua realidade em entrelaçamento com os conhecimentos postos à disposição dos estudantes. Os espaços de interação oferecidos pelo Moodle garantem o diálogo e a construção de conhecimento. Roncarelli (2012) explica o papel do Ambiente Virtual de Ensino-Aprendizagem, ou seja, deste ator não-humano: O AVEA comporta o professor e o estudante, atores principais do processo ensino-aprendizagem, e supõe a co-presença de uma equipe interdisciplinar. Enquanto deslocamento espacial, o AVEA 39 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS incorpora a sala de aula, desdobra-se em ações, atividades, desafios, e múltiplas situações de ensino-aprendizagem, que possibilitam (se assim o foram pensados, e deveriam) o desenvolvimento de uma autonomia enfocada no processo de desenvolvimento e aprendizagem, bem como a interação e cooperação com os transeuntes do espaço virtual (RONCARELLI, 2012, p.57). É no AVEA que todos os atores interagem e onde os Objetos Digitais de Ensino-Aprendizagem (ODEA) são disponibilizados aos estudantes. O ODEA, outro ator não-humano, tem o papel de mediar o conhecimento, que geralmente é produzido pelo professor autor e disponibilizado pelo professor formador, que pretende auxiliar os aprendentes a compreenderem o conteúdo, Roncarelli (2011) define: Objetos de aprendizagem podem ser imagens, arquivos digitais, vídeos, animações e simulações, desde que contempladas as questões didático-metodológicas concernentes ao objeto. (...) A definição de Objetos Digitais de Ensino-Aprendizagem [ODEA], neste estudo, refere-se a objetos de aprendizagem, como material didático para uma mediação pedagógica, que pressupõe quatro características essenciais do processo de ensino-aprendizagem: organizado, intencional, sistemático e de caráter formal (RONCARELLI, 2011, p. 42). Para Roncarelli (2011), o ODEA, deve ser , pois organizado para que possa ser compreendido com facilidade, uma vez que foi elaborado com um propósito, esperando que o estudante compreenda o que lhe é proposto. Motter (2013, p.142) explica que “a arquitetura de um ODEA tem a premissa de oportunizar o cruzamento das linguagens sonoras, verbais e visuais, possibilitando o encontro entre semelhanças e diferenças nas manifestações concretas de linguagem”. Assim as singularidades de cada ator são respeitadas e importantes no processo de aprendência. As multiplicidades se apresentam como resultado das singularidades, colaborando na construção do conhecimento de cada um. Contudo, a produção do ODEA deve acontecer de forma a encurtar as distâncias, como afirma Roncarelli (2012, p. 41) “os objetos de aprendizagem não-humanos necessitam de procedimentos pedagógicos claros e estratégias bem delineadas para que 40 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS possibilitem interações entre todos envolvidos”, sempre buscando alcançar a todos os estudantes. OS ATORES HUMANOS No que se refere à designação de atores humanos, esta diz respeito ao elenco dos profissionais da educação inseridos nessa modalidade, tais como tutores, professores formadores, coordenadores e os próprios estudantes, que também são responsáveis pelo processo de aprendência, ou seja, toda a logística humana envolvida. Dentre eles destacamos o tutor e o estudante. Ser tutor é uma profissão relativamente nova, seu papel é muito importante, pois depende dele a orientação e a motivação quer presencial, quer online, para construção de conhecimentos. O tutor presencial deve estar atento para que o estudante possa dar a devida resposta aos desafios propostos pelas situações de ensino aprendizagem que o professor-formador elabora e que o tutor online acompanha e ajuda a postar, motivando continuamente o estudante, a mover-se de modo autodidata nessa teia, participando solidariamente do processo de ensinoaprendizagem, portanto é uma das ações de tutoria estimular o estudante a buscar a autonomia na aprendizagem, auxiliando-o para a construção de uma metodologia própria de estudo, mostrando-lhe como aprofundar conteúdos com pesquisas em várias fontes por meio da disciplina nos estudos. Hack (2011) explana a figura do tutor na EaD: A figura do tutor é primordial e atua como um mediador entre os professores, alunos e a instituição. Em outras palavras, ele cumpre o papel de auxiliar no processo de ensino e aprendizagem ao esclarecer dúvidas de conteúdo, reforçar a aprendizagem, coletar informações sobre os estudantes e prestar auxílio para manter e ampliar a motivação dos estudantes. Há dois tipos de tutores: o tutor presencial, que fica no polo de apoio, e o tutor a distância, que atua junto ao professor, na instituição de ensino superior (HACK, 2011, p.39). 41 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Dessa forma o tutor a distância também desempenha papel de grande importância no processo educacional, compondo um quadro diferenciado, no interior das Instituições de Ensino. Sua significância está em se considerar que esse profissional participa ativamente da prática pedagógica, uma vez que suas ações devem contribuir para o desenvolvimento dos processos, realizando o acompanhamento, a mediação e também a avaliação do acadêmico. Mesmo que os projetos pedagógicos das disciplinas sejam elaborados pelos professores formadores, o tutor a distância é parte integrante desse projeto, uma vez que é o mesmo quem irá acompanhar a aplicação do conteúdo e realizar anotações para as devidas avaliações que devem ser em conjunto com o tutor presencial, o professor e o próprio estudante que deve fazer uma autoavaliação, ao menos no contexto do projeto do qual participamos como artífices e pesquisadores. Assim, o tutor a distância é o um dos atores que está efetivamente próximo ao professor formador e a Instituição ofertante, seu trabalho é exercido majoritariamente, por intermédio do ambiente virtual de ensino-aprendizagem, que consiste no atendimento às dúvidas dos estudantes EaD, por meio dos espaços interativos, mediados pela Internet, por webconferência, e-mail redes sociais, e outras modalidades de comunicação síncrona e assíncrona, , selecionados de acordo com o projeto do curso e a instituição ofertante. Nessa direção Mattar (2012) adiciona que: Um tutor é um professor que precisa dominar as ferramentas e plataformas que utiliza, conhecer diversas teorias de aprendizagem e comunicação, ser letrado em linguagens on-line e transitar por diferentes paradigmas educacionais (MATTAR, 2012, p. 175). Dentre as responsabilidades desse profissional também, está a de promover espaços de construção coletiva de conhecimento e representar o professor formador no embasamento teórico dos conteúdos, decorre disso a importância da formação deste tutor, cujo embasamento teórico deve transitar por vias nas quais o conhecimento e a forma de gerenciar os processos de ensino e aprendizagem, optam pela linha de um método cartográfico entrelaçado ao conceito de rizoma, preconizados por Deleuze e Guattari (2000), uma vez que este principio, o do rizoma, é a expressão das multiplicidades sem que estejam ligadas a uma unidade, ou a um 42 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS princípio unitário, mas a vários princípios de um rizoma, que podemos relacionar com o princípio de conexão, da heterogeneidade, da multiplicidade, da ruptura asignificante; princípio da cartografia e da decalcomania. Neste sentido cabe ao tutor investir em sua formação e participar ativamente dos processos no sentido amplo e avaliativo da aprendizagem, tanto presencial quanto on-line. Diante do exposto referente ao papel do tutor a distância, justifica salientar sua relevância nesse processo de ensino aprendizagem como o ator que deve dominar de modo abrangente e específico, ou seja, de modo singular múltiplos conhecimentos tais como o de conhecer o AVEA, saber construir um ODEA e dominar teorias de aprendizagem sabendo sobretudo dar a estes conhecimentos o destino e a dosagem correta de acordo com o que está proposto no projeto do curso e incorporado pelas contínuas avaliações que remetem a uma retroalimentação do projeto em si. Ainda há outro fator relevante a ser considerado entre os atores humanos que pede uma atenção maior, a linguagem, dado que a enquanto a presença física do contato face a face permite, em muitas vezes uma retificação imediata dos possíveis desencontros de sentidos, inerentes à linguagem, a ausência deste contato exige maior clareza nas solicitações e nas comunicações escritas em qualquer das linhas deste contato educativo. Ou seja, entre os atores não-humanos essa linguagem precisa se configurar de forma clara, uma vez que se torna inócuo disponibilizar os aparatos tecnológicos mais emergentes, sem uma linguagem que possibilite a compreensão e apreensão do conhecimento que se quer trabalhar com os estudantes. De acordo com Assmann (2000) a tecnologia de comunicação digital amplia o potencial cognitivo e, por isso, devemos considerar professores e estudantes da modalidade da EaD aprendentes: Um dos aspectos mais fascinantes da era das redes é a transformação profunda do papel da memória ativa dos aprendentes na construção do conhecimento. Mediante o uso de memórias eletrônicas hipertextuais, que podem ser consideradas como uma espécie de prótese externa do agente cognitivo humano, os aprendentes se vêem confrontados com uma situação profundamente desafiadora: o recurso livre e criativo a essa ampla memória externa pode liberar energias para o cultivo de uma memória vivencial autônoma e personalizada, que sabe escolher o 43 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS que lhe interessa; por outra parte, os que forem preguiçosos e pouco criativos correm o risco de absorver passivamente nada mais que fragmentos dispersos de um universo informativo no qual há de tudo. No oceano da conectividade, subsiste o risco de virar concha presa a um ou poucos fragmentos de pedra (ASSMANN, 2000, p.11). Os estudantes inseridos nesse contexto precisam ter uma cultura de organização de seu tempo de estudo e o estabelecimento de um determinado rito de estudo dedicado ao curso, que lhe permita cumprir as leituras, as provocações e desafios propostos pelos atores do curso, buscando cumprir com seu papel protagonista e com as responsabilidades que lhes cabem enquanto estudantes do curso escolhido que deve apresentar um processo de aprendizagem rico e singular. Assim, para que se logre um bom processo educativo, os atores envolvidos devem juntos, construir um plano de ação que prime por resultados positivos, que superem os resultados esperados. Hack (2001) complementa: Na modalidade de EaD, a responsabilidade do aluno por sua aprendizagem é maior, pois ele próprio deverá coordenar seu tempo de estudos, sem a imposição de uma lista de chamada, bem como precisará desenvolver a autodisciplina e as estratégias motivacionais para a permanência no processo de formação (HACK, 2001, p. 91). Parte desse senso organizador do tempo e das estratégias de aprendizagem do estudante podem ser desenvolvidas com o auxilio dos tutores presenciais e a distância, aquele porque se encontra-se mais próximo do estudante e este porque deve organizar a postagem do conteúdo e as solicitações de entrega das Situações de atividade e demais solicitações, de modo claro e de modo que todos recebam as mensagens e saibam como realizar o que lhe foi solicitado. Montar cronograma, instituir um rito e fluxo é muito importante para administrar o tempo, levando em conta a liberdade para a execução das atividades, deste modo o estudante consegue controlar sua disponibilidade e sua capacidade de cumprir o que deve ser cumprido para o bom desempenho de sua participação como estudante da EaD. A organização e participação do estudante são fatores determinantes para que o mesmo não se desmotive e venha a desistir, por isso a interação contínua deve fazer parte do perfil do estudante da modalidade de Educação a Distância. 44 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ter conhecimentos básicos de informática é mais um quesito para uma atuação efetiva, não apenas do estudante, mas de todos os atores humanos envolvidos nesse processo, ou seja, a compreensão da TCD é acatada como fator de sucesso para usufruir de todos os recursos oferecidos pela referida modalidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma proposta da Educação a Distância deve ultrapassar o simples deixar à disposição do estudante, buscando mobilizar, estimular, dar oportunidades para o estudante construir e aprimorar seu conhecimento, agir com suas estratégias cognitivas, sua cultura, suas experiências de vida. Esta modalidade forma autodidatas, mas que não deixam de interagir, cooperar e compartilhar. Considerando que toda atividade social é construída linguisticamente, torna-se relevante destacar que, independente da configuração ocupada por qualquer um dos atores envolvidos nesse processo de ensino aprendizagem, é preciso atentar-se para a adequação da linguagem utilizada nesse meio, visto que sem a mesma o objetivo pode não ser alcançado. Cabe ressaltar, que os atores humanos devem estar em contínua formação, visando o acompanhamento das tecnologias emergentes, que dinamize esse processo de aprendência. E os atores não-humanos em constante aperfeiçoamento, buscando suprir as especificidades de cada curso ou disciplina. A partir do presente estudo, nota-se também a extrema necessidade da interação, que promove a construção de uma teia de conhecimentos, a multiplicidade, que é o resultado das singularidades e auxiliam o crescimento de todos os atores presentes nas cenas da Educação a Distância. Pelo exposto tentamos deixar claro que a EaD e seus actantes possui a potência do rizoma na qual todos os atores são indispensáveis para o processo de aprendência, a partir do momento em que cada um desempenha seu papel de forma harmonizada com o conceito de educação que se quer desenvolver, e com o tipo de profissional e cidadão que se quer formar. REFERÊNCIAS 45 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ARAÚJO, Júlio; ARAÚJO, Nukácia. EaD em Tela: Docência, Ensino e Ferramentas Digitais. Campinas, SP: Pontes Editores, 2013. ASSMANN, Hugo. A metamorfose de aprender na sociedade da informação. Ci. 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Tese (Doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento) – Programa de PósGraduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis – Brasil, 2012. 46 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS DIÁLOGOS COM DOSTOIÉVSKI, BAKHTIN E CALVINO José Kuiava7 RESUMO: O diálogo com os escritores Fiódor Dostoiévski e Ítalo Calvino, e com o pensador e analista Mikahil Bakhtin requer um prazer apaixonante da leitura. No presente escrito – livre e despretensioso – enuncio como é extremamente aprazível dialogar com Dostoiévski, Bakhtin e Calvino. É excitante e dramático dialogar com os personagens inventados pelos escritores em suas obras literárias e aprender a conversar com as análises dialógicas e polifônicas na voz de Bakhtin, ele falando das obras de Dostoiévski. Advirto: é preciso seguir com rigor determinados procedimentos para estabelecer e vivenciar o diálogo com os escritores e seus personagens. O primeiro procedimento é situar os escritores e ler seus escritos em seu cronotopos – o tempo e o lugar históricos, o mundo real dos escritores. O segundo procedimento é ler e examinar os escritos no terreno de hoje, no cronotopos do leitor – o tempo e o lugar históricos, o mundo existencial do leitor. Ainda como advertência suave, lembro a fala de Máximo Gorki: “O escritor é o arauto de seu país e de sua classe”. Escolhi Dostoiévski por que ele me encanta e atormenta ao mesmo tempo e me faz mergulhar nos subterrâneos da condição humana; Bakhtin, por que ele me ensina querer e buscar a compreensão dos fenômenos e a vivência do meu ato responsivo com “profundidade na penetração”; Calvino, pelos valores literários que ele inventou quando escreveu ficção durante 40 anos e no fim da vida apresentou ao mundo as qualidades do texto: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência. E, para fechar, Dostoiévski: “para escrever bem, é preciso sofrer, sofrer”. PALAVRAS-CHAVE: Literatura; personagens; eu-outro; dialogia. RESUMEN: El diálogo con los escritores Fiódor Dostoiévski e Ítalo Calvino, y con el pensador y analista Mikahil Bakhtin exige un placer apasionado por la lectura. En este texto – libre y sin pretenciones – enuncio como es extremadamente agradable dialogar con Dostoiévski, Bakhtin y Calvino. Es excitante y dramático dialogar con los personajes inventados por los escritores en sus obras literarias y aprender a conversar con los análisis dialógicos y polifónicos en la voz de Bakhtin al referirse a las obras de Dostoiévski. Advierto: es necesario seguir con rigor determinados procedimientos para establecer y vivenciar el diálogo con los escritores y sus personagens. El primer procedimento es situar los escritores y leer sus escritos, un en su cronotopos – el tiempo y el lugar histórico, el mundo real de los escritores. El segundo procedimiento es leer y examinar los escritos en el terreno actual, en el cronotopos del lector – el tiempo y el lugar histórico, el mundo existencial del lector. Además, como advertencia, recuerdo las palavras de Máximo Gorki: “O escritor é o arauto de seu país e de sua classe”. Seleccioné Dostoiévski porque él me encanta y atormenta al mismo tiempo y hace con que me sumerja en los subterráneos de la 7 Universidade Estadual do Oeste do Paraná 47 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS condición humana; Bakhtin, porque él me enseña a querer buscar la comprensón de los fenómenos y la vivencia de mi acto responsivo con “profundidade na penetração”; Calvino, por los valores literarios que inventó cuando escribió ficción durante 40 años y al final de su vida presentó al mundo las cualidades del texto: leveza, rapidez, exactitud, visibilidad, multiplicidad y consistencia. Y, para finalizar, Dostoiévski: “para escrever bem, é preciso sofrer, sofrer”. PALABRAS CLAVE: Literatura; personajes; yo-otro; dialogía. ENUNCIADOS INICIAIS Igual a um prelúdio musical, preciso de um momento de afinação da voz ou de um exercício de aquecimento da mão, já que escrevo tudo com lápis e não com botões– ainda que sem melodia – um ensaio vocal, ou um ensaio de frases inventadas, sem ser um “fraseador”, como Manoel de Barros foi. Não me sinto bem como “explicador” dos pensadores, nem dos pensamentos dos pensadores. Menos ainda, não me sinto e não me considero um crítico de obras escritas, do “mundoescrito”, na acepção de Ítalo Calvino. Crítico de pensadores, de autores, nem pensar. Ao contrário, me sinto mais leve, mais sereno, no ato livre e responsivo no diálogo eu-outros, eu e os escritores e os personagens inventados pelos escritores. Fico mais leve nas relações dialógicas do eu-outros, eu-atores-personagens do que um comentador dos escritos. Nunca quis ser – e continuo não querendo – um explicador da alma humana, do universo humano vivenciado num romance, num poema. O que posso falar mais do que “genial” do poema de Paulo Leminski: “En la lucha de clases/ todas las armas son buenas/ pedras, noches, poemas”? Da prosa e do verso sempre quis me embevecer da ética e da estética, da beleza ora leve, ora pesada; ora rápida, ora lenta; ora exata, ora imprecisa; ora visual, ora opaca; ora multíplice, ora única; ora consistente, ora fluida. Me sinto impermeável às definições metafísicas; às abstrações a-históricas e destituídas da sua cronotopia, ainda que racionais e exatas das coisas do “mundo-escrito”. Curiosamente, me sinto confuso e escrupuloso quando estou diante dos escritos de Bakhtin. Ao falar dos enunciados de Bakhtin acho que estou deturpando, mutilando os seus sentidos. Particularmente, quando estou dialogando com escritos, enunciados inexatos, não claros, não diretos, enunciados inacabados intencionalmente. A vontade é de me abster de estragar os 48 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS escritos com uma tentativa de interpretação, explicação... Por conta disso, me arrisco a dizer improbidades. Em compensação, me embeveço de conforto quando os outros me corrigem e me ensinam belas e verdadeiras lições de crítica literária. No meio de múltiplas vozes, ou melhor, entre a diversidade de vozes, preciso aguçar muito, ao máximo, os meus ouvidos e me colocar à escuta em nível mais elevado da totalidade polifônica das vozes entre si e das vozes na dialogia dos personagens das obras do autor – escritor como Dostoiévski – da forma como Bakhtin auscultou e nos ensinou a auscultar. Além do mais – e acima de tudo – me deleito com a estética da linguagem literária. Dostoiévski me ensinou esse deleite: “errar em nosso caminho é melhor que acertar em caminho alheio” (Crime e Castigo, p. 217). AS VOZES DE CALVINO, DOSTOIÉVSKI E BAKHTIN Sinto-me muito grato pela inspiração que a poetisa Adélia Prado me provoca com a beleza e pureza com seu poema. Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. “Eu, por exemplo, quero viver muito naturalmente, para satisfazer toda a minha capacidade vital, e não apenas minha capacidade racional [...]” (DOSTOIÉVSKI, Memórias do Subsolo, 2009, p.41). É possível sentir que os poetas e os romancistas compartem dos mesmos sentimentos da vida. A partir desta inspiração, eu busco lições imperdíveis, arrebatadoras, em Calvino para me deliciar com a fineza do sentimento da literatura pela “profundidade na penetração”, para a compreensão dos sentidos da vida e dos acontecimentos da história, que Bakhtin nos recomenda na leitura do romance polifônico de Dostoiévski. […] Nós também estamos entre os que acreditam numa literatura que seja presença ativa na história, numa literatura como educação, de grau e qualidade insubstituíveis. E é justamente naquele tipo de homem ou de mulher que pensamos, naqueles protagonistas ativos da história, nas novas classes dirigentes que se formam na ação, em contato com a prática das coisas. A literatura tem de voltar-se para aqueles homens, tem de ensinar-lhes enquanto deles aprende, servir-lhes, e pode servir apenas numa coisa: ajudando-os a ser cada 49 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS vez mais inteligentes, sensíveis, moralmente fortes. As coisas que a literatura pode buscar e ensinar são poucas, mas insubstituíveis: a maneira de olhar o próximo e a si próprios, de relacionar fatos pessoais e fatos gerais, de atribuir valor a pequenas coisas ou a grandes, de considerar os próprios limites e vícios e os dos outros, de encontrar as proporções da vida e o lugar do amor nela, e sua força e seu ritmo, e o lugar da morte, o modo de pensar ou de não pensar nela; a literatura pode ensinar a dureza, a piedade, a tristeza, a ironia, o humor e muitas outras coisas assim necessárias e difíceis. O resto, que se vá aprender em algum outro lugar da ciência, da história, da vida, como nós todos temos de ir aprender continuamente (CALVINO, 2009, p.21). E mais: […] A linguagem para a literatura nunca é transparente, nunca é puro instrumento para significar um “conteúdo” ou uma “realidade” ou um “pensamento” ou uma “verdade”, isto é, não pode significar algo mais do que ela própria. Ao passo que a ideia que a ciência faz da linguagem seria a de um instrumento neutro, que serve para dizer outra coisa, para significar uma realidade a ela estranha, e seria justamente essa diferente concepção da linguagem a distinguir a ciência da literatura. Por esse caminho, Barthes chega a afirmar que a literatura é mais científica do que a ciência, porque a literatura sabe que a linguagem nunca é inocente, sabe que escrevendo não podemos dizer nada exterior à escritura, nenhuma verdade que não seja uma verdade condizente com o ato do escrever. A ciência da linguagem, segundo Barthes, se quiser se conservar ciência, está destinada a transformar-se em literatura, em escritura integral, e reivindicará para si também o prazer da linguagem que agora é prerrogativa exclusiva da literatura (CALVINO, 2009, p. 220). Calvino enuncia com extremo vigor e leveza – e sentido revolucionário – o poder dicotômico da linguagem da literatura e da linguagem da ciência, quando nenhuma delas se constitui campo pretensiosamente neutro. Livre da neutralidade, todo texto de elevadas ética e estética literárias contém os elementos da ciência e todo texto de profundo rigor de compreensão científica contém os elementos estéticos. Fico impressionado – encantado – com a beleza estética dos escritos quando consigo dialogar com os autores dos clássicos. O conforto que sentimos na beleza estética está no fato de estarmos dialogando com os clássicos – neste caso, obras de Dostoiévski, Calvino e Bakhtin. Embora já cansados de ler e ouvir conceitos de clássicos nos campos da música clássica, pintura clássica, literatura clássica, filosofia clássica, mitologia clássica, etc, não deixa de ser um deleite ler escritos de Calvino sobre os clássicos. Ao apresentar as razões para ler os clássicos, Calvino 50 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS lapidou 14 propostas de definição de clássicos, todas quatorze como se fossem pedras preciosas. Trago aqui a quarta, quinta e a sexta definições. 4 Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. 5 Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura. 6 Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Clássico, portanto, é um livro com data e local de nascimento – o cronotopos bakhtiniano – mas sem data de vencimento. Seus sentidos continuam válidos e inacabados no percurso dos tempos da história. E por falar em linguagem literária, dialogismo é uma categoria de análise – conceito historicamente formulado – inventada por Bakhtin com fundamentos filosóficos na obra de Dostoiévski. A rica e profunda obra literária de Dostoiévski é uma legítima, original e verdadeira literatura polifônica. E aqui, mais uma vez, vou recorrer a Calvino. Quando ele conceitua a multiplicidade como um dos seis valores ou qualidades ou especificidades da literatura, escreve: […] Há o texto multíplice, que substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele modelo que Mikhail Bakhtin chamou de “dialógico”, “polifônico”, ou “carnavalesco”, rastreando seus antecedentes desde Platão a Rabelais e Dostoiévski. […] Sempre busquei e busco e continuarei buscando aquilo que denomino o Fenômeno Total, ou seja, o Todo da consciência, das relações, das condições, das possibilidades, das impossibilidades. […] Entre os valores que gostaria fossem transferidos para o próximo milênio está principalmente este: o de uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia, como a do Valéry ensaísta e prosador (CALVINO, 2002, p.132 e 133). É uma prova de que Calvino leu Bakhtin e captou a essência dos sentidos do pensamento filosófico bakhtiniano. Isso não deixa de ser um conforto para quem lê os escritos de Dostoiévski, Calvino e Bakhtin, hoje. Essa multiplicidade de sujeitos – atores e personagens dos romances de Dostoiévski –, de vozes e olhares interindividuais num espaço inter-relacional do mundo, nos deixa maravilhados e nos causa insônia atordoante. Dostoiévski ao ver 51 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Liza partindo para nunca mais voltar e ele, ao canto da casa, sozinho, adoecido de angústia, quase morrendo de sofrimento moral, propôs uma pergunta ociosa: “o que é melhor, uma felicidade barata ou um sofrimento elevado? Vamos, o que é melhor?” (Memórias do Subsolo, 2004, p.145). A pergunta é pura provocação dos leitores. E nós, que resposta daríamos à pergunta? Numa narrativa singular, única, o narrador anônimo – homem do subsolo – conhecendo a essência do ser humano em profundidade da sua existência, zomba do belo e sublime. Num movimento paradoxal entre o bem e o mal, desnuda a ciência e a superstição, o progresso e o atraso, o amor e o ódio, o homem e a mulher. Para aqueles que gritam, batendo os pés: “Fale de si mesmo, e das suas misérias no subsolo, mas não se atreva a dizer 'todos nós'”. Ele proclama: […] Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. […] Se me dói o fígado, que doa ainda mais. […] Sentia que esses elementos contraditórios realmente fervilhavam em mim. Sabia que eles haviam fervilhado a vida toda e que pediam para sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os deixava extravasar. Atormentavam-me até a vergonha, chegavam a provocar-me convulsões e, por fim, acabaram por enjoar realmente! Não vos parece que eu, agora, me arrependo de algo perante vós, que vos peço perdão?... Estou certo de que é esta a vossa impressão... Pois asseguro-vos que me é indiferente o fato de que assim vos pareça... Não consigo chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso – que para nada serve – de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem. Sim, um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada. Esta é a convicção dos meus quarenta anos. Estou agora com quarenta anos; e quarenta anos são, na realidade a vida toda; de fato, isso constitui a mais avançada velhice. Viver além dos quarenta é indecente, vulgar, imoral! Quem é que vive além dos quarenta? Respondei-me sincera e honestamente. Vou dizervos: os imbecis e os canalhas. Vou dizer isto na cara de todos esses anciães respeitáveis e perfumados, de cabelos argênteos! Vou dizêlo na cara de todo mundo! Tenho direito de falar assim, porque eu mesmo hei de vier até os sessenta! Até os setenta! Até os oitenta!... Um momento! Deixai-me tomar fôlego... Pensais acaso, senhores, que eu queira fazer-vos rir? É um engano. 52 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Não sou de modo algum tão alegre como vos parece, ou como vos possa parecer; aliás, se, irritados com toda esta tagarelice (e eu já sinto que vos irritastes), tiverdes a ideia de me perguntar quem, afinal, sou eu, vou responder: sou um assessor-colegial. […] Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer? Resposta: de si mesmo. Então, também vou falar de mim (Memórias do Subsolo, 2009, p.15,16,17 e 18). E no final do subsolo, ele conclama: […] Olhai melhor! Nem mesmo sabemos onde habita agora o que é vivo, o que ele é, como se chama. Deixai-nos sozinhos, sem um livro, e imediatamente ficaremos confusos, vamos perder-nos; não saberemos a quem aderir, a quem nos ater, o que amar e o que odiar, o que respeitar e o que desprezar. Para nós é pesado, até, ser gente, gente com corpo e sangue autênticos, próprios; temos vergonha disso, consideramos tal fato um opróbrio e procuramos ser uns homens gerais que nunca existiram. Somos natimortos, já que não nascemos de pais vivos, e isto nos agrada cada vez mais. Em breve, inventaremos algum modo de nascer de uma ideia. Mas chega; não quero mais escrever ‘do subsolo’... (Memórias do Subsolo, 2009, p.146 e 147). E assim, ele termina as memórias do subsolo de um narrador paradoxalista. Para quem lê a obra de Dostoiévski, com elevado sentimento na alma, a alegria e a angústia não tem limites. Esta fala de Dostoiévski me faz lembrar do Visconde partido ao meio, uma representação alegórica do homem contemporâneo, magistralmente representado por Calvino em Os Nossos antepassados – O Visconde partido ao meio, O barão nas árvores, O cavalheiro inexistente. Em que circunstâncias, em que momento da sua vida Calvino escreveu O Visconde partido ao meio? Vejamos: […] Assim, zangado comigo e com tudo, dediquei-me, espécie de passatempo particular, a escrever o Visconde partido ao meio, em 1951. Não tinha nenhum propósito de defender uma poética contra outra nem intenções de alegoria moralista ou, menos ainda, política em sentido estrito. De certo me ressentia, mesmo que não o percebesse claramente, da atmosfera daqueles anos. Estávamos no auge da guerra fria, havia uma tensão no ar, um dilaceramento surdo, que não se manifestavam em imagens visíveis mas dominavam os nossos ânimos. E aconteceu que, ao escrever uma história de todo fantástica, sem me dar conta acabei exprimindo não só o sofrimento daquele período particular como também o impulso para sair dele; ou seja, não aceitava passivamente a realidade negativa e ainda lograva inserir nela o movimento, a fanfarronice, a crueza, a economia de estilo, o otimismo imbatível que tinham sido marcas da literatura da Resistência. 53 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS […] A presença de um “eu” narrador-comentador levou parte da minha atenção a se deslocar da história para o próprio ato de escrever, para a relação entre a complexidade da vida e a folha sobre a qual essa complexidade se dispõe sob a forma de signos alfabéticos (CALVINO, 2001, p.9 e 19). E Calvino pretendia “... em O Visconde partido ao meio, a aspiração a uma completude para além das mutilações impostas pela sociedade...”. Nesta sintonia – sintonia calviniana – me sinto deliciosamente desconsertado ao ler e reler Dostoiévski na ótica de Bakhtin. Por isso, vamos aguçar os ouvidos para auscultar um pouco a voz de Bakhtin. […] Consideramos Dostoiévski um dos maiores inovadores no campo da forma artística. Estamos convencidos de que ele criou um tipo inteiramente novo de pensamento artístico, a que chamamos convencionalmente de tipo polifônico. […] Dostoiévski criou uma espécie de novo modelo artístico do mundo, no qual muitos momentos basilares da velha forma artística sofreram transformação radical. […] Para uns pesquisadores, a voz de Dostoiévski se confunde com a voz desses e daqueles heróis, para outros, é uma síntese peculiar de todas essas vozes ideológicas, para terceiros, aquela é simplesmente abafada por estas. Polemiza-se com os heróis, aprende-se com os heróis, tenta-se desenvolver suas concepções até fazê-las chegar a um sistema acabado. O herói tem competência ideológica e independência, é interpretado como autor de sua concepção filosófica própria e plena e não como objeto da visão artística final do autor. Para a consciência dos críticos, o valor direto e pleno das palavras do herói desfaz o plano monológico e provoca resposta imediata, como se o herói não fosse objeto da palavra do autor mas veículo de sua própria palavra, dotado de valor e poder plenos. […] À semelhança do Prometeu de Goethe, Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus) mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele. A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo e uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimentos, mantendo a sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante. Por esse motivo, o discurso do herói não se esgota, em hipótese alguma, nas características habituais e funções do enredo e da pragmática, assim 54 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS como não se constitui na expressão da posição propriamente ideológica do autor... […] A consciência do herói é dada como a outra, a consciência do outro mas ao mesmo tempo não se objetifica, não se fecha, não se torna mero objeto da consciência do autor. Neste sentido, a imagem do herói em Dostoiévski não é a imagem objetivada comum do herói no romance tradicional. Dostoiévski é o criador do romance polifônico (BAKHTIN, Problemas da Poética de Dostoiévski, 2008, p. 1,3,4,5). Aqui Bakhtin mostra o quanto e o como ele era próximo e familiar de Dostoiévski e da obra do escritor dos subterrâneos da condição humana. Dostoiévski constrói relações muito diretas, pessoais, vivas, íntimas com os leitores – que são provocados em vivenciar, conviver com os personagens, em vez de heróis, defrontam-se com os anti-heróis – tratando os leitores ora de “vocês”, ora de “vós”, como se fossem um público ora afável e concordante, ora crítico e angustiado, provocando impiedosamente os leitores a decifrar os enigmas da vida – particularmente da existência de cada leitor. É impossível ler Crime e Castigo, O Idiota, Os Irmãos Karámazov, Memórias da Casa dos Mortos, Memórias do Subsolo e não padecer de insônias aterrorizadoras por noites sem fim. Ele mesmo declarava ter uma “consciência hipertrofiada”. Ao conviver com presos numa colônia penal da Sibéria, ouvia os presos dizer: “Somos gente perdida”. “Quem não soube viver em liberdade que aguente isto, agora”. “Foi por não termos querido obedecer aos nossos pais que obedecemos agora ao batuque do tambor”. “Por não termos querido lavrar o ouro, partimos agora pedras com o maço”. Os presos repetiam tudo isso, mas sem refletir nos seus sentidos. Eles não gostavam de comentar e refletir no seu próprio delito. Dos presos ele diz: […] Eles insultam de um modo perfeito, artístico. Elevaram o insulto à categoria de uma ciência; esforçam-se por ferir, não tanto com uma palavra ofensiva, como com um pensamento ofensivo, com uma ironia, uma ideia vexatória... e da maneira mais concludente e cáustica. Rixas contínuas acabaram por tornar entre eles essa ciência altamente requintada. Toda essa gente trabalhara anteriormente debaixo de pancadas; assim se tornou indolente e acabou por depravar-se; e se já não o estava anteriormente, corrompeu-se quando entrou para o presídio. Ninguém estava ali por sua vontade; eram todos estranhos uns para os outros (DOSTOIÉVSKI, 2010, p.19) E Dostoiévski não deixa de revelar sua estranheza diante das atitudes dos presos: 55 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS […] Eu não podia imaginar, a princípio, que fosse possível as pessoas insultarem-se só por prazer, encontrar nisso uma distração, um exercício agradável, um desporto. E também ali havia vaidade. A dialética do insulto era muito apreciada. Ao bom insultador não faltavam aplausos, como aos autores (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 35). No presídio as condições sub-humanas dos presos, as brutalidades dos diretores, dos guardas, dos carcerários são profundamente marcantes na vida de Dostoiévski. E ele nos brinda com uma aula de elevada sociologia quando estabelece o paradoxo do trabalho livre do camponês e o trabalho forçado do preso. […] O camponês em liberdade trabalha incomparavelmente mais, às vezes de dia e de noite, sobretudo no verão, mas trabalha para si, trabalha com uma finalidade racional, e assim o seu trabalho é muito mais leve, para ele, do que o do presidiário, forçado e perfeitamente inútil para si. Acontecia-me às vezes pensar que se me desse alguma vez para perder-me completamente, para abater um homem, para castigá-lo com o mais horrível castigo, um castigo que metesse medo e fizesse tremer antecipadamente o criminoso mais valente, não precisava senão de dar o seu trabalho o caráter de uma inutilidade e total e absoluta carência de sentido. Embora o atual trabalho forçado não tenha interesse e atrativo para o preso, é, contudo, em si mesmo um trabalho razoável; em todo esse trabalho há uma ideia e uma finalidade. E às vezes o trabalhador forçado dedica-se à sua tarefa, aspira a fazê-la com mais destreza, mais rapidez e perfeição. Mas se o obrigassem a transvasar água de uma cuba para outra, e desta para aquela, a calcar areia, a transportar montinhos de terra de um sítio para outro, e vice-versa, penso que o recluso se suicidaria passados alguns dias ou cometeria mil desacatos, para, ainda que fosse à custa da sua vida, se ver livre de humilhação, de vergonha e de escárnio semelhantes. É claro que tal castigo apenas podia imaginar-se com fins de tortura ou de vingança, e seria absurdo, porque ultrapassaria o seu próprio fim. Mas ainda que não exista o mínimo vestígio desse tormento, desse absurdo, desse vexame e dessa vergonha, no trabalho forçado, o trabalho do preso é incomparavelmente mais penoso do que o do homem livre, precisamente por ser forçado. […] Com o tempo acabei por concluir que, além da privação da liberdade, existe na vida de prisão um paradoxo, talvez mais forte do que em todas as outras, e que vem a ser a forçada convivência geral. Essa convivência geral existe também, sem dúvida alguma, em outros lugares, mas no presídio encontram-se indivíduos de tal natureza que nem a todas as pessoas pode agradar conviver com eles, e estou convencido de que todo preso sente este vexame que se lhe faz, embora, naturalmente, a maior parte deles o calem. […] Os presos lavavam-se numa vasilha de madeira; enchiam a boca d'água e borrifavam depois as mãos e a cara com esse líquido. A água tinha sido ali colocada já na véspera, pelo paráchnik. Em cada 56 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS dormitório havia, por ordem superior, um preso, escolhido entre todos, para os serviços desse mesmo dormitório. Era designado com o nome de paráchnik e não ia para o trabalho no exterior. O seu dever consistia em zelar pela limpeza do dormitório, lavar e limpar as esteiras e o chão, trazer e levar o urinol, e encher de água fresca duas vasilhas de madeira, de manhã para se lavarem e no resto do dia para beberem (DOSTOIÉVSKI, 2010, p. 29,30 e 31). Em toda sua obra Dostoiévski se revela o pensador-romancista, mas particularmente em Memórias da Casa dos Mortos e Memórias do Subsolo, Dostoiévski é o “filósofo-romancista”. Estas cenas da vida real dos presídios é a substância vital das narrativas do subsolo das condições humanas na obra literária de Dostoiévski, não só dos presos, senão e com certeza, da sociedade hipócrita, falsa, de nobreza e dignidade aparentes das classes mais elevadas da sociedade russa contemporânea de Dostoiévski. E, tomado de desânimo e desprezo já no final das “Memórias”, Dostoiévski revela uma consciência hipertrofiada diante da condição humana do século dezenove. […] Mesmo agora, passados tantos anos, tudo isso me vem à memória de modo demasiado mau. Muita coisa lembro agora realmente como um mal, mas... não será melhor encerrar aqui as “Memórias”? Parece-me que cometi um erro começando a escrevêlas. Pelo menos, senti vergonha todo o tempo em que escrevi esta novela: é que isto não é mais literatura, mas um castigo correcional. De fato, contar, por exemplo, longas novelas sobre como eu fiz fracassar a minha vida por meio do apodrecimento moral a um canto, da insuficiência do ambiente, desacostumando-me de tudo o que é vivo por meio de um enraivecido rancor no subsolo, por Deus que não é interessante: um romance precisa de herói e, no caso, foram acumulados intencionalmente todos os traços de um anti-herói, e, principalmente, tudo isto dará uma impressão extremamente desagradável, porque todos nós estávamos desacostumados da vida, todos capengamos, uns mais, outros menos. Desacostumamonos mesmo a tal ponto que sentimos por vezes certa repulsa pela “vida viva”, e achamos intolerável que alguém a lembre a nós. Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor (DOSTOIÉVSKI, 2010, p.145 e 146). Da mesma forma paradoxal que Calvino se revela e se expõe, partido ao meio no sentido longitudinal – a metade esquerda má e a metade direita boa – vejo Bakhtin também partido ao meio – o Bakhtin marxista dialético, um filósofo livre, original e crítico do marxismo, e o Bakhtin soviético, um pensador contido, por prudência e controle, vale-se de uma linguagem velada, inexata e inacabada, pois 57 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS negava-se ao culto da personalidade de Stalin e de seus sucessores. Na obra de Dostoiévski, Bakhtin, à escuta das falas e vozes do romancista e das vozes dos personagens, ouve e sente o diálogo, a dialogia sem hierarquia social e sem heróis – a ciência e a arte do diálogo. O lugar e o tempo da alteridade, da constituição da identidade do Eu e do Outro pelo ato responsivo. O que ele mesmo enuncia: o dialogismo e a polifonia de vozes. Ou, a “multiplicidade” de vozes, como proferiu Calvino. Porém, as inéditas, originais, únicas e primeiras análises de Bakhtin das obras de Dostoiévski não se restringem e limitam a estas categorias – prenhes de sentido e significados. Ele apresenta de forma inédita e profunda o problema de carnaval e da carnavalização da literatura. É algo inédito o que ele escreveu. […] Um dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura é o problema do carnaval (no sentido de conjunto e todas as variadas festividades, ritos e formas de tipo carnavalesco), da sua essência, das suas raízes profundas na sociedade primitiva e no pensamento primitivo do homem, do seu desenvolvimento na sociedade de classes, de sua excepcional força vital e seu perene fascínio. Aqui não vamos, evidentemente, examinar esse problema em profundidade, pois nosso interesse essencial se prende apenas ao problema da carnavalização, ou seja, da influência determinante do carnaval na literatura, especialmente sobre o aspecto do gênero. O carnaval propriamente dito (repetimos, no sentido de um conjunto de todas as variadas festividades de tipo carnavalesco) não é, evidentemente, um fenômeno literário. É uma forma sincrética de espetáculo de caráter ritual, muito complexa, variada, que, sob base carnavalesca geral, apresenta diversos matizes e variações dependendo da diferença de épocas, povos e festejos particulares. O carnaval criou toda uma linguagem de formas concreto-sensoriais simbólicas, entre grandes e complexas ações de massas e gestos carnavalescos. Essa linguagem exprime de maneira diversificada e, pode-se dizer, bem articulada (como toda linguagem) uma cosmovisão carnavalesca una (porém complexa), que lhe penetra todas as formas. […] O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vivese uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l'envers”). As leis, proibições e restrições, que determinavam o sistema e a ordem da vida comum, isto é, extracarnavalesca, revogam-se durante o carnaval: revogam-se antes de tudo o sistema hierárquico 58 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS e todas as formas conexas de medo, reverência, devoção, etiqueta, etc., ou seja, tudo o que é determinado pela desigualdade social hierárquica e por qualquer outra espécie de desigualdade (inclusive a etária) entre os homens. Elimina-se toda distância: o livre contato familiar entre os homens. Este é um momento muito importante da cosmovisão carnavalesca. Os homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em livre contato familiar na praça pública carnavalesca (BAKHTIN, 2008, p. 139 e 140). Não há o que comentar, apenas para fechar, alguns enunciados breves mas precisos, claros, exatos dos significados e sentidos históricos de carnaval. […] O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo, etc. […] A ação carnavalesca principal é a coroação bufa e o posterior destronamento do rei do carnaval. […] A base da ação ritual da coroação e destronamento do rei reside o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca: a ênfase das mudanças e transformações, da morte e da renovação. […] O nascimento é prenhe de morte, a morte, de um novo nascimento (BAKHTIN, 2008, p.141). O sonho de Calvino – mais certo, uma utopia imaginada – era de escrever uma literatura revolucionária como pressuposto de todos os planos operacionais do escritor e ele a confessa de forma livre e exata no segundo parágrafo de O Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade [Una pietra sopra]. Eram os tempos do “intelectual engajado” no verdadeiro sentido dos escritos de Jean Paul Sartre, tempos históricos muito bem vividos por Calvino. A ambição juvenil de que parti foi a do projeto de construção de uma nova literatura que por sua vez servisse para a construção de uma nova sociedade. As correções e transformações que aquelas expectativas sofreram vão aparecer da sucessão dos textos aqui reunidos. Certamente o mundo que hoje está diante de meus olhos não poderia ser mais oposto à imagem que aquelas boas intenções construtivas projetavam para o futuro. A sociedade manifesta-se como colapso, como desmoronamento, como gangrena (ou, em seus aspectos menos catastróficos, como vida do dia a dia); e a literatura sobrevivente dispersa nas fissuras e nas desconjunções, como consciência de que nenhuma ruína será tão definitiva a ponto de excluir outras (CALVINO, 2009, p.7 e 8). É simplesmente delicioso e aprazível ler o “mundo escrito” de Calvino. E é preciso ler sempre “con la coda del'ochio” – Com o rabo d'olho. Ou, uma leitura oblíqua, em profundidade e não na superfície horizontal. Ler as entrelinhas do mundo 59 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS escrito. Inclusive, ler as margens brancas das páginas impressas ou virtuais. ENUNCIADOS FINAIS Os analistas críticos mais rigorosos e disciplinarizados – academicistas – podem pensar e dizer que se trata de uma “compilação”. Eu prefiro dizer que se trata de um diálogo polifônico. Assim, a melhor maneira de compreender o pensamento e o mundo-escrito é ler primeiro os escritos originais e depois escutar os outros, as suas explicações e seus escritos interpretativos. Conversar e dialogar com os pensadores, concatenar o dialogismo com os heróis, os personagens e aprender com eles – os autores e seus personagens – as lições de amor, ódio, piedade, tristeza, angústia, tragédia, da “vida viva”. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. _______. Estética da Criação Verbal. 4. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003. _______. A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. 8. ed., São Paulo: Hucitec, 2013. _______. Marxismo e filosofia da linguagem. 16. ed., São Paulo: Hucitec, 2014. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas. São Paulo: Planeta, 2003. CALVINO, Ítalo. Assunto encerrado – Discursos sobre literatura e sociedade. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. _______. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _______. Os nossos antepassados. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _______. Seis propostas para o próximo milênio. 2. ed., São Paulo: Companhia das Letras, 2002. _______. A palavra escrita e a não-escrita. In: FERREIRA, M. De M.; AMADO, J. Usos e abusos da história oral. 6. ed., Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005. DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Memórias do Subsolo. 6. ed., São Paulo: Editora 34, 2009. _______. Memórias da casa dos mortos. Porto Alegre: L&PM, 2010. 60 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS _______. Crime e Castigo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, (s.d.). _______. Os mais belos contos de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, MCMLXX. GORKI, Máximo. As minhas universidades. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. 61 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS LINGUAGENS EM CONTEXTOS INCLUSIVOS E IDIOSSINCRÁTICOS: PRODUÇÃO DE OBJETOS DIGITAIS DE ENSINO-APRENDIZAGEM. Julia Cristina Granetto8 Beatriz Helena Dal Molin9 RESUMO: A proposta desta apresentação é discutir sobre as diversas linguagens em situações de ensino-aprendizagem em contextos inclusivos e idiossincráticos, com enfoque na educação mediada (EAD) e na produção de objetos digitais de ensino aprendizagem (ODEA). Nesta Era tecnológica faz-se necessário refletir sobre os objetos digitais de ensino-aprendizagem, considerando o emprego da tecnologia digital, uma vez que ela está presente em todos os âmbitos de nossas vidas. Dessa forma, procuramos demonstrar que entre as diversas possibilidades de potencializar o acesso ao conhecimento, destaca-se o papel que ocupam os ODEA, que não apenas proporcionam uma maior interatividade na forma de transmissão de conteúdo, como também potencializam e possibilitam um novo modo de ensinar e aprender. Consideramos que para construirmos objetos digitais de ensinoaprendizagem que ultrapassem a mera reprodução de conhecimento se faz necessário pensar e repensar em sua elaboração sob o aspecto da transversalidade, transdisciplinaridade e hipertextualidade, tão necessárias à compreensão da complexidade da vida. A proposta reflete ainda, sobre o que se elabora e se retoma no sentido de novo modo do fazer pedagógico, com o intuito de aprimorar com os objetos digitais de ensino-aprendizagem sobremaneira o repertório do conhecimento. PALAVRAS-CHAVE: Contextos inclusivos e idiossincráticos; Educação Mediada (EAD); Objetos digitais de ensino aprendizagem. RESUMEN: La propuesta de esta presentación es discutir acerca de las distintas lenguas en situaciones de enseñanza y aprendizaje en contextos inclusivos e idiosincrásicos, centrándose en la educación mediada (EAD) y en la producción de objetos digitales de enseñanza aprendizaje (ODEA). En esta Era tecnológica es necesario reflexionar sobre los objetos digitales de enseñanza y aprendizaje, teniendo en cuenta el empleo de la tecnología digital, ya que está presente en todos los ámbitos de nuestras vidas. De este modo, buscamos demostrar que entre las diversas posibilidades de mejorar el acceso al conocimiento, resalta el papel que ocupan los ODEA, que no sólo proporcionan una mayor interactividad en forma de 8 UNIOESTE/ Universidade [email protected] Estadual 2 Estadual do Oeste do UNIOESTE/ Universidade [email protected] do Oeste do Paraná. Cascavel, Paraná. e-mail: Paraná. Cascavel, Paraná. e-mail: 62 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS transmisión de contenido, sino también potencian y posibilitan una nueva forma de la enseñar y aprender. Creemos que para construir objetos digitales de enseñanza y aprendizaje más allá de la mera reproducción del conocimiento es necesario pensar y repensar su elaboración desde el aspecto de la transversalidad, la transdisciplinariedad y de la hipertextualidad, tan necesaria para la comprensión de la complejidad de la vida. La propuesta refleja también sobre lo que se elabora y retoma en el sentido de un nuevo modo de hacer pedagógico, con el objetivo de mejorar con los objetos digitales de aprendizaje enseñanza en gran medida el repertorio de conocimientos. PALABRAS CLAVE: Contextos inclusivos e idiosincráticos; Educación mediada (EaD); Objetos digitales de enseñanza y aprendizaje. INTRODUÇÃO Neste artigo, discute-se o que são objetos digitais de ensino-aprendizagem (ODEA), buscando compreender sua função e seu papel no cenário da cultura da convergência, apresentando suas características e, discutindo sobre sua importância em tempos de tecnologia de comunicação digital (TCD). A TCD gera impactos significativos na sociedade da informação, e altera a maneira pela qual os povos aprendem, “os professores antes dotados de lousas, cadernos, livros, escrituras, ditados, questionários, contam, hoje, com outras possibilidades para que suas aulas sejam mais prazerosas e cognitivamente mais desafiadoras” (RONCARELLI, 2012). Com relação ao ensino, modificações importantes são propiciadas na forma pela qual os materiais educacionais são planejados, construídos, disponibilizados e entregues àqueles que desejam aprender. Com o avanço da TCD, e com o crescimento de seu uso para fins educativos, surge um novo modo de pensar em materiais e recursos didáticos, chamados de objetos digitais de ensinoaprendizagem, possibilitando novos caminhos para a práxis pedagógica. Entre as diversas possibilidades de potencializar o acesso ao conhecimento, destaca-se o papel que ocupam os ODEA, que não apenas proporcionam uma maior interatividade na forma de transmissão de conteúdo, como também potencializam e possibilitam um novo modo de ensinar e aprender. 63 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS TENTATIVA DE CONCEITUAR OS OBJETOS DIGITAIS DE ENSINO- APRENDIZAGEM O objeto digital de ensino-aprendizagem é um recurso definido de forma muito ampla. Na literatura, constatam-se divergências com relação a sua classificação e terminologia, dentre as definições encontramos: Objeto de Aprendizagem (OA), Objeto Educacional (OE); Objeto Virtual de Aprendizagem (OVA); Objeto de Conhecimento (OC); Materiais de Aprendizagem online (MAO); Recursos de Aprendizagem (RA); Objeto digital de ensino-aprendizagem (ODEA), dentre outras. Adotamos para este estudo a terminologia ODEA, pois acreditamos que as outras definições compreendem que os objetos podem ser qualquer dispositivo que seja considerado e tenha finalidade educativa, como um livro, uma apostila, etc, já o ODEA é um termo que compreende a presença do digital, garantindo e envolvendo a TCD. Neste trabalho, considera-se como ODEA todo e qualquer material disponível na Web que tenha objetivo pedagógico, contendo desde simples elementos, como um texto ou um vídeo, ou ainda, podendo ser mais completo e complexo como um hipertexto, uma página da internet, um filme, um curso ou até mesmo uma animação com áudio e recursos mais avançados e mistos. A respeito de ODEA temos: A definição mais utilizada em artigos e periódicos tem sido a definição de “qualquer entidade, digital ou não digital, que pode ser utilizada, reutilizada ou referenciada, apoiada pelas tecnologias”, ou, simplificadamente, “qualquer recurso que possa ser reutilizado para suporte ao ensino” (RONCARELLI, 2012, p. 107). A definição citada apenas reforça que diferentemente dela, compreendemos que um ODEA tem que ter a presença do digital. Os objetos digitais de ensinoaprendizagem surgem, pois, com o objetivo de serem instrumentos dessa nova forma de educar, facilitando a disponibilidade e acessibilidade da informação no ciberespaço. É uma terminologia recente que vem sendo cada vez mais incorporada no ambiente educativo. 64 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Hofmann (2007) apud Silva, Café e Catapan (2010), que utiliza a terminologia OA (objetos de aprendizagem), definem que o objeto pode ser qualquer coisa, como um livro, uma árvore e até mesmo um céu. Para Silva, Café e Catapan (2010), os objetos de aprendizagem (OA) são “recursos didáticos na forma de arquivos digitais, imagens, vídeos, referências a sites ou outros materiais que possam ser usados como suporte para as aulas ministradas” (SILVA, CAFÉ, CATAPAN, 2010, p. 94). Já Wiley (2000) afirma que a definição de OA é muito ampla, e não exclui qualquer pessoa, lugar, coisa ou ideia de que tenha existido em qualquer momento na história do universo, uma vez que qualquer um destes pode ser referenciado como suporte para a aprendizagem. Para o autor, ainda não há uma definição única de objetos de aprendizagem e propõe, por isso, qualquer recurso digital, por exemplo: imagens, gráficos, vídeos entre outros, que promova noensino, e acrescenta que os objetos são compreendidos como “qualquer recurso digital que possa ser reutilizado para apoiar a aprendizagem” (WILEY, 2000, p. 7). O autor corrobora ainda mais com essa ideia definindo que os objetos de aprendizagem são: Qualquer coisa que pode ser disponibilizada através da rede sob demanda, sendo isto grande ou pequeno. Exemplos de recursos digitais, reutilizáveis pequenos incluem imagens ou fotografias digitais, fluxo de dados ao vivo (como registros de ações), fragmentos de áudio e vídeo ao vivo ou pré-gravados, pequenos pedaços de texto, animações e pequenas aplicações disponibilizadas na web como uma calculadora em Java. Exemplos de recursos digitais reutilizáveis maiores incluem páginas da Web inteiras que combinam texto, imagens e outra mídia ou aplicações para demonstrar experiências completas, como um evento instrucional completo (WILEY, 2000, p. 4). Nesta pesquisa, entende-se como objeto digital de ensino-aprendizagem, uma microunidade de conhecimento. “Esta microunidade é sistematizada, organizada e constitui-se de uma intencionalidade pedagógica de caráter institucional” (RONCARELLI, 2012, p. 105). Pinho Tavares (2006) compara os ODEA às peças ou blocos de construção do Lego, brinquedo infantil, sendo vistos como unidades que podem ser agrupadas de diferentes maneiras de forma simples e fácil para produzir experiências de aprendizagem dinâmica. Wiley (2000) vai além e utiliza a metáfora do átomo, unidade pequena que se agrega a outras desde que tenha determinadas 65 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS características na sua estrutura interna. Seu uso e a sua reutilização requerem conhecimentos pedagógicos para que seja realizado de forma eficaz e apropriada sob o ponto de vista dos objetivos pedagógicos. Wiley acrescenta: “Se objetos de aprendizagem alcançarem o seu público e fornecerem a fundação para uma arquitetura de aprendizagem adaptável, geradora e escalável, o ensino e a aprendizagem que nós conhecemos serão revolucionados” (WILEY, 2000, p. 19). Com base nessas teorias sobre ODEA, considera-se que os mesmos podem ser produzidos em diferentes maneiras, utilizando os mais diversos recursos. Sobre sua produção, “O MEC recomenda que, sempre que possível, sejam utilizados softwares gratuitos” (RONCARELLI, 2012, p. 110). Moran (2000) diferencia os objetos de aprendizagem de objetos de ensino. Para este autor, os objetos de ensino são destinados apenas a apresentar uma informação e podem ter um fim educacional pontual. Já os objetos de aprendizagem são os que possuem mais interatividade, que permitem uma reflexão sobre a reação do objeto. Acreditamos que os ODEA devem ser elaborados usando um enquadramento conceitual inserido em teorias, estratégias e metodologias pedagógicas, caso contrário, esse objeto será apenas um objeto de reprodução de conteúdos, fechado e não um objeto digital de ensino-aprendizagem que provoque a construção do conhecimento novo. CARACTERIZAÇÃO DOS OBJETOS DIGITAIS DE ENSINO-APRENDIZAGEM Caracterizar os objetos digitais de ensino-aprendizagem se torna importante no sentido de “possibilitar que eles possam ser armazenados adequadamente, encontrados facilmente, reagrupados e utilizados em diferentes contextos, sem perder sua potencialidade pedagógica e suas funcionalidades” (RONCARELLI, 2012, p. 119) e, principalmente, sua capacidade de despertar para a busca de mais conhecimento e de correlação dos conhecimentos teóricos com a práxis cotidiana do estudante. Desta forma, há certos preceitos que devem ser seguidos para garantir que o ODEA seja útil “respeitar os padrões ajuda na hora de empacotá-los e despachá-los para outro espaço-tempo, em outra ambiência” (RONCARELLI, 2012, 66 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS p. 119). É necessária uma organização de tais ODEA, uma catalogação, que tenha como intuito principal de monstrar as características de tais objetos e uma organização em metadados, uma vez que “os metadados possibilitam que os objetos de aprendizagem sejam passíveis de classificação, de indexação, de catalogação e de disponibilização” (RONCARELLI, 2012, p. 114), tais características tornamos ODEA compreensíveis para as mais diversas plataformas e contextos de aprendizagem e facultam seu melhor aproveitamento. Os ODEA devem apresentar metadados, estarem inseridos em um determinado ambiente de aprendizagem, apresentando características específicas que facilitam o acesso e os tornem adequados na rede. Para Silva, Café e Catapan (2010) as características mais usuais dos ODEA são: acessibilidade, reusabilidade, interoperabilidade, portabilidade e durabilidade, os quais explicam da seguinte maneira: acessibilidade: devem possuir uma identificação padronizada que garanta a sua recuperação; reusabilidade: devem ser desenvolvidos de forma a compor diversas unidades de aprendizagem; interoperabilidade:devem ser criados para serem operados em diferentes plataformas e sistemas; portabilidade: devem ser criados com a possibilidade de se mover e se abrigar em diferentes plataformas; durabilidade: devem permanecer intactos perante as atualizações de sofware ou hardware (SILVA, CAFÉ, CATAPAN, 2010, p.96). Outro fator a ser considerado, na construção dos ODEA, é quanto ao seu tamanho, quanto menor o objeto, mais fácil será juntá-lo a outro (LEFFA, 2006b), considerando que o ciclo de vida de um objeto digital pode ser extremamente curto se não for constantemente atualizado. Sobre a reusabilidade, Leffa afirma: O OA não é algo feito apenas para ser usado, é algo feito também para ser reusado. Parece haver aí a preocupação de economia, não necessariamente financeira ou ecológica, mas de tempo na construção do objeto. Quem constrói os Oas são principalmente os professores e isso toma tempo, em princípio mais do que eles têm para dispensar. Por isso, o professor gostaria de reaproveitar o objeto que construiu, não necessariamente repetindo-o de ano para ano ou de turma para turma, mas combinado com outros objetos, recriando-o à medida que o reestrutura numa unidade maior (LEFFA, 2006b, p. 24). 67 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A adaptação no mundo digital é tão necessária como no mundo natural. Uma atividade de ensino criada no sistema operacional Windows, por exemplo, deve ser capaz de rodar no Linux. Da mesma maneira, no mundo interconectado de hoje, uma atividade que roda num determinado navegador, deve também ser executável em outro, por mais complexa que seja essa atividade. O problema é que as leis do mundo digital, como os próprios sistemas de computação, são extremamente instáveis e os padrões de regularidade que estabelecem num dia, mudam no outro. A única constância desse meio é a constância da mudança “não basta, portanto, apenas reduplicar o objeto. Para que a reusabilidade ocorra, é também necessário que o objeto evolua e se adapte a todas essas mudanças constantes do meio digital” (LEFFA, 2006b, p. 25). Para Motter, um ODEA é definido e planejado tendo em vista, além dos conteúdos da disciplina e do perfil dos estudantes, a sua reusabilidade, adaptabilidade e compatibilidade entre a mídia escolhida e os aparatos tecnológicos existentes no espaço escolar (MOTTER, 2013). Como nos afirma Roncarelli, “para a identificação dos objetos, de modo geral, importa sinalizar dados, como: área do conhecimento, subárea, título e natureza do objeto, descritivo geral de preferência breve, funções executivas com dados da equipe, o tempo previsto de produção, bem como a estimativa de recursos” (RONCARELLI, 2012, p. 122). Transpondo para um ODEA a concepção de Deleuze e Guattari (2011), podemos dizer que um ODEA deve ser construído como um mapa, o qual permite novos conhecimentos, contribuindo para a conexão dos diversos campos de conhecimento. Deve ser aberto e conectável em todas as suas dimensões, ser desmontável, reversível e suscetível de receber constantes modificações, em todos os campos do saber e, portanto, também adequado e fértil ao ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras. Um ODEA entendido como mapa, serve como ponto de referência para novas descobertas. Novos vocabulários, novas formas sintáticas e configurações fonéticas podem fazer parte da estruturação desses instrumentos pedagógicos sem a estafante tarefa de puramente estudar a dura estrutura de um idioma. (MOTTER, 2013, p. 147). 68 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ressaltamos que, em muitos casos, o ODEA será usado diretamente pelo estudante, sem a presença do professor. Deste modo, faz-se necessário que ao elaborar tais objetos, as instruções de uso sejam claras e os objetivos explícitos. UMA PROPOSTA PARA A CONSTRUÇÃO DE OBJETOS DIGITAIS DE ENSINOAPRENDIZAGEM Em nosso estudo, consideramos o ODEA, atrelado a uma determinada teoria de aprendizagem, estando inseridos na moldura teórico-metodológica concernente às exigências da cultura atual, denominada por Jenkins (2009) de cultura da convergência, a qual promove uma verticalização transdisciplinar, transversal e hipertextual. O ODEA, nesta cultura atual, deve ser entendido como recurso para aumentar a qualidade do ensino, contribuindo para o desenvolvimento da aprendizagem que faça sentido para o estudante. Sob esse aspecto, o desenvolvimento de ODEA deve oferecer suporte a processos educacionais. E para tanto, deve ser construído de modo coerente e articulado, comprometido com a construção de novos conhecimentos, superando a mera transposição de conteúdos. Ao ensinar, o professor observa posturas, atitudes e comportamentos dos estudantes – elementos que servem de indicadores para o prosseguimento ou interrupção de suas ações. Professor e aprendiz, ambos ensinam e ambos aprendem juntos. Um objeto educacional deve cumprir essa função: provocar o ensinar e o aprender mútuo (MOTTER, 2013, p. 143). No ensino tradicional, os conhecimentos são cada vez mais fragmentados, as disciplinas se fecham e não se comunicam umas com as outras, delimitam o saber, criando uma espécie de territorialização do conhecimento. Nesse sentido, fazse necessário refletir sobre uma maneira de como desterritorializar o conhecimento, que se configura como um fenômeno extremamente complexo. A transdisciplinaridade é vista como o estágio final de uma visão de ciência evolucionista que se inicia com a disciplina, evolui para a multi, pluri, inter e finalmente para a transdisciplinaridade. A disciplinaridade implica na divisão da ciência de maneira isolada, fechada, onde existe um controle sobre o quê, quando e como o aluno adquire o 69 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS conhecimento. Morin (2005), sobre disciplina nos afirma que: A disciplina pretende primeiro fazer reconhecer a sua soberania territorial e, desse modo, confirmar as fronteiras em vez de desmoroná-las, mesmo que algumas trocas incipientes se efetivem. [...] É necessário ir mais longe, e é aqui que aparece o termo transdisciplinaridade (MORIN, 2005, p. 52). A multidisciplinaridade é vista como a forma de considerar um único objeto de pesquisa sob o aspecto de diferentes disciplinas, neste formato, embora o objeto de estudo seja o mesmo, a contribuição de cada disciplina ainda é compartimentalizada, não interagindo entre si (NICOLESCU, 2001). O formato pluridisciplinar adiciona algo a mais à disciplina em questão, mas esse algo a mais pertence exclusivamente àquela própria disciplina. Em outras palavras, seu procedimento ultrapassa os limites de uma disciplina, mas seu objetivo está restrito ao quadro disciplinar em questão. Para Nicolescu “a pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma única e mesma disciplina efetuada por diversas disciplinas ao mesmo tempo” (NICOLESCU, 2001, p. 1). Já na interdisciplinaridade, há um princípio de interação entre as disciplinas, ainda que estudem sob um ponto comum de um determinado objeto. No entanto, o ponto de partida ainda é das disciplinas para o objeto. É somente na transdisciplinaridade que a relação entre a disciplina e o objeto se inverte. Não se parte, pois, da disciplina como no nível da disciplinaridade, multi, pluri e inter, mas do objeto, parte-se de algo mais amplo, em que as disciplinas podem até ser usadas, dependendo se as mesmas contribuirão para a solução do problema encontrado. O conhecimento transdisciplinar associa-se à dinâmica da multiplicidade das dimensões da realidade e apóia-se no próprio conhecimento disciplinar. Isso quer dizer que a pesquisa transdisciplinar pressupõe a pesquisa disciplinar, no entanto, deve ser enfocada a partir da articulação de referências diversas. Desse modo, os conhecimentos disciplinares e transdisciplinares não se antagonizam, mas se complementam (SANTOS, 2008, p. 75). O físico Nicolescu em (1999), seu texto “O Manifesto da Transdisciplinaridade”, declara que a linguagem disciplinar ergue barreiras que impossibilitam e inviabilizam diálogos entre os saberes das diversas áreas do 70 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS conhecimento. O autor ainda acrescenta que a necessidade de se criar laços entre as disciplinas vem desde a metade do século XX, com o surgimento da transdisciplinaridade e da pluridisciplinaridade. Edgar Morin, ao se referir à transdisciplinaridade, menciona que a soma do conhecimento das partes não é suficiente para se conhecer as propriedades do conjunto, pois o “todo é maior do que a soma de suas partes” (MORIN, 2005, p. 123). Além disso, quando se considera o todo não se vê a riqueza das partes, por essas ficarem inibidas e virtualizadas, impedidas de expressarem-se em sua plenitude. Santos (2008) complementa que “a transdisciplinaridade exige também uma postura de democracia cognitiva (todos os saberes são igualmente importantes), superando o preconceito introduzido pela hierarquização dos saberes” (SANTOS, 2008, p. 76). Construir ODEA sob um aspecto transdisciplinar exige uma contextualização maior, procurando demonstrar que, por mais distante que possa parecer tudo está relacionado, a visão transdisciplinar de ciência que inclui a alteridade, ou seja, construo meu conhecimento considerando a visão do outro, e incluo também o alternativo, no sentido de algo independente das tendências dominantes, quando se pensa em desenvolvimento de material didático para o processo ensino-aprendizagem mediado, o foco principal deve estar norteado pela prática baseada na inter e na transdisciplinaridade necessárias a um bom encaminhamento para a apropriação e construção de novos conhecimentos (DAL MOLIN, 2008, p. 7). O conhecimento disciplinar foi, sem dúvida, necessário para permitir a explosão do saber, teve sua relevância em determinada época, mas em tempos de cultura da convergência, essa disciplinaridade se for perpetuada, como nos mostra Nicolescu (2001), nos “arrastará na lógica irracional da eficácia pela eficácia, que tenderá unicamente a levar-nos à autodestruição” (NICOLESCU, 2001, p. 9). O autor segue seu raciocínio afirmando que: Na perspectiva transdisciplinar, existe uma relação direta e incontornável entre a paz e a transdisciplinaridade. O pensamento fragmentado é incompatível com a busca de paz sobre a Terra. A emergência de uma cultura e de uma educação para a paz exige uma evolução transdisciplinar da 71 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS educação (NICOLESCU, 2001, p. 10). Elaborar objetos digitais de ensino-aprendizagem sob a perspectiva da transdisciplinaridade é considerar um conjunto de atividades de ensinoaprendizagem sobre um determinado conteúdo tratado, que “priorizem a inter e a transdisciplinaridade, bem como o contato com as diversas mídias levando o estudante a compreender melhor os conteúdos tratados” (DAL MOLIN, 2008, p. 16). Trazendo à cena novas formas de elaboração de ODEA, evidenciando a transdisciplinaridade, sendo essa o aspecto fundamental do processo de aprendência, estabelecendo uma estreita ligação com o que é ontológico do ser humano que é a hipertextualidade, que a tecnologia consegue materializar de alguma forma, ainda que não completamente (DAL MOLIN; GRANETTO; PEREIRA, 2012). Aplicada à aprendência, a transdisciplinaridade torna o ato de aprender e ensinar prazerosos, resgatando o sentido do conhecimento, que por razões da fragmentação foi perdido. Precisamos reintroduzir na escola o princípio de que toda a morfogênese do conhecimento tem algo a ver com a experiência do prazer. Quando esta dimensão está ausente, a aprendizagem vira um processo meramente instrucional. Informar e instruir acerca de saberes já acumulados pela humanidade é um aspecto importante da escola, que deve ser, neste aspecto, uma central de serviços qualificados. Mas a experiência de aprendizagem implica, além da instrução informativa, a reinvenção e construção personalizada do conhecimento. E nisso o prazer representa uma dimensão-chave. Reencantar a educação significa colocar a ênfase numa visão da ação educativa como ensejamento e produção de experiências de aprendizagem (ASSMANN, 2007, p. 29). Ao se propor trabalhar com a transdisciplinaridade, aplicando-a aos objetos digitais de ensino-aprendizagem, desejamos fazer com que nossas aulas se configurem em novos mapas, não mais marcados por territórios fragmentados, mas “tentando ultrapassar fronteiras, vislumbrando novos territórios de integração entre os saberes” (GALLO, 2008, p. 21). “Há um ganho de conhecimento, quando consigo unir em vez de separar” (LEFFA, 2006, p. 23). Corroborando com essa ideia, Nicolescu (2001) complementa: 72 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A educação transdisciplinar lança uma luz nova sobre uma necessidade que se faz sentir cada vez mais intensamente em nossos dias: a necessidade de uma educação permanente. Com efeito a educação transdisciplinar, por sua própria natureza, deve efetuar-se não apenas nas instituições de ensino, da escola à Universidade, mas também ao longo de toda a vida e em todos os lugares em que vivemos (NICOLESCU, 2001, p. 9). Esse novo olhar voltado ao ensino traz um grande desafio, os professores devem valorizar o conhecimento em sentido amplo, presente em todas as disciplinas escolares. Com esse viés, ensinar, sem trabalhar a relação com o todo, perde sentido, uma vez que a transdisciplinaridade maximiza a aprendizagem ao considerar as dimensões mentais, emocionais e corporais, tecendo relações tanto horizontais como verticais do conhecimento. Ela cria situações de maior envolvimento dos alunos na construção de sentidos para si. Em virtude da formação de tipo disciplinar, os professores que enfrentam o desafio da transdisciplinaridade estão sujeitos a ambigüidades e contradições que vão sendo corrigidas e adequadas na medida do aprofundamento conceitual e, principalmente, da autocrítica entre os pares (SANTOS, 2008, p. 76). Seguindo o pensamento da teoria pedagógica proposta por Nicolescu (2001), consideramos que a transdisciplinaridade expressa e se harmoniza com as configurações do avanço do conhecimento e da sociedade em tempos de cultura da convergência, superando o modo de pensar, de ensinar e de aprender. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os ODEA, na cultura atual, devem ser entendidos como recursos para aumentar a qualidade do ensino, contribuindo para o desenvolvimento da aprendizagem que faça sentido ao estudante. Sob esse aspecto, o desenvolvimento de ODEA devem oferecer suporte a processos educacionais. E para tanto devem ser construídos de modo coerente e articulado, de modo que estejam comprometido com a construção de novos conhecimentos, superando a mera transposição de conteúdos. 73 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Cumprindo a sua função, de ensinar e aprender de forma mútua torna-se necessário que se trabalhe e elabore objetos sob o aspecto transdisciplinar, transversal e hipertextual de forma conjunta. Entendemos que reflexões críticas sobre essa prática de elaboração de ODEAS, podem contribuir para a melhoria do repertório de conhecimento. REFERÊNCIAS ASSMAN, Hugo. Reencantar a Educação: Rumo à sociedadeaprendente. 9ª ed. Petrópolis: RJ: Vozes, 2007. DAL MOLIN, B. Mapa referencial para a construção de material didático para o programa e-Tec Brasil. Florianópolis: UFSC, 2008. ______. GRANETTO, Julia Cristina; PEREIRA, Talismara. 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Depois de passar, ao longo de anos de estudo e diversos textos produzidos, por considerações pormenorizadas acerca da ficção e memórias da produção do autor alagoano, o crítico aponta como aspecto sumário da obra de Graciliano a predominância de certo tom de descrença e desesperança para com a condição humana, como se pode perceber em Ficção e confissão (2006) – que reúne e reelabora ensaios anteriores. Nesse sentido, em diálogo com as considerações de Candido, assim como de outros críticos e estudiosos que nos servirão de apoio, ao longo deste texto procuraremos articular suas discussões e relocá-las sob um enfoque que, se considerado pelos estudiosos mais proeminentes, parece não ter sido por eles explorado com especificidade. Referimo-nos à permanência de uma perspectiva de tragicidade e apatia do indivíduo moderno na obra do escritor, sendo que tal pode ser notada já em sua obra inaugural, Caetés (1933), à qual nos deteremos mais especificamente, atentando em pormenor à figura do personagem-narrador-escritor João Valério, entendido como representante característico de (anti)herói de Graciliano. PALAVRAS-CHAVE: Graciliano Ramos; Caetés; Conteúdo trágico. RESUMEN: Cuando se habla de la crítica y reflexión teórica en torno a la obra de Graciliano Ramos, difícilmente el estudioso de la literatura no tendrá en cuenta la relevancia de los escritos de Antonio Candido. Después de haber desarrollado, a lo largo de años de estudio y textos producidos, consideraciones detalladas sobre la ficción y memorias del referido autor del estado de Alagoas, Candido apunta como aspecto central de la obra de Graciliano los predominantes de la incredulidad y de la desesperanza hacia la condición humana, como se puede ver en Ficção e confissão (2006) – que recoge y reelabora ensayos anteriores. Por lo tanto, dialogando con las consideraciones de Candido, así como con otros críticos y estudiosos, a lo largo de este trabajo intentaremos coordinar tales discusiones y reubicarlas desde una perspectiva que, aunque considerada por los estudiosos más prominentes, no parece haber sido explorada por ellos con especificidad. Nos referimos al mantenimiento de una perspectiva trágica y de la apatía del individuo moderno en la obra del escritor, lo que se puede ver ya en su obra inaugural, Caetés (1933), la cual 10 Doutorando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Profa. Dra. Lourdes Kaminski Alves. Bolsista CAPES (Modalidade Doutorado-sanduíche – Universidade de Vigo/Espanha e membro do Grupo de Pesquisa Confluências da ficção, história e memória na literatura. Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória. E-mail: [email protected]. 76 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS vamos a considerar más en concreto, teniendo en detalle la figura del personajenarrador-escritor João Valério, entendido como representante característico de (anti)héroe de Graciliano. PALABRAS CLAVE: Graciliano Ramos; Caetés; Contenido trágico. Outras raças, outros costumes, quatrocentos anos. Mas no íntimo, um caeté. Um caeté descrente. (Graciliano Ramos) A crítica, de modo geral, assim como a autocrítica do escritor alagoano Graciliano ramos, à visão do leitor de hoje, tendem a centrar a apreciação de Caetés (1933) com foco maior em suas limitações, se é que o termo é apropriado, do que em suas virtudes, sendo que os estudos destacam-se por colocar em evidência o surgimento de características da obra do autor que serão mais profundamente desenvolvidas nas produções porvindouras 11 , como o tom crítico, a linguagem estudada minuciosamente e de estética minimalista, uma perspectiva pós-naturalista de forte alusão à obra de Eça de Queirós, ou mesmo a tendência do autor, já manifesta em seu romance inaugural, à escrita autobiográfica. Nas palavras de Alfredo Bosi (2006, p. 402), em Caetés, romance “muito próximo das soluções realistas tradicionais”, pode-se perceber um escritor “ocupado na formalização da própria memória”. A ambientação em cidade interiorana do nordeste brasileiro, a tensão à escrita literária do narrador-personagem, conturbada e entrecortada pela autoanálise, justificam a posição assumida por Bosi. Contudo, há de se notar que o caráter autobiográfico se justapõe ao tom realista/naturalista: Bosi mesmo destaca o trabalho “neo-realista” da descrição do meio provinciano, acusando a inevitabilidade da analogia entre Graciliano e Eça, ou mais propriamente, no que diz respeito especificamente a Caetés, segundo ele, entre Graciliano e Machado de Assis ou Lima Barreto. Ocorre, pois, que a matiz realista, a priori, pressupõe distanciamento, ou seja, uma perspectiva objetiva em relação aos fatos narrados que entra em desacordo com a prevalência do subjetivo em uma narrativa marcada pela autobiografia. Poder-se-ia dizer, assim, que as explanações “Um exercício de técnica literária mediante o qual pôde aparelhar-se para os grandes livros posteriores” (CANDIDO, 2006, p. 18). 11 77 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS de Alfredo Bosi abarcariam uma aparente contradição. Todavia, acreditamos que são, em verdade, acusadoras da estrutura narrativa da obra, montada, paradoxalmente, num jogo de revelação objetiva-realista de impressões subjetivasintimistas de João Valério. Passagem exemplar que nos mostra tal dinâmica é a do jogo de poker de que Valério participa, conturbado depois de conversa com o Chefe Adrião, que recebera carta anônima – creditada a Neves – denunciando o caso do empregado com Luísa, esposa de Adrião: Evaristo Barroca me estendeu-me a mão com aquele modo de superioridade protetora, que lhe fica bem e que abomino. – Ó Pinheiro, dá-me aqui fora uma palavra? É um instante. – Impossível, meu filho, inteiramente impossível. Ocupadíssimo. O poker é uma grande instituição. Faça uma perna. Detesto as cartas, mas naquela ocasião julguei que elas me seriam úteis. Se o Teixeira soubesse que eu tinha estado a jogar, talvez se imaginasse injusto. – O senhor entra? perguntou Evaristo baralhando. – Entrada de quanto? – Cem mil-réis, disse o tabelião entregando-me as fichas. Paguei e sentei-me: – Cinco mil-réis? – Cinco, respondeu Evaristo. O senhor joga? Pois sou forçado a reabrir. Quer cartas? – Duas. Evaristo Barroca soltou o baralho: – Fala o senhor. – Mesa. E pensei nas amarguras que me iam aparecer no dia seguinte. O que eu devia fazer era esperar o Neves à saída da sessão de espiritismo e dar-lhe uma sova. Era o que eu devia fazer, mas sou um indivíduo fraco, desgraçadamente. – Para iniciar aposto apenas uma, disse Evaristo com aquela voz sossegada, aquele olhar tranquilo que nunca mostra o que ele tem por dentro (RAMOS, 1994, p. 182-183). O episódio continua e se estende por três páginas, mas a citação do trecho inicial do jogo de poker nos é suficiente para que notemos a intercalação e interrelação entre fatos descritos e apreciações da personagem: ora o narrador parece movimentar-se se distanciando do personagem, quase que limitando-se em “colar” os diálogos e descrever as ações (“– Entrada de quanto?/ – Cem mil-réis, disse o tabelião entregando-me as fichas. [...] – Fala o senhor./ – Mesa.”), ora adentra em Valério, expelindo suas impressões, deixando transparecer seus pensamentos, 78 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS indicadores de suas emoções, conjecturas, angústias, desejos e frustrações (“Era o que eu devia fazer, mas sou um indivíduo fraco, desgraçadamente.”). Poder-se-ia afirmar mesmo que, por momentos, ao leitor dá a impressão de uma sobreposição de planos: um primeiro, quase asséptico, no qual os fatos se dão, e, dentro deste, imerso no espírito do personagem, um mais profundo, em tudo subjetivo e condicionado à agitação interna de João. O quadro que se desenha é de intensa movimentação interna (pensamentos e emoções) do personagem (“O que eu devia fazer era esperar o Neves à saída da sessão de espiritismo e dar-lhe uma sova. Era o que eu devia fazer”), que contrasta com a estagnação externa, de seu corpo: permanece imóvel, observando os fatos e reagindo a eles quase que instintivamente (“– [...] Quer cartas? – Duas.”). Nesse sentido, no que diz respeito ao personagem, não há ação exterior, há reação automática, sendo suas forças direcionadas as proposições interiores, em espécie de convulsão que busca controlar-se. O quadro se completa com a cena em que se encontra e de que faz parte o personagem – isto é, o jogo de poker e a interação entre os personagens – também em agitação. O esquema abaixo, redutoramente, ilustra essa ideia. A relação, todavia, entre os planos da psique (mente) do personagem e do cenário externo expresso nos diálogos e descrições, assim como entre a agitação interior de João Valério, sua estagnação exterior (corpo), e a movimentação da cena, é dialética, promovendo pontos de contato e entrecruzamentos. Isso fica evidente no recorte “– Para iniciar aposto apenas uma, disse Evaristo com aquela voz 79 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS sossegada, aquele olhar tranquilo que nunca mostra o que ele tem por dentro”, sendo que, no plano da descrição objetiva dos fatos penetra a avaliação subjetiva/interior do narrador-personagem, que, no caso, expressa sua concepção depreciativa com relação a Evaristo Barroca. Há de se notar, ainda, se pensarmos na estrutura e encadeamento narrativo do episódio (o jogo de poker) citado acima como um todo, que a descrição objetiva ancora o curso das proposições interiores, que caminham, a partir daí, como um fluxo de consciência, que leva, por sua vez, a tomadas de decisões com relação às ações exteriores. Em verdade, seria plausível afirmar que tal dinâmica estrutura o romance quase que em sua completude, o que talvez ocorra, de maneira mais proeminente, em Angústia (1936), romance que Graciliano escrevera três anos depois da publicação de Caetés. É bem verdade que o nível de aprofundamento psicológico experimentado em Angústia, com o também narrador-personagem Luís da Silva, está em patamar em muito distante dos momentos de angústia de João Valério, com o perdão do trocadilho. O que percebemos, de qualquer forma, é que tal estratégia narrativa parece ser característica que detém relativa permanência na obra de Graciliano Ramos, construindo uma espécie de poética própria entorno da prevalência da dinâmica entre perspectiva realista-crítica do mundo exterior e situação/condição12 angustiante, conflitiva e errante do indivíduo imerso e interprete desse mundo. É exatamente aí que percebemos, juntamente com o que alude Candido (2006), uma diferença fundamental entre Graciliano e Eça: se por um lado confirmase a aproximação do romancista brasileiro ao português no que diz respeito à minuciosidade e envolvimento para com os quadros narrados, essa relação afrouxase na medida em que há uma fundamental distinção no que tange ao filtro promovido pelo narrador, que intermedia o contato entre os fatos e a percepção dos mesmos pelo leitor. Como primeiro ponto temos de reconhecer que, tal qual é atributo reconhecido de Eça, percebe-se em Caetés uma “laboriosa ginástica intelectual em que o autor se exercita na descrição, narração, diálogo, notação de atos e costumes” (CANDIDO, 2006, p. 19), sendo que, para Candido, a atmosfera geral do livro se aproxima ainda 12 A indecisão quanto à escolha do termo mais apropriado aqui (situação/condição) é proposital: voltaremos à discussão mais à frente. 80 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS das tendências pós-naturalistas de “registro dos aspectos mais banais e intencionalmente anti-heróicos do cotidiano” (CANDIDO, 2006, p. 19). Contudo, nessa linha de intencionalidade, o que mais distancia a prosa de Graciliano do realismo eciano é o modo como o narrador, na posição de personagem e em todo momento imerso em suas resoluções e irresoluções quanto ao amor por Luísa, envolve-se subjetivamente com a matéria narrada. Por meio, “através” de sua ótica, bastante particular, é que o leitor faz o reconhecimento dos fatos. E, se por um lado assimila objetivamente o que é narrado e descrito, pode identificar, sem dificuldade, a marca subjetiva de Valério, que opera essa objetivação. Antonio Candido (2006), ao tratar desse assunto, relaciona a cena do jantar de aniversário em casa de Adrião e Luísa ao jantar que abre o segundo volume d’Os Maias, anotando a cena de agitação e certo alvoroço que se constrói em ambos os casos, e assinala que, ao contrário do escritor lusitano, o autor de Caetés nunca permaneceu [...] de ta forma embevecido pelo movimento do conjunto que chegasse a perder de vista os problemas específicos do personagem. Nas famosas corridas ou no sarau beneficente d’Os Maias, o escritor se absorve no deleite da cena coletiva, e os problemas individuais se esbatem para segundo plano. Em Graciliano, já neste livro de estréia [...], cenas e personagens formam uma constelação estreitamente dependente do narrador; a vida externa, os fatos, os outros se definem em função de seu “pensamento dominante” – o amor por Luísa (CANDIDO, 2006, p. 23). Isso significa dizer que, em Caetés, se há alterações ou mesmo sobreposições de planos, mudanças de focalização e minúcia descritiva, jamais se perde de vista o centramento na figura de João Valério e em nenhum momento temse qualquer assimilação da matéria narrada que não passe por seu crivo que, além de subjetivo no que se refere ao ponto de vista narrativo (auto e intra diegético), subjetivo também no que diz respeito à presença de um fio condutor de pensamento e disposição de espírito que é a atração quase que permanente do personagem por Luísa, ao que está atrelado um modo de ver e narrar que constrói uma atmosfera de inquietude, desesperança e angústia. Graciliano é em tudo individual, em tudo estudo do indivíduo. Mesmo que a crítica social esteja presente e ancorada em uma técnica eciana que nos aproxima 81 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS da perspectiva realista, é o âmago da subjetividade e o ângulo do indivíduo que lhe interessam. O mundo, pois, dialeticamente, é “apenas” o ponto de referência que dispõe ao sujeito o objeto de seus anseios, desejos e aflições. Nesse sentido, o mundo só se faz presente a partir desses mesmos anseios, desejos e aflições. É interessante notar, todavia, como, apesar de tais conjecturas, do centramento no indivíduo, força motriz da narração, não há, por parte do leitor, dada a técnica realista, grandes desconfianças quanto à “fidedignidade” ou “verdade” dos fatos narrados. Vejamos a interpelação de João Valério a Luísa, em saída da casa de Adrião; a citação é longa, mas voltaremos a ela por mais de um momento: Já na calçada, notei que Luísa vinha fechar o portão. Estranhei vê-la tomar ocupações de Zacarias. E, numa exaltação instantânea: – D. Luísa, que foi que lhe fiz ontem? Julguei descobrir-lhe uma expressão de terror nos olhos, desmedidamente abertos, e insisti: – Foi uma ofensa, creio. Não sei. Tenho procurado ver se adivinho. Ela tremia. – Diga, pelo amor de Deus, gemi. Diga depressa. – Não houve nada. Cerrou o portão e levou uma eternidade mexendo na chave para trancá-lo. – Vamos! tornei com desespero, o rosto colado à grade. Para que trata-me desse modo? Que lhe fiz eu? – Nada. Vá-se embora, bradou Luísa com uma voz irritada que eu nunca lhe tinha ouvido. E, metendo a mão entre os varões de ferro, empurrou-me a cabeça e fugiu. Dei alguns passos cambaleantes, a experimentar ainda no rosto o contato com os dedos dela. Passados minutos, reconheci que, em vez de me dirigir a casa, andava para o lado oposto, estava à beira do açude. Encostei-me a uma das balaustradas que limitam o paredão. Mas não era a água negra que eu via, nem os montes que se erguiam ao fundo, indistinto. Na escuridão surgiu um colo decotado, o vento agitou uns cabelos louros, uns olhos azuis brilharam. Longos dedos brancos tocaram-me o rosto. Recuei titubeando. Dois sujeitos que desciam do alto do cemitério, afinando violões, pararam curiosos a pequena distância, riram, como se eu estivesse embriagado. Presumo que estava realmente embriagado. Tartamudeava: – O fim das coisas... Esta frase foi repetida muitas vezes. Subitamente interceptei-me com amargura por me não haver apoderado daquela mão que me repelia, não a ter coberto de beijos. Sou um desastrado (RAMOS, 1994, p. 101-103). 82 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ainda que seja usada, a todo momento, a primeira pessoa, o nível de precisão do narrador e o tom imperativo com que expõe os fatos, não permite ao leitor contestar a retidão dos acontecimentos. Mesmo quando descreve suas próprias reações e impressões (“E, numa exaltação instantânea:”; “– Vamos! tornei com desespero, o rosto colado à grade.”; “Vá-se embora, bradou Luísa com uma voz irritada que eu nunca lhe tinha ouvido.”), o narrador-personagem é bastante verossímil. O grau de exatidão, entretanto, se permite a atmosfera de tensão, impede que haja uma penetração muito profunda na psicologia do personagem. A ruptura entre a descrição externa e as divagações, consequentemente, são bruscas e muito facilmente detectadas: não há dificuldade para o leitor separar o que ocorre no mundo exterior e o que se constrói dentro e se restringe à mente do personagem. É o que notamos na passagem de “Encostei-me a uma das balaustradas que limitam o paredão.” para “Mas não era a água negra que eu via, nem os montes que se erguiam ao fundo, indistinto.”, ao que se segue: “Na escuridão surgiu um colo decotado, o vento agitou uns cabelos louros, uns olhos azuis brilharam. Longos dedos brancos tocaram-me o rosto. Recuei titubeando.” Está tudo muito claro e explicado linearmente ao leitor: em que ponto termina a narração dos fatos, o que introduz o devaneio e onde se inicia a visão onírica. Algo muito distinto daquilo que Graciliano empreenderá em Angústia, romance estruturado, por meio do fluxo de consciência, a partir da intersecção complexa e de difícil distinção entre “realidade fática” e “sonho”; aspecto explorado a fundo nesse terceiro romance do autor, em meio à narração de Luís da Silva: A réstia descia a parede, viajava em cima da cama, saltava no tijolo [...]. Nos rumores que vinham de fora as pancadas dos relógios da vizinhança morriam durante o dia, [...] gritos de crianças, a voz arreliada de d. Rosália, o barulho do ratos [...]. O som de uma vitrola coava-se aos meus ouvidos, acariciava-me, e eu diminuía, embalado nos lençóis [...]. Minha mãe me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. [...] Estávamos na segunda parte, e eu subia a parede, acompanhava a réstia como uma lagartixa (RAMOS, 1983, p. 226). Em Angústia, acompanhar o fluxo de consciência do narrador-personagem é mergulhar em um mundo de sonho e realidade sem portas identificadas de entrada e saída. A transição de planos é intrincada e nunca completa: há sempre algo de 83 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS sonho no real e algo de fora que penetra e interfere no devaneio. Ainda que o romance tenha sofrido com a crítica e autocrítica por alguns “problemas” estruturais, como aponta Candido (2006) e concorda Graciliano – que chega a condenar a obra e dizer que deveria ser reescrita13 – em carta ao referido estudioso, é de se destacar o modo como a narrativa é conduzida e o trabalho de elaboração psicológica de Luís da Silva. A “relativa frouxidão psicológica” – nos termos de Candido (2006, p. 20) – do personagem-narrador (assim como dos personagens de modo geral) de Caetés, pois, é antagônica à exploração aprofundada de Angústia; e nessa linha de apreensão, não havendo uma “profunda introspecção”, o estudo interior estando sumarizado, parece ancorar-se em grande parte na situação/condição do indivíduo a abordagem de seus sentimentos e emoções. O devaneio, a ilusão, por conseguinte, ocupa o lugar da realidade no sentido de atender às necessidades frustradas do personagem. A cena do portão, em verdade, parece lembrar certo tom de romance Romântico, dada a atmosfera caracterizada pelo anseio de posse (“– Diga, pelo amor de Deus, gemi. Diga depressa”) e desilusão amorosa (– Nada. Vá-se embora, bradou Luísa”; “– O fim das coisas...”), rememoração (“Passados minutos, reconheci que, em vez de me dirigir a casa, andava para o lado oposto”) e idealização da mulher amada (“um colo decotado, o vento agitou uns cabelos louros, uns olhos azuis brilharam. Longos dedos brancos”). Junto a tal perspectiva, todavia, evidencia-se a incapacidade de agir de João Valério, em tudo estático, indolente e indeciso (“Subitamente intercepteime com amargura por me não haver apoderado daquela mão que me repelia, não a ter coberto de beijos. Sou um desastrado.”; ou então no jogo de poker: “Era o que eu devia fazer, mas sou um indivíduo fraco, desgraçadamente.”). Comprimindo seus desejos, remoendo-os em segredo, só vê válvula de escape na fantasia, seja no devaneio, seja na escritura ficcional do romance guardado, tropegamente revisitado e incompleto em sua gaveta. Tal escape, entretanto – não dá, e não pode dar – conta de reprimir e menos ainda satisfazer o desejo, desejo por Luísa, o que o leva a 13 Carta de Graciliano Ramos a Antonio Candido, datada de 12 de novembro de 1945 publicada no prefácio de Ficção e confissão (CANDIDO, 2006, p. 9-12). 84 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS esporádicos, intempestivos e mal resolvidos atos de improviso, como na cena que abre o romance: Luísa quis mostrar-me uma passagem no livro que lia. Curvou-se. Não me contive e dei-lhe dois beijos no cachaço. Ela ergueu-se indignada: – O senhor é doido? Que ousadia é essa? Eu... Não pôde continuar. Dos olhos, que deitavam faíscas, saltavam lágrimas. Desesperadamente perturbado, gaguejei tremendo: – Perdoe, minha senhora. Foi uma doidice (RAMOS, 1994, p. 7). Essa primeira cena, que, com efeito, poderia ser usada para explicar boa parte do romance – praticamente tudo está já aí –, nos revela a fraqueza e insegurança de João Valério, sujeito que após muito tempo frequentando a casa de Adrião sem tomar atitude ou resolução alguma quanto ao sentimento a Luísa, em ato de improviso, quase que em reflexo, avança sobre o objeto almejado. Não há aqui predisposição ao ato, trata-se muito mais de uma atitude do corpo, instintiva, que diante da possibilidade de satisfação do desejo, busca-a inadvertidamente. Também a interpelação no portão é fruto de reação e situação: É Luísa quem vem até João Valério, tenha ou não apenas a intenção de fechar o portão. Da parte de João, o que há, como na passagem dos “dois beijos no cachaço”, é uma “exaltação instantânea”. Assim, como afirma Antonio Candido, “João Valério nunca chega a tratar os amores com arrebatamento ou verdadeira ilusão” (CANDIDO, 2006, p. 28). Ocorre que, agindo (ou reagindo) movido pelos anseios, em momentos de exaltação repentina e a partir de situações que se engendram no âmbito social (externo), o personagem-narrador desperta a afeição de Luísa, e o caso amoroso se consolida. Contudo, tão logo se realizam os fatos pretendidos, João Valério percebe que a satisfação não os acompanha: Luísa não mostrou arrependimento, despia-se como se estivesse só, nada ocultava – e eu achava nela uma alma cândida. Não lhe caí aos pés, com uma devoção mais ou menos fingida. A felicidade perfeita a que aspirei, sem poder concebê-la, rapidamente se desfez no meu espírito. Livre dos atributos que lhe emprestei, Luísa me apareceu tal qual era, uma criatura sensível que, tendo necessidade de amar alguém, me preferira ao Dr. Liberato, ao 85 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Pinheiro, aos indivíduos moços que freqüentam a casa dela. Não senti vaidade: senti estupefação (RAMOS, 1994, p. 140). Qualquer tom romântico que possa ter sobrevindo com as idas e vinda do flerte, desilusão e conquista amorosa, se desfaz rapidamente, vindo a relação entre os amados a cair no nível mais banal. A imagem elevada que acompanhava Luísa – ou a percepção/construção da imagem de Luísa operada por João Valério narrador – até então se quebra como um vaso frágil que cai ao chão. Ao levarmos em conta a elaboração fantasiosa de João quando da noite do encontro no portão, poderíamos sem dificuldade estabelecer uma analogia entre a esposa de Adrião e algumas personagens românticas de Alencar, Ceci, por exemplo, que encanta Peri em O Guarani com sua alvura tal qual fosse mais deusa que mulher. Em posse da conquista, porém, abre-se diante de João uma Luísa em tudo humana, débil, tão fraca e mundana quanto qualquer outra mulher ou quanto ele. A candura de sua alma, nessa linha de raciocínio, não é mais a dos longos dedos brancos a tocaremlhe o rosto quase que em encantamento, é já a translucidez que deixa aparecer aquilo que o “embriagado” João não podia ver com olhos embevecidos: sua condição de mulher, indivíduo humano com frustrações, anseios e desejos como todos os demais, que nele buscava algo que, em outra possível situação, poderia ter encontrado, como bem afirma o personagem, em Liberato ou Pinheiro. O movimento não é unilateral, todavia, e talvez o que mais atinja João seja descobrir que, do mesmo modo, seu encantamento por Luísa, seu amor impossível e romântico de antes, poder-se-ia ter direcionado, também, a tantas outras moças da cidade. É o reconhecimento da finitude, perenidade e humanidade (de perspectiva naturalista) das emoções que o aflige; como o vaso que se quebra, também a concepção altiva do sentimento se esfacela, e esse é um movimento sem retorno. Tal descoberta, ainda que constitua um processo, tem por gatilho a percepção de uma mulher que se desnuda sem pudor; e aqui esse “pudor” assume dois sentidos que se completam: sem vergonha da própria imagem ser vista por outrem (“despiase como se estivesse só, nada ocultava”), e sem vergonha do ato de adultério (“não mostrou arrependimento”), em relativa tranquilidade, serenidade diante de comportamentos certamente reprováveis socialmente, moralmente. Chamamos a atenção mais uma vez para a afirmação que abre o parágrafo: asseverar que não 86 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS houve arrependimento e denunciar que tinha-se a expectativa de que tal pudesse, ou mesmo devesse ocorrer; a ficção romântica está repleta de histórias de amor em que a moral impede a união dos amantes, talvez algo delas persista no espírito de João Valério, ou talvez ele tenha se autoimposto uma ilusão de altivez do sentimento amoroso como uma dentre outras estratégias de fuga da realidade: o mundo fantasioso e perfeito só pode ser construído, alimentado e sustentado enquanto não choca-se com a realidade fática, enquanto coexiste a ela: a consagração do ato amoroso é, nesse sentido, o passo do sonho para o mundo real, e esse, para João, é insuportável. O que busca João Valério, seja às voltas com Luísa seja entorno do Bispo Sardinha deglutido pelos Caetés, como bem afirma Antonio Candido, “é refúgio para onde correr” (CANDIDO, 2006, p. 29). A desesperança característica de João, pois, que a princípio poderia parecer estar consignada à desventura amorosa, assume outro patamar, de um pessimismo mais profundo e abrangente, ligado às coisas do mundo, isto é, à realidade em seu sentido mais amplo, e nessa perspectiva, a escritura de seu romance seria a tentativa frustrada, plena de emendas e inconclusões, de construção de outro mundo. É interessante notar que João Valério, ainda que não entenda isso ainda em todos seus desdobramentos – o que ocorrerá, talvez, somente na passagem final da obra – reconhece a distinção entre o universo criado pela fantasia e o mundo que se lhe é posto: “A felicidade perfeita a que aspirei, sem poder concebê-la, rapidamente se desfez no meu espírito. Livre dos atributos que lhe emprestei, Luísa me apareceu tal qual era”. Diante desse trecho do romance, Antonio Candido afirma: Considerando que estas reflexões sucedem à primeira posse, esperada por mais de um ano, e parte dum rapaz de vinte e cinco, poder-se-ia falar em cinismo. Prefiro ver, nelas e outras (inclusive no modo que são tratados os demais personagens), a imparcialidade construída de certos pessimistas ante a natureza humana; um realismo desencantado (CANDIDO, 2006, p. 28). Tal “realismo desencantado”, a que nós poderíamos atrelar um ar de apatia e um tom decadentista, baseados numa ótica que parece sobrepor ao sentimentalismo 87 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS um racionalismo de análise 14 , desponta, em Caetés, com certa tragicidade da condição humana que expõe a percepção de um mundo combalido, e a ausência de um sentido transcendente da existência. Essa disposição, como vemos, vai além da situação em que se encontra a personagem e que determina o fluxo dos acontecimentos, abrange – e aí minha proposta de afinamento de termos e refocalização de análise – em escala maior, a condição própria do indivíduo inserido no contexto moderno, ou melhor, a percepção de Graciliano Ramos acerca dessa condição. Candido nos fala, a respeito da obra de Graciliano, “duma concepção de homem encurralado, animalizado [...] pelo ‘universo concentracionário’ que se abateu tragicamente sobre nosso tempo” (CANDIDO, 2006, p. 127, grifo nosso). E aqui abrangemos um pouco nosso leque para tratar da obra do escritor alagoano como um todo, pensando em figuras como, além de João Valério, Luís da Silva, de Angústia, e Fabiano, de Vidas Secas, para dizer que, se a situação é que encobre o indivíduo e determina sobre ele a desventura e desilusão, acima dela se engendra algo que promove o engendramento de tal situacionalidade, ou seja, a condição humana, que em última análise, é a responsável pelo direcionamento trágico da existência. Essa discussão vai ao encontro do que assevera Bornheim (1992), em O sentido e a máscara, quando diz que o cenário moderno influi na constituição da tragicidade da condição do herói; segundo ele, entram em cena aí “diversas dinâmicas”: a desigualdade, a humilhação, a violência, a privação, a injustiça; é nesse ambiente que se manifestariam os anseios, desejos e frustrações do indivíduo encurralado, por meio do conflito do homem moderno com aquilo que o cerca. Conforme Maluf e Duarte15: Na tragédia moderna pode-se observar o confronto do ser humano com a ordem estabelecida pela coletividade, envolvendo o conflito da resistência do sujeito com relação ao meio, questionando os princípios de individualidade, no intuito de dispor a vontade individual (MALUF; DUARTE, 2007, p. 405-406). Ou, como afirma Aurélio Buarque de Holanda, há o “predomínio constante da inteligência sobre a sensibilidade” (apud CANDIDO, 2006, p. 139). 15 Ainda que Maluf e Duarte, assim como Bornheim, tratem mais especificamente da arte dramática, creio ser oportuno e adequado – conforme tratarei na sequência, aplicar suas proposições à apreciação da narrativa romanesca. 14 88 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Desse modo, a dialética entre o homem e o meio social dá-se como alicerce para a configuração do trágico no cenário moderno: essa tragicidade tem por premissa o conturbado confronto entre as vontades, crenças e ideais do indivíduo e a conjuntura sócio-cultural que se institui e que o aflige pela impossibilidade de superá-la. Observamos que tal configuração do trágico na modernidade está diretamente ligada à relação do indivíduo com um meio social opressor – as vontades subjetivas do indivíduo são esmagadas pela esfera coletiva e seus desejos reprimidos pela moral e, em especial em Caetés, pela “banalidade trágica das vidas medianas” (CANDIDO, 2006, p. 140). Ora, se a visão trágica grega é entendida dentro de um contexto em que a adequação aos moldes era necessária ao fortalecimento da polis, lócus próprio da expressão da tragicidade, o contexto contemporâneo nos aponta a realidade do indivíduo moderno que deve existir segundo um sistema econômico-simbólico de formação cristã e fetichismo capitalista. Esse, ao passo que valoriza (simbolicamente) a riqueza, impossibilita a ascensão social (que nos moldes próprios do capitalismo contemporâneo é sinônimo de acúmulo de bens) e, ao passo que propõe a vida eterna, reprime os gozos da vida terrena. O paroxismo determina a configuração do trágico na modernidade, e aqui vale lembrar a influência no pensamento moderno dos ideais da Revolução Francesa, molduras disseminadas em um conturbado momento histórico de reavaliação dos princípios éticos do homem, mantidas na consciência coletiva no contexto contemporâneo, seladas pelo veio da hipocrisia: igualdade, fraternidade, justiça, liberdade, antes que conquistas da civilização moderna são máscaras que escondem as contradições sociais, acusadoras, por exemplo – no melhor estilo de Maquiavel quando diz que os valores cristãos devem ser aplicados de maneira diversa aos príncipes – de direitos distintos para aqueles que detêm o poder e para aqueles que ocupam a classe subalterna. São determinações dessa natureza que subjazem a percepção de João Valério de que a felicidade é impossível de ser alcançada mas não pode-se viver sem almejála. Assim, A trilha a partir da tensão subjacente do ‘duplo padrão de moralidade’ levou a um conflito que, na realidade, encontrou escoadouro e 89 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS resolução na tragédia. A tragédia foi a resposta de como a vida pode ser significativamente vivida, numa era de contradições insolúveis, por homens dilacerados por anseios ambivalentes e aspirações inconciliáveis (COSTA; REMÉDIOS, 1988, p. 34). Ora, se tal perspectiva aponta que a transformação da tragédia antiga para o drama trágico contemporâneo em muito se explica pela constituição do indivíduo moderno em seus conflitos para com sua condição humana num contexto social degradado, o mesmo “autor coletivo” que produz essa modificação na estrutura do trágico será responsável pela caracterização do herói romanesco. Há um diálogo constate entre o herói do drama trágico contemporâneo e o do romance consoante a perspectiva lukacsiana – justificado pelo contexto em comum que determina a estruturação das obras – e, por conseguinte, evidencia-se que a perspectiva trágica, ao menos em certa medida, atravessa a constituição do indivíduo moderno retratado, por meio do processo mimético, nos diferentes gêneros. Se, nos gêneros contemporâneos, a noção de erro como desencadeador do trágico, representado pelo ciúme divino, dá lugar à ideia de que o destino é trágico por conta de um contexto deturpado e de que o impulso desencadeador do infortúnio reside numa falha moral, é porque as contradições constituintes dos valores contemporâneos aproximam-nos da constatação de que não há como existir, em tal ambiente, o indivíduo íntegro, altivo, em seu todo sublime, tal qual era o modelo de herói da Grécia Antiga. Temos, pois, no contexto grego, o herói exemplar, arquétipo da honra que deve ser seguido pelo sujeito comum. Em contrapartida, no romance, temos o indivíduo problemático que (e aí mais outro paradoxo), se, por um lado, é reflexo do contexto deturpado – tal qual o sujeito comum –, constituindo-se como ser desvirtuado (pois que se move por valores corrompidos), por outro lado, é o indivíduo que supera o estado conformista de alienação, característico do senso comum, ao adentrar na busca de resolução de seus conflitos interiores (o que, bem entendido, não significa, necessariamente, consciência de sua condição e do que motiva seus atos). É desse modo, então, que 90 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O herói demoníaco do romance é um louco ou um criminoso, em todo o caso, [...] um personagem problemático cuja busca degradada e, por isso, inautêntica de valores autênticos, num mundo de conformismo e convenção, constitui o conteúdo desse novo gênero literário que os escritores criaram na sociedade individualista e a que chamaram ‘romance’ (GOLDMANN, 1976, p. 9, grifos presentes no original). O sofrimento trágico, pois, passa de uma esfera mais limitada de confrontos opositores centrados em antinomias rígidas e bem delimitáveis (Deus versus homem; lei antiga versus lei da polis; ethos versus logos; etc.) para o âmbito da heterogênea, complexa e multifacetada tensão entre homem e sociedade, o que, ao fim e ao cabo, determina sua condição humana. As forças opositoras, ainda que presentes e responsáveis pelo caráter trágico do conflito, mostram-se, no contexto da literatura e de outras expressões artísticas modernas, fragmentadas e constituídas de modo intrincado a inumeráveis aspectos da vida social e psicológica que, pelo signo do paradoxo e da contradição, assolam o homem moderno. Entrando já em uma seara na qual temos trabalhado em estudos anteriores e corroborando com essas proposições, julgamos oportuno trazer à tona o nome de três pensadores: Peter Szondi, Albin Leski e Arthur Schopenhauer. Szondi (2004), em Ensaio sobre o trágico, contrapõe o que seria o conceito de trágico a partir do ponto de vista de diversos pensadores; seu estudo é pormenorizado, e a impossibilidade e descrença em se chegar a uma definição de o que seja o trágico, em sentido universal, nos revela a complexidade do questionamento. Não obstante, porém, o autor busca no intricado feixe de teorizações que se entrelaçam pontos de conexão entre os postulados de um filósofo e de outro e, diante da própria inacessibilidade de uma definição, conclui que: [...] não existe o trágico, pelo menos não como essência. O trágico é um modus, um modo determinado de aniquilamento iminente ou consumado, é justamente o modo dialético. É trágico apenas o declínio que ocorre a partir da unidade dos opostos, a partir da transformação de algo em seu oposto, a partir da autodivisão. Mas também só é trágico o declínio de algo que não pode declinar, algo cujo desaparecimento deixa uma ferida incurável. Pois a contradição trágica não pode ser suprimida em uma esfera de ordem superior – seja imanente ou transcendente (SZONDI, 2004, p. 84-85). 91 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ao rejeitar, então, a delimitação do trágico como um princípio universal, como um elemento uniforme e fixo, Szondi refuta a ideia de que possa ser definido – ou mesmo de que exista – um substrato, uma essência, em tudo de místico e inefável a que tal termo possa aludir. Conceitua, pois, o trágico como um modus, retirandolhe a atribuição substantiva em detrimento de uma interpretação “adverbializada”; aproxima-se, assim, da noção de “método”, sendo esse baseado nos valores do aniquilamento e do conflito de forças opositoras. Tal tragicidade dar-se-ia, assim, a partir da presença e do engendramento dialético destes dois fatores: o declínio, inevitável – imanente ou consumado – e o confronto, irrefutável. Para João Valério, pois, poder-se-ia dizer que tal conflito parece ser consigo próprio, isto é, dar-se dentro de si, entre a esperança, alimentada pela fantasia, de um futuro de felicidade e satisfação – inicialmente direcionada a Luísa –, e seu espírito cético e racional, em tudo descrente e descontente. A fantasia, a ficção, liberta-lhe não só do mundo real, mas também e mais propriamente, da sua maneira – racional e crítica – de interpretar a realidade. Albin Lesky (2006), em A tragédia grega, elabora três conceitos de trágico que permearam as discussões teóricas acerca do tema desde a antiguidade clássica. A primeira, a qual o autor denomina como uma visão cerradamente trágica do mundo, condiz àquela ótica mais pessimista de mundo, que o vê como algo inerentemente trágico, segundo a qual o destino humano está fadado à desgraça, à desdita: “é a concepção do mundo como sede da aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente” (LESKY, 2006, p. 38). Essa perspectiva extrema de insolubilidade se expressa agudamente no pensamento Schopenhaueriano: É o antagonismo da vontade consigo mesma que entra em cena aqui [na tragédia]. [...] Esse antagonismo torna-se visível no sofrimento da humanidade que é produzido, em parte, pelo acaso e pelo erro, que aparecem como dominadores do mundo, personificados como o destino em sua perfídia [...]. Por outro lado, esse antagonismo também é produzido pela própria humanidade, pelo entrecruzamento dos esforços voluntários dos indivíduos, por meio da maldade e da tolice da maioria (SCHOPENHAUER, 1938, p. 298). 92 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Para Schopenhauer, em sua visão inerentemente trágica do mundo, as vontades humanas, ou as forças provenientes destas vontades individuais é que seriam a máquina motriz do destino humano, responsável, assim, pelo inevitável caráter trágico da nossa existência. É nessa linha de apreensão do mundo como essencialmente ruim, a partir de uma cosmovisão do trágico, que se enquadraria a visão cerradamente trágica do mundo, apresentada por Lesky. Antes de retornarmos a essa concepção, vejamos as outras duas possibilidades de abrangência do trágico: A segunda conceituação histórica apresentada pelo autor a respeito da tragicidade é aquela que se denomina como conflito trágico cerrado. Isto é, quando, a exemplo da visão de Schopenhauer, não há saída ao herói; entretanto, [...] esse conflito, por mais fechado que seja em si mesmo seu decurso, não representa a totalidade do mundo. Apresenta-se como ocorrência parcial no seio deste, sendo absolutamente concebível que aquilo que nesse caso especial precisou acabar em morte e ruína seja parte de um todo [...]. E se o homem chega a conhecer essas leis e a compreender seu jogo, isso significa que a solução se achava num plano superior àquele em que o conflito se resolve no ajuste mortal (LESKY, 2006, p. 38). Nesse sentido, bastaria a Laio entender, transcendendo a um nível superior de conhecimento, compreendendo o todo que o cerca e as forças que agem sobre ele, não deixar de matar Édipo quando assim orientado pelos deuses. Deste modo, o conflito encerrar-se-ia antes de começar. Por conseguinte, nesta perspectiva, é o conflito que encobre o indivíduo que o destrói, e não as leis universais do mundo. Esta visão de que o conflito trágico se esvaeceria com a apreensão do todo, mas que uma vez mergulhado nesta contradição, escapatória não há, está presente em uma carta de Goethe, quando este escreve a Schiller, na qual afirma que pensa em escrever uma tragédia, porém confessa que (em suas palavras) “assusto-me só em pensar em tal empresa, e estou quase convencido de que a simples tentativa poderia destruir-me” (GOETHE apud LESKY, 2006, p. 35). Ou seja, ao abandonar a visão do todo, não essencialmente trágico, e imergir no universo do conflito trágico cerrado – mesmo que neste caso, para ele, isto dar-se-ia no plano ficcional –, o autor iria ao encontro da auto-destruição. 93 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Tal alternativa, acreditamos, não é dada a João Valério; não há disposições prévias que levem o leitor a pensar que tudo poderia ter sido de outra forma, a não ser que quebre o pacto com o narrador e desconfie da matéria narrada, o que, conforme vimos, é improvável que aconteça. Todo o universo criado/interpretado pelo narrador-personagem, a partir de sua ótica pessimista, se apresenta em configurações que parecem nos indicar que são as próprias condições do mundo responsáveis pela desventura trágica. Por sua vez, a terceira conceituação apresentada por Lesky acerca do conteúdo trágico refere-se à presença de uma situação trágica: Também nela deparamos os elementos que constituem o trágico: há as forças contrárias, que se levantam para lutar umas contra as outras, há o homem, que não conhece saída da necessidade do conflito e vê sua existência abandonada à destruição. Mas essa falta de escapatória que, na situação trágica, se faz sentir com todo seu doloroso peso, não é definitiva (LESKY, 2006, p. 38). A situação trágica coaduna, pois, com a noção de que não necessariamente, para que ocorra a tragicidade, faça-se necessário um desfecho trágico. Essa afirmação é muito importante quando procuramos ressonâncias do trágico nas obras pós-helênicas e, principalmente, que não se enquadram na delimitação estrutural da tragédia ou do drama. Em verdade, no que diz respeito àquela perspectiva mais pessimista, que remete a uma visão cerradamente trágica do mundo, é difícil vê-la em concomitância, em convívio com a visão cristã que se disseminou e em muito influiu e influi na constituição dos valores, dogmas e ideais da sociedade ocidental: a crença em uma vida eterna plena de glória e satisfação entra em evidente e talvez indissolúvel confronto com uma cosmovisão que assimile o mundo segundo uma visão de iminente desgraça universal. Não há, todavia, predisposição religiosa alguma em João Valério, ao contrário, o que há é ausência de transcendência, é ceticismo. É o indivíduo, nesse sentido, por suas forças e resoluções, que deve buscar/trabalhar em prol de sua salvação. A discussão nos remete às palavras de George Steiner 94 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS (2006, p. 200) que, a partir de uma parábola16, comenta: “Deus se cansou cada vez mais da selvageria do homem. Talvez Ele não fosse mais capaz de ter controle sobre ela e não conseguisse mais reconhecer Sua imagem no espelho da criação”. Se Deus abandonou ao homem ou o homem abandonou a Deus, a questão é que não há mais, da parte do sujeito, ao que parece, o reconhecimento de que uma realidade superior possa suplantar as desventuras terrenas. Ocorre, contudo, que João Valério, como ele mesmo afirma, é um indivíduo “desgraçadamente fraco”, um “medíocre sem relevo” como diria Aurélio Buarque de Holanda 17 , alguém incapaz de buscar com ânimo a felicidade por conta própria, descrente mesmo de que possa alcançá-la e, ao fim da obra, de que ela exista: Não ser selvagem! Que sou eu senão selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora? Quatrocentos anos de civilização, outras raças, outros costumes. E eu disse que não sabia o que se passava na alma de um caeté! Provavelmente o que se passa na minha, com algumas diferenças. Um caeté de olhos azuis, que fala português ruim, sabe escrituração mercantil, lê jornais, ouve missas. É isto, um caeté. Estes desejos excessivos que aparecem bruscamente... Esta inconstância que me faz doidejar em torno de um soneto incompleto, um artigo que se esquiva, um romance que não posso acabar... O hábito de vagabundear por aqui, por ali, por acolá, da pensão para o Bacarau, da Semana para a casa de Vitorino, aos domingos pelos arrabaldes; e depois dias extensos de preguiça e tédio passados no quarto, aborrecimentos sem motivos que me atiram para a cama, embrutecido e pesado... Esta inteligência confusa, pronta a receber sem exame o que lhe impingem [...] Explosões súbitas de dor teatral, logo substituídas por indiferença completa (RAMOS, 1994, p. 218). A perspectiva naturalista/realista dá o tom da desesperança, à qual se deve em boa medida a inércia de João Valério. Contudo, “desgraçadamente fraco”, é incapaz ainda, e paradoxalmente, de deixar de continuar. 16 A parábola, que o autor teria ouvido em uma viagem de trem no sul da Polônia de um dos viajantes – após uma discussão coletiva ente os passageiros acerca das atrocidades da Segunda Guerra praticadas contra as próprias famílias –, é assim transcrita: “Numa obscura aldeia da Polônia central, havia uma pequena sinagoga. Uma noite, ao fazer suas rondas, o Rabi entrou e viu Deus sentado em um canto escuro. Ele se jogou diante dele e gritou: ‘Deus senhor, que Fazeis aqui?’ Deus não lhe respondeu nem com trovão nem com rajada de vento, mas em voz baixa: ‘Estou cansado, Rabi, estou cansado até a morte” (STEINER, 2006, p. 200). 17 (apud CANDIDO, 2006, p. 139). 95 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Descrente? Engano. Não há ninguém mais crédulo que eu. [...] Ateu! Não é verdade. Tenho passado a vida a criar deuses que morrem logo, ídolos que depois derrubo – uma estrela no céu, algumas mulheres na Terra... (RAMOS, 1994, p. 219). “Desgraçadamente fraco” o suficiente para não conseguir desistir – “Num sombrio acesso de desespero, pensei no suicídio. Tolice. Eu tenho lá coragem de suicidar-me? O que fiz foi passar uns dias quase sem comer” (RAMOS, 1994, p. 133) –, João tem a necessidade de agarrar-se a algo, mesmo que, em verdade, saiba da inexistência dos desuses criados, fadados a serem mortos, e dos ídolos, inevitavelmente derrubados. Tal constatação nos leva à identificação de certa estrutura cíclica no caminhar de João Valério, de fantasia em fantasia, de ficção em ficção, de Luísa à Teixeira, de soneto a romance, o que amplia o caráter trágico de sua condição. Afastamo-nos, nessa linha de análise, da noção de situação trágica, não somente porque não há na obra um desfecho com conciliação da tensão/conflito, mas sobretudo porque o patamar que envolve a tragicidade, no romance, está além da situação – de que nos falava Antonio Candido – que serve de gatilho para a desventura. A desdita, nesse sentido, é inerente à condição do personagem; a situação social específica constitui parte integrante e em muito significativa dessa condição, mas não se resume a ela. Ela está em João Valério do mesmo modo que está em um caeté, faz parte do ser (“Que sou eu senão selvagem, ligeiramente polido, com uma tênue camada de verniz por fora?”). Nesse sentido, o que advém de João Valério é uma visão cerradamente trágica do mundo. Recorrendo a Schopenhauer (1965), já que todos têm como imperativo imediato a existência do “eu”, “todos guardam e defendem sua vida, como se fosse um depósito precioso pelo qual têm de responder, e a vida se consome nos cuidados e tormentos que o guardá-la requer”. Como um “mecanismo interior”, “essa engrenagem infatigável é a vontade de viver” (SCHOPENHAUER, 1965, p. 244-245). Essa vontade de viver, pois, é o que impediria que fosse possível, segundo essa ótica, o apaziguamento da tensão entre o individual e o social; ademais, é essa vontade que impede que João Valério renuncie da busca, ainda que frouxa e descrente, da felicidade, de ídolo em ídolo, de fantasia em fantasia. 96 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS REFERÊNCIAS ALVES, Lourdes Kaminski. Os narradores das vidas secas: da construção do texto à constituição do sujeito. São Paulo: Scortecci, 2007. BORNHEIM, Gerd A. O sentido e a máscara. São Paulo: Perspectiva, 1992. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006. _______. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 11. ed. 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Pretende-se analisar, por meio de três contos da coletânea Amálgama (2013) e três contos da coletânea Axilas e outras histórias indecorosas (2011) as ações do personagem envolvendo a violência nas quais a sacralidade da vida é colocada em questão na construção ficcional das relações intersubjetivas representadas no contexto urbano. Para elucidar as estratégias narrativas que a enfocam, utilizamos as concepções teóricas de Giorgio Agamben sobre o homo sacer, as de René Girard, sobre “vítima expiatória” na relação entre o sagrado e a violência, e as de Michel Foucault sobre biopolítica. PALAVRAS-CHAVE: Biopolítica; Literatura e sociedade; homo sacer; vítima expiatória. INTRODUÇÃO Inserido no tema mais amplo da relação entre literatura e sociedade, este trabalho possui o intuito de compreender, a partir dos pressupostos da literatura comparada, a sacralidade da vida na construção ficcional, problematizando as relações intersubjetivas dos personagens e suas interações no contexto urbano na obra literária do autor Rubem Fonseca. É com esse viés que embasaremos esse estudo, pela importância da arte no contexto social, pois a linguagem é um meio pelo qual podemos expressar realidades e também aumentar nossa compreensão de mundo, assim “[...] é certo que não há realidade que não passe pelo crivo da linguagem, que a linguagem é capaz de criar realidades – não só narrativas como narrativas simuladas [...]” (LIMA, 2000, p.246). A confirmação dessa linguagem que é capaz de criar realidade, como citada acima nas palavras de Luiz Costa Lima, foi apontada também sobre outra perspectiva no prefácio da coletânea, 64 contos de Rubem Fonseca, por Tomás Eloy Martínez: “[...] tudo que leio de Fonseca produz em mim um assustador efeito de realidade. [...] as palavras que desfia tecem um desenho do qual o leitor jamais consegue se desvencilhar [...]” (MARTÍNEZ, 2004, p.14). Com isso, para compreender a sacralidade da vida na construção ficcional das relações intersubjetivas entre personagens e suas interações no contexto 18 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da professora Dra. Regina Coeli Machado e Silva. Endereço eletrônico: [email protected] 100 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS urbano na obra literária do autor Rubem Fonseca, e elucidar as estratégias narrativas que a enfocam, utilizamos as concepções teóricas de Giorgio Agamben (2014; 2013; 2012) sobre homo sacer, as de René Girard (2008) sobre “vítima expiatória” na relação entre o sagrado e a violência e as de Michel Foucault (2008; 2010; 2014) sobre biopolítica. É nesta perspectiva que pretendemos compreender os mecanismos que contribuem para a sacralidade da vida na sociedade brasileira contemporânea e a fundamental importância da literatura para nos auxiliar na reflexão sobre o mundo real violento que nos rodeia. METODOLOGIA Ancorado nos pressupostos da literatura comparada, estudamos as obras do autor Rubem Fonseca, mais precisamente seus contos, para explorar determinados mecanismos de âmbito social fictício que, por sua vez, também é perceptível na vida real. A pesquisa, qualitativa, é concentrada em bibliografias cujos temas têm a relação literatura e sociedade, literatura brasileira, literatura comparada, teoria literária, teoria da sociologia e antropologia. Com isso, a pesquisa, está sendo desenvolvida e organizada segundo as seguintes estratégias: a) Levantamento inicial no site de banco de teses e dissertações da CAPES, Portal de Periódicos CAPES/MEC e Portal Domínio Público, utilizando como palavra-chave “Rubem Fonseca”. b) Levantamento, leitura e seleção dos contos de Rubem Fonseca. c) Após a leitura das 14 (quatorze) coletâneas de contos de Rubem Fonseca, totalizando 216 (duzentos e dezesseis) textos do autor foram selecionados como corpus 6 contos, adotando os seguintes critérios: O primeiro critério de seleção foi o de não priorizar as coletâneas de FONSECA publicadas até a década de 80 (1963, 1965, 1969, 1975 e 1979 pelo motivo das mesmas já serem muito estudadas e debatidas no meio acadêmico, de acordo com o levantamento efetuado nos sites de banco de dados referido anteriormente. O segundo critério foi selecionar os contos de enredos desenvolvidos no espaço urbano, cenário predominante na narrativa de Rubem Fonseca, mas cuja particularidade é a presença de personagens principais cuja ação culminasse na morte ou atentado a vida do próximo. O terceiro critério foi selecionar contos sobre filiação, enfocando as relações pais e filhos, cuja narrativa termine com alguma tragédia. O quarto critério foi a seleção de contos cuja temática dá-se em torno da necessidade de justiça para restituir a profanação da vida. Por exemplo, o personagem age com violência ou pratica furto com a intenção de compensar algo que foi perdido e/ou negado anteriormente, seja material ou sentimental, com a intenção de fazer justiça. 101 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O quinto e último critério foi observar, nos contos, as possíveis repetições dessas temáticas e assim verificamos que elas estão concentradas em duas obras: Axilas e outras histórias indecorosas (FONSECA, 2011) e Amálgama (FONSECA, 2013). Desta forma foram selecionados 6 (seis) contos de duas coletâneas divididos em três eixos temáticos. Com isso, para uma análise mais profícua dos contos, demos preferência em selecionar 1 (um) conto de cada uma das duas coletâneas selecionadas para cada eixo temático, ou seja, observando os critérios anteriores, a seleção dos contos ficou da seguinte forma: Para o eixo temático relações na cidade: conto “Amar o seu semelhante”, de Axilas e outras histórias indecorosas (FONSECA, 2011) e o “O matador de corretores”, de Amálgama (FONSECA, 2013). Para o eixo temático relações pais e filhos: conto “Bebezinho lindo”, de Axilas e outras histórias indecorosas (FONSECA, 2011) e o “O filho”, de Amálgama (FONSECA, 2013). Para o eixo temático justiceiro: conto “Sapatos”, de Axilas e outras histórias indecorosas (FONSECA, 2011) e o “O ciclista”, de Amálgama (FONSECA, 2013). Com a análise dos contos pretende-se um cruzamento com todos os dados e interpretações das informações levantadas no decorrer deste estudo para alcançar os objetivos almejados. RESULTADOS E DISCUSSÃO O tema da sacralidade da vida, mais especificamente o termo “sacralidade” aqui relacionado, frequentemente associado ao nível religioso em si, não se restringe a somente esse significado. Trata-se de uma significação ampla que nos leva à valorização da vida humana tematizada nas concepções teóricas de homo sacer e “vida nua”, do filósofo italiano Giorgio Agamben (2014; 2013; 2012), da vítima expiatória, de René Girard (2008), e da biopolítica proposto por Michel Foucault (2008; 2010; 2014) e também por Agamben. Neste sentido, temos que o “sagrado é tudo o que domina o homem, e com tanta mais certeza quanto mais o homem considere-se capaz de dominá-lo” (GIRARD, 2008, p.45). Conforme o pensamento durkheimiano, a religião é mais do que a ideia de deuses e espíritos, assim, a característica fundamental da religião é o sagrado, que é algo magnífico, enquanto seu oposto, o profano, está relacionado às coisas ordinárias e mundanas. Sendo a sociedade a alma da religião, o sagrado só pode aparecer em âmbito social, está em um nível superior, sublime, e o profano é a ausência de poder, o vulgar no cotidiano. Neste sentido, o sagrado é esse mistério que vagueia ao redor dos homens. Por outro lado, s homens se defrontam a violência, impulsionada para fora deles mesmos, investindo-os de fora sem se identificar com eles próprios, vão atormentando-os e brutalizando-os como epidemia. Assim, para evitar essa violência, esse contágio de violência, o homem tem de evitar o contato com o profano. Na concepção de Agamben (2014) em toda a sociedade existem mecanismos que determinam quem são os homo sacer. Toda sociedade, mesmo a mais moderna, fixa este limite de decidir quais são os “homens sacros”, os homens cuja vida cessa 102 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS de ser politicamente relevante e passa a ser impunemente eliminada. Agamben também recorda que para os antigos gregos o termo “vida” tinha dois significados, bíos, para os indivíduos que tinham uma atividade social engajada e, zoé, para os indivíduos que não tinham vínculo social, ou seja, eram desvinculados da essência humana e eram vistos como animais perante a sociedade. Nesta perspectiva, também temos de refletir o conceito de biopoder/biopolítica, proposto por Michel Foucault e posteriormente “reestudado” por Giorgio Agamben, para compreender a política de Estado que visa disciplinar e controlar a população e manipular a vida do indivíduo. A natalidade, da morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é tudo isso que a biopolítica vai definir como campo de intervenção de seu poder. Desta maneira, a biopolítica vai implantar mecanismos que levam em conta a vida, os processos biológicos do homem-espécie e de assegurar sobre eles não uma disciplina, mas uma regulamentação de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio. Pois em Foucault (2014b) comenta sobre o surgimento, já no século XIX, do interesse dos governos em pesquisar a hereditariedade humana com o intuito de controlar e proteger a população – isso mais tarde provocaria o racismo, a busca pela raça humana mais forte geneticamente. Portanto, a análise da hereditariedade colocava as relações sexuais, as doenças venéreas, as alianças matrimoniais, as perversões em posição de “responsabilidade biológica” com relação à espécie. No entanto, com o liberalismo econômico do século XIX, segundo Foucault (2008), condicionava aos indivíduos a experimentar perpetuamente em suas vidas situações de perigo. Nessa época, há também o surgimento da literatura policial e do interesse jornalístico pelo crime. Tem-se o início de campanhas relativas à doença e à higiene. Começa a surgir toda uma preocupação em torno da sexualidade e do medo da degeneração: degeneração do indivíduo, da família, da raça, da espécie humana. Assim, por exemplo, temos a situação de um personagem no conto “O ciclista”, que depois de um tempo punindo as pessoas que considerava más, ele reflete: “Eu estou ficando maluco? Todo dia fico procurando em cima da minha bicicleta alguma pessoa má para punir. Os maus devem ser punidos, [...]” (FONSECA, 2013, p.62). O personagem ainda diz que sabe que uma pessoa é má só de olhar para o rosto e foi desta forma que abordou mais uma pessoa suspeita. Depois desta atitude, no decorrer da narrativa, o personagem ainda não se contenta, prefere continuar em busca das pessoas más para punir, entretanto, ele diz que pode parar com sua busca quando for convidado para trabalhar no globo da morte com bicicleta. Ou seja, para esse personagem, analisando-o sob a concepção teórica de Girard (2008) sobre “vítima expiatória”, concluímos que quando ele age com violência contra os malfeitores está fazendo um bem para a sociedade. CONCLUSÕES Com esse propósito de rediscutir constantemente o mundo que nos cerca, a literatura nos proporciona certa reflexão por meio dos contos de Rubem Fonseca em uma intersecção nos estudos propostos por Giorgio Agamben, René Girard e Michel 103 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Foucault, a respeito do homo sacer, vítima expiatória e biopolítica, ou seja, sobre a sacralidade da vida. Desta maneira, ao analisar as ações dos personagens das narrativas fonsequianas comparando com as concepções teóricas levantadas no decorrer deste estudo, pode-se concluir que determinado nível de violência só se poderá ter fim quando todas as vítimas expiatórias, todos os zoé forem realocados em seus devidos lugares. Porém, pela concepção contemporânea de biopolítica, o homo sacer faz-se necessário para que o Estado de exceção continue a “afiar o arame farpado” para que, assim, a “vida nua” não seja o objetivo final de nossa contemporaneidade, no qual os avanços tecnológicos da genética e a tendência para a busca de um corpo perfeito refletirá na exclusão inconsciente de grupos sociais. Portanto, podemos notar no decorrer deste estudo que a literatura continua a captar esteticamente os problemas vividos na sociedade e que, por meio dela, temos a oportunidade de debater várias situações da ficção com a realidade. Não que a literatura seja um reflexo fiel de nossa realidade, mas por meio de sua verossimilhança com a realidade podemos pensar nos mecanismos que agem em nossa sociedade e que nos provocam certas indagações. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O aberto: O homem e o animal. Trad. Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. ______. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2012. ______. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. FONSECA, Rubem. 64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Companhia das letras, 2004a. ______. A coleira do cão. 5. ed. Rio de janeiro: Agir, 2010a. (1965) ______. A confraria dos Espadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2004b. (1998) ______. Amálgama. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. ______. Axilas e outras histórias indecorosas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011a. ______. Ela e outras mulheres. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010b. (2006) ______. 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As leituras orientadas dos textos dramaturgicos de Nelson Rodrigues, ao lado dos estudos fundados nos pressupostos teóricos da Mitocrítica e da Literatura Comparada, permitiu que se verificasse como são elaborados, na obra do dramaturgo, os perfis de herói, os temas, motivos, mitos e arquétipos literários, mais especificamente nos textos Álbum de Família e Toda Nudez será Castigada. De acordo com Magaldi (2004), a linguagem da composição trágica rodriguiniana traz à tona as máscaras e os coros, mantendo um diálogo com as históricas propriedades do gênero trágico, adaptadas à cultura brasileira. Durante o desenvolvimento da pesquisa foram realizados estudos sobre o gênero trágico antigo e estudos sobre o drama moderno, com relação aos aspectos que dão visibilidade à transformação de formas, temas e motivos destes gêneros. O texto de base para esse resumo expandido foi o resumo apresentado no Encontro de Iniciação Científica realizado em Londrina em outubro deste ano. PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia, estudos comparados, releituras. INTRODUÇÃO O teatro de Nelson Rodrigues, dado sua complexidade estética na elaboração de personagens, no tratamento do gênero e no tratamento temático, tem suscitado variadas pesquisas, contudo, sua obra ainda não foi de todo esgotada, podendo motivar pesquisas qualitativas no campo da crítica cultural, historiográfica e estudos comparados na área de Letras, ao propiciar leituras intertextuais e propor práticas de estudos inter e multidisciplinares, pois os estudos comparados que envolvem Literatura e Dramaturgia convocam o leitor a transitar pelos estudos das áreas de Artes, Filosofia, História, Sociologia entre outras áreas das humanidades. Nesta perspectiva, o projeto PIBIC “Estudo da recontextualização dos mitos e arquétipos Graduanda do terceiro ano Letras da UNIOESTE – Campus de Cascavel. Orientadora da Pesquisa. Docente na categoria Associado na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Pós-Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Doutorado em Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp (2003) e Mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (1996). 19 106 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS nas peças Álbum de Família e Toda Nudez será Castigada, de Nelson Rodrigues” propiciou a reflexão sobre como são elaborados, na obra do dramaturgo, os perfis de herói, temas, motivos, mitos e arquétipos literários e aproximações com o teatro antigo, a partir de um processo criativo de releituras de gêneros, aspectos estéticos, sociais e históricos. O teatro de Nelson Rodrigues revolucionou o perfil do teatro brasileiro, que até então se limitava praticamente a peças totalmente voltadas para a encenação, sendo estas dotadas de muitas rubricas, no entanto, pobres quanto à literariedade do texto. As peças rodriguinianas deram ao teatro um novo caráter literário, sendo que a temática ancorada na dimensão do humano encontrada em suas obras, assim como nas tragédias gregas, coloca o teatro nacional no mesmo patamar das grandes obras da literatura universal. Observa-se nas peças Álbum de Família e Toda Nudez será Castigada, um completo intrincado de redes mitológicas, relidas à luz de um novo contexto histórico e de uma nova espacialidade, ou seja, os temas de base mitológica e de conotação trágica são adaptados ao contexto do teatro moderno brasileiro. Flávio Aguiar (2012) observa que Nelson Rodrigues estava consciente de que levaria seu público a considerar uma região do espírito onde se movem arquétipos ancestrais, que na contemporaneidade estão imbricados com aspectos de outra temporalidade. O mergulho poético do autor traz à tona, perturbadoramente, temas muitas vezes adormecidos no inconsciente. Nelson Rodrigues chega ao universo profundo do leitor/plateia/, convocando para a consciência dos mitos ancestrais, por meio da linguagem, das paixões desencadeadas e de outros estímulos, mesmo que a civilização, por conveniência, atenue na indiferença o comportamento dos indivíduos. A reflexão sobre o drama moderno, nos aspectos que demonstram uma transformação de formas, temas e motivos se deu a partir do estudo dos elementos estruturantes da narrativa dramatúrgica, ao lado de estudos sobre o gênero trágico antigo com base em A. Lesky (2001), Jean-Pierre Vernant (2008), Peter Szondi (2001,2004) entre outros. METODOLOGIA A pesquisa é de cunho bibliográfico com base nos pressupostos teóricos da Literatura Comparada e da Mitocrítica e foi desenvolvida, primeiramente, a partir de estudos reflexivos sobre as teorias do trágico antigo e do drama moderno, procurando observar os aspectos estruturantes que aproximam e ou distanciam o teatro clássico do drama moderno, quanto aos aspectos formais e temáticos. RESULTADOS E DISCUSSÃO Álbum de Família é a peça que inaugura o denominado “teatro do desagradável” de Nelson Rodrigues, segundo Sábato Magaldi (2004). Trata-se de um texto carregado de simbolismo mítico, que de acordo com o crítico, apesar de se situar em um tempo bem definido, assume caráter de atemporalidade, podendo, a história ocorrer em qualquer tempo ou lugar, cuja temática aponta para uma leitura sobre o alvorecer do século que metaforicamente evoca o início da vida Antes de analisar as peças definidas no corpus do projeto, produziu-se um estudo sobre a peça Anjo Negro, tendo em vista a aproximação desta peça com os temas e arquétipos presentes em Álbum de Família. A partir de estudo e leitura crítica da 107 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS peça Anjo Negro, buscou-se examinar as releituras dos mitos e arquétipos, verificando-se os sentidos que adquirem por intermédio da sua recontextualização nas peças Álbum de Família e Toda Nudez será Castigada. O texto dramatúrgico Anjo Negro apresenta temas já estudados em Álbum de Família, tais como o ódio entre mãe e filha e o incesto, ou seja, relações de tensão trágica, aspectos que auxiliaram na compreensão do corpus da pesquisa. As personagens de Álbum de Família e Toda Nudez será Castigada debatemse numa luta vã contra um processo de degenerescência das instituições humanas, sobretudo da família, elas vivem no palco uma luta contra o destino. Um aspecto que exemplifica a influência do teatro grego antigo são os ciclos de ódio e de morte presentes nas peças estudadas, em que as personagens estão marcadas por maldições e elementos trágicos, no qual o homem é levado a seu destino de qualquer forma e sofre a queda pela má fortuna justamente quando acredita estar alcançando a salvação, conforme A. Lesky (2001). Um elemento de ordem formal, característico do trágico, explorado por Nelson Rodrigues em suas peças é o coro. Na peça Anjo Negro, o coro é composto por senhoras pretas e descalças e tem por função enunciar um ponto de vista de fora da tragédia, para prestar informações à trama e, contrastando com a impetuosidade dos protagonistas, provocar um relaxamento em face da ação principal. CONCLUSÃO Em Toda Nudez será Castigada e Álbum de Família foram estudados elementos temáticos e aspectos estruturantes do drama trágico rodriguiano, sobretudo aspectos da linguagem relativa aos elementos do trágico, dos mitos e arquétipos. Em suas peças, o dramaturgo transporta para o palco um mundo doentio, beirando à esquizofrenia, um mundo de agressões, de pecados ocultos, de paixões, de amores incestuosos. A releitura de mitos e arquétipos de textos antigos ou das chamadas “grande narrativas”, ou ainda “narrativas fundadoras” reelaboradas no teatro de Nelson Rodrigues demonstra um processo criativo consciente que leva seu público a considerar um conjunto de narrativas onde se movem arquétipos ancestrais, presentes nas produções literárias e artísticas do mundo moderno. REFERÊNCIAS AGUIAR, Flávio. Anjo Negro: drama em três atos: peça mítica. [notas e roteiro de leitura de Flávio Aguiar]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. LESKY, Albin. A tragédia Grega. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2001. MAGALDI, Sábato. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004. RODRIGUES, Nelson. Teatro completo. (Org.) Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. 108 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno. Tradução Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. _____. Ensaio sobre o Trágico. Tradução Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia Antiga. Tradução Anna Lia Prado et. al. São Paulo: Perspectiva, 2008. 109 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS “NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA POROSA”: UM ESTUDO SOBRE O ROMANCE METAFICCIONAL DO INÍCIO DO SÉCULO XXI Alessandra Cristina Valério1 RESUMO Na primeira década do século XXI, multiplicaram-se as ficções de tendência autorreferente que tematizam a si mesmas, de diversos modos, no próprio âmbito textual. São narrativas que desnudam seus próprios artifícios literários, por meio de exercícios metalinguísticos e autorreflexivos, abrangendo desde a incorporação do personagem escritor, as tensões constitutivas do campo literário, até a representação do processo de escrita. Trata-se da literatura metaficcional, termo este surgido no cenário norte-americano na década de 70 e que designa um tipo de produção literária autoconsciente e que toma seu próprio universo como tema da tessitura narrativa (GASS, 1970, WRAUGH, 1985, HUCTHEON, 1985). Embora o conceito tenha adquirido notoriedade no contexto da contemporaneidade, os indícios da prática metaliterária remontam a Cervantes e Sterne, no início da idade moderna, e relacionam-se com a trajetória de afirmação e legitimação do gênero romanesco (COSTA LIMA, 1995). Em face disso, este estudo toma a metaficção como um meio privilegiado de apreensão da polifonia dos discursos sobre o fazer literário que podem identificar determinados impulsos, inclinações e vontades, concordâncias e descontinuidades que compõem o conjunto de práticas de uma época ou de um grupo. Um recurso de ampla complexidade que permite apreender o grau de aderência ou disjunção entre o que se diz sobre a literatura e o que, efetivamente, realiza-se como obra, ou seja, a assimilação ou rejeição a certas convenções e normas que regem as opções estéticas do início do século XXI. PALAVRAS-CHAVE: Literatura autoafirmação do romance. Brasileira Contemporânea; Metaficção; INTRODUÇÃO À capacidade de uma linguagem debruçar-se sobre si mesma, desvelar-se e sinalizar a sua própria condição de existência, atribui-se o nome de metalinguagem. De acordo com o Dicionário de termos literários, o prefixo grego meta expressa as ideias de comunidade ou participação, mistura ou intermediação e sucessão, transformação, transposição, transcendência, movimento. Nesse sentido, metalinguagem descreve a capacidade da língua pensar-se por intermédio de si, atuando como mediação, no instante mesmo em que se realiza enquanto ato. 1 Pesquisadora CAPES/CNPQ. Doutoranda do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras. Linha de pesquisa: Estudos Literários e Interfaces sociais da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Unioeste. Orientadora: Dra. Regina Coeli Machado e Silva. Endereço eletrônico: [email protected] 110 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Tal especificidade do uso da língua tornou-se interesse do formalista russo Roman Jakobson, em seus estudos acerca do funcionamento linguístico e dos aspectos da comunicação verbal. Ao considerar as funções predominantes da linguagem de acordo com os diversos fatores que constituem o processo comunicativo (remetente, destinatário, contexto, mensagem, contato e código), Jakobson (1974), descreve a função metalinguística, essencialmente, como linguagem que fala da linguagem, discurso que focaliza o código lexical do idioma, reenviando o mesmo código utilizado à língua e a seus elementos constitutivos. Por meio da extensão do conceito, obtêm-se, de forma análoga, os termos metapoesia, metanarrativa, metaliteratura e metaficção. Interessa a esta pesquisa, sobretudo, esses desdobramentos do exercício metalinguístico que são deslocados para o espaço da criação literária e os problemas por ele proposto. Principalmente, no que tange a apropriação desse gesto pela escrita ficcional em prosa, ou seja, que a princípio, nomearemos como metaficção. Não é raro que poesia e prosa compartilhem alguns pressupostos, especialmente, os que se relacionam à sondagem de sua própria constituição, no entanto, é na prosa que parece haver uma crescente inclinação pelo uso do recurso literário autoexploratório. Demonstrando, ao longo do tempo, uma impressionante capacidade de potencializar a criatividade do artifício metalinguístico, multiplicandoo em inúmeros modos de operar a palavra e modelar a ficção. Mas como distinguir o dispositivo metaficcional no corpo da ficção? O que define propriamente a metaficção? Segundo Linda Hutcheon (1984), a metaficção é uma problematização polivalente da perspectiva crítica, reflexiva, analítica ou lúdica daquilo que é narrado, ou “um fenômeno estético que duplica-se por dentro, falando de si mesmo ou contendo a si mesmo” (BERNARDO, 2010, p.09). De alguma forma, toda obra expõe, mesmo que opacamente, as condições de sua fatura. Seja de modo metafórico ou como visão de mundo, é possível obter alguma visibilidade dos elementos mais imediatos que circundam o contexto de produção textual. Contudo, há certos tipos de ficção em que a descontinuidade no plano da diegese promove uma espécie de atenuamento do efeito mimético mais imediato, indicando que aquilo que se lê não constitui um universo paralelo, mas uma construção do autor. Essa descontinuidade diegética, como afirma Hutcheon (1984), pode se instaurar de maneiras distintas e com finalidades díspares que variam seguindo critérios estéticos e/ou políticos de autores ou épocas. O texto pode se mostrar autoconsciente de seus artifícios narrativos de modo mais explícito através da inserção de elementos relacionados à instância da criação como: personagensescritores, homônimos ou não, o personagem-autor canônico, personagens leitores, editores ou críticos, no nível textual por meio da introdução do comentário reflexivo sobre a própria escrita, sobre outras obras ou ainda a crítica exercida de modo metafórico. Contudo, o artifício metaficcional também pode 111 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ocorrer de forma mais implícita e alusiva, por exemplo, através da paródia, da reescritura, do tradicional mise en abyme. Embora não constitua nenhuma novidade, uma vez que os indícios dessa estratégia já são perceptíveis em obras o século XVIII (Dom Quixote, A vida e as opiniões do cavaleiro Tristam Shandy), o fascínio pela metaficção enquanto técnica de construção narrativa é facilmente detectável pela sua presença abundante na produção literária e artística do presente. Há múltiplas exposições de arte que exploram a trajetória da criação, como as obras da brasileira Leda Catunda, que insere na própria instalação os diários, manuscritos, esboços, projetos, na tentativa de restaurar os estados cognitivos do processo criativo do artefato. As películas de Woody Allen como Deus Ex Machina, A Rosa Púrpura do Cairo são exemplos de como o modus operandi da metaficção pode ser produtivo e instigante como tema e como forma do produto artístico. Na literatura recente, destacam-se, nos usos do dispositivo metaficcional, a prosa do americano Paul Auster, do espanhol Enrique Villa-Matas, do português Gonçalo M. Tavares, do francês Michel Houellebecq, do sul-africano Vladislavic. Também pode ser considerada característica inconfundível de Roberto Bolaño e Julio Cortázar, cujas obras se filiam aos desdobramentos da tradição aberta por Borges, autor que se consagrou pela multiplicação infinita dos modos de realizar o exercício metaliterário. Na literatura brasileira, o recurso também foi bastante utilizado na prosa dos anos 80 e 90, por autores como Sérgio Sant’anna, Rubem Fonseca, Bernardo Carvalho, João Gilberto Noll, Cristóvão Tezza, Silviano Santiago. Diante disso, toma-se aqui o gesto narrativo autorreflexivo como um meio privilegiado de apreensão da polifonia dos discursos sobre o fazer literário que podem identificar determinados impulsos, inclinações e vontades, concordâncias e descontinuidades que compõem o conjunto de práticas de uma época ou de um grupo. Um recurso de ampla complexidade que permite apreender o grau de aderência ou disjunção entre o que se diz sobre a literatura e o que, efetivamente, realiza-se como obra, ou seja, a assimilação ou rejeição a certas convenções e normas que regem as opções estéticas. Assim, seria imprudente identificar apenas simetrias entre os usos metaficcionais propostos pelas obras literárias contemporâneas e o gesto realizado por Cervantes em D. Quixote no século XVI, ou por Borges na metade do século XX, quando os objetivos, a convenções convocadas para diálogo, os embates ideológicos são completamente distintos. Aliás, foi o próprio Borges que em Pierre Menard, autor de D. Quixote, conseguiu extrair do idêntico aquele diferencial que marca a inserção da obra em seu contexto histórico. Deixando claro que o discurso quixotesco sobre as letras e as armas, nos arranjos de um autor do início do século XX, é muito diferente da leitura que se faz desse mesmo discurso no romance de Cervantes do século XVI. A repetição de Borges convoca a différance (DERRIDA, 1973), ou seja, uma repetição que não produz a mesmidade ou a semelhança, mas a diferença, a dissemelhança. É por 112 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS essa chave que se busca dimensionar as implicações da metaficcção no contexto presente. Em virtude disso, é necessário indagar: Com quais elementos do universo literário cada obra metaficcional se propõe a dialogar? Quais seriam as tensões e os dilemas que as constituem e que são projetados por elas (seja no nível da textualidade ou no âmbito contextual)? Como se posicionam em relação aos conflitos que narram e quais soluções são propostas? No caso das reescrituras da tradição: O que poderia justificar a opção por determinado autor do cânone? Que aspectos da tradição são convocados para reflexão e quais são mantidos à sombra? METODOLOGIA A metodologia desta pesquisa está epistemologicamente ancorada no diálogo entre: os postulados da Antropologia da Arte, principalmente, na concepção de arte e literatura como campos distintos do saber humanos, capazes de fornecer dispositivos cognitivos singulares para a compreensão da realidade (GEERTZ, 1989); nas contribuições dos Estudos Literários de viés pósestruturalistas, no tocante ao descentramento do olhar, ao questionamento acerca da possibilidade representativa da arte e da literatura, ao reconhecimento da produção literária não legitimada das margens e minorias em contraste com a produção canônica, à concepção de heterogeneidade como fundadora das “culturas” no plural (EAGLETON, 2005, FOUCAULT, 2006). Quanto ao procedimento básico de apreensão dos dados (ANDRADE, 2004), trata-se de uma pesquisa bibliográfica, pois se baseia em leituras de fontes primárias e secundárias, no fichamento das informações centrais, na catalogação por meio de palavras-chave, para posterior contraste e interpretação das informações. A metodologia da pesquisa foi organizada nas seguintes etapas: 1) Formação do corpus literário. Os critérios utilizados para selecionar as obras que comporão o quadro da pesquisa são: a) As datas de produção e publicação, sendo eleitas obras publicadas entre os anos de 2005 e 2010. O objetivo maior é contribuir com estudo inédito de obras bastante recentes. b) Quanto ao conteúdo, deverão apresentar de algum modo como temas: as discussões acerca do campo literário, status do autor, reflexões sobre os processos da escrita e da criação literária. 2) Levantamento da divulgação dessas obras nos meios midiáticos e culturais, resenhas publicadas, notas em jornais e revistas especializados ou não, entrevistas, e principalmente, indicações aos prêmios literários. 3) Coleta de informações como: a formação profissional desses escritores, a existência ou não de alguma relação com o meio acadêmico ou midiático, cor, sexo, idade. 113 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS 4) Leitura comparada das obras para averiguar semelhanças e diferenças no trato dos mesmos temas. Apontar as singularidades oriundas das particularidades estéticas. 5) Aprofundamento nas leituras acerca dos estudos literários e averiguação dos pontos de contato com os temas das obras selecionadas, ou seja, se possível verificar até que ponto as obras absorveram parte das teorias contemporâneas e como as devolvem. 6) Estudo aprofundado do campo literário brasileiro e suas linhas de força, jogos de poder com o objetivo de mensurar se essas tensões tem sido responsáveis pelas constantes referências ao campo que aparecem nas obras. 7) Cruzamento de todos os dados e interpretação das informações, avaliação dos resultados e mudança de método caso não se chegue ao objetivo almejado. 8) Redação do texto. Revisão dos pontos principais. DISCUSSÃO E RESULTADOS O corpus selecionado até o momento da formulação deste texto abrange os seguintes romances: Um beijo de Colombina (2005) e Rakushisha (2008) de Adriana Lisboa, Procura do Romance (2010) de Julián Fuks, Cordilheira (2008) de Daniel Galera e Vendedora de Fósforos (2010) de Adriana Lunardi. As análises, empreendidas até aqui, permitiram compreender as diferenças principais entre a metaficção presente na literatura brasileira dos anos 80 e o seu desdobramento na primeira década do século XXI. A inserção na trama do personagem-autor, homônimo ou não, a dramatização de seus conflitos com o público leitor, com a crítica e principalmente com os editores constituiu uma das formas mais exploradas da metaficção nos anos 80. Barbieri (2003) aponta o uso dos desdobramentos metalinguísticos juntamente com o intercâmbio de signos de outros sistemas semióticos (intermidialidade) como os traços mais significativos da ficção das duas últimas décadas do século XX. Essa peculiaridade, segundo a autora, está relacionada à expansão do mercado editorial brasileiro e aos dilemas vividos pelo escritor, defrontado com uma nova realidade: a de mercado. A ampliação mercadológica que trouxe consigo a possibilidade da profissionalização e da sobrevivência pela própria pena, também inseriu o autor numa lógica de consumo e na disputa por espaço com os produtos midiáticos (bestsellers, quadrinhos). Cada vez mais acuados pelo poder de alcance dos artigos da cultura de massa (cinema, TV), os autores passaram a incorporar aspectos da linguagem midiática em seus textos para buscar acesso aos leitores, ao mesmo tempo em que, não-rendidos, procuravam formas de encenar o conflito no bojo da própria ficção. É a estratégia presente, por exemplo, em Bufo & Spallanzani (1985, p.170) de Rubem Fonseca: 114 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Voltei para o quarto e tentei escrever Bufo & Spallanzani. [...] “Não inventa, por favor. Você tem leitores fiéis, dê a eles o que eles querem”, dizia meu editor. A coisa mais difícil para o escritor é dar o que o leitor quer, pela razão muito simples, de que o leitor não sabe o que quer, sabe o que não quer, como todo mundo; e o que ele não quer de fato, são coisas muito novas, diferentes do que está acostumado a consumir. Essa tensão envolvendo a decisão do autor entre submeter-se ou resistir às pressões das regras, ditadas pelo capital, constituiu-se no maior impulsor das investidas metaficcionais da prosa das últimas décadas do século XX. Paralelo a isso, nesse período, também adquire visibilidade uma vertente histórica da metaficção que se propõe, a partir da leitura de documentos e arquivos do passado, operar uma reescrita dos fatos que marcaram a construção da história oficial, procurando cobrir as lacunas deixadas pela investigação institucionalizada. Diferente do romance histórico, a metaficção historiográfica, segundo Hutcheon (1981) se apropria de situações e personagens reais, problematizando suas existências e, por meio da ficcionalização, reinserindo-os numa nova rede de sentido. Pode-se tomar como exemplo as obras Em Liberdade de Silviano Santiago e Boca do Inferno de Ana Miranda Dias. Já no início do século XXI, os embates e duelos de escritores x editores, escritores x críticos, escritores x mercado estão menos convulsionados do que nas décadas anteriores. Embora, ainda muito longe de ser uma realidade tranquila, o cenário atual se mostra mais favorável à ampliação das possibilidades profissionais dos escritores e ao desenvolvimento de um campo heterogêneo, com abertura a diferentes estilos de escrita (SCHOLLHAMER, 2009). Obviamente, outras tensões e disputas por legitimação continuam a movimentar o campo literário contemporâneo, o horizonte de mudanças detectado se contempla apenas numa visão diacrônica, numa comparação com o passado mais recente. Talvez seja possível estabelecer alguma relação entre a conjuntura descrita e o fato de que, na produção literária deste século, as metanarrativas deslocaram a perspectiva dos conflitos vivenciados no campo literário para os desafios experimentados no nível da criação literária. Ainda que tais embates com a política editorial e o mercado não estejam de todo ausentes, a metaficção do presente parece adquirir outros contornos, obter novas conotações. É notável, por exemplo, a inclinação dessas ficções pela reflexão acerca dos processos de tessitura da obra, a opção por apresentar o encadeamento dos prováveis estados mentais que engendraram a escrita, a reconstituição do percurso criador, os diálogos intertextuais com a tradição e o fascínio pelos limites e segredos da escritura. O registro desses processos provoca descontinuidades nas narrativas e impõe dificuldades formais de diversas ordens que recebem soluções diferentes em cada obra. Logo, as tramas tendem a ser intersticiais, fiando-se em torno excertos ensaísticos, trechos de diários, cartas, manuscritos, rascunhos, fotos e diversos outros textos que documentam o trajeto criativo do autor, assim como também são constantes o tradicional tom reflexivo e as indagações encetadas pelo 115 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS narrador-autor ou personagem-autor. A combinação desses diferentes artifícios, normalmente, confere a essas ficções um aspecto de inacabamento, uma aparência de projeto inconcluso ou de obra em andamento, o que evoca, de certo modo, a imagem dos edifícios de arquitetura pós-moderna, inspirados em Le Corbusier, que buscavam ressaltar as formas estruturais, deixando aparente o funcionamento da edificação, em sua maioria, feita de concreto armado, aço e muito vidro. Outra face dos desdobramentos metalinguísticos, na atualidade, são os procedimentos de ficcionalização do cânone, cuja estratégia narrativa é análoga a da metaficção historiográfica, contudo sem o viés marcadamente político que caracterizou a prática iniciada nos anos 80. Nessa versão, são privilegiadas figuras autorais da tradição literária que protagonizam enredos situados entre os planos biográfico e ficcional. É comum que tal arranjo proporcione uma reinterpretação da herança canônica, buscando reavaliá-la por diferentes perspectivas e, sobretudo, enfatizando a condição intertextual de toda criação. Trata-se de um tipo de narrativa que destaca, principalmente, a condição de leitor voraz de todo escritor como é o caso dos romances de Julián Fuks e Adriana Lunardi. Essa necessidade de explicitar constantemente seus métodos criativos e de deliberar acerca das próprias decisões estéticas são pressupostos compartilhados por esse grupo de escritores que produzem literatura no presente. O modo similar pelo qual essas obras operacionalizam a metaficção e externam um discurso literário (que pode ou não coincidir com suas práticas), configurou o critério fundamental que as elegeu como integrantes do corpus de pesquisa. Somam-se a isso traços relevantes do plano extratextual como: o fato de esses autores iniciarem suas carreiras e se projetarem no cenário brasileiro durante a primeira década deste século (recorte temporal); as obras terem sido amplamente reconhecidas pelos dispositivos de legitimação do campo literário contemporâneo como prêmios e respaldo crítico (questão da aceitação de suas propostas); a ausência e escassez de estudos que abordem essas ficções e nenhum que, especialmente, detenha-se a analisá-las pelo viés metaficcional. Sobre o grupo selecionado para compor o corpus, interessa-nos, além das múltiplas funções que assume o dispositivo autorreflexivo na composição de suas obras, o modo como ele pôde estar relacionado à busca de uma ancoragem no espaço literário para esses recém-chegados. Isso porque é possível que a sondagem das próprias opções estéticas e a explicitação dos artifícios literários estejam ligadas a certa necessidade de justificar suas escolhas, obter legitimação para seus projetos autorais e se posicionar no campo. Diferentemente de escritores consagrados como Cristóvão Tezza, Sérgio Sant’anna, Bernardo Carvalho, para quem os desdobramentos metaficcionais e suas infinitas recombinações já constituem uma das marcas distintivas de suas escritas, os novos escritores parecem conscientes de que não basta fazer literatura, é preciso provar como o que foi feito pode vir a ser literatura. 116 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Por um viés contextual, o discurso metaliterário, que perpassa a ficção desses autores, pode ajudar a discernir dois movimentos importantes, interligados entre si de modo ambivalente, que marcam as tensões literárias do presente: a) as modificações no estatuto ontológico da literatura, nas suas condições de existência, a indeterminação de seus limites de abrangência, o questionamento de sua função social é o que parece solicitar um maior esforço das narrativas no sentido de procurar situar-se nesse terreno oscilante. b) as mudanças ocorridas na profissionalização do escritor, no século XXI, em especial, ao que se refere ao grupo componente do corpus. Se, nas décadas anteriores, a profissionalização consistia na definição dos termos em que se daria a relação do autor com o mercado editorial, e até que ponto este poderia condicionar aquele, a atualidade trouxe outro aspecto importante dessa relação: a formação do escritor. O primeiro aspecto referido já se constitui tema de diversos debates e polêmicas nos últimos anos no circuito literário. Trata-se do que Ludmer (2010) denominou de “literatura pós-autônomas”, que corresponde à perda da especificidade do texto literário, aquela atribuída por Kant que separava a escrita literária das atividades cotidianas, sem finalidades práticas. A condição pósautônoma equivaleria à dessacralização da literatura, à indeterminação de suas fronteiras em relação a outros campos de saber, sua ambivalência disciplinar. A literatura pós-autônoma é aquela que sai do cerco literário, onde estava encerrada a princípios literários, como os do modernismo. Ela trata de ser outra coisa, como uma investigação histórica, uma biografia, uma crônica, um testemunho. E é fundamental ver que a produção do livro se modifica. (...) Hoje a literatura não ocupa mais um lugar sagrado e pode até se confundir com a leitura de um jornal. (LUDMER,2010, p.02). Algo semelhante a que Laddaga (2006) apontou como a existência de uma outra “cultura das artes e literatura”, que corresponde à condição na qual a criação artística incide na não separação entre arte e vida comum, na indistinção entre o objeto artístico e o objeto comum. Argumento corroborado por Artur Danto (apud MAMMÍ, 2012), quando afirma que qualquer objeto pode vir a ser obra de arte, contanto que se acrescente que o que faz a obra de arte não é tanto a eleição do objeto quanto justamente esse vir a ser, o processo que leva do objeto a obra. Esse processo se dá hoje não tanto, ou apenas, na fatura do objeto quanto nas modalidades de sua exposição. Esse estado de coisas, segundo Eagleton (2005), relaciona-se ao avanço da chamada “teoria cultural”, ou seja, o momento posterior de leituras e aplicações das grandes teorias pós-estruturalistas (Roland Barthes, Michel Foucault, Jacques Derrida, Julia Kristeva, Deleuze, Jacques Lacan, Raymond Williams) que levantou uma ampla gama de questionamentos acerca da possibilidade de qualquer elemento da cultura ser definido por traços imanentes ou apresentar identidades estáveis. A teoria cultural, a partir da desconstrução derridiana, operacionalizou a descentralização dos componentes da cultura, explicitando as relações de poder 117 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS que privilegiavam determinadas posições e excluíam outras. Essa operação também atingiu a literatura. Uma vez que, ficou difícil defender critérios imanentes que garantissem o estatuto literário, ou seja, a literariedade, aquilo que distinguia o texto literário do comum, tornou-se um aspecto bastante questionável e uma ideia muito difícil de ser defendida (CULLER, 1999). A tão propalada “morte da literatura” diz respeito a essa dissolução das fronteiras da disciplina, inserindo-a no campo maior da cultura. É importante esclarecer que o objetivo, neste momento, não é posicionar-se nessa contenda. Interessa-nos, sobretudo, constatar que seja qual for a postura ideológica que se defenda, a posição que se tome nesse jogo, o que não se pode negar é a existência da demanda trazida pelos desdobramentos das leituras pósestruturalistas. As questões levantadas sobre autoria, acerca da especificidade do texto literário, de sua relação com outros produtos da cultura são, em alguma medida, incontornáveis para quem está envolvido na produção literária no contexto atual. Em especial, quando se considera que o grupo de autores em foco pertence a uma geração formada em meio a esses debates, o que se relaciona ao segundo movimento relevante, anteriormente mencionado, que caracteriza a condição profissional do autor. Diferente do cenário dos anos 80, o espaço para publicação e circulação de novas obras e autores obteve uma significativa ampliação a partir do crescimento e expansão de pequenas editoras, da multiplicação dos espaços midiáticos como redes sociais e blogs na internet, com a explosão de feiras literárias e o surgimento de diversos prêmios e concursos literários, inclusive com a instituição da polêmica lei Rouanet de 1992 (RESENDE, 2008) (SCHOLLHAMER, 2009) (AZEVEDO, 2012). Contudo, ao mesmo tempo em que o campo literário tem se mostrado mais sensível à coexistência de diferentes propostas estéticas, também se desdobram os mecanismos de legitimação e consagração de autores e obras, assim como a rigorosidade dos critérios de seleção e acesso a um segmento mais prestigiado da escrita (aquele que publica em grandes editoras, recebe respaldo da crítica e pode viver da própria pena). Obviamente, esses percursos de projeção no campo literário são variados e nem sempre previsíveis, no entanto um aspecto notável, na atualidade, é a busca pelo aprimoramento profissional do escritor, que pode ocorrer de formas distintas e abrangem desde a procura por oficinas de escrita criativa até a opção pela pósgraduação. Especialmente, na última década houve um crescimento significativo de escritores com mestrado e/ou doutorado, sobretudo, na área das Letras. Os novos profissionais chegam ao campo, muitas vezes, vindos da própria academia ou ainda a ela vinculados, o que também pode sinalizar uma ressignificação do papel da universidade no espaço literário, antes limitada à formação de leitores e professores, agora atuando de forma mais direta na preparação do escritor. Assim, é notável que há uma receptividade positiva para um profissional da escrita mais 118 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS bem preparado, consciente e informado pelos debates recentes que circundam o gesto de criação. Como esclarece Assis-Brasil, Doutor em Literatura, escritor e coordenador do doutorado em Escrita Criativa da PUC-RS: O momento estético em que vivemos já não contempla espaço para o ignorante-iluminado, aquele escritor que desconhece seus métodos de composição e não consegue pensar sobre eles; hoje o escritor é versado não apenas naquilo que se denomina de cultura geral, mas é alguém que sabe discorrer sobre suas obras. (ASSIS BRASIL, 2010). CONCLUSÕES Sendo essa a condição que descreve o lugar de fala do grupo de autores estudados. Se a configuração atual do espaço literário é sacudido pela polifonia discursiva desconstrutivista e descentralizadora que ressalta, implacavelmente, a contingência do valor literário e a porosidade de suas fronteiras, parece justificável que, os escritores, formados e informados desse debate, procurem explicitar em suas próprias obras os argumentos que inscrevem a sua produção em um possível nível literário. Quanto maior a flexibilidade das normas, a indiscernibilidade dos limites, maior a necessidade de evidenciar os percursos, os lugares de fala e as próprias escolhas. Por outro lado, quanto mais instáveis as condições de recepção do texto literário, também é maior a capacidade que a obra deve demonstrar de antecipar seus modos de inscrição nesse espaço oscilante, de indicar os itinerários possíveis de leitura. Nesse sentido, as escritas metaliterárias analisadas apresentam uma dimensão importante: um caráter performativo, atuante no sentido de que precisam mobilizar as suas próprias condições de recepção e buscar de algum modo a legitimação de seu processo criativo. AGRADECIMENTOS À CAPES por conceder o financiamento necessário para custear esta pesquisa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Maria Margarida de. Introdução à metodologia do trabalho científico: elaboração de trabalhos na pós-graduação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2004. ASSIS-BRASIL, Luiz Antonio. 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Estudam-se aspectos formais e temáticos e a produção de sentidos que o álbum A sociedade do espetáculo proporciona, tanto na construção de textos escritos, quanto nas produções que lidam com imagens e performances. O estudo analítico parte do reconhecimento de elementos específicos do gênero das composições, que são musicadas, para depois se articularem a espetáculos performáticos. A pesquisa oportunizou a realização de estudos sobre processos criativos e intertextualidade embasados em J. Kristeva (1974), Guy Debord (1997), M. Bakhtin (1993), Octavio Paz (1991), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Memória social; intertextualidade; O Teatro Mágico. INTRODUÇÃO Verifica-se nas composições do álbum A Sociedade do Espetáculo (2011), produção do grupo artístico O Teatro Mágico, um processo de elaboração dos elementos políticos e culturais que se realizam na textualidade polifônica das letras musicadas como elementos próprios do projeto ideológico e estético da companhia musical. Octávio Paz (1991) destaca que ritmo, imagem e significado apresentamse simultaneamente numa unidade indivisível na produção poética. A voz do grupo artístico ecoa da obra como vozes que evidenciam uma forma de protesto, chamando o leitor para a reflexão crítica sobre cultura e sociedade no mundo contemporâneo. METODOLOGIA 20 Graduanda no curso de Letras, Port/Inglês da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Da Linha de Pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, sob orientação da Prof. Dra. Lourdes Kaminski Alves. 122 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Trata-se de pesquisa de cunho bibliográfico de característica interpretativa, com base nos pressupostos teóricos da intertextualidade, polifonia e das relações entre arte e sociedade, partir de estudos de Bakhtin (1993), Kristeva (1974) e Antonio Candido (1973). RESULTADOS E DISCUSSÃO Segundo Guy Debord, no livro A sociedade do espetáculo (1997), a contemporaneidade é marcada pelo fenômeno da imagem. Conforme o autor nunca a tirania das imagens e a submissão ao império midiático, foram tão fortes, como o estão sendo na contemporaneidade. Trata-se de um tempo em que os “profissionais do espetáculo” exploram diferentes domínios, desde os campos da arte, à política, ao cotidiano – passando, assim a organizar um império de passividade, segundo as reflexões de Guy Debord (1997). As composições do álbum chamam a atenção do público para estes fenômenos. Nas letras observa-se uma discussão sobre questões políticas e culturais marcadas pelo tom da sátira circense. Devido aos aspectos da literalidade presentes nas letras de música do álbum, este estudo voltou-se para a reflexão sobre o texto-letra-música e sua intertextualidade com as discussões propostas por Guy Debord. A voz do grupo artístico traz vozes que evidenciam formas de protesto, permitindo a quem escute as letras musicadas, uma reflexão crítica sobre sociedade e cultura no mundo contemporâneo. Pode-se notar tal reflexão, nos trechos a seguir, nos quais os compositores abordam esse contexto social, a exemplo de referências ao fenômeno da imagem, como elemento fundador da sociedade do consumo: “É preciso ter pra ser ou não ser... eis a questão? Ter direito ao corpo e ao proceder... sem inquisição! A impostura cega, absurda, imunda... a quem convém? Essa hetero-intolerância-branca... te faz refém! Esse mundo não vale o mundo meu bem!” – Esse mundo não vale o mundo “Amanhecerá! De novo em nós! Amanhã, será? O "post" é voz que vos libertará. Descendentes tantos insurgirão. A arma, o réu, o véu que cairá. Cravos e Tulipas bombardeiam, Um jardim novo se levantará. O Jasmim urge do solo sem medo.” – Amanhã... Será? Kristeva elabora o conceito de intertextualidade, apontando para uma concepção do texto que engloba suas relações com o sujeito, o inconsciente e a ideologia, numa perspectiva semiótica, identificando sujeito e processo de significação. “Todo texto é absorção e transformação de outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, se instala a de intertextualidade, e a linguagem poética se lê, pelo menos, como dupla” (KRISTEVA, 1974, p. 64). 123 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Nessa perspectiva, as letras das músicas do álbum A Sociedade do Espetáculo são concebidas como discursos em diálogo com a contemporaneidade e com os textos que a antecedem. Para Antonio Candido (1973), somente fundindo texto e contexto social, numa interpretação dialeticamente íntegra, é possível chegar-se a um processo interpretativo satisfatório. O social, segundo Candido, é apenas um dos elementos externos, que paradoxalmente tornam-se internos ao serem incluídos numa obra, que não pode ser captado como causa ou significado, mas como elemento que desempenha determinado papel na constituição da estrutura desta obra. Para Candido, a questão social não pode ser imposta como critério único, ou preferencial, conforme o “sociologismo crítico”. É necessário levar em conta, todos os demais elementos – sociais, psicológicos e linguísticos – para que o estudo do texto seja integral e não unilateral. Assim, após a análise, o estudo deixa de ser puramente sociológico para ser crítico. Para que os estudos de uma obra literária tenham efeito, Candido destaca a absoluta predominância da análise sincrônica sobre a diacrônica. Isto é, a obra deve ser avaliada num determinado estado e momento do tempo e sua importância neste período, e não numa visão macro desde a evolução histórica da língua através do tempo até os dias atuais. Candido observa que, a literatura se constrói do entrelaçamento de vários fatores sociais, sendo fundamental a consciência da relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade. Apesar da singularidade da obra e de sua autonomia, ela decorre de certas visões de mundo, resultado coletivo da elaboração de uma classe social, segundo sua visão ideológica. A concepção da obra como organismo, permite em sua análise levar em consideração os jogos de fatores que a compõem, condicionam e motivam. Segundo Bakhtin (1993) forma e o conteúdo devem estar unidos no discurso, entendidos como fenômeno social. Verifica-se nas composições do álbum A Sociedade do Espetáculo, um processo de elaboração dos elementos políticos e culturais que se realizam na textualidade das letras como elementos próprios do projeto ideológico e estético da companhia musical, sem deixar de trabalhar o projeto artístico e poético das composições. Tal como aborda Octávio Paz “nada impede que sejam consideradas poemas as obras plásticas e musicais” (PAZ, 1982, p.32), desde que realizem em sua especificidade uma forma peculiar de comunicação. CONCLUSÕES O lócus enunciativo do grupo O Teatro Mágico situa-se à margem dos discursos estabelecidos, tendo como propósito o questionamento de padrões hegemônicos, de problemas sociopolíticos e culturais, além de manifestar-se contra o preconceito, a exclusão cultural e a massificação por meio das imagens. A proposta estética que se realiza no álbum A Sociedade do Espetáculo apresenta uma intertextualidade com a obra de Guy Debord, com relação à tirania das imagens e a subordinação ao império midiático, na contemporaneidade. A compreensão bakhtiniana do texto artístico como construção polifônica e as discussões de Antonio Candido sobre arte e sociedade estimularam a reflexão sobre as letras musicadas contempladas no álbum A Sociedade do Espetáculo, no sentido 124 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS de estudar como se dá o processo criativo e como absorve as diferentes vozes, constituindo-se contribuição importante para esta pesquisa. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Editora UNESP, 1993. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1973. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 1974. PAZ, Octavio. O Arco e a Lira. Trad. Olga Savary. 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Cabe ressaltar que a narrativa apresenta um realismo feroz, cruel, violento, de linguagem até mesmo vulgar, contundente e de baixo calão que invade o universo marginal carioca, de uma temática atravessada pelo medo, pela opressão, carente de solidariedade que se reflete no comportamento das personagens que envolvem o universo ficcional do autor Rubem Fonseca. A pesquisa incide no gênero literário conto, a partir do maniqueísmo e da complexidade apresentados pelos personagens, em especial as mulheres, que circulam no contexto das obras. O estudo enfatiza o comportamento das mulheres a partir das últimas décadas do século XX, em busca por um reconhecimento social no espaço público, privilegiado para o debate do social, representado pela voz de uma coletividade. PALAVRAS-CHAVE: literatura brasileira; papéis femininos; cultura; Rubem Fonseca. INTRODUÇÃO Os estudos literários que cercam a relação entre o pensamento coletivo e as criações literárias individuais têm sido objeto de estudo para diversos autores contemporâneos. Segundo apontamentos de Lucien Goldmann (1990), esta relação não reside numa identidade de conteúdo, mas numa coerência expressa pelos conteúdos imaginários diferentes do conteúdo real da consciência coletiva. Candido (2002, p.20) afirma que, modernamente, a sociologia tenta explicar que a compreensão da literatura depende de fatores do meio, “que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação”, produzindo nos indivíduos efeitos que modificam sua conduta e percepção do mundo. Da mesma forma, Compagnon (2010) salienta que a literatura está sempre imprensada entre a abordagem histórica e a abordagem linguística, esta tomada no sentido da arte da linguagem. A noção de cultura e, consequentemente a literatura, conforme Hollanda (2014) é forçada a repensar sua função social. Assim, estratégias de expressões artísticas decorrentes das periferias respondem aos anseios sociais de igualdade que as relações de poder impedem os indivíduos de alcançarem. 21 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob a orientação da professora Dra. Regina Coeli Machado e Silva. Endereço eletrônico: [email protected] 126 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A literatura marginal, gênero atribuído à produção literária originária de autores da periferia das grandes metrópoles nas últimas décadas do século XX, tem por objetivo propagar as ideias e a busca por um reconhecimento social na rua, espaço privilegiado para discussão e debate do social, representado pela voz de uma coletividade. A presente pesquisa está centrada em dois aspectos investigativos: o primeiro propõe-se a investigar como as relações de poder impedem os indivíduos de alcançarem os anseios sociais de igualdade, enfatizando o papel das mulheres no contexto das últimas décadas do século XX. Para isto, parte-se da concepção de que a literatura é a representação de uma consciência de sociedade que os indivíduos possuem e que nem sempre converge com o conceito de sociedade imposto por um grupo. Pretende-se fazer também uma revisão bibliográfica acerca da literatura marginal com a finalidade de evidenciar a produção literária que enfatiza a temática da periferia e dos grupos marginalizados e de como o conto ganhou progressiva aceitação nas décadas de 60 e 70. Além destas questões, este estudo indaga ainda acerca das inter-relações entre a linguagem literária, o papel da cultura e a relações sociais. O segundo aspecto da pesquisa examina como as personagens femininas se inserem no contexto de uma produção literária, em especial no conto contemporâneo, observando o comportamento a partir das concepções de cultura, das influências sociais e das mudanças frente aos modelos conceituais préestabelecidos. Pretende-se ainda abordar como os papéis sociais podem ser subvertidos a partir da tomada de consciência. Esta pesquisa tem por objetivo analisar as representações femininas nos contos reunidos de Rubem Fonseca intitulado Ela e outras Mulheres (2006), em que apresenta 27 (vinte e sete) contos com títulos de nomes de mulher em que as mesmas se fazem protagonistas, no intuito de verificar as relações sociais e de cultura que se manifestam no comportamento das protagonistas como forma de subversão aos papéis socialmente impostos. METODOLOGIA Este projeto de pesquisa se pauta na metodologia comparativa e crítica das narrativas e do comportamento das personagens femininas que circulam o universo urbano da literatura marginal vigente nas décadas finais do século XX. Toma-se por base teórica a crítica que examina as relações de poder, como Peter Berger (1998), Norbert Elias (1994); literatura marginal, Massaud Moisés (2005); das experiências do cotidiano analisadas por Giddens (1993); dos papéis femininos descritos por Teles, Soihet, Rago (2007). Serão também analisados os comportamentos apresentados pelas protagonistas das narrativas inseridas no contexto do final do século XX, em especial no corpus selecionado de Rubem Fonseca (2006). Os estudos de Linda Hutcheon (1991) e Lucien Goldmann (1990) servirão de base para as discussões em torno dos recursos estéticos presentes nas obras contemporâneas, no que se refere aos estereótipos da criação literária, em especial o herói problemático. A metodologia está assim organizada: a) Seleção do corpus literário – a obra Ela e outras mulheres, de Rubem Fonseca; 127 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS b) Discussões acerca do campo literário do autor; reflexões sobre os papéis sociais e as instituições culturais; análise dos comportamentos das personagens femininas presentes na obra a partir da subversão dos papéis femininos estereotipados pela sociedade; c) Comparação entre os estudos literários e o contexto de produção do corpus selecionado; d) Avaliação dos resultados a fim de verificar se convergem para os objetivos propostos e, em caso contrário, mudança dos métodos para obtenção dos resultados pretendidos; e) Revisão dos principais pontos e redação final. RESULTADOS E DISCUSSÃO Como resultado desta pesquisa, acreditamos que a literatura contemporânea traz diferentes perspectivas em relação ao indivíduo, os papéis que desempenha nos grupos sociais em que está inserido e nos conceitos predeterminados pela sociedade. Neste sentido, o corpus selecionado e analisado, até o momento deste, permitem compreender alguns dos aspectos sociais pretendidos como análise. Dentre os aspectos destaca-se a violência como meio de controle social e, conforme Peter Berger (1998), este controle pode variar de acordo com a finalidade e o caráter do grupo em que se insere. Isto equivale dizer que, na vida social, somos confrontados pela questão da possibilidade de criação de uma ordem social que possibilite melhor harmonização dos indivíduos entre as suas necessidades e inclinações pessoais e as exigências feitas a cada ser pela eficiência e manutenção do todo social (ELIAS, 1994). Nos contos contemporâneos, em especial os de Rubem Fonseca, observa-se na estrutura narrativa a construção de um herói que subverte os papéis até então determinados pela cultura literária. O herói romanesco, muitas vezes, é a representação de uma identidade percebida como segura se os poderes que a certificam parecem prevalecer sobre ‘eles’, os outros. A ideia de um herói problemático pode estar relacionada ao conceito de cultura e no papel histórico que esta estabelece, no sentido crítico prático e intelectual da realidade social existente (GOLDMANN, 1990). Alvo de especial atenção, os hábitos populares tornaram-se especiais e medidas foram tomadas para adequar homens e mulheres dos segmentos populares aos estados das coisas, estabelecendo valores e formas de comportamento a todas as esferas da vida. Especificamente sobre as mulheres, uma forte carga de pressões recaía-lhes sobre o comportamento pessoal e familiar desejado, de maneira a inserilas na nova ordem social. Soihet (2007) relata que, em oposição ao homem, de natureza autoritária, empreendedora e racional e uma sexualidade desenfreada, à mulher recaía a fragilidade, o recato, o predomínio da afetividade sobre a intelectualidade e a subordinação da sexualidade. Na maioria das situações, o caráter multiforme da violência sobre as mulheres era uma postura das classes dominantes muito mais de coerção do que de direção intelectual ou moral. As esferas a que se destinavam as mulheres estavam reservadas à órbita privada e, embora mulheres mais ricas fossem estimuladas a frequentarem as ruas como nos teatros, casas de chás e outros, só poderiam fazê-las se estivessem acompanhadas (SOIHET, 2007). As relações que se estabelecem entre o masculino e o feminino 128 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS nas obras literárias são representações que os indivíduos ocupam nas esferas sociais. A escrita do período dos anos de 1970 em diante promove uma linguagem crítica como um desafio à compreensão política de um espaço que pode aceitar e regular a estrutura diferencial do momento. Rubem Fonseca, ao tratar o papel feminino dentro de seus contos, desvela significados como o da identidade, valor, prestígio, status social decorrentes das transformações sociais, econômicas e políticas que atingem as personagens femininas. Nos contos de Rubem Fonseca (2006), analisados até o momento, encontramos mulheres que são vítimas e vilãs e para as quais os crimes não existem limites ou fronteiras, frutos de uma sociedade moderna em que todos transitam livremente e que tudo serve como forma de transgressão, com imagens da barbárie humana e em que, nessa sociedade de consumo, os valores são descartáveis. CONCLUSÕES As questões sobre sexualidade, identidade, situações relacionais, relações de gênero, distinções sociais são elementos que dialogam permanentemente nos contos fonsequianos. É interessante perceber que os papéis e as referências tradicionais do gênero denunciam a força de relações sociais na sociedade. A desigualdade quanto à liberdade, a responsabilidade com a vida familiar dasmulheres demonstram a força das estruturas de dominação do gênero. Diante disto, pode-se acreditar que as personagens femininas do corpus selecionado estão em constante busca de uma liberdade. Porém, com interesses em alguma vantagem, articulam assassinatos, usam o próprio corpo para conseguir do outro aquilo que desejam, cometem pedofilia sob o véu que lhes encobrem as verdadeiras identidades. REFERÊNCIAS BERGER, Peter L. (1986). Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. Trad.; Donaldson M. Garschagen. 19.ed. Petrópolis, Vozes, 1998. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: Estudos de Teoria e História Literária. 8. ed. São Paulo: T.A.Queiroz: 2002. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e senso comum. (Trad. Cleonice Paes B. 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São Paulo: Contexto, 2007, p. 401- 442. 130 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA: O HABITANTE DO ESQUECIMENTO EM FIGURA NA SOMBRA Ana Maria Klock22 RESUMO A presente pesquisa, apoiada nos pressupostos da Literatura Comparada e nas confluências entre Literatura e História, está centrada na análise do romance Figura na Sombra (2012), do escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil. Nosso intento é, partindo da compreensão das produções híbridas de história e ficção como modalidade de registro e releitura crítica do passado que possibilita a quebra ou o embate com o discurso histórico hegemônico, analisar o resgate que se faz através das narrativas ficcionais das figuras históricas que permanecem à margem ou à sombra dos registros oficiais e que, por ocuparem o lugar de coadjuvantes, caíram no esquecimento ou não foram reconhecidas pelo seu papel na história. Essa possibilidade de reler o passado materializado na obra literária graças à liberdade oferecida ao romancista gera múltiplas visões sobre a história e dá personalidade, origem e voz a essas figuras ignoradas, apresentando-nos a possibilidade de conhecer a história pelo viés do anônimo. Nesse processo de criação literária, verifica-se, além do esforço de resgate memorial do personagem, o destaque dado aos processos de transculturação que se operaram tanto na sua vivência com o continente americano e que são trazidos para dentro da obra como forma de ilustrar essa característica que se encontra na base histórica e cultural da América Latina. PALAVRAS-CHAVE: romance histórico; vestígios da memória; habitantes do esquecimento. INTRODUÇÃO A obra selecionada como corpus de análise dessa pesquisa compõe o quarto e último volume da série “Visitantes ao Sul”, da qual também fazem parte O pintor de retratos (2001), A margem imóvel do rio (2003) e Música perdida (2006), explora a história de dois renomados naturalistas do século XIX, o francês Aimé Bonpland e o alemão Alexander von Humboldt, que empreenderam uma viajem de cinco anos pela América movidos pelos interesse de conhecer e estudar as regiões equatoriais do novo continente. Como uma segunda ‘descoberta’ da América, Bondpland e Humbodlt catalogaram e coletaram cerca de 60.000 espécimes de plantas e animais, 22 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Professora Dra. Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza. Professora da área de Espanhol do curso de Licenciatura em Letras e do Programa em Pós-Graduação em Letras - Linguagem e Sociedade na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Endereço eletrônico: [email protected]. 131 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS registraram e compararam medidas e temperaturas, analisaram aspectos e acidentes geográficos, precisaram latitudes e longitudes e aperfeiçoaram mapas, feitos que contribuíram com o avanço do conhecimento científico e com a divulgação do exotismo e da diversidade natural e geográfica americana, fato que lhes garantiu reconhecimento, fama e riqueza. Contudo, enquanto Humboldt ganhou amplo destaque, consagrando-se como um grande cientista, Bonpland ficou relegado a um segundo plano, figurando apenas como um coadjuvante no discurso histórico. Apesar de a narrativa trazer as andanças dos dois naturalistas, o foco centrase na figura do médico, botânico e explorador francês, cuja história é lapidada através da escrita dos episódios históricos factuais costurados pela ficção que se encarrega de explorar o lado biográfico e desconhecido do personagem, bem como a sua relação com o continente americano, lançando à luz essa figura que ficou apagada na historiografia europeia e que passa despercebida na história americana. Como insinua o título, o olhar lançado incide sobre a figura que permaneceu à sombra, ou seja, sobre Bondpland, já que opta pela vida na América do sul, abdicando a fama e o meio científico. Na obra, temos o próprio protagonista contando a sua história, a sua versão dos acontecimentos e as razões que o levaram às escolhas que fez, ou seja, através desse discurso direto, possível graças à voz que é dada ao personagem, o leitor se depara com um relato sensível repleto de confissões e justificativas que explicam a sua opção. O romance histórico, nesse contexto de produções híbridas, mostra-se como o gênero que disponibiliza uma série de condições para que o romancista construa a sua versão crítica, multiperspectivista, polifônica e, muitas vezes, paródica e carnavalizada dos fatos registrados pela historiografia tradicional. Isso lhe permite que as lacunas da história – ou mesmo a visão unilateral dos vencedores – sejam preenchidas de acordo com a liberdade criadora que a arte literária outorga ao romancista, contribuindo, conforme sugere Aínsa (1991, p. 82), na “búsqueda de indentidad a través de la integración antropológica y cultural de lo que se considera más raigal y profundo”. No processo de reler os registros históricos, o romancista também enriquece a própria história, pois, na sua criação, ele dá voz àqueles que foram silenciados e excluídos dos registros oficiais e ainda propõe novas e inusitadas perspectivas sobre o passado. Tal processo artístico desmistifica a ideia construída pela historiografia sobre a existência de uma única “verdade” referente aos eventos passados e, ainda, demonstra que o que já foi escrito sobre esses eventos está registrado por discursos que se utilizam das formas de linguagem que buscam legitimar uma ou outra visão sobre os fatos. Na arte, ao contrário do que ocorre na história tradicional, prevalece a intenção da pluralidade, das múltiplas perspectivas e visões acerca de um evento cujas ações se recria pela linguagem. METODOLOGIA Como o presente projeto concentra-se na análise literária de uma produção híbrida entre história e ficção faz-se necessário o trabalho de revisão bibliográfica e leitura comparada. Nesse sentido, as ações da pesquisa começarão por uma leitura prévia do corpus e resenha crítica do romance. Em seguida, passará a estender a ação da pesquisa aos diferentes campos teóricos que podem dar sustentabilidade a 132 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS uma abordagem mais crítica e profunda ao tratamento do corpus. Assim, revisitaremos os principais registros sobre a trajetória do romance histórico, os escritos sobre memória, esquecimento, identidade, transculturação, entre outros aspectos teóricos dos quais nos valeremos para a compreensão do discurso que emana da produção híbrida na qual se constitui a obra selecionada como corpus desse projeto. Todo esse processo requer fichamentos e resenhas críticas que possibilitem armazenar as informações relevantes que possam apoiar nosso estudo comparado. Uma vez de posse das informações obtidas pelo processo de revisão bibliográfica, inicia-se a fase da aplicação dos conceitos revisados na análise comparativa e, consequentemente, a produção do texto crítico. RESULTADOS E DISCUSSÃO Essa pesquisa desenvolve-se no campo que parte do diálogo entre literatura e história, em específico das narrativas que circulam nesses dois espaços, como é o caso da narrativa histórica. Partindo da obra mencionada como corpus, objetivase evocar nesse trabalho a discussão sobre os personagens históricos que permaneceram esquecidos ou ignorados pelo discurso histórico, cuja contribuição perdeu-se pelo esquecimento e que agora são evocados pela literatura como forma de dar-lhes visibilidade, resgatando-os do anonimato. Devido às falhas e lacunas da história, já que “a memória é frágil e as formas de registrá-la são permeadas pela linguagem e, certamente, pela imaginação” (MILTON, 2007, p.00), a ficção, no seu espaço de leitora da história, dá personalidade e corpo ao personagem dentro da perspectiva da verossimilhança, além do direito à voz para narrar a sua versão dos fatos e eventos. Evoca-se, inevitavelmente, na retomada dessa figura a discussão a respeito da memória, já que ao tratar do resgate e problematização do passado nos deparamos com o problema do esquecimento como uma quebra entre o presente e o passado, como também, da problemática que envolve a história na seleção e exaltação de determinados personagens enquanto outros permanecem ignorados. No processo de criação literária verifica-se que para lidar com a história o escritor emprega estratégias e recursos narrativos para manipular o texto a fim de criar os efeitos de sentido almejados. Como é comum nas narrativas de extração histórica, há o interesse de desmistificar e desconstruir a história fazendo-o por meio do uso de recursos como a ironia, a intertextualidade, a paródia, etc., em distorcê-la conscientemente através de anacronismos, omissões, exageros, ressignificá-la ao empregar o pastiche, a colagem e ainda, dar voz aos silenciados através do discurso polifônico. Além do que foi posto, é perceptível na obra o trato sobre o processo de transculturação do qual Fernando Ortiz propôs em Contrapuento cubano del azúcar y del tabaco (1940) e que Ángel Rama esmiuçou em Os processos de transculturação na narrativa latino-americana (2001), já que a obra explora as mudanças e alterações que se operaram no personagem após o contato e a interação com a realidade americana, fenômeno tão representativo na América Latina. 133 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS CONSIDERAÇÕES A pesquisa ainda encontra-se em fase inicial, portanto, não é possível apresentar possíveis conclusões a serem citadas ou apresentadas nesse momento. REFERÊNCIAS AÍNSA, F. La nueva novela histórica latinoamericana. Revista Plural, Palma de Mallorca, v. 240, p. 82-85, set. 1991. ASSIS BRASIL, L. A. Figura na sombra. 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2012. BERND, Z. 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Juiz de Fora: Editora UFJF/ Niterói: EdUFF, 2005. p. 465-488. 134 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS GÊNERO E REPRESENTAÇÃO DE PERSONAGENS FEMININAS EM MARIA JOSÉ SILVEIRA E JORGE AMADO Anna Deyse Rafaela Peinhopf 23 RESUMO O presente trabalho visa transmitir os resultados da pesquisa direcionada à análise da representação das personagens femininas na autoria de Maria José Silveira e de Jorge Amado. Buscou-se considerar, também, a sociedade retratada em cada um dos romances estudados, apontando a similaridade entre a cultura que oprime as personagens do livro com a que é enfrentada pelas mulheres no Brasil e no mundo. Para estudar a autoria feminina, optou-se pela obra de perfil histórico A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas, fazendo emergir Ana de Pádua e Maria Flor. Para a análise da escrita masculina, Gabriela, cravo e canela foi a escolhida, analisando Sinhazinha Guedes Mendonça e Malvina. A pesquisa apontou a luta das quatro personagens contra o status quo e a dominação de seus corpos e mentes, tanto pela família quanto pela sociedade. Compreendeu-se que as quatro protagonistas, em alguma medida, conseguem alcançar a liberdade sobre sua vida, seu corpo e sua mente, mesmo que depois retornem a sofrer com as violências de seus parceiros. Assim, intentou-se demostrar como a literatura e a sociedade se influenciam e se modificam, sendo tanto representação como mecanismo que possibilita a reflexão e a mudança social. PALAVRAS-CHAVE: autoria feminina; gênero; sociedade patriarcal. INTRODUÇÃO A adoção da temática do feminino na construção de diferentes personagens femininas nos textos A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (2002) e Gabriela, cravo e canela (1958) ocorre pela atualidade das discussões a respeito de gênero e sociedade. Há muito que se pesquisar sobre a literatura de manifestação feminina em nosso país; notadamente se pensar que durante muitos anos os textos foram escritos por homens e quase sempre trouxeram o olhar masculino sobre todas as personagens. Tanto o romance de Jorge Amado quanto o de Maria José Silveira retrata uma grande quantidade de personagens femininas e masculinas que representam a sociedade brasileira da perspectiva da diversidade étnica e social: no caso de Gabriela, cravo e canela como um recorte do interior da Bahia nos anos de 1920, e de A Mãe da mãe de sua mãe e suas filhas como um retrato mais amplo e do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Cascavel. PIBIC/Fundação Araucária sob orientação do Professor Dr. Wagner de Souza. Endereço eletrônico: [email protected]. 23 Graduanda 135 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS diversificado em tempo e espaço, uma vez que reconta a história da colonização do Brasil sob a trama de personagens mulheres. A proposta de trabalho foi, assim, de analisar como personagens femininas são retratadas pela autoria feminina e masculina, bem como apresentar as situações conflitantes enfrentadas por essas personagens afim de estabelecer um diálogo com a sociedade atual e apontar as similaridades e divergências dos estereótipos de representação criados pelos autores. METODOLOGIA A base para a pesquisa desenvolvida foram os dois textos literários já citados, um de autoria feminina e outro de masculina, a saber, A mãe da mãe de sua mãe e sua filha e Gabriela, cravo e canela. A análise deu-se sob duas personagens de cada um dos romances, afim de destacar suas divergências e proximidades, considerando cada contexto da representação feminina. Também utilizou-se textos de teoria literária e crítica feminista, como Raquel Soihet e Naomi Wolf. Dessa forma, a obra de autoria feminina, isto é, A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas, publicado em 2002, é um romance em que as mulheres são protagonistas. Na trama, a história da colonização e do desenvolvimento do Brasil é (re)contada por meio do olhar de uma narradora sobre os atos e pensamentos das diversas personagens femininas, permitindo que o leitor, por meio da ficção-histórica, reveja a formação da nação sob a perspectiva do oprimido, isto é, veja a história “de baixo”, dando-lhe novo significado. Já o romance de autoria masculina, ou seja, Gabriela, cravo e canela foi publicado em 1958 e retrata um microcosmo social da Bahia, a saber, a histórica cidade cacaueira de Ilhéus. A trama se desenvolve a partir da busca de Nacib, um “turco” por uma nova cozinheira, após a sua antiga empregada ter abandonado seu posto para morar com o filho. Até a metade do livro, que não avança a largos passos em termos cronológicos, o leitor é levado a conhecer os costumes e ideário social dos moradores da pequena cidade em desenvolvimento. O principal discurso feminista estudado para elaborar a pesquisa foi o levantado por Naomi Wolf em O mito da beleza, no qual a autora aponta como a mulher é subjugada na sociedade atual por meio do domínio dos corpos ou da instauração de um padrão de beleza. RESULTADOS E DISCUSSÃO Analisou-se, então, quatro personagens no total, aproximando-se e comparando duas em cada momento: Ana de Pádua e Maria Flor, personagens de Silveira, foram comparadas, respectivamente, com Sinhazinha Guedes Mendes e Malvina, de Amado. 136 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ana de Pádua e Sinhazinha sofreram com a violência doméstica: a primeira apanhou do marido, enquanto a outra morreu por trair seu cônjuge. As duas personagens representam socialmente várias mulheres que sofrem com a violência doméstica no país. De acordo com a pesquisa realizada pelo DataSenado, mais de 13 milhões e 500 mil mulheres já sofreram algum tipo de agressão (19% da população feminina com 16 anos ou mais). Os dados apontam ainda que a violência doméstica e familiar contribui enormemente nas taxas de homicídio contra mulheres, tornando o Brasil o 7º país, entre outros 83, onde mais se matam mulheres. A segunda dupla analisada, Maria Flor e Malvina, expõe a fragilidade da liberdade das mulheres na atualidade, em que, mesmo conseguindo direito ao voto, ao trabalho e à educação, ainda encontra subjugo na dominação de seus corpos. Malvina precisa lutar contra a sociedade machista dos anos 1920, que impõe à mulher burguesa o papel de recatada esposa e exímia dona do lar. Já Maria Flor luta com grilhões sociais que ditam a aparência que uma mulher deve ter para ser aceita socialmente. O controle do corpo por meio das leis da aparência é, desta forma, tão eficiente quanto o domínio por meio da violência física. Segundo Naomi Wolf, estudos demonstram que em meio à grande maioria das mulheres que trabalham, têm sucesso e são atraentes existe uma subvida secreta que perturba a liberdade feminina: “[...] imersa em conceitos de beleza, ela é um escuro filão de ódio a nós mesmas, obsessões com o físico, pânico de envelhecer e pavor de perder o controle” (WOLF, 1992, p. 12). CONCLUSÕES Percebeu-se, durante a pesquisa, que tanto a sociedade representada pelas personagens dos romances quanto a que reflete as obras mantém o domínio feminino por meio de uma cultura machista e de uma atitude patriarcal, na qual as mulheres devem moldar suas ações e desejos por meio das vontades masculinas. As quatro personagens analisadas nos dois romances tentam lutar contra as opressões que lhe são impostas, seja pela sociedade, seja pela família, e conseguem algumas conquistas com seu esforço: Sinhazinha encontra um amante que a vê como mulher, e não objeto; Ana de Pádua, depois de viúva, casa com um homem que ama; Malvina foge da vida de mulher casada e busca emprego e felicidade na cidade grande; e Maria Flor aprende a se amar e se aceitar como é. O estudo, assim, não só analisou personagens que sofrem de violências físicas e psicológicas provocadas pelos seus companheiros, pais ou pela sociedade em geral, como demostrou que as mulheres reais sofrem de mazelas similares e, portanto, continuam sofrendo as consequências de uma sociedade não igualitárias entre os gêneros. AGRADECIMENTOS 137 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS À Unioeste, pela oportunidade de formação acadêmica; à Fundação Araucária, por permitir minha profissionalização na área de atuação literária; e ao professor Wagner de Souza por toda paciência, orientação, amizade e compartilhamento de experiência, conhecimento e educação. REFERÊNCIAS AMADO, J. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. DATASENADO PESQUISA. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/noti cias/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-PesquisaViolencia_Domestica _contra_a_Mulher_2013.pdf>. Acesso em: 12 jun. de 2014. SILVEIRA, Maria José. A mãe da mãe da sua mãe e suas filhas. São Paulo: Globo, 2008. SOIHET, Raquel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. [p. 362-400]. WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. 138 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS CLAUDIA ROQUETTE PINTO E SUZY DELGADO: ESTUDO COMPARADO DA LÍRICA LATINO-AMERICANA Antonio Rediver Guizzo24 RESUMO Os estudos de literatura comparada na América Latina pós-colonial são fundamentais para a compreensão das particularidades que singularizam as manifestações estéticas do continente. O espaço transcultural e transfronteiriço latino-americano é ainda fortemente marcado pela herança colonial, no entanto, há, notadamente, um crescente movimento em favor da valorização da cultura e arte regional. Nesse sentido, o continente vive um período no qual a construção simbólica da América Latina constitui-se a partir da dialética entre a dominação econômica e cultural imposta pelos países desenvolvidos e a insurgência endêmica de uma proxemia latino-americana, que comunga o desejo de valorização dos elementos locais. No campo estético, esta tensão culmina em produções que ora contorna subrepticiamente ora defronta-se ostensivamente contra a marginalização proveniente da difusão hegemônica dos discursos do primeiro mundo. Nesse contexto, analisamos as manifestações da corporeidade em duas poetas contemporâneas – Susy Delgado, de nacionalidade paraguaia e Claudia Roquette-Pinto, de nacionalidade brasileira – a fim de estabelecer pontos de convergência e divergência na lírica latino-americana. Para tal fim, orientamo-nos a partir de aportes teóricometodológicos que envolvem a pesquisa em Literatura Comparada, e a partir das considerações de Zygmunt Bauman e Michel Maffesoli sobre o corpo e a pósmodernidade. PALAVRAS-CHAVE: Claudia Roquette-Pinto; Suzy Delgado; literatura comparada; lírica contemporânea. INTRODUÇÃO O objeto da Literatura Comparada é essencialmente “o estudo das diversas literaturas nas suas relações entre si, isto é, em que medida umas estão ligadas às outras na inspiração, no conteúdo, na forma, no estilo” (NITRINI, 2010, p. 24). Nesse sentido, embora instituída como disciplina apenas no século XIX na Europa, surge de uma das mais antigas formas de investigação sobre a arte: a observação das relações, traços comuns e influências encontradas entre as produções artísticas de diferentes países ou culturas. Na América Latina, a Literatura Comparada inicia indissoluvelmente ligada aos processos colonizatórios do continente, pois a dominação colonialista na 24 Docente da UNILA 139 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS América Latina ocorreu tanto na dimensão econômica quanto na dimensão cultural, e as ideologias decorrentes exerceram grande influência na forma de se pensar em literatura no continente. Nesse sentido, Coutinho (2003) observa que as primeiras manifestações críticas sobre a literatura do continente orientaram-se através de um discurso ratificador da dependência cultural – a literatura era vista e avaliada sob a perspectiva da herança e influência europeia. Santiago, sobre esse ponto, observa que essa maneira colonizada de pensar a literatura do continente não conseguiu observar que a maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental, que “vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza [...] à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma” (SANTIAGO, 2000, p. 16). Sob a perspectiva da “contaminação”, Miguel Sanches Neto (2013) aponta a literatura comparada como uma forma de contracoloniação a posteriori – “o comparativismo é [...] o instrumento que pode corrigir distorções do nacionalismo estreito ou do internacionalismo estandardizado” (NETO, 2013, p. 62) – isto é, a superação do raciocínio centro-periferia. Desse modo, observar os fenômenos estéticos no continente é fundamental para a caracterização e valorização da literatura latino-americana. Assim, nessa pesquisa, pretende-se observar semelhanças e as diferenças que se estabelecem entre as manifestações artísticas das diferentes culturas, povos e países que compõe o cenário multifacetado da América-Latina e, no caso específico desse trabalho, analisar um pequeno excerto da obra de duas poetas latino-americanas, Susy Delgado, de nacionalidade paraguaia, e Claudia Roquette-Pinto, de nacionalidade brasileira, com a intenção de observar possíveis pontos de contato que se constituem na lírica contemporânea de nosso continente. Claudia Roquette-Pinto é poeta contemporânea, nascida no Rio de Janeiro em 1963, formada em tradução literária pela PUC-RJ, e autora de cinco livros: Os Dias Gagos (Edição da autora, RJ, 1991), Saxífraga (Editora Salamandra, RJ, 1993), Zona de Sombra (Editora 7 letras, RJ, 1997), Corola (Ateliê Editorial, SP, 2001 – Prêmio Jabuti de Poesia/2002) e Margem de Manobra (Editora Aeroplano, 2005 – finalista do Prêmio Portugal Telecom 2006). Sua produção lírica, em linhas gerais, pode ser definida como poesia intimista, na qual, entre os temas mais aparentes, destacam-se a sensualidade corporal (hedonismo lato sensu que visa a superar a complexidade antagônica entre a razão apolínea-prometeana e um nascente desejo de estar-junto), a preferência pelas imagens decorrentes do corpo e de sua relação com o outro e pelas imagens oriundas do ambiente natural controlável do jardim, e contraposição frequente entre imagens surgidas da dicotomia luz/escuridão e ascensão/queda. Susy Delgado é poeta contemporânea bilíngue (com obras em espanhol e guarani), nascida em 1949, em San lorenzo, Paraguai. Além de poeta, Suzy Delgado é jornalista, responsável pelo caderno cultural do jornal La Nación. Entre suas principais obras, destacam-se: El patio de los duendes e Algun estraviado temblor em espanhol, e Tataypype, Tesarai Mboyve em guarani. A obra lírica de Suzy Delgado, segundo Ronald Haladyna (2001, p. 20), pode ser caracterizada como poesia intimista, obra de uma mulher consciente de seus mais recônditos sentimentos, e possuidora de um talento inegável para transformá-los em palavras. 140 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Haladyna (2001) ainda destaca a ausência, a saudade e a nostalgia, como alguns dos temas principais da lírica de Suzy Delgado. METODOLOGIA O corpo é uma forma do homem “ser no mundo”, termo que engloba a maneira como o homem se relaciona socialmente, tanto na forma como se apresenta ao outro, como na forma como compreende o outro e o meio em que se insere. As roupas, as tatuagens, as manifestações corporais dos sentimentos (amor, raiva, solidão, alegria etc.), as danças, os rituais (de fé, de casamento, de namoro, de flerte etc.) e outras possibilidades de comunicação corporal comportam e expressam o modo de ser em determinada sociedade, logo, são também parte inalienável da cultura. O aporte teórico utilizado nesse estudo é composto principalmente por dois autores que teorizam a corporeidade contemporânea: Zygmunt Bauman e Michel Maffesoli. Bauman (2007) estabelece uma comparação entre o corpo moderno ao corpo pós-moderno. O corpo moderno é o corpo do soldado/produtor, disciplinado e posto em movimento regular, preparado para utilizar a força necessária para responder aos estímulos externos. Sua qualidade máxima é a saúde; logo, todo consumo deve visar à manutenção da saúde, e o que excede a esse fim é considerado supérfluo. É um corpo moderno ascético, e sua perspectiva é econômica. O corpo pós-moderno é, ao contrário, um instrumento de prazer, sua medida é a felicidade (compreendida como a capacidade de gozo), e a manifestação de interesse decrescente aos prazeres da vida pós-moderna (sexual, gastronômico, etc.) é signo de depressão. Assim, o corpo pós-moderno é mensurado pela capacidade de consumir, e é nesse ponto que se engendra o problema: ao contrário da produtividade, a fruição dos prazeres não é passível de aferição, pois a experiência com o prazer é subjetiva e móvel. Ademais, o corpo é um instrumento incapaz de absorver todos os prazeres e manter a saúde; logo, vive entre uma tensão absoluta entre a satisfação e a manutenção da capacidade de fruição. Além disso, o corpo pós-moderno é propriedade privada indiscutível, e, sendo assim, a responsabilidade pela eficácia é exclusiva de seu “proprietário”, logo, cabe ao proprietário a inconciliável posição de desfrutar maximamente de uma vida prazerosa e manter, ao mesmo tempo, a capacidade de gozar destes prazeres. Para exemplificar a ambivalência, Bauman (2007) aponta que entre os Best-sellers da semana, ao lado de livros de maravilhosas receitas culinárias, encontram-se livros de dietas e programas de treinamento muscular –“Trata-se, portanto, de um cerco que nunca será levantado — de um estado de sítio permanente” (2007, p. 127). O outro, nesse estado de sítio, encarna a possibilidade do futuro que escapa ao controle. O outro é a incerteza que atrai e repele, pois, se outro representa fonte primordial de prazer, também representa autonomia de vontade que impossibilita a fruição sem limites dos prazeres. Michel Maffesoli (2010), em diferente perspectiva, analisa o corpo pósmoderno sobre a ótica do desejo de pertencimento pós-moderno (retorno ao tribalismo). Após a saturação da lógica do 141 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS “dever-ser” moderna, orientada pela organização asséptica da existência, surge um hedonismo orientado pelo desejo de vivência compartilhada das emoções, e o corpo representa o locus privilegiado do desejo de estar-junto, expresso através das marcas corporais (tatuagem, roupa, cabelo, etc.) e da teatralização das máscaras sociais. Sob essa perspectiva, Maffesoli (2010) afirma que a principal característica da pós-modernidade é o vínculo entre a ética e a estética, pois a identificação entre as pessoas não é estabelecida somente pela aparência (estética), mas pela comunhão de valores (ética), orientando uma nova forma de socialidade. Para Maffesoli, enquanto o homem moderno desejava transformar e dominar o mundo, o homem pós-moderno deseja unir-se a ele (e aos outro) – tarefa da qual o corpo é o meio privilegiado de comunicação –, por isso cresce a importância dada ao doméstico, ao cotidiano, à ecologia, ao território, ao bairro e à comunidade. Assim, enquanto a modernidade orientou-se por meio de uma estrutura mecânica formada por indivíduos que exerciam funções em grupos contratuais, a pós-modernidade apresenta estrutura complexa/orgânica, na qual pessoas (e não mais indivíduos) exercem diferentes papéis de acordo com os grupos afetuais em que se inserem (MAFFESOLI, 1998). Nessa perspectiva, o outro é parte do grupo, não um perigo, mas um aliado com o qual construo um território simbólico e real (o bairro, a cidade, a rua) – com o outro que instauro a experiência coletiva. RESULTADOS E DISCUSSÃO Na pesquisa, analisamos dois poemas de cada autora e estabelecemos pontos de convergência e divergência na lírica dessas duas poetas latinoamericanas. Aqui, citamos brevemente as considerações a respeito de um poema de cada autora. O poema analisado de Suzy Delgado é intitulado “37”, publicado na obra Algún extraviado templor. Observamos nuances sensoriais e sensuais, e um leve tom de “atrevimento feminino” contra as regras impostas pela sociedade patriarcal. No entanto, o amor retratado no poema ainda carrega a carga do proibido, como tantas relações e desejos femininos nas sociedades patriarcais. O tema central permanece sendo uma trágica despedida do amor que poderia ter sido. As responsabilidades e o ordenamento social separam os amantes, e a possibilidade de realização representa um impasse que se opõe à disciplina, à regularidade e ao ascetismo do corpo moderno. Dessa forma, o desejo de estar junto – manifestação de outro sentimento, de outra possibilidade, de uma vida que pode ser vivida pela celebração de uma comunhão hedonista – não se realiza, o cotidiano não deixa espaços para a vivência “des-organizada” dos sentimentos, que restam apenas como desejo na memória. O poema analisado de Claudia Roquette-Pinto é intitulado “Canção de Molly Bloom”, publicado na obra margem de manobra (2005). Neste poema, observamos a representação do amor concretizado, mas que apresenta convergências entre os sentimentos observados no poema de Suzy Delgado. No poema de Claudia Roquette-Pinto foram há passagens extraídas dos diálogos de Molly Bloom, personagem do romance Ulysses de James Joyce, esposa de Leopold Bloom, e que pode ser comparada à Penélope, personagem da obra 142 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Odisseia de Homero, pois o romance de Joyce é uma releitura da Odisseia. O que difere Molly Bloom de Penélope é que, ao contrário da casta e fiel esposa de Ulisses, Molly tem um caso extraconjugal. A relação de intertextualidade entre o poema de Roquette-Pinto e a obra de Joyce pode ser compreendida como representação de um “sim” ao encontro amoroso feminino, mesmo quando avesso ao ordenamento social – Molly tem a audácia que Penélope não pode ter. No entanto, essa manifestação da emancipação feminina não deixa de destacar o perigo da entrega à celebração dos corpos para a mulher, como podemos observar no local escolhido para a representação do encontro – “à beira do precipício”. Mas o perigo desse encontro é exorcizado no poema pela imagem do lemniscata, curva algébrica de Bernoulli igual ao número 8 na vertical, símbolo por excelência do eterno. O enlace dos corações pela lemniscata, somado à ideia da atratividade do imã, infere alcançar a eternidade através da entrega ao estar-junto, da entrega à ética da estética contemporânea, pulsão que cimenta o laço social e a ligação sensual com o outro. No poema, o êxtase do encontro amoroso é representado pela relação sexual entre os amantes. Maffesoli (2001, p. 65) observa que a sexualidade contemporânea não é mais assimilado à simples reprodução, não se estabelece simplesmente na economia da família nuclear; mas, distintamente, participa da efervescência que organiza um vitalismo projetado para a fruição do presente, no qual o outro representa uma possibilidade de comunhão e vivência plena da vida. Não são as promessas do futuro que importam, mas a vida presente. Assim, se em Suzy Delgado temos o interdito social e a resignação diante da proibição, em Claudia Roquette-Pinto encontramos a mulher que ousa, mesmo contra a sociedade, entregar-se ao amor e sua celebração carnal. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nessa pesquisa, analisamos as manifestações da corporeidade em duas poetas contemporâneas – Susy Delgado, de nacionalidade paraguaia e Claudia Roquette-Pinto, de nacionalidade brasileira – a fim de estabelecer pontos de convergência e divergência na lírica latino-americana. Durante as análises, observamos que as duas poetas apresentam um anseio pela vida em todas as suas nuances e que apontam o surgimento da palavra poética na intensidade dessa vivência que aceita os prazeres e desprazeres da vida, ou, nas palavras de Maffesoli (2010b, p.35), “a aceitação de um mundo que não é o céu na terra e também não é o inferno na terra, mas, sim, a terra na terra”. No entanto, em Suzy Delgado, a ordem social impõem-se como barreira ainda intransponível (ao menos no poema analisado), enquanto, em Claudia Roquette-Pinto, o eu-lírico ousa opor-se aos desígnios da sociedade. No entanto, as duas autoras convergem ao sentir a pressão de uma tradição patriarcal que reduz as possibilidades das mulheres, principalmente em sua liberdade sexual e afetiva. REFERÊNCIAS 143 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS BAUMAN, Zygmunt. A vida fragmentada – ensaios sobre a moral Pós-Moderna. trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2007. COUTINHO, Eduardo Faria. Literatura Comparada na América Latina: Ensaios. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003. DELGADO, Susy. Suzy Delgado: Antología primeriza. Assuncíon, PY: QR Producciones Gráficas, 2001. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Trad. Bertha Halpern Gurovitz. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. _____. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Record, 2001. _____. O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: história, teoria e crítica. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. ROQUETTE-PINTO, Claudia. Margem de manobra. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2005. SANCHES NETO, Miguel. O lugar da literatura: ensaios sobre inclusão literária. Londrina: Eduel, 2013 SANTIAGO, Silviano. Uma Literatura nos Trópicos. Rio de janeiro: Rocco, 2000. 144 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ALBERTO CAEIRO À LUZ DE FRIEDRICH NIETZSCHE: DO RETORNO À NATUREZA PARA ALÉM DO BEM E DO MAL André Boniatti25 RESUMO A pesquisa em andamento pretende adentrar-se nas raízes fundamentais das proposições que regem a obra do heterônimo de Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, encontrando consonantes vozes nas proposições filosóficas de Friedrich W. Nietzsche. Deveras, as similitudes passíveis de ser arguidas entre ambos o heterônimo e o filósofo nos levam a uma comunhão de ideias e ideais de todo profícua, que alargam a visão que temos de mundo, denunciando um progresso questionável da humanidade, auxiliando ainda na compreensão sobre as diversas conceituações muitas vezes tidas como imutáveis, assim nos fazendo abrir os olhos para a reflexão contra os preconceitos socialmente impostos e que atrapalham um progresso sadio até mesmo das ciências. Juntando assim as visões desses dois pensadores, quer-se traçar um panorama visionário da modernidade, em vista do futuro, anunciando novos caminhos para a humanidade, além de conduzir à compreensão maior da obra do poeta heteronímico Alberto Caeiro, mediante as técnicas comparativas propostas pela disciplina de Literatura Comparada. INTRODUÇÃO Considerado dos maiores poetas de todos os tempos em Portugal e, ao menos, em todo o Ocidente, Fernando Pessoa protagoniza sobretudo um dos grandes mistérios da hermenêutica ou da dramática poética já existentes: seus heterônimos, personalidades criadas dentro do seio de sua invenção literária, divisam o poeta em muitas vozes, demarcando agudamente a fragmentação do homem moderno e preconizando a esquizofrenia na escrita pós-moderna. Sendo assim, o poeta tendo-se feito em vários, o estudo de sua obra torna-se vasto, já que não há um Fernando Pessoa em si, mas diversos. Mesmo aquele que assina “Pessoa ele mesmo” é submerso pelo mar da heteronímia e finda por não passar de apenas um outro, não havendo centro que se possa supor como deveras a pessoa de Pessoa. Frente a essa problemática que se nos coloca na leitura de sua poesia, o corpus do estudo de sua obra forçosamente se encaminhará para a descoberta de uma de suas nuances, ao menos uma de cada vez. Pois, por mais incrível que possa parecer, a construção poética de cada uma dessas personas heteronímicas em Pessoa é diversificada até ao ponto da real (des)personalização; ou seja, cada um 25 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. 145 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS dos heterônimos tem características próprias não apenas relativas ao conteúdo de sua escrita, mas ainda à forma. A própria personalidade que transparece mediante a leitura de cada um deles é uma persona única, não se podendo resgatar exatamente um centro que denuncie ser uma mesma pessoa quem escreve, simplesmente com nomes trocados. Dessa maneira, a pesquisa que ora se introduz pauta-se nessa diversidade para recortar-lhe o topos e fundamentar-se, escolhendo como fulcro o heterônimo que é considerado pelos outros (em diversos registros da heteronímia) como seu mestre: Alberto Caeiro. Crê-se que assim se cumpra um objetivo estudo para desvendar mais profundamente as raízes do drama em Fernando Pessoa, visto que os outros reportam-se a Alberto como influência a seus versos. Faz-se, pois, nosso mister querer adentrarmo-nos nas raízes filosóficas de sua poesia, buscando, nestas, chaves para a interpretação de sua poesia tout court. Alberto Caeiro, como mestre dos demais, - encarado, tal qual Pessoa o queria, como ser de existência concreta, - mantém a aura de sua mestria na profundidade filosófica de sua busca poética: ele almeja uma escrita de extrema objetividade, que expurgasse toda e qualquer falsificação moral, provinda do pensamento e da meditação. Ele quer as sensações livres, libertas das amarras da intelectualidade. Ele retrata o paganismo em pessoa, tal qual Ricardo Reis nos coloca na introdução aos poemas do mestre, assim selecionada em sua “Obra poética” (1997). Tal qual como um homem que, para ser livre, tenha por ideal essa mesma liberdade, eximindo-se do pensamento, sentindo apenas, emancipado de preconceitos, envolto pelo Sensacionismo extremo, tomado das proposições pessoanas de Modernismo em Portugal. É claro que entra, por isso, em uma demarcada contradição, pois filosofa sua antifilosofia, poetizando sua antipoesia, tal qual nos mostra Fernando Segolin em artigo intitulado “Caeiro e Nietzsche: Da crítica da linguagem à anti-filosofia e à anti-poesia”. Apagar todo traço de mentalismo de seus ensinamentos e vivência, a isso talvez se devesse unicamente toda a sua dedicação. Mas angaria, outrossim, a impossibilidade prática de seu desejo Entretanto, quais motivos o lançam a esse esmo solitário, a essa busca constante de negar a realidade e afirmá-la em outra instância, de reverter o rumo do que sempre se teve como moral e certo para a existência humana? Talvez, seja apenas provável qualquer resposta dada a essa interrogação tão ampla, e ao lançarmo-nos à tentativa de interpretação devemos ter o cuidado de esmiuçar as forças que movem de fora este heterônimo ao questionamento de tudo o que sempre foi caro às sociedades: os conceitos de moralidade, compaixão, certeza, realidade, concretude etc.. Para tanto, a perscruta ampara-se na disciplina de Literatura Comparada, clamando a descoberta das possíveis fontes de sua imersão poética mediante cotejos e confrontamentos esclarecedores, que, se não provem efetivamente suas influências e heranças (o que não é nosso intento), mas aproximem sua obra de outra mais que lhe possa iluminar. 146 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Sob a demanda dessas questões acima problematizadas, salientam-se as curiosas similitudes que lançam sua poesia às proposições filosóficas de Friedrich W. Nietzsche, o filósofo alemão não raro pronunciado como anticristo e também não raro alvo de interpretações erradas e desvirtuadas. Questões como a decadência do mundo cristão; o retorno à naturalidade, à Natureza; a insuficiência da palavra para definir e conceituar, para a descrição da realidade; o logro das interpretações; a contrariedade à razão como princípio para a verdade; a revolta contra os dogmas; a derrocada de princípios morais, ligam o poeta ao filósofo ajustadamente, em muitas ocasiões. A coincidência é tamanha, às vezes, que somos levados a comprovar em Pessoa a influência filosófica de Nietzsche, embora seja ímpeto nosso apenas confrontar ambos os pensamentos, e não provar influências e trocas, a título de registro já em bibliografia argumentadas (tal como por António Azevedo (2005). Suscitar suas consonâncias, primordialmente, é o intuito desta pesquisa, em face de esclarecer o sentimento caeiriano frente ao real, problematizando sua poética em virtude de interpretá-la, aclarando a influência do mestre dos heterônimos também nas demais personas pessoanas. METODOLOGIA Sob os preceitos da disciplina de Literatura Comparada, a que queremos resumir pela citação abaixo, extraída do livro “Flores na escrivaninha”, de Leila Perrone-Moisés, é que procederemos ao contato com o material de análise: A literatura comparada é a arte metódica, pela busca de ligações de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou então os fatos e os textos literários entre eles, distantes ou não no tempo e no espaço, contanto que eles pertençam a várias línguas ou várias culturas participando de uma mesma tradição, a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los. (PICHOIS; ROUSSEAU 1967 apud PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 92). Segundo o que nos dizem Pichois e Rousseau, citados por Perrone-Moisés, esclarece-se a ênfase a que se impõe a disciplina de Literatura Comparada, que não se encontra na busca das influências e numa noção errônea e ultrapassada de dívida histórica ou estética; essa ênfase está sim ligada intrinsecamente à melhor compreensão interpretativa, na função de, sob cotejo, poder-se perceber os textos com maior primazia, interpretá-los com maior segurança. Assim, porque confrontando fontes diversas há a possibilidade de reunir resquícios de identificação, tanto de temáticas, conteúdo, forma etc., que nos auxiliem no entendimento de textualidades e ideias literárias. Pode-se, dessa maneira ainda, suscitar as fontes, encontrar as raízes que fomentam a produção de determinados autores, 147 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS enriquecendo o conhecido, bem como levantando argumentos ao que ainda não se conhece. Pois então, amparando-se nesse procedimento metodológico, explorar-se-á a bibliografia existente a tratar sobre as ligações já percebidas entre o poeta dos heterônimos e o filósofo da transvaloração de todos os valores. Nesse sentido, trazemos à tona o trabalho de dissertação de mestrado de António Azevedo (2005), “Pessoa e Nietzsche”, o qual perscruta, na obra heteronímica de Pessoa, os apontamentos nietzschianos com profundo entendimento e pesquisa. E ainda a tese de doutoramento de Américo Enes Monteiro (1997), intitulada “A recepção da obra de Friedrich Nietzsche na vida intelectual portuguesa”, obra bastante abrangente, em que o autor analisa a recepção da obra do filósofo também em Fernando Pessoa, muito embora perpasse as décadas com seu estudo, enunciando muitos outros escritores. Ainda há o recorte de Fernando Segolin (1990) em artigo acerca da obra do heterônimo Alberto Caeiro: “Caeiro e Nietzsche: Da crítica da linguagem à antifilosofia e à anti-poesia”. Ademais, a leitura interpretativa da Obra de Fernando Pessoa terá bases em obras como “A literatura portuguesa” (1981) e “Fernando Pessoa: O espelho e a esfinge” (s/d), de Massaud Moisés; “Pessoa Revisitado”, de Eduardo Lourenço (2003); “O heterotexto pessoano”, de José Augusto Seabra (1998); “Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro”, de Leyla Perrone-Moisés (2001), além dos elementos biográficos contidos na publicação da obra completa de Fernando Pessoa (1997), pela editora Nova Aguilar, e de nossas leituras íntimas, bem como outros textos acerca do poeta, já com fortuna crítica extensa. As obras de Friedrich Nietzsche postas a exame para a realização do cotejo serão principalmente “O nascimento da tragédia” (2007), “Além do bem e do mal” (2005), “Vontade de potência” (2010), parte I e parte II, “O anticristo” (2000); “Assim falou Zaratustra” (2011). Consultar-se-á sempre a interpretação de sua obra mediante o que interpretou Gilles Deleuze (1976) acerca dela, seguindo suas reflexões em “Nietzsche e a filosofia”. Sua biografia será ressalvada pela leitura do capítulo que a ele se refere da “História da filosofia”, de Will Durant (2000). Ademais, podem salvaguardar-se outras bibliografias explicativas acerca de suas ideias, contanto apenas as que elucidem os aspectos que o possam ligar ao objeto primeiro de estudo, os poemas de Alberto Caeiro, para o qual se fará o direcionamento bibliográfico. A partir de tais leituras, então, far-se-ão os recortes direcionados, suscitados da obra do poeta, pondo-os lado a lado aos excertos da obra de Nietzsche, em face de encontrar as similitudes entre ambos, acordá-lo ou distingui-los, em busca de entender melhor a sua poesia e, quiçá, encontrar no filósofo fontes plausíveis para a interpretação da obra de Alberto Caeiro, demonstrando nele aspectos do além homem, bem como da transvaloração dos valores e da finalidade estética do mundo propostas por Nietzsche. 148 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADOS E DISCUSSÃO Alberto Caeiro é o heterônimo que, segundo Moisés (1981), “foge para o campo” e, nesse sentido, já é possível perceber sua proximidade com a obra “Assim falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche (2011). O fato de ele resguardar-se da súcia denuncia, em primeira plana, seu desprezo às atividades dos homens, o que virá a ser lembrado na sua obra em diversos momentos, ou talvez seja o fulcro de sua obra tal desprezo. Ele se liga, sobretudo, ao mesmo desprezo que sente Nietzsche tanto pela sociedade mesquinha, quanto pelo desenvolvimento da história, pelo percurso que traçou a humanidade em seu avanço. Nietzsche, em quase todos os seus escritos, nos quer convencer de que a humanidade seguiu o percurso errado desde que Sócrates põe em prática sua discursividade. Daí para diante, sob o preceito da razão como mando, perde-se o princípio mais fundamental da vida, a finalidade estética do mundo, que une aspectos dionisíacos a apolíneos, e não prima pela razão apolínea como única forma de se pensar o mundo. Esse rumo por que a humanidade passa, em face ao progresso, desvirtua as potencialidades primordiais dos homens e os torna fracos, falsos, homens menores. Por isso, Nietzsche levanta-se com brados contra essa progressão, que alcança o seu cume com o cristianismo, definindo-o definitivamente como uma moral para os fracos. A partir desses preceitos, o filósofo nos coloca frente a quatro tipos de niilismo, trazidos à tona na interpretação de Gilles Deleuze (1976) acerca de sua obra, niilismos que avançam até à absoluta depuração, até o vazio. Esse último grau de niilismo é representado na metáfora da criança, na obra “Assim falou Zaratustra”, e justamente neste ponto parecem Nietzsche e Caeiro encontrarem-se definitivamente: no poema VIII de “O guardador de rebanhos”, Alberto Caeiro apresenta sua essência como a de uma criança, evocando o menino Jesus, um menino-Deus, pronto a descobrir o mundo e a abandonar o cristo pregado à cruz no céu, isolá-lo. Assim, Caeiro admite-se nesse último estágio de niilismo, a desvendar o mundo livre dos preconceitos morais impostos pela sociedade, forçado a criar um novo conceito da realidade, afastando-se do rebanho. Dessa maneira, invertendo sua trajetória no mundo. Ataca, sem dúvida, os mesmos pontos nietzschianos de ataque: o platonismo e o cristianismo, chegando a demonstrar a essência na efemeridade, destituindo o mundo de verdades absolutas (tal qual o filósofo) e de finalidade maior do que as sensações que possamos desfrutar, ligando-as, de certa maneira a ser melhor discutida, à finalidade estética da vida proposta por Nietzsche. CONCLUSÃO Partindo, pois, de leituras que já confirmam as influências de Nietzsche sobre a obra de Fernando Pessoa, somos levados a perceber que Alberto Caeiro, tido como mestre dos heterônimos, traz em sua postura frente à vida muito da filosofia nietzschiana, firmando seus fundamentos ali. A pesquisa, dessa maneira, objetiva 149 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS uma abertura maior para a compreensão dos estudos acerca da obra de Pessoa, conduzindo a uma interpretação mais delicada do poeta que despreza a vida citadina. Enfim, trazer à tona tais estudos amplia nossa dimensão sobre temas e escritores tais que modificaram a maneira de olharmos para as coisas na modernidade. Portanto, fazendo-nos revisar intelectualmente nossa própria condição humana. REFERÊNCIAS AZEVEDO, António. Pessoa e Nietzsche: Subsídios para uma leitura intertextual de Pessoa e Nietzsche. Lisboa: Instituto Piaget, 2005. 221 p. LOURENÇO, Eduardo. Pessoa revisitado. Lisboa: Gradiva, 2003. 213 p. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora do Rio, 1976. 90 p. DURANT, Will. A história da filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. 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Antonio Carlos Braga e Ciro Mioranza. São Paulo: Escala, 2010. 524 p. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores na escrivaninha. São Paulo: Companhia das letras, 1990. 190 p. ___________. Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 318 p. 150 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS PESSOA, Fernando. Obra poética. Maria Aliete Galhoz (Org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. 842 p. SEABRA, José Augusto. O heterotexto pessoano. São Paulo: Perspectiva, 1988. p. 265. SEGOLIN, Fernando. Caeiro e Nietzsche: Da crítica da linguagem à anti-filosofia e à anti-poesia. In: Actas do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, vol. I. Porto: Fundação Eng. António José de Almeida, 1990. pp. 247-259. 151 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS OS DEGREDADOS E DEGREDADAS NAS OBRAS TERRA PAPAGALLI E DESMUNDO Beatrice Uber26 RESUMO O romance Terra Papagalli, de Torero e Pimenta (2000), mostra o degredado Cosme Fernandes que descobre uma nova terra aos vinte e dois dias de abril e 1500 e narra os possíveis acontecimentos das três primeiras décadas de colonização do Brasil. Já em Desmundo, de Ana Miranda (1996), mostra-se, por meio da personagem Oribela de Mendo Curvo, a vinda da mulher branca a uma terra com o intuito de se casar, gerar filhos e ajudar o marido a prosperar. Ambos abordam a temática do descobrimento das terras brasileiras; e baseando-se na releitura da história pela ficção, pelo prisma dos degredados e degredadas que foram forçados a se estabelecer nessas terras desde o descobrimento, objetiva-se verificar os relatos desses excluídos e marginalizados, invertendo a orientação da história vista de cima difundida pelo olhar eurocêntrico.Como principais fontes para realizar esse estudo, que é de cunho bibliográfico, empregam-se o ponto de vista dos excluídos, por Jim Sharpe (1992), mostra-se a temática da carnavalização por Mikhail Bakhtin (1981), o viés feminino por Michelle Perrot (1988) e Simone de Beauvoir (1990). PALAVRAS-CHAVE:Degredado; Novo Romance Histórico; Terra Papagalli; Desmundo. INTRODUÇÃO As únicas narrações sobre o início da colonização brasileira eram as do desbravador europeu branco e, assim sendo, a história sempre foi contada do viés superior do colonizador. Os relatos dos excluídos e marginalizados eram deixados de lado como se não tivessem participação na história ou fossem de pouca importância. No entanto, essas informações surgem para repensar a historiografia considerada como única e absoluta, além de possibilitar uma melhor compreensão dos fatos em determinada época. Na obra Terra Papagalli (2000), José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta trazem o descobrimento do Brasil pelo olhar do degredado Cosme Fernandes, um jovem condenado a viver em outras terras por ter se envolvido carnalmente com uma jovem cristã, Lianor. Cosme junta-se a tribo dos tupiniquins, casa-se com Terebê – a filha do chefe da tribo – e começa a vender índios 26 Graduanda do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Cascavel. Aluna de Iniciação Científica voluntária (ICV) sob orientação do Professor Dr. Wagner de Souza. Endereço eletrônico: [email protected] 152 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS capturados das tribos inimigas. É ele quem relata os acontecimentos das três primeiras décadas de achamento das terras tropicais. No romance Desmundo (1996), Ana Miranda apresenta os relatos de uma jovem virgem, Oribela, que é trazida ao Brasil para casar e gerar filhos, bem como ajudar o seu marido a prosperar no novo mundo. É o prisma feminino que surge para revelar fatos escondidos e, possivelmente, vivenciados por muitas mulheres no século XVI, contrastando com conjunturas oficiais. Tanto a obra Terra Papagalli quanto Desmundo mostram o início da colonização brasileira no século XVI. Enquanto que a primeira obra apresenta o viés masculino, a segunda, mostra o feminino, porém em comum, revelam os prismas de pessoas excluídas da sociedade eurofalocêntrica. As formas literárias passaram a conviver com vozes oficiais alternativas, em especial a partir de 1979, quando se deu o auge do novo romance histórico, que haviam sido silenciadas durante séculos de exploração. Segundo Seymour Menton, em La nueva novela histórica da la América Latina (1993), desde as décadas 80 e 90, percebeu-se, no que tange o novo romance histórico, uma inversão das produções artísticas da literatura brasileira. Assim, aqueles que eram excluídos tornaram-se foco de interesse. A história incorpora fatos ficcionais com factuais, colocando em dúvida quem e a forma como o Brasil teria sido descoberto. O período apontado pela historiografia como Pré-Colonial (1500-1530) não é dos mais estudados. O que se apresenta de forma mais detalhada são eventos posteriores a chegada de Martin Afonso de Souza e a divisão das Capitanias Hereditárias, pois o país ibérico tinha mais interesse no Oriente, em especial as Índias, de onde se trazia muitas riquezas, conforme ensina Eduardo Bueno em Náufragos, traficantes e degredados (1998). Essa pesquisa objetiva analisar narrativas que se utilizam do viés de alguns excluídos, invertendo a historiografia brasileira vista de cima durante as primeiras décadas de colonização brasileira, se o viés masculino é concebido como único e verdadeiro, se a voz feminina é apresentada de uma ótica inferior, se a mulher emancipa-se ou continua a ser submissa ao homem, se a mulher tinha a finalidade de gerar filhos e, se em terras brasileiras, Cosme e Oribela encontravam-se em igualdade de status. METODOLOGIA Trata-se de uma pesquisa que propõe uma melhor compreensão do processo histórico perante a releitura das primeiras décadas de colonização do Brasil, sob a narrativa de pessoas excluídas da elite dominante. Essa pesquisa é bibliográfica e busca-se analisar por meio dos romances em estudo, fatos que possam ser relevantes, como a inversão do discurso historiográfico brasileiro nas primeiras décadas de civilização nas obras ficcionais Desmundo e Terra papagalli (2000) e a submissão feminina ao homem em outra terra, que não a sua de origem. A escritora Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo (1991), relata que não existe apenas uma só verdade, mas que há verdades no plural, pois são 153 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS variadas as histórias que se podem narrar sobre um mesmo acontecimento. O aspecto narrativo dos textos literários não permite enquadrar nenhum assunto de maneira absoluta, seja ele baseado em ficção ou em documentação, porque há sempre a possibilidade de permeação entre eles. Mesmo tendo-se como referência obras canônicas, sempre poderão surgir novos estudos, às vezes com pontos de vista opostos, mas igualmente plausíveis de confiança. Em relação a ter mais acesso aos possíveis acontecimentos do passado, Jim Sharpe explica, em A história vista de baixo (1992), a possibilidade de observar “que as pessoas fizeram coisas diferentes (então, implicitamente estranhas) no passado, e que muitas delas sofreram privações materiais e suportaram sofrimentos” (1992, p. 56-57). Considerando-se o plano ficcional no qual Cosme Fernandes está inserido, caso ele tivesse permanecido em Portugal, talvez tivesse se tornado um padre e seguido com a vida religiosa. No entanto, foi degredado para uma terra desconhecida e tornou-se um bacharel. Embora tenha se tornado um rei, também passou por inúmeros momentos de adversidade, como por exemplo, a privação de uma sociedade estabelecida e organizada e a ausência de sua família. A obra Terra papagalli, de Torero e Pimenta, por exemplo, mescla histórias factuais com ficcionais relacionadas à forma como o Brasil foi descoberto. Por exemplo: a carta de descobrimento do Brasil faz parte dos fatos verídicos, enquanto a descoberta do país pelo degredado Cosme Fernandes se enquadra na parte ficcional. Sharpe explica que “a imaginação histórica pode ser aplicada não somente para estruturar novas conceituações sobre a temática da história, mas também para questionar de outra forma os documentos e fazer coisas diferentes com eles” (1992, p. 59). A partir dos estudos de Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo (1990), busca-se a constatação do destino de Oribela: tornar-se mãe, aceitar o casamento imposto pela sociedade e igreja, pois é dele que ela encontra a razão de seu viver. RESULTADO E DISCUSSÃO Os homens que tiveram a oportunidade de se estabelecer na nova terra, como é o caso da personagem ficcional Cosme Fernandes, puderam se colocar numa categoria elevada. De degredados, bandidos, ladrões e assassinos passaram a ser considerados nobres e distintos. Eles elaboravam suas leis mesmo tendo um supervisor do governo português ou algum religioso que ficasse observando o que se passava na terra descoberta. São esses indivíduos, como os configurados no romance, que, possivelmente, colonizaram o Brasil no início do século XVI. São perspectivas como essa, a do possível descobrimento da nova terra por um degredado, que proporcionam uma base para uma melhor compreensão de acontecimentos ocorridos anteriormente Contudo, o prisma feminino surge de outra maneira. A suposta bela vida de Oribela, que teria início num novo lugar, não era perfeita. Mesmo com as mulheres ganhando um lar, uma casa, uma família e um sobrenome, muitas não eram felizes porque viviam sob os maus tratos da sogra e do marido, como é retratado na narrativa ficcional em foco, exemplificado pela narradora. 154 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Perrot em Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros, relata que “cada sexo tem sua função, seus papéis, suas tarefas, seus espaços, seu lugar quase predeterminados, até em seus detalhes” (1988, p. 178); e o lugar da mulher era em casa, sendo uma boa esposa e mãe. CONCLUSÕES O personagem Cosme Fernandes indica uma possível visão de que o descobrimento das novas terras teria se dado por outra pessoa, um marginalizado, e não por um bravo comandante – Pedro Álvares Cabral –como relata a história oficial; e o ponto de vista de Oribela também mostra que a vinda das mulheres para essa nova terra não foi tão atraente quanto se imaginava e a possibilidade de ter um marido e uma família num lugar desconhecido foi bem diferente do que mostrava o governo português e pregava a igreja. Nas narrativas ficcionais em estudo, percebe-se que a palavra masculina nunca é questionada, mas antes considerada como única e absoluta. A mulher apenas obedece às ordens do esposo. Em Terra Papagalli percebe-se que Cosme falava, ordenava e todos obedeciam; ele se tornou superior em relação ao povo que o acolheu. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981. BEAUVOIR, S.O segundo sexo: a experiência vivida. 7. ed. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BUENO, E. Náufragos, traficantes e degredados: as primeiras expedições do Brasil, 1500-1531. 2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006. HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo: teoria, história e ficção. Tradução de Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina: 1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MIRANDA, A. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. PERROT. Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres, prisioneiros. São Paulo: Paz e terra, 1992. SHARPE, J. A história vista de baixo. In: BURKE, P. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. TORERO, J. R.; PIMENTA, M. Terra papagalli. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. 155 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS REPRESENTAÇÕES ANTROPOFÁGICAS NO NOVO E NO VELHO MUNDO. UMA LEITURA COMPARATIVA DO CANIBALISMO NA LITERATURA. Bernardo A. Gasparotto27 RESUMO A presente pesquisa busca realizar uma análise comparativa entre obras da literatura latino-americana e espanhola, em relação às representações dos atos de canibalismo realizados no Novo Mundo, no período de conquista e primeiros momentos da colonização do continente. Nessas obras, pretende-se verificar como as cenas que remetem ao ato antropofágico são trabalhadas, com que características são revestidas e que sentidos são apresentados, se vistas como um ritual solene em que se reconhece a força e a honra daquele que está para ser devorado, remetendo a ideias de teóricos como Oswald de Andrade, ou como um ato de barbárie extrema. Tal pesquisa apresenta como corpus inicial as obras Meu querido canibal (2013), do brasileiro Antonio Torres, e Caribe (2002), terceiro tomo da trilogia La perdida del paraíso, do espanhol José Luiz Muñoz. O projeto, que pretende observar algumas obras latino-americanas e europeias que retratam o ato de canibalismo, prima pelo reconhecimento de tal prática como um ritual, como uma de tantas formas de manifestação cultural próprias do povo autóctone das Américas. Resta observar os sentidos produzidos pelas representações literárias de tal manifestação cultural, buscando deixar de lado conceitos pré-estabelecidos no seio da sociedade para então buscar perceber o que tal rito representa, bem como quais foram seus efeitos e como foi compreendido pelos estudos literários. Ao trabalhar com representações antropofágicas na literatura do Velho e do Novo Mundo, o que se espera também é observar a ocorrência de aproximações ou distanciamentos acerca da forma como é abordado o ato de canibalismo entre as mesmas, perceber como se dão as abordagens ao tema e os sentidos resultantes de tal trabalho. Nesse sentido, quando se propõe tecer relações entre a literatura latino-americana e a europeia tem-se que tomar alguns cuidados, que guardam íntimas relações com a questão antropofágica, agora tomando esse termo como proposto por Oswald de Andrade (1991), pois caso se parta da perspectiva de que as literaturas latinoamericanas são uma espécie de extensão da história das literaturas das línguas mães, entendendo estas como um paradigma a ser alcançado, corre-se um grande risco de que se considerem as literaturas produzidas na “colônia” como sendo manifestações artísticas de segunda linha, ainda juvenis, passando então a criar um sentido menor, como se o sentido e a perspectiva “correta” sempre partisse das manifestações artísticas advindas do Velho Mundo, dessa forma, tendo pouca relevância a perspectiva e a forma como a temática é abordada pela literatura latinoamericana. 27 Aluno do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Letras, nível de Doutorado, área de concentração em Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados. 156 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS PALAVRAS-CHAVE: Antropofagia; Canibalismo; Novo Mundo. JUSTIFICATIVA As representações do canibalismo na literatura foram escolhidas como objeto de estudo devido ao fato de que, mesmo após o movimento modernista brasileiro em que ficou claro o sentido benéfico da antropofagia enquanto metáfora, quando tal cena é apresentada em uma obra literária há uma tendência em se perceber, primeiramente, o aspecto literal, provocando uma repulsa em quem recebe a obra. Nesse sentido, busca-se observar até que ponto tais representações são realizadas com vistas à demonstração da antropofagia enquanto processo benéfico para o desenvolvimento das relações dialógicas entre as culturas envolvidas, mesmo possibilitando, dado esse aspecto cultural autóctone, a geração de uma linha teóricocrítica que serviria para ancorar a produção “autêntica” dos colonizados; ou se tais representações não passariam de imagens grotescas e descontextualizadas em relação aos costumes autóctones. OBJETIVOS Analisar algumas representações literárias de antropofagismo constante nas obras: Meu querido canibal (2013), do brasileiro Antonio Torres, e Caribe (2002), terceiro tomo da trilogia La perdida del paraíso, do espanhol José Luiz Muñoz, buscando perceber os efeitos de sentido produzidos, para, assim, notar a perspectiva adotada por autores de países colonizadores e colonizados, se a desenvolvem como uma espécie de rito solene, repleto de simbologia ou como um ato primitivo. Se tais manifestações antropofágicas, na literatura latino-americana, quando considerado como um ritual solene que traria consequências benéficas, tal aspecto cultural autóctone, possibilita o desenvolvimento de toda uma linha teórico-crítica para ancorar a produção “autêntica” daqueles que foram colonizados e tiveram seu discurso marginalizado. Se partir de tal pressuposto, podem-se considerar as obras que constituem o corpus dessa pesquisa como produtos literários de altíssimo valor, a partir da aceitação das teorias oriundas do antropofagismo, estendendo ainda esse valor a tantas outras obras oriundas da América Latina. De forma secundária, observar se existem aproximações ou distanciamentos nas formas de abordagem e estilo, bem como os sentidos apresentados entre as obras produzidas no Velho e no Novo Mundo, buscando, assim, vislumbrar que obras tratam do tema com vistas à teoria da antropofagia proposta por Oswald de Andrade (1991), bem como de um processo que serve para fortalecer aquele que se alimenta, gerando um produto novo e diferente, como propõe Santiago (2001) Realizar análises de outros textos que se inserem nos limites entre Literatura e História, como é o caso da obra Duas Viagens ao Brasil (1974) de Hans Staden, ou mesmo o Diário de bordo (1972) de Cristóvão Colombo, que se caracteriza como primeiro escrito que menciona a existência do canibalismo em terras americanas. 157 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Por tais escritos, perceber a forma como os mesmo o descreveram, observando se tal perspectiva é adotada pelas obras e se o for, em quais ela se mostra mais forte. RESULTADOS Ao que se refere às releituras da história pela ficção, uma das temáticas mais exploradas pelas escritas hispânicas diz respeito ao episódio do descobrimento da América e à figura de Cristóvão Colombo. Até a década de 90 do século XX, o que se percebia nessas releituras, segundo estudos de Milton (1992) e Fleck (20052008), era a separação em dois eixos: enquanto as produções espanholas retratavam tal período, bem como as figuras que dele participaram, de maneira semelhante à abordada pela historiografia, optando pelo enaltecimento do fato e seus personagens, a literatura hispano-americana posicionava-se de forma diametralmente oposta, uma vez que desenvolvia produções que parodiavam as figuras e fatos, inovando as características do gênero híbrido. Elas buscavam apresentar uma renovação em relação ao discurso padrão, e perspectivas diversas daquelas selecionadas pela historiografia e reforçadas pelo cânone espanhol (MILTON, 1992; FLECK, 2007). No ano de 1998 ocorreu a publicação da obra Carta del fin del mundo, de Jose Manuel Fajardo no âmbito da literatura espanhola. A partir dessa produção, percebese, pela primeira vez na história da literatura da antiga metrópole, uma proposta de diálogo com a literatura hispano-americana (GASPAROTTO, 2011). Em tal obra se apresenta um tratamento temático e mesmo discursivo muito distinto do utilizado até então pelos escritores do Velho Mundo. Esse romance torna-se um divisor de águas, criando uma nova tendência na produção espanhola, no que diz respeito à poética do descobrimento, uma vez que a partir de sua publicação foram produzidas muitas obras que podem ser caracterizadas como romances históricos contemporâneos de mediação (FLECK, 2008). Esse é o caso, por exemplo, da trilogia La pérdida del paraíso (2002), de Muñoz, e Colón: el impostor (2006), de Melero. Elas, assim como Carta del fin del mundo (1998), também propõem a manutenção de um diálogo com as produções hispano-americanas, ou seja, fogem da tendência tradicional da historiografia e das produções espanholas tradicionais e exaltadoras do tema. Nelas, o discurso apresenta-se distinto do presente nas obras anteriormente produzidas por seus compatriotas. Cristóvão Colombo e sua tripulação deixam de ser vistos unicamente como heróis e passam a ser retratados como homens comuns, sujeitos a ações nem sempre laudatórias. Tais obras começam a deixar de focalizar as figuras eminentes que foram alvo de louvação, como é o caso de Colombo ou dos Reis Católicos e passaram a mostrar que o episódio que envolve a empresa descobridora foi vivenciado por seres humanos comuns, homens do povo que se depararam com um mundo totalmente diverso daquele com o qual estavam habituados, um ambiente sem regras claras ou poderes coercitivos constituídos, um local novo, com seres diferentes, com os quais tiveram que aprender a conviver. Cria-se, pois, nessas releituras ficcionais do 158 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS passado uma imagem de história feita pelo povo comum e não apenas pelos representantes do Estado. Diante da publicação de Caribe (2002), proposta por Muñoz, percebe-se que, pela primeira vez na história da literatura espanhola uma obra dessa origem manteve um diálogo com a literatura hispano-americana. Sendo obra que detem as características dos romances históricos contemporâneos de mediação, a produção de tal modalidade parece ser o que garantirá o presente e o futuro dos diálogos entre o Velho e o Novo Mundo, uma vez que apresenta elementos naturalmente mediadores ao desenvolver um discurso ameno e uma crítica menos direta e ofensiva, o que possibilita que ocorra uma aproximação no decorrer da diegese entre perspectivas e culturas distintas. Assim, percebe-se que são dados os primeiros passos para o diálogo e o reconhecimento, mesmo com o ritual antropofágico ainda sendo representado de forma crua e dura, como um ato de primitivismo. REFERÊNCIAS ANDRADE, O. Manifesto Antropofágico. In: ______. A utopia antropofágica (Obras completas). São Paulo: Globo/Secretaria de Estado da Cultura, 1990. MUÑOZ, J. L. La pérdida del paraíso – II El Fuerte Navidad. Barcelona: Planeta, 2002. SANTIAGO, S. Uma literatura nos trópicos. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. TORRES, Antonio. Meu querido canibal. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2013. 159 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS QUANDO O LEITOR VIRA PERSONAGEM: A REPRESENTAÇÃO FICCIONAL DO PROCESSO DE LEITURA Clarice Lottermann28 RESUMO Umberto Eco trabalha com os conceitos de leitor-empírico e leitor-modelo, sendo, o primeiro, qualquer pessoa que lê um texto (um sujeito localizado historicamente, em determinada sociedade); já leitor-modelo é uma projeção idealizada de um leitor que seja capaz de acompanhar o raciocínio do autor. Pode-se dizer que o leitor “mergulha” na obra. Assim, é interessante analisar como a ficção retrata esse processo em que o leitor preenche espaços vazios, elenca e refuta hipóteses, emociona-se e fica indignado, em que é construtor de sentidos e, muitas vezes, desvia-se do percurso previamente traçado pelo escritor. Em outras palavras, como a ficção representa o processo de leitura? Partindo desta premissa, o que se pretende neste estudo é verificar como o papel do leitor é ficcionalizado em três obras: Paisagem, da escritora brasileira Lygia Bojunga, História sem fim, do escritor alemão Michel Ende e a trilogia Mundo de tinta (Coração de tinta, Sangue de tinta e Morte de tinta) da escritora alemã Cornelia Funke. PALAVRAS-CHAVE: leitor-modelo; narrativa, literatura infanto-juvenil INTRODUÇÃO Nas últimas décadas do século XX, as teorias orientadas para a recepção do texto literário passaram a valorizar a figura do leitor, enfatizando que a materialização de um texto se dá através da prática de leitura. Diferentemente de concepções teóricas em que a atenção se volta para o autor (considerado um ser dotado de genialidade, o que garante caráter original ao texto) ou as que valorizam demasiadamente o aspecto estético, a Estética da Recepção pressupõe que a recepção de um texto não deve ser “um consumo passivo, mas sim uma atividade estética, pendente da aprovação e da recusa” (JAUSS, 2002a, p. 80). Desse modo, atribui-se novo estatuto ao leitor e à leitura. Partindo dessa premissa, é particularmente interessante observar como a própria ficção representa este processo e como o leitor torna-se personagem. 28 Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – UNIOESTE. [email protected] 160 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS METODOLOGIA Por se tratar de uma pesquisa eminentemente bibliográfica, metodologicamente seguirá as seguintes etapas: a) releitura e fichamento das obras ficcionais previamente selecionadas: Paisagem, de Lygia Bojunga; História sem fim, de Michael Ende; Trilogia Mundo de tinta (Coração de tinta, Sangue de tinta e Morte de tinta) de Cornelia Funke; b) leitura de obras teóricas apropriadas para a análise do objeto de estudo; c) análise comparativa das obras selecionadas; d) elaboração de texto segundo padrões da ABNT; e) revisão e apresentação dos resultados da pesquisa em congressos da área e através de artigos a serem publicados em revistas especializadas da área. RESULTADOS E DISCUSSÃO A relação entre texto e leitor começa a ser discutida a partir da década de 1960, momento em que surgem teorias que reivindicam a participação do leitor como elemento indispensável à compreensão do texto literário. Nesse cenário de transformações da crítica literária, Hans Robert Jauss apresenta, em 1967, na Universidade de Constança, Alemanha, os pressupostos teóricos da Estética da Recepção. Segundo Zilberman (2009), a conferência ministrada por Jauss – O que é e com que fim se estuda história da literatura – revela a sua intenção em desferir críticas à forma como a teoria literária aborda a história da literatura, a qual privilegia métodos de ensino tradicionais, como também, destaca-se o interesse do estudioso em inaugurar novas concepções de história da literatura. Os princípios da Estética da Recepção também estão presentes nos estudos de Wolfgang Iser, contemporâneo de Jauss. Assim como esse estudioso, Iser publica, em 1975, o estudo A estrutura do texto apelativo e em seguida apresenta a sua teoria: Teoria do Efeito. Essa concepção teórica visa analisar os efeitos da leitura de uma obra literária provocados no leitor, por isso considera-se que essa teoria tem caráter complementar àquela proposta por Jauss, podendo, por conseguinte, ser abordada de modo paralelo. Segundo os preceitos da teoria de Jauss, o significado “da obra literária é apreensível não pela análise isolada da obra, nem pela relação da obra com a realidade, mas tão-só pela análise do processo de recepção, em que a obra se expõe [...] na multiplicidade de seus aspectos” (STIERLE, 2002, p. 120). Portanto, a obra é uma instância mutável devido à participação do leitor (sujeito sócio-histórico), e que não pode ser concebida sem essa relação de troca com o público. Eagleton (2006) salienta que o texto utiliza recursos, espécie de dicas, para que o leitor possa estabelecer sentido, uma vez que, sem a participação ativa do público, o texto não existe. Assim, compreende-se que o leitor ao qual Jauss se refere é aquele leitor concreto, situado historicamente no tempo e no espaço, que aceita ou nega uma criação artística, em uma época específica de uma determinada sociedade. 161 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Para a Estética da Recepção, o leitor é fundamental, pois durante a leitura ele “concretiza” o texto ao atribuir significados que partem tanto de sua experiência individual quanto de influências culturais, sociais e históricas. Sendo assim, o leitor se desenvolve na medida em que se desloca por leituras de outros momentos históricos, ou ainda, cada vez que não fecha um livro ou desiste de lê-lo. Então, o texto se constitui como um universo que deve ser explorado a fim de incitar o leitor a imaginá-lo e interpretá-lo, conforme declara Iser: Os autores jogam com os leitores e o texto é o campo do jogo. O próprio texto é resultado de um ato intencional pelo qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas, conquanto o ato seja intencional, visa a algo que ainda não é acessível à consciência. Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, a interpretá-lo. Essa dupla operação de imaginar e interpretar faz com que o leitor se empenhe na tarefa de visualizar as muitas formas possíveis do mundo identificável, de modo que, inevitavelmente, o mundo repetido no texto começa a sofrer modificações. Pois não importa que novas formas o leitor traz à vida: todas elas transgridem – e, daí, modificam – o mundo referencial contido no texto. (ISER, 2002, p.107). Entre os teóricos que se voltam para o aspecto recepcional, enfatizando a questão da leitura/desvendamento do texto literário, destaca-se também Umberto Eco, que trabalha com os conceitos de leitor-empírico e leitor-modelo, sendo, o primeiro, qualquer pessoa que lê um texto (um sujeito localizado historicamente, em determinada sociedade); já leitor-modelo é uma “espécie de tipo ideal que o texto não só prevê como colaborador, mas ainda procura criar” (ECO, 1994, p. 15), ou seja, é uma projeção idealizada de um leitor que seja capaz de acompanhar o raciocínio do autor. O leitor-modelo é “desenhado pelo texto e dentro do texto.” (ECO, 1994, p.99). Para Umberto Eco, “(...) numa história sempre há um leitor, esse leitor é um ingrediente fundamental não só do processo de contar uma história, como também da própria história.” (ECO, 1994, p.7). Pode-se dizer que o leitor “mergulha” na obra. Umberto Eco lembra que “(...) o que ocorre com frequência é que não decidimos entrar num mundo ficcional; de repente nos vemos dentro desse mundo. (...) Na ficção, as referências precisas ao mundo real são tão intimamente ligadas que, depois de passar algum tempo no mundo do romance e de misturar elementos ficcionais com referências à realidade, como se deve, o leitor já não sabe muito bem onde está.” (ECO, 1994, p.131). Assim, cabe analisar como a ficção retrata esse processo em que o leitor preenche espaços vazios, elenca e refuta hipóteses, emociona-se e fica indignado, em que é construtor de sentidos e, muitas vezes, desvia-se do percurso previamente traçado pelo escritor. Em outras palavras, como a ficção representa o processo de leitura? 162 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Para o escritor, ilustrador e pesquisador Ricardo Azevedo, O livro é um lugar de papel e dentro dele existe sempre uma paisagem. O leitor abre o livro, vai lendo, lendo e, quando vê, já está mergulhado na paisagem. Pensando bem, ler é como viajar para outro universo sem sair de casa. Caminhando dentro do livro, o leitor vai conhecer personagens e lugares, participar de aventuras, desvendar segredos, ficar encantado, entrar em contato com opiniões diferentes das suas, sentir medo, acreditar em sonhos, chorar, dar gargalhadas, querer fugir e, às vezes, até sentir vontade de dar um beijinho na princesa. Tudo é mentira. Ao mesmo tempo, tudo é verdade, tanto que após a viagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se tiver sorte, pode ficar compreendendo um pouco melhor sua própria vida, as outras pessoas e as coisas do mundo. (AZEVEDO, 2012). Esta discussão sobre o envolvimento do leitor com o texto também pode ser encontrada na obra literária de Lygia Bojunga (Paisagem), através de reflexões da personagem Lourenço: (...) eu sou um Leitor pra escritor nenhum botar defeito, tá entendendo? Eu acho até que ser Leitor é a coisa que eu sei ser melhor na vida (...)quando eu falo de Leitor eu tô querendo falar é de Li-te-ra-tu-ra, (...) essa coisa de escritor criar um personagem e fazer a gente acreditar nele feito coisa que toda a vida a gente conheceu o cara, ou a cara, Literatura é fazer esse personagem inventado virar um espelho pra gente, (...)Literatura é o jeito que um escritor descobre pra passar isso pra gente dum jeito que é só dele, e quando um ida a gente afina com o jeito dum escritor inventar, com o jeito que é o jeito dele escrever, nesse dia a gente vira Leitor dele e quer ler tudinho que o cara ou a cara escreveu, (...) a gente fica tão ligado nesse escritor que é capaz até de intuir o que que ele vai escrever... (BOJUNGA, 1992, p. 35) No caso de História sem fim, o envolvimento do leitor no processo de leitura vai a níveis ainda maiores de “simbiose” com o texto. A medida em que progride na leitura, Bastian não apenas compara sua vida e sentimentos com os de Atreiú (personagem do livro que Bastian lê): ele é absorvido pela leitura e se deixa “capturar”, sendo levado para o interior da obra que lê. Ao acompanhar a preocupação com a possibilidade do desaparecimento de fantasia, Bastian se vê impelido a participar da aventura: 163 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Bastian alegrava-se por ter alguma coisa em comum com Atreiú, pois em outros aspectos não havia grandes semelhanças entre eles, nem do ponto de vista da coragem e da decisão, nem do aspecto físico. Mas também ele, Bastian, tinha partido para a Grande Busca, e não sabia até onde ela poderia levá-lo, nem como poderia acabar. (ENDE, 2000, p.39). A complexidade dessa relação do leitor com o universo ficcional é enfatizada na trilogia de Cornelia Funke. Desde a obra inicial (Coração de tinta) o leitor real é impelido a acompanhar as aventuras de leitores ficcionais e toda a trilogia é permeada de reflexões sobre o fazer literário. Assim, a título de exemplificação, em Morte de tinta há uma instigante consideração sobre os limites da realidade e da fantasia: Elinor sempre participara com grande prazer dessas paixões – como costumam fazer os leitores. Afinal, era exatamente isso o que as pessoas procuravam nos livros: grandes sentimentos nunca vividos, dor que, se se tornasse muito forte, era possível deixar para trás apenas fechando o livro. Morte e destruição que pareciam deliciosamente verdadeiras se alguém as evocava com as palavras certas, e que se podia provar e abandonar entre as páginas sem perigo nenhum. (FUNKE, 2010, p. 108) Desta forma, as obras em análise possibilitam um exercício que, segundo Umberto Eco, é extremamente importante: “Refletir sobre essas complexas relações entre leitor e história, ficção e vida, pode constituir uma forma de terapia contra o sono da razão que gera monstros.” (ECO, 1994, p.145). CONCLUSÕES Pela leitura, o sujeito é levado a emitir juízos, os quais são frutos da vivência real e da experiência de leitura e do conhecimento transmitido pelo texto. Nas obras em análise (destacas acima), as reflexões de Lourenço (Paisagem) e o insólito adentrar do leitor nos livros (História sem fim e trilogia Mundo de tinta) permitem ampliar a discussão sobre o papel do leitor e sobre os limites entre ficção e realidade. Considerando que na fase atual da pesquisa ainda não foram produzidos textos para publicação (fase final), as análises ainda estão sendo processadas. REFERÊNCIAS ABREU, Márcia; SCHAPOCHNIK, Nelson (orgs). Cultura letrada no Brasil: objetos e práticas. Campinas/SP: Mercado das Letras, Associação de Leitura no Brasil; São Paulo: FAPESP, 2005. 164 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS AZEVEDO, Ricardo. Biografia de Ricado Azevedo. Disponível em: <http://www.ricardoazevedo.com.br/ricardo-azevedo/>. Acesso em: 24 nov. 2013 BARBOSA, João Alexandre. A biblioteca imaginária. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. BOJUNGA NUNES, Lygia. Paisagem. Rio de Janeiro: Agir, 1992. COLOMER, Teresa. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2003. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: literatura e senso comum. Trad. Cleonice Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2003. (Humanitas). EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. 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Para tanto, nesta pesquisa, far-se-á uma análise comparativa entre as narrativas destes autores ao mito de Electra presente nas tragédias gregas: Electra, de Sófocles, Coéforas, de Ésquilo e Electra de Eurípedes e buscar-se-á observar a Intertextualidade presente tanto na produção literária de Bidisha, quanto na ficção teatral, de Nelson Rodrigues. PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade, mito de Electra, Bidisha, Nelson Rodrigues. INTRODUÇÃO Do ponto de vista da produção literária, o presente projeto tem por finalidade realizar um estudo da tragédia referente ao mito de Electra numa análise comparativa da obra teatral Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues, e da narrativa ficcional O sonho de Electra, de Bidisha, com a dramaturgia grega. Possibilitando, dessa forma, pensar sobre o mito na contemporaneidade e sua importância na literatura. Outro foco da análise comparativa será proveniente do estudo da intertextualidade entre a obra clássica de Sófocles e o “O Sonho de Electra” de Bidischa, compreendendo como a literatura pode construir uma relação de deslocamento ou descentralização da representação imaginária de sentidos, reinventando ou reescrevendo o enredo mítico. A obra O sonho de Electra é muito pouco conhecida e estudada no Brasil, no entanto, sua publicação em Londres, em 1997, causou um grande impacto em seu meio literário, sendo calorosamente acolhida pela imprensa europeia, a autora na época, ainda, muito jovem, foi admitida com louvor na Universidade de Oxford Inglaterra, conforme enuncia a contra capa do próprio livro, que demonstra a relevância para a escolha desta obra. Por sua vez, Nelson Rodrigues consagrou-se como um artista renomado por seu estilo, sua inovação estética que modernizou o teatro brasileiro. Apesar do teatro rodriguiano ter sofrido críticas ferrenhas, sendo muitas vezes considerado obsceno e imoral, suas obras se tornaram-se conhecidas e o autor é reconhecido como um dos mais importantes representantes do teatro brasileiro. Do ponto de vista da produção literária, o presente projeto justifica-se como um estudo da tragédia referente ao mito de Electra numa análise comparativa da narrativa ficcional de Bidisha, e da obra teatral de Nelson Rodrigues com a 167 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS dramaturgia grega. Possibilitando, dessa forma, pensar sobre o mito de Electra na contemporaneidade, tendo em vista que, no dizer de Eudoro de Sousa, “[...] o mito é linguagem da sensibilidade e da imaginação; que é da sensibilidade e da imaginação que parte o impulso mítico, criador dos mitos” (SOUSA, 1981, p. 53). Outro foco de análise comparativa será proveniente do estudo da intertextualidade entre as obras. Percebe-se, neste sentido, a importância de estudar como a intertextualidade e a construção do mito de Electra tornam-se presentes na obra “Senhora dos Afogados” e em “O Sonho de Electra”, compreendendo como a arte literária pode construir uma relação de deslocamento ou descentralização da representação imaginária dos sentidos, além de observar a importância do mito na literatura contemporânea. A peça ficcional do dramaturgo e jornalista Nelson Rodrigues foi escrita em 1947, porém, somente torna-se pública em 1954, devido às restrições de censura da época, por ser considerada uma afronta aos bons costumes durante a ditadura de Getulio Vargas, assim como aponta Nuñez, “A despeito da total neutralidade política do texto, acúmulo de relações incestuosas crimes e indecorosidades projetadas para o palco angariaram o desfavor dos salvaguardas da moral e dos bons costumes, na era Vargas” (2000, p.218). Em Senhora dos Afogados, Nelson Rodrigues faz uma (re)apropriação da problemática universal e atemporal da versão clássica dos tragediográfos gregos, cujo conflito central é o incesto entre pai e filha. Portanto, Senhora dos Afogados incorpora em seu enredo a maldição dos “Atridas”, pois se nutre do antigo mito grego, seguindo o modelo criado pelo dramaturgo norteamericano, Eugene O’Neill. A família Drummond do teatro rodriguiano é marcada por vários assassinatos, pela quebra de regras sociais e pelo grotesco causando impacto em seus espectadores, assim como, outras peças deste dramaturgo chocariam a sociedade carioca, naquele momento. O enredo da obra, acima citada, se pauta basicamente no amor que a personagem Moema, filha do casal Drummond, tem pelo pai, Misael. Ela pretende ser a atenção exclusiva de seu genitor e por isso afoga suas irmãs Dora e Clarinda. Na sequência, arquiteta um encontro amoroso entre seu noivo e sua mãe Eduarda, a infidelidade não será perdoada, e ambos acabam sendo mortos. Ficando a sós com seu pai, Moema confessa amá-lo e desejá-lo, desejar tê-lo somente para ela, ser sua única filha. Após a sequência de assassinatos, o desfecho trágico ocorre quando Misael se suicida deixando sua filha totalmente sozinha. A trajetória de Nelson Rodrigues foi extensa antes de se tornar um dramaturgo polêmico. O autor nasceu na cidade do Recife – PE, 23 de agosto de 1912 e faleceu no dia 21 de dezembro de 1980 no Rio de Janeiro. Foi o quinto filho entre catorze e começou sua carreira, aos treze anos de idade, trabalhando como repórter na empresa de seu pai, jornalista Mário Rodrigues. Sua primeira peça teatral foi “Mulher sem pecado” escrita em 1941, sendo levada em cena um ano mais tarde, em 1942. A segunda peça foi “Vestido de Noiva” e tornou o autor conhecido. Depois de muitas outras, a encenação de “Senhora dos Afogados”, foi no Rio de Janeiro em 1954, sendo alvo de muitas críticas, considerado por uma parte da platéia como “gênio” e por outra como “tarado”. Como aponta a crítica sobre a obra, escrita pelo jornalista Gilberto Guimarães, do jornal “O popular”, no dia 22 de junho de 1954 Não vamos chamá-lo de gênio, como os seus entusiastas mais exaltados, mas também, não o vamos classificar de tarado, como os seus mais 168 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ferrenhos inimigos. Preferimos ficar numa posição intermediária, reconhecendo no Sr. Nelson Rodrigues o direito de escrever o seu teatro, já que ele não compreende teatro sem incestos, sem mortes, sem coisas horripilantes. Quem vai ao teatro para assistir a uma peça sua já deve ir de espírito prevenido, porque não encontrará outros motivos senão os de seu agrado. Gosta-se ou não se gosta, mas não faz atitude de surpresa, nem de gestos ensaiados de um puritanismo ridículo, muito menos se vaia um escritor quando apresenta, realmente, uma obra de arte, até porque a arte não está limitada, apenas, ao que constitui o lado bom da vida. (GUIMARÃES,1954)29 O teatro rodriguiano apesar de polêmico, por ser considerado muitas vezes obsceno e imoral, consagrou-se como um artista renomado com seu estilo, sua inovação estética moderniza o teatro brasileiro e assim, torna-se um importante representante do teatro brasileiro. A autora Bidisha Bandyopadhyay de O sonho de Electra, também se vale da fonte mitológica grega, assim como em Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues. Em o mito de Electra temos o conflito entre amor e o desejo da filha para com o pai, nas obras clássicas esse desejo é censurado por Electra, a protagonista da história, e muito provável que permaneça oculto em seu inconsciente, porém, leva-a a um dos crimes mais chocantes ou inaceitáveis para a humanidade, o matricídio. Já na obra de Bidisha escrita em 1997, esse amor e o desejo da relação carnal da protagonista com o seu progenitor não são reprimidos, tornando-se uma realidade evidenciada. Nesta obra não ocorre o matricídio, já que a imagem da mulher-mãe inexiste, pois o pai ficou viúvo quando, Pale Jesson, tinha somente três anos de idade. No romance, o mito se faz presente como pano de fundo do enredo, sendo que a personagem central já citada, Pale, se apaixona por um cineasta, Will Corrin, diretor do filme que, por coincidência ou não, é justamente intitulado de O sonho de Electra. A adolescente de quinze anos mantém sua primeira relação amorosa íntima com o personagem Will de trinta e oito anos, apenas três anos mais novo que o pai da protagonista. Ao ser questionado sobre seu novo envolvimento pessoal, o cineasta relata a idade da garota para seu amigo, o compositor Juliane Morgan, que o ironiza, irritado Will contesta que não foi sua escolha e que Nabokov (escritor russo que escreveu o livro “Lolita”, o qual narra a história de um professor de música que se apaixona por sua enteada de apenas doze anos) estivesse completamente enganado e talvez Freud (precursor da psicanálise, estudou o complexo de Édipo – paixão do filho pela mãe, teoria oposta ao complexo de Electra - paixão da filha pelo pai) também estivesse. Bidisha Bandyopadhyay nasceu em Londres em 29 de julho de 1978, filha de indianos migrados em 1972, e, com base nas informações do seu blog, a autora foi educada na escola Aske Haberdashers para meninas, estudou Inglês Antigo e Médio no Oxford Universidade. Como escritora iniciou seus trabalhos escrevendo para a revista de artes, ela assinou seu contrato primeiro livro, aos 16 anos. Seu primeiro romance intitulado O Sonho de Electra, foi publicado obtendo sucesso comercial e 29 Disponível em http: //www.nelsonrodrigues.com.br/site/criticasteatro_det.php?Id=13 169 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS de crítica, quando ela tinha 18 anos. A autora continua desenvolvendo seu trabalho escrevendo para jornais, publicou outros livros, também lecionou teoria política, filosofia moral e política, jornalismo, não-ficção e ficção para Arvon, The College London e tem realizado trabalho de divulgação em campos de refugiados na Palestina e em centros de refugiados no Reino Unido. Seu mais recente lançamento é o Livro Reportagem Beyond the Wall: Writing a Path Through Palestine, publicado pela Seagull Livros/ Universite Press, Chicago, em 15 de maio de 2012. METODOLOGIA O trabalho será de cunho bibliográfico, primeiro, realizar-se-ão leituras teóricas sobre o mito de Electra apresentado nos tragediógrafos gregos, de maneira especial em relação à obra Electra, de Sófocles, Coéforas, de Ésquilo e Electra, de Eurípedes, mostrar-se-á, desse modo, como o mito é apresentado nas referidas obras. Em um segundo momento, com base em estudos sobre o mito, buscar-se-á identificar como o mito de Electra encontra-se presente na narrativa “Senhora dos Afogados” de Nelson Rodrigues e em “O sonho de Electra” da autora Bidisha. Para tanto, serão analisados leituras do mito de Electra na obra de Sofócles, Eurípedes e Ésquilo e com base neste estudo teórico comparar-se-á as obras citadas. Buscar-se-á, ainda, estudar a representação da identidade cultural do sujeito nas obras. Deste modo, serão feitos diversos estudos de textos para, assim, analisar o mito na tragédia grega e a sua presença na literatura contemporânea, buscando, ainda, compreender como ocorre a construção da representação do sujeito pósmoderno nas obras, centrando o estudo na obra teatral brasileira e da autora indiana. Pretende-se, assim, com este projeto de iniciação científica visualizar como o mito de Electra encontra-se presente nestas obras numa análise comparativa, além de focalizar a construção da identidade do sujeito pós-moderno pelos autores. As análises e o resultado da pesquisa realizada serão divulgados por meio de comunicações em eventos científicos e pela elaboração da dissertação sobre o tema a ser estudado. CONCLUSÕES Nota-se, contudo, pelas referidas obras que após séculos que a literatura nutre-se dos mitos e há uma explicação para isto, pois o mito, conforme frisa Maria del Carmen Tacconi, é a busca de respostas para questões essenciais além da vida, ultrapassando a fábula, a moral e palavra reveladora, não é para pessoas supersticiosas, mas é uma história real, sagrada, supra-racional, não pode ser submetida a análises empíricas como um exame de sangue, mas ela transmite resposta às grandes perguntas como: O que se passa depois da morte? O que significa o mal? (TACCONI, 2012). Segundo o que afirma a escritora Berta Lucía Estrada Estrada, o mito estabelece relações com os fenômenos da vida humana e busca explicação para eles, ele é atemporal e verdadeiro, sagrado ou profano, por exemplo, no antigo testamento da Bíblia, principal livro usado pelo cristianismo, corresponde a mitos e lendas de diversas culturas e povos (ESTRADA ESTRADA, 2012). 170 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Acima de tudo, o mito expressa riqueza e profundidade. Para Eliade, além de ser um modelo exemplar, de regras, conduta e comportamento humano, o mito traz significado à existência humana, apesar de não ser uma garantia de “bondade” nem de moral. Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos (ELIADE, 2002, p.8). O autor explica ainda, que a sobrevivência dos mitos deve-se a literatura e as artes em geral, “[...] se a religião e a mitologia gregas, radicalmente secularizadas e desmistificadas, sobreviveram na cultura européia, foi justamente por terem sido expressas através de obras-primas literárias e artísticas.” (ELIADE, 2002, p.139) É possível encontrar nos mitos uma multiplicidade de sentidos e os conflitos universais básicos do ser humano, como o amor, sexo, casamento, trabalho, educação etc. talvez, isso explique a razão pela qual eles se perpetuam no tempo pela literatura e artes, sendo reinventado e reescrito por vários autores. REFERÊNCIAS BANDYOPADHYAY, Bidischa. O Sonho de Electra. Trad. Lídia Cavalcante Luther. São Paulo: Scipione, 1998. DURAND, Gilbert. 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Tendo em vista a magnitude do programa – o volume de investimentos do governo federal tem movimentado o mercado editorial de forma surpreendente – bem como a importância de políticas públicas voltadas para a formação de leitores, tornam-se necessárias pesquisas voltadas para a análise dos encaminhamentos e utilização das obras literárias destinadas ao público infantil, na esfera escolar. Cabe destacar que a formação dos mediadores de leitura é fundamental nesse processo, pois, além de conhecerem o material disponível, devem atuar de forma a promover a leitura e fomentar, como uma “ponte”, a aproximação da criança ao livro. A presente pesquisa visa contribuir com um estudo sobre o acervo do PNBE 2012. Pretende-se fazer um levantamento dos recontos do acervo 2012, destinado à Pré-escola e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, observando se há obras que dialogam com obras infantis clássicas. A partir deste levantamento, pretende-se analisá-las, observando como os contos contemporâneos do acervo promovem a releitura de contos de fadas e de obras consideradas clássicas na literatura infantil. Levando em consideração a importância do trabalho com os livros que compõem o acervo do PNBE 2012, a terceira etapa deste trabalho, em construção, pretende relatar uma atividade prática realizada junto a duas escolas no município de Medianeira, em turmas de 2º Ano. Busca-se utilizar o reconto Chapeuzinho Vermelho: uma aventura borbulhante de Roberts (2009), disponível no acervo, para realizar a contação de história a fim de perceber a recepção das crianças, se estas identificam o diálogo entre obra clássica e contemporânea, bem como a paródia que é constante na produção literária atual. PALARAS-CHAVE: Contos de fadas; Literatura Infantil; PNBE. 30 Aluna regular de Pós-graduação strictu sensu em Letras, nível de Mestrado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná -UNIOESTE- campus de Cascavel. Linha de Pesquisa: Literatura, memória, cultura e ensino. Orientadora: prof. Clarice Lottermann 173 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS INTRODUÇÃO A produção de obras de Literatura Infantil tem se expandido significativamente nos últimos anos. Isto se deve principalmente ao aumento de aquisições realizadas por parte do governo brasileiro que, através do PNBE– Programa Nacional Biblioteca da Escola – envia acervos para todas as bibliotecas de escolas públicas do território nacional. Assim, por meio do FNDE – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – o governo é o responsável pelo maior volume de compras de livros do país. De acordo com Paiva (2012, p. 15), “Essas ações mobilizam todo o mercado editorial, pois a escolha de um livro de uma editora garante uma movimentação editorial (produção, circulação) que abrange todo o território nacional”. A escolha do acervo PNBE para a pesquisa deve-se ao fato de que as obras são encaminhadas para as escolas públicas em todo o território nacional. Assim, busca-se conhecer a qualidade das obras literárias infantis que estão disponíveis nas escolas da rede pública de ensino. Essas, em muitos casos, são as únicas com as quais as crianças têm contato, pois a escola ainda é o principal local para a mediação da leitura. Conforme Paiva (2009, p. 150), “raramente, em nossas pesquisas sobre os acervos de bibliotecas escolares, a recepção e o uso de livros de literatura distribuídos pelos programas de incentivo à leitura são considerados”. Para esta pesquisa, foram consultadas as obras destinadas à Pré-escola e Anos Iniciais do Ensino Fundamental (do PNBE 2012). Destas, que totalizam cento e cinquenta títulos, foram identificadas releituras de contos de fadas que posteriormente foram analisadas a partir de aspectos em comum. O levantamento de dados foi realizado junto a duas bibliotecas escolares do município de Medianeira (PR). Para se efetivar um trabalho com o material pesquisado, optou-se por selecionar uma obra do acervo pesquisado e realizar uma atividade de contação de história em duas escolas da rede municipal de Medianeira, buscando-se observar a recepção das crianças: se estas percebem a intertextualidade com os contos de fadas e se identificam os aspectos diferenciados na história ouvida. Buscou-se, inicialmente, aprofundar os estudos sobre o PNBE, através da caracterização do programa e seu histórico, bem como através de levantamento das obras que compõem o acervo 2012 destinado à Pré-escola e Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Embora exista uma conscientização sobre a importância da leitura, percebese que somente distribuir obras literárias não basta para que a formação de leitores de fato se efetive. É fundamental formar os mediadores de leitura, e estes devem conhecer o material disponível para organizarem práticas de leitura significativas para os alunos. Somente desta forma poderão fazer a ponte entre criança e livro. Nesse sentido, torna-se também imprescindível o trabalho com obras clássicas para que os alunos posteriormente possam perceber a intertextualidade entre livros clássicos e contemporâneos. Com esse propósito, este estudo pretende subsidiar pesquisadores de literatura Infantil, professores de Língua Portuguesa e Literatura, colaborando para as práticas de leitura em sala de aula. Acredita-se que somente a partir de uma sensibilização sobre a importância da Literatura Infantil é que será possível estimular o gosto pelos livros através de diferentes metodologias. Para isso, é fundamental que os professores ampliem seus conhecimentos sobre as obras contemporâneas, 174 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS conheçam os acervos disponíveis nas bibliotecas escolares e organizem atividades de leitura significativas, de modo a contribuir efetivamente para a formação de leitores. Partindo de tais perspectivas, a análise dos recontos, neste trabalho, considera, sobretudo os estudos de Hutcheon (1985), para compreensão acerca do conceito de paródia, Bakhtin (1996) para conhecimento da história do riso, Sant’ Anna (2003) para definir conceitos de intertextualidade, Darnton (2011) para conhecimento acerca da origem dos contos de fadas, bem como do histórico e contexto da época em que se inserem. Também consideramos Machado (2002) para fundamentar a importância dos clássicos universais e Aguiar e Martha (Org.) (2012) para fundamentar o conceito de reconto e sua utilização na formação de leitores. METODOLOGIA Para responder às questões levantadas, a pesquisa é basicamente de cunho bibliográfico, análise comparativa de textos ficcionais e atividade prática de contação de história junto a instituições escolares. Desta forma, a pesquisa segue as seguintes etapas: • Geração de dados: Leitura das obras do acervo do PNBE (2012) em bibliotecas escolares do município de Medianeira: são 150 obras destinadas à Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, sendo 50 títulos para a Pré-escola e 100 títulos para os Anos Iniciais do ensino Fundamental, a fim de identificar releituras de contos de fadas. • Histórico do PNBE: Levantamento de dados (estatísticos, evolução, escolas atendidas, pesquisas relacionadas) sobre o Programa Nacional Biblioteca da Escola. • Comparação: Análise, sob o viés comparatista, observando-se como as obras contemporâneas estabelecem diálogo com os contos de fadas tradicionais. Os recontos identificados no acervo do PNBE 2012 serão apresentados em blocos, seguindo aspectos em comum. Serão utilizadas obras teóricas apropriadas para análise dos recontos. • Atividade Prática: Contação de história junto a duas escolas municipais em Medianeira, em turmas de 2º Ano, a fim de observar como ocorre a recepção da obra Chapeuzinho Vermelho: uma aventura borbulhante (2009) de Lynn Roberts, com o objetivo de perceber se as crianças identificam o diálogo entre o conto clássico e o contemporâneo. RESULTADOS E DISCUSSÃO Por meio de um levantamento acerca do histórico do Programa Nacional Biblioteca da Escola- PNBE-, é possível destacar relevantes dados estatísticos sobre os investimentos realizados ao longo dos anos, desde a implantação do Programa 175 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS (em 1997). Nesse sentido, observa-se o panorama de crescimento, sendo que o mesmo foi sendo modificado ao longo dos anos, beneficiando, a cada acervo enviado, um maior número de alunos atendidos. O site oficial do FNDE31 – Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – apresenta informações sobre o Programa, destacando o histórico, funcionamento, dados estatísticos, editais, distribuição, legislação, perguntas frequentes sobre o PNBE e contatos para maiores detalhes. No Portal Mec 32 também encontram-se dados sobre o Programa: apresentação, acervos, acervo do Professor, publicações e periódicos. A partir da leitura das obras literárias que compõem o acervo do PNBE 2012 destinado à Educação Infantil e Anos Iniciais do Ensino Fundamental, notou-se que muitas obras contemporâneas dialogam com as clássicas. Do mesmo modo, personagens clássicos são retomados através da paródia, do humor e ironia. Após o levantamento e leitura das 150 (cento e cinquenta) obras que compõem o acervo em análise, ficou evidente que o diálogo prevalece, sobretudo, com os personagens clássicos mais conhecidos: Chapeuzinho Vermelho, Lobo e Princesas (Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida). Desta forma, para a análise, foram agrupadas em dois blocos, de acordo com aspectos em comum. No primeiro, intitulado Chapeuzinho e Lobo, são analisadas sete obras, chamando-se atenção para o diálogo que estabelecem a partir do conto clássico Chapeuzinho Vermelho. No segundo bloco, intitulado Príncipes e princesas, são analisadas seis obras, a partir do diálogo que estabelecem com contos de fadas clássicos. CONCLUSÕES Embora exista uma conscientização sobre a importância da leitura, percebese que somente distribuir obras literárias não basta para que a formação de leitores de fato se efetive. É fundamental formar os mediadores de leitura, e estes devem conhecer o material disponível para organizarem práticas de leitura significativas para os alunos. Somente desta forma poderão fazer a ponte entre criança e livro. Nesse sentido, torna-se também imprescindível o trabalho com obras clássicas para que os alunos posteriormente possam perceber a intertextualidade entre livros clássicos e contemporâneos. Assim, quando não identificado o diálogo, a releitura fará um sentido, mas não o mesmo que o leitor com uma “bagagem de leituras” terá. Cabe aos mediadores de leitura a tarefa de formar leitores. Para tanto, é fundamental que estes sejam leitores, conheçam não só os acervos do PNBE disponíveis, mas também as demais obras literárias que constituem o acervo das escolas. Os contos de fadas, tendo suas raízes na oralidade, têm se perpetuado há séculos, e contemporaneamente seus personagens clássicos se destacam não só em obras literárias, mas também em comerciais, filmes, desenhos animados, revistas, contos, poemas, brinquedos, fantasias (roupas e adereços), enfim, apresentam-se no contexto atual revestidos com características e/ou comportamentos modernos. 31 32 http://www.fnde.gov.br/programas/biblioteca-da-escola/biblioteca-da-escola-apresentacao http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12368&Itemid=575 176 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Observando e lendo textos endereçados para crianças, é possível concluir que os recontos estão muito presentes na Literatura Infantil contemporânea. O sucesso da repercussão dos contos de fadas pode ser comprovado a partir das inúmeras edições tanto dos clássicos como de releituras dos mesmos. E assim esse gênero se mantém vivo no decorrer dos anos ocupando um espaço significativo na produção literária destinada ao público infantil. REFERÊNCIAS AGUIAR, V. T de. Do conto ao reconto: uma viagem ao presente. In: ____; MARTHA, A. Á. P. (Orgs.) Conto e reconto: das fontes à invenção. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. P. 47-56. BAKHTIN, Mikhail. Rabelais e a história do riso. In:______ A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2002. (p. 51-123). DARNTON, R. Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso. In: ______. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução: Sonia Coutinho. São Paulo: Graal, 2011. P 13-103. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Tradução: Teresa Louro Pérez. 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Para tanto, o ensaio hispano-americano é conceituado, de acordo com Gómez Martínez (1992), bem como o boom hispano-americano, conforme Rama (2005) e Donoso (1987) e o novo romance hispano-americano, segundo Jozef (1993) e Fuentes (1976), os dois últimos relacionam-se ao romance fuentiano. A cidade é problematizada por meio de Calvino (1998), García Canclini (1999), Lynch (1999), Romero (2004) e Silva Júnior (2010). No que se refere à mitologia asteca, e por conseguinte mexicana, vale-se de Chevalier e Gheerbrant (2009) e Donato (1973). Para a compreensão do vocabulário nahuátl e dos mexicanismos presentes no romance, utilizou-se o Diccionario de la Real Academia Española (DRAE) e o Diccionario de español do México (DEM). A teoria romance polifônico, de Bakhtin (1993; 2010) é aplicada à obra de Fuentes. Espera-se que este estudo contribua para novas pesquisas no âmbito da cidade, de modo que a urbe passe a ser mirada como elemento fundante de uma sociedade, e portanto, com presença significativa nas obras literárias, sendo assim, um campo riquíssimo de estudo. PALAVRAS-CHAVE: México; Alfonso Reyes; Carlos Fuentes. INTRODUÇÃO Este estudo é síntese da pesquisa de mestrado em Letras, ainda em fase de desenvolvimento, a ser apresentada à Unioeste. Tem-se o objetivo de analisar comparativamente as representações do México presentes nos ensaios de Alfonso Reyes: Visión de Anahuác (1915) e Palinodia del polvo (1940) e no romance La Región más Transparente (2008), de Carlos Fuentes. A dissertação contempla quatro capítulos, no primeiro são tecidas informações referentes aos autores, sua relação com o México e com o tempo 33 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, Linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da professora Dra. Ximena Antonia Díaz Merino. Bolsista da Capes. Endereço eletrônico: [email protected]. 178 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS histórico em que produziram tais obras; de modo que se conceitua ensaio hispanoamericano, boom hispano-americano e novo romance hispano-americano. No segundo capítulo, trata-se sobre os ensaios alfonsinos, no qual é problematizada a estrutura de Visión de Anahuác, isto é, há discordâncias sobre o gênero literário que este texto pertence; além de analisar a relação do texto com as visões dos cronistas e o México na época dos astecas. Ocupa-se ainda da retratação Palinodia del polvo, sua relação com a Física, a Filosofia e as referências à Literatura. Ademais da comparação entre os dois ensaios. No terceiro capítulo, a cidade é teorizada a partir de Calvino (1998), Canclini (1999), Romero (2004) e Silva Júnior (2010). O romance La región más transparente é analisado por meio da fala de algumas personagens, como: Ixca Cienfuegos, Teódula Moctezuma, Gladys García e Manual Zamacona. Além disso, o conceito de polifonia é aplicado ao romance, isto no que concerne aos caracteres plurilinguístico, pluriestilístico e plurivocal. No último capítulo, ainda a ser desenvolvido, propõe-se a confrontação entre a configuração da urbe nos ensaios e no romance. Atentando-se para a relação entre Visión de Anahuác e a personagem do romance Ixca Cienfuegos, bem como a relação entre Palinodia del polvo e a personagem fuentiana Federico Robles. OBJETIVOS O objetivo principal deste estudo é analisar comparativamente as representações do México presentes nos ensaios de Alfonso Reyes: Visión de Anahuác (1915) e Palinodia del polvo (1940) e no romance La Región más Transparente (2008), de Carlos Fuentes. Como objetivos secundários tem-se: analisar comparativamente as representações do México presentes nos ensaios de Alfonso Reyes. Analisar como o México é representado nas vozes de algumas personagens do romance fuentiano, a saber: Ixca Cienfuegos, Teódula Moctezuma, Gladys García, Manual Zamacona e Federico Robles. Contrastar estes diferentes olhares. Aplicar a teoria de romance polifônico, nos seus três caracteres: plurilinguístico, pluriestilístico e plurivocal, à obra de Fuentes. Por fim, relacionar elementos de Visión de Anahuác com a personagem do romance Ixca Cienfuegos, bem como relacionar Palinodia del polvo com a personagem fuentiana Federico Robles. METODOLOGIA A metodologia aplicada encontra-se no âmbito exploratório da produção narrativa e ensaística dos autores selecionados. Para a análise do corpus de estudo privilegia-se a Literatura Comparada. Eduardo Coutinho (2003) afirma que com os estudos da Escola Americana de Literatura Comparada tal disciplina passou a ter um caráter interdisciplinar, aproximando-se tanto das diferentes formas de arte quanto 179 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS de outras esferas do conhecimento. Coutinho (2003) acrescenta que a Literatura Comparada vem ganhando espaço nas literaturas consideradas até então periféricas, inclui-se aqui a literatura latino-americana e mais precisamente a mexicana. Como salienta Coutinho (2003, p.20), na leitura comparatista deve prevalecer “[...] o elemento de diferenciação que este último [texto segundo] introduz no diálogo intertextual estabelecido com o [texto] primeiro”. Assim, trabalha-se com a arte literária de um mesmo espaço, o México, mas distintos são os olhares sobre esta urbe, inclusive em uma mesma obra, como ocorre explicitamente em La región mas transparente. Procurou-se, portanto, observar o que difere as visões sobre esta cidade, bem como o que lhes é comum, atentando-se para a especificidade de cada gênero literário. RESULTADOS E DISCUSSÃO Salienta-se que os resultados são incipientes devido ao fato de a pesquisa ainda estar em andamento. Ciudad de México, antiga Tenochtitlán, é permeada pela cultura asteca e influenciada por hábitos europeus, é nesta cidade que se dá a narrativa de Fuentes, por meio de mais de oitenta vozes, que a partir de suas singularidades exibem sua relação com a urbe. Por isso, Ciudad de México é policultural e polifônica. Tais características reafirmam o fato de Junior (filho de milionários) falar em inglês, Pedro Caseaux (jogador de polo), francês e Gabriel (imigrante ilegal nos Estados Unidos) e Gladys García (prostituta) um espanhol repleto de gírias e palavrões. De modo, que a posição social que estes sujeitos ocupam está interrelacionada com o modo como observam o lugar onde habitam e qual sua relação com ele. Para Junior e Pedro Caseux, existe o México noturno das festas requintadas, com bebidas exóticas e pessoas com roupas exuberantes. Já Gabriel, vive no México marginalizado, onde não há luz elétrica e poucas oportunidades de trabalho. Gladys vive também no México noturno, trabalha em uma boate e ao sair de lá todas as manhãs observa o lixo das ruas, o desperdício de alimento e as crianças de rua dormindo sobre jornais. Já Alfonso Reyes, traz o México original, por tratar sobre a dissecação do Valle de México, sobre as visões dos cronistas acerca de Tenochtitlán, sobre a relação dos astecas como o mundo através do poema Ninoyolnonotza, além de retratar o México “empoeirado” e suas paisagens. CONCLUSÕES Infere-se que as obras analisadas são altamente elaboras e plurissignificativas. De modo, que apenas alguns aspectos puderam ser observados, vistas sua complexidade e extensão – esta no que se refere ao romance. Portanto, há diversas outras possibilidades de análises comparativas entre Palinodia del polvo, Visión de Anahuác e La región más Transparente. 180 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Salienta-se que a cidade é o elemento fundante das três obras em questão, no romance fuentiano ela é a personagem principal; já nos ensaios é sobre ela que o Reyes escreve. Finalmente, percebe-se que o multiculturalismo do México real aparece no ficcional; característica esta indissociável do citadino e que atribui a este país uma imensa riqueza cultural. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de estética. (A teoria do romance). Tradução: Aurora Fornoni Bernardini et al. 3.ed. São Paulo: Editora UNESP, 1993. ______. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução: Paulo Bezerra.5ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. 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Assim, para se pensar em cultura é necessária uma ruptura com as concepções cristalizadas em nós mesmos, uma vez que nossos conceitos não devem ser utilizados para julgarmos a organização de outros grupos culturais. Devemos ter em mente que as culturas são sócio historicamente construídas. Nesse sentido, trazemos para o trabalho, a título de reflexão sobre o funcionamento das políticas multiculturalistas, os questionamentos de Lila Abu-Lughod (2012) acerca de um discurso ocidental calcado na batalha pela “salvação” das mulheres muçulmanas, uma vez que essas mulheres são apresentadas – através do olhar ocidental – como sujeito oprimido dentro de sua própria sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Olhar; Outro; Minorias. INTRODUÇÃO Definir um conceito sobre cultura não é uma tarefa fácil, parece até impossível, pois o termo recebe uma ampla gama de significados. Laraia (2009) nos mostra em seu livro Cultura: um conceito antropológico que por muito tempo tentou-se explicar as diferenças existentes entre os povos ora por meio do chamado determinismo biológico, ora pelo determinismo geográfico. Atualmente, os antropólogos estão convencidos de que as diferenças genéticas não são responsáveis pelas diferenças culturais. A divisão sexual do trabalho, por exemplo, é determinada culturalmente e não em função de um fator biológico. Em outras palavras, é possível dizer que o comportamento dos indivíduos depende de um aprendizado, de um processo que chamamos de endoculturação. Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada (LARAIA, 2009, p. 19). 34 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da profesora Dra. Regina Coeli Machado e Silva. Bolsista Fundação Araucária. Endereço eletrônico: [email protected]. 183 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Georg Mead, estudioso do interacionismo simbólico, analisou diferentes povos e maneiras, e, como são transmitidas as imagens relacionadas aos homens e mulheres. Conclui que apesar dos aspectos biológicos, o espaço ocupado na questão de gênero se diferencia nos diversos povos conforme as personalidades que são construídas, como docilidade, sensibilidade, agressividade, servilidade, assemelhando tais características a ambos os sexos ou as destinando aos homens ou às mulheres conforme seus grupos sociais. O determinismo geográfico, por sua vez, desde a Antiguidade, tenta explicar as diferenças culturais a partir das variações dos ambientes físicos. O romano Marcus V. Pollio, por exemplo, acreditava que o fato de os habitantes do sul terem se desenvolvido sob a raridade da atmosfera e do calor os possibilitariam possuir maior inteligência; diferentemente dos povos do norte, que possuem a inteligência mais vagarosa devido ao fato de habitarem uma região de atmosfera densa com vapores de ar carregado (Laraia, 2009). Ainda no século XX, Huntington formula uma relação entre a latitude e os centros de civilização, considerando o clima como fator importante no desenvolvimento desse progresso. Esse determinismo passa a ser refutado a partir da década de 20 por antropólogos que provam que habitantes de ambientes geográficos muito semelhantes possuem adaptações culturais diferentes para sua sobrevivência. Isso prova que a cultura age “seletivamente”, e não casualmente sobre seu meio ambiente, “explorando determinadas possibilidades e limites ao desenvolvimento, para o qual as forças decisivas estão na própria cultura e na história da cultura”. (SAHLINS apud LARAIA, 2009, p. 24). Ruth Benedict, que fez parte da escola americana, desenvolveu a ideia de que cada cultura possui um estilo, ou seja, segue um modelo. E isto seria possível por intermédio das instituições, em especial as educativas. Estas se encarregam de moldar os comportamentos dos indivíduos, incutindo valores e oferecendo, de modo inconsciente, um modelo para todas as atividades da vida, portanto, exercendo influência nas personalidades. Assim, cultura passa a ser percebida como algo adquirido e sua prática pode ser inconsciente. Desde os primeiros instantes de vida, o indivíduo é impregnado deste modelo, por todo um sistema de estímulos e de proibições formulados explicitamente ou não. Isto o leva, quando adulto, a se conformar de maneira inconsciente com os princípios fundamentais da cultura (CUCHE, 1999, p. 81). Cada sistema cultural possui uma expressão própria e cada prática, por mais corriqueira que seja, como comer, vestir, andar e falar faz parte da representação cultural, não sendo realizada da mesma forma em culturas diferentes. Cultura é sinônimo de expressão das práticas e valores que representam a identidade do ser humano, a forma que ele pensa e age por meio de símbolos e signos. Lévi-Strauss, outro importante pesquisador, vê a cultura como um conjunto de sistemas simbólicos. Todas as visões e representações que as pessoas têm do mundo, de si mesmo e das outras pessoas fazem parte da cultura. Assim, crenças religiosas, educação e arte são manifestações culturais, enquanto ideias e comportamentos são expressões da cultura dos diversos povos, dos diferentes momentos históricos e dos vários grupos sociais (LARAIA, 2009). 184 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS METODOLOGIA O trabalho, de cunho bibliográfico, foi desenvolvido por meio de leituras e análises reflexivas dos textos teóricos, os quais discorrem acerca das questões relativas aos estudos culturais. Os textos que embasaram o presente trabalho foram Cultura: um conceito antropológico, de Roque de Barroa Laraia (2009); Cultura na prática, de Marshall Sahlins (2007); A noção de cultura nas ciências sociais, de Denys Cuche (1999); Da sociogênese dos conceitos de “civilização” e “cultura”, de Norbert Elias (1990); O saber local, de Clifford Geertz (1997) e As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? de Lila Abu-Lughod (2012). Ambos foram lidos, analisados e discutidos em encontros na disciplina de metodologia da pesquisa em Estudos Literários. RESULTADOS E DISCUSSÃO O conceito de cultura surge através da sintetização dos termos Kultur e Zivilization. Como todo conceito, as noções que se empregavam a ambas as palavras nasceram de conjuntos específicos das situações sócio histórias em que as palavras surgiram. Assim, o conceito francês de Zivilization refere-se principalmente as realizações materiais de um povo, e constitui o oposto da bárbarie, não sendo apenas um estado, mas um processo. Kultur, de origem germânica, simboliza os aspectos espirituais, o orgulho nas realizações e a virtude. Para os alemães, o conceito de Kultur sobrepunha o de Zivilisation, pois Kultur está ligada a ideia de identidade nacional, o que carrega consigo uma maneira de marcar a diferença. Para os últimos, buscou-se um sentimento interior, uma essência, a construção de uma interioridade. Já no termo Zivilization não está contida a ideia de diferença e seu conceito está relacionado ao encontro com o outro (por esse motivo o conceito pode ser considerado um dos legados do colonialismo). Elias (1990) mostra que a antítese é a responsável pelo surgimento de pares opostos como “profundeza” e “superficialidade”, “polidez de fachada” e “autêntica virtude”. Enquanto o conceito de civilização inclui a função de dar expressão a uma tendência continuamente expansionista de grupos colonizadores, o conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: Qual é, realmente, nossa identidade? (ELIAS, 1990, p. 25). No período em que aconteceu a guerra franco-alemã, a França se julgava civilizada, dotada de avanços técnicos e científicos, enquanto a Alemanha, buscando a unificação de seu povo, ligava a cultura ao conceito de nação. Edward Taylor, antropólogo britânico, foi o responsável por sintetizar ambos os termos no vocábulo inglês Culture. Este mesmo autor escreveu, no século XIX, o livro Cultura Primitiva, no qual, examinou as origens de algumas chamadas culturas primitivas. Taylor valorizou as culturas destes povos que na época eram desconsideradas, pois frequentemente 185 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS eram denominados de selvagens ou até mesmo vistos como sinônimo contrário à cultura, quando essa era vista como representante da civilização. Assim, o estudioso confirma a ideia de que cultura não era algo herdado biologicamente, como se pensava, mas adquirida e a sua prática em grande parte poderia ser inconsciente. Cultura e civilização, tomadas em seu sentido etnológico mais vasto, são um “conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade.” (TYLOR apud CUCHE, 1999, p. 35) Analisá-la como uma prática adquirida pode não ser novidade, mas era um pensamento avançado para a época que, até então, se utilizava das teorias raciais para justificar a ideologia neocolonialista. Estas constituíam a base de apoio para a “necessidade” de levar a civilização aos povos primitivos, uma vez que eles eram considerados sinônimo de atraso. Isto conduziria à aceitação da condição de dependência, pois acreditava-se na existência de países que deveriam conduzir os demais. O etnocentrismo pode tomar formas extremas de intolerância cultural, religiosa e até política. “Pode também assumir formas sutis e racionais. [...] Em ruptura total com esta concepção, a antropologia cultural introduz a ideia de relatividade das culturas e de sua impossível hierarquização a priori.” (BOAS apud CUCHE, 1999, p. 48). Lila Abu-Lughod, professora de antropologia e especialista no mundo árabe, em seu artigo intitulado “As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação?”, discorre acerca de alguns questionamentos suscitados pela “Guerra ao Terrorismo” no Afeganistão, cuja intervenção é “justificada” sob a alegação da necessidade em liberar ou salvar as mulheres afegãs. Um dos pontos chaves levantados na luta contra a opressão dessas mulheres muçulmanas está relacionado ao uso da burca. Justificam, dessa maneira, o bombardeio americano e a intervenção, uma vez que a luta contra o terrorismo é também uma luta pela garantia dos direitos e dignidade das mulheres. Contudo, o que os liberais não esperavam e que causou extrema surpresa foi o fato de as mulheres continuarem usando suas burcas mesmo depois da liberação do Afeganistão pelo Talibã. Abu-Lughod explica que a burca é uma das vestimentas que se desenvolveu no subcontinente e no Sudoeste da Ásia como uma convenção que simboliza a modéstia ou a respeitabilidade da mulher, sendo responsável por marcar a “separação simbólica entre as esferas masculina e feminina”, ficando associado às mulheres a casa e a família, e não o espaço público onde os estranhos se misturam. Assim, muitos viam a burca como uma invenção libertadora porque permitia à mulher se mover no espaço público sinalizando, ao mesmo tempo, que ela ainda estava no espaço inviolável de sua casa. Olhar outra cultura com os olhos da nossa possibilita certo estranhamento, uma vez que a diferenciação cultural de tempo, espaço, classes, sexo, faixa etária e outras categorias sociais é um código simbólico pertencente a todos os grupos culturais. Sahlins (2007) afirma a existência de regras sistemáticas de categorização social, as quais regem os usos das vestimentas. A significância social da roupa está representada nos traços, nos contrastes de cor, no tipo e na congruência das peças, nas espécies de acessórios, nas qualidades de textura e suas formas de combinação. Todas essas características fazem parte de um processo simbólico que carregam significados específicos. 186 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Temos roupas para a noite e roupas para o dia, ‘vestidinhos para o fim de tarde’ e roupas de dormir (pijamas). Cada uma delas faz referência à natureza das atividades ordenadas por esses períodos. [...] Essa consubstancialidade do sujeito e do objeto está baseada numa identidade de essências, tais como a seda é “feminina” porque as mulheres são ‘sedosas’. ‘Fino como seda’, ‘macio como seda’, o tecido opõe-se, de um lado, à masculinidade da lã e, de outro, à inferioridade do algodão (SAHLINS, 2007, p. 196). E mais ainda, o sistema simbólico que permeia o uso da burca e outras vestimentas de cobertura também tem sua variedade local bem como categorias sociais, como os grandes lenços conhecidos como chadors ou o modesto vestido islâmico hijab. Há muitas formas de cobertura e cada uma com um significado diferente nas comunidades nas quais são usadas. Em uma comunidade beduína no Egito, por exemplo, são as mulheres que decidem diante de quem é apropriado usar o véu. Nesse sentido, a autora questiona sobre o significado da liberdade em um contexto de múltiplas diferenças sociais e históricos, as quais dão forma aos desejos e entendimentos do mundo. Saber lidar com os “outros” culturais implica na aceitação da possibilidade da diferença, pois ela é produto de histórias diferentes “como expressões de diferentes circunstâncias e como manifestações de desejos diferentemente estruturados”. Muitas vezes, essas mesmas mulheres muçulmanas por quem o Ocidente se lamenta de piedade gostariam de coisas diferentes daquilo que os outros almejam a elas como, por exemplo, viver em famílias unidas, viver próximas de Deus, viver sem guerra (Abu-Lughod, 2012). A justiça, nesse caso, passa a ser relativa, uma vez que os conceitos também são construídos culturalmente. O desejo pela liberdade e liberação é um desejo historicamente situado, cuja força motivacional não pode ser assumida a priori, mas precisa ser reconsiderada à luz de outros desejos, aspirações e capacidades inerentes a um sujeito culturalmente e historicamente localizado. (ABU-LUGHOD, 2012, s/p.) De fato, os anseios e desejos são diferentes em cada cultura. A autora relata que em seus longos 20 anos de trabalho de campo no Egito não rememora qualquer mulher que tenha expressado inveja das mulheres norte-americanas. Ao contrário, elas costumam achar que as americanas são mais vulneráveis à violência sexual e à exclusão social, dirigidas mais pelo sucesso individual que pela moralidade. CONCLUSÕES O trabalho realizado não se trata da tomada de posição para uma redução simplista do relativismo cultural, ou seja, pensar que a cultura de outros povos nunca será compreendida de maneira adequada por quem não faz parte dela. Geertz afirma ser possível entender, sim, os mecanismos simbólicos que regem o comportamento de outras culturas. Para isso é preciso mudar o lócus do olhar, e não tentar interpretá187 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS la de fora. É preciso olhar através dela e tornar aquilo que é exótico familiar (Geertz, 1997). Nesse sentido, concluímos que é preciso considerar a existência de múltiplas culturas e não de uma cultura universal; pensar as diferenças em vez de hierarquizar as culturas, pois os povos não são mais ou menos desenvolvidos, mas possuem hábitos diferentes. Por isso cada cultura deve ser considerada em seu processo de imaginação simbólica, e não comparada às outras, evitando assim o preconceito. REFERÊNCIAS ABU-LUGHOD, Lila. As mulheres muçulmanas precisam realmente de salvação? Reflexões antropológicas sobre o relativismo cultural e seus outros. Revista Estudos Feministas on line [On line]. Florianópolis. Volume 20, número 2, maio/agosto 2012. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2012000200006. Acesso em 20/07/2014 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Trad. Viviane Ribeiro. Bauru: EDUSC, 1999. ELIAS, Norbert. O processo Civilizador. Volume 1: Uma História dos Costumes. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., 1990. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Trad. Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 24. ed Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. Rio de SAHLINS, Marshall David. Cultura na prática. Trad. Vera Ribeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ: 2007. 188 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS LÍLIA SILVA: PSICANÁLISE E FAZER POÉTICO Job Lopes35 RESUMO O estudo de tese consiste na hermenêutica do universo poético e psicanalítico constituído a partir das obras líricas, plásticas e teatrais da autora contemporânea Lília A. Pereira da Silva – uma artesã da palavra, uma escritora de profunda sensibilidade que tece obras com expressivo lirismo. Sua escrita apresenta um universo fantástico e imaginário. A escritora publicou mais de cem livros em diversas áreas: poesia, teatro, romance, literatura infantil, Direito, Psicologia e Artes Plásticas, tendo a palavra articulada como forma de expressão e representação de experiências pessoais, imaginárias e de questionamentos do inconsciente. Observase em suas produções, uma linguagem melindrosa e espontânea que vai se articulando com símbolos que refletem a inquietude do homem diante da existência. O eu poético expressa nos versos seus anseios e angústias, por meio, de figuras arquetípicas, que revelam o teor de seus sentimentos. Partindo dos estudos simbológicos, “O símbolo tem precisamente essa propriedade excepcional de sintetizar, numa expressão sensível, todas as influências do inconsciente e da consciência, bem como das forças instintivas e espirituais...”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 14). Compreende-se, que reside na escrita simbológica da escritora a síntese exata do interior que configura imagens que transcendem a facúndia de suas obras. PALAVRAS-CHAVE: Poesia; Psicanálise; Arte. INTRODUÇÃO Os signos da psique emanam nas obras de Lília como expressões do interior, figuras do inconsciente que configuram emoções que se ocultam e sentimentos que percorrem arraigados a travessia humana. Compreende-se, que esses signos representam o duplo advindo do alemão Döppelgänger, que designa – aquele que caminha do lado, a sombra do sujeito. O duplo se manifesta na composição liliana a partir da construção de sensações, densas, eivadas de conflitos pessoais, angústias e dramas existenciais. Signos que reivindicam um espaço e se significam, pois ocupam um lugar na vida do homem. Assim, eles travam uma luta, entre a realidade que os sufoca, e a imobilidade de romper com a estrutura em que estão imersas. Segundo os estudos de Jung (2008), há um lado sombrio na personalidade humana, outro universo, oculto e obscuro que não se deixa ver-se, um lado que (Bolsista CAPES – Doutorando de Letras - Linguagem e Sociedade – Linha de pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados; Grupo de pesquisa: Poéticas do Imaginário e Memória – UNIOESTE/PR). [email protected]: Antonio Donizeti da Cruz (UNIOESTE/PR) 35 189 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS habita os sentimentos mais profundos, os desejos mais lôbregos e as sensações negativas. A duplicidade pode ser interpretada como um processo de divisão “... porque há dentro de cada um de nós um estranho que irrompe nos sonhos, nos pesadelos que nos acordam, nos atos falhos que se chamam de inconsciente” (SLAVUTZKY, 2009, p.84). O inconsciente coletivo é a biblioteca da mente, um arquivo de toda a experiência vivenciada da qual se pode acionar no presente. É a partir dele que os signos se materializam com as formas desse lado que se esconde no sujeito, “Se quisermos encontrar o verdadeiro self, precisamos mergulhar no mundo da sombra e em seu fluxo constante. Parece uma busca perigosa, uma empreitada que faria empalidecer o maior dos heróis” (CHOPRA, 2010, p. 18). Entende-se a partir do autor, que o escritor passa a expressar esses signos em sua composição, pois não são meros elementos ficcionais, mas por ele estar à procura de si, pois encontrar esses signos – seria encontrar seu verdadeiro self. Há em cada indivíduo um outro “eu” a ser descoberto conforme os estudos de Jung (1984), o homem existe tanto no plano consciente quanto no plano inconsciente, ele age nesses dois polos que devem ser complementares e comunicáveis. A persona para Jung (1984) é um complexo sistema de analogia entre a consciência individual e a sociedade, ela se articula como uma alegoria determinada a causar o efeito que o “eu” almeja em outrem, assim como também, ocultar os verídicos sentimentos do sujeito. É por meio da persona que o homem busca atingir o seu ideal, ele constrói uma fantasia para se projetar através dela e, assim, alcançar os seus objetivos. METODOLOGIA No processo de desenvolvimento do conhecimento científico, é fundamental a estruturação da forma pela qual a pesquisa será realizada. Que abordagem teórica será utilizada? Qual (ais) o(s) método(s) de pesquisa aplicam-se melhor ao objeto de estudo analisado? E qual (ais) apresenta(m) melhor (es) resultado (s), em relação à pesquisa? E, ainda, qual é o objetivo do pesquisador em desenvolver tal conhecimento científico? Todas estas indagações norteiam à realização de uma pesquisa e passam, de forma imprescindível, pela metodologia do trabalho científico. Para a efetivação dessa pesquisa primeiramente inicia-se partindo dos estudos da Literatura Comparada, por se tratar de uma análise das esferas: literária e psicanalítica. No âmbito da Literatura, quando se tem como objeto de investigação o confronto de duas ou mais literaturas, utiliza-se o método comparativo/interpretativo para orientação das análises e dos conteúdos investigados. O método interpretativo/comparativo é essencial para o enriquecimento dos estudos literários por admitir a relação entre produções de distintas áreas e localidades. Assim, desenvolve a própria literatura uma correção monológica de um saber unívoco na tentativa de acompanhar as transformações do mundo que buscam uma ponte entre diferentes áreas para sanar lacunas do conhecimento. A literatura comparada passa a se instaurar num espaço interposto entre expressões e disciplinas assumindo a comparação não como método, mas como um estudo análogo/dialógico e empregando-a como recurso analítico e interpretativo, 190 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS possibilitando aos estudos literários uma vasta ampliação e exploração do seu campo investigativo. Busca-se a partir dos pressupostos da Literatura Comparada um estudo da constituição do fazer poético da escritora Lília Silva e como são configurados os signos psicanalíticos que emergem em sua fortuna literária, como, angústia, melancolia, saudade, amor, entre outros. Para que os objetivos da pesquisa sejam alcançados, organizam-se as seguintes etapas de estudo: a) A primeira etapa será constituída pela leitura e releitura das obras literárias e psicanalíticas de Lília Silva; b) Levantamento bibliográfico sobre estudos a cerca da poesia e da psicanálise e obras que expõem e analisam a estreita relação existente entre ambas as áreas. c) Interpretação de obras poéticas, dramas, contos e desenhos. O corpus analisado é composto pelas seguintes obras já elencadas da escritora contemporânea Lília Silva: “Um judeu na minha cama” (1997 – teatro); “Europeanas” (1997 – poesia); “Diário na Suiça” (2005 – poesia); “O conto brasileiro hoje” (2014 – contos); “Desenhos para Pedrinho” (2001- desenho); “Freud em meu divã de analista: Complexo de desamor” (2006 – psicologia). RESULTADOS E DISCUSSÕES A pesquisa se encontra em andamento no primeiro período do Doutorado, dessa forma, até o presente momento, está sendo realizados levantamentos bibliográficos acerca dos estudos que envolvem a temática investigada e leituras de obras que fundamentam teoricamente a pesquisa. Os resultados obtidos até o momento em relação ao estudo manifestam: a palavra poética de Lília amalgamada a realidade e a fantasia, utilizando-se de signos psicológicos e líricos que pincelam suas composições como “pinturas” do interior. Segundo Cruz, “a poesia é revelação da condição humana e, por essa razão, criação do homem pela imagem” (2008, p.140). CONCLUSÕES Concluo nessa fase de leituras e levantamento bibliográfico, que o escritor atua como agente configurador de fenômenos sociais e existenciais, podendo interferir no mundo físico a partir do universo visual, assim, o artista torna-se “... empreendedor de grandes espetáculos ou do espetáculo da vida” (LÉGER, 1989, p.13). Ou seja, ele tem o poder de criar seu próprio universo descomprometido da lógica, bem como retratar as nuanças que fascinam a realidade. As lembranças, experiências e sensações inferidas do mundo pelo autor, assim como sua liberdade imaginativa, são alimentos para o ato de criação. “Nossa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo. Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem” (BACHELARD, 1993, p. 25). Tanto a recordação que busca imagens de uma realidade remota, quanto à imaginação que capta 191 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS imagens de um universo distante, são eixos estruturantes para elaboração do escritor. AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente a CAPES por apoiar esse projeto e fomentar os estudos realizados. A Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE pela colaboração e apoio nas pesquisas. Carinhosamente aos escritores Antonio Donizeti da Cruz, orientador e companheiro de leituras e diálogos, e em especial, à Lília A. Pereira da Silva por sua atenção e presteza em relação aos estudos. A todos os meus mestres que diretamente compuseram o meu saber; a minha família e amigos que tanto me motivam. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gastón. Poética do espaço. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1993. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. CRUZ, Antonio. Palavra poética e experiência religiosa em Rodrigo Pitta: uma leitura de Água, Gasolina e a Virgem Maria. In: ALVES, Lourdes; CRUZ, Antonio. Poética e Sociedade: Interfaces literárias. Cascavel, Edunioeste, 2008. CHOPRA, Deepak. O Efeito Sombra. São Paulo: Lua de Papel, 2010. JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Maria Luiza Appy; Dora Mariana Ferreira da Silva. Petropólis: Vozes, 2008. LÉGER, Fernand. Funções da pintura. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Nobel, 1989. SILVA, Lília Aparecida da. Diário da noite. 1964 In: SILVA, Lília A. Pereira da. Desenho e pintura. São Paulo: Scortecci, 2002, p.103. SILVA, Quirino. Diário da noite. 1962 In: SILVA, Lília A. Pereira da. Desenho e pintura. São Paulo: Scortecci, 2002, p.70. SLAVUTZKY, Abrão. Quem pensas tu que eu sou? São Leopoldo: Unisinos, 2009. REMAK. Henry. H.H. Literatura Comparada: Definição e função. In: COUTINHO, Eduardo F. e CARVALHAL, Tânia Franco (orgs). Literatura Comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. 192 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS MEMÓRIA SOCIAL E POETICIDADE EM SUSY DELGADO Leda Aquino36 RESUMO O objetivo do presente estudo é analisar a poética bilíngue da escritora e poeta paraguaia Susy Delgado, que, além de dar voz à mulher, valoriza ambas as línguas nacionais em sua escrita e ainda traz a memória da cultura guarani. Para Octavio Paz, Los poetas han sido la memoria de sus pueblos. É justamente isso que vemos em Susy Delgado, a poeta servindo de memória do seu povo. Em alguns poemas a poeta se torna a portadora da memória, repassando ou relembrando o que muitos se esqueceram ou não conhecem da cultura guarani. Desde o inicio da colonização da América o colonizador impôs sua língua e sua cultura sobre a do indígena, no entanto, no Paraguai houve uma resistência e a língua guarani se mantém viva até hoje, mesmo que seja falada mais pela população do interior. O país é híbrido desde sua formação, a cultura e a língua falada hoje no país é resultado desse hibridismo que começou com a colonização. De acordo com Natalia Krivoshein de Canese o fenômeno do hibridismo cultural no Paraguai ainda não foi estudado o suficiente para saber que proporção de cada cultura originária entrou na mescla resultante e há quem discuta sobre se no país há uma ou duas culturas. PALAVRAS-CHAVE: Bilínguismo; hibridismo cultural; memória guarani. INTRODUÇÃO Desde o início da colonização o colonizador impôs nas Américas sua língua e sua cultura sobre a do colonizado. Porém, no Paraguai houve uma resistência e a língua do nativo manteve-se viva até os dias de hoje. O Paraguai é o único país bilíngue da América Latina, apesar de haver divergências quanto ao bilingüismo no país. De acordo com o padre e antropólogo espanhol Bartomeu Meliá (1932) que vive no Paraguai desde 1954, onde estudou a cultura guarani e hoje é defensor da língua e da cultura guarani: Sólo el Paraguay reconoce como oficial, a nivel de todo el país, también una lengua indígena. (MELIÁ, 2012, p. 90). Para Bartomeu Meliá, o guarani está longe de ser a língua oficial da vida moderna, do comércio e da administração pública. Em 1992, a Constituição paraguaia estabeleceu como idioma oficial o guarani e o uso tanto do espanhol como o do guarani em atos e documentos oficiais, oficializando assim o bilinguismo no país. 36 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação do Prof. Dr. Antonio Donizeti da Cruz. 193 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Stuart Hall (2000), ao debater a cultura, coloca em questão a identidade de povos que, na modernidade, estão se mesclando. O autor afirma que já não existe uma identidade pura e que não cause influência sobre as outras. Para Hall, as nações modernas são, todas, híbridos culturais. (HALL, 2000, p. 62). Homi Bhabha (2002) vê o hibridismo cultural como um processo agonístico e antagonístico como resultado do choque e da tensão da caracterização cultural. Então, podemos dizer que esse processo é resultado da contestação do discurso hegemônico, cujo sentido dominante é subvertido e questionado; assim produz um discurso híbrido. Há um choque entre a cultura do colonizador e do colonizado. Na obra de muitos escritores paraguaios percebemos uma cultura complementando a outra. Segundo Garcia Canclini, as culturas pós-modernas podem ser denominadas como fronteiriças. São resultantes do contato com o Outro e decorrentes dos deslocamentos de bens simbólicos. (GARCIA CANCLINI, 2011, p. 348). Garcia Canclini aponta o hibridismo como um processo multicultural, de diálogo entre diversas culturas. O Paraguai é um país híbrido desde sua formação e a língua falada hoje no país é resultado desse hibridismo. De acordo com Natalia Krivoshein de Canese (1993): “Hoy en día la población paraguaya es mestiza prácticamente en su totalidad”. O hibridismo está presente nas obras da maioria dos escritores paraguaios e nas obras de Susy Delgado não é diferente ela escreve em guarani e castelhano e em alguns momentos usa o jopará Nesta pesquisa, procuramos trabalhar com o bilinguismo no fazer poético de Susy Delgado, construindo uma análise da obra sob a ótica dos estudos da memória. Procuramos ainda refletir sobre qual é a contribuição do bilinguismo literário na difusão do guarani no Paraguai e também no exterior. Destacaremos o bilíguismo, a tradição oral, o hibridismo, a memória cultural, e a formação da identidade do povo paraguaio. METODOLOGIA A memória é uma temática que chama a atenção de muitos estudiosos e nesta pesquisa procuramos nos apoiar nos estudos de alguns deles, como: Maurice Halbwachs (1877-1945), Aleida Assmann (1947), Jacques Le Goff (1924-2014), e Michael Pollak(1948-1992). Halwbachs destaca dois tipos de memória: uma individual e outra coletiva. Segundo o autor, a memória coletiva não explica todas as nossas lembranças e, talvez, ela não explique por si mesma a evocação de qualquer lembrança. (HALBWACHS, 1990, p. 37). Halbwachs (1990) acredita que por mais que uma memória seja aparentemente individual, ela só existe e se mantém porque está associada a um coletivo de onde provém o sujeito. Quanto mais ligada a pessoa estiver ao grupo ao qual ela pertence, mais viva se preservará sua memória. Portanto, toda memória pertence a um coletivo, sendo fruto dele ou se reatualizando no presente, quanto mais intenso for o laço entre o sujeito e a sociedade que o cerca. Para isso, não precisa haver necessariamente a presença de testemunhas físicas. Apenas a força das falas, das leituras, das histórias e dos mitos que formam um coletivo, presente na memória do sujeito, já o torna permanentemente acompanhado, uma vez que vê o mundo que o cerca pelas memórias que compõem sua história enquanto membro da comunidade que frequenta. 194 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADO E DISCUSSÃO O fogo é um símbolo da cultura paraguaia de expressão guarani e tem a função de aquecer e iluminar a vida de seus descendentes e é no tataypy, na cozinha, onde se guarda o fogo que nunca se apaga. A afirmação acima pode ser confirmada nos versos do poema de Susy Delgado. Esse fogo que nunca se apaga está presente na poesia e ficou marcado na memória da poeta que teve sua infância no interior do Paraguai e viu essa realidade de perto. Tata’y aheka tesarái tanimbúpe. Tata’y rendaguépe aipyvu, ahavicha, amosarambi tanimbu ro’y, tanimbu pytu, tanimbu… Tata’y aheka ajatapymi haguã… (DELGADO, 2013, p. 96-98). (DELGADO, 2013, p. 97-99) Un tizón busco en la ceniza del olvido. En el hueco del tizón ausente, revuelvo, escarbo, esparzo ceniza fría, ceniza oscura, ceniza… Un tizón busco para encender el fuego. Nesses versos, percebemos que o fogo nunca se apaga, sempre há uma brasa dormindo em meio à cinza fria, a qual se abana e logo se aviva novamente. Podemos comparar essa brasa adormecida à memória, assim quando precisamos de uma informação ela pode ser buscada, acessada no passado para se fazer viva novamente no presente. A memória no poema, representada metaforicamente pela brasa, é a memória de um povo que não se apaga, basta alguém assoprá-la para reavivá-la. Para isso é preciso que alguém seja o responsável, o guardião dessa memória, pode ser um poeta ou um contador de histórias, pois a memória está ligada às preservações, à identidade, às origens, aos mitos. Para Octavio Paz, “Los poetas han sido la memoria de sus pueblos”. (PAZ, 1990, p. 101). É justamente isso que vemos em Susy Delgado, a poeta se torna a portadora da memória, repassando ou relembrando o que muitos se esqueceram da cultura guarani. Jacques Le Goff, em História e Memória (1996) comenta a valor dos poetas na Grécia Antiga, atribuindo a eles a importância de preservadores da memória e da cultura grega. Assim, o poeta era considerado quase um ser divino que mantinha em seu poder o dom de lembrar e cantar aos ouvintes as histórias dos mitos e dos heróis de seu povo. Acreditava-se que o aedo era uma pessoa abençoada por Mnemosine, a deusa protetora da memória. Levando em conta que a tradição das epopeias gregas pertence à oralidade e a cultura guarani também é de uma vertente oral, a poeta Susy Delgado exerce 195 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS similarmente essa função de guardiã da memória guarani no Paraguai. A vantagem da poeta está no fato de que domina a escrita e, com isso, pode preservar duplamente a memória guarani. Conforme Octavio Paz: “La poesía es la memoria hecha imagen y la imagen convertida en voz. La otra voz no es la voz de ultratumba: es la del hombre que está dormido en el fondo de cada hombre”. (PAZ, 1990, p. 136) É exatamente essa memória feita imagem que vemos nos poemas de Susy Delgado, a imagem do fogo, as marcas da voz do abuelo e a língua guarani. La chamusquina del fuego dejó sus huellas en la memoria del niño. y la marca del fuego me siguió en la vida. Lo que no se borra, bendición del fuego, quemó entonces mi palabra. (DELGADO, 1992, p. 96). tata rovere oñembopere Mitã mandu’ápe. Tata rendague Oho chendive. Oje’ove’yva tata rovasa, ohapy vaekue che ñe’e. (DELGADO, 1992, p.97). Nos versos acima, a memória aparece como rastro deixado pelas faíscas que voaram do fogo de chão e deixaram marcas na vida. A criança que escuta as histórias e aprende a língua guarani, que senta ao redor do fogo, leva consigo para sempre as cinzas de uma antiga cultura, aqui percebemos o sentimento de identidade, a marca que é levada para sempre. Para Pollak, a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (POLLAK, 1992, p. 5) Através dos estudos do corpus selecionado, e das teorias apresentadas pelos estudiosos da memória, observamos que a memória seja ela coletiva ou individual se forma através dos sentidos sensoriais. CONCLUSÕES Apropriando-nos desta metáfora de sentarmos junto ao fogo e conhecermos um pouco mais da cultura e do folclore guarani, acreditamos que com essa pesquisa reduzimos um pouco mais o Pozo cultural, que separa a cultura paraguaia do resto da América Latina, e adentramos a ilha cercada de terra do escritor Augusto Roa Bastos. Nesta pesquisa, também observamos como a escrita bilíngue ajuda na divulgação da língua e da cultura guarani e como essa cultura sofreu com as influências de outras, chegando ao ponto de ficar esquecida quase que totalmente nos fez refletir sobre o quanto a literatura do país é rica e, como mulher sofreu com a dominação masculina, quanto teve que lutar para conquistar seu espaço no meio literário. Para Susy Delgado, escrever em guarani e espanhol é como se o guarani encontrasse seu par no espanhol, e assim, ambas as línguas dialogam entre si. 196 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Observamos que, para a escritora, não há uma disputa entre as duas línguas nacionais. O guarani é a língua do colonizado que enfrentou o espanhol, língua do colonizador, o guarani é a língua que a mãe ensinou aos filhos e venceu a luta pela alma do mestiço, tanto que até hoje o guarani é falado no país mesmo tendo caído o número de falantes da língua indígena. REFERÊNCIAS BHABHA, Homi K. El lugar de la Cultura. Buenos Aires: Ediciones Manantial, 2002. CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4. ed. São Paulo: UNESP, 201 DELGADO, Susy. Amandayvi: Antología poética castellano-guaraní 1986-2012 Asunción: Editorial Arandurã, 2013. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013. PAZ, Octavio. La otra voz Poesía y fin de siglo. México: Editorial Seix Barral, 1990. POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/ article / view Article /1941> Acesso em 11 jul 2014. 197 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS DIÁLOGOS INTERTEXTUAIS: A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FLORA TRISTÁN NO ROMANCE EL PARAÍSO EN LA OTRA ESQUINA DE MARIO VARGAS LLOSA Leila Shaí Del Pozo González37 RESUMO O presente trabalho encontra-se circunscrito nos estudos sobre Literatura História e Memória na configuração de personagens históricos femininos. Objetivamos desenvolver uma reflexão crítica sobre a ficcionalização da personagem histórica feminina Flora Tristán no romance El paraíso en la otra esquina (2003) de Mario Vargas Llosa e os diálogos intertextuais com o diário de viagem de Flora Tristán Peregrinações de uma pária publicado por primeira vez em francês em 1838. A proposta se justifica pelo pouco estudo no Brasil da personagem histórica Flora Tristán como personagem ficcional no romance de Vargas Llosa e pelo novo olhar do escritor peruano sobre a personagem histórica, sendo demonstrado através de dialogismos e intertextualidades presentes nas duas obras elencadas. O aporte teórico encontra-se nos três eixos abordados de as biografias, os estudos sociais e de teoría literaria à exemplo de Marco (1993), Konder (1994), Michaud (1980), Sánchez (1992), Guerra (2004), Muraro (1971, 2002), Perrot (2001, 2005, 2009), Bakhtin (2013) Kristeva (apud JENNY, 1979 e SAMOYAULT, 2008) e Samoyault (2008), entre outros. No que diz respeito à metodologia utilizada, é uma pesquisa inscrita nos pressupostos da Literatura Comparada. Nos resultados alcançados temos a construção de uma personagem mítica, mulher incansável, fanática pela sua luta social, confiante na sua capacidade de mudar o mundo, admirada pela sua beleza. É a mulher-messias sugerida por Prosper Enfantin. PALAVRAS-CHAVE: Literatura Comparada, ficcionalização da personagem histórica feminina Flora Tristán, Mario Vargas Llosa INTRODUÇÃO A pesquisa trata sobre Flora Tristán, a personagem histórica, a socialista utópica do século XIX precursora do feminismo, que é configurada como personagem ficcional no romance de Vargas Llosa fazendo uso da memória na reconstrução da história. Nas muitas leituras empreendidas a exemplo de Konder (1994) e Marco (1993), a francesa Tristán é delineada como uma mulher do século XIX, nascida sob o signo de pária, pois foi reconhecida como filha ilegítima pelo estado francês, perdendo os seus direitos à partilha da herança dos bens do pai. Ao 37 (PIBIC/Fundação Araucária/Unioeste), Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza (Orientadora), email: [email protected] 198 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS viver, consequentemente, na pobreza, ela é autodidata e ávida leitora. Casa com André Chazal como recurso para sobreviver. Foge de casa depois de engravidar do terceiro filho, pois não suporta os constantes maus-tratos recebidos. Na tentativa de recolher a herança do pai, viaja ao Peru. Não consegue seu objetivo, porém a sua sensibilidade a faz perceber o que estava acontecendo ao ser redor. Faz anotações de tudo quanto vê e inicia assim a sua pesquisa de campo. Ao voltar ao seu país publica seu primeiro livro, cujo tema tem muito a ver com o que lhe preocupava: o bem do outro. O livro se intitula: Necessidade de bem acolher as mulheres estrangeiras (1835). O que muda em Flora Tristán é uma independização epistemológica, tal qual Homi Bhabha (apud PAGANO, 2010) define, deixando de lado o pensamento colonizado de uma mulher francesa do século XIX para abrazar a causa social. Muitos autores a qualificam como uma mulher balzaquiana, no entanto, ela vai além de só se revoltar. Tristán inicia uma luta social, fazendo tudo quanto possível para espalhar os seus estudos. Por isso, sua obra é importante, suas ideias chegam a influenciar inclusive teóricos como Karl Marx, pois segundo a biógrafa Yolanda Marco (1993), Arnold Rudge, colaborador de Marx, recebe um exemplar de União operária (1843). A proposta de formar uma união operária internacional é feita vinte anos antes te Marx e sua Internacional operária. Por meio da ficção de Vargas Llosa é possível fazer o leitor chegar a outras obras de Tristán, importantes para a construção das utopias do século XIX. REVISÃO DE LITERATURA O projeto desenvolve-se, a partir de uma pesquisa básica bibliográfica, com leitura reflexiva das referências mais relevantes, sistematizadas em três eixos: o primeiro das biografias de Flora Tristán a exemplo de Michaud (1980); Konder (1994); Marco (1993); Sánchez (1992), Rama (1977); o segundo, o estudo dos estudos sociais que falam da vida privada durante o século XIX e teoria de crítica feminista, como Guerra (2004), Muraro (1971, 2002), Perrot (2001, 2005, 2009), e o terceiro das diferentes Teorias de Literatura Comparada, como Laurent Jenny (1979), Bakhtin (2013), Samoyault (2008) e Sandra Nitrini (2010), e seguida a leitura do romance El paraíso en la otra esquina (2003), o diário de viagem Peregrinações de uma pária (2000). Uma vez procedidas às leituras, tem-se feito a discussão dos conteúdos com a orientadora. As discussões sobre o conteúdo do texto com a orientadora, que permitiu dirimir as dúvidas que surgem ao longo do processo de pesquisa das teorias e dos textos acima elencados, tiveram lugar nos encontros semanais que permitiram o aprofundamento teórico. Em suma, trata-se da revisão bibliográfica pertinente ao envasamento do trabalho e a análise do romance acima citado de Mario Vargas Llosa, Flora Tristán. 199 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADOS E DISCUSSÃO Com a execução do projeto, foram aprofundados, também, os estudos sobre o romance histórico e as premissas da literatura comparada, além de aspectos teóricos relevantes sobre intertextualidade (KRISTEVA apud JENNY, 1979; SAMOYAULT, 2008) e dialogismo e polifonia BAKHTIN, (2013), entre outros, enriquecendo, assim, os conhecimentos teóricos já adquiridos ao longo dos quatro anos do curso de letras. As abordagens presentes nas obras já revisadas tratam de aspectos importantes para a compreensão do romance histórico latino-americano, e as teorias mais recentes sobre a literatura comparada que revelam a importância da escritas de releituras sobre a história e ficcionalização de personagens históricos, propondo um novo olhar e discutindo o proposto por textos anteriores. O trabalho de leitura e discussão possibilitou-nos analisar a biografia romanceada Flora Tristán: una mujer sola contra el mundo (1942), de Luis Alberto Sánchez. O resultado dessa leitura analítica e crítica da biografia romanceada foi apresentado em 2013, no formato de artigo, ao evento do XI Seminário nacional de literatura história e memória e II Congresso de pesquisa em letras no contexto LatinoAmericano sob o nome: “Representações da precursora do feminismo Flora Tristán em Flora Tristán: una mujer sola contra el mundo, de Luis Alberto Sánchez e Flora Tristán, feminismo y utopía de Yolanda Marco”. Em 2014, foi elaborado o artigo “PEREGRINAÇÕES DE UMA PÁRIA DE FLORA TRISTÁN: diálogos e intertextualidades no romance O paraíso na outra esquina de Mario Vargas Llosa” e apresentado ao evento 17ª Jornada de Estudos Linguísticos e Literários. No mesmo ano, fez-se o artigo “Flora Tristán: uma mulher do século XIX sob o olhar de Mario Vargas Llosa” e apresentada ao evento II Seminário internacional e III Nacional de estudos da linguagem. Também encontra-se em andamento, o processo de avaliação para publicação de um artigo numa revista científica. Ao mesmo tempo, a presente pesquisa serviu de base para a confecção da monografia que foi defendida em agosto de 2014, configurando um dos requisitos de apresentação em eventos da Pesquisa de Iniciação Científica, produção de artigos em anais e/ou revistas científicas. CONCLUSÕES A história é um construto discursivo que oficializa somente uma visão parcial do que possa ter acontecido à humanidade, segundo convêm aos grupos do poder. A literatura contemporânea apresenta, no romance histórico, um outro olhar dos acontecimentos oficiais. O gênero híbrido propõe o olhar dos marginalizados frente à história hegemônica: mulheres, escravos, colonizados, os vencidos. A mulher teve poucas exponentes que tiveram a sorte de formar parte da história oficial. No entanto, são poucas que se destacaram e que trabalharam com um objetivo universal, tal qual Flora Tristán o fez. Pouco se sabe e pouco se pesquisa sobre a personagem ficcional 200 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS e a personagem histórica Flora Tristán no Brasil. O estudo proposto neste projeto pretende aportar no mundo acadêmico com os resultados da nossa pesquisa sob o viés proposto. Sánchez (1942), na sua biografia romanceada, propõe uma Flora Tristán vaidosa, orgulhosa, interesseira, libertina, com ansias de poder e que luta pelos seus ideais. Tudo isto teria, talvez, seguindo os estereótipos de uma sociedade conservadora sobre a mulher que se atreve a morar sozinha, já que, como registra Reis (1998, p. 233), “todo texto é produzido por um determinado agente social, inscrito numa dada circunstância histórica e porta-voz de um projeto ideológico e de classe”. Luis Alberto Sánchez seria um escritor peruano com olhar eurocentrista e falocentrista. Mario Vargas Llosa, no seu romance, dialoga com vários textos de Flora Tristán, e sobretudo parece confrontar por vezes o texto de Sánchez. O romance de Vargas Llosa é pleno de intertextualidades. Trata-se de um texto polifônico ao olhar do conhecedor da vida e obra de Tristán. Fazendo uso do que Tânia Carvalhal descreve como uma escrita proposital sem a possibilidade de simples mera cópia: “A verdade é que a repetição, quando acontece, sacode a poeira do texto anterior, atualiza-o, renova-o e (por que não dizê-lo?) o re-inventa” (CARVALHAL, 1992, p. 54). Assim, Vargas Llosa propõe outro olhar para a personagem histórica. O escrevinhador, ao mesmo tempo, mediante o recurso do fluxo de consciência, questiona todo o proposto pela própria Flora Tristán no seu diário de viagem. Finalmente, o constructo ficcional que Vargas Llosa faz de Flora Tristán é a de uma mulher francesa do século XIX consciente de sua liberdade e do preço que teve de pagar por mantê-la. A personagem reconhece que teve de efetuar sacrifícios ao longo de sua vida, porém encontra-se satisfeita com sua escolha, sempre decidida, sem vontade de voltar atrás. O autor constrói uma personagem mítica que acredita que mudará o mundo a partir de seus ideais. Com um projétil alojado no peito e doente, não desiste de sua intenção de divulgar a ideia de formar uma união internacional de operários. Entre os seus ideais está a educação para todos. Considera que a grande mudança se inicia pela educação das mulheres. A Tristán vargaslloseana arrisca-se em sua empreitada social e não se arrepende, pois está confiante que ajudará a conseguir a utopia de um mundo melhor para todos. AGRADECIMENTOS Agradecimentos a minha orientadora pela motivação e apoio constante, pelas discussões que contribuem reflexivamente para o trabalho teórico, pela disponibilização de seu acervo bibliográfico; a minha filha e marido de quem sempre obtive apoio para os meus estudos. A meu pai, sempre torcendo pelo sucesso dos seus filhos. Agradecimentos especiais à Fundação Araucária, pelo apoio económico, à Unioeste. 201 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail M. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. CARVALHAL, Tania. Literatura comparada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1990. GUERRA, Lucía. La mujer fragmentada: historia de un signo. 2. ed. Santiago: RIL Editores, 2004. JENNY, Laurent. A estratégia da forma. In: ___ Intertextualidades. Poétique: Revista de teoria e análise literárias. Coimbra: Livraria Almedina, 1979. KONDER, Leandro. Flora Tristan: uma vida de mulher, uma paixão socialista. RJ: Relume Dumará, 1994. MARCO, Yolanda. Biografia de Flora Tristán. In: TRISTÁN, Flora. Feminismo y utopia. Biografia e tradução por Yolanda Marco. México, D.F.: Fontamara, 1993. MICHAUD, Stéphane. Comentários. In: TRISTÁN, Flora. Lettres, réunies, présentées et annotées par Stéphane Michaud. Paris: Éditions du Seuil, 1980. MURARO, Rose M. A mulher no terceiro milênio: uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro. 8. ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 2002. _______. Libertação sexual da mulher. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1971. NITRINI, Sandra. Literatura Comparada. História, Teoría e Crítica. 3. ed. 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(Re)lendo a história. In: LEENHARDT, J; PESAVENTO, S. J. (Orgs.). Discurso Histórico e Narrativa Literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, p. 233-249. SAMOYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. Tradução de Sandra Nitrini. São Paulo: Aderaldo & Rothschild, 2008. p. 1-65. SÁNCHEZ, Luis Alberto. A. Flora Tristán: una mujer sola contra el mundo. Caracas: Ex Libris, 1992. Disponível em: <http://www.bibliotecayacucho.gob .ve/fba/index.php?id=97&backPID=89&tt_products=252>. Acesso em 23 de maio de 2013. TRISTÁN, Flora. Peregrinações de uma pária. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2000. VARGAS LLOSA, Mario. El paraíso en la otra esquina. Madrid: Santillana Ediciones Generales, 2003. 203 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ENTRE A OBRIGAÇÃO E O DESEJO: A LEITURA PARA A ESCOLA E A LEITURA PARA A VIDA. Luciana Alves Bonfim38 RESUMO A pesquisa que está em curso tem como objetivo identificar quais obras literárias são lidas pelos alunos a pedido da escola e, quando for o caso, à revelia desta instituição, em salas de aula de Ensino Médio de escolas estaduais de Palotina-PR. A partir destes resultados, pretende-se levantar alguns padrões de interesse de leitura dos alunos para buscar compreender se estes interesses estão contemplados nos livros cobrados pela escola ou disponibilizados por programas federais de incentivo à leitura, como o PNBE. Também faz parte da pesquisa a análise da recepção, no site virtual Skoob, da obra apontada como mais lida por estes alunos do Ensino Médio no município de Palotina-PR. O aporte teórico abarca discussões a respeito do conceito de obra de arte (BORDIEU, 1989), formação do leitor literário (COLOMER, 2003), mediação de leitura (PETIT, 2008), leituras realizadas à revelia da escola (MAFRA, 2013), ensino de literatura preconizado pelos PCNs e pelas DCEs (BRASIL, 2000; PARANÁ, 2008) e recepção literária (ZILBERMAN, 1989). PALAVRAS-CHAVE: Ensino Médio, Recepção, Ensino de literatura. INTRODUÇÃO Muito tem se falado a respeito da relação conflituosa entre alunos do Ensino Médio (EM) e a leitura literária. O que se lê em artigos, teses e dissertações de pesquisadores e o que se ouve em relatos pessoais de professores da rede sobre a leitura no EM é unânime: o adolescente não gosta (e não sabe) ler. De fato, observa-se um crescente desinteresse dos adolescentes que frequentam o EM em relação à leitura de literatura, especialmente quando esta leitura refere-se ao rol de obras dos escritores clássicos nacionais. Nesta lista, é possível encontrar escritores considerados como maiores expoentes de suas escolas literárias, desde o Barroco até a Pós-Modernidade. Porém, não é difícil encontrar alunos do EM que demonstrem aversão a nomes como Gregório de Matos, José de Alencar e Machado de Assis. Por outro lado, a relevância da leitura é inquestionável tanto em círculos acadêmicos e escolares quanto em círculos familiares – e até entre os próprios alunos. O esforço para incentivar a leitura literária é visível em vários aspectos: nas práticas de professores de ensino infantil, ensino fundamental e ensino médio, nas pesquisas realizadas por professores-pesquisadores a respeito do ensino de 38 Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Endereço eletrônico: [email protected]. Orientadora: Profa. Dra. Clarice Lottermann. 204 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS literatura em sala de aula e nos investimentos do governo federal com programas como o PNBE (Plano Nacional da Biblioteca Escolar). A partir deste cenário, o presente projeto de pesquisa se propõe a conhecer quais são os livros que o estudante lê na escola e fora dela para poder compreender porque, apesar de o discurso comum reconhecer a importância da leitura, ainda observa-se uma distância entre o livro literário oferecido pela escola e o aluno. METODOLOGIA A metodologia para a efetivação desta pesquisa prevê os seguintes momentos: 1) leituras, fichamentos e análises de textos que versam sobre a formação e características do EM e o ensino de literatura pretendido nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 2000) e nas Diretrizes Curriculares para o Ensino – DCEs (PARANÁ, 2008); bem como o Programa Nacional Biblioteca da Escola – PNBE. A partir destas leituras, busca-se compreender como o ensino de literatura é preconizado no EM e como o PNBE se propõe a contribuir para este ensino; 2) levantamento do acervo do PNBE 2013 disponibilizado para o EM e verificação da disponibilização deste acervo em escolas estaduais do município de Palotina-PR, sendo consideradas as escolas de menor e de maior IDEB; 3) levantamento e classificação dos livros mais lidos pelos alunos do EM, compreendendo elaboração de questionário a ser respondido pelos estudantes; 4) análise comparativa entre o acervo disponibilizado pelo PNBE 2013 para o EM e os livros mais lidos apontados pelos questionários respondidos, a fim de verificar quais obras oferecidas pelo governo federal através do programa de distribuição de livros de fato são lidas pelos alunos; 5) análise geral das características das obras mais lidas pelos alunos, a fim de confirmar ou não a existência de padrões de interesses de leitura por parte destes estudantes; 6) levantamento de depoimentos acerca da experiência de leitura com o livro mais lido pelos alunos. Os depoimentos serão coletados na rede social colaborativa brasileira para leitores conhecida como Skoob. Este site permite que seus usuários adicionem em seus perfis os livros lidos e desejados, bem como depoimentos e opiniões sobre as obras, dentre outras funcionalidades; 7) análise aprofundada do livro mais lido pelos alunos, a fim de traçar parâmetros de análise entre suas características literárias e os depoimentos coletados online. O aporte teórico desta pesquisa está ancorado nas contribuições de diversos pesquisadores a respeito da formação do leitor literário (COLOMER, 2003), da mediação de leitura realizada em ambiente escolar, principalmente na biblioteca (PETIT, 2008), da leitura literária que o aluno realiza à revelia da escola bem como a validade da leitura de best-sellers juvenis (MAFRA, 2013), do conceito de obra de arte (BORDIEU, 1989) e da recepção literária (ZILBERMAN, 1989). É importante salientar que a pesquisa ainda encontra-se em fase de leitura de bibliográfica e que, portanto, os dados quantitativos ainda não foram levantados, bem como as análises destes dados ainda não puderam ser realizadas. 205 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADO E DISCUSSÕES Compreender o que pode estar acontecendo entre o esforço de professores, pesquisadores e o governo federal e a recepção do livro literário em sala de aula é necessário para que seja possível repensar as práticas de ensino de literatura, especialmente no EM, quando os professores costumam relatar desinteresse e rejeição pela leitura literária por parte dos estudantes. As pistas para reflexões acerca destas questões podem estar em algumas considerações de Pierre Bordieu (1989) a respeito do conceito de arte. No capítulo 10 intitulado “Gênese histórica de uma estética pura”, de seu livro História de uma estética pura, o autor problematiza a questão do que é ou não é arte. Para ele, o fundamento da atitude estética e da obra de arte reside na história da instituição artística. Decorre daí, então, sua defesa de uma análise histórica dos processos que levam à definição do que é arte e sua crítica da universalização de juízos sobre o que é artístico, uma vez que há um embate entre o que o ele chama de “jogadores” de campos diferentes, posto que tais jogadores são historicamente constituídos. Ao se considerar que um livro é uma obra de arte, arrisca-se afirmar que o leitor também faz parte deste campo de jogadores como consumidor de arte e também contribui para a definição do valor artístico de um objeto. Bordieu (1989) defende que esta definição não pertence apenas ao criador da obra: o ‘sujeito’ da produção da obra de arte, do seu valor e também do seu sentido, não é o produtor do objeto na sua materialidade, mas sim o conjunto dos agentes, produtores de obras classificadas como artísticas (...), críticos (...), colecionadores, intermediários, conservadores, etc. que têm interesse na arte, que vivem para a arte e também da arte. (BORDIEU, 1989, p. 290 Se o leitor é tanto o colecionador de livros como aquele que tem interesse na obra de arte (o livro), então parece ser possível afirmar seu lugar neste conjunto de instituições que atribuem valor à obra de arte literária. Para Bordieu (1989), é importante considerar não apenas a autonomia do artista, mas também historicizar de que forma emergiu o conjunto de condições das instituições específicas que dirigem os juízos sobre o que é ou não é um bem cultural, uma obra de arte. Pode-se compreender, portanto, que esta historicização precisa levar em consideração também os jogadores envolvidos neste sistema. Logo, parece justificável que o leitor/receptor da obra também deva ser considerado. A afirmação desta constituição histórica implicaria, então, em reconhecer as experiências de vida nem sempre convergentes destes jogadores. A teoria da recepção também afirma a importância do leitor. Para esta teoria, “o texto não é o único elemento do fenômeno literário, mas é também a reação do leitor” (COLOMER, 2003, p. 95), a qual, portanto, deve ser considerada para a explicação deste texto. Esta perspectiva também considera a existência de um leitor modelo e cooperativo, o que resulta em escolhas conscientes do autor em relação a questões linguísticas, lexicais e de competências interpretativas do seu leitor, como afirma Colomer (2003). 206 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS As possibilidades expostas acima levam a um questionamento importante sobre o papel do leitor: até onde ele tem poder, dentro do conjunto de jogadores do campo artístico, de influenciar no valor de uma obra de arte? Sobre esta questão, Bordieu afirma que “o olhar do amador de arte do século XX é um produto da história, embora surja a si próprio sob a aparência de dom da natureza” (1989, p. 284). Ou seja, esse olhar está associado às condições de aquisição extremamente particulares, como a frequentação desde cedo dos museus e a exposição aberta ao ensino escolar e à skolé que ela implica – o que significa, diga-se de passagem, que a análise de essência quando omite essas condições, universalizando dessa forma o caso particular, institui tacitamente em norma universal de qualquer prática que pretende ser estética as propriedades bem específicas de uma experiência que é produto do privilégio, quer dizer, de condições excepcionais. (BORDIEU, 1989, p. 284, grifo meu). O autor ainda afirma que os indivíduos podem atribuir sentidos e valores opostos a uma mesma obra de arte, posto que podem ocupar lugares sociais opostos, o que, segundo Bordieu (1989), é prova de que a percepção e apreciação de uma obra de arte estão ligadas ao contexto histórico.A partir desta crítica da universalização de juízos artísticos, parece plausível afirmar que os leitores não saem de um mesmo ponto de partida para a apreciação de uma obra de arte (o livro). Com base na defesa de Bordieu (1989) de uma análise histórica dos processos que levam à definição do que é arte e de sua crítica da universalização de juízos artísticos, parece possível começar a discutir algumas questões propostas para a pesquisa. Uma das pistas para começar a discussão a respeito da distância mantida pelos alunos em relação à literatura pode residir no fato de que o olhar do aluno leitor não é considerado no processo que determina o valor de uma obra de arte e, portanto, o que merece ser apreciado como tal. A literatura que chega às mãos dos alunos via escola é, muitas vezes, uma literatura imposta por professores que privilegiam apenas os livros considerados clássicos literários (José de Alencar, Machado de Assis, Gregório de Matos, dentre outros) e que desconhecem o gosto dos seus alunos. Se for verdade que os adolescentes não gostam de ler, então como explicar o mercado de livros em franca expansão no Brasil? Ainda, observa-se que o que os alunos de fato demonstram gostar de ler, como as sagas de Harry Potter, Percy Jackson e trilogias como Jogos Vorazes, muitas vezes são “condenadas” pelos professores ou pais como nãoartísticas, o que pode criar no aluno a falsa ideia de que a arte é algo inacessível e entediante. Na contramão desta perspectiva, Mafra (2013) defende a leitura de bestsellers juvenis como porta de entrada para leituras mais profundas. Sobre esta questão, Mafra afirma: “Em um projeto consequente de leiturização, faz-se necessário que assumamos pedagogicamente – e sem preconceitos – a literatura de massa como uma forma de iniciação à leitura (2013, p. xii). É a partir desta modalidade de leitura, realizada à revelia da escola, que o autor afirma que o jovem, de fato, gosta de ler – ainda que a sua leitura não contemple as obras clássicas preconizadas pela escola. 207 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A partir destas discussões, percebe-se a necessidade de pesquisas que permitam compreender os motivos da distância entre a literatura e o aluno e que apontem possíveis caminhos de construção de instrumentos de leitura e análise de uma obra de arte (no caso, o livro) que permitam ao aluno o acesso aos clássicos literários a partir de leituras não consideradas como “obra de arte” por alguns dos “jogadores” dos quais fala Bordieu (1989). Porém, o acesso a obras consideradas artísticas não deveria ser o único fim das aulas de literatura. Sobre a prática discursiva da leitura, as DCEs consideram sua importância para que o aluno seja capaz de perceber o sujeito presente nos textos e, ainda, tomar uma atitude responsiva diante deles. (...) Assim, o professor deve dar condições para que o aluno atribua sentidos a sua leitura, visando a um sujeito crítico e atuante nas práticas de letramento da sociedade. (PARANÁ, 2008, p. 71). A leitura de textos literários, portanto, também é fundamental neste processo de construção do sujeito, uma vez que “exerce papel no desenvolvimento linguístico e intelectual do homem” (CADEMARTORI, 2010, p. 56). As DCEs propõem que o trabalho com a literatura em sala de aula busque “formar um leitor capaz de sentir e expressar o que sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento de subjetividades” (PARANÁ, 2008, p. 58). Esta perspectiva de ensino vai ao encontro do que Todorov defende em seu livro A literatura em perigo (2009). O autor sugere que se considere tanto os estudos formais quanto os sentidos oferecidos pela obra, com prevalência dos últimos sobre os primeiros. CONCLUSÕES Na fase atual da pesquisa, percebeu-se a necessidade de ampliar as leituras para que seja possível abordar questões como a de multiletramento digital, uma vez que pretende-se analisar a recepção de obra literária em ambiente virtual, a partir de depoimentos, resenhas e/ou comentários deixados pelos leitores dos livros no site Skoob. REFERÊNCIAS BORDIEU, P. Gênese histórica de uma estética pura. In: _____. Gênese histórica de uma estética pura. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 281 – 298. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Médio: Linguagens, códigos e suas tecnologias. 2000. CADEMARTORI, L. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 2010. CASTRO, M. Apesar do baixo nível de leitura, mercado de livros deve crescer 10,4% em 2014. Disponível em: http://goo.gl/EeQtJ3. Acesso: 25 jun 2014. 208 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS COLOMER, T. A formação do leitor literário: narrativa infantil e juvenil atual. São Paulo: Global, 2003. GAZETA do Povo. Os jovens com livro na mão. Disponível em: http://goo.gl/vSdBBR. Acesso em: 25 jun 2014. MAFRA, N. Leituras à revelia da escola [livro eletrônico]. Londrina: Eduel, 2013. PARANÁ (Estado). Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes curriculares da educação básica: Língua Portuguesa. 2008. PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. São Paulo: Ed. 34, 2008. TODOROV, T. A literatura em perigo. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989. 209 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A LÍRICA DE VIRGÍNIA VENDRAMINI: MEMÓRIA E INFÂNCIA Lucilaine Tavares da Silva RESUMO O presente resumo traz uma reflexão acerca da relação entre memorialismo, infância e imaginação poética, onde a memória habita, liricamente, o fazer poético de Virgínia Vendramini. Esses enraizamentos permitem a fruição de cada detalhe, que conduz ao mergulho do sujeito nos seus mais profundos desejos. Incansável e talentosa cultora da palavra certa no lugar certo, a autora citada, em seus versos e pensamentos nos proporcionam questionamentos e reflexões acerca de temas universais. Com seu modo peculiar e aparentemente simples de tratar as palavras, discute em suas poesias temas como a solidão, a felicidade, a velhice, o amor e tantos outros que podem dar margens a inúmeros estudos. Entre esses temas abordados por Virgínia está também o da infância. Legada ao mundo das palavras, mas sem perder o foco e o interesse pelos problemas do cotidiano, a autora apresenta o contato com um mundo que se descortina por trás das palavras. Para tal fim, o presente trabalho, de cunho bibliográfico, orienta-se a partir de reflexões filosóficas do imaginário de Gilbert Durand e outras questões que serão investigadas em diálogo com diferentes pensadores (Antônio Cândido, Gaston Bachelard, Octavio Paz, Teodor W. Adorno, Walter Benjamin, dentre outros). Dessa forma, pretende-se, na conclusão deste estudo, analisar a obra lírica e artística da autora paulista para maior compreendê-la. PALAVRAS-CHAVE: Vendramini memória; infância; poesia contemporânea; Virgínia INTRODUÇÃO Na imaginação, incidem o alargamento do pensar e a possibilidade de prever algo relacionado aos acontecimentos presentes ou passados. Assim, o tempo e o espaço na memória nos faz refletir sobre o fato de que só o esquecido é lembrado. E mais ainda, nos leva a incluir na memória o esquecimento, sempre mantido latente nas lembranças. Nesse diálogo com a poesia contemporânea brasileira de autoria feminina, torna-se improcedente separar tempo e espaço, já que se recriam de diferentes maneiras a espacialização do tempo na memória. Por outro lado, o mais importante é a capacidade para criar algo que, ganhando forma, se torna possível, pois há uma forca prospectiva na imaginação, pela qual temos uma presentificação do ausente, a partir do percebido ou vivenciado. 210 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O que Virgínia Vendramini parece dizer-nos é tudo isso e não só. É que na ação de lembrar contamos com a imaginação, pois os fatos não se revivem, mas sim reconstroem-se na memória. E a literatura é um lugar privilegiado de recriação dessa dinâmica da memória, servindo para lembrar e não deixar no esquecimento as histórias, lembranças e sensações. A literatura é a consolidação da memória e a maneira mais segura de registrar fatos que devem ser lembrados e relembrados. A memória habita, liricamente, a poética de Vendramini e, como lhe é próprio, a recuperação do passado está associada a imagens que sobreviveram à passagem de um tempo vivido ao fato de que algo permaneceu no momento da experiência. É pela memória que o sujeito constroi a história, e do significado do vivido. Para Walter Benjamin (1987), o passado é sempre uma elaboração do presente. O passado, ao pulsar involuntariamente, a memória que nos atinge sem que seja convidada ao nosso encontro, produz a possibilidade de recriar ao acaso o passado, de modo que este passado é uma construção do presente. Trata-se da memória que se apossa do indivíduo arbitrariamente e que permite um processo de reconstrução do passado no presente. É sob este prisma que pretendemos apontar aqui a memória em Benjamin e relacioná-la com a infância. Na visão deste autor, a infância não é tomada como um passado distante e uma visão de mundo limitada, mas ao contrário, é repleta de um saber onde a sensibilidade e a racionalidade operam lado a lado. Ao invadir a vida adulta para fazer dela uma nova história, o passado infantil fundamenta uma herança que percorre toda a vida do indivíduo. Ao rememorar sua infância e adolescência, a autora relembra sua experiência, fazendo com que o leitor identifique-se com elas. Então, com lirismo e naturalidade, reconta fatos de sua existência, imprimindo sua experiência e redescobrindo sua identidade. Assim, “quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se assimilará à sua própria existência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de contá-la um dia.” (Benjamin, 1987, p.204). É também na obra de Theodor W. Adorno, filósofo alemão, contemporâneo e discípulo de Walter Benjamin que encontramos reflexões importantes acerca do pensar sobre a infância, esta que se apresenta como refúgio da experiência. Essa é uma ideia que atravessa alguns escritos do autor: de que a tarefa do presente é reviver, por meio da reminiscência, um passado correspondente – já que o futuro só se cumpre por meio da rememoração. Presentificar a experiência da infância, escavando nos terrenos que habitamos elementos para compreender o que hoje se encontra desfigurado, parece ser o que motivou Benjamin – assim como Adorno - a trilhar os labirintos da própria infância buscando encontrar-se/perder-se; recordar, mas também esquecer. Nessa complicada trama - entre o lembrar e o esquecer – a autora busca decifrar algumas 211 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS dessas belas e instigantes imagens não só pelo que podem nos revelar à primeira vista, mas também pelo o que camuflam por traz das palavras. Adorno resume suas ideias acerca da memória e da elaboração do decorrido quando afirma que “o passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (ADORNO, 1995 a: 49). Dentro dessa perspectiva, este projeto de pesquisa pretende analisar a obra de Virgínia Vendramini, poeta contemporânea paulista, nascida em Presidente Prudente (SP) em 1945, professora de Língua Portuguesa e Literatura, artista plástica e mentora de um trabalho no Instituto Oscar Clark, onde ensinou braile para deficientes visuais. Tem cinco livros publicados: Rosas não (1995); Primavera urbana (1997); Hora do arco –íris (1998) que recebeu o prêmio Murilo Mendes no Concurso Livros Inéditos; Matizes (1999) e Trajetória (2004). Em sua consistente produção lírica, pretende-se compreender as impressões da memória que prevalecem, relacionando-as ao momento histórico em que acontece a sua produção. METODOLOGIA A literatura brasileira contemporânea recorre ao conceito de tradição para estabelecer a comunicação entre tempos e autores diferentes. Ao mesmo tempo, está inserida na busca pela criação e pela experiência aliada à tradição e à linguagem que seus autores emprestam às obras. De modo geral, ela está num plano de diálogo e de busca que incluem o sujeito e a maneira como ele se coloca diante do mundo. Dessa forma, a presente proposta de investigação centra-se no estudo da produção lírica da poetisa contemporânea Virgínia Vendramini a partir de certas características da pós-modernidade apontadas por vários estudiosos. Portanto, realizar-se-á, primeiramente, uma pesquisa de cunho bibliográfico na obra da autora, orientando-se sobre os poemas a partir dos pressupostos teóricos escolhidos, mas, igualmente dialogando com outros campos. Posteriormente à pesquisa inicial, serão apresentados os resultados por meio de sua publicação da pesquisa em forma de artigo, livro e apresentações em congressos ou simpósios, a fim de divulgar a obra riquíssima de Virgínia Vendramini. RESULTADOS A pesquisa encontra-se na fase inicial na qual as obras da autora num primeiro momento foram lidas e, a partir disso já se observa que são marcadas por um profundo trabalho com a linguagem e uma intensidade arte literária carregada de um rico imaginário. Observa-se uma forte visualidade e uma sensibilidade permanente transbordando em seu interior lembranças de um passado num tempo presente na memória da autora que, mesmo quando fala de amargura ou solidão o faz de um 212 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS modo suave. Para Gaston Bachelard, em A poética do espaço a fenomenologia encontra, na poesia, a sublimação, ou seja, a poesia é dotada de uma felicidade própria, mesmo que seus temas sejam tristes. Além disso, outra característica marcante de Virgínia é o caráter essencialmente construído e pensado de sua poesia clara e penetrante, sem rebuscados, porém muito rica na construção de imagens. A imagem literária, como afirma Bachelard, “torna a alma bastante sensível para receber a impressão de uma fineza absurda” (1974, p. 490). Assim, a poética natural, espontânea e forte que domina, intuitivamente, nos faz entender o universo desconhecido que abarca. CONCLUSÕES A modernidade traz discussões pertinentes em relação à função poética e a literatura compreende-se através da memória do presente e do passado, pois desde a sua origem, está duplamente ligada à memória. Partindo da obra para a teoria podemos afirmar que a poesia é memória dialógica com o mundo, expressão de interioridade, essência humana, subjetiva. A imaginação é uma potência criadora, onde o poeta é um ser que deve mediar os homens a seu passado, e que segundo Octavio Paz, todos nós estamos construindo um grande poema. Nesse sentido, a presente pesquisa presume que a expressão lírica de Virgínia Vendramini manifesta um entrecruzamento de vozes e que não é possível entendê-la desvinculada à história, linguagem, memória que formam seu discurso poético. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. (1995 a) “O que significa elaborar o passado”. São Paulo: Paz e Terra. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os pensadores XXXVIII. 1. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1974. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. BENJAMIN, Walter. “Infância berlinense por volta de 1900”. Obras Escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. Lisboa: Edições 70, 1995. MOISÉS, Massaud. A criação literária.São Paulo, SP. Melhoramentos, 1971. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira (Coleção Logos), 1982. PIGNATAR, Décio. 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Elementos que participam do estranho tornando-o algo secretamente familiar e contribuindo na criação da atmosfera onírica que permeia o romance. Ressalta-se, além desses fatores que contribuíram no enriquecimento da análise, o papel das teorias de Bachelard (1978) dentre as quais destacamos o papel do espaço físico na construção onírica, a polaridade sótão-porão, a verticalidade da casa, os valores do espaço habitado e os conceitos de ninho e concha que aumentam consideravelmente nossa imaginação e atuam em nossa memória. Nos detivemos, assim, nos seguintes tópicos de análise: a questão da duplicidade presente no título de La invención de More, que se expressa na narrativa por meio das palavras de um suposto editor que contradizem o protagonista nas notas de rodapé do diário; no fato de a ilha na qual o protagonista se refugia abrigar uma "peste mortal" que pode sugerir certa alteração no estado de consciência do protagonista e se manifesta em sua percepção da realidade na qual passam a interferir os sonhos e a imaginação mesclados à sua memória; na má alimentação e nas condições precárias de sobrevivência em que se encontra o protagonista anônimo; na ambiguidade que se apresenta entre a realidade experimentada por ele e as projeções criadas pela máquina de Morel. Projeções, estas, que num primeiro momento, pensa-se que são reais e apenas no decorrer da narrativa o leitor, assim como o personagem, tomarão conhecimento de que são apenas projeções imagéticas, criadas pela máquina, capazes de promover a eternidade das imagens em detrimento da morte física do ente captado. Finalmente, aborda-se a relação do protagonista com a personagem Faustine. Esses aspectos são de extrema importância para promovermos as associações que nos interessam entre a obra e a criação de uma atmosfera surreal, que questiona num primeiro momento a existência do próprio protagonista e posteriormente a existência dos outros habitantes da ilha. Esta pesquisa está 39 Acadêmica do 4º ano do curso de Letras Português-Espanhol da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Pesquisadora PICV sob orientação da professora Dra. Ximena Antonia Díaz Merino. Linha de Pesquisa: Literatura, história e memória. Endereço eletrônico [email protected] 214 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ancorada nos estudos sobre o Imaginário de Gaston Bachelard (1978), do Surrealismo de André Breton (1924), Briony Fer (2008) e David Batchelor (2008), nos estudos sobre o Novo Romance Hispano-Americano de Bella Jozef (1974 2005) e Carlos Fuentes (1976), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Imagem poética, Surrealismo, La invención de Morel. INTRODUÇÃO Esta pesquisa lança um olhar sobre a obra La invención de Morel (1940), do escritor Argentino Adolfo Bioy Casares (1914 - 1999). O objetivo é aproximar a aspectos da vanguarda Surrealista, promovendo reflexões a partir do surgimento das imagens poéticas emergentes da narrativa e suas analogias com esta escola artística, na perspectiva estética e em alguma medida, também no âmbito da experiência humana personificada no personagem da obra e na própria invenção de Morel, que dá título à narrativa. A fruição desta análise emerge das imagens poéticas que pulsam no próprio texto, que se revelando, revelam as possibilidades, as nuances e tonalidades que colorem o espaço e imprimem sentidos ao texto. Cabe destacar que a falta de divulgação e conhecimento, no Brasil, da obra de Bioy Casares foram os motivos que suscitaram esta pesquisa. O escritor argentino, na maior parte das vezes, aparece associado a Jorge Luis Borges devido à estreita relação que mantiveram, apesar da diferença de idade entre eles, pois quando se conheceram, Bioy Casares tinha 17 anos de idade e Borges tinha mais de 30 anos. A partir desse momento os escritores não apenas passaram a conviver, mas também a escrever juntos, principalmente sob o pseudônimo de H. Bustos Domecq. Por esse motivo, a sombra de Borges, quase sempre, acompanha a imagem de Bioy Casares. O transito entre a realidade e a imaginação, entre a paisagem natural da ilha e as projeções da máquina de Morel, a importância que o protagonista dá aos sonhos, a constante repetição de imagens, falas de personagens e músicas e o antagonismo gerado entre a voz do personagem principal e a voz do editor de seu diário contribuem para a "explosão" da imagem poética surrealista emergente na narrativa e dão ao sonho e à imaginação um caráter imprescindível. Para alcançar os objetivos propostos será fundamental refletir sobre a experiência do protagonista e a relação que estabelece com a “invenção de Morel”, com o espaço da ilha e com Faustine. Nesse âmbito, o fundo onírico que designa a imagem e os limites entre realidade e sonho que se expressam no surrealismo serão o mote para esta percepção da obra de Bioy Casares. Frisa-se aqui que a imaginação e o sonho serão tomados como parte da realidade e serão importantes na percepção de um espaço de supra-realidade, ou seja, mais que real, já que injetam uma nova visão e ampliam as possibilidades de vivenciar o espaço num ambiente ilhéu, limitado geograficamente mas, nem por isso, menos complexo. 215 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Dois questionamentos que merecem destaque neste estudo são: Qual é a relação do homem com a eternidade da imagem em detrimento à efemeridade do existir em La invención de Morel? e Quais os limites entre a realidade e o sonho manifestos na obra e presentes no movimento de vanguarda Surrealista? Essas questões permearam o desenvolvimento da pesquisa e proporcionaram uma nova compreensão da realidade narrativa expressa no romance casareano, situado no tempo de sua escrita e contextualizado pelas mudanças no modo de escrever que marcam o momento do Novo Romance Hispano-Americano. O romance em destaque permite uma gama de interpretações, leituras caleidoscópicas, somente possibilitadas por este novo contexto que expande as noções de realidade e agrega à ela algo que anteriormente foi rejeitado, a imaginação. MATERIAIS E MÉTODOS A metodologia a ser aplicada encontra-se no âmbito exploratório da produção literária de Adolfo Bioy Casares. Os estudos críticos sobre La invención de Morel, quase sempre estão associadas ao gênero de romance policial ou ficção científica e neste estudo, a obra é relacionada ao Surrealismo, portanto, lançar-se-á um novo olhar para imprimir novos sentidos à obra em questão. Buscou-se um diálogo entre o texto literário e a representação vanguardista hispano-americana a partir do conceito de imagem poética e a seleção do corpus de estudo explica-se pelo fato de enxergarmos grandes possibilidades de trabalho entre este conceito proposto por Bachelard, a vertente surrealista e a narrativa de Bioy Casares. Portanto, a partir das interrogações em estudo, a pesquisa configurou-se como sócio-crítica, do tipo bibliográfico interpretativo, uma vez que, foi desenvolvida a partir do levantamento e interpretação de textos teóricos e literários visando a ampliação do conhecimento acerca do assunto. Segundo Antonio Candido (1985, p. 18), “a sociologia não passa, neste caso, de disciplina auxiliar, não pretende explicar o fenômeno literário ou artístico, mas apenas esclarecer alguns de seus aspectos”. Nesse sentido, fez-se necessário considerar o contexto no qual foi escrita a narrativa casareana, mas acentua-se sua atualização no tempo pela possibilidade de leitura atemporal e da qual pode-se extrair diversas interpretações, dependendo da luz que se fizer incidir sobre a obra. RESULTADOS, DISCUSSÃO, CONCLUSÕES Observou-se que há grandes possibilidades de análise ao se trabalhar com o contexto do Novo Romance Hispano-americano, as teorias do Imaginário de Gaston Bachelard e algumas ideias centrais do Surrealismo, principalmente porque, em geral, as teorias que norteiam estes movimentos ou que emergem nestes contextos privilegiam a imaginação e ampliam as noções de realidade, seja na escrita literária, na arte em geral ou mesmo na vida cotidiana e "prática". 216 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Sobre a presença de imagens surrealistas na narrativa, pode-se dizer que partem de uma leitura relativamente condicionada a um locus específico de observação, essas imagens que se apresentaram para nós como parte de uma supra-realidade, pode configurar-se em um outro leitor assumindo, por exemplo, características inerentes ao gênero de ficção científica ou policial, como outrora outos pesquisadores já apontaram; ainda assim, é possível apresentar, com base nas teorias elencadas ao longo da pesquisa, assertivas que ampararam nossa visão. Os conceitos de imagem poética, ninho, concha, a relação memória-imaginação e o papel do espaço físico na construção das imagens propostas por Bachelard, imprimiram sentidos à leitura de La invención de Morel corroborando para uma análise bem fundamentada e palpável. REFERÊNCIAS ANTUNES, Luiza. Como funcionam os coffeeshops de Amsterdam. 2014. Disponível em: <http://www.360meridianos.com/2014/01/coffeeshops-amsterdam.ht ml>. Acesso em: 23 Set. 2014. BAKHTIN, Mikhail. “Epos e romance: sobre a metodologia do estudo do romance”. In: Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 4. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1998. p. 397-428. BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. In: Os Pensadores XXXVIII. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 180-354. BATCHELOR, David. Essa liberdade e essa ordem: A arte na França após a primeira guerra mundial. In: FER, Briony; BATCHELOR, David; WOOD, Paul (Org.). 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O tema escolhido volta-se à análise das obras, tanto na poesia quanto na narrativa, e as contribuições destas para a compreensão da formação da mulher/poeta paranaense, bem como o modo de percepção do mundo deste sujeito social que, constitui-se também de imaginação e a exterioriza por meio da linguagem poética. O estudo fundamenta-se à luz das teorias de Bachelard (1997, 2009), Octavio Paz (2012), Durand (2012) e Jung (2000). PALAVRAS-CHAVE: Imaginário. Lírica. Adélia Maria Woellner. INTRODUÇÃO Ao estabelecer uma relação texto/sujeito a partir do viés da construção do imaginário por meio do texto literário, neste caso, a poesia e a narrativa lírica, é descobrir novos caminhos para o entendimento do mundo e a relação do ser humano com sua natureza. A composição da linguagem poética de Adélia Maria Woellner dá suporte para a construção de um universo imaginário em que o eu-lírico volta-se ao interior de sua espiritualidade e de suas memórias. A linguagem é a afirmação da identidade humana, que de acordo com Octavio Paz: “A linguagem é uma condição da existência do homem, e não um objeto, um organismo ou um sistema convencional de signos que podemos aceitar ou desprezar” (2012, p. 39). Essa identidade linguística que faz do homem um ser constituído de palavras, e faz da palavra poética a essência da alma humana. Dessa maneira, buscar-se-á: a) Compreender que elementos influenciam na constituição do imaginário e como isso se dá sob a ótica feminina. b) Comparar a poesia e a narrativa lírica da escritora Adélia Maria Woellner. c) Investigar as contribuições dos mitos e das imagens poéticas para a constituição do imaginário. METODOLOGIA A pesquisa se sustenta em uma abordagem teórico-crítica, na fenomenologia, na crítica e também na Literatura comparada, que segundo Tânia Carvalhal: 40 Aluna do programa de pós-graduação stricto sensu em Letras, nível de mestrado, área de concentração em Linguagem e sociedade. Antonio Donizeti da Cruz (Orientador) 219 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS “Comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organização da cultura” (2006, p. 6). Assim, essa pesquisa está adequada para o campo da análise comparada, uma vez que há suporte para o desenvolvimento dos objetivos pretendidos. O estudo voltado ao campo do imaginário visa analisar também os quatro elementos primários da natureza, ar, água, terra e fogo, à luz dos estudos do filósofo Gaston Bachelard, por serem elementos simbólicos muito presentes na obra woellneriana, que além destes, estabelece-se um marcante diálogo com outros elementos naturais, bem como, atribuindo a eles características místicas e míticas. Nessa perspectiva, a pesquisa bibliográfica permite investigar como se apresenta hoje a poesia brasileira, e as inferências míticas que permeiam os textos, assim, as bases bibliográficas utilizadas servirão para orientar e fundamentar o desenvolvimento da problemática que envolve a pesquisa e a análise dos textos poéticos. Para o estudo serão analisadas as obras: Balada do Amor que se foi (1963); Nhanduti (1964); Poesia Trilógica (1972); Encontro Maior (1982); Avesso meu (1990); Infinito em mim (1997) que também foi publicada em inglês (Infinte in Me), italiano (L’Infinito in Me), espanhol (Infinito en Mí), francês (Infini en Moi), alemão (Unendlichkeit in Mir) e em braile, pelo Centro de Informática para Deficientes Visuais Professor Hermann Görgen; Sons do silêncio (2004); Tempo de escolhas (2013); Luzes no Espelho: memórias do corpo e da emoção (2002) composta por relatos, crônicas e poemas; Travessias... do inconsciente ao consciente (2007) prosa e verso; Loucura Lúcida (2009) crônicas. Como base teórica, os estudos de Gilbert Durand, Gaston Bachelard e Octavio Paz. RESULTADOS E DISCUSSÕES O discurso literário é construído por meio de uma linguagem simbólica que representa o pensamento de uma determinada época expresso pela voz do poeta, isso se dá, segundo Ana Maria Lisboa de Mello porque “todo discurso simbólico afigura-se como a expressão, tradução ou interpretação criativa de uma infraestrutura, de uma protolinguagem ou de uma vivência profunda” (MELLO, 2002, p. 12). Portanto, o símbolo é uma forma de representação do universo humano, no entanto, não deve ser entendido apenas como uma referência binária, mas, compreender as relações que se estabelecem para a constituição de múltiplos significados que estão arraigados a cada sistema simbólico. Poeta contemporânea, Adélia Maria Woellner possui uma intensa produção de poemas, narrativas e textos para o público infantil, por isso é importante observar como os elementos que compõem a formação do imaginário estão dispostos na poesia e na narrativa, e como esses elementos funcionam na construção do texto poético e no imaginário do leitor. Conforme Durand: “há completa reciprocidade entre a palavra e um signo visual” (2012, p. 157). As imagens produzidas pela palavra poética são os elementos encontrados nos textos da poeta e, que constituem principalmente, a escrita da mulher, sua identidade e formação social. A poesia de Adélia Maria Woellner é uma produção poética que traz em seus versos referências míticas que corroboram para o pensamento humano e as relações sociais que ordenam a vida cultural de uma sociedade, pois ao mesmo tempo que o mito é fonte de conhecimento, é também um modo de estabelecer uma ponte e 220 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS conservar a cultura do passado e a contemporânea, esta que ainda vive resquícios de explicações míticas para fenômenos que fazem parte do imaginário do homem. Conforme Octavio Paz, poesia é: “Oração, ladainha, epifania, presença. Exorcismo, conjuro, magia. Sublimação, compensação, condensação do inconsciente. Expressão histórica de raças, nações, classes” (2012, p.21). Essa caracterização do fazer poético é com frequência encontrado nos poemas woellnerianos. Nesse sentido, observa-se que a imagem é um dos elementos denotativos à essência da construção poética, imagens que são construídas pelas palavras. Bachelard metaforiza a imagem poética, dizendo que: “[...] a imagem é uma planta que necessita de terra e de céu, de substância e de forma” (1997, p. 3). A constituição dessas imagens que se formam através da linguagem poética transporta o leitor a um outro estado de espírito, que para Bachelard “O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O devaneio poético é um devaneio cósmico. É uma abertura para um mundo belo, para outros mundos” (2009, p. 13). Esse outro mundo posto por Bachelard configura-se no imaginário que é composto a partir das imagens, dos símbolos poéticos e das referências míticas presentes na poesia e na narrativa woellneriana. CONCLUSÕES Sentimentos humanos, magia, mitos, cultura, poesia, a mescla desses princípios resultam em uma produção poética que atende aos anseios de uma sociedade cada vez mais urbana e carente por entender o contexto em que vive. O texto poético woellneriano e a linguagem plena de imagens simbólicas e referências míticas presentes nos poemas atendem a esse anseio do homem latino-americano, que, tem inerente a sua cultura uma riquíssima mistura de credos e mitos que amparam a formação dessas sociedades. O homem traz enraizado à sua formação a crença e a atribuição de sentidos a vários símbolos que tornam-se fonte de entendimento para a constituição do sujeito. Os símbolos da água, do ar, da terra e do fogo, bem como os ascensionais e os teriomórficos, segundo Durand, funcionam como mecanismos para múltiplas interpretações e compreensão da vida social. Os mistérios que gravitam em torno dessas imagens e a simbologia atribuída a elas, estabelecem entre o mito e a palavra poética um elo confluente no qual a ressignificação é constantemente atualizada e adquire uma ressignificação por ser um elemento vivo, que evolui conforme o ser humano também evolui. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ______. A poética do devaneio. Tradução Antonio de Pádua Danesi. 3 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. 4. ed.. São Paulo: Ática, 2006. 221 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Tradução Hélder Godinho. 4 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução Maria Luíza Appy e Dora Mariana R. Ferreira da Silva. 2ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. MELLO, Ana Maria Lisboa de. Poesia e imaginário. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. São Paulo: Cosac Naify, 2012. WOELLNER, Adélia Maria. Sons do silêncio. Curitiba: Torre de Papel, 2004. ______. Infinito em mim. Curitiba: Reproset, 1997. ______. Luzes no espelho: memórias do corpo e da emoção. Curitiba: Instituto Memória, 2008. ______. Tempo de escolhas: poemas. Curitiba, PR: Edição do autor, 2013. ______. Loucura Lúcida. Curitiba: Edição do autor, 2009. ______. Encontro maior. Curitiba: O Formigueiro, 1982. ______. Avesso meu. Joinville: Ipê, 1990. ______. Travessias: do inconsciente ao consciente. Curitiba: Protexto, 2007. ______. Nhanduti. Curitiba: O Formigueiro, 1964. ______. Poesia trilógica. Curitiba: O Formigueiro, 1972. ______. Balada do amor que se foi. Curitiba: Escola Técnica de Curitiba, 1963. 222 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O CÔMICO AMBIVALENTE E A CULTURA POPULAR NAS PEÇAS A FARSA DE MESTRE PATHELIN, FARSA DE INÊS PEREIRA, FARSA Y LICENCIA DE LA REINA CASTIZA E FARSA DA BOA PREGUIÇA Maricélia Nunes dos Santos41 RESUMO Sob os pressupostos da Literatura Comparada, de que tratam teóricos tais como Brunel (1970), Carvalhal (2006) e Nitrini (2000), nossa pesquisa propõe o estudo da farsa, tendo como foco sua caracterização como gênero cômico e sua associação à cultura popular. Em outros termos, o que se propõe é estudar as modulações da farsa compreendendo-a como um dos gêneros de maior fecundidade entre os textos de origem cômica e um texto artístico que nasce no âmbito da cultura popular, em contraposição a discursos oficiais. Atentando para a representatividade da farsa como gênero cômico significativamente associado à cultura popular, objetiva-se realizar o estudo comparativo das obras A farsa de mestre Pathelin (representada pela primeira vez provavelmente em 1465), peça francesa de autoria desconhecida, Farsa de Inês Pereira (1523), do português Gil Vicente, Farsa y licencia de la Reina Castiza (1920), do espanhol Ramón María del Valle-Inclán, e Farsa da boa preguiça (1960), do brasileiro Ariano Suassuna. PALAVRAS-CHAVE: farsa; cômico; cultura popular. INTRODUÇÃO Haja vista a necessidade de pesquisas que atentem para as especificidades do cômico e dos elementos inerentes a ele, propõe-se o estudo comparativo das obras A farsa de mestre Pathelin (de aproximadamente 1465), peça francesa de autoria desconhecida, Farsa de Inês Pereira (1523), do português Gil Vicente, Farsa y licencia de la Reina Castiza (1920), do espanhol Ramón María del Valle-Inclán, e Farsa da boa preguiça (1960), do brasileiro Ariano Suassuna. Considera-se que as peças selecionadas para a realização da pesquisa mantêm uma relação intertextual não apenas porque todas se caracterizam como farsas, isto é, pertencem a um mesmo gênero, o que lhes atribui características comuns, mas porque, como tais, estabelecem diálogo constante com os elementos da cultura popular e, assim, mantêm-se associadas à origem do cômico, qual seja, 41 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, Linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Professora Dra. Lourdes Kaminski Alves. Professora Assistente de Língua Espanhola como Língua Adicional na Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA. Endereço eletrônico: [email protected]. 223 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS o ambiente de praça pública. Partindo desse pressuposto, o problema que se apresenta diz respeito às formas de manutenção do cômico e de relação com a cultura popular na modulação do teatro farsesco, representado pelas peças em estudo. A relativa escassez de discussões acerca das manifestações do cômico ambivalente na Arte e o precário espaço que este tem ocupado no âmbito da academia constituem um dos mais significativos fatores que impulsionam o desenvolvimento deste trabalho. Entende-se que, na contemporaneidade, assumiu grande importância no âmbito das pesquisas em Literatura a realização de estudos que se voltem para elementos do cômico, tais como a paródia e a carnavalização, visto que eles possibilitam o destronamento das verdades absolutas, de modo que viabilizam também uma revisão de conceitos como cânone, História, sujeito e verdade, entre outros. Nessa perspectiva, visualiza-se no estudo da farsa terreno produtivo para a investigação das modulações do cômico e das relações mantidas entre os gêneros de origem cômica com os elementos da cultura popular. Entende-se que a relação entre o teatro farsesco e os elementos da cultura popular encontra-se expressa inclusive no surgimento daquele, visto que era um teatro praticado por amadores e baseado, a despeito de qualquer técnica cênica especial, na “astúcia verbal” (BERTHOLD, 2006, p. 256). Além disso, considerando que, nas palavras de Berthold, “a crítica social e a sátira encontraram uma benvinda válvula na farsa” (2006, p. 256) no contexto medieval, justifica-se a necessidade de compreender de que forma esse gênero tão rico para se contrapor ao teatro cristão medieval sofreu modulações até chegar aos nossos dias e em que aspectos ele se mostra ambivalente, isto é, capaz de produzir um cômico que, concomitantemente, propicie a crítica e o divertimento, que contribua para regenerar o social (BAKHTIN, 1999). A seleção do corpus baseia-se no fato de que a obra francesa elencada é uma peça associada ao período de surgimento do gênero farsa, isto é, a idade medieval; a obra portuguesa caracteriza-se como uma das farsas mais conhecidas de língua portuguesa e, como a primeira, também está próxima do período de surgimento do teatro farsesco; já a peça espanhola e a brasileira, escritas entre quatro e cinco séculos depois, uma ainda em contexto europeu, como as primeiras, e outra em terreno americano, fornecerão subsídio para o entendimento das modulações do gênero, considerando-se tanto as distâncias temporais como as espaciais. Destaca-se também a importância de trabalhos que procedam a uma análise diacrônica, em que haja, simultaneamente, a retomada de obras imprescindíveis para o entendimento da origem de dados gêneros, como é o caso de A farsa de mestre Pathelin, considerada a primeira farsa a entrar para a história da literatura e do teatro (BERTHOLD, 2006, p. 255), e de escrituras mais recentes, como a brasileira Farsa da boa preguiça, visto que, a partir de estudos desta natureza, fazse possível a apreciação de textos alocados em diferentes contextos temporais e espaciais, sendo que o estudo de uns contribui para o entendimento e a ressignificação de outros. METODOLOGIA 224 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A pesquisa, de natureza bibliográfica, parte fundamentalmente da leitura e análise reflexiva do corpus, em concordância com um aporte teórico que se volta para questões tais como a intertextualidade, o cômico, a farsa e a cultura popular, entre outras. O trabalho de levantamento bibliográfico se estende de obras de reflexão teórica a estudos de natureza crítica que já tenham versado sobre o corpus. RESULTADOS E DISCUSSÃO Já na Poética (1984), de Aristóteles, ainda que seja restrito o espaço reservado ao trato específico do gênero cômico, encontram-se as origens das reflexões teóricas acerca do cômico. Nesta obra, o filósofo grego propõe a classificação da poesia de acordo com os objetos, os meios e os modos de imitação. No que se refere aos meios de imitação, afirma que a comédia assemelha-se à tragédia, visto que ambas utilizam-se do ritmo, do canto e do metro, cada qual a sua vez. Também se assemelham ambas no que diz respeito ao modo de imitação, isto porque as duas se caracterizam como drama, já que “imitam pessoas que agem e obram diretamente” (ARISTÓTELES, 1984, p. 243). Assim, as diferenças estariam no objeto de imitação, pois, conforme a perspectiva aristotélica, enquanto a tragédia imita homens melhores, a comédia busca imitar os homens piores do que nós. Mais recentemente, os estudos bakhtinianos atentam para a forma como o espaço destinado à investigação do cômico tem sido bastante limitado. Em suas palavras, “uma investigação profunda dos domínios da literatura cômica tem sido tão pouco e tão superficialmente explorada” (BAKHTIN, 1999, p. 3 – grifo do autor). O estudioso atenta ainda para o caráter não oficial do riso, tomando-o como razão pela qual os estudos acerca deste não se desenvolveram proficuamente. Diferentemente de gêneros vistos como mais “sérios”, que é o caso da tragédia e da epopeia, que são tidos como mais apropriados para a “verdade”, o cômico foi, em muitos momentos, relegado a um espaço paralelo. Diferentemente de Aristóteles, que, nas poucas passagens em que discorre acerca do cômico, destaca sua capacidade de ridicularizar, Bakhtin reconhece no riso tanto seu caráter festivo como sua capacidade de ridicularizar, isto é, sua ambivalência. A ambivalência cômica consiste, paradoxalmente, na capacidade de construir e desconstruir a um só tempo, rebaixar e soerguer, em apontar para o início que sucede ao fim, o nascimento que decorre da morte, em negar e afirmar por meio de um riso em que os opostos não se excluem; ao revés, se complementam. A ambivalência é, pois, a multiplicidade e a negação do dogmatismo, da verdade absoluta e do estático. Linda Hutcheon apresenta também estudos que têm contribuído significativamente para o entendimento do cômico e de seus constituintes na contemporaneidade. A pesquisadora, que trata o pós-modernismo como sendo “sempre uma reelaboração crítica, nunca um ‘retorno’ nostálgico” (HUTCHEON, 1991, p. 21), afirma que é justamente nesse aspecto que reside “o papel predominante da ironia no pós-modernismo” (HUTCHEON, 1991, p. 21). Para ela, “o irônico repensar pós-moderno sobre a história é textualizado nas muitas referências paródicas gerais” (HUTCHEON, 1991, p. 21). Assim, elementos cômicos, tais como paródia e ironia, se tornam a base para as construções estéticas pós-modernas, as 225 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS quais partem do já existente para a criação do novo, reunindo em seu interior “contradições tipicamente pós-modernas” (HUTCHEON, 1991, p. 21). Nascida no bojo do cômico, a farsa caracteriza-se como [...] teatro ao ar livre, frequentemente ligado ao Carnaval, que por isso, atrai um público mais popular, urbano: bons companheiros, artesãos aos quais se unem, de bom grado, pequenos e médios burgueses. A farsa e o jogo do Carnaval não requerem grandes esforços intelectuais, porque consistem em peças curtas, de duzentos a quatrocentos versos, com poucos personagens sem nome próprio (MINOIS, 2003, p. 199). Como gênero cômico, ela mantém o foco não no indivíduo em si, mas no que ele representa; por isso, não há necessidade do nome próprio, que individualiza. A farsa mostra aquilo que é comum entre os homens, “ela quer nos lembrar, prosaicamente, do que somos” (MINOIS, 2003, p. 202). Nos termos de Bernardette Rey-Flaud (1985), o teatro farsesco constitui uma grande “máquina de rir”. Esta máquina de rir, que não exigia grande esforço intelectual de seu público, conforme defende Minois, assumiu importância tal no contexto da Idade Média que, séculos depois, segue ressonando em produções artísticas, seja no contexto europeu, a exemplo do teatro de Valle-Inclán, seja no “Novo Mundo”, como é o caso do artista brasileiro Ariano Suassuna. Por tais razões, ela atrai para si a atenção de críticos e teóricos do cômico, como já fazia com seu público alguns séculos atrás, mas com o diferencial de que, hodiernamente, exige dos estudos acadêmicos um esforço intelectual capaz de entendê-la em sua profundidade, para avaliar o seu potencial de fazer irromper o cômico ambivalente, por meio de um constante e estreito laço com o popular. CONCLUSÕES A pesquisa, que está associada ao processo de doutoramento iniciado em 2014, apresenta-se ainda em fase inicial, de modo que não é possível apontar para conclusões. Trata-se, pois, de um projeto que deverá ser desenvolvido ao longo do período de quatro anos, dando, então, origem à tese de doutorado. REFERÊNCIAS A FARSA de mestre Pathelin. Trad. Mário Barradas. Lisboa: Edições Colibri, 1999. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril, 1984. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi. 4. ed. 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Farsa da boa preguiça. Rio de Janeiro: J. Olympio; Rio de Janeiro, 1974. VALLE-INCLÁN, Ramón María del. Farsa y licencia de la Reina Castiza. Disponível: <http://www.archive.org/details/farsaylicenciadeOOvall>. Acesso em: 20 set. 2013. VICENTE, Gil. O velho da horta. Auto da barca do inferno. Farsa de Inês Pereira. São Paulo: Brasiliense, 1982. 227 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS AMORES DE PERDIÇÃO: A HISTÓRIA SECRETA DE MANOELA E GARIBALDI Marina Luísa Rohde 42 RESUMO O romance Amor de perdição escrito por Josué Guimarães em 1986 aborda questões que extrapolam o cunho literário. A história de amor vivida por Giuseppe Garibaldi e Manoela Amália Ferreira é recontada na obra a partir estreitas relações com o texto histórico. Há a apresentação do contexto da Revolução Farroupilha (1835-1845) como pano de fundo da obra. Com a utilização de personalidades históricas, Guimarães apropria-se da literatura para tematizar questões estudadas outrora pela historiografia. À luz dos pressupostos teóricos de Menton (1993), Sharpe (1992), entre outros, objetiva-se apresentar uma análise do conceito estudado por Menton, definido como Novo Romance Histórico que, em linhas gerais, aborda temáticas que se preocupam com uma revisitação do passado histórico, de modo a compreender como é composta a representação literária do romance, apresentando uma releitura histórica por meio da ficção. PALAVRAS-CHAVE: Amor de Perdição; Revolução Farroupilha; Novo Romance Histórico. INTRODUÇÃO Amor de perdição, romance de Josué Guimarães, publicado em 1986, aborda o mesmo tema do romance camiliano. O autor escreve uma narrativa aderindo, além da temática do amor impossível, o mesmo título de Castelo Branco. A narrativa conta o envolvimento amoroso entre o revolucionário Giuseppe Garibaldi e Manoela Amália Ferreira. Na narrativa de Guimarães é possível encontrar uma história com os mesmos alicerces que Camilo Castelo Branco utilizou: um amor ‘de perdição’ vivido por Giuseppe Garibaldi e Manoela, no contexto da Revolução Farroupilha (1835 – 1845), que é interrompido pelo tio de Manoela, Bento Gonçalves, um líder da guerra, companheiro de Giuseppe. Com a recusa do pedido de casamento feito por Garibaldi, Manoela se isola da sociedade e ele continua suas obrigações de guerreiro no Brasil e posteriormente no Uruguai. O romance termina apontando para a morte de Manoela, que viveu sozinha em Pelotas, conhecida como a “viúva de Garibaldi”. Ele casa-se com Anita, companheira de batalhas e voltam à Itália. Permeado por uma história de amor é possível encontrar nas duas narrativas ficcionais denominadas Amor de perdição um desejo não realizado, além do fato de ambas utilizarem personagens que a existência factual pode ser reconhecida. 42 Graduanda do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Cascavel. Aluna de Iniciação Científica Voluntária, sob orientação do Professor Dr. Wagner de Souza. Endereço eletrônico: [email protected]. 228 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS As escritas híbridas, surgidas no fim do século passado, ganham novo ânimo com o surgimento de ideais pós-modernistas, resultando em uma série de revisões e questionamentos de eventos históricos. Desse modo, os romances renovaram-se e recriaram-se, proporcionando o surgimento de diferentes modalidades desse gênero. Na especificidade da pesquisa, propõe-se trabalhar com releituras da história pela ficção. Considerando a importância do revisionismo histórico para a atualidade, percebe-se que refletir sobre as confluências da história na literatura torna-se uma prática recorrente na América Latina, uma vez que, de acordo com Menton (1993), as comemorações do quinto centenário de descobrimento da América contribuem para um questionamento do papel da América Latina para o mundo 500 anos depois da chegada dos europeus. Com relação ao Brasil, trata-se dos 500 anos de descobrimento, momento adequado para reforçar a ideia de pertencimento a uma nação que deixou de ser colônia. Nesse período, a presença de narrativas feitas a partir do uso da história e da literatura é recorrente, cabendo a essa preencher lacunas históricas com enredos ficcionais. Essa revisitação ao passado proporciona uma reconstrução de sentidos relacionados à história brasileira, as quais permitem rever momentos históricos a partir de outros pontos de vista. A pesquisa objetiva, portanto, analisar as relações presentes entre o discurso advindo da historiografia oficial em contraponto ao romance histórico atentando para a importância de promover a interrelação com diferentes perspectivas da história, pelo viés eurofalocêntrico, apontando para os marginalizados do bojo social. METODOLOGIA O projeto tem como enfoque principal o cunho bibliográfico, posto que a pesquisa consiste na aquisição de argumentos teóricos suficientemente sólidos para corroborar o trabalho na linha de pesquisa de literatura, história e memória de modo satisfatório. Esta pesquisa se insere no contexto das relações entre Literatura e História, assim, propõe-se, em primeiro momento, a revisão bibliográfica dos discursos literário e histórico, bem como suas peculiaridades de modo a perceber possíveis convergências e divergências que essa duas áreas apresentam. A revisitação do tema da historia do Rio Grande do Sul, em especial da Revolução Farroupilha, é condição sinequa non para se compreender melhor o passado histórico e lançar luzes sobre as questões hodiernas. Busca-se, portanto, analisar e discutir dados históricos e literários que abordam personagens periféricos no cenário da Revolução Farroupilha. A partir dos estudos de Jacques Le Goff (1988) em A história nova, tem-se buscado perceber a construção de novos métodos de pesquisa diferentes dos tradicionais. A história nova atenta-se ainda à valorização de acontecimentos de longa duração, pois somente esses permitiam o estudo das transformações e permanências sociais. Diante dessa busca por novos aspectos do conhecimento histórico, Jean–Claude Schimitt (1988), no capítulo “A história dos marginais”, também na obra A História Nova, apresenta uma nova concepção dos sujeitos não percebidos pela história oficial, os marginais, que, de modo geral, eram indivíduos não atuantes no processo de reconhecimento da história. O valor atribuído aos 229 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS marginais concerne à contribuição no preenchimento de lacunas históricas. Consideram-se ainda os estudos de Jim Sharpe (1992) no que diz respeito à “História vista de baixo” por apresentar discussões pertinentes ao tema da representação histórica feita apenas pela elite. Como reflexão ao estudo das obras e suas abordagens, busca-se em La nueva novela histórica da la América Latina de Menton (1993) uma caracterização das modalidades de romances presentes no corpus da pesquisa, uma vez que a temática das obras vai ao encontro da proposta do pesquisador em sua definição de novo romance histórico que objetiva perceber como o texto literário elucida o passado histórico a partir do seu discurso, atentando para recursos usados na escrita das obras estudadas que representem essa nova modalidade, tais como a reprodução mimética de períodos históricos, a ficcionalização de personagens históricos e a intertextualidade. Tem-se ainda a contribuição de Mignolo (2001) no capítulo denominado “Lógica das diferenças e política das semelhanças: da Literatura que parece História ou Antropologia, e vice-versa” na obra Literatura e história na América Latina em que prevê ao romance contemporâneo, uma busca advinda do romancista pela correção ou enfrentamento aos discursos antropológicos e historiográficos responsáveis pela marginalização de importantes comunidades. RESULTADOS E DISCUSSÃO O romance histórico apresenta-se como uma possibilidade de releitura ao considerar os diálogos existentes entre a literatura e a história. Sua principal característica consiste na adequação de uma história ficcional a um contexto historiográfico. Com sua origem no século XIX, pela ascensão das ideias iluministas, essa modalidade literária desempenhou um importante papel na construção de identidades, pois, com a atenção voltada ao fato histórico, tais romances firmaram a história nacional.Seymour Menton, na obra La nueva novela histórica: definiciones y orígenes, afirma não ser o romance histórico o único gênero literário a ter estreitado relações com a história. A partir da segunda metade do século XX a produção desse gênero tende a uma mudança. Na América Latina, o Novo Romance Histórico recebe visibilidade com as comemorações do quinto centenário do descobrimento. Pretende-se revisitar o passado construindo novas possibilidades de leitura.Em Amor de perdição, Guimarães procura retomar exatamente a personagem periférica, que não recebeu atenção da historiografia, Manoela, e apresentar a história considerando os seus horizontes. Essa escolha narrativa deixa de reforçar a história positivista na qual se reproduzia apenas o elitismo central. Com essa escolha, Guimarães oferece ao leitor uma visão social a partir de outro ângulo, contribuindo, desse modo, para a percepção uma história não tradicional. CONCLUSÕES Amor de perdição, de Josué Guimarães, apresenta algumas das características que foram propostas por Menton. Guimarães ficcionaliza personagens históricos como Garibaldi, Manoela, Bento Gonçalves que são encontrados nos livros de História e ainda utiliza a intertextualidade, aspecto 230 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS presente já no título. Apresenta-se, contudo, outra busca por definição a partir de romances que não se enquadram em todos os aspectos referentes ao Novo Romance Histórico por razão de ostentarem as características propostas por Menton em menor grau, de maneira fluída. Por meio de uma linguagem mais acessível, Amor de perdição de Josué Guimarães apresenta uma reatualização da história do casal Giuseppe e Manoela. Corroborando com essa perspectiva de análise, percebe-se na escrita de Guimarães uma intenção de escrever para o público do Rio Grande do Sul, cotejando o leitor rio-grandense. REFERÊNCIAS FLECK, G. F. Gêneros híbridos da contemporaneidade: o romance histórico contemporâneo de mediação – leituras no âmbito da poética do descobrimento. In: _____. Cultura e representação: ensaios. Cleide Antonia Rapucci; Ana Maria Carlos (Org.). Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2011. GUIMARÃES, Josué.Amor de Perdição. Porto Alegre: L&PM, 1996. 2ed. MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina 1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MIGNOLO, W. Lógica das diferenças e política das semelhanças: da Literatura que parece História ou Antropologia, e vice-versa. In: _____. Literatura e história na América Latina. CHIAPPINI, Lígia; AGUIAR, Flávio Wolf de. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. SCHMITT, Jean Claude. A história dos marginais. In: LE GOFF, Jacques (org). A história nova. Tradução de Eduardo Brandão. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988. SHARPE, J. A história vista de baixo. In: _____. A escrita da história: novas perspectivas. BURKE, P. (Org.). São Paulo: UNESP, 1992. 231 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O ANTIILUSIONISMO REFLEXIVO DA IMAGEM EM CORTÁZAR Mayara Regina Pereira Dau Araujo43 RESUMO Julio Cortázar é um escritor argentino plural e multifacetado. Não é possível enquadrá-lo dentro de uma única atividade, já que é possível encontrar atuações suas nos campos das artes plásticas, música, fotografia, entre outros. Há uma infinidade de material de pesquisa sobre suas produções, principalmente relacionadas à presença do fantástico em suas obras. Contudo, isso limita muito a dimensão significativa de tudo que criou. Diante de várias obras, notamos uma estreita relação da escrita de Cortázar com as imagens, seja na diagramação de suas obras, seja na inserção de elementos semióticos, colagens, além de fotografia, de obras de arte e histórias em quadrinho. Portanto, a presente pesquisa pretende analisar a representação da imagem nas obras de Cortázar. Entre alguns livros que formarão o corpus de análise estão Rayuela (1963), Todos os fogos o fogo (1966), Livro de Manuel (1973), Último Round (1969), Fantomas vs os vampiros multinacionais (1975), Prosa do Observatório (1972) e As babas do diabo, pertencente ao livro de contos As Armas secretas (1959). PALAVRAS-CHAVE: Julio Cortázar; imagem; literatura e cinema; estudos interartes. INTRODUÇÃO Cortázar é um artista completo guiado pela multiplicidade e pluralidade. É possível constatar em sua biografia (na verdade, um álbum biográfico), suas diversas atuações em áreas diferentes, como a música, a pintura, a fotografia, a poesia e a dramaturgia. Possui uma escrita rizomática, heterogênea, pois esta “não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.4). Cortázar não segue padrões e suas obras são compostas por uma plasticidade de gêneros. Aplica conceitos de outros domínios na escrita. Enfim, transita por todas as artes. Um estudo sobre sua obra requer um conhecimento em diversos campos de estudo. Há muitas pesquisas sobre suas obras, com diferentes focos e mesmo assim, parece ser uma fonte inesgotável de estudos. Cortázar é um artista multifacetado, passível de ser abordado por diversos olhares, contudo, na pesquisa que pretendemos realizar nos debruçaremos sobre a representação da imagem em suas obras. Cortázar é dono de uma escrita 43 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob a orientação do professor Dr. Acir Dias da Silva. Bolsista CAPES/CNPQ. Endereço eletrônico: [email protected]. 232 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS fragmentada, permeada por enxertos semióticos. Em um mesmo livro é possível encontrar fragmentos de outros textos, imagens, modificações na estrutura, rompendo com a escrita tradicional e linear. O autor já declarou em entrevistas que se pudesse imprimir seus próprios livros teria usado mais colagens fotográficas. METODOLOGIA Partindo desse elemento tão presente em suas obras, a imagem, delineamos a pesquisa atual, na qual analisaremos algumas obras em que há a presença significativa de imagens. Entre as obras selecionadas para o corpus de trabalho estão Rayuela (1963) e Todos os fogos o fogo (1966), nas quais o autor faz modificações na diagramação que influem diretamente na construção do significado do texto. No Livro de Manuel (1973), há inserções de recortes de jornais. Em Último Round (1969), que é um livro-almanaque, temos uma combinação explícita de diferentes gêneros com fotografias, desenhos, frases copiadas das paredes das universidades de Paris e reprodução de obras de arte. Em Fantomas vs os vampiros multinacionais (1975), encontramos um Cortázar incursionando no mundo das histórias em quadrinhos. Já em Prosa do Observatório (1972), Cortázar combina texto literário com fotografias tiradas por ele mesmo durante uma viagem à Índia. Entre os teóricos que embasarão a pesquisa temos Umberto Eco, Italo Calvino, Davi Arrigucci Jr, entre outros a definir. RESULTADOS E DISCUSSÃO Pensando nas diversas facetas e possibilidades de pesquisa que as obras de Cortázar oferecem, estamos desenvolvendo um estudo, ainda incipiente, relacionando Literatura e Cinema. A seguir, apresentamos uma breve análise realizada do conto de Cortázar As babas do diabo e o filme Blow Up do cineasta Michelangelo Antonioni que foi inspirado nesse conto. O filme Blow Up se inspirou no conto de Cortázar, mas não foi adaptado literalmente para as telas. Contudo, Antonioni manteve em seu filme a base temática do conto de Cortázar, ou seja, um fotógrafo que faz umas fotos e ao revelá-las percebe que, na verdade, presenciou um crime. No conto, o protagonista fotógrafo assiste uma mulher tentando convencer um garoto a ter um encontro íntimo com um homem que acompanha a cena a distancia. Já no filme, o fotógrafo faz algumas fotos de um casal e, quando revela as fotos, percebe que registrou um assassinato. A partir disso, as histórias seguem caminhos diferentes. O que podemos destacar, a princípio são as formas de narrar. No começo do conto há uma confusão de narradores: Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tua mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos. Que diabo (CORTÁZAR, 2012, p. 56). 233 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A estratégia narrativa de narradores múltiplos não é usual na escrita tradicional, já em Cortázar é comum e ilustra uma das características subversivas muito presentes em suas obras. Ele explicaria em seu ensaio Do conto breve e seus arredores os motivos dessa forma de escrever: Quando escrevo um conto busco instintivamente que ele seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo, que se ponha a viver com uma vida independente, e que o leitor tenha ou possa ter a sensação de que certo modo está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais com a presença manifesta do demiurgo (CORTÁZAR, 2006, p. 229-230). Essa confusão de narradores também é uma estratégia para mostrar o estado emocional de inquietude do narrador que não sabe como deve contar o fato ocorrido. No conto temos uma escrita que segue o fluxo do pensamento do narrador, diferente do filme onde o tempo da narrativa segue a progressão dos acontecimentos. Em relação ao tempo da história e tempo da narrativa, no conto podemos falar em tempo subjetivo, no qual os acontecimentos vão se desenrolando conforme o narrador vai contando e há a presença do recurso do flashback, que segundo Campos (2007), é a exibição de um incidente que ocorreu antes do que está sendo narrado. Com base nisso, podemos destacar que o conto é permeado dessa estratégia. O narrador está morto e relembrando a história para contar ao leitor e, por esse motivo, há muitas interrupções ao longo da narrativa para falar que passou um pássaro ou uma nuvem, por exemplo, já que é contada conforme as lembranças vêm à mente. Além do flashback, no conto, temos a presença do flashforward que é uma antecipação de algum incidente que vai ocorrer depois. Por exemplo, o narrador do conto já nos dá indícios do que vai acontecer na história quando escreve que o menino que está conversando com a loura parece estar muito nervoso, com “um medo sufocado pela vergonha, um impulso de atirar-se para trás que se percebia como se seu corpo estivesse à beira da fuga” (CORTÁZAR, 2012, p. 60), fuga esta que realmente acontece depois. Já no filme, não encontramos o uso do flashback, pois a narrativa progride segundo as ações dos personagens, inserir um flashback seria uma interrupção da progressão. Para Campos (2007), um flashback pode ser fonte de confusão. Outro recurso utilizado é a elipse que é uma omissão de alguns elementos da história. O narrador não pode narrar tudo, nem deixar as coisas acontecerem como no tempo real, por isso seleciona o que deve excluir e o que deve mostrar. Por exemplo, no filme, para mostrar a posição social do personagem principal, usou-se a elipse, ao invés de perder tempo com várias cenas para mostrar a condição social do protagonista, exibe-se uma breve cena, sem falas, em que o fotógrafo aparece saindo de um lugar sujo, uma fábrica de operários juntamente com um grupo e, sutilmente, ele se afasta do grupo, para numa rua próxima entrar em seu Rolls-royce. O convite da elipse ocorre quando a narração de um elemento da história é desnecessária ou agride ou entendia o espectador ou leitor. Além das características apontadas, no filme, assim como no conto, é possível encontrarmos metáforas. No filme não há cenas explícitas de sexo, mas há uma cena que é uma grande metáfora do sexo, na qual ilustra a entrega do fotógrafo a 234 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS sua atividade com o mesmo gozo e intensidade com que se entrega a um envolvimento sexual. A cena mencionada e destacada abaixo ficou conhecida como o mais sexy momento cinematográfico da história. Após a sessão de fotos, o protagonista senta esgotado em um sofá, fazendo alusão mais uma vez ao ato sexual. Essas metáforas também ocorrerão em outros momentos do filme. Não podemos deixar de destacar o suspense que, segundo Campos (2007), é a expectativa de um incidente e um recurso necessário para prender a atenção do espectador. Em Blow-Up, após o fotógrafo fazer as ampliações das fotos e pendurálas na parede, quando está prestes a dar um sentido para o que vê, ou seja, perceber que registrou um crime, é interrompido pela campainha. Duas mulheres ficam por um momento em um jogo de sedução com ele. Esse momento da história parece não ter nenhuma importância para o sentido total da trama, contudo, podemos atrelar sua importância a um recurso estratégico para adiar o desfecho, como se fosse para dar uma pausa para o espectador tomar fôlego para continuar a história. Ou seja, protela os acontecimentos até atingir o clímax-desfecho quando a narrativa atinge seu grau mais intenso e se resolve. Esta breve análise pretendeu demonstrar o andamento de algumas pesquisas dentro da linha dos Estudos Comparados deste programa de Doutorado. Pretendemos ainda, munidos de maior aparato teórico, analisar também o ritmo, a gradação, a metonímia, o gancho e a ironia dramática no filme e no conto. Esses resultados serão divulgados em publicações futuras. CONCLUSÕES A presente pesquisa encontra-se ainda muito prematura, na fase de exploração do corpus. Conforme aprofundamento maior, a pesquisa irá se delineando. Contudo, este trabalho se insere em um contexto maior de estudos que visam refletir sobre as relações da literatura com outras artes, dentro da linha de pesquisa dos Estudos Comparados. Dentro desta perspectiva, e pensando no objeto de pesquisa que escolhemos, acreditamos que haverá uma infinidade de reflexões advindas desse corpus tão rico e inesgotável de estudos e que serão divulgados posteriormente em eventos da área e publicações em revistas especializadas. 235 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS REFERÊNCIAS CAMPOS, Flavio de. Roteiro de cinema e televisão: a arte e a técnica de imaginar, perceber e narrar uma estória. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o Próximo Milênio. Companhia das Lestras: São Paulo, 2010. CORTÁZAR, Julio. As babas do diabo. In. As Armas secretas. Rio de Janeiro: BestBolso, 2012. CORTÁZAR, Julio. Cortázar de La A a la Z: um álbum biográfico. 1.ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2014. CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr.; João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs v. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. 236 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS A HISTÓRIA E A PROVIDÊNCIA NA TRILOGIA “O MOINHO DO PÓ”, DE RICCARDO BACCHELLI Odete da Glória Oliveira Tasca44 RESUMO A presente pesquisa está centrada na análise dos três romances que compõem a trilogia “O Moinho do Pó”, do escritor italiano Riccardo Bacchelli, os quais se intitulam: “Deus te salve”; “A miséria viaja de barco” e “Mundo velho sempre novo”. O principal objetivo com este trabalho é, a partir do aprofundamento sobre algumas questões históricas que fazem fundo para a obra e que aconteceram durante o período que foi desde a derrota de Napoleão na Rússia até a Primeira Guerra Mundial, identificar as características do romance histórico que se manifestam na obra, como também verificar como se dá, na mesma, a representação dos grandes fatos históricos e religiosos que fizeram a história da Itália aos olhos do mundo, no início do século XIX, assim como os demais acontecimentos históricos que são representados, dando ênfase para a questão dos conflitos morais e religiosos vivenciados pelas personagens ao longo da história. PALAVRAS-CHAVE: História; romance histórico; Divina Providência. INTRODUÇÃO A obra que serve como corpus para a pesquisa aqui representada é intitulada “O Moinho do Pó” e foi escrita pelo autor italiano Riccardo Bacchelli (1891-1985), entre os anos de 1938 e 1940. Trata-se de uma trilogia histórico épica que retoma as características do Naturalismo francês e do Verismo italiano. Vale frisar que é também o mais importante romance do referido autor, cujo fundo é constituído pela arte do trabalhador moleiro da cidade de Ferrara, Província italiana localizada na região de Emília-Romanha. A trama gira em torno de uma família de moleiros do rio Pó e narra os eventos que vão desde a retirada de Napoleão da Rússia, em 1812, narrada no início da primeira obra, até a narração da Batalha de Piave, no final da terceira obra, evento que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial e que conseguiu, segundo muitos historiadores, reunir os sentimentos patrióticos e os esforços de 44 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Professora Dra. Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza. Professora da área de Espanhol do curso de Licenciatura em Letras e do Programa em Pós-Graduação em Letras - Linguagem e Sociedade na Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE. Endereço eletrônico: [email protected]. 237 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS praticamente todos os italianos e que pode ser considerada a última ação do Ressurgimento Italiano, com a qual a Itália consolidou, finalmente, sua unificação. É interessante notar como o autor consegue ser realístico com a narração dos eventos que fazem fundo para a sua ficção, mas também não deixa de ser irônico ao iniciar a primeira obra com a retirada dos soldados italianos da guerra, quando o protagonista, Lazzaro Scacerni, sai vencedor, já que volta para casa, e termina a terceira obra com a aventura do último dos Scacerni, Lazzarino, o qual morre como soldado na guerra em que a Itália sai vencedora sobre o exército Austro-Húngaro. Narrando as lutas de suas personagens em torno do grande rio e as tantas adversidades da história, Bacchelli, através da riqueza das personagens e dos ambientes e através das narrações e das digressões morais, demonstra a resistência e a perseverança do povo italiano. Nesse sentido, ressalta-se que o romance foi escrito em pleno Fascismo, quando as leis raciais e o nacionalismo levavam à depreciação das virtudes mais tradicionais da Itália, o que dá à obra um tom poético, já que não é todo tempo realística. Os principais símbolos do romance são dois moinhos: o “São Miguel” e o “Paneperso”, os quais representam os sacrifícios e as dificuldades do italiano e participam da obra quase como personagens, já que é a partir deles que toda a trama se desenrola e é com o fim dos mesmos que a trama também acaba. O romance histórico é um gênero tipicamente romântico que iniciou na primeira metade de 1800, período em que nascia um interesse e uma sensibilidade particular sobre a história e sobre a Idade Média e é nesse período que se começa a vislumbrar algumas realidades nacionais bem precisas, mas é somente no início de 1800, com o romantismo e com a necessidade de abordar poeticamente a história devido o sucesso do pensamento e do método científico, que o romance histórico se firma com suas principais características, estimulando o interesse pela história, principalmente pela história medieval. Esse interesse acaba despertando um profundo sentimento nacionalista, fazendo com que os autores busquem retratar a grandeza dos vários povos, surgindo temas como as grandes guerras. E assim, o romance histórico se torna popular e se difunde em toda a Europa, tendo como grande precursor o autor Walter Scott. Na Itália o gênero se afirmou em 1827, com a publicação de “I Promessi Sposi”, de Manzoni, considerado por Othon Maria Carpeaux, em sua obra “História da Literatura Ocidental” como o grande expoente do romance histórico na Itália, sendo também o grande marco da maneira de representar o passado, pois não o vê somente como um passado glorioso, mas procura enxergar também os problemas do mesmo que ainda persistem no presente. Nesse contexto, pode-se dizer que o romance histórico recupera no passado o que está acontecendo no presente, fazendo, de certa forma, uma denúncia indireta. Para Lukács, um romance é histórico quando provoca repercussões na vida de uma determinada sociedade e em uma determinada época. Nesse sentido, o mais importante é que o romancista consiga representar o modo como as pessoas que viveram certo acontecimento histórico foram atingidas por ele e como reagiram a ele, entrelaçando a história e a ficção. Portanto, no romance histórico, as personagens principais não devem ser históricas, mas devem ser fictícias, medianas, populares, e seus destinos devem estar ligados ao destino histórico-social de uma sociedade, de modo que suas vivências possam ser o reflexo do destino do povo da época retratada, enquanto que as personagens históricas devem ser todas secundárias, pois essas atuam diretamente na história. Lukács não estabelece qual o tempo de 238 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS distanciamento necessário entre o autor e a história narrada para que um romance seja classificado como histórico, mas simplesmente dá a entender que se trata de uma narrativa de um tempo distante, muito anterior ao tempo vivido pelo escritor. Nesse sentido, pode-se dizer que o romance de Bacchelli se enquadra nos moldes do romance histórico clássico, de acordo com a definição de Lukács. METODOLOGIA A metodologia do presente trabalho consiste em uma pesquisa literária, histórica e teórica, buscando os fatos que aconteceram na Itália durante o referido período, verificando como o autor deu forma aos fatos históricos que marcaram a Itália através da escolha e caracterização de certas personagens, da escolha dos ambientes e dos conflitos entre as personagens. Será analisado também como o autor retratou problemas humanos permanentes – como o amor, a morte, a busca da sobrevivência – e como tentou tocar em problemas atuais através do resgate das causas e dos antecedentes históricos. Para tanto, inicialmente se fará a leitura da obra completa de Bacchelli, a qual compõe o corpus da presente pesquisa. Para a análise do romance serão utilizadas obras de historiadores que narram os eventos que servem de cenário para a história e também serão utilizados conceitos e informações de importantes autores como: Georg Lukács, o qual aborda como as revoluções interferiram no gênero romântico e como este serviu de instrumento para a reflexão sobre cada momento histórico; pretende-se estudar também “As Revoltas Modernistas na Literatura”, de Otto Maria Carpeaux, o qual trata dos grandes movimentos literários e “Aspectos do Romance” de E. M. Forster, com o objetivo de entender como o autor sugere que um romance seja analisado. Todo esse estudo será apoiado e amparado por fichamentos e resenhas das principais leituras, para que as mesmas possam ser utilizadas de forma eficiente durante a composição do texto. RESULTADOS E DISCUSSÃO A presente pesquisa faz um diálogo entre a literatura e a história e, sendo assim, objetiva-se, para a realização da mesma, fazer um levantamento dos acontecimentos históricos presentes na obra, visando compreender a História para poder identificar e evocar uma discussão que demonstre como ela aparece na trama, dando sentido à mesma. Também visa verificar como os protagonistas se relacionam com esses acontecimentos e como lidam com os diferentes conflitos que os envolvem. Pode-se perceber que a obra revela o sentimento e o modo de pensar do próprio autor do romance, o qual deixa transparecer um grande apego religioso e moral, além do seu profundo conhecimento sobre a história da sua Pátria, dando um valor muito especial às coisas de Deus e ao sentimento e modo de agir do cristão. Analisando alguns fatos históricos narrados por Bacchelli em seu romance, percebese o quanto o autor empenhou-se para representar alguns eventos que realmente aconteceram, preocupando-se com detalhes bastante significativos, como a construção da ponte sobre o rio Vop, por exemplo (durante a campanha de Napoleão 239 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS na Rússia, narrada no início do primeiro romance), onde o autor coloca a personagem principal como um dos soldados que tentavam construí-la, pois a mesma deveria servir de travessia para o quarto corpo, liderado pelo vice-rei. Bacchelli narra inclusive os horrores vivenciados pelas pessoas que perdem seus pertences no rio, gritando de frio e de fome; narra também os corpos sem vida que ficam pelas estradas ou que flutuam no rio, as perseguições dos cossacos contra os cidadãos e a busca destes por um povoado onde pudessem se refugiar. Segundo Lukács (1971), um romance, para ser considerado histórico, deve apresentar uma característica especificamente histórica, além de ter que recriar, poeticamente, os seres humanos que estiveram presentes nos eventos históricos narrados, já que estes eventos, assim como as personagens históricas, são dados inquestionáveis e, portanto, devido à reconstrução do passado ser fiel, é necessário que se explore cada detalhe do passado a partir de uma verdade histórica reconstruída, o que verifica-se no romance aqui analisado, quando o autor narra com detalhes a forma como os soldados se retiraram da guerra, suas desgraças e sofrimentos, conseguindo fazer com que o leitor se imagine no local dos acontecimentos, em uma narrativa quase poética. Além das discussões acima e com relação às personagens de um romance, vale ainda citar Candido (2000, p. 64-65), o qual, referenciando Forster, reconhece ser impossível representar uma personagem real em um romance, com todas as suas características e modo de ser de uma pessoa, já que, ao representar tal personagem, o autor atribui a ela as suas impressões pessoais. Mas, apesar disso, Cândido também afirma que a personagem deve dar a impressão de que vive, de que é um ser vivo, ou seja, deve participar de um mundo real, participando de um universo de ação e de sensibilidade que possa ser reconhecido na vida real. Ou seja, o autor deve construir personagens que não correspondam a pessoas reais, mas que possam ser interpretadas como tal, o que depende do conhecimento do autor e da sua onisciência: “Neste mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria. São mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido, – ao contrário do caos da vida – pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor, que as torna paradigmas e eficazes” (CANDIDO, 2000, p. 67). Nesse contexto, Forster (1969) diz que o processo de criação das personagens não é frio e sempre será o resultado da visão que o autor tem das pessoas e de si mesmo, visão que pode ser modificada por outros aspectos do seu próprio trabalho, pois no momento da criação das personagens o autor se interessa em ocupar-se da relação delas com a vida real. No romance de Bacchelli, pode-se perceber essa relação estreita dos protagonistas com o autor, o qual transfigura a vida real e as personagens reais através de sua personagem fictícia, fazendo com que esta lute, sofra, chore, se arrependa e viva como um homem da realidade. O romancista dá características comuns a esta personagem, a qual não representa uma cópia fiel de alguma pessoa real, mas é inventada a partir de uma realidade conhecida e vivenciada pelo próprio autor. Enfim, após algumas análises sobre a relação das personagens com as adversidades da vida e com Deus, percebe-se que o homem, na visão de Bacchelli, como ser temporal e histórico, está sujeito ao fluxo da história e à sua força irresistível, e ao mesmo tempo, através da matéria que a história lhe oferece, ele tem que construir a sua vida e confrontar-se com o seu destino eterno, do qual ele 240 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS também é responsável. Temos, portanto, uma representação da vida humana entre os acontecimentos materiais da existência e o sentido que se coloca para além da história, no plano da Providência Divina. CONSIDERAÇÕES A pesquisa ainda encontra-se em fase inicial, portanto, não é possível apresentar possíveis conclusões a serem citadas ou apresentadas nesse momento. REFERÊNCIAS AZEVEDO JUNIOR, Pe Paulo Ricardo. Nunca desesperar da misericórdia de Deus. 24º Domingo do Tempo Comum. Episódio 56. Disponível em: <http://padrepauloricardo.org/episodios/nunca-desesperar-da-misericordia-de-deus24-domingo-do-tempo-comum> Acesso em: 23 jul. 2013. _____. Pe Paulo Ricardo. Um Olhar que cura: terapia das doenças espirituais. São Paulo: 2008. AZEVEDO, Reinaldo. Deus não se cansa de perdoar; nós é que cansamos de pedir perdão. São Paulo: 2013. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/deus-nao-se-cansa-de-perdoar-nos-eque-cansamos-de-pedir-perdao/> Acesso em 30 set. 2013. BACCHELLI, Riccardo. O moinho do Pó: Deus te salve. São Paulo: Mérito, 1951. BAMPI, Giuliana. Indice ragionato del periódico “La Ronda” (1919-1923). Trento: Università degli studi di Trento, 1996-97. 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NA LITERATURA E EM OUTRAS LINGUAGENS Patricia Barth Radaelli45 RESUMO Este trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de pesquisa do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, com linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados. A partir do projeto, pretendem-se investigar os meandros da obra de Nelson Rodrigues com enfoque para os estudos da Linguagem Literária, suas interfaces sociais e os processos de adaptação para diferentes gêneros textuais. Apesar de o autor possuir uma extensa obra, foi com a dramaturgia - peças recheadas por temáticas que escandalizavam por retratarem o espírito e a ideologia da classe média - que Rodrigues se transformou num dos maiores escritores do Brasil. As dezessete peças inovavam no estilo, na estética, na abordagem de temas polêmicos e, principalmente, na construção das complexas personagens. Grande parte dessa composição tem sido adaptada para o cinema e para a televisão. Foram três décadas de produções que continuam ecoando fortemente em distintos campos da arte, com diferentes entrelaçamentos de linguagens. A proposta de análise, então, visa à interpretação desses enredos construídos pelo dramaturgo, com evidência para os fatores que atuam na organização interna e externa da obra, bem como para os elementos estéticos dos processos de adaptação dos textos para diferentes gêneros. O objetivo é desvendar os efeitos expressivos que compõem esses diferentes projetos ficcionais e analisar como essas composições dialogam com outras, em processos intertextuais. PALAVRAS-CHAVE: Nelson Rodrigues; dramaturgia; adaptação; intertextualidade. INTRODUÇÃO O presente trabalho expõe uma proposta de análise, de pesquisa que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, com o objetivo apontar o valor representativo da obra de Nelson Rodrigues pelos estudos Aluna do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – nível doutorado - da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - Área de concentração Linguagem e Sociedade, da Linha de Pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, sob orientação da Prof. Dra. Lourdes Kaminski Alves. 45 243 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS da Linguagem Literária e dos processos de adaptação e intertextualidade para diferentes gêneros – como o cinema e a televisão. Hiperbólico, polemista, controverso, surpreendente, reacionário, anjo pornográfico, dentre outras tantas, são expressões que adjetivam Nelson Rodrigues (1912 – 1980); autor polígrafo e plural que transitou por diversos gêneros literários, com traços de um humor irônico, nos meandros das suas composições. Com elementos melodramáticos, marcados por forte expressividade, o autor compõe, em cinquenta e cinco anos de produção, um itinerário latente que abarca crônicas, contos, romances e dezessete peças de teatro, que o consagraram com um expoente dramaturgo brasileiro. Os textos exploram temáticas paradoxais de amor, sexo e ciúmes; relacionamentos amorosos e traição, subversão aos preceitos morais, tão velados pela sociedade contemporânea à época de suas produções. A proposta de análise, então, visa à interpretação desses enredos construídos pelo dramaturgo, com evidência para os fatores que atuam na organização interna e externa da obra – texto e contexto, bem como para os elementos estéticos dos processos de adaptação dos textos para diferentes gêneros literários, produzidos tanto pelo próprio autor, quanto por outros escritores. O objetivo é desvendar os efeitos expressivos que compõem esses diferentes projetos ficcionais e analisar como essas composições dialogam com outras. Ressalta-se que o viés de análise tem sido aquele que considera toda a criação e recriação literária/artística como um projeto estético e ideológico do seu autor. METODOLOGIA A proposta do projeto visa à análise e a interpretação dos enredos construídos por Nelson Rodrigues e adaptados para diferentes gêneros literários, tanto pelo autor quanto por outros escritores; a evidência dar-se-á para as diferentes linguagens, suas convergências e divergências estéticas, estruturais e sociais. Para tanto, os trabalhos desta pesquisa são desenvolvidos a partir da metodologia dos Estudos Comparados, com pontos de entrelaçamento em outras teorias possíveis, com as contribuições teóricas destacadas por Carvalhal, na obra Literatura Comparada (2003). Também serão destacadas as contribuições de Kristeva, com enfoque para seus estudos da crítica literária, sobre a intertextualidade, na obra Introdução à Semanálise (1974). Ainda, as contribuições de Bakhtin, com a obra Problemas da poética de Dostiévski(1929), na qual o autor ressalta o caráter dialógico da literatura, bem como as transposições de elementos entre os textos e destes com o contexto em que foram criados. Dentre outros teóricos, também serão buscadas as contribuições de Linda Hutcheon, com os conceitos explicitados em sua obra Uma teoria da adaptação (2013), sobre os processos de releitura e recriação das obras literárias e, ainda, as considerações conceituais de Eric Bentley, na obra O dramaturgo como pensador (1991); já que este autor explicita exatamente o papel de dramaturgo e as transposições do gênero escrito para o teatro para outras linguagens artísticas. Bentley analisa e expõe os elementos que dialogam entre as obras, as convergências e as divergências entre os gêneros. Para a análise proposta, inicialmente, será organizado o levantamento da fortuna crítica do autor, com leitura de dissertações e teses desenvolvidas no meio acadêmico a partir da obra de Nelson 244 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Rodrigues. Depois, organizar-se-á a seleção de um corpus significativo da obra para análise. O enfoque proposto direciona-se para o estudo do enredo, texto e contexto das peças teatrais, contos, crônicas, novelas e filmes. A partir do recorte da obra, a análise se dará com a relação dos textos que foram traduzidos para outras linguagens, com evidencia aos procedimentos que caracterizam as adaptações e os diálogos que se mantém entre eles, bem como os processos de assimilação criativa dos elementos, desvendando as peculiaridades de cada texto e também os entendimentos dos processos de produção e adaptação literária. Na organização da pesquisa, evidenciar-se-ão, dessa forma, as inserções dialéticas das estruturas textuais e extratextuais, com a interpretação dos motivos que geraram essas relações, bem como as ressonâncias provocadas pelas adaptações dos textos. RESULTADOS E DISCUSSÃO As obras literárias expõem enredos que contam e recontam dialeticamente histórias da humanidade. Os elementos que compõem os projetos estéticos e ideológicos dos autores são carregados por elementos expressivos configurados por ressonâncias do contexto histórico e social e, ainda, de outras obras. Vários críticos literários abordam essas relações. Para Mesquita (1994), a literatura, mesmo em se ressaltando seu caráter ficcional, terá sempre uma vinculação com o real. O enredo mais delirante, surreal, metafórico estará dentro da realidade, partirá dela, ainda quando pretende negá-la [...]. Será sempre expressão de uma intimidade fantasiada entre verdade e mentira, entre o real vivido e o real possível. [...]. Esse diálogo será tenso, dialético, instaurador de novas realidades, diferenciadas entre si e semelhantes, na medida em que têm as mesmas motivações as mesmas funções dentre das comunidades humanas em que se produzem e onde são lidas e interpretadas. (MESQUITA, 1994, p.14) Porém, ao problematizar a realidade humana para registrá-la pela linguagem artística, a literatura não se delimita a um produto de condicionamentos históricos e sociais. O valor essencial dessa arte reside nos elementos estéticos que a compõem, nos diálogos, nas repercussões, sejam ecos da realidade para a ficção ou mesmo da ficção para a ficção. Evidencia-se, dessa forma, a função criadora do autor, que organiza seu processo estético de criação - dá forma e conteúdo à obra - com diálogos estabelecidos entre a realidade e a ficção e, ainda, entre a ficção e a ficção, pela leitura de outras obras que produzem um eco discursivo. Segundo Kristeva (1974), crítica literária francesa que desenvolve estudos sobre intertextualidade, todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos. Para a autora, “[...] a palavra literária não é um ponto (um sentido fixo), mas um cruzamento de superfícies textuais, um diálogo de diversas escrituras: do escritor, do destinatário (ou da personagem), do contexto cultural atual ou anterior” (KRISTEVA, 1974, p 62). A literatura se configura, assim, como um mosaico cultural, com várias vozes que vão compondo as narrativas e estabelecendo as relações entre os textos. 245 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Perrone-Moisés, pesquisadora em literatura comparada da USP, escreve em seu artigo Literatura Comparada: intertexto e antropofagia (1990) sobre a noção de influência entre a arte literária – “As ‘influências’ não se reduzem a um fenômeno simples de recepção passiva, mas são um confronto produtivo com o outro, sem que se estabeleçam hierarquias valorativas” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94 e 95). A autora salienta que a literatura nasce de outros textos literários, de gêneros e temas já explorados, e que cada nova obra tem relação com as anteriores, com retomadas, empréstimos e trocas, por consentimento ou contestação. A imagem metafórica do ritual antropofágico retomado é, para a pesquisadora, “[...] antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade”. (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 95) A antropofagia, nessa conceituação, é tomada num contexto mágico cerimonial, que devora o outro para adquirir suas características, a força discursiva do texto. A obra se inscreve, por esse ritual, em diálogos com outra obra, porém para um novo projeto estético. Silviano Santiago (2000) reitera esse conceito ao tratar do signo estrangeiro na obra do escritor latino-americano - “[...] as palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual como signo estrangeiro” (SANTIAGO, 2000, p. 21). As obras literárias, nessa perspectiva, trazem enredos que contam e recontam, de maneira diferente, com novos signos e em novos espaços culturais, histórias que dialogam em vários elementos. Um texto produzido por reflexo de outros textos, que possui, porém, “[...] uma assimilação inquieta e insubordinada, antropófaga. [...] um novo texto escrevível, texto que pode incitá-los ao trabalho, servir-lhes de modelo na organização de sua própria escritura”. (SANTIAGO, 2000, p. 20). A leitura, assim, é concebida como uma forma de produção. Assim, ressalta-se esse caráter dos escritores, latino-americanos ou não, estarem sempre inseridos no processo de refratar histórias, sejam reais ou ficcionais. Questão que não se configura como uma característica contemporânea. Mesmo na antiguidade, os gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes revisitavam espaços sociais, e ficcionais. Os grandes poetas gregos foram, a partir de suas obras, historiadores em arte, por já refratarem questões de sua época – a cultura de seu povo – os mitos e as crenças. Ecos da tragédia grega tem se reconstituído por centenas de anos. Na contemporaneidade, Nelson Rodrigues (1912 - 1980), um dos maiores e mais polêmicos dramaturgos do Brasil, produz uma extensa obra abarcando romances, poesias, contos, crônicas e dezessete peças teatrais, produzidas com temáticas, consideradas pelos críticos como obra de ressonâncias das tragédias gregas. Para o crítico Sábato Magaldi (1981), “Nelson nunca se recuperou das tragédias familiares e elas estão no substrato das histórias mais inocentes que compôs. [...] Ironia do destino, no melhor sentido moderno da Moira Grega, Nelson incorporou, com a sua verdade da experiência pessoal ao seu teatro.” (MAGALDI, 1981, p. 11). O autor brasileiro fora, considerado pela crítica, irreverente para o registro literário de seu tempo. O teatro de Nelson Rodrigues explora temáticas de desmascaramento da família patriarcal – num estilo irônico e sarcástico – usufruindo de múltiplos recursos de variações de linguagem, de intrigas, de personagens e situações. A obra salienta a necessidade de libertação das convenções sociais. O 246 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS jogo ficcional preconiza a exploração das temáticas entrelaçadas a vários fatores sociais. Embora a crítica o reverencie pela sua composição dramatúrgica, Ruy Castro, ao escrever a obra O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues (1992), sentenciaque Nelson nem sempre teve o teatro como palco principal “Talvez nunca o tenha sido. Esse, se houve um, foi o jornal. Pode ter sido também a rua (ou a própria cidade do Rio de Janeiro)” (CASTRO, 1992, p. 7). Foram mais de dois mil textos de contos e crônicas estampados nas colunas dos jornais por onde passou o escritor. Este fora sempre considerado pela crítica irreverente para o registro literário de seu tempo; seus textos exploravam temáticas de desmascaramento da família patriarcal – num estilo irônico e sarcástico – usufruindo de múltiplos recursos de variações de linguagem, de intrigas, de personagens e situações. A obra salienta a necessidade de libertação das convenções sociais. Em 1951, Nelson começa a publicar uma coluna diária no periódico Última Hora com o título A Vida como ela é..., que em pouco tempo atingiu um grande sucesso popular. A seção em 1961 passa a ser publicada no Diário da Noite e, logo depois, em O Globo. No final desse ano, Nelson Rodrigues faz uma seleção dos cem melhores contos e publica A Vida como ela é ... (1961). Senna e Jerônimo, em nota do editor para a obra afirmaram que as publicações: Como o melhor jornalismo, falava direto ao público; como a literatura mais sofisticada, fazia tremer suas convicções. Sob as manchetes, o leitor encontrava, pela primeira vez em letra de forma, ciúme e obsessão, dilemas morais, inveja, desejos desgovernados, adultério e sexo. Diagramados, estavam ali o céu e o inferno das tradicionais famílias dos subúrbios cariocas afrontadas pela emergente classe média de Copacabana". (SENNA e JERONIMO, 2012, p. 9) Outros três livros de crônicas, publicados com as seleções feitas pelo próprio autor, seguiram a primeira coletânea: A menina sem estrela (1967) O óbvio ululante (1968), A cabra vadia (1968). Uma década depois, o autor publica O reacionário: memórias e confissões (1977) -sobre o período em que escreveu as seções Memórias, no Correio da Manhã e Confissões em O Globo. Às crônicas, peças e aos contos, ainda somaram-se os romances. Dentre eles: Meu destino é pecar (1944); A mulher que amou demais (1949); Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus pecados e seus amores (1959). Carlos Heitor Cony, ao escrever o prefácio da edição de 2008, de O Reacionário, salientou a expressão “anjo pornográfico”, que adjetivava Nelson Rodrigues e, acrescentou “Foi, sim, um anjo corajoso, que, em busca de um paraíso perdido, usufruiu de uma dose de provocações que o tornou odiado por moralistas e progressistas (CONY, 2008, p. 19). Dentre tantas outras publicações organizadas a partir da obra de Nelson Rodrigues, evidenciam-se os livros de contos e crônicas reorganizados com a seleção de Ruy Castro: A vida como ela é... O homem fiel e outros contos (1992) A coroa de orquídeas e outros contos de A vida como ela é...,(1993) e O óbvio ululante, primeiras confissões (1993). Vários desses textos foram adaptados para o cinema e para a televisão. Sobre o processo de adaptação, Hutcheon (2013) faz uma classificação, definindo-o ou 247 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS como transposição anunciada (com a mudança de gênero ou mídia) ou como processo de (re)interpretação e (re)criação. Para Hutcheon (idem) a adaptação é uma forma de intertextualidade de textos que ressoam pelas repetições com algumas necessárias variações. Esses aspectos estéticos e culturais, bem como a teoria dos estudos comparados, e seus entrelaçamentos com outras teorias que versam sobre os processos de adaptação e intertextualidade, serão considerados na pesquisa. CONCLUSÕES Nelson Rodrigues transitou por vários gêneros da Literatura e teve sua obra adaptada por outros escritores e cineastas para várias linguagens artísticas. Sobre esse processo, Hutcheon (2013) destaca, em sua proposta de análise, três conjuntos de elementos a serem considerados. Sobre o primeiro, a autora ressalta que a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular. “Essa ‘transcodificação’ pode envolver uma mudança de mídia (de um poema para um filme) ou gênero (de um épico para um romance), ou uma mudança de foco e, portanto, de contexto” (HUTCHEON, 2013, p.29). Em segundo, por também se tratar de um processo criação, a adaptação sempre envolve tanto uma (re) interpretação quanto uma (re)criação; dependendo da perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou recuperação. Em terceiro, “vista a partir da perspectiva do seu processo de recepção, a adaptação é uma forma de intertextualidade; [...] outras obras que ressoam através da repetição com variação” (HUTCHEON, 2013, p.29 e 30). As três vertentes podem estar imersas numa proposta de análise dos fenômenos das adaptações. A ênfase nesses aspectos, bem como o entendimento da adaptação não só como a criação outro produto, mas como um processo, que provoca idiossincrasias plurais, é uma forma de abordar as várias dimensões do fenômeno. Há que se pensar sobre A vida como ela é (2012), obra que reúne cem contos de Nelson Rodrigues, como uma recriação de temas explorados pelo autor em suas peças escritas para o teatro: a dualidade entre amor e sexo, o ciúme a fidelidade, a subversão às proposições morais; são nuances presentes em todos os gêneros produzidos pelo autor. As propostas de Hutcheon (2013), bem como as contribuições de Santiago (2000), as exposições de Magaldi (1981), de Brandão (2001), de Bakhtin (2002), de Perrone-Moisés (1990), Kristeva (1974), de Rosenfeld (2002), dentre outros autores, provocam a análise da produção das obras literárias, com todas as suas nuances estéticas, bem como dos efeitos caleidoscópicos provocados pela leitura e recriação das obras para outros gêneros, outras linguagens artísticas. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. 248 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 1987. BENTLEY, E. O Dramaturgo como Pensador: um estudo da dramaturgia nos tempos modernos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. BRANDÃO, J. de Souza. 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Para dialogar com os questionamentos apresentados por Fanon abordam-se os mecanismos de resistência cultural observados na obra literária e plástica de poeta chilena Violeta Parra. A análise polifônica dos poemas musicados das Décimas Autobiográficas de Violeta Parra (1954-1958), apresentam uma consciência emancipadora a diferença do poema musicado que a fez mundialmente conhecida “Gracias a la vida” em que a poeta fala do amor. PALAVRAS-CHAVE: Polifinia; Pós-colonialismo; Violeta Parra. INTRODUÇÃO O objetivo desta pesquisa centra-se em compreender de que maneira e em que grau se encontra hoje, o processo de transculturação (GARCÍA CANCLINI,1987) dos povos originários do continente atualmente denominado América Latina e do conhecimento marginado e silenciado pela retórica moderno-ocidental da ciência, como a base do argumento de-colonial de Walter Mignolo (2008). No período colonial se observa um processo de educação, deseducação, e reeducação no interior das culturas pré-hispânicas e pré-lusitanas, que transforma a consciência de si, agindo no subconsciente dos povos colonizados. Na compreensão de Frantz Fanon (1961), desvalorizando seus conhecimentos, desnutre seus corpos e acaba com uma grande parte das culturas e nações organizadas, constituídas em torno a um fazer em conjunto. As violentas ações com que se instalaram os europeus em territórios americanos, em suas cidades, (porque eram cidades, em sua grande maioria. Lembremos a admiração com que Hernán Cortés descreve a cidade de azteca de Temixtitan na Carta de las Relaciones de la Conquista de México, enviada ao rei da Espanha, em 1519) darão inicio ao que representa a principal causa do hibridismo cultural e ao sincretismo religioso que hoje apresentam os povos da América Latina. Da perda de valores humanos, do abandono e troca de costumes e, incluso, de seus 46 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, Linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da professora Dra. Ximena Antonia Díaz Merino. Endereço eletrônico: [email protected] 250 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS modos de produzir seus próprios alimentos, nutrir seus núcleos familiares e até organizá-los economicamente. Neste sentido, a colonização ao se instalar na América, provocou o lento e gradativo abandono de grande parte do que poderia ser chamado de cosmologia indígena, ou seja, o modo de ver e pensar a religião, os costumes e o uso de sua língua/linguagem para comunicar/expressar seu pensamento. Isto implica uma transformação na forma de expressar seu eu mais profundo, pois a construção de sentido é o elemento de expressão e transmissão cultural máxima, em qualquer cultura. Lendo as análises que o médico psiquiatra Frantz Fanon (1944-1961), desenvolveu entre 1952/60, sobre o comportamento dos povos argelinos colonizados pela França, e seu interesse e gosto por falar a língua do conquistador, destaca-se um elemento indicial que levará Fanon (1960), a compreender que esta forma de dominação é a pior de todas as dominações que pode sofrer o homem. Aquela que se dá por meio da substituição da língua materna pela língua do conquistador. Ela é a mais drástica das dominações, pois a língua carrega o capital simbólico de uma cultura, o qual passa a localizar-se “na margem deslizante do deslocamento cultural” (BHABHA,1998, p. 44). Em outras palavras, localiza o homem conquistado num entre-lugar (SANTIAGO, 2000), um espaço de hibridação. Entretanto, esse gosto não provém do fato de querer ser como o conquistador, mas de deixar de ser conquistado, e antropofagicamente, se apropriar daquilo que lhe interessa do outro. Nesse sentido, se faz necessária uma indagação primigênea que configura a hipótese deste projeto: até que ponto esse processo de educação, (des)educação, e (re)educação extingue da alma, de um povo que habita um território invadido, costumes, valores e conhecimentos, e os substitui pelos do invasor, levado pelo suposto desejo de ser o outro, ou, pela necessidade de adquirir algumas qualidades do outro para lidar com esse outro em condições de igualdade. E se esta hipótese é verdadeira, como se dá na obra de Violeta Parra? Acreditamos que ao deixar de se expressar na língua de seus iguais e se apropriar da língua do conquistador, o outro, neste caso o conquistado, acredita mudar seu status quo pela diferencia e semelhança. Seu desejo de adquirir características do seu exterminador, não envolve admiração e sim, desejo de recuperar sua integridade de homem livre, íntegro. Essa libertação significaria a superação do trauma da conquista desde a urgência descolonizadora, e o pensamento limiar, isto é, a urgência e necessidade da desmontagem dos mecanismos de alienação europeus na América Latina, por meio da interfaz literatura oral – cultura popular – linguagem – literatura – sociedade. METODOLOGIA Este estudo está pautado no estabelecimento dos nexos existentes entre o pensamento pós-colonialista de Frantz Fanon e a obra de Violeta Parra, buscando as aproximações e os distanciamentos entre a obra plástica e literária da autora, que objetiva identificar os processos de desconstrução de uma identidade fixada pelo conquistador e pautada no binarismo cultural que afirma a superioridade do conhecimento epistemológico ocidental. 251 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Para tanto conta-se com a seguinte fundamentação teórica: Walter Mignolo (2007), Frantz Fanon (1960), Jean Paul Sartre (1960), Hommi Bhabha (1998), Zilá Bernd (1987), Octavio Paz (1982), Mikhail Bakhtin (1982;2000;2010) A poeta, compositora, cantora, guitarrista e pesquisadora Violeta Parra Sandoval (1917– 1967) possui uma obra que, pelas características da linguagem literária, forma e estilo se inscreve nos estudos pós-coloniais. Neste contexto, nosso Corpus a ser analisado corresponde à parte da obra da autora que marca a etapa posterior a sua pesquisa de campo, por se tratar de um período, no qual já havia resgatado mais de 3000 poemas e canções camponesas do folclore chileno inédito, e encontrava-se em processo de encerramento de seu ciclo de intérprete e (re) copiladora-pesquisadora, para dedicar-se a criar suas Décimas Autobiográficas de Violeta Parra, processo que se estende por quatro anos, entre 1954 e 1958. As arpilleras47 começam a ser confeccionadas em 1958, obra plástica composta de 22 arpilleras, além disto, a obra plástica que se pretende analisar conta com 26 pinturas a óleo, e 13 esculturas em arame, assim como sua obra poética musicada. RESULTADOS E DISCUSSÕES Dentro dos estudos realizados até novembro de 2014, foi realizada a analise de uma parte das criações mais importantes da autora chilena: As Décimas Autobiográficas de Violeta Parra (1954). Um dos resultados é, justamente, a maneira de introduzir temas, ritmos e sons da forma culta à cultura popular. Uma forma híbrida intermediária entre a tradição clássica e o canto popular. Nas palavras da pesquisadora Paula Miranda (2009), uma das maiores estudiosas de Parra, Las Décimas se instalan en un espacio atípico del arte, pues no se pueden inscribir totalmente en los registros del arte culto ni tampoco en los del folklore, moviéndose entre uno y otro y siendo irreductible sólo a uno de ellos. Ella se para en el límite de la cultura tradicional para reinventarla, transgredirla y fijar la memoria oral en la escritura, y se ubica a la vez en los intersticios del gran arte para producir desde él una mirada de desconcierto y extrañeza (MIRANDA, 2009, p.18). Outro dos resultados que foram obtidos, referem-se à relação que a autora faz desde um plano prático com a teoria literária, fazendo uma junção da realidade de seu país e de sua própria experiência de vida com as artes. Isto se reflete em sua obra plástica das arpilleras a qual apresenta um paralelo com a obra literária das Décimas. A atualização e edição de lendas e de mitos indígenas no tecido das arpilleras lhe possibilitou, em muitos casos, dar a conhecer a literatura oral dos recônditos campos chilenos, e fornecer elementos de compreensão da realidade mais esquecida de seu país. No âmbito literário, percebe-se que a literatura popular caminha de mãos dadas com a tradição considerada culta, já que trazida pelos colonizadores ficou restrita à tradição oral, às tertúlias, em que os mais velhos rememoravam suas 47 Tipo de tapeçaria confeccionado em juta, um tecido feito de um material retirado da casca de uma árvore. (WordReference.com/2005) 252 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS canções, lendas e tradições como forma de deleitar-se com as lembranças do passado. Deste modo, foram reproduzidas por mais de quinhentos anos, de forma oral. No interior dos lares campesinos estes ritmos tomaram corpo, e na poesia vanguardista de Violeta Parra, adquiriram novos traços de modernidade, entrelaçando suas histórias de vida e espiritualidade aos motivos da terra. Esse labor poético resultou em poemas musicados e em tapeçarias bordadas. Essas arpilleras revelam ao uníssono, que os costumes da América pré-hispânica haviam sofrido um processo de hibridação e amalgamação tão profundo que, já era difícil identificar as raízes culturais da América Latina. Neste primeiro momento da pesquisa, em que se procurou identificar os traços polifônicos da obra de Violeta Parra, foram analisados dois poemas musicados: “La carta”(1960) e “Casamiento de negros”, e fragmentos das Décimas Autobiográficas de Violeta Parra(1954) por representar o diálogo com o social e o caráter ascético que emerge no agir da autora, um sentimento de responsabilidade para com seu povo, além de por evidenciar as injustiças sociais em prol de uma cultura ocidental que se antepõe à mestiçagem latino-americana. Também fica evidente o interesse da autora por apresentar a relação do homem com a terra e suas crenças nas arpilleras intituladas “El árbol de la vida” e “El Cristo de Biquini”. De acordo com estes estudos, pode-se compreender que as analises pautadas no agir pós-colonial lançam um novo olhar sobre aqueles escritores, poetas populares, que, excluídos pela fixidez das normas do sistema literário tradicional, considerado erudito, são mantidos à margem do “seleto” grupo da literatura culta. Contudo, em plena pós-modernidade do século XXI, e amparadas numa nova visão do que constitui a arte poética, estas categorias de análise foram flexibilizando suas formas, as quais, hoje, se apresentam liquidas ou permeáveis, permitindo, assim, a introdução de obras de escritores consideradas outrora literatura popular, como é o caso da obra plástica e literária de Violeta Parra. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail, Problemas da Poética em Dostoiévski. 5 ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed.Forense Universitária, 2010. _________. Estética da Criação Verbal. Trad. Paulo Bezerra.4.ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003. _________. 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Sob esse prisma, o conto explicita a lógica da incomensurabilidade entre vida e viver, sendo a expressão do horror e da dupla presentificação dos tabus sociais diante de algo que não podemos escapar: a fragilidade, a vulnerabilidade e a insignificância da vida. PALAVRAS-CHAVE: Rubem Fonseca; antropologia da literatura; horror. INTRODUÇÃO A menção a uma antropologia da arte, e correlativamente, da literatura, não supõe uma convergência entre esses conceitos. Ao contrário, dá lugar a polêmicas teóricas imanentes, que acompanharam e acompanham as tentativas de instaurá-la como uma subárea especifica de reflexão antropológica, nascida na chamada moderna sociedade ocidental. Uma das razões dessa polêmica foi o processo de autonomização da arte que, sistematizado por Kant, tornou-a objeto da estética, separada da religião, da moral e da política e excluída da idéia do conhecimento como razão. Essa concepção fundadora permaneceu como um legado persistente na antropologia da arte, dividindo as tradições teórico-metodológicas que configuram os objetos de análise específicos. As ressonâncias profundas desse solo epistemológico cristalizam-se em diferentes posições de um debate ainda longe de ser esgotado. De qualquer forma, seja assumida, negligenciada ou deslocada, a antropologia da arte é parte da autorreflexão da disciplina nas últimas décadas, acompanhando-a por vias tortuosas. Uma delas é justamente a pulverização da categoria estética que, mesmo não sendo uma categoria transcultural, acaba alargando os estudos antropológicos para acolher a cultura material, utilizando-se de categorias êmicas para estudos de relações, práticas e saberes engendrados pelos objetos. Isto posto, minha pergunta é: seria possível pensar em uma antropologia da narrativa literária como expressão artística? Tal pergunta torna-se ainda mais relevante se considerarmos o interesse crescente da própria escrita etnográfica como um gênero literário e suas implicações políticas, movimento iniciado com a crítica desestabilizadora de Clifford e Marcus, 1986, Geertz, 2002 e Tyler, 1986 entre outros. Uma de suas consequências foi a 255 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS exploração das fronteiras móveis entre antropologia e literatura no século XX, de modo que as descrições etnográficas passaram a ser vistas como empreendimentos textuais situados em circunstâncias históricas e culturais específicas, como mostrou Clifford (1998) em seu ensaio, ao aproximar Malinowski e Conrad. Além disso, a crítica desses autores evidenciaram, em várias publicações, o quanto a antropologia pode estar mais próxima da literatura por meio de artifícios narrativos usados para expressar a experiência de campo. A preocupação com a escrita etnográfica evidenciou que a narrativa não se restringe nem se confunde com a descrição, mas carrega em si mesma um modo de pensar a vida social. Para usar uma terminologia de Geertz (1989), a escrita etnográfica produz uma “descrição densa” ao explicitar por meio dela uma interpretação do objeto narrado. Isso permitiu, em homologia com a literatura, por exemplo, nos referirmos às etnografias do século XIX como escritas realistas e, as recentes, como reflexivas. Esse movimento meta-narrativo é paralelo ao ocorrido na construção de narrativas literárias. No que se refere à meta-ficção, a auto-consciência reflexiva do processo literário questiona a própria a narrativa enquanto narra e, embora tenha sido co-constitutiva da literatura, passou a ser radicalizada recentemente. Isto é, as narrativas literárias voltam-se para si mesmas, atentas ao lugar e as condições em que elas próprias se inscrevem, refletindo sobre a ficcionalidade e o próprio processo de escrita no romance. METODOLOGIA Do ponto de vista analítico, evidenciar a experiência estética como uma dupla presentificação não implica excluir as análises próprias ao significado, que concebem essa experiência como um sistema de significados ordenando relações entre diferentes dimensões da realidade, como propôs Lévi-Strauss (1989, 2003) ou como uma das dimensões simbólicas da ação social, como propôs Geertz (1989,1997). A análise focaliza o diálogo que se dá entre a narrativa de Rubem Fonseca, (2013), nossas teorias nativas sobre os tabus ligados à morte e à vida, as teorias antropológicas sobre eles (Douglas s/d), Agamben, 2002) e as teorias literárias (críticas sobre a obra de Rubem Fonseca, 2003) cujo objeto é a inquietação a respeito da nossa humanidade. Embora esse diálogo incida nas tensões co-constitutivas entre presença e significado, quero enfatizar justamente a produção da presença, como propôs Gumbrecht (2010). RESULTADOS E DISCUSSÃO A narrativa do conto intitulado O filho (2013) explora alternativas de solução para uma gravidez indesejada por sucessivos deslizamentos semânticos e por diferentes desvios que podem se interpor no caminho de uma “vida” em curso desde a gravidez. Como condiz a um conto, o narrador concentra em poucas páginas esse acontecimento, seccionando por saltos o tempo narrativo, interrompendo o fluxo de consciência e deixando espaços vazios para que o não narrado se expresse: “Jéssica tinha 16 anos quando ficou grávida. É melhor tirar, disse a mãe dela. Você sabe quem é o pai? Jéssica não sabia. Respondeu, não interessa quem é o pai, são todos uns merdas. Combinaram que iam fazer aborto na casa da mãe de santo D. Gertrudes, que fazia todos os partos e abortos daquela comunidade”(2013, p.7). 256 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Porém, na véspera de realizar o aborto, Jéssica comunicou a mãe que ficaria com o bebê e se ele desse muito trabalho poderia “dá-lo” ou “vendê-lo”, como fizera uma de suas amigas. A intermediária foi também D. Gertrudes. A mãe de Jéssica decidiu ela mesma vender o bebê para comprar uma dentadura. “O tempo foi passando” e, no dia do parto, na casa da mãe de santo, o bebê nasceu. Era menino. D. Benedita “olhou o bebê e imediatamente saiu correndo da casa da D. Gertrudes” (2013, p.10), sem levá-lo. Entregue à Jéssica, “ela olhou o filho e não disse uma palavra. Pegou o bebê, e foi lentamente caminhando pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo. O bebê era aleijado. Só tinha um braço. Ela não ia dar de mamar nem ninguém ia querer comprar aquela coisa” (2013, p.11) Vera Lúcia Figueiredo (2003) usa a expressão “crime do texto” para esse uso da linguagem que propicia “uma simbiose entre narrador, personagem e leitor. Perde-se o apoio de uma voz distanciada e moralizante e rompe com a “estabilidade do discurso direto”. Provoca uma desestabilização, porque rompe com as fronteiras erigidas pelos papeis sociais. Todo acontecimento narrado é descentrado, em meio a uma série de outras fissuras e dobras, como observamos no conto. A conseqüência disso é que a narrativa “não projeta um modelo de verdade”, mas ao contrário, promove um encontro com a indiferenciação entre vida e morte, insuportável e assustador. No entanto torna-se acessível, a nós leitores, por esse avesso abjeto, ao mesmo tempo em que destaca em primeiro plano a inquietação a respeito de quem somos nós. Essa oscilação entre autor e leitor, entre o dentro e o fora da ficção, característica radicalizada pela estética literária contemporânea na qual Rubem Fonseca se insere, é que nos causa horror e espanto. Nem contemplação, nem fruição. Essa oscilação induz a experimentarmos, como testemunhas, nossa maneira de estar com outros, cuja perplexidade nos cerca, nos envolve, nos concerne e indicialmente se assemelha a nós. Essa proximidade quase absoluta com o contexto e a ação narrados nos coloca no mesmo plano, co-existência obtida por meio da nossa co-partipação como leitores da anulação de significados imediatos pelo próprio imediatismo do que é narrado. Por isso, não é uma narrativa sobre o que vemos, mas do que e como nós, contemporâneos desse presente, vemos, pensamos e sentimos. CONCLUSÕES Há muitas justificativas pelas quais uma antropologia da literatura continua pertinente. Embora a percepção comum veja a literatura como fonte de fruição, ela possui peso ontológico, dotado de consistência própria. Na abordagem de Latour (2012) os seres ficcionais são reconhecidos, respeitados, celebrados e só existem através de nós. Para Bakthin (1998), a literatura é o encontro da alteridade pela linguagem, pois vemos o mundo mediado por ela e ela nos vem do outro. Deste modo, estudar antropologicamente as narrativas de Rubem Fonseca é refazermos o debate sobre nossa semelhança de fundo e nos perguntar: como constituir uma sociedade quando temos dificuldade de reconhecer o outro? Como estar com os outros se não se conseguimos ver neles a “nossa” humanidade? Em quais condições podemos dizer que constituímos um “nós”? Mais especificamente, uma antropologia da narrativa literária seria entender um tipo específico de materialização dos contornos indiscerníveis dessa experiência operacionalizada pela linguagem: no procedimento narrativo de Fonseca a linguagem expressa e se apresenta como sinalização da violência das relações, abolindo, no texto, as restrições e os tabus lingüísticos a respeito das situações-eventos que expõe. Operando a 257 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS junção entre a linguagem corriqueira e o pressuposto verossímil do narrado, mesmo que aparentemente absurdo, os contos de Rubem Fonseca podem ser percebidos como histórias que se insinuam na intersecção “entre” o limiar da morte e da vida, tornando-o turvo e até sombrio. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. BAKHTIN, Mikahil. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo, UNESP/Hucitec,1998. CARROL, Noel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campina, SP, Papirus, 1999. CLIFFORD, James e MARCUS, George E. Writing Culture: the poetics and politics of ethnography. Berkeley/Los Angeles/ London, University of Califórnia Press, 1986. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. 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Entender quem o outrem é e no que ele pode ajudar na integração do continente, em larga escala, e das próprias comunidades, em menor grau, é facilitar o processo de entendimento do passado histórico de maneira a fomentar interações sadias e críticas entre pessoas hoje em dia. Nesse sentido, a figura escolhida como eixo principal dessa pesquisa para o estudo da alteridade é a do estrangeiro, que, por definição, pressupõe um sujeito à parte, pária. Três contos foram escolhidos para que se perceba se há alteridade em relação ao outro estrangeiro: “O cavalo que bebia cerveja”, do brasileiro Guimarães Rosa (1962); “El extranjero”, da argentina Maria Rosa Lojo (2001), e; “The Foreigner”, do estadunidense Francis Steegmuller (1935). A partir dos preceitos da literatura comparada, aliados às contribuições de estudiosos como Simmel (1971), Lévinas (1980), Todorov (1983) e Kristeva (1994), entre outros, discute-se como o continente reflete, na literatura, seus encontros culturais entre estrangeiros e nativos. INTRODUÇÃO Ao longo dessa pesquisa buscamos, em um primeiro momento, fazer um recorte acerca dos preceitos norteadores da literatura comparada, com vistas à apreensão e intepretação de seus pressupostos. Não mais, e já há algum tempo o é assim, apenas busca por fontes e influências, a área da literatura comparada hoje é campo que fomenta as mais diversas relações entre o texto literário e a sociedade, as outras formas de manifestação artística e, consequentemente, entre a literatura e o homem também. Nesse sentido, já que a pesquisa tem como objetivo refletir, também, sobre a figura do Outro transposta ao símbolo do estrangeiro no continente 48 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, Linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados – nível de Mestrado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação do Professor Dr. Gilmei Francisco Fleck. Endereço eletrônico: [email protected]. 259 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS americano, a literatura comparada serve como força motriz a impulsionar os estudos comparativos feitos durante a pesquisa. Graças à área, é possível mesclar diferentes saberes do homem, amalgamá-los aos estudos literários e produzir uma análise que se volte à compreensão do outrem em solo americano. Nesse sentido, o estilo de estudo efetuado torna-se fulcral para sua efetivação, com a literatura comparada como foco subjacente à construção do texto. Com base nos princípios da literatura comparada e sua relação com o tema proposto: configurações do outro na literatura, buscamos, em seguida, examinar como ocorrem os processos de alteridade em diferentes nichos linguísticos do continente americano. Para isso, optamos por lidar com três contos, pertencentes aos idiomas principais da América: o espanhol, o inglês e o português. Nosso corpus é, pois, oriundo de realidades socioculturais, históricas e geográficas diversas dentro de nosso continente. Consideramos que, assim, será possível delinear, minimamente, os processos culturais e as contingências sociais que fomentam o encontro do Outro no continente e que estejam plasmados na arte literária. Na América, nada aparenta ser mais pertinente que a tentativa de confluência entre os discursos estadunidense, hispano-americano e brasileiro. Enxergar os pontos em que essas literaturas confluem e dialogam uma com a outra – bem como os momentos em que é visível como as perspectivas de mundo podem ser distintas e dialetalmente opostas umas das outras – é trabalhar com a pluralidade e reconhecer a importância de todos no processo de construção da sociedade que se almeja criar. Três contos foram escolhidos como corpus para a busca por alteridade em relação ao outro estrangeiro: “The Foreigner”, do estadunidense Francis Steegmuller (1935); “O cavalo que bebia cerveja”, do brasileiro Guimarães Rosa (1962) e; “El extranjero”, da argentina Maria Rosa Lojo (2001). A partir dos preceitos da literatura comparada, aliados às contribuições de estudiosos como Simmel (1971), Lévinas (1980), Todorov (1983) e Kristeva (1994), entre outros, discute-se como o continente reflete, na literatura, seus encontros culturais entre estrangeiros e nativos. METODOLOGIA A metodologia a ser empregada e que demonstra ser o modo pelo qual é possível enxergar a riqueza da diferença, a pluralidade da confluência e a validez da mescla, é aquela pautada nos princípios que configuram os estudos comparados. Campo que vem sendo constantemente renovado e redefinido, configura-se como a área pela qual a dissertação pretende enveredar-se. Seu intuito é, também, realizar, um estudo comparativo dos encontros culturais no continente americano. Tendo em vista as intenções do trabalho, notamos pertinente a literatura comparada, pois essa fomenta, atualmente, a discussão fulcral sobre sociedade e arte em geral. RESULTADOS E DISCUSSÃO Pensando-se nas caracterizações propostas pela pesquisa, o que se observa é que, automaticamente, ao serem retratadas como estrangeiros, as personagens 260 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS do corpus em questão também passam a ser vistas como párias, diferentes, perigosas. Isso é importante, pois demonstra como mesmo a escolha da perspectiva pela qual uma personagem é retratada já implica em sentidos e noções distintas de mundo e já a separa da sociedade. A falta de compreensão do local e percepções de mundo do qual o Outro parte provocam o afastamento e estranhamento para com este, levando a uma noção equivocada e parcial acerca desse, que é tido como diferente. O que se almeja é imbuir na pesquisa o Outro, a partir da perspectiva do estrangeiro, e fomentar a discussão de como se dá o processo de aceitação da pluralidade no continente americano e o que ainda pode se esperar de mudança na América, com vistas à melhoria no tratamento entre os indivíduos que a habitam. Se “o hibridismo está presente em vários níveis, selecionar um aspecto não invalida os demais, nem mesmo parte do princípio de oposição. O modelo não é Um X Outro, mas a convivência de outros”. (WEINHARDT, 2011, p. 49). É essa convivência de outros, como a teórica Weinhardt explicita, que é o ponto principal da pesquisa. CONCLUSÕES O trabalho objetivou analisar as construções simbólicas e literárias produzidas pelos contos, procurando esmiuçar como, durante o processo de conhecimento destes “estranhos”, as personagens, tanto estrangeiras quanto locais, sofrem o processo de alteridade, aos poucos compreendendo as mentalidades e visões de mundo que o outro possui. Ainda, buscamos discutir algumas das linhas de pensamento seguidas pelas narrativas dos contos, questionando e discutindo o modo com o qual os autores, por meio das vozes enunciadoras de suas narrativas, criam o espaço ficcional no quais os contos se passam. Objetivamos demonstrar como, em narrativas curtas, esses escritores carregam perceptivelmente profundidade psicológica às suas personagens e, de modo delicado, revelam como o ser humano, antes de tudo, está apto a compreender o outro, contanto que aceite as diferenças que lhe são tão confusas, ao início da relação com o estrangeiro. Os autores também fazem questão de indicar que o estrangeiro é parte integrante dessa relação mútua, fato que aparenta ser óbvio, mas que é problematizado nas narrativas dos escritores. Esperamos que essa pesquisa possa contribuir para alguns propósitos específicos que, em relação aos estudos literários produzidos em continente americano, podem fomentar um acréscimo de conhecimento e criticidade aos indivíduos que coabitam tal espaço geográfico, bem como aqueles que o estudam. Pensamos que a pesquisa, pautada nos pressupostos da literatura comparada, pode servir de aporte para demais publicações na área. Mais além, consideramos a pesquisa relacionada ao Outro e ao conceito de alteridade fundamental para o continente americano, que tanto lida com a temática e que tanta importância dá a ela nas últimas décadas. O desvelar do outro, o reconhecimento das diferenças e a compreensão dos espaços de mescla e separação são noções críticas ao sujeito americano como um todo e, quando conscientemente produzidas, podem levar a uma compreensão maior dos processos inerentes às relações interpessoais dos indivíduos que coexistem na América. 261 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS REFERÊNCIAS ALDRIDGE, Alfred Owen. Propósito e perspectivas da literatura comparada. Trad. de Sonia Torres. In: CARVALHAL, Tânia Franco; COUTINHO, Eduardo de Faria (orgs.). Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. ANDERSON, Benedict. Imagined Communities: Reflections on the Origins and Spread of Nationalism. London: Verso, 1991. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz, 2000. CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 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A proposta de um estudo comparado coloca-se como profícua para refletir sobre o diálogo instaurado pelas obras, ao trazerem o fato histórico relido esteticamente, a partir de um contexto histórico e social, que faz emergir imagens do Outro, o colonizado, invocando também uma reflexão sobre a alteridade, identidade e resistência. A análise toma como pressupostos teóricos os conceitos de identidade, alteridade, resistência e pós-colonialismo expostos por Franz Fanon (1961), Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (2002), Alfredo Bosi (2002), Thomas Bonnici (2009), entre outros. Para o estudo sobre o narrador, serão tomados os pressupostos de Mikhail Bakhtin (1993) mais precisamente a concepção de plurilinguismo no romance, dialogismo e polifonia. INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como proposta um estudo comparado das obras Age of Iron (1990) e Disgrace (1999) do escritor sul-africano John Maxwell Coetzee. O tema proposto para o estudo comparado respalda-se na temática do apartheid tratada em ambas as obras, além de outros elementos que encontram ressonância na estrutura interna das duas narrativas a exemplo da focalização narrativa ancorada em elementos de uma memória cultural que traz à tona questões de alteridade e póscolonialismo. O romance Age of Iron foi traduzido para o português por Sônia Régis para a editora Siciliano com o título A idade do Ferro em 1992. O livro aborda a “cegueira voluntária” dos brancos ao presenciarem atos de violência e segregação e não tomarem posicionamento, o que os tornaria cúmplices da violência. Coetzee dirigese diretamente ao leitor, pois a narrativa é dirigida a uma pessoa e o pronome “você” é recorrente no romance. 49 Graduada em História pela Universidade Estadual de Londrina em 2013. Participou do projeto de pesquisa História e Memória: Debates, Pesquisas e Narrativas de Iniciação Científica. Membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura e nas Diversas Linguagens. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Letras: Linguagem e Sociedade da UNIOESTE, sob a orientação da Profa Dra Ximena Díaz Merino. Tem experiência na área de História e Literatura, com ênfase em História pós-colonial, atuando principalmente no seguinte tema: literaturas africanas de expressão portuguesa e expressão inglesa, literatura e resistência, identidade cultural e alteridade, literatura e diáspora 264 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS O romance Disgrace foi traduzido para o português como Desonra por José Rubens Siqueira em 2000 para a editora Companhia das Letras. O livro aborda o contexto do mundo pós-colonial marcado pela injustiça e pelo deslocamento do homem branco no mundo sul-africano. Disgrace aborda a inversão de poderes e de papéis sociais na relação colonizador-colonizado. METODOLOGIA Trata-se de um estudo comparativo intratextual de cunho biográfico ancorados nos estudos pós-coloniais e na relação literatura e história. No primeiro momento será realizada a leitura e fichamentos das obras com enfoque nas imagens de resistência, alteridade e identidade dos elementos pós-coloniais, assim como, a leitura dos textos que deram embasamento teórico à pesquisa e que direcionam à análise das obras. A proposta de um estudo comparado coloca-se como profícua para refletir sobre o diálogo instaurado pelas obras, ao trazerem o fato histórico relido esteticamente, a partir de um contexto histórico e social, que faz emergir imagens do Outro, o colonizado, invocando também uma reflexão sobre a alteridade, identidade e resistência. A análise toma como pressupostos teóricos os conceitos de identidade, alteridade, resistência e pós-colonialismo expostos por Franz Fanon (1961), Homi Bhabha (1998), Stuart Hall (2002), Alfredo Bosi (2002), Thomas Bonnici (2009), entre outros. Para o estudo sobre o narrador, serão tomados os pressupostos de Mikhail Bakhtin (1993) mais precisamente a concepção de plurilinguismo no romance, dialogismo e polifonia. RESULTADOS E DISCUSSÃO Os estudos sobre pós-colonialismo desenvolvidos por Fanon abordam sobre “uma contradição insolúvel entre cultura e classe [...] entre representação psíquica e realidade social” (BHABHA, 1998, p.70), quebrando as linearidades de um pensamento centralizador que estão nas bases tradicionais da “identidade racial [...] sempre que se descobre ser elas fundadas nos mitos narcisistas da negritude ou da supremacia cultural branca” (BHABHA, 2003, p.70). Por este motivo, os estudos de Fanon são propícios para o estudo da relação colonizado-colonizador e sobre identidades no plural. Os novos estudos acerca da formação e concepção da identidade, a partir dos estudos de Hall (2002), abrem a possibilidade de análise sobre o conceito anteriormente entendido como uma definição estática e preso a uma estrutura - como composto de várias identidades subjetivas, por vezes conflitantes, definidas historicamente e não biologicamente, pelo movimento constante das sociedades modernas. A inexorável absorção mútua de códigos, causada pela força e pela intransigência do colonizador, acabou por promover o extermínio de tradições e culturas nativas engendrando, por sua vez, a validação de sociedades mistas. O crítico pós-colonial Homi Bhabha (1998), ao desenvolver um estudo sobre a sociedade indiana colonizada pelos ingleses, questiona o modo de representação 265 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS da alteridade e discute como se dá a construção do sujeito na relação entre discurso e poder colonial, e como são criados ou reafirmados os estereótipos. A partir dos anos 1990, as pesquisas acerca da cultura se desenvolveram e ganharam um novo enfoque, com a inclusão das “culturas marginais” e das minorias, desbancando a ideia de cultura elitista, conforme estudos de Thomas Bonnici (2009). Além dos estudos de Bonnici, outros pesquisadores têm se voltado para este foco, mais especificamente para as literaturas africanas, a exemplo do estudo de Moema Augel, em O desafio do Escombro (2007). A autora afirma A arte literária africana tradicionalmente encerra, de modo claro ou subliminar, referências ou intenções didáticas. Obras que criticam o status quo, satirizam o abuso do poder e os atentados contra a ordem social carregam consigo a intenção de levar a uma mudança, a um melhoramento de postura ética. Assim, a literatura assume muitas vezes, na África, também uma função utilitarista e desempenha o papel de regulador social. (AUGEL, 2007, p.30) Ou seja, a literatura produzida por escritores africanos parece conter a expressão de uma escrita de resistência, em que a arte encontra uma função de humanização e a literatura se dá na relação com a vida social, ao modo discutido por Antonio Candido em Literatura e Sociedade (1967). Augel aponta que é possível analisar os textos literários como direcionados a interesses sociais e políticos e para a auto-definição étnica ou nacional. Pois a cultura de uma determinada sociedade é a sua imagem e expressão e é considerada por ela como natural, por ser uma rede de significações auto construída pelos próprios membros dessa sociedade e através da qual as ações são permanentemente transportadas em sinais interpretativos e em símbolos. Pode-se refletir sobre a literatura de Coetzee a partir da ideia de que as produções culturais, em especial a literatura, ao lidar com palavras, metáforas e imagens, fornecem elementos para a criação de uma subjetividade acerca da identidade e da nacionalidade, em especial - pensando nacionalidade no viés da resistência pós-colonial, o que inclui a ideia de alteridade. O sentido de identidade, no entanto, vai além das ideias de identificação social e psíquica presas a binarismos, ela é apenas uma imagem da totalidade, “a imagem é a um só tempo, uma substituição metafórica, uma ilusão de presença, e, justamente por isso, uma metonímia, um signo de sua ausência e perda” (BHABHA, 1998, p.86). Na definição da identidade do Eu, o Outro não pode ser pensado como algo diferente e fixo, estrangeiro, “o Outro deve ser visto como a negação necessária de uma identidade primordial – cultural ou psíquica – que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser significado como realidade linguística, simbólica, histórica” (BHABHA, 1998, p.86). CONCLUSÃO A formulação das imagens de identidade e as práticas de resistência empregadas pelos literatos africanos pós-coloniais atuam em um processo, definido por Bhabha (2003), produzido em um “terceiro espaço cultural que se forma no contato com a alteridade” (BHABHA, 2003, p. 67). É nesse espaço de diferença que 266 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS se abrem as possibilidades e percebe-se que os significados e as identidades possuem resíduos de outros significados e identidades. Na obra Age of Iron (1990), a questão da alteridade aparece quando a personagem principal, E.C., mulher branca que vive em um bairro seguro na Cidade do Cabo no contexto do regime segregacionista apartheid, depara-se com a realidade da violência dentro da sua própria casa. E.C. registra os seus dias através de cartas que pretende enviar a sua filha que vive nos EUA como o intuito de abrir os olhos de sua filha da situação real na África da Sul e mantê-la afastada deste espaço. Assim, a personagem que mora com sua empregada, Florence, precisa ir até o outro lado da Cidade do Cabo, a qual é habitada por negros e vive sob intensa repressão e violência entre gangues e entre a população e a polícia, para buscar o filho de Florence, Bheki. Neste momento, E.C. percebe que seus olhos estavam fechados e agora que foi obrigada a enxergar esta realidade, nunca mais poderá fingir que a violência e segregação não existem. No caso da obra Disgrace (1999), é evidente a condição do homem branco na nova sociedade pós-apartheid, que transformou a antiga superioridade branca em minoria e o sujeitou à condição de excluído, na qual necessita se adequar à nova sociedade da África do Sul marcada pelo passado segregacionista. A Lei de Terras de 1913, que concedia 87% das terras à minoria branca, foi revogada em 1995 e deu início a mudançano poder. Esta mudança no poder é notada no romance com a reviravolta na condição de David Lurie, personagem central que, após uma denuncia por ter abusado de sua aluna mais jovem e negra, Melanie Isaacs, é demitido e tem que se mudar para a área rural, onde vive sua filha, Lucy, branca e homossexual, passando a vivenciar uma condição de dependência e, sobretudo, de decadência moral, econômica e social. REFERÊNCIAS AUGEL, Moema P. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na literatura de Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamons, 2007. BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. BONNICI, Thomas (org). Resistência e intervenção nas literatures pós-coloniais. Maringá: Eduem, 2009. BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. COETZEE, J.M. Age of Iron. Great Britain: Richard Clay Limited, 1990. COETZEE, J. M. Disgrace. USA: Viking Penguin Group, 1999. HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. 267 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS LITERATURA INFANTOJUVENIL AFRO-BRASILEIRA: UMA LEITURA DE OS REIZINHOS DE CONGO Ruth Ceccon Barreiros50 RESUMO Esta pesquisa tem como tema a afro-brasilidade e toma como objeto de investigação a obra literária infantojuvenil de temática afro-brasileira Os Reizinhos de Congo (2007a), autoria de Edimilson de Almeida Pereira e ilustração de Graça Lima. Amparamo-nos teoricamente na Estética da Recepção, proposta por Iser (1996, 1999), com especificidade para a Teoria do Efeito Estético, para a depreensão do processo de leitura nessa obra. A partir desse suporte, traçamos como objetivo compreender como ela, em seus aspectos estéticos e culturais, caracteriza-se como literatura infantojuvenil afrobrasileira. A escolha de um objeto de pesquisa, que respondesse ao nosso intuito, demandou leituras de outras obras literárias, para isso, tomamos como referência os títulos distribuídos pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) que versam sobre o tema. Contudo, não encontramos entre as obras do PNBE uma que atendesse às nossas expectativas, fazendo com que outras leituras fossem empreendidas até chegarmos à obra referenciada. Como critérios de análise do livro, buscamos perceber o arranjo textual e depreender a experiência estética, baseada no nosso gesto de leitura. Efetivada a leitura, elencamos alguns pontos da teoria de Iser para mostrar o processo de leitura realizado. Os resultados apontaram que a literatura estudada apresenta elementos suficientes para ser caracterizada como afro-brasileira, bem como o seu arranjo textual exibe literariedade. Em virtude desses resultados, propomos uma classificação inicial para as obras que se enquadrem na perspectiva de literatura infantojuvenil de temática afro-brasileira, como é o caso de Os Reizinhos de Congo. PALAVRAS-CHAVE: Leitura; Literatura infanto-juvenil; Literatura afro-brasileira. INTRODUÇÃO A literatura infantojuvenil, quando apresenta uma organização textualdiscursiva, um aspecto simbólico e lúdico interessante, configura-se em um recurso pertinente à formação leitora, auxiliando na preparação de leitores críticos com capacidade de refletir sobre as inúmeras questões do dia a dia, dentre elas as questões culturais. Docente do Curso de Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Doutora em Letras e Linguística pela UFBA. Linha de pesquisa: Literatura, Cultura, Memória e Ensino. Pesquisadora da área de Leitura, Formação de leitores, Literatura infantil e Juvenil. Endereço eletrônico: [email protected] 50 268 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ao partir desse pressuposto, empreendemos uma pesquisa que traz como tema as afro-brasilidades. A literatura temática é um recurso especial para o (re)conhecimento da cultura africana na construção da sociedade brasileira. Então, ao considerar que muito da discriminação envolta pauta-se no desconhecimento da cultura, torna-se relevante encontrar caminhos para transformar essa condição e, neste sentido, conhecer essa cultura parece-nos uma das alternativas possíveis. Nessa tarefa, somos da opinião de que a literatura infantojuvenil, quando explorada adequadamente, tem muito a contribuir. A escolha do tema ocorreu a partir da nossa vivência como docente, especialmente, com a disciplina de Literatura Infantil no Curso de Pedagogia da Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e na formação continuada com professores das áreas de Letras e Pedagogia. Observamos que, na maioria das obras, o aspecto pedagógico era mais evidente, e os temas abordados priorizavam: as histórias das Áfricas; a cultura negra; o negro e as questões raciais. Além disso, as fichas catalográficas, em geral, não especificavam a classificação quanto ao tema, apenas uma categorização como literatura infantil ou infantojuvenil. Quando a classificação ocorria, algumas se apresentavam como literatura africana ou afrobrasileira. Contudo, essa segunda classificação, ou seja, afro-brasileira, a nosso ver, não correspondia ao tema tratado na obra, tendo em conta que, geralmente, tinham como foco os temas já referenciados, ou seja, as histórias das Áfricas; a cultura negra; o negro e as questões raciais. Essa constatação gerou inquietação e com isso chegamos à seguinte hipótese de pesquisa: há obras de literatura infantojuvenil de temática afrobrasileira que são centradas em aspectos próprios da cultura brasileira. Passamos, então, a observar mais atentamente esses aspectos e, por ocasião da concepção da pesquisa, tomamos como referência as obras distribuídas às escolas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), para o Ensino Fundamental, anos iniciais e finais, para, a partir delas, eleger aquelas em que pudéssemos apontar as características que julgávamos pertinentes às obras literárias infantojuvenis de temática afro-brasileira. Contudo, como já comentado, não encontramos dentre essas obras nenhuma que atendesse ao nosso propósito, em suas especificidades. O trabalho de leitura então reiniciou até delimitarmos a obra Os Reizinhos de Congo (2007a), de Edimilson de Almeida Pereira, com ilustrações de Graça Lima, que respondeu ao nosso intuito e possibilitou-nos empreender a pesquisa. Lembrando que, partimos da hipótese de que ela se caracteriza como literatura infantojuvenil de temática afro-brasileira. Definimos como objetivo geral compreender como a obra literária Os Reizinhos de Congo, em seus aspectos estéticos e culturais, caracteriza-se como literatura infantojuvenil afro-brasileira. Pareceu-nos pertinente uma investigação que pudesse delinear os aspectos da afro-brasilidade em obras literárias infantojuvenis, considerando-se que essa categorização poderia situar melhor os leitores ao se 269 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS acercarem dessas obras, tanto numa perspectiva de leitura autônoma como dirigida, sendo esta última, geralmente, presente no espaço educativo. Por sua vez, os objetivos específicos que nortearam o caminho da pesquisa foram: 1) depreender a experiência estética na obra literária infantojuvenil, Os Reizinhos de Congo, considerando-a como um recurso de formação leitora e cultural; 2) inferir sobre os possíveis efeitos que esta obra suscita no leitor; 3) compreender se essa literatura infantojuvenil afro-brasileira configura-se em um recurso profícuo para a construção da identidade cultural; 4) apresentar uma proposta de classificação para o que se denomina literatura afrobrasileira, a partir das análises aqui categorizadas; 5) contribuir com os estudos para a afirmação da literatura infantojuvenil, de temática afrobrasileira, na sua caracterização como literatura. Neste contexto de estudo, julgamos, também, importante esclarecer a grafia utilizada para o termo afro-brasileiro ou afro-brasileira, o qual é apresentado no decorrer do texto com hífen, tendo como base o exposto no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP, 2009, p. 27). No que tange ao desenvolvimento do trabalho, na primeira parte dos estudos, detemo-nos em Leitura: perspectivas teóricas, elencando um estudo amplo sobre as concepções de leitura, tanto pelo viés dos Estudos Linguísticos, como dos Estudos Literários. Estes tiveram como objetivo apresentar os pontos de convergência entre essas teorias sobre a percepção de leitura, assim como outros aspectos a ela relacionados, por exemplo: como estas teorias entendem o papel do sujeito leitor no ato de ler; a perspectiva de texto e leitor no processo de leitura; e a relação texto, leitor e o contexto social. Essas perspectivas visavam compreender o lugar do sujeito leitor no processo de leitura bem como os efeitos da leitura literária, em especial a literatura que aborda aspectos de determinada cultura, no caso em questão, a cultura afro-brasileira. Para o suporte teórico, desta parte do trabalho, utilizamos: Bonnici (2005), Chartier (1996), ECO (1979, 2000, 2001,2012), Orlandi (1996,1999,2000, 2001), Iser (1979,1996, 1999), Kato (1999), Jauss (1979), Zilberman (1989), Kleiman (1989,2000), Aguiar e Bordini (1993) dentre outros. A partir desse olhar macro, traçamos à primeira das especificações, versando sobre os Caminhos da literatura infantojuvenil. Nela, os entendimentos sobre literatura infantojuvenil são vistos, acrescidos das tendências contemporâneas de tema, linguagem, estrutura, estilo e imagens. Em espaço destacado, mostramos a literatura afro-brasileira: cenário e concepção. Em outro, essa mesma literatura é explorada, tomando como base o PNBE. Nesta fase da pesquisa, tomamos como fundamentação os seguintes estudiosos: Coelho (2000a, 2000b, 1991), Cademartori (2009), Brasil (2008), Paiva (2000), Hunt (2010), Zilberman (2003) e outros. Em outro momento, elencamos Cultura e leitura da literatura, trazendo noções de cultura e identidade cultural, bem como uma apresentação sobre o histórico dos Estudos Culturais, visando situar a literatura de temática afrobrasileira, em um 270 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS contexto literário. Para estes estudos elegemos como base teórica os autores: Amâncio e Gomes (2008), Bhabha (1998), Bernd (2003,2010), Cavalleiro (2001, 2005), Eagleton (2011), Figueiredo (2005), Hall (2006), Santos (2005), Souza 2008 além de outros. Detemo-nos, ainda, em estudos sobre Os efeitos da leitura literária, discorrendo acerca da Teoria do Efeito Estético, tendo como referência específica os estudos de Iser (1999), na obra O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, volume dois. A partir do estudo dessa obra, elegemos seis aspectos a serem, pontualmente, discutidos na análise de Os Reizinhos de Congo. Sendo que, os quatro primeiros referem-se diretamente à teoria de Iser, no que tange à formação do ponto de vista no processo da leitura, e nos dois últimos buscamos saber as possíveis dificuldades que a obra eleita pode oferecer ao leitor em relação à linguagem e ao material simbólico. Na pesquisa, apresentamos, ainda, o tema da obra de Pereira (2007a) Os Reizinhos de Congo, como objeto de análise, ou seja, com informações sobre o Congo, o Congado ou as Congadas, três expressões que fazem referência a mesma manifestação folclórica. Na sequência, analisamos os aspectos técnicos, sucedido pela análise estrutural e pela experiência estética de leitura, tendo como referência a obra em tela. Por fim, retomados os pontos da teoria de Iser, para demonstrar a leitura de forma aplicada em Os Reizinhos de Congo. METODOLOGIA A pesquisa é de caráter bibliográfico e em função disso apresentou as seguintes etapas: 1) Levantamento, seleção e leitura de obras teóricas que tratavam sobre a leitura e a formação de leitores de literatura; 2) Levantamento, seleção e leitura de obras teóricas que versavam sobre literatura infantojuvenil; 3) Levantamento, seleção e leitura de obras teóricas que versavam sobre cultura e leitura da literatura; 4) Levantamento, leitura e escolha da obra literária de temática afrobrasileira na relação de obras do PNBE – Programa Nacional Biblioteca na Escola; 5) Análise da obra eleita Os Reizinhos de Congo; 6) Os efeitos da leitura literária, em Os Reizinhos de Congo, tendo por base os estudos teóricos antes mencionados, assim como da obra O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, volume dois, de Iser (1999). RESULTADO E DISCUSSÃO 271 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Ao final desta pesquisa, pudemos dimensionar a nossa responsabilidade educacional e social, em função do foco escolhido. Esse, por sua vez, levounos a percorrer um trajeto teórico amplo e diverso, representando, por certo, um risco, contudo, ao mesmo tempo, uma ampliação teórica muito relevante para nós, enquanto pesquisadora. Entretanto, para o filósofo e escritor do período do Império Romano, Sêneca, pensamento do qual compartilhamos, os riscos precisam ser corridos, pois o maior perigo é não arriscar nada. Ficar parado seria manter-se equilibrado. O desequilíbrio leva à construção, nesse sentido, a busca teórica é um desequilíbrio e uma construção constante. A literatura infantojuvenil de temática afro-brasileira, situada, ainda, em terreno movediço, exigiu um trabalho de estear os lastros para não deixar perecer o objetivo da pesquisa. Ao considerar esse objeto, ou seja, a literatura infantojuvenil de temática afrobrasileira como um recurso ímpar de formação leitora e social, a nosso ver, não nos pareceu suficiente uma abordagem pontual, visto que a leitura, em geral, e a leitura da cultura, em específico, demandam muito mais conhecimentos do leitor que almeja compreender mais profundamente o processo que envolve a ação de ler literatura e cultura. Por isso as escolhas teórico-analíticas propostas neste estudo. Amparados no tema da afro-brasilidade na literatura infantojuvenil, perseguimos a hipótese de que há obras de literatura infantojuvenil de temática afrobrasileira que são centradas em aspectos próprios da cultura brasileira. Essa hipótese surgiu, primeiramente, a partir de leituras de obras literárias que tratam do assunto, e que não apresentavam qualquer menção sobre o tema nas classificações dos catálogos de divulgação e nas fichas catalográficas incorporadas às obras. Em um segundo momento, percebemos que os temas veiculados, em grande parte das obras, estavam muito mais relacionados às histórias das Áfricas, à cultura negra, ao negro e às questões raciais, do que aos aspectos culturais de mistura que caracterizam a cultura brasileira. Depois, da seleção, delimitamos que, a obra Os Reizinhos de Congo, correspondia ao nosso intuito e possibilitou-nos traçar o objetivo geral, isto é, compreender como esta obra literária, em seus aspectos estéticos e culturais, caracteriza-se como literatura infantojuvenil afrobrasileira. Nessa direção, a primeira etapa da pesquisa possibilitou-nos uma visão mais ampla das concepções de leitura, tanto na perspectiva dos Estudos Linguísticos, quanto dos Estudos Literários. A partir desses estudos, pudemos contemplar a leitura da literatura, da literatura infantojuvenil de temática afrobrasileira, dos efeitos estéticos da literatura no leitor e, por fim, a leitura em um viés pragmático. Esse percurso ampliounos os conhecimentos de maneira geral, bem como mostrou-nos as possibilidades de trabalho com a leitura literária tanto para a formação leitora quanto cidadã. Com as reflexões pautadas nas duas grandes fontes teóricas sobre leitura, isto é, nos Estudos Linguísticos e nos Estudos Literários, buscamos compreender os pontos de convergência entre os conceitos, visto que estes oferecem, não raras 272 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS vezes, dificuldades, no fazer docente com os leitores em formação inicial ou continuada. Acreditamos ser necessário ter consciência dos possíveis caminhos para a leitura, tendo em conta que ambas as vertentes estão presentes nos currículos formativos e, nem sempre, são esclarecidas e apresentadas às diferenças e às semelhanças entre elas. Assim, estes estudos trouxeram-nos, dentre outros, dois resultados que merecem ser destacados. O primeiro, mais pessoal, possibilitou compreender como as concepções apresentam-se nas duas vertentes e, com isso, termos discernimento das possibilidades de leitura em benefício próprio. O segundo, é que a fundamentação adquirida faculta, no exercício da docência, formar melhores leitores, que conheçam e saibam escolher as trilhas de leitura, mais adequadas, para alcançar os sentidos dos textos, sejam eles literários ou não, e crescer criticamente, a partir dessa ação leitora. Entretanto, é preciso lembrar que uma realização individual de leitura não se configura como um modelo aplicável a todos os demais leitores. A leitura, como concebida, no decorrer do estudo, ou seja, como um processo de interação, um ato dialógico entre autortexto-leitor, quando aplicada a um objeto de arte, como é o caso da literatura infantojuvenil, entendida como um fenômeno social humano, é, em sua essência, subjetiva, ambígua e dialógica. Assim, apresenta diferentes resultados para diferentes leitores. Esse risco foi conscientemente assumido nesta pesquisa, já exposto inicialmente ao leitor. A partir dessa visão geral, os estudos sobre os conceitos de literatura e literatura infantojuvenil de temática afro-brasileira proporcionaram-nos condições para consolidar conhecimentos já existentes e atualizar outros ainda pouco consistentes. Para isso, realizamos uma retrospectiva do surgimento da literatura infantojuvenil até as produções mais recentes, no intuito de verificar as transformações nas concepções de linguagem, da estrutura, do estilo e das ilustrações. Para abordar os conceitos sobre literatura afro-brasileira, foi necessário situar o leitor sobre as muitas transformações sociais pelas quais passamos desde a década de 1960 e, neste contexto, apontar o surgimento e a influência dos Estudos Culturais no processo de reconhecimento das produções culturais, até então silenciadas, como é o caso das afro-brasileiras. A esta altura, já havíamos percorrido mais da metade do caminho, assim precisávamos especificar melhor a trilha, escolhendo, dentre as teorias de leitura vistas, aquela que nos atendesse nas especificidades da leitura, elegemos, então, a teoria de Iser (1999). Com a base teórica inicial e a de Iser, em específico, lançamonos na experiência prática de leitura, procurando mostrar os meandros da atividade leitora quando aplicada na literatura infantojuvenil de temática afro-brasileira, em seus aspectos literários e culturais, na firme proposta de atender aos objetivos que norteavam o trabalho. A teoria anteriormente vista deu condições para entender melhor o processo. Ainda que tenhamos nos dedicado a apenas uma obra para análise, o que pode representar pouco a alguns, corremos este risco de forma consciente. A atividade de triagem e escolha de uma obra literária que atendesse aos nossos propósitos foram mostradas em um quadro classificatório, por ocasião da apresentação das obras do 273 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Para nós, o resultado alcançado, em relação aos critérios de classificação das obras literárias infantojuvenis afrobrasileiras, ainda que com a leitura de somente uma obra, possibilita a aplicação da proposta apresentada para uma categorização mais acertada das obras literárias, que versem sobre as afro-brasilidades. Isso por termos constatado que elas não possuíam, até então, critérios para uma classificação adequada, a qual permita ao leitor reconhecer o tema da obra literária infantojuvenil que se propõe a ler. Dito por outra via, os critérios por nós apontados podem ser utilizados para a classificação de outras obras literárias infantojuvenis que versem sobre a temática afro-brasileira, ou pelo menos podem servir como princípio de estudos e pesquisas que qualifiquem esses critérios necessários à literatura brasileira atual. Os elementos que atribuem à obra Os Reizinhos de Congo o caráter de literatura, no sentido de um objeto de arte, também foram explorados em análises. Verificar aspectos estruturais de uma obra literária e localizá-la como literatura configura-se em uma função relevante. Contudo, quando nos aproximamos de uma obra literária, as impressões emotivas são aquelas que mais nos marcam. Isso porque deixamos de entendê-la como linguagem utilitária para concebê-la como matéria viva, suscetível à invenção e à experimentação. O uso inventivo da linguagem, próprio da criação ficcional, são traços encontrados na literatura de Pereira (2007a). Os resultados da análise mostraram que essa obra proporciona, além do deleite da leitura em um jogo divertido, provocações que suscitam no leitor reflexões acerca das raízes da cultura brasileira, nos cenários dos festejos das Congadas. Esses fatores corroboraram nossa hipótese inicial de que existem obras literárias infantojuvenis de temática afro-brasileira que exploram os aspectos próprios da cultura brasileira, evidenciando as nuances de miscigenação que a compõem. Essas obras, se devidamente classificadas, podem contribuir para que os leitores em formação possam, por meio da leitura de uma literatura que apresente um discurso multifacetado e aberto, como deve ser o discurso artístico, compreender e conhecer a diversidade que forma a cultura nacional, respeitando o diferente, o outro. Além de dar às obras, com essas especificidades, uma identidade. Os pontos apresentados nas análises da obra Os Reizinhos de Congo atestaram o seu aspecto de afro-brasilidade, permitindo uma possível taxonomia que sirvam a uma classificação inicial desta literatura em específico, como: os personagens principais são afrodescendentes; a obra recobra outras manifestações folclóricas brasileiras; ao texto são incorporadas palavras do vocabulário africano presente na língua portuguesa do Brasil; as Congadas são tomadas com seu sincretismo religioso para cenário do conto; as culturas africana e portuguesa apresentam-se como aquelas que estruturam a cultura brasileira; os aspectos da oralidade, presente na nossa cultura popular, são destacados ao longo do texto. Estes aspectos confirmaram a nossa hipótese de que a obra literária de Pereira (2007a) é verdadeiramente de temática afrobrasileira. 274 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS As atividades de leitura e de pesquisa empreendidas em todo esse processo autorizam-nos a afirmar que este trabalho contribuiu para dar visibilidade ao aspecto temático e estrutural da literatura infantojuvenil afrobrasileira, colocando-a em pauta de pesquisa e na ordem do dia para a formação leitora, estética e cultural. Sem desconsiderar as pesquisas que visam mostrar os aspectos discriminatórios, muitas vezes presentes nos estudos sobre essa literatura, ou, ainda, os estudos que pretendem identificar, em levantamentos exaustivos, a quantidade de obras que versam sobre o tema, somos da crença de que compreender o valor estético dessa literatura é pertinente. Faz-se necessário, então, pensar em investigações que possam dedicar-se a esse fim, que, a nosso ver, são também fundamentais. Essas permitiriam, aos que dela tiverem acesso, condições para melhor conhecerem a obra, ampliando, assim, o conhecimento leitor e cultural. Se a literatura que se concebe como clássica já dispõem de muitos estudos, as afro-brasileiras, pela emergência recente, ainda apresentam uma demanda significativa de pesquisa. É preciso considerar, também, que são esses estudos que podem garantir a divulgação dessa literatura, bem como disseminar a cultura e, por consequência, atender ao proposto pela Lei 10.639/2003. Nessa direção, podemos, futuramente, retomar os aspectos aqui discutidos em novas pesquisas. E, por conhecermos as lacunas existentes em estudos dessa ordem, deixamos como sugestão, para pesquisadores que se interessem em empreender a ampliação de conhecimentos nessa área, ou seja, analisar outras obras literárias infantojuvenis, buscando identificá-las como afro-brasileiras, assim como desenvolver estudos voltados para a questão estética. Por certo, que esses trabalhos podem representar muito no processo de formação em leitura e em cultura brasileira. REFERÊNCIAS AGUIAR, V. T. de; BORDINI, M. da Glória. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Marcado Aberto, 1993. AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma L.; JORGE, Mirian Lúcia dos S. Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003. _____. O literário e o identitário da literatura afro-brasileira. Revista Língua & Literatura. v. 12, nº 18. 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Antagônicos, pois em sua narrativa o leitor não encontrará apenas a luta entre homem e natureza, mas encontrará, sobretudo, contos que descrevem o embate homem versus homem, revelando situações que ajudam a contar a história de um espaço pouco conhecido naquele contexto temporal, contribuindo com a construção da história local de Misiones, no interior da Argentina, ambiente de fronteira, constante na vida e na obra do escritor uruguaio e nas obras selecionadas para este estudo: Los pescadores de vigas (1913), Los mensú (1914), Una bofetada (1916) e Los desterrados (1925). A leitura das obras citadas reforça que a Literatura, por meio da catarse que provoca no leitor, contribui para uma reflexão de cunho mais humanista da história do homem, e os contos de Horacio Quiroga refletem o homem de seu tempo, observador que se transforma em narrador das mazelas em terras distantes das metrópoles. PALAVRAS-CHAVE: Horacio Quiroga; conto; fronteira; espaço. INTRODUÇÃO A temática investigada nesta pesquisa aborda aspectos que ora denunciam a exploração humana e territorial na Argentina, ora aborda questões que refletem o momento experimentado pelo homem que vivencia as mudanças que se desenvolvem com a chegada de um novo século XX. Os textos previamente eleitos como objetos de estudo tratam da exploração de trabalhadores destinados à colheita de erva-mate, cujo ciclo contemplou também regiões brasileiras, como o oeste do estado do Paraná, e parte da fronteira entre o Paraguai e a Argentina no período entre o final do século XIX e meados do século XX. Além de representar a mão de obra nessas plantações, tais homens eram destinados também às atividades da exploração madeireira e de quaisquer outros trabalhos relacionados ao ambiente de Misiones. Abordar-se-á também a inversão da diáspora na procura do paraíso perdido, salientando que não se trata apenas do desejo da volta ao país geograficamente vizinho, mas de um país recordado, desejado ou, como assevera 51 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração em Linguagem e Sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Profesora Dra. Ximena Antonia Díaz Merino. Endereço eletrônico: [email protected]. 279 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Julia Kristeva em Estrangeiros para nós mesmos, “O paraíso perdido é uma miragem do passado que jamais poderá ser reencontrada. [...] ele [o estrangeiro] jamais está simplesmente dividido entre aqui e alhures, agora e antes. [...] Sempre em outro lugar, o estrangeiro não é de parte alguma” (1994, p.17-18). A partir desta primeira temática identificada, surgem outras que corroboram a relevância dos contos quiroguianos no âmbito da literatura hispano-americana. O ambiente e as personagens descritas por Horacio Quiroga pertencem à história da Argentina, situadas nos primeiros anos do século passado, trata-se de uma obra que possibilitou o conhecimento da exploração humana além das fronteiras geográficas que compõem o cenário desses contos. Com base nas observações apontadas, a leitura dos contos selecionados nos permite refletir sobre a sociedade da época em que se situam as narrativas, assim como a importância do território geográfico como espaço de identificação e pertencimento para a configuração de uma identidade local, além de ponderar a proximidade entre a obra literária e as temáticas próprias daquela região. A contribuição do olhar de Quiroga sobre a região de Misiones, isto é, como o autor percebe esse espaço fronteiriço de exploração e de que maneira expressa esta percepção em seus contos também surge como assunto de reflexão. Nos contos selecionados, Horacio Quiroga denuncia a exploração humana e questiona as transformações sofridas pelos habitantes e os territórios da Tríplice Fronteira, configurando uma literatura crítica e de resistência, assim como as relações existentes entre a sociedade fronteiriça, espaço de transgressão que protagonizou os ciclos ervateiro e madeireiro, revelando dessa maneira o cotidiano do homem que vive à margem dos centros urbanos e que carece de condições básicas à vida humana. Nas palavras do escritor e jornalista argentino, Mempo Giardinelli (2012, p. 22), ao considerar como excelentes contistas justamente aqueles que “pensaron el género que hacían, y para quienes escribir no fue un acto mecánico de simple catarsis, una exorcisación, sino que fue una reflexión sobre el tiempo que vivieron”. Nosso principal objetivo é identificar e analisar os elementos de denúncia da exploração humana e territorial presentes nos contos de Quiroga a partir do ponto de vista sociológico, que discute e considera os textos selecionados como representações da sociedade e da história da região de Misiones, província argentina, através da atuação das personagens que representam os tipos locais. Partindo deste, outros objetivos são delineados a fim de localizar estética e historicamente o escritor, analisar as características literárias dos relatos e confrontá-los à realidade dos habitantes dessa província, aprofundar as reflexões sobre sociedade e literatura, além de construir considerações sobre os conceitos de identidade, sociedade, violência, fronteira e do olhar direcionado ao ambiente/espaço, abordando a temática de denúncia da exploração do homem e do espaço geográfico em questão no período pós-colonial. METODOLOGIA A metodologia aplicada encontra-se no âmbito exploratório da contistica de Horácio Quiroga e dos textos teóricos selecionados. Trata-se de uma pesquisa de natureza bibliográfica, desenvolvida a partir da análise comparativa e de conteúdo dos contos selecionados. 280 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADOS E DISCUSSÃO Pesquisadores brasileiros da área de Letras já se debruçaram sobre a constística quiroguiana. Amália Cardona Leites, por exemplo, escreveu desenvolveu a Dissertação de Mestrado intitulada Resistência e violência em Horacio Quiroga e Sérgio Faraco (2013), onde três dos contos estudados no presente trabalho também foram por ela analisados, porém o foco do trabalho concentra-se no estudo comparativo entre o escritor uruguaio e o escritor brasileiro e seus respectivos ambientes, a selva missioneira e a pampa. A respeito do ciclo da erva-mate no Brasil e nos países vizinhos, Argentina e Paraguai, também já foram realizados estudos que abordaram a obra de Horacio Quiroga, assim como a de outros escritores como Hernâni Donato e sua obra Selva Trágica (2011), mantendo o foco de análise no monopólio da empresa Erva-Mate Laranjeiras. Cabe destacar que os quatro contos por nós analisados retratam tanto os trabalhadores da colheita de erva-mate como da extração de madeira e da exploração da terra na Tríplice Fronteira, o que nos possibilita discutir a desconstrução destes cenários a partir da exploração humana que ali se fez presente. CONSIDERAÇÕES FINAIS Estabelecidas as bases teóricas e acompanhadas das análises literárias, este trabalho não encerra um ciclo de estudos sobre os contos selecionados na vasta obra de Horacio Quiroga, apenas abre caminhos a fim de incitar a leitura ou releitura de sua contística a partir do olhar de cada leitor/pesquisador, sempre com o objetivo de encontrar algo más allá52 nos textos de um dos grandes escritores da América Hispânica. REFERÊNCIAS ALVES-BEZERRA, W. Reverberações da fronteira em Horacio Quiroga. São Paulo: Humanitas, Fapesp, 2008. BRISSAC, N. “O olhar do estrangeiro”. In: NOVAES, A. (Coord). O olhar. São Paulo, COMPANHIA DAS LETRAS, 1988. pp. 361-366. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1985. CARVALHAL, T. F. Literatura comparada. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. COUTINHO, E. Literatura comparada na América Latina. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003. DUARTE, J. 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Trata-se de um romance histórico contemporâneo que apresenta a vida da personagem histórica, desde a vinda da família real portuguesa ao Brasil (1808), até por volta de 1834, focalizando o desenvolvimento de seu papel como Imperador e herói. Ao longo da obra, a personagem oscila entre seu papel político e seus anseios enquanto homem, processo no qual é fundamental a participação de quatro mulheres com quem ele teria se relacionado (a bailarina Noemie; a princesa Leopoldina; Domitila de Castro; D. Amélia de Leuchtenberg, sua segunda esposa). Essas relações funcionam como um eixo estruturador da narrativa, construindo imagens que ora aproximam D. Pedro da imagem do imperador ora o aproximam do homem, entre decadência moral e os sentimentos nobres. A carnavalização assume, nesse sentido, papel importante na configuração do romance, ao possibilitar o processo de humanização da figura histórica a partir do rebaixamento, articulando imagens ligadas ao baixo corporal. Nesta análise, estabeleceremos pontes com outros romances que recontam o mesmo período, de modo a, pelo contraste, evidenciar estratégicas narrativas e possíveis anseios da obra para com a história brasileira e com o seu leitor. PALAVRAS-CHAVE: El imperio eres tú (2011); romance histórico contemporâneo; D. Pedro I; carnavalização INTRODUÇÃO Obras de teor histórico tem se mostrado um grande sucesso editorial, reiterando, em certo sentido, os sucessos de público dos romances históricos do século XIX. Possivelmente interessado em seguir por um caminho semelhante, o autor espanhol Javier Moro, jornalista e roteirista, compôs o livro El imperio eres tú, ganhador do Prêmio Planeta de 2011. Aqui, entretanto, o autor se enleia pelos caminhos da ficção, lançando mão recursos de linguagem e literários, de uma forma, por assim dizer, moderada, para reescrever a história de D. Pedro I, do Brasil, desde sua juventude até a sua morte. Uma forma moderada, mas fiel aos interesses do livro, que busca explorar algumas facetas humanas da personagem principal, sem 53 Mestre em Letras (UNESP/Assis) – Professor colaborador (UNIOESTE/Cascavel). 283 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS deixar de apresentar a história a quem a desconhece. A maneira como se dá essa humanização e os sentidos que a envolvem, bem como as formas que a construção textual assume para guiar-lhe por tais caminhos, são os objetivos de nossa leitura da obra. O romance é composto por 105 capítulos distribuídos ao longo de 9 partes, mais um epílogo, contando a vida de D. Pedro, desde os seus 18 anos, mas aludindo a momentos anteriores. O andamento do romance é cronológico, mas pontuado, como referido, de analepses, retomando acontecimentos do passado das personagens, muitas vezes de maneira a consolidar uma ou outra faceta psicológica que ela desenvolveria ao longo de sua vida. Recursos como a carnavalização são importantes na reconstrução da intimidade da personagem histórica e no seu processo de humanização. Cabe ressaltar também a presença feminina no romance, principalmente nas quatro personagens femininas com quem D. Pedro teria se relacionado: Noemie, Domitila de Castro, sua primeira esposa, a princesa Leopoldina, e a sua segunda esposa, D. Amélia de Leuchtenberg. Essas relações funcionam como um eixo estruturador da narrativa, ordenando a oscilação de D. Pedro entre o seu papel como líder político e os seus desejos enquanto homem. METODOLOGIA Trata-se de uma pesquisa de natureza bibliográfica, cuja base parte da leitura e análise interpretativa do objeto de pesquisa. Essa análise toma por base os preceitos da narratologia e é articulada com as teorias relacionadas ao novo romance histórico, o romance histórico contemporâneo, intertextualidade, paródia e carnavalização. RESULTADOS E DISCUSSÃO O primeiro capítulo do romance já estabelece a ideia do confronto entre a faceta humana e a faceta heroica de D. Pedro, trazendo a tensão entre o jovem Pedro, com suas paixões e anseios, e o seu papel para com a coroa e a posição de líder do Império que constituiria o Brasil. O ano é 1816, e “Pedro de Braganza y Borbón acababa de cumplir dieciocho años y estaba enamorado.” (MORO, 2012, p. 19). A primeira frase do romance nos apresenta a uma imagem de D. Pedro seguindo feições românticas, no caso, o sentimento amoroso idealizado que ele estabelece pela jovem bailarina francesa, Noémie; ele estava contente principalmente por saberse correspondido. Ele queria viver essa relação, casar-se com a jovem, contrariando as imposições reais, uma vez que sendo ela plebeia, não poderia casar-se com um príncipe. Ao longo da obra, a relação de Pedro com as mulheres passa a constituir eixos estruturantes da narrativa e condutores da forma como a personagem oscila entre sua posição de homem e a de imperador. O texto começa com Noémie, depois intercala a princesa (e depois imperatriz) D. Leopoldina com a Marquesa de Santos (amante de D. Pedro), para encerrar-se com D. Amélia de Leuchtenberg, segunda esposa do imperador. A bailarina e a Marquesa tendem a forçar a balança para o lado do homem, para o amor idealizado ou a paixão avassaladora, enquanto que as duas esposas o direcionam para a importância de seu papel frente ao Estado. 284 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS No sentido da relação de D. Pedro com as mulheres, o processo de humanização da personagem acenará para esse universo íntimo de seus sentimentos, de sua postura por vezes contraditória e ríspida, por vezes doce e heroica. O príncipe é, nesse sentido, ao modo como surge no romance, uma personagem prenhe de sentidos ligados ao Romantismo: o amor pelas mulheres, o donjuanismo (tanto na acepção do conquistador quanto na de ruptura com as regras sociais), o amor pela nação e o amor pela liberdade. Nesse momento do romance, o narrador apresenta como a garota passava a ser o foco dos sentimentos do jovem príncipe: “La francesa no era uma más de sus muchas conquistas, outra que se había rendido a sus pies incondicionalmente. Esta vez era distinto.” (MORO, 2011, p. 31). Alude-se também à resistência da garota à abordagem do príncipe, cuja paixão se intensificava pelo fato de a mão da bailarina ser contraria ao relacionamento. O fragmento a seguir permite perceber o tom Romântico que perpassa a narrativa, integrando o sentimento sublime com a visão quase edênica da paisagem, que passa a ser reflexo do mundo interior do protagonista: Sobre la arena blanca y caliente se descubrieron desnudos por primera vez, rodeados de la beleza arroladora y salvaje de la bahía con sus aguas turquesa, sus islas pequeñas, volcánicas, en forma de cúpulas que salían del mar como por encanto, algunas sólo roca, otras rodeadas de palmeras (MORO, 2011, p. 33) Pedro e Noémie se encontravam com frequência, tornam-se cada vez mais íntimos, começam a ter relações e planejar um futuro juntos. O sentimento iludido do amor da juventude é percebido nos modos como se apresentam os pensamentos do príncipe herdeiro: “Sí, era la mujer de su vida. Tan convencido estaba de ello que así la presentaba: «Mi mujer.» Inocente don Pedro, se creía un hombre libre” (MORO, 2011, p. 34). A seriedade do relacionamento passa, então, a deixar o Rei Dom João aflito, pois Pedro deveria se casar com alguma princesa europeia, de modo a fortalecer laços diplomáticos do Reino. Conversando com o seu filho, em um dos raros momentos de proximidade, o Rei interpela o jovem apaixonado: “Pedro, el Imperio somos nosotros. Será tuyo algún día./El muchado le escuchaba, serio y cabizbajo” (MORO, 2011, p. 67). Ressalta o papel do príncipe frente à Coroa, frente ao destino político do Reino; o seu lugar social começa a pesar contra os seus desejos humanos, criando o atrito entre os seus desejos humanos e as responsabilidades para com o Estado. Dom João e Carlota Joaquina conseguem engendrar o plano para convencer Noémie a deixar Pedro, pois ela estava grávida e a futura esposa, Leopoldina, já estava para chegar ao Brasil. Pedro volta ao casebre no qual estava vivendo com a bailarina, mas apenas encontra uma carta na qual ela lhe dizia que havia cedido pelo bem do príncipe, que não era para que ele a procurasse, renunciasse ao amor que sua condição lhe vetava. Como já mencionado, a reconstrução histórica da personagem se apresenta em certas passagens a partir de uma perspectiva carnavalizante. Isso pode ser observado em momentos como, quando, D. Pedro, desiludido pela perda do primeiro amor, é auxiliado por seu amigo Chalaça a esquecer a jovem francesa: “Olvidar, nunca lo consiguió, pero se desfogó com prostitutas y amigas, mulatas calentitas que rivalizaban en las más dulces perversiones del amor para animar el humor triste del príncipe enamorado.” (MORO, 2011, p. 86). A representação de Domitila de Castro 285 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS e da relação do príncipe com ela também surgem de maneira semelhante, resgatando elementos ligados ao universo do sexo e da sensualidade, rompendo com as imagens de pureza dos heróis e reafirmando o seu caráter humano: Domitila, a pesar de la historia trágica que estaba viviendo en ese momento, era voluptuosa en sus gestos, dulce como sólo una brasileña podía serlo. Su sonrisa, que dejaba ver el contraste entre sus dientes muy blancos y su tez canela, tenía un punto de malicia. (MORO, 2011, p. 254) A personagem é descrita de maneira a salientar a forma como D. Pedro se sentia perto dela. A própria menção à personagem de Domitila já encena elementos problematizadores, pelo fato de haver se tratado da amante “oficial” do Imperador. O narrador heterodiegético, narra esses fragmentos a partir de uma focalização interna, conduzindo um discurso indireto livre, pelo qual a voz da personagem surge em meio à voz do narrador. O romance de Javier Moro também se utiliza da carnavalização ao recontar a Proclamação da Independência (1822). Esse recurso é evidenciado ao apresentar a diarreia que havia acometido o Príncipe em sua viagem a Santos, situação que fez com que atrasassem a partida e que tivessem que fazer paradas durante a viagem para defecar. Em um desses momentos, chega um emissário real anunciando a D. Pedro que um exército chegaria de Lisboa para reprimir qualquer tentativa de resistência por parte do Príncipe e Bonifácio clamava que o Príncipe voltasse ao Rio para ajudar a manter a ordem do país e tentar resistir às Cortes Portuguesas. Após ler os apelos de Bonifácio a que tomasse a postura de defensor do país, Pedro passa a meditar sobre a questão: a inevitável proclamação da independência. Temos um protagonista contido, calmo, pensando sobre a ideia de tornar-se o líder de uma nova nação. O narrador comente, então, que “Ya no podía seguir esperando, el tiempo se le había echado encima.”, o momento decisivo havia chegado para tomar as rédeas da nação. Em seguida, “El príncipe volvió a montar en su caballo. Ya estaba: había tomado la decisión y era irrevocable. Cuando los oficiales de su guardia de honor se le acercaron, les puso al corriente de la situación” (MORO, 2011, p. 263). Narra-se, então, a Proclamação da Independência, com o famoso grito de “Independência ou Morte”. Há, nesse sentido, um enaltecimento da figura histórica do herói, a carnavalização (o fato de a personagem recém estar defecando) acaba por servir como um processo de humanização às avessas; humaniza-se para, ao aproximar do espaço do humano, mostrar que um homem, apesar de seus defeitos, soube fazer diferença na constituição histórica do país. A faceta humana do herói é reforçada ao narrarem-se os conflitos internos da personagem, sua angústia entre tomar a defesa do Brasil e ir contra o seu país de origem, Portugal. CONCLUSÕES O romance de Javier Moro, em sua reconstrução da história brasileira, apresenta a intimidade das personagens históricas, organizando-se, dessa maneira, segundo as características de um novo romance histórico, conforme colocado por Menton (1993). Rompe-se, então, com a imagem cristalizada do herói, trazendo-o 286 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS ao universo do humano do térreo, o que o ocorre no caso pela narração do ato sexual e da exploração de possíveis imagens dos desejos humanos da personagem histórica em sua reconfiguração ficcional. Essas passagens do romance visam ao rebaixamento das figuras históricas; o acontecimento histórico perde a imagem estática de oficialidade e se torna mais vivo e mais dinâmico: [...] rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeiase simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. (BAKHTIN, 1987, p. 19). A carnavalização possibilita, dessa maneira, uma nova mirada crítica sobre os eventos do passado; incorre no rebaixamento para, com isso, estabelecer uma nova ordem de sentidos, renovando as perspectivas sobre a história. No caso do romance de Javier Moro, entretanto, esses recursos típicos do romance histórico contemporâneo acabam servindo, ao mesmo tempo, a um processo de humanização às avessas, que parece conduzir, nesse sentido, a um reforço da imagem heroica. No contraste com as atitudes e características baixas da personagem, as atitudes heroicas tomam uma ênfase especial, que de outra maneira não se destacaria tanto aos olhos do leitor. Nessa tensão entre o humano e o heroico, articulam-se também releituras de mitos literários hispânicos na reconstrução ficcional da personagem histórica de D. Pedro, reiterando elementos tanto do Don Juan (o caráter conquistador e a luta contra as normas) quanto de Don Quijote (o lado heroico, altruísta e utópico). REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1987. GENETTE, G. Discurso da narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins. Lisboa: Arcádia, 1979. MENTON, S. La nueva novela histórica de la América Latina: 1979-1992. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. MORO, J. El imperio eres tú. Barcelona: Editorial Planeta, 2011. WATT, I. P. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robson Crusoe. trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997 287 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS SOBRE O RISO E SUA CONSTITUIÇÃO NA LITERATURA Toani Caroline Reinehr54 RESUMO O objetivo de nossa pesquisa, em desenvolvimento no Mestrado em Letras, é estudar a reconstrução das imagens de Deus e do Diabo, de Adão e de Eva, de Maria e de José, de Caim e de Lilith, de Jesus e de Maria Madalena, das personagens míticas a que elas aludem, pretendemos observar como se dá esse processo nas obras Caim (2009) e Evangelho segundo Jesus Cristo (2005), do escritor português José Saramago (1922-2010). Para isso, nosso olhar será direcionado, principalmente, à questão do riso, da paródia, da mímesis e da ambivalência. Neste trabalho, apresentaremos uma parte da pesquisa, procurando refletir especificamente sobre a questão do riso na obra de arte literária. Fenômeno perturbador, o riso pode, por meio da inversão, dessacralizar, promovendo um rearranjo da representação que temos do mundo e do outro. PALAVRAS-CHAVE: riso; Bergson; comédia. INTRODUÇÃO A comédia tem sua origem, como aponta Aristóteles (1973), nos solistas dos cantos fálicos, ligada à dança e ao improviso, ao ambiente festivo desde o princípio. É interessante notar que, na disputa que o Estagirita nos apresenta, ao comentar a etimologia da comédia e os povos que a si reclamavam o título de “genitores” do nome, alguns dórios que viviam na região do Peloponeso, “[...] chamam kômai às aldeias que os atenienses denominam dêmoi, e que os ‘comediantes’ não derivam seu nome de komázein, mas, sim, de andarem de aldeia em aldeia (kómas), por não serem tolerados na cidade [...]” (ARISTÓTELES, 1973, p. 445). Essa passagem da Poética, revela-nos o caráter ambulante, errático dos primeiros comediantes. Traço que se manterá por longo tempo, pois ainda que muitas cortes tivessem nela espaço cativo (pois que tinha acesso ao rei) para comediantes, como é o caso da 54 Mestranda em Letras na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), campus Cascavel. Bolsista CAPES. A pesquisa é orientada pela profa. Dra. Adriana Aparecida de Figueiredo Fiuza. E-mail: [email protected] 288 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS personagem do bobo, a realidade da maioria dos comediantes ainda os fazia migrar, no final da Idade Média, de povoado em povoado, e, logo, já de burgo em burgo, montando seu palco improvisado no meio da pequena praça. Mesmo em nosso tempo, podemos dizer que mantém-se o nomadismo: nos palhaços dos circos familiares do Brasil e nas companhias de teatro mambembe, por exemplo. METODOLOGIA Procurando estabelecer relações entre textos formadores da matriz judaicocristã e suas releituras produzidas por José Saramago, nosso trabalho se insere na perspectiva da Literatura Comparada. Não objetivando abarcar um universo mensurável de releituras da tradição judaico-cristã pela literatura; preocupando-se, no entanto, em investigar, de maneira mais detalhada e profunda — considerando a tradição crítica a respeito do riso —, o processo de reelaboração das personagens míticas em dois romances de José Saramago, a pesquisa que desenvolvemos se classifica como qualitativa. Além disso, nosso trabalho é de caráter bibliográfico, pois utiliza-se de textos teóricos e literários para investigar a constituição histórica do riso e para analisar as obras de Saramago. RESULTADOS E DISCUSSÃO O riso é humano. Isso quer dizer que é ele fenômeno que se manifesta apenas entre os homens, ainda entende-se que não é dado aos outros animais serem cômicos — “se algum outro animal ou um objeto inanimado consegue fazer rir, é devido a uma semelhança com o homem, à marca que o homem lhe imprime ou ao uso que o homem lhe dá” (BERGSON, 2001, p. 3). Assim, podemos classificar o homem como um animal que sorri. Mas como e do que rimos? Em que situações ése cômico? E além: qual nossa intenção quando rimos? Essas perguntas inquietaram o filósofo francês Henri Bergson (1859-1941) em seu ensaio sobre o riso, publicado primeiramente em forma de artigos, entre fevereiro e março de 1899, na Revue de Paris. 289 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Bergson nos apresenta três características que configuram o riso: 1) o riso é humano — “Não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano” (BERGSON, 2001, p. 2, grifo do autor); 2) o riso é insensível e objetiva a razão — “[...] para produzir efeito pleno, a comicidade exige enfim algo como uma anestesia momentânea do coração. Ela se dirige à inteligência pura” (BERGSON, 2001, p. 4); e finalmente, 3) o riso é social — “Para compreender o riso, é preciso colocá-lo em seu meio natural, que é a sociedade; é preciso, sobretudo, determinar sua função útil, que é uma função social” (BERGSON, 2001, p. 6). Se observamos o riso numa perspectiva história, a partir dos estudos de teóricos sobre o riso, o plano que se revela nos permite apontar que, ao longo da história dos homens, o riso oscilou entre uma posição mais livre, na qual, não raro, os instintos mais selvagens e primitivos conviviam em harmonia com o conservadorismo de uma sociedade ordenada, e entre momentos nos quais o riso foi censurado, riso autorizado, o que implica pedir permissão antes de rir, não o fazendo, o comediante é deixado à margem, perseguido ou mesmo silenciado. E já na Grécia e Roma Antigas, que, para nós, homens politicamente corretos do século XXI, poderiam parecer, com suas festas dionisíacas, estátuas de falo e concursos das nádegas de Vênus, ambientes mais abertos ao riso, houve também momentos em que comediantes foram condenados, em processos oficiais que sentenciaram, algumas vezes, ao exílio ou à morte (cf. MINOIS, 2003). Por outro lado, na Idade Média, quando o domínio da Igreja Católica fez-se mais severo, permitiam-se, conforme comenta Bakhtin (2010), as festas populares, a exemplo da festa dos loucos. Segundo Aristóteles, “[...] a mesma diferença separa a tragédia da comédia; procura, esta, imitar os homens piores, e aquela, melhores do que eles ordinariamente são” (ARISTÓTELES, 1973, p. 444). A comédia é classificada pelo filósofo grego como gênero inferior, portanto, não seria estranho pensar que dela desgostassem os que fossem seus alvos. Mas, quer nos parecer, que, observando a comédia de modo mais amplo, pensando no fenômeno do riso, algo mais temível do que a imagem pública de um legislador ridicularizada, por exemplo, provocava essa aversão aos comediantes. E esse temor maior, que ameaçava não apenas o 290 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS homem ou seu cargo/ofício, ambos transitórios (o primeiro porque finito, e o segundo porque passível de imputar a outro), mas que poderia provocar e/ou abalar um modo de vida inteiro, uma sociedade, para dizer de modo mais claro, fazia com que temessem o riso os que desejassem manter o mundo ordenado, a partir do princípio que os exageros, as paixões, as desmedidas em relação ao estabelecido ameaçariam o equilíbrio desejado. CONCLUSÃO Fenômeno perturbador e perigoso, o riso pode servir como mecanismo de coesão social, de manutenção de uma ordem, mas também pode, pela inversão, dessacralizar. Por um lado, apresenta-se como distração da vida, fazendo com que nos olvidemos momentaneamente de nossa finitude; por outro lado, rimos também da consciência de nossa morte indubitável, riso do homem que percebe que seu mundo é também representação, sendo ele próprio personagem, agora um, no instante seguinte, já transformado, sempre outro, e, ambivalente, sempre o mesmo (ele próprio, o eu, ele outro, o outro dele e o meu). Observamos, em nossa pesquisa, que a obra de arte literária pode contribuir para esse conhecimento do eu e do outro, indissociáveis, uma vez que o eu se faz pelo encontro com o outro. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2010. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2001. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Trad. Maria Elena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNESP, 2003. SARAMAGO, José. Caim. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______. Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 291 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS OS KAINGANG DE RIO DAS COBRAS NAS FOTOGRAFIAS DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO Toni Juliano Bandeira55 RESUMO Os povos indígenas brasileiros, desde os primeiros contatos com os portugueses, passaram a viver uma relação com contornos trágicos, ao notar-se que muitos povos desapareceram nas primeiras décadas da conquista, seja pelas guerras, pelas doenças trazidas pelos europeus – que dizimaram comunidades inteiras – ou por entrarem em conflitos com outros grupos indígenas, motivados por interesses alheios. Uma das formas de documentação e representação do indígena brasileiro é a fotografia. O fotógrafo pode criar representações bastante peculiares, conforme seu olhar sobre o indígena, e, também, demonstrar um olhar caracterizado de acordo ao momento histórico em que está inserido, registrando pelas lentes, o que a sociedade nacional pensa sobre esses povos. Assim, nessa pesquisa, buscaremos analisar de que forma o povo Kaingang, especificamente da Terra Indígena Rio das Cobras – Pr, foi representado na fotografia do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão fundado no ano de 1910, responsável pela execução da política indigenista do Brasil. Na análise das fotografias, tentaremos mostrar que o sentido da fotografia é polissêmico, mas não arbitrário, por ser resultado de relações históricas, refletindo sobre a fotografia enquanto representação, percebendo, também, o modo como ela pode contribuir para os estudos sobre os povos indígenas brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: Fotografia; Povo Kaingang; Rio das Cobras. INTRODUÇÃO Os povos indígenas representam um patrimônio cultural para o país. Não existem “índios”, mas sim povos indígenas, sociedades distintas com organizações sociais muito complexas. Esses povos são cerca de 220 no Brasil, tendo-se aproximadamente 170 línguas vivas. Segundo Aryon Rodrigues, um dos mais importantes pesquisadores das línguas indígenas brasileiras, “é provável que na época da chegada dos primeiros europeus ao Brasil, o número das línguas indígenas fosse o dobro do que é hoje”. (1986, p. 19). Assim, nota-se que muitas línguas Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras – Área de Concentração Linguagem e sociedade – nível de Mestrado e Doutorado – Universidade Estadual do Oeste do Paraná, sob orientação do professor Dr. Paulo Humberto Porto Borges. Bolsista Capes. E-mail: [email protected]. 55 292 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS desapareceram durante a colonização, muitas delas sem que sequer tenham sido conhecidas ou estudadas e documentadas. Neste sentido, minha experiência de pesquisa sobre os povos Kaingang e Guarani do Paraná, em especial da Terra Indígena Rio das Cobras, me fizeram refletir sobre a representação do indígena na fotografia, isso porque, na pesquisa de campo, sempre utilizei a fotografia como forma de documentar esses povos. Na referida área vivem habitantes do povo Kaingang e do povo Guarani, somando-se aproximadamente 3 mil indígenas. Os Kaingang estão divididos em 7 aldeias, as quais seguem: Trevo, Missão, Vila Nova, Sede, Encruzilhada, Taquara e Campo do Dia. Os Guarani vivem em outras três aldeias: Tapixi (Lebre), Água Santa e Pinhal. Esta última pertencente ao município de Espigão Alto do Iguaçú. Esta Terra Indígena é a maior em território paranaense, ela foi homologada por decreto de 29 de outubro de 1991, com 18.681,9806ha, e é também a mais populosa do estado. As temáticas principais da história da fotografia são configuradas tendo-se em conta o contexto histórico em que estão inseridas. Souza (2000) aponta os cinco grandes temas da fotografia do século XIX que persistem no século XX, os quais, segundo o autor, são os seguintes: a) b) c) d) e) Paisagens urbanas; Grandes construções; Grandes guerras; Povos distintos; Retratos de estúdio; Analisando-se a fotografia sobre o indígena brasileiro, nota-se, primeiramente, que no século XIX são bastante escassas as representações que tratam desta temática, situação que se transforma no século XX, quando os povos indígenas passam a ser documentados mais fartamente. METODOLOGIA A pesquisa tem como foco central a análise das imagens do Serviço de Proteção aos Índios referentes ao povo Kaingang da Terra Indígena Rio das Cobras – Pr. Para tanto, estamos trabalhando na seleção e leitura de referências bibliográficas pertinentes para o estudo, as quais darão sustentação à análise. Procedemos a um levantamento de dados no acervo do Museu do Índio e encontramos 72 fotografias que documentam a Terra Indígena Rio das Cobras, as quais pertencem ao Serviço de Proteção ao Índio, datadas no ano de 1942. Juntamente às fotografias, trabalharemos com relatórios, cartas, ofícios, entre outros documentos do SPI relativos ao período em que foram feitas as fotografias. Apesar de não ser possível saber o autor das fotos, elas representam os objetivos do órgão indigenista nacional. 293 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS RESULTADOS E DISCUSSÃO Analisando-se a fotografia sobre o indígena brasileiro, nota-se, primeiramente, que no século XIX são bastante escassas as representações que tratam desta temática. As primeiras imagens foram feitas na França, por E. Thiesson, e retratavam dois índios botocudos levados para serem apresentados em eventos científicos (TACCA). Os índios, naquela época considerados “selvagens”, causaram determinado impacto na sociedade intelectual francesa, sendo que foram tema de “relatórios e acalorados debates na sessão de verão da Academia de Paris em 1843. Depois da discussão acadêmica, a decodificação: apalpados, medidos e enquadrados nos cânones do discurso institucional da Antropologia Física, além de registrados pela Sociedade de Geografia” (Morel, 2002). No ano de 1865, Albert Frisch realizou nos arredores de Manaus, as primeiras imagens de indígenas brasileiros ao ar livre, dando uma ideia do habitat em que eles viviam, vendo-se nelas a casa dos índios e, ao fundo, a floresta. Pelos equipamentos fotográficos disponíveis na época, é provável que os índios tiveram de ficar imóveis por um tempo, para que as fotografias não ficassem borradas. Estas imagens representam um grande salto na representação do indígena, já que ele deixa de ser levado ao estúdio fotográfico para ser retratado no ambiente onde vive, de modo que o etnográfico incorpora contexto e cultura e não há o deslocamento espacial até o estúdio (TACCA). Alguns anos mais tarde, em 1875, Marc Ferrez, um dos mais importantes fotógrafos brasileiros do século XIX, realiza, também – tal como Thiesson – imagens dos Botocudos da Bahia. Ao analisar-se as fotografias feitas deste grupo indígena, é possível perceber que os índios eram fotografados pelo caráter exótico que denotavam, por serem, precisamente, povos distintos, e mais do que isso, pelo interesse e necessidade em calcular suas medidas de seres humanos, um estudo antropométrico – até porque, nos primeiros anos da Conquista europeia do continente americano, questionava-se se os índios teriam alma, problema que seria “resolvido” pelo Papa Paulo III, que acabou por afirmar, no ano de 1537, que os índios “eram verdadeiros homens” e, por isso, não deveriam ser escravizados e desprovidos de seus bens, conforme pode-se observar na bula Veritas Ipsa.56 Os Botocudos do Espírito Santo, de acordo com Tacca (2011), foram fotografados, em 1908, por Walter Garbe. Apesar de serem poucas fotografias, elas se destacariam, na opinião de Tacca (2011), “pela proximidade de práticas e gestos culturais, fazendo fogo, catando piolhos em cabeças, tocando flautas ou uma simulação de caça, além de retratos muito descontraídos, sem olhares medrosos perante a câmera, e mais de curiosidade sobre o evento fotográfico”. Assim, a fotografia resulta, também – dentre tantos outros aspectos – do grau de interação entre o fotógrafo e o indivíduo fotografado, aspecto interessante no caso da produção de imagens sobre os povos indígenas, já que o entendimento da fotografia por parte desses povos pode ser bastante distinto daquele apresentado pela sociedade nacional. Tacca destaca ainda que: Leigos que observarem esses conjuntos fotográficos podem ser iludidos com a falsa noção de que os nossos primeiros habitantes eram todos de uma etnia chamada de Botocudos, 56 Disponível em: <http://www.montfort.org.br/bula-veritas-ipsa-2/>. Acesso em: 18 de julho de 2013. 294 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS por somente os mesmos aparecerem nas imagens. Os portugueses nomeavam vários grupos que usavam botoques labiais e auriculares dessa forma, e assim incluíram etnias diversas, grupos linguísticos diversos como Botocudos, entre eles Kaigangues, Xoclengs, Krenaks e Xetás, entre outros (TACCA, 2011). Neste sentido, percebe-se que as primeiras fotografias sobre os povos indígenas brasileiros contribuíram para a formação do imaginário da sociedade nãoíndia sobre essas etnias. Como bem se sabe, no senso comum do brasileiro, o índio autêntico, verdadeiro, é aquele que vive ainda isolado na floresta amazônica, “selvagem”, que não usa vestes, não fala português e se pinta todo dia, como se houvesse jenipapo e urucum para tanta pintura! É por isso que povos de maior tempo de contato, como os Guarani e Kaingang do sul do Brasil, aprenderam que era necessário representar para a sociedade externa o “índio” que ela queria ver. Assim, em reuniões com órgãos de assistência ou em datas comemorativas como o Dia do Índio, por exemplo, a pintura corporal e os cocares são adereços indispensáveis, dado que essa representação é a única válida para a ocasião. Em outros casos, em que há uma maior interação entre o fotógrafo ou pesquisador e a comunidade indígena, esse jogo não se faz mais necessário, pois, sendo assim, o visitante já sabe que a pintura corporal e os cocares podem não ser tão importantes para a autoidentificação de um grupo, possibilitando-se, assim, fotografias feitas em ambientes mais naturais. A representação fotográfica do indígena brasileiro começa a ser diferente no século XX, isso porque o contexto histórico é outro, a sociedade nacional passa a ver os povos indígenas de outra maneira, conforme, é claro, aos interesses do momento. De acordo com Borges (2003): Após a proclamação da república e o conseqüente fim do império, já no início do século XX, os indígenas começaram a ser registrados em sua forma pacificada, vencida, integrada à mão-de-obra nacional da recente república federativa do Brasil. O indígena brasileiro começou a ser fotograficamente documentado de maneira mais sistemática com a Comissão Rondon, através do registro fotográfico e cinematográfico da construção da linha de telégrafos que desbravou o sertão do Mato Grosso. Mais tarde, com a criação do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) em 1910, é este órgão que se encarregou de levar esta tarefa adiante conjuntamente com a Comissão, com a diferença que o SPI trabalhou basicamente com fotografias (imagem estática) e a Comissão continuou privilegiando a produção fílmica (imagem móvel) (p. 5). Nesse sentido, a fotografia do Serviço de Proteção ao Índio mostra, evidendemente, o indígena da maneira como lhe era conveniente. Freund escreve que: 295 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS […] más que cualquier otro medio, Ia fotografía posee la aptitud de expresar los deseos y las necesidades de las capas sociales dominantes, y de interpretar a su manera los acontecimientos de la vida social. Pues la fotografía, aunque estrictamente unida a la naturaleza, sólo tiene una objetividad ficticia. El lente, ese ojo supuestamente imparcial, permite todas las deformaciones posibles de la realidad, dado que el carácter de la imagen se halla determinado cada vez por la manera de ver del operador y las exigencias de sus comanditados. Por lo tanto, la importancia de la fotografía no sólo reside en el hecho de que es una creación sino sobre todo en el hecho de que es uno de los medios más eficaces de moldear nuestras ideas y de influir en nuestro comportamiento (2001, p. 8). Portanto, a fotografia enquanto documento deve ser analisada levando-se em conta o contexto histórico em que está inserida. CONCLUSÕES A pesquisa, em seu estado parcial, nos permite afirmar que a fotografia pode contribuir de maneira significativa para o conhecimento da história dos povos indígenas brasileiros. O Serviço de Proteção ao Índio, que operou de 1910 a 1967, registrou o indígena Kaingang conforme a proposta da política indigenista que seguia, ou seja, sendo integrado à população nacional, como trabalhador brasileiro. Essa representação estava, pois, embasada nos aspectos históricos do país, e essa documentação farta é, sem dúvida, um legado agora de valia imensa para se entender esse momento da trajetória dos povos indígenas do Brasil. REFERÊNCIAS BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Trad. De Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BORGES, P. H. P. Fotografia, história e indigenismo: a representação do real no SPI. 2003. 178 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003. FREUND, G. La fotografía como documento social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2011. RODRIGUES, A. D. Línguas Brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. 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Nos poemas selecionados das obras Jogo de luz (1993) e Essências transfiguradas (2011), a memória não convém como caráter informativo, mas prima pelo envolvimento de rememorar fatos que permaneceram em outro tempo, fazendo refletir sobre a realidade que foi sensoriada para constituir as imagens e a memória lírica, as quais revelam a nostalgia recorrente nos versos justinianos. Esses apontamentos direcionam para reflexões que resultarão na contribuição para a análise da linguagem poética de Chloris Casagrande Justen, uma vez que são os seus poemas que dão lastro para a imaginação simbólica e a memória lírica que são contempladas pelo sujeito poético. Levando em consideração o tema e questionamentos levantados, propomos estabelecer um estudo destacando os recursos poéticos utilizados nos textos das obras Jogo de luz (1993) e Essências transfiguradas (2011), bem como a importância de representações da memória envolvendo os textos poéticos. Como embasamento teórico tem-se as vozes de autores como Gaston Bachelard, Gilbert Durand, Octávio Paz, Aleida Assmann, Ecléa Bosi, Michel Pêcheux, Vera Lúcia Felício. PALAVRAS-CHAVE: Memória; imagens poéticas; poesia. INTRODUÇÃO Nessa pesquisa estuda-se as obras Jogo de luz (1993) e Essências transfiguradas58 (2011) da escritora curitibana Chloris Casagrande Justen. Nos textos se analisará como a imaginação simbólica faz parte do universo poético, e ainda como as imagens poéticas e a memória lírica são fatores essenciais para a análise dos poemas da escritora. 57 Aluna do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Letras, nível de Mestrado, área de concentração em Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Linha de Pesquisa: Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados. Orientador: Professor Antonio Donizeti da Cruz. Endereço eletrônico: [email protected] 58 Obra bilíngue, apresentando como segundo idioma o inglês. 298 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Partindo dessa premissa, realizamos um estudo destacando os recursos poéticos utilizados nas obras Jogo de luz (1993), e Essências transfiguradas (2011), bem como queremos confirmar a importância da leitura e a análise dos textos poéticos, pois “O poema é uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua disposição. Pois bem, o poema é apenas isto: possibilidade, algo que só se anima em contato com um leitor ou um ouvinte.” (PAZ, 2012, p. 33). Os textos poéticos de Chloris Casagrande Justen apresentam imagens poéticas e símbolos que dão lastro à memória lírica por meio das palavras e da simbologia presentes na obra da escritora. Para tanto, é imprescindível salientar que “[...] a poesia é transcendência, contemplação, força que edifica e revigora o homem frente às vicissitudes da vida.” (CRUZ, 2012, p. 66). Dessa forma, a análise que envolve esse estudo mostra também a importância dos textos poéticos como modo de elevação do pensamento. Na obra da poeta podem ser detectadas experiências vivenciadas por ela, mostrando que a literatura muitas vezes, apresenta novos sentidos à realidade, pois a obra de arte “[...] Não é o resultado da experiência individual, mas social. Um único indivíduo não pode dar conta da realidade. O poeta consegue ser o porta-voz da sua classe, ou do futuro.” (SAMUEL, 2002, p.13). Sendo assim, a literatura é um meio que eleva o pensamento do homem, torna-o mais crítico e o impulsiona a evoluir intelectualmente. A escritora Chloris, por meio de sua poesia contribui significativamente para a literatura. Em relação à poesia Octavio Paz tece a seguinte reflexão: Todas as artes, especialmente a pintura e a escultura, por serem formas, são coisas; por isso podem ser guardadas, vendidas e transformadas em objetos de especulação monetária. A poesia também é coisa, mas, é muito pouca coisa: está feita de palavras, uma lufada de ar que não ocupa lugar no espaço. Ao contrário do quadro, o poema não mostra imagens, nem figuras: é um conjuro verbal que provoca no leitor, ou no ouvinte, um fornecedor de imagens mentais. A poesia se ouve com os ouvidos mas se vê com o entendimento. Suas imagens são criaturas anfíbias: são ideias e são formas, são sons e é silêncio. (PAZ, 1993, p. 143) O poema não é interpretado como outras formas de linguagens, ele tem suas peculiaridades e recursos distintos a serem explorados, por isso se distingue das outras artes. Chloris Casagrande Justen, por meio de seus poemas exprime uma linguagem marcada pela subjetividade, e faz refletir sobre os temas pelos versos poéticos, que se utilizam de metáforas com um olhar diferenciado sob a lírica da escritora. METODOLOGIA Para este estudo têm-se como objetivos analisar a poesia de Chloris Casagrande Justen, investigando a imaginação simbólica e a memória lírica presentes nos textos. Pretende-se também identificar o significado dos elementos simbólicos e sua relevância para a compreensão da poética da escritora; discutir como a memória lírica é representada nas 299 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS obras em estudo e localizar diferenças e semelhanças entre poemas, compreendendo o estilo de linguagem utilizado nos textos poéticos. Para analisar a poesia de Justen deve-se refletir sobre os temas por meio da linguagem simbólica, bem como compreender o processo que envolve a linguagem poética, os símbolos e a memória com um olhar diferenciado, olhar que traz significados distintos para a poesia. Essas indagações direcionam para reflexões que resultarão na contribuição para a análise dos poemas de Chloris Casagrande Justen. Porém, é o texto literário da poeta que é observado para responder todos os questionamentos, uma vez que são os seus poemas que dão lastro para a imaginação simbólica e a memória lírica que são contempladas pelo sujeito poético. As imagens produzidas pela palavra poética são os elementos encontrados nos textos da artista, sendo que a fenomenologia “[...] obriga a ativar a participação da imaginação criadora, pois o objetivo de todo fenomenologia é colocar, no presente, o presente da imagem.” (BARBOSA, 2004, p. 48) que constitui principalmente, a formação social e a memória, como meio de perdurar acontecimentos do tempo que é abordado de modo central nos temas justinianos; comuns são as metáforas e elementos que a ele remetem. Desse modo, na abordagem do tempo como tema inscreve-se a reflexão acerca da memória e “Os sonhos, os pensamentos, as lembranças formam um único tecido” (BACHELARD, 1993, p. 181) que foram transpostos para os textos poéticos. O trabalho é desenvolvido a partir da análise comparativa e de conteúdo das obras Jogo de luz e Essências transfiguradas da poeta curitibana Chloris Casagrande Justen. Os procedimentos de levantamento, análise e interpretação estão fundamentados em teorias que exploram a imaginação simbólica, a memória lírica e o universo poético a partir dos pressupostos teóricos de Gaston Bachelard (1988a, 1988b, 1993), Gilbert Durand (1997), Octavio Paz (1993, 2012), Guilles Deleuze (2003), Michel Pêcheux (1999), Ecléa Bosi (1979), Aleida Assmann (2011), Antonio Candido (1976), Roger Samuel (2002), Vera Lúcia G. Felício (1994), Elyana Barbosa (2004), Teresa Teixeira Britto (2007), Antonio Donizeti da Cruz (2010, 2012). RESULTADOS E DISCUSSÃO Com essa pesquisa pretende-se destacar os textos poéticos da escritora Chloris Casagrande Justen para os estudos que compreendem a investigação da memória e da imaginação simbólica, assim como, difundir seus textos para que sua poesia seja reconhecida e estudada no ensino de todos os níveis. CONCLUSÕES O texto poético por meio das imagens e da memória apresenta novos sentidos à realidade e expõe o social. A utilização da memória na poesia é um reconstruir de memórias históricas, que o sujeito poético traz pelas palavras que estão subjacentes ao corpo do texto. A memória acaba com o pensamento do nunca mais, pois no momento em que se lembra de algo, reconstrói uma nova realidade em que está ligada, ao mesmo tempo, ao passado e ao presente: 300 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS [...] uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais históricos e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização... Um espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discursos. (PÊCHEUX, 1999, p. 56) Por meio do canto gratuito e imagético pluralístico, a poesia de Chloris Casagrande Justen convida o leitor a mergulhar na subjetividade de cada palavra. O universo imagético e simbólico dos poemas aponta para o caminho da transformação, as imagens revelam uma multiplicidade de sentidos inesgotáveis apresentando uma vivência em que se interpõem perdas e ganhos, trevas e luz que são revivificadas pela memória. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. BARBOSA, Elyana. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação. Petropólis, RJ: Vozes, 2004. CRUZ, Antonio Donizeti. O universo imaginário e o fazer poético de Helena Kolody. Cascavel: EDUNIOESTE, 2012. PAZ, Octavio. A outra voz. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1993. _______. O arco e a lira. São Paulo: Cosac Naify, 2012. PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre [et al]. Papel da Memória. Tradução e introdução de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999. SAMUEL, Roger. Novo manual de teoria literária. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora vozes, 2002. 301 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS OSWALD DE ANDRADE: DO MANIFESTO Á CRÍTICA LITERÁRIA E ARTÍSTICA Wallisson Rodrigo Leites59 RESUMO Esta pesquisa tem como proposta realizar um estudo sobre as formulações acerca do conceito de antropofagia e a maturação desta formulação ao longo da produção de Oswald de Andrade, considerando-se um recorte da produção crítica e literária do escritor. Para isto, propõem-se partir dos Manifestos da Poesia Pau-Brasil (1924), e Manifestos Antropófago (1928) – textos fundadores da ideia de antropofagia – para, na sequência, verificar na produção pós 1930, especificamente nos textos correspondentes à Trilogia da devoração do teatro oswaldiano, O homem e o cavalo (1934), A morta (1937), O rei da vela (1937) e a esquete: Panorama do fascismo (1934), a reelaboração artística do conceito de antropofagia cultural, modo, como se referem críticos contemporâneos ao conceito elaborado por Oswald de Andrade. Conjuntamente ao estudo analítico de fragmentos das peças, em que se pode observar a estetização do conceito, serão estudados textos da crítica oswaldiana, pós 1930, observando-se como a formulação conceitual sobre a estética antropofágica aparece na escritura oswaldiana, a exemplo de crônicas, artigos, ensaios, cartas e outros textos críticos, material publicado postumamente nos livros Ponta de lança (1999), Estética e Política (2003) e A utopia antropofágica (2005). Na vasta produção criativa e critica pós 1930, ainda pouco lida e estudada, observase um Oswald afastado do grupo dos modernistas de 1922, refletindo sobre sua própria produção, sobre o desenvolvimento do pensamento antropofágico e sobre o movimento modernista no Brasil, um “país bárbaro e tecnizado”. INTRODUÇÃO Antes de ser conhecido por sua produção dramatúrgica, Oswald já havia marcado seu nome entre os grandes autores de seu tempo com o Manifesto Antropófago (1924) e com o Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1928), textos reveladores dos ideais propostos pelos artistas da época. Nesses textos, o autor discute de forma crítica os modos de se produzir poesia, literatura e arte, atacando as chamadas escolas literárias. Para Oswald de Andrade (1971), a arte está no mundo e se concretiza a partir da livre expressão do pensamento, e não por meio de um pensamento orientado burocraticamente por padrões estéticos que servem ao deleite do burguês, indo de encontro à noção de cânone literário e corroborando a permanência da mentalidade colonial da práxis. 59 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras, área de concentração Linguagem e Sociedade, Linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados – nível de Mestrado– da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, sob orientação da Professora Dra. Lourdes Kaminski Alves. Endereço eletrônico: [email protected]. 302 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Para alcançar tal objetivo, o manifesto propõe a desacralização e a deglutição consciente e crítica de todos os padrões artísticos de uma sociedade coisificada, na qual o próprio pensamento se constitui por meio de uma sistematização lógica e funcional, para, a partir de então, buscar novas perspectivas acerca da compreensão artística e, consequentemente, do mundo, e, sobretudo, de uma identidade nacional, o que remete aos estudos bakhtinianos sobre o conceito de carnavalização que se aproxima das formulações estéticas oswaldianas. “[...] Era preciso inverter o superior e o inferior, precipitar tudo que era elevado e antigo, tudo que estava perfeito e acabado, nos infernos do ‘baixo’ material e corporal, a fim que nascesse novamente depois da morte” (BAKHTIN, 1999, p. 70). Esta é a perspectiva carnavalizada e antropofágica praticada pelos modernistas. Não obstante, “a antropofagia é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade para o alheio, desembocando na devoração e absorção da alteridade” (PERRONE-MOISÉS, 1995, p.95). A proposta modernista propõe pensar a arte na perspectiva da desestabilização, prevalecendo, nas obras desse período o caos e a instabilidade dos objetos representados. Vale ressaltar que, por tratar-se de uma estética que busca deglutir aquilo que já foi produzido e assimilá-lo, a antropofagia requer estudos de base intertextual pautada nos pressupostos da Literatura Comparada, a qual traz contribuições fundamentais no que se refere ao estabelecimento de relações entre obra e sociedade de distintos períodos. No campo da Literatura Comparada e dos pressupostos da intertextualidade, buscar-se-ão as contribuições de Carvalhal e Coutinho (1994), Nitrini (2000) e Kristeva (1974), Samoyault (2008), entre outros que auxiliarão nas investigações acerca das congruências e divergências no conjunto da produção artística e crítica oswaldiana. A fundamentação teórica será utilizada no processo de análise e de interpretação, não sendo, pois tratada separadamente no texto da dissertação. Com relação à transgressão de valores, é de fundamental importância a contribuição dos estudos da atual crítica brasileira e latino americana por refletirem sobre questões como a hibridização cultural, marcada pela assimilação de caracteres de culturas distintas a partir do embate/enfrentamento destas, a exemplo de Zilá Bernd (1998), (2003). Estudos de Antonio Candido (1976) pela abordagem dialética sobre a literatura, cultura e sociedade, Silviano Santiago (2000), por tratar do “entre lugar do discurso latino-americano”, Leyla Perrone-Moisés (1995) por refletir sobre a antropofagia como abertura e a receptividade para o alheio, para a compreensão da alteridade, Eduardo Coutinho (2004), ao tratar no contexto latinoamericano, da tomada de consciência” por parte dos pensadores do continente, apontando a quebra com a dicotomia centro/periferia, Walter Mignolo (2003), que apresenta um estudo sobre colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Pretende-se então, a partir do presente estudo, observar como a estética antropofágica se configura nas obras de Oswald Andrade, atentando para uma possível (re)significação do conceito nos distintos períodos de produção do autor e em que medida a produção crítica atual reafirma a concepção de uma antropofagia cultural, como perspectiva estética original para a produção crítica e literária no contexto latino americano. METODOLOGIA 303 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de cunho investigativo e interpretativo, com base na própria crítica oswaldiana e de teóricos que abordam a chamada “crítica de escritores”, a exemplo de Barthes (2007), Maurice Blanchot (1987), Leyla Perrone-Moisés (2005), Eric Bentley (1991), entre outros que darão suporte á interpretação das obras teatrais e do conjunto de textos a serem analisados. Pretende-se, a partir deste percurso de leitura e de “escuta” da obra oswaldiana, livre da crítica especializada e muitas vezes “determinista”, observar em que medida a formulação do conceito de antropofagia vai consolidando-se como perspectiva crítica e estética até as formulações teóricas assumidas na contemporaneidade sobre as contribuições da antropofagia cultural no contexto latino americano. RESULTADOS E DISCUSSÃO No contexto Brasileiro, uma nova forma de perceber o mundo e as produções artísticas e culturais se dá principalmente com a estética da antropofagia de Oswald de Andrade, que, sob influência das Vanguardas Europeias, propunha a deglutição dos padrões artísticos burgueses da época para se repensar a cultura no país. No entanto, parte desta produção ainda requer estudos, a exemplo do teatro oswaldiano e de toda a sua produção pós 1930, pela proposta estilística que contempla, respaldada na busca de novas significações para a história e para a cultura brasileira, a partir da paródia, da sátira e da intertextualidade. Para Coutinho: Agora, contrariamente ao que ocorria antes, o texto segundo no processo da comparação não é mais apenas o ‘devedor’, mas também o responsável pela revitalização do primeiro, e a relação entre ambos, em vez de unidirecional, adquire sentido de reciprocidade, tornando-se, em conseqüência, mais rica e dinâmica (COUTINHO, 1995, p. 20). O movimento modernista serviu, então, como marco inicial para esse processo de ressignificação do passado, a exemplo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil60, publicado no Correio da Manhã em 1924, e do Manifesto Antropofágo 61 , publicado na Revista de Antropofagia, em 1928, de Oswald de Andrade. Estes manifestos, juntamente com a Revista se colocam como fontes de referências fundamentais para a compreensão da produção artística nacional contemporânea latino-americana. CONCLUSÕES Em síntese, a essência dos manifestos oswaldianos encontra-se na desconstrução antropofágica da cultura estrangeira para o retorno a um Brasil “pueril”, onde se é possível criar um pensamento e um modo de conceber a arte e a cultura autenticamente nacional. Entretanto, esse processo primário de retorno a um passado perdido enquanto conceito de antropofagia é posteriormente reelaborado Klaxon, mensário de arte moderna. Introdução de Mário da Silva Brito. “Escolas e ideias”. São Paulo: Livraria Martins Editora/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976 (edição fac-símile). 61 Revista de Antropofagia, Ano I, n. I, maio de 1928 (ANDRADE,1990, p.47-52). 60 304 ISSN: 2175-943X ANAIS DO III ENCONTRO INTERMEDIÁRIO DO GRUPO DE PESQUISA CONFLUENCIAS DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA E NAS DIVERSAS LINGUAGENS criticamente e esteticamente, na escritura oswaldiana pós-1930, assumindo novas conotações e diretrizes O teatro oswaldiano é parodístico e elaborado na perspectiva da proposta antropofágica, que busca, a partir da assimilação e da deglutição de uma cultura do passado, fazer com que o homem se reconheça em seu tempo de modo a poder pensar o futuro. Deste modo, pode-se afirmar que a contribuição de Oswald não se restringe à inovação estética, pois também às “revoluções sociais, políticas e filosóficas” (CURY, 2003, p. 26), contempladas em sua obra, levando o homem a repensar a sua cultura na perspectiva da formação de uma identidade nacional. Assim, a antropofagia se revela na produção pós 1930 oswaldiana a partir da carnavalização dos valores sociais, culturas e artísticos instituídos. REFERÊNCIAS ALVES, L. K. “Releituras da tradição e força criadora no teatro de Oswald de Andrade”. In: Línguas&Letras, Número Especial, 1 semestre, 2011. Cascavel: Edunioeste, 2011. _____. “A assimilação ou a transgressão do código linguístico, cultural e histórico em Oswald de Andrade”. In Línguas&Letras, Número 21, 2 semestre, 2010. Cascavel: Edunioeste, 2010. ANDRADE, Oswald de. Obras completas-7. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. _____ O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003. _____. Panorama do fascismo; O Homem e o cavalo; A morta. São Paulo: Globo, 2005. _____. Ponta de lança. São Paulo: Globo, 2004. _____. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Trad. Yara Frateschi Vieira. 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