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Celso Leopoldo Pagnan Doutor em literaturas de língua portuguesa Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEM/2012/2013 Londrina, 2012 1a edição 1 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 1 29/05/2012 15:47:59 Direção-Geral do Sistema Maxi de Ensino e da Maxiprint Mário Ghio Jr. Coordenação do Centro Pedagógico José Milanez Supervisor do Centro Pedagógico Heleomar Gonçalves Secretaria Editorial Rosirene T. M. Castro de Souza Renata Lira Furtado Coordenação de Editoração Walternei Pelisson Machado Coordenação de Impressão e Acabamento Jefferson Requena Assistência Editorial Ana Carla Lira Raposo Revisão Ortográfica Joaquim Luís de Almeida Diagramação Maxiprint Gráfica e Editora Projeto Gráfico José Milanez Revisão Técnica Rebeca Massaro de Lima Impressão Maxiprint Gráfica e Editora 378 P156r Pagnan, Celso Leopoldo. Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEM 2013/2014. Organização Celso Leopoldo Pagnan. — Londrina : Maxiprint, 2012. – 144p. 1. Resenhas – Literatura – vestibular. 2. UEM – vestibular 2012/2013. I. Título. Copyright © 2012 – Todos os direitos de publicação reservados. Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Rosana de Souza Costa de Oliveira • CRB 1366/9. Nos casos em que não foi possível contatar ou finalizar negociação com os detentores de direitos autorais sobre materiais utilizados como subsídio na produção deste livro, a Editora coloca-se à disposição para os devidos acertos, nos termos da Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, e demais dispositivos legais pertinentes. Maxiprint Gráfica e Editora Ltda. Av. Portugal, 155 – Jardim Igapó Fone (43) 3372-1300 / Fax (43) 3372-1310 / 0800 400-7654 CEP 86046-030 – Londrina – Paraná [email protected] www.sistemamaxi.com.br 2 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 2 29/05/2012 15:48:00 ATENÇÃO! Este volume da coleção Resenhas destina-se especificamente aos candidatos aos cursos de graduação da UEM – Universidade Estadual de Maringá (PR) nos vestibulares de 2012-2013. Estas resenhas, porém, não têm a intenção nem a pretensão de substituir o texto integral das referidas obras, cuja leitura consideramos indispensável não apenas para o vestibular, mas para a formação básica em Literatura para os que pretendem exercer qualquer profissão em nível superior, pois os textos aqui abordados constituem o cerne da literatura luso-brasileira e por isso são representantes exemplares de épocas e ideologias que marcam nosso atual modo de ser e o explicam. Ocorre que detalhes como ambientação da obra, o estilo do autor, a plena caracterização dos personagens, o ritmo da narrativa e a própria “mensagem” da obra, entre outros aspectos importantes, ficarão incompletos para o leitor de uma resenha por mais fiel que esta tente ser, daí nossa recomendação para que estas linhas sirvam de preparação ou de complementação à leitura do texto integral das respectivas obras, pois a intenção do presente volume é abrir caminhos a quem vai lê-las ou preencher eventuais lacunas a quem as leu. Esteja o vestibulando consciente de que nada suprirá a necessidade de leitura integral dos textos. E, como já dissemos, que este livro sirva como introdução ou como complemento a essa enriquecedora atividade que é a leitura integral de uma obra de arte. Prof. José Milanez Coordenador do Centro Pedagógico do Sistema Maxi de Ensino 3 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 3 29/05/2012 15:48:01 ÍNDICE III III IV VVI VII VIII IX X- Poemas escolhidos de Cláudio Manuel da Costa: o nascer do Arcadismo no Brasil ............. 5 Iracema, de José de Alencar: o instinto da nacionalidade .................................................... 12 Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do ponto de vista ......................................... 17 Melhores poemas de Manuel Bandeira - O prosaico e o sublime ........................................ 22 O calor das coisas: identidade e transformação segundo o olhar de Nélia Piñon ................ 29 Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre a modernidade .................................. 36 A falecida, de Nelson Rodrigues .......................................................................................... 42 Dois irmãos, de Milton Hatoum ............................................................................................ 46 Sermões de Padre Antônio Vieira ......................................................................................... 50 Poesias Completas, de Cruz e Sousa .................................................................................... 56 4 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 4 29/05/2012 15:48:01 CAPÍTULO I - Poemas escolhidos de Cláudio Manuel da Costa: o nascer do Arcadismo no Brasil Cláudio Manuel da Costa (1729-1789) nasceu na região da atual cidade de Mariana, em Minas Gerais. À época, era conhecida como Vila do Ribeirão do Carmo. Estudou no colégio dos jesuítas, no Rio de Janeiro. Em seguida, foi para Coimbra e lá prosseguiu os estudos, tendo pensado em ordenarse padre. No entanto, retornou ao Brasil, para Vila Rica (atual Ouro Preto), onde foi nomeado Procurador da Fazenda. Em 1759, passou a participar da Academia Brasílica dos Renascidos, cujos conceitos literários ainda eram movidos pelo Barroco, pelo Gongorismo. No entanto, em 1768 lançou seu livro de poemas intitulado Obras, dando início assim à escola árcade na Colônia. Também colaborou para a fundação de outra academia literária, agora sob a visão árcade, a Colônia Ultramarina, um braço colonial da Arcádia Romana. Cláudio Manuel escreveu esses poemas quando era estudante em Coimbra. Fez severas críticas ao estilo barroco no prólogo escrito para a primeira edição do livro e exaltou o estilo simples e fluente de Camões e do poeta latino Virgílio. Arcadismo é uma referência à Arcádia, local lendário situado na Grécia e que teria como habitantes pastores. Isso denotaria um aspecto rústico, além de expressar a vida simples e bucólica, temas explorados pela poesia do século XVIII, particularmente por Cláudio Manuel. Por conta disso, os poetas passaram a utilizar pseudônimos inspirados em nomes de pastores. Tratase de mera convenção. Por exemplo, Cláudio Manuel da Costa assinava seus poemas como Glauceste Satúrnio; Silva Alvarenga, como Alcindo Palmireno; Basílio da Gama era o Termindo Sipílio; e Tomás Antonio Gonzaga, como Dirceu. Eventualmente, adotavam outros pseudônimos. Basicamente, da Costa publicou Obras e deixou inacabado um poema épico intitulado Vila Rica. Há, no primeiro livro, os seguintes gêneros poéticos, e sua respectiva quantidade: a) Soneto (100): trata-se de um tipo de poema lírico, gênero criado pelo italiano Lentino (século III), mas tornado conhecido por Petrarca (século XIV), composto normalmente por doze versos, divididos em dois quartetos e dois tercetos. b) Epicédio (3): elogio fúnebre. c) Fábula (1): poema que veicula uma lição de moral. d) Écloga (20): composição poética de caráter pastoril. e) Epístola (6): poema em forma de carta, endereçada normalmente a um protetor intelectual, um amigo. f) Romance (5): poema narrativo, de versos. Aqui não se trata do romance em prosa. g) Cançoneta (6): poema em que se tem um assunto simples ou mordaz. h) Cantata (8): pequeno poema dialogado. Como o nome indica, seria para cantar, com acompanhamento musical. i) Ode (1): poema de exaltação, hino. Como se observa, são mais de 150 poemas, o que torna impossível uma análise pormenorizada de cada um dos textos. Vamos, de qualquer modo, estabelecer pontos de contato e destacar as invariantes, aquilo que se repete e que pode ser considerado um padrão poético. No soneto de abertura, Cláudio conclama os montes, a natureza, a acompanhá-lo na empreitada de cantar, de poetar. Reconhece não ter o talento divino, que caracteriza a capacidade lírica de Anfião, cuja lira recebeu de Apolo, nem a de Orfeu, filho de Apolo. Trata-se de uma estratégia para revelar a devida humildade de um escritor que vive na Colônia, o que o impediria, teoricamente, de concorrer com o escritor da Metrópole ou os da tradição europeia. Para cantar de amor tenros cuidados, Tomo entre vós, ó montes, o instrumento; Ouvi, pois, o meu fúnebre lamento; Se é que de compaixão sois animados: Já vós vistes que aos ecos magoados Do trácio Orfeu parava o mesmo vento; Da lira de Anfião ao doce acento Se viram os rochedos abalados. Bem sei que de outros gênios o Destino, Para cingir de Apolo a verde rama, Lhes influiu na lira estro divino: O canto, pois, que a minha voz derrama, Porque ao menos o entoa um peregrino, Se faz digno entre vós também de fama. Trata-se de uma temática recorrente, isto é, que vai ser retomada em outros sonetos e poemas de Cláudio. Seu objetivo é revelar o contraste entre a vida cultural na Europa e a que se podia ter na Colônia. É o que acontece nos sonetos II, LXII e LXXXIII, por exemplo. Também de certa forma o tema aparece na “Fábula do Ribeirão do Carmo”. O título é uma referência ao nome original com que era conhecida a posterior cidade de Mariana, em Minas Gerais. O tema nesse poema é na verdade a desilusão amorosa. No entanto, aquele contraste é referido em diversos momentos. Eis uma estrofe: Aonde levantado Gigante, a quem tocara, Por decreto fatal de Jove irado, A parte extrema, e rara Desta inculta região, vive Itamonte, Parto da terra, transformado em monte. Ao escrever esses poemas (na década de 50 e 60 do século XVIII), é provável que o autor não tenha articulado um discurso patriótico, nacionalista. É bem verdade que depois foi incluído pela devassa (processo judicial) como integrante do movimento Inconfidente, que, entre outras coisas, tinha a intenção de tornar o país independente. De qualquer modo, relido à luz da Independência nacional, no século XIX e seguintes o poeta passou a ser visto como um pré-nacionalista, mesmo que não tenha se expressado com tal intuito. É o caso do soneto LXII: Torno a ver-nos, ó montes; o destino Aqui me torna a pôr nestes outeiros, Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Pelo traje da Corte rico e fino. Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Os meus fiéis, meus doces companheiros, Vendo correr os míseros vaqueiros Atrás de seu cansado desatino. Se o bem desta choupana pode tanto. Que chega a ter mais preço, e mais valia, Que da Cidade o lisonjeiro encanto; 5 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 5 29/05/2012 15:48:02 Aqui descanse a louca fantasia; E o que até agora se tornava em pranto. Se converta em afetos de alegria. Nesse soneto, o eu lírico fala claramente que permanecerá fiel ao amor que verte pela pastora, a despeito de ela fazer pouco caso, pouco se importar com isso. Observem-se também as referências aos elementos bucólicos, tipicamente árcades (cabana, montes, vale, prado). O último verso ilustra também uma característica estética de Cláudio Manuel, que é sua origem barroca. Voltaremos a tratar do assunto, mas apenas para adiantar: na poesia barroca era comum o uso de gradação, especialmente nos versos conclusivos. Apenas para lembrar, citemos o seguinte verso de Gregório de Matos: “Em terra, em cinzas, em pó, em sombra, em nada”. É o que ocorre no último verso do soneto IX, onde há uma gradação de monte a prado. Há diversos outros sonetos com essa mesma visão, isto é, a do eu lírico decepcionado com sua pastora, enganado ou desprezado por ela. Destaque para alguns: III, XVI, XVII, XXIII, XXV, XXVI, XXVIII, XXIX, XXXII, XXXIV, XL, XLI, XLIV, LXIX, LXXI etc. Exemplos: No poema, o eu lírico contrapõe os valores da natureza aos da vida urbana; uma contraposição à cultura urbana, ao local da política e das relações sociais. É verdade que se trata da busca de um ideal, isto é, o autor, urbano, não pretende se mudar para o campo; o que expressa é uma visão idealizada do campo, como locus amoenus (lugar agradável), suave e ameno, aprazível e perfeito para se viver. Isso também significa a contraposição entre a vida na Metrópole (mundo urbano) e a vida na Colônia (natureza). A mesma oposição está presente no soneto XIV. Em outros dois sonetos, no VIII e no XXII, há de novo uma relação entre a natureza local e a natureza clássica, ou seja, referência àquilo que possibilitaria elevar o poema do árcade mineiro segundo os preceitos do Arcadismo central, focado na cultura europeia. Por esse motivo, ao lado do ribeirão do Carmo há o Tejo ou o Mondego, rios portugueses; em meio à natureza mineira, com seus montes, grupiaras e tudo mais, aparecem o álamo, uma árvore mais comum em zonas temperadas, as ninfas e outras entidades mitológicas greco-romanas. Outro ponto tipicamente árcade e que está diretamente relacionado a essa dicotomia entre cultura local e europeia é o da adoção da perspectiva de um pastor. O nome adotado por Cláudio Manuel da Costa é o de Glauceste Satúrnio. Ao longo dos diversos poemas, há referência a pelo menos dez nomes de pastoras. Os dois nomes mais comuns são Nise e Lise, mas também há Daliana, Eulina, Antandra, Almena, Anarda, Francelisa, Brites e Elisa. O que une todas essas pastoras é a temática recorrente. No caso, trata-se basicamente de como o eu lírico teria sido enganado pelo falso amor da amada. São pelo menos trinta sonetos (além da fábula e das cantatas) em que a pastora é descrita de maneira indigna do amor vertido a ela pelo eu lírico. Ao contrário, pois, de Marília de Dirceu, em que Tomás Antonio Gonzaga louva o amor perfeito entre o casal (ao menos em sua primeira parte, antes da prisão e do degredo), Cláudio prefere retomar as desilusões amorosas tipicamente camonianas em que, para tão grande amor, se apresentava tão curta vida. Ou, por outra, ao amor perdido, o eu lírico expressa o desejo de ainda vivê-lo. [...] Mas que modo, que acento, que harmonia Bastante pode ser, gentil pastora, Para explicar afetos de alegria! Que hei de dizer, se esta alma, que te adora, Só costumada às vozes da agonia, A frase do prazer ainda ignora! (soneto XVII) Tu sonora corrente, fonte pura, Testemunha fiel da minha pena, Sabe, que a sempre dura, e ingrata Almena Contra o meu rendimento se conjura: [...] (soneto XXIII) Nesse soneto, como em outros tantos, o eu lírico segue um procedimento que era bastante comum nas cantigas de amigo do período trovadoresco: o eu lírico tem na natureza uma confidente. No entanto, aqui, o eu lírico é masculino, ao contrário daquelas cantigas, que apresentavam eu lírico feminino. Também é preciso reafirmar que essa relação entre a voz do poema e a natureza é uma característica árcade, uma expressão da vida bucólica, exaltada como o mundo ideal. Também era uma prática comum em Petrarca, poeta medieval que difundiu o soneto no Renascimento italiano. Nos quatro romances, a temática é retomada. Cada um deles tem como título o nome de uma pastora: Lise, Antandra, Alteia e Anarda. Nenhuma amante se salva, isto é, todas desprezam, enganam e humilham os pastores que ousam amar a elas. Vejamos estrofes significativas: IX Pouco importa, formosa Daliana, Que fugindo de ouvir-me, o fuso tomes; Se quanto mais me afliges, e consomes, Tanto te adoro mais, bela serrana. Ou já fujas do abrigo da cabana, Ou sobre os altos montes mais te assomes, Faremos imortais os nossos nomes, Eu por ser firme, tu por ser tirana. [...] E na frondosa ribeira Deste rio, triste a alma Girará sempre avisando, Quem lhe soube ser tão falsa. (Lise) Um obséquio, que foi de amor rendido, Bem pode ser, pastora, desprezado; Mas nunca se verá desvanecido: Sim, que para lisonja do cuidado, Testemunhas serão de meu gemido Este monte, este vale, aquele prado. [...] Tenras ovelhas, Fugi de Antandra; 6 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 6 29/05/2012 15:48:02 Que é flor fingida, Que áspides cria, que venenos guarda. (Antandra) Eu guiarei o gado se tu cantas: Que prosseguindo tu, de meu tormento O excesso ao menos, e o rigor quebrantas. Não me negues, se podes, esse alento [...] Segundo o volto, que neste Rústico penedo ostenta, Cuido, que o fizeram louco Desprezos da bela Alteia. (Alteia) Na “Epístola II” , Fileno escreve a Algano para revelar-lhe a falta que faz. O objetivo maior, porém, é descrever o cenário bucólico onde se desenvolvia a amizade entre eles, além da presença de outros pastores. Não se trata da visão romântica de natureza, mas sim de mostrar uma integração entre a natureza e o pastor. Na falta de um, há o esmorecimento do outro: [...] Não somente o efeito De tão ingrato mal em nós sentimos; Mas, se bem advertimos, Tudo ao grande pesar ficou sujeito: Que fez a ausência tua A saudade em nós razão comua. [...] Ah! Quem sabe, triste gado, Onde a maior homicida Dos corações, e das almas, Convosco agora caminha! [...] (Anarda) O rio, que algum dia Líquida habitação das ninfas era, A cor, que a primavera Nestes frondosos álamos vestia, Tudo perde o seu brio: Não tem o álamo cor, ninfas o rio. [...] No prefácio a Obras, Cláudio Manuel explica que se formara como escritor ainda sob a estética barroca, e isso poderia ser verificado em alguns de seus poemas, fosse no uso excessivo de metáforas, fosse nos jogos de palavras, como as inversões sintáticas, a presença de antíteses ou paradoxos. Com efeito, o poeta que introduziu o Arcadismo no Brasil colonial não consegue se desvencilhar totalmente de alguns preceitos estéticos barrocos. Tal característica pode ser verificada em diversos poemas. Como exemplos, citemos os sonetos XI e LXXVII. Do segundo, destacamos a presença do hipérbato, que é a inversão sintática. Verifica-se, neste poema também, o tema do desengano do mundo, comum nos textos de Camões, que também apresentam certos aspectos próprios do Barroco. Eis o segundo quarteto: Como se pode perceber, nos quatro exemplos a pastora é vista como “assassina” de corações. Outro ponto que se pode notar é a referência aos aspectos bucólicos (ovelhas, rústico, penedo, gado). Essa melancolia pode ser vista também como prenúncio do Romantismo, ainda sem os rompantes sentimentais deste, mas já exprimindo a ideia de como o choque entre o querer e o poder leva à desilusão. Na “Écloga V” , dois pastores, Frondoso e Alcino, conversam sobre a morte de um terceiro, Arúncio. Em forma de diálogo, revelam a tristeza da perda do amigo. O ponto a ser destacado são as referências culturais alternadas entre a natureza colonial e a metropolitana. No caso, representado mais uma vez pelo ribeirão do Carmo e pelos rios Tejo e Mondego: Triste, e funesto caso! As ninfas belas Do pátrio Ribeirão tanto choraram, Que inda alívio não há, nem gosto entre elas. [...] As ninfas do Mondego estou já vendo Descerem para nós com triste pranto. Ou eu me engano, ou elas vêm dizendo: [...] De outro lado igualmente se provoca O Tejo (onde ele viu a luz primeira): E as ninfas do centro úmido convoca. Veste o engano o aspecto da verdade; Porque melhor o vício se avalia: Porém do tempo a mísera porfia, Duro fiscal, lhe mostra a falsidade. [...] Em outros termos, a morte de Arúncio causou tristeza em todos os lugares, tanto na Metrópole quanto na Colônia. O caso sendo verdadeiro ou não (a morte de um ente querido) não importa, o que importa é o motivo para poetar, para desenvolver o texto e expressar-se com desenvoltura e elegância. Outro aspecto é a referência bucólica, típica das éclogas, seja na descrição da paisagem mítica (ainda que com a presença da vida real), seja na nomeação dos pastores e na presença de entidades mitológicas, como as ninfas. Em outra écloga, a XV, Corebo e Palermo conversam sobre as glórias do passado e repassam, cada um, seus momentos de pastores, isto é, de amantes de pastoras e de guiadores do pasto. Mas agora lamentam pela perda. Por isso, identificados pelo mesmo destino, consolam-se e oferecem-se como apoio mútuo: Em ordem direta seria algo como: “O aspecto da verdade veste o engano para avaliar o melhor vício. Porém, a mísera porfia do tempo, duro fiscal, lhe mostra a falsidade”. Em outros termos, a falsidade é desmascarada com o tempo, ela não consegue permanecer para sempre oculta. Quanto ao soneto XI, destaque para a antítese também do segundo quarteto: Formosa é Daliana; o seu cabelo, A testa, a sobrancelha é peregrina; Mas nada tem, que ver coa bela Eulina, Que é todo o meu amor, o meu desvelo: Parece escura a nove em paralelo Da sua branca face; onde a bonina As cores misturou na cor mais fina, [...] 7 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 7 29/05/2012 15:48:02 Que faz sobressair seu rosto belo. [...] poética à mitologia greco-romana (ninfas, Zéfiro, Apolo, etc.) como meio de compor o cenário bucólico. Além disso, há a presença dos pastores, do campo, etc. Por esse motivo, estabelecer um ponto de contato com Jesus Cristo não é difícil. Em especial, pelo fato de Cristo se apresentar como o pastor das ovelhas, aquele que as guia. Esse é o tema de uma das cantatas, a número I, que apresenta como vozes as entidades inanimadas Fé e Esperança. Ambas exaltam Cristo como luz, como o que ilumina a tudo e a todos, por isso pode ser o Guia: Nele, aproximam-se o branco e o escuro, para criar o contraste desejado. Nos sonetos VII e VIII, o poeta trata das coisas fugidias, da efemeridade da vida, tema tão caro aos escritores barrocos. A mudança do mundo, a passagem do tempo são indicativos dessa efemeridade. A única solução para isso é a memória, é a manutenção do tempo que se esvai pela lembrança e pela escrita: Fé. Mas ah! Que de prazer, e de alegria Respirar posso apenas. Todo o campo Florescente se vê. Estão cobertos Os claros horizontes De nova luz, de novo sol os montes. VII Onde estou? Este sítio desconheço: Quem fez tão diferente aquele prado? Tudo outra natureza tem tomado; E em contemplá-lo tímido esmoreço. [...] Esp. Melhor luz não espere ver o mundo jamais. Concorram todos A este luminoso Assento; aonde habita Aquele sol, que a vida ressuscita. VIII [...] Tudo me está a memória retratando; Que da mesma saudade o infame ruído Vem as mortas espécies despertando. As demais cantatas ficam na temática típica árcade, com pastores, ovelhas, campo, etc. Quanto à ode, poema que lembra a cantata pelo que tem de relação com a música, há uma dedicada a John Milton (1608 - 1674), escritor, político, dramaturgo e estudioso de religião. Milton é autor do conhecido Paraíso Perdido, importante poema épico de temática religiosa escrito na prisão para onde fora mandado por sua participação no episódio que tentou fazer da Inglaterra uma república sob a liderança de Olivier Cromwell. Na ode, Cláudio exalta a figura de Milton tanto por seu trabalho como político como pelo talento literário, por ter escrito um dos mais belos poemas que falam sobre a queda do homem do Paraíso. O poema foi escrito bem antes da participação de Cláudio Manuel no movimento inconfidente, mas, demonstra ideias que iriam se fundamentar melhor ao longo de sua vida acerca da esfera política, acerca das questões de Estado: [...] Ah não: oiça-se o brado Da Épica Trombeta: o rapto admiro, E já no dúbio giro Longe de me aterrar o Dragão fera, Arrancadas montanhas ver espero Do Trono de Sião, vingada a injúria, Confunde-te, oh soberbo, e rende a fúria. [...] Nas cançonetas, Cláudio consegue criar um interessante contraste entre cada um dos nove conjuntos de quadras que compõem os poemas. O poema “À lira desprezo” se contrapõe todo em “À lira palinódia”. Trata-se de um artifício poético e um meio de mostrar criatividade no manejo dos versos. Isso porque o termo palinódia significa retratação do que se afirmara em outro poema. Como exemplo, citemos o primeiro conjunto de quadra de cada um dos poemas: Que busco, infausta lira, Que busco no teu canto, Se ao mal, que cresce tanto, Alívio me não dás? A alma, que suspira, Já foge de escutar-te: Que tu também és parte De meu saudoso mal. [...] Vem, adorada Lira, Inspira-me o teu canto: Só tu a impulso tanto Todo o prazer me dás. Na mesma linha temática de exaltação de personalidades mortas, há que se destacarem os três epicédios, poemas em que se verifica um elogio fúnebre. O primeiro é dedicado a António Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela, e não o governador de Minas, que tinha o mesmo nome. Andrade governou o Rio de Janeiro entre 1733 e 1763. Apoiava os artistas e é um dos heróis de O Uraguai, poemeto épico escrito pelo árcade Basílio da Gama. O segundo epicédio é dedicado a um dos pastores companheiros de Cláudio chamado Salício. O poeta dedica ainda uma écloga a ele, a de número XI, mais esse epicédio. Trata-se de um poema revelador de certo exagero, ao comparar Salício a Orfeu e outros escritores, uma vez que só o conhecemos hoje pelo poema. Trata-se, ainda assim, de uma homenagem em um clima de defesa dos iguais, dos pares. Já a alma não suspira; Pois chega a escutar-te: De todo, ou já em parte Vai-se ausentando o mal. [...] Como se pode perceber, se no primeiro caso a poesia pouco alívio daria ao eu lírico, no segundo é ela a responsável pelo alento, pelo remédio para curar o sofrimento. Todo o restante dos dois poemas se assenta sobre as diferenças entre um e outro. Por esse motivo, é que afirmamos ser mais um meio de revelar engenhosidade que expressão de um sentimento real. Um dos aspectos mais comuns do Arcadismo é a recorrência 8 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 8 29/05/2012 15:48:02 Exercícios Importante lembrar que a vida cultural era basicamente restrita às Academias, onde os poetas encontravam respaldo mútuo de seu trabalho. Fora desse círculo, a receptividade era bem baixa na Colônia, dominada pelo analfabetismo e por necessidades que, supostamente, vêm antes da fruição da arte, ainda que a inspirem, como as necessidades de subsistência, de dignidade, de liberdade, etc. Por isso, a exaltação de um artista pouco conhecido hoje, mas importante para o momento: 1. (ENEM) Torno a ver-vos, ó montes; o destino Aqui me torna a pôr nestes outeiros, Onde um tempo os gabões deixei grosseiros Pelo traje da Corte, rico e fino. Aqui estou entre Almendro, entre Corino, Os meus fiéis, meus doces companheiros, Vendo correr os míseros vaqueiros Atrás de seu cansado desatino. [...] Vive entre nós ainda na memória, A que ele nos deixou, eterna glória; Dispêndios preciosos de um engenho, Ou já da natureza desempenho, Ou para a nossa dor só concedido. Salício, o pastor nosso, tão querido, Prodígio foi no raro do talento, Sobre todo o mortal merecimento; E prodígio também com ele agora Se faz a mágoa, que o lastima e chora. Se o bem desta choupana pode tanto, Que chega a ter mais preço, e mais valia Que, da Cidade, o lisonjeiro encanto, Aqui descanse a louca fantasia, E o que até agora se tornava em pranto Se converta em afetos de alegria. Cláudio Manoel da Costa. In: Domício Proença Filho. A poesia dos inconfidentes. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002, p. 78-9. Apesar de Cláudio ser rico, estar bem posicionado profissionalmente, como juiz, abraçou, anos mais tarde, na década de 80 (1789), a causa da Inconfidência Mineira, movimento de insurreição contra a coroa portuguesa, o que o levou à morte no mesmo ano. Antes disso, iniciou a composição do poema épico Vila Rica, pronto em 1773, porém publicado somente em 1839. O poema também foi dedicado ao Conde de Bobadela, António Gomes Freire de Andrade. O texto trata sobre como Minas Gerais foi fundada a partir da saga dos bandeirantes paulistas no desbravamento dos sertões, as lutas contra os emboabas indígenas, até a fundação da cidade de Vila Rica, hoje Ouro Preto. Trata-se de uma obra malograda, cuja realização ficou aquém do projeto inicial. Escrito em dez cantos, utilizou-se dos expedientes estéticos árcades de que dispunha, seguindo a lição de Camões, ainda que com diferenças estruturais. Considerando o soneto de Cláudio Manoel da Costa e os elementos constitutivos do Arcadismo brasileiro, assinale a opção correta acerca da relação entre o poema e o momento histórico de sua produção. (A) Os “montes” e “outeiros”, mencionados na primeira estrofe, são imagens relacionadas à Metrópole, ou seja, ao lugar onde o poeta se vestiu com traje “rico e fino”. (B) A oposição entre a Colônia e a Metrópole, como núcleo do poema, revela uma contradição vivenciada pelo poeta, dividido entre a civilidade do mundo urbano da Metrópole e a rusticidade da terra da Colônia. (C) O bucolismo presente nas imagens do poema é elemento estético do Arcadismo que evidencia a preocupação do poeta árcade em realizar uma representação literária realista da vida nacional. (D) A relação de vantagem da “choupana” sobre a “Cidade”, na terceira estrofe, é formulação literária que reproduz a condição histórica paradoxalmente vantajosa da Colônia sobre a Metrópole. (E) A realidade de atraso social, político e econômico do Brasil Colônia está representada esteticamente no poema pela referência, na última estrofe, à transformação do pranto em alegria. CANTO I Cantemos, Musa, a fundação primeira Da Capital das Minas, onde inteira Se guarda ainda, e vive inda a memória Que enche de aplauso de Albuquerque a história. Tu, pátrio Ribeirão, que em outra idade Deste assunto a meu verso, na igualdade De um épico transporte, hoje me inspira Mais digno influxo, porque entoe a Lira, Por que leve o meu Canto ao clima estranho O claro Herói, que sigo e que acompanho: Faze vizinho ao Tejo, enfim, que eu veja Cheias as Ninfas de amorosa inveja. [...] 2. (Fatec-SP) Sobre o Arcadismo brasileiro só não se pode afirmar que: (A) tem suas fontes nos antigos grandes autores gregos e latinos, dos quais imita os motivos e formas. (B) teve em Cláudio Manuel da Costa o representante que, de forma original, recusou a motivação bucólica e os modelos camonianos da lírica amorosa. (C) nos legou os poemas de feição épica Caramuru (de Frei José de Santa Rita Durão) e O Uraguai (de Basílio da Gama), no qual se reconhece qualidade literária destacada em relação ao primeiro. (D) norteou, em termos dos valores estéticos básicos, a produção dos versos de Marília de Dirceu, obra que celebrizou Tomás Antônio Gonzaga e que destaca a originalidade de estilo e de tratamento local dos temas pelo autor. A trajetória poética de Cláudio Manuel da Costa vem do Barroco, revela-se no Arcadismo e é, de certa forma, anunciadora do Romantismo, no que diz respeito aos ideais libertários da Inconfidência, amparados na tríade liberdadeigualdade-fraternidade. Trata-se de um poesia ruim em alguns momentos, confusa em outros, mas que se salva na maior parte, sobretudo nos poemas em que soube conciliar a estética árcade à tematização da paisagem mineira. 9 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 9 29/05/2012 15:48:02 (E) apresentou uma corrente de conotação ideológica, envolvida com as questões sociais do seu tempo, com a crítica aos abusos de poder da Coroa Portuguesa. 5. (Vunesp) Um dos elementos que diferenciam Cláudio Manuel da Costa de outros poetas do Arcadismo brasileiro é o fato de ainda conservar algumas características do estilo barroco. No poema transcrito, a presença barroca se dá no rebuscamento sintático causado pelas inversões, atenuadas por exigência do ritmo e da rima. Sabendo que as inversões de ordem sintática acontecem em todas as estrofes, a) reescreva a segunda estrofe de modo a preservar a colocação normal pedida pela sintaxe. Instrução. As questões de números 3 a 5 têm como base este poema de Cláudio Manuel da Costa: Onde estou? Este sítio desconheço: Quem fez diferente aquele prado? Tudo outra natureza tem tomado; E em contemplá-lo tímido esmoreço. 6. (PUC-PR) É só a partir do Arcadismo que começa a surgir Uma fonte aqui houve; eu não me esqueço De estar a ela um dia reclinado. Ali em vale um monte está mudado: Quanto pode dos anos o progresso! Árvores aqui vi tão florescentes, Que faziam perpétua a primavera: Nem troncos vejo agora decadentes. Eu me engano: a região esta não era: Mas que venho a estranhar, se estão presentes Meus males, com que tudo degenera! (Cláudio Manuel da Costa: Sonetos (VII). In: RAMOS, Péricles Eugênio da Silva (Intr., sel. e notas): Poesia do Outro - Antologia. São Paulo: Melhoramentos, 1964, p. 47.) no país uma relação sistemática entre autor, obra e público, que caracterizam um sistema literário. Aponte a alternativa que melhor descreve esse período. (A) Busca da simplicidade, racionalismo, imitação da natureza, caráter pastoril, imitação dos clássicos, ausência de subjetividade. (B) Individualismo e subjetivismo, culto à Natureza, evasão, liberdade artística, culto à mulher amada, sentimentalismo, indianismo, nacionalismo. (C) Subjetivismo, efeito de sugestão, musicalidade, irracionalismo, mistério. (D) Liberdade, de expressão, incorporação do cotidiano, linguagem coloquial, inovação técnica, ambiguidade, paródia. (E) Racionalismo, incorporação do cotidiano, culto à mulher amada, imitação dos clássicos, efeito de sugestão. 3. (Vunesp) O estilo neoclássico, fundamento do Arcadismo 7. (UFMT) Leia o poema do poeta árcade Cláudio Manoel da brasileiro, de que fez parte Cláudio Manuel da Costa, caracteriza-se pela utilização das formas clássicas convencionais, pelo enquadramento temático em paisagem bucólica pintada como lugar aprazível, pela delegação da fala poética a um pastor culto e artista, pelo gosto das circunstâncias comuns, pelo vocabulário de fácil entendimento e por vários outros elementos que buscam adequar a sensibilidade, a razão, a natureza e a beleza. Dadas estas informações, a) indique qual a forma convencional clássica em que se enquadra o poema. b) transcreva a estrofe do poema em que a expressão da natureza aprazível, situada no passado, domina sobre a expressão do sentimento da personagem poemática. 4. (Vunesp) A crítica literária brasileira tem ressaltado que o terceiro verso do poema é aquele que concentra o tema central. Essa mesma crítica, por outro lado, anotou com propriedade a importância do décimo segundo verso: este verso exprime uma mudança de atitude, que se corrige nos versos finais graças à descoberta, feita pelo eu poemático, da verdadeira causa do fenômeno descrito em todo o poema. Responda: a) Qual o tema que o terceiro verso concentra? Transcreva outros dois versos que o repercutem. b) A que causas o eu poemático atribui o fenômeno observado na natureza? Costa e responda à questão a seguir:. VIII Este é o rio, a montanha é esta, Estes os troncos, estes os rochedos; São estes inda os mesmos arvoredos; Esta é a mesma rústica floresta. Tudo cheio de horror se manifesta, Rio, montanha, troncos, e penedos; Que de amor nos suavíssimos enredos Foi cena alegre, e urna é já funesta. Oh quão lembrado estou de haver subido Aquele monte, e as vezes, que baixando Deixei do pranto o vale umedecido! Tudo me está a memória retratando; Que da mesma saudade o infame ruído Vem as mortas espécies despertando. (MOISÉS, Massaud. A literatura brasileira através de textos. São Paulo: Cultrix, 1986.) A respeito do texto, assinale a afirmativa verdadeira: (A) A natureza é cenário tranquilo, descrita sem levar em conta o estado de espírito de quem a descreve, como ocorre no Romantismo. (B) O poema faz elogio ao pastoralismo, criticando os males que o meio urbano traz ao homem. (C) Exemplo típico do Arcadismo, o poema apresenta a primazia da razão sobre a emoção, revelando a influência da lógica iluminista. (D) A antítese “Foi cena alegre, e urna é já funesta” resume o poema, indicando a passagem do tempo e a lembrança do amor perdido. 10 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 10 29/05/2012 15:48:02 (E) Faz referência à constância da vida, à previsibilidade do destino, recomendando que se aproveite o dia. 10. (UFSM-RS) Assinale a alternativa INCORRETA a respeito de Cláudio Manuel da Costa. a) Além da produção lírica, escreveu um poema de caráter épico que se intitula “Vila Rica”. b) Sob o pseudônimo árcade de Glauceste Satúrnio, compôs uma poesia em que é marcante a imagem da pedra. c) Compôs poemas marcados pela condição do pastor que procura a natureza como refúgio. d) Cultiva a forma do soneto em que explora temas como a infelicidade amorosa. e) Sua produção poética costuma ser dividida pela crítica em lírica, satírica e religiosa. 8. (Mackenzie-SP) Assinale a alternativa que apresenta comentário crítico adequado à obra de Cláudio Manuel da Costa, poeta do Arcadismo brasileiro. (A) ... sua poesia prolonga uma atmosfera lírica e moral que descortinamos na poesia camoniana, evidente no emprego constante da antítese, do paradoxo e do racionalismo ... (B) ... a essência doutrinária revela um homem primitivo, apegado ainda à idade Média: os poemas respiram uma fé inabalável, intocada pelos ventos críticos da Renascença. (C) ... o sentimento amoroso se espraia livremente; nota-se que o poeta infringe os princípios clássicos da contenção e manifesta a emoção dum modo tal que seus versos acabam adquirindo foros de crônica amorosa. (D) ...é preciso ver na força desse poeta o ponto exato em que o mito do bom selvagem, constante desde os árcades, acabou por fazer-se verdade artística. (E) ... os seus versos agradaram, e creio que ainda possam agradar aos que pedem pouco à literatura: uma expressão fácil, uma sintaxe linear, uma linguagem coloquial e brejeira... 9. (Fafipa-PR) Leia o texto: Os Inconfidentes Na tranquila varanda de Gonzaga, Sob os livros de Cláudio Manuel, Solenes se reúnem, proclamando A revolta do sonho e do papel. 11. (Unimontes-MG) Leia os textos a seguir: Texto 1 - Soneto VI Brandas ribeiras, quanto estou contente De ver-nos outra vez, se isto é verdade! Quanto me alegra ouvir a suavidade, Com que Fílis entoa a voz cadente! Os rebanhos, o gado, o campo, a gente, Tudo me está causando novidade: Oh como é certo, que a cruel saudade Faz tudo, do que foi, mui diferente! Recebei (eu vos peço) um desgraçado, Que andou té agora por incerto giro Correndo sempre atrás do seu cuidado: Este pranto, estes ais, com que respiro, Podendo comover o vosso agrado, Façam digno de vós o meu suspiro. Texto 2 – “Fábula do Ribeirão do Carmo” Aonde levantado Gigante, a quem tocara, Por decreto fatal de Jove irado, A parte extrema, e rara Desta inculta região, vive Itamonte, Parto da terra, transformado em monte; Entre o gamão e o chá fazem as leis Da perfeita república. No sono Dos sobrados mineiros, verbalmente, Resgatam pátrias, justiciam tronos. Guardam as armas sob o travesseiro. Vestem capas do roxo mais poético. Convertem curas, mascates, sapateiros. São generosos, líricos, patéticos. Com base na leitura e interpretação dos textos “Soneto VI” e “Fábula do Ribeirão do Carmo”, de Cláudio Manuel da Costa, assinale a alternativa que está INCORRETA. José Paulo Paes, “Os inconfidentes” Assinale o que for errado quanto aos poetas retratados no texto acima: (A) Gonzaga é o Tomás Antônio Gonzaga, apaixonado pela jovem Maria Joaquina Doroteia de Seixas, autor dos poemas líricos de “Marília de Dirceu”. (B) Cláudio Manuel da Costa é o introdutor do Arcadismo no Brasil, com “Obras Poéticas”. (C) Os dois poetas retratados são representantes do Barroco no Brasil. (D) Tomás Antônio Gonzaga e Cláudio Manuel da Costa são poetas que se destacaram no Arcadismo brasileiro. (E) Ambos se envolveram no processo da Inconfidência Mineira. Gonzaga foi condenado ao degredo em Moçambique e Cláudio Manuel foi preso e encontrado morto (enforcado) na cadeia, em 4 de julho de 1789. A) No texto 2, o poeta utiliza a imagem da penha e de personagens da mitologia greco-latina para celebrar a sua terra natal. B) O texto 1 é um poema lírico, cujo poeta expressa tristeza diante da mudança da paisagem que encontra quando retorna à sua terra natal. C) Nos textos 1 e 2, o poeta incorpora o elemento local para elaborar uma poesia épica, que narra a fundação de Vila Rica. D) O texto 1 é uma lírica que cultiva o gênero bucólico e a imagem do poeta peregrino. 11 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 11 29/05/2012 15:48:02 CAPÍTULO II - Iracema, de José de Alencar: o instinto da nacionalidade. O século XIX ficou marcado por diversos acontecimentos que ajudaram a construir o Brasil como nação. Primeiro, a vinda da família real, a corte de D. João VI, ao Rio de Janeiro em 1808, fugindo das guerras napoleônicas, depois a Independência em 1822 e, mais tarde, a proclamação da República em 1889. Naquele século, foram esses os fatos mais agudos da nossa história, outros tantos colaboraram para moldar a cultura nacional. Entre eles, a escola romântica iniciada, oficialmente, em 1836 com a publicação de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães. Anos depois, um dos grandes escritores românticos iniciou sua carreira literária. Trata-se de José de Alencar, cearense de nascimento, mas que esteve boa parte de sua vida na capital do Império. Nasceu em 1829. Entre idas e vindas, formou-se em Direito em 1850, tendo exercido a profissão de advogado, bem como o cargo de ministro da Justiça. Mas, foi como escritor que veio a se tornar efetivamente conhecido e notabilizou-se. Em 1854, passou a escrever crônicas sob o título geral de Ao Correr da Pena no Correio Mercantil. Dois anos depois, publicou seu primeiro romance, Cinco minutos, e, no ano seguinte, um dos seus principais livros, O guarani. Este livro segue uma das tendências românticas de buscar o elemento nacional, representado simbolicamente no índio, por ser o povo original dessas terras. Evidente que Alencar e outros escritores do período não queriam viver como índios, nem achavam que o Brasil deveria adotar a cultura indígena como a adequada para o país. O objetivo era, antes, encontrar os traços da nacionalidade para incutir no povo o amor à terra, os valores locais, para diferenciar o Brasil de outras nações. Em resumo, buscava-se edificar o sentimento de nacionalidade. Tal assunto vai dominar todo o século XIX, ora sob base idealizada, como fizeram os românticos, ora sob vertente mais crítica, como empreenderam os naturalistas. Em 1873, por exemplo, o jovem Machado de Assis escreve um ensaio, Instinto de nacionalidade, para determinar o que seria a nacionalidade na literatura. Alencar, seguindo esse espírito nacional, quis dar uma visão de conjunto da nacionalidade, ao escrever romances de temática e foco nas diversas regiões e assuntos brasileiros. Ele mesmo, em prefácio a Sonhos d’ouro, um de seus romances, divide a própria obra em quatro linhas temáticas, depois extrapoladas para os demais romancistas. a) Romance urbano, como Lucíola e Senhora. b) Romance regionalista, como O Gaúcho e O Sertanejo. c) Romance indianista, como Iracema e Ubirajara. d) Romance histórico, como O Guarani e As Minas de Prata. Nesse prefácio, afirma Alencar: [...] a literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria, que transmigrou para este solo virgem com uma raça ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regaço; e a cada dia se enriquece ao contato de outros povos e ao influxo da civilização? [...] Sobretudo compreendam os críticos a missão dos poetas, escritores e artistas, nesse período especial e ambíguo da formação de uma nacionalidade. São estes os operários incumbidos de polir o talhe e as feições da individualidade que se vai esboçando no viver do povo. Observe a clareza do projeto, “... a literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria,”. Era preciso, pois, por meio de romances, de poemas, de ensaios, crônicas, fazer valer essa máxima e incutir nos brasileiros a alma patriótica. Um dos caminhos foi a tematização indígena. José de Alencar escreveu três romances nessa linha: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Também iniciou um poema épico de temática indígena, Os filhos de Tupã, mas percebeu que não tinha talento para a poesia e abandonou o projeto com quatro dos dez cantos previstos. Iracema recebe o subtítulo de A lenda do Ceará, isso porque Alencar colheu alguns elementos históricos sobre a origem da então província, mesclou-os a elementos da sua imaginação e criou um dos mais belos romances da literatura brasileira, chamado por muito como poema em prosa. Talvez para o leitor atual haja uma dificuldade de apreensão da história por conta da linguagem romântica de então. Superada essa dificuldade, poderá perceber quão belo é o enredo. Da sucessão de acontecimentos que constituem o livro, o essencial é a paixão proibida entre uma jovem índia e um guerreiro português. Da união, nascerá uma criança, chamada Moacir, e tida como o primeiro cearense, segundo dizeres do próprio romance. O primeiro livro de Alencar a tratar do índio, sem ser especificamente indianista, é O guarani. Publicado no ano seguinte à polêmica em torno de A confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, o romance marca a tônica do indianismo alencariano, de Iracema, Os filhos de Tupã e Ubirajara. Alencar escrevera antes algumas resenhas críticas sobre o poema de Magalhães. Na verdade, foram cartas públicas assinadas sob o pseudônimo de Ig. Nelas, afirma a necessidade de se abandonar “as ideias de homem civilizado” a fim de compor um poema nacional, um texto literário que tivesse como tema a natureza brasileira e seus habitantes primeiros, os índios. Consequentemente, deveria o escritor aproximar-se o mais possível do jeito de ser e de falar do selvagem. A mesma censura fará o romancista a Gonçalves Dias, na Carta ao Dr. Jaguaribe, pós-escrita à Iracema. Embora reconheça no poeta primazias na construção da literatura nacional, vê com ressalvas o modo de falar do índio gonçalvino, tendo em vista que “os selvagens [...] falam uma linguagem clássica; [...] eles exprimem ideias próprias do homem civilizado, e que não é verossímil tivessem no estado da natureza” (1960, vol. III, p. 306). A solução preconizada por Alencar é que “a língua civilizada se molde quanto possa à singeleza primitiva da língua bárbara” (1960, vol. III, p. 306). Entre as cartas encontram-se O guarani e Iracema. No primeiro caso, não se pode dizer que Alencar teria cumprido o intento anunciado. Encontraremos uma realização mais próxima do que idealizara no segundo romance e em Ubirajara . De qualquer modo, o autor não frustrou totalmente o leitor, afinal, percebem-se na fala de Peri, como o uso de símiles, do período simples e/ou orações coordenadas, uma singeleza e uma simplicidade, que exprimem conceitos através de elementos concretos da natureza. Ou seja, o símile é recurso largamente 12 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 12 29/05/2012 15:48:02 usado na medida em que, pela comparação com a natureza, o índio expressa sua visão de mundo, seus conceitos, conforme poderemos ver adiante em um dos trechos de Iracema. Alencar sabe que, com O guarani e com Iracema, estava criando um índio não propriamente real, e sim ideal; ao mesmo tempo projetava uma literatura ideal, que se tem de ir à Europa buscar uma tradição primeira, pode e deve aos poucos abandonar o modelo europeu para constituir-se independente. Um dos caminhos seria o indianismo, mas não o único, conforme se depreende da vasta produção do escritor. Na prática, a questão passa por uma tematização de assuntos locais com uma linguagem própria: “O conhecimento da língua indígena [...] nos dá não só o verdadeiro estilo, como as imagens poéticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as tendências de seu espírito”. Não por acaso, em Ubirajara, o português (ou qualquer europeu) é excluído da narrativa (apenas se pressagia sua chegada ao final da narrativa). É como se, na década de 1870, Alencar percebesse na literatura brasileira uma capacidade de desenvolver-se por si mesma, sem mais a necessidade de submissão a um modelo qualquer, em especial o europeu. Claro, não se trata de um fato, mas da visão de um escritor. É como se o índio, ou antes, o brasileiro, pudesse começar a viver por si mesmo, sem ter de “sacrificar-se” ao branco europeu, passando a fornecer-lhe uma tradição cultural. As mesmas considerações são feitas por Machado, com visão menos apaixonada e mais crítica, sobre a ideia de que a literatura nacional deveria, antes de continuar procurando o típico, o local, estar aberta a todos os temas, a todos os assuntos. Dessa maneira, poderia aspirar a uma posição de destaque em relação à literatura europeia. Em Iracema, o discurso de Martim e também o do narrador pouco se diferem do dos indígenas. Com isso, ocorre aquilo que o poeta e crítico literário Haroldo de Campos chamou de “tupinizar o português”. Sob outra óptica, o processo de apropriação da linguagem pode ser analisado como ardil, como estratégia de dominação cultural. Fala-se mais ou menos conforme o outro para conquistar-lhe a simpatia, mas mantém o distanciamento suficiente para demarcar a separação cultural, como o caso do pe. José de Anchieta, no período colonial. Segundo as considerações articuladas por Alencar em diversos textos, como no pós-escrito a Iracema ou A questão filológica ou ainda no pós-escrito a Diva, pode-se concluir que o ficcionista via no português elemento decisivo para a miscigenação, que possibilitaria o nascimento da raça e da nação brasileiras; em matéria de idioma esse mesmo português, por outro lado, não poderia impedir as mudanças que o tempo iria operando no uso da língua portuguesa sob outro solo, na aproximação com outras línguas, indígenas ou mesmo africanas. É o que afirma categoricamente na Questão filológica: As línguas, como todo o instrumento da atividade humana, obedecem à lei providencial do progresso; não podem parar definitivamente. (1960, vol. IV, p. 980) Em Iracema, José de Alencar construiu uma alegoria do processo de colonização do Brasil. Conforme estudos diversos, o nome da heroína, Iracema, é um anagrama da palavra América. E Martim é uma referência ao deus greco-romano Marte, o deus da guerra e da destruição. Percebe-se, pois, nos nomes dos personagens principais essa mistura, esse amálgama entre a cultura local e a necessidade de manter-se preso à cultura europeia, posto que também colaborou decisivamente para a construção da nacionalidade. Iracema, conhecida como a virgem dos lábios de mel, é uma índia tabajara, e Martim, um guerreiro português amigo dos potiguaras, que lutavam exatamente contra os tabajaras, aliados dos franceses, pela posse da terra. Encontram-se logo na primeira cena do romance. Iracema tomava banho em uma cachoeira e Martim, que andava perdido pelo campo dos tabajaras, fica observando-a. Segundo o preceito do livro (a mescla cultural), Iracema se apresenta como uma Diana, caçadora, e atira, para se defender, uma seta contra o guerreiro estranho. Arrependida, passa a cuidar dele e o leva até sua tribo, onde, embora inimigo, é recebido como hóspede. Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido. (p. 239) A índia era a responsável pela manipulação da jurema, uma bebida alucinógena, que possuía, conforme a crença indígena, importantes propriedades espiritualistas. É o cauim, feito à base de mandioca, e descrito no livro como o “vinho de Tupã”. Por esse motivo, tinha de permanecer virgem, para poder preparar o cauim e servir apenas aos seus. No entanto, mutuamente apaixonados, Martim pede-lhe para que lhe dê um pouco da bebida. Quer participar mais dos segredos de Iracema. Quando a virgem tornou, trazia numa folha gotas de verde e estranho licor vazadas da igaçaba, que ela tirara do seio da terra. Apresentou ao guerreiro a taça agreste: — Bebe! Irapuã era um pretendente de Iracema. Ao perceber o que se passava entre a índia e o português, decide matar Martim, mesmo sob as ordens expressas de Araquém que determinara que o hóspede nada deveria sofrer. — Filha de Araquém, não assanha o jaguar. O nome de Irapuã voa mais longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para o vencedor. — O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A paz o trouxe aos campos de Ipu, a paz o guarda. Quem ofender o estrangeiro, ofende o Pajé. Preocupada, Iracema encontra Poti, que ajuda Martim a fugir. Irapuã, porém, vai atrás de Martim. Iracema tem de intervir. E todos retornam à tribo dos tabajaras, diante de Araquém, pai de Iracema e pajé. Irapuã conta o que descobrira e quer a morte de Martim. Mas Araquém, seguindo a lei indígena, diz: — Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flor de seu corpo, ela morrerá; mas o hóspede de Tupã é sagrado; ninguém o ofenderá; Araquém o protege. Este é o momento crucial da narrativa. Mesmo diante das ordens do pajé, Irapuã está decidido a matar a Martim. Poti, dos potiguaras, aliado do português, e também Caubi, irmão de Iracema, armam um plano de fuga para Martim. Iracema detém os guerreiros de Irapuã, servindo-lhes o cauim. Como seria a despedida do casal, Martim pede à índia que lhe sirva de novo o cauim para que, em delírio, pudesse amar Iracema. No entanto, o delírio se realiza de fato. Enquanto Martim imagina estar se relacionando com Iracema apenas em sonho, ela se aproxima 13 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 13 29/05/2012 15:48:02 dele e têm o primeiro relacionamento sexual. O narrador, de modo bastante sintético, diz: Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras. Martim, porém, fica sabendo o que se passara apenas quando já se encontra em terras potiguaras. Iracema revela então ao amante que tiveram relações de fato e não apenas na imaginação. Por essa razão, ela agora é sua esposa. Ante a surpresa, Martim sabe que não pode deixar Iracema, pois seria morta pelos próprios tabajaras como vingança à traição. Assim, leva-a para morar na praia. Nos primeiros meses, vivem bem. Iracema engravida. Mas Martim tem alma de guerreio e acaba por “saturar-se de felicidade”. Por isso, o português passa a se ausentar com frequência em caçadas e batalhas. Durante boa parte da gestação, Iracema fica sozinha e fraca com a gravidez. Mesmo com tanto sofrimento, a índia dá ao filho o nome de Moacir, que significa “filho da dor”. Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro. Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o choro infantil inundou sua alma de júbilo. A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor. — Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento. Avisado por Caubi, que fora visitar a irmã, Martim retorna a sua morada onde encontra a amante moribunda com o filho nos braços, o qual sobrevive graças ao pouco leite que ainda vertia de seus seios. Ao vê-lo, sorri pela última vez e morre. Martim toma Iracema e, com a ajuda de Poti, enterra-a ao pé de um coqueiro, à beira do rio. Diz Poti: – Quando o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que fala entre seus cabelos. Depois disso, Martim parte com o filho para longe da terra. Interessante que o narrador faz um comentário profético: O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça? Ainda sobre a relação dos dois, todo o ato é bastante simbólico. Martim quer ter Iracema, mas sabe que isso provocaria a destruição dela. José de Alencar, ao narrar que o intento se realiza de modo inconsciente, exclui a culpa de Martim, descrito como honrado. A colonização portuguesa somente poderia se realizar desse mesmo modo. A posse da terra levaria à destruição da cultura indígena. O mesmo princípio está em “O canto do piaga”, de Gonçalves Dias. Enquanto, porém, no poema os portugueses são enfocados como vilões, em Alencar há uma tentativa de compreensão do processo. O Brasil, o brasileiro, somente poderia se constituir por meio de um processo que levaria à perda de elementos culturais. A razão dessa diferença reside no fato de Dias estar mais perto da Independência, quando houve um acirramento entre os portugueses e os brasileiros, e Alencar, conforme já se afirmou, percebeu que a nacionalidade não seria fruto de uma única raça. O elemento português foi determinante para a criação do Brasil, e isso não poderia ser simplesmente desprezado. Essa integração, ainda que com prejuízo maior para os indígenas, está representada, sobretudo, em dois momentos da narrativa. Martim, já na taba dos potiguaras, decide batizar-se segundo a tradição indígena e adota outro nome, Coatiabo, que significa “guerreiro pintado”. O estrangeiro tendo adotado a pátria da esposa e do amigo, devia passar por aquela cerimônia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de Tupã. No final da narrativa, quando Martim retorna de uma viagem a Portugal, com o objetivo de colonizar de vez a região, o índio Poti é batizado como cristão e adota o nome de Antônio Felipe Camarão. Poti foi o primeiro que se ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco. Deviam ter ambos um só deus, como tinham um só coração. Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele primeiro viu a luz. Embora cercado de elementos lendários, ficcionais, próprios da imaginação do autor, Iracema apresenta diversos aspectos históricos, entre os quais a presença de Martim, cujo nome completo era Martim Soares Moreno , e de Poti, que, com efeito, converteu-se ao cristianismo e adotou o sobrenome nome de Camarão, mesmo porque, em tupi, potiguar significa “comedor de camarão”. Importante lembrar que o indianismo, apesar de temática nativista, surgiu para a literatura bem antes e em textos de autores estrangeiros. Houve um indianismo óbvio e sem preocupação nacionalista nos escritos dos cronistas da colonização, depois em Montaigne, que abordou questões relativas às leis e à organização social indígena, mas é com Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII, que se tem o princípio básico do indianismo europeu e brasileiro, o conceito do “bom selvagem”. Rousseau não se referia especificamente ao índio, mas ao fato de uma pessoa ter a índole boa, sobretudo a que vivera anterior ao processo civilizatório e a que vivia afastada da corrupção social. Nesse sentido, o índio representaria bem o princípio. Literariamente, no Brasil, à época de Rousseau, Basílio da Gama, com O Uraguai, e Santa Rita Durão, com O caramuru, ocuparam da temática indígena, ainda que não totalmente presos ao conceito do “bom selvagem”. Na França de Rousseau, François Chateaubriand publicou Atala e Les Natchez, e nos EUA, James Cooper explorou a ideia do índio nobre, dotado de virtudes elevadas em O último dos moicanos. Em Alencar, bem como em outros escritores brasileiros, o tema do índio não se prende simples ou exclusivamente à lógica do “bom selvagem”. Ainda que possa servir como sustentação narrativa, o mais importante é tratar do índio como tema nacional. Da união das duas raças nobres, íntegras (indígena e portuguesa), nasceria uma terceira. Devido à escravização do negro no século XIX, a importância dessa outra raça para a formação étnico-cultural só seria mais largamente explorada pelos modernistas, em que pese alguns textos anteriores de caráter laudatório ou de denúncia, como os de Castro Alves. O índio de Alencar não é propriamente real, mas também não é irreal. Em Ubirajara, por exemplo, há uma série de notas explicativas do próprio autor para dar sustentação ao narrado. Essas notas foram extraídas dos cronistas da colônia, bem como de estudiosos da cultura indígena da época. Tais notas aparecem também em O Guarani e em Iracema. Elas formam quase um texto à parte. Sem elas, é possível, obviamente, compreender a narrativa, mas com elas, o leitor percebe melhor as razões de 14 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 14 29/05/2012 15:48:02 algumas ações. Há 128 notas em Iracema e 67 no Ubirajara. Ora, para além do caráter explicativo das notas, há um nítido objetivo de conferir verossimilhança à narrativa. Trata-se de uma estratégia narrativa, verificável, de outro modo, nas narrativas urbanas. Em Senhora, por exemplo, Alencar diz ter ouvido a história de fonte fidedigna. Em Iracema, tem-se um narrador que igualmente teria ouvido a história de fontes específicas (é “uma história que me contaram nas lindas vargens onde nasci”.). Narra-a em 3a pessoa, mas sem a objetividade distanciada e neutra que marcaria os romances naturalistas. Assim, o narrador a todo instante tece comentários judicativos sobre os personagens e mostrase simpático ao sofrimento de Iracema. Esteticamente, temos um romance, porém chamado de poema em prosa, haja vista o cuidado na construção das imagens, bem como a musicalidade da linguagem empregada. Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas. Observe as imagens usadas para descrever Iracema. São diversas comparações com elementos da natureza (asa da graúna, talhe da palmeira, favo da jati – uma espécie de abelha – baunilha, ema selvagem, verde pelúcia) com nítida vantagem para a índia. A comparação, ou metáfora, é um recurso amplamente usado pela poesia, para a criação de imagens. Embora não haja rimas, todo o parágrafo poderia se disposto em forma de versos, obedecendo a cada uma das comparações feitas. Em conclusão, o livro de Alencar, para o bem ou para o mal, deixou um legado na construção da imagem indígena, que colaborou para a construção de uma imagem de nós mesmos. O brasileiro acolhe o outro, acultura-se, perde sua identidade original, para permitir a construção de uma nova. Por esse motivo, o brasileiro é um povo que está sempre em busca de si mesmo, é um herói ainda sem caráter definido de que falaria, mais tarde, Mário de Andrade em seu Macunaíma. (D) Embora tendo sido escrito no período romântico, Iracema apresenta traços da ficção naturalista tanto na criação das personagens quanto na tematização dos problemas do país. (E) O contraponto poético da prosa indianista de Alencar é constituído pela lírica de Gonçalves Dias. Indiscutivelmente, em “O canto do guerreiro” e em “O canto do piaga”, dentre outros poemas, o índio é apresentado de maneira idealizada, numa perpetuação da imagem heroica e sublime adequada aos ideais românticos. 2. (UFU-MG) Sobre Iracema, de José de Alencar, podemos dizer que: o 1 as cenas de amor carnal entre Iracema e Martim são de tal forma construídas que o leitor as percebe com vivacidade, porque tudo é narrado de forma explícita. 2o em Iracema temos o nascimento lendário do Ceará, a história de amor entre Iracema e Martim e as manifestações de ódio das tribos tabajara e potiguara. 3o Moacir é o filho nascido da união de Iracema e Martim. De maneira simbólica, ele representa o homem brasileiro, fruto do índio e do branco. 4o a linguagem do romance Iracema é altamente poética, embora o texto esteja em prosa. Alencar consegue belos efeitos linguísticos ao abusar de imagens sobre imagens, comparações sobre comparações. Assinale: (A) (B) (C) (D) 3. (PUC-SP) A próxima questão refere-se ao texto abaixo. Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. Esse trecho é o início do romance Iracema, de José de Alencar. Dele, como um todo, é possível afirmar que: (A) Iracema é uma lenda criada por Alencar para explicar poeticamente as origens das raças indígenas da América. (B) o romance, elaborado com recursos de linguagem figurada, é considerado o exemplar mais perfeito da prosa poética na ficção romântica brasileira. (C) as personagens Iracema, Martim e Moacir participam da luta fratricida entre os tabajaras e os potiguaras. (D) o nome da personagem-título é anagrama de América e essa relação caracteriza a obra como um romance histórico. (E) a palavra Iracema é o resultado da aglutinação de duas outras da língua guarani e significa “lábios de fel”. Exercícios 1. (UEL-PR) Examine as proposições a seguir e assinale a alternativa incorreta. (A) A relevância da obra de José de Alencar no contexto romântico decorre, em grande parte, da idealização dos elementos considerados como genuinamente brasileiros, notadamente a natureza e o índio. Essa atitude impulsionou o nacionalismo nascente, por ser uma forma de reação política, social e literária contra Portugal. (B) Ao lado de O guarani e Ubirajara, Iracema representa um mito de fundação do Brasil. Nessas obras, a descrição da natureza brasileira possui inúmeras funções, com destaque para a “cor local”, isto é, o elemento particular que o escritor imprimia à literatura, acreditando contribuir para a sua nacionalização. (C) A leitura de Iracema revela a importância do índio na literatura romântica. Entretanto, sabe-se que a presença do índio não se restringiu a esse contexto literário, tendo desembocado inclusive no Modernismo, por intermédio de escritores como Mário de Andrade e Oswald de Andrade. se apenas 2 e 4 estiverem corretas. se apenas 2 e 3 estiverem corretas. se 2, 3 e 4 estiverem corretas. se 1, 3 e 4 estiverem corretas. 4. (Unicamp-SP) O trecho abaixo foi extraído de Iracema. Ele reproduz a reação e as últimas palavras de Batuiretê antes de morrer: O velho soabriu as pesadas pálpebras, e passou do neto ao estrangeiro um olhar baço. Depois o peito arquejou e os lábios murmuraram: – Tupã quis que estes olhos vissem antes de se apagarem, o gavião branco junto da narceja. O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se moveu. (José de Alencar, Iracema: lenda do Ceará. Rio de Janeiro: MEC/INL, 1965, p. 171-172.) 15 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 15 29/05/2012 15:48:02 As questões de 6 a 9 pertencem ao vestibular da Escola de Enfermagem de Wenceslau Braz (SP): a) Quem é Batuiretê? 6. Assinale a alternativa que corresponda ao movimento literário da Literatura Brasileira ao qual José de Alencar pertenceu. (A) (B) (C) (D) b) Identifique os personagens a quem ele se dirige e indique os papéis que desempenham no romance. Romantismo Realismo Arcadismo Naturalismo 7. Indique a alternativa que corresponda, respectivamente, aos romances indianistas, regionalistas e urbanos: (A) (B) (C) (D) c) Explique o sentido da metáfora empregada por Batuiretê em sua fala. Lucíola, Ubirajara, O Sertanejo. Iracema, Senhora, O Guarani. O Guarani, O Gaúcho, Lucíola. O Sertanejo, O Gaúcho, Iracema. 8. Assinale a opção que contém somente obras de José de Alencar: (A) O Tronco do Ipê, Cinco Minutos. A Viuvinha, Memórias Póstumas de Brás Cubas. (B) Quincas Borba, Iracema, O Guarani, O Tronco do Ipê. (C) A Pata da Gazela, Cinco Minutos, As Minas da Prata. (D) Memórias Póstumas de Brás Cubas, Lucíola, O Guarani. 5. (PUC-PR) Considere os dois fragmentos extraídos de Iracema, de José de Alencar. I - “Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela? Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano? Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.” II - “O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não quis deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora. O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” Ambos apresentam índices do que poderia ter acontecido no enredo do romance, já que constituem o começo e o fim da narrativa de Alencar. Desse modo, é possível presumir que o enredo apresenta 9. “A Virgem dos Lábios de Mel apaixona-se por Martim, guerreiro português. Os dois amantes fogem em companhia de Poti e vivem um belíssimo amor na floresta...”. A partir desse fato, o que acontece de importante na vida do jovem casal que, segundo os românticos, simboliza a união do branco e do índio? 10. (FAIBI) Assinale a alternativa que não se aplica ao romance (A) o relacionamento amoroso de Iracema e Martim, a índia e o branco, de cuja união nasceu Moacir, e que alegoriza o processo de conquista e colonização do Brasil. (B) as guerras entre as tribos tabajara e pitiguara pela conquista e preservação do território brasileiro contra o invasor estrangeiro. (C) o rapto de Iracema pelo branco português Martim como forma de enfraquecer os adversários e levar a um pacto entre o branco colonizador e o selvagem dono da terra. (D) a vingança de Martim, desbaratando o povo de Iracema, por ter sido flechado pela índia dos lábios de mel em plena floresta e terse tornado prisioneiro de sua tribo. (E) a morte de Iracema, após o nascimento de Moacir, e seu sepultamento junto a uma carnaúba, na fronde da qual canta ainda a jandaia. Iracema, de José de Alencar: (A) Iracema, virgem tabajara, apaixona-se por Martim, jovem cavaleiro português; (B) Do amor da índia com Martim nasce Moacir, o primeiro cearense; (C) A jovem é defendida por Irapuã, um índio goitacá; (D) Iracema morre, segundo os preceitos anunciados pelas divindades indígenas. 16 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 16 29/05/2012 15:48:02 CAPÍTULO III - Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do ponto de vista Logo de início, relembremos o enredo básico de Dom Casmurro. O livro tem como narrador o seu protagonista, o Dr. Bento Santiago, ou simplesmente Bentinho. Pessoa da alta sociedade fluminense, que, ainda criança, conheceu Capitolina, ou Capitu. Desde então, tornaram-se amigos; na adolescência, descobriram o amor mútuo e, após algumas atribulações com a mãe de Bentinho, que o queria ver padre por força de uma promessa, casaram-se. No seminário, conhecera Escobar, importante personagem para o enredo. Livres ambos da obrigação de ser padre, passado algum tempo voltam a se encontrar. Bentinho já estava casado com Capitu. Escobar casa-se com Sancha, amiga de infância daquela. Numa certa manhã, Escobar morre afogado no mar, onde frequentemente nadava. Na hora da “encomendação e partida” do corpo, Bentinho relata que Capitu fitara fixamente o defunto, como se fora ela a viúva. Acaba por concluir depois que seu filho Ezequiel era, na verdade, por possuir traços fisionômicos de Escobar, filho deste e de Capitu. Em Dom Casmurro, a desconfiança, que parte do marido, é o elemento complicador da relação conjugal. Bentinho acreditava ter sido traído pela mulher com seu melhor amigo de seminário, Escobar. No início, Bentinho procura repelir a ideia, mas com o crescimento de Ezequiel cresce também a dúvida sobre a paternidade. Tal dúvida leva-o a se separar de Capitu, que vai para a Europa, onde morre pobre e abandonada. Quanto a Ezequiel, que ainda mantinha relações com Bento, viaja alguns meses depois para a Grécia, Egito e Palestina, a fim de estudar, e morre onze meses após. O romance é narrado a posteriori: Bento já tem 55 anos quando procura “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”. E o faz como meio de honrar sua pessoa de uma possível traição. É como se ele abdicasse de si toda e qualquer culpa no malogro do seu casamento, construindo uma narrativa onde se verificam elementos verossimilhantes, isto é, que podem ser verdadeiros. Para tanto, procura levantar uma série de características da personalidade de Capitu, dona de “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada”, segundo o agregado José Dias, ao observar que tais olhos, quando apertados, revelavam o pendor à reflexão “que não era coisa rara nela”. Assim, o narrador faz-nos crer que desde sempre Capitu, que não era rica, viu nele o meio de atingir a riqueza material, e que, feito isso, ela o trairia para procurar a satisfação amorosa, pois a “... Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos (...) se te lembras bem da Capitu, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. Ou seja, a Capitu criança já urdia o que faria como adulta. Com isso, é claro, Bento nada podia fazer quanto a uma personalidade como essa. O que é importante reter do livro não é tanto a traição (se é que houve), mas justamente a estrutura de poder e dominação revelada pela narrativa. Ora, conhecemos a história sob perspectiva única, e que tem a preocupação de se passar como verdadeira. Porém, tal realidade mostra-se ambígua, porque o próprio Bentinho nunca teve a certeza de suas suspeitas. Na verdade, o que parece não suportar é a traição feita por alguém de uma classe social inferior à sua e que ascendeu graças à união com um homem rico. Evidente que ele não diz isso explicitamente, mas percebe-se nas entrelinhas. Pois bem. Discutamos essa questão em particular. Para a crítica contemporânea de Machado, e até meados do século XX, a questão da possível traição de Capitu, muito menos o enfoque nela, não eram colocados. Alfredo Pujol, por exemplo, em seu ensaio sobre Machado de Assis, publicado em 1917, diz que Capitu “traz o engano e a perfídia nos olhos cheios de sedução e de graça”, assim o sendo, caberia ao leitor julgar a adúltera e absolver Bento Santiago por ter renegado o filho, que, certamente, nem seria dele. No entanto, a inglesa Helen Caldwell, em famoso estudo sobre Dom Casmurro, intitulado O Otelo brasileiro de Machado de Assis, publicado em 1960, deu novo direcionamento à leitura do livro. Sua tese era que Bento Santiago construíra uma narrativa para se isentar da culpa de ter sido traído (isso para um homem da elite no século XIX era pior que ser roubado, posto que perderia a honra e o respeito perante a sociedade), mostrando como Capitu teria urdido um plano contra ele e executado quando houve a oportunidade. Porém, o narrador deixa transparecer aqui e ali vários momentos que sua narrativa não é totalmente confiável. Quis revelar a verdade, mas seu discurso mostra-se falho nessa concepção, o que leva o leitor a desconfiar de que realmente Capitu o teria traído. A exemplo do que ocorre com Otelo, que deu ouvidos a Iago contra Desdêmona, Bento teria se deixado levar pela desconfiança despropositada e pela imaginação fértil: A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva, rápida, inquieta, alguma vez tímida e amiga de empacar, as mais delas capaz de engolir campanhas e campanhas, correndo. (p. 68) Essa linha de leitura do romance passou então a ser a preponderante, a mais aceita pela crítica. Considerando isso, é importante destacar trechos do livro que levem à confirmação dessa tese. Em resumo, temos um narrador na meia idade que relembra os principais fatos em torno do romance com Capitolina Pádua, sua vizinha, até o casamento, passando pelo período no seminário, depois o casamento, a amizade com Escobar e Sancha, o nascimento do filho, a desconfiança e a expulsão de esposa e filho de casa, e o fim solitário, quando ganhou a alcunha de Casmurro. O problema é que essa narração, a despeito do objetivo de revelar a verdade, é falha. O narrador mesmo alerta o leitor para isso: “É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas alheias; assim podes também preencher as minhas”. (p. 96) E quais são essas lacunas? Ora, na composição da narrativa, Bento procura traçar o próprio perfil e o de Capitu. Em uma leitura desatenta, percebe-se que ele é bom, tímido e verdadeiro em seus sentimentos; ao passo que Capitu seria dissimulada, alguém capaz de enganar para atingir seus objetivos. Antes de Bentinho ir ao seminário, o casal de namorados faz um pacto, não revelariam a ninguém (apesar de o agregado José Dias saber e a prima Justina também) que tinham plano de se casar. O temor de Capitu é que, sabendo disso, a mãe de Bentinho, D. Glória, proibiria que os dois se vissem ou se falassem. Em um dos passeios de fim de semana à casa de sua mãe, Bentinho está conversando com os familiares na sala. 17 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 17 29/05/2012 15:48:02 Capitu também se encontra. A conversa gira em torno de Bentinho vir ou não se tornar um bom padre, ao que Capitu prontamente responde: “Acho que sim, senhora, respondeu Capitu, cheia de convicção”. Bento diz não ter gostado de tanta convicção e, em particular, a repreende, uma vez que imaginava que estaria tão saudosa quanto ele. Capitu então demonstra que teria de agir assim para evitar desconfianças da família. Ao fim, Bento concorda: “Era isso mesmo; devíamos dissimular para matar qualquer suspeita” (grifo nosso, p. 106). Em vários outros momentos, o narrador Bento insiste e reafirma a capacidade de enganar de Capitu, além de mostrar que, nas situações mais embaraçosas, ela sempre se sai com desenvoltura e demonstra ter ideias bem atrevidas para uma adolescente de 14 ou 15 anos. Ocorre que, repita-se, o narrador também dá mostras de que não é totalmente confiável, ou seja, ao mesmo tempo em que faz determinadas afirmações acerca da personalidade de Capitu, revela ter duas características que sempre o acompanharam: a imaginação e a memória fraca. Ora, ao se propor narrar a trajetória de sua vida dos últimos quarenta anos, em particular sua vida amorosa e os consequentes percalços, seria de suma importância ter boa memória para evitar que a imaginação completasse as lacunas. Claro, poder-se-ia dizer que, em uma narração esquecer-se de algum pormenor, de algum detalhe, é algo bastante possível. No entanto, deve-se ler o fato como uma estratégia narrativa do autor. Machado de Assis, ao criar o narrador Bento Santiago, pretendeu discutir a crise do discurso dominante, avant la lettre. Isto é, no período realista-naturalista buscava-se incorporar a objetividade científica no âmbito da literatura. O movimento narrativo de Machado, apesar de o autor ser considerado realista, instaura a dúvida como princípio de composição, pois procura mostrar quão relativa é qualquer perspectiva universalizante, porque exclui de si toda e qualquer outra, podendo, portanto, cometer erros como o de acusar, sem provas incontestes, alguém de traição. No Capítulo LXXXIII, anterior às desconfianças de Bentinho por conta da semelhança física entre Ezequiel, filho do casal Santiago, e Escobar, Bento, ainda seminarista, encontra Capitu na casa de Sancha. Capitu fora visitar a amiga que estava bastante doente. Bento, em um momento em que fica sozinho na sala com o Sr. Gurgel, pai de Sancha, tem uma conversa reveladora com ele. Gurgel mostra a Bentinho o retrato de uma moça e pergunta-lhe se ela não seria parecida com Capitu. Antes de examinar se efetivamente Capitu era parecida com o retrato, fui respondendo que sim. Então ele disse que era o retrato da mulher dele (...) – Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas. (p. 129) Quem faz a última afirmação é Gurgel. O caso poderia não ter importância nenhuma se anos depois o próprio Bentinho não ficasse comparando as feições de Escobar às de um retrato de Ezequiel. Em outros termos, trata-se de mais um indício plantado na narrativa para mostrar que as certezas de Bento poderiam virar pó quando confrontadas com outra maneira de pensar, com outra visão de mundo. Porém, não é interessante a Bentinho simplesmente aceitar isso. Ele tem de defender-se, defender o que considera um ultraje à sua moral, à moral de um homem rico no século XIX. Adiante, no capítulo XCIX, após seguir sugestão de Escobar, para quem poderia fazer cumprir-se a promessa de D. Glória pagando a outro para ordenar-se padre, Bentinho, já com 22 anos e formado em Direito, retorna a sua casa e sua mãe diz que ele está bem parecido com o pai. Aproximando os dois capítulos, vemos como o sentido pode ser manipulado de acordo com o interesse do enunciador. À descrição da semelhança entre a mãe de Sancha jovem e Capitu, segue-se a narração da morte do Manduca, um jovem leproso de quem era vizinho; tornaram-se amigos, por assim dizer, quando Bentinho e Manduca iniciam uma contenda sobre a Guerra da Crimeia (1853-1856), envolvendo o império Russo e a Turquia. Para o primeiro, a Rússia sairia vencedora, pois tinha a razão em seus planos expansionistas; para o segundo, ao contrário, a justiça estaria com os aliados (Turquia, Inglaterra e França). A todo instante, Manduca repete que “os russos não hão de entrar em Constantinopla”. A contenda serve para o já velho Bento Santiago refletir sobre o desaparecimento de Estados e, em última instância, o fim daquilo que parece eterno. “Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo” (p. 176), diz adiante. A reflexão ganha significado apenas quando, quase no final da narrativa, revela que julgava ter sido traído. O casamento, que imaginava eterno, também pode acabar. À segunda comparação, segue-se a entrada de Bento Santiago à vida adulta. Bentinho passa a ser o Dr. Bento Santiago, advogado e herdeiro de toda a fortuna da família. O menino tímido, cheio de medos e imaginação fértil e pouco prática, tem de morrer para ocupar o lugar do pai, o lugar de chefe patriarcal. A mãe enviuvara aos 30 anos e permanecera fiel à memória do marido, vestindo o luto. Esse é o modelo de conduta que Bento pretende seguir e espera que Capitu também siga. No entanto, a incerteza, a dúvida, a imaginação para preencher essas lacunas concorrem para abalar tal modelo. E para isso, o futuro chefe patriarcal não estava preparado. Essa é a razão de todo o lirismo com que é narrada a maior parte das memórias e que cede espaço ao cinismo de modo mais categórico utilizado nos capítulos finais, em especial a partir do capítulo CXVIII. Claro, há muitos momentos de cinismo ao longo de todo o livro, porém torna-se franco e explícito nas últimas páginas. Outro aspecto que tem a função de corroborar a própria tese de Bentinho, segundo a qual ele, se não fosse tão tímido e inocente, poderia ter tido uma vida mais feliz, sem traição, é o relato do ciúme. Isso tanto pode indicar uma falsa percepção da realidade, como confirmar que a “Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos” p. 210). Ou seja, conforme afirma o narrador, teria havido muitos indícios de que Capitu não seria totalmente confiável e de que ele, por sua vez, seria um inocente. No capítulo LXII, maquiavelicamente intitulado de Uma ponta de Iago, Bento pergunta a José Dias como está Capitu, ao que ele responde: — Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela... (p. 100) Iago é quem, na peça Otello, o mouro de Veneza, de Shakespeare, planta na cabeça do mouro a dúvida sobre a moral de sua esposa, Desdêmona. Iago é, pois, o advogado do diabo. É o papel que, consciente ou inconscientemente, cumpre o agregado. Estar alegre para Bentinho é um atentado contra o sofrimento pelo qual vem passando no seminário. Ainda que isso não precise ser necessariamente verdadeiro, ganha ares de verdade na boca de José Dias e na mente do seminarista. 18 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 18 29/05/2012 15:48:02 No capítulo CXXXV, quando já revelara explicitamente o motivo principal da redação do livro – a desconfiança/certeza de ter sido traído – Bento vai ao teatro para tentar distrairse. Contudo, a peça que se encenava era exatamente Otelo. A encenação poderia tê-lo feito perceber que nem sempre aquilo que parece verdade é, com efeito. Podemos nos enganar ou sermos enganados por força das circunstâncias ou pela maledicência alheia. Não é essa leitura que faz. Ao contrário. Embora saia convicto de que Desdêmona pagara por um erro não cometido, imagina o que deveria ser feito de Capitu uma vez que, em sua mente, não restava dúvida da culpabilidade da esposa. E era inocente, vinha eu dizendo rua abaixo; que faria o público, se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu? (grifo nosso, p. 195) Bentinho, importante assinalar, está convencido da culpa da mulher, porém há diversos indícios ao longo da narrativa que parecem contradizer essa certeza. E outros tantos que confirmam a desconfiança. É por esse motivo que o romance gerou interpretações diversas. Inclusive a de que Bentinho e Escobar teriam tido um relacionamento mais íntimo. Mas não vamos por essa linha. Retomemos o capítulo II do livro, em que descreve a casa onde mora atualmente, no Engenho Novo. Chama a atenção para quadros de quatro personalidades históricas: César, Augusto, Nero e Massinissa. Não entra em detalhes sobre nenhum. O leitor mais atento, porém, sabe que todos foram vítimas de traição, não exatamente vítimas de adultério. Massinissa da Numídia, por exemplo, era aliado dos romanos, e casado com Sofonisba, cartaginesa irmã do famoso Aníbal, o qual lutou contra Roma na segunda guerra púnica (século III a.C.). Há duas versões para a história da traição de Massinissa. Uma diz que teria dado veneno à esposa para ser poupada da vergonha pública em Roma, quando feita prisioneira. Outra que afirma ter dado veneno a ela ao imaginar que fosse adúltera. A referência a esse personagem, portanto, serve como síntese das duas possibilidades de leitura que o livro proporciona. Interessante que no final do livro, quando Ezequiel regressa da Europa para visitar Bento, na sala, enquanto o aguardava, o já adulto Ezequiel fica olhando fixamente para o quadro de Massinissa. Não faz qualquer comentário, nem o narrador. E, no auge da desconfiança, quando Bento pensava em tomar ele próprio veneno misturado ao café, em um momento de desatino total, pensa em dar o café ao filho. Ezequiel abriu a boca. Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-la cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse (...) Mas não sei que senti que me fez recuar. (p. 197) A sequência é dramática. O menino chama Bento de pai e ele diz categoricamente que não era seu pai. Capitu ouve e aí tudo se revela às claras a ela e também ao leitor. Seria o momento de ela defender-se, mas o advogado Bento Santiago praticamente não lhe dá voz, razão pela qual o ponto de vista absoluto do narrador deve ser relativizado pelo leitor. Basicamente, o máximo que lhe permite dizer em sua defesa encontra-se no capítulo CXXXVIII. Mesmo assim é pouco. O pouco, porém, é suficiente para reforçar a causa principal de sua desconfiança: a semelhança entre Ezequiel e Escobar. Diz Capitu: “Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança...” Dias é um agregado, tipo especial na sociedade escravagista brasileira do século XIX. Além dele, que não é da família, moram na casa de D. Glória, o irmão viúvo, Cosme, e Justina, prima de Bento. Ela também é viúva. Os dois, embora parentes, não têm dinheiro e vivem de favor. A gama das relações de dependência paternalista no romance é variada e escolhida. Além do proprietário e do agregado, as figuras incluem escravos, vizinhos com obrigações, comensais, parentes pobre em graus diversos (...). (SCHWARZ, p. 23) Essa relação, amplamente estuda pelo crítico Roberto Schwarz em vários ensaios sobre a obra de Machado de Assis, indica um modus vivendi contrário às aspirações brasileiras de participar do liberalismo econômico. Em outras palavras, a mentalidade burguesa brasileira, a qual, pretensamente, deveria possibilitar a todos a possibilidade do trabalho e da vida diga e independente, manteve em sua estrutura o trabalho escravo. Em consequência, aos homens livres, pobres, e, muitas vezes, sem estudo, restava viver sob a cooptação, sob o favor de uma pessoa rica. Esse é o papel de D. Glória, que, quando enviuvou, vendeu a fazenda e mais o que pôde, comprou a casa na rua Matacavalos, e outras que alugava, além de alguns escravos, também alugados. É a vida econômica baseada não no trabalho, e sim na renda pura e simples. Dessa maneira, cria-se uma rede de dependência econômica cujo movimento o romance procura apreender. É a política do favor, presente também nas Memórias de um sargento de milícias. José Dias, por exemplo, paga sua moradia, comida, com conselhos. Chegou à casa dos Santiago como médico e lá permaneceu como conselheiro de assuntos gerais. No entanto, seus conselhos são dados com muito cuidado, para não suscitar radicalismos que o levariam a ter de sair da casa. Ao mesmo tempo em que aconselha D. Glória para ficar de olho nas então crianças Bentinho e Capitolina, o que desviaria o menino do seminário, procura ajudar Bentinho a suportar a ida ao seminário com a promessa de que faria tudo para demover D. Glória de seu intento de fazer padre o filho único. No entanto, é de Escobar a sugestão para que D. Glória fizesse padre outro jovem que a promessa estaria cumprida do mesmo jeito. Para Dias, a solução seria viajar a Europa até que D. Glória se esquecesse da promessa. Embora soe patético, José Dias diz a Bentinho não ser favor de ninguém que venha a alcançar a felicidade. Leia-se casar com Capitu. Quando poderia contrariar a senhora matriarcal, Dias via como negativo o namorico de Bentinho, e, além de chamar o Pádua de tartaruga, caracterizou os olhos de Capitu como oblíquos e dissimulados, mas ao perceber que o casamento poderia agradar a D. Glória, uma vez que Capitu aproximara-se muito dela e passara a cumprir o papel que antes era de Justina, Dias também muda o modo de olhar para a filha do Pádua: Cuidei o contrário outrora; confundi os modos de criança com expressões de caráter, e não vi que essa menina travessa e já de olhos pensativos era a flor caprichosa de um fruto sadio e doce... (grifo nosso, p. 152) Os olhos oblíquos e dissimulados mudam para pensativos, e a menina que desviaria Bentinho de seu caminho, deve, agora, ser incorporada à família. Com a morte de D. Glória, Dias vive seus últimos dias como agregado exatamente de Bento Santiago. Bento manda gravar na lápide do jazigo da mãe simplesmente a palavra Santa. Embora tenha tido necessidade de pedir 19 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 19 29/05/2012 15:48:02 permissão ao padre, o fato é revelador de dois conceitos inerentes à narrativa: o papel da mulher na sociedade oitocentista. D. Glória, viúva jovem, mesmo tendo exigido do filho o que ele não poderia ser, ter agido como senhora matriarcal, manteve-se presa à família e à memória do marido, o que, no contexto do livro fez dela uma santa, segundo o olhar de Bento Santiago. Ao passo que sua esposa, mãe do seu possível filho, à qual jurou amor eterno, pagou com uma expulsão de casa e uma morte solitária, sem gravações em lápides. Com isso o que poderia significar sua tentativa, seu desejo de querer atar as duas pontas da vida? Retomar o tempo do idílio, da descoberta do amor e o sucesso, por conta da promessa, e relacioná-lo ao tempo do desencanto? Ao leitor, parece significar apenas uma espécie tentativa de abdicação de qualquer culpa em seu casamento. Ele amou a esposa, julgava-se amado e, segundo sua óptica, foi duplamente traído pela mulher e pelo amigo. No capítulo CXVIII, Bento narra um acontecimento que seria, em outro contexto, esquecido no porão da memória. No entanto, adquire significado singular quando confrontado com a traição sofrida. Em uma noite, ele, Capitu, José Dias e Prima Justina estiveram jantando na casa de Escobar e Sancha. Em dado momento, Bentinho conversava com Escobar, que lhe falava de planos, mas sem explicitar quais. Sancha então se aproximou do advogado e contou-lhe que a ideia era passearem juntos, os dois casais, na Europa dali a dois anos. Na sequência, Sancha afastou-se, mas continuou a olhar para Bentinho. Entretanto, os olhos de Sancha não convidavam a expansões fraternais, pareciam quentes e intimidativos, diziam outra cousa, e não tardou que se afastassem da janela, onde eu fiquei olhando para o mar, pensativo. (...) Quando saímos, tornei a falar com os olhos à dona da casa. A mão dela apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume. (p. 177-178) Exercícios 1. (Fuvest-GV-SP) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. É o que diz o narrador no segundo capítulo do romance Dom Casmurro. Afinal, por que não teria ele alcançado o seu intento? (A) Pelas dificuldades inerentes à estrutura do romance, na recuperação de outros tempos. (B) Pelo receio de confessar suas fraquezas e a traição sofrida. (C) Porque era impossível recuperar o sentido daquele período, pois ele já não era a mesma pessoa. (D) Pela falta de bom senso e de clareza na apreensão das lembranças. (E) Porque o tempo, impiedoso, apaga todos os acontecimentos e transforma as pessoas. 2. (UFLa-MG) Todas as alternativas apresentam informações sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis, exceto: (A) A questão do adultério, tratada de forma ambígua pelo autor, permanece em aberto no fim da narrativa. (B) O narrador, através do exercício da memória, busca ligar o presente ao passado, a velhice à adolescência. (C) O narrador protagonista, ao assumir a primeira pessoa, apresenta uma visão tendenciosa dos acontecimentos. (D) O autor, introduzindo-se na narrativa, fornece ao leitor informações que contradizem as opiniões do narrador. (E) A narrativa, marcada pela ironia, mantém uma relação intertextual com a tragédia Otelo, de Shakespeare. 3. (PUC-Camp-SP) O trecho abaixo é parte do último capítulo de Dom Casmurro, de Machado de Assis: O resto é saber se a Capitu da Praia da Glória já estava dentro da de Mata-cavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. I: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca. Trata-se, pois, de uma traição virtual entre os dois, a qual não se concretiza, eis a razão da lembrança, por imaginar que se sentiria mal em trair o amigo. É como se quisesse dizer: eu não o traí, embora devesse, posto que fui traído antes. O retrato de Escobar pareceu falar-me; vi-lhe a atitude franca e simples, sacudi a cabeça e fui deitar-me. (p. 179) Bentinho finaliza suas memórias buscando um alento. Embora tenha tentado esquecer Capitu com outras mulheres, em geral prostitutas, não conseguiu. Alude então, por meio de um aforismo, que a culpa talvez tenha sido dele próprio, mas conclui que, no fim das contas, o caráter de sua ex-esposa a teria levado a agir como agiu, e conclama o leitor a pensar igual: Invocando aqui a memória e o testemunho do leitor de sua história, o narrador arremata a narrativa: (A) lembrando que os ciúmes de Bentinho por Capitu poderiam perfeitamente ser injustificáveis. (B) concluindo que a única explicação para a traição de Capitu é a força caprichosa de circunstâncias acidentais. (C) citando uma passagem da Bíblia, à luz da qual acaba admitindo a possibilidade da inocência de Capitu. (D) pretendendo que a personalidade de Capitu tenha se desenvolvido de modo a cumprir uma natural inclinação. (E) se mostra reticente quanto à convicção de que fora traído, sugerindo que continuará ponderando os fatos. Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra (adulta), como a fruta dentro da casa. (p. 210) Do mesmo modo que Bentinho conclama explicitamente o leitor a concordar com ele, fica subentendido que cabe a esse mesmo leitor buscar no não dito, nos desvios da narrativa, nas entrelinhas a compreensão de que o ponto de vista absoluto de Bentinho é sua própria negação. 4. (PUC-PR) Com base na leitura de Dom Casmurro e considerando a importância de Machado de Assis para a literatura brasileira, identifique as alternativas como verdadeiras ou falsas: 20 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 20 29/05/2012 15:48:02 ( ( ( ( ) Escrito quando o Realismo era a estética dominante, Dom Casmurro é antes um “romance filosófico” que um “romance social”. ) Ao contrário de diversas heroínas românticas, punidas com a morte por comportamentos inadequados para os padrões de sua época, a principal personagem feminina de Dom Casmurro não morre no final da narrativa. ) Ainda que acreditasse não ser pai de Ezequiel, Bento Santiago não deixou que isso interferisse na relação paifilho, e sempre quis ter o rapaz muito perto de si. ) Assim como em Esaú e Jacó, a presença do Imperador e as referências à vida política brasileira são constantes em Dom Casmurro e interferem nos acontecimentos narrados. disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão. Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas. Na principal destas, a pintura do teto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do teto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com exterior, que é ruidosa.” A sequência correta é: (A) V, F, F, F (B) F, F, F, V (C) F, V, F, V (D) V, V, V, F (E) F, V, F, F 5. (UFPR) A propósito de Dom Casmurro, de Machado de Assis, é correto afirmar: (A) A narrativa de Bento Santiago é comparável a uma acusação: aproveitando sua formação jurídica, o narrador pretende configurar a culpa de Capitu. (B) O artifício narrativo usado é a forma de diário, de modo que o leitor receba as informações do narrador à medida que elas acontecem, mantendo-se assim a tensão. (C) Elegendo a temática do adultério, o autor resgata o romantismo de seus primeiros romances, com personagens idealizadas entregues à paixão amorosa. (D) O espaço geográfico e social representado é situado em uma província do Império, buscando demonstrar que as mazelas sociais não são prerrogativas da Corte. (E) Bentinho desejava a morte de Escobar (até tentou envenená-lo uma vez), a ponto de se sentir culpado quando o ex-amigo morreu afogado. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Aguilar Editora, 1971. p. 809 e 810. a) b) 6. (UFPR) Assinale a alternativa correta. (A) A ironia subjacente às respectivas narrativas permite ao leitor a crítica e a dúvida em relação às ações e aos personagens tanto em “Memórias de um sargento de milícias” como em “Dom Casmurro”. (B) Existe uma identidade entre “Seminário dos ratos” e “Leão-de-chácara” que se constrói no fato de ambos serem coletâneas de contos cujas temáticas tratam da oposição entre sociedade urbana e interiorana brasileiras. (C) Em “O pagador de promessas” e “O santo e a porca”, reconhecemos, além do viés dramático, características de um aspecto cultural bastante importante para a sociedade brasileira: a religiosidade de tradição africana. (D) Em “Como e por que sou romancista”, de José de Alencar, o dado autobiográfico é disfarçado no simulacro de uma narrativa ficcional com personagens e datas modificadas. (E) Em “Terras do sem fim” e “O santo e a porca”, o conflito principal nasce da disputa pela terra. Nesse início de capítulo, o narrador usa, como estratégia discursiva, a função metalinguística. Explique como essa função se realiza, relacionando o primeiro ao segundo parágrafo e apontando implicações que essa estratégia narrativa provoca no conjunto da obra. O tema da traição, central em romances fundamentais do Realismo francês e do português, como é o caso de Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1857) e de O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878), torna-se impreciso na linguagem bastante conotativa, portanto, ambígua, criada por Machado de Assis (1899). Explique como esse tema é sugerido por meio da ironia construída no discurso e manifestada mais enfaticamente na frase: “não alcanço a razão de tais personagens”. 8. (UFMT) Em relação às opiniões da personagem machadiana 7. (FGV) Para responder às questões abaixo, leia, do romance José Dias em Dom Casmurro, marque V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas. ( ) Namoro com Bentinho representa oportunidade de ascensão social para a gente do Pádua. ( ) Descuido do Tartaruga na vigilância da filha era intencional, puro cálculo. ( ) Projeto de fazer Bentinho padre pode ser dificultado por eventual namoro com Capitu. ( ) Dona Glória acreditava na capacidade do Pádua fazer cálculos, planejar um futuro melhor para Capitu. Assinale a sequência correta. (A) (B) (C) (D) (E) V, V, F, V V, F, V, F F, V, F, V F, V, V, F V, V, V, F de Machado de Assis, o início do segundo capítulo denominado “Do livro”: “Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes 21 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 21 29/05/2012 15:48:03 CAPÍTULO IV - Melhores poemas de Manuel Bandeira O prosaico e o sublime Manuel Bandeira (1886-1968) é um desses poetas que leva o leitor a pensar que escrever poesia é um processo simples, mas percebe, quando se põe a ler os textos poéticos, que a simplicidade é apenas aparente: há nela uma profundidade que se revela aos poucos. Poeta menor em sua autodenominação, Bandeira, sob essa aparente humildade, é antes um poeta maior, dono de uma obra de grande amplitude simbólica e reflexiva. Acompanhar a trajetória de sua poesia é acompanhar os caminhos da poética moderna e as possibilidades da linguagem literária. Paradoxalmente, à queda da poesia numa sociedade cada vez mais técnica, mais materialista, surgiram poetas que procuraram dizer que a poesia está aí apesar de tudo. Sem dúvida, entre eles figura o nome de Manuel Bandeira, capaz de ver nas coisas e lugares menos prováveis uma carga simbólica que apenas a linguagem poética é capaz de apreender. Acompanhemos, pois, um pouco dessa trajetória, dos temas por ele explorados e do trabalho com a linguagem ao longo das páginas a seguir. Bandeira tem uma proximidade com a poesia da portuguesa Florbela Espanca, no que diz respeito a usar da arte poética para expressar a dor de viver, as dificuldades inerentes da vida. Cada qual com suas desilusões e dissabores, ambos buscaram levar ao leitor, por meio de sua produção, um sentimento individual, que poderia representar o sentimento do mundo. Em outros termos, uma visão pessoal que revela uma visão coletiva. Em rigor, essa é umas das funções da literatura: dar a conhecer o mundo pela linguagem. A realidade é um fato, mas apreendemos essa realidade mediante a linguagem. O poeta, pelo seu trabalho, seria, pois, o mediador entre o mundo, a realidade e o indivíduo. No caso específico do poeta pernambucano, seu dissabor inicial foi o de ter adoecido dos pulmões na juventude. Aos 18 anos, soube-se tuberculoso. Estudante de Engenharia, talvez pela iminência da morte, talvez pela ânsia de querer viver o máximo possível, abandona os estudos e se entrega à sua verdadeira paixão: escrever. Autor de antologias da poesia brasileira, Bandeira se dedicou ao estudo da poesia romântica, cuja estética, se não está presente em sua obra, tem muito a explicar, sobretudo pensando-se na chamada fase ultrarromântica, quando, desiludido com a vida, com os amores frustrados, com a vida que poderia ter sido, o poeta se entregava ao desejo da morte, à tematização desse desejo. Bandeira, ao contrário, aceita a iminência da morte, que o torna, paradoxalmente, mais vivo. Esse paradoxo é traduzido em poemas que ora resvalam para a tragédia, como em “Desencanto”, de 1912: Eu faço versos como quem chora De desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora Não tens motivo nenhum de pranto. Ora para a resignação, como em “Momento num café”, em busca de um sentido geral para a morte, vista não como um mal, e sim como uma libertação das obrigações morais, e ora com ironia, posto que diante da presença absoluta da morte, o que resta é ironizar a própria vida. Trata-se de uma temática constante em sua obra. Porém, se a morte se constitui num escapismo para o poeta romântico, para Bandeira o escapismo é desejar a vida e tudo o que ela tem de fugaz, de transitório, de efêmero. É como se tentasse buscar sentido nessa efemeridade. Dentro dessa linha, há diversos poemas, notadamente dois que já se tornaram clássicos para o leitor bandeiriano: “Pneumotórax” e “Vou-me embora pra Pasárgada”. No primeiro caso, tem-se um poema escrito à maneira de diagnóstico. – O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. Esse senhor do poema pode ser visto como o próprio Bandeira, mas, poeticamente, todos que têm uma doença ou algo que dificulta viver plenamente. Ao ouvir o diagnóstico, o eu lírico pergunta: – Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? O pneumotórax era um tratamento para a tuberculose defendido pelo médico Aloysio Veiga de Paula, por sinal grande amigo do próprio Bandeira e de outros artistas. A resposta, em tom irônico, indica o escapismo para a vida. – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. Em outros termos, ante a inevitabilidade da morte, deve-se viver o máximo que se puder. E o tango, estilo musical e dança bastante sensual, indica a busca pelo momento, a busca do prazer momentâneo, capaz de devolver a vida que a doença tirou. No caso do segundo poema, Pasárgada, uma cidade da antiga Pérsia, atualmente um sítio arqueológico no Irã, é expressa no poema como um local idílico, um local em que todos os problemas, todas as dificuldades da vida ficam para trás, o amor é possível, a realização dos desejos também, a vida simples se manifesta, ocorrem as coisas mais disparatadas. Por isso, o eu lírico repete o refrão: Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora para Pasárgada Esses versos também indicam outro ponto da poética romântica que colabora para, por oposição, compreender a poética de Bandeira. Enquanto que para os românticos, o amor verdadeiro, eterno, ideal, só pode ser realizado em sonho ou com a morte, na poesia de Bandeira, o que importa é vivenciar o que a vida oferece. E o amor que se encontra muitas vezes é o das prostitutas, o das mulheres da vida, que, se não oferecem o amor ideal, dão um amor possível para se sentir vivo. Há vários poemas nessa linha, entre os quais: “A arte de amar”, “Chama e fumo” ou “Vulgívaga”, no qual se lê: Não posso crer que se conceba Do amor senão o gozo físico! O meu amante morreu bêbado, E meu marido morreu tísico! Amor e morte são constantes em sua poética. Mas, conforme, queremos explicar, em sentido diferente da poesia ultrarromântica de Álvares de Azevedo, por exemplo. Seja pela 22 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 22 29/05/2012 15:48:03 Nem uma nuvem de amargura Vem a alma desassossegar. E sinto-a bela... e sinto-a pura... proximidade simbólica, seja por revelarem o contraste entre o eterno e o efêmero. Em “Maçã”, por exemplo, essa oposição se revela num momento de grande lirismo: Por um lado te vejo como um seio murcho Por outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda o cordão placentário És vermelha como o amor divino Dentro de ti em pequenas pevides palpita a vida prodigiosa Infinitamente E quedas tão simples Ao lado de um talher Num quarto pobre de hotel. Numa primeira leitura, percebe-se claramente que o eu lírico está falando da fruta, da maçã, conforme indica o título. No entanto, até pelo aspecto simbólico que tem a maçã na cultura ocidental, como referência ao fruto proibido, que leva o homem à perda do Paraíso, amparada, especialmente, na primeira estrofe, há uma clara conotação sexual. Comparada, pela aparência e pela função de criar vida, ao amor divino, o que lhe confere um aspecto eterno, revela-se frágil a ponto de perder a vida de modo tão prosaico “num quarto pobre de hotel”. Tratase, pois, de um contraste cuja função é o de revelar os paradoxos da vida, que tendem a se resolver de modo prosaico, banal. É como um mundo decaído. Do amor divino à morte banalizada, sem brilho. Mas é exatamente esse aspecto humilde da maçã que desperta a atenção do eu lírico e o faz se identificar com ela. Em alguns casos, verifica-se na poética bandeiriana, sem ser exatamente uma regra, o contrário. Isto é, descobre-se quão eterno pode ser um sentimento em contraste com os desejos fugazes, externados de modo lascivo e sem qualquer vergonha. Assim, no poema “Sonho de uma terça-feira gorda”, o eu lírico revela o sonho que tivera com a amada, em que ambos se sentem completos um pelo outro e desprezam o burburinho que fazem as pessoas na terça de Carnaval: A turba, ávida da promiscuidade, Acotovelava-se com algazarra, Aclamava-as com alarido. (...) Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade, (...) A alegria estava em nós. Era dentro de nós que estava a alegria, – A profunda, a silenciosa alegria... É bem verdade que essa eternidade tem um caráter irônico, posto que, em rigor, o eu lírico sabe-se transitório. Por esse motivo, em “O descante de arlequim”, o palhaço, personagem comum dos carnavais, também é conhecido por ser um amante, um farsante, e que, por esta razão, tende apenas a vivenciar os desejos, sem qualquer compromisso. A eternidade, para ele, seria apenas o sentimento do momento. No poema, o seu descante, o seu canto, serve para lembrar a ouvinte de que está pronto para amá-la com intensidade, porém de modo fugaz: E eu, vagabundo sem idade, Contra a moral e contra os códigos, Dar-te-ei entre os meus braços pródigos Um momento de eternidade... A visão irônica do amor está claramente presente ainda em “Poemeto irônico” e reafirmada em “Arte de amar”. Em ambos, o amor é algo meramente carnal. A ideia romântica de que o amor se realiza na alma, naquilo que não é visível, é descartado pelo eu lírico. O amor só pode ocorrer no plano físico, corpóreo. Qualquer outra forma de amar seria uma mera fantasia, não corresponderia à realidade: Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma. (...) Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. Ainda considerando a aproximação entre a poética de Bandeira e a romântica, podemos pensar na tematização da Lua. Bandeira escreveu diversos poemas para tratar da Lua. Em um deles, “O inútil luar”, o eu lírico, ao passear por um largo durante a noite, observa algumas pessoas e suas ações: um velho que faz supor estar pensando na infância ou analisando um papel, dois moços, “um de compleição raquítica” (por alusão ao romantismo), que falavam de política, e, por fim, duas mulheres que falam sobre a mãe que talvez viesse. Mas o que chama a atenção mesmo do eu lírico é a indiferença das pessoas ante a Lua, que segue sua órbita impassível: E embalde a Lua, ardente e terna, Verte na solidão sombria A sua imensa, a sua eterna Melancolia... Embora seja a revelação de um sonho, momentâneo pela própria natureza, o poema se mostra epifânico, pelo teor de alumbramento, de plena satisfação e alegria. O mesmo ocorre com outro poema publicado em “Carnaval”, “Alumbramento”, em que ver a mulher desejada nua, “sem tristes pejos e sem véus!”, equivale a descortinar imagens variadas, que permanecem na memória para sempre, como a neve, o mar, a estrela, a lua e até mesmo um licorne alvinitente, isto é, um unicórnio branco. Trata-se da imagem suprema da pureza, da virgindade. Em outros termos, vê-la nua não significaria a revelação simples do desejo passageiro, mas antes o próprio despertar de uma possível vida eterna: Nesse poema, a Lua é uma testemunha das ações humanas e o eu lírico tenta captá-las sob as sombras da noite. O mesmo conceito sobre a Lua está em “Paisagem noturna”. A paisagem é a do vale, e não mais a do largo, da cidade. Talvez por isso, a Lua surge para romper com as trevas e trazer vida. Não se lhe é indiferente. Ouve-se o coaxar dos sapos e toda sorte de sons, indicando o despertar da paisagem: E o luar úmido... fino... Amávico... tutelar... Anima e transfigura a solidão cheia de vozes... Como contraste, quando não há Lua na noite, a tristeza se instala, como ocorre em “Cantilena” e “Noite morta”. Neste 23 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 23 29/05/2012 15:48:03 último, o eu lírico toma a noite como referência aos dissabores da vida, como alusão aos que faleceram. A noite seria, pois, metaforicamente uma sombra para a vida. Uma variante temática para enfocar a eminência da morte, “a vida que poderia ter sido e não foi”. Bandeira voltou ao tema por diversas vezes. Outros dois poemas chamam a atenção. “Lua nova”, publicado em 1953, e “Satélite” funcionam como uma espécie de revisão temática. No primeiro caso, o eu lírico diz querer a Lua Nova ao invés de uma Lua Cheia. Como se sabe, a Lua Nova é o momento da fase lunar em que não fica visível. Por isso, ao desejar a Lua Nova é como se quisesse chegar, efetivamente, ao fim, apagar-se da vida. Claro que não se aborda uma obra literária, nem sempre se chega a uma interpretação correta, estabelecendo uma relação direta entre autor e texto, mesmo porque a literatura é o espaço da mentira declarada, da verossimilhança, da vida possível e não da vida real. Afirmar que o autor escreve “Lua Nova” porque desejava a morte é, talvez, errar na nota. Mas, sem dúvida, que, conforme vimos demonstrando na análise de outros poemas, a tematização da morte é uma constante. Voltaremos a tratar da questão adiante. Por ora, expliquemos a escolha do outro poema “Satélite”. O título indica uma clara mudança no tratamento e no ângulo de visão. O termo “lua” é substituído pela palavra técnica, que indica o corpo que gravita em torno do planeta. Esse ângulo é confirmado pelos versos: Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e dos enamorados. Mas tão-somente Satélite. A Lua perde toda sua simbologia literária, construída pelos poetas românticos (“O astro dos loucos e dos enamorados”), pelos simbolistas, parnasianos (“Despojada do velho segredo de melancolia” é uma referência a um poema de Raimundo Correia) e pelo próprio Manuel Bandeira. É apenas um satélite, despojado de conotações. Apesar da linguagem denotativa, ainda assim o eu-lírico vê poesia no satélite. E talvez seja exatamente a perda da significação, como se a lua poética não mais existisse em favor de uma lua real. A questão da poética romântica é retomada de modo mais explícito em “Canção para a minha morte”. Trata-se de um poema que alude a um trecho de um famoso poema de Gonçalves Dias, um dos principais poetas românticos brasileiros. Em “I-jucapirama”, Dias narra a história de um índio tupi que é capturado por uma tribo inimiga e, antes de ser morto, apresenta-se aos seus algozes. Em dado momento, diz: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi! O eu-lírico do poema de Bandeira, ao contrário, afirma: Bem que filho do Norte, Não sou bravo nem forte. Mas, como a vida amei Quero te amar, ó morte, Enquanto o poema romântico é escrito em redondilha menor (versos de cinco sílabas), o segundo apresenta verso de seis sílabas. Mas a diferença capital é outra vez no ângulo com que se canta a iminência da morte. No primeiro, o guerreiro sabe que, embora jovem, será morto pela tribo que o aprisionou e pede para que o libertem, pois tem de cuidar do pai velho e cego; e, no outro, o eu lírico, já idoso, aceita a chegada de seu algoz, sabe que não há mais como fugir dela, e nem quer mais isso. A tematização dessa preparação para a morte está presente também em um de seus mais belos poemas, “Consoada”. O título soa um pouco irônico, pois consoada é a ceia de Natal, que celebra a vida, o nascimento de Cristo. No poema, ao contrário, é a chegada da morte, que, segundo o eu-lírico, o encontrará pronto, “com cada coisa em seu lugar”, pois sabe que não se pode fugir dela, sabe que a morte é “iniludível”. Ela é a Indesejada das gentes, porém o eu lírico, se não a deseja, também reconhece sua iminência. E será pela morte que obterá a eternidade, não a eternidade dos céus, divina, e sim porque põe fim a transitoriedade da vida. São poemas escritos em meados do século XX, quando Bandeira já passava dos 70 anos (faleceria aos 82 anos), e a morte não é, pois, algo de que se deva afastar-se, mas sim para a qual devemos estar preparados. Não é por acaso que publicou ainda “Preparação para a morte”, no qual se lê: “Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”, “Vontade de morrer”, título bem ao gosto ultrarromântico como “Lembrança de morrer”, de Álvares de Azevedo, e ainda “Programa para depois de minha morte”. Os poemas ganham mais significados quando confrontados com o princípio básico que norteia a produção poética de Bandeira: a humildade. A poética bandeiriana é, pois, marcada pela humildade, pela tematização dos desvalidos e esquecidos. O objetivo final é descobrir no mundo decaído algo de sublime, como no poema “Maçã”, em que uma maçã carrega toda uma simbologia de caráter ético e mesmo divino, mas está em um ambiente simples e degradado. O eu lírico se identifica com a maçã por perceber nela aspectos da condição humana, posta entre a divinização e o prosaísmo de uma vida sem perspectiva. Há outro poema de Bandeira, que não consta da Antologia de que estamos nos servindo, intitulado “Poema do beco”, publicado no livro “Estrela da Manhã”, de 1936: Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco. Trata-se de um dístico, isto é, um poema de dois versos. No primeiro, temos uma visão ampla da paisagem, provavelmente o eu lírico se refira à Baía da Guanabara, ao bairro da Glória, próximo à Lapa, onde morou um bom tempo o poeta. Tudo isso, incluindo a linha do horizonte, o que se enxerga para além, é rejeitado pela perspectiva do eu lírico, que consegue ver apenas o beco. O beco, como se sabe, é um local estreito, às vezes sem saída, o que contrasta, portanto, com a linha do horizonte. Interessante que anos depois, Bandeira voltou a falar do beco em três outros poemas: “Primeira canção do beco”, “Segunda canção do beco” e “Última canção do beco”. Os títulos prontamente remetem o leitor de poesia a três títulos de livros de Gonçalves Dias: “Primeiros cantos”, “Segundos cantos” e “Últimos cantos”. Dias participou do primeiro momento da poesia romântica, a qual tinha como uma de suas características essenciais a construção do sentimento patriótico, cujo poema “Canção do exílio” pode ser visto como paradigmático desse 24 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 24 29/05/2012 15:48:03 projeto. Se nem todos os poemas dos três livros expressam esse conceito, subsiste a ideia de alargar os horizontes brasileiros, de ampliar a perspectiva em direção a um projeto de âmbito nacional. Os poemas de Bandeira, ao contrário, não apresentam essa perspectiva, posto que limitada pela visão do beco. O que se tem em tais poemas é o mesmo conceito presente em “Maçã” e diversos outros poemas do autor: descobrir no humilde, na vida rebaixada o que ela tem de sublime. “Última canção do beco” refere-se a um acontecimento real da vida do poeta, que teve de se mudar devido à expansão da cidade. O local seria demolido. O que permanecerá será a lembrança dos amores efêmeros oferecidos por prostitutas e a lembrança dos amores impossíveis, irrealizáveis, tema específico dos outros dois poemas: Beco que cantei num dístico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (mas também dos meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos), Adeus para nunca mais! Em rigor, Bandeira, do ponto de vista formal, já iniciara uma renovação da poesia nacional ainda sob o período do decadente parnasiano, no início da década de 10 do século XX. Para ser mais preciso, já nos poemas publicados em “A cinza das horas”, de 1917, e escritos a partir de 1912, percebe-se o uso do verso livre e de certo coloquialismo, mais explorado no livro seguinte “Carnaval”, de 1919, e elevado a programa modernista em “Ritmo dissoluto” (1924) e “Libertinagem” (1930). Paradigmático desse ideário é o poema “Os sapos”, publicado em 1919 no livro Carnaval e declamado por Ronald de Carvalho na Semana de Arte Moderna. O poema faz uma analogia metafórica entre o sapo-tanoeiro (poeta parnasiano) e o sapo cururu (poeta moderno). Enquanto o primeiro defende sua arte como “rara joia”, o segundo aparece timidamente, tentando se fazer ouvir: Lá fugido ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo cururu Da beira do rio... Segundo Rogério Silva Pereira e Aline Câmara Zampieri: A poesia de Bandeira se apresenta como espécie de linguagem simples a esconder um enigma que, aos poucos, se revelará ao leitor como forma complexa. Apresenta-se, por outro lado, como expressão de um instante de sua vida, confissão intimista, que ganha, em seguida, alcance geral. Numa outra fórmula: em sua poesia, a experiência mais cotidiana se revela, aos poucos, plena de sentido transcendental. Uma constante na obra de Bandeira, dentro dessa linha de olhar para o degradado, o humilde, é a temática da prostituta. Tal temática está também diretamente ligada à questão do amor fugaz, dos desejos. Há vários exemplos nessa linha, como em “A estrela e o anjo” e, particularmente, no poema “Estrela da manhã”. Trata-se de uma mulher desejada pelo eu lírico, ao mesmo tempo inatingível e pronta para atender a todos: De qualquer modo, “Os sapos” ainda não é um poema propriamente modernista, antes anuncia o que viria a ser. É um grito contra as regras canônicas da poesia parnasiana que se faziam presentes nas primeiras décadas do século XX. Um grito mais alto e mais claro contra esse hieratismo é publicado em “Libertinagem”: trata-se de “Poética”, que põe em xeque todo lirismo comportado, baseado em regras de composição. Como anunciara em Itinerário de Pasárgada, ao se referir ao processo de construção de sua poesia, a arte deveria ser livre, sem pejos e regras: – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. A metalinguagem está presente explicitamente nesses poemas e, de modo velado, em outros tantos, como em “O cacto”, de 1925. Trata-se de um poema que faz alusão, temática, ao famoso “O albatroz”, de Charles Baudelaire. É uma metáfora da poesia moderna que teve de abandonar a temática pura e simples do sublime, dos sentimentos elevados, para tratar da vida prosaica, cotidiana. Lê-se na estrofe final do texto de Baudelaire: Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? (...) Procurem por toda parte Pura ou degradada até a última baixeza Eu quero a estrela da manhã. Prostituta ou não, a mulher, conforme o ideário romântico, ora contrariado, ora seguido pela poética bandeiriana, é muitas vezes inatingível. O amor, ou mais propriamente o desejo, só se realiza no sonho ou se apresenta como caminho para a frustração. É o caso de “A estrela” (Por que da sua distância/ Para a minha companhia/ Não baixava aquela estrela/ Por que tão alto luzia?), “A filha do rei” (Como seria o seu corpo?.../ Jamais o conhecerei!), “Marinheiro triste”, “Boca de Forno” (No fundo do céu/ Há tanto suspiro!/ No meu coração/ Tanto desespero!) A lição deste último poema, e de outros tantos, como “Poema do beco”, é a de uma simplicidade, que corresponde inteiramente ao programa da poética modernista. O modernismo propôs uma radical mudança tanto nos aspectos formais bem como na expressão de temas nacionais, abordando-se assuntos considerados pouco condizentes com a expressão poética. O poeta é semelhante ao príncipe da altura Que busca a tempestade e ri da flecha no ar; Exilado no chão, em meio à corja impura, A asa de gigante impedem-no de andar. Se nas alturas, o albatroz é gracioso, elegante, nobre, por assim dizer, no chão é feio, disforme, comum. Em “O cacto”, Bandeira escreve um poema de 12 versos (que lembra um soneto, portanto), dividido em três estrofes. Na primeira, o cacto lembra a tradição da alta cultura, da erudição de livros como “Ilíada” e “A Divina Comédia”: do primeiro, há a referência a Laocoonte (sacerdote de Apolo, castigado por alertar os troianos sobre o presente que os gregos lhes dariam), e do segundo, a Ugolino. A segunda estrofe é marcadamente narrativa e diz que o cacto foi arrancado pela raiz e causou uma série de transtornos na cidade: 25 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 25 29/05/2012 15:48:03 O cacto tombou atravessado na rua, Quebrou os beirais do casario fronteiro, Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças É a mesma metáfora do poema de Baudelaire. Quando nas alturas, ou quando no seu habitat, o cacto, entenda-se o poeta, está preso à tradição, à cultura erudita, mas na modernidade, ele é lançado à cidade, ao prosaísmo e precisa aprender a lidar com isso. Em outros termos, a poesia moderna não pode ficar presa em sua torre de marfim, deve participar da vida nacional. Essa visão está bem explícita em poemas como “Mangue”, “Belém do Pará”, “Boca de forno”, ao qual incorpora vocabulário de origem africana, como forma de se abordar o folclore e a cultura nacional mais ampla, não exclusivamente a erudita. Ah tôtô meu santo Eh Abaluaê Inhansã boneca De maracatu! Também incorpora “a língua errada do povo”, ou seja, os poetas modernos, levados a tratar da vida hodierna, não poderiam fazê-lo em uma linguagem dissociada do cotidiano, do falar simples. Como diria o poeta russo Vladimir Maiakovski, “uma arte revolucionária exige uma forma revolucionária”. Por esse motivo, seguindo o conceito presente em “Poética”, Bandeira usou, quando necessário, de uma linguagem popular, sem preocupações gramaticais, porém pertinentes ao conteúdo do poema: Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada Isto é, imitar a estrutura sintática do português de Portugal, desprezando-se as variantes regionais. Dentro dessa perspectiva de se abordar a cultura negra, Bandeira, criado em Recife, terra de engenhos, onde era comum a presença de negros cujos ascendentes haviam sido escravizados e, mesmo libertos, permaneceram trabalhando com os antigos patrões, os senhores de engenho, apresenta algumas marcas que podem, hoje, ser vistas como racistas, mas que, para ele, serviram para sua formação intelecto-afetiva. Um poema sempre lembrado é “Irene no céu”, por seu conteúdo: Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor. Imagino Irene entrando no céu: – Licença, meu branco! E São Pedro bonachão: – Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. Com efeito, numa primeira leitura, podemos ver racismo por parte do eu-lírico (porque Irene é preta, submissa); no entanto, é preciso considerar que o autor inserido num contexto em que ver a mulher negra algum boa e estaria como bonachona, alegre, contadora de histórias, amiga das crianças (a despeito do aspecto senhorial que a imagem sugira) era algo natural. Não é por acaso que, em diversos outros poemas, a lembrança dos tempos de criança, negros e caboclos aparecem como empregados, subalternos, respeitosos, que é o caso de “Mangue” (O preto – Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?) e “Profundamente”, em que se refere a Tomásia, “a preta Tomásia, velha cozinheira da casa de meu avô”, nas palavras do próprio Bandeira. Assim, o termo “preta”, embora hoje possa aludir a um conceito racista, fazia parte naturalmente do vocabulário do autor, sem pensar obrigatoriamente em preconceito ou racismo (é claro que por trás das aparências sempre há algo mais profundo de que nem se suspeita). Em relação ao poema “Profundamente”, bem como “Evocação do Recife”, há uma explícita referência à sua infância, ao momento de sua formação na primeira infância até á adolescência. Figuras marcantes povoam sua imaginação e ajudam a marcar sua poesia no âmbito do escapismo, do memorialismo (à maneira, em certo sentido, de “Meus oito anos”, do poeta romântico Casimiro de Abreu). Tal temática já estava presente em “Cartas de meu avô”, publicado em “A cinza das horas”: E enquanto anoitece, vou Lendo sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó. Mas é em “Evocação do Recife”, que expressa definitivamente quem foi o menino Bandeira, que lembranças ainda permanecem: Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância Os seis primeiros versos indicam o modo pelo qual Recife é ou foi conhecida. No sétimo verso, introduzido pela adversativa mas, o eu lírico, sem negar a importância da história coletiva, afirma que irá tratar da vida pessoal, da expressão subjetiva, das lembranças. Claro que por se tratar de poesia, de literatura, o caráter particular, individual acaba por dar lugar a um a aspecto mais amplo, simbólico, que se presta a uma compreensão mais ampla do fenômeno literário. Ora, literatura é sobrevivência, é permanência. Ao contrário da linguagem jornalística que relata o aqui e o agora (hic et nunc), e que vira letra morta no dia seguinte, ou fonte para o estudo da história, a linguagem literária é sempre atualizada, pela sua carga simbólica. Assim, ao falar de si, o eu lírico se refere a um sentimento humano e atribui valor ético aos seus escritos. Em “Profundamente”, o eu lírico se pergunta onde estão todos (minha avó/ meu avô/ Totônio Rodrigues, Tomásia, Rosa): Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo profundamente. 26 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 26 29/05/2012 15:48:03 (C) A alegria do carnaval é meio de evasão para eu-lírico, que procura alienar-se de seu sofrimento. (D) O último verso transcrito associa-se ao título do poema, pois o eu-lírico não participa, de fato, do baile de carnaval. (E) O eu-lírico revela, em tom bem-humorado e descompromissado, ser uma pessoa exageradamente sensível. O próprio Bandeira já “dorme” profundamente, mas não sua obra, que continua viva, a despertar sensações, a estimular a leitura para que em assuntos banais, o leitor possa encontrar o que têm de sublime, de poético. Essa é sua grande lição. Exercícios 1. (Fuvest-SP) Considere as seguintes afirmações sobre 4. (Fuvest-SP) Sobre Libertinagem, de Manuel Bandeira, podese afirmar que: (A) os poemas revelam o estilo despojado, de tom combativo e revolucionário que caracterizou a produção poética de 22. (B) o tema da infância é comumente apresentado por meio da perspectiva do adulto que reconhece o passado como um tempo pleno de alegria, proteção e experiências surpreendentes. (C) ainda que a obra seja a mais modernista de Bandeira, podem-se observar traços passadistas, como o uso de redondilha, nos famosos versos de “Vou-me embora pra Pasárgada”. (D) o poeta revela influências das ideias presentes no “Manifesto Pau-Brasil” e “Manifesto da Antropofagia”, na medida em que incorpora temas relacionados à brasilidade e envereda por experiências futuristas, com insistentes traços de surrealismo. (E) as constantes referências à cidade natal, com sua geografia e particularidades culturais, mescladas às lembranças íntimas do universo familiar revelam a melancolia de um poeta atormentado que não encontra apaziguamento na realidade presente. Libertinagem, de Manuel Bandeira: I - O livro oscila entre um fortíssimo anseio de liberdade vital e estética e a interiorização cada vez mais profunda dos vultos familiares e das imagens brasileiras. II - Por ser uma obra do início da carreira do autor, nela ainda são raras e quase imperceptíveis as contribuições técnicas e estéticas do Modernismo. III - Em vários de seus poemas, a exploração de assuntos particulares e pessoais, aparentemente limitados, resulta em concepções muito amplas, de interesse geral, que ultrapassam a esfera pessoal do poeta. Está correto apenas o que se afirma em: (A) I (B) II (C) I e II (D) I e III (E) II e III 2. (PUC-SP) Libertinagem, uma das obras mais expressivas de Manuel Bandeira, apresenta temática variada. Indique a alternativa em que não há correspondência entre o tema e o poema: (A) cotidiano — Poema tirado de uma notícia de jornal (B) recordações da infância — Profundamente (C) teor metalinguístico — Poética (D) evasão e exílio — Vou-me embora pra Pasárgada (E) amor erótico — Irene no céu 5. (Fuvest-SP) Em Libertinagem, Manuel Bandeira manifesta profunda simpatia pelos marginalizados, que, por razões históricas ou condição econômica, representam os desvalidos. Assinale a alternativa em que o poema indicado não serve de exemplo para essa afirmação: (A) “ Irene no céu”. (B) “Camelôs”. (C) “ Mangue”. (D) “Profundamente”. (E) “Poema retirado de uma notícia de Jornal”. 3. (Fuvest-SP) Leia o poema de Manuel Bandeira para responder ao teste: Não sei dançar Uns tomam éter, outros cocaína. Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria. Tenho todos os motivos menos um de ser triste. Mas o cálculo das probabilidades é uma pilhéria... Abaixo Amiel! E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff. 6. (PUC-SP) Evocação do Recife “Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.” Irene no céu “Irene preta Irene boa Irene sempre de bom humor.” Sim, já perdi pai, mãe, irmãos. Perdi a saúde também. É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band. Uns tomam éter, outros cocaína. Eu tomo alegria! Eis aí por que vim assistir a este baile de terça-feira gorda. (...) (Libertinagem, Manuel Bandeira) Sobre os versos transcritos, assinale a alternativa incorreta: (A) A melancolia do eu-lírico é apenas aparente: interiormente ele se identifica com a atmosfera festiva do carnaval, como se percebe no tom exclamativo de “Eu tomo alegria!” (B) A perda dos familiares e da saúde são aspectos autobiográficos do autor presentes no texto. Considerando os dois fragmentos acima, pode-se afirmar que: (A) a disposição horizontal do primeiro é mais poética que a vertical do segundo. (B) o procedimento anafórico, como recurso poético, apenas existe no primeiro. (C) o ritmo poético existe, mas está presente só em “Irene no céu”. (D) a presença de recursos estilístico-poéticos marca igualmente ambos os textos. (E) o primeiro é prosaico e o segundo é poético. 27 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 27 29/05/2012 15:48:03 (UFVJM-MG) As questões 7 e 8 referem-se à obra Melhores Poemas de Manuel Bandeira, uma seleção feita por Francisco de Assis Barbosa. A Itália falando grosso, A Europa se avacalhando... 9. (PUC-MG) Leia o texto atentamente: 7. Toda leitura é intertextual, pois, ao ler, pode-se associar o texto do momento com outros textos já lidos, o que confirma que há textos que se inter-relacionam. A alternativa que não apresenta versos que exploram procedimentos de intertextualidade é: (A) Eu quero a estrela da manhã Onde está a estrela da manhã? Meus amigos meus inimigos Procurem a estrela da manhã (B) — Muito contas, cotovia! E que outras terras distantes Visitaste? Dize ao triste. — Líbia ardente, Cítia fria, Europa, França, Bahia... — E esqueceste Pernambuco, Distraída? — Voei ao Recife, no Cais Pousei da Rua da Aurora. Pousei na rua da Aurora. — Aurora da minha vida, Que os anos não trazem mais! (C) Quero antes o lirismo dos loucos O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos “clowns” de Shakespeare (D) Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? — O que eu vejo é o beco Na feira-livre do arrebaldezinho um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor: — “O melhor divertimento para as crianças!” Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres... Não é característica presente na estrofe acima: a) Valorização de fatos e elementos do cotidiano. b) Utilização do verso livre. c) Linguagem despreocupada, sem palavras raras. d) Preocupação social. e) Metalinguagem. 10. Sobre a poesia de Manuel Bandeira, assinale as alternativas 8. Nos versos de Manuel Bandeira, comparecem duas grandes fisionomias artísticas: a do poeta tradicional e a do moderno. Assinale a alternativa em que esse autor, embora tenha escrito poemas dentro de uma linha tradicional, não se expressa, criticamente, em relação à poética tradicional. (A) Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis (B) Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos é macaquear A sintaxe lusíada. (C) O sapo tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos (D) Os cavalinhos correndo, E nós, cavalões, comendo... Alfonso Reys partindo, E tanta gente ficando... Os cavalinhos correndo. E nós, cavalões, comendo... verdadeiras (V) ou falsas (F). I – O poeta participou ativamente da Semana de Arte Moderna, tendo, inclusive, recitado um de seus poemas numa das sessões. II – Embora um de seus poemas tenha sido lido durante a Semana de Arte Moderna, o poeta não se envolveu pessoalmente no evento. III – Do ponto de vista formal, sabe-se que Bandeira cultivou diferentes formas da poesia lírica e foi um mestre tanto no verso livre quando no verso tradicional. IV – A poesia de Bandeira cultivou, entre outros temas, a morte, a reflexão sobre a poesia e o lirismo reflexivo, de cunho social. A alternativa correta é: a) F V V F b) F V V V c) V V F F d) V V F V e) F V F V 28 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 28 29/05/2012 15:48:03 CAPÍTULO V - O calor das coisas: identidade e transformação segundo o olhar de Nélia Piñon Nélida Piñon é jornalista de profissão e autora de diversos livros, entre romances e contos. Carioca, com ascendência galega, nasceu em 1937 e tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras em 1990 e a primeira mulher eleita para ocupar a presidência daquela casa. Iniciou sua carreira literária com “Guia-mapa de Gabriel Arcanjo”, um romance publicado em 1961. A este, sucederamse vários outros romances, como “Fundador” (1969), um dos seus principais livros, “Tebas do meu coração” (1974), “A força do destino” (1977), “A república dos sonhos” (1984), “Vozes do deserto” (2004), entre outros. Quanto aos contos, o primeiro livro foi “Tempo das frutas” (1966), depois vieram “Sala de armas” (1973) e “O pão de cada dia: fragmentos” (1994). “O calor das coisas” foi publicado originalmente em 1980. São treze contos em que se percebe uma autora de grande sensibilidade e capacidade de refletir sobre a realidade a partir de novos olhares. A autora analisa a importância da palavra e a manipulação política da linguagem, como se pode notar, especialmente, em “O jardim das oliveiras”. A ironia surge aqui e ali nas histórias, cuja construção se revela complexa numa tentativa de desvendar a alma das personagens, espelhos do ser humano. Nem sempre é fácil separar o enredo, a história, do próprio discurso, um constrói o outro. Há em seus textos uma visão crítica da vida, um erotismo ora velado, ora explícito, mas nunca gratuito, como meio também de compreender as atitudes humanas. Isso tudo pode ser verificado já no conto de abertura, “O Jardim das Oliveiras”. É um conto que faz uma espécie de arrazoado sobre as torturas sofridas por presos políticos à época da ditadura militar. Narrado em primeira pessoa, é escrito à maneira de um depoimento a um interlocutor chamado Zé (pela popularidade do nome, pode indicar o brasileiro em geral). É levado por policiais a fim de que conte o paradeiro de um conhecido, Antônio, indexado pela polícia como terrorista, assassino de mulheres e de crianças. No entanto, o único Antônio que o narrador conhecia já estava morto. Todos sabíamos que Antônio estava morto. Quem sabe ele próprio o teria assassinado, fora o último de um longo cortejo de torturadores. (...) Ou será que se referiam a um outro Antônio, o das Mortes, o do Glauber? (p. 9) A alusão a Antônio das Mortes, personagem do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, dirigido por Glauber Rocha em 1964, é uma clara ironia aos processos da ditadura, cujos defensores batiam primeiro e perguntavam depois. Alusão central, porém, encontra-se no próprio título, afinal, o Jardim das Oliveiras foi o local onde, segundo os relatos presentes na Bíblia, Jesus foi entregue por um beijo de Judas Iscariotes aos soldados romanos. O narrador, por sua vez, não entrega Antônio, mesmo porque não o conhece. Mantém-se fiel a sua memória. Porém, diante da tortura constante, teve que criar um Antônio, teve que usar da palavra para dar vida de novo a Antônio: Uma vez entregue Antônio, ao menos aquele desejado pelos policiais, o narrador se põe a analisar a própria vida, as atitudes tomadas. Diante do dilema que a vida lhe impusera, precisa reconstruir-se, precisa reconstituir-se como ser. Mas para isso, tal e qual Pedro, que negou sua identidade ao negar Cristo três vezes, após a prisão do Mestre no Jardim das Oliveiras, o protagonista tem de, primeiro, negar-se a si mesmo, negar quem era, para ser de novo. Subsiste em boa parte dos contos do livro em questão uma reflexão sobre a identidade, sobre aspectos que nos identificam primeiro como seres humanos, depois como seres pertencentes a uma cultura. Em “O jardim das oliveiras”, a tortura tende a eliminar os traços identificadores das pessoas, tanto os traços físicos (pela mutilação da pessoa), quanto, e principalmente, os traços psicológicos (incluindo o caráter do indivíduo, sua formação cultural, discursiva, enfim, sua cidadania). Há muito me haviam sonegado a língua, a terra, o patrimônio comum, e eu resvalava na lama, que era o meu travesseiro. Um pária que não contava com a herança do pai. (p. 11) Essa reflexão em torno da perda ou da construção da identidade está presente também em “Finisterre”, em que uma jovem retorna às suas origens ao reencontrar o padrinho em uma ilha na Galícia. No conto, Nélida Piñon recupera suas raízes ibéricas, particularmente a Galícia, como se sabe origem da língua e da cultura portuguesa, que viria a construir o Brasil. Finisterre é uma ilha que fica na Galícia (ou Galiza), região noroeste da Espanha, onde se localiza também Santiago de Compostela, local conhecido pelas peregrinações desde a Idade Média. Finisterre também, até à Idade Média, era conhecida como o fim da Terra (em latim, finis significa final), porque se acreditava que adiante haveria a beira do mundo. Quem navegasse para além daquele local lá cairia no espaço, cairia no vazio. No conto, a narradora vai até Finisterre reencontrar seu padrinho, já idoso, e é recebida por pescadores e recepcionada com um banquete, uma orgia gastronômica como meio de tomar parte cultural daquele local que também lhe pertence, mas ao qual, por viver no Brasil, do outro lado do mundo, para além do Atlântico, não tinha mais acesso. Trata-se, pois, de uma cidade de pescadores acostumada a receber turistas em viagem a Santiago de Compostela. Simbolicamente, em Finisterre ia-se ao confronto do Fim, isto é, com a Morte, representada pelo pôr-do-sol. Por outro lado, também significava um renascimento, então representado pelo nascer do sol. Dessa feita, o local representava o fim e o início de jornadas. É o que se observa no conto. A narradora é levada a ter nova vida naquele ambiente. Representada pelo banquete, associado a um ato sexual, renovador e criador: As perguntas e respostas iam compondo um novo Antônio nascido da aspereza dos nossos dedos mergulhados na argila. Quanto mais falávamos, depressa Antônio recuperava diante de nós o ardor familiar a eles e a mim. (p. 12) Com o grafo, ele mergulhou diversas vezes nas entranhas do crustáceo, e trouxe-me como um caçador de esponjas o coral ambicionado. Mastiguei a delicada porção de olhos fechados, fazendo amor com um coral nascido de recantos primevos, de uma carapaça mais antiga e sólida que a minha pele. (p. 81) 29 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 29 29/05/2012 15:48:03 Esse ato devolve-lhe suas origens, e fica dividida entre dois mundos: o antigo, o galego, e o novo, o das Américas, o do Brasil. É dessa simbiose antropofágica que se irá construir uma nova identidade. (“Salve a terra, padrinho. A que terra queres homenagear, afilhada?”) O próprio nascimento da Galícia representa tal simbiose de povos diferentes, que formaram ao longo dos séculos o povo galego: se como ser para além de simples suporte do marido. Tais visões estão representadas pelo tempo: o passado, que indica, na mente da mulher, sua individualidade, o presente, em que existe como entidade que complementa o homem, e o futuro que devolveria a identidade para a mulher. O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa este repúdio a um ninho de amor, segurança, tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só porque mencionei esta palavra que te entristece, tanto que você começa a chorar discreto, porque o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso, este sim, reservado à minha condição de mulher? Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer. Será que apagando o futuro agora ainda há tempo de salvar-te? (p. 54) Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos ibéricos, dos visigodos, que se uniram de tal modo que seria hoje difícil isolá-los, pois um só rosto galleto muito tem de cada um, e eles próprios neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou indicar que parte dele originou-se da força dos seus sangues. (p. 90) Com efeito, galeto deriva do topônimo Gallaecia, cujo termo procede dos celtas, que chegaram ao local por volta de 2300 a.C. Mais tarde vieram os iberos, dominados pelos romanos, destruídos, por sua vez, pelos visigodos, conhecidos também como bárbaros. A região ainda foi conquistada no século VIII d.C. pelos muçulmanos. Outro ponto que ajuda a compreender a simbologia do conto diz respeito à origem do termo galiza, cuja raiz indo-europeia (kala) significava refúgio, abrigo. Em seguida, passou a ser grafada gall, e a significar mãe, terra. O conceito expresso no conto, de um encontrar-se com as origens (a mãe terra), encontra respaldo também quando a narradora conhece uma senhora moribunda, cujo nome é Amparo. Esse contato corrobora o nascimento de uma nova mulher, assim como o rejuvenescer da moribunda: Ela melhorou com meu ato de heroísmo. (...) Comecei a usufruir-lhe da velha como se tivesse ela vinte anos. (...) Eu me entregava àquela orgia disposta a mudar a minha vida. Mas, que vida, afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a vida proibida, que não está na casca da pele, mas na pele íntima do sangue? (p. 89-90) Trata-se, pois, de um conto que, como os demais, busca compreender o próprio ser, construído a partir da aproximação de fontes culturais diversas. “I love my husband”, narrado da perspectiva feminina, traça um quadro da família tradicional brasileira, em que cabe à mulher a lida doméstica e ao homem o sustento. O conto discute essa divisão social, sobretudo pela opressão a que é submetida a mulher, que não tem domínio sobre o próprio corpo, cuja função é servir sexualmente o marido. Trata-se de uma revolução silenciosa, que se faz primeiro no espírito, em seu processo de percepção da realidade, para depois começar a realizar-se nas palavras, por fim constituir-se como novo mundo. Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando a louça, fazendo compras, e por cima reclamo da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e visíveis. (p. 51) Há no conto duas vozes que, paradoxalmente, se complementam e se distanciam. Complementam-se pela visão do marido, que acredita ser dotado da tarefa de fazer o país progredir e necessitar do suporte doméstico fornecido pela esposa; distanciam-se pela visão da mulher que quer completar- Com efeito, após essa conversa, a mulher volta a servir seu marido, dando o suporte necessário: comida, roupa, conforto, carinho, sexo. Era o que aprendera, era assim na casa de seus pais. Cabia a ela, manter a tradição, manter a estrutura familiar intacta. Anular-se para ser: Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre. (...) Ele é único a trazer-me a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma semana de atraso. (p. 56) Publicado num momento em que a ditadura militar perdia força (era já o governo Figueiredo, o último presidente militar), o medo e o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações mais acentuadas. É o que subsiste nos contos do livro, particularmente em “I love my husband”, em que a mulher percebe sua subserviência, reclama por mais liberdade, no sentido de poder fazer sua voz ser ouvida, mas percebe que o melhor é manter a vida dentro do padrão que aprendeu. Somente assim poderia ser uma mulher. Chega mesmo a penitenciar-se: Estes meus atos de pássaro são bem indignos, feririam a honra do meu marido. Contrita, peço-lhe desculpas em pensamento, prometo-lhe esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoar-me à distância, aplaude minha submissão ao cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada ano. (p. 57) Claro que a questão expressa no conto não diz respeito unicamente à ditadura militar (ainda que seja uma chave de leitura), mas sim a que trata da subserviência feminina, que começava a ser questionada dentro dos lares. Como referência, podemos citar a série da Rede Globo, “Malu Mulher”, em que no início dos anos 80, Regina Duarte, no papel de Malu, encarnava a imagem da mulher independente. Separada, tem de trabalhar para sustentar a filha, namora e abordava questões bastante polêmicas para a época como aborto, pílula anticoncepcional e virgindade. O seriado representou a conquista social empreendida pela mulher. O conto contextualiza a mesma situação. O título do conto, em inglês, é retomado em pelo menos quatro momentos do conto. “Eu amo meu marido”, “Sou a sombra do homem que todos dizem eu amar”, “Não é verdade que te amo, marido?”, “Sou grata pelo esforço que faz em amar-me”. A primeira frase é categórica. É a tradução do título. Mas é a partir 30 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 30 29/05/2012 15:48:03 dela que passa a questionar se seria amor ou apenas obrigação do casamento. A segunda frase indica a visão de fora. Certamente aos olhos alheios, o casamento dela é perfeito. E, se é perfeito, o amor certamente existe. A terceira é questionadora, pois procura entender a perspectiva do marido, para quem ser amado é ser respeitado em sua autoridade e ter os serviços domésticos feitos conforme deseja. Ora, se tudo é feito como imagina, então deve ser amado... Por fim, a perspectiva é invertida. A mulher, ironicamente, percebe que, embora não amada de verdade (chega mesmo a imaginar que o amor poderia acontecer para ela com outro homem), ao fazer tudo o que marido quer, pensa que o sentimento do marido poderia, ilusoriamente, ser comparado ao verdadeiro amor. O conto é finalizado com a mesma frase com que é iniciado. É, porém, introduzida por uma interjeição afirmativa que parece indicar uma constante e necessária obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah, sim, eu amo meu marido”. Evidente que a questão toda não deve ser vista apenas como amar e ser amada, e sim como perda e reconstrução da identidade, que caracteriza os demais contos presentes no livro. É o caso de “O ilustre Menezes”, em que se tem explicitamente a visão masculina, mas para cuja compreensão há que se ouvir a voz feminina. Escrito originalmente para uma coletânea intitulada “Missa do galo”: variações sobre o mesmo tema, o conto obedece à ideia, proposta pelo escritor Osman Lins, em 1977. Autores convidados deveriam escrever narrativas diversas tendo como mote o conto “Missa do galo”, escrito por Machado de Assis e publicado no livro “Páginas recolhidas”, de 1899. No conto original, o narrador é Nogueira, um jovem de dezessete anos de idade que estava no Rio de Janeiro para estudar. Hospeda-se na casa do escrivão Menezes, viúvo de uma de suas primas e casado em segundas núpcias com Conceição, uma mulher de trinta anos de idade que parece se resignar com uma relação extraconjugal do marido. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de Conceição, e duas escravas. Na noite do dia 24 de dezembro, Nogueira fica na sala, lendo, à espera de um amigo com quem iria à Missa do Galo. Conceição resolve fazer-lhe companhia e mantém com o rapaz uma conversação ambígua, em que a sensualidade está presente, mas não se manifesta de modo explícito. O conto de Nélida, não por acaso dedicado a Osman Lins e antecedido por uma epígrafe de Machado de Assis, é narrado da perspectiva do escrivão. Nélida não subverte o enredo do texto original, ou seja, Menezes é casado com Conceição, vive com a sogra também, e, igualmente, mantém um caso extraconjugal, a despeito da vigilância de D. Inácia e do silêncio incriminador da esposa. Conceição poupou-me de maiores explicações. Havia aprendido que entre casais baniam-se exatamente as palavras que poderiam exaurir o delicado tema. Desde a primeira noite decidiu pela obediência. Se a surpreendi alguma vez discreto pranto, garantiu-me devê-lo às aflições tão próprias da natureza feminina. (p. 64-65) O leitor tem, assim, acesso à perspectiva e à explicação do Menezes para suas atitudes pouco dignas em relação à esposa. Homem sério perante a sociedade, não se excedia nos gastos e era respeitado por todos, por isso era ilustre. Mesmo D. Inácia, que vez ou outra, parecia querer falar-lhe algo, mantinha-se em posição de defesa, até para garantir o próprio sustento e o da filha. Não darei a Conceição outros motivos de queixa além do que já tem. Os direitos que lhe assegurei, devem tranquilizá-la. Pode D. Inácia testemunhar a meu favor. (p. 69) Desse modo, o dinheiro, a necessidade do sustento, tornase uma garantia de que nada fariam para ir contra sua maneira de viver. Em outros termos, sabendo que, fora do casamento, à mulher pouco restava como meio de sobrevivência, manipulava esposa, sogra e também amante, a quem também dava sustento. Sua amante era uma mulher abandonada pelo marido. Deu-lhe o singelo nome de Pastora, o que remete o leitor ao arcadismo, período marcado pela tematização de idílios amorosos entre pastores, como no caso de “Marília de Dirceu”, do poeta Tomás Antonio Gonzaga. Uma das desculpas que Menezes costumava dar em casa era que saía à noite para ir ao teatro. Certa vez, diz ter visto uma peça da autoria de Machado de Assis, O protocolo, sobre a qual tece um comentário bastante corrente sobre o teatro do autor: “uma comédia muito mais para ser lida e não representada”, motivo pelo qual o teatro machadiano é pouco ensaiado hoje, em que pese o alto valor de sua obra como um todo. Menezes diz gostar de Conceição, com quem vive bem, com quem pode manter a seriedade que sua função na sociedade exige; ela lhe é devotada, cuida de sua roupa e da casa. O problema talvez seja o recato em que se mantém, e também por nunca ter lhe dito que o amava. O fato serve-lhe como justificativa para que mantenha a amante, com a qual se sente livre e sem pejo para realizar fantasias. Pastora parece ser o oposto de Conceição, o que proporciona ao escrivão novas “experiências”. Ela é mais bonita e tem atitudes mais intempestivas, “implacável a qualquer atraso”, ao contrário das atitudes submissas da esposa. A narrativa caminha assim até a chegada do Nogueira, primo de sua primeira esposa, Amélia, que lhe pede o favor de dar pousada por uns tempos, uma vez que era de Mangaratiba e estava no Rio de Janeiro para estudar. O conto termina exatamente onde se inicia o conto de Machado de Assis, com Menezes, após cear com a família, despedindo-se para ir ao teatro, e Nogueira dizendo que ficaria na sala lendo à espera do amigo: Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de acomodar-se à mesa da sala de jantar, trazendo a si o candeeiro de querosene. – Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é que vai ler até a sua Missa do Galo. O primo levanta-se, acompanha-me à porta. Dá-me o beneplácito, sem esquecer de acrescentar: – Leio Os Mosqueteiros. Ah, belo rapaz esse Nogueira! (p. 77) No conto original de Machado, Conceição também representa o papel da mulher submissa, mas ao ficar sozinha, à noite, ao lado de um rapaz, indica um desejo escondido, que Menezes não consegue perceber, ao vê-la apenas como “santa”. Desse modo, o leitor que confronta os dois textos percebe a ironia da situação. E por esse motivo, antes de sair de casa, diz que Nogueira é um belo rapaz, isto é, alguém que não irá fazer nada para atentar contra a ordem estabelecida em sua casa. Na ótica do escrivão, a leitura de um livro de aventuras era indício de que era um jovem sonhador, pouco afeito à prática. A imagem que Menezes faz de sua esposa também pode ser contrastada na aproximação dos dois contos. Enquanto no de 31 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 31 29/05/2012 15:48:03 Machado, Conceição diz a Nogueira gostar de romances, tendo como um de seus preferidos “A moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, no de Nélida, ela, diante do conselho do marido para que lesse romances, diz não ter tempo para isso, que havia muitos afazeres domésticos. Menezes aceita a explicação e gosta dela, porque “há leituras que nos suprem com sonhos que a realidade mesmo não comporta. E se lá fosse Conceição ao seu encalço, teria que abater-lhe as asas”. Nélida não quis, com isso, contrariar o que fora revelado no conto de Machado; antes, a passagem serve para ilustrar como Menezes, que imagina ter total domínio sobre sua esposa, não a conhece por inteiro. Assim, enquanto Menezes mantém uma máscara que não esconde quem é, Conceição, dentro do papel que lhe cabe de mulher recatada, esconde-se para poder construir sua real identidade. Pelo menos três contos de “O calor das coisas” lembram “As cartas portuguesas”, escritas por sóror Mariana Alcoforado (16401723), de um convento localizado na cidade de Beja, região do Alentejo, em Portugal, dirigidas a um oficial francês, chamado DeChamilly, que lhe prometera amor eterno e que a iria tirar do convento para se casarem. No entanto, a promessa não se cumpre. Foram cinco curtas cartas de amor, em que se percebe um amor incondicional e exacerbado. O tom das cartas vai do sentimento de esperança à desilusão, por não receber notícias e correspondência equivalente. A título de exemplo, eis um trecho da terceira carta: Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?... Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado! Esperava que me escrevesses de todos os lugares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha Paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado suportável, sem estrema dor. Os contos que mantêm uma semelhança, seja pelo tom confessional, pelo sentir-se abandonado, seja pelo desespero, são “O revólver da paixão”, “Disse um campônio à sua amada” e “A sombra da caça”. Em certo sentido, “O sorvete é um palácio” também lembra “As cartas portuguesas”. O que os três primeiros têm em comum é o fato de serem escritos, não necessariamente no gênero carta, da perspectiva de que foi abandonado, de quem não tem mais perto a pessoa amada. No caso de “A sombra da caça”, há, com efeito, uma carta. Uma mãe escreve ao filho distante física e emocionalmente. Embora o discurso seja ambíguo, em alguns momentos, pela sugestão de possível incesto, Sei que você me quer, sempre diz querida mãe, e acho que me comovo. Mas, me pergunto, por que não voltas ao menos uma vez a casa, para chorarmos juntos. (p. 163) Mas depois, esse discurso ambíguo se dissolve, e o leitor é levado a ver o caso como o de uma família destruída pela separação dos pais e pelo consequente exílio que se autoimpôs o filho. Isso se deu, segundo a visão expressa pela mulher, porque o pai se dedicava mais à vida, mais ao trabalho e menos a ela, que se sentia preterida, pouco desejada. Desse modo, a identidade do casamento foi, aos poucos, ruindo, nem mesmo o nascimento do filho para que ora se voltava no depoimento resgatou o amor entre o casal; na verdade, parece ter contribuído ainda mais para o distanciamento que se formou entre eles. Eu precisava desfazer os nós do arame farpado sob o impulso do dilaceramento, filho, porque nunca amei tanto o pai como no momento em que o perdi. (p. 167) Confessa pormenores ao filho do relacionamento que tivera com o pai, entrando mesmo em detalhes de caráter sexual, o que a deixa receosa. No final da carta, reafirma o amor que tem pelo filho e pelo desejo de saber notícias do marido. Em seguida, ao contrário do oficial francês em “As cartas portuguesas”, o filho responde, dizendo que o pai estava morto, mas que antes de morrer, confessou que a havia amado de fato. No entanto, a falta de identidade comum os separou: Um bilhete rápido, mãe. O pai também te amou. (...) Disse apenas, há muito soltamos os animais no pasto, não resta um único sonho que colher como magnólia. (p. 170) “O revólver da paixão” estabelece uma proximidade maior com “As cartas portuguesas”. Uma mulher, em desespero por ter sido abandonada pelo amado, escreve-lhe, pedindo para que volte. Diz ter se excedido no amor, com ataques e inseguranças, mas que precisa dele para completar a vida, construir uma identidade comum. Volte, porque te espero. E se voltares, que fiques sempre comigo. Não prometo comportar-me a ponto de que vivas o amor com suavidade. Não sou amena, mas estou viva (...). Amanhã te escreverei, de novo capítulo ante o meu amor. (p. 110) “Disse um campônio à sua amada” não se assemelha a uma carta, embora seja dito que cartas e bilhetes foram escritos (“Quando me ameaçaste deixar, eu te escrevi.”; “Então te arremeto bilhete pelo correio,...”). Ainda assim, o tom é em forma de depoimento. Agora, conforme o título indica, é o homem que se dirige à mulher. O título também sugere um idílio à maneira árcade (como no caso de “O ilustre Menezes”), tendo em vista que campônio é sinônimo de camponês, e, por alusão, a pastor. Por outro lado, campônio significa igualmente lorpa, uma pessoa grosseira, boçal, idiota. Os dois sentidos parecem presentes, seja pela referência às coisas da terra, seja pelas atitudes: “Ana acusanos de sermos criaturas da caverna simulando elegância”. O eu que narra não tem certeza se irá surtir efeito, mas ainda assim não teme em revelar sentimentos à mulher. Este acaba sendo o ponto essencial desses três contos: sentimentos são revelados sem pudor, sem pejo, sem preocupação com que outros possam dizer. No último conto, há, como se pode perceber, referências a uma terceira pessoa, Ana, que seria uma espécie de interlocutora entre o casal separado. “O sorvete é um palácio”, por sua vez, também construído sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as vicissitudes em torno de um caso que mantém com um homem pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos. A mulher narradora também não é nova (“Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é mais um sortilégio para as 32 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 32 29/05/2012 15:48:03 mulheres de minha idade”), e encontra o amor onde menos esperava, na figura de um homem simples, sem beleza física, casado e, além de tudo, pertencente a outra classe social. Por estranho que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve alegria, que contribui para a construção de si mesma, de sua identidade por inteiro. Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida fortaleceu-me desde que o vi pela primeira vez nesta manhã. (p. 120) Começaram a conversar e ele lhe pediu para que fossem sócios em seu negócio de vender sorvetes na praia. O estranho do pedido é o que garante a percepção de que um poderia completar o outro, de se formar um todo. A narradora revela não ter vida própria, assistia a novelas como meio de projetar na vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante de uma situação estranha, com um homem com vida alheia a sua, distante física, social e culturalmente, isso poderia completá-la, a despeito de ele ser casado. (“Viver será transferir para o outro o que é nosso por direito.”) Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um homem capaz de interpretar meus sentimentos, serei acaso a última flor do Lácio? (p. 124) A “última flor do Lácio” é uma referência a um poema de Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”, em que fala ser o português o último idioma surgido do latim, falado na região do Lácio, que deu origem ao Império Romano. Não parece haver uma relação imediata. Em rigor, o que a narradora quis expressar é que ela poderia ser a última mulher a encontrar o homem perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito também que era seria “a última dos moicanos”, por alusão ao famoso romance de James Fenimore Cooper. Um momento significativo é que ele vai até a casa dela e se senta na poltrona que pertencera ao pai e ela na poltrona em que ficava a mãe. Por analogia, é como se cada qual estivesse ocupando os papéis, sonhados, de marido e mulher. A questão a que sempre retorna é o da identidade (“Serei eu mesma o tempo todo?”). Como construir algo para o qual é preciso primeiro destruir? Destruir a antiga identidade dele, seu casamento, abandonar sua vida no outro lado da cidade? É comum na Europa as cidades divididas em duas, uma margem pobre, uma outra próspera. (p. 126) Essa ideia de construção/destruição está metaforizada no fato de o homem ser sorveteiro, de fabricar para vender um produto que se perdia com facilidade, que, diante do calor, desaparecia. Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um mundo frágil pela força da sua vontade. A lidar com formas que o calor desfazia. (p. 128) Por esse motivo, o sorveteiro tem sempre de retornar à sua casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e, com isso, o amor entre ele e a narradora não se totaliza nunca. O conto que dá título ao livro, “O calor das coisas”, é um dos únicos narrados em terceira pessoa (os outros são “Coração de ouro” e, em certa medida, “As quatro penas brancas”). É uma história de reconstrução (ou até mesmo de construção) de identidade. Oscar tem um “defeito” físico: é muito gordo. Evidente que isso não seria problema, mas, sob o olhar dos outros, o “defeito” o impedia de ser. Seu nome, meio de individualização, início da identidade pessoal, foi substituído por apelido: era o Pastel. A própria mãe, ao invés de manter o nome do filho, de colaborar para sua edificação, adotava a perspectiva dos outros. Ao Pastel, ainda acrescentava o adjetivo amado, criando o epíteto: “meu pastel amado”. Desse modo, anula-se totalmente para tentar ser: Insurgia-se constantemente contra um destino que lhe impusera um corpo em flagrante contraste com a alma delicada e magra. (p. 157) O seu corpo amanhecia sempre diferente. (p. 158) Sentia-se um no corpo de outro. Não podia admitir quem via no espelho. Sentia-se menor, apesar do tamanho. Um contraste que se realizava todos os dias. Porém, aos trinta anos (idade em que Cristo iniciou sua pregação, dando novo rumo à própria vida, para além da revolução social e religiosa empreendida), dá um grito de independência ao dar início a uma revolução pessoal, silenciosa no começo, mas que se faz ouvir por todos. Seu discurso muda, bem como suas atitudes. Descobre-se gordo, descobre-se um ser completo, único. É a construção de sua verdadeira identidade, do verdadeiro “eu”. Oscar surpreendia-se com os encantos da fala. Nunca o viram discursar com tanto arrebato sobre os objetos que justamente lhe faltavam à vista. Recém-descobrindo ao seu alcance o poder de coincidir a sua fome com uma voracidade verbal que estivera sempre em seu sangue, mas a que não dera importância, entretido em defender-se contra os que queriam atirar à frigideira. (p. 161) A mãe foi contra, os amigos também. Não queriam ouvilo, não queriam deixá-lo construir-se. Manteve-se firme até completar a revolução. O conto finaliza com ele na cozinha e a mãe sentando-se ao lado dele, e o processo se inverte. Ao invés de a mãe conduzi-lo, guiá-lo, ele é quem passa a vigiá-lo. O texto confirma a temática norteadora dos demais contos, a busca pela identidade pessoal, por aquilo que individualiza o ser, mas também o coloca sob um estigma social. “As quatro penas brancas” trata do relacionamento entre quatro homens. Narrado predominantemente em terceira pessoa, com alternâncias em narrações em primeira pessoa ora feita por um personagem, ora por outro. Inicia-se com uma frase de impacto: “Eu faço amor só de porre.” É o que afirma Pedro a Rubem. Este era casado, vive uma separação tumultuada com a esposa, que sempre cobra a pensão atrasada e o amor perdido por ela própria e pelos filhos. Moradores do Rio de Janeiro, pegam a balsa na Baía da Guanabara. Rubem, após pedir dinheiro emprestado ao pai para pagar a pensão, está na balsa, voltando para casa, quando conhece um vendedor de amendoim, com quem começa a conversar. Conta-lhe sua história, de que fora rico, tivera boa vida, e agora sofria as agruras de uma vida difícil, com separação e tudo o mais. Em seguida, o vendedor de amendoim, chamado Colombo, começa a contar sua história de amores e como também sofreu as agruras financeiras. Para surpresa do leitor e de Rubem, Colombo diz ter sido um homem chamado Bulhões: 33 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 33 29/05/2012 15:48:03 Diariamente Bulhões vinha alimentar-lhe o sonho. Afirmava, a vida está no vinho e na amizade. E queria Colombo a provar-lhes o gosto. (p. 35) Após um período de separação, Colombo percebe que Bulhões fazia muita falta. Age do mesmo modo que os personagens de outros contos do livro. Envia-lhe cartas, bilhetes, argumentando para que possam retomar a amizade: metáfora é retomada em imagens marítimas, como naufrágios ou arrastar-se para o fundo do mar. Indica tanto a queda de um mundo, como o arrastar-se para uma vida nova, de descoberta. Na cena final do conto, os quatro amigos estão num bar bebendo chope, e Rubem não consegue esquecer-se de que tem de encontrar sua ex-esposa, para saldar a pensão. No entanto, gasta todo o dinheiro: O garçom apresentou a nota. A soma total arrastava para o fundo do mar o último dinheiro de Rubem. (p. 50) Bulhões resistiu ainda sete dias. Me queria sofrendo sua morte, pronto a prestar-lhe honras fúnebres. (p. 36) De novo vieram a separação e o sofrimento de Colombo, que imaginou ter descoberto sua América, sua felicidade, ou, para dizer nos termos do livro, sua identidade. Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta a narrar sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos poucos, percebeu que Alice representava, mais do que amor, relacionamento de um casal, apenas a aventura, os passeios. Não se via completo efetivamente por ela: Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado. Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem amigos com quem dividi-la. (p. 41) Reencontrara a felicidade ao descobrir Pedro, amigo de bebedeiras, de altas conversas. No começo saíam com mulheres, agiam como dois solteiros. Depois, porém, em um primeiro abraço, sentiu-se novo, diferente, assim como Pedro. Ambos não se reconheceram, mas perceberam que poderiam ser algo novo, diferente. Reconstruir a identidade nos segredos da vida, sem poder revelar aos outros. Antes de se despedir de Colombo, quando a balsa atracou, Rubem o abraçou com gosto e estabeleceram desse modo um código, que os aproximaria a todos, apesar dos ciúmes que Pedro sentiu no início. Chegou mesmo a imaginar que Colombo faria o mesmo que as mulheres, sairia com ele, dilapidaria seus poucos bens, os que ainda restavam, e depois o abandonaria. Se Pedro (como no conto “O Jardim das Oliveiras”) diz trair Rubem de vez em quando, faz isso para chamar-lhe a atenção, para ver que devem estar juntos sempre: Rubem é o imbecil que arrasto nas costas, o homem do bacalhau que promovia o elixir no bonde da minha infância: veja o ilustre passageiro o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado... (p. 45) Bulhões, de sua parte, após a separação de Colombo, teve amores fugazes, com mulheres, viveu de trambiques que aplicava por conta do sobrenome que evocava personalidades da política. Vendo que Colombo se arranjara com outro, que parecia ter dinheiro, voltou a encontrá-lo. Desse modo, o título do conto se realiza. A questão do conto gira em torno da liberdade, da reconstrução da vida, das novas descobertas, metaforizada no nome do vendedor de amendoim, Colombo, mas também nas referências a Júlio Verne, romancista francês, autor de livros de aventura e descobertas, como “Vinte mil léguas submarinas” ou “Viagem ao centro da Terra”, e ao navegador Vasco da Gama, que fez a famosa viagem de Portugal às Índias, passando pelo Cabo das Tormentas, depois Cabo da Boa Esperança, no sul da África. Sua história está narrada por Camões em “Os lusíadas”. Tal Assim, a tão sonhada liberdade naufraga ante a necessidade econômica. Outro conto que tem como metáfora imagens marítimas é “A sereia Ulisses”, sobretudo no título, e disseminadas ao longo do texto. Sereias são mulheres-pássaros segundo a mitologia grega, e mulheres-peixes segundo as fontes nórdicas, que se constitui na imagem mais comum e simbolizam principalmente os perigos do oceano. E Ulisses, uma referência ao rei de Ítaca que, após participar da famosa guerra de Troia, retorna para sua terra natal. Esse retorno é narrado na Odisseia. Enfrenta diversos perigos, entre os quais o de ser seduzido por sereias, que o levariam à morte na Ilha dos Amores. Alertado, porém, pela feiticeira Circe, não cai prisioneiro de seus encantos, ao tapar os ouvidos dos marinheiros e fazendo-se atar no mastro do navio. Essa é a imagem mais comum das sereias, vistas como símbolo mitológico das artes da sedução e da atração feminina. Narrado em primeira pessoa pela mulher, o caso se inverte. Mais do que seduzir, ela, a mulher, é seduzida e se deixa levar pelo encanto do objeto do seu desejo. No início da narrativa, era casada; em seguida, separa-se do marido e se encanta com outro homem, Pedro de Alcântara Miggioro. A separação se dá porque não queria, como em “I love my husband”, deixar-se subjugar pelas vontades masculinas, as vontades do marido. Ela assume as rédeas de seu destino, como fizera Ulisses. Em outros termos, a mulher inverte a posição que lhe cabe, e passa ela própria a se aventurar, e não apenas a esperar pelo amado. Abandonada por Pedro, que viaja para encontrar-se, construir sua identidade, a narradora, após viver amores fugazes e sem importância, empreende viagem para buscá-lo. É como Ulisses de saias em busca de sua Penélope. Vai a Nova York, depois a Paris. Não o encontra e volta a ter novos amores. Ao longo da narrativa, deixa clara sua posição de mulher que assume o próprio destino: Eu era uma fêmea com medalhas. (p. 143) Eu sabia da arrogância masculina. Assim, desde menina, deixei os homens à minha espera, para que perdessem o brilho da vaidade. (p. 144) Não era mulher de bordar numa colcha iniciais eternas que me seguissem do casamento à mortalha, sem antes danificar a costura. (p. 145) Essa última citação é outra alusão à história de Ulisses, cuja esposa, Penélope, o fica esperando até que ele retorne da guerra de Troia. Como se passaram anos, Penélope teria de se casar novamente. Acreditando que Ulisses estaria vivo, prometeu que se casaria de novo quando terminasse de bordar o novo enxoval. No entanto, bordava-o durante o dia, e desmanchava-o à noite, para nunca finalizá-lo. No caso da narradora do conto, a recusa 34 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 34 29/05/2012 15:48:03 é exatamente para não ter de esperar, e sim poder construir o próprio destino. Considerando, pois, os contos analisados, podemos dizer que Nélida Piñon é uma autora pós-moderna, no sentido de tematizar questões hodiernas, como o feminismo, o respeito às diferenças, a construção de novas identidades, a reconstrução de identidades perdidas. Exercícios 1. Assinale a alternativa incorreta quanto à temática dos contos em O calor das coisas, de Nélida Piñon: (A) Em “I love my husband” uma mulher, embora declare amor pelo marido, demonstra querer ser mais livre. (B) Em “A sereia Ulisses” a narradora se revela livre para buscar o próprio caminho. (C) Em “O ilustre Menezes” temos a ocorrência de intertextualidade com o conto “A missa do galo”, de Machado de Assis. (D) “As quatro penas brancas” trata de um homem torturado durante a ditadura militar. (E) “Disse um campônio à sua amada” é escrito à maneira de uma carta. 2. Uma das constantes na obra de Nélida Piñon é a busca pela identidade. Assinale a alternativa em que o conto não apresenta como conteúdo central essa temática: (A) Finisterre (B) O ilustre Menezes (C) O calor das coisas (D) O jardim das Oliveiras (E) O sorvete é um Palácio 3. (UEM-PR) Leia os fragmentos a seguir. “E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas que os mesmos encantos que em outra mulher reluzem firmemente, nela, por mistério que não explico, simplesmente empalidecem. Com esta verdade, já estou bem conformado. Se ao menos Conceição soubesse rir!” “Tanto assim, que mal eu a tocava, Conceição retraía-se toda, a tremer de frio, depressa recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto que pudesse eu interpretar como generoso.” “Como prêmio, para certos infortúnios, tenho de Conceição a sua fidelidade e completa devoção ao lar. Assim, inimigo mesmo é o tempo a esgotar-se sem cerimônia.” “Nogueira tem o gosto da leitura. (...) Certa manhã sugeri-lhe a deixar o livro para trás, seguindo-me até onde, encontravam-se certos prazeres viris. Pareceu não entender-me.” 01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, pode ser lido sem se considerar o texto “Missa do galo”, de Machado de Assis. No entanto, conhecer previamente a narrativa machadiana implica o alargamento das possibilidades interpretativas do conto da escritora. 02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida com o conto “Missa do galo”, conforme as informações anteriormente fornecidas, o desconhecimento de Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos detalhes relacionados ao comportamento de sua mulher confere ao texto um tom de ironia e de comicidade. A ideologia patriarcal, condescendente com o adultério masculino, é ridicularizada. 04) No que se refere à construção da personagem Conceição, o conto de Nélida Piñon prima pela ambiguidade e pelo poder de sugestão. Efetivamente, nada acontece em sua trajetória capaz de desabonar sua reputação de dona de casa exemplar e esposa fiel, mas o marido adúltero insiste em vislumbrar também nela o fantasma da traição. 08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse afirma que Conceição seria, de fato, capaz de cometer adultério se lhe fosse apresentada uma situação favorável. Afirma também que o adolescente Nogueira pretendia ficar acordado até tarde com o único propósito de se deparar, a sós, com Conceição. 16) Os textos de Nélida Piñon guardam estreitas relações com os textos de Machado de Assis, no que se refere ao estilo denso e intimista, não raro irônico, bem como no que diz respeito à habilidade de promover o desnudamento dos melindres da alma humana, suas grandezas e, sobretudo, suas misérias Soma:______________ (Nélida Piñon, “O ilustre Menezes”. In: O calor das coisas) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon, consiste em uma reescrita do conto “Missa do galo”, de Machado de Assis. Trata-se de uma reinvenção da história machadiana, construída a partir da transferência do ponto de vista narrativo. A história original é narrada pelo adolescente Nogueira, agregado da casa, e gira em torno da “conversação” que ele manteve com Conceição na noite de Natal, enquanto a casa dormia e ele esperava a hora da missa do galo. Nessa oportunidade, Conceição se transfigura, aos olhos de Nogueira, em uma mulher “lindíssima” e muito sensual que em nada lembra a mulher simplesmente “simpática” que todos conhecem no dia a dia familiar. Tendo em vista essas considerações, bem como os fragmentos acima, o conto ao qual eles pertencem e a ficção de Nélida Piñon, assinale o que for correto. 35 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 35 29/05/2012 15:48:03 CAPÍTULO VI - Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre a modernidade O livro Contos Novos, de Mário de Andrade, foi publicado postumamente, em 1947. A morte prematura impediu ao autor que finalizasse o projeto do livro, que compreenderia doze contos. No entanto, apenas nove foram efetivamente escritos. Segundo indicações do próprio Mário, ele iniciou a redação ainda na década de 1920, tendo-a revisado em diversas ocasiões, como é o caso, por exemplo, de “Atrás da Catedral de Ruão”, iniciado em 1927, que passou por, ao menos, cinco revisões até a finalização, em julho de 1944. Mário de Andrade iniciou sua carreira no auge da implantação do Modernismo no Brasil. Ao lado de Oswald de Andrade e outros diversos artistas, colaborou decisivamente para a revolução modernista e para a realização da Semana de Arte Moderna, em 1922. E, como tal, fez diversas experiências estilísticas, tanto na prosa quanto na poesia, com destaque para Macunaíma e Amar, verbo intransitivo. No caso de Contos novos, Mário abandona o experimentalismo mais radical, em prol de uma narrativa modernista segura e madura, por assim dizer. As histórias, que se passam em São Paulo, tanto na capital quanto no interior, têm como objetivo retratar o processo de urbanização e industrialização, o duelo entre patriarcalismo e progressismo, denúncia de injustiças sociais e análise psicológica dos personagens. Dos nove contos, quatro são narrados em 1ª pessoa pelo personagem Juca. São eles, na ordem em que aparecem: “Vestida de Preto”, “Peru de Natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo da Camisolinha”. São narrativas de períodos distintos da vida do narrador, desde a infância, passando pela adolescência, até a fase adulta. Nesse sentido, a ordem dos contos é exatamente ao contrário, isto é, “Tempo da camisolinha” seria o primeiro, “Frederico Paciência” o segundo; “Peru de Natal” o terceiro; e, finalmente, “Vestida de Preto”, o conto que compreende os três grandes momentos da vida do narrador. O objetivo de todos parece ser a de tentar entender quem foi, que aspectos da vida levaram o narrador a ser o que é, bem como, já na quase velhice, tentar compreender as atitudes que tomou nos momentos específicos de sua vida. Também, pode-se dizer, são contos em que o peso do lirismo é mais acentuado, em que recompor uma imagem perdida é mais importante que a análise social. Em “Vestida de Preto”, logo de início, o narrador expõe duas questões importantes, uma de ordem literária, tendo em vista a preocupação em determinar o gênero literário do que irá escrever: Todos andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade. (p. 23) Há, na dúvida, uma clara manifestação de defender o que narra, tomando-o como expressão da verdade. Trata-se de uma técnica literária, para conferir verossimilhança ao que se diz. A segunda questão é de ordem psicanalítica. As teorias de Freud foram largamente utilizadas, em especial pelos primeiros modernistas, como meio de compreensão do ser, cingindo entre o que se é de fato e o que se tem de ser para uma aceitação social. Essas duas questões, do ser e do que se tem de ser, ou do não ser, coadunam-se com o todo do conto, uma vez que Juca narra a amizade que tinha por uma amiga de infância, Maria, bem como o amor que poderia ter se realizado de modo mais pleno entre eles. Embora afirme que Maria tenha sido seu primeiro amor, a realização de fato não ocorre. Fica apenas a ideia do que poderia ter sido. O primeiro contato mais íntimo aconteceu quando tinham cinco anos: brincavam quando foram surpreendidos por uma tia, que os admoestou para que não ficassem sozinhos. A partir desse momento, perceberam que faziam algo que poderia ser visto como proibido, mesmo sem entender o porquê. Em outros termos, a tia Velha mostrou, indiretamente, que não poderia fazer algo apenas porque queriam, mas precisariam ver que nem tudo seria aceito socialmente. Se Juca permanece “fiel” a esse momento, não se pode dizer o mesmo de Maria, que, apesar de um primeiro beijo aos 10 anos, escolheu outra vida, escolheu afastar-se de Juca. O que poderia ser o início de um relacionamento a despontar na adolescência tornou-se apenas um beijo e nada mais. Maria se distanciou de Juca e passou a ignorá-lo, sem razão aparente: O estranhíssimo é que principiou, nesse acordar à força provocado por tia Velha, uma indiferença inexplicável de Maria por mim. Mais que indiferença, frieza viva, quase antipatia. (p. 26) A explicação talvez se dê pelas diferenças socioeconômicas entre eles. Enquanto ela pertencia a uma família de certas posses, que lhe permitiam fazer viagens à Europa, por exemplo, ele tinha que se contentar com uma possível riqueza conquistada com um hipotético prêmio da loteria. Além disso, há o problema que Juca passa a ser visto como o esquisito que quis beijar a prima, o que não se apega às regras; ao passo que Maria é a certinha. Para manter tal imagem, ela começa a evitá-lo. O conto acaba por se revelar uma análise de caráter psicológico, visando à compreensão do porquê das escolhas de cada um. O leitor é levado a crer que Maria também deveria amá-lo, mas nunca quis aceitar tal sentimento; seria dar razão à tia Velha, que os surpreendera em atitude suspeita. Seria também rebaixar-se às atitudes “condenáveis” de Juca. A vida de ambos se distancia mais e mais. Enquanto Juca permanece “fiel” a esse amor da infância, ironicamente, para escândalo geral, ela passa a namorar todos que aparecem, fica noiva com um jovem, rompe e vem a se casar com um diplomata e vai morar na Europa, onde fica cinco anos sem nenhum retorno ao Brasil. Antes do casamento, encontram-se poucas vezes, mas o contato, seja por alusão, seja lembrança, faz-se constante da parte dele, a ponto de a mãe dela declarar que seria bom se os dois tivessem se casado, pois assim ela ficaria mais próxima da família. A declaração causa grande estranheza a Juca, por conta mesmo do que descobrira, ainda na infância, sobre as diferenças econômicas entre eles. O último grande momento de sua vida com Maria ocorreu quando vai procurá-la ao saber que estava separada e de volta a São Paulo. Imaginava que poderia retomar o contato infantil, o beijo inocente, ao mesmo tempo em que sabia que certamente seria o último encontro. E é o que de fato acontece. O reencontro é repleto de elementos simbólicos, como ter de esperá-la em uma “saletinha da esquerda”, pois a família estava num banquete. Maria está com vestidinho preto (por isso o título do conto), que desperta sua fantasia, leva-o a imaginar-se com ela. Mas, em nome do passado, de um amor mais puro, ou de seu orgulho, despede-se apenas com um frio boa-noite: 36 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 36 29/05/2012 15:48:03 [...] meu desejo era fugir, era ficar e ela ficar, mas, sim, sem que nos tocássemos sequer. Eu sei, eu juro que sei que ela estava se entregando a mim, me prometendo tudo, me cedendo tudo quanto eu queria. [...] Balbuciei afinal um boa-noite muito indiferente... (p. 31) Juca, apesar de outros dois relacionamentos, sabia-se perfeito e completo apenas com Maria. Aqui podemos estabelecer analogia entre o relacionamento e o ato criador. O objetivo da criação literária é atingir a perfeição estética, capaz de levar o leitor a sensações singulares e a uma experiência sensorial única. Também Juca sabia que apenas Maria o levaria a essa perfeição, a essa sensação, que se esvai ante o prosaísmo da vida. Por isso, preferiu preservar a imagem da perfeição e não a da mulher pervertida. Podemos também dizer que era melhor, naquele momento, preservar a honra machista a se “manchar” com uma mulher de “moral duvidosa”. Sensação estranha é a que desperta nele a amizade com Frederico Paciência (do conto homônimo), rapaz que estudava com ele no seminário. A descrição inicial sugere mais do que uma simples amizade; na verdade, um amor velado, que não poderia eclodir, tornar-se explícito aos olhos de todos: Senti logo uma simpatia deslumbrada por Frederico Paciência, me aproximei franco dele, imaginando que era apenas por simpatia. [...] Quis ser ele, ser dele, me confundir naquele esplendor, e ficamos amigos. (p. 96) Se Frederico é uma espécie de sol, Juca seria seu oposto. Tido como garoto problema na família, desde o episódio com Maria, Juca vivia criando problemas na escola. Frederico se apresenta a ele como uma espécie de salvação. Por isso, aproxima-se mais ainda dele. No entanto, o conto se constrói em direção a um clímax sem desfecho esperado. Em outros termos, o conto apenas sugere o princípio de um relacionamento homossexual. Estabelecendo uma analogia com “Vestida de preto”, aqui também os interditos individuais e sociais impedem a realização plena da “amizade” entre ambos. E a vida de Frederico Paciência se mudou para dentro da minha. [...] Os domingos dele me pertenceram. (p. 98) com constrangimento. A amizade se restabeleceu, embora com alguns arranhões. Causava também desconfiança entre os demais colegas, a ponto de ambos terem de brigar contra os outros, defender a “pureza” da amizade. Não havia ambiguidade nisso, apenas certeza. Juca tem mesmo de criar um discurso para expressar a verdade entre eles, defender a verdade de ambos, de que eram apenas “bons amigos”. Interessante que o faz revelando-se um artista, o que cria e recria a realidade. Por isso, o que era para sedimentar a amizade, acaba por iniciar o processo de separação: Mas de tudo isso, do livro, da invencionice dos colegas, da nossa revolta exagerada, nascera entre nós uma primeira estranha frieza. (p. 105) A frieza aumenta à medida que se aproxima a época da formatura, quando cada um pensa em seguir uma profissão. Frederico tem planos de ir ao Rio de Janeiro. É o momento também em que Juca conhece uma de suas duas namoradas, Rose, distanciando-os ainda mais. De íntimos, passaram a ser colegas, amigos apenas. Era o processo se repetindo, o mesmo que levara Juca a ficar distante de Maria, ainda que por razões diversas. Se Maria o completaria mesmo no momento da separação definitiva, a figura de Frederico foi deixando de exercer esse papel na vida do narrador, que, em dado momento, afirma não querer mais ser Frederico Paciência. Em outros termos, já não precisava da projeção do outro para ser, para constituir-se completo. O que era perfeito tornou-se paradigma de erro. A morte do pai de Frederico, porém, devolve, por breve instante, a mesma sedução de outrora, a mesma relação de completude que poderia ter se estabelecido entre eles, ainda mais quando Juca expulsa um homem que queria se aproveitar da morte para fazer negócios. Ao ficarem sozinhos, enquanto conversam sobre o futuro, os gestos de ambos denotam algum desejo de sedução, falam por subentendidos, de maneira ambígua, olham-se. A figura do morto, no entanto, se interpõe e, de novo, distanciam-se: Talvez nós não pudéssemos naquele instante vencer a fatalidade em que já estávamos, o morto é que venceu. (p. 111) Um episódio marcante e sugestivo ocorre quando Frederico vê Juca lendo um livro sobre a história da prostituição. Leitura proibida para jovens, ainda mais em uma escola de padres, onde estudavam. Frederico lhe pede para ler o livro, o que cria um sentimento confuso em Juca, pois não queria se “entregar” tanto assim, permitir-lhe saber de “segredos” no campo da sexualidade, ao mesmo tempo em que compartilharia dos “segredos” do amigo. Algo que retiraria a “pureza” da amizade. Apesar disso, o caso os tornava mais “íntimos”, uma amizade mais carregada de segredos mútuos, e num campo perigoso, a sexualidade: Em outros termos, mesmo morto, o papel do pai, do homem castrador, da sociedade repressora dos instintos proibidos, faz-se presente na mente de ambos. Anos depois, quando Frederico já estava no Rio de Janeiro, conforme seus planos, a mãe vem a falecer. É bastante significativa a fala do narrador ao comentar essa outra morte: Passei noite de beira-rio. Nessa noite é que todas essas ideias de exceção, instintos espaventados, desejos curiosos, perigos desumanos me picavam com uma clareza tão dura que varriam qualquer gosto. Então eu quis morrer. Se Frederico Paciência largasse de mim... Se se aproximasse mais... Eu quis morrer. Foi bom entregar o livro, fui sincero, pelo menos assim ele fica me conhecendo mais. Fiz mal, posso fazer mal a ele. (p. 101) Sua narração é depois bastante ambígua; ao mesmo tempo em que sabe ser meio de reatar a “amizade”, aproximar-se de vez de Frederico, fica feliz que não pode fazê-lo. Envia-lhe um telegrama para dar-lhe os pêsames, mas nunca recebe a resposta, o que indica o fim definitivo do relacionamento entre eles. Ao final, porém, sugere, a partir do sobrenome de Frederico, a causa de não terem tido nada, é que talvez ele fosse muito paciente, muito vagaroso. Em “Peru de Natal”, Juca, ciente de sua condição de “louco” da família, resolve romper com a mesmice dos outros O resultado foi um mal-estar entre eles, a ponto de Frederico declarar que a leitura não fora bom para ele; devolvia o livro Desta vez o cadáver não seria empecilho, seria ajuda, o que nos salvou foi a distância. Não havia jeito de eu ir ao Rio. Era filho-família, não tinha dinheiro. (p. 113) 37 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 37 29/05/2012 15:48:03 natais da família. Com a morte do pai, ocorrida cinco meses antes, Juca quer dar novo rumo à própria história e levar os demais membros da família (mãe, irmã e tia, a quem Juca chama de as “três mães”) a sentir um pouco de prazer, sem pejo, sem o olhar castrador do pai, homem correto, mas que não se permitia, nem à família, momentos de pequenos prazeres. Porém, pelo pouco tempo decorrido, a figura do pai se fazia presente naquela família, bem como o olhar social, que poderia reprovar a atitude da família de comemorar sem sobriedade o Natal, que se realizava ainda sob o peso do luto. Dessa forma, Juca é a expressão da loucura, da fuga das normas, em direção à realização de um prazer fugaz. Apoiadas nessa ideia, a de seguir um doido, um desvirtuado, como meio de não perturbá-lo mais, aderem ao desejo e se deixam levar por ele: logo no início do conto, referência idêntica à descrição feita do personagem nos outros contos. O título é uma alusão à infância do narrador, que fora marcada porque o pai queria que ele tivesse o cabelo “de homem” e não aqueles cacheados que poderiam afeminá-lo. O caso se presta a outras recordações, sobretudo a um resgate de um momento que colaborou para sua formação como ser, como indivíduo. A perda dos cachos indicava o fim da primeira infância (sete ou oito anos), em direção à pré-adolescência. Talvez por isso tenha ficado tão bravo, choroso, como se quisesse manter-se naquele estado anterior. O segundo momento do conto se inicia com uma viagem de férias, por dois meses, a Santos, férias de gente sem grandes recursos, como o narrador procura enfatizar, que tinha de alugar uma casa distante da praia: Quando acabei meus projetos, notei bem, todos estavam felicíssimos, num desejo danado de fazer aquela loucura em que eu estourara. (p. 91) Interessante que, nesse caso, Juca se entrega à satisfação do desejo sem pejo, sem qualquer medo, sem qualquer interdito, ao contrário do caso de Maria e Frederico Paciência. É bem verdade que o ato de comer um peru no Natal pode não ter a mesma dimensão “pecaminosa” de um relacionamento íntimo, como os que se anunciaram para ele. Mesmo assim, o efeito simbólico é o mesmo, em particular no que diz respeito à projeção da felicidade. O ato de comer o peru é meio de escapar da vida imediata, da vida cotidiana e atingir uma espécie de céu. É sair da vida prosaica, banal, para atingir o sublime: A casa que papai alugara não ficava na praia exatamente, mas numa das ruas que a ela davam e onde uns operários trabalhavam diariamente no alimento de um dos canais que carreavam o enxurro da cidade para o mar do golfo. (p. 133) Aquele peru comido a sós, redescobria em cada um o que a quotidianidade abafara por completo, amor, paixão de mãe, paixão de filhos. [...] Naquela casa de burgueses bem modestos, estava se realizando um milagre digno do Natal de um Deus. (p. 92) Para completar a inversão, a mudança, é o próprio Juca quem serve às suas “mães”, que começam a se deliciar, de modo a lembrar um ritual dionisíaco, de busca do prazer, de uma satisfação quase pecaminosa. O clímax ocorre quando Juca se lembra do pai, cuja imagem fica mais forte quando sua mãe o menciona e diz que só estava faltando ele. No entanto, caso não faltasse essa figura castradora, certamente não estariam tendo aquele prazer. Por isso, Juca faz aos poucos desaparecer a figura, deglute-a, por assim dizer e, mais do que isso, transforma-a. O pai estaria feliz com aquela festa, com aquela transformação. Desse modo, o pai perde o ranço castrador. “Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma inestortável estrelinha do céu”. O conto, escrito entre 1938 e 1942, remete o leitor à antropofagia de Macunaíma, cujos fundamentos eram o da deglutição de determinados valores que passariam por um processo de transformação em novo ambiente. Assim também acontece com a família de Juca, a qual se deixa levar por esse momento libertador. É como se o louco narrador usasse de sua arte, de suas ideias inusitadas para provocar a catarse nos demais personagens e, por extensão, no leitor. No fim, o pai desaparece e resta apenas o peru e a consequente satisfação de tê-lo devorado. “Tempo da Camisolinha”, por sua vez, apresenta como narrador outra pessoa, Carlos, mas, pelas indicações ao longo do conto, parece ser a mesma pessoa dos outros três contos. Ainda mais se consideramos a descrição dos cabelos cacheados Isto é, estavam próximos do canal de esgoto. O objetivo principal da viagem era para restabelecer a mãe de Carlos, que tivera um último parto difícil e precisava descansar. O narrador diz que o ponto positivo era ver o pai mais próximo, mais receptivo, o que normalmente não era, fosse para manter a autoridade, fosse para não se envolver sentimentalmente com a família. Carlos diz não ter gostado do mar: tinha medo de entrar na água. Mas gostava de brincar na areia, de estar na praia, onde um dia um pescador lhe deu três estrelas-do-mar, dizendo que quem as possuísse teria muito sorte. Carlos estabelece então uma relação fetichista com as estrelas, imaginando que elas lhe dariam tudo, possibilitariam o sucesso que desejasse. Tudo girava em torno das estrelas, que, passaram a ser seu guia, sua fonte de alegria: Que goiabada nem Mané goiabada! Eu estava era pensando nas minhas estrelas, doido para enxergá-las. E nem bem o almoço se acabou, até disfarcei bem, e fui correndo ver as estrelas-do-mar. (p. 137) Mas algo veio para alterar essa relação. Um dos operários da obra ao lado, um português, resmungou que vivia um período de má sorte, pois sua esposa era paralítica e os filhos, todos pequenos, enfrentava dificuldades financeiras. Carlos pensou logo em suas estrelas e em como elas o tornavam feliz. Em seguida, pensou que poderia fazer algo pelo operário: bastaria entregar-lhe uma de suas estrelas que ele seria feliz. Foi um momento doloroso ter de se desfazer de uma de suas estrelas-domar, ainda mais sendo a maior A relação que se pode estabelecer entre esse momento e o início do conto reside exatamente na passagem de uma fase da vida para outra. Na primeira, era uma criança para quem todos voltavam seus cuidados; perder os cabelos cacheados indicava outro momento, representado no caso pelas descobertas, simbolizadas naquelas feitas durante a viagem a Santos e, mais ainda, no momento de socialização da criança, que se debate entre “ajudar” ou não alguém necessitado. Embora opte pela ajuda, por uma atitude altruísta, sofre muito pela segunda perda, no caso uma das estrelas: 38 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 38 29/05/2012 15:48:04 Eu corri. Eu corri pra chorar à larga, chorar na cama, abafando os soluços no travesseiro sozinho. Mas por dentro era impossível saber o que havia em mim, era uma luz, uma Nossa Senhora, um gosto maltratado, cheio de desilusões claríssimas, em que eu sofria arrependido, vendo inutilizar-se no infinito dos sofrimentos humanos a minha estrela-do-mar. (p. 141) Esse sentimento é causado porque, claro, o operário não entendeu como uma estrela-do-mar poderia ajudá-lo a resolver seus problemas. Se para Carlos ela era tudo, tinha uma utilidade, era um fetiche, para o outro não significava nada. Além disso, no conto a idealização se confronta com a realidade. Se, nos demais contos, a felicidade está no outro (Maria ou Frederico) ou num ato (comer o peru), aqui a felicidade está primeiro em algo que lhe pertence (os cabelos) e depois em um objeto ganho (as estrelas). Mas acaba perdendo tanto um quanto outro, o que gera um processo de amadurecimento. Cinco são os contos narrados em 3a pessoa (“O Ladrão”, “Primeiro de Maio”, “O Poço”, “Atrás da Catedral de Ruão” e “Nélson”). Os três primeiros apresentam um componente social, de inspiração neorrealista, ao passo que os dois últimos têm como ponto central questões de ordem existencial. Tratemos um pouco sobre cada um desses contos. “O Ladrão” é um conto desenvolvido a partir de uma crônica. O título é um pouco enganador, uma vez que, apesar de a primeira frase ser “Pega!”, em nenhum momento fica efetivamente claro que havia um ladrão na história. O objetivo era propriamente esse, causar um pequeno tumulto na madrugada de um bairro em São Paulo, em perseguição a um suposto ladrão. O grito de “Pega!” faz toda a vizinhança acordar e se espantar. À medida que um guarda e o autor do grito inicial começam a perseguição, os moradores vão reagindo de modo diverso, desde o medo e o pânico até atingir a histeria. Apesar disso, forma-se uma união em torno do objetivo de capturar o ladrão. Assim, mais e mais pessoas se juntam aos dois, e cada um expressa o que teria visto ou imaginado. Um dizia que ele estaria no telhado, outro que já havia fugido do local. No entanto, ninguém de fato vê o tal bandido. Ainda assim, todos se mantêm atentos a alguma novidade. Em paralelo a isso, os personagens vão se conhecendo, falando um pouco de si para os demais, as mulheres oferecem café, os homens conversam sobre futebol e outros assuntos. No fim, pode-se dizer que toda essa movimentação serviu para quebrar a rotina em uma cidade que se industrializava, que crescia na década de 1930, transformando a sociabilidade, o modo de as pessoas se relacionarem. Com o episódio, puderam ver o rosto de seus vizinhos, conhecer eventuais problemas, conversar, enfim, conhecer-se: Os perseguidores tinham bebido o café, já agora perfeitamente repostos em suas consciências... Lhes coçava um pouco de vergonha na pele, tinham perseguido quem?... Mas ninguém sabia, uns tinham ido atrás dos outros levados pelos outros, seria ladrão?... (p. 42) No conto “Primeiro de Maio”, há, como o título indica, uma tematização da questão trabalhista e democrática. O conto foi escrito em 1934 e revisto em 1942, auge do Estado Novo, época marcada pela repressão do governo Getúlio Vargas. O personagem principal é identificado apenas por um número, o 35, que remete o leitor a dois aspectos: a Intentona Comunista abafada pelo governo em 1935 e também uma referência à ideia de que o trabalhador seria visto como um número, excluindo-se dele sua humanidade. Pois bem! Esse 35 perambula pelas ruas do centro de São Paulo em comemoração ao dia do Trabalhador, ao mesmo tempo em que faz reflexões sobre repressões que os trabalhadores sofriam em outras cidades, como em Santiago, Madri, Paris, etc. Seu grande sonho é que o trabalhador possa ter um dia o que comemorar, ser respeitado em seus direitos, bem como viver em um país com ampla liberdade, democrático. Desse modo, sua classe poderia comemorar a data sem nenhum tipo de repressão: Esses movimentos coletivos de recusa acordaram a covardia de 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra... pra celebrar? pra... O 35 não sabia mais pra quê. (p. 50) “O Poço”, por sua vez, conta a história em que se opõem um rico fazendeiro, Joaquim Prestes, homem já de idade, responsável por trazer novidades à região de Mogi, como o cultivo de mel e o automóvel. Ele também mandara construir um pesqueiro no terreno e contratara trabalhadores para cavar o poço do tal pesqueiro. O conto faz claramente uma crítica social, uma vez que demonstra a posição impassível do fazendeiro para atingir seus projetos, em claro detrimento do bem-estar dos empregados, que precisam trabalhar além do que poderiam aguentar para dar conta do prazo estabelecido. E ainda precisavam suportar o frio durante as madrugadas: O frio estava por demais. O café queimando, servido pela mulher do vigia, não reconfortava nada, a umidade corroia os ossos. O ar sombrio fechava os corações. (p. 77) O clímax do conto ocorre quando Joaquim Prestes vistoria a obra para decidir se aceita interromper a obra por uns dias, até o frio e a umidade passarem, e deixa cair sua caneta preferida, uma caneta-tinteiro. Exige então, de modo tirano, que os empregados peguem a caneta no poço escuro, sob perigo de desmoronamento. Albino, um empregado raquítico e doente, por ter o corpo mais franzino desce para tentar encontrar a caneta no poço. Trabalharam o dia todo, em busca da caneta, sem sucesso. Albino, todo enlameado, saiu do poço para descansar: O rapaz estava que era um monstro de lama. Pulou na terra firme e tropeçou três passos, meio tonto. (p. 81) Apesar disso, o fazendeiro não queria corpo mole, queria que continuassem a descer. Em um acesso de raiva, porém, José, irmão de Albino, revoltou-se e disse que ninguém mais desceria. Instala-se o impasse. Tal episódio ilustra bem o clima de disputa entre patrões e empregados em um contexto de pouca liberdade e de poucos direitos à parte mais fraca. José impediu que Albino descesse novamente e disse que iriam embora daquele trabalho. Joaquim concordou e dispensou a ambos, não sem antes dizer a José que ele não poderia agir assim diante de um patrão, senhor de seus empregados... Dois dias depois, os empregados conseguiram tirar a caneta do poço e devolvê-la a Joaquim, que, sozinho, ao tentar usá-la, viu que estava estragada. Então: 39 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 39 29/05/2012 15:48:04 Jogou tudo no lixo. Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas tinteiro. Uma era de ouro. (p. 88) Esse final diz tudo. Por um capricho, arriscara a vida de seus empregados, que, alienados, tiveram de cumprir uma ordem sem poder efetivamente contestá-la. Quem o fez, teve de deixar o emprego. O caso de “Atrás da Catedral de Ruão” é mais de ordem sexual. Trata-se da história de uma professora de Francês, solteira, com quarenta anos, que faz de tudo para reprimir seus impulsos sexuais. Na primeira parte do conto, ela está dando aulas de Francês para duas irmãs adolescentes, ricas e que já haviam ido à França. Ela fora uma vez, com muito custo e à base de economia. O pai das meninas era muito ausente, sempre viajando. Conforme fica sugerido, teria amantes, até que vem a abandonar a família. A conversa e a aula entre elas são repletas de subentendidos, de reticências e também de reprimendas. Enquanto estimula o desenvolvimento das meninas, ela própria procura se reprimir: E Mademoiselle, sempre na sua blusa alvíssima de rendinhas crespas, caíra naquele mundo mágico de anseios que era o das duas adolescentes, como conversaram! Como viajaram e viveram experiências desejadas, aqueles primeiros dias! Mademoissele soltava petits cris excitadíssima, pedindo mais detalhes... (p. 57-58) O ápice de narrativa se dá quando as meninas contam sobre um estupro ocorrido atrás da catedral de Rouen, na França, praticado por um homem barbudo. Conforme o narrador, não se sabe se a história seria real ou inventada pelas meninas. O fato é que isso estimulara a imaginação da professora, que se mostrava preocupada e, digamos, meio esperançosa de que isso lhe pudesse ocorrer também: A catedral contava tudo. E era deliciosamente punidor o tudo que contava a catedral. (p. 60) Quando voltava para casa de bonde, desce no ponto errado, o que a obriga andar um pouco e a passar atrás de uma igreja. Em seu inconsciente, ela estaria sendo perseguida por dois homens e imagina-se atacada por eles. Na verdade, eram dois homens que apenas passavam por ela, sem nenhuma intenção de agredi-la sexualmente. Ela fica toda preocupada e aperta o passo; entretanto, os sujeitos conversavam despreocupadamente, sem se importar com ela. Tudo não passava de delírio. Delírio que já começara antes mesmo desse episódio, quando imagina o que poderia se passar atrás de uma catedral, atrás de uma igreja. Um misto de coisa proibida e desejada: Não vê igreja solta, que não lhe brote a fatalidade de passar por detrás. (p. 66) Na ocasião em que desce no ponto errado, começa a imaginar o que poderia lhe acontecer, tenta disfarçar e afastar-se de qualquer homem, sobretudo os com barba, ao mesmo tempo em que fica procurando. O misto de proibição e liberação se acentua em sua mente, a ponto de imaginar-se sendo pega por trás, pelo pescoço. Ao final do conto, já diante da pensão onde morava, quando os homens que supostamente a perseguiam passam por ela, Mademoiselle, a professora, dirige-lhes a palavra, agradecendo pela “companhia”... Os tais homens, obviamente, não entenderam nada, e ela “subiu as escadas correndo, foi chorar”. O choro, no caso, representa tanto a decepção por ter sido apenas uma fantasia quanto a vergonha de seus desejos, refreados pela sua consciência puritana, por força das circunstâncias. Como o conto é sobre uma professora de Francês, há uma série de expressões em francês, mas que não chegam efetivamente a atrapalhar a compreensão do texto porque, em seguida, tais termos são traduzidos pelo contexto, o que facilita o entendimento da leitura. O último conto presente no livro é “Nélson”, em que se narra a história de um possível mistério. No caso, alguns rapazes tentam decifrar o mistério de um homem que bebe sozinho em um bar. Cada um expõe sua visão acerca dele, que percebe ser alvo dos comentários diversos. A técnica narrativa, que podemos classificar de cubista, consiste em construir um enredo a partir de perspectivas variadas. Em outros termos, uma visão única, totalitária, é substituída por visões fragmentadas. Das diversas visões, o leitor fica sabendo que ele fora apaixonado por uma paraguaia. Após saber mais sobre a Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, ela o abandona sob a alegação de que o Brasil teria massacrado seu país nessa ocasião. Outro diz que o tal homem teria participado da Coluna Prestes, movimento armado ocorrido entre 1925 e 1927 que queria reformar o país, minando as estruturas da chamada república Velha (1894-1930). O problema é que não se tem certeza se ele teria lutado contra ou a favor da Coluna, quando teria também machucado o braço, atacado por piranhas, quando se escondia de um ataque inimigo: – Eu não sei bem... tudo no detalhe. Como o Alfredo, eu não sei... Foi na Coluna Prestes... nem tenho certeza se ele estava com o exército ou com os revolucionários. Devia ser com estes porque ele era rapaz, se vê que não tem trinta anos. (p. 119) Importante lembrar que o conto foi escrito em 1943, portanto o episódio narrado deve ter se dado na década de 30, por volta de 1935. Por isso, a suposição de idade feita pelos rapazes. A partir dessas suposições, cada qual procura determinar a explicação mais plausível, mais verossímil, isto é, mais digna de verdade: – Pois ele gostava tanto da paraguaia que acabou cedendo, imaginando que aquilo havia de passar... (p. 124) E adiante: – Foi por causa da Guerra do Paraguai... O homem ficou feito doido... (p. 125) Nelson, o tal homem alvo dos comentários, já havia percebido que falavam dele. Esperou um pouco mais, até que resolveu ir embora. Sua partida não é isenta de mistério: E foi saindo muito rápido, escorraçado, sem olhar ninguém, sem esperar resposta nem troco. Era incontestável que fugia. (p. 127) Do lado de fora, o mistério continua, e ele se sente perseguido. Faz de tudo para despistar a todos, até que consegue. 40 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 40 29/05/2012 15:48:04 O conto finaliza como começou, isto é, sem uma explicação reveladora do que de fato se passara com Nelson, qual das histórias seria a verdadeira. E talvez não seja mesmo o objetivo, o que permite ao leitor também contribuir para determinar o que seria a verdade do conto. Talvez o objetivo fosse mesmo apontar para a situação existencial humana no novo e moderno tempo nacional: todos nos tornamos desconhecidos, um mistério antes para nós mesmos. O final é metafórico em relação a isso: defesa do presente e no desprezo pelo passado. (E) contraria um traço expressivo da obra poética do autor, ao repudiar a oralidade valorizada nos poemas da primeira geração modernista. 3. Leia o fragmento da obra Contos novos, de Mário de Andrade, e assinale a alternativa CORRETA. “Principiou uma luta baixa entre o peru e o vulto de papai. Imaginei que gabar o peru era fortalecê-lo na luta, e, está claro, eu tomara decididamente o partido do peru. Mas os defuntos têm meios visguentos, muito hipócritas de vencer: nem bem gabei o peru a imagem de papai cresceu vitoriosa, insuportavelmente obstruidora. – Só falta seu pai...” (p.74). a) O trecho acima refere-se ao conto Vestida de Preto b) A luta entre o peru e o vulto do pai do narrador acontece num almoço de Páscoa. c) O narrador não se liberta da figura do pai. d) O peru representa a figura do pai somente na Páscoa. e) Durante a refeição os comensais não se libertam da presença opressora do patriarca. Num momento, se dirigiu quase num pulo para a porta, abriu-a, deslizou pela abertura, fechou a porta atrás de si, dando três voltas à chave. (p. 129) Esse conto era um dos que Mário de Andrade ainda pretendia rever. Apesar de não ter podido fazê-lo, a ideia está pronta e é sugestivo que o leitor também é convidado a tomar parte no mistério, não apenas desse conto em particular, mas igualmente dos outros. Cabe ao leitor, pois, completar as lacunas e determinar significados possíveis. Exercícios 4. (Unemat-MT) Sobre Contos Novos, de Mário de Andrade, 1. (Cefet-PR) Sobre Contos Novos é Correto afirmar: (A) O humor, tema caro ao Mário de Andrade da primeira fase modernista, está colocado em segundo plano nesse livro, e aparece, agora, em pouquíssimas passagens dos contos, confirmando a maturidade estética do autor. (B) Os contos são introspectivos, ou seja, o narrador muitas vezes procura apreender o que se passa no inconsciente dos personagens, o que faz com que esse livro se inscreva numa tradição de narrativa que remonta ao fim do século XIX, especialmente com Machado de Assis. (C) O conto “O Ladrão” procura refletir sobre o cotidiano violento de moradores de um bairro da alta classe média paulista, assustados estes que estão pela constante ameaça ao seu patrimônio material. (D) A linguagem utilizada nas narrativas desse livro é profundamente hermética, dificultando o seu entendimento, principalmente por causa da falta flagrante de marcas da oralidade, tão comuns no Mário de Andrade dos livros anteriores. (C) A pontuação utilizada pelo autor é bastante tradicional, mesmo quando ele reproduz diálogos entre personagens que vivem momentos de descontração do cotidiano, expediente formal que comprova o retorno de Mário de Andrade aos moldes clássicos de narrativa utilizados desde o Romantismo no Brasil. assinale a alternativa incorreta. a) São narrativas de linguagem complexa, primando pela norma culta da língua: sintaxe e estrutura formal rígidas. b) Os procedimentos narrativos concentram a experimentação linguística, bem ao gosto dos modernistas. c) Os contos de 1a pessoa estão centrados na personagem Juca e exploram atemática social e familiar. d) As personagens das nove narrativas expressam a relação conflituosa entre o homem e o seu mundo. e) A denúncia das crises sociais alia-se à análise da problemática existencial das personagens. 5. (UFG) Nos contos “Vestida de preto”, “O peru de natal”, “Frederico Paciência” e “Tempo da camisolinha”, do livro Contos novos, de Mário de Andrade, o aspecto nuclear que os aproxima é (A) o recurso à introspecção. (B) a temática da religiosidade. (C) o tempo da vida escolar. (D) a ação de ritmo linear. (E) o apelo à evasão. 2. (UEL-PR) Sobre Contos novos, de Mário de Andrade, é correto afirmar que esse livro: (A) representa obra da fase madura do autor, desligando-se dos ideais estéticos modernistas de 22 e retomando atitudes românticas. (B) representa uma evolução da prosa de ficção realista e crítica, assemelhando-se ao regionalismo do romance de 30, inclusive no âmbito temático. (C) reúne intimismo e crítica social, firmando-se como uma obra de caráter reflexivo do modernismo e discutindo diversos preconceitos, como o homossexualismo e o tabu da morte no âmbito familiar. (D) recorre, em diversos textos, à personagem Juca, que, ora como narrador, ora como personagem, se constitui na 41 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 41 29/05/2012 15:48:04 CAPÍTULO VII - A falecida de Nelson Rodrigues Nelson Rodrigues (1912-1980) iniciou sua vida profissional como jornalista policial, isso aos treze anos de idade. A experiência proporcionou-lhe conhecer os meandros do chamado “mundo cão” que o acompanharia em boa parte de sua produção artística. Escreveu romances, muitos sob o pseudônimo de Suzana Flag, contos, crônicas, roteiro de filmes, mas notabilizou-se por suas peças teatrais. Seja pelas inovações técnicas, utilizadas desde Vestido de noiva (1943), seja pela temática reveladora dos desejos ocultos, da vida privada, com suas taras, desvios de conduta e comportamentos pouco condizentes com o status social da classe média, em especial. A falecida foi sua oitava peça teatral e teve sua encenação de estreia realizada em 1953, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Trata-se de uma tragicomédia, ou seja, uma peça que mistura comédia, tragédia, farsa e melodrama. Rodrigues a classificou como “tragédia carioca” ou mais especificamente “farsa trágica”. Para Rodrigues, o teatro deveria ser sempre provocador, e não um mero espetáculo para que os espectadores assistam à peça passivamente, como quem quer apenas relaxar. Por isso mesmo, encontrou muita resistência da censura, institucionalizada ou não. No caso de A falecida, temos um tema recorrente em sua obra, que é o da mulher adúltera. Embora hoje o tema possa chocar menos pela presença constante em novelas, filmes e peças teatrais (evidente que traição é sempre um assunto polêmico, por envolver sentimentos), à época (décadas de 40, 50 e 60 do século XX), o adultério feminino era visto de modo velado, por esse motivo, tal peça teatral foi considerada imoral, como de resto outras peças do autor. Não que seja exatamente relevante para compreensão da obra, mas apenas a título de curiosidade, Rodrigues apaixonouse por Sônia Oiticica, a atriz que interpretava Zulmira, a adúltera de A falecida. No entanto, a vida não imitou a arte e Sônia preferiu ser fiel ao marido... Uma novidade para a época é a multiplicidade de cenários: banheiro, quarto, Igreja, casa dos pais, funerária, consultório, táxi, mansão do empresário Pimentel e também Maracanã. Como solução cênica para tantos cenários, o espaço permanece vazio, tendo como único objeto fixo as cortinas. O Modernismo já havia retirado a pecha da literatura, incluindo o teatro, de belas letras, isto é, de uma arte que poderia apenas expressar o que era elevado, erudito, nobre, por assim dizer. Em outros termos, a literatura poderia e deveria tratar de pessoas de todas as esferas sociais, bem como explorar os mais diferentes temas, do prosaico ao sublime. Assim, talvez não tenha causado tanta estranheza ao espectador da década de 50, a peça ter como cena inicial a casa de uma vidente, cujo filho fica com o dedo enfiado no nariz... O ambiente é bastante degradado, conforme as indicações no início da peça. Numa porta, (imaginária ou não), surge Madame Crisálida com um prato e o respectivo pano de enxugar. De chinelos, desgrenhada, um aspecto inconfundível de miséria e desleixo. Atrás, de pé no chão, está seu filho de 10 anos (...). Durante toda a cena, a criança permanece, bravamente, com o dedo no nariz. O papel de Madame Crisálida é coadjuvante, mas servirá para Zulmira, a protagonista em dois dos três atos da peça, fazer algumas escolhas e preparar o ambiente para sua morte certa, uma vez que está com tuberculose. No caso específico, ouve da vidente que ela deve ter cuidado com uma loira. O que à primeira vista pode ser visto como uma possível amante do marido, será mais bem explicado apenas no último ato. A cena seguinte continua com o prosaísmo. Quatro homens, incluindo Tuninho (corruptela de Antonio) jogam sinuca e discutem futebol. Como a história se passa no Rio, falam sobre o clássico entre Vasco e Fluminense do domingo seguinte. Tuninho está desempregado e preenche o dia ora no bar ora em rodas de amigos. É no quarto, à noite, que Zulmira conta a Tuninho que fora procurar a cartomante e que ela lhe falara sobre a tal loira. O diálogo serve para indicar três pontos do enredo: primeiro que Zulmira tem uma fixação pela morte, segundo que está distante do marido, sob a desculpa de que a religião a que se convertera, a teofilista, proíbe beijos apaixonantes, mesmo no marido, e expor-se publicamente, como usar maiô na praia. ZULMIRA – Não aprovo praia, não aprovo maiô. Por fim, segundo indicação de Tuninho, a loira seria certamente a prima de Zulmira, a Glorinha. No entanto, o que fica sugerido é que a prima poderia ser amante de Tuninho. (Zulmira está desesperada) ZULMIRA – Só pode ser ela, é ela no duro! TUNINHO – Apaga a luz e vamos dormir! ZULMIRA – Uma Fulana, além do mais, minha parenta, longe, mas é. Nunca lhes fiz nada, sempre a tratei, assim, na palma da mão. E, de repente, deixa de me cumprimentar. Por quê? Ainda hoje, eu passei. Estava na janela, limando as unhas. Torceu-me o nariz, aquela gata. Cinicamente! TUNINHO – Vem dormir! (Zulmira não ouve o marido, encerrada na sua obsessão.) Outra cena bastante importante para a construção do enredo é a que trata da morte da filha única de um bicheiro, e os funcionários pensam em armar um meio de fazer o bicheiro gastar um bom dinheiro no enterro da filha, algo em torno de 25 mil cruzeiros. FUNCIONÁRIO – Toma o endereço. E sabes qual é o golpe? Segura o Anacleto e diz: “A filha merece um caixão de 25 contos!”. Aposto os tubos como ele topa! Apanha um táxi! Isso porque Zulmira irá procurar a mesma funcionária, sabendo sobre esse enterro e quer algo igual para ela. Prevê que irá morrer logo. Enquanto isso, seu marido reclama à família de Zulmira sobre as atitudes dela, sobre o fato de não querer mais beijá-lo, mais abraçá-lo, mesmo porque acha nojento. MÃE – Mas oh minha filha! oh! PAI – O marido tem seus direitos! MÃE – Onde se viu negar amor ao marido? PAI – Você se casou porque quis! (Zulmira desespera-se, em cima da cadeira.) 42 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 42 29/05/2012 15:48:04 consultório! Um médico que cobra trezentas pratas a consulta – eu vou, de carona, ao Dr. Borborema, um médico de D. João Charuto, completamente gagá! Ainda por cima, fiquei, sem o mínimo exagero, umas 37 horas, na sala, esperando, e com esse calor! (p. 37) Obviamente que o caso começa a causar estranheza em todos, mesmo porque não deveria ter essa mudança apenas por uma religião nova que ela começara a frequentar. Zulmira sugere então a Tuninho que procure outra mulher; no caso poderia ser a Glorinha, a mesma que ela considerava como falsa, como alguém pouco confiável. ZULMIRA (vem vindo para ele) – Mas olha! (doce e persuasiva) Ela não é fria, não, seu bobo... Sou mulher e conheço as outras mulheres... Já fui unha e carne com Glorinha, posso te garantir... Não tem nada de fria e, até, pelo contrário... Te lembras do nosso namoro?... ela te olhava muito naquele tempo... Mais um episódio para causar estranheza, afinal primeiro ela acusa o marido, avisada pela cartomante, de que a Glorinha poderia ser a mulher com quem Tuninho estaria saindo; depois, ela própria sugere a ele que a procure, como forma de nutrir a falta de amor. Porém, Tuninho descobre que Glorinha teve de tirar um seio por conta do câncer, desse modo não se interessa por ela, o que também faz cair por terra a ideia de Zulmira sobre os dois serem amantes. A peça vai se desenrolando de modo que o leitor fica em suspenso, sem saber direito ainda qual a finalidade de toda essa mudança por parte de Zulmira. Ainda que possa desconfiar. Ao saber do câncer, Zulmira comemora, como quem se sente aliviada com um “castigo” alheio, contra alguém que lhe parecia pouco amiga. ZULMIRA – Não me cumprimenta: torce o nariz pra mim, que nunca lhe fiz nada! – Castigo! Castigo! O segundo ato se inicia com Zulmira na funerária. Nesse momento, começa a haver uma amarração com a primeira conversa dos funcionários da funerária sobre a morte da filha do bicheiro, bem como uma compreensão sobre as últimas atitudes de Zulmira. Ela vai até à funerária e insiste em falar com Timbira, um dos funcionários. Mulherengo por natureza, imagina que possa tirar proveito dela. Zulmira diz estar procurando um enterro com toda a pompa para uma amiga que está à beira da morte e quer que seja o mais rico possível, com muitas flores, detalhes, coroas. Depois de muita conta e aproveitando-se para ganhar um extra sobre o desejo da mulher, diz: TIMBIRA – Armação por conta da casa – mil e quinhentos cruzeiros. Altar e crucifixo, outros mil e quinhentos cruzeiros. Mas outras despesinhas, tal e coisa, deve andar tudo aí por uns 36 mil cruzeiros. Tuninho reclama que Zulmira anda tossindo muito, que não quer procurar o médico. Ela já sabia, porém, que morreria em breve, que tinha tuberculose, e que não adiantaria médico. A passividade de Zulmira irrita os demais personagens, e também o espectador da peça, que não atina com essa passividade e resignação. Mesmo contra a vontade, vai a um médico. O diagnóstico é que não teria nada. Zulmira insiste que está doente e ainda reclama do médico, cujo tratamento teria sido bem diferente do médico de Glorinha, sua obsessão, seu parâmetro para esses episódios todos. ZULMIRA – Eu sou uma podre-diaba! Enquanto a Glorinha vai a um médico bacana, que até piano tem no Em outra cena com o marido, enquanto Tuninho reclama que Ademir, o melhor jogador do Fluminense, talvez desfalque o time no clássico, Zulmira começa a tossir. Ele dá pouca importância, prefere pensar no futebol, até que ela acaba cuspindo sangue. ZULMIRA – Tuninho! Tuninho! (Tuninho salta na cama.) TUNINHO – Eu! ZULMIRA – Olha! Espia! (Tuninho esbugalha os olhos.) TUNINHO – Que é isso? ZULMIRA – Sangue! (Tuninho apavora-se.) (p. 31) O episódio serve para Zulmira confirmar que está morrendo, mesmo sob o olhar descrente de Tuninho. Então, ela conta o plano que vinha arquitetando, para ter um enterro de grande destaque, até como meio, aparente, de mostrar à Glorinha que ela poderia ter o melhor e mais bonito enterro da cidade. Ela conta a ele então que seu enterro ficará em Cr$ 36 mil cruzeiros e que deverá buscar a quantia com um homem chamado João Guimarães Pimentel. ZULMIRA – Você também apanha, na minha bolsa branca, outro papel, com o endereço dele, da casa, do escritório, os telefones. Assim que eu morrer pega um táxi, vai à casa dele, ao escritório, seja lá onde for, e diz o seguinte: que eu morri. Mas antes que, antes de morrer, pedi que ele me pagasse um enterro de quarenta mil cruzeiros... ele te dará o dinheiro... E não diz que é meu marido... Diz que é primo... (Tuninho ergue-se, atônito. Esbraveja.) (p. 33) Apesar da surpresa de Tuninho, ela nada mais diz. Apenas pede que cumpra o que estava falando. Dias depois, ela morreria. É o fim do segundo ato. No 3° ato, com Zulmira morta, o protagonista é substituído, passando agora a ser exatamente seu marido, Tuninho. Ao ir atrás de Pimentel para obter o dinheiro do enterro, descobre a traição de sua mulher. Tuninho vai de táxi até a mansão do Pimentel, não conhecia bem o lugar e vai até lá receoso. Ainda não atinara com o real propósito de sua esposa ter feito tal pedido, nem sabia como faria de fato o pedido. Conversa então com o motorista do táxi a ver se ele conhecia, se tinha alguma informação sobre o Pimentel. Já na mansão, com muito custo, consegue que o empresário o receba. E depois, no início da conversa, segue as determinações da esposa: PIMENTEL – Que é que há? TUNINHO – (tímido e gaguejante) – Vim aqui da parte de Zulmira... Aliás, eu sou primo dela e... PIMENTEL (com maus modos) – Zulmira? (Tuninho está desconcertado.) (p. 38) A conversa vai fluindo de modo que Pimentel conta como conheceu Zulmira, que foi há um ano e que ele nem teve 43 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 43 29/05/2012 15:48:04 trabalho de conquistá-la, que foi algo rápido e ela já se entregou prontamente a ele. tal Zulmira. 1o. FUNCIONÁRIO – Exatamente. Imagina só de quem era o tal enterro? Imagina quem eu ajudei a pôr no caixão de quatrocentos cruzeiros? TIMBIRA – Quem? 1o. FUNCIONÁRIO (exultante) – A tua pequena! TIMBIRA – Qual delas? 1o. FUNCIONÁRIO (numa mesura) – ZULMIRA! (p. 48) PIMENTEL – Sim, porque, geralmente, antes do principal, sempre há uma conversinha, um namoro, um romance... E, com a Zulmira, não houve nada disso... Ah, eu me lembro como se fosse hoje. Direitinho. Foi mais ou menos há um ano. Sabe aquela sorveteria na Cinelândia, que fica perto do “Odeon”? Em seguida, passa a narrar outros encontros, o que faziam. Tuninho ouvia calado, fazendo um comentário ou outro, para estimular Pimentel a contar tudo. E então descobre o motivo da traição. Zulmira dizia ao Pimentel que Tuninho teria nojo dela, sempre lavava as mãos após o ato sexual. O que poderia ser apenas uma atitude de higiene, para Zulmira era algo que a humilhava, que a fazia se sentir mal. ZULMIRA – Achas pouco? Lavava as mãos, como se estivesse nojo de mim! Durante todo a lua-de-mel, não fez outra coisa... Então, eu senti que mais cedo ou mais tarde havia de traí-lo! Não pude mais suportá-lo... Aquele homem lavando as mãos... Ele virava-se para mim e me chamava de fria. (Zulmira altiva, empinando o queixo, como se desafiasse a plateia.) (p. 42) Esse desafiar a plateia significa que certamente seria reprovada pelo público em geral, e essa reprovação manifestada pelo público da peça é a mesma que depois se revela dentro da própria e que também explica a razão da rixa que Zulmira passou a ter com sua prima, Glorinha. É que em certa ocasião, quando passeava de mãos dadas com Pimentel, Glorinha viu a cena. Desde então, Zulmira procurou afastar-se dela, como meio de defesa e de antecipação contra qualquer coisa que ela viesse a dizer ao Tuninho ou a outra pessoa de seu convívio. ZULMIRA – Agora é que eu sou fria, de verdade. Glorinha não me deixa amar. E adiante: ZULMIRA – Tenho nojo de beijo. De tudo! (p. 44) Depois desse episódio, abandou Pimentel e nunca mais o procurou. Para encerrar a conversa, Tuninho pede o dinheiro para o enterro. Pimentel, porém, se assusta com o valor pedido. Nesse momento, Tuninho revela quem de fato é e exige o pagamento completo. (Pimentel, arrasado, põe-se de cócoras diante do imaginário cofre. Tuninho, em pé, com as duas mãos enfiadas nos bolsos, assobiando, olha para os lados, para o alto, como se estivesse fazendo uma avaliação do ambiente. Vem Pimentel entregar o dinheiro.) (p. 45) É a vingança de Tuninho. Pega o dinheiro, vai até à funerária já contratada pela esposa e compra o caixão mais barato, Cr$ 400,00 cruzeiros apenas. E assim faz o enterro mais simplório possível e embolsa o restante. Pateticamente, Timbira, um dos funcionários, que imagina que Zulmira poderia ficar com ele, sem saber que ela seria a enterrada, porque imaginara que ela fora até para preparar o enterro de uma amiga, fica imaginando como e quando seria o encontro com ela. Somente quando o enterro acontece, que um funcionário conta a ele que a moça enterrada fora exatamente a Enquanto se prepara o enterro da mulher, Tuninho está no Maracanã, onde vê seu time do coração, o Vasco vencer ao Fluminense. Porém, ao mesmo tempo em que comemora a vitória, chora pela dor da traição. TUNINHO – Casaca! Casaca! A turma é boa! É mesmo da fuzarca! Vassssssco! (Tuninho cai de joelhos. Mergulha o rosto nas duas mãos. Soluça como o mais solitário dos homens.) (p. 50) O final denota uma total falta de perspectiva de uma vida sem sentido, sem propósito, tipicamente do pequeno burguês. Tuninho tem sua vingança, mas sequer pode mostrá-la à mulher e nem pode saber o que ela teria sentido. A própria vingança contra o amante, fazê-lo pagar uma quantia vultosa por um enterro simples também não o satisfaz. Por isso mesmo, o sentimento contraditório entre a satisfação do que fizera e a frustração pelo golpe sofrido. Pode-se dizer, pois, que vitória maior foi a de Zulmira, uma vez que o plano arquitetado por ela, vingar-se do marido por uma vida sem paixão, sem perspectivas, ao fazê-lo descobrir a traição, e vingar do ex-amante, fazendo-o pagar pelo enterro, acabou ocorrendo como certamente ela previu. Em rigor, o que ela acaba fazendo de fato é também se vingando dela própria, pela exposição a que se submeteu. Como mulher casada, deveria se manter fiel ao marido, como típica mulher de família, dos anos 50, não deveria experimentar do prazer carnal, algo reservado às mulheres vulgares. Assim, o que leva Zulmira à morte é antes a culpa pela erotização do corpo. Se isso ficasse apenas reservado à sua consciência não haveria tanto problema. Como acabou sendo descoberta a traição, por acaso, pela prima beata, sentiu-se culpada pelo olhar do outro. Era preciso, pois, castigar-se por se deixar envolver por desejos tão baixos. Por isso mesmo, inventa a conversão a uma igreja, afastase do marido (não o beija mais) e do amante. Não se ouve a voz da prima, da Glorinha. Conhecemo-la pelo olhar de Zulmira, não sabemos o que de fato ela pensa. Ainda assim, ela representa para Zulmira a voz da consciência, a voz de um juiz que analisa, julga e condena as atitudes da esposa de Tuninho. Embora liberada no plano privado, sabe que no plano público seria condenada por todos. Por esse motivo, sente-se vingada quando sabe do câncer da prima, embora ela própria saiba que o modo de vida que escolheu naquele momento acaba por se constituir em um câncer para a sociedade, posto que buscava o prazer fora do casamento, fora do que seria instituído. Assim, o único modo que tem para resolver o dilema é a morte, mas uma morte que pune tanto a ela, quanto aos que estavam a sua volta mais diretamente, o marido, o amante e a prima. Em conclusão, pode-se dizer que ninguém sai impune dessa história. Todos têm sua parcela de culpa pela atitude de Zulmira. Especialmente a organização social, que, à época do 44 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 44 29/05/2012 15:48:04 enredo, inibia as manifestações de desejo da mulher, reservadas apenas ao homem. Desse modo, a peça cumpre o programa dramático de Nelson Rodrigues, que queria revelar o que estava camuflado pela vida privada, pela vida doméstica, mas que se manifestava aqui e ali. Queria, enfim, revelar a vida como ela é. Leia o trecho abaixo da peça A falecida, de Nelson Rodrigues. TUNINHO - Olha! ZULMIRA (mística) - Fala! TUNINHO - Eu não tenho nada com isso. Você é o maior, vacinada, pode ter a religião que quiser e pronto. Mas vamos à praia, ora bolas! O que é que tem a praia com as calças? ZULMIRA - Tu me achas com cara de ir à praia? Agora que me converti? TUNINHO - Será que em tudo, agora, você me contraria? Põe o maiô, anda! ZULMIRA - Não tenho maiô. TUNINHO - E o teu? ZULMIRA - Joguei no lixo! TUNINHO - Mentira! ZULMIRA - Te juro! TUNINHO - Que bicho te mordeu? ZULMIRA - Não sei. Mudei muito. Sou outra. TUNINHO - Essa é a maior! Exercícios 1. Sobre A falecida, pode-se afirmar que: a) b) c) d) e) a peça trata da morte da mulher amada, segundo o modelo romântico. a peça aborda os últimos momentos de uma mulher adúltera. a peça enfoca uma questão importante para a liberação feminina, a luta por melhores condições de trabalho. a peça enfoca a história de um casamento feliz, interrompido pela morte da mulher. a peça enfoca o drama em torno da tuberculose, seguindo o modelo romântico, da segunda geração de poetas. 4. Do trecho, em conjunto com a peça, depreende-se que: 2. Considere o trecho a seguir: (A) Zulmira realmente tomara tais atitudes por causa da religião a que se convertera. (B) Tuninho já desconfiava que Zulmira tinha um amante. (C) Zulmira na verdade tomara tais atitudes como meio de expiar os próprios erros, afasta-se, pois, do marido, pois não o ama mais. (D) Zulmira demonstra com tais atitudes que é uma mulher virtuosa, incapaz de cometer erros contra a moral. (E) Zulmira faz isso para entregar-se totalmente ao marido, Tuninho. ZULMIRA (vem vindo para ele) – Mas olha! (doce e persuasiva) Ela não é fria, não, seu bobo... Sou mulher e conheço as outras mulheres... Já fui unha e carne com Glorinha, posso te garantir... Não tem nada de fria e, até, pelo contrário... Te lembras do nosso namoro?... Ela te olhava muito naquele tempo... I. Zulmira fala isso a Tuninho, seu marido, como meio de persuadi-lo a procurar Glorinha. II. Zulmira se dirige ao amante, Pimentel, no inicio do seu relacionamento. III. Zulmira quer que o marido procure outra mulher, a fim de livrá-la da obrigação sexual. 5. Considere as afirmações: Está correto o que se afirma em: a) I b) II c) III d) I e II e) I e III I. Zulmira sabe que vai morrer e se converte a uma nova religião como meio de ajudar os outros a se regenerarem. II. Zulmira, apesar do amante, ainda ama o marido e por isso quer preservar seu corpo para entregar-se apenas a Tuninho. III. Zulmira passa a ter tais atitudes após ser flagrada com o amante por sua prima, Glorinha. Está correto o que se afirma em: 3. Assinale a alternativa incorreta sobre A falecida, de Nelson Rodrigues. a) Há na peça uma ironia quando Tuninho recebe o dinheiro de Pimentel para fazer o velório de Zulmira, mas gasta bem menos do que recebera. b) Apesar de sentir vingado, Tuninho percebe que sua vida perde o sentido com a descoberta da traição. c) Zulmira quer se vingar de Glorinha, por ela ter descoberto seu caso com Pimentel. d) Zulmira realmente se converte a uma nova religião, como meio de expiar seus pecados. e) Zulmira, antes de falecer, procura se vingar da sociedade machista, ao fazer Pimentel e Tuninho se conhecerem. a) b) c) d) e) Apenas I Apenas II Apenas I e II Apenas I e III Apenas III 45 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 45 29/05/2012 15:48:04 CAPÍTULO VIII - Dois irmãos de Milton Hatoum Dois Irmãos, de Milton Hatoum, é um romance que se assenta sobre a dualidade, a começar pelo título. Essa dualidade se revela na oposição entre Yagub e Omar, os dois irmãos do título; na cultura, ainda que não seja exatamente uma oposição, representada pelo Brasil, particularmente Manaus onde se passa boa parte da história, e o Líbano, origem dos protagonistas; no tempo, uma vez que o romance mescla, ao longo da narrativa, passado e presente, numa alternância que serve para explicar as razões dos acontecimentos, mas também para criar o suspense, por fim há a dualidade econômica, da passagem de uma cidade próspera, a Manaus da primeira metade do século XX, que enriqueceu com a exploração da borracha, para uma cidade em decadência, tentando reencontrar seu caminho, tendo à frente comerciantes estrangeiros, no caso específico, libaneses. Essa dualidade acaba por revelar uma característica literária do romance moderno, que é o jogo, a não certeza, a visão fragmentada, que vai se revelando aos poucos, não está tudo pronto, como no romance do século XIX, em que o narrador tinha uma visão do todo e revelava isso ao leitor de modo até didático. O narrador do romance moderno é tão humano quanto qualquer personagem, com falhas, imperfeições, incoerências e, principalmente, sua visão fragmentada que o impede de revelar o todo. Por isso mesmo, os capítulos não são dispostos linearmente, em sequência. O capítulo seguinte não é necessariamente continuação do anterior; nem mesmo o capítulo inteiro possui uma visão completa e acabada; antes, oferece elementos para que o leitor colabore na construção do narrado, do significado daquilo que se narra. A trama gira em torno da tumultuada relação entre os dois irmãos gêmeos. Se não é exatamente uma novidade, cuja origem é bíblica com Caim e Abel, Esaú e Jacó, com fontes literárias, destaque para Pedro e Paulo, do livro Esaú e Jacó, de Machado de Assis. No caso de Dois Irmãos, Omar representa a vida desregrada, amoral, egoísta, ao passo que Yaqub representa a vida moralmente correta, com objetivos profissionais e pessoais claros. Já por isso, haveria uma disputa entre os irmãos. Mas o que se destaca é a briga por conta do amor dos pais. Se Omar tem o apoio incondicional de Zana e mesmo da irmã, Rânia, Yaqub tinha a preferência do pai, Halim. Essa separação é determinante para o desenrolar dos acontecimentos. Há mesmo uma sugestão incestuosa entre Omar, a mãe e a irmã. Embora não pareça ter ocorrido nada de fato, mas fica a sugestão desse amor para além do sentimento maternal ou fraternal. A narrativa tem início por seu momento derradeiro. O leitor logo nas primeiras páginas fica sabendo que Zana tendo de deixar a casa onde morava, despedindo-se com olhar triste de tudo, do narrador, Nael, para ir morrer em uma clínica, onde falou pela última vez sobre os filhos: “Meus filhos já fizeram as pazes?” Em seguida, vamos saber quem é Zana, por que os filhos teriam brigado para terem de fazer as pazes, etc. Em seguida, sabemos que o jovem Yaqub voltava de uma viagem forçada ao Líbano, em fins da II Guerra Mundial, isso porque o porto do Rio de Janeiro estava “apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que regressavam da Itália” (p. 13) O reencontro entre pai e filho demonstra já como as relações entre eles estavam bastante abaladas. Mesmo porque, já na Cinelândia, Yaqub pouco se importa com o público, com o pai e urina em uma parede. Demonstra também outras atitudes pouco dignas, exatamente para agredir moralmente o pai. Depois, porém, com o tempo, esse relacionamento é restabelecido, se não totalmente saudável, ao menos com respeito e dignidade. Ficamos sabendo depois a razão da viagem. Omar roubara uma namorada que deveria ser de Yaqub, apenas mais um entre outros tanto motivos para os dois brigarem. Resolveu-se então que seria melhor separá-los por um tempo e, em 1938, foi mandado para morar com parentes no Líbano, onde permaneceu até 1945. Em outro dia, quando assistiam a um filme na casa de vizinhos, houve uma pane no equipamento, fincando tudo às escuras. Quando se restabeleceram as luzes, Lívia parecia beijar o rosto de Yaqub, que armara essa situação. Omar, então, tem uma briga corporal com o irmão e o corta com uma garrafa. A cicatriz feita no rosto de Yaqub, em forma de meia-lua, se torna um símbolo do ódio entre eles. Interessante que o narrador não é a única testemunha da história dos gêmeos. Empresta muitas vezes o olhar de Domingas, sua mãe, empregada da casa de Halim, bem como o olhar dos demais personagens, já que nem sempre estava ou esteve presente em todos os episódios. Assim, se o narrador não é propriamente alguém em quem não se pode confiar, é preciso ponderar sobre a verdade plena do narrado. Outro motivo é que o narrador é parte interessada. Ele próprio cria uma atmosfera de mistério para saber qual dos dois seria seu pai; sabia apenas que Domingas tivera um relacionamento, forçado ou não, com Omar ou com Yaqub. Assim, parte da história é saber a história do narrador. “A minha história também depende dela, Domingas” (p. 25) E adiante: Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi, porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante. Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final. (p. 29) Ou em outro momento: A intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos. Ele me fazia revelações em dias esparsos, aos pedaços, “como retalhos de um tecido”. (p. 51) Outro episódio significativo ocorre na escola. Enquanto Yaqub se mostra interessado e de grande capacidade com os números, com a Matemática, o que o levaria a estudar engenharia em São Paulo (“Surpreendia os professores: a chave da mais complexa equação se armava na cabeça de Yaqub, para quem o giz e o quadro-negro eram inúteis” p. 32), Omar é expulso do melhor colégio de Manaus e vai estudar no Liceu Rui Barbosa, mais conhecido como Galinheiro dos Vândalos, exatamente por ser um local pouco propício ao estudo e mais à vadiagem, à vida libertina. O que poderia ser algo vergonhoso a outro, para Omar era a glória e contava e repetia a história de como fora expulso do colégio dos padres por ter batido no professor de Matemática, Bolislau. Também para Zana, que sempre defendia o filho amado, o caçula, por assim dizer, Omar não fizera nada demais, apenas expressara o que pensava sobre um professor em particular... “Esse Bolislau errou”, murmurava. “Meu filho só quis provar que é homem... que mal há nisso?” (p. 37) 46 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 46 29/05/2012 15:48:04 Tal atitude só dava mais margem a Omar para suas investidas amorais, e sua derrocada, aumentando o fosso entre ele e o irmão. Gandaiava como nunca, e certa noite entrou em casa com uma caloura, uma moça do cortiço da rua dos fundos, irmã do Calisto. (p. 91) Os religiosos sabiam que o ex-aluno tinha futuro; naquela época, Yaqub e o Brasil inteiro pareciam ter um futuro promissor. Quem não brilhou foi o outro, o Caçula, este sim, um ser opaco para padres e leigos... (p. 41) Porém, essa atitude não é bem aceita pelo pai, que pega o casal nu na sala. Manda a moça embora e acorrenta Omar por uns dias como castigo. Pouco resolve a atitude do pai, pois Omar se envolve com outras mulheres, particularmente Dália. Dessa vez, é Zana quem a expulsa, por ciúmes. Dália era uma dançarina exótica, isto é, dançava em casas noturnas para o prazer masculino. Como ele insiste em procurar a dançarina, toma uma decisão mais drástica, manda-o para São Paulo, onde deveria procurar o irmão e encontrar um rumo para a própria vida. Yaqub não se sente à vontade com a ideia. Embora não queira abrigá-lo em sua casa, ajuda-o a arrumar um quarto em um pensão e o matricula num colégio para terminar os estudos. O Brasil ter um futuro promissor tinha a ver com a década de 50, segundo governo de Getúlio Vargas e, principalmente, o governo Juscelino Kubitschek, que promoveu uma série de reformas no Estado brasileiro, na economia, na estrutura do país. Yaqub parte para São Paulo, mas antes teve um último encontro amoroso com Lívia, a moça que era alvo da disputa entre os dois irmãos na adolescência. Omar, mordido de ciúme, não tocou no nome do irmão. E a mãe, pura ânsia, dizia que filho que parte pela segunda vez não volta mais para a casa. O pai concordava, sem ânsia. (p. 45) O segundo capítulo retoma o passado, 1914, para falar sobre a história de Halim, sobre como prosperara em Manaus, o comércio, as dificuldades da vida. Mas especialmente trata do relacionamento entre Halim e Zana, como ele a conquistou com um poema emprestado. O importante a destacar é que Halim não queria filhos, era totalmente dedicado à mulher que escolheu para se casar; sabia que filhos a roubariam dele aos poucos, que seria o fim daquele amor tão intenso, de parceria e intimidade. Os filhos haviam se intrometido na vida de Halim, e ele nunca se conformou com isso. No entanto, eram filhos, e conviveu com eles,... (p. 71) Yaqub, longe do olhar do irmão, consegue se estabelecer bem em São Paulo. Forma-se em engenharia, prospera e se casa. Em contrapartida, envia poucas cartas à mãe, e quando envia, pouco diz. O que faz Zana sofrer. Outro dado recuperado pela memória do narrador, Nael, com a ajuda de Domingas, é a origem da sua mãe, o porquê fora morar na casa de Halim. No caso, ficara órfã e fora viver com freiras, ajudando no serviço local, até ser adotada por Zana, que precisava de uma ajudante. E assim passou a residir com Zana e Halim. O grande ponto, porém, é a história de quem seria o pai de Nael. Ela nunca quis falar sobre o assunto, e se instaura um suspense, cujo desfecho aponta ou para Omar ou para Yaqub. Foi só depois do episódio da Mulher Prateada que Halim decidiu mandar Omar para São Paulo. Yaqub já estava casado, e, mais uma vez, não aceitara um vintém dos pais; talvez recusasse até uma dádiva da mão de Deus. Não revelou o nome da mulher e apenas um telegrama anunciou o casório. (p. 93) Os opostos impedem uma aproximação real, de integração familiar. Servem também para revelar como os modos de vida dos gêmeos, pretensamente parecidos, são divergentes. Halim e Zana pensavam que o filho doutor ia corrigi-lo, que cedo ou tarde a vida dura em São Paulo podia domá-lo. (p. 108) De qualquer modo, a princípio, Omar não decepciona. Vive em São Paulo com alguma dignidade, estuda e se concentra em melhorar. Porém, não demora muito para revelar sua verdadeira natureza e simplesmente desaparecer, sem deixar notícias a ninguém, especialmente ao irmão, que parecia acreditar em sua possível recuperação como cidadão cumpridor de obrigações. O que acontecera, na verdade, é que Yaqub não dissera a ninguém com quem se casara. E também proibia Omar de visitar sua casa. No entanto, acabou descobrindo que a mulher misteriosa era Lívia, pivô de várias brigas entre os irmãos. Então, antes de fugir, Omar fez desenhos obscenos nas fotos do irmão e roubou 820 dólares do irmão e o passaporte, e viajou para os Estados Unidos. Yaqub passou da acusação à cobrança. Não ia sossegar enquanto o irmão não lhe devolvesse os oitocentos e vinte dólares roubados. Uma fortuna! (p. 124) Pensei: por pouco ela não teve força ou coragem para dizer alguma coisa sobre meu pai. Esquivou-se do assunto e se esqueceu das perguntas que me fizera na noite daquele domingo. (p. 79) De sua parte, Omar ia se tornando boêmio, entregando-se a festas e a bebedeiras. Se Yaqub prosperava, Omar queria saber apenas de festa, de farra com mulheres. Largara os estudos de vez, o que causava tristeza à mãe, não tanto pela atitude de parar de estudar, e sim por se envolver com mulheres pouco dignas. Em rigor, toda mulher com quem Omar viesse se envolver seria vista negativamente por Zana, isso porque havia um amor dela para com ele que extrapolava o sentimento materno, sugerindo algo próximo a um incesto. O bom para Nael, o narrador, é que cada vez que um filho deixava a casa, recebia objetos que não lhe serviriam mais, como roupas, livros. Paralelo à história familiar, tem-se nuances das mudanças na sociedade brasileira, na economia, representadas pelas mudanças que Rânia, a irmã dos gêmeos, quis implementar na loja de Halim. Embora ele não tenha gostado das mudanças, aceita-as como necessárias. Ela acreditava na moda, e reverenciou a moda do momento. (p. 130) 47 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 47 29/05/2012 15:48:04 Isso começou a aproximar Rânia de Nael. O narrador revela sua paixão por Rânia, que não demonstrava interesse por nenhum homem. Nael, apesar disso, consegue dela uma noite de amor. Única, mas intensa. Esse desprezo pelos homens em geral se explica pelas atitudes de Rânia para com Omar, que voltara dos EUA. Era uma aproximação perigosa, próxima do incesto, como já ficara sugerido com Zana. Rânia só faltava devorar esse novo irmão. Agora ela convivia mais com ele, conversavam durante o café da manhã, quando ela e a mãe o cercavam e davam palpites sobre a roupa, o perfume, a cor da gravata e do sapato. [...] “Dessa vez o Omar vai ser fisgado por um monte de noivas...”, disse Zahia, beijando-lhe o rosto. “Ele não precisa disso”, disse Rânia. (p. 135) Omar, em Manaus, dizia que estava trabalhando em um banco britânico, no entanto Zana descobre ser mentira. Na verdade, envolvera-se com contrabando e com uma mulata conhecida como Pau-Mulato. Pressionado, foge novamente por meses. A família passa a procurá-lo em diversos pontos de Manaus. Mas somente consegue algo positivo quando um peixeiro chamado Perna-de-Sapo é contratado para procurar na floresta, onde encontra Omar. Avisada pelo peixeiro, Zana traz o filho, mesmo forçado, de volta para casa. Careca e barbudo. Bronzeado, quase preto de tanto sol. Mais magro, mais esbelto, no peito um colar de sementes de guaraná. Descalço, usava uma bermuda suja, cheia de furos. Não parecia o Peludinho cheiroso de Zana. (p. 172) Em casa, quebra tudo, ameaça a todos, principalmente o pai, a quem acusa de favorecer Yaqub na vida. Ao contrário de Caim e Abel, é o caçula o preterido pelo pai, o que quer matar o irmão mais velho (forma de dizer, pois significa apenas que Yaqub nasceu alguns minutos antes de Omar). A disputa também remete o leitor à história dos gêmeos Esaú e Jacó – cuja vida é narrada no livro bíblico Gênesis, em que aquele nascera antes e teria a primazia de ser o primogênito, importante na cultura hebraica; no entanto, com a ajuda e conivência da mãe, Rebeca – que preferia o mais novo –, Isac, cego, imagina estar passando o comando do clã a Esaú, mas o fizera a Jacó. O episódio gera uma briga entre os irmãos. Episódio importante é a morte de um professor e poeta, Antenor Laval. Escrevia poemas simbolistas e repassava aos alunos, sem ficar com nenhum exemplar. Tinha ideias libertárias e por isso, com o Golpe Militar de 1964 começou a ser perseguido. Não demorou muito a ser preso, apanhar e morrer. O episódio se torna significativo porque é meio de o leitor acompanhar a história dos gêmeos em paralelo com a história do país, como já explicado aqui; o segundo motivo é porque Omar se afasta por um tempo da vida boêmia, da vida desregrada que sempre o marcara. No chão do coreto, manchas de sangue. Omar escreveu com tinta vermelha um verso de Laval, e por muito tempo as palavras permaneceram ali, legíveis e firmes, oferecidas à memória de um, talvez de muitos. (p. 191) As escolas e os cinemas tinham sido fechados, lanchas da Marinha patrulhavam a baía do Negro, e as estações da rádio transmitiam comunicados do Comando Militar da Amazônia. (p. 198) Yaqub viera para Manaus novamente. O clima hostil entre os irmãos apenas se acentuara. Nada poderia acontecer para instaurar a paz fraterna. Nael o admirava e desejava que ele pudesse ser seu pai, ao passo que via Omar com desprezo crescente. Pensava mesmo que poderia até ter uma luta corporal com Omar, pelo que fazia aos pais, especialmente a Halim. Halim, que se tornara mais confidente de Nael, o que o ajuda a compor o relato, estava cada dia mais triste com a situação familiar. Voltava-se ao passado com Zana, em que pôde experimentar a felicidade. Agora, porém, era apenas lamento. Interessante que em 1968, ano de grande agitação política, que iria levar à instituição do AI-5, instaurador do Estado de exceção no Brasil, Halim vem a falecer. Antes parecia ter desaparecido, o que causara certo desespero na família. No dia seguinte, Zana o encontrou sentado, morto, no sofá nos fundos da casa, onde gostava de se recolher para ficar sozinho. Omar aproveita para se livrar de todos os sentimentos negativos e começa a ofender o pai morto, a acusá-lo pela preferência por Yaqub, bem como lembrou-se do dia em que foi acorrentado por ele e de outros castigos. Começou a gritar, criança incendiada de ódio ou de algum sentimento parecido com o ódio. (p. 217) E, pela primeira vez, Zana trata Omar com dureza. Era demais até mesmo para sua protetora principal. Depois disso, Omar se envolve com um indiano chamado Rochiram. A intenção era construir um hotel em Manaus. De verdade, Rochiram era mais um dos que tentavam se aproveitar das fragilidades de Omar para conseguir algum benefício. Zana, por sua vez, imaginou que Yaqub, como engenheiro, poderia ajudar no projeto. Conta ao primogênito, que vem de São Paulo e se hospeda em um hotel. O problema é que Omar descobre as intenções da mãe e também de Yaqub. O que seria uma tentativa de juntar os irmãos em um mesmo projeto revelase mais um meio de separá-los, pois Omar se sente traído. Carregado de todo o ódio de uma vida de brigas, aproveita o episódio para se vingar do irmão. Somente não o mata, porque Nael consegue impedi-lo. Yaqub se contorcia na rede, não conseguia levantar. O rosto dele inchou, a boca não parava de sangrar, os lábios cheios de estrias e caroços. Ele gemia, apalpando com a mão direita a testa, as costas e os ombros. (p. 234) Além do fracasso de unir os gêmeos, restou uma dívida com Rochiram, que dizia ter investido recursos no projeto e agora queria ser ressarcido, uma vez que não teria culpa pela briga de Omar e Yaqub. Como meio de saldar a dívida, Yaqub sugere que a mãe ceda a casa a Rochiram. Aí se explica o início do romance, quando ela está deixando sua residência de anos para ir morar em um bangalô cedido por Rânia e, em seguida, morreria numa clínica sem realizar seu sonho de ver os filhos se perdoarem mutuamente. Os fundos da casa são doados a Nael. “Tua herança”, murmurou Rânia. [...] Soube depois que Yaqub quis assim; quis facilitar minha vida, como quis arruinar a do irmão. (p. 256) O Golpe transformava a cidade. 48 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 48 29/05/2012 15:48:04 Antes disso, Domingas morreu doente. Revelou então o segredo a Nael. Para a tristeza do narrador, era filho de Omar. Mas não foi em um ato de amor, mas sim em um ato de violência, pois, no passado, fora estuprada por Omar. 2. (UFAM) A respeito do personagem Adamor, o Perna-deSapo, do romance Dois Irmãos, de Milton Hatoum, fazem-se as seguintes afirmativas: I. Em 1943 descobriu os restos de um avião Catalina que desaparecera nas florestas do Purus e salvou da morte o aviador Binford. II. Descobriu, a pedido de Zana, o paradeiro de Omar, que fugira de casa com uma mulher chamada Pau-Mulato e se escondera num barquinho atrás do Mercado Adolpho Lisboa. III. Antes de se tornar coveiro, era um peixeiro que vendia de porta em porta e sofria com as implicâncias da índia Domingas. IV. Ao sair de Lábrea com uma das pernas paralisada, veio para Manaus, onde passou a morar em condições humilhantes numa palafita. Pedi a Rânia para que minha mãe fosse enterrada no jazigo da família, ao lado de Halim. Ela concordou, pagou tudo sem reclamar, e eu nunca soube quanta cumplicidade havia num ato tão generoso. (p. 245) Por conta da briga, Yaqub denuncia Omar por agressão. Tem então de fugir da polícia. Mas em uma vez que fora visitar Rânia, saber da morte da mãe, é preso e condenado a dois anos e sete meses de reclusão. Nesse período, Yaqub também morre, sem que Nael diga muito sobre o caso. Apenas lembra que não teve filho e que poderia ter sido filho dele. Estão corretas: A) Apenas II e IV B) I, II e IV C) Apenas I e III D) II, III e IV E) Todas as afirmativas Alguns dos nossos desejos só se cumprem no outro, os pesadelos pertencem a nós mesmos. (p. 264) Omar sai da cadeia pouco antes de cumprir sua pena. Rânia conseguira juntar dinheiro para pagar a fiança. Interessante que no último lance, chove bastante, o que sugere uma limpeza do passado, um renascimento. Nesse momento, Omar encontra por acaso Nael. Olham-se, de modo que parece que caminham para uma reconciliação, um perdão mútuo, entre o que seria um pai e um filho de fato, ainda que por vias tortas. Omar, porém, recua e parte lentamente. 3. (UFAM) Ainda sobre o romance Dois Irmãos, é correto afirmar, a propósito do enredo: A) Para ajudar Halim a conquistar Zana, Abbas escreveu um gazal com quinze dísticos, que o pretendente fingiu esquecer na mesa do restaurante Biblos, de propriedade do viúvo Galib, pai da moça. B) Tal como em Esaú e Jacó, de Machado de Assis, observamos o tema dos gêmeos, que foi, porém, tratado de forma diferente, de vez que os dois irmãos não são inimigos. C) Domingas, a mãe de Nael, após ter ficado órfã, veio do Alto Rio Negro trazida por Halim, que nessa época trabalhava como regatão. D) A antiga casa de Halim e Zana foi vendida para uma multinacional, após a instalação da Zona Franca, e Nael e Rânia, sua tia, mudaram-se para um conjunto habitacional moderno. E) Uma das pretendentes a casar com Yaqub se chamava Dália, a Mulher Prateada, que, no entanto, não foi capaz de enfrentar o ciúme possessivo que Zana sentia em relação ao filho. Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela, para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora. (p. 266) Desse modo, as dualidades não se resolvem, não se fecham, distanciando-se ainda mais. Exercícios 1. (UEPG) Sobre Yaqub, personagem de Dois Irmãos, assinale o que for correto. 01) Foi perseguido e preso por causa da briga com o irmão. Não teve direito à liberdade condicional. Depois que sai da prisão, graças a economias da irmã, evita a sua presença e a dos vizinhos. 02) Era “Um tímido que podia passar por conquistador. Sorria e dava uma risada gostosa no momento certo: o momento em que as meninas das praças, dos bailes e dos arraiais suspiravam.” 04) “Nesse gêmeo lacônico, carente de prosa, crescia um matemático. O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com números.” 08) “... gazeava lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para casa.” 16) Sofria chacotas na escola por causa da cicatriz causada pelo irmão. Soma:______________ 4. (Unimontes) A respeito do livro Dois irmãos, de Milton Hatoum, está incorreta a alternativa: a) A trama dá-se por uma busca de identidade que vai desde a busca do nome do seu verdadeiro pai, por parte de Nael, até a tentativa de reconhecimento por parte de todos os membros da família. b) A história desenvolve-se na cidade de Manaus, no interior de uma família decadente, porém unida por laços de empatia e amor. c) O romance desenvolve-se em meio a uma série de paradoxos e tensões das relações familiares que mal camuflam as disputas, as rivalidades e as suspeitas de incestos. d) O ponto de vista do narrador Nael deixa entrever, pela via da memória, lacunas, desencontros e ambiguidades. 49 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 49 29/05/2012 15:48:04 CAPÍTULO IX - Sermões de Padre Antônio Vieira Há livros de leitura obrigatória no vestibular que proporcionam dificuldades extras a um analista e também ao próprio vestibulando, isso porque não é especificado nenhum texto em particular, mas pede-se praticamente a obra completa de um determinado autor, o que exige um grau de especialidade incompatível com uma prova vestibular. É o caso de Os Sermões do Pe. Antônio Vieira (1608-1697). Ele escreveu cerca de 200 sermões, todos com sua importância, beleza e significado. Mas ler todos e analisá-los se torna algo quase impossível, no mínimo dificultoso, tendo em vista a necessidade de ler outros livros, bem como estudar conteúdos diversos. Por esse motivo, vamos nos ater à análise do volume Sermões escolhidos, publicado pela editora Martin Claret. Essa edição traz seis sermões dos 200, mas são suficientes para conhecer o estilo, as ideias e as principais características desse padre jesuíta que viveu em uma época cujo estilo dominante era o Barroco. Português de nascimento, ordenou-se em 1635 e durante seis anos pregou em Salvador. Depois esteve um tempo em sua terra natal. De volta ao Brasil em 1653, esteve no Maranhão, onde desempenhou ampla defesa contra a escravidão indígena, tendo proferido alguns sermões, dos quais vamos analisar dois. Pe. Vieira entrou em choque, devido a suas ideias, com a Corte portuguesa e com a própria Igreja Católica. Era contra o tratamento então dado aos cristãos-novos (judeus convertidos) e aos indígenas, quase sempre escravizados ou perseguidos; era também contra a forma de atuar da Inquisição. Por isso, foi afastado de suas funções e perseguido. Em 1679, a pedido de seus superiores da Ordem dos Jesuítas, passou a organizar seus sermões e publicou-os. Para além do valor filosófico, teológico ou político, os sermões se constituem em peças de grande valor literário, pelo uso que faz dos recursos estéticos, como figuras de linguagem. O objetivo último é persuadir, pelos recursos retóricos, seus ouvintes, para tanto, lança mão de diversos recursos linguísticos, fundamenta-os com uma argumentação sólida, baseada na interpretação da Bíblia e citações diversas do livro sagrado. Os sermões, portanto, constituíram-se em prosa de alta qualidade literária, cuja leitura pode ser feita ainda hoje com grande interesse. Antes de tratarmos em particular dos sermões, vamos contextualizar a época. No século XVII, a vida intelectual e cultural na Colônia era, obviamente, pouco desenvolvida. Por isso mesmo, o que se fazia no Brasil era um reflexo da vida cultural portuguesa, com algumas especificidades locais. Ora, o Brasil não poderia fugir à presença cultural da metrópole, e o que se fazia lá, no caso a arte barroca, se refletia aqui. E o que é o Barroco? Trata-se de uma escola artística (incluindo literatura, música, arte sacra, teatro, arquitetura) que se encontra entre o Classicismo e o Arcadismo. Essas duas escolas privilegiavam a razão, a objetividade e a clareza na composição artística. Artistas como Luís de Camões, Tomás Antônio Gonzaga representam, respectivamente, o melhor dessa literatura. No Barroco, ao contrário, predominam os paradoxos, as figuras de linguagem, a linguagem obscura. A explicação é que o Barroco reflete as tensões do período, de um mundo em transformação, que estava entre o Absolutismo monárquico, os resquícios do medievalismo teocêntrico e uma visão mais aberta, filosófica e politicamente, como o que viria se constituir na idade da Razão, ou o século das Luzes, isso no século XVIII. É bem verdade que uma liberdade mais ampla só viria a ocorrer no século XIX; de qualquer modo, começou a se constituir no século XVII. Nesse embate discursivo, Deus está sempre presente na arte barroca, seja como temática central, seja como ideia para falar de outros temas, de outros assuntos, inclusive do amor entre um casal. Do ponto de vista artístico, a arte barroca caracteriza-se pelo jogo verbal entre claro e obscuro, e pelo uso até exagerado de metáforas e hipérbole. Duas concepções artísticas se constituíram no barroco: a cultista, em que se verifica um trabalho mais apurado com a linguagem, visando mais do que a clareza do que se diz, ao desejo de mostrar talento e engenhosidade na busca de metáforas, comparações e outros recursos estéticos; e a conceptista, em que se verifica uma busca pela verdade por meio da exposição de ideias, argumentos e logicidade. Vieira adota nos sermões a última, embora não despreze totalmente a primeira. No “Sermão da Sexagésima” ou “do Evangelho”, por exemplo, pregado em 1655 na Capela Real, Vieira tem como público preferencial seus pares. Seu objetivo é exatamente discutir os dois estilos, o cultista e o conceptista, para demonstrar que não é bom um padre pregar segundo o modelo cultista, pela afetação, o uso exagerado de metáforas, uma vez que, desse modo, não se estaria cumprindo com o dever de pregar, de levar a palavra de Deus adiante. Ao contrário, quando se prega assim, importa mais revelar a engenhosidade do pregador, que propriamente a expressão da palavra divina. A seguir um longo trecho desse sermão, significativo para se entender tal concepção: Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; háde concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, não falta nem pode faltar. Esta proposição é de fé, definida no Concílio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou à terra o semeador, uma parte se logrou e três se perderam. E porque se perderam estas três? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto é o que diz Cristo; mas notai o que não diz. Não diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, é pela desigualdade e pela intemperança dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque não 50 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 50 29/05/2012 15:48:04 introduz Cristo na parábola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva são as afluências da parte do Céu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca é por falta do Céu, sempre é por culpa nossa. Deixará de frutificar a sementeira, ou pelo embaraço dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influências do Céu, isso nunca é nem pode ser. Sempre Deus está pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos corações quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus dá o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negará? Este ponto é tão claro que não há para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? - disse o mesmo Deus por Isaías. Sendo, pois, certo que a palavra divina não deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou é por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual será? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas não é assim. Se fora por parte dos ouvintes, não fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas não fazer nenhum fruto e nenhum efeito, não é por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou são maus ou são bons; se são bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se são maus, ainda que não faça neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu também, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicação: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na má terra, não frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus é tão funda, que nos bons faz muito fruto e é tão eficaz que nos maus ainda que não faça fruto, faz efeito; lançada nos espinhos, não frutificou, mas nasceu até nos espinhos; lançada nas pedras, não frutificou, mas nasceu até nas pedras. Os piores ouvintes que há na Igreja de Deus, são as pedras e os espinhos. E por quê? - Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas são os piores que há. Os ouvintes de entendimentos agudos são maus ouvintes, porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e às vezes também a picar a quem os não pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo não picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede cá. Cuidais que o sermão vos picou e vós, e não é assim; vós sois os que picais o sermão. Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. (p. 88-90) representadas por Maquiavel e Erasmo de Roterdã. No sermão, mostra que o grande culpado é o pregador, posto que sua palavra é pouco condizente com a palavra de Deus. É antes meio de revelar toda sua agudeza, sua capacidade oratória e retórica. Também é possível perceber a presença de citações bíblicas em latim. Se hoje pouco conhecemos a língua de Roma, à época era quase uma necessidade ter boas noções de latim, fosse porque a missa era rezada em latim, fosse porque muitos documentos eram redigidos originalmente em latim. Assim, mesmo os colonos analfabetos ou semianalfabetos conheciam rudimentos da língua. Nos Sermões, as citações em latim se prestam a duas funções básicas: recurso de memorização e enriquecimento discursivo. Desse modo, busca ser mais persuasivo e atingir seus objetivos. Conforme se lê em um livro voltado para estudantes de Letras, “os sermões do Pe. Antonio Vieira marcaram a sociedade do seu tempo, tanto do ponto de vista religioso quanto político. Um dos pontos que chamam atenção em seus sermões e escritos é a defesa de que, assim como Israel teria sido a pátria escolhida por Deus, para o nascimento de Cristo, Portugal seria o Estado moderno com a tarefa de expandir a cristandade. Por isso, nos sermões, há um papel privilegiado ao rei, que desempenharia no novo Estado português e, por extensão, no Estado Cristão. Haveria, segundo Vieira, uma analogia entre o papel de Cristo e a função do rei português. Assim, Vieira re-sacraliza o Estado, após as Reformas ocorridas no princípio da idade Moderna. No entanto, não se trata de uma simples medievalização do mundo moderno, e sim uma compreensão do papel da Igreja e do Estado num mundo que caminhava para laicização. Considerando isso, a monarquia é vista como o melhor sistema de governo e a única apta a cuidar do bem comum”. Há dois sermões em que Vieira trata de tema espinhoso para a época, a escravização dos índios. Se para os colonos isso era um caminho natural, para a Igreja os indígenas tinham de ser redimidos de sua ignorância pela fé e pelo conhecimento da palavra de Deus. Em sendo escravos, não se poderia realizar tal intento. Por isso, sob pressão eclesiástica, particularmente dos jesuítas, o então rei de Portugal, D. João IV, proibiu a escravização dos índios (então começou-se a trazer escravos da África), e Vieira pregou no Maranhão, no primeiro domingo da Quaresma de 1653, um sermão (“Sermão da Primeira Dominga da Quaresma” ou “das Tentações”) para persuadir os colonos de que a proibição seria o caminho mais acertado, mais justo. Em seu estilo conceptista, Vieira procura mostrar que aprisionar, escravizar não pode ser a vontade de Deus, e que tais atitudes só poderiam levar os que praticam a escravização dos indígenas ao inferno. Também compara a atitude ao que fizera o Faraó contra os hebreus no tempo de Moisés. E como Deus castigou duramente o Faraó com diversas pragas, até a morte por afogamento na transposição do mar Vermelho. Como se pode perceber, Vieira demonstra ser um profundo conhecedor da Bíblia, pois mescla passagens do Livro Sagrado com situações contemporâneas, de acordo com o estilo conceptista. Vieira realiza, pois, um dos conceitos que explicam o Barroco: um programa de afetar e conduzir as vontades pela teatralização de princípios teológicos que fundamentam o pensamento católico contra as vertentes protestantes, representadas por Lutero, Calvino e pelas vertentes políticas, Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que quer Deus de vós nesta Quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão: estes são os que Deus me manda que vos anuncie. [...] Desceram os filhos de Israel ao Egito, e depois da morte de José, cativou-os el-rei Faraó, e servia-se deles como escravos. Quis Deus dar liberdade a este miserável povo, mandou lá Moisés e não lhe deu mais escolta que uma vara. Achou Deus que para pôr em liberdade cativos, bastava uma vara, ainda que fosse libertá-los de um rei 51 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 51 29/05/2012 15:48:04 tão tirano como Faraó e de uma gente tão bárbara como a do Egito. Não quis Faraó dar liberdade aos cativos, começaram a chover as pragas sobre ele. [...] Se vós tivéreis verdadeira fé, se vós crereis verdadeiramente na imortalidade da alma, se vós crereis que há inferno para toda a eternidade; bem me rio eu que quisésseis ir lá pelo cativeiro de um tapuia. (p. 38-39) Consta que Vieira conseguiu mexer com os sentimentos dos colonos. No entanto, entre o medo do inferno e o desejo de enriquecer prevaleceu a segunda opção. Por isso, a luta pelo fim da escravização indígena, a despeito da ordem régia, não chegara ao fim. No ano seguinte, Vieira teve de pregar novamente no Maranhão sobre o mesmo tema. Faz isso no sermão intitulado “Sermão de Santo Antônio” ou “dos Peixes”. Conforme o título indica, agora usa a metáfora dos peixes, isto é, procura mostrar que, assim como ocorre no mar, na terra os peixes maiores comem os menores, com a diferença clara de que na vida marítima, os peixes fazem isso por instinto, como meio de sobreviver, na terra, os peixes buscam expressar sua maldade, sua ganância, sem se importarem com as almas dos outros peixes. Também se aproveita da parábola do sal da terra (o que remete o ouvinte, por analogia semântica, ainda à mesma metáfora, mar, terra, peixe) para afirmar que todos devemos ser o sal da terra, todos devemos praticar o bem, espalhar a palavra de Deus (o sal) para que a vida seja um bem comum. Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. (p. 49) as quais em vós mesmos se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo Antônio, como também as devem ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. (p. 51) E um pouco mais adiante, faz referência a que os índios até poderiam praticar a antropofagia, mas quem a pratica de fato são os brancos, pelo que tornam os índios cativos e impedem, pela corrupção, que sejam salvos pela Palavra Divina. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. (p. 64) Vieira teve diversos problemas por atacar diversas posições que eram tidas como costumeiras pela população ou institucionalizadas. Por isso mesmo, enfrentou perseguições dentro da Igreja e fora dela também. Um de seus sermões mais fortes, que mais atacam os poderosos é “O Sermão do Bom Ladrão”, proferido em 1655 na Igreja da Misericórdia de Lisboa, onde se encontravam D. João IV e demais membros do Império, como juízes, ministros e conselheiros. Como o próprio título indica, vai tratar sobre ladroagem, sobre roubo. Mas não qualquer roubo, e sim a corrupção no alto escalão do governo (coisa nem nova, nem démodée). Denuncia, pois, escândalos no governo, em que gestões fraudulentas ocorrem com frequência, sobretudo nas colônias, especialmente a brasileira. Em contrapartida, a punição, quando ocorre, é branda e desproporcional, conforme o cargo que se ocupa. Seu objetivo é, pois, o de revelar como a corrupção, passiva e ativa, se instalara na nobreza e em pessoas ligadas ao alto escalão do governo. O título, obviamente irônico, aponta para uma discussão de ordem retórica, quando um ladrão é bom, como se isso fosse de fato possível. Não mede palavras, joga com elas, para conseguir o efeito desejado: E para que um discurso tão importante e tão grave vá assentado sobre fundamentos sólidos e irrefragáveis, suponho primeiramente que sem restituição do alheio não pode haver salvação. (p. 119) Essa discussão em torno da culpa sobre o porquê a palavra de Deus não faz efeito, se por culpa do terreno (os ouvintes), se por culpa dos que jogam o sal (pregadores) é desenvolvida também no “Sermão da sexagésima”, embora neste ele use da parábola bíblica do semeador. No caso do sermão em questão, seu objetivo é discutir de quem seria a culpa de ainda se praticar a escravização indígena, a que aqui chama de corrupção, por ora. Adiante explica o porquê da referência aos peixes: Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam. Uma só coisa pudera desconsolar ao pregador, que é serem gente os peixes que se não hão de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já pelo costume quase se não sente. Por esta causa não falarei hoje em Céu nem Inferno; e assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar sempre à lembrança destes dois fins. Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, E adiante: Suposta esta primeira verdade, certa e infalível, a segunda coisa que suponho com a mesma certeza é que a restituição do alheio sob pena da salvação não só obriga aos súditos e particulares, senão também ao cetros e às coroas. Cuidam, ou devem cuidar alguns príncipes, que assim como são superiores a todos, assim são senhores de tudo, e é engano. (p. 122) E para não deixar dúvida a quem se dirige em seu sermão, Vieira isenta o ladrão de galinha para atacar o ladrão de alto escalão, posto que prejudica toda a coletividade, e não apenas um indivíduo. 52 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 52 29/05/2012 15:48:04 O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera. (p. 125) A Fé, o Império, e as terras viciosas (Canto I, estrofe II) Diz Vieira em referência ao que ele próprio sofrera: Quem havia de crer que, em uma colônia chamada de portugueses se visse a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdócio sem respeito e as pessoas e lugares sagrados sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos e levá-los presos entre beleguins e espadas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guardas, até os desterrarem? (p. 155) No final do sermão, retoma o conceito do bom ladrão na sua origem, a bíblica, em que Cristo perdoa um dos ladrões que com ele estava sendo crucificado, e, percebendo que haveria nele algo de bom, de positivo, perdoa seus pecados e o chama para participar da vida eterna no Paraíso. No caso de Vieira, o título, conforme referido, contém um aspecto irônico, persuasivo, posto que bom ladrão não existiria com efeito. Mas antes de finalizar o sermão, conclama o próprio Jesus Cristo e diz: Para que os ladrões e os Reis se salvem, ensinai com vosso exemplo, e inspirai com vossa graça a todos os Reis, que não elegendo, nem dissimulando, nem consentindo, nem aumentando os ladrões, de tal maneira impidam os furtos futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem consigo, como levam, ao Inferno, levem eles consigo os ladrões ao Paraíso, como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso. (p. 143) Observa-se no parágrafo um jogo de palavras de grande impacto e persuasivo, como de resto em todos os textos do autor. No “Sermão da Epifania ou do Evangelho”, Vieira retoma a discussão sobre a escravização indígena, agora sob outro viés. É que, com a morte de D. João IV (em 1656), os jesuítas perderam força na colônia e acabaram expulsos, especialmente da capitania do Maranhão, onde Vieira pregara já diversos sermões, dos quais destacamos dois nesta obra. O padre prega este novo sermão na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1662. Nele, reclama da perseguição que sofrera e da necessidade de se defenderem as causas justas, de se apoiar a evangelização dos colonos e dos nativos. Epifania é uma festa ou tempo litúrgico da Igreja Católica. Nela comemora-se a revelação (sentido etimológico da palavra ‘epifania’) do menino Deus aos homens, por meio dos três reis magos. Desse modo, tem início o princípio da universalidade da cristandade, posto que cada rei representa uma parte do mundo. A partir desse momento, pois, todos são chamados a fazer parte da cristandade, incluindo os gentios, os indígenas, continuamente perseguidos, o que acaba gerando uma aversão ao homem branco, incluindo suas crenças. Desse modo, dificulta-se a evangelização. Daí a necessidade de parar com a escravização indígena. Outro argumento utilizado é que cada rei mago representaria uma parte do mundo então conhecido (Ásia, África e Europa), mas agora, com outra parte conhecida, a América, caberia aos novos reis a promoção da fé cristã, a defesa dessa fé em benefício dos povos locais, e não sua exploração. Há de ter rei que receba e se enriqueça com os seus tributos, e não há de ter rei que com eles ou sem eles a leve aos pés de Cristo? (p. 149) Adiante, Vieira reclama exatamente do fato de que essa Igreja, Igreja de Cristo, ser pouco respeitada pelos portugueses, que conquistam as novas terras sob a bandeira da religião, sob a ótica religiosa, como bem destacara Camões em seu Os Lusíadas: Aos poucos, vai amarrando as partes do sermão em torno dos aspectos levantados: reis magos e início da cristandade, respeito à Igreja, papel de Portugal na construção do novo mundo, povos chamados à conversão, desvio do caminho do bem e a lembrança de que não se deve escravizar os povos indígenas, igualmente chamados à conversão: Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nas conquistas sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos que hoje lhes mostrou Cristo. Um caminho para trazerem os Magos à adoração e outro para os livrarem da perseguição; um caminho para trazerem os gentios à fé, outro para os livrarem da tirania; um caminho para salvarem as almas, outro para lhes libertarem os corpos. (p. 170) Depois desse sermão, Vieira passou a ser mais perseguido ainda, acusado de defesa dos judeus e de assumir posições políticas contrárias ao governo e aos interesses da Coroa. Condenado, ficou dois anos preso. O último sermão publicado no livro que estamos utilizando é, cronologicamente, o primeiro. Intitulado “Pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda”, foi proferido em 1640 na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, na Bahia. Como indica o título, Vieira quer conclamar os colonos contra a ameaça holandesa. Não se trata apenas de uma ameaça de ordem político-econômica, mas também religiosa, posto que os holandeses tinham uma visão mais liberal da religião, incluindo uma maior liberdade ao judeus, o que contrariava a visão católica luso-espanhola. Os holandeses tentaram invadir a colônia portuguesa diversas vezes entre 1599 e 1654, obtendo especial sucesso na invasão de 1625 à cidade de Salvador. O maior sucesso foi a invasão à Capitania de Pernambuco, onde permaneceram entre 1630 e 1654, quando foram expulsos. Retomando o sermão, nele Vieira se dirige a Deus e clama a Ele que ajude, que inspire o povo local a defender a colônia, a defender a Igreja, posto que ela seria a expressão da verdadeira vontade divina, e não a holandesa. Revelando toda sua capacidade persuasiva, Vieira se utiliza do episódio bíblico da época de Moisés, quando os judeus fugidos da escravidão egípcia em dado momento criam um bezerro de ouro para adorálo. Vieira afirma que Deus quis castigar o povo, mas Moisés interveio em favor do povo, que, se cometera um erro, ainda assim não perdera a fé verdadeira em Deus. E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando Desta maneira arrazoou Moisés em favor do povo; e ficou tão convencido Deus da força deste argumento que no mesmo ponto revogou a sentença, e, conforme o texto hebreu, não só se arrependeu da execução, senão ainda do pensamento. (p. 211) 53 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 53 29/05/2012 15:48:04 Considerando essa “jurisprudência divina”, por assim dizer, em que, mesmo tendo errado, o povo hebreu foi perdoado por Deus, o padre pede a Ele que intervenha em favor dos portugueses, posto que, mesmo com alguns pecados, seguiriam a verdadeira fé, não levantariam bezerros de ouro ou coisas parecidas contra Deus. Desse modo, deveriam eles sair vitoriosos dessa batalha. O argumento de Vieira lembra o mesmo do poeta barroco Gregório de Matos, que em um soneto, se apresenta como pecador, mas vê em Deus a possibilidade do perdão, posto que Deus não iria querer perder um fiel para o pecado, para o mal: Vieira, pois, quer animar o povo a lutar contras o hereges holandeses, mas não o faz diretamente. Dirige-se ao próprio Deus, mas querendo mexer com os brios dos colonos, católicos e detentores da verdadeira fé. Embora aqui seja uma pequena mostra da vasta obra do Pe. Antonio Vieira, é possível perceber os aspectos que serão comuns de sua sermonística. Exercícios 1. (PUC-RJ): Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim. — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome. [Fragmento do “Sermão do bom ladrão”, de Pe. Antônio Vieira] Pequei, Senhor, mas não porque hei pecado, Da vossa piedade me despido, Porque quanto mais tenho delinquido, Vós tendes a perdoar mais empenhado. Se basta a vos irar tanto um pecado, A abrandar-vos sobeja um só gemido, Que a mesma culpa, que vos há ofendido, Vos tem para o perdão lisonjeado. Se uma ovelha perdida, e já cobrada Gloria tal, e prazer tão repentino vos deu, como afirmais na Sacra História: Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada Cobrai-a, e não queirais, Pastor divino, Perder na vossa ovelha a vossa glória Uma das mais importantes características da obra do Padre Antônio Vieira refere-se à presença constante em seus sermões das dimensões social e política, somadas à religiosa. Comente essa afirmativa em função do texto acima. Observe como o padre utiliza um argumento, um artifício retórico parecido: Pois é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões argumentos contra vossa Fé? É possível que se hão de ocasionar de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome?! Que diga o herege (o que treme de o pronunciar a língua), que diga o herege, que Deus está holandês?! Oh não permitais tal, Deus meu, não permitais tal, por quem sois! Não o digo por nós, que pouco ia em que nos castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco ia em que o destruísseis; por vós o digo e pela honra de vosso Santíssimo Nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado: Propter nomen tuum. (p. 212) Assim, Vieira argumenta com Deus e O repreende, a fim de que Ele conceda aos portugueses a vitória que engrandecerá a glória divina. Mesmo porque, como no poema de Gregório de Matos, certamente Deus não iria querer perder sua Glória, por conta de um pecador: 2. (UFOP) Sobre o Sermão da Sexagésima, de Antônio Vieira, é incorreto dizer que: a) obedece rigorosamente às regras mais fundamentais da retórica para o púlpito, não descuidando de qualquer detalhe. b) pode ser definido como “uma profissão de fé oratória”, uma vez que aí ele expõe claramente os princípios de sua arte de pregar. c) jamais se rende ao cultismo predominante na época, uma vez que o critica de forma precisa e clara. d) combina de modo bastante feliz as regras clássicas de um discurso pagão aos princípios religiosos da doutrina cristã. e) utiliza uma parábola do Evangelho de São Mateus como uma metáfora que se desdobra em inúmeras variações. 3. (UFOP) Considerando o texto do Sermão da Sexagésima, de “Pequei, que mais Vos posso fazer?” E que fizestes vós, Job, a Deus em pecar? Não Lhe fiz pouco; porque Lhe dei ocasião a me perdoar, e perdoando-me, ganhar muita glória. Eu dever-Lhe-ei a Ele, como a causa, a graça que me fizer; e Ele dever-me-á a mim, como a ocasião, a glória que alcançar. [...]. Em castigar, vencei-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, vencei-Vos a Vós mesmo, que sois todo-poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de Vós, porque só vossa justiça pode pelejar com armas iguais contra vossa misericórdia; e sendo infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor. (p. 224-225). Antônio Vieira, é incorreto afirmar que: a) é um discurso oratório no qual se percebem com nitidez o exórdio, o desenvolvimento e a peroração. b) em seu exórdio, o orador é bastante simples, indo diretamente ao tema do sermão sem maiores circunlóquios. c) em seu desenvolvimento, o sermão apresenta um perfeito equilíbrio entre narração e argumentação. d) sua argumentação não dispensa procedimentos conceptistas tais como o silogismo, o paradoxo e o exemplo. e) Vieira se exime de induzir os seus ouvintes, fazendo que o sermão perca muito de sua eficácia. 54 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 54 29/05/2012 15:48:04 (UEMS) Considere o texto (fragmento) “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, para responder às questões 4 e 5. A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros senão que os grandes comem os pequenos. Se fora ao contrário era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. (...) Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros. (Vieira, Antônio. Sermões: a arte da retórica. São Paulo: Russel, 2006.) d) e) 7. (Fuvest) A respeito de Padre Antônio Vieira, pode-se afirmar: a) embora vivesse no Brasil, por sua formação lusitana não se ocupou de problemas locais. b) procurava adequar os textos bíblicos às realidades de que tratava. c) dada sua espiritualidade, demonstrava desinteresse por assuntos mundanos. d) em função de seu zelo para com Deus, utilizava-o para justificar todos os acontecimentos políticos e sociais. e) mostrou-se tímido diante dos interesses dos poderosos. 4. Considerando o texto “Sermão de Santo Antônio aos peixes” e o estilo utilizado, Vieira I. desenvolve seus temas por meio de raciocínios tortuosos e encadeamento lógico. II. estabelece analogias e comparações entre situações de sua época e passagens bíblicas. III. faz uso de rebuscada linguagem barroca, o que torna sua temática ultrapassada. IV. revela em seus textos um hábil manejo da linguagem. Vieira baseia-se em parábolas bíblicas, e sua linguagem se vale de estruturas retóricas clássicas. pela sua capacidade de argumentação, Vieira consegue, nesse sermão, convencer os indígenas a se converterem. 8. (Febasp) “Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres... O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas que levam, de que eu trato, são os outros — ladrões de maior calibre e de mais alta esfera... os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo de seu risco, estes, sem temor nem perigo; os outros se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam”. É verdadeiro o que se afirma apenas em A) I e II B) I, II e IV C) II e III D) III e IV E) I, II e III Padre Vieira. Sermão do Bom Ladrão Em relação ao estilo empregado por Vieira neste trecho pode-se afirmar: a) o autor recorre ao cultismo da linguagem com o intuito de convencer o ouvinte e por isto cria um jogo de imagens. b) Vieira recorre ao preciosismo da linguagem, isto é, através de fatos corriqueiros, cotidianos, procura converter o ouvinte. c) Padre Vieira emprega, principalmente, o conceptismo, ou seja, o predomínio das ideias, da lógica, do raciocínio. d) o pregador procura ensinar preceitos religiosos ao ouvinte, o que era prática comum entre os escritores gongóricos. 5. O texto “Sermão de Santo Antônio aos peixes” implica uma atitude ético-racional do ser humano diante das relações de poder na sociedade. Portanto, em análise a esse texto, podese dizer que A) assim como os peixes, sem distinção de tamanho, deveriam estar em condições de se devorar uns aos outros, também os humanos deveriam competir livremente entre si, possibilitando assim uma distribuição mais equânime das consequências e responsabilidades de uma sociedade competitiva. B) a eliminação dos mais fortes, com a consequente hegemonia dos fracos, é o caminho mais seguro para a paz social. C) o comportamento entendido como humano deve, cada vez mais, distinguir-se do comportamento regido pelas leis da natureza, tipicamente marcada pela relação entre fortes e fracos, predadores e presas. D) a natureza nos ensina que “a lei do mais forte” é, em si, promotora de desenvolvimento. E) a aptidão ao poder deve ser desenvolvida em cada um, para que não haja devorados, mas apenas devoradores. 9. (UHRS) Considerem-se as seguintes afirmações sobre o 6. (UM-SP) Aponte a alternativa incorreta sobre o “Sermão da Sexagésima”: a) o autor desenvolve dialeticamente a seguinte tese: “A semente é a palavra de Deus”. b) o estilo é barroco e privilegia a corrente conceptista de composição. c) o orador discute no sermão cinco causas possíveis que não permitiram a entrada da palavra de Deus no coração dos homens. Barroco brasileiro: I – A arte barroca caracteriza-se por apresentar dualidades, conflitos, paradoxos e contrastes, que convivem tensamente na unidade da obra. II – O conceptismo e o cultismo, expressões da poesia barroca, apresentam um imaginário bucólico, sempre povoado de pastoras e ninfas. III – A oposição entre Reforma e Contrarreforma expressa, no plano religioso, os mesmos dilemas de que o Barroco se ocupa. Quais estão corretas? a) apenas I. b) apenas II. c) apenas III d) apenas I e III. e) I, II e III. 55 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 55 29/05/2012 15:48:05 CAPÍTULO X - Poesias Completas, de Cruz e Sousa O poeta João da Cruz e Sousa (1861-1898) nasceu em Desterro, hoje Florianópolis. Filho de escravos alforriados, sofreu preconceitos exatamente por causa de sua origem e de sua raça. Mesmo tendo recebido uma educação refinada, provinda de seu ex-patrão, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa, aprendido outros idiomas e aprimorado sua habilidade literária, Cruz e Souza morreu sem reconhecimento por seu valor como artista. O fato se deu por dois motivos principais: hermetismo de sua poesia e origem humilde, o que provoca um preconceito. Outros escritores também passaram pela mesma situação, como Lima Barreto, que também era negro. Caso singular é o de Machado de Assis, cuja origem é semelhante ao dos outros dois artistas, mas obteve reconhecimento artístico ainda em vida. Cruz e Sousa é autor de diversos livros de poemas em verso (mais comum) e também em prosa. Começou como autor naturalista, ao publicar, em 1885, Tropos e Fantasias (em colaboração com Virgílio Várzea). Mas é com Broquéis e Missal, ambos publicados em1893, que inscreve seu nome entre os grandes autores da literatura brasileira. Inspirado em Charles Baudelaire e outros poetas franceses, inicia também, com os dois livros, a escola literária simbolista no país, cujas características veremos adiante. Foram publicados ainda postumamente Evocações (1898); Faróis (1900); Últimos sonetos (1905); e Poemas inéditos - Outras evocações, O livro derradeiro e Dispersos (1961). Juntando toda sua vasta produção, temos quase seiscentos poemas (em prosa ou em verso), o que dificulta uma análise detalhada de cada poema. Por esse motivo, traçaremos um perfil poético do autor, com destaque para os poemas mais significativos. Segundo Alfredo Bosi (História Concisa da Literatura brasileira p.295), “o Parnaso legou aos simbolistas a paixão do efeito estético. Mas os novos poetas buscavam algo mais: transcender os seus mestres para reconquistar o sentimento de totalidade que parecia perdido desde a crise do Romantismo”. Ou seja, para além da frieza da forma do poema (versos, rimas, ritmo), que seria a expressão da objetividade, um voltar-se para o objeto, o poeta simbolista deveria buscar uma integração entre o modo de dizer e o que dizer, isso para ver no objeto significados capazes de explicar de maneira holística todo o universo. Claro que se trata antes de um projeto que propriamente uma realização eficaz. Modernamente, diríamos, trata-se de um compartilhamento entre tudo, entre mídias, de modo a construir redes de relacionamento e significado. Por exemplo, em “Oração ao Sol”, poema em prosa publicado em Missal, Cruz e Sousa critica essa preocupação meramente formalista dos parnasianos e conclama o Sol, para que ilumine a vida como um todo, não apenas uma parte dela: A natureza é um templo em que vivas pilastras deixam sair às vezes obscuras palavras; [...] os perfumes, as cores e os sons se correspondem. Encontrar tal correspondência seria decifrar a natureza, seria entender a vida em sua plenitude, pois em tudo há uma simbolização, em tudo há um significado, capaz de explicar o todo pela parte. Trata-se de uma visão espiritual, que transcende qualquer religião, ainda que nela resida o maior conjunto de símbolos. Essa correspondência dos sentidos (olfato, visão, audição), expressa no poema de Baudelaire, se dá pela sinestesia, um meio integrador dos sentidos (por oposição à anestesia, a ausência de sentido). Cabe, pois ao poeta, pela linguagem compreender todo esse universo sinestésico e expor ao leitor. O problema é que a expressão simbolista não se revela de modo claro a qualquer leitor; é antes algo hermético, de teor místico, muitas vezes restrito apenas aos iniciados. Armam batalhas pelo mundo adiante Os que vagam nos mundos visionários, Abrindo as áureas portas de sacrários Do Mistério soturno e palpitante. O coração flameja a cada instante Com brilho estranho, com fervores vários, Sente a febre dos bons missionários Da ardente catequese fecundante. Os visionários vão buscar frescura De água celeste na cisterna pura Da Esperança, por horas nebulosas... Buscam frescura, um outro novo encanto... E livres, belos através do pranto, Falam baixo com as almas misteriosas! (“Visionário”, Últimos sonetos) Sua poesia apresenta algumas constantes, mas antes de tratarmos a respeito, vamos analisar o poema de abertura de Broquéis, pelo que tem de profissão de fé, isto é, pelo que expõe de aspectos próprios do que seria a poesia simbolista em geral e a poesia de Cruz e Sousa em particular. Eis o poema: [...] Ó radiante orientalista do firmamento! Supremo artista grego das formas indeléveis e prefulgentes da Luz! pelo exotismo asiático desses deslumbramentos, pelos majestosos cerimoniais da basílica celeste a que tu presides, que esta Oração vá, suba e penetre os etéreos passos esplendorosos e lá para sempre viver, se eternize através das forças firmes, num álacre, cantante, de clarim proclamador e guerreiro. É também a lição provinda do poeta francês Charles Baudelaire, para quem: Ó Formas alvas, brancas, Formas claras De luares, de neves, de neblinas!... Formas vagas, fluidas, cristalinas... Incensos dos turíbulos das aras... Formas do Amor, constelarmente puras, De Virgens e de Santas vaporosas... Brilhos errantes, mádidas frescuras E dolências de lírios e de rosas... Indefiníveis músicas supremas, Harmonias da Cor e do Perfume... Horas do Ocaso, trêmulas, extremas, Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume... 56 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 56 29/05/2012 15:48:05 Visões, salmos e cânticos serenos, Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes... Dormências de volúpicos venenos Sutis e suaves, mórbidos, radiantes... com toque de sensualidade, como em “Siderações”, “Em sonhos”. “Monja”, “Lua”, “Primeira comunhão”, “Velhas tristezas”, “Vesperal”, “Cristais”, “Sinfonias do ocaso”, “Música misteriosa”, “Ângelus”, “Sonata”, “Incensos”, “Luz dolorosa”. 2) Metalinguagem: o processo de criação literária, com destaque para a ideia do poeta maldito, como em “Sonhador”, “Foederis arca”, “Post mortem”, “Supremo desejo”, “Tortura eterna”. 3) Sensualidade: poemas com agressividade erótica e marginal, como em “Lésbia”, “Múmia”, “Lubricidade”, “Braços”, “Encarnação”, “Tulipa real”, “Dança do ventre”, “Dilacerações”, “Sentimentos carnais”, “Serpente de cabelos”. 4) Erotismo espiritual: visão abstrata, pura e luminosa do amor e sexo, como em “Canção da formosura”, “Beleza morta”, “Deusa serena”, “Flor do mar”. 5) Extravagâncias: revelação de estados psíquicos anormais, como em “Satã”, “Afra”, “Judia”, “Tuberculosa”, “Regenerada”. 6) Misticismo: visão religiosa e mística, ainda que com toque sensual, como em “Cristo de bronze”, “Regina coeli”, “Noiva da agonia”, “Visão da morte”, “Aparição”. 7) Pessimismo: mundo como local do sofrimento, como em “A dor” e “Acrobata da dor”. Em rigor, tais temas se repetem nos demais livros, ainda que com diferenças de tom ou de perspectiva. Há na poesia simbolista um marcante subjetivismo, expresso de maneira vaga, mística, misteriosa e esotérica. O tema recorrente em Cruz Souza é uma mescla entre desejo sexual e sentimento místico, que pode ser representado, por exemplo, pelos astros. É o que ocorre em ao menos quatro poemas: “Supremo desejo”, “Monja”, “Em sonhos” e “Siderações”. Em tais poemas, o eu lirico procura elevar o desejo sexual até os astros, como num movimento de ascese, como um meio de elevar tais sentimentos “baixos”, por assim dizer e conferir-lhes algo de nobre. Há pois, uma sacralização do corpo, uma sacralização do sexo, contrariando o simples desejo carnal. Infinitos espíritos dispersos, Inefáveis, edênicos, aéreos, Fecundai o Mistério destes versos Com a chama ideal de todos os mistérios. Do Sonho as mais azuis diafaneidades Que fuljam, que na Estrofe se levantem E as emoções, todas as castidades Da alma do Verso, pelos versos cantem. Que o pólen de ouro dos mais finos astros Fecunde e inflame a rima clara e ardente... Que brilhe a correção dos alabastros Sonoramente, luminosamente. Forças originais, essência, graça De carnes de mulher, delicadezas... Todo esse eflúvio que por ondas passe Do Éter nas róseas e áureas correntezas... Cristais diluídos de clarões alacres, Desejos, vibrações, ânsias, alentos, Fulvas vitórias, triunfamentos acres, Os mais estranhos estremecimentos... Flores negras do tédio e flores vagas De amores vãos, tantálicos, doentios... Fundas vermelhidões de velhas chagas Em sangue, abertas, escorrendo em rios... Tudo! vivo e nervoso e quente e forte, Nos turbilhões quiméricos do Sonho, Passe, cantando, ante o perfil medonho E o tropel cabalístico da Morte... (“Antífona” – Broquéis) [...] E as ânsias e os desejos infinitos Vão com os arcanjos formulando ritos Da Eternidade que nos Astros canta... (“Siderações”) Importante saber primeiro que antífona é um versículo cantado antes e depois de um salmo, isto é, de uma canção inteira. No caso, como é o primeiro poema do livro que inaugura o Simbolismo no Brasil, é fácil entender a razão do título. A ideia é mostrar que as formas da poesia parnasiana devem ser diluídas na neblina, no mistério da vida, cujo significado deve ser buscado nas correspondências dos sentidos. Observe que o eu lírico expõe isso como se fosse uma oração, e as quatro estrofes iniciais se constituem em um longo vocativo, resumido no conceito de Formas vagas, alvas, para que elas fecundem o mistério dos versos, para que torne mais rico, mais amplo de significado o poema em si, e que do poema não reste apenas uma sequência de vocábulos com o intuito de estabelecer rimas belas e bem construídas, mas que vá além disso. Veja como fica claro tal conceito a partir da sexta estrofe. É o mesmo princípio presente no poema “Oração ao sol”, já referido. Retomando o que é constante neste poeta, Ivan Teixeira, em Introdução a Cruz Souza, divide os poemas de Broquéis em sete temas básicos: 1) Esboços de atmosfera vaga: o poeta estabelece uma relação com o cosmo, louvando a luz dos astros e a musicalidade, Em consonância com essa visão, “Lésbia”, “Lubricidade”, “Braços”, entre outros, tratam do desejo mais carnal, visto como irresistível, ao mesmo tempo como um caminho para a morte. A simbologia no caso é dúbia. Morte porque rebaixa o ser a puro desejo, a puro êxtase; e também porque a relação sexual é, simbolicamente, considerada um rito que evoca a morte, o desfalecimento temporário do corpo, a perda de energia. Nos três poemas, como em “Serpente de cabelos”, há uma remissão ao papel sedutor da cobra, por alusão bíblica, e também pela hipnose que o réptil costuma exercer, tanto pelo olhar como pelo veneno que injeta em suas vítimas. Quisera ser a serpe venenosa Que dá-te medo e dá-te pesadelos Para envolverem, ó Flor maravilhosa, Nos flavos turbilhões dos teus cabelos. Quisera ser a serpe veludosa Para, enroscada em múltiplos novelos, Saltar-te aos seios de fluidez cheirosa 57 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 57 29/05/2012 15:48:05 E babujá-los e depois mordê-los... Ânsias mortais, angústias que palpitam, Vãs dilacerações de um sonho esquivo, Perdido, errante, pelos céus, que fitam Do alto, nas almas, o tormento vivo. Talvez que o sangue impuro e flamejante Do teu lânguido corpo de bacante, Da langue ondulação de águas do Reno Vãs dilacerações de um Sonho estranho, Errante, como ovelhas de um rebanho, Na noite de hóstias de astros constelada... Estranhamente se purificasse... Pois que um veneno de áspide vorace Deve ser morto com igual veneno... (“Lubricidade”) Observe como na última estrofe, o eu lírico, travestido de cobra procura se enroscar no corpo feminino, e assim purificar o desejo carnal em direção à expressão de um sentimento mais elevado. Esse jogo se verifica também em “Braços”. [...] Braços nervosos, tentadoras serpes Que prendem, tetanizam como os herpes, Dos delírios na trêmula coorte... Pompa de carnes tépidas e flóreas, Braços de estranhas correções marmóreas, Abertos para o Amor e para a Morte! Há, pois, uma luta entre o que se quer e o que se pode; entre o desejo carnal e a expressão do amor, como algo elevado, espiritual, distante da compulsão carnal. Tal embate pode ser verificado em vários poemas do autor. Em “Carnal e místico” ou “Cristo de bronze”, por exemplo, é facilmente percebido esse jogo entre espiritualidade e sensualidade: Errante, errante, ao turbilhão dos ventos, Sentimentos carnais, vãos sentimentos De chama pelos tempos apagada... (“Sentimentos carnais”) O caminho para a salvação é a própria poesia, o discurso poético, que retira o ser do prosaísmo da vida e o eleva a um estado superior, em busca da essência. Tal essência estaria na forma do poema, no simbolismo da palavra. Eis a missão do poeta. A busca do imaculado, em meio à degradação da carne, motivada pelos desejos, pelas paixões. Mas também, revela outro ponto da poética de Cruz e Sousa, qual seja, a expressão da dor, motivada pelo ser poeta, pela condição inferiorizada, pela busca da melhor expressão, pelo sentimento de perda de humanidade. Ora, o poeta é descendente de escravos, em uma sociedade escravocrata, escreve uma poesia hermética, para iniciados, que não atinge ao grande público, como a poesia romântica ou parnasiana. É, pois, um deslocado no mundo. Assim, a solução estaria na poesia, meio de ascese, meio de sair da realidade imediata. Vejamos dois poemas a título de exemplo. Primeiro “Acrobata da dor”: Gargalha, ri, num riso de tormenta, Como um palhaço, que desengonçado, Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado De uma ironia e de uma dor violenta. [...] Cristos de pedra, de madeira e barro... Ó Cristo humano, estético, bizarro, Amortalhado nas fatais injúrias... Na rija cruz aspérrima pregado Canta o Cristo de bronze do Pecado, Ri o Cristo de bronze das luxúrias!... Da gargalhada atroz, sanguinolenta, Agita os guizos, e convulsionado Salta, gavroche, salta clown, varado Pelo estertor dessa agonia lenta... Pedem-te bis e um bis não se despreza! Vamos! retesa os músculos, retesa Nessas macabras piruetas d’aço... Em certa oposição, há “Sonho branco”, em que o lírico reconhece na pureza o caminho correto do amor, mas esse caminho é pouco cativante, não há a paixão, não se mexe com os desejos, com a libido. E o que fazer diante de tal conflito? Aprisionar o desejo? Deixá-lo dormente? Pensar que não existe? No entanto, Ó Sonho branco de quermesse! Nessa alegria em que tu vais, parece Que vais infantilmente amortalhado! Em “Encarnação”, “Sentimentos carnais”, “Dilacerações”, “Visão da morte”, o eu lírico não consegue fugir ao desejo, entrega-se, ao mesmo tempo em que quer fugir, que quer algo mais duradouro, eterno, que não apenas o prazer momentâneo, posto que leva à morte, física e moral. Sentimentos carnais, esses que agitam Todo o teu ser e o tornam convulsivo... Sentimentos indômitos que gritam Na febre intensa de um desejo altivo. E embora caias sobre o chão, fremente, Afogado em teu sangue estuoso e quente Ri! Coração, tristíssimo palhaço. O palhaço no caso é o poeta, que precisa chamar a atenção da sociedade de algum modo. Cumpre esse papel de divertimento da sociedade, que ao mesmo tempo em que pede bis, o despreza. O palhaço-escritor se desdobra então para agradar, sabendo que isso não será fácil, que pode lhe custar a vida, a autoestima. Interessante que o eu lírico trata o palhaço como outro (tu), reconhece-se nele. Olha à distância o que ele próprio sente. No livro Últimos sonetos, há outro poema bem significativo, que segue a mesma linha. Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro, Ó ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, 58 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 58 29/05/2012 15:48:05 O mundo para ti foi negro e duro. Filtros sutis de melodias, de ondas De cantos volutuosos como rondas De silfos leves, sensuais, lascivos... Atravessaste num silêncio escuro A vida presa a trágicos deveres E chegaste ao saber de altos saberes Tornando-te mais simples e mais puro. Como que anseios invisíveis, mudos, Da brancura das sedas e veludos, Das virgindades, dos pudores vivos. Ninguém Te viu o sentimento inquieto, Magoado, oculto e aterrador, secreto, Que o coração te apunhalou no mundo. Mas eu que sempre te segui os passos Sei que cruz infernal prendeu-te os braços E o teu suspiro como foi profundo! (“Vida obscura”) Aqui também é o olhar de fora, mas que revela o íntimo do ser, sugerindo, pois, tratar-se da mesma pessoa, o ser que fala e o ser sobre quem se fala. Enquanto o mundo, a sociedade, seguiu seu curso, seguiu a vida de desejos, de paixões, para ele, foi “negro e duro”, posto que sofria em silêncio e pouco podia fazer para sua situação inferiorizada. Retomando o livro Broquéis, no ultimo poema, “Tortura eterna”, revela o conceito da incapacidade de a palavra poética dar conta de todas as questões terrenas; ainda assim, cabe ao poeta essa busca, uma vez que apenas pela poesia seria possível sair de sua condição de acrobata da dor, do ser humilde em direção a algo mais elevado. Mas isso, porém, pela força da negativa. Impotência cruel, ó vã tortura! Ó Força inútil, ansiedade humana! Ó círculos dantescos da loucura! Ó luta, Ó luta secular, insana! [...] Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!... Ah! que eu não possa eternizar as cores Nos bronzes e nos mármores eternos! Esse poema pode ser utilizado como explicação para o uso da sinestesia pelos simbolistas. Os poetas dessa escola queriam explorar todos os sentidos como meio de atingir a plenitude. A exploração das sensações era determinante para a compreensão mais ampla do universo; e a linguagem poética, o veículo para se realizar tal propósito. No caso, observe como há uma mescla entre sonoridade (voz, sonata), olfato (perfume), visão (pratas), tato (sedas, veludos), para explorar a sensualidade do corpo feminino. E como essa mescla também se realiza no próprio título: cristais, bonitos de se verem, agradáveis ao toque e que têm um som característico. Outro ponto significativo do poema é o uso das aliterações (repetição de consoantes) e de assonâncias (repetição de vogais) para criar o efeito sonoro e significativo do poema. Particularmente o uso de consoantes sibilantes, como nos dois tercetos, em que verifica o movimento sensual da cobra (já aludido e referido em outros poemas), representado por De silfos leves, sensuais, lascivos, criando uma atmosfera sensual, porém não vulgar. Dos livros póstumos, destaque para Faróis, no qual Cruz e Souza demonstra ter abandonado o princípio da criação parnasiana, isto é, a preferência pela forma perfeita, seja em sonetos, seja em outras formas poéticas, o que sugere aquilo que seria mais bem desenvolvido pelo Modernismo, no que diz respeito à liberdade da criação poética. Claro, que o tom dos poemas desse livro ainda é simbolista, como em “Violões que choram”, em que a sinestesia, a aliteração são características bem presentes: [...] E sons soturnos, suspiradas magoas, Mágoas amargas e melancolias, No sussurro monótono das águas, Noturnamente, entre ramagens frias. Ao contrário de “Antífona”, o eu lírico não pede a ajuda de entidades formais, e sim espera não ser bem sucedido; desde o início, “impotência cruel”, até a última estrofe “que eu não possa eternizar...”. É como se não quisesse realizar aquilo a que se propõe. Mas é antes uma negativa estratégica, retórica, no sentido de que fala-se não, quando se quer dizer sim. Como meio de despistar a vontade real. Quer atingir o mundo perfeito das formas poéticas, quer atingir o mundo elevado, ao mesmo tempo em que sabe ser isso quase impossível. Assim, nega para ser, nega para afirmar. Para encerrar a análise mais geral de Broquéis, destaquemos o soneto “Cristais”. Mais claro e fino do que as finas pratas O som da tua voz deliciava... Na dolência velada das sonatas Como um perfume a tudo perfumava. Era um som feito luz, eram volatas Em lânguida espiral que iluminava, Brancas sonoridades de cascatas... Tanta harmonia melancolizava. Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Tudo nas cordas dos violões ecoa E vibra e se contorce no ar, convulso... Tudo na noite, tudo clama e voa Sob a febril agitação de um pulso. [...] Já em Últimos Sonetos, Cruz e Sousa realizou o ideal simbolista de exploração do poder da palavra. Como ficou dito aqui, Cruz e Souza não foi um poeta popular, nem exatamente benquisto pela crítica. Desse modo, procurou buscar essa glória impossível pelos dois motivos aludidos: uma poesia com pouco apelo popular e por sua origem, há uma ansiedade motivada pelo descaso para com sua produção poética. No livro, procura abordar exatamente a ânsia por esse reconhecimento artístico, 59 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 59 29/05/2012 15:48:05 mas a morte o encontra antes. Morre com apenas 36 anos, vítima de tuberculose. Importante dizer que o ideal de um artista nessas condições no século XIX era conseguir a subsistência, preferencialmente no serviço público e poder exercer sua arte (caso de Machado de Assis, que só obteve sucesso efetivo após os 40 anos). Assim, é possível perceber que Cruz e Sousa sabe que ele próprio e sua arte estavam fadadas ao fracasso. O reconhecimento só veio mais tarde, com a revalorização ocorrida no Modernismo. Leiamos dois poemas desse livro, que expressam tal conflito entre o que se quer e o que se pode ter. Ondulações e brumas do Mistério. [...] Apareces por sonhos neblinantes Com requintes de graça e nervosismos, fulgores flavos de festins flamantes, como a Estrela Polar dos Simbolismos. CRUZ e SOUSA, João da. Broquéis. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 90. 1. Marque V ou F, conforme sejam as afirmativas verdadeiras ou falsas. Os versos de Cruz e Sousa traduzem a estética simbolista, pois apresentam: ( ) descrição sintética do mundo imediato. ( ) uso de recursos estilísticos criando imagens sensoriais. ( ) enfoque de uma realidade transfigurada pelo transcendente. ( ) apreensão de um dado da realidade sugestivamente ambígua. ( ) imagens poéticas que tematizam o amor em sua dimensão física. Este caminho é cor de rosa e é de ouro, Estranhos roseirais nele florescem, Folhas augustas, nobres reverdecem De acanto, mirto e sempiterno louro. Neste caminho encontra-se o tesouro Pelo qual tantas almas estremecem; É por aqui que tantas almas descem Ao divino e fremente sorvedouro. É por aqui que passam meditando, Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando, Neste celeste, límpido caminho. A alternativa que contém a sequência correta, de cima para baixo, é a a) F V V V F b) V F F V F c) V F V V F d) V F V F F e) V F V F V Os seres virginais que vêm da Terra, Ensanguentados da tremenda guerra, Embebedados do sinistro vinho. (“Caminho da Glória”) As questões de número 2 a 4 tomam por base o soneto “Acrobata da dor”, do poeta simbolista brasileiro Cruz e Sousa (1861-1898): Muito embora as estrelas do Infinito Lá de cima me acenem carinhosas E desça das esferas luminosas A doce graça de um clarão bendito; Gargalha, ri, num riso de tormenta, como um palhaço, que desengonçado, nervoso, ri, num riso absurdo, inflado de uma ironia e de uma dor violenta. Embora o mar, como um revel proscrito, Chame por mim nas vagas ondulosas E o vento venha em cóleras medrosas O meu destino proclamar num grito, Da gargalhada atroz, sanguinolenta, agita os guizos, e convulsionado Salta, gavroche, salta clown, varado pelo estertor dessa agonia lenta... Neste mundo tão trágico, tamanho, Como eu me sinto fundamente estranho E o amor e tudo para mim avaro... Pedem-te bis e um bis não se despreza! Vamos! retesa os músculos, retesa, nessas macabras piruetas d’aço... Ah! como eu sinto compungidamente, Por entre tanto horror indiferente, Um frio sepulcral de desamparo! (“Só”) E embora caias sobre o chão, fremente, afogado em teu sangue estuoso e quente, ri! Coração, tristíssimo palhaço. (João da Cruz e Sousa. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Aguilar, 1961.) Exercícios Ah! lilásis de Ângelus harmoniosos, Neblinas vesperais, crepusculares, Guslas gementes, bandolins saudosos, Plangências magoadíssimas dos ares... Serenidades etereais d‘incensos, De salmos evangélicos, sagrados, Saltérios, harpas dos Azuis imensos, Névoas de céus espiritualizados. [...] É nas horas dos Ângelus, nas horas Do claro-escuro emocional aéreo, Que surges, Flor do Sol, entre as sonoras 2. O soneto revela, entre outras, uma das características notáveis do estilo poético de Cruz e Sousa, que é a grande presença de adjetivos, colocados antes ou após os substantivos a que se referem. Observe estes cinco exemplos retirados do texto: I. Riso absurdo. II. Gargalhada atroz. III. Agonia lenta. 60 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 60 29/05/2012 15:48:05 IV. Macabras piruetas. V. Tristíssimo palhaço. a) b) c) d) e) Aponte os dois exemplos em que o adjetivo precede o substantivo: a) I e II. b) II e III. c) I e III. d) II e IV. e) IV e V. 6. (Cefet-RN) A questão seguinte refere-se ao soneto de Cruz e Sousa: Tortura eterna 3. No poema, os conceitos relacionados com a alegria e o riso, característicos da imagem dos palhaços, são aproximados de conceitos como dor, tristeza, agonia, sangue. Aponte a alternativa que melhor justifica essa aproximação de conceitos contraditórios: a) As imagens de “palhaço” e “coração” apontam a um mesmo significado, o próprio homem, apresentado como um ser cuja imagem de alegria apenas disfarça tristezas, dores, sofrimentos. b) O “palhaço” é comparado com o “acrobata” que caiu, donde a ocorrência de imagens relacionadas com sangue e dor. c) O poema de Cruz e Sousa constitui uma alegoria da vida circense em todos os seus aspectos. d) É tradicional na literatura explorar o tema do palhaço sob os vieses da superação e da frustração. e) Os poetas simbolistas tinham uma tendência doentia a utilizar temas relacionados com dor, sangue e sofrimento. Impotência cruel, ó vã tortura! Ó Força inútil, ansiedade humana! Ó círculos dantescos da loucura! Ó luta, ó luta secular, insana! Que tu não possas, Alma soberana, Perpetuamente refulgir na Altura, Na Aleluia da Luz, na clara Hosana Do Sol, cantar, imortalmente pura. Que tu não possas, Sentimento ardente, Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente, Por entre as chamas, os clarões supernos. Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!... Ah! que eu não possa eternizar as dores Nos bronzes e nos mármores eternos! 4. O Simbolismo caracterizou-se, entre outros aspectos, pela Nesse poema, torna-se evidente a visão de mundo de Cruz e Sousa, para quem a) o desejo de libertar-se das amarras da prisão material, só é alcançado através do apelo sensual e pelo espírito. b) a morte e a vida material constituem a saída para a liberdade humana, simbolizada pelas almas presas nos silêncios solitários do cosmo. c) a morte é uma forma de libertação, apesar do reconhecimento da impossibilidade de transcendência e de superação do espírito. d) a imagem da morte representa a saída para uma vida espiritual para as almas presas, mudas e fechadas, conforme a visão romântica. exploração dos sons da língua para estabelecer nos poemas uma musicalidade característica, por meio de diferentes processos de repetição de sons ao longo dos versos e em estrofes inteiras. Na primeira estrofe do soneto de Cruz e Sousa, nota-se esse procedimento de repetição, especialmente no I- primeiro verso. II- segundo verso. III- terceiro verso. IV- quarto verso. a) b) c) d) e) Sinestesia, aliteração, sugestão. Clareza, perfeição formal, objetividade. Aliteração, objetividade, ritmo constante. Perfeição formal, clareza, sinestesia. Perfeição formal, objetividade, sinestesia. I e II. I e III. I e IV. I, II e IV. II, III e IV. 7. (UEL) Leia a estrofe inicial, transcrita abaixo, do soneto “Braços”, do poeta simbolista Cruz e Sousa, e assinale a alternativa correta: 5. (ITA) Leia os seguintes versos: Braços nervosos, brancas opulências, Brumais brancuras, fúlgidas brancuras, Alvuras castas, virginais alvuras, Lactescências das raras lactescências. Mais claro e fino do que as finas pratas O som da tua voz deliciava... Na dolência velada das sonatas Como um perfume a tudo perfumava. a) Era um som feito luz, eram volatas Em lânguida espiral que iluminava, Brancas sonoridades de cascatas... Tanta harmonia melancolizava. (SOUZA, Cruz e. “Cristais”, in Obras completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 86.) Assinale a alternativa que reúne as características simbolistas presentes no texto: b) O elemento descrito, os braços, torna-se fluido, na medida em que a sua descrição ocorre através de um processo de justaposição de imagens e de reiteração de adjetivos, que tenta fundir o concreto e o abstrato. Cruz e Sousa, neste poema, ainda não conseguiu se afastar das influências do Romantismo, estética literária que antecede o Simbolismo, haja vista a descrição minuciosa e objetiva que faz dos braços femininos. 61 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 61 29/05/2012 15:48:05 c) d) e) A predominância do branco na descrição dos braços deixa entrever a valorização do homem branco e o preconceito contra o negro, traço marcante da poesia de Cruz e Sousa. Há uma gratuidade musical e imagística nesta estrofe do poema, pois a repetição de palavras sinônimas como “brancas”, “brancuras”, “alvuras” e “lactescências” e de sons como os das letras “b” e “s” não apresenta propriamente um sentido, mas se transforma em mero jogo linguístico. Há a tentativa de descrição precisa e clara dos braços, o que pode ser observado na enumeração sucessiva de adjetivos usados para caracterizá-los. Gabaritos: I - Poemas escolhidos de Cláudio da Costa: o nascer do Arcadismo no Brasil 1.B 2.B 3.a)Enquadra-se no soneto (dois quartetos, dois tercetos) b) Árvores aqui vi tão florescentes, Que faziam perpétua a primavera: Nem troncos vejo agora decadentes. 4.a) O tema da mudança. “Ali em vale um monte está mudado: Quanto pode dos anos o progresso!” b) Ao progresso, à passagem do tempo. 5.a) Houve aqui uma fonte; eu não me esqueço de estar a ela reclinado um dia. Um monte está mudado em vale ali. Quanto pode o progresso dos anos! 6.A 7.D 8.A 9.C 10.E 11.D II - Iracema de José de Alencar: o instinto da nacionalidade 1. D 2. C 3. B 4. a) Batuiretê é avô de Poti e Jacaúna. Foi guerreiro valente e chefe dos potiguaras; depois de velho passou o poder da tribo para seu filho Jatobá, pai de Poti. Viveu sua velhice retirado e solitário nas matas. b) Batuiretê dirigese ao neto Poti, nobre guerreiro potiguara, companheiro e amigo de Martim, que mais tarde foi batizado católico com o nome de Antônio Felipe Camarão. O primeiro nome se refere a Santo Antônio, pois ganhou o nome cristão no dia do santo. O segundo nome significa o poder real (domínio espanhol), e o último, a tradução de Poti para o português. Dirige-se também ao estrangeiro Martim Soares Moreno, guerreiro e colonizador português aliado dos potiguaras e objeto da paixão de Iracema, com quem teve um filho, Moacir, símbolo da união das raças. c) Batuiretê chama Martim de gavião branco e Poti de narceja (uma pequena ave), profetizando nesse passo a destruição total ou parcial da raça nativa pelos brancos. 5. A 6. A 7. C 8. C 9. O nascimento de Moacir. 10.C III - Dom Casmurro, de Machado de Assis: a crise do ponto de vista 1. C 2. D 3. D 4. A 5. A 6. A 7. a) A utilização da função metalinguística da linguagem se evidencia logo de início ao se referir o narrador ao próprio discurso que está desenvolvendo. Refere-se ao capítulo anterior dizendo “agora que expliquei o título, passo a escrever o livro”, como se o capítulo primeiro não fizesse parte da obra. O narrador se vale da função metalinguística como marcante característica da modernidade, em que as obras literárias passam a voltarse para seu processo de construção. Vale também, e isso é fundamental, como estratégia narrativa de cunho irônico em relação ao romance tradicional que se desenvolveu sobretudo no romantismo. Nesses romances, a efabulação, a história contada era o foco dos cuidados do autor. b) No romance Dom Casmurro, a temática da traição é sugerida em todas as formas de manifestação da linguagem. A própria possível traição das personagens (incluindo Capitu) é apresentada de maneira conotativa, isto é, passa pelo crivo da ambiguidade da linguagem literária. Na passagem em questão, em que se narra a construção da “casa do Engenho Novo” como metáfora da própria narrativa Dom Casmurro, as imagens da sala principal, todas elas revelam questões concernentes à traição. 8. E IV - Melhores poemas de Manuel Bandeira: O prosaico e o sublime 1. D 2. E 3. A 4. D 5. D 6. D 7. A 8. D 9. E 10.B V - O calor das coisas: identidade e transformação segundo o olhar de Nélida Piñon 1. D 2. B 3. 19 (01+02+16) VI - Contos novos, de Mário de Andrade: um olhar sobre a modernidade 1. B 2. C 3. E 4. A 5. A VII - A falecida, de Nelson Rodrigues 1.B 2. E 3. D 4. C 5. E VIII - Dois irmãos, de Milton Hatoum 1. 22 (02+04+16) 2. E 3. A 4. B IX - Sermões de Padre Antônio Vieira 1. O fragmento acima é um bom exemplo da preocupação do Padre Antônio Vieira com temas de caráter social e de dimensão política. A aproximação e a comparação da figura de Alexandre Magno, grande conquistador do mundo antigo, com a do pirata saqueador evidenciam a crítica aos valores morais e a visão ideológica do autor. 2. C 3. E 4. B 5. C 6. E 7. B 8. C 9. D X - Poesias Completas, de Cruz e Sousa 1. A 2. E 3. A 4. B 5. A 6. C 7. A 62 RS004_Resenhas UEM_2012-2013_SITE.indd 62 29/05/2012 15:48:05