Luau Americano
Transcrição
Luau Americano
Noga Sklar Luau Americano 1ª Edição POD Petrópolis KBR 2011 Edição e revisão KBR Editoração APED Imagem da capa Edição do jornal local he Honolulu Advertiser no dia da vitoria de Obama – arquivo da autora Copyright © 2011 Noga Sklar Todos os direitos reservados a autora ISBN: 978-85-64046-64-1 KBR Editora Digital Ltda. www.kbrdigital.com.br [email protected] 24 2222.3491 B869.8 – Crônica Brasileira Noga Sklar é escritora e cronista. Nasceu em Tibérias, Israel, em 1952. Graduou-se como arquiteta no Rio de Janeiro e desde 2000 dedica-se à literatura. Escreve diariamente em seu blog de crônicas Noga Bloga e vive atualmente com seu marido Alan Sklar em Petrópolis, RJ, Brasil. E-mail da autora: [email protected] Para Alan Sklar, com amor Sumário Prólogo (uma lenda pessoal) 13 1. Primárias Lá como cá Revolução digital Osama Obama Weekly report A disputa do século Há esperança The fierce urgency of now [de Martin Luther King Jr.: a urgência feroz do agora] Me poupem O risco da inspiração Deus e o Fla-Flu Idealismo ou ingenuidade? Noga profética Nosso Obama O dia do fico Obama bacana Barack, baruch, bendito Gabeira bobeira A mentira é uma... Uma questão de fé Treino é treino, jogo é jogo Dois pesos, duas medidas Mais do mesmo Obama x Hamas Mudar o mundo Go figure (ou de como duas ou três minorias somadas resultam em esmagadora maioria) Incorreto Nos anos 30 É o caos Malabarismos matemáticos 15 15 17 18 19 20 21 22 22 23 24 25 26 26 27 28 29 31 31 32 34 35 37 38 38 40 40 41 41 43 45 2. Candidato Superstições A história (quase) se repete O estilingue de Davi O pecado do capital Mau gosto Quem ele pensa que é? Receita de limonada ou... os maiorais de Chicago Obama no Zoo Obama lá em casa (Baruch Obama no Yad Vashem, em Jerusalém: compromisso com Israel) Berlim, Ohio O enviado Enquanto o mundo se explode... ...Barack Obama pega onda no Havaí, estamos aí: saiu em foto AP Digo ao povo que estou indo Tchau, Hillary O palco é a vida Feliz aniversário, John McCain O olho gordo do furacão Energia limpa Ameaça global É o amor, estúpido Um Nobel contra Bush Kill Obama Me engana que eu desencano Mr. Coringa Efeito borboleta Causas impossíveis Waikiki é aqui Na ponta do voto Diversão passiva Slogans 3. Transição Agora é tudo Complexo de vira-lata O fim de um mundo que mal reconhecemos Fazendo América (último episódio) Estado de observante Frutinha mais dura Preto, feio e pobre Eles lá e nós aqui Falar é fácil... Utopia: luz, força e energia Faça o que eu digo... etc., etc. Efeito Obama Obscuro universo do incompreensível ou... a cartilha Calouro de terno Retórica 666 47 47 48 49 50 52 53 54 56 58 58 59 60 62 63 64 65 67 68 71 72 73 74 76 78 78 80 82 82 84 85 87 87 88 89 90 91 92 94 95 96 97 98 100 101 103 103 4. Posse Obama está chegando... Obama está chegando (de trem) Um homem do livro, ai, que alívio Demagogo ou demobobo? O animal simbólico BHO ou HBO? Dia B: ao vivo, para a posteridade (coisas que acho bacanas: os novos valores) 105 105 105 105 106 106 108 5. Poder Seu amor por um café (da série: um bom comercial vale mais que mil projetos) Um (lauto) comentário na caixa de certo Rey, veja e leia: Sorte de principiante Isratina Pra não perder o costume Paga-às-moscas Aleluia, irmão CCC: o livro no poder Na Ala 3: a nova (des)ordem econômica Pesos e medidas (para Che, Mao e Stalin: Trio Ternura da humanidade) Por dentro dos sonhos Mágica jornada misteriosa Se correr... é o bicho Trillionen Fazer o bem sem ver a quem FHC e a salvação da lavoura A Lei da Penhora Do Rosner’s Domain O despontar de Aquário Yankees e yahoos: a última melhor esperança da terra O novo dízimo (o adeus às vacas douradas de Damien Hirst) Contos da carochinha Tikkun olam (consertando o mundo) Máscara negra Pronomite Father Sam Apenas um pesadelo Ciberdúvidas: livro não dá em árvore Da dor ao ardor Aos que odeiam e aos que amam Banana Republic Obama & Lula Obama & Lula II Happy Nowruz Éden ideal Rápidos no gatilho O poder da imprensa 111 108 111 113 114 114 115 117 117 118 119 121 121 123 124 125 125 127 128 128 129 130 130 131 132 132 133 134 135 137 138 140 141 143 143 143 145 145 146 O que há num nome (novos tempos, novos termos) O oráculo de Washington Bonfim, o modelo Porque não estou escrevendo hoje Come together (ou... tudo dá certo no final, e se não der... não deu) As mãos que controlam o mundo O triunfo da boa vontade (argh) O medo (i)moral de nossos dias Obama Superstar Adeus às armas Grande Mestre Obama Liberdade ainda que... As leis ocultas do patriotismo (ou: a arte de mentir ao público) A farra do chá (ou: tudo nesta vida moderna periga tornar-se um sampleado monstrengo marqueteiro mixado do gênero “Mr. Darcy paquera Elizabeth Bennet enquanto os zumbis atacam”. Argh.) Chaves-de-cadeia A maldição da castanhola A guerra dos cem dias Porcos voadores (ou... nem só de Joyce vive o intraduzível) Cem dias em 72 As causas nobres de Notre Obama O rei e a majestade Noblesse O-bling Let my people stay O Presidente da Terra The blond, the black and the ugly: Barack Obama, Angela Merkel e Elie Weisel em Buchenwald, ou... a sobrevivência dos mais aptos (da série: superando o passado com Barack Obama) Vãs promessas de campanha Show do malsão Ligações perigosas Two to tango Um luau na Casa Branca ...ou te devoro O lado bom Posfácio A falência dos radicais Obama mata Osama! 147 147 148 149 150 152 152 152 153 153 154 154 156 156 157 159 160 161 162 163 165 166 166 167 167 168 169 171 172 173 175 176 177 179 179 180 Prólogo (uma lenda pessoal) Embora hoje em dia eu me considere, se comparada aos demais, razoavelmente ateísta e fatalmente cientíica e racional (pois, queridos, de todos os meus anos de infatigável busca espiritual sobrou somente o apelido inicial nas famigeradas rodinhas do abraço ritual: “cérebro”, no mau sentido, claro)... ...pronto. Nem passei do primeiro parágrafo e já vou contradizendo a premissa original: racional ou cerebral, com magia ou sem, com ou sem uso de alguma simpatia ocasional — e por mais que a gente tente combatêlo —, o hábito espiritual de dupla (e dúbia) interpretação de todos os fatos ica gravado pra sempre, como tatuagem, no corpo contraintelectual de exxamã (se é que isso existe, ou um dia existiu) — mancha indelével na alma de quem pensa (mas, na verdade, não compensa) que tudo isso não passa de uma bobagem. Acontece comigo: você pega, esfrega, nega, mas apagar não apaga nunca. E, pasmem, não estou sozinha nessa. Aconteceu de novo nesta ensolarada manhã de junho, com a surpreendente lorada serrana de inverno, roxa de orgulho e frio (a descrição bucólica foi só pra causar inveja), despontando nas copas secas já no primeiro dia (e a datação pra chamar atenção ao sagrado solstício de inverno: dia e noite na mesma duração e ainda por cima a esperança esotérica de uma última revolução, tem emoção maior que essa, ou não?, e é hoje só, aproveitem: viram só? como eu tinha razão?)... quando, ao ler como sempre, com o maior gosto, a crônica semanal da coleguinha Maureen Dowd, percebi nas entrelinhas heroicas da mosca morta de Obama a mensagem divina que transmitiam, como se segue: | 13 | Noga Sklar No “O alfaiate valente”, conto de fadas dos Irmãos Grimm, um pequeno alfaiate, brandindo um retalho rasgado, mata de uma só vez sete* moscas que esvoejavam em torno de seu pão com geléia. O homenzinho se admira tanto de sua própria bravura — “De puro júbilo seu coração balançou como o rabinho de uma ovelha” — que passa a querer que o mundo inteiro saiba de seu feito. Então ele borda uma tira de couro com a legenda ‘Sete de um só golpe!’, veste o cinto por cima da roupa e vai à luta. Protegido por sua lenda, e usando a mente astuta em vez da força bruta, [nosso exalfaiate] derrota dois gigantes e captura um unicórnio e um javali, antes de ganhar a princesa e viver feliz para sempre como rei. E agora a mensagem oculta, tchan-tchan-tchan-tchan, fresquinha pra vocês: não é que acabei lendo a lenda dos Grimm bem no dia em que me preparo, por artes da pura coincidência, para uma reunião importante, onde o mais relevante é mostrar-me a mim mesma já como autora de sucesso — uma celebridade: consagrada para sempre, pelo menos na rede, né? —, pra ver se desta vez cola e rola? Taí. Vai de coração, em primeiríssima mão, minha própria e mui modesta le(ge)nda publicitária: “Noga Sklar: uma autora apaixonante.” *nota desta redação: e por falar em misticismo, os Irmãos Grimm parecem ter uma evidente quedinha pelo número sete: são sete moscas, “O Lobo e as Sete Cabras”, “Os Sete Corvos”, “Branca de Neve e os sete anões” e por aí vai. CQD. | 14 | 1. Primárias Lá como cá ut “Meus quatro novos pop-roqueiros favoritos transmitem melancolia até quando celebram o mero fato de estarem vivos, antes que a peste negra, a bomba atômica ou outro barato estranho lhes dê xeque-mate”, escreve o crítico Arthur Dapieve, mas eu, não gostei nem um pouco da música deles. Pronto. Confessei. Agora imaginem se os fãs dessa banda resolvem me cruciicar — como izeram os daquele incensado cantor nacional cujo nome esqueci, aquele, de repertório desainado e irrelevante —, explodindo a caixa de comentários. Ainda bem que estão do outro lado do mundo, onde, dizem, a vida é boa: na Suécia. Hum. O que é mais do que claro é que qualquer cronista, ao descrever a realidade, puxa a brasa pra sua sardinha de todos os modos possíveis, exagerando tanto o bom quanto o ruim ao empurrar pra cima de qualquer um seus pontos de vista radicais. Eu entendo. É o que faz Michael Moore, por exemplo, em seus ilmes mais convincentes, mas gente, fazer Aleida Guevara de guru, peraí, que tudo tem seu limite, ops: link mínimo para Aleida na Wiki, se achar que a igura merece, vai lá, e dá você mesmo uma melhorada nisso. Porque eu não acho. E por falar em Wikipedia, quem se surpreende com ela é Kevin Kelly, editor da Wired: tinha tudo pra dar errado, mas deu certo, porque ainal, nada é mais imponderável que o destino humano, e pelo sim pelo não, melhor optar pelo otimismo, não? E claro, quando for possível, pelo bom humor, se é que vocês me entendem: tanto cá como lá a rigidez de pensamen| 15 | Noga Sklar to impede o usufruto da ironia, e antes que a peste negra, a bomba atômica ou outro barato estranho nos dê xeque-mate, melhor optar pelo lado bom das coisas, e salve o nosso Brasil do jeitinho (“salve”, ou “salvem”: à vontade do freguês, isto é, do leitor). Enquanto isso, o admirável mundo novo dos meus sonhos futuros vai se delineando nos Estados Unidos, oba, com a vitória de estreia de Obama nas primárias de Iowa. E tem gente que ainda reclama quando a imprensa chama Obama de preto, porque ainal de contas, que diferença faz a cor da pele? Ora, gente. Toda a diferença do mundo, se a gente observar por esse aspecto da coisa: de como os pretos foram maltratados, explorados e despojados de seus direitos ao longo da história e agora vejam, a caminho da liderança americana, é ou não é bom demais? Pois Barack Obama, além de ser tudo de bom, ainda por cima é um puta símbolo de liberdade, igualdade, e, porque não dizer, de oportunidade. Por outro lado, sinto um frio na espinha só de pensar no risco de um fundamentalista republicano do outro lado da arena, um desses candidatos das antigas, caretas ao enésimo grau, aiaiai: daria a maior saudade de Bush, não quero nem pensar, porque quanto mais eu penso, mais eu me convenço de que é a mente que manda em tudo — ou visto de outra forma, é a expectativa que manda nos acontecimentos —, em termos gerais: a mente coletiva é que manda no mundo, melhor tomar cuidado com o que a gente enia lá dentro, não é mesmo? Embora a gente saiba (eu, pelo menos, sei) que essa ideia de destino não passa de mera ilusão, e que a única maneira de crescer, e de amadurecer, é deixar para trás, custe o que custar (o que em alguns casos, vamos combinar, pode sair bastante caro), as equivocadas motivações da nossa romântica juventude, é difícil abandonar certa coniança no futuro, principalmente em começo de ano. Menos mal. Assim vai se impondo 2008, mais cheio que o normal de novidades animadoras: o ano é bissexto e, ainda por cima, começa mais cedo por conta de um precoce carnaval, ô bom, mais tempo pra se dar bem (trabalhando, claro)... Ou se dar mal, mas tudo bem: cá do meu canto estou mais focada no copo meio cheio, como, aliás, quase todo mundo tem feito, pode conferir. Pensar no que é bom faz sempre um bem, e a terça gorda deste ano promete diversão bem maior do que um mero desile na televisão, incluído aí o jogão de bola Obama x McCain. Agora. Pra quem acha que eleições americanas são assunto chato, que não interessa nem um pouco, seguem minhas desculpas, mas francamente: a paz global depende deles, pelo menos por enquanto, que o mundo ainda não percebeu que mais vale um | 16 | Luau Americano real na mão do que um dólar voando, ah, sim, diz aí que o problema é só meu, que não ligo nem um pouco para o samba ritual, taí, já percebi: hoje é carnaval. Revolução digital ut Não deixemos jamais de explorar/ E o im de toda exploração/ Será chegar onde começamos/ E conhecer o lugar pela primeira vez. T.S. Eliot Década digital, isto é, segunda década digital — “mais focalizada em conectar pessoas” —, é o novo termo inventado por Bill Gates, o que não é surpresa nenhuma: inventar novidade é com ele mesmo, mas, daqui pra frente, como é que vai ser? Tio Bill está se demitindo, pois é: dizem as más línguas que, aos 52 anos, e sem diploma universitário, vai ser um bocado difícil que ele arranje outro emprego. E não é que ele esteja cansado, nem doente, nem rico o suiciente. Nada disso. Simplesmente vai dedicar sua energia daqui pra frente à ilantropia, já que os dólares da Microsot continuam entrando a rodo, mesmo que ele nem trabalhe lá. Mr. Gates está certo: no inal das contas, o que realmente interessa é a generosidade, a solidariedade, o bem da comunidade. Parece coisarada esotérica, eu sei, ingenuidades, típica mentalidade da Nova Era, mas, gente: é o hit do momento. Emocionante artigo no New York Times descreve Barack Obama como um sujeito cujo grande talento é compreender as pessoas e estabelecer conexões com elas: um homem que valoriza o espírito comunitário, uau. “Outros políticos falam sobre o que farão quando eleitos. Obama nos fala sobre o que podemos fazer se nos unirmos”, airma o articulista David Brooks. Caramba. Deve ser bom demais viver num país cujo presidente a gente admira: faz tempo que não sei o que é isso. Pois é. Mentes brilhantemente modernas como Gates e Obama parecem contradizer, graças a Deus, os que airmam que valores tradicionalmente humanos como a arte, a ilosoia e a cultura em geral não estão com | 17 | Noga Sklar nada ou, no mínimo, contam cada vez menos por não serem bastante práticos nem lucrativos. O futuro? Está, na verdade, na ampla e total conectividade. No toque. Na sensibilidade. Não importa a especialidade, sério: é a máquina a serviço do homem e não o contrário. Tomara que seja assim mesmo, né? Não sei de onde eu tiro essas ideias malucas, mas, subindo o Alto Leblon a pé hoje de manhã, tive uma visão bem clara de onde vai parar essa tal revolução digital, e vos digo, é exatamente onde começou: na polpa do dedo. Imagine a cena: você compra, paga, se identiica, tudo isso com um toque de polegar no visor a laser, uai, gente, não era assim que os analfabetos faziam? Então. Na nova onda da humanização tecnológica... basta o dedo: nem precisa de identidade, ou de passaporte, nem mesmo de cartão de crédito. Celular pra pagar as contas? Que nada. Basta o seu dedão digitalmente registrado e conferido no caixa, simples assim. Sempre tive essa impressão de que a alta tecnologia acabaria local, acessível e integrada à vida, como diz Bill Gates, sem que a gente se dê conta da existência dela. Problema vai ser (não quero nem pensar) é se não for contida antes disso a violência urbana. Imaginem a epidemia de dedões amputados que assolaria o Rio. Argh. Osama Obama ut Tava demorando. Foi minha tia octogenária chamar Obama de “árabe” no telefone pra eu começar de vez a perder minha tênue autoconiança de eleitora global progressista. Pronto. Joguei minha mente sem dó no traiçoeiro terreiro do estado de dúvida. E pra piorar, conirmando os meus piores pesadelos de perseguição, acabo de receber um email (anônimo, é claro) airmando que Obama é um agente iniltrado da Jihad, instrumento consciente da guerrilha terrorista: “Muçulmanos declaram que o plano deles é destruir os Estados Unidos de dentro para fora, e nada melhor do que começar no mais alto nível: pelo próprio Presidente dos Estados Unidos — um deles!!!” Sim, traduzi do inglês e, claro, dei uma melhorada no texto original, que como sempre acontece com mensagens anônimas do tipo, carecia um bocado de qualidade gramática, apostando tudo na dubiedade da informação. Como não posso negar que já vinha questionando o poder de meu | 18 | Luau Americano próprio julgamento, fui logo de cara ao Google, só pra conferir o que havia a respeito por lá, ah, gente. Eu sei: já vou eu contrariando aqui tudo que aprendi, a duras penas, sobre a ciência de convencer o outro: não airme o que você quer negar; não publique nenhuma sugestão (ou imagem) que contrarie o que você quer provar; seja clara e não dê chance à hesitação. Mas ironia é um vício incurável, e nada poderia me soar melhor do que apelar para o absurdo oposto do que pretendo contestar. Se escolher acreditar que Obama mente — e que não passa de um traiçoeiro agente inimigo que há anos planeja, cuidadosamente, destruir a América (e quiçá, o mundo) onde vivem suas próprias ilhas — estarei traindo meu mais profundo senso de bom senso. Preiro não. E se por um acaso, ou maldade do destino, ao ser empossado presidente Obama provar que é isso mesmo, um jihadista traidor disfarçado, terei perdido bem mais que a ilusão de minha própria inteligência. E agora? Como diria mamãe, se ainda fosse capaz de dizer alguma coisa com coisa: “caga na mão e bota fora.” E por falar nisso, meu marido Alan (que, por sinal, é republicano e nem votar vota, apesar de ser americano) informa, mas não sei se é verdade: “Barack” é o equivalente em árabe de “baruch”, que em hebraico signiica “o abençoado”, ui. Menos, gente, menos. Nem tanto ao mar nem tanto à terra. Ou à guerra. Weekly report ut Acabou-se a semana. Ufa. Bovespa teve seu “maior ganho diário em mais de cinco anos”. Ops. Perda. Ops. Ganho. Ops. Bovespa dispara. Bovespa despenca. Pelo sim pelo não, perda ou ganho, vai meu parco dinheirinho a partir de hoje pra debaixo do colchão. E, no entanto, hesito: me descolei dessa, tá certo, mas terei feito bem? Não sei. Quem sabe? Chove demais no Rio. Seca grave no Rio. Prefeito aumenta o IPTU. Prefeito cancela o aumento do IPTU. Mata-se muito no Rio. Obama bate boca com os Clinton ao vivo e perde eleitores na Carolina do Sul por causa disso, eu hein? Meu voto eu não mudo. Ops. Não voto. E só pra proteger minha já sofrível reputação de profeta, vou logo airmando que sempre acreditei em Hillary na presidência. Não quer dizer que a apóie. | 19 | Noga Sklar Entra drama sai drama, tem razão Ivan de Dutra Faria, leitor do Globo metido a colunista: o objetivo do diabo é criar desordem. Angústia. Interrupção. Tudo pela saúde do mercado, de todos os mercados, em detrimento do encontro marcado. Está certo o Ivan: já temos profetas demais. Melhor dar um tempo, gente. A disputa do século ut Do século? Hum. Talvez seja mesmo exagero, mas do ano, isso eu garanto. Está em curso uma discussão bem mais interessante do que a feroz competição raça-e-gênero entre Hillary e Obama nas eleições norteamericanas. Ou entre Barack e Hillary, pra deixar os dois em absoluto pé de igualdade, quer dizer, de nome-e-sobrenome. Ah. Tá bom. Tão interessante quanto, e nada tem a ver com nomes, misticismo ou numerologia. Ainal, “Barack” quer dizer “abençoado” e “Hillary” vem de “hilária”, o que originalmente já signiicou “alegre”, mas que hoje em dia, sinceramente: tende mais a soar como “ridícula”. Difícil mesmo é saber qual dos dois conceitos, “bênção” ou “riso”, conduzem à verdadeira felicidade: há argumentos válidos recomendando os dois. Mas não é a nada disso que me reiro, ou quero me referir. Trata-se aqui da disputa emocionante pela mais forte inluência midiática na decisão dos eleitores. No mais rasteiro e chinfrim português: NY Times x Oprah Winfrey. Façam suas apostas, senhores. De um lado do ringue um jornal austero, tradicional, um gigante da informação e da opinião bem fundamentada: o partido da razão. Do outro, uma estrela incontestável da tevê, exemplo exemplar de quem veio de baixo e venceu na vida, ícone da sabedoria popular: o partido do coração. Como diria mamãe em seus bons tempos idos: entre les deux mon coeur balance. Entre a razão e o coração, digo. O mais estranho nisso tudo é que embora eu me incline bem obviamente — por formação e convicção — para o lado do NY Times, da analítica e cultural razão, o candidato que me fascina é o recomendado por Oprah, leia-se: cega e surda emoção. Mas, cá entre nós, uma não vive sem a outra, isto é, razão sem emoção, ou emoção sem razão, e quando isolados acabam inevitavelmente com os burros n’água. Mesmo assim, minha atração por Obama se apóia, provavelmente, nos mesmos argumentos supericiais de Oprah: é intuição pura, gente. | 20 | Luau Americano Dito isso, não há como não levar em conta os dados convincentes do NY Times em favor de Hillary, ih, balancei agora (como muita gente boa, imagino, balançará), mas meu pêndulo mágico, mesmo assim, continua pendendo para Obama. Ainal de contas, falando francamente, não conio muito em mulher presidente. Ops. Brincadeirinha, meninas, peço perdão! Perdão! Agora. Se for mesmo pra falar sério, tentar enxergar as coisas bem além do espectro político do envolvimento emocional, por puro palpite, dá pra ver na irmeza de Hillary uma prévia de sua capacidade administrativa; por outro lado, dá pra ver no messiânico carisma de Obama uma prova de sua capacidade de extrair o melhor das pessoas. Embora nas últimas décadas tenhamos vivido com muito mais do primeiro e quase nada do segundo, não acho que na verdade a receita de felicidade esteja dando certo. Muito pelo contrário: estamos seriamente ameaçados de dar com o elefante branco direto no lodaçal. Vamos combinar: um equilíbrio dos dois daria o maior pé. Que tal um e outro em vez de um ou outro? Pois é. Não faço a menor ideia de como o duelo vai terminar. Já do lado republicano — com a importância discutível de uma nota de pé de página — estou com o NY Times e não abro: só dá McCain. Taí: razão e coração num só candidato, respaldados pela integridade de um herói de guerra. Hum. Melhor parar por aqui pra não trair de vez minhas mais profundas esperanças de um mundo melhor. Há esperança ut Querem passar o domingo sentindo que a vida tem jeito? Que há solução para os males do nosso mundo? Para as mentiras píias dos políticos? Para a falta absoluta de idealismo que nos alige? Bem, antes que o encantamento se acabe, e a gente desperte desse transe do bem, convém engordá-lo um pouco com o que escreveu Caroline Kennedy no NY Times. Vocês, eu não sei. Mas eu, confesso que chorei... ah, tá bom. Deve ter sido por causa do título: “Um presidente como o meu pai”. Saudades. | 21 | Noga Sklar he ierce urgency of now [de Martin Luther King Jr.: a urgência feroz do agora] ut Caramba. Eu não podia perder, de jeito nenhum, a oportunidade de repetir mais uma vez a frase, gravá-la para a posteridade. Que dose cavalar de cidadania, uau! Até meio tonta, gente. Pra quem não sabe do que estou falando, acabei de assistir ao vivo, na tevê, ao ato de apoio da família Kennedy à candidatura de Barack Obama. Coisa impressionaaante, de arrepiar mesmo. Se é algo além de retórica pura, isso não sei. Quem sabe? Mas que ouvi dois discursos danados de lindos e fortes, isso não dá pra negar. Go, America! Go! Me poupem ut Estou com sorte por estes dias: tive a mente sequestrada pelo fascínio da literatura, e, graças a isso, ando meio por fora do mundo. Não pretendo viajar no carnaval, mas, se pretendesse, teria tido a sorte (e a inexplicável sabedoria) de ter tirado meu passaporte alguns dias antes da mudança de modelo, e olhem que me recriminei à beça por isso. Não pretendo me perder nas nebulosas apostas que toldam o futuro da economia, mas, se pretendesse, teria tido a sorte (e a inexplicável sabedoria) de ter me retirado da bolsa antes que o nevoeiro se estabelecesse, e olhem que me recriminei à beça por ter perdido o lucro instável dos últimos dias. Não pretendo, e nem posso, votar nas eleições americanas. Mas já suspiro de alívio porque, pelo menos do lado republicano, vai vencendo o candidato mais inclinado à moderação, ao bom senso. Quanto à minha simpatia por Obama, se tivesse conhecimento bastante da (boa) causa, provaria por amaisbê ao presidente Lula que existe uma incomensurável diferença entre o democrata americano e ele. Graças a Deus sou cronista, e não outra coisa qualquer. O cronista, como vocês sabem, tem todo o direito de delirar quanto quiser; de juntar alhos com bugalhos como se batatas fossem num mesmo saco, de tirar o maior proveito de clichês infames, desde que o faça com graça e inteligência, o que não garanto — mas certamente espero — que seja normalmente o meu caso. Agora, vamos combinar: não é o caso do presidente Lula. | 22 | Luau Americano Todo mundo sabe muito bem que não compro esse tipo catastroista de teoria sobre o aquecimento global — não sei bem como, o delicioso verão moderado do Rio está aí pra provar isso —, hum: se isso for a maior besteira, ponham na conta da licença poética. Mas não é o caso do presidente Lula, a quem não dou o direito, se direito tivesse de restringi-lo em alguma coisa, de tratar assunto sério como se fosse irula; de constranger gente de bem em público; e de tentar transformar Marina, a nossa seriíssima Marina, a nossa bem-intencionadíssima e honestíssima (até prova em contrário) Marina Silva em motivo de chacota pública. Não a conheço na intimidade, mas, gente: basta olhar pra um e olhar pra outro, ouvir o que um diz e o que outro diz, pra tomar a decisão de quem é quem nesse assunto espinhoso. Vamos combinar: daqui pra frente, vou decidir no que acreditar baseada, pura e simplesmente, no poder magnético do olhar. E enquanto vocês se debatem na imprecisão angustiante do noticiário, me retiro por bem das lides ingratas deste mundo ao me refugiar, talvez para sempre, nas delícias da boa literatura — o que recomendo a todos, mas não, claro, ao presidente Lula: um guia moderno que se orgulha publicamente de sua falta de educação. Desculpe aí, presidente, foi mal mesmo, mas entenda: tudo isso não passa de chutzpah1 de cronista. O risco da inspiração ut Meu marido Alan — americano legítimo e republicano (uma rima, certamente, mas não uma solução) — não concorda, acha que o mundo está em guerra e que é como soldados num front que devemos nos comportar. Ops. Votar. Ele, pelo menos, pode. Mas eu não sei. Essa “onda Obama” que há muito eu previa, ou pelo menos desejava muito, parece provar por amaisbê que há mais coisa rolando no íntimo de cada um do que o impulso compulsivo por mais poder: há o idealismo, sim, aquela pontinha instigante e revigorante que os analistas da nossa sociedade — sempre à beira de preparar-se para o pior que vem sempre aí — já julgavam morta e enterrada e fossilizada. Mas não. O povo quer mais. Há por trás dessa onda Obama um desejo forte de sonho e de inspiração, de que a utopia seja mais que ilusão, não se desmorone na primeira 1 Chutzpah (pronuncia-se “rutzpá”): termo iídiche que significa coragem arrogante, em bom português: cara-de-pau, mesmo, no pior sentido possível | 23 | Noga Sklar curva fechada da esquina. Vocês, eu não sei. Mas eu, sempre acreditei que há mais no mundo do que sonha nossa vã busca desenfreada de compensação imediata. E no fundo, no fundo, todo mundo sabe disso. Só precisava de uma forcinha pra se expressar: taí. O problema é que, como em tudo a gente tem que ver um problema, eu — que sou Obama desde (que ele era) criancinha —, quando a coisa começa a dar certo, já vou logo duvidando que tal sonho exista. Quando vejo o desejo prestes a se materializar... começo a entender que não, não será possível. Não pode dar certo o que poderia ser bom, bom até demais, imaginem: viver tranquilo, em paz, seguro, amando, acreditando no outro, coniando no instinto, uau, que monte de baboseiras, hein? Este tal de Obama é mesmo um saco vazio, esmerado produto de marketing político, instrumento reinado de grupo terrorista que, se a gente relaxa um segundo, vem logo com tudo pra acabar conosco e com tudo em que a gente acredita. Mas será? Será que o futuro é tão (in?)certo assim? Ou pode, pelo menos, dar certo algum dia? Não sei. Coniar é muito perigoso. Vai que o cara se elege, dá aquele frege e acaba se revelando um fraco de um inepto, sem projeto nenhum para o status quo. Cá entre nós. Status quo dá uma segurança danada; a mudança, a sensação diametralmente oposta. Se parece até com uma espécie de morte, mas pode acabar numa nova vida. Se arriscar? Quem vai querer? Aqui no Brasil a gente já viu... ah. Tá bom. Já chega. Mesmo cheia de dúvida, com o coração pequeno e a intuição sofrida, continuo achando que cada vez mais vai valendo a pena entrar no futuro com insegurança e tudo. Vou com tudo em cima. Deus e o Fla-Flu ut Minha tia favorita é torcedora fanática do Botafogo. Mas o Botafogo, todo mundo sabe, não é um bom tema de conversa para pacientes de CTI. Falamos então do último Fla-Flu, que não faço uma menor ideia de onde, quando e como aconteceu. Perguntar sobre as últimas notícias, imagino, é um grande avanço no desejo de sobrevivência. Além do mais, é um assunto que domino, ico mais à vontade, saio aliviada do mutismo solene que me ataca e vicia em | 24 | Fim desta amostra. Para comprar, clique aqui: << http://www.kbrdigital.com.br/luau-americano-25.html >>