Revista Brasileira de Direito Civil

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Revista Brasileira de Direito Civil
Revista
Brasileira
de Direito
Civil
ISSN 2358-6974
VOLUME 4
Abr/Jun 2015
Doutrina Nacional / Ana Carolina Brochado Teixeira / Renata de Lima
Rodrigues / Antonio Baptista Gonçalves / Eduardo Nunes de Souza /Thiago
Guimarães Moraes
Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci
Pareceres / Paula A. Forgioni
Atualidades / Fabiano Pinto de Magalhães
Vídeos e Áudios / Luiz Edson Fachin
APRESENTAÇÃO
A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o
diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades
doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no âmbito do direito civil e de áreas
afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e à experiência comparada,
que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.
A RBDCivil é composta das seguintes seções:




Editorial;
Doutrina:
(i)
doutrina nacional;
(ii)
doutrina estrangeira;
(iii) jurisprudência comentada; e
(iv) pareceres;
Atualidades;
Vídeos e áudios.
Endereço para contato:
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EXPEDIENTE
Diretor
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,
Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil
Conselho Editorial
Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela
Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado
Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.
Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di
Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Brasil.
Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil.
Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor
Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.
Pietro Perlingieri - Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da
Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Coordenador Editorial
Aline de Miranda Valverde Terra
Carlos Nelson de Paula Konder
Conselho Assessor
Eduardo Nunes de Souza
Fabiano Pinto de Magalhães
Louise Vago Matieli
Paula Greco Bandeira
Tatiana Quintela Bastos
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SUMÁRIO
Editorial
O Supremo Tribunal Federal e a Virada de Copérnico – Gustavo
6
Tepedino
Doutrina nacional
A multiparentalidade como nova figura de parentesco na
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contemporaneidade – Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de
Lima Rodrigues
A defesa da preferência às pessoas com transtorno do espectro de
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autismo ante a falta de procedimento – Antonio Baptista Gonçalves
Autonomia privada e boa-fé objetiva em direitos reais–Eduardo
54
Nunes de Souza
Responsabilidade civil de provedores de conteúdo da Internet –
80
Thiago Guimarães Moraes
Doutrina estrangeira
Rilevanza e bilanciamento degli interessi nella qualificazione e
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quantificazione del danno – Gerardo Villanacci
Pareceres
Possibilidade de exclusão de sócio minoritário pelo fim da
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affectiosocietatis diante de previsão expressa no contrato social –
Paula A. Forgioni
Atualidades
Responsabilidade civil do Estado por danos morais causados a
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presos em decorrência de violações à sua dignidade, provocadas por
superlotação prisional e condições desumanas ou degradantes de
encarceramento e a imposição de medida reparatória não
pecuniária, por meio da remição de parte do tempo de pena, em
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analogia ao art. 126 da Lei de Execução Penal – Fabiano Pinto de
Magalhães
Vídeos e áudios
As reformas que o Brasil precisa – Palestra proferida pelo Professor
--
Luiz Edson Fachin na V Conferência dos Advogados do Paraná
Submissão de artigos
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de Direito Civil - RBDCivil
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EDITORIAL
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A VIRADA DE COPÉRNICO
Gustavo Tepedino
A comunidade jurídica encontra-se em festa com a nomeação do Professor
Luiz Edson Fachin ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Sua elevada
reputação acadêmica e profissional, arguta inteligência e extraordinária capacidade de
trabalho já foram propaladas por todas as mídias. A mais alta Corte do país passa a contar
com a sua destacada cultura jurídica e singular dedicação institucional.
Sob outro prisma, vale ressaltar o paradigmático significado da presença,
no ápice da magistratura brasileira, de um dos juristas mais comprometidos com a renovação
das técnicas interpretativas à luz da legalidade constitucional. Ao propósito, a configuração
do Supremo Tribunal como Corte Constitucional, com as funções jurisdicionais que lhe
foram atribuídas pela Constituição de 1988, coincide com a reconstrução dogmática do
direito privado formulada e desenvolvida, desde a constituinte, pela civilística brasileira. O
Ministro Fachin situa-se na liderança de diversas gerações de estudiosos que, por distintos
matizes e correntes de pensamento, propõem o deslocamento da centralidade hermenêutica
do direito civil (do patrimônio) para a pessoa humana e a promoção de sua dignidade.
Designado como personalismo ou despatrimonialização das relações privadas, identifica-se
aí movimento teórico que, fiel à solidariedade social e à igualdade substancial, dedica-se a
revisitar as categorias tradicionais (patrimoniais e individualistas) do direito civil,
enaltecendo a função promocional dos valores existenciais subjacentes à ordem pública
constitucionalmente estabelecida. Mostra-se emblemático, nessa mesma trilha, que o Grupo
de Pesquisa orientado pelo Professor Luiz Edson Fachin, em sua Universidade Federal do
Paraná, seja intitulado Virada de Copérnico.
Legitimado por vasta obra doutrinária, o Ministro Fachin enfrentará os
grandes temas que perpassam a tensão dialética entre intervenção estatal e atividade
econômica privada; e o equilíbrio cada vez mais tênue entre as relações patrimoniais e as
existenciais, o “ter” e o “ser”. Para tanto, ponderará princípios e valores que permeiam a
identidade cultural da sociedade brasileira. Essa árdua missão alcança em seu âmago os
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conflitos entre capital e trabalho; os novos modelos de convivência familiar; a
responsabilidade subjetiva e objetiva do poder público e dos agentes econômicos; a
propriedade privada como garantia individual e acesso a direitos fundamentais; a extensão
dos atos jurídicos perfeitos e dos direitos adquiridos; a responsabilidade política, penal e
fiscal dos agentes públicos; e assim por diante.
Por opção de política judiciária, que mereceu o eloquente silêncio da
doutrina, o Supremo Tribunal Federal, logo após a promulgação da Constituição de 1988,
na Adin n. 2, decidiu que não caberia à Alta Corte, em ação direta, o exame da legislação
infraconstitucional anterior a 5 de outubro de 1988. Com isso, deixou esvair a oportunidade
de passar em revista os diversos setores do direito privado regulado pela legislação
infraconstitucional. A valoração da constitucionalidade de questões importantíssimas foi,
então, em termos práticos, expelida da jurisdição constitucional, delegada ao juízo de
primeiro grau, com recurso extremo ao STJ.
Com efeito, na aludida Adin n. 2, o Plenário do STF rejeitou a tese da
inconstitucionalidade superveniente, ao argumento técnico de que a lei anterior não pode ser
inconstitucional em relação à nova Constituição, já que esta, quando em contradição com
aquela, tão somente não a recepciona, subtraindo-lhe o fundamento de validade. A decisão,
embora tecnicamente respeitável, atraiu o dissenso dos Ministros Marco Aurélio, Néri da
Silveira e Sepúlveda Pertence, o qual, em voto antológico, afirmou discordar da maioria “por
força de uma firme convicção de que recusar a via da ação direta de inconstitucionalidade
ao expurgo das leis velhas incompatíveis com a nova ordem constitucional, seria demitir-se
o Supremo Tribunal de uma missão e de uma responsabilidade que são suas.
Intransferivelmente suas”. Nos termos da tese vencida, para fins de exame de
constitucionalidade, não há diferença entre a lei anterior ou posterior ao Texto Maior. A
conclusão regular de processo legislativo tornaria válida a lei com fundamento na
Constituição da época em que foi promulgada, sem embargo do controle de
constitucionalidade em momento posterior, de acordo com a nova ordem jurídica. A
inconstitucionalidade
superveniente
corresponderia,
portanto,
a
situação
de
incompatibilidade cujo efeito seria a revogação. Assim sendo, o fato de a lei antiga se
encontrar em colisão com a nova Constituição (que lhe é superior hierarquicamente e
posterior no tempo) não deveria impedir a declaração de inconstitucionalidade em via direta
pela Suprema Corte (a declarar e reconhecer a revogação extunc, desde a nova ordem
jurídica). A inconstitucionalidade (é a premissa, situada no plano de validade, que) pode
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conduzir, portanto, no caso concreto, à revogação (consequência ou efeito, plano de
vigência).
Ainda segundo o voto do Ministro Pertence, a tese vencedora levaria, por
consequência, a “que o deslinde das controvérsias suscitadas flutue, durante anos, ao sabor
dos dissídios entre juízes e tribunais de todo o país, até chegar à decisão da Alta Corte, ao
fim de longa caminhada pelas vias frequentemente tortuosas do sistema de recursos”. A
partir de tal julgamento, adotou-se na experiência brasileira solução que, diferentemente das
Cortes Constitucionais europeias, instauradas pelas Constituições do Pós-guerra, atribuiu
interpretação controvertida à teoria da recepção, de matriz kelseniana, de tal modo que as
leis antigas, sem o novo fundamento de validade constitucional, deixariam de existir
automaticamente, evadindo do controle de compatibilidade em abstrato pela Alta Corte.
A despeito de tal anteparo formal, as colisões de interesses
constitucionalmente
tutelados,
no
âmbito
de
relações
reguladas
pelo
direito
infraconstitucional, congestionariam, a cada dia com maior intensidade, a Suprema Corte,
seja por meio do controle difuso, seja por meio do próprio controle abstrato, que se pretendeu
banir em assuntos sujeitos à legislação infraconstitucional anterior. A posição majoritária
expressa na Adin n. 2 traduz, em sua essência, a dicotomia, então predominante, entre o
direito público e o direito privado, sem que se conseguisse entrever, àquela altura, o fato de
que, para a legalidade constitucional, não há diferença substancial entre tais domínios, ambos
plasmados pelos mesmos princípios e valores cuja promoção vincula os agentes públicos e
privados.
Em mudança de rota, o que se tem visto nos julgamentos do Plenário do
STF, em particular na última década, é o franco controle jurisdicional de modelos de
comportamento que, atinentes à vida associativa, familiar e existencial, transbordam os
diques de contenção secularmente preparados para impedir a contaminação das categorias
do direito público com as do direito privado. Essa tendência proativa do Supremo mostra-se
vicejante e precisa ser nutrida (desde que) de forma coerente com a unidade do ordenamento,
para o aprimoramento das instituições jurídicas e para a concreção da tábua axiológica
constitucional.
Segue-se daí a importância histórica da presença do Ministro Luiz Edson
Fachin na Corte Suprema, podendo-se extrair de sua palavra doutrinária a rara sensibilidade
para, firme na unidade do sistema, incorporar os valores constitucionais à norma
interpretada, independentemente da maior ou menor incidência de regras legais específicas
e da anterioridade ou superveniência do texto legal à Lei Maior. Afinal, a pluralidade de
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fontes, diversidade de níveis hierárquicos e sucessão temporal dos preceitos normativos
caracterizam a complexidade do ordenamento, cuja imprescindível unidade cabe à
magistratura, e especialmente à Suprema Corte, zelar e promover. Seja bem-vindo, Ministro
Fachin, ao Judiciário e ao alvissareiro horizonte que se avizinha para a Suprema Corte: mãos
à obra!
G.T.
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Nacional
A MULTIPARENTALIDADE COMO NOVA ESTRUTURA DE PARENTESCO NA
CONTEMPORANEIDADE
Multiple parenthood as a new structure of parenthood in the contemporary world
Ana Carolina Brochado Teixeira
Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Especialista em Diritto Civile pela Università degli Studi di Camerino, Itália.
Professora de Direito de Família e Sucessões no Centro Universitário UNA.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Advogada.
Renata de Lima Rodrigues
Doutora em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Mestre em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Especialista em Direito Civil pelo IEC-PUC/MG.
Professora de Direito Civil e Coordenadora acadêmica do Centro Universitário UNA.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM. Advogada.
Resumo: O presente artigo tem como objetivo situar o fenômeno hodierno da
multiparentalidade como nova estrutura de parentesco, levando-se em conta premissas
jurídicas e psicanalíticas. Para tanto, em um primeiro momento, o texto se dedica à
reconstrução do pano de fundo social e cultural no qual se insere o Direito de Família
brasileiro, evidenciando as razões que impulsionaram profundas releituras nos institutos
jurídicos familiares. Feito isso, o trabalho procura detalhar os efeitos do reconhecimento da
múltipla vinculação parental, abordando desde a questão registral até questões sucessórias,
para, ao fim, analisar um julgado paradigmático que reconheceu recentemente a
multiparentalidade na experiência jurídica brasileira.
Palavras-chave: Paternidade;
recompostas; multiparentalidade.
maternidade;
filiação;
socioafetividade;
famílias
Abstract: This scientific article is aiming to analyze the contemporaneous and exceptional
occurrence that concerns of the juridical hypothesis that a child can have two fathers and/or
two mothers at the same time (multiple parenthood), named multiparentalidade in brazilian
doctrine. In this matter, will be revolved some premises of Law and Psychoanalysis. The
text will develop the deepest evolution suffered by brazilian family law, towards to explain
all the possible effects of the multiple parenthood. After all, will be analyzed the arguments
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used by a court in Brazil at the judgement of a family case that recognized the possibility of
the multiple parenthood.
Keywords: Fatherhood; motherhood; membership; functional parenthood; blended
families; multiple parenthood.
Sumário: Introdução – 1. Quem é o pai na Psicanálise e no Direito – 2. As superações do
Direito de Família pelo Direito de Família – 3. Famílias recompostas e liberdade de
constituição familiar – 4. Socioafetividade e formação de parentesco – 5. Multiparentalidade:
Dois pais ou duas mães? Por que não? – 5.1. O exercício da multiparentalidade e seus efeitos
– 6. A questão registral da multiparentalidade e as repercussões da Lei 11.924/09 – 7. Análise
de caso decidido pelo TJRO – 8. Notas conclusivas.
Introdução
O direito de família contemporâneo, mais do que qualquer outro ramo
jurídico, acumula méritos de se ver constantemente renovado. Inúmeros paradigmas foram
ultrapassados na permanente tentativa de se alinhar a uma realidade social que se modifica
rapidamente e que se multiplica em nuances que refletem o fenômeno hodierno de
individualização de estilos de vida, que se firmam e declinam de maneira acelerada.
Uma destas grandes conquistas funda-se em uma premissa fundamental
para (des)construção de todos os seus institutos: a compreensão do fato de que conceitos
como família, paternidade, maternidade, filiação e parentesco não consistem em conceitos
naturalizados ou dados prontos, mas constituem-se em definições que devem ser recebidas
pelas ciências, dentre elas, a ciência jurídica, como construções culturais ou criações
humanas, que merecem ser problematizadas diante de seus contextos civilizatórios.1
Além do mais, sabe-se que a secularização da cultura ocidental implicou a
descentralização ética, cultural, política e religiosa de nossa sociedade. A fragmentação
desse contexto social implica a necessidade de uma abertura política e jurídica capaz de
recepcionar a multiplicidade de estilos de vida individuais que são construídos a partir disso.
“Nesse sentido, pode-se dizer que estudos antropológicos mais recentes muito contribuíram para desconstruir
a concepção dos conceitos de família, filiação e parentesco, enquanto fenômenos naturais, apontando para
estes como criações humanas. Identifica-se, por exemplo, o trabalho desenvolvido por Levis-strauss (1982)
como de grande importância para a percepção da dimensão simbólica da cultura e das regras que estabeleceram
o parentesco. Destaca-se que o autor contribuiu por ter mudado o foco de atenção das ciências sociais,
anteriormente centrado na família biológica consanguínea para a maneira como se edificam os sistemas de
parentesco nas diferentes culturas”. 1 (BRITO, Leila Maria Torraca de. Paternidades contestadas. A definição
da paternidade como um impasse contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 13-14).
1
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Portanto, o ideal de vida digna de cada pessoa passa a assumir cariz tão pessoal quanto às
próprias escalas de valores individuais, conduzindo as pessoas à possibilidade de cada um
edificar sua personalidade conforme lhe convier.
Disto decorre a possibilidade de cada um constituir família a partir do
“modelo” ou da “ausência de modelo” que bem atenda às necessidades de livre
desenvolvimento da personalidade e de proteção de sua concepção de dignidade. Razão
porque o direito de família contemporâneo se alicerça sobre uma principiologia que assegura
a pluralidade de entidades familiares e a igualdade material entre todas elas, quer se trate de
uma família tipificada na legislação ou não, evidenciando a historicidade das estruturas
familiares que são necessariamente procedimentais, exigindo constantes problematizações
por parte das ciências.
1. Quem é o pai na Psicanálise e no Direito
Hodiernamente, a definição do parentesco a partir do binômio filiaçãopaternidade é uma das mais intrincadas questões e que, por isso, recebe a atenção de vários
ramos do conhecimento. Tal conceituação longe de ser unívoca é assumidamente, ao menos
para ciências como a Psicanálise e o Direito, tida como plural, fazendo com que a definição
da paternidade se apresente, de fato, como um verdadeiro impasse contemporâneo.
Para a psicanálise a figura do pai é fundamental para a construção da
personalidade e da sexualidade dos filhos. A figura paterna é tão complexa que se
desdobraria em três estruturas de ordens diferenciadas: pai real, pai simbólico e pai
imaginário.2
O pai real seria:
o pai concreto, o da realidade familiar, aquele que possui suas
particularidades, suas opções, mas também suas próprias dificuldades. Seu
verdadeiro lugar dentro da família é variável, tanto em função da
civilização, que nem sempre lhe deixa liberdade para agir, como em função
de sua história singular, que não deixa de ter impasses ou inibições.3
Para a Psicanálise, poderia parecer, em um primeiro momento, que é do
pai real que se espera muito na vida do filho. Contudo, o pai é um ser humano como qualquer
2
CHEMANA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Tradução Francisco FrankeSettineri. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1995, p. 158-159.
3
CHEMANA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Tradução Francisco FrankeSettineri. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1995, p. 158-159.
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outro e, portanto, quase sempre, por conta de suas próprias dificuldades pessoais, ele se
apresenta como um sujeito carente, inseguro e discordante de suas posições, incapaz, muitas
das vezes, de cumprir o valor simbólico de sua função ou alcançar aquele que a psicanálise
lhe atribui como papel: o papel do pai simbólico, que organiza e possibilita do acesso
moderado do filho ao gozo sexual a partir da proibição do incesto,4 pois o pai simbólico,
como dito, é aquele que limita e ordena o desejo dos filhos, ou seja, que realiza a operação
da castração que significa a privação da mãe. A seu turno, o pai imaginário seria aquele a
quem o sujeito, o filho ou a criança efetivamente atribui o ato da castração ou da privação
da mãe, independentemente de ter sido ele a se desincumbir de tal papel.5
O que se nota dessa brevíssima exposição da estrutura psicanalítica da
paternidade é que a paternidade liga-se eminentemente a um papel ou função simbólica a
qual o pai, nem sempre o pai real, deve desempenhar na estruturação psíquica da
personalidade e da identidade de seus filhos.
Portanto, mesmo a partir de critérios
epistemológicos e científicos próprios, a psicanálise analisa a paternidade como uma
estrutura eminentemente funcional.
Da mesma maneira, a paternidade se apresenta para a ciência jurídica
como conceito de difícil definição. Especialmente na atualidade, vive-se um momento
profícuo para a discussão de premissas que envolvem o estabelecimento de vínculos
parentais e questões que concernem à filiação. A superação do tradicional conceito liberal
de família, estruturado sobre relações de ascendência e descendência biológica, exige das
relações parentais elementos que transcendem a simples consanguinidade.
O direito de família contemporâneo, porque fundado em uma
principiologia renovada, vem firmando tendência em atribuir aos laços socioafetivos o status
de um de seus principais alicerces. No contra passo da evolução tecnológica e das ciências
biológicas, a dignidade humana e a afetividade são fundamentos para o estabelecimento do
estado de filiação, obrigando a que todos os institutos relacionados à afirmação de vínculos
parentais sejam revisitados, no intuito de emprestar ao ordenamento jurídico
sistematicidade, coerência e efetividade.
“O pai real é aquele que permite que a criança tenha acesso ao desejo sexual, em particular, aquele que permite
que o menino assuma uma posição viril. Por isso, é conveniente que o pai real possa provar que possui o trunfomestre, o pênis real: o interdito não poderá fazer o sujeito passar a uma posição sexuada, a não ser que a mãe,
proibida pra ele, só o seja porque o pai a possui, e não porque a sexualidade em geral seja uma atividade vulgar
ou inconveniente.” (CHEMANA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Tradução Francisco FrankeSettineri.
Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1995, p. 159).
5
CHEMANA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Tradução Francisco FrankeSettineri. Porto Alegre: Artes
Médicas Sul, 1995, p. 159.
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A existência de novos arranjos familiares e de novas formas de parentesco,
alicerçados na principiologia da liberdade de (des)constituição familiar e da dignidade da
pessoa humana, vêm suscitando nas Varas de Família e nos Tribunais de todo o país
situações inusitadas, nas quais acabamos por nos deparar com a perene questão em torno da
verdade em termos de filiação e da indagação em torno de qual tipo de parentesco deve
prevalecer em cada caso concreto. Questão que pode ser resumida na seguinte pergunta:
Quem é o “verdadeiro” pai? O biológico? O afetivo? Pergunta que ainda nos conduz a outra
reflexão ainda mais importante: O quê é um verdadeiro pai? E, a partir dessas indagações, é
inevitável o questionamento: algum desses parentesco prevalece sobre outro?
Assim como na Psicanálise, ou melhor dizendo, alicerçado em construções
psicanalíticas, o Direito de Família contemporâneo também procura analisar a paternidade
como uma função, atividade ou serviço que o pai deve desempenhar na vida dos filhos.6
Sendo assim, o critério jurídico para definição da paternidade também passa pela perspectiva
funcional, como se demonstrará ao longo do trabalho.
Tal fato possibilitou a distinção fundamental entre as figuras de genitor
biológico e de pai e, consequentemente, acabou por gerar a necessidade de tutela a duas
situações sociais distintas que assumem relevância jurídica, as quais vêm encampadas pelo
clássico direito de filiação e pela recente construção do direito ao conhecimento da origem
genética, como direito personalíssimo a integrar a identidade e a personalidade dos
indivíduos. Como se verá, a conclusão é de que, em apertada síntese, pai é quem cria e educa
seus filhos.
2. As superações do Direito de Família pelo Direito de Família
Uma das primeiras barreiras a ser superada pelo Direito de Família, na
tensão entre facticidade e validade e no desafio pela reconstrução de seus institutos, foi a da
família codificada, que teve que ceder espaços e conviver com outros núcleos familiares
essencialmente informais, porque despidos das solenidades que revestem o casamento, mas
que a despeito de sua forma – ou ausência dela – mostraram-se marcados pelo compromisso
Segundo João Batista Vilela, “Qual seria, pois, esse quid específico que faz de alguém um pai, independente
da geração biológica? Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da
humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço
que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstancia de
amar e servir.” (VILELA, João Batista. Desbiologização da paternidade. Disponível em
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/28298-28309-1-PB.htm. Acesso em 7.8.12)
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da comunhão de vida, da lealdade e da mútua assistência moral e material. Trata-se de um
compromisso com a realização da democracia no interior da família.
Aos poucos, outros traços profundamente arraigados em nossa cultura se
viram rotos pela ação do tempo. Com isso, foi o fim do patriarcalismo, base da hierarquia
entre homens e mulheres, que conferia aos primeiros poderes e direitos ilimitados sobre
patrimônio e pessoa de suas esposas. Foi o fim também da discriminação entre filhos,
designados como legítimos e ilegítimos, segundo sua origem.
Ao lado de todas essas mudanças, uma alteração substancial na natureza
jurídica da família e em sua função transformou definitivamente a dinâmica das relações
familiares: a família deixou de ser um instituto formal e absolutizado, que atraía a tutela
jurídica de per si, para se transmudar em um núcleo social funcionalizado ao
desenvolvimento da personalidade e da dignidade de seus membros. Apenas enquanto
cumpridora dessa função, a família justifica sua própria existência e proteção estatal.
A partir disso, a realidade impôs o fim de mais uma barreira codificada: a
rigidez e a indissolubilidade do vínculo conjugal. Já que a família passou a se constituir em
um locusde realização pessoal, fez-se necessário atribuir às pessoas a liberdade de
(des)constituição familiar, possibilitando-as perseguir satisfação em outros arranjos
familiares, quando frustrado o plano de vida estabelecido com um determinado consorte.
A liberdade de constituição familiar, marcada não só pela possibilidade de
desconstituição do casamento - inaugurada pela Lei do Divórcio, em 1977 -, mas também
pela possibilidade de se constituir família por meios informais, e, de maneira igualmente
informal, pôr fim à sua existência, gerou o fenômeno social, hoje, amplamente disseminado
em nossa realidade, consistente na formação das chamadas famílias recompostas, que trazem
cada vez mais complicadas repercussões jurídicas, mormente no que diz respeito ao
estabelecimento dos papéis parentais e do exercício do poder familiar, indicando a corrosão
de um último paradigma de nossa cultura jurídica: a biparentalidade, que cede lugar ao que
aqui convencionamos denominar multiparentalidade. Esse novo fenômeno jurídico tem seu
fundamento, também, nas concepções de socioafetividade, novo fator propulsor ao
estabelecimento de parentesco.
3. Famílias recompostas e liberdade de constituição familiar
O art. 226 da Constituição Federal de 1988 prevê como tipos de família o
casamento, a união estável e as famílias monoparentais. Entretanto, tal dispositivo não
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encerra uma enumeração taxativa, mas sim, exemplificativa, pois se a liberdade de
constituição de família é um direito fundamental, não pode o Estado limitar as formas de
família, ou os modos de exercício deste direito fundamental. Afinal, se os núcleos humanos
cumprem a mesma função de estruturação psíquica e de livre desenvolvimento da
personalidade de seus membros, não há razão para não qualificá-los como família.
Por isso, são exemplos de entidades familiares os casais homoafetivos, as
famílias anaparentais, os avós que vivem com seus netos, entre outras. Como mencionado,
uma nova espécie de entidade familiar que vem despontando como fenômeno social – e por
isso, jurídico – consubstancia-se nas famílias recompostas, resultado da liberdade de
constituição e dissolução das entidades familiares conjugais.
Família reconstituída é “a estrutura familiar originada do casamento ou da
união estável de um casal, na qual um ou ambos de seus membros tem filho ou filhos de um
vínculo anterior”.7 Esse fenômeno vem crescendo atualmente, em face do aumento do
número de separações, divórcios e dissoluções de união estável, conforme comprovado por
dados do IBGE. As famílias que se formam em resultado do rompimento conjugal, tornamse monoparentais. Essa situação pode ter um tempo definido ou não, já que vinculada à
recomposição familiar, agregando-se um novo cônjuge ou companheiro àquele núcleo
familiar, fazendo que surja, dessa forma, um novo arranjo.
Não obstante a grande relevância do fenômeno na esfera sociológica, é
incipiente a manifestação jurídica sobre o tema, não apenas em termos legislativos, mas
também, doutrinários e jurisprudenciais, situação que tende a mudar. O pronunciamento
legal mais antigo cinge-se ao art. 1.595 do CCB/02, que prevê o parentesco por afinidade do
cônjuge ou do companheiro aos parentes do outro, que se restringe aos ascendentes,
descendentes e irmãos. Entretanto, a lei se cala a respeito da maioria das relações jurídicas
que se formam entre esses novos parentes afins e novos arranjos familiares.
Note-se que a escassa doutrina existente considera esta espécie de família
apenas quando existem filhos de um ou de ambos os cônjuges ou companheiros, que passam
a conviver com o outro. Formam um novo lar com regras próprias, no qual cada um traz
consigo a experiência vivida na família anterior. Diante dessa diversidade, a única alternativa
7
GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas.In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo
da Cunha. Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p.
257. Sobre o tema, recomendamos VALADARES, Maria Goreth Macedo. As famílias reconstituídas. In:
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; PEREIRA, Gustavo Leite. (Org.). Manual de Direito das Famílias e das
Sucessões.Belo Horizonte: Mandamentos, 2008, v., p. 145-168.
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é a criação de novas formas de convivência, através da qual os membros possam coexistir
em busca da harmonia no novo arranjo familiar.8
4. Socioafetividade e formação do parentesco
A doutrina costuma reconhecer a existência de parentesco socioafetivo a
partir da comprovação dos requisitos que compõem a posse de estado de filho, sendo eles,
nome, trato e fama. Sem dúvida, trata-se a posse de estado de meio hábil a comprovar o
vínculo afetivo entre pais e filhos de criação, mas ela não é capaz de constituir o próprio
vínculo, pois, como sabido, posse de estado é apenas meio de prova subsidiário, e, portanto,
não gera estado. Sendo assim, não é ela a definir a substância desse novo tipo de parentesco,
mas apenas sua comprovação.
O que constitui a essência da socioafetividade é o exercício fático da
autoridade parental, ou seja, é o fato de alguém, que não é genitor biológico, desincumbirse de praticar as condutas necessárias para criar e educar filhos menores, com o escopo de
edificar sua personalidade, independentemente de vínculos consanguíneos que geram tal
obrigação legal. Portanto, nesse novo vínculo de parentesco, não é a paternidade ou a
maternidade que ocasiona a titularidade da autoridade parental e o dever de exercê-la em
prol dos filhos menores. É o próprio exercício da autoridade parental, externado sob a
roupagem de condutas objetivas como criar, educar e assistir a prole, que acaba por gerar o
vínculo jurídico da parentalidade.
Esse é um ponto fundamental a ser clarificado, pois, desde que o Direito
de família passou a atribuir relevância jurídica aos “laços de afeto”, alguns equívocos vêm
sendo cometidos, de maneira inadvertida. Isso é verdade no que diz respeito ao significado
do princípio da afetividade, seu conteúdo e efetividade, bem como com o conceito jurídico
e “popular” de socioafetividade, que mistura condutas objetivas, externalizadas pelos
deveres de criar, educar e assistir, com o sentimento de afeto, que induz ao seguinte
questionamento: existe o direito ou o dever de afeto?
“A multiplicidade de vínculos familiares vem definida, de modo excepcional, pelo amor e pela afetividade,
diferentemente da família clássica onde a vinculação pelos laços consangüíneos, com ou sem afeto, predomina.
O elemento afetivo é indispensável à subsistência da família mosaico, exigindo de seus membros extraordinária
capacidade de adaptação, considerando o fato de serem egressos de famílias anteriores, (des)construídas, e,
portanto, guardando o conjunto de valores da experiência familiar”.(FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges
Nasser; Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V
Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006, p. 512).
8
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17
Nosso entendimento é de que o princípio da afetividade funciona como um
vetor que reestrutura a tutela jurídica do direito de família, que passa a se ocupar mais da
qualidade dos laços travados nos núcleos familiares do que com a forma através da qual as
entidades familiares se apresentam em sociedade, superando o formalismo das codificações
liberais e o patrimonialismo que delas herdamos. Portanto, o princípio da afetividade não
comanda o dever de afeto, porquanto se trata de conduta de foro íntimo, incoercitível pelo
Direito. O grande desafio é que, por mais que se queira negar,9 o afeto consiste em um
elemento anímico ou psicológico. E, sob um certo aspecto, que urge ser pontuado, é um
fator metajurídico que não pode ser alcançado pelas normas das ciências jurídicas, mas
apenas pela normatividade da Moral.10
O que queremos esclarecer, com essa basilar, mas necessária distinção
entre a normatividade da Moral e do Direito, é que o afeto só se torna juridicamente relevante
quando externado pelos membros das entidades familiares através de condutas objetivas que
marcam a convivência familiar, e, por isso, condicionam comportamentos e expectativas
recíprocas e, conseqüentemente, o desenvolvimento da personalidade dos integrantes da
família.
Nesse sentido, concordamos com Tânia da Silva Pereira11 que, partindo da
ideia de que família é uma estruturação psíquica, na qual cada membro ocupa um lugar e
exerce uma função,12 independentemente de sexo, sexualidade ou da presença de laços
biológicos, defende a teoria do afeto como um valor jurídico que distingue e define as
entidades familiares contemporâneas. São as relações de afeto que possibilitam o
“Mas, como disse, quero enfrentar o problema sob o ponto de vista do Direito. E o faço para rebater os
argumentos ligeiros que tenho ouvido de que afeto é algo metajurídico que não diz respeito ao Direito, que está
no campo, ou no âmbito do psiquismo, ou é matéria que diz respeito ao campo anímico e, portanto, pré-jurídico
ou não jurídico.”(LÔBO, Paulo Luiz Netto. A família enquanto estrutura de afeto. In: BASTOS, Eliene
Ferreira; DIAS, Maria Berenice (Coord.). A família além dos mitos.Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 252).
10
“Quanto ao efeito de uma e de outra, Ferrara acentua que da norma jurídica decorrem relações com um
alcance bilateral, ao passo que da regra moral deriva consequência unilateral, isto é: a regra moral é ditada no
sentido de realização do bem ou do aperfeiçoamento individual, sem atribuir um poder ou uma faculdade, ao
passo que a norma jurídica, quando limita ou obriga, concede ao mesmo tempo e correlatamente a exigibilidade
de um procedimento. Quando a moral diz a um que ame a seu próximo, pronuncia-o unilateralmente, sem que
ninguém possa reclamar aquele amor; quando o direito determina ao devedor que pague, proclama-o
bilateralmente, assegurando ao credor a faculdade de receber. Por isso mesmo os irmãos Mazeud observam
que a moral procura fazer que reine mais do que a justiça, a caridade que tende ao aperfeiçoamento
individual”.10 (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil.Rev. e atual. de acordo com o
Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2006, v. I, p. 13).
11
PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente. Uma proposta interdisciplinar. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 54.
12
Conforme: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União Estável.Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p.
10-11.
9
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estabelecimento de uma convivência familiar diária, a qual é a verdadeira responsável pela
realização da personalidade dos membros do núcleo familiar, que encontram uns nos outros
os referenciais necessários para construção de sua dignidade e autonomia.
Com base nesse raciocínio, a falta de afeto, o “abandono afetivo”, o
desamor, não são condutas antijurídicas que mereçam reparação ou sanção, pois o Direito
apenas consegue alcançar condutas externas e objetivas. Se há desamor entre cônjuges,
companheiros, pais e filhos, etc., tal conduta só merece reprimenda da moral.13
Portanto, não é de (des)amor que se trata o afeto como fato jurídico, mas
sim aquele que, quando exteriorizado na forma de comportamentos típicos de uma legítima
convivência familiar é capaz de gerar eficácia jurídica. Exemplo disso, a posse de estado de
filho, geradora do parentesco socioafetivo entre pais e filhos. Sendo assim, a nosso sentir, o
Direito não é capaz de “enxergar” a ausência de afeto, mas é possível que, quando presente
a afetividade entre certos indivíduos, condicionante de seu comportamento, caracterizandoo como tipicamente familiar, aí sim, o Direito, reconheça um fato concreto, um
acontecimento ao qual ele pode outorgar qualificação e disciplina jurídica: “um ponto de
confluência entre a norma e a transformação da realidade: o modo pelo qual o ordenamento
se concretiza”.14
Por isso, não podemos falar em direito ou dever de afeto. Mas devemos
valorizar as manifestações exteriores – condutas e comportamentos – que traduzam a
existência do afeto em determinadas relações. A família é um locusprivilegiado para o
nascimento de relações como estas, dada a proximidade, a intimidade que brota entre as
pessoas. Por isso, as famílias recompostas, cujos membros adquirem estreita convivência,
constituem um espaço privilegiado para manifestações afetivas, que se consolidam, como
afirmamos, através da criação, educação e assistência, manifestações da autoridade parental.
Logo, com o casamento ou a união estável de duas pessoas, que levam para
o novo lar um ou mais filhos de relações anteriores — seja em decorrência de viuvez, separações, divórcios, dissoluções de uniões estáveis ou do pai e mãe solteiros que criam sozinhos
13
O sistema jurídico não pode exigir de ninguém demonstrações de amor e carinho, porquanto, não seja disto
que se trate, mas sim de uma situação em que o que se cobra dos pais é o correto desempenho de suas funções
para com o desenvolvimento os filhos. Até porque, durante muito tempo, muitos pais deixaram de demonstrar
afeto, amor e carinho para com seus filhos, mas cumpriram a função de autoridade (com ou sem autoritarismo)
que lhes cabia e que lhes permitiu que seus filhos se adequassem socialmente.( HIRONAKA, Giselda Maria
Fernandes Novais. Pressuposto, elementos e limites do dever de indenizar por abandono afetivo. In: PEREIRA,
Rodrigo da Cunha; PEREIRA, Tânia da Silva. (coord.). A ética da Convivência familiar: sua efetividade no
cotidiano dos tribunais. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 134).
14
PERLINGIERI. Pietro. O direito civil na legalidade constitucional.Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 636.
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seus filhos —, há o estabelecimento de um conjunto próprio de regras de convivência para
aquela nova família, principalmente no que se refere à continuidade da criação e educação
dos filhos. Isso porque o espaço de liberdade de cada um sofre interferências, em decorrência
das novas pessoas que se agregam àquele núcleo familiar. Tais interferências podem ser
positivas ou negativas, no que se refere ao desenvolvimento da personalidade dos filhos, de
modo que podem vir a configurar situações patológicas ou promocionais. A questão se torna
relevante quando o genitor biológico, não guardião, é ausente, por morte, abandono ou nãoconvivência com o filho. Todavia, hoje se vislumbra a possibilidade de, mesmo o genitor
biológico sendo presente, existir um compartilhamento das funções parentais, ou dos deveres
inerentes à autoridade parental.
Por isso, não há dúvidas de que as famílias recompostas são um locus
especial para o nascimento da socioafetividade, por ser um novo arranjo familiar, que exige
regras próprias em seu interno, em função do modus vivendi das pessoas que agora se
agregam e passam a viver juntas e a exercer funções recíprocas, uma na vida da outra. Existe,
por isso, o compartilhamento de um espaço comum e cuidados recíprocos que são fonte de
efeitos jurídicos, principalmente no que se refere aos cuidados parentais, direcionados à
criança e ao adolescente.
Afirmamos que do exercício fático dos deveres inerentes ao poder familiar
emanam efeitos jurídicos inerentes à socioafetividade, que produz vínculos parentais
irrevogáveis e definitivos. Logo, o que verdadeiramente determina a paternidade e a
maternidade é o exercício da autoridade parental. Pai e mãe são definidos a partir desta
conduta, que é fonte de responsabilidade e de deveres para o Direito de Família. A adoção
deste critério como definidor do parentesco socioafetivo mostra-se como uma alternativa
bastante objetiva de se comprovar e reconhecer a existência de vínculos dessa natureza,
sobretudo, porque afasta o reconhecimento da socioafetividade da necessidade de critérios
metafísicos, anímicos e subjetivos como a existência de afeto. E como o Direito deve versar
sobre condutas objetivas, este critério é coerente com as funções contemporâneas da ciência
jurídica, principalmente a prospectiva ou emancipatória, que visa atuar como um processo
libertário do ser humano concreto, mas protetivo na medida em que existe alguma
vulnerabilidade.
Além disso, como se sabe, a posse de estado de filho só é caracterizada se
provados os requisitos nome, trato e fama. Mormente no que diz respeito ao requisito trato,
ou tratamento, o que se procura evidenciar é se pai/mãe e filho de criação se tratam como
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20
tal, ocupando tais funções um na vida do outro.15 Para tanto, o que é preciso investigar é se
os pais socioafetivos se identificam como detentores fáticos da autoridade parental,
incumbindo-se de criar, educar e assistir, provendo todas as necessidades biopsíquicas do
filho menor e propiciando-lhe pleno acesso a seus direitos fundamentais, pois este é o
objetivo do poder familiar.
Partindo da premissa de que família é uma estruturação psíquica, na qual
parentalidade e filiação são funções que determinadas pessoas exercem umas nas vidas das
outras, reciprocamente, a maneira mais objetiva de se averiguar a existência dessas relações
é procurar identificar a prática de atos que são típicos da autoridade parental, cujo conteúdo
básico consiste em um conjunto de deveres da família que correspondem aos direitos
fundamentais da criança e do adolescente, positivados no artigo 227 da CF.16
A partir da existência desse tratamento recíproco entre pai/mãe e filho
socioafetivo, consistente na realização de funções promocionais de suas personalidades,
podemos concluir que os outros requisitos geradores da posse de estado de filho – nome e
fama – são apenas um reflexo do exercício fático da autoridade parental.17 O nome, como já
é corrente em doutrina, é o menos relevante, vez que já indica indícios de formalidade numa
relação que é eminentemente fática, portanto, a forma é, a princípio, “menos exigível”. A
fama, por seu turno, embora seja importante porque dá publicidade à relação jurídica, não é
nada mais nada menos do que a publicização do tratamento: a comunidade toma
conhecimento do exercício da autoridade parental. Por isso, a posse de estado de filho deve
receber como principal enfoque o tratamento recíproco da relação de filiação, cujo pilar
central está nos deveres de criar, educar e assistir os filhos.
Através dessas reflexões, ousamos afirmar que uma relação de filiação tem
como núcleo o exercício da autoridade parental. Não obstante saibamos que existem outras
fontes do parentesco, como a consanguinidade, por exemplo, por força do art. 1.593, CC/02,
Nesse sentido trecho do voto do Des. Cláudio Faccenda Fidélis: “Já a posse do estado de filiação se verificará
quando alguém assumir o papel de filho em face daquele que assumir o papel de pai ou mãe,
independentemente do vínculo biológico. A posse do estado de filho é a exteriorização da convivência familiar
e da afetividade entre as partes, havendo demonstração perante a sociedade da relação pai e filho”. (TJRS,
Apelação Cível 70029363918, Des. Relator Claudir Fidélis Faccenda, 8ª Câmara Cível, j. 07/05/2009). (grifos
nossos).
16
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, Guarda e Autoridade Parental.Rio de janeiro: Renovar, 2005,
p. 129.
17
Quando nos referimos à expressão “exercício fático” da autoridade parental, queremos dizer que os pais
socioafetivos não receberam do Estado um poder jurídico, que se consubstancia na atribuição de uma série de
competências a serem exercidas em benefício dos filhos. (TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família,
Guarda e Autoridade Parental. Rio de janeiro: Renovar, 2005, p.97). Eles se desincumbem dessas
competências voluntariamente, independentemente de uma norma que lhes comande tal conduta.
15
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21
sem o exercício da autoridade parental a relação de filiação será completamente esvaziada
do cumprimento das funções parentais. Afinal, entendemos que o que realmente garante a
estruturação biopsíquica do menor são as relações que ele trava com “o outro”,
principalmente com os pais, pois são as pessoas com quem experimentarão, pela primeira
vez, a alteridade, fator fundamental para o exercício da autonomia responsável. Sem este
caráter relacional, certamente haverá deficiências na formação da personalidade da criança
e/ou do adolescente, de modo que é função da autoridade parental evitar que tais danos
ocorram, potencializando todas as singularidades do menor. É por isso que é mediante o
exercício da autoridade que é possível definir as verdadeiras funções parentais e, assim, fixar
as relações de parentesco. Jamais o contrário.
5. Multiparentalidade: Dois pais, duas mães? Por que não?
É possível, portanto, um exercício fático da autoridade parental. É sob tal
perspectiva que deve ser analisado o art. 1.636, CCB/02, que é taxativo no sentido de que as
novas núpcias ou nova união estável contraída pelo genitor não induzem à perda do poder
familiar quanto aos filhos do relacionamento anterior. A situação se torna mais complexa
em função da última parte do caput daquele dispositivo, que estabelece que o exercício da
autoridade parental se perfaz sem a interferência do novo cônjuge ou companheiro. O mesmo
ocorre quando o genitor solteiro casar ou estabelecer união estável. Ao que tudo indica, esse
dispositivo visa tutelar o genitor biológico e não o menor inserido no novo contexto familiar,
que deve receber a tutela mais abrangente possível.
Essas novas composições familiares colocam em xeque a exegese mais
simples e literal do artigo 1636, pois a lógica cartesiana preconizada nesse artigo, que
estabelece a não interferência de padrasto ou madrasta no exercício da autoridade parental
em relação aos filhos de seus cônjuges ou companheiros é de difícil aplicação prática, tendo
em vista o estabelecimento de um conjunto próprio de regras para convivência saudável no
novo arranjo familiar.
Por isso, a prática reflete exatamente o oposto do que o dispositivo prevê.
A realidade impõe novas formas de arranjos familiares, que provocam rearranjos internos,
decorrentes da estrutura havida na família anterior, agora desfeita. Cada cônjuge ou
companheiro, além dos filhos, leva sua experiência para aquele novo relacionamento. É
preciso muita flexibilidade e diálogo para que se alcance harmonia no funcionamento da
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nova família. Para tanto, é inevitável que algumas funções, sejam maternas ou paternas,
sejam cumpridas pelo pai ou pela mãe afim.
Há, portanto, mostras de que essa interferência é real,18 seja ela de maneira
negativa ou positiva e, neste último caso, é perfeitamente possível que se crie um vínculo
afetivo entre estes parentes afins e os filhos de seus consortes, uma vez que padrasto e
madrasta exercem, com frequência, uma série de atos tipicamente inseridos no conteúdo da
autoridade parental, mesmo que não haja uma real desvinculação afetiva ou material desses
filhos com seus genitores biológicos, que, a despeito da dissolução da família anteriormente
constituída, não deixaram de se desincumbir de seus papéis na formação da personalidade
de seus filhos.
Portanto, são situações em que os menores podem enxergar não só em seus
pais, mas também em terceiros, a figura parental responsável por lhes criar e educar. Não
tutelar esse fenômeno, que ousamos denominar multiparentalidade, pode ser explícita
agressão ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que nessas situações
prescinde da convivência com todas essas figuras, e que deve ser, portanto, tutelada
amplamente pela ordem jurídica. A exemplo disso decidiu a 5ª Câmara Cível do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro, que a partir do reconhecimento de um vínculo socioafetivo,
possibilitou a atribuição do direito de visitas à madrasta de um menor, após dissolvido o
vínculo conjugal com seu pai:
Agravo de instrumento. Reconhecimento de vínculo afetivo c/c
regulamentação de visitas. Tendo em vista a não apresentação de motivo
idôneo que se restrinja a convivência com a ex madrasta, defere-se a
visitação atendendo aos interesses emocionais da criança. O interesse do
infante deve ser preservado. Recurso provido. Agravo regimental
prejudicado.19 (grifos nossos).
É de fulcral relevância apontarmos o que está por trás dessa decisão. Ora,
sabe-se que o direito de visitas é um direito subjetivo assegurado ao genitor não guardião,
Conforme seguinte acórdão: “Apelação cível. Ação de posse e guarda. Predominância do interesse do menor.
Não ocorrência de circunstância excepcional. Permanência com a genitora. Improcedência do pedido. Sentença
mantida. A concessão da guarda representa a continuidade da assistência moral e financeira prestada ao menor,
de modo a garantir o seu desenvolvimento físico, mental e espiritual, possibilitando a formação do seu caráter
em um ambiente sadio e responsável. O estudo psicossocial indica que ambos os pais possuem qualificações
necessárias ao exercício da guarda, mas opina pela guarda da genitora, tendo em vista o interesse dos menores
e, ainda, constata que no núcleo familiar paterno há respeito a figura materna, havendo explícita concorrência
entre madrasta e mãe pelo exercício desta figura na vida das crianças. Recurso desprovido”. (grifos nossos)
(TJRJ, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível 2007.001.26707, Des. Francisco de Assis Pessanha, j. 17/10/2007)
19
TJRJ, Agravo de instrumento nº 2007.002.32991, 5ª Câmara Cível, Des. CherubinHelciasShwartz, j.
27/05/2008.
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cujo objetivo é propiciar a convivência familiar dos menores com o parente que não detém
diretamente sua guarda, por força da dissolução da sociedade conjugal. O genitor não
guardião permanece detentor da autoridade parental, mas seu conteúdo é reduzido, pois lhe
é suprimida a prerrogativa de tê-los em sua companhia em tempo integral, segundo o art.
1.632 CC. Todavia, muito mais do que o direito subjetivo dos pais é um direito fundamental
do filho de conviver com aqueles com os quais tem afeto, laços de amizade, de modo a
reforçar a perspectiva dialogal, construindo a própria dignidade e personalidade.
O Tribunal conferiu à madrasta, parente afim do menor, tal direito, para
evitar o rompimento da convivência estabelecida entre ambos. É substancialmente o direitodever de convivência entre pais e filhos de que se trata a essência da autoridade parental,
pois é o convívio, a relação diária entre eles o locuspara a prática dos atos de educar, criar e
assistir. Se o Tribunal se convenceu de que o rompimento dessa convivência não seria
benéfico aos interesses do menor, resta evidente que a madrasta exercia com desvelo a
função de mãe na vida dessa criança, o que, por mais inusitado que pareça, em nada se
relaciona com a existência de uma mãe biológica, ou legalmente constituída, que também
exerça seu papel. Não se trata aqui de relações excludentes ou mutuamente impeditivas, mas
complementares. O paradigma plural contemporâneo abandonou a perspectiva de exclusão;
agora, trata-se da multiplicidade de papéis que são todos cabíveis em uma relação parental,
mesmo que se trate de paternidade e/ou de maternidade20. Ressalte-se que tal fenômeno já é
corriqueiro na prática. Cabe ao Direito, então, jurisdicizá-lo, em nome da tutela do menor,
que deve ser qualitativamente especial, já que está “em jogo” a estruturação da sua
personalidade, seu crescimento saudável e a proteção a seus direitos fundamentais.
Rodrigo da Cunha Pereira,21 em seu diálogo entre Direito e Psicanálise,
ensina que, para a estruturação de uma pessoa, é necessário que alguém cumpra funções
20
Nesse mesmo sentido, recente decisão do Tribunal de Justiça da Paraíba determinou que, em disputa de
guarda entre pai biológico e a mãe afetiva, deverá o adolescente permanecer com esta: “Guarda de menor.
Direito de Família. Mãe afetiva e pai biológico. Litígio. Interesse e vontade do adolescente de permanecer com
a mãe afetiva. Prevalência. Direito paterno de visitas. Semanal e em período de férias. Fixação. Necessidade.
Laços afetivos que devem ser mantidos. Ratificação da sentença. Desprovimento de ambos os recursos.”(TJPB,
Ap. Civ. 200.2010.003876-5.001, 4ª. CC, Rel. Des. Frederico Martinho da Nóbrega Coutinho, J. 28.6.2012).
Os argumentos balizadores dessa decisão estão em estreita conexão com esse novo Direito que se ocupa de
proporcional efetividade na real tutela da pessoa humana, pois: i) atribui validade e eficácia à vontade do
adolescente que escolheu permanecer sob a guarda da madrasta pois, ii) em virtude da vinculação construída
com ela, em face desta lhe ter dispensado tratamento de filho, cuidado e serviço desde os dois anos de idade –
em face do falecimento da mãe biológica e de um relacionamento vivido com o pai biológico do menor –, estão
presentes todos os requisitos da posse de estado de filho, requisito do parentesco socioafetivo.
21
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 3. ed. rev. atual. eampl.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003, passim.
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paternas e maternas em sua vida, que poderá ser ou não os pais biológicos. Por isso, a família
não é um agrupamento natural, mas cultural, pois ela sobrevive independentemente dos
vínculos biológicos existentes entre seus membros. Essa é uma das justificativas pela
impossibilidade de limitar as formas de família, pois, na contemporaneidade, ela é plural.
No mesmo sentido, leciona Maria Christina de Almeida, que defende ser
a paternidade e a maternidade muito mais uma função do que uma ligação específica ao
ascendente biológico. Por isso, o reconhecimento de situações fáticas representadas por
núcleos familiares recompostos traz novos elementos sobre a concepção de paternidade,
compreendendo, a partir deles, o papel social do pai e da mãe, desvinculando-se do fator
meramente biológico e ampliando seu conceito, realçando sua função biopsicossocial.22
Uma vez desvinculada a função parental da ascendência biológica, sendo
a paternidade e a maternidade atividades realizadas em prol do desenvolvimento dos filhos
menores, a realidade social brasileira tem mostrado que essas funções podem ser exercidas
por “mais de um pai“ ou “mais de uma mãe” simultaneamente, sobretudo, no que toca à
dinâmica e ao funcionamento das relações interpessoais travadas em núcleos familiares
recompostos, pois é inevitável a participação do pai/mãe afim nas tarefas inerentes ao poder
parental, pois ele convive diariamente com a criança; participa dos conflitos familiares, dos
momentos de alegria e de comemoração. Também simboliza a autoridade que, geralmente,
é compartilhada com o genitor biológico. Por ser integrante da família, sua opinião é
relevante, pois a família é funcionalizada à promoção da dignidade de seus membros.
Defendemos a multiparentalidade como alternativa de tutela jurídica para
um fenômeno já existente em nossa sociedade, que é fruto, precipuamente, da liberdade de
(des)constituição familiar e da consequente formação de famílias reconstituídas. A nosso
sentir, a multiparentalidade garante aos filhos menores que, na prática, convivem com
múltiplas figuras parentais a tutela jurídica de todos os efeitos que emanam tanto da
vinculação biológica como da socioafetiva, que, como demonstrado, em alguns casos, não
são excludentes, e nem haveria razão para ser, se tal restrição exclui a tutela aos menores,
presumidamente vulneráveis:
Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo,
com a concessão de todos os efeitos jurídicos, é negar a existência
tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade
humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto
22
ALMEIDA, Maria Christina de. Investigação de paternidade e DNA: aspectos polêmicos. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2001, p. 159.
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a biológica, pelo que se deve manter incólumes as duas paternidades, com
o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória
humana.23
Assim, caso seja rompida a convivência familiar com quaisquer das figuras
parentais – formadas por vínculos biológicos, presumidos ou socioafetivos –, o menor terá
mecanismos jurídicos capazes de proteger seus direitos fundamentais, especialmente
enumerados para preservar a possibilidade de seu desenvolvimento pleno, pois, através do
convívio e do cuidado diário, tornaram-se dependentes da assistência provida por cada um
deles, tanto no âmbito material, quanto na seara existencial, de modo a gerar os mesmos
efeitos do parentesco.
Certo é que sempre que um padrão de conduta, ao qual estamos
profundamente habituados, começa a ser ameaçado pela transformação social, que, aos
poucos, teima em fazer dele um paradigma ultrapassado, somos acometidos por sentimentos
de insegurança, que de maneira irracional, nos fazem apegar a convenções do passado como
mecanismo de defesa. Trata-se, claramente, da realidade que cerca, por exemplo, a constante
busca das famílias homoafetivas de terem seus amplos direitos familiares igualmente
reconhecidos. Isso inclui o direito ao planejamento familiar e, por consequência, o direito à
adoção conjunta por parte desses casais. O paradigma do heteropatriarcalismo ainda resiste
mesmo diante de conquistas obtidas a conta gotas pela doutrina e pela jurisprudência de
vanguarda, que na correta interpretação de nosso sistema, de nossa Constituição Federal,
clamam pela plena igualdade.
Ana Paula Harmatiuk Matos24 já teceu poderosos argumentos no sentido
de que, em face de uma realidade plural, a possibilidade de adoção por casais homoafetivos,
muitas das vezes, afigura-se como a única possibilidade de tutelar os interesses de crianças
e adolescentes que, na prática, já convivem com casais homossexuais, tendo neles a
referência parental. A autora argumenta que o não reconhecimento expresso dessa realidade
e a não possibilidade de adoção conjunta pode se revelar como “ausência de tutela” para a
própria criança, que, ao revés, deve ter trato jurídico privilegiado.
Apropriamo-nos, aqui, do raciocínio da autora para defendermos a ruptura
do paradigma da biparentalidade. Em face de uma realidade social que se compõe de todos
23
WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família: reconhecimento de todos os
direitos das filiações genética e socioafetiva.Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, fevmar/2009, ano X, nº 08, Porto Alegre: Editora Magister; Belo Horizonte: IBDFAM, 2009, p.122.
24
MATOS, Ana Carla Harmatiuk. Filiação e homossexualidade. In: Anais do V Congresso Brasileiro de
Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006. p. 69-101.
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26
os tipos de famílias possíveis e de um ordenamento jurídico que autoriza a livre
(des)constituição familiar, não há como negar que a existência de famílias reconstituídas
representa a possibilidade de uma múltipla vinculação parental de crianças que convivem
nesses novos arranjos familiares, porque assimilam a figura do pai e da mãe afim como novas
figuras parentais, ao lado de seus pais biológicos. Não reconhecer esses vínculos, construídos
sobre as bases de uma relação socioafetiva, pode igualmente representar ausência de tutela
a esses menores em formação.
6.1. O exercício da multiparentalidade e seus efeitos
Importante ressaltarmos como
premissa que a perspectiva de
multiparentalidade aqui proposta tem como escopo a tutela plena dos interesses do menor,
como corolário do Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente e da Doutrina
da Proteção Integral, para agregar em torno do menor todas as pessoas que exerceram papéis
da paternidade e da maternidade em sua vida e que, por isso, tornaram-se responsáveis por
prover tanto assistência material quanto referenciais morais, imprescindíveis para seu
crescimento sadio e estruturação de sua personalidade de maneira autônoma e responsável.
Como demonstrado, a realidade sinaliza que, em muitos casos, no âmbito
das famílias recompostas, há uma interferência efetiva do pai e da mãe afim no exercício da
autoridade parental atribuída aos pais biológicos. Uma vez que padrasto e madrasta passam
a cumprir papéis inerentes à paternidade e à maternidade na vida de seus enteados,
vinculando-se afetivamente a essas crianças e adolescentes e se tornando importantes
referenciais para sua formação, o direito precisa assumir a regulação dessa relação com o
objetivo de tutelar os interesses desses menores, que ocupam uma posição privilegiada em
nosso sistema jurídico. Ignorar o fenômeno da multiparentalidade pode representar agressão
a direitos fundamentais da criança e do adolescente, por lhes suprimir convivência familiar,
assistência moral e material em relação àqueles que se responsabilizaram faticamente pela
prática de condutas típicas da tríade criar, educar e assistir. E não fazê-lo apenas pelo
aprisionamento a um paradigma codificado anterior, não é razão suficiente para ilidir a
diretriz constitucional de ampla tutela dos menores.
A primeira alteração a ser realizada, com o fito de viabilizar o
reconhecimento e o exercício da múltipla vinculação parental, principalmente em relação às
famílias recompostas, deve ser feita no artigo 1636 do CC, que preceitua que os pais que
estabelecerem família reconstituída terão a prerrogativa de exercer a autoridade parental sem
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27
interferência do pai ou mãe afim. Como já demonstrado, tal dispositivo de lei não encontra
ressonância na realidade das famílias recompostas, nas quais, ao contrário, a interferência
vedada pela lei ocorre diariamente como reflexo da convivência familiar e, antes ainda, como
condição de vida em comum de todas as pessoas que compõem um novo arranjo familiar.25
Logo, constatamos a necessidade de reforma do art. 1636 CC, por ser ele
mera ficção jurídica, cujo conteúdo pode, quando menos, “depor contra” os interesses do
menor, a partir do momento que, potencialmente, pode restringir a amplitude de sua própria
tutela. Faz-se urgente, portanto, a adequação da norma à realidade, efetiva proteção ao
menor.
Ao estabelecermos que a paternidade é fixada a partir do exercício fático
da autoridade parental, não podemos perder de vista que inúmeros problemas podem ser
criados a partir de então, como, por exemplo, a divergência entre os genitores acerca de
aspectos ligados ao conteúdo do poder familiar. Não vislumbramos que as decisões dos pais
biológicos tenham alguma preferência em relação aos pais socioafetivos, vez que inexiste
hierarquia entre os tipos de parentesco. Em situações de divergência, portanto, deve-se
invocar o art. 1.631, parágrafo único, CC, que prevê o suprimento judicial como solução
para as divergências entre pais. Estariam também os genitores afins socioafetivos, numa
relação de multiparentalidade, adstritos a todas as sanções atreladas ao exercício do poder
familiar, inclusive suspensão e perda do mesmo, se ocorrerem os atos previstos nos arts.
1.637 e 1.638, CC/02.
Alguns ordenamentos jurídicos estrangeiros se ocupam mais detidamente
desse fenômeno. Exemplo disso o Direito alemão, que passou a tutelar as famílias
recompostas, tendo em conta o grande percentual de famílias alemãs com essa composição26,
para compatibilizar o exercício do poder familiar por múltiplas figuras parentais. Segundo
estudo de Jussara Suzi A. B. Nasser Ferreira e KonstanzeRörhmann27, a legislação alemã
25
Sensível a tal situação, o Projeto de Lei n. 2285/07, conhecido por Estatuto das Famílias, prevê:
Art. 91. Constituindo os pais nova entidade familiar, os direitos e deveres decorrentes da autoridade parental
são exercidos com a colaboração do novo cônjuge ou convivente ou parceiro.
Parágrafo único. Cada cônjuge, convivente ou parceiro deve colaborar de modo apropriado no exercício da
autoridade parental, em relação aos filhos do outro, e representá-lo, quando as circunstâncias o exigirem.
26
“O Instituto Federal de Estatística (StatischeBunesantWieobaden) informa que 15% das famílias alemãs com
crianças são famílias mosaicos”. (FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; Rörhmann, Konstanze. As
Famílias pluriparentais ou Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de
Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006, p. 519.)
27
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou
Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB
Thompson, 2006, p. 507-529.
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28
traz inovadores mecanismos com a justificativa de que são necessários para que essas novas
famílias possam se desenvolver de maneira plena e intacta28, sendo eles a possibilidade de
adoção do nome da nova família e a atribuição do chamado “Pequeno Pátrio Poder” aos
padrastos e madrastas.
O direito germânico reestruturou o chamado pátrio poder, que até então
era exclusivo dos pais consanguíneos, assim como em nossa legislação, para estendê-lo a
terceiros como o pai e a mãe afim, possibilitando a titularidade e exercício compartilhado
dessa situação jurídica.29 Conforme artigo 1687b do BGB, o “Pequeno Pátrio Poder”,
denominação usada pela doutrina especializada, revela-se da seguinte maneira:
§ 1687b - Poderes de guarda do cônjuge:
O cônjuge de um dos pais que tem a guarda e que não é um dos pais da
criança, tem o direito da codecisão nos assuntos diários da criança, o qual
tem que exercer em consentimento com o pai(mãe) que tem a guarda
parental.
Em casos urgentes, o esposo tem o direito de agir como for necessário para
o bem da criança; ele tem que informar imediatamente o pai que tem o
pátrio poder.
O juiz familiar pode limitar ou excluir os direitos segundo o parágrafo
primeiro, quando for necessário para o bem da criança.
Os poderes-direitos segundo o parágrafo primeiro não existem quando os
cônjuges vivem temporariamente separados.30
Nosso entendimento é que os efeitos da múltipla vinculação parental
operam da mesma forma e extensão como ocorre nas tradicionais famílias biparentais. Por
força do princípio da isonomia, não há hierarquia entre os tipos de parentesco. Portanto, com
o estabelecimento do múltiplo vínculo parental, serão emanados todos os efeitos de filiação
28
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou
Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB
Thompson, 2006, p. 519.
29
“O direito alemão, assim procedendo, redefiniu o pátrio poder, criando a possibilidade do ‘exercício de um
poder compartilhado’ e, para tanto, atendendo não só ao interesse da criança, mas, a um só tempo, guarnecendo
a família mosaico de instrumento indispensável à administração de direitos e deveres, nesse contexto, das
condições de vida em comum, no novo ambiente familiar”. (FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser;
Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V
Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, 2006, p. 522).
30
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou
Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB
Thompson, 2006, p. 519.
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29
e de parentesco com a família estendida, pois, independente da forma como esse vínculo é
estabelecido, sua eficácia é exatamente igual, principalmente porque irradia do princípio da
solidariedade, de modo que instrumentaliza a impossibilidade de diferença entre suas
consequências.31
Esse entendimento também é exposto na doutrina de Belmiro Pedro Welter
que, ao elaborar a Teoria Tridimensional do Direito de Família, também preconiza a
possibilidade de cumulação de paternidades e maternidades em relação a um mesmo filho,
fundamentando seu entendimento na complexa ontologia do ser humano.Nesse sentido, o
pensamento do autor32 se alinha com o nosso, pois também defende a plena eficácia da
múltipla parentalidade, ao contrário do que se convencionou na doutrina até o presente
momento.
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais manifestou-se sobre
pedido de alimentos proposto pela enteada contra a madrasta:
DIREITO DE FAMÍLIA - ALIMENTOS - PEDIDO FEITO PELA
ENTEADA - ART. 1.595 DO CÓDIGO CIVIL - EXISTÊNCIA DE
PARENTESCO - LEGITIMIDADE PASSIVA. O Código Civil atual
considera que as pessoas ligadas por vínculo de afinidade são parentes
entre si, o que se evidencia pelo uso da expressão "parentesco por
afinidade", no parágrafo 1º. de seu artigo 1.595. O artigo 1.694, que trata
da obrigação alimentar em virtude do parentesco, não distingue entre
parentes consanguíneos e afins.33
O acórdão teve como fundamento para fixação dos alimentos o fato de a
madrasta ser parente por afinidade da autora, sua enteada. Para a fixação dos alimentos, o
Código Civil utiliza-se do termo parente (no art. 1.694), sem fazer distinção ou restrição
quanto às espécies deste; sendo a afinidade um tipo de parentesco, daria ela, também,
legitimidade para o pedido de alimentos. Essa fundamentação deve ser vista com reservas,
31
Entendemos que a multiparentalidade resolve, também, o tormentoso conflito hoje existente em inúmeros
casos em que colidem a verdade biológica com a socioafetiva e/ou registral. A partir do momento que se
entende pela insuficiência do sistema biparental nas famílias contemporâneas – haja vista que a realidade é
mais rica de possibilidades do que o Direito – assumir a multiparentalidade como regra acaba por resolver o
problema do conflito mencionado, na medida em que a pessoa poderá cumular vínculos parentais criados
durante sua vida, de modo que seu registro de nascimento possa efetivamente refletir sua história familiar
consanguínea e construída a partir das interações com os outros.
32 Tenho sustentado tese justamente oposta, no sentido de que todos os efeitos jurídicos (alimentos, herança, poder/dever familiar, parentesco, guarda compartilhada,
nome, visitas, paternidade/maternidade genética e afetiva e demais direitos existenciais) das duas paternidades devem ser outorgadas ao ser humano, na medida em que a
condição humana é tridimensional, genética, afetiva e ontológica (WELTER, Belmiro Pedro. Teoria Tridimensional do Direito de Família: reconhecimento de todos os
direitos das filiações genética e socioafetiva. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, fev-mar/2009, ano X, nº 08, Porto Alegre: Editora Magister; Belo
Horizonte: IBDFAM, 2009, p.113).
33
TJMG, AC n. 1.0024.04.533394-5/001, 4ª CC, Rel. Des. Moreira Diniz, J. 20/10/2005, DJMG 25/10/2005.
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30
pois em várias situações a lei limitou os efeitos irradiados ao parentesco sem abranger a
afinidade, como foi o caso da herança e poderíamos pensar, também, nos alimentos.
Além disso, acreditamos que a interpretação sistemática das normas que
regulamentam o dever alimentar conduz ao entendimento de que essa obrigação, fundada na
solidariedade familiar, não se estende aos parentes por afinidade. Ao analisarmos o conteúdo
dos artigos 1696 e 1697, percebemos que o legislador estabelece uma ordem de preleção
entre parentes que devem ser chamados ao dever de alimentar. No artigo 1696, está disposto
que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, além de recair nos
demais ascendentes, segundo o grau de parentesco. Vemos, portanto, que quando o
legislador menciona pais e filhos, e depois estende o direito e o dever a demais ascendentes,
segundo o grau, fica claro que a lei está se referindo ao parentesco consanguíneo, civil ou
socioafetivo, uma vez que se trata de relação parental, entre pai e filho, e demais parentes na
linha reta, excluídos, portanto, os parentes afins. O mesmo raciocínio se aplica na exegese
do artigo 1697 que afirma que na falta dos ascendentes, dispostos no artigo 1696 - ou seja,
parentes biológicos, civis ou socioafetivos - a obrigação alimentar será transferida aos
descendentes - que guardam, obviamente, o mesmo tipo de parentesco que os ascendentes
mencionados no artigo 1696. Na ausência de parentes na linha reta, a obrigação deve ser
suprida por parentes colaterais: irmãos unilaterais e bilaterais, excluídos, dessa forma, os
parentes afins, que não constam de tal ordem hierárquica. Caso fosse a intenção do legislador
estender esse dever/direito aos parentes afins, eles teriam sido incluídos nessa ordem de
preleção. Sendo assim, não é dado ao intérprete legislar, quando a própria lei não o fez.
Não obstante, estamos de acordo com o resultado final da decisão, qual
seja, a possibilidade de enteada pleitear alimentos em relação à madrasta. Discordamos do
fundamento, que não deve ser o parentesco por afinidade, mas sim, os vínculos de
socioafetividade, pois são estes que justificam a existência de parentesco entre as partes apto
a gerar o dever de alimentar.
Portanto, diante do exposto, entendemos que não haverá óbices para o
recebimento de heranças, para a divisão do pagamento de alimentos e tampouco obstáculos
para a cumulação de nomes de família, tópico este que será desenvolvido a seguir, ao
analisarmos as repercussões da nova Lei 11.924/09.
7. A questão registral da multiparentalidade e as repercussões da Lei 11.924/09
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Como analisado, a multiparentalidade inaugura um novo paradigma do
direito parental, no ordenamento brasileiro. Para que ela se operacionalize, contudo, é
necessário que seja exteriorizada através de modificações no registro de nascimento.
Contudo, o registro não pode ser um óbice para sua efetivação, considerando que sua função
é refletir a verdade real; e, se a verdade real concretiza-se no fato de várias pessoas exercerem
funções parentais na vida dos filhos, o registro deve refletir esta realidade.
Problema semelhante pode ser constatado com a adoção por casais
homoafetivos, de modo que muitos apontam como obstáculo à efetivação a
operacionalização registral. Entretanto, julgados que têm deferido a adoção por pares
homossexuais têm encontrado alternativas para superar esse obstáculo meramente formal,
qual seja, ao invés de fazer referências ao pai ou à mãe, ter como ponto central o filho, ou
seja, “filho de”, o que dispensa a diferenciação dos genitores por questões de gênero.
O mesmo deve ocorrer com a nova situação da multiparentalidade: o
registro deve se adaptar a esta nova situação, constando espaço para mais de um pai ou mais
de uma mãe, para que, a partir da efetivação do registro, gere todos os efeitos advindos da
filiação. A lei n. 11.924/09 corroborou esses novos paradigmas, ao determinar uma alteração
no art. 57 da Lei 6.015/73, com o seguinte teor:
Art. 57. § 8o O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na
forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que,
no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto
ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem
prejuízo de seus apelidos de família.
A lei autorizou, desta feita, a cumulação de patronímicos de modo que o
nome – por definição, projeção social da personalidade –, reflita exatamente o estado
familiar da criança ou do adolescente, ou seja, se várias pessoas desempenharem funções
parentais em sua vida, que o nome possa exteriorizar seus mais diversos estados de filiação.
Conforme consta na justificativa do projeto de lei, de autoria do então deputado Clodovil,
“pessoas que, estando em seu segundo ou terceiro casamento, criam os filhos de sua
companheira ou companheiro como se seus próprios filhos fossem", ou seja, exercem a
autoridade parental. Trata a lei, portanto, de que o nome corresponda à sua realidade familiar.
O Direito alemão possui legislação semelhante. A Lei de Melhoramento
dos Direitos da criança, promulgada em 2002, alterou o código civil alemão para possibilitar
à criança que convive em família reconstituída a concessão, anteposição ou adição do nome
da família em seu próprio. A legislação germânica se mostrou atenta à tutela do melhor
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32
interesse da criança e do adolescente, “ao oportunizar a reconstrução familiar de maneira a
manter a família intacta, tanto quanto possível”.34
No tripé nome, tratamento e fama, requisitos para a caracterização da posse
de estado de filho, a nova lei brasileira atua exatamente sobre a “fama”, pressupondo que o
tratamento parental existe no âmbito de uma família recomposta. A possibilidade da
mudança do nome é a maior prova disso, pois a lei autorização a alteração no elemento
identificador do filho na sociedade, compondo, assim, a tríade da posse de estado, que tem
no tratamento seu grande sustentáculo.
Mesmo antes do advento da lei, a questão foi apreciada pelo Superior
Tribunal de Justiça, que decidiu pela possibilidade do acréscimo do sobrenome do
padrasto35, embora não se trate de hipótese de multiparentalidade:
As razões que orientaram tal decisão estão baseadas em uma das funções
do nome: refletir a posição jurídica familiar perante a sociedade. O acórdão trata de um caso
de abandono pelo pai biológico, de modo que foi o marido da mãe quem criou a solicitante
e “se apresenta como seu pai perante a sociedade”. Por isso, foi autorizado acréscimo do
patronímico pois “a homenagem que a autora quer prestar à pessoa que se desvelou por ela
e ocupou na sua vida a figura do pai ausente, e a conveniência social de se apresentar com o
mesmo nome usado pela mãe e pelo marido dela, são a meu juízo razões suficientes para que
se permita a alteração requerida”.
Portanto, se o nome tem a finalidade ora exposta, a lei apenas corroborou
esta nova concepção da multiparentalidade, vez que o registro também deve refletir a
verdade real.
8. Análise de caso decidido pelo TJRO
Festejada decisão de primeira instância foi proferida recentemente, em
novembro de 2011, pela Juíza Deisy Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz, na 01ª Vara Cível
da Comarca de Ariquemes/RO, nos autos da ação de investigação de paternidade nº
34
FERREIRA, Jussara Suzi Assis Borges Nasser; Rörhmann, Konstanze. As Famílias pluriparentais ou
Mosaicos. In: Família e Dignidade. Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB
Thompson, 2006, p. 521.
35
NOME. Alteração. Patronímico do padrasto. O nome pode ser alterado mesmo depois de esgotado o prazo
de um ano, contado da maioridade, desde que presente razão suficiente para excepcionar a regra temporal
prevista no art. 56 da Lei 6.015/73, assim reconhecido em sentença (art. 57). Caracteriza essa hipótese o fato
de a pessoa ter sido criada desde tenra idade pelo padrasto, querendo por isso se apresentar com o mesmo nome
usado pela mãe e pelo marido dela. Recurso não conhecido. (STJ, Resp 220059 / SP, 2ª Seção, Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar, J. 22/11/2000, DJU 12/2/2001).
Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 4 – Abr / Jun 2015
33
0012530-95.2010.8.22.0002. Talvez, seja possível afirmar se tratar da primeira sentença que
reconheceu e declarou a dupla paternidade propriamente dita de uma menina, fazendo
constar em seu assento registral os nomes do pai biológico e afetivo da criança, sem prejuízo
da manutenção do registro materno.
A ação de investigação de paternidade cumulada com ação anulatória de
registro foi ajuizada pela criança, representada por sua mãe, em desfavor do pai socioafetivo
e registral e do pai biológico. A mãe da criança viveu em união estável com o pai biológico
no período de 1996 a 2000, tendo a concepção da criança ocorrido no ano de 1999.
Segundo a genitora, ela se separou de seu companheiro sem saber que já
estava grávida e passou a conviver com outro companheiro que, ciente da situação,
reconheceu juridicamente a paternidade da menina, ressaltando que o fez sem erro, dolo ou
coação:
Todavia, diante do estudo social e psicológico realizado nos autos apurouse que não houve erro, dolo, coação por parte do requerido M.S.B. ao
reconhecer a paternidade da autora, mormente porque tinha ciência e era
sabedor que não se tratava de sua filha biológica, mas de outrem. Cuida-se
da chamada adoção a brasileira em que o reconhecimento direito no
próprio cartório, sem atender a legislação correlata da adoção propriamente
dita.E assim o fez na hipótese dos autos. Nascendo a autora, o requerido
M.S.B. registrou-a como se sua filha fosse e com ela estabeleceu forte
vínculo afetivo, e mesmo sabendo da inexistência de laços consanguíneos
em comum, se considera como pai dela. O estudo social e psicológico
revelou que a autora nutre fortes laços de amor pelo pai registral, bem
assim como sua família, reconhecendo no requerido M. e na avó paterna
D. sua família de fato. (sic)36
A união estável estabelecida com o pai socioafetivo e registral perdurou
apenas até os quatro meses de vida da criança, mas o pai registral nunca se afastou da menina,
nem mesmo após a separação de sua genitora, uma vez que, durante alguns períodos, foi o
guardião da menor. O pai biológico só foi conhecido pela criança aos 11 anos de idade, por
ocasião da realização do exame de DNA, o que deixou ambos felizes por se conhecerem,
possibilitando uma convivência entre os dois a partir de então. O pai biológico declarou em
audiência o desejo de reconhecer juridicamente a paternidade da menina.
A ação foi ajuizada com o objetivo de anular o registro feito pelo pai
registral, para que o mesmo fosse substituído por novo registro, donde constasse o nome do
36
BRASIL. 01ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes/RO. Ação de investigação de paternidade c/c anulação
de registro. Autos nº 0012530-95.2010.8.22.0002. A. A. B. versus E.S.S e M.S.B. Juíza de Direito Deisy
Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz.
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pai biológico e não foi contestada por nenhum dos dois réus. Entretanto, a determinação da
multiparentalidade revelou hipótese mais apta a efetivamente tutelar os melhores interesses
dessa criança. Na fundamentação de sua sentença, a juíza alertou para o fato de que nos autos
havia prova técnica, constituída por exame de DNA, que evidenciava o laço consanguíneo
com o pai biológico, mas também havia provas irrefutáveis do estrito laço de afetividade que
mantinha com o pai registral. Elementos probatórios que também foram especialmente
valorados pelo Ministério Público em seu parecer favorável a dupla paternidade.
Segundo a juíza, as provas evidenciaram que o desejo de anular o vínculo
registral com o pai socioafetivo partia exclusivamente da genitora da criança, situação que
não refletia o interesse dos principais envolvidos - pai e filha - e nem mesmo primava pela
preservação e promoção do melhor interesse da criança e do adolescente. O pai registral não
demonstrou em momento algum o desejo de negar a paternidade. Ao contrário, declarou
repetidas vezes que a amava muito e que a considerava como filha:
No tocante a questão jurídica e de fundo desta demanda, a discussão da
existência de dois pais no assento de nascimento da criança tem tomado
corpo nos últimos anos. A relevância da relação socioafetiva, que em certos
casos, se sobrepõe à biológica, tem autorizado o reconhecimento da
existência de ambos os vínculos. Em caso como o presente, em que o pai
registral resolveu reconhecer a paternidade da criança, mesmo sabedor da
inexistência do vínculo sanguíneo, e durante longos anos de sua vida lhe
prestou toda assistência material e afetiva, não abandonando-a, mesmo
após a separação da genitora, merece respeito e reconhecimento pelo
Estado.37
“Diante da singularidade da causa, é mister considerar a manifestação
de vontade da autora no sentido de que possui dois pais, aliado ao fato de que o requerido
M. não deseja negar a paternidade afetiva e o requerido E. pretende reconhecer a
paternidade biológica” , com essas palavras a Douta Juíza da 1ª Vara Cível de Ariquemes
acolheu o parecer ministerial e a proposta de dupla paternidade, calcada fundamentalmente
na autonomia privada das partes envolvidas e no princípio do melhor interesse da criança e
do adolescente.
Mesmo porque, relata o parecer do MP, que a menor, “7) ao ser ouvida
pela assistente social, a infante afirmou que, apesar de ter gostado do requerido Edvaldo,
considera Mauro como pai e a Sra. Dalira, mãe de Mauro, como avó e que hoje considera
37
BRASIL. 01ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes/RO. Ação de investigação de paternidade c/c anulação
de registro. Autos nº 0012530-95.2010.8.22.0002. A. A. B. versus E.S.S e M.S.B. Juíza de Direito Deisy
Cristhian Lorena de Oliveira Ferraz.
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35
que tem “dois pais”. A própria criança revelou com essa fala simplória inerente à infância a
realidade que o Direito hoje deverá tutelar, uma vez que o sistema posto de biparentalidade
(uma mãe e um pai ou, nas famílias homoafetivas, duas mães ou dois pais) pode se revelar
excludente do exercício de direitos fundamentais, principalmente pela população infantojuvenil. A promotora Priscila Matzenbacher Tibes Machado considerou, em seu parecer, as
conclusões do estudo psicossocial, que efetivamente considerou a realidade vivenciada pela
menor:
Como conclusão, a psicóloga considerou que, apesar da infante concordar
com a modificação do nome do pai na certidão de nascimento, há laços
sólidos de afetividade entre a ela e o requerido Mauro e sua respectiva
família, pois o reconhece como figura paterna e não pretende romper os
vínculos familiares com estes, ressaltando, ao final, que Alice almeja
manter duas figuras paternas em sua vida, pois considera ambos
importantes.38
Ante essa possibilidade de ter em seu registro de nascimento a sua
realidade familiar – um pai biológico (que até pode vir a se tornar, também, socioafetivo) e
um pai socioafetivo (que teve como referência paterna durantes os 11 anos de sua vida e
ambos pretendem cultivar essa relação paternal) – não há motivos para o Direito restringir
as referências familiares dessa criança, agindo contra seus reais interesses, desprotegendoa. Essa linha de raciocínio acaba por atentar flagrantemente contra os direitos fundamentais
da criança, sem falar no princípio da proteção integral e do melhor interesse do menor. Por
isso, o parecer ministerial ressalta a importância da efetiva tutela da filha: “Ainda tímido,
embora comum na atual sociedade multi famílias, é o reconhecimento de ambas as situações
em favor do filho, isto é, quando o indivíduo possui pai biológico e pai socioafetivo tendo a
ambos como figura parental e igualmente presentes em seu desenvolvimento”.
Não é possível, portanto, ignorar a história dessa paternidade socioafetiva
construída até então, durante os 11 anos de vida dessa criança. Da mesma forma que a
responsabilidade dos pais biológicos nasceu a partir de um ato sexual que propiciou a
ocorrência da concepção, a responsabilidade do pai afetivo foi sendo paulatinamente
A promotora transcreve parte do relatório psicossocial que bem ilustra a hipótese fática envolvendo a criança
e suas referências familiares: “a infante Alice contou que considera o senhor Mauro como seu Pai, e a senhora
Dalina como sua avó e que conheceu o senhor Edvaldo no dia do exame de DNA e gostou dele, e hoje considera
que tem “dois pais”. Quanto à presente ação, a criança ALICE informou que o senhor MAURO conversou
muito com ela sobre o motivo de tê-la registrado como pai, que lhe amava, e que ele sabia que não era o pai
biológico. ALICE demonstra compreender a complexidade da situação e verbaliza que a família de MAURO
é a sua própria família, mas que com a aproximação do Senhor EDVALDO também terá outra familiar para
lhe acrescentar.”
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construída a partir do cuidado, do desvelo, do exercício fático da paternidade. E eis que esse
fato da vida se tornou fato jurídico e não pode, simplesmente, ser apagado da vida dessa
criança. Afinal, o Direito não tem a força de atuar na psique infantil... muito pelo contrário,
a função do Direito aqui é acolher essa realidade biológica e socioafetiva, promovendo-a de
forma inclusiva e complementar – e não excludente.
Pela análise do caso, não há dúvidas de que o Poder Judiciário garantiu a
essa criança, por meio das suas referências familiares, a plena potencialidade de um
crescimento saudável, pois agiu de forma a preservar seus vínculos, possibilitando a criação
de liame socioafetivo também com o pai biológico e protegendo a relação construída com o
pai social. Esse é um exemplo a ser louvado, pois além de ter preservado a possibilidade
dessa criança exercer todos os direitos fundamentais, lhe garantiu a possibilidade de uma
infância minimizando perdas que o mundo adulto proporciona, mesmo sem querer.
9. Notas conclusivas
A contemporaneidade impõe a quebra e a construção de novos paradigmas.
A liberdade de (des)constituição familiar é um deles, que gerou, por via reflexa, o fenômeno
hoje conhecido por famílias recompostas, as quais têm suscitado inúmeras controvérsias que
reclamam tutela jurídica adequada, principalmente no que se refere à criação de um espaço
propício de intimidade familiar, no qual a socioafetividade pode surgir como fator propulsor
para a constituição de vínculos parentais.
O mais novo paradigma a ser construído é o da multiparentalidade, tendo
em vista que o Direito precisa jurisdicizar essa realidade social, na qual pais e padrastos
exercem funções complementares na vida de seus filhos, atreladas ao exercício da autoridade
parental. É este exercício que entendemos ser gerador do parentesco socioafetivo,
exteriorizado pela posse de estado de filho, que tem no elemento “tratamento” seu pilar
central.
Diante desse panorama, não há obstáculos para que o Direito acolha a
multiparentalidade como fato jurídico, por ser, muitas vezes, a alternativa que melhor tutela
a criança inserida em famílias reconstituídas, pois esta tem nos seus dois pais ou duas mães,
verdadeiras referências parentais que, uma vez suprimidas, podem lhe gerar danos
desnecessários, tão-somente em virtude do apego a concepções oitocentistas que não mais
atendem à realidade atual.
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Nesse sentido, a Lei 11.924/09 veio compor a trilogia da posse de estado
de filho, facultando o acréscimo do nome do padrasto ou da madrasta, juntamente com os
patronímicos da família biológica, demonstrando a clara possibilidade de se cumular o
referencial parental, de modo que o nome reflita a realidade familiar completa.
Recebido em 18/05/2015
1º parecer em 21/05/2015
2º parecer em 24/05/2015
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A DEFESA DA PREFERÊNCIA AS PESSOAS COM TRANSTORNO DO
ESPECTRO DE AUTISMO ANTE A FALTA DE PROCEDIMENTO
The defense of preference people with autismo spectrum disorder before the
procedure for missing
Antonio Baptista Gonçalves
Advogado, Membro da Associação Brasileira dos Constitucionalistas, Pós-Doutor em
Ciência da Religião pela PUC/SP, Pós-Doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de La Matanza.
Doutor e Mestre em Filosofia do Direito pela PUC/SP, Especialista em Direitos Fundamentais pela
Universidade de Coimbra, Especialista em International Criminal Law: Terrorism’s New Wars and ICL’s
Responses pelo IstitutoSuperiore Internazionale diScienzeCriminali, Especialista em Direito Penal
Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra, Pós-Graduado em Direito Penal – Teoria dos delitos
pela Universidade de Salamanca, Pós-Graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas
– FGV, Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Resumo: A Constituição Federal de 1988 defende e protege os interesses das pessoas, bem
como assegura a efetivação de um grupo de direitos tidos como fundamentais. Exemplo
disso é a defesa da dignidade da pessoa humana. Destarte que as pessoas com deficiência,
dentre elas, as pessoas com Transtorno do Espectro de Autismo têm garantido seus direitos
como qualquer outro cidadão brasileiro. Além desses direitos lhes foi assegurados por um
conjunto normativo facilidades importantes em decorrência de suas limitações sejam físicas,
motoras ou psicológicas, falamos do atendimento prioritário. No entanto, o que não fez o
legislador foi criar o devido procedimento para a plena efetivação desses direitos o que no
mais das vezes dificulta a sua aplicação prática por parte do aplicador do direito.
Palavras-Chave: Autismo; Procedimento; Direitos fundamentais.
Abstract: The 1988 Federal Constitution defends and protects the interests of the people
and ensures the effectiveness of a group taken as fundamental rights. An example is the
defense of human dignity. Thus people with disabilities, among them people with Autism
Spectrum Disorder have guaranteed their rights as any other Brazilian citizen. In addition to
these rights they were guaranteed by a set of rules important facilities due to its limitations
are physical, motor or psychological, we talk about the priority service. However, what did
the legislator was to create the proper procedure for the full realization of these rights which
most often hinders its practical application by the right applicator.
Keyword: Autism; procedure; Fundamental rights.
Sumário: Introdução – 1. Transtorno do espectro de autismo – 2. Lei n° 12.764/12 – A Lei
Berenice Piana – 3. A Constituição Federal de 1988 e as pessoas com deficiência – 4. A
facilidade de acesso e a falta de procedimento – 5. Conclusão.
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Introdução
Os legisladores nacionais têm se preocupado nos últimos anos com a
questão da inclusão social no que tange as pessoas com Transtorno do Espectro de Autismo.
Assim foi promulgada a Lei n° 12.764, em 28 de dezembro de 2012, conhecida como a Lei
Berenice Piana que possui importantes avanços protetivos sobre o tema, como veremos
adiante.
Na mesma esteira temos a recente legislação promulgada no Rio de Janeiro
sobre o tema, falamos da Lei estadual n° 6.807 de 23 de junho de 2014, que complementa
outros regramentos já existentes às pessoas com deficiência e, mais especificamente as
pessoas com Transtorno do Espectro de Autismo. No entanto, como parece método reiterado
do legislador pátrio, possui pouca efetividade a criação de uma norma por melhor que esta
seja se não houver o devido procedimento, isto é, a operacionalidade da norma, para que esta
possa ser minimamente aplicável.
Fato é que transcorrido mais de um ano ainda se espera pela
regulamentação da Lei Berenice Piana. De tal sorte que, como ocorre em todas as vezes em
que o legislador falha na questão procedimental, agora cabe à doutrina e à jurisprudência
sedimentarem o caminho para viabilizar a aplicabilidade prática do efetivo direito as pessoas
com Transtorno do Espectro de Autismo.
E, ainda sem o devido procedimento normativo, os demais legisladores,
em caráter estadual ou municipal, edificam normas complementares às já existentes sem que,
para isso, se observe, minimamente o procedimento ou a viabilidade prática da norma. Caso
típico se refere à lei carioca sobre a facilidade de acesso e ao direito de prioridade decorrente
da deficiência. Isso porque, se em um primeiro momento se harmoniza com as Leis n°
12.764/12, 10.048/00 e 7.853/89, em contrapartida, o que se nota é a falta de procedimento,
isto é mecanismos para a aplicabilidade prática da norma.
Para tanto, primeiramente precisamos compreender melhor o que vem a
ser o Transtorno do Espectro de Autismo, posteriormente, quais os objetivos pretendidos
pelas leis citadas, para, por fim, analisar o porquê a ausência de procedimento macula a
efetivação do direito das pessoas com esse Transtorno.
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1. O Transtorno do Espectro de Autismo
A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
relacionados à Saúde (CID-10) inclui o Autismo na ordem dos Transtornos Globais do
Desenvolvimento (F84),1 dispondo especificamente duas categorias.2
Autismo infantil: Transtorno global do desenvolvimento caracterizado por
a) um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos, e b)
apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três
domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e
repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras
manifestações inespecíficas, por exemplo, fobias, perturbações de sono ou da alimentação,
crises de birra ou agressividade (auto-agressividade).
Autismo atípico: Transtorno global do desenvolvimento, ocorrendo após a
idade de três anos ou que não responde a todos os três grupos de critérios diagnósticos do
autismo infantil. Esta categoria deve ser utilizada para classificar um desenvolvimento
anormal ou alterado, aparecendo após a idade de três anos, e não apresentando manifestações
patológicas suficientes em um ou dois dos três domínios psicopatológicos (interações sociais
recíprocas, comunicação, comportamentos limitados, estereotipados ou repetitivos)
implicados no autismo infantil; existem sempre anomalias características em um ou em
vários destes domínios. O autismo atípico ocorre habitualmente em crianças que apresentam
um retardo mental profundo ou um transtorno específico grave do desenvolvimento de
linguagem do tipo receptivo.
Em Cartilha desenvolvida pelo Estado de São Paulo, mais especificamente
pela Defensoria Pública do Estado, define o autismo como:
O Autismo é um Transtorno Global do Desenvolvimento (também
chamado de Transtorno do Espectro Autista), caracterizado por alterações significativas na
comunicação, na interação social e no comportamento da criança.
1
Fonte: http://www.datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm. Acesso em 9 de agosto de 2014.
Aqui nos ateremos apenas a estas duas, no entanto a CID-10 também relaciona Síndrome de Rett (F84.2),
Outro Transtorno Desintegrativo da Infância (F84.3), Transtorno com Hipercinesia associada a Retardo Mental
e a Movimentos Estereotipados (F84.4), Síndrome de Asperger (F84.5), Outros Transtornos Globais do
Desenvolvimento (F84.8) e Transtornos Globais Não Especificados do Desenvolvimento (F84.9). Esses
transtornos foram classificados conjuntamente porque todos causam, de algum modo, distúrbios no
desenvolvimento, ou seja, o desenvolvimento ocorre de um jeito diferente do esperado para crianças da mesma
idade. Ademais, todos afetam, de várias maneiras e intensidades, a comunicação, a interação social e o
comportamento da pessoa.
2
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Essas alterações levam a importantes dificuldades adaptativas e aparecem
antes dos 03 anos de idade, podendo ser percebidas,3 em alguns casos, já nos primeiros meses
de vida. As causas ainda não estão claramente identificadas, porém já se sabe que o autismo
é mais comum em crianças do sexo masculino e independente da etnia, origem geográfica
ou situação socioeconômica.
Ainda sobre o tema contribui Gauderer:
Autismo é uma inadequacidade no desenvolvimento que se manifesta de
maneira grave, durante toda a vida. É incapacidade, e aparece tipicamente
nos três primeiros anos de vida. Acontece cerca de cinco entre cada dez
mil nascidos e é quatro vezes mais comum entre meninos do que meninas.
É uma enfermidade encontrada em todo o mundo e em famílias de toda
configuração racial, étnica e social. Não se conseguiu provar nenhuma
causa psicológica no meio ambiente dessas crianças que possa causar
autismo.4
O Center for DiseaseControlandPrevention contribui com dados
estatísticos.5
- About 1 in 68 children has been identified with autism spectrum disorder
(ASD) according to estimates from CDC's Autism and Developmental
Disabilities Monitoring (ADDM) Network.
- ASD is reported to occur in all racial, ethnic, and socioeconomic groups.
- ASD is almost 5 times more common among boys (1 in 42) than among
girls (1 in 189).
3
Center for Disease Control and Prevention: Signs and Symptoms - People with ASD often have problems
with social, emotional, and communication skills. They might repeat certain behaviors and might not want
change in their daily activities. Many people with ASD also have different ways of learning, paying attention,
or reacting to things. Signs of ASD begin during early childhood and typically last throughout a person’s life.
Children or adults with ASD might: not point at objects to show interest (for example, not point at an airplane
flying over); not look at objects when another person points at them; have trouble relating to others or not have
an interest in other people at all; avoid eye contact and want to be alone; have trouble understanding other
people’s feelings or talking about their own feelings; prefer not to be held or cuddled, or might cuddle only
when they want to; appear to be unaware when people talk to them, but respond to other sounds; be very
interested in people, but not know how to talk, play, or relate to them; repeat or echo words or phrases said to
them, or repeat words or phrases in place of normal language; have trouble expressing their needs using typical
words or motions; not play “pretend” games (for example, not pretend to “feed” a doll); repeat actions over
and over again; have trouble adapting when a routine changes; have unusual reactions to the way things smell,
taste, look, feel, or sound; lose skills they once had (for example, stop saying words they were using).Fonte:
http://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html. Acesso em 9 de agosto de 2014.
4
GAUDERER, E. C. Autismo. 3 ed. São Paulo: Atheneu, 1993, p. XI.
5
Fonte: http://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html. Acesso em 9 de agosto de 2014.
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- Studies in Asia, Europe, and North America have identified individuals
with ASD with an average prevalence of about 1%. A study in South Korea
reported a prevalence of 2.6%.
- About 1 in 6 children in the United States had a developmental disability
in 2006-2008, ranging from mild disabilities such as speech and language
impairments to serious developmental disabilities, such as intellectual
disabilities, cerebral palsy, and autism.
Ademais alerta para os desafios que envolvem o transtorno:
Autism spectrum disorder (ASD) is a developmental disability that can
cause significant social, communication and behavioral challenges. There
is often nothing about how people with ASD look that sets them apart from
other people, but people with ASD may communicate, interact, behave,
and learn in ways that are different from most other people. The learning,
thinking, and problem-solving abilities of people with ASD can range from
gifted to severely challenged. Some people with ASD need a lot of help in
their daily lives; others need less.
A diagnosis of ASD now includes several conditions that used to be
diagnosed separately: autistic disorder, pervasive developmental disorder
not otherwise specified (PDD-NOS), and Asperger syndrome.
Theseconditions are nowallcalledautismspectrumdisorder.6
Ainda que seja complexa a identificação da doença e, principalmente a
convivência com uma pessoa que possua o Transtorno do Espectro do Autismo é direito e
dever desta pessoa poder e querer levar uma vida normal, dentro dos limites que suas
próprias limitações impõem. De tal sorte que em consonância com a Constituição Federal
de 1988 e seus primados fundamentais, a Lei Berenice Piana7 estabeleceu que a pessoa com
6
Fonte: http://www.cdc.gov/ncbddd/autism/data.html. Acesso em 9 de agosto de 2014.
Aqui transcrevemos um trecho escrito por ela acerca de como identificou os sinais de autismo de seu filho:
Dayan é o caçula de 3 filhos. Apareceu depois de 8 anos e era muito esperado pelos outros 4 membros da
família.
Foi uma disputa só... um queria embalar, outro queria trocar fraldas, dar banho, e eu e meu marido chegamos
a trocar o berço de lugar várias vezes pois eu o colocava do meu lado da cama, e ele o colocava do lado dele.
Não houve nenhum "pega que eu não aguento", todos queriam pegá-lo sempre, afagá-lo, beijá-lo muito...
Parece que estávamos adivinhando o que viria pela frente. Dayan era gracioso, lindo, rosado, cheio de vida.
Desenvolveu-se bem e normalmente, até que percebemos que falava muito pouco para sua idade. Perto dos 2
anos ele deixou de falar de vez. Emudeceu completamente e nunca mais falou.
Também parou de sorrir, de chorar, de comer... ficou parado num cantinho e olhava para as mãos
insistentemente sem mais reações. Fomos ao pediatra que não encontrou nada errado com meu filho. Disse-me
que todas as suas reações eram normais.
Começou a via crucis de visitas à médicos e psicólogos, e a resposta era sempre a mesma: “Seu filho não tem
nada”.
Ele não voltava à vida, não era mais o meu menino. Meu marido foi à um sebo em Niterói e comprou alguns
livros de psiquiatria a meu pedido ,e comecei a estudar por conta própria.
7
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o Transtorno do Espectro do Autismo passa a ser considerado como pessoa com deficiência8,
para todos os efeitos legais9 e, com isso, estabelece direitos para elas. Então analisemos a
contribuição dessa lei em consonância com o já existente sistema erigido de proteção às
pessoas com deficiência.
2. Lei n° 12.764/12 – A Lei Berenice Piana
A Lei n° 12.764/1210 institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos
da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista e, logo no art. 1° e, seu §1° estabelece as
condições para que uma pessoa seja considerada deficiente em virtude de possuir o
Transtorno:
§1°. Para os efeitos desta Lei, é considerada pessoa com transtorno do
espectro autista aquela portadora de síndrome clínica caracterizada na
forma dos seguintes incisos I ou II:
I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da
interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação
verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade
social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível
de desenvolvimento;
II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e
atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais
estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva
aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses
restritos e fixos.
Logo percebi que meu filho era autista. Para mais informações sobre a importância de Berenice Piana para os
direitos dos Autistas leia a continuidade do artigo ao qual transcrevemos esse pequeno trecho:
http://www.revistaautismo.com.br/edicao-2/a-historia-de-uma-lei. Acesso em 9 de agosto de 2014.
8
Art. 1°, §2o.A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os
efeitos legais.
9
Não se trata da única lei sobre proteção dos portadores de deficiência e podemos citar dentre outras: Lei
7.853/89 (Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, garantindo o tratamento adequado em
estabelecimentos de saúde públicos e privados específicos para a sua patologia); Lei 8.742/93 (Lei Orgânica
da Assistência Social – LOAS); Lei 8.899/94 (Concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no
sistema de transporte coletivo interestadual); Lei 10.048/00 (Dá prioridade de atendimento às pessoas com
deficiência); Lei 10.098/00 (Estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade
das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida).
10
A Lei 12.764/2012 resultou de projeto (PLS 168/2011) de autoria da Comissão de Direitos Humanos e
Legislação Participativa (CDH), presidida pelo senador Paulo Paim (PT-RS). Esse PLS, que estabelece os
direitos fundamentais da pessoa autista e a equipara à pessoa com deficiência para todos os efeitos legais, cria
um cadastro único com a finalidade de produzir estatísticas nacionais sobre o assunto.
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E estabelece que todos têm direito a uma vida digna,11 à saúde e direito ao
acesso a educação (inclusive com punição para o diretor que se recusar a fazer a matricula
em virtude da deficiência),12 ao mercado de trabalho, dentre outros.13
No tocante ao acesso ao ensino temos a criação de leis estaduais
especificas sobre o tema a fim de garantir o acesso à educação por parte das pessoas com o
Transtorno do Espectro do Autismo, mas não adentraremos no tema por não ser nosso
escopo. Todavia, com os direitos equiparados aos deficientes poderemos analisar o que se
possibilita em termos práticos à facilitação do atendimento aos que possuem o Transtorno
de Espectro de Autismo em estabelecimentos privados.
3. A Constituição Federal de 1988 e as pessoas com deficiência
A Constituição Federal de 1988 é composta por um conjunto de princípios
e regras voltados para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito e a proteção de
um conjunto de direitos tidos como fundamentais aos seres humanos. Para tanto, estabelece
nos arts. 1° e 3° a função precípua do Estado Democrático de Direito:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a
cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do
trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político.
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o
desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
11
Art. 3o. São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:
I - a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer;
12
Art. 7o. O gestor escolar, ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do
espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 (três) a 20 (vinte) saláriosmínimos.
§1o. Em caso de reincidência, apurada por processo administrativo, assegurado o contraditório e a ampla defesa,
haverá a perda do cargo.
13
Art. 3°, IV - o acesso:
a) à educação e ao ensino profissionalizante;
b) à moradia, inclusive à residência protegida;
c) ao mercado de trabalho;
d) à previdência social e à assistência social.
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Ademais para vislumbrar a missão e a responsabilidade desse Estado
Democrático de Direito mister se faz a complementação do Preâmbulo da Carta Magna: (...)
um Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social.
De tal sorte que uma das missões do Estado Democrático de Direito é
proteger e salvaguardar os direitos tidos como fundamentais dos membros do Estado
Brasileiro. Assim, sobre o tema Ingo Wolfgang Sarlet:
Os direitos fundamentais integram, portanto, ao lado da definição da forma
de Estado, do sistema de governo e da organização do poder, a essência do
Estado constitucional, constituindo, neste sentido, não apenas parte da
Constituição formal, mas também elemento nuclear da Constituição
material. Para além disso, estava definitivamente consagrada a íntima
vinculação entre as ideias de Constituição, Estado de Direito e direitos
fundamentais.14
Então, cabe ao Estado Democrático de Direito Brasileiro garantir e efetivar
a sua população um conjunto de direitos tidos como fundamentais, e João Paulo Mendes
Neto destaca a importância do termo:
A adjetivação “fundamental” deve ser entendida como algo de grande
importância para existência humana, algo tão inerente ao homem que o
garante a condição de pessoa. Em associação, os direitos fundamentais
devem ser entendidos como direitos que possuem uma prevalência dos
valores e interesses por eles defendidos em relação a outros valores e
interesses que não se fundam em direitos de elementar importância.15
Portanto, a tarefa principal do Estado Democrático de Direito é assegurar
e fornecer os meios e elementos para garantir as aptidões as aspirações e anseios dos
indivíduos. E os fundamentos do Estado Democrático de Direito Brasileiro são calcados na
soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nas liberdades, na igualdade, nos
valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e do pluralismo.
Destarte podemos destacar ser função do Estado desenvolver os
mecanismos necessários para assegurar a harmonia social e as mesmas condições de
14
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto alegre: Livraria do Advogado, 1998,
p. 61/62.
15
MENDES NETO, João Paulo. Direitos Fundamentais: um pressuposto à soberania, democracia e o estado
democrático de direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional, vol. 80, jul. 2012.
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existência para todos os membros da sociedade. E, também é sua função corrigir eventuais
desvios quando os primados fundamentais não forem respeitados. Portanto, esse conjunto de
deveres do Estado compreende a defesa dos Direitos Fundamentais.
No tocante aos deficientes é dever do Estado brasileiro proteger as
desigualdades e minorá-las para que todos tenham direito a uma vida digna e que sua
dignidade seja preservada.16 É a chamada proteção da dignidade da pessoa humana. De tal
sorte que uma pessoa com deficiência não pode ser discriminada em virtude de suas
limitações e, após a Lei Berenice Piana as pessoas com o Transtorno do Espectro do
Autismo17 também possuem essa proteção constitucional.
A fim de permitir a inclusão das pessoas com deficiência em um convívio
social normal o legislador pátrio promulgou algumas medidas legislativas para garantir o
acesso e o atendimento aos deficientes. Destacamos a Constituição Federal em seu art. 227,
§1°, II18 e o art. 2°, d, da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993,19 dentre outros, visto que
poderíamos apontar outros dispositivos que garantem o acesso à educação, à saúde, ao
mercado de trabalho, contudo, escolhemos um aspecto específico para analisar, a saber, a
questão do atendimento prioritário ou preferencial.
16
É o que preconiza a Lei n° 7.583/89 em seu arts. 1° Art. 1º Ficam estabelecidas normas gerais que asseguram
o pleno exercício dos direitos individuais e sociais das pessoas portadoras de deficiências, e sua efetiva
integração social, nos termos desta Lei.
§1º. Na aplicação e interpretação desta Lei, serão considerados os valores básicos da igualdade de tratamento
e oportunidade, da justiça social, do respeito à dignidade da pessoa humana, do bem-estar, e outros, indicados
na Constituição ou justificados pelos princípios gerais de direito.
Art. 2º. Ao Poder Público e seus órgãos cabe assegurar às pessoas portadoras de deficiência o pleno exercício
de seus direitos básicos, inclusive dos direitos à educação, à saúde, ao trabalho, ao lazer, à previdência social,
ao amparo à infância e à maternidade, e de outros que, decorrentes da Constituição e das leis, propiciem seu
bem-estar pessoal, social e econômico.
17
Segundo dados do Ministério da Saúde estima-se que existam cerca de dois milhões de pessoas portadoras
do
Transtorno
do
Espectro
do
Autismo
no
Brasil.
Fonte:
http://conselho.saude.gov.br/ultimas_noticias/2011/01_abr_autismo.html. Acesso em 4 de agosto de 2014.
18
Art. 227. (...), §1°, II: criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas
portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem
portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos
bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.
19
Art. 2°. A assistência social tem por objetivos: (...) d) a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência
e a promoção de sua integração à vida comunitária.
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Assim elencamos a Lei n° 7.853/89 em seu art. 9°,20 o Decreto Federal n.º
3.298/99 em seu art. 9º,21 a Lei n° 10.048/00, promulgada com o escopo específico do
atendimento prioritário para as pessoas com deficiência, como determina os arts. 1°22 e 2°,23
Lei Estadual do Rio Grande do Sul n.º 13.320/2009, art. 4°24, Lei Estadual do Rio de Janeiro
n° 6.807/2014, art. 1°,25 Lei Estadual de Santa Catarina n° 8.295, de 08 de julho de 1991 em
seu art. 1°26 dentre outros.
Entretanto, quanto à questão do atendimento prioritário o que mais causa
estranheza é exatamente o escopo deste nosso trabalho: a ausência de procedimento quanto
aos métodos a serem usados para este tipo de atendimento.
Não se discute que as pessoas com deficiência têm direito a um
atendimento prioritário e preferencial, visto que a Constituição Federal defende a defesa da
dignidade da pessoa humana e entendemos ser perfeitamente cabível a aplicação de um
benefício para aquele que possui algum tipo de limitação ou deficiência. Assim, passar longo
20
Art. 9º. A Administração Pública Federal conferirá aos assuntos relativos às pessoas portadoras de deficiência
tratamento prioritário e apropriado, para que lhes seja efetivamente ensejado o pleno exercício de seus direitos
individuais e sociais, bem como sua completa integração social.
§1º. Os assuntos a que alude este artigo serão objeto de ação, coordenada e integrada, dos órgãos da
Administração Pública Federal, e incluir-se-ão em Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de
Deficiência, na qual estejam compreendidos planos, programas e projetos sujeitos a prazos e objetivos
determinados.
§2º. Ter-se-ão como integrantes da Administração Pública Federal, para os fins desta Lei, além dos órgãos
públicos, das autarquias, das empresas públicas e sociedades de economia mista, as respectivas subsidiárias e
as fundações públicas.
21
Art. 9°. Os órgãos e as entidades da Administração Pública Federal direta e indireta deverão conferir, no
âmbito das respectivas competências e finalidades, tratamento prioritário e adequado aos assuntos relativos à
pessoa portadora de deficiência, visando a assegurar-lhe o pleno exercício de seus direitos básicos e a efetiva
inclusão social.
22
Art. 1°. As pessoas portadoras de deficiência, os idosos com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, as
gestantes, as lactantes e as pessoas acompanhadas por crianças de colo terão atendimento prioritário, nos termos
desta Lei.
23
Art. 2°. As repartições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos estão obrigadas a dispensar
atendimento prioritário, por meio de serviços individualizados que assegurem tratamento diferenciado e
atendimento imediato às pessoas a que se refere o art. 1 o.
Parágrafo único. É assegurada, em todas as instituições financeiras, a prioridade de atendimento às pessoas
mencionadas no art. 1o.
24
Art. 4°. Fica assegurado à pessoa com deficiência, assim como ao idoso e à gestante, o atendimento
preferencial nos seguintes estabelecimentos: I - repartições públicas estaduais; II - sociedades de economia
mista, empresas públicas, autarquias e fundações mantidas pelo Estado; III – instituições financeiras estaduais;
e IV - hospitais, laboratórios de análises clínicas e unidades sanitárias estaduais, ou conveniados.
25
Art. 1º. Os Órgãos Públicos Estaduais e os estabelecimentos privados ficam obrigados a dar atendimento
prioritário, não retendo, em filas, as pessoas portadoras do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).
26
Art. 1º Às pessoas idosas ou deficientes é assegurado o direito de preferência de atendimento, nos seguintes
estabelecimentos:
I – repartições públicas, autarquias e fundações;
II – hospitais, laboratórios de analises clínicas e postos de saúde;
III – agências bancárias.
Parágrafo único. Exemplar desta Lei deverá ser afixado em local visível ao público usuário dos
estabelecimentos enumerados neste artigo.
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tempo em uma fila pode ocasionar um prejuízo direto ao deficiente, logo não é essa a questão
que se discute, mas sim, a forma, ou melhor, a ausência de forma por parte do legislador em
impor o atendimento prioritário.
4. A facilidade de acesso e a falta de procedimento
É louvável e deveras positiva a iniciativa do legislador em equiparar a
pessoa com o Transtorno do Espectro do Autismo à pessoa com deficiência e, por
conseguinte, lhe conceder atendimento prioritário nos estabelecimentos privados, além de
promover a sua inclusão social. Tudo caminha de forma harmoniosa aos ditames
constitucionais da defesa da dignidade da dignidade humana, da minoração das
desigualdades, da não discriminação e da convivência pacífica entre as pessoas na sociedade.
O problema reside na forma como esse benefício é aplicado, afinal, o
legislador foi silente em estabelecer o procedimento de aplicação desse atendimento
prioritário, isto é, como ensinamos aos nossos alunos: falta o manual de instrução da lei.
Ao ser silente quanto a forma o legislador dificulta sobremaneira a
aplicação da norma, visto que existe uma gama de peculiaridades que envolvem o
atendimento a uma pessoa com o Transtorno do Espectro do Autismo.
Sobre o tema Cecilia Mello:
As pessoas pouco sabem sobre o autismo. Suas causas ainda não foram bem
definidas, mas o fator genético e hereditário parece ser um consenso no meio
científico.
É importante lembrar que não existe um único tipo de autismo, razão da
designação técnica “transtornos do espectro do autismo”, haja vista a variedade e
complexidade de graus de comprometimento dos indivíduos. Há pessoas com
retardo mental e total incapacidade de comunicação (autismo clássico ou de baixo
funcionamento). Mas há pessoas verbais, inteligentes e que atingem excelente grau
de autonomia (autismo de alto funcionamento e síndrome de asperger). Vale
anotar que mais de 50% dos que estão dentro do espectro não apresentam, em
termos globais, restrição de QI (MELLO, 2014).
A maior questão é como lidar com a pessoa com o Transtorno do Espectro
do Autismo, afinal, um funcionário de um estabelecimento comercial não possui o
treinamento adequado e como o autismo possui diferentes tipos, mesmo que haja um
treinamento básico, este pode resultar insuficiente para algum caso específico.
Se o autismo for leve e a pessoa possuir um bom grau de autonomia as
chances de algum problema são mínimas, porém, na lei não tem qualquer dosimetria acerca
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do autismo e, por conseguinte, não possui qualquer critério ou treinamento para lidar com a
variedade de casos que podem ocorrer no cotidiano envolvendo a pessoa com o Transtorno
do Espectro do Autismo.
O Center for DiseaseControlandPrevention alerta sobre a questão
comportamental e a forma como deve ser feita a aproximação:
According to reports by the American Academy of Pediatrics and the
National Research Council, behavior and communication approaches that help children
with ASD are those that provide structure, direction, and organization for the child in
addition to family participation.
A notable treatment approach for people with an ASD is called applied
behavior analysis (ABA). ABA has become widely accepted among health care professionals
and used in many schools and treatment clinics. ABA encourages positive behaviors and
discourages negative behaviors in order to improve a variety of skills. The child’s progress
is tracked and measured.
There are different types of ABA. Following are some examples:
Discrete Trial Training (DTT): DTT is a style of teaching that uses a series of trials
to teach each step of a desired behavior or response. Lessons are broken down into
their simplest parts and positive reinforcement is used to reward correct answers
and behaviors. Incorrect answers are ignored.
Early Intensive Behavioral Intervention (EIBI): This is a type of ABA for very
young children with an ASD, usually younger than five, and often younger than
three.
Pivotal Response Training (PRT): PRT aims to increase a child’s motivation to
learn, monitor his own behavior, and initiate communication with others. Positive
changes in these behaviors should have widespread effects on other behaviors.
Verbal Behavior Intervention (VBI): VBI is a type of ABA that focuses on
teaching verbal skills.27
Note que a aproximação já possui um conjunto de peculiaridades que um
funcionário ou servidor não está preparado para cumpri-las sem o devido treinamento
especializado. Todavia, como a lei é silente quanto a essa exigência os estabelecimentos não
são obrigados a ter um colaborador especializado. O problema é que imprevistos sempre
podem ocorrer e no caso do Transtorno do Espectro do Autismo um gesto mal feito, uma
27
Fonte: http://www.cdc.gov/ncbddd/autism/treatment.html. Acesso em 11 de agosto de 2014.
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reação inesperada pode desencadear uma reação inesperada por parte do deficiente, logo, o
“improviso brasileiro calcado na boa vontade em ajudar” pode ocasionar um dano.
A legislação sobre o tema não contempla a necessidade da presença de um
acompanhante, um familiar para auxiliar o autista em caso de alguma necessidade e, muito
menos, disciplina acerca da necessidade de um colaborador treinado sobre o tema para saber
se portar ante a alguma adversidade. Assim, ante a falta de procedimento o que se vê é a
potencialidade para que nada de estranho aconteça e que o deficiente tenha um atendimento
prioritário e imediato, porém, não existe preparo ou prevenção alguma para caso alguma
situação não ocorra dentro da normalidade.
Ademais, a norma contempla o direito ao atendimento prioritário às
pessoas com deficiência e aos idosos, porém, é silente quanto qual o procedimento ou se
existe uma ordem de preferência em relação a uma fila de pessoas com deficiência ou demais
pessoas que têm direito ao atendimento prioritário, por exemplo. E como fica a preferência
elencada e estabelecida pelo Estatuto do Idoso ante a norma do atendimento prioritário? O
legislador foi igualmente silente sobre o tema.
Se em um caixa de supermercado existir um caixa para atendimento
prioritário e nessa fila estiver um idoso, uma gestante, uma pessoa com mobilidade reduzida
e uma pessoa com o Espectro do Autismo, por exemplo, existe alguma preferência entre
eles? E se o primeiro desta fila estiver com o carrinho cheio de compras ao passo que o
último tem apenas um item? O mesmo exemplo pode ser aplicado a uma fila em uma
instituição financeira e a demais estabelecimentos comercias.
Ademais o despreparo do legislador ante a matéria já se nota na própria
denominação, visto que a legislação estadual carioca, por exemplo, já em seu tipo menciona:
obriga os órgãos públicos e os estabelecimentos privados a dar preferência no atendimento,
não retendo, em filas, pessoas portadoras do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e dá
outras providências.
A denominação portador não mais é utilizada, ou não deveria ser ao menos,
no Brasil, desde a Convenção Internacional para Proteção e Promoção dos Direitos e
Dignidade das Pessoas com Deficiência28, na qual se decidiu que o termo correto a ser
utilizado seria “pessoas com deficiência”. No entanto, o legislador desatento ou
desinformado acerca dos interesses das pessoas com deficiência se equivoca inclusive na
forma como se referir a esse grupo de pessoas.
28
Recepcionada no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009.
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Evidentemente que se já no tratamento aparece o despreparo não seria
quanto ao procedimento que o legislador mostraria todo o seu aparato técnico. O resultado
foi uma longeva lista de incógnitas que não são respondidas no texto, portanto, o que se
questiona é: se a lei não regulamenta e estabelece os mecanismos e critérios para aplicação
de um correto atendimento prioritário àqueles que dele necessitam e fazem jus, como que os
estabelecimentos privados poderão se adequar às exigências legais?
Assim se questiona: o que é pior: uma instituição financeira ter o
atendimento prioritário, mas não fazer distinção entre os beneficiários e destinar apenas e
tão somente um guichê para tal atendimento o que pode resultar em eventuais filas; ou parar
o atendimento normal dos demais clientes para que todos os que possuem prioridade sejam
atendidos? Qual a forma mais adequada? E mais, se os funcionários não possuem o
treinamento adequado como lidar com a questão do direcionamento da fila, do atendimento
etc.?
Essas são apenas algumas das indagações que podemos formular ante aos
problemas advindos da ausência do devido procedimento legal. Agora, o que se cogita e
tramita no Congresso Nacional é a aprovação do estatuto para os que têm o Transtorno do
Espectro do Autismo. Todavia, desde já fazemos o alerta: pouca efetividade prática terá o
referido estatuto se apenas e tão somente ratificar os direitos as pessoas com deficiência,
pois, o que falta, realmente, é o procedimento, isto é, os mecanismos que viabilizam a correta
aplicação da lei.
5. Conclusão
O atendimento prioritário ou preferencial é devido e é uma realidade para
aqueles que possuem algum tipo de deficiência ou para os idosos. Agora, em alguns Estados,
como no caso do Rio de Janeiro, os estabelecimentos prestadores de serviços terão de prover
atendimento imediato, além de prioritário àqueles que possuem o Transtorno do Espectro do
Autismo. Como já dissemos é um direito do cidadão brasileiro ter esse atendimento
prioritário em prol da defesa da dignidade da pessoa humana. Porém, a ausência do devido
procedimento na norma causa uma gama de dificuldades aos mesmos estabelecimentos.
O primeiro deles é não saber sequer a quem deve atender primeiro, visto
que a Lei Nacional não faz diferença entre o deficiente, a pessoa com o Transtorno do
Espectro do Autismo, uma gestante, ou um idoso. Logo, todos têm direito ao atendimento
prioritário, mas a lei é silente ao determinar o critério de atendimento, isto é, se for
estabelecido um guichê para atendimento a essas pessoas de forma exclusiva e estas terão
de formar uma fila para serem atendidos, em caso de mais de uma. Ou se, o estabelecimento
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deve parar o atendimento a todos os demais clientes até que não reste mais fila de
atendimento prioritário.
O que tem imperado comumente no Brasil é um guichê especial e as
pessoas ficam aguardando em fila sem maiores problemas. A inovação da Lei estadual
fluminense é a imposição de que todos devem ser atendidos prioritariamente, o que nos leva
a crer ser uma falha redacional, pois, imagine o caos que se pode tornar uma instituição
financeira se o quinto dia útil de cada mês, portanto, o dia do pagamento de salários aos
funcionários, trinta pessoas entre deficientes, idosos, gestantes e pessoas com o Transtorno
do Espectro do Autismo estiverem na fila do caixa.
Pelos moldes convencionais estes seguirão em fila no seu guichê
específico, mas pelo que pretende o legislador fluminense o que se pretende é que os trinta
sejam atendidos primeiro em detrimento dos demais correntistas.
A Constituição Federal de 1988 trata do tema da isonomia, isto é, todos
devem ser tratados da mesma forma, portanto, não há que se falar em parar o atendimento
das demais pessoas para atender um grupo determinado de pessoas.
Voltamos ao ponto inicial, é direito dos idosos, gestantes e pessoas com
deficiência terem um atendimento prioritário, contudo, é isonômico que haja um caixa ou
mais de um dependendo do tamanho do estabelecimento para atender esse grupo de pessoas,
mas não a totalidade dos caixas disponíveis, porque senão a isonomia estará prejudicada.
Não nos parece ter sido este o espírito constitucional ao salvaguardar a
defesa dos interesses de todos, da proteção a dignidade da pessoa humana e pela harmonia
das relações sociais.
A medida fluminense ao invés de promover a inclusão social pode
fomentar a discriminação, a hostilidade por uma medida instituída de forma equivocada e
sem o devido zelo no momento de sua redação.
Se o legislador fluminense deseja, de fato, instituir tal medida no tocante
ao atendimento preferencial então que o faça de maneira clara com as estipulações devidas
e não deixe uma linguagem imprecisa sujeita a interpretações, pois, tal medida poderá
contemplar a norma com um antigo jargão brasileiro: “essa é mais uma lei que não pegou”.
Recebido em 23/04/2015
1º parecer em 31/05/2015
2º parecer em 22/06/2015
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AUTONOMIA PRIVADA E BOA-FÉ OBJETIVA EM DIREITOS REAIS
Private autonomy and objective good faith in the field of iura in re
Eduardo Nunes de Souza
Doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Professor substituto de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.
Nenhum homem é uma ilha,
inteiro em si mesmo;
todo homem é um pedaço do continente,
uma parte do todo.
– John DONNE
Resumo: O princípio da autonomia privada desenvolveu-se historicamente no âmbito da
seara contratual, afastado dos direitos reais, que eram guiados pela lógica da tipicidade e
taxatividade de conteúdo. Em perspectiva contemporânea, contudo, com a flexibilização das
diferenças clássicas entre direitos reais e obrigacionais em torno de uma disciplina comum
a todos os direitos patrimoniais, torna-se possível perceber relevante espaço à autonomia
privada também em matéria de direito das coisas. Nesse contexto, a incidência da boa-fé
objetiva em suas variadas funções no âmbito de uma relação jurídica real se revela
importante e inovadora aplicação do princípio.
Palavras-chave: Direitos reais; autonomia privada; boa-fé objetiva.
Abstract: The principle of private autonomy has been historically developed in the sphere
of contract law, away from the iura in re, which were guided by the logic of typical law
previsions. In a contemporary perspective, however, and with the mitigation of the classic
differences between iura in re and credit rights towards a common discipline of all
patrimonial rights, it becomes possible to notice a relevant space of private autonomy also
in the iura in re sphere. In this context, the incidence of objective good-faith in its various
functions over this kind of juridical relation becomes an important and innovative
application of this principle.
Keywords: Iura in re; private autonomy; objective good-faith.
Sumário: 1. Premissas teóricas: o espaço da autonomia privada no âmbito dos direitos reais
– 2. O caso apreciado pelo STJ no julgamento do Recurso Especial 1.124.506/RJ – 3.
Perspectivas para a aplicação das funções da boa-fé objetiva ao exercício de direitos reais –
4. Síntese conclusiva.
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1. Premissas teóricas: o espaço da autonomia privada no âmbito dos direitos reais
A autonomia privada pode ser considerada o mais basilar dos princípios (e
talvez a própria razão de ser) do direito civil.1 De fato, se a propriedade figurou, por muito
tempo, como o mais relevante direito subjetivo tutelado pelo Código Civil,2 a liberdade de
atuação dos particulares para, com o poder (juridicamente reconhecido) de sua vontade,
negociarem seus bens e demais interesses sempre constituiu a outra face da moeda,
construindo o arcabouço jurídico necessário à circulação de riquezas tão cara ao ideário
liberal que inspirou a primeira codificação.3 Mesmo no cenário contemporâneo, em que a
dignidade humana encontra-se elevada à categoria de valor máximo da ordem constitucional
brasileira, não seria incorreto afirmar que, do ponto de vista do direito privado, essa
dignidade é tutelada prioritariamente pela proteção ao livre desenvolvimento do indivíduo
em suas escolhas existenciais e pela tutela – hoje entendida como subordinada a tais escolhas
– da liberdade de ação desse mesmo indivíduo nas relações patrimoniais em que se encontrar,
dentro dos limites da legalidade constitucional.4
Com efeito, se antes o direito civil se ocupava primordialmente dos bens e
de sua circulação, o valor que parece unificar a civilística contemporânea, marcada pelos
fortes traços personalistas que se tornaram comuns ao ordenamento como um todo, consiste
Na doutrina italiana, assevera Rosario NICOLÒ: “se si volesse sintetizzare in una proposizione l’oggetto, a
prima vista così vario e complesso, del diritto civile, [...] si potrebbe dire che esso è rappresentato da quel
settore dell’esperienza giuridica in cui esercita un ruolo preminente l’autonomia riconosciuta all’individuo”
(“Diritto civile”. Enciclopediadeldiritto. Volume XII. Milano: Giuffrè, 1964, p. 909). No direito brasileiro,
Miguel REALE, em clássico elenco dos princípios fundamentais do direito civil, alude à autonomia privada
como o segundo mais relevante princípio, logo após a personalidade, conceituando-a como “o reconhecimento
de que a geral capacidade jurídica da pessoa humana lhe confere o poder de praticar certos atos ou abster-se
deles, segundo os ditames de sua vontade” (Lições preliminares de direito. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 359).
2
Conforme leciona Stefano RODOTÀ, “l’antica assimilazione della proprietà alla libertà – che già
nell’esperienza giuridica medievale si era significativamente espressa in definizioni della proprietà ricalcate
su quella che il Digesto dava per la libertà – aveva trovato nella filosofia giusnaturalistica prima, e
successivamente nell’idealismo tedesco, una celebrazione che sarebbe apparsa definitiva già alle fine del
XVIII secolo e che, da allora in poi, sarebbe stata identificata con il pensiero liberale” (Proprietà (diritto
vigente). In Novissimo Digesto Italiano. Volume XIV. Torino: UTET, 1957, p. 133).
3
Registra Emilio BETTI que o negócio jurídico não é necessário “se non in quegli ordinamenti economicosociali che riconoscono ai singoli una cerchia di beni di loro spettanza, in ordinamenti cioè basati sul
riconoscimento della proprietà individuale. Solo sulla base di questo riconoscimento, infatti, la circolazione
dei beni, come la prestazione di servizi fra singoli, è rimessa necessariamente all’autonomia privata” (Teoria
generale del negozio giuridico. Napoli: ESI, 1994, p. 46).
4
Conforme analisa Gustavo TEPEDINO a respeito da autonomia privada, “tal poder, cujo conteúdo se
comprime e se expande de acordo com opções legislativas, constitui-se em princípio fundamental do direito
civil, com particular inserção tanto no plano das relações patrimoniais – na teoria contratual, por legitimar a
regulamentação da iniciativa econômica pelos próprios interessados –, quanto no campo das relações
existenciais – por coroar a livre afirmação dos valores da personalidade” (Evolução da autonomia privada e o
papel da vontade na atividade contratual. In FRANÇA, Erasmo; ADAMEK, Marcus Vieira von (Coord.).
Temas de direito empresarial. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 317).
1
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55
na liberdade do indivíduo em desenvolver suas relações existenciais e patrimoniais, uma vez
demarcados os limites normativos dentro dos quais essa liberdade pode ser legitimamente
exercida. Esse traço comum pode ser verificado na própria organização sistemática do direito
civil, antes construído em torno de uma summadivisioque apartava direitos reais e
obrigacionais, e ora cada vez mais estruturado em torno da distinção, que se considera muito
mais relevante, entre direitos existenciais e patrimoniais5 (justamente porque a liberdade de
exercício dos primeiros é pautada por valores bastante distintos da liberdade de exercício
dos segundos).6 É a essa liberdade, corolário fundamental da dignidade humana, 7 que, nas
relações particulares, costuma-se denominar autonomia privada ou, em outra formulação,
autonomia negocial.8
Tais constatações, hoje amplamente difundidas, permitem alcançar duas
outras inferências. De um lado, é possível concluir que a reestruturação dogmática do direito
civil tem ocasionado uma aproximação cada vez mais marcante entre direitos reais e
obrigacionais, outrora fundamentalmente dissociados, e hoje reunidos no âmbito de uma
mesma autonomia privada patrimonial.9 De outra parte, seria possível afirmar que todas as
A criação desta nova dicotomia é propugnada por Gustavo TEPEDINO: “a dignidade da pessoa humana
impõe transformação radical na dogmática do direito civil, estabelecendo uma dicotomia essencial entre as
relações jurídicas existenciais e as relações jurídicas patrimoniais” (Normas constitucionais e direito civil na
construção unitária do ordenamento. Temas de Direito Civil. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 13).
Torna-se, assim, “ociosa a partição entre direitos reais e direitos obrigacionais”, vez que fundada nos aspectos
estruturais das situações jurídicas, “não já nos seus aspectos funcionais” (Ibid.).
6
Trata-se de liberdades guiadas por valores muito díspares: a autonomia existencial propõe-se a promover
diretamente o desenvolvimento da dignidade humana, ao passo que a autonomia patrimonial o faz apenas
mediatamente. Essa diversidade valorativa torna-se evidente se analisada a influência do princípio da
solidariedade social sobre a liberdade em um campo e no outro: “no âmbito patrimonial os institutos são
tutelados em razão e nos limites da sua função social. Já no âmbito extrapatrimonial não se deve cogitar de
direitos-deveres para com a sociedade porque não cabe esperar o exercício de função social com relação aos
atributos existenciais-constitutivos da pessoa humana” (MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os
direitos da personalidade. In VIEIRA, José Ribas (Org.). 20 anos da Constituição Cidadã de 1988. Rio de
Janeiro: Forense, 2008, p. 388).
7
MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana. Na medida da pessoa
humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, pp. 106 e ss.
8
Ao lembrar que diversos atos de autonomia são realizados também pelo Estado, negociando com particulares
ou com outros entes públicos, Pietro PERLINGIERI propõe a expressão “autonomia negocial” como mais
adequada do que autonomia privada, definindo-a como “o poder reconhecido ou atribuído pelo ordenamento
ao sujeito de direito público ou privado de regular com próprias manifestações de vontade, interesses públicos
ou privados, ainda que não necessariamente próprios” (O direito civil na legalidade constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 338).
9
Afirma Pietro PERLINGIERI que a contraposição entre direitos reais e obrigacionais “perdeu nitidez nas suas
fronteiras. Existem situações mistas que têm características típicas e tradicionais dos direitos reais (realità) e
das relações obrigacionais” (O direito civil na legalidade constitucional, cit., pp. 896-897). Sustenta, assim, o
autor: “as situações subjetivas patrimoniais podem ser objeto de uma abordagem unitária, embora ainda não
tenha sido elaborada, interpretativamente, uma normativa comum que lhe sirva de referência. Esta normativa
comum não se pode identificar exclusivamente com o direito das obrigações ou com aquele das relações reais,
mas deve ser concebida como a síntese da disciplina de todas as relações patrimoniais” (Ibid., p. 892).
5
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matérias de direito civil se relacionam, de um modo ou de outro, ao exercício da liberdade
nas
relações
particulares
–
são, em
outros
termos,
questões de autonomia
privada.10Curiosamente, porém, uma longeva tradição civilista nos países da família
romano-germânica poderia pôr em xeque tais ilações: o termo “autonomia privada” é
raríssimas vezes utilizado em matéria de direitos reais, destinando-se quase sempre ao campo
das obrigações. Esse uso predominantemente setorial de noção tão relevante para o direito
privado como um todo parece decorrer do somatório de alguns fatores.
Se, do ponto de vista axiológico, são bem conhecidos os valores que
orientam a civilística contemporânea (precipuamente, a dignidade humana, a proteção dos
princípios que dela decorrem e a tutela privilegiada de pessoas vulneráveis em relações
específicas; além desses, a vedação ao enriquecimento sem causa, a tutela da confiança, a
reparação integral dos danos, o aproveitamento dos bens conforme à sua função social,
dentre tantos outros), do ponto de vista técnico o problema central do direito civil reside na
atribuição de efeitos jurídicos a atos particulares, quando compatíveis com tais valores. De
fato, se outros ramos do direito atribuem efeitos a atos eminentemente estatais,11 cabe ao
direito civil conferir ou não eficácia a atos realizados por particulares (não pelo ente
público).12
A complexidade dessa tarefa resulta ainda mais evidente na perspectiva
civil-constitucional, segundo a qual todo ato humano, sem exceção, constitui um fato
jurídico, porque resultante de uma liberdade juridicamente tutelada. A doutrina tradicional
costuma designar “fato jurídico” aos fatos do mundo material que repercutem em efeitos
jurídicos;13 para a metodologia civil-constitucional, em vez disso, absolutamente todos os
fatos humanos reputam-se juridicamente relevantes, ainda que não apresentem efeitos
jurídicos específicos, porque sua simples realização tem de ser conforme a uma liberdade
Assevera Rosario NICOLÒ: “in definitiva le nuove forme giuridiche, che si sono venute gradualmente
elaborando, hanno sempre come fondamento e presupposto specifiche manifestazioni di quell’autonomia
privata che costituisce il principio essenziale del diritto civile” (“Diritto civile”, cit., p. 910).
11
Pense-se nos atos do administrador público (via de regra vinculados pela lei), nos atos do legislador
(submetidos a rígido procedimento de validação) ou mesmo nos atos processuais, conduzidos perante a
autoridade judicial e submetidos a regras procedimentais bem demarcadas.
12
Ao tratar dos variados problemas colocados pela noção de autonomia privada, ressalta Salvatore
PUGLIATTI as dificuldades de reconhecer na autonomia privada uma fonte de efeitos jurídicos:
“Sottoaltroprofilo, lavolontàverrebbequalificata come autonoma, in quanto fonte deglieffettinegoziali, e,
coerentemente, sarebbeconsiderato come attonegozialeanchel’atto legislativo. Secondo un’altra tendenza, la
volontà negoziale sarebbe eteronoma, in quanto costituirebbe uno degli elementi della fattispecie legale, sì
che la fonte degli effetti sarebbe sempre la legge” (“Autonomia privata”. Enciclopediadeldiritto. Volume IV.
Milano: Giuffrè, 1959, p. 368).
13
Nesse sentido, v., por todos, AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2006,
p. 341.
10
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garantida pelo Direito14 (sob pena de sua repressão em caso de desconformidade – o que
também constitui, afinal, um tipo de relevância jurídica). Atrai-se, com isso, uma
multiplicidade de atos cujos efeitos se submetem à chancela (e consequente proteção) do
ordenamento.
A dificuldade em se reconhecerem efeitos jurídicos decorrentes da vontade
particular (e não seria preciso lembrar o relevante o papel da vontade para a dogmática
civilista, nos moldes liberais que a caracterizam até hoje) levou a uma gradação: a tarefa
mostra-se mais complexa quanto maior for o papel da vontade individual na atribuição de
efeitos ao ato. Distinguem-se, assim, os atos privados cujos efeitos decorrem da lei e os atos
que, também empreendidos por particulares, têm seus efeitos por eles escolhidos.15 Trata-se
da clássica divisão entre, de um lado, atos jurídicos em sentido estrito e atos-fatos jurídicos
e, de outro, negócios jurídicos. O primeiro grupo recebe da lógica jurídica menor resistência:
os atos-fatos e os atos jurídicos em sentido estrito funcionam de certo modo como fatos
naturais, aos quais o próprio ordenamento atribui efeitos; neles, a consideração da vontade
do agente (especialmente nos atos jurídicos em sentido estrito, para os quais se exige vontade
juridicamente qualificada) visa mais à proteção do próprio interessado do que à legitimação
dos efeitos produzidos.16 Nos negócios jurídicos, de outra parte, a resistência revela-se
maior, pois cabe ao Direito apenas homologar efeitos jurídicos buscados pelas partes se
reconhecer sua compatibilidade com os limites estruturais e os alicerces funcionais
estabelecidos pelo sistema – a ensejar maior suspeita (ou, ao menos, cautela) na admissão
dessa eficácia.
14
Afirma-o PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 640.
Alguns autores, levando ao extremo tal distinção, chegam a considerar que nos atos jurídicos em sentido
estrito não há qualquer liberdade, seja quanto à ação, seja quanto ao conteúdo, inserindo no campo do negócio
jurídico atos em que se verifique alguma atuação de vontade do sujeito. Assim, por exemplo, Pietro
RESCIGNO, para quem “la qualifica di atto e, al tempo stesso, la negazione del carattere di negoziabilità
potrebbero giustificarsi soltanto per l’adempimento dell’obbligazione, e più in generale per gli atti dovuti”.
Remata o autor: Anche quando l’atto di adempimento consista nel trasferire la proprietà o un altro diritto,
l’atto conserva l’indicata natura esecutiva, e non assume perciò carattere dispositivo di un interesse, in virtù
della efficacia traslativa (della proprietà o del diritto), già spiegata dall’atto (contratto con effetti reali, legato
con effetti reali) […]” (Manualedeldirittoprivato italiano. Napoli: Jovene, 1994, p. 290). Embora tal
construção encontre óbice na vedação, no ordenamento brasileiro, da transmissão de direito real solo consensu,
ainda assim ilustra bem a gradação da autonomia percebida amplamente pela doutrina entre atos com efeitos
determinados por lei e atos negociais.
16
A diferença entre as duas categorias é registrada por PONTES DE MIRANDA: “Se o direito entende que é
relevante essa relação entre o fato, a vontade e o homem, [...] o ato humano é ato jurídico, lícito ou ilícito, e
não ato-fato, nem fato jurídico stricto sensu. Se, mais rente ao determinismo da natureza, o ato é recebido pelo
direito como fato do homem [...], pondo-se entre parêntese o quid psíquico, o ato, fato (dependente da vontade)
do homem, entra no mundo jurídico como ato-fato jurídico” (Tratado de direito privado. Tomo II. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2012, pp. 457-458).
15
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58
Muitas evidências dessa desconfiança em relação à eficácia escolhida
pelas partes no negócio jurídico poderiam ser oferecidas. Pense-se, por exemplo, na enorme
controvérsia doutrinária a respeito da teoria preceptiva do negócio jurídico, que sustentava
ser a fonte negocial criadora de normas jurídicas concretas, auto-regulamento de interesses
privados, mais do que simples exteriorização da vontade individual.17 Do ponto de vista
legislativo, pense-se ainda nos oitenta artigos dispensados pelo codificador de 2002 à
disciplina geral do negócio jurídico (arts. 104-184), quando comparados ao único dispositivo
(art. 185) que o Código Civil reserva ao regime geral dos atos jurídicos em sentido estrito.
De fato, não há tanta desconfiança em relação a efeitos que a própria lei atribui: além de não
partirem da vontade particular (destinada tão somente à realização material do ato), tais
efeitos são necessariamente típicos – e sua abrangência, portanto, é conhecida previamente.
O negócio jurídico, ao revés, tem efeitos derivados da vontade declarada; suas
possibilidades, assim, são infinitas, desde que obedientes às restrições legais ou, em visão
contemporânea, compatíveis com a axiologia do sistema (no qual a própria autonomia
privada constitui um valor relevante).
Pelo mesmo motivo, indubitavelmente, o negócio jurídico corresponde ao
instrumento por excelência da autonomia privada.18 De fato, não há expressão maior de
liberdade juridicamente relevante do que a escolha dos efeitos jurídicos do ato praticado.
Tais efeitos podem ser atípicos, dispensando previsão legal: os negócios jurídicos existem
em numerusapertus, o que se exemplifica usualmente pela figura do contrato. Esse exemplo,
aliás, parece mesmo ter se tornado mais forte que a teoria: sendo o contrato uma das
principais fontes de obrigações, o princípio conhecido como autonomia privada passou a ser
associado com enorme frequência à atipicidade peculiar dos direitos de crédito.19 Esse
itinerário, relativamente simples, parece ser ao menos uma das razões pelas quais a
O principal defensor da teoria foi Emilio BETTI, que afirmava: “il negozio contiene ed è essenzialmente una
statuizione, una disposizione, un precetto dell’autonomia privata in ordine a concreti interessi propri di chi lo
pone; precetto destinato ad avere efficacia costitutiva, a spiegare cioè immediatamente gli effetti ordinativi
corrispondenti nella vita di relazione. La dichiarazione, pertanto, ha natura precettiva o dispositiva, e quindi
carattere impegnativo; il comportamento ha di per se parimenti tale caratteri” (Teoria generale del negozio
giuridico, cit., p. 56).
18
Assim, por exemplo, define Francisco AMARAL: “A autonomia privada é o poder que os particulares têm
de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que participam, estabelecendo-lhes o conteúdo
e a respectiva disciplina jurídica” (Direito civil, cit., p. 345).
19
Provavelmente para evitar essa redução, Miguel REALE denominava autonomia da vontade a capacidade
geral de realizar atos ou evitá-los pelo poder da vontade, e designava como princípio da liberdade de
estipulação negocial “a faculdade de outorgar direitos e aceitar deveres, nos limites da lei, dando existência a
relações ou situações jurídicas, como os negócios jurídicos em geral e os contratos em particular” (Lições
preliminares de direito, cit., p. 359).
17
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59
autonomia privada, valor fundamental a todos os setores do direito civil, acabou por ter sua
aplicação prática circunscrita, no mais das vezes, aos direitos obrigacionais.
De fato, no que tange aos direitos reais, a lógica de sua formação revelase diametralmente oposta. A constituição de boa parte dos direitos reais ocorre por meio de
atos-fatos jurídicos (os denominados “atos reais”20 – pense-se em formas de aquisição da
propriedade como a ocupação, o achado de tesouro, a especificação, a confusão, a comistão,
a adjunção, a construção, a plantação). O direito brasileiro afasta ainda mais a constituição
de direitos reais da figura do negócio jurídico, pois, ao contrário de sistemas como o francês
e o italiano, nele a modalidade derivada de aquisição da propriedade não decorre apenas do
contrato, exigindo-se ainda a tradição ou o registro.21 A usucapião, outra modalidade de
aquisição da propriedade, tampouco reveste a forma negocial. Aparentemente, a disciplina
em numerusclaususdos direitos reais, tanto quanto à sua constituição quanto ao seu
conteúdo, afastaram em larga medida o modelo negocial e, por conseguinte, a noção de
autonomia da vontade deste inteiro setor do direito civil.22 Outras características ínsitas aos
direitos reais, como a oponibilidade erga omnes e o direito de sequela, estariam relacionadas
a esta aparente falta de autonomia.23
Essas características, porém, têm sido relativizadas, deixando aos poucos
de ser consideradas exclusivas dos direitos reais. Admitem-se, por exemplo, obrigações com
Segundo PONTES DE MIRANDA, os atos-fatos “abrangem os atos reais, a responsabilidade sem culpa,
seja contratual seja extracontratual, e as caducidades sem culpa (exceto o perdão). Ainda quando, no suporte
fático, de que emanam, haja ato humano, com vontade ou culpa, esses atos são tratados como ato-fato” (Tratado
de direito privado. Tomo II, cit., p. 457).
21
A regra, reproduzida amplamente em doutrina, é assim enunciada por Caio Mário da Silva PEREIRA: “No
sistema jurídico brasileiro, com efeito, a propriedade não se adquire solo consenso, isto é, pelo contrato
exclusivamente”. Exige-se, ao revés, “um fato cuja materialidade determina a transmissão da propriedade.
Neste passo, como em tantos outros, a tônica de nosso direito reside na inspiração romana, que informa o jogo
dos princípios. Ali se dizia que pela tradição e pelo usucapião é que o domínio das coisas se transfere, não pelo
contrato: traditionibus et usucapionibus, non nudispactis, dominiarerumtransferuntur” (Instituições de direito
civil. Volume IV. Rio de Janeiro: GEN, 2014, p. 99).
22
Contemporaneamente, contudo, tem-se criticado esse afastamento, a partir de uma análise funcional. No
ponto, v. Enrico CATERINI, para quem as categorias da autonomia negocial e da propriedade deveriam ser
“portadoras dos valores do ordenamento jurídico constitucional” e não apenas das “instâncias de liberdade
pelas quais foram historicamente concebidas e teorizadas”. Explica o autor: “Il principio di tipicità dei diritti
reali ha trovato la sua ragione nell’assoluta ed indiscriminata, libera ed incondizionata atipicità
dell’autonomia negoziale. Il venir meno nell’ordinamento giuridico costituzionale delle stesse premesse che
hanno retto vicendevolmente l’affermazione della tipicità dei diritti reali come limite dell’autonomia, e
dell’atipicità negoziale come tutela della libertà del singolo che non sia proprietario – verso cui la libertà
sulla cosa finiva per prevalere sulla libertà di iniziativa –, ha posto l’esigenza di una rilettura delle categorie
giuridiche ed in particolare del principio di tipicità dei diritti reali. Nell’ambito di un differente titolo
costituzionale dei singoli rapporti reali (esistenziali o patrimoniali), bisogna verificare la funzione
costituzionale dei principi di tipicità dei rapporti reali e di autonomia negoziale […]” (Il principio di legalità
nei rapporti reali. Napoli: ESI, 1998, pp. 28-29).
23
Sobre a intrínseca relação entre tipicidade e oponibilidade erga omnes, particularmente nos direitos reais
limitados, cf. NATUCCI, Alessandro. La tipicità dei dirittireali. Padova: CEDAM, 1988, p. 157.
20
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eficácia real e, portanto, oponíveis contra terceiros;24 as obrigações propter rem, segundo
boa parte da doutrina, aderem à coisa de cuja titularidade decorrem. 25 Como se percebe
progressivamente, os atributos dos direitos reais não decorrem precipuamente de sua
taxatividade e tipicidade, mas muito mais de sua publicidade.26 Isso tem permitido até
mesmo a admissão de direitos reais atípicos, tais como a multipropriedade imobiliária27 ou
os chamados condomínios de fato.28 A fronteira entre direitos reais e de crédito torna-se cada
vez mais tênue, permitindo vislumbrar um espaço de atuação da autonomia privada no
direito das coisas.
Nem seria necessário ir tão longe. A dissociação entre direitos reais e
autonomia privada ignora ao menos dois aspectos fundamentais. De um lado, muitos direitos
reais (sobretudo os limitados, de fruição ou garantia) dependem de negócio jurídico que os
institua – este será justamente o título a ser levado ao registro adequado, no caso dos direitos
que exigem a transcrição, e constituirá, em qualquer caso, a base a partir da qual será possível
determinar se a posse foi transferida juntamente com o domínio, se foi desdobrada para a
criação de um direito real limitado ou se a entrega da coisa representou mero efeito
É o caso, por exemplo, previsto pela Lei n. 8.245/1991: “Art. 8º Se o imóvel for alienado durante a locação,
o adquirente poderá denunciar o contrato, com o prazo de noventa dias para a desocupação, salvo se a locação
for por tempo determinado e o contrato contiver cláusula de vigência em caso de alienação e estiver averbado
junto à matrícula do imóvel. [...]”.
25
Na análise de Michele GIORGIANNI: “Posta di fronte a talune particolari situazioni (cosidette obligationes
propter rem, oneri reali) la dottrina dominante rimane imbarazzata nel catalogarle, in base ai cennati criteri,
nell’una o nell’altra delle due categorie, dato che in esse trova la presenza di taluni caratteri propri del diritto
reale accanto a caratteri propri del diritto di credito; essa afferma di solito che esiste in realtà una zona di
confine tra i diritti reali e i diritti di credito, diminuendo in tal modo assai chiaramente l’importanza ed il
valore di quella distinzione” (GIORGIANNI, Michele. “Diritti reali (diritto civile)”. Novissimo Digesto
Italiano, vol. V, Torino: UTET, 1960, p. 748). Vale registrar que a equiparação das obrigações propter rem
aos ônus reais, contudo, é criticada por autorizada doutrina, que entende ingressarem tais obrigações no
patrimônio do titular, desvinculando-se da coisa. A respeito, v. TEPEDINO, Gustavo. Comentários ao Código
Civil. Volume XIV, cit.
26
Leciona Michele GIORGIANNI: “poiché l’essenza del diritto reale consiste, più che nel collegamento del
potere con una cosa, nella inerenza di questo sulla cosa stessa in modo che il titolare possa ricevere
soddisfazione del suo interesse a prescindere dalla situazione di fatto o di diritto in cui la cosa si trovi,
l’ordinamento assicura tale soddisfazione solo se i terzi siano messi in condizione di conoscere l’esistenza di
quel potere: i mezzi più idonei sono a tal uopo costituiti dal possesso per le cose mobili ovvero dalle
annotazioni in speciali registri per gli immobili e per un certo numero di cose mobili” (Diritti reali (diritto
civile), cit., p. 752). A respeito, basta pensar, no ordenamento brasileiro, na já aludida eficácia real dos contratos
de locação imobiliária que, contendo cláusula de vigência, sejam levados a registro.
27
Trata-se da “relação jurídica de aproveitamento econômico de uma coisa móvel ou imóvel, repartida em
unidades fixas de tempo, de modo que diversos titulares possam, cada qual a seu turno, utilizar-se da coisa com
exclusividade e de maneira perpétua” (TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo:
Saraiva, 1993, p. 1).
28
Segundo Sylvio CAPANEMA, “é o que acontece em muitas cidades, nas quais se constroem conjuntos de
casas, que se classificam, equivocadamente, como condomínios edilícios, mas não o são, considerando que as
ruas internas são públicas e os lotes, com as respectivas acessões, são de propriedade exclusiva, não havendo
partes comuns em todo o conjunto” (em atualização a PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e
incorporações. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2014, p. 67).
24
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obrigacional. De outra parte, e talvez este seja o aspecto mais importante, existe um
considerável grau de autonomia no perfil dinâmico dos direitos reais, vale dizer, no momento
de seu exercício;29 muito embora o conteúdo essencial desses direitos esteja necessariamente
previsto na lei, diversos aspectos de sua fruição abrem-se, na prática, à vontade (e ampla
discricionariedade) dos interessados.30Mutatis mutandis, trata-se de um exercício que pouco
se distancia da liberdade para modificar os efeitos negociais que teriam as partes em um
contrato típico que não desejassem desnaturá-lo em atípico.31
Autonomia privada na constituição, modificação e exercício: eis um
aspecto pouco ressaltado,32 e ainda assim indissociável das relações reais. A proximidade
com o direito contratual mostra-se pouco evidente no âmbito do direito de propriedade, em
particular por se tratar de direito absoluto, adquirido de forma originária ou derivada
translatícia – vale dizer, de modo que o novo dono não terá com o anterior, em regra, uma
relação distinta daquela que terá, de todo modo, com o passivo universal. Nos direitos reais
29
A noção de que o exercício dos direitos reais aproxima-se dos direitos de crédito não é recente; de fato,
CARNELUTTI, ao distinguir os direitos reais dos obrigacionais, explicava que nestes sobressaía a situação
passiva, ao passo que nos direitos reais o papel predominante era o da posição ativa, pois “frente ao ius [in re]
não há uma obrigação, mas uma sujeição, situação bem menos visível que a obrigação”; rematava, porém: “a
obrigação só mais tarde surgirá, no momento em que o ius com o iussum for exercido” (Teoria geral do direito.
São Paulo: Saraiva, 1942, p. 287).
30
Poder-se-ia falar, assim, em elementos naturais ou acidentais aos tipos reais, abertos à modificação das partes.
Nesse sentido, afirma José de Oliveira ASCENSÃO: “a tipologia taxativa não impede que se admitam
modificações dos direitos reais. Efetivamente, o direito real tem todo um conteúdo acessório, que é vastamente
moldável pelas partes, mediante a substituição de disposições supletivas. Esse conteúdo é estranho à descrição
fundamental em que consiste o tipo” (A tipicidade dos direitos reais. Lisboa: Minerva, 1968, p. 332).
Analogamente, pondera Marco COMPORTI: “Per quanto concerne il nucleo fondamentale della situazione
reale, dunque, il limite dell’autonomia privata è ricollegato alla ineliminabilità delle situazione semplici che
compongono tale nucleo fondamentale. Le altre situazioni semplici di vantaggio o di svantaggio, che, pur
facendo parte della situazione reale, non ne rappresentano il nucleo fondamentale, ma costituiscono
essenzialmente regole per il suo esercizio, potranno invece essere liberamente disciplinate dall’autonomia
privata” (Diritti reali in generale. In CICU, Antonio e MESSINEO, Francesco. Trattato di diritto civile e
commerciale, vol. III, t. 1. Milano: Giuffrè, 1980, p. 158).
31
De fato, mais importante do que a diferença entre elementos essenciais ou acidentais do tipo de direito real,
a distinção essencial parece residir entre a constituição estrutural do direito e o perfil dinâmico do exercício,
residindo neste último o espaço aberto à autonomia. A esse propósito, afirma Marco COMPORTI: “Questa
dualità di momenti, del resto, può prospettarsi anche per le situazioni conformanti il nucleo essenziale del
diritto, le quali, quando configurano la struttura della situazione, appaiono ineliminabili e disciplinate dalla
normativa dei diritti reali; quando invece si presentano sul piano operativo dell’esercizio del diritto, sono
disciplinate dalla normativa delle obbligazioni per quanto non derogata da norme speciali” (Diritti reali in
generali, cit., p. 170). Conclui o autor que, para fins de estabelecer a disciplina aplicável ao direito real, “appare
più utile differenziare il momento della struttura dal momento dell’esercizio del diritto reale nel suo insieme,
indipendentemente dal riferimento al nucleo essenziale o alle regole di esercizio di esso” (p. 172).
32
Não sem valiosas exceções, como a análise contundente de Marco COMPORTI: “In proposito è subito il
caso di precisare che l’ordinamento ammette chiaramente uno spazio all’autonomia privata, nella
determinazione concreta dei poteri, delle facoltà, dei limiti e degli obblighi costituenti il contenuto delle varie
situazioni reali, prevedendo al riguardo, in certe ipotesi, la possibilità che il titolo disponga altrimenti dalla
disciplina normativa” (Diritti reali in generale, cit., p. 150). Como assinala o autor, o problema maior não é a
admissão desse espaço de autonomia, mas a identificação de seus limites para além da simples alusão a normas
de ordem pública.
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limitados (adquiridos, em geral, de forma derivada constitutiva), porém, a existência de dois
direitos específicos sobre a mesma coisa (nu-proprietário e usufrutuário, usuário ou
habitante; credor pignoratício, hipotecário ou anticrético e respectivo devedor; proprietários
do prédio dominante e do prédio serviente; e assim por diante) põe em foco, no polo passivo
do direito real, devedores específicos, cujo dever jurídico de abstenção ou tolerância será
particularmente relevante para o exercício do direito correspectivo.33 A proximidade com os
direitos de crédito resulta evidente:34 de fato, tanto funcional quanto estruturalmente, a
principal diferença entre a transferência meramente contratual da posse e a transferência para
a constituição de direito real restringe-se ao fato de, nesta última, poder o possuidor direto
opor seu direito contra terceiros, mas em ambos os casos poderá opô-lo ao indireto.
2. Uma aplicação paradigmática
Quais são as consequências práticas das considerações empreendidas até o
presente momento? Basicamente, a afirmativa de que existe um espaço para a autonomia
privada tanto na constituição quanto no exercício dos direitos reais permite, primeiramente,
demonstrar que não se verifica apenas um interesse coletivo ou social contraposto ao titular
do direito real, mas que também pode haver interesses particulares. Em outros termos, a
oponibilidade contra terceiros constitui princípio que não exclui o aspecto, menos
característico dessa espécie de direito subjetivo, da exigibilidade de certos deveres jurídicos
em face de um devedor específico. Assim, se não há dúvida de que toda a coletividade deve
respeitar o exercício do usufruto de certo bem por seu titular (dever geral de abstenção), por
outro lado o dever de tolerar a cessão do usufruto para terceiros pelo usufrutuário recai, ao
fim e ao cabo, sobre um indivíduo específico (o nu-proprietário, possuidor indireto), pelo
simples fato de que ninguém além dele estaria legitimado, em princípio, a manejar os
Na lição de Pietro PERLINGIERI: “A contraposição entre dever genérico e dever específico não é conforme
à disciplina de todas as situações ditas reais: se é possível configurar um dever genérico na hipótese típica de
direito real, que é a propriedade nas suas diversas formas e acepções, isto não é possível na maior parte das
outras situações reais. Em regra, nas situações reais ditas de fruição, ao lado do dever genérico por parte de
terceiros existe também uma relação entre um centro de interesses (usufruto, enfiteuse, direito de servidão) e
um outro já individualizado (nua-propriedade, propriedade do senhorio, direito do prédio serviente)” (O direito
civil na legalidade constitucional, cit., pp. 897-898).
34
Cite-se, ainda uma vez, PERLINGIERI: “as situações reais não se reduzem ao exclusivo dever genérico de
abstenção por parte de terceiros; elas, especialmente aquelas limitadas de fruição, caracterizam-se pela
presença de deveres específicos integrativos. Não existe, assim, uma nítida separação entre situações
creditórias e reais: frequentemente situações obrigacionais se integram com interesses mais amplos e
constituem situações complexas” (O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 898).
33
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interditos possessórios ou de qualquer outro modo questionar judicialmente o exercício do
direito de usufruto.
Mas, muito mais importante do que isso, demonstrar que há espaço para a
autonomia privada no âmbito dos direitos reais permite ao intérprete atrair para esse setor,
na medida em que forem com ele compatíveis, normas destinadas à disciplina dos direitos
obrigacionais. De fato, se a autonomia privada costuma ser aludida como o princípio maior
regente dos contratos (acompanhado, em geral, da obrigatoriedade dos pactos e da
relatividade, e atualmente mitigado pelos chamados “novos princípios contratuais”, como a
boa-fé objetiva, a função social e o equilíbrio contratual), há uma série de regras e princípios
dessa área do direito civil que passam a fazer sentido no âmbito dos direitos reais, quando
se percebe que nestes não figura única e simplesmente um interesse individual contraposto
a um interesse geral, mas podem também existir interesses individuais contrapostos.
O acórdão proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça
no julgamento do REsp. n. 1.124.506/RJ fornece exemplo claro e pioneiro dessa aplicação.35
O caso envolvia o exercício de uma servidão de águas, por força da qual certo lote de terra,
que contava com uma nascente, deveria fornecer água a outros dois lotes, pelo tempo que
fosse necessário para que estes adquirissem capacidade plena para obter água alhures
(momento em que se daria por extinta a servidão). A relatora do acórdão, Min. Nancy
Andrighi, propôs uma abordagem inovadora para a questão, afirmando que a condição
resolutiva que determinava o momento da extinção do direito real de servidão fosse
interpretada conforme os ditames do princípio da boa-fé objetiva, princípio que é tipicamente
aplicado aos direitos obrigacionais.36
O caso apresenta diversas peculiaridades relevantes. Trata-se de Recurso
Especial intentado contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A
ação original pretendia o cumprimento de obrigação de fazer, cumulada com pedido de
reparação de danos materiais e morais. No caso, três irmãos eram proprietários de uma
fazenda, posteriormente desmembrada para a criação de um loteamento. No momento do
desmembramento, os ex-condôminos constituíram servidão mediante a qual um deles, que
ficara com a propriedade sobre o lote onde se encontrava uma nascente de água, obrigava35
STJ, REsp. 1.124.506, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 19.6.2012, publ. 14.11.2012.
De fato, em sua matriz tedesca, o princípio da boa-fé objetiva desenvolveu-se como fundamento do direito
obrigacional. A relevância da boa-fé objetiva para o direito das obrigações alemão, sobretudo por interpretação
do § 242 do BGB, é registrado por ENNECCERUS, KIPP e WOLF, que reconhecem como “principio supremo
y absoluto que domina todo elderecho de obligaciones, el de que todas las relaciones de obligación, en todos
los aspectos y en todo sucontenido, estánsujetas al imperio de labuenafe” (Tratado de derecho civil. Volume
II, tomo 1. Barcelona: Bosch, 1947,p. 19).
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se a fornecer parte da respectiva vazão aos demais lotes. Essa servidão foi estabelecida com
a condição resolutiva de valer somente até que o lote vizinho se tornasse autônomo, obtendo
toda a água necessária às suas necessidades por fontes independentes. Anteriormente à
assinatura do contrato de servidão, contudo, o proprietário do prédio serviente teria
formalizado, perante o Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), um pedido
de pesquisa para exploração comercial da água, com exclusividade, constituindo para tanto
uma empresa. O pedido foi deferido e a exploração da nascente inviabilizou o abastecimento
de água dos ex-condôminos. Posteriormente, o dono do prédio serviente veio a falecer.
Os proprietários dos dois outros lotes ajuizaram, em seguida, ação de
servidão em face do espólio, com o objetivo de condenar o réu a fornecer 1/3 (um terço) da
vazão de água da nascente aos outros lotes; indenizar o valor correspondente, caso o
fornecimento fosse impossível; e reparar o dano moral causado. A sentença de primeiro grau
julgou improcedentes os pedidos formulados. Os ex-condôminos, irresignados, apelaram da
decisão, assim como o espólio do proprietário do prédio serviente, que pretendia a majoração
dos honorários advocatícios fixados na sentença a quo. O acórdão deu parcial provimento
apenas ao recurso do espólio, ao passo que negou provimento ao recurso dos ex-condôminos.
A decisão do Tribunal de Justiça recebeu a seguinte ementa:
Apelação cível. Obrigação de fazer. Indenização por danos materiais e
morais. Contrato de servidão de águas. Sentença de improcedência. Valor
da causa. Pedidos subsidiários. Valor do pedido principal. Cumprimento
contratual. Contrato sem conteúdo econômico registrado. Abastecimento
de água a outro imóvel. Estimativa em R$ 50.000,00. Razoabilidade.
Benefício econômico que carecia de certeza e determinação. Mérito.
Verificação da subsistência do contrato e da possibilidade do implemento
da obrigação. Contrato de servidão de água. Condição resolutiva expressa
consistente na auto-suficiência quanto ao abastecimento de água. Prova
dos autos. Memorial descritivo do condomínio-autor, que revela a
implementação da condição. Auto-suficiência para abastecimento de água,
que também foi admitida pelo condômino e apelante-autor em assembleia
condominial. Implementada a condição resolutiva, a obrigação de fornecer
água restou extinta. Uma vez desfeito o pacto, não pode a superveniente
escassez de água - seja oriunda dos condôminos – pretender ressuscitá-lo.
Danos morais. Inocorrência de conduta que configure violação aos direitos
dos apelantes-autores. Fatos que, em tese, estariam exauridos do dano
patrimonial. Honorários advocatícios. Reforma da sentença para fixá-los
na forma do art. 20, §4º, do CPC. Apreciação equitativa do magistrado.
Complexidade da causa, existência de incidente processual e zelo
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profissional, a justificar a sua majoração para R$ 10.000,00. Parcial
provimento do primeiro recurso e desprovimento do segundo.37
Em sede de Recurso Especial pelos ex-condôminos em litisconsórcio,
arguiu-se a violação dos arts. 1.387, 1.383 e 1.388 do Código Civil (uma vez que a servidão
somente poderia ser cancelada por meio de ação judicial, não se podendo reconhecer sua
caducidade incidentalmente); do art. 71, §3º do Código de Águas (Decreto 24.643/1934) e
do art. 1º, III, da Lei 9.433/1997 (que estabelecem, como prioridade para a utilização dos
recursos hídricos, as necessidades da vida, o consumo humano e a dessedentação de
animais). O acórdão, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, deu provimento ao recurso em
votação por maioria, vencido o Min. Ricardo Villas BôasCueva. A decisão foi assim
ementada:
Processo civil e direito civil. Direitos reais. Servidão de água. Estabelecimento.
Condição resolutiva. Extinção pela autossuficiência em captação da água pelo
prédio dominante, por fonte independente. Ação pleiteando o cumprimento da
servidão. Propositura por condomínio. Legitimidade. Litisconsórcio ativo
necessário. Inexistência. Hipótese de litisconsórcio ativo facultativo unitário.
Litisconsórcio passivo entre o prédio serviente e a União. Inexistência.
Competência da Justiça Federal. Inexistência. Julgamento de improcedência do
pedido pelo Tribunal local. Consideração de que foi implementada a condição
estabelecida para que se extinguisse a servidão. Aplicação do princípio da boa-fé
objetiva, em seu aspecto de vedação de comportamentos contraditórios.
Suppressio. Equívoco. Impossibilidade de reconhecimento incidental da ineficácia
do registro público. Necessidade de ação autônoma. Princípio da boa-fé objetiva
inaplicável para gerar a extinção de um direito, na espécie. Dever de colaboração
adimplido pelos titulares do prédio dominante. Necessidade de água. Bem público
essencial à vida. Ponderação de valores. Impossibilidade de se privilegiar o uso
comercial da água em detrimento de seu uso para o abastecimento das
necessidades humanas. Recurso especiais conhecidos e parcialmente providos. 1.
É cabível a interposição de embargos de declaração por terceiro interessado, para
esclarecimento de acórdão que julgou recursos de apelação. Hipótese em que o
terceiro é titular de uma das unidades integrantes do condomínio e o processo,
ajuizado por esta entidade, discutia o adimplemento de servidão de água instituída
em favor dos condôminos. 2. Não é possível considerar, como fez o Tribunal de
origem, que para ingressar no processo o proprietário teria de se valer do instituto
da oposição. Se o condomínio não tem personalidade jurídica de direito civil, salvo
para fins tributários, é incoerente dizer que ele possa ostentar um direito em
oposição ao direito dos condôminos, notadamente quando se fala de direito real
de servidão que, por determinação expressa de lei, é bem indivisível. 3. O
condomínio está legitimado, por disposição de lei taxativa, a representar em juízo
os condôminos quanto aos interesses comuns. O adimplemento da servidão de
água, conquanto seja direito de cada condômino, representa interesse comum de
todos, de modo que é adequada a propositura, por ele, de ação para discutir a
matéria. 4. Qualquer dos titulares de direito indivisível está legitimado a pleitear,
em juízo, o respectivo adimplemento. Não há, nessas hipóteses, litisconsórcio
ativo necessário. Há, em lugar disso, litisconsórcio ativo facultativo unitário,
37
Vale observar que, no julgamento pelo Tribunal de Justiça, houve voto vencido, de lavra do então Des. Luís
Felipe Salomão, reconhecendo que a servidão anteriormente estabelecida para os lotes representava um
acréscimo de valor para as propriedades, de modo que sua extinção, provocada por ato do réu, somente poderia
ser admitida mediante indenização.
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consoante defende renomada doutrina. Nessas hipóteses, a produção de efeitos
pela sentença se dá secundumeventum litis: somente os efeitos benéficos, por força
de lei, estendem-se aos demais titulares do direito indivisível. Eventual julgamento
de improcedência só os atinge se eles tiverem integrado, como litisconsortes, a
relação jurídica processual. 5. Conquanto a água seja, por disposição de lei,
considerada bem público, não há litisconsórcio necessário passivo entre o
proprietário do terreno serviente e a União em uma ação que pleiteie o
adimplemento de uma servidão de água, por vários motivos: (i) primeiro, porque
a União pode delegar a Estados e Municípios a competência para outorga de direito
à exploração da água; (ii) segundo, porque não é necessária tal outorga em todas
as situações, sendo possível explorar a água para a satisfação de pequenos núcleos
populacionais independentemente dela. Assim, numa ação que discuta a utilização
da água, a União não é litisconsorte passiva necessário podendo, quando muito,
ostentar interesse jurídico na solução da lide, nela ingressando na qualidade de
assistente. 6. Sendo de mera assistência a hipótese, não é possível ao juízo estadual
declinar de sua competência para julgar a causa sem que a União tenha, em algum
momento, manifestado interesse de participar do processo. Sem tal manifestação,
o processo deve tramitar normalmente perante a Justiça Comum. 7. Não é possível
ao juízo negar cumprimento a uma servidão estabelecida em registro público, com
fundamento na invalidade ou na caducidade desse registro, se não há uma ação
proposta para esse fim específico pelo titular do prédio serviente. O que motiva a
existência de registros públicos é a necessidade de conferir a terceiros segurança
jurídica quanto às relações neles refletidas. Para que se repute ineficaz a servidão,
é preciso que seja retificado o registro, e tal retificação somente pode ser requerida
em ação na qual figurem, no polo passivo, todos os proprietários dos terrenos nos
quais tal servidão se desmembrou, notadamente considerando a indivisibilidade
desse direito real. 8. Não obstante, a lei é expressa em reputar a água bem essencial
à vida. Se há escassez no condomínio que fora beneficiado pela servidão, não é
possível, em ponderação de valores, privilegiar o uso comercial da água, pelo
titular do prédio serviente, em detrimento de seu uso para o abastecimento
humano. 9. A falta de requerimento de implementação da servidão por anos após
firmado o contrato indica que o condomínio cumpriu com seu dever de
colaboração, buscando seu abastecimento por fontes autônomas. Uma vez
constatada a insuficiência dessas fontes, contudo, não se pode reputar caduca a
servidão com fundamento no instituto da suppressio. O princípio da boa-fé
objetiva não pode atuar contrariamente a quem colaborou para o melhor
encaminhamento da relação jurídica de direito material. 10. Se não há intuito
protelatório na interposição de embargos de declaração, é imperativo o
afastamento da multa fixada pelo art. 538 do CPC. 11. Recursos especiais
conhecidos e parcialmente providos.
Na perspectiva que vislumbra nos direitos reais a simples contraposição de
um interesse individual e um interesse geral, dificilmente faria sentido a aplicação da boa-fé
objetiva. De fato, a boa-fé figura como o princípio que foi responsável por remodelar o
direito contratual, de modo que a relação obrigacional deixasse de funcionar como o estatuto
de tutela do credor em face do devedor e passasse a ser vista como um processo cooperativo
entre ambos,38 criando deveres recíprocos que, conquanto apresentem fonte legal,39
38
No ponto, indispensável a referência a SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de
Janeiro: FGV, 2006.
39
Trata-se do processo que se denomina heterointegração do contrato, assim sintetizado por Stefano RODOTÀ:
“In definitiva, con l'eterointegrazione [...] si allude a forme di intervento sul contratto che vanno al di là del
pur ampio svolgimento della logica della dichiarazione e che, quindi, si aggiungono all'attività delle parti
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agregam-se ao conteúdo do negócio jurídico.40 Como é intuitivo, a noção de cooperação não
se aplica com facilidade entre um indivíduo e toda a coletividade; cooperam entre si, em
geral, sujeitos determinados.41 Entre os titulares do prédio dominante e o dono do prédio
serviente, porém, faz sentido falar em atuação de boa-fé.
Foi o que reconheceu o STJ, fazendo incidir ao caso a mesma lógica que
orienta as relações obrigacionais ao identificar no exercício da servidão amplo espaço para
a autonomia privada e, consequentemente, relevante necessidade de cooperação entre as
partes envolvidas.42 Essa aplicação da boa-fé objetiva, adiante comentada em maior detalhe,
exemplifica com clareza a aproximação verificável entre o perfil do exercício de uma
situação jurídica subjetiva de crédito e de uma situação jurídica subjetiva real.43
nella costruzione del definitivo regolamento contrattuale” (Le fonti di integrazione del contratto. Milano:
Giuffrè, 1969, p. 9).
40
Ao ponto de seu descumprimento, segundo parte da doutrina, ensejar verdadeiro inadimplemento contratual.
Para um estudo recente e com ampla indicação bibliográfica sobre o tema, cf. SILVA, Rodrigo da Guia.
Inadimplemento contratual decorrente do descumprimento de deveres anexos. Revista da EMARF, vol. 18. Rio
de Janeiro, jul/2013, pp. 308 e ss.
41
A esse propósito, é tradicional, particularmente na doutrina italiana, a distinção que associa as situações
jurídicas de crédito a relações de cooperação e as situações jurídicas reais a relações de concorrência. A
distinção é assim sintetizada por Marco COMPORTI: “V’è chi ha ritenuto che i rapporti sociali si svolgano
essenzialmente sulle due direttive della concorrenza e della cooperazione: nella prima direttiva della
concorrenza i rapporti giuridici, regolati dalle norme distributive, diretti all’attribuzione a ciascun soggetto
di una sfera di godimento dei beni della vita, darebbero luogo ai rapporti reali; nella seconda direttiva della
cooperazione i rapporti giuridici, costituiti dalle norme commutative e diretti alla variazione della sfera di
godimento delimitata dalle norme distributive, per il miglior raggiungimento dei fini di ciascuno,
costituirebbero i rapporti obbligatori” (Diritti reali in generale, cit., pp. 63-64). A distinção entre relações de
cooperação e concorrência é normalmente atribuída a Francesco CARNELUTTI, que, no entanto, reconhece
sua insuficiência para esclarecer a distinção entre direitos obrigacionais e reais, sobretudo conforme se
compreendeu que o credor poderia dispor de seu crédito como se se tratasse de um bem (marca que outrora
caracterizou a propriedade), ao passo que ao proprietário a lei passou a impor restrições à disposição (Teoria
geral do direito, cit., pp. 286-289).
42
A servidão, aliás, costuma ser indicada pela doutrina como um dos direitos reais que mais abrem espaço à
autonomia privada: “La servitù è il diritto reale che riserva il maggior campo all’autonomia privata in quanto,
nel vasto ambito dell’utilità oggettiva del fondo dominante, che funge da criterio di qualificazione privatistica
dello schema generale della servitù” (COMPORTI, Marco. Diritti reali in generale, cit., p. 150).
43
Observa Marco COMPORTI que, na doutrina alemã, “la questione più grave e più dibattuta resta
l’applicabilità del principio di buona fede (Treu und Glauben di cui al § 242 B.G.B.), per paralizzare
l’esigibilità di certe pretese in tema di servitù, di oneri reali, di azioni reali, od addirittura per determinare il
contenuto ed i limiti del diritto reale: e l’orientamento dominante appare favorevole all’estensione del
fondamentale principio di buona fede anche nel settore dei diritti reali” (Diritti reali in generale, cit., p. 168).
De outra parte, na doutrina italiana, “non sono mancate voci recenti che hanno evidenziato la questione, specie
riguardo agli iura in re aliena. È stato infatti sostenuto che la parte generale delle obbligazioni dovrebbe
servire ad integrare la disciplina dei diritti reali su cosa altrui, con riguardo non solo ai modi di estinzione,
ma anche all’esercizio del diritto ed all’adempimento del dovere ed il principio di correttezza e buona fede
dovrebbe valere anche per la disciplina suddetta, senza bisogno di particolari adattamenti” (pp. 168-169).
Não significa, por outro lado, que os deveres de cooperação não atuem de forma mais marcada em sede de
direitos obrigacionais. Segundo Pietro PERLINGIERI, um dos aspectos que devem ser verificados diante de
um caso concreto para distinguir entre direitos reais e obrigacionais é justamente “a existência, a qualidade e a
quantidade da cooperação que um sujeito é obrigado a dar para alcançar o resultado que constitui o conteúdo
da situação subjetiva” (O direito civil na legalidade constitucional, cit., p. 899).
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3. Perspectivas para a incidência das funções da boa-fé objetiva sobre o exercício de
direitos reais
Conforme amplamente difundido em doutrina, atribuem-se à boa-fé
objetiva três funções principais.44 Todas encontram-se previstas no Código Civil em
dispositivos específicos, duas na Parte Geral e uma no Livro das Obrigações. A distribuição
topográfica, embora não deva servir de argumento definitivo, talvez seja um indício
importante para a investigação do alcance e das possibilidades da aplicação da boa-fé
objetiva para além das relações obrigacionais. Trata-se de princípio decorrente da
solidariedade social e, por isso, mais voltado às relações patrimoniais, revelando-se
controversa em doutrina a possibilidade de se imporem interesses coletivos ou sociais como
parâmetros valorativos nas relações existenciais.45 O direito das coisas, assim, parece ser o
terreno mais fértil para a aplicação do princípio em sede extracontratual.
As funções da boa-fé previstas na Parte Geral do Código Civil
correspondem à função interpretativa (art. 113) e à função restritiva do exercício de direitos
(art. 187). Trata-se de duas funções cuja aplicação na seara dos direitos reais não deveria
causar grande perplexidade. De fato, a primeira, de índole hermenêutica, permite reconhecer
que pode (e costuma) haver um negócio jurídico na constituição dos direitos reais, e que as
cláusulas nele pactuadas devem ser interpretadas de modo a promover a cooperação entre as
partes; desnecessário dizer que o conteúdo dos direitos reais tipificado pelo legislador
também deve ser interpretado à luz do princípio. A segunda função, parâmetro valorativo do
abuso do direito, promove o controle axiológico do exercício de qualquer situação subjetiva,
inclusive real: mesmo em direitos que têm o seu conteúdo tipificado (aparentemente, sem
grande liberdade criativa para as partes quanto ao seu exercício), espera-se que seu titular
não aja de modo contrário ao ordenamento, seja de modo ilícito (contrariando a estrutura
44
Por todos, v. MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1999, p. 427. Trata-se de tripartição bastante difundida pela obra de Franz WIEACKER (cf. El principio
general de labuena fé. Madrid: CuadernosCivitas, 1982, p. 50), segundo o qual “o parágrafo242 BGB atua
também iuris civilisiuvandi, supplendi ou corrigendi gratia”.
45
Ilustrativamente, a suposta função social de situações existenciais é negada, dentre outros, por Maria Celina
BODIN DE MORAES (Ampliando os direitos da personalidade, cit., p. 388): “Como consequência direta da
constitucionalização do direito civil, portanto, no âmbito patrimonial os institutos são tutelados em razão e nos
limites da sua função social. Já no âmbito extrapatrimonial não se deve cogitar de direitos-deveres para com a
sociedade porque não cabe esperar o exercício de função social com relação aos atributos existenciaisconstitutivos da pessoa humana”.
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que o legislador previu para seu direito), seja de modo abusivo (contrariando a função
subjacente à disciplina legal).46
A terceira grande função da boa-fé objetiva, aquela que prevê deveres
positivos de cooperação entre as partes, encontra-se prevista no Livro das Obrigações do
Código Civil, em seu art. 422. Para além do fato de não estar inserida na disciplina geral do
negócio jurídico, mas sim no regime das relações contratuais (o que poderia indicar uma
opção legislativa mais restritiva quanto à sua incidência), esta função afigura-se mais
delicada em sua aplicação, justamente por impor às partes novos deveres positivos, para
além daqueles oriundos do regramento contratual ou, caso estendida às relações reais, do
tipo legal. Outros princípios derivados da solidariedade social, como a própria função social,
enfrentaram dificuldade inversa, tendo encontrado aplicação mais sólida no âmbito dos
direitos reais do que nos contratos (justamente por contraporem interesses individuais a
interesses coletivos ou sociais, o que explica que se adaptem melhor a direitos oponíveis
erga omnes).47 O trabalho doutrinário e jurisprudencial no sentido de se determinar um
conteúdo específico para esta terceira função da boa-fé em matéria de direito das coisas
(seguindo-se o exemplo da função social) afigura-se, desse modo, muito mais árduo.
As duas primeiras funções mencionadas parecem ter sido aquelas
aplicadas ao caso julgado pelo STJ que ora se comenta. De fato, ao negócio jurídico que
constituiu a servidão foi aposta uma condição resolutiva: a que previa a extinção do direito
real no momento em que os titulares do direito pudessem obter água de outro modo. Como
se sabe, salvo no caso de desapropriação, as servidões levadas a registro apenas se extinguem
formalmente (ao menos em face de terceiros) uma vez cancelado este.48 Embora tal seja um
requisito para que cesse sua eficácia em face de terceiros, a doutrina sempre admitiu que
entre as partes o dever jurídico do titular do prédio serviente termine concomitantemente
46
Sobre esta distinção entre ato ilícito e abuso do direito, permita-se remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de.
Abuso do direito: novas perspectivas entre a licitude e o merecimento de tutela. Revista Trimestral de Direito
Civil, vol. 50, abr-jun/2012, pp. 66 e ss.
47
Sobre as diferenças de aplicação da função social no âmbito contratual e no direito de propriedade, permitase remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Função negocial e função social do contrato: subsídios para um
estudo comparativo. Revista de Direito Privado, vol. 54, abr-jun/2013, pp. 85 e ss.
48
A regra, já existente sob a égide do Código Civil de 1916, foi reproduzida pelo Código Civil em vigor: “Art.
1.387. Salvo nas desapropriações, a servidão, uma vez registrada, só se extingue, com respeito a terceiros,
quando cancelada [...]”. Assim também em doutrina: “a efetiva extinção de uma servidão, perdendo sua eficácia
de direito real, importa, como regra geral, em um ato complexo: causa extintiva mais cancelamento no Registro
de Imóveis” (NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Direito real de servidão. Rio de Janeiro: AIDE,
1985, p. 199).
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com a cessação da utilidade para o prédio dominante,49 cessação esta que pode estar prevista
em cláusula do próprio negócio que instituiu a servidão50 – o que aconteceu no caso em
questão.51 O legislador de 2002 também consagrou esta modalidade de cessação no art.
1.388, II,52 mas exigiu do dono do prédio serviente que a prove judicialmente.
Não tendo havido cancelamento da servidão no registro nem instrução
judicial provando a cessação da utilidade, é de se duvidar que o titular do prédio serviente
pudesse, em regra, dar por extinta a servidão; a existência de condição resolutiva expressa,
porém, poderia autorizá-lo a negar o fornecimento de água (a rigor, jamais utilizado pelos
prédios dominantes), desde que interpretada a cláusula conforme a boa-fé objetiva – vale
dizer, de modo a promover uma relação cooperativa entre as partes. Caso se entendesse que
não restou plenamente configurada a cessação da utilidade, o comportamento do dono do
prédio serviente ao se recusar ao fornecimento de água resultaria abusivo. Eis a aplicação
das duas aludidas funções da boa-fé objetiva.
In casu, considerou o Superior Tribunal de Justiça que o fato de o
fornecimento de água jamais ter sido requisitado pelos prédios dominantes não era suficiente
para caracterizar a extinção da servidão. Com efeito, a doutrina tradicional sempre afirmou
que o não uso era uma forma legítima de exercício dos direitos reais53 – e mesmo atualmente,
à luz do princípio da função social, o descumprimento desta pode até acarretar a
desapropriação do bem, ou a negativa de tutela ao proprietário no caso de uma disputa
possessória, mas não propriamente a extinção automática do direito.54 No entanto,
justamente em matéria de servidão, prevê o legislador, desde a vigência do Código Civil de
49
O Código Civil de 1916 apenas aludia, em seu art. 709, II, à servidão de passagem que tenha cessado pela
abertura de acesso à via pública. A doutrina, porém, ampliava tal previsão. Por todos, v. ESPÍNOLA, Eduardo.
Os direitos reais limitados ou direitos sobre a coisa alheia e os direitos reais de garantia no direito civil
brasileiro. Rio de Janeiro: Conquista, 1958, p. 158.
50
NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Direito real de servidão, cit., p. 226.
51
Conforme se extrai do inteiro teor do acórdão do STJ, a cláusula do instrumento particular de servidão de
água estabelecia que: “[...] Fica, outrossim, acordado que, quando a data de terras remanescente possuir água
com capacidade própria para o seu abastecimento, a presente servidão estará automaticamente extinta, para
todos os efeitos de direito. [...]”.
52
Verbis: “Art. 1.388. O dono do prédio serviente tem direito, pelos meios judiciais, ao cancelamento do
registro, embora o dono do prédio dominante lho impugne: [...] II - quando tiver cessado, para o prédio
dominante, a utilidade ou a comodidade, que determinou a constituição da servidão; [...]”.
53
Por todos, veja-se a lição de Caio Mário da Silva PEREIRA: “Uma pessoa pode, na verdade, deixar de
exercer qualquer ato em relação à coisa, sem perda do domínio. Temos dito e repetido que o não-uso é uma
forma de sua utilização. A casa pode permanecer fechada, o terreno inculto, e nem por isso o dono deixa de sêlo” (Instituições de direito civil. Volume IV, cit., p. 200).
54
O não uso se torna, assim, apenas mais um aspecto a ser valorado à luz do caso concreto. A respeito do
direito de propriedade, afirma Gustavo TEPEDINO: “a inação apenas merecerá tutela do ordenamento se e
enquanto atender à função econômica e social da propriedade” (In AZEVEDO, Antônio Junqueira de (Coord.).
Comentários ao Código Civil, vol. 14. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 472).
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1916, uma raríssima hipótese em que o não uso de certo direito real acarreta sua perda, ao
dispor, no art. 1.389 do atual Código Civil, que a servidão se extingue pelo não uso por dez
anos contínuos.55 De qualquer forma, no caso concreto, transcorreram apenas oito anos de
não uso, não sendo possível invocar o dispositivo citado em favor do prédio serviente.
O acórdão faz, ainda, uma consideração: lembra que a água constitui bem
público de fundamental importância, e ressalta que o art. 1º, III da Lei n. 9.433/1997
determina que, “em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o
consumo humano e a dessedentação dos animais”, ao mesmo tempo que o art. 71, §3º do
Decreto n. 24.643/1934 (Código de Águas) dispõe que “terá sempre preferência sobre
quaisquer outros, o uso das águas para as primeiras necessidades da vida”. Assim, esclarece
a ementa do acórdão, “não é possível, em ponderação de valores, privilegiar o uso comercial
da água, pelo titular do prédio serviente, em detrimento de seu uso para o abastecimento
humano”. A alusão à ponderação de valores é significativa: sugere que, mesmo se a negativa
do prédio serviente ao fornecimento após tantos anos fosse considerada legítima (não
abusiva) em si mesma, igualmente o seria a pretensão dos prédios dominantes – e que,
balanceando-se os valores em jogo, considerou-se esta última merecedora de tutela56 em face
da primeira, a privilegiar o uso para subsistência sobre o uso para fins comerciais. A
complexidade desse juízo de valor evidencia ainda uma vez como o exercício de uma
situação jurídica real abrange um espaço de liberdade, carente de controle valorativo, que
não se esgota na tipificação legal.
Seria teoricamente possível, de outra parte, alegar suppressio, uma
aplicação da boa-fé que prescinde de prazo fixo,57 que permitiria considerar abusivo o
exercício do direito após anos de inércia dos titulares dos prédios dominantes. Contudo, tal
possibilidade, aludida pelo Tribunal Estadual, foi afastada pelo Superior Tribunal de
Justiça,58 ao argumento de que o fato de os titulares dos prédios dominantes não terem
Verbis: “Art. 1.389. Também se extingue a servidão, ficando ao dono do prédio serviente a faculdade de fazêla cancelar, mediante a prova da extinção: [...] III - pelo não uso, durante dez anos contínuos”.
56
Sobre o significado da expressão “merecimento de tutela” e sua relação com a ponderação, permita-se
remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil.
Revista de Direito Privado, vol. 58, abr-jun/2014.
57
A respeito, v. a célebre lição de MENEZES CORDEIRO: “Diz-se suppressioa situação do direito que, não
tendo sido, em certas circunstâncias, exercido durante um determinado lapso de tempo, não possa mais sê-lo
por, de outra forma, se contrariar a boa-fé. (...) O tempo sem exercício é eminentemente variável, consoante as
circunstâncias, para que possa haver suppressio; o segundo fator – o dos indícios objetivos de que não haverá
mais atuações – cuja necessidade é muito sublinhada, mas de conteúdo pouco explicitado, pode ter, na sua
determinação, um papel fundamental” (Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, pp. 797-811).
58
Colhe-se do inteiro teor do acórdão: “A discussão dos autos não mergulhou em razões subjetivas do agir do
instituidor da servidão – as quais podem ter existido, escusáveis ou não, consentidas, ou não, por titulares do
55
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buscado o fornecimento de água por tantos anos, longe de indicar omissão ou desnecessidade
da servidão, evidenciava o cumprimento de seu dever de buscar formas alternativas de
obtenção de água. Em outros termos, os oito anos de não exercício seriam a prova cabal de
que observaram seu dever de cooperação, procurando fontes alternativas; se, em dado
momento, a obtenção de água não foi possível, e justamente por não ter sido extinta a
servidão, faziam jus ao fornecimento pelo prédio serviente.
Por outro lado, diversas decisões, tanto do Superior Tribunal de Justiça
quanto dos tribunais estaduais, já têm admitido a aplicação da boa-fé objetiva em sede de
direitos reais, ainda que de modo incidental na fundamentação dos acórdãos, justamente por
meio das chamadas figuras parcelares59 da boa-fé objetiva, tais como a suppressio, a
surrectio e a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factumproprium).
Todas essas aplicações correspondem ao emprego da boa-fé objetiva como parâmetro de
aferição do exercício disfuncional (abusivo) de uma situação jurídica subjetiva – portanto, à
função restritiva do exercício de direitos que se atribui ao princípio.
Tome-se inicialmente a figura da suppressio. Diversos casos a respeito da
utilização exclusiva e prolongada no tempo de áreas comuns em condomínio edilício por um
ou alguns condôminos invocam tal aplicação da boa-fé objetiva. Em controvérsia a respeito
do fechamento de hall comum de certo edifício por dois condôminos, com alteração do
projeto para a unificação das respectivas unidades autônomas (a justificar o uso exclusivo
da área, que, de resto, já havia sido autorizado em assembleia condominial), registrou o
relator, Min. Ruy Rosado, a aplicação da suppressio como modalidade de tutela da confiança
e restrição ao exercício abusivo de direitos. Concluiu-se, no caso, pela impossibilidade de
retomada da área comum pelo condomínio, salvo se alguma mudança nas circunstâncias
justificasse a modificação desse benefício. A todo tempo, porém, asseverou-se que não era
o caso de usucapião da área ocupada exclusivamente pelos condôminos, na medida em que
imóvel serviente – mas a verdade é que os atos praticados arredam a configuração de boa-fé de caráter objetivo”
(voto-vista do Min. Sidnei Benetti).
59
Sobre a terminologia, cf. PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras parcelares da boa-fé objetiva e venire
contra factumproprium. Revista de Direito Privado, vol. 27. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul/2006.
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o uso da mesma ainda se reputava autorizado pelo condomínio.60 Outras decisões da Corte
sobre a mesma matéria alcançam idêntica conclusão com base na suppressio.61
A aplicação da suppressioao exercício de um direito real mostra-se
especialmente relevante por não se aplicar à matéria a prescrição extintiva.62 Com efeito,
como já observado, o não uso reiterado no tempo não corresponde, em regra, a uma hipótese
de perda do direito real – justamente porque, não se tratando de direito de crédito, o exercício
da situação jurídica não depende da exigência de uma prestação específica em face de outro
centro de interesses. A abstenção devida, ao revés, é geral e imputada ao chamado passivo
universal, devendo ser cumprida sempre, motivo pelo qual a inércia do titular do direito real
não parece causar qualquer insegurança jurídica (motivo que fundamenta, de outra parte, a
prescrição extintiva). Em sede de direitos reais, a consequência do não exercício será,
60
STJ, REsp. 214.680, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julg. 10.8.1999, publ. 16.11.1999. Extraise do voto do relator: “[...] pode ser invocada a figura da suppressio, fundada na boa-fé objetiva, a inibir
providências que já poderiam ter sido adotadas há anos e não o foram, criando a expectativa, justificada pelas
circunstâncias, de que o direito que lhes correspondia não mais seria exigida. A suppressio tem sido
considerada com predominância como hipótese de exercício inadmissível do direito e pode bem ser aplicada
neste caso, pois houve o prolongado comportamento dos titulares, como se não tivessem o direito ou não mais
quisessem exercê-lo; os condôminos ora réus confiaram na permanência desta situação [...]”.
61
Cf. STJ, REsp. 356.821, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 23.4.2002, publ. 5.8.2002; STJ, REsp.
325.870, 3ª T., Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 14.6.2004, publ. 20.9.2004. Assim também nos
tribunais estaduais. Em certo caso, julgado pelo TJSP, no qual se pretendia a demolição de uma cozinha de
restaurante construída em área comum de edifício, decidiu-se que, “na hipótese, não obstante não ocorrente a
prescrição, há que se reconhecer terem os autores perdido o direito à retomada da área e demolição da
respectiva construção face à inatividade no exercício da pretensão por período significativamente longo, o que
tornou legítima, considerado o princípio da boa-fé objetiva, a ocupação promovida pelos réus” (TJSP, A. Resc.
90094170920098260000, 15º G.C.D.Priv., Rel. Des. Orlando Pistoresi, julg. 12.12.12, publ. 27.1.2013).
62
O campo privilegiado para a aplicação da suppressio, aliás, consiste nas relações que não se sujeitam a prazo
prescricional, muito embora não se descarte a incidência da figura sobre direitos prescritíveis. A respeito,
afirma Anderson SCHREIBER: “Parece, todavia, razoável admitir que, neste confronto com os prazos legais
(prescricionais ou decadenciais), o valor da segurança que os inspira ceda em favor da tutela da confiança
naquelas hipóteses em que ao simples decurso do tempo se somem comportamentos do titular do direito [...]
ou circunstância de fato, imputáveis a ele ou não, que justifiquem uma tutela da boa-fé objetiva
independentemente e acima dos prazos fixados em leis, em uma espécie de prescrição de fato. Assim, nas
hipóteses de (i) omissão somada a comportamento comissivo inspirador da confiança; ou de (ii) omissão
qualificada por circunstâncias que, na ausência de qualquer comportamento do titular, sejam capazes de gerar
a confiança de terceiros, pode se tornar aceitável a aplicação do [...] Verwirkung, mesmo na pendência de um
prazo legal fixo. A efetiva ponderação, todavia, somente poderá ser feita em cada caso concreto” (A proibição
de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factumproprium. 2. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Renovar, 2007, p. 185).
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quando houver, a prescrição aquisitiva63 – consequência, portanto, no campo possessório,
sancionando-se a inércia do titular do direito que tarda em defender sua posse.64
O reconhecimento, porém, dos diversos aspectos de autonomia privada
inseridos no conteúdo dos direitos reais tem permitido a atração da lógica da extinção de
prerrogativas pelo decurso do tempo também para essa matéria e independentemente da
questão possessória ou da própria titularidade do direito, que permanece intacta: com efeito,
em todos os casos aludidos reconhece-se a manutenção do condomínio e assevera-se que o
uso exclusivo por determinados condôminos corresponde a posse consentida pelos demais –
não se tratando, portanto, de posse ad usucapionem, havendo mesmo decisões que
caracterizam tal uso exclusivo, de modo pouco técnico, como detenção. Ainda assim, negase à comunidade de condôminos a retomada da área comum por simples controle valorativo
do exercício da copropriedade à luz da boa-fé objetiva, tutelando-se a confiança despertada
pela autorização do uso exclusivo enquanto as circunstâncias permanecerem as mesmas, vale
dizer, enquanto nenhum prejuízo maior advenha da manutenção desse estado de coisas.
Trata-se, como se percebe, de aplicação inovadora da boa-fé, resolvendo-se a questão não
pelo prisma da titularidade ou pela tutela possessória, mas pelo controle valorativo da
autonomia inserida no exercício do direito.
Não raro, nasce a suppressio geminada com a surrectio, outra figura
parcelar da boa-fé que corresponde ao fenômeno contrário, a saber, à aquisição de uma
prerrogativa pela reiteração do comportamento nela contido ao longo do tempo,
independentemente de titularidade formal.65 A surrectio foi invocada, por exemplo, no caso
63
A distinção é explicitada em doutrina por meio das figuras das faculdades legais e das faculdades
convencionais, conforme leciona Caio Mário da Silva PEREIRA: “Não prescrevem, igualmente, as chamadas
faculdades legais, também designadas como direitos facultativos, que pertencem ao sujeito como
consequências naturais do próprio direito, e se distinguem das denominadas faculdades convencionais,
suscetíveis de prescrição, como direitos que são. Assim, não está sujeita à prescrição a faculdade que tem o
proprietário de utilizar a coisa sua (facultas inerente ao domínio), mas prescreve a que lhe concede o vizinho
de atravessar seu prédio (servidão de trânsito, que é um direito subjetivo). Imprescritível é o direito de
propriedade, exerça-o ou não o dono, por qualquer tempo que seja. Mas se tolera que um terceiro o exclua da
utilização da coisa, e se não se insurge contra a criação de uma situação de fato contrária ao seu direito, pode
vir a perder o domínio por usucapião. A conciliação dos princípios está em que a falta de exercício das
faculdades legais não importa em causa de sua extinção; mas, se tolera o titular que um terceiro adquira um
direito contrário ao seu exercício, perde-as” (Instituições de direito civil. Volume I. Rio de Janeiro: GEN, 2014,
pp. 577-578).
64
Ou, quando muito, a desapropriação diante do descumprimento da função social ou a tutela privilegiada de
outro exercício possessório que se revele mais promovedor dos valores do ordenamento. Sobre esta última
hipótese, permita-se remeter a SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da
legalidade no direito civil, cit., pp. 99 e ss.
65
Conforme leciona MENZES CORDEIRO: “A suppressio é, apenas, o subproduto da formação, na esfera do
beneficiário, seja de um espaço de liberdade onde antes havia adstrição, seja de um direito incompatível com
o do titular preterido, seja, finalmente, de um direito que vai adstringir outra pessoa por, a esse mesmo
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de certo condomínio edilício que, por muito tempo, deixou de cobrar taxa condominial a
uma unidade autônoma. Compreendeu-se que essa atitude resultou em prerrogativa para o
titular da unidade, que se transmitia até mesmo ao novo adquirente desta.66 Outra relevante
figura parcelar da boa-fé objetiva consiste na vedação ao comportamento contraditório
(nemopotestvenire contra factumproprium). Trata-se da proibição de que o titular de certa
situação jurídica passe a exercê-la de modo contraditório ao exercício anterior, contrariando
confiança despertada no outro centro de interesses da relação.67 Na matéria, já se considerou
contraditória a conduta do proprietário que repentinamente bloqueou rampa em seu terreno
que dava acesso ao lote vizinho, incomodado com o comportamento das moradoras do lote
ao lado, após ter permitido a passagem por certo tempo – muito embora se tenha afirmado
que ele poderia fazê-lo legitimamente, se assinasse prazo bastante para que as vizinhas
fizessem construir acesso próprio.68
Aplicação dúplice da função restritiva do exercício de direitos e da função
interpretativa da boa-fé objetiva pode ser colhida de decisão do STJ a respeito de
supermercado que fez instalar no prédio em que se situava equipamento de refrigeração
ruidoso, que incomodava um dos moradores.69 Com efeito, embora a convenção de
condomínio declarasse que o edifício se destinava exclusivamente ao fim comercial, sempre
se admitiu também o uso residencial no prédio, a caracterizar a abusividade na instalação de
equipamento cujas imissões sonoras não seriam compatíveis com este segundo uso. No caso,
a boa-fé objetiva funcionou, ainda, como critério auxiliar para a interpretação da convenção
condominial, exigindo-se a devida consideração dos dois usos (residencial e comercial)
concretamente desenvolvidos do prédio. A mesma função interpretativa pode ser observada
em caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no qual se pretendia a extinção de
usufruto por modificação da destinação econômica do imóvel.70 Afirmou-se, na hipótese,
beneficiário, se ter permitido atuar desse modo, em circunstâncias tais que a cessação superveniente da
vantagem atentaria contra a boa fé. O verdadeiro fenômeno em jogo é o da surrectio, entendida em sentido
amplo. [...] Assim, o beneficiário tem de integrar uma previsão de confiança [...]” (Da boa-fé no direito civil,
cit., p. 824). No mesmo sentido, AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por
incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE, 2004, p. 255.
66
TJDFT, Ap. Civ. 912152020028070001, 4ª T.C., Rel. Des. Cruz Macedo, julg. 30.6.2005, publ. 20.9.2005.
67
Segundo MENEZES CORDEIRO, “A locução venire contra factumproprium traduz o exercício de uma
posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Esse exercício
é tido, sem contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível” (Da boa-fé no direito civil,
cit., p. 742). A respeito, v. também SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório:
tutela da confiança e venire contra factumproprium, cit., p. 114.
68
TJSP, Ap. Civ. 00122822820088260281, 12ª C.D.Priv., Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves, julg. 29.8.2014,
publ. 29.8.2014.
69
STJ, REsp. 1.096.639, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 9.12.2008, publ. 12.2.2009.
70
TJSP, Ap. Civ. 6210154100, 4ª C.D.Priv., Rel. Des. Maia da Cunha, julg. 9.2.2009, publ. 18.3.2009.
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que a noção de destinação econômica deve ser interpretada conforme a boa-fé objetiva e
com atenção às peculiaridades do caso concreto, o que permitiu concluir que o acréscimo de
nova destinação (extração de areia em pequena área cujo solo não servia à agricultura) não
representava violação da destinação principal do imóvel (atividade agrícola e pastoril).71
De se questionar, aliás, se não seria possível identificar, no mesmo caso
sobre o usufruto, a criação de um dever positivo para o nu-proprietário, com base na
aplicação da boa-fé objetiva, de tolerar o uso do imóvel para extração de areia, à revelia do
acordo original que constituiu o usufruto para fins de exploração agrícola. Com efeito, a boafé impôs o temperamento da destinação principal pactuada, de modo que não apenas se
reputaria abusiva a pretensão do nu-proprietário de ter extinto o usufruto com base na
mudança de destinação (ferindo-se um dever geral de não exercer seu direito de forma
disfuncional), como se poderia mesmo dizer que o princípio impõe a ele um dever específico
de permitir essa exploração secundária. Ingressa-se, aqui, no campo da terceira função da
boa-fé objetiva, aquele de criação de deveres anexos – aplicação do princípio que, como já
se observou, afigura-se mais complexa e muito menos usual que as outras duas em matéria
de direitos reais.
A maior complexidade na criação de deveres positivos aos titulares de
direitos reais baseados na incidência do princípio da boa-fé não deve servir de óbice ao seu
reconhecimento doutrinário e jurisprudencial. Com efeito, não se deve afastar a priori o
surgimento de deveres de cooperação em situações reais, sobretudo aquelas decorrentes de
relações de vizinhança, de condomínio ou de direitos reais sobre coisa alheia, hipóteses em
que costuma haver um contato intenso entre as partes envolvidas. Pode-se cogitar, por
exemplo, de específicos deveres de sigilo nas relações entre vizinhos, para além do simples
dever legal de abstenção de interferências indevidas, deveres de cooperação e colaboração
entre condôminos na administração da coisa em comum ou deveres de cuidado e proteção
da coisa alheia pelo detentor de direito real limitado para além daqueles previstos pelo tipo
legal ou pelo negócio de constituição do direito.
As possibilidades são incontáveis, bastando para tanto considerar que a
boa-fé encontra suas raízes na noção de contato social72 – onde existir esse contato, e quanto
71
De fato, também em doutrina se entende que a disciplina do exercício desse direito real visa à preservação
da substância da coisa e, portanto, “se esta não for afetada, perde sentido a restrição, em homenagem ao
princípio da boa-fé objetiva e da função social do negócio jurídico” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. In:
PELUSO, Cezar (Coord.). Código Civil comentado. Barueri: Manole, 2013, p. 1467).
72
A respeito do contato social, leciona Judith MARTINS-COSTA, “o contato social obedece a uma inesgotável
multiplicidade de tipos, definidos consoante os igualmente inesgotáveis graus de proximidade ou distância e
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mais próximo e duradouro for ele, aí incidirão os deveres derivados da boa-fé objetiva,
incluídas muitas relações de natureza real nas quais o contato constante entre sujeitos
específicos mostra-se indissociável de seu próprio exercício. A tarefa é desafiadora, mas
parece uma parada obrigatória no itinerário de aproximação que têm sofrido os dois grandes
campos do direito civil patrimonial nos últimos anos.
4. Síntese conclusiva
Sabe-se que o direito das obrigações e o direito das coisas, dois principais
setores do direito civil patrimonial, não apresentam mais a distinção rígida que os
caracterizava no passado, admitindo-se, por exemplo, cada vez mais que direitos
obrigacionais possam ser oponíveis a terceiros, que direitos reais sejam criados de modo
atípico e assim por diante. Esta fase de aproximação justifica a associação desses dois
setores, guardadas as disciplinas específicas que continuam a lhes ser inerentes, a uma lógica
comum de autonomia privada patrimonial. Com efeito, a autonomia privada, princípio que
caracteriza o próprio objeto de estudo do direito civil, é muitas vezes aplicada na prática
apenas como um princípio orientador do direito contratual, dado o caráter atípico que
caracteriza este último, como se a tipicidade dos direitos reais negasse um significativo
espaço de autonomia tanto na constituição desses direitos como no momento de seu
exercício.
O caso apreciado pelo STJ por ocasião do julgamento do REsp.
1.124.506/RJ, nesse sentido, fornece uma importante consequência da verificação desse
espaço de autonomia no âmbito dos direitos reais, ao lançar mão das funções da boa-fé para
a valoração do exercício de situações jurídicas reais. A aplicação desse princípio,
normalmente restrita ao direito obrigacional, nestes casos demonstra como o controle
valorativo do exercício dos direitos reais não se esgota na disciplina prevista pelo tipo legal,
exigindo uma análise funcional do merecimento de tutela desse exercício como espaço de
autonomia privada que representa – característica comum, aliás, a todo o direito civil
patrimonial. Nesse sentido, aplicam-se as tradicionais funções da boa-fé objetiva
(hermenêutica, restritiva do exercício disfuncional de direitos e criadora de deveres
conforme as concretas situações em que operam” (A boa-fé no direito privado, cit., p. 402). Conforme observa
a autora, há deveres que, “no contato social juridicamente valorizado, nascem de atos não negociais, como os
atos-fatos, os atos jurídicos em sentido estrito e os atos ilícitos” (p. 403). A autora propõe, com base em Clóvis
do Couto e Silva, o contato social como fonte imediata de todos os deveres obrigacionais.
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positivos) também em matéria de direitos reais, tendência que se consolida na jurisprudência
brasileira.
Dentre as três funções, predomina em sede de direito das coisas a aplicação
da boa-fé como parâmetro de aferição do exercício abusivo dos direitos, sobretudo por meio
da aplicação das chamadas figuras parcelares, como a suppressio, a surrectio e a vedação ao
venire contra factumproprium. No entanto, verifica-se também a aplicação da função
interpretativa, não sendo de se afastar, tampouco, a possibilidade de criação de deveres
positivos aos titulares de direitos reais. Esta última aplicação, mais complexa e menos usual
que as demais, deve ter por base o reconhecimento dos espaços de autonomia no conteúdo
dos direitos reais e a incidência da boa-fé objetiva às situações de contato social, contato este
que se verifica em diversas relações reais, como as de vizinhança, de condomínio e de direito
sobre coisa alheia.
Recebido em 17/02/2015
1º parecer em 08/03/2015
2º parecer em 07/04/2015
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RESPONSABILIDADE CIVIL DE PROVEDORES DE CONTEÚDO DA
INTERNET
Civil liability of internet content providers
Thiago Guimarães Moraes
Graduando em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Mestre em Ciência da
Informação pela UnB. Graduado em Engenharia de Redes de Comunicação pela UnB
Resumo: Este trabalho explora o tema da responsabilidade civil na internet, através de
recorte na análise da responsabilidade de provedores de conteúdo. De forma a abordar o
tema, o artigo apresenta conceitos básicos da responsabilidade civil, avançando então para a
análise da responsabilidade civil de provedores de conteúdo e redes sociais da internet, tendo
por base a doutrina. Em seguida, faz-se apresentação da jurisprudência sobre o tema
seguindo, por fim, para a lei, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Conclui assim, o
trabalho, tendo por base as principais fontes do direito: doutrina, jurisprudência e lei.
Palavras-chave: Responsabilidade civil na Internet; Provedor de conteúdo; Marco Civil da
Internet.
Abstract: This work explores the issue of civil liability on the Internet, through the clipping of
analysis of internet content providers civil liability. To address the issue, the article presents basic
concepts of liability, then advancing to the analysis of liability for internet content providers and
social networks, based on the doctrine. Then it presentes jurisprudence about the theme followed,
finally, to the law, the “Marco Civil da Internet” (Law 12,965/2014). Thus the paper concludes, based
on the main sources of law : doctrine , jurisprudence and law.
Keywords: Civil Liabilityonthe Internet; Internet contentprovider; Marco Civil da Internet.
Sumário: Introdução – 1. Conceitos Básicos da Responsabilidade Civil – 2.
Responsabilidade Civil de Provedores de Conteúdo e Redes Sociais da Internet – 3.
Jurisprudência sobre a Responsabilidade dos Provedores de Conteúdo – 4. Marco Civil da
Internet e a Responsabilidade dos Provedores de Conteúdo – 5. Conclusão
Introdução
Este estudo analisa o tema da responsabilidade civil na Internet. Por ser
este assunto amplo, realizou-se um recorte em que se focou na responsabilidade dos
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provedores de conteúdo. Parentoni1 conceitua o termo: "provedores de conteúdo são os
sujeitos de direito responsáveis por disponibilizar as informações na Internet, em espaço
próprio ou de terceiros”. Em outras palavras, eles lidam com a distribuição de conteúdo
online, como blogs, vídeos, música ou arquivos. Este conteúdo é geralmente acessível aos
usuários em vários formatos.
Entre os exemplos mais comuns de provedores de conteúdo estão os blogs,
fóruns e canais de compartilhamento de vídeos. Cabe aqui mencionar o Google, que oferece
uma série de serviços e produtos baseados na internet, dos quais se destacam o Youtube,
canal de compartilhamento de streams de vídeos, e o motor de busca, serviço mais popular
da empresa e considerado o site mais acessado no mundo.2
Um grupo de provedores que tem gerado bastante polêmica quanto à sua
classificação são os sites de relacionamento, também conhecidos como redes sociais. Boyd
e Ellison3 definem redes sociais como serviços web que permitem aos indivíduos: (1)
construir um perfil público ou semi-público partindo de um modelo de formulário
determinado; (2) articular uma lista de usuários com quem se irá compartilhar uma conexão;
e (3) visualizar e navegar através dessa lista de conexões e de outras estabelecidas pelos
outros usuários do sistema”.4
Como exemplos de redes sociais se destacam o Facebook e o Orkut, que
possuem hoje mais de um bilhão de usuários ativos.5 O ponto de discussão é se as redes
sociais são realmente provedoras de conteúdo, visto que todos os dados que compartilham
são criados por terceiros, os usuários que fazem parte destas comunidades.
Os exemplos citados já servem para elucidar a complexidade do tema, pois
estes provedores podem exercer controle editorial sobre as informações que disponibilizam
ou não. Quando o fazem, se tornam autores ou co-autores da informação produzida, sendo
1
PARENTONI, Leonardo Netto. Responsabilidade civil dos provedores de serviços na internet: Breves notas.
Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 67, ago 2009. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6314.> Acesso em: fevereiro de 2015.
2
Dados extraídos do relatório de 2009 da ComScore sobre rankings de mecanismos de busca. Para mais
informações,
acessar:
http://www.comscore.com/Insights/Press-Releases/2010/1/comScore-ReleasesDecember-2009-U.S.-Search-Engine-Ranking.
3
BOYD, D.M.; ELLISON, N.B.. Social network sites: definition, history, and scholarship. Journal of
Computer-Mediated Communication. Malden, n. 13, p. 210-230, 2008.
4
Traduzido do original peloautor. “Social network sites are web-based services that allow individuals to: (1)
construct a public or semi-public profile within a bounded system; (2) articulate a list of other users with whom
they share a connection and; (3) view and travers their list of connections and those made by others within the
system.” Disponível em: http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1083-6101.2007.00393.x/full”
5
FACEBOOK tem 1,23 bilhão de usuários mundiais; 61,2 milhões são do Brasil. UOL. São Paulo, SP, fev.
2014. Disponível em: <http://tecnologia.uol.com.br/noticias/afp/2014/02/03/facebook-em-numeros.htm>.
Acesso em: fevereiro de 2015.
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denominados provedores de informação. Muitos blogs entram nessa espécie. Leonardi
diferencia os dois termos:
Em boa parte da literatura informática e da doutrina jurídica existente sobre
a Internet é comum serem empregadas as expressões provedor de
informação e provedor de conteúdo como sinônimas, embora tal
equivalência não seja exata. O provedor de informação é toda pessoa
natural ou jurídica responsável pela criação das informações divulgadas
através da Internet. É o efetivo autor da informação disponibilizada por um
provedor de conteúdo. O provedor de conteúdo é toda pessoa natural ou
jurídica que disponibiliza na Internet as informações criadas ou
desenvolvidas pelos provedores de informação, utilizando para armazenálas servidores próprios ou os serviços de um provedor de hospedagem.6
É de se imaginar que a questão da responsabilidade toma proporções
diferentes quando o provedor de conteúdo é também provedor de informação ou quando ele
se mantém neutro, apenas sendo responsável pela transmissão ou disponibilização das
mensagens. Esta e outras peculiaridades sobre o tema têm levado a profundas divergências
doutrinárias e jurisprudenciais, e algumas delas serão exploradas neste artigo. Antes de sua
conclusão, o trabalho também irá apresentar o Marco Civil da Internet, a Lei 12965/2014,
recentemente aprovada, que veio trazer um direcionamento à discussão.
Porém, antes que se possam analisar a doutrina, jurisprudência e legislação
relativas, cabe explicar o que é a responsabilidade civil, conceito explorado na próxima
seção.
1. Conceitos básicos da responsabilidade civil
Para se discutir a responsabilidade civil na Internet, deve-se, em primeiro
lugar, estabelecer conceitos básicos sobre responsabilidade civil. José de Aguiar Dias, em
sua obra Da Responsabilidade Civil,7afirma que a responsabilidade é resultado da ação pela
qual o homem expressa o seu comportamento, em face do dever ou da obrigação. Surge
assim situação jurídica em que aquele que violou dever jurídico, causando dano a outrem,
tem a obrigação de recompor o dano ou, não sendo possível, indenizar o ofendido.
De Souza explica:
6
LEONARDI, Marcel, in TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz e SANTOS, Manoel J. Pereira dos (coord.),
Responsabilidade civil: responsabilidade civil na Internet e nos demais meios de comunicação, São Paulo,
Saraiva, p. 27, 2007.
7
DIAS, José A. Da responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
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a responsabilidade civil tem início com o ato ilícito e o surgimento da
obrigação de indenizar, no caso da responsabilidade aquiliana, e com o
inadimplemento de obrigação contratual, no caso de responsabilidade
contratual, e finda com o restabelecimento da situação da vítima antes da
ocorrência do fato danoso.8
Observa-se, assim, que são necessários certos elementos para que se possa
configurar a responsabilização, sendo estes: a) conduta, de ação ou omissão; b) nexo de
causalidade entre o ato e a consequência danosa; c) culpabilidade, na hipótese de
responsabilidade subjetiva.
Uma diferenciação importante de ser estabelecida é a de responsabilidade
subjetiva e objetiva. A responsabilidade subjetiva tem sua origem no próprio conceito
jurídico de responsabilidade, ainda no direito romano, evoluindo sob diversas formas ao
longo dos séculos, tendo como mais tradicionais, os modelos francês, alemão e anglo-saxão.9
Apesar de suas peculiaridades, o que todos esses modelos preconizam é a presença do
elemento subjetivo da ‘culpabilidade’ para fundamentar o dever de reparar. A existência do
dano não é suficiente, mas deve-se saber se ele resulta de um ato ilícito, vinculando o sujeito
que agiu com culpa à existência de prejuízo injusto (dano).
A dificuldade em se provar a culpa em diversos casos fez com que, a partir
da Revolução Industrial, um novo conceito surgisse, o de responsabilidade objetiva. A teoria
objetiva da responsabilidade é justificada por diversas teorias, dentre as quais se destacam a
teoria do risco, a da garantia10 e a da causa eficiente.11 No ordenamento jurídico brasileiro,
a responsabilidade objetiva é justificada principalmente pela primeira teoria, visto que esta
se vincula à decorrência do alto risco de determinadas atividades, bem como da
impossibilidade de se provar a culpabilidade em determinadas circunstâncias.12 Neste caso,
é suficiente a existência do dano e a comprovação do nexo causal entre a conduta do agente
e o dano sofrido pela vítima.
8
DE SOUZA, Lícia G. B. S..Aspectos da Responsabilidade Civil no Âmbito da Internet. Brasília: Unilegis, p.
2, 2005.
9
FRAZÃO, Ana. Principais Distinções e Aproximações da Responsabilidade Civil nos Modelos Francês,
Alemão e Anglo-Saxão. In: JÚNIOR, Otávio L. R., MAMEDE, Gladstone, DA ROCHA, Maria V.
(Org).Responsabilidade Civil Contemporânea. São Paulo: Ed. Atlas, p. 748-766, 2011.
10
ARAGÃO, Valdenir Cardoso. Aspectos da responsabilidade civil objetiva. Âmbito Jurídico, Rio Grande, X,
n.
47,
nov
2007.
Disponível
em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2352>. Acesso em: fevereiro de 2015.
11
LEITE, Gisele Pereira Jorge. Apontamentos sobre o nexo causal. Âmbito Jurídico, Rio Grande, X, n. 47, nov
2007.
Disponível
em:
<http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2353>. Acesso em: fevereiro de
2015.
12
FIUZA, Cezar. Direito civil. 2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, p. 435, 1999.
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A obrigação de indenizar é prevista no Código Civil brasileiro, em seu
artigo 927, onde estão implícitas ambas as hipóteses da responsabilidade civil. Lôbo explica
que o objetivo da reparação é a restauração do status quo, ou seja, a reintegração ao estado
anterior à prática do ato ilícito.13 Essa reparação se torna dificultosa quando se trata do dano
moral, pois sua subjetividade afasta a possibilidade de regras para valorá-lo, além de ser uma
lesão irreversível de direitos de personalidade, que são extrapatrimoniais. Assim, deve-se
analisar caso a caso, e o grau de reprovabilidade da conduta se mostra importante para
delimitar a indenização. A reparação do dano moral tem função compensatória, mas não
indenizatória.
Há hoje uma evolução da jurisprudência brasileira com respeito à
vinculação do dano moral à responsabilidade objetiva: a edição da súmula 403 do STJ, em
outubro de 2009, declarou que “independe de prova do prejuízo a indenização pela
publicação não autorizada da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”. Deste
modo, como explica Rezende:
bastará ao autor da ação de indenização comprovar perante o Poder
Judiciário que ocorreu a exposição de sua imagem sem autorização por
alguma empresa que, por presunção relativa, existirá dano e,
consequentemente, a procedência do pleito indenizatório.14
É importante frisar que hoje há uma preocupação em evitar o
enriquecimento sem justa causa do ofendido, também chamada de “indústria do dano
moral”. Sobre este tema, Correia sugere que no âmbito das indenizações por danos morais,
o pagamento como pena pode gerar enriquecimento desmedido e desproporcional em relação
às características e à dimensão da lesão em si mesma, visto que o objetivo da indenização é
o retorno ao statusquoante:
[...] a indenização, em sentido amplo, visa colocar a pessoa no mesmo
estado pessoal em que estaria se não tivesse sido produzido o ilícito
causador do dano, e o pagamento indenizatório como pena implicaria
enriquecimento ilícito. O juiz pode punir e condenar à reparação, mas as
sanções são diferentes em conteúdo.15
13
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Parte Geral. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, p. 298-299, 2013.
REZENDE, ElcioNacur. A Súmula 403 do Superior Tribunal de Justiça e o uso indevido da imagem das
pessoas naturais no ambiente virtual. LFG, Belo Horizonte-MG, p. 8, dez. 2009. Disponível em:
<http://ww3.lfg.com.br/images/A_SUMUL_403_DO_STJ_E_O_USO_INDEVIDO_DA_IMAGEM.pdf>.
Acesso em: fevereiro de 2015.
15
CORREIA, Aline A. O Dano Moral e a Prevenção de Dano nas Relações de Consumo. Escola da
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, p. 11, 2009.
14
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Nesse sentido, a jurisprudência vem reconhecendo o caráter de pena
privada da indenização, pautando critérios como a reprovabilidade do ato e o efeito
preventivo, e buscando soluções que não remetam necessariamente à indenização
pecuniária.
Feita a explanação, pode-se prosseguir agora para a discussão da
responsabilidade civil no âmbito da internet, com ênfase na análise dos provedores de
conteúdo.
2. Responsabilidade civil de provedores de conteúdo e redes sociais da internet
Como bem explicitado por De Souza,16 a responsabilidade civil existe
também no mundo virtual, pois “as relações desenvolvidas na Internet nada mais são do que
relações humanas. São vínculos que envolvem e se desenvolvem na sociedade globalizada”.
Ficam afastadas, por isso, alegações de que a Internet é um espaço particular e anárquico em
que as regras jurídicas do mundo físico não podem ser aplicadas. Já se tem o entendimento
hoje que o ciberespaço, ou Internet, possui influência no mundo real em diversos aspectos.
Ricardo Lorenzetti, em sua obra Comércio Eletrônico, apresenta inúmeras utilidades da
Internet ao mundo real, que vão desde o estabelecimento de relações e comunicação em
tempo real à realização de compras de serviços e produtos, físicos ou virtuais.
No que remete à responsabilidade de provedores, é importante, em
primeiro lugar, diferenciar duas figuras de provedor. Conforme a norma 004/95, aprovada
pela Portaria MCT nº 148, de 31 de maio de 1995, há dois tipos de provedor: de Serviço de
Conexão à Internet e de Serviço de Informações. O primeiro, também chamado de provedor
de acesso, é a entidade que proporciona a conexão dos computadores que usam seus serviços
à Internet. Já o último, chamado de provedor de conteúdo, é a entidade que possui
informações de interesse e as dispõe na Internet, por intermédio do serviço de conexão à
Internet. Um bom exemplo de provedor de conteúdo é o Youtube, site responsável por
armazenar e publicar vídeos de seus usuários.
Há um tipo específico de provedores de conteúdo que têm trazido muita
polêmica no que remete ao tema da responsabilidade civil. São as redes sociais, como
Facebook, Twitter e Orkut. Redes sociais ou sites de relacionamento são relações entre os
16
DE SOUZA, Lícia G. B. S..Aspectos da Responsabilidade Civil no Âmbito da Internet. Brasília: Unilegis, p.
10, 2005.
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85
indivíduos na comunicação por computador, cujo objetivo é realizar a interação social,
conectar pessoas e proporcionar a comunicação entre elas.17
A responsabilidade civil na Internet é dificultada por duas características
intrínsecas a esta rede de comunicações.18 A primeira delas é a descentralização: a Internet
não dispõe de um órgão que a administre, controlando o fluxo ou o conteúdo das informações
que circulam pela rede. Uma informação inserida na Internet pode passar por diversos
servidores, e até percorrer vários países antes de chegar ao destinatário final. Lorenzetti19
explica que a dispersão da informação na internet leva a um fracionamento subjetivo da
responsabilidade, pois há uma multiplicidade de sujeitos envolvidos. Quando isso acontece,
não há como haver responsabilização solidária pelas obrigações contraídas pelos outros
sujeitos envolvidos, como por exemplo, na hipótese de produção de conteúdo ilícito ou
nocivo.
A segunda característica é o anonimato, pois o ciberespaço possibilita que
seus usuários se comuniquem sem saber a origem ou as características pessoais de seu
interlocutor, que é reconhecido na rede apenas por um endereço lógico, denominado
endereço IP. Sobre o anonimato, explica Lorenzetti que tal característica, intrínseca à
Internet, prejudica a identificação do autor da mensagem. Neste sentido, aponta a
necessidade de se estabelecer regras de identificação que sejam contrapostas à da
privacidade e à da liberdade de expressão, de forma que a solicitação de dados do usuário
que produz a informação não seja lesiva a sua intimidade e não permita imposição de limites
para a entrada num sítio (o que afetaria a liberdade de expressão, transformando o provedor
intermediário em censurador). O que se exige é o dado objetivo de identificação,
denominado identidade estática, e não aqueles dados relativos à identidade dinâmica do
sujeito.
Como é de se imaginar, esses elementos dificultam a responsabilização do
autor do dano, que muitas vezes sequer consegue ser identificado. Mesmo considerando que
a responsabilidade possa ser solidariamente dividida entre os agentes que participam das
diversas etapas do processo de transmissão da informação, há grande dificuldade na
17
BRAGA, Diogo M., BRAGA, Marcus M., ROVER, Aires J. Responsabilidade Civil das Redes Sociais no
Direito Brasileiro. In: Jornadas Argentinas de Informática, 40., 2011, Florianópolis, Anais... Florianópolis:
UFSC, p. 142-150, 2011.
18
DE SOUZA, Lícia G. B. S..Aspectos da Responsabilidade Civil no Âmbito da Internet. Brasília: Unilegis, p.
14, 2005.
19
LORENZETTI, Ricardo L. Comércio Eletrônico. Tradução de Fabiano Menke. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004.
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localização dos mesmos, seja para determinar o local físico onde atuam, seja por não haver
uma rotina específica no trânsito dos dados que circulam na rede.20
Apesar de reconhecer as teorias subjetivas e objetivas da responsabilidade
civil, o Código Civil de 2002 não foi capaz de trazer previsões que pudessem dirimir
questões relativas ao comércio eletrônico e à responsabilidade no meio virtual. Como não
há uma codificação específica para tratar situações jurídicas envolvendo a Internet, a
doutrina e a jurisprudência têm solucionado tais questões mediante o uso da analogia:
É possível por esse meio, fazer o enquadramento jurídico dos ambientes
eletrônicos em conceitos já aplicáveis a contextos de comunicação
preexistentes, e até mesmo, e quando isso se fizer estritamente necessário,
a conceitos próprios de ambientes não informacionais.21
Além da responsabilidade subjetiva e objetiva, a analogia permite a adoção
de outras técnicas, como as citadas a seguir. A adoção dessas técnicas é questionável e
polêmica, mas demonstra a gama de possibilidades existentes e a complexidade do tema
exposto.
Delgado cita as teorias da responsabilidade de contato e da
responsabilidade pressuposta.22 A responsabilidade de contato tem seu fundamento nem na
culpa nem no risco, mas tão somente no contato mantido pelo agente do dano e a relevância
deste prejuízo. Sob essa ótica, toda a cadeia de sujeitos envolvida na relação jurídica
individualmente considerada seria solidária e integralmente responsável pela reparação, em
qualquer circunstância, pela simples constatação do contato entre eles.
Já a responsabilidade pressuposta representa uma tentativa de aplicação da
responsabilidade objetiva com fundamento na teoria do risco integral, levando-se em conta
o risco qualificado da atividade, a ensejar uma potencialidade de dano de grave intensidade.
Explica Delgado que a aplicação dessa teoria à reparação dos danos relacionados ao uso do
espaço virtual permitiria a responsabilização solidária de todos os envolvidos na cadeia de
prestação do serviço, inclusive dos provedores de acesso, sendo-lhes facultado, apenas, o
direito de regresso contra os agentes diretos, verdadeiros responsáveis.
20
DE SOUZA, Lícia G. B. S..Aspectos da Responsabilidade Civil no Âmbito da Internet. Brasília: Unilegis, p.
15, 2005.
21
REINALDO FILHO, Demócrito Ramos. Responsabilidade por Publicações na Internet. Rio de Janeiro:
Forense, p. 168, 2005.
22
DELGADO, Mário L. Responsabilidade Civil na era da informação. Valor Econômico, São Paulo, SP, maio
2010.
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Como se observa, há diferentes formas de se interpretar a responsabilidade
dos provedores e terceiros. Aquela que parece trazer o retorno mais imediato ao ofendido é
a responsabilidade objetiva. Não obstante, esta pode carregar em si um efeito colateral
indesejado: cientes do risco que assumem, os provedores de conteúdo poderão começar a
atuar como censores prévios com o fim de minimizar os riscos que eles passam a assumir.
Desta forma, os ambientes de compartilhamento de conteúdo virtual poderiam perder uma
de suas características mais fundamentais: a liberdade de expressão.
Na próxima sessão, serão apresentados alguns casos em que se foi
levantada a questão da responsabilidade civil de provedores de conteúdo de forma a observar
como a jurisprudência brasileira e internacional vêm tratando o tema.
3. Jurisprudência sobre a responsabilidade dos provedores de conteúdo
Apresentam-se a seguir alguns casos de temática similar ao tratado para
que se possa observar o uso da analogia na discussão da responsabilidade civil na internet.
Começando pela jurisprudência estrangeira, têm-se como caso icônico o
Cubby, Inc. vs. CompuServe, Inc, um dos primeiros julgados sobre difamação na Internet23.
Neste caso, a Corte Distrital de Nova Iorque concluiu a ausência de responsabilidade da
CompuServe, pois esta, enquanto provedora de conteúdo, não teve oportunidade de rever o
conteúdo da publicação antes dela ser enviada para o seu sistema, não podendo assim ser
responsabilizada pela mensagem eletrônica enviada. Chegou-se a equiparar o serviço da
provedora ao de uma livraria, que não tem possibilidade de controle sobre o conteúdo
difamatório dos produtos que vende.
Presas24 faz um estudo minucioso da responsabilidade dos provedores no
ordenamento norte-americano e demonstra que nos Estados Unidos há uma consolidação
legal e jurisprudencial pela exclusão da responsabilidade dos provedores de serviço de
internet, isto é, os provedores de acesso. A análise da autora, porém, não avança na questão
dos provedores de conteúdo.
Já a jurisprudência brasileira abordou o tema com uma interpretação que,
em um primeiro olhar, parece contrária à da Corte Americana. Como exemplo disto, tem-se
23
EUA, Cubby, Inc. vs. CompuServe, Inc. F. Supp. 135, S.D.N.Y., 1991. Disponível em:
<http://epic.org/free_speech/cubby_v_compuserve.html>. Acesso em: fevereiro de 2015.
24
PRESAS, Ana Soler, Am I in Facebook?.InDret, Vol. 3, 2011. Disponível em:
<http://www.indret.com/pdf/841_es.pdf>. Acesso: fevereiro de 2015.
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a apelação cível nº 528.961-4/0,25 em que foi aplicada de forma análoga a Lei da Imprensa
às informações postadas em blogs, determinando que o dono da publicação responde pelo
conteúdo publicado em solidariedade com o autor do texto.26
Cabe atentar aqui que, embora este caso também se refira à liberdade de
expressão e à responsabilidade do provedor de conteúdo, blogs apresentam peculiaridades
que os distinguem da CompuServe. Enquanto esta funcionava como uma livraria eletrônica,
com viés comercial, blogs, em princípio, tem finalidades não-econômicas. Esta distinção
pode gerar diferentes consequências para a responsabilidade dos detentores dos blogs e o
conteúdo gerado por terceiros em suas páginas. Ou seja, a jurisprudência brasileira, apesar
de ter tomado uma decisão distinta da americana, lidou com um caso peculiarmente
diferente, não se podendo afirmar que houve interpretações divergentes.
Afirma De Souza27 que a jurisprudência vem determinando que o provedor
de conteúdo está sujeito à responsabilização pelos danos causados por terceiros na Internet,
por intermédio de sites por ele armazenados, na hipótese do autor do delito não ser
identificável. Em contrapartida, se o responsável pela prática do ato ilícito for identificado,
não se pode imputar ao provedor de conteúdo a obrigação de indenizar.
No caso das redes sociais, percebe-se uma aproximação à teoria do risco,
muito embora seja esta abordagem alvo de críticas, devido ao perigo da censura prévia dos
provedores. Diogo de Melo Braga28 cita algumas situações em que tal teoria foi aplicada. É
o caso da apelação cível nº 1.0701.08.221685-7/00129 (TJMG), na qual se decidiu que o
prestador do serviço dos sites de relacionamento responde de forma objetiva pela criação de
página ofensiva à honra e à imagem da pessoa, posto que abrangido pela doutrina do risco
criado.
Outro caso citado envolvendo redes sociais é do agravo de instrumento nº
468.487.4/0-0030 (TJSP), o caso do esportista Rubens Barrichello, que acusou a existência
TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado. Ap. Cível n. 528.961-4/0.Rel. Maia da Cunha, Julgado em 08 de
novembro de 2007.
26
BRAGA, Diogo M., BRAGA, Marcus M., ROVER, Aires J. Responsabilidade Civil das Redes Sociais no
Direito Brasileiro. In: Jornadas Argentinas de Informática, 40., 2011, Florianópolis, Anais... Florianópolis:
UFSC, p. 148, 2011.
27
DE SOUZA, Lícia G. B. S..Aspectos da Responsabilidade Civil no Âmbito da Internet. Brasília: Unilegis, p.
18, 2005.
28
BRAGA, Diogo M., BRAGA, Marcus M., ROVER, Aires J. Responsabilidade Civil das Redes Sociais no
Direito Brasileiro. In: Jornadas Argentinas de Informática, 40., 2011, Florianópolis, Anais... Florianópolis:
UFSC, p. 145, 2011.
29
TJMG – 18ª Câmara Cível. Ap. Cível nº 1.0701.08.221685-7/001.Rel. Des. Saldanha da Fonseca. Julgado
em 05 de agosto de 2009.
30
TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado. Agravo de instrumento nº 468.487-4/0-00. Rel. Des. Francisco
Loureiro. Julgado em 30 de julho de 2009.
25
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de perfis falsos e comunidades ofensivas no Orkut e solicitou a retirada dos mesmos. Aqui,
mais uma vez, avocou-se a teoria do risco, com o fundamento de que redes sociais que não
exerçam controle efetivo de identificação dos usuários cadastrados potencializam os riscos
de danos anônimos a terceiros, criando ambiente propício para a violação de direitos de
personalidade sob a máscara do anonimato. Deve assim, a empresa assumir o risco desses
atos ilícitos de forma objetiva.
Um último caso interessante de ser citado é o da modelo e atriz Daniella
Cicarelli, que teve cenas íntimas de relação sexual com seu namorado divulgadas e
replicadas no Youtube. O caso resultou na apelação cível nº 556.090.4/4-00 (TJSP), pois o
provedor não reconhecia responsabilidade na transmissão dos vídeos. Alegou este que
determinadas situações, mesmo que teoricamente ofensivas a direitos da personalidade,
ganham licitude quando conhecidas. Esta justificativa não foi aceita pelo tribunal julgador,
no qual o ilustre Desembargador Teixeira Leite respondeu:
Ainda que testemunhemos a mediocridade e com ela nos resignemos,
jamais poderemos admitir que o enfraquecimento dos costumes transforme
o ilícito em assunto de rotina dos lares, o que anima escrever que a
multiplicidade do replay do filme do casal não imuniza os infratores que
teimam em divulgá-lo.31
O Tribunal considerou que o Youtube lidava com a sentença de forma
parcimoniosa e até desrespeitosa, limitando-se a excluir o vídeo dos links conhecidos ou
identificados, quando tal identificação era facilitada pelas denúncias. O provedor não fizera
prova de ter tentado criar um programa capaz de rastrear o vídeo de Cicarelli, o que, ao ver
do Tribunal, implicava omissão, ou no mínimo, ação passiva, como se não lhe coubesse
alguma responsabilidade pelo impasse.
Dessa forma, decidiu o tribunal que deveria o Youtube providenciar, em
trinta dias, todos os vídeos do casal que se encontravam nos links admitidos, para, a partir
daí, impedir, a partir da identificação do IP (inclusive lanhouses), o acesso dos usuários que
retornassem o vídeo para o site, sob pena de pagar multa de R$ 250.000,00.
Tal decisão foi legitimada tendo por fundamentos os art. 20, do Código
Civil (direito de honra e imagem), art. 5º, V e X, da CF (direito à indenização por danos
morais) e art. 220, §1º, da CF (inexistência de censura nas hipóteses de violação à imagem
e honra).
TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado. Ap. Cível n° 556.090.4/4-00. Rel. Des. Ênio SantarelliZuliani, Julgado
em 12 de junho de 2008.
31
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Não
bastasse
a
mudança
de
justificativa
da
culpabilidade
(responsabilidade subjetiva) para a teoria do risco (responsabilidade objetiva), alguns
julgados tenderam no sentido da jurisprudência estrangeira, alegando que o provedor só é
responsável pelo conteúdo que hospeda se recusar a identificar o ofensor direto do ato ou se
demonstrar negligência na adoção de providências para cessar os efeitos do ato (i.e. não
removendo as informações ilícitas tão logo seja notificado a respeito).
Como exemplo dessa vertente, tem-se a ementa de julgado do TJRJ:
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. SITE DE
RELACIONAMENTOS:
ORKUT.COM.
PROVEDOR
DE
HOSPEDAGEM. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CONSUMO EM
RELAÇÃO AOS USUÁRIOS QUE ACESSAM PÁGINAS CRIADAS
POR OUTROS USUÁRIOS. RESPONSABILIDADE FUNDADA NA
TEORIA SUBJETIVA. CULPA DO PROVEDOR DE HOSPEDAGEM
NÃO DEMONSTRADA. RESPONSABILIDADE EXCLUSIVA DO
CRIADOR DA PÁGINA. O provedor de hospedagem que se limita a
disponibilizar espaço para armazenamento de páginas de relacionamento
na internet não mantém relação de consumo com o usuário que acessa
página produzida por outro usuário. A ausência de remuneração impede,
no particular, o reconhecimento de relação de consumo com os usuários
que acessam o site para buscas pessoais. Impossibilidade de controle, pelo
provedor de hospedagem, do conteúdo das páginas. Tratando-se de
responsabilidade subjetiva, somente mediante a demonstração de culpa do
provedor de hospedagem é que seria possível imputar-lhe o dever de
indenizar. Responsabilidade civil do provedor de hospedagem não
configurada diante da inexistência de prova de sua culpa, ainda que
concorrente, por página ofensiva à autora. Desprovimento do recurso”
(TJRJ – 13ª Câmara Cível – Apelação Cível nº. 2007.001.523346 – Rel.
Des. Arthur Eduardo Ferreira – j. em 16/01/2008).32
Reinaldo Filho33 destaca um julgado do STJ do final de 2010,o REsp
1193764-SP,34 que, em sua opinião, começaria a criar uma uniformização da jurisprudência
sobre o tema. Inicialmente condenada em primeira instância, a Google deveria indenizar
uma usuária por danos morais, em razão da publicação de ofensas contra a pessoa dela no
site de relacionamentos Orkut. A sentença foi reformada pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo (TJSP), pois este entendeu que a empresa mantenedora do site (Google), na condição
de provedor de serviço de hospedagem, não tem obrigação de vigilância do material
informacional que circula em seus sistemas informáticos. Contra o acórdão do tribunal
TJRJ – 13ª Câmara Cível – Apelação Cível nº. 2007.001.523346– Rel. Des. Arthur Eduardo Ferreira –
Julgado em 16 de janeiro de 2008.
33
REINALDO FILHO, Demócrito Ramos. Responsabilidade por Publicações na Internet. Rio de Janeiro:
Forense, p. 170, 2005.
34
STJ - 3ª. Turma, REsp 1193764-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. un., Julgado em 14 de dezembro de 2010.
32
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inferior foi interposto recurso especial para o STJ, ao fundamento da responsabilidade
objetiva do provedor, na condição de prestador de um serviço colocado à disposição dos
usuários da rede mundial de comunicação. A recorrente alegou, ainda, que o compromisso
assumido pela empresa de exigir que os usuários se identifiquem não foi honrado,
caracterizando a falha do serviço (apesar de gratuito), geradora da responsabilidade.
A decisão da Ministra relatora Nancy Andrighi, acompanhada por
unanimidade pela 3ª turma, foi de negar provimento ao recurso, afirmando que a
responsabilidade do Google deve ficar restrita à natureza da atividade por ele desenvolvida
naquele site: disponibilizar na rede as informações encaminhadas por seus usuários e assim
garantir o sigilo, a segurança e a inviolabilidade dos dados cadastrais de seus usuários, bem
como o funcionamento e a manutenção das páginas na internet que contenham as contas
individuais e as comunidades desses usuários.
Quanto à fiscalização do conteúdo, afirmou a Ministra que não se trata esta
de atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode considerar defeituoso
o site que não examina e filtra o material nele inserido. A verificação antecipada, pelo
provedor, do conteúdo de todas as informações inseridas na web eliminaria um dos maiores
atrativos da internet, que é a transmissão de dados em tempo real35.
Desta forma, a ministra desconheceu a responsabilidade objetiva dos
provedores de conteúdo, não existindo a obrigação de um controle prévio do conteúdo das
informações postadas no site por seus usuários. Não obstante, ao tomarem conhecimento
inequívoco da existência de dados ilegais no site, deverão removê-los imediatamente, sob
pena de responderem pelos danos respectivos, mantendo, dessa forma, um sistema
minimamente eficaz de identificação de seus usuários.
Destacam-se aqui trechos da ementa do REsp citado:
DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE
CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO.
INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO
PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE
PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE
CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO
NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE
CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER.
DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA
USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA.
STJ – Google não pode ser responsabilizado por material publicado no Orkut. Migalhas. Jan. de 2011.
Disponível
em:
<http://www.migalhas.com.br/
Quentes/17,MI125068,11049STJ+Google+nao+pode+ser+responsabilizado+por+material+ publicado+no>. Acesso em: fevereiro 2015
35
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92
[...] 3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das
informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca
ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos
termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e
imagens nele inseridos. 4. O dano moral decorrente de mensagens com
conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco
inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes
aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do
CC/02. 5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui
conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o
material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com
o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. 6. Ao oferecer um
serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente
sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios
para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o
anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e
determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor,
deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias
específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização
dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in
omittendo”.36
De fato, a doutrina reconhece a importância de não haver um controle
prévio dos conteúdos disponibilizados na Internet, pois poderia esta hipótese implicar em
censura. Neste sentido, Lorenzetti cita o art. 13 da Convenção Americana de Direitos
Humanos, que dispõe que não cabe a censura prévia, mas apenas a responsabilização
posterior. Pode, porém, a lei do Estado estabelecer esses limites para assegurar o respeito
aos direitos ou à reputação dos demais, e a proteção da segurança nacional, da ordem pública
ou da saúde, e da moral pública. Ademais, a lei deverá proibir toda propaganda a favor da
guerra e toda apologia do ódio nacional, racial ou religioso que incite a violência ou atitudes
discriminatórias.
Percebe-se, portanto, que a decisão da Ministra é condizente com a visão
de Lorenzetti, e da doutrina estrangeira majoritária, que é contrária à censura prévia, mas
reconhece a necessidade de responsabilização dos provedores de conteúdos caso tomem
conhecimento de conteúdo ilícito ou nocivo veiculado nos sítios eletrônicos em que controla.
Em outro julgado recente, no REsp 1316921-RJ,37 a Ministra Nancy
afastou a responsabilidade objetiva também no caso dos provedores de pesquisa. Estes não
possuem responsabilidade objetiva pelo conteúdo do resultado das buscas realizadas por seus
usuários, porquanto não se pode considerar o dano moral um risco inerente à atividade dos
provedores de pesquisa, na medida em que as atividades desenvolvidas pelos provedores de
36
37
STJ - 3ª. Turma, REsp 1193764-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. un., Julgado em 14 de dezembro de 2010.
STJ - 3ª. Turma, REsp 1316921-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. un., Julgado em 26 de junho de 2012.
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serviços na internet não são de risco por sua própria natureza e, portanto, não implicam riscos
para direitos de terceiros maior que os riscos de qualquer atividade comercial.
Não há defeito nos serviços dos provedores de pesquisa via internet por
não exercerem o controle prévio das buscas realizadas por seus usuários, ainda que seus
mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de páginas cujo
conteúdo seja ilegal, tendo em vista que, se a página possui conteúdo ilícito, cabe ao ofendido
adotar medidas tendentes à sua própria supressão, com o que estarão, automaticamente,
excluídas dos resultados de busca virtual dos sites de pesquisa.
Por fim, há um julgado recente da Ministra, o REsp 1417641-RJ,38 em que
é afirmada a importância dos provedores de conteúdo oferecerem meios para que seus
usuários possam ser identificados, coibindo o anonimato e atribuindo a cada imagem uma
autoria certa e determinada. Isto tem como objetivo garantir a responsabilidade subjetiva do
autor do ilícito.
O que se observa nesses últimos anos é um esforço do STJ para
uniformizar o tema e afastar a responsabilidade objetiva. No entanto, a falta de conhecimento
técnico do tema por vários juristas, e a pluralidade de sujeitos que o envolvem (como
provedores de acesso, de conteúdo, de hospedagem, de informação, etc), acaba por
complexificar a análise deste, levando o tema a ser rediscutido em cada circunstância
específica (redes sociais, provedores de busca, blogs, etc).
Provavelmente esta carência poderá ser sanada conforme surjam
definições legais sobre os termos técnicos da internet. Neste sentido, um grande avanço foi
a aprovação recente do Marco Civil da Internet, oriundo de um anteprojeto de lei de meados
de 2009, e que aborda a questão da regulação da Internet, incluindo, entre outros, o tema da
responsabilidade civil de provedores de conteúdo. Após diversas modificações e discussões,
a proposta foi aprovada como lei, no primeiro semestre de 2014. Cabe, assim, uma análise
do anteprojeto e da lei que veio a ser promulgada, conforme estabelecido no tópico seguinte.
4. Marco civil da internet e a responsabilidade dos provedores de conteúdo
Na tentativa de regular as relações jurídicas cíveis e penais no âmbito da
Internet surgiu a proposta de instituição de um Marco Civil da Internet. O Marco Civil tem
sua origem na discussão apresentada por Ronaldo Lemos, jurista do Centro de Tecnologia e
38
STJ - 3ª. Turma, REsp 1417641-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, ac. un., Julgado em 25 de fevereiro de 2014.
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Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro em um artigo
onde propunha a adoção de um Marco Regulatório Civil antes da discussão de tipos penais
informático. Sobre o tema, Santarém declara:
Um país precisa ter regras civis claras, que permitam segurança e
previsibilidade nas iniciativas feitas na rede. [...] As regras penais devem
ser criadas a partir da experiência das regras civis.39
A partir daí, em 2009, foi iniciado um projeto colaborativo de discussão e
formulação de um Marco Civil da Internet no Brasil lançado em um evento da FGV-RJ. O
Marco Civil tem como objetivo a positivação de uma interpretação que permita ao Direito
dialogar com a Internet sem desrespeitar a natureza desta, e sem pretender efeitos
inatingíveis por aquele, refletindo as demandas sociais pertinentes ao uso da Internet no
Brasil.40
Em 2011, o Marco Civil foi apresentado como um projeto de lei à Câmara
dos Deputados, sob o número PL 2126/2011, atualmente apensado ao PL 5403/2001. Em
virtude de casos recentes no cenário internacional sobre espionagem eletrônica, a Presidenta
Dilma Rousseff, em 11 de setembro de 2013 publicou no Diário Oficial da União mensagem
de urgência, declarando a aprovação do Marco Civil da Internet como prioridade para o
governo federal. Em 29 de outubro de 2013, a pauta da Câmara dos Deputados foi suspensa,
enquanto este Projeto de Lei não fosse votado. Após a aprovação pelos deputados, o projeto
ainda seria enviado ao Senado para apuração. Por fim, em 23 de abril de 2014, a Lei nº
12.965 foi aprovada, estabelecendo princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da
Internet no Brasil.
No que se refere à contribuição do Marco Civil à questão da
responsabilidade civil de provedores, cabe destacar os art. 18 e 19 da citada lei, transcritos a
seguir. Antes, porém, é importante diferenciar os dois tipos de provedores que a lei trata,
conforme explanado em seu art. 5º: (i) os provedores de conexão à Internet, que habilitam
um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a
atribuição ou autenticação de um endereço IP; e (ii) os provedores de aplicações de Internet
(provedores de conteúdo), que disponibilizam um conjunto de funcionalidades que podem
39
SANTARÉM, P. R. S. O Direito Achado na Rede: a emergência do acesso à Internet como direito
fundamental no Brasil. Brasília, DF: UnB, p. 47, 2010.
40
Idem, p. 102.
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ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet. Feitas as distinções, apresentamse os artigos outrora mencionados:
Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado
civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a
censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as
providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado
como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de
nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como
infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor
ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá
respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da
Constituição Federal.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de
conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação
ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses
conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser
apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar,
total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial,
existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da
coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que
presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de
fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.”41
O que se nota é o amparo legislativo aos provedores, em prol da liberdade
de expressão e contrário à censura prévia. A lei, em seu art. 18, é clara ao afirmar que o
provedor de conexão não será responsabilizado por danos decorrentes de conteúdo gerado
por terceiros. Sobre os provedores de aplicação, o art. 19 declara que, salvo disposição legal
em contrário, estes somente serão responsabilizados por danos decorrentes de conteúdo
gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomarem as providências para,
no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo
apontado como infringente. Ademais, tal dispositivo concorda com a decisão fundamentada
41
BRASIL, Lei nº 12.965/2014, grifo nosso.
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pela Ministra Nancy Andrighi, que desconhece a responsabilidade objetiva do provedor, mas
o obriga a tomar providências tão logo receba ordem judicial específica.
Apesar do Marco Civil ser um nobre esforço na regulação da Internet e
temas complexos como a responsabilidade civil de provedores e seus usuários, a lei aprovada
ainda apresenta uma série de deficiências. Nada foi estabelecido com relação ao anonimato.
Se os provedores de conteúdo não puderem fornecer um mecanismo para identificação do
ofensor, a responsabilização deste pelo ilícito estará comprometida. Ao mesmo tempo, como
já discutido, uma das características intrínsecas à Internet é o universo anônimo. Ir contra
esta tendência para que se possa garantir os direitos dos ofendidos se provará um verdadeiro
desafio.
6. Conclusão
O presente estudo tentou levantar uma ampla gama de argumentos
relativos à responsabilidade civil dos provedores de conteúdo da internet, considerando as
diversas fontes do direito, quais sejam, a doutrina e jurisprudência nacional e estrangeira,
além da principal fonte positivada, a lei.
Quanto a esta, cabe ressaltar que até recentemente nosso ordenamento
carecia de um dispositivo legal específico sobre o tema da Internet, visto que a carta
constitucional não tratou o tema de forma específica, até mesmo por se levar o contexto
histórico em que foi estabelecida, quando a Internet ainda não era um meio de comunicação
de difusão ampla como se faz hoje. Coube assim ao Legislativo pós-constituinte dar um
primeiro passo, ao promulgar a lei 12.965/2014, mais conhecida como Marco Civil da
Internet. Esta, ao definir princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no
Brasil, veio, dentre outros tópicos, abordar o da responsabilidade civil dos provedores de
conteúdo na Internet.
Espera-se que, com isto, haja uma uniformização da jurisprudência, que,
até o fim da primeira década deste século apresentava ainda profundas divergências em suas
decisões, tanto de reconhecimento da responsabilidade, quanto de caracterização desta como
subjetiva ou objetiva.
A atuação do Estado Brasileiro no sentido de estabelecer uma
normatização jurídica sobre o tema da Internet já colheu seus primeiros frutos, tendo sido o
país sede da NetMundial, o Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança
da Internet, realizado na mesma data de promulgação da lei do Marco Civil da Internet. Com
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o evento, o Brasil tentou liderar movimento por uma internet plural e livre, que possa garantir
a liberdade de expressão, o direito à privacidade e regras claras para usuários e provedores42.
Porém, fato é que a positivação desta lei não encerra a discussão da
responsabilidade civil na Internet, nem a de outros temas que aborda em seu texto. Há
inúmeras questões a serem reguladas, como o já citado anonimato, ou ainda, os direitos
autorais, cuja discussão no anteprojeto de lei se mostrou tão complexa que foi preferido
retirá-la de pauta e discuti-la em um futuro projeto de lei.
Independente de suas deficiências, a Lei 12.965/14, como seu nome
aponta, estabelece um marco para que o tema possa ser discutido nas suas devidas
peculiaridades e para que, quem sabe um dia, os ordenamentos nacional e internacional
consigam uniformizar as normas e jurisprudências relativas às questões da Internet.
Recebido em 05/10/2014
1º parecer em 25/10/2014
2º parecer em 07/11/2014
42
COM NETMUNDIAL Brasil tenta liderar movimento por internet plural e livre. R7Notícias. Disponível em:
<http://noticias.r7.com/brasil/com-net-mundial-brasil-tenta-liderar-movimento-por-internet-plural-e-livre23042014>. Acesso em: fevereiro de 2015.
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SEÇÃO DE DOUTRINA:
Doutrina Estrangeira
RILEVANZA E BILANCIAMENTO DEGLI INTERESSI NELLA
QUALIFICAZIONE E QUANTIFICAZIONE DEL DANNO
Gerardo Villanacci
SUMÁRIO: 1. Il principio di proporzionalità nella misurazione e tutela degli interessi – 2. La
rilevanza dell’interesse meritevole nella qualificazione del danno – 3. I temperamenti alla
concezione soggettiva di danno – 4. l’interesse nella nuova concezione del danno
tanatologico
1. Il principio di proporzionalità nella misurazione e tutela degli interessi
L’interesse esplica, in sede risarcitoria, una duplice funzione assumendo
rilevanza nella qualificazione e quantificazione del danno, delineato a seguito del
bilanciamento tra tutti i valori in gioco, per effetto del giudizio di proporzionalità il quale,
dopo essere stato a lungo inglobato nell’area semantica della ragionevolezza1 in un
improprio rapporto di genus a species,2 ha conseguito per l’influsso della normativa
Il dibattito sull’autonomia concettuale tra principio di ragionevolezza e principio di proporzionalità è tutt’altro
che superato. Sul punto si v. A. SANDULLI, Proporzionalità in S. Cassese (diretto da), Dizionario di diritto
pubblico, V. vol., Milano, 2006, 4643 ss. Aderiscono alla tesi della coincidenza dei due principi G.
MORBIDELLI, Il procedimento amministrativo, in AA.VV., Diritto amministrativo, Bologna, 1993, 1026;
P.M. VIPIANA, Introduzione allo studio del principio di ragionevolezza nel diritto pubblico, Padova, 1993;
G. SALA, Potere amministrativo e principi dell’ordinamento, Milano 1993; A. RUGGERI, Ragionevolezza e
valori, attraverso il prisma della giustizia costituzionale, in Dir. soc., 2001, 421 ss.; G. SCACCIA, Gli
“strumenti” della ragionevolezza nel diritto costituzionale, Milano, 2000. In senso contrario alla
uniformazione dei due principi si v. G. LOMBARDO, Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza
amministrativa, in Riv. trim. dir. pubb., 1997, 421 ss.; A. SANDULLI, La proporzionalità dell’azione
amministrativa, Milano, 1998.
2
Si v. ex multis, Corte Cost. 24 gennaio 2007, n. 26, che ha dichiarato l’illegittimità costituzionale dell’art. 1 l.
20 febbraio 2006, n. 46 (Modifiche al codice di procedura penale, in materia di inappellabilità delle sentenze
di proscioglimento), nella parte in cui, sostituendo l’art. 593 del codice di procedura penale, esclude che il
pubblico ministero possa appellare contro le sentenze di proscioglimento (...). La Corte, alla luce del dedotto
contrasto della norma de quo con il principio di parità delle parti nel processo (ex art. 111 Cost.), ha sostenuto
che alterazioni alla simmetria della posizione delle parti processuali sono compatibili con il suddetto principio
costituzionale, stante anche il differente ruolo dalle stesse rivestito nell’ambito del processo penale. Tuttavia,
1
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sovranazionale,3 autonomo riconoscimento4 di specificazione del principio del neminem
laedere5 e misurazione oggettiva di interessi in conflitto nell’alveo delle indicazioni
parametriche della ragione.6
Più nel dettaglio il principio di proporzionalità si sostanzia in una
valutazione complessiva dei valori che corroborano una certa situazione fattuale e dai quali
non si può prescindere nella definizione dell’assetto che sia al tempo stesso il più idoneo alla
realizzazione dei fini perseguiti dai soggetti interessati e il meno gravoso per chi ne subisce
gli effetti. Ne rappresenta corollario applicativo l’art. 1455 c.c. che in tema di risoluzione
del contratto subordina la caducazione del negozio alla gravità dell’inadempimento,
vincolando l’interprete all’accertamento oltre che della sussistenza della condotta
inadempitiva, anche dell’influenza della stessa nell’economia complessiva del rapporto
giuridico. Solo all’esito di tale comparazione l’interprete è in grado di individuare tutte
quelle opzioni pratiche, anche diverse dalla risoluzione del contratto e pertanto meno
sacrificative della sfera giuridica dell’obbligato, che siano idonee alla realizzazione
dell’interesse del creditore. Quest’ultimo è tenuto in conformità al canone di buona fede a
tollerare tutte quelle modifiche quantitative e qualitative della prestazione che non incidano
prosegue la Corte dette alterazioni sono ammissibili solo se ragionevoli: “Tale vaglio di ragionevolezza va
evidentemente condotto sulla base del rapporto comparativo tra la ratio che ispira, nel singolo caso, la norma
generatrice della disparità e l’ampiezza dello “scalino” da essa creato tra le posizioni delle parti: mirando
segnatamente ad acclarare l’adeguatezza della ratio e la proporzionalità dell’ampiezza di tale “scalino”
rispetto a quest’ultima. Siffatta verifica non può essere pretermessa, se non a prezzo di un sostanziale
svuotamento, in parte qua, della clausola della parità delle parti…” Nel ragionamento della Corte, dunque, la
proporzionalità della misura adottata deve essere valutata con riferimento alla ratio della legge che va ad
incidere sulla regola della parità delle parti nel processo. Il concetto di proporzionalità qui assume valenza per
giustificare una formale disparità che però trova la sua giustificazione in ragione del diverso ruolo delle parti
nel processo.
3
Cfr. art. 1 della legge 241/1990 che espressamente richiama tra i principi quelli di stampo europeo. In
particolare recita la norma “l’attività amministrativa persegue i fini determinati dalla legge ed è retta da criteri
di economicità, di efficacia, di imparzialità, di pubblicità e di trasparenza, secondo le modalità previste dalla
presente legge e dalle altre disposizioni che disciplinano singoli procedimenti, nonché dai princípi
dell'ordinamento comunitari”.
4
La Corte di Giustizia ha fatto esplicito riferimento al principio di proporzionalità sin dagli esordi della
giurisprudenza. Si v. Corte giust. 16.7. 1956, in causa 8/1955 Fédération Charbonnière, in Racc., 1955-56,
199 ss.; Corte giust. 14.12.1962, in cause riun. 5-11, 13-15/62, Società acciaierie San Michele, in Racc., 1962,
917 ss.; Corte giust., 19.3.1964 in causa 18/63 Schmitz, in Racc. 1964, 175 ss.
5
Principio che entra a far parte del diritto amministrativo dalla nota sentenza S.U. 22.7.1999 n. 500 in Foro
amm., 1999, 1990 con note di B DELFINO, V. CAIANIELLO; in Giust. civ., 1999, I, 2261 con nota di M.R.
MORELLI; in Foro it., 1999, I, 2487 con note di A. PALMIERI e R. PARDOLESI, 2487 ss., R. CARANTA,
F.FRACCHIA, A.ROMANO E. SCODITTI 3201ss.; in Europa e dir. priv., 1999, 1221 con note di S.
AGRIFOGLIO E C. CASTRONOVO; in Danno e resp., 1999, 965 con note di V. CARBONE, G.
MONATERI, A. PALMIERI, R. PARDOLESI, G.PONZANELLI, V. ROPPO; in Corr. giur., 1999, 367 con
note di A. DI MAJO, V. MARICONDA, ed editoriale a commento di V. CARBONE, 1061 ss.; in Resp. civ.
prev. 1999, 981 con note di G. ALPA, G. BILE, G. CUGURRA, R. CARANTA, 897 s.; in Giur. cost., 1999,
3217 con nota di F. SATTA 3233 ss., F.G. SCOCA, G. AZZARITI 4045 ss.
6
V. F. CASUCCI, Il sistema giuridico “proporzionale” nel diritto privato comunitario, Napoli, 2001.
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in modo sacrificativo sulla sua sfera giuridica e che rappresentino il frutto della giusta
proporzione tra le situazioni soggettive di riferimento.
Anche in tema di abuso del diritto la giurisprudenza ha fatto uso del
principio di proporzionalità per contemperare gli interessi contrapposti delle parti
sindacando gli atti da queste compiuti in termini di congruità del mezzo rispetto al fine. In
questo senso si è decretata l’abusività dell’esercizio del diritto ogniqualvolta, pur in assenza
di divieti formali, il soggetto abbia tenuto una condotta non necessaria e irrispettosa del
principio di buona fede, causando uno sproporzionato ed ingiustificato sacrificio alla
controparte contrattuale, al fine di conseguire risultati diversi ed ulteriori rispetto a quelli per
i quali le stesse facoltà sono attribuite dall’ordinamento.7 Ancora, in tema di abuso del
processo è stata ritenuta immeritevole di tutela e quindi abusiva la richiesta giudiziale
plurima di adempimento di una somma di denaro avente fondamento in un unico rapporto
obbligatorio.8 La frammentazione della prestazione oltre a produrre un aggravio non
necessario della sfera giuridica del debitore e una violazione del principio costituzionale del
giusto processo, non trova adeguata giustificazione nel fine perseguito dal creditore che può
soddisfare le proprie ragioni mediante strumenti meno sacrificativi degli altri valori in gioco.
Assegnare alla ragionevolezza il ruolo di ponderazione quantitativa dei
beni significa sovrapporre il piano statico e oggettivo della proporzione a quello dinamico
ed evolutivo della ragione frutto dell’apprezzamento sociale di taluni valori.9 Infatti, tali
principi, pur utilizzando medesimi parametri, rappresentano momenti diversi del processo
decisionale: la ragione produce un giudizio di tipo qualitativo degli interessi da tutelare,
frutto del mutamento economico-sociale in continua evoluzione, mentre la proporzione
limitandosi a prendere atto di detta ponderazione elabora una misurazione quantitativa dei
valori in gioco.
Valga considerare che una clausola penale che determini forfettariamente
il danno da risarcire in caso di inadempimento può essere ragionevole e sproporzionata al
tempo stesso se a fronte degli interessi in gioco il suo importo risultasse manifestatamente
eccessivo, così come può ritenersi conforme a proporzione la disciplina che ammette la
riduzione della garanzia prestata, quando siano eseguiti pagamenti parziali che estinguano
7
Cfr. Cass. 18.9.2009 n. 20106, in Contr. 2010, 5.
Cfr. Cass. 15.11.2007, n. 23726, in Foroit., 2008, I, 1514.
9
G. ALPA, La solidarietà, in Nuova giur. civ. comm., 1994, II, 365 ss.;G. NICOLETTI, (voce) Solidarismo e
personalismo, in Noviss. dig. it., XII, Torino, 170, 835 ss.; L. MOSCATI, Clausole generali e ruolo delle
obbligazioni naturali nel diritto vigente, in Giur. It., 2011, 1718 e ss.
8
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101
almeno il quinto del debito originario, e irragionevole ove non fosse dato di estendere tali
accorgimenti alla fase genetica del rapporto, qualora ab origine vi sia sperequazione tra il
valore di un’ipoteca o di un pegno10 e il debito che si intende assicurare.
Il rapporto tra i due principi può essere ulteriormente esemplificato
analizzando il tipo di tutela accordata al contribuente nell’ipotesi degli accessi eseguiti
nell’ambito delle indagini tributarie; tutela che deve mediare tra l’interesse fiscale
all’adempimento del dovere contributivo, la protezione del domicilio e del segreto
professionale, e, non ultimo, l’efficienza e imparzialità dell’amministrazione che non tollera
iniziative arbitrarie di un singolo funzionario. In questo senso le procedure di accesso
cambiano e si rimodulano in ragione dei luoghi sottoposti ad ispezione; così per le indagini
svolte nella sede dell’impresa occorre l’autorizzazione del capo dell’Ufficio o del
comandante di zona della Guardia di Finanza, per quelle effettuate nei luoghi di esercizio
dell’attività artistica o professionale è necessaria la presenza del titolare dell’attività o un suo
delegato, infine, per quelle espletate nei luoghi utilizzati promiscuamente per l’attività
accertata e come privata dimora occorre l’autorizzazione del pubblico ministero. Inoltre, per
l’accesso nell’abitazione e nei luoghi di privata dimora non si può prescindere
dall’autorizzazione del pubblico ministero e dai gravi indizi di violazione.
In definitiva la proporzionalità individua la misura della protezione
giuridica di un interesse in conflitto con altri di segno opposto cosicché il grado di protezione
dell’uno o dell’altro dipenderà dalla qualificazione di quel bene in un determinato momento
storico.
Paradigmatica in questo senso è l’esegesi dell’art. 24 del codice
deontologico forense11 in tema di prestazioni intellettuali svolte dall’avvocato a favore di
parti aventi interessi confliggenti nell’ambito di un medesimo giudizio o di giudizi collegati
nell’area del diritto di famiglia. La riconosciuta peculiarità di questo settore caratterizzato
da valori collegati alla dignità della persona ha determinato una più intensa protezione
dell’assistito anticipando la soglia della tutela a tutte quelle situazioni che, pur non
determinando un effettivo conflitto di interessi, ingenerino il sospetto di una difesa non
adeguata nei confronti del cliente.12 In definitiva la ragionevolezza fornisce i presupposti per
stabilire il recesso totale o parziale di un principio rispetto all’altro, nonché l’entità del
10
Cfr. art. 2872 c.c. e ss. in tema di riduzione di ipoteca legale e giudiziale.
Codice deontologico forense così come modificato dalla delibera del Consiglio Nazionale Forense del 31
gennaio 2014 che lo adegua alle previsione del nuovo ordinamento forense (legge n. 247/20129 e pubblicato
in Gazzetta Ufficiale 16 ottobre 2014, n. 241.
12
Cfr. sul punto Cass. 10.1.2006, n. 134 e Cass. sez. un. 4.11.2011 n. 2282.
11
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sacrificio delle rispettive posizioni ad esso correlate, stabilendo coordinate di valutazione
che, mediante il giudizio di proporzione, si trasformano in misura concreta di protezione dei
vari interessi in gioco.
2. La rilevanza dell’interesse meritevole nella qualificazione del danno
La centralità nel nostro sistema giuridico del danno conseguenza,13 è
rappresentata dalla sua attitudine a porsi come elemento dirimente nel processo decisionale
volto all’accoglimento di una domanda risarcitoria, posto che la riparazione del pregiudizio
dedotto è indissolubilmente legata alla dimostrazione, da parte del danneggiato, delle
conseguenze negative all’inadempimento ovvero al fatto colposo o doloso altrui.
La nozione di danno,14 intesa come differenza tra le condizioni in cui si
trova il patrimonio dopo l’illecito e quelle in cui si sarebbe trovato senza il pregiudizio
arrecato, va rimodulata in funzione alle peculiarità del caso concreto,15 coerentemente con
una concezione precipuamente soggettiva delle conseguenze del fatto dannoso16 che si pone
in antitesi all’idea di un illecito caratterizzato da immutabile attitudine lesiva, idoneo a
produrre sempre identico pregiudizio nei confronti di ogni consociato, sull’assunto di una
visione meramente oggettivistica del danno, incapace di cogliere la realtà fattuale in cui
spesso le conseguenze dannose assumono diversa intensità a seconda della esercitata
13
La distinzione tra danno evento e danno conseguenza è emersa per la prima volta nel dibattito tra G. GORLA,
in Studi per Cicu, I, 1951, 433 e P. FORCHIELLI, Il rapporto di causalità nell’illecito civile, Padova, 1960.
14
M. FRANZONI, Il danno risarcibile, in Trattato della responsabilità civile diretto da M. FRANZONI,
Milano, 2004; P.G. MONATERI, La responsabilità civile, in Trattato di diritto civile, diretto da R. Sacco,
Torino, 1998, 274; A. DE CUPIS, Il danno. Teoria generale della responsabilitàcivile, Milano, 1979; Id.
Danno (dir.vig.), in Enc.dir., XI; G. ALPA, Danno aquiliano, in Contr. impr., 1990, 791 s.; M.V. DE GIORGI,
Danno. I. Teoria generale, in Enc.giur., X; D. MESSINETTI, Danno giuridico, in Enc. dir. Aggiorn. I; S.
PATTI, Danno patrimoniale, in Dig. Priv. sez. civ. XVII; C. SALVI, Danno, in Dig. Priv. sez. civ. V; R.
SCOGNAMIGLIO, Risarcimento del danno, in Nov. Dig. It., XVI, Torino, 1969.
15
F. M. MOMMSEN, Beiträge zum Obligationenrecht, II, Zur Lehre von dem Interesse, Braunschweig, 1855,
3 ss. ; E. VON CAEMMERER, Das Problem der überholenden Kausalität im Schadensersatzrecht, in
Gesammelte Schriften, I, Tübingen, 1968, pag. 416 ss; R. COHNFELDT, Die Lehre vom Interesse nach
römischem Recht. Mit Rücksicht auf neuere Gesetzgebung, Leipzig, 1865, 93 ss; B. WINDSHEID, Diritto delle
Pandette, Torino, 1925, 38 ss; C.M. BIANCA, Dell’inadempimento delle obbligazioni, in Comm. cod. civ., a
cura di G. Scialoja-G.A.Branca, II ed., Bologna-Roma, 1979, 247. In senso critico si v. R.
SCOGNAMIGLIO,Appunti sulla nozione di danno, in Riv. trim. dir. e proc. civ., 1969, 466; A. RAVAZZONI,
La riparazione del danno non patrimoniale, 1962; G. ALPA, Responsabilità civile e danno, Milano, 1991, 465
16
In giurisprudenza si v. Cass. 15.10.1999 n. 11629 in F.I., 2000, I, 1917-1928 ove si precisa la natura ipotetica
del giudizio in questione. Nel quantificare il danno si deve tener conto di tutti gli elementi peculiari della
fattispecie, in modo da rendere la somma riconosciuta, la più idonea a risarcire il pregiudizio subito. Sul punto
cfr. Cass. 6.121995 n. 12578, in Mass. giur. It., 1995,Cass. civ., 16.12.1988, n. 6856.
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incidenza sulla sfera giuridica dell’interessato.17
In particolare si può osservare che il valore di un bene inficiato
dall’inadempimento o deteriorato per effetto della condotta di un terzo è prodromo di effetti
negativi non predeterminabili ex ante, con il conseguente ripudio dell’opzione ermeneutica
che, attribuendo ad un determinato evento esclusivamente un già preordinato effetto
dannoso, fonda su una visione standardizzata di utilizzo del diritto18 del tutto avulsa dal
contesto economico-sociale che presentando una molteplicità di atteggiamenti e sistemi di
sfruttamento dello stesso bene, dovrà essere analizzato caso per caso in relazione al soggetto
che ne è titolare.19 In definitiva, ciò che assume rilevanza nella determinazione del danno
non è l’aestimatio rei ma l’id quod interest, vale a dire non il bene in sé ma il valore che esso
rappresenta per un determinato soggetto,20 quindi l’importanza economica che ha per
quell’individuo in ragione delle sue condizioni patrimoniali complessive.21
La stretta relazione tra interesse del singolo e bene leso produce importanti
conseguenze applicative che ben si condensano nei fenomeni della propagazione oggettiva
e soggettiva dell’illecito; corollari volti a implementare la commisurazione del danno, da un
lato tenendo conto dell’intero patrimonio del danneggiato con riferimento alle poste che si
trovano in rapporto funzionale con il bene compromesso, dall’altro valorizzando le
V. già in Cass., 17 febbraio 1979, n. 1066, in Resp. civ. prev. 1979, 483 secondo i giudici di legittimità “il
valore venale del bene non costituisce il limite massimo, incondizionatamente insuperabile, per il risarcimento
di qualsiasi danno inferto al bene stesso. Nella valutazione del danno deve essere privilegiato un criterio
soggettivo, il quale tenga conto del rapporto tra il bene stesso e la sua utilizzazione economica da parte del
proprietario: la res danneggiata può essere apprezzata in modo da produrre un reddito non direttamente
proporzionale al suo valore di scambio.”
18
Sul punto si v. H. A. FISCHER, Der Shaden nach dem, BGB, 1903. Secondo questa teoria per danno deve
intendersi il peggioramento che, per effetto dell’inadempimento o dell’illecito, subisce il singolo bene
atomisticamente considerato, in particolare la somma va parametrata alla lesione prodotta sulla res, senza tener
conto del pregiudizio complessivamente sofferto nel suo patrimonio dal danneggiato, con la conseguenza che
la somma data in compensazione del danno non può mai essere superiore al valore venale del diritto leso, qual
era prima della verificazione dell’illecito.
19
Si pensi a titolo esemplificativo al valore attribuito ad un determinato francobollo da un certo collezionista,
per il quale sia l’ultimo della collezione e successivamente al valore assegnato a quello stesso francobollo da
chi lo acquista per la prima volta.
20
Cfr. R. SCOGNAMIGLIO, voce Risarcimento del danno, cit., 475.; F. CARNELUTTI, Il danno e il reato,
Padova, 1926, 12.
21
In giurisprudenza emblematica è Cass. 8.3.1974, n. 619, in Resp. civ. prev., 1975, 557. Nel caso di specie i
giudici affermano che “in tema di determinazione di quantum risarcibile, la liquidazione del danno non deve
essere necessariamente contenuta entro i limiti del valore del bene danneggiato, ma deve avere per oggetto
l’intero pregiudizio che dall’inadempimento è derivato al creditore, in quanto il risarcimento è diretto alla
restitutio in integrum del patrimonio del creditore”. Nello stesso senso Cass. 17 febbraio 1979 n. 1066 in Resp.
civ. prev., 1979, 473 in cui la suprema Corte ha precisato che “ il valore venale di un bene non costituisce il
limite massimo incondizionatamente insuperabile, per il risarcimento di qualsiasi danno inferto al bene stesso.
Nella valutazione del danno deve essere privilegiato un criterio soggettivo, il quale tenga conto del rapporto
tra il bene stesso e la sua utilizzazione economica da parte del proprietario: la res danneggiata può essere
apprezzata in modo da produrre un reddito non direttamente proporzionale al suo valore di scambio”.
17
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conseguenze negative che l’illecito produce nella sfera giuridica di soggetti diversi da quello
leso, ma a questo legati da rapporti economici o personali.22
Inoltre la concezione soggettiva di danno offre una soluzione
soddisfacente al tema del lucro cessante, posto che l’alterazione frutto della lesione deve
essere in tal senso analizzata tenendo conto oltre che dei beni acquisiti al patrimonio, anche
di quelli che pur non rientranti nello stesso, siano qualificabili in senso giuridico come
perdite di possibilità o di guadagno che più probabilmente che non sarebbero entrate a far
parte del complesso patrimoniale del danneggiato.23 Per contro, l’adesione ad una
concezione oggettiva di danno imperniata sulla esclusiva riparazione del bene leso, non
sarebbe in grado di valorizzare a pieno la concatenazione delle conseguenze dannose
innescate dalla condotta illecita, tra le quali vi sono senz’altro le occasioni di guadagno perse
a causa dell’inadempimento ovvero del fatto illecito.24 Nondimeno la teoria differenziale
impone la deduzione nella disamina del pregiudizio di tutti quei benefici collaterali di cui
gode il danneggiato per effetto dell’illecito; somme che vanno decurtate dall’importo finale
per evitare una ingiusta locupletazione a favore di chi subisce il detrimento.
Nella qualificazione del danno l’interesse assurge altresì a parametro cui
ancorare l’ammissibilità del risarcimento non economico25 in sede contrattuale; infatti se in
campo aquiliano è l’art. 2059 c.c. a fungere da principio cardine per l’individuazione e la
riparazione del danno non patrimoniale - tutte le volte che esso sia contemplato da una norma
ordinaria, di rango costituzionale o vi sia reato - nell’area dei contratti è l’interesse
E’ l’ipotesi classica da perdita del congiunto che cagiona un danno nei confronti dei parenti sopravvissuti sia
sul piano economico sia sul piano esistenziale.
23
Cfr. A. DI MAJO, La tutela civile dei diritti, Milano, 2003, pag. 220 ss; C. SALVI, Il danno extracontrattuale.
Modelli e funzioni, Napoli, 1985, pag. 103.
24
La concezione soggettiva del danno permette di includere nell’area della risarcibilità, in conformità con
quanto disposto dall’art. 1223 c.c., oltre al valore della prestazione inadempiuta, anche le ulteriori conseguenze
dannose che ne provengono come occasioni mancate o perdite di guadagno causalmente connesse al fatto
illecito. Sul punto si v. ex plurimis F. Messineo, Manuale di diritto civile e commerciale, Milano, 1958, 346.
25
In tema di danno non patrimoniale vastissima è la letterarura. Si v. ex pluribus: G. B. FERRI, Le temps
retrouvé dell’art. 2059, in Giur.cost. 2003, pag. 1990 ss; G. ALPA, Il danno biologico, Padova, 2003; F. D.
BUSNELLI, Danno biologico e danno alla salute, in M. BARGAGNA-F. D. BUSNELLI (a cura di), La
valutazione del danno alla salute, Milano, 1983; P. RESCIGNO, Il danno non patrimoniale (le letture dell’art.
2059 c.c. tra interpretazione e riforma) in Dir. inform., 1985, 20 ss.; P. PERLINGIERI, L’onnipresente
art.2059 c.c. e la tipicità del danno alla persona , in Rass. dir. civ. 2009, p. 523; P.CENDON-P.ZIVIZ, Danno
X, Danno esistenziale, in Enc.giur. X; ID. Vincitori e vinti (dopo la sentenza C.Cost. n. 233/2003), in Giur.it.
2003, pag. 1777 ss.; ID. Il risarcimento del danno esistenziale, Milano 2003 C. CASTRONOVO, Danno
Biologico. Un itinerario di diritto giurisprudenziale. Milano, 1998; ID. La nuova responsabilità civile, Milano
2006; E. NAVARRETTA, La Corte Costituzionale e il danno alla persona “in fieri”, in Foro it. 2003, pag.
2201 ss. G.PONZANELLI, Critica del danno esistenziale, Padova 2003; V. SCALISI, Ingiustizia del danno e
analitica della responsabilità civile, in Riv. dir. civ, 2004, 29 ss.; ID, danno alla persona e ingiustizia, Riv.
dir. civ., 2007, 147 ss.
22
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meritevole che assurge ad elemento discretivo circa l’eventuale risarcibilità delle poste non
economiche allorquando il vincolo pattizio sia diretto alla realizzazione di un interesse non
caratterizzato dai crismi dell’economicità.
D’altro canto appaiono prive di effettiva consistenza e comunque tutt’altro
che idonee ad escludere la risarcibilità, oltre che la dedotta mancata previsione di una
disposizione analoga all’art. 2059 c.c. in ambito contrattuale,26 anche la formulazione
dell’art. 1223 c.c. in termini economici e la circostanza che l’elemento oggettivo del rapporto
obbligatorio si sostanzi in una prestazione economicamente valutabile in campo
contrattuale.27 Infatti, l’art. 2059 c.c. si limita a tipizzare il risarcimento del danno non
patrimoniale senza tuttavia circoscriverne l’ambito di operatività all’area extracontrattuale.
Al contempo l’art. 1223 c.c., pur se caratterizzato da locuzioni quali “perdita subita” e
“mancato guadagno” che rimandano a concetti economici, è norma che va sincronizzata con
i valori costituzionali ed in particolare con il catalogo dei diritti inviolabili previsti dalla
Costituzione,28 con la conseguenza che almeno nel caso di danni non patrimoniali collegati
alla lesione dei diritti fondamentali della persona, intendendo il patrimonio come insieme di
situazioni soggettive non soltanto economiche facenti capo ad un determinato soggetto, deve
essere ammesso il risarcimento di quelli non patrimoniali. Infine l’art. 1174 c.c. nel
valorizzare l’interesse meritevole29 quale elemento costitutivo dell’obbligazione, senza del
26
La giurisprudenza ha sempre limitato, fino al renvirement delle «sentenze gemelle» del 2003, la risarcibilità
del danno non patrimoniale contrattuale nel solo caso del reato. Si cfr. Cass. 26.1.1989, n. 473, in Mass. giur.
lav., 1989, 210; Cass. 20.1.1985, n. 472, in Rep. Foro it., 1985, voce «Previdenza sociale», n. 498; Cass.
6.8.1964, n. 2252, in Mass. Foro it., 1964; App. Perugia 8.6.1998, in Rass. giur. umbra, 1999, 2; Trib. Lucca
181.1.1992, in Foro it., I, 264; Trib. Bologna 17.4.1975, in Giur. it., 1976, I, 2, 360; App. Catanzaro 30 gennaio
1953, in Rep. Foro it., 1954, voce «Responsabilità civile», n. 32.
27
Cfr. sul punto G. BONILINI, Il danno non patrimoniale, Milano, 1983; F.D. BUSNELLI, Interessi della
persona e risarcimento del danno, in Riv. trim. dir. e proc. civ. 1996, I, 15. Secondo gli autori l’art. 1218 c.c.
che pone a carico del debitore, che non esegue esattamente la prestazione dovuta, il generico obbligo di risarcire
il danno, andrebbe inteso in senso ampio, comprensivo sia del danno patrimoniale che di quello non
patrimoniale.
28
In giurisprudenza la Cassazione aveva affermato, già prima dell’intervento delle Sezioni unite del 2008, che
la risarcibilità del danno non patrimoniale conseguente alla lesione di un diritto fondamentale della persona
non è soggetto al limite derivante dalla riserva di legge previsto dall’art. 2059 c.c. giacché, anche in mancanza
di un fatto di reato, il pregiudizio di interessi di questa fatta va risarcito per il semplice fatto che i precetti
costituzionali, immediatamente precettivi, soddisfano a pieno il requisito della tipicità ben enucleato nella
norma che si occupa del risarcimento del danno non patrimoniale. Cfr. sul punto. Cass. 31.5. 2003 n. 8827 e
8828, in Resp. civ. e prev., 2003, 675, con note di P. Cendon, Anche se gli amanti si perdono l'amore non si
perderà. Impressioni di lettura su Cass., 8828/2003; in Corr. giur., 2003, 1017, con nota di M. FRANZONI,
Il danno non patrimoniale, il danno morale: una svolta per il danno alla persona; in Foro it., 2003, I, 2272,
con notadi E. NAVARRETTA, Danni non patrimoniali: il dogma infranto e il nuovo diritto vivente. Sul punto
si v. anche Corte cost., 11.7.2003, n. 233, in Foro. it., 2003, I, 2201 con nota di E. NAVARRETTA, La Corte
Costituzionale e il danno alla persona "in fieri".
29
G. CIAN, Interesse del creditore e patrimonialità della prestazione, in Riv. dir. civ., 1968, I, p. 197 ss.; R.
SCOGNIAMIGLIO, Il danno morale, in Riv. dir. civ., 1957, I, 277 ss.; G. ALPA, Danno alla vita di relazione
e danno alla persona. In margine ad una inutile dicotomia, in Riv. giur. circ. trasp.,1980, 680; A. DE CUPIS,
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quale l’obbligazione è nulla e la cui sopravvenuta irrealizzabilità produce lo scioglimento
del contratto, prevede espressamente la possibilità che il negozio abbia ad oggetto ovvero il
fine di tutelare interessi non economici del creditore,30 consistenti nella causa concreta del
contratto, ai quali sarebbe del tutto illogico non corrispondere una tutela in grado di dialogare
con il pregiudizio arrecato.31
In sede contrattuale, in cui le parti sono al tempo stesso autori e destinatari
della lex specialis, il danno non patrimoniale va risarcito con maggiore ampiezza rispetto al
campo aquiliano poiché esso si estende, oltre ai casi previsti dalla legge, dal reato e dalle
norme costituzionali immediatamente precettive anche a quelle ipotesi in cui
l’inadempimento incide negativamente sul perseguimento di uno scopo che abbia natura non
economica, per quanto non riconducibile al novero dei diritti fondamentali della persona.32
In questi casi la tipizzazione degli interessi tutelabili avviene ad opera delle
parti, piuttosto che del legislatore, nei limiti della loro meritevolezza, così determinando un
ribaltamento della concezione restrittiva volta a riconoscere in sede contrattuale
esclusivamente i pregiudizi economici, in favore di una più estesa tutela degli interessi
meritevoli obiettivizzati nel contratto a prescindere dal loro carattere economico.33
Ecco che l’utilità perseguita dall’individuo e la sua qualificazione in
termini meritori da parte dell’ordinamento assume ruolo di assoluta importanza sia nella fase
fisiologica del contratto, preordinata alla realizzazione dello scopo sotteso al vincolo, che in
quella patologica volta a selezionare i danni effettivamente risarcibili.
Il danno.Teoria generale della responsabilità civile, Milano, 1979, p. 127 ss.; M. COSTANZA, Danno non
patrimoniale.
30
È questo, ad esempio, il caso in cui sia leso il diritto alla salute, nell’ambito del cd. contratto di protezione
che lega il paziente al medico che lo ha in cura. Cfr. sul punto Cass. 29.11.2010, n. 24143, in Giust. civ. Mass.,
2010, 11, 1522.
31
Cfr. Cass. sez. un. 11.11.2008, n. 26972 cit. in cui si fa particolare riferimento ai contratti di protezione come
quelli conclusi nel settore sanitario o quelli che intercorrono tra l’allievo e l’istituto scolastico. Con riferimento
ad altri ambiti invece la Corte individua direttamente nella legge l’inserimento di interessi non patrimoniali nel
contratto, ciò avviene per esempio nell’ambito del rapporto di lavoro, settore in cui è rinvenibile ex art 2087
c.c. un generale obbligo di protezione in capo al datore di lavoro nei confronti del lavoratore, e nella disciplina
del contratto di trasporto dalla quale si evince una particolare attenzione nei confronti di dell’integrità fisica
del trasportato.
32
Sulla scorta del decisum delle Sezioni Unite il legislatore è intervenuto sul tema in oggetto fornendo un
ulteriore appiglio normativo alla linea di pensiero della Corte ammettendo, per mezzo del codice del turismo
(d. lgs. 79/2011) la compatibilità tra responsabilità ex contractu e danno non patrimoniale e prevedendo in
particolare il c.d. risarcimento del danno da vacanza rovinata nell’art. 47 dello stesso codice. La norma prevede
infatti che il turista, nel caso in cui l'inadempimento o inesatta esecuzione delle prestazioni oggetto del
pacchetto turistico non sia di scarsa importanza (nei termini regolati dall'articolo 1455 del Codice civile) possa
chiedere, oltre e indipendentemente dalla risoluzione del contratto, un risarcimento del danno subito correlato
al tempo di vacanza inutilmente trascorso e all'irripetibilità dell'occasione perduta.
33
Cfr. Cass. sez. un. 11.11.2008, n. 26972 cit.
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In questo contesto il giudice, libero da condizionamenti formalistici,
svolge un’opera di mediazione e selezione tra i molteplici interessi di cui le parti sono
titolari,34 focalizzando il proprio giudizio sul rapporto di tensione che si instaura tra un
determinato individuo ed uno specifico bene in modo da assicurare idonea salvaguardia al
titolare del diritto solo se questi abbia un interesse significativo35 alla prestazione o al
risarcimento del danno, senza che sia all’uopo necessaria la coincidenza tra la sua pretesa
dedotta e la volontà della legge più in generale.36
In ragione di ciò dovranno essere rigettate, anche con un controllo ex post,
istanze prive di sostanziale utilità per chi le fa valere37 e tutelate situazioni scevre di adeguata
copertura legislativa ma contraddistinte da interessi reali e significativi come accade in
materia di danno non patrimoniale all’ambiente, ove una tutela del tutto sbilanciata verso lo
Stato non può essere da ostacolo all’integrale risarcimento dell’individuo.38 In tutte queste
ipotesi l’interesse è la ragione che spinge il soggetto ad agire ed al contempo il fondamento
della situazione giuridica soggettiva che l’ordinamento intende tutelare.39
Si determina in tal modo una più agevole intelligibilità dell’area di
operatività dell’art 1322, comma secondo, c.c. che nel menzionare espressamente il concetto
di interesse lo qualifica come meritevole, enucleando un principio di portata più generale
E’ compito del diritto come norma di convivenza stabilire un nesso di coordinazione e di subordinazione tra
gli interessi in conflitto. La valutazione normativa che importa la prevalenza di un tipo di bene sull’altro è una
valutazione comparativa circa il merito della tutela giuridica secondo le vedute politiche legislative
dell’ordinamento in cui si compie.
35
Cfr. F. CARNELUTTI, Teoria generale del diritto, Roma, 1951, p. 11 ss.; A. LEVI, Teoria generale del
diritto, Padova, 1953, p. 264.
36
Ex plurimis si v. Cass. Sez. Un. 18.12. 2007 n. 26617 in Guida dir. 2008, n. 3 p.30; Cass. Sez. Un. 15.11.2007
n. 23726 in D. Resp., 2008, 996 con annotazione di F. FESTI, Buona fede e frazionamento del credito in più
sedi giudiziarie.
37
Interessante a tal proposito la nota pronuncia della Cass., 18.09.2009, n. 20106, in Contratti, 2009, p. 1009
secondo cui “Il principio della buona fede oggettiva, ossia della reciproca lealtà della condotta delle parti, non
solo vincola i contraenti nella fase dell'esecuzione del contratto ed in quella della sua formazione, ma deve
intendersi riferito anche agli interessi sottostanti alla stipula del regolamento negoziale, a tale conclusione
pervenendosi sull'assunto che la clausola generale di correttezza e buona fede costituisce un autonomo potere
giuridico espressione del generale dovere di solidarietà sociale e come tale è idonea ad imporre a ciascuna delle
parti del rapporto obbligatorio di agire preservando le ragioni dell'altra.”
38
Si pensi al comma settimo dell’art. 313 che sembra limitare il danno risarcibile al danno biologico da danno
alla salute o al danno patrimoniale da lesione della proprietà, quando dispone che “resta in ogni caso fermo il
diritto dei soggetti danneggiati dal fatto produttivo del danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro
proprietà, di agire in giudizio nei confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”,non
considerando ad esempio il danno esistenziale per perdita della possibilità di svolgere le attività dinamicorelazioni, o il danno morale come sofferenza transeunte, patiti in conseguenza di un danno all’ambiente
produttivo di conseguenze lesive di tipo non patrimoniale sulla sfera giuridica del soggetto che assuma violato
il proprio diritto all’ambiente.
39
A tal proposito, P. FEMIA, Interessi e conflitti culturali nell’autonomia privata e nella responsabilità civile,
Napoli, 1996, p. 347.
34
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valevole per ogni settore del diritto privato spostando l’indagine dal piano della liceità40 della
pattuizione a quello individuale41 insito nella logica del singolo contratto e più in generale
di ogni obbligazione, determinando una nuova stagione del diritto civile improntato a criteri
di sostanzialità ed utilità individuale.
3. I temperamenti alla concezione soggettiva di danno
La dimensione dell’interesse nel danno è peraltro avallata dalla
predisposizione dei principi europei in tema di responsabilità civile elaborati dal Centro
Europeo di diritto della responsabilità civile e delle assicurazioni (ECTIL) e dal Draft
Common Frame of Reference che fondano proprio sul concetto di interesse protetto o degno
40
Va segnalata la posizione di chi fa coincidere il giudizio di meritevolezza con il giudizio di liceità della causa.
Sul punto si v. G.B. FERRI, Causa e tipo nella teoria del negozio giuridico, Milano, 1966; ID, Meritevolezza
dell’interesse e utilità sociale, in Saggi di diritto civile, Rimini, 1993 p. 320; ID., Ancora in tema di
meritevolezza dell’interesse, in Riv. dir. comm, 1979, I, p. 335; ID., Tipicità negoziale e interessi meritevoli di
tutela nel contratto di utilizzazione di cassette di sicurezza in Le anamorfosi del diritto civile attuale: Saggi,
Padova, 1994, p. 524; G. STOLFI, Teoria del negozio giuridico, Padova, 1961. p. 29 ss.; G. GORLA, Il
contratto, Milano, 1955, I, p. 214; P. PERLINGIERI, Il diritto civile nella legalità costituzionale secondo il
sistema italo-comunitario delle fonti, II, Napoli, 2006, 336, 369; In giurisprudenza si v. ex multis. Cass.
6.2.2004 n. 2288 in Giur. it., 2005, 35 con nota di Nardelli “possono dirsi diretti a realizzare interessi meritevoli
di tutela (…) tutti i contratti atipici non contrari alla legge, all’ordine pubblico e al buon costume”. Altri autori
ritengono che il giudizio di meritevolezza debba essere compiuto in relazione ai valori espressi dalla
Costituzione: pregevoli sul punto le considerazioni di C.M BIANCA, Diritto civile, il contratto, III, Milano,
2000, p. 432 in cui l’a. richiama esplicitamente utilità sociale, sicurezza, libertà, dignità umana salvaguardate
dalla Costituzione;M. NUZZO, Utilità sociale e autonomia privata, Milano, 1974, p. 98 ss.; L. BIGLIAZZI
GERI - U. BRECCIA - F.D. BUSNELLI - U. NATOLI, Diritto civile, I, Fatti e atti giuridici, V. I, Torino,
1989, p. 516; F. CARRESI, Il contratto, in Tratt. dir. civ e comm. diretto da A. Cicu e F. Messineo continuato
da L. Mengoni, I, Milano, 1980, p. 244 s.; F. LUCARELLI, Solidarietà e autonomia privata, Napoli, 1970, p.
92 ss.; S. MAZZAMUTO, Libertà contrattuale e utilità sociale in Europa e dir. priv, 2011, 2, p. 365; U.
MAJELLO, I problemi di legittimità e disciplina dei negozi atipici, in Riv. dir. civ., 1987, 494 ss.; A.
LISERRE, Tutele costituzionali della autonomia contrattuale, Milano, 1971, p. 67 ss.; M. COSTANZA,
Meritevolezza degli interessi ed equilibrio contrattuale, in Contratto e impr., 1987, p. 423.
41
F. GAZZONI, Atipicità del contratto, giuridicità del vincolo e funzionalizzazione di interessi, in Riv. dir. civ.,
1978, I, p. 72 ss.; ID., Manuale di diritto privato, Napoli, 1994, p. 771. l’a. evidenzia come la vera indagine
sul controllo di meritevolezza si concretizzi nella verifica dell’intento dei privati e nella serietà dell’impegno
preso dagli stessi, prescindendo da ogni riferimento normativo. Ciò, infatti, determinerebbe una interpretatio
abrogans dell’art. 1322, secondo comma, c.c. che sarebbe relegato a mero doppione dell’art. 1343 c.c. che, dal
canto suo, predispone già un controllo di liceità della pattuizione. In senso analogo si v. A. GENTILI,Merito e
metodo nella giurisprudenza sulle cassette di sicurezza: a proposito della meritevolezza di tutela del contratto
“atipico”, in Riv. dir. comm., 1989, p. 221 ss.; R. SACCO, Motivi, fini, interessi, in Trattato di dir. priv. diretto
da Rescigno, Torino, 1982, X, 2, pag. 337: in particolare l’art. 1322, secondo comma, impedirebbe la tutela di
quell’interesse immeritevole di tutela per la sua connaturale insignificanza. ID., L’abuso della libertà
contrattuale, in AA.VV., L’abuso del diritto in Diritto privato, 1997, Padova, 1998; G. SICCHIERO, I
contratti con causa mista, Padova, 1995, p. 213 ss.; P. TRIMARCHI, Istituzioni di diritto privato, Milano,
1991, p. 226; Cfr. F. DI MARZIO, Il contratto immeritevole nell’epoca del postmoderno, in Illiceità,
immeritevolezza, nullità. Aspetti problematici dell’invalidità contrattuale, in Quaderni dellaRass. dir. civ., a
cura dello stesso, Napoli, 2004, p. 121 ss., delinea una nozione di contratto immeritevole meno effimera e
insignificante di quella tesa a farla coincidere con la liceità della pattuizione, individuandone il fondamento nei
dei doveri di diligenza e buona fede, che debbono permeare l’esecuzione del contratto in modo da non
danneggiare terzi estranei al vincolo pattizio.
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di protezione giuridica.42
In particolare i PETL dispongono che l’ambito di protezione di un interesse
dipende dalla sua natura; per cui maggiore è la sua rilevanza e la sua evidenza, più
soddisfacente ne è la tutela. Differente è il modello adottato dal DCFR che, pur non
promuovendo una graduazione di intensità nella tutela degli interessi,43 ne ammette la
salvaguardia all’esito di un giudizio che li qualifichi come seri e significativi, in grado cioè
di superare la soglia dell’ “annoyance, anger, disgust, and repulsion which lie whitin the
spectrum of normal, everyday feelings”,44 limiti che separano i danni risarcibili dai
pregiudizi tollerabili non connotati da un interesse significativo al loro risarcimento.
Si ha consapevolezza della possibilità che il danno inteso in senso
soggettivo possa essere esposto al rischio di un eccesso risarcitorio per il danneggiante a
fronte del pregiudizio da questi effettivamente arrecato, per il fatto che lo stesso sarebbe
tenuto al ristoro della intera differenza accertata all’esito del giudizio, con conseguente
ingiustificato arricchimento a favore della parte lesa che si vedrebbe riconosciuto il saldo
negativo tra il patrimonio dopo l’illecito ed il valore dello stesso in difetto di pregiudizio.45
Tuttavia i dubbi si dissolvono ove si tenga conto che il saldo va raffinato mediante l’utilizzo
di filtri ben preordinati dal legislatore, volti a distinguere il danno storico da quello
effettivamente risarcibile,46 mediante un’operazione il cui esito darà luogo alla scissione tra
le conseguenze evidentemente non collegabili all’inadempimento e quelle che, in base ad un
giudizio di tipo causale, possano essere effettivamente ricondotte al comportamento colposo
o doloso del danneggiante e perciò compensate.47
Cfr. in particolareiPrinciples of European Tort Law art. 2:101. rubricato “Recoverable damage” in cui
sispecificache “Damage requires material or immaterial harm to a legally protected interest”.
43
Il Draft common Frame of reference si limita a proporre un elenco non tassativo di danni, in perfetta sintonia
con l’esigenza di individuare una rete di norme che siano compatibili con i vari diritti nazionali, senza effettuare
nessun tipo scelta o di graduazione del tipo di interesse leso, ammettendo come unico limite al risarcimento
del danno non patrimoniale la serietà dell’interesse sotteso al diritto pregiudicato dall’inadempimento o dalla
condotta illecita.
44
Il Draft common Frame of reference espressamente prevede all’art. VI.- 6.102 una clausola bagatellare che
impedisce il risarcimento di quei pregiudizi che, non superando la soglia della tollerabilità, vanno senz’altro
tollerati.
45
R. SCOGNAMIGLIO, voce Risarcimento del danno, cit., 475 ss.
46
G. GORLA, Sulla cosidetta causalità giuridica: fatto dannoso e conseguenze, in Riv. dir. comm., 1951, I,
409; V. CARBONE, Il rapporto di causalità, in La responsabilità civile, a cura di G. Alpa- M. Bessone, Torino,
1987, 158.; M. FRANZONI, Dei fatti illeciti, in Commentario al codice civile Scialoja-Branca, diretto da F.
Galgano, Bologna-Roma, 1993, sub art. 2043, 85; G. VISINTINI, Trattato breve della responsabilità civile,
Padova, 1999, 557; P. TRIMARCHI, Causalità e danno, Milano, 1967, 198; G. ALPA, La responsabilità
civile, in Trattato di diritto civile, Milano, 1999.
47
Cfr sul punto S.PATTI, Danno patrimoniale, in Dig.Priv. sez. civ. V, pag. 95: “il problema centrale della
materia, universalmente sentito, è anzi quello di fissare il limite entro cui le conseguenze dannose possono
avere rilevanza ai fini del risarcimento”.
42
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Inoltre, dall’entità del danno così determinata andranno decurtati gli effetti
vantaggiosi di cui il creditore abbia beneficiato in conseguenza della condotta lesiva. Il
delineato fenomeno di compensatio lucri cum damno48 èespressione della finalità riparatoria
del sistema civilistico che si preoccupa di circoscrivere la somma da risarcire ai danni
effettivamente inferti, eliminando non soltanto gli svantaggi ma sinanche i vantaggi che
derivino dalla stessa condotta illecita. Il funzionamento dell’istituto soggiace, secondo un
principio di omogeneità dei reciproci benefici, all’ineludibile circostanza che il vantaggio
inerisca lo stesso bene o interesse leso e soprattutto che ci sia unicità causale tra l’evento di
danno e il beneficio ottenuto. Per altri versi non è applicabile ogniqualvolta l’illecito raffiguri
la semplice occasione per l’attivazione di un diverso e autonomo processo causale e ciò per
impedire che, in un’ottica di costi e benefici, l’inadempimento diventi una scelta del
danneggiante, consapevole della possibilità di poter confidare nella riduzione del danno e
quindi indotto all’illecito.49
In tema di causalità, e più in generale in una prospettiva di convergenza tra
lesione prodotta e risarcimento dovuto, l’art. 1223 c.c. attribuisce rilevanza alle sole
conseguenze dirette ed immediate50 dell’illecito o dell’inadempimento e non anche a quelle
48
Sul tema della compensatio lucri cum damno si v. a titolo esemplificativo ma non esaustivo: C.M. BIANCA,
Diritto civile, vol. V, Milano, 1997, p. 152; S. PULEO, voce Compensatio lucri cum damno, in Enc. dir., VII,
Milano, 1960; M. FERRARI, La Compensatio lucri cum damno come utile strumento di equa riparazione del
danno, Milano, 2008; C.M. BIANCA, Dell’inadempimento delle obbligazioni, in Comm. Scialoja – Branca,
Libro IV, Delle obbligazioni, sub. art. 1223 , Bologna-Roma, 1979, 310; P.G. MONATERI, Gli usi e la ratio
della dottrina della compensatio lucri cum damno. È possibile trovarne un senso? in Quadrimestre, 1990, p.
377 ss.
49
La giurisprudenza ritiene che tale istituto trovi applicazione solamente nel caso in cui il danno e il vantaggio
siano conseguenza immediata e diretta dello stesso fatto, il quale abbia l’idoneità a produrre entrambi gli effetti
senza essere relegato a mera occasione dalla quale possa scaturire un diverso processo causale. Sul punto si v.
Cass. 10.10.1988 n. 5464 in Arch circolaz., 1989 p. 15; Cass. 16.6.1987 n. 5287, in Giur. it. 1989, I, 1, c. 380
In quest’ultimo caso in particolare è stato escluso che possa operare la compensatio in relazione ad un danno
subito ad un fondo coltivato ad agrumeto per effetto delle immissioni di polvere provenienti da un cementificio,
se da ciò consegua il vantaggio consistente nella situazione oggettiva di edificabilità della zona e quindi
l’incremento del valore del fondo, in relazione a quell’insediamento industriale. Cfr. anche Cass. 10.2.1999 n.
1135 in Mass. Foro. it, 1999. In base all’assunto secondo cui il principio di compensatio lucri cum damno non
opera se non nel caso in cui vantaggio e danno siano entrambi conseguenza immediata e diretta del fatto illecito,
l’istituto non opera quando l’assicurato contro gli infortuni riceva dall’assicuratore il relativo indennizzo per
la lesione patita a causa del fatto illecito del terzo, poiché in questo caso la prestazione rinviene la sua fonte e
la sua ragion d’essere nel contratto di assicurazione, vale a dire in un titolo diverso e indipendente dall’illecito
stesso, il quale costituisce mera condizione per la produzione degli effetti del contratto assicurativo, senza che
l’effettivo incremento patrimoniale conseguito dal soggetto leso possa incidere sul quantum del risarcimento
dovuto dal danneggiante
50
Sull’interpretazione dell’art. 1223 la letteratura è ampia ma la dottrina e la giurisprudenza prevalenti sono
orientate nel senso che la norma abbia inteso codificare il principio della causalità adeguata secondo cui sono
danni risarcibili quelli che rappresentano secondo l’id quod plerumque accidit conseguenze normali e ordinarie
dell’inadempimento o del fatto illecito, mentre non lo sono quelli connotati da una struttura eccentrica,
straordinaria, abnorme ed eccezionale. Per un approfondimento si v. in dottrinaC.M. BIANCA,
Dell’inadempimento delle obbligazioni, in Comm. Scialoja – Branca, Libro IV, Delle obbligazioni, artt. 1218-
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che si presentino come eccentriche, illogiche o del tutto estranee all’evento di danno in base
ad un giudizio di prognosi postuma volto ad individuare, al momento della condotta
inadempitiva, tra gli effetti anche mediati purché normali dell’illecito, quelli
che
concretamente sono riferibili all’evento lesivo, acclarando la concezione di danno risarcibile
parametrato sulle esigenze precipuamente riparatorie che ispirano il nostro sistema
civilistico e che vanno tenute ben distinte da quelle afflittivo-sanzionatorie tipiche del
sistema penalistico, in cui ciò che rileva non è la vittima e il danno da essa subito, ma il
carnefice e l’illecito dallo stesso compiuto.
Analogamente l’art. 1227, secondo comma, c.c. frappone un ulteriore e più
importante limite tra danno storico e danno giuridico assegnando rilevanza piuttosto che
all’intero importo individuato all’esito del giudizio differenziale, a quella porzione di lesione
che rappresenta conseguenza inevitabile della condotta dannosa, escludendo dal novero dei
danni risarcibili gli elementi pregiudizievoli che il creditore avrebbe potuto evitare mediante
un comportamento diligente volto a contenere il danno;51 contegno che non necessariamente
coincide con un atteggiamento omissivo teso a non dilatare gli effetti dannosi, ma che al
contrario - in un’ottica di buona fede integrativa - può anche palesarsi in una condotta attiva
volta ad eliminare o ridurre il pregiudizio sul piano quantitativo.52
La norma ha una rilevanza fondamentale nella mitigazione del danno,
secondo alcuni53 riaffermando quanto già previsto in tema di causalità normale dall’art. 1223
1229, Bologna-Roma, 1979, 254 s.; SALVI, Responsabilità extracontrattuale, in Enc. del Dir., XXXIX,
Milano, 1988, 1250; ID., La responsabilità civile, in Trattato di diritto privato, a cura di IUDICA e ZATTI,
Milano, 1998, 171; F. REALMONTE, Il problema del rapporto di causalità nel risarcimento del danno,
Milano, 1967, 203 ss.; M. FRANZONI, Dei fatti illeciti, in Commentario al codice civile Scialoja-Branca,
diretto da Galgano, Bologna-Roma, 1993, sub art. 2043, 85; G. VISINTINI, Risarcimento del danno, in Tratt.
Rescigno, Torino, 1984, 203 ss. ID., Il criterio legislativo delle conseguenze dirette ed immediate,
in Risarcimento del danno contrattuale ed extracontrattuale, a cura di G. Visintini, Milano, 1984, 10.
51
G. CRISCUOLI, Il dovere di mitigare il danno subito (The duty of mitigation: a comparative approach), in
Riv. dir. civ., 1972, I, pp. 553 ss.; G. CIAN- A. TRABUCCHI, Commentario breve al codice civile, Padova,
1984, pp. 823 ss.; A. DE CUPIS, Fatti illeciti, in Commentario del codice civile Scialoja- Branca, IV, BolognaRoma 1971; G. VALCAVI, Evitabilità del maggior danno ex art. 1227, 2° comma c.c. e rimpiazzo della
prestazione non adempiutain Foro it. 1984, p. 2820; ID, Sulla prevedibilità del danno da inadempienza colposa
contrattuale, in Foro it., 1990, I, pp. 1946 ss; S. DI PAOLA, Il dovere di non aggravare il danno, spunti per
la rilettura, in Foro it., 1984, I, 2825; V. MARICONDA, L’art. 1227, 2° comma c.c. ed il rapporto di causalità,
in corr. giur., 1990, p. 720; C. ROSSELLO, Il danno evitabile, Padova, 1990, p. 85 ss.
52
In giurisprudenza si v ex plurimis Cass. 23.4.2007 n. 9864 in Guida al diritto, 2007, 22; Cass. 3.3.1983 n.
1598; Cass. 9.2.1981 n. 795; Cass. 13.10.1997 n. 9939, in Giur. it, 1998, 2274; Ad. plenaria 24.3.2011 n. 3.
53
Argomentano nel senso dell’unicità del nesso causale V. POLACCO, Le obbligazioni, Roma, 1915, 588; G.P.
CHIRONI, Colpa extracontrattuale, Torino 1966, II, 314.
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c.c.,secondo altri54 sancendo una vera e propria regola di condotta in capo al creditore
giacché, diversamente opinando, essa rappresenterebbe superfetazione di una regola già
evincibile da una diversa disposizione.
Coerentemente con un’interpretazione che assegni valenza precettiva alla
norma, appare più soddisfacente l’opzione ermeneutica che ricava dalla lettura della
disposizione una vera e propria regola di condotta sostanziantesi nel duty of mitigation,55
vale a dire nell’obbligo per il danneggiato di alleviare, ridurre fino ad escludere, laddove ciò
sia possibile, l’entità del danno risarcibile in omaggio al parametro della buona fede e della
solidarietà che rappresentano precetti generali, valevoli anche nei confronti dei soggetti che
abbiano patito un illecito.
Il pregio di questa differenziazione consiste nell’aver individuato
nell’ambito della responsabilità civile una duplicità di rapporti distinti ed autonomi: il nesso
di causalità materiale ricollega un determinato fatto dannoso ad un soggetto responsabile
secondo uno dei criteri di collegamento normativamente predisposti, il nesso di causalità
giuridica ha l’esclusiva funzione di limitare e contenere l’estensione della responsabilità,
considerando rilevanti per il diritto e quindi risarcibili quelle ripercussioni patrimoniali che
il creditore non avrebbe potuto evitare nemmeno mediante l’utilizzo dell’ordinaria diligenza.
In definitiva l’irrisarcibilità del danno evitabile non presuppone che lo
stesso esuli dalle conseguenze normali ponendosi come fattore idoneo ad interrompere il
nesso causale, ma fonda su un ottica di tutela dell’interesse meritevole che esclude dal
ristoro colui che abbia violato il dovere di diligenza, facendo degradare il suo interesse da
serio a futile.56
Per un approfondimento sulla tematica si rimanda a P. RESCIGNO, Libertà del “trattamento” sanitario e
diliegenza del danneggiato, in Studi Asquini, vol. IV, Padova, 1964, 1646; S. RODOTÀ, Il problema della
responsabilità civile, Milano, 1964, 163; A. GIUSIANA, Il concetto di danno giuridico, Milano, 1944, 59.; V.
MARICONDA, L’art. 1227, 2° comma c.c. ed il rapporto di causalità, cit.,720; C. M. BIANCA, Diritto
civile, La responsabilità, Milano, 1994, 143; G. VILLANACCI, La buona fede oggettiva, Napoli, 2013; C.
ROSSELLO, Il danno evitabile. La misura della responsabilità tra diligenza ed efficienza, 1990, p. 63 ss.; G.
VISINTINI (a cura di), Risarcimento del danno contrattuale es extracontrattuale,1983, p. 54; E.
BONVINCINI, Il dovere di diminuire e non aggravare il danno alla persona, in Resp. civ. prev., 1967, p.
230 ss.
55
G. CRISCUOLI, Il dovere di mitigare il danno subito (The duty of mitigation: a comparative approach), cit.,
p. 553 ss.; G. VALCAVI, Evitabilità del maggior danno ex art. 1227, 2° comma c.c. e rimpiazzo della
prestazione non adempiuta, cit., passim; C. ROSSELLO, Il danno evitabile, Padova, 1990.
56
In giurisprudenza si v Cass. 8.7.2010 n. 16419, in particolare la Corte chiarisce che l’ipotesi del fatto colposo
del creditore che abbia concorso al verificarsi dell’evento dannoso va tenuta distinta da quella riferibile al
contegno dello stesso danneggiato che abbia prodotto il solo aggravamento del danno senza contribuire alla
sua causazione giacché “ mentre nel primo caso il giudice deve proporsi d’ufficio l’indagine in ordine al
concorso di colpa del danneggiato, sempre che risultino prospettati gli elementi di fatto dai quali sia ricavabile
la colpa concorrente, sul piano causale dello stesso – la seconda di tali situazioni costituisce oggetto di una
54
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113
Il contenuto dell’obbligo del creditore ha subito nel tempo una
rideterminazione per certi versi analoga a quella conosciuta dalla clausola di buona fede in
sede contrattuale che da parametro di valutazione delle condotte, ha assunto ruolo di vera e
propria fonte di obblighi, rappresentando l’unica clausola a carattere generale i cui contenuti
non sono predeterminabili ex ante, ma di volta in volta individuabili in base al caso concreto.
Nello stesso senso l’obbligo di diligenza, che connota la condotta del danneggiato
nell’ambito dell’obbligazione risarcitoria, non va inteso in senso solamente negativo come
un non facere idoneo a non aggravare il pregiudizio, ma altresì come obbligo positivo volto
a salvaguardare l’interesse del debitore quando ciò non produca un sacrificio serio ed
apprezzabile per il danneggiato, limite oltre il quale non è più esigibile nemmeno ex bona
fide una comportamento del creditore teso a ridurre il danno.57
Così ad esempio rientrano nel novero delle condotte improntate a diligenza
l’onere per il danneggiato che subisce un fermo tecnico dell’autovettura di rimpiazzare nel
proprio patrimonio il bene colpito dal fatto illecito altrui in modo da poter espletare la sua
professione lavorativa;58 il dovere per il creditore di avvisare il debitore quando tale
comportamento sia idoneo a limitare il danno; il tentativo di ricollocarsi sul mercato del
lavoro da parte del soggetto licenziato in modo illegittimo.59
Questi
comportamenti
esemplificativamente
rammentati60
sono
estrinsecazione del più generale principio secondo cui il soggetto leso nella propria sfera
giuridica non può rimanere inerte aspettando che il danno si ispessisca, ma è tenuto al
contrario a tutte quelle condotte collaborative nei confronti del debitore che non
eccezione in senso stretto, in quanto il dedotto comportamento del creditore costituisce un autonomo dovere
giuridico, posto a suo carico dalla legge quale espressione dell’obbligo di comportarsi secondo buona fede”.
57
La diligenza richiesta dal capoverso dell’art. 1227 c.c. non può estrinsecarsi in un’attività che pregiudichi in
modo abnorme la sfera giuridica personale del creditore, comportando rischi e sacrifici inaccettabili secondo
l’ordinaria diligenza. Sul punto si v. Cass. 20.11.1991 n. 12439, in Nuova giur. civ. comm., 1992, 635; Cass.
9.4.1996 n. 3520, in R.F.I., 1996, Danni civili, 101; Cass. 14.5.98 n. 4854, in F.I., 1998, 2850.
58
Cfr. Cass. 30.3.2005 n. 6735 in Rep. Foro. it. 2005, Danni civili, n. 191.
59
Cfr. Cass 3.2.1998, n. 1099, in G.I., 1999, 521.
60
Controversa in giurisprudenza è l’ammissibilità tra gli obblighi positivi esigibili dal creditore, delle condotte
concretantesi nell’esperimento di iniziative giudiziali tese in qualche misura a mitigare il danno. In questo
senso si v. Cons. Stato. Ad. plen. 3/2011 e l’art. 30 del codice amministrativo (d. lgs 104/2010) che impone al
giudice, nel determinare il risarcimento di valutare tutte le circostanze di fatto e il comportamento complessivo
delle parti e, comunque, di escludere il risarcimento di quei danni che si sarebbero potuti evitare usando
l'ordinaria diligenza, anche attraverso l'esperimento degli strumenti di tutela previsti. Ritiene eccessivamente
gravoso e quindi inesigibile l’introduzione di un’azione processuale vota a mitigare il danno Cass. 27.6.2007
n. 14583,in Assicurazioni, 2008, II, 2, 62
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rappresentino per lui un sacrificio eccessivo superando la soglia della serietà.61
4. l’interesse nella nuova concezione del danno tanatologico
Se tali coordinate palesano la chiara esigenza di limitare l’area delle
conseguenze dannose per evitare indebite esposizioni risarcitorie in capo al danneggiante,
altrettanto evidente è l’esigenza di salvaguardare, in sinergia con la funzione tipicamente
risarcitoria del sistema civilistico, la piena e integrale riparazione della sfera giuridica del
danneggiato in base ad un immanente principio di integralità del risarcimento del danno
volto ad eliminare tutte le conseguenze negative prodotte dall’illecito nella sfera giuridica
altrui mediante il ripristino dello status quo ante o attraverso una compensazione monetaria.
Detto principio tuttavia non trova solidi ancoraggi normativi nella Carta fondamentale,62
ragione per la quale si è affermata la possibilità per il legislatore mediante legge ordinaria di
individuare massimali63 tesi a contenere l’entità del risarcimento quando ci siano altri
interessi in gioco da bilanciare, con la precisazione che tali scelte restano in ogni caso
sindacabili sul piano della ragionevolezza e della proporzionalità.64
L’asserita violazione di questi parametri è stata posta a fondamento delle
numerose ordinanze di rimessione65 con cui si è inteso sottoporre al vaglio di legittimità
61
In giurisprudenza si è ritenuto che superi la soglia della serietà il dovere per il danneggiato di sottoporsi ad
intervento chirurgo, tra l’altro di esito incerto, per ridurre i postumi permanenti derivati da errate prestazioni
odontoiatriche. Cfr. Cass. 5.7.2007, n. 15231. In senso analogo Cass. 10.5.2001, n. 6502.
62
G. PONZANELLI, La irrilevanza costituzionale del principio di integrale riparazione del danno, in M.
BUSSANI (a cura di), La responsabilità civile nella giurisprudenza costituzionale, ESI, 2006, p.67; ID.,
Risarcimento giusto e certo tra giudici e legislatore, in Riv. dir. civ., 2010, p.553
63
La stessa Corte costituzionale ha escluso che l’integralità della riparazione ed equivalenza al pregiudizio
cagionato al danneggiato abbia copertura costituzionale (da ultimo v. Corte Cost., ord. 28 aprile 2011, n. 157,
in Foro. it., 2011, I, c. 1969 ss.), ponendo in rilievo che in casi eccezionali il legislatore ben può ritenere equa
e conveniente fissare parametri e massimali del risarcimento del danno, sia nel campo della responsabilità
contrattuale (v., ad es., art. 1784, 1786 c.c. e 275, 412, 423 c. nav.), che in materia di responsabilità
extracontrattuale, in considerazione delle particolari condizioni dell’autore del danno. Sul punto si v. in
particolare Corte cost. 6 maggio 1985, n. 132, in Foro it., 1985, I, 1585.
64
Va al riguardo rimarcato come la Corte costituzionale abbia recentemente affermato l’illegittimità
dell’apposizione di una limitazione massima non superabile alla quantificazione del ristoro per danni alla
persona. Ci si riferisce a Corte cost. 30 marzo 2012, n. 75, in Resp. civ., 2012, 1518 ss. che ha dichiarato
l’illegittimità costituzionale dell’art. 15, comma primo, d.lgs. n. 111 del 1995 nella parte in cui ha fissato un
massimale al risarcimento per danni alla persona. Pur se con riferimento alla responsabilità da inadempimento
di contratto di viaggio vacanza “ tutto compreso” e fondata sulla ravvisata violazione dei criteri posti dalla
legge delega, tale pronuncia sembra fare applicazione del principio in questione.
65
Ci si riferisce a giudice di pace di Torino, ordinanza del 24.10.2011, in Danno e resp., 2012, 439 ss.; ID, in
Resp. civ., 2012, 70 ss.; Tribunale di Brindisi – sezione distaccata di Ostuni, ordinanza del 15/5/2012; Tribunale
di Tivoli, ordinanza del 21/3/2012; giudice di pace di Recanati, ordinanza del 24/5/2013.
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costituzionale l’art. 139 del cod. delle assicurazioni66 nella parte in cui la norma prevede un
risarcimento del danno biologico basato su rigidi parametri fissati da tabelle ministeriali; in
particolare la previsione di limiti nella riparazione del danno, collegati a livelli pecuniari
riconosciuti normativamente equi ma che, per la loro inflessibilità nell’aumento percentuale
dell’importo nella misura massima del quinto, non permettono una adeguata
personalizzazione del danno, determinerebbe un sistema caratterizzato da ingiustificata e
irragionevole prevalenza della tutela dell’attività assicurativa sul diritto inviolabile alla
salute e con essa un vulnus alla tutela del danneggiato.67
Con una pronuncia68 laconica sul piano delle argomentazioni e per certi
versi inidonea a risolvere il problema prospettato, la Corte Costituzionale ha dichiarato non
fondata la questione di legittimità sottoposta al suo vaglio, confermando la validità del
meccanismo tabellare di risarcimento del danno biologico introdotto dall’art. 139 del codice
delle assicurazioni. A parere del collegio, il profilo della lesione del diritto all’integralità del
risarcimento del danno alla persona va condotto non già assumendo quel diritto come valore
assoluto e intangibile, bensì verificando la ragionevolezza del suo bilanciamento con altri
valori in gioco, vale a dire raffrontando il diritto alla salute del danneggiato con quello della
certa e prevedibile determinazione del danno risarcibile dalle assicurazioni che, concorrendo
ex lege al Fondo di garanzia per le vittime della strada, perseguono anche fini solidaristici,
scopi di cui senz’altro va tenuto conto nella commisurazione della tutela.69
Si v. in particolare l’art. 139 del D. lgs. 209/2005 nella parte in cui prevede che l'ammontare del danno
biologico liquidato ai sensi del comma 1 può essere aumentato dal giudice in misura non superiore ad un quinto,
con equo e motivato apprezzamento delle condizioni soggettive del danneggiato.
67
Ciò in base anche all’art. 6 del Trattato sull’Unione europea (TUE), e agli artt. 2 e 6 della Convenzione per
la salvaguardia dei diritti dell’uomo e delle libertà fondamentali(CEDU), che prevedono una tutela effettiva
dei diritti fondamentali della persona e, in particolare del diritto all’integrità della persona di cui all’art. 3,
comma 1, della Carta dei diritti fondamentali dell’Unione europea, proclamata a Nizza il 7 dicembre 2000 e
all’art. 2 della CEDU.
68
Si fa riferimento a Corte Cost. 16.10.2014 n. 235. In particolare si v. il punto 10.2.1 in cui i giudice specificano
come “questa Corte (nella occasione, in particolare, della denunciata previsione di limiti alla responsabilità
del vettore aereo in tema di trasporto di persone) ha già chiarito come non si configuri ipotesi di illegittimità
costituzionale per lesione del diritto inviolabile alla integrità della persona ove la disciplina in contestazione
sia volta a comporre le esigenze del danneggiato con altro valore di rilievo costituzionale, come, in quel caso,
il valore dell’iniziativa economica privata connesso all’attività del vettore (sentenza n. 132 del 1985).
A sua volta, la Corte di cassazione, con la già ricordata sentenza n. 26972 del 2008, ha puntualizzato come il
bilanciamento tra i diritti inviolabili della persona ed il dovere di solidarietà (di cui, rispettivamente, al primo
e secondo comma dell’art. 2 Cost.) comporti che non sia risarcibile il danno per lesione di quei diritti che non
superi il «livello di tollerabilità» che «ogni persona inserita nel complesso contesto sociale […] deve accettare
in virtù del dovere di tolleranza che la convivenza impone»”.
69
Si riportano alcuni passaggi paradigmatici di Corte Cos. 235/2014 in cui i giudici ritengono che “In un
sistema, come quello vigente, di responsabilità civile per la circolazione dei veicoli obbligatoriamente
assicurata - in cui le compagnie assicuratrici, concorrendo ex lege al Fondo di garanzia per le vittime della
strada, perseguono anche fini solidaristici, e nel quale l'interesse risarcitorio particolare del danneggiato deve
comunque misurarsi con quello, generale e sociale, degli assicurati ad avere un livello accettabile e sostenibile
66
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116
I giudici inoltre affermano che la disciplina in esame, contemperando
l’interesse risarcitorio particolare del danneggiato e quello generale e sociale degli assicurati
ad avere un livello accettabile e sostenibile dei premi assicurativi, supera certamente il vaglio
di ragionevolezza che si assume violato giacché l’introdotto meccanismo di quantificazione
del danno ammette una personalizzazione dell’importo risarcitorio per mezzo della clausola
che assegna al giudice la facoltà di incrementare l’importo fino ad un quinto in
considerazione delle condizioni soggettive del danneggiato.70
La sentenza,71 che molto sinteticamente si limita ad affermare la legittimità
della norma de quo esaltando l’attitudine della stessa a contemperare esigenze contrapposte,
non è condivisibile sia sul piano dell’enucleazione degli interessi presi a riferimento che su
quello del prodotto partorito, frutto dell’errata ponderazione di uno degli interessi comparati:
quello dell’assicurazione ad avere una certa e prevedibile conoscenza della sua esposizione
risarcitoria. Infatti, se già è arduo immaginare un trait d’union che possa coniugare il
generale interesse solidaristico previsto dall’art. 2 della Carta fondamentale, espressamente
richiamato nel giudizio di bilanciamento a favore delle assicurazioni, e lo scopo di lucro che
caratterizza l’attività concretamente svolta da queste, ancor più difficile è cogliere il
collegamento prospettato dalla Corte tra il prezzo sborsato dall’assicurazione a titolo di
risarcimento e l’entità dei premi dovuta dai consociati, legame - a parete dei giudici - teso a
salvaguardare tanto il diritto alla salute del danneggiato, quanto l’interesse dei consociati a
non corrispondere cifre ingenti agli enti assicurativi.
Questo sforzo interpretativo scevro da qualsiasi appiglio normativo non
rappresenta altro che il tentativo di corroborare l’interesse economico dell’assicurazione con
parametri solidaristici e generali, gli unici in grado di giustificare una limitazione del
risarcimento del danno alla salute. L’idea, che la soddisfazione integrale del singolo debba
essere sacrificata sull’altare di una più ampia e sicura seppur non integrale tutela risarcitoria
dei consociati, sconta sul piano fattuale l’erronea valutazione del contenuto degli interessi in
gioco poiché il giudizio non va compiuto tra singolo e consociati ma tra danno alla salute e
pregiudizio economico dell’assicurazione senz’altro meritevole di tutela, ma evidentemente
dei premi assicurativi - la disciplina in esame, che si propone in contemperamento di tali contrapposti
interessi, supera certamente il vaglio di ragionevolezza.”
70
Sempre nella sentenza della Corte Costituzionale si legge che "l'introdotto meccanismo standard di
quantificazione del danno - attinente al solo specifico e limitato settore delle lesioni di lieve entità e
coerentemente riferito alle conseguente pregiudizievoli registrate dalla scienza medica in relazione ai primi
(nove) gradi della tabella - lascia, comunque, spazio al giudice per personalizzare l'importo risarcitorio,
risultante dalla applicazione delle suddette predisposte tabelle, eventualmente maggiorandolo fino ad un
quinto, in considerazione delle condizioni soggettive del danneggiato.”
71
Ci si riferisce a Corte Cos. 235/2014, cit.
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slegato da quello dei consociati a non veder aumentare il premio assicurativo.
Così i parametri da prendere a riferimento nel nuovo giudizio di
proporzione diventano: da un lato l’interesse puramente economico del professionista,
consapevole delle problematiche del settore in cui si trova ad operare e la cui volontà di
sopportare l’alea del rischio sottesa al contratto è palesata dalle ingenti somme di denaro
previste nel contratto di assicurazione a carico del creditore e dall’altro la salute del
danneggiato, le cui limitazioni superano il giudizio di ragionevolezza solo in presenza di
beni di pari rango, che nel caso di specie non sembrano manifestarsi.
In definitiva lasciare al giudice il potere di individuare il quantum da
risarcire nel caso concreto significa non solo individuare la soluzione più idonea a mediare
i vari interessi in gioco evitando inutili duplicazioni risarcitorie,72 ma anche saper cogliere
la peculiarità dei valori mediante l’ausilio dei principi della ragionevolezza e della
proporzionalità; il primo in grado di individuare un punto di equilibrio tra diversi valori
costituzionalmente rilevanti e il secondo volto a sancirne la giusta misura in sede di tutela,
specie nel campo non patrimoniale ove la quantificazione del danno è rimessa quasi sempre
ad un giudizio di tipo equitativo.73
In senso analogo non è condivisibile, perché imperniata su logiche
formalistiche poco attente agli aspetti sostanziali, quella giurisprudenza che nega il
risarcimento del danno alla vita per l’inidoneità dell’illecito a produrre conseguenze dannose
nella sfera giuridica dell’individuo che cessa di esistere.74
L’impostazione secondo cui nel nostro ordinamento andrebbero risarciti i
danni conseguenza e non anche il danno evento, giacché diversamente opinando si
assegnerebbe alla tutela civilistica una funzione sanzionatoria del tutto anomala, non può
assurgere a “gabbia interpretativa”75 in grado di determinare vuoti di tutela quando a venire
in gioco sia il bene più prezioso.
La morte produce la perdita non solo di un bene, ma di tutti i beni e di tutte
le possibilità di cui avrebbe potuto godere la vittima se non ci fosse stato l’illecito, senza
72
Già Corte Cost. 184/1986, paventando il rischio di inutili duplicazioni risarcitorie, aveva invitato a particolare
cautela nella determinazione del danno. Prudenza non da intendere come contrazione del quantum risarcibile,
ma come attenta disamina delle conseguenze dannose da riparare per assicurare idonea tutela al soggetto leso,
senza produrre indebite ingerenze nella sfera patrimoniale del danneggiante.
73
Ci si riferisce in particolare agli artt. 1226 c.c. e 2056 c.c.
74
Cfr. ex plurimis Cass. 25.2.1997, n. 1704, in Resp. civ. prev., 1997, 446; Cass. 30.6.1998, n. 6404, in Danno
e resp, 1999 p. 323 con nota di C, MARTORANA, Sei ore di agonia non sono sufficienti a far nascere il diritto
al risarcimento del danno biologico iure hereditario; Cass. 2.4.2001, n. 4783, in Danno e resp. 2001, p. 820.;
Cass. 23 febbraio 2005, n. 3766, in Rep Foro it., 2005, voce Danni civile, n. 23; Cass. 24.3.2011 n. 6754, in
Giur.it., 2012, 3, 551.
75
Cfr. Cass. 23.1.2014, n. 1361 in Danno e resp., 2014, 2, 363.
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contare che la vita ha valenza primaria non solo in ambito penalistico ma nell’intero
ordinamento e che l’esigenza della sua tutela piena e incondizionata è il frutto del comune
sentire sociale in un certo momento storico, ragion per cui la protezione di questo bene va
assicurata mettendo in discussione gli schemi tradizionali, forgiandone anche dei nuovi che
siano in grado di salvaguardarli.
Negare alla vittima il ristoro del bene più importante equivale inoltre a
produrre una grave disparità di trattamento tra la difesa della salute e la tutela della vita,
sproporzione che si traduce in una soddisfacente protezione della prima e in una carenza di
tutela per la seconda che, al contrario, nella scala dei valori costituzionali, rappresenta bene
inestimabile. L’incongruenza non è superabile neanche per mezzo di quegli escamotages
interpretativi tesi ad ampliare l’area del danno risarcibile quando vi sia un lasso di tempo
apprezzabile tra l’illecito e il decesso del vittima. Si fa riferimento in particolare alle
fattispecie del danno biologico premortale, quando il soggetto sopravviva abbastanza a lungo
da ammalarsi, e al risarcimento del danno morale allorché il pregiudizio non si traduca in
una patologia ma sia ad ogni modo causa di una sofferenza intensissima per la vittima negli
istanti che precedono l’evento catastrofico.
Questi sforzi ermeneutici tesi a superare l’inconcepibile affermazione
secondo cui è meglio uccidere che ferire e se si uccide è bene farlo in modo netto ed
immediato,76 si palesano tuttavia incapaci a superare l’iniquità di un sistema imperniato sulla
risarcibilità del danno conseguenza che assegna alla sussistenza della capacità giuridica del
soggetto la qualifica di elemento dirimente circa la riparabilità o meno del bene in questione;
va perciò promossa l’idea secondo cui la vittima acquisisce il diritto al ristoro del danno da
perdita della vita in coincidenza della lesione mortale, e quindi anteriormente all’exitus,
assurgendo la tutela di questo bene a indispensabile eccezione al principio dell’irrisarcibilità
del danno-evento.77
76
Il riferimento è a R. CASO, Uccidere è più conveniente che ferire: la distruzione della vita tra paradossi,
irrazionalità e costi del sistema risarcitorio del danno non patrimoniale, in Dialoghi sul danno alla persona,
Trento, 2006, p. 211.
77
Già in passato si riteneva che qualsiasi lesione dei diritti della persona in quanto “collocati al vertice dei
valori costituzionalmente garantiti, vada incontro alla sanzione risarcitoria per il fatto in sé della lesione
(danno evento) indipendentemente dalle eventuali ricadute patrimoniali che la stessa possa comportare” in
termini di danno conseguenza. Ex plurimis si v. Cass., 7 giugno 2000, n. 7713, in Danno e resp. 2000, 836. Di
recente la Suprema Corte, con ordinanza n. 5056/2014 , preso atto del contrasto di giurisprudenza generatosi
sul punto della risarcibilità iure hereditario del danno non patrimoniale da morte immediata, reso ancora più
evidente a seguito della citata pronuncia n. 1361/2014 e tenuto conto della particolare importanza della
questione, ha deciso di rimettere gli atti del procedimento al Primo Presidente per valutare l'esigenza di
investire sull'argomento le Sezioni Unite della Corte di legittimità.
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La difesa di questo valore, che prescinde dalla consapevolezza che la
vittima abbia della sua fine, assurge a interesse meritevole di tutela anche nel caso in cui il
decesso coincida con l’illecito, senza che assumano rilievo né il presupposto della
persistenza in vita per un apprezzabile lasso di tempo né il criterio dell’intensità della
sofferenza subita dalla vittima per la cosciente e lucida attesa dell’inesorabile spegnersi della
propria esistenza.
L’illecito seppur non produttivo di conseguenze inter vivos, per
l’inadeguatezza dell’individuo che cessa di esistere ad essere titolare di diritti, è tuttavia
foriero di conseguenze dannose per la vittima che, pur non potendo essere compensata
stricto sensu nella sua sfera giuridica, è portatore di un interesse a che tale bene venga
salvaguardato anche quando a godere dei benefici risarcitori siano soggetti diversi ma
ricollegabili alla sua sfera giuridica soggettiva, giacché la vita rappresenta valore di rilevanza
primaria e la sua salvaguardia una pretesa irrinunciabile per tutti i consociati.
In questo senso appare improprio anche il tentativo di supplire alla
mancanza del ristoro della perdita del bene in questione mediante l’attribuzione ai familiari
iure proprio del diritto del risarcimento di tutti i danni non patrimoniali comprensivi non
delle sole conseguenze fisiche o psichiche, ma anche dei c.d. danni esistenziali concretantesi
nell’alterazione peggiorativa ed oggettiva degli assetti affettivi e relazionali all’interno della
famiglia, soluzione che pone il rischio di confusioni concettuali in grado di determinare l’uso
strumentale di alcuni istituti al fine di sopperire al mancato riconoscimento di altri.
In definitiva va ripudiato ogni tentativo di piegare la tutela della vita alle
categorie formali del diritto auspicando viceversa che siano queste a modificarsi, evolversi
e adattarsi alle esigenze avvertite come rilevanti dalla coscienza sociale in un certo momento
storico; opinando diversamente infatti, si finirebbe per compromettere la tutela non di un
bene qualsiasi, ma di quello più importante producendo una forte discrasia tra i principi
costituzionali e comunitari - che impongono una piena tutela della vita - e i mezzi apprestati
dall’ordinamento per la sua salvaguardia degli stessi.
In senso conforme sembra muoversi anche il legislatore78 che, consapevole
dell’incertezza maturata sul tema in questione, ha valutato l’opportunità di rimeditare la
materia del danno non patrimoniale promuovendo, anche in seno alla relazione di
78
Ci si riferisce alla proposta di legge n. 1063, del 28.5.2014, nota col nome del suo primo estensore On.
Bonafede.
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accompagnamento ad una recente proposta di legge, la risarcibilità del danno tanatologico79,
da quantificare mediante l’utilizzo delle tabelle milanesi già impiegate per la determinazione
del danno non patrimoniale da lesione della salute, sancendo tuttavia nella riparazione di tale
pregiudizio un’incomprensibile riduzione dei valori tabellari80 e la possibilità per il giudice
di incrementare tale risarcimento fino al 50 % laddove la menomazione accertata abbia
inciso, nel periodo intercorso tra la lesione e la morte, in maniera rilevante su specifici aspetti
dinamico-relazionali personali.
Seppure a tali previsioni va riconosciuto il pregio di aver positivizzato la
categoria del danno da perdita della vita, esse si espongono ad almeno a due profili di criticità
difficilmente superabili. In primo luogo appare illogica la scelta del legislatore di utilizzare
le tabelle milanesi per la determinazione del danno tanatologico: salute e vita sono beni
ontologicamente distinti e separati tra loro, motivo per cui essi non possono essere liquidati
mediante l’utilizzo di medesimi parametri specie quando i criteri di riferimento,
incentrandosi sull’integrità psico-fisica del danneggiato, si disinteressano completamente
del bene leso. Più ragionevole sarebbe assegnare, in attesa di idonei parametri tabellari per
la qualificazione del vulnus inferto, al prudente apprezzamento del giudice la determinazione
del danno in questione mediante un giudizio improntato ad equità che tenga conto di tutte le
circostanze del caso concreto come l’età della vittima, le sue condizioni di salute, le speranze
di vita futura, l’attività da lui svolta e le condizioni personali e familiari.
In secondo luogo non è condivisibile la rigida previsione che prevede una
maggiorazione del danno nella misura predeterminata del 50% rispetto alle somme previste
dalle tabelle sia per la palesata inadeguatezza delle stesse a valutare il danno in questione,
sia per l’incomprensibile scelta del legislatore di fissare come limite massimo, nella
commisurazione del danno da perdita della vita, l’80% del valore tabellare inerente
all’invalidità permanente. Previsioni, queste, che si pongono in distonia con il principio di
Ci si riferisce all’art. 84 bis della proposta di legge, rubricato determinazione del danno non patrimoniale e a
tenore del quale “la determinazione del danno non patrimoniale di cui all’articolo 2059-bis del codice è
effettuata in base alle tabelle di cui all’allegato A alle presenti disposizioni per l’attuazione del codice. In caso
di morte del soggetto danneggiato, il risarcimento del danno non patrimoniale da quest’ultimo subìto è
stabilito nella misura dell’80 per cento del danno non patrimoniale indicato nelle tabelle di cui al primo
comma. Con equo e motivato apprezzamento delle condizioni soggettive del danneggiato, qualora la
menomazione accertata abbia inciso, nel periodo intercorso tra la lesione e la morte, in maniera rilevante su
specifici aspetti dinamico-relazionali personali, l’ammontare del danno determinato ai sensi del primo comma
può essere aumentato dal giudice fino al 50 per cento. Al fine di favorire l’uniformità nella valutazione dei
danni non patrimoniali di cui agli articoli 2059-bis e 2059-ter del codice, il Ministero della giustizia provvede,
nel mese di gennaio di ogni anno alla pubblicazione di una raccolta di sentenze emesse nell’anno precedente
concernenti la determinazione dei danni non patrimoniali”.
80
Secondo la proposta di legge, il danno sarebbe risarcibile utilizzando, ai fini della determinazione degli
importi le tabelle milanesi con una decurtazione degli importi all'80%.
79
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integrale riparazione del danno che impone al contrario una piena e soddisfacente tutela per
la vittima quando, all’esito del giudizio di bilanciamento tra interessi contrapposti, non vi
siano idonee giustificazioni per condizionare in peius la tutela del danneggiato con
conseguente contrazione della sua salvaguardia in favore di altro e fondamentale diritto
soggettivo.
Nel caso di specie, come nell’ipotesi dell’art. 139 del codice delle
assicurazioni, non si ravvisano interessi in grado di giustificare l’amputazione dell’integrale
tutela risarcitoria del danno tanatologico, specie se si considera che il termine di riferimento
nel giudizio di comparazione con la vita del soggetto leso non è la sfera giuridica del
danneggiante, ma il patrimonio dell’ente assicurativo senz’altro meritevole di tutela ma
inidoneo a limitare la pretesa risarcitoria della vittima.
Di fatto, la somma erogata a compensazione della perdita del bene più
prezioso non può ridursi alla stregua di un mero e simbolico indennizzo, ma deve essere
adeguata sul piano quanti-qualitativo a ristorare il pregiudizio subito con l’unica esigenza di
evitare pericolose duplicazioni risarcitorie che possano comportare un sacrificio, solo in
questo caso, inesigibile per le assicurazioni.
Spetta ancora una volta al giudice individuare la soluzione che sia la più
idonea al caso concreto mediante un giudizio di equità che abbia come paradigmi normativi
di riferimento la ragionevolezza e la proporzionalità.
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PARECER
POSSIBILIDADE DE EXCLUSÃO DE SÓCIO MINORITÁRIO PELO FIM DA
AFFECTIO SOCIETAIS DIANTE DE PREVISÃO EXPRESSA NO CONTRATO
SOCIAL
Paula A. Forgioni
Professora Titular da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. Advogada.
Sumário: I. Dos fatos; II. Do direito; II.1. Evolução brasileira sobre a exclusão de sócio em
sociedades limitadas e o atual debate em torno do art. 1.085 do Código Civil; II.2. A
particularidade do caso em tela: o contrato social prevê a grave discórdia como motivo
necessário e suficiente para exclusão do minoritário; II.3. A incidência do parágrafo único
do art. 10 do Contrato Social. A grave discórdia existente entre os sócios; III. Conclusão.
L.C.H.B. e V.M.B., por sua nobre advogada, Dra. Adriana Valéria
Pugliesi, indagam-me sobre a conformidade, com o direito societário brasileiro, da decisão
proferida nos autos da Ação Anulatória de reunião de sócios de n. xxxx, proposta por F.C.H.,
em que se afirma a inexistência de razões suficientes para a exclusão deste sócio minoritário.
A essa questão, respondo com o seguinte:
PARECER
I. Dos fatos
1. O problema a ser enfrentado gravita em torno das disputas entre os atuais
sócios da C.V. Ltda., fundada na década de 60 e controlada por H.W.B.H.
Em 2.005, H.W.B.H. doou 2.500 quotas para V.M.B., admitindo-o na
sociedade. À época, o capital social dividiu-se na proporção de 99% para H.W.B.H. e 1%
para V.M.B.
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Os administradores da sociedade eram os próprios sócios, H.W.B.H. e
V.M.B. [cláusula 5a],1 ambos com iguais poderes de gerência; nos termos do parágrafo 1º da
cláusula 5a do contrato social, competia “aos administradores, em conjunto ou isoladamente,
a representação da sociedade, passiva ou ativa, em juízo ou fora dele, assim como a gestão
ordinária dos negócios sociais em geral e a prática de todos os atos necessários ou
convenientes ao desempenho do objeto social”.
H.W.B.H. faleceu em 2.010 e os filhos, L.C.H.B. e F.C.H., herdaram as
quotas em igual proporção. Compôs-se, então, o seguinte quadro social:
Sócio
Quotas
Percentual do
capital social
L.C.H.B.
123.750
49,5%
F.C.H.
123.750
49,5%
V.M.B.
2.500
1%
O sócio V.M.B. é casado com L.C.H.B. e, portanto, cunhado de F.C.H.
Não há qualquer dúvida tratar-se de sociedade familiar, com o casal detendo a maioria do
capital social.
2. F.C.H. procurou destituir seu cunhado da administração social assim
que assumiu a inventariança dos bens de seu pai. Antes mesmo da homologação da partilha,2
na condição de inventariante e almejando exercer o direito de voto da totalidade das quotas
arroladas [isto é, de 99% do capital], F.C.H. convocou reunião de sócios para destituir
V.M.B. de seu cargo de administrador da sociedade3, nomeado no contrato social. L.C.H.B.
e V.M.B. opuseram-se, ajuizando ação cautelar inominada com a concessão de medida
liminar para suspender ou cancelar o conclave.4
A decisão do MM. Juiz da 39a Vara Cível do Foro da Capital, proferida
em 25 de novembro de 2.011, determinou que o inventariante F.C.H. não poderia convocar
“Cláusula 5ª – A administração da sociedade será exercida por ambos os sócios […]”.
A partilha somente foi homologada em 17 de maio de 2.012.
3
Conforme o edital de convocação para a reunião do dia 8 de dezembro de 2.011, a Ordem do Dia seria:
“deliberação sobre a destituição do administrador V.M.B. e tomada de contas de sua administração”.
4
Processo n. X, 39a Vara Cível da Comarca de São Paulo, em que figuraram como autores L.C.H.B., V.M.B.
e C.V. Ltda. e, como réus, o espólio de H.W.B.H. e F.C.H.
1
2
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124
a reunião de sócios e nem votar com as quotas que pertenceriam à sua irmã L.C.H.B.5 Assim,
frustrou-se a estratégia de F.C.H. e V.M.B. seguiu como administrador.
Em consonância com prática espraiada quando há litígio instalado entre
sócios, L.C.H.B. e V.M.B. solicitaram que um oficial de registros públicos estivesse presente
à reunião de sócios de 8 de dezembro de 2.011 para, posteriormente, atestar os eventos
ocorridos. O registro em Ata Notarial informa que “em decorrência de solicitação” de
V.M.B., compareceu à sede social para “constatar reunião de sócios”. F.C.H. “manifestouse exaltado, dirigindo a seus advogados alegando ‘sou inventariante, por que não posso
exercer tal autoridade, quero que derrube esta liminar e retire o V.M.B. da administração da
empresa e coloque a PRISCILA, por mim o inventário pode durar 10 (dez) ou 15 (anos) que
não tem problema”. Ainda segundo o registro da ata, L.C.H.B. “propôs um acordo que
poderia ser a venda da empresa a terceiros, e mais uma vez o Sr. F.C.H. se pronunciou
dizendo ‘não aceito, pois não confio no Sr. V.M.B., e não preciso da empresa para nada,
espero o tempo que for preciso e vou até o fim’ ”.
3. Entre os documentos levados ao conhecimento do Poder Judiciário,
chama a atenção a declaração, firmada em 17 de fevereiro de 2.012, pela profissional
indicada por F.C.H. para revisar as contas da administração:
Declaro para os devidos fins que, na qualidade de representante do Sr.
F.C.H., fui, a partir do dia 14/02/2012, recebida na empresa C.V. Ltda.,
pelo seu sócio administrador que me franqueou:
- Acesso as suas instalações, providenciando inclusive sala e equipamentos
necessários para minhas atividades.
“[...] consoante disposto na Cláusula 6a, Parágrafo 1o. do Contrato Social compete, ordinariamente, ao
administrador a convocação da reunião de sócios, podendo esta ser convocada por qualquer dos sócios, apenas
em caso de comprovada mora deste. Saliente-se, por oportuno, que embora se esteja admitindo a condição de
sócios pelos herdeiros, tal condição, por si só, não se converte, ipso facto, na condição de administrador.
Portanto, entendo que a convocação da assembleia levada a efeito pelo herdeiro-sócio F.C.H. não pode ser
considerada legal, devendo ser obstados todos os seus efeitos, por vício de natureza formal. Ressalte-se, por
fim, que, em sendo convocada regularmente assembleia por administrador ou pelos sócios, haver-se-á de se
respeitar, nas decisões tomadas, o voto de todos os sócios (inclusive herdeiros), na proporção de suas quotas.
Assim, o sócio e administrador V.M.B. terá direito, na sociedade C.V. LTDA. a votos equivalentes a um por
cento, enquanto os sócios-herdeiros L.C.H.B. e F.C.H. terão votos equivalentes a quarenta e nove e meio por
cento, cada um. Por fim, é de se destacar que, não possuindo o espólio personalidade jurídica, mas meramente
judiciária [...], não pode o mesmo agir, por meio de seu inventariante, para a tomada de qualquer deliberação
social”. A decisão foi confirmada em Acórdão proferido pela 2ª Câmara de Direito Empresarial, que negou
provimento ao recurso interposto por F.C.H., julgado em 24 de abril de 2.012.
5
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- Identidade e senha para uso dos Sistemas Informatizados da empresa com
acesso a todos os módulos e funções.
- Identidade e senha para uso do site da empresa Sevilha Contabilidade,
podendo acessar toda a documentação contábil da empresa.
- Instruções para que funcionários me atendessem em minhas dúvidas e
necessidades.
4. As contas do exercício de 2.011 não foram aprovadas pelo sócio F.C.H..
Assim, porque [i] o sócio V.M.B. não poderia proferir voto corroborando suas próprias
contas e [ii] L.C.H.B. manifestou-se pela aprovação, deu-se o empate6 e os dividendos
apurados não puderam ser distribuídos. A razão alegada por F.C.H. para a desaprovação
integral das demonstrações financeiras centrou-se em contestação referente à remuneração
do administrador V.M.B.7
5. No ano seguinte, quando da adoção dos procedimentos previstos em lei
para a aprovação das contas do exercício de 2.012, o acesso do representante de F.C.H. aos
documentos da sociedade foi ampla e novamente franqueado.8
Devidamente convocada, a reunião de sócios ocorreu em 30 de abril de
2.013, com a presença dos três sócios. Também em 2.013, F.C.H. posicionou-se pela
desaprovação das contas do exercício anterior. Não alegou a existência de fraude, desvios
ou passivos ocultos; apenas [i] reiterou a contestação à remuneração do administrador, no
valor bruto médio mensal de R$ e [ii] protestou pela distribuição de toda a reserva de lucros
da sociedade, a exceção do mínimo legal.9
Desta vez, mesmo com o voto contrário de F.C.H., as contas foram
aprovadas por L.C.H.B. e V.M.B. com fundamento em acórdãos do Tribunal de Justiça de
São Paulo que, inaugurando nova linha jurisprudencial, autorizam o voto dos
Cf. Ata de Reunião de Quotistas de 30 de abril de 2.012: “Impedido de votar o administrador V.M.B., abstevese. L.C.H.B. votou pela aprovação. F.C.H. apresentou voto em separado, por escrito. Ante a impossibilidade
de atingir quorum de maioria para aprovação das contas, e ante o empate na deliberação, a matéria será
submetida à apreciação judicial, na forma do § 2º do art. 1010 do Código Civil”.
7
Cf. voto dissidente apresentado por F.C.H. à mesa diretora dos trabalhos da reunião de sócios.
8
O Sr. Luiz, “na qualidade de representante do Sr. F.C.H.”, firmou declaração praticamente idêntica àquela do
ano anterior, da Sra. Priscila.
9
Ata registrada na Junta Comercial do Estado de São Paulo - Jucesp sob nº, da qual consta como anexo a
declaração do representante de F.C.H., acima referida.
6
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administradores sobre as próprias contas, quando há oposição do minoritário e risco da
criação de entraves ao normal desenvolvimento das atividades sociais.10
6. Diante de todos esses eventos, L.C.H.B. e V.M.B. pretendem excluir
F.C.H. da sociedade e, em 20 de junho de 2.012, convocaram reunião com tal escopo,
realizada em 31 de julho. Naquela oportunidade, a maioria dos sócios e do capital social
[L.C.H.B. e V.M.B.], deliberou:
a aprovação da exclusão do sócio F.C.H., em consequência dos atos de
inegável gravidade [...], que resultaram em grave ruptura da
‘affectiosocietatis’ capaz de comprometer a regular continuidade das
atividades sociais.
7. Por óbvio, F.C.H. discordou de sua exclusão e propôs a já referida ação
cautelar para anular a deliberação. A decisão proferida pela MM. Juíza da 6a Vara Cível do
Foro Regional de Santana foi assim lançada:
Trata-se de Cautelar Inominada em que se busca a suspensão liminar dos
efeitos da deliberação social tomada em 31/07/2012, xerocopiada a fls.
52/55, com fundamento no art. 1085 do Código Civil. Os requisitos legais
para a concessão da liminar estão presentes. A ‘fumaça de bom direito’
está evidenciada, na medida em que, em análise superficial, não se
vislumbra a gravidade pretendida nos atos relacionados como sendo
aqueles que teriam originado a exclusão, de moldes a estar amparada pelo
disposto no art. 1085 do Código Civil. Com relação a este aspecto, cumpre
transcrever a doutrina a seguir, que se subsume à situação, reitera-se, de
forma provisória: ‘O afastamento do sócio meramente inoportuno é
vedado, não bastando, para efetivar a exclusão, uma simples discordância
genérica ou o surgimento de desavenças individuais.’ (Marcelo Fortes
Barbosa Filho, Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência –
Coordenador Ministro Cezar Peluso, 2a. Edição, página 1004). O ‘perigo
da demora’ decorre do fato em si, da ausência na sociedade que pode
conduzir a administração indesejada. Defiro, portanto, a liminar pleiteada,
para o fim de determinar a suspensão dos efeitos da deliberação social
tomada no dia 31.07.2012. Considera-se a medida efetivada nesta data.
A resposta à consulta formulada exige que nos debrucemos sobre essa
decisão judicial que, a partir do art. 1.085 do Código Civil, concluiu inexistirem razões para
exclusão de F.C.H.
10
V. a título exemplificativo, sempre do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação n. 000765410.2010.8.26.0286 expressamente referida na ata da reunião de sócios da Controle Visuais Ltda. de 30 de abril
de 2.013, bem como a Apelação n. 0159918-51.2011.8.26.0100, julgada em 4 de dezembro de 2.012, Apelação
n. 0007654-10.2010.8.26.0286, julgada em 7 de fevereiro de 2.012, e Agravo de Instrumento n. 027033461.2012.8.26.0000, julgado em 22 de janeiro de 2.013.
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II. Do direito
II.1. Evolução brasileira sobre a exclusão de sócio em sociedades limitadas e o
atual debate em torno do art. 1.085 do Código Civil
8. Discussões sobre a possibilidade de exclusão do sócio minoritário pela
maioria do capital social não são recentes entre nós. A obra pioneira, inexplicavelmente
pouco referida, é a tese com a qual Rubens Requião conquistou a Cátedra de Direito
Comercial na Universidade do Paraná, em 1.959. Em sua monografia A preservação da
sociedade comercial pela exclusão do sócio, Requião apontou pioneiramente que “a
divergência entre os sócios pode levar, segundo o sistema vigente, a sociedade à dissolução,
desde que impeça a sociedade de atingir o seu fim”.
Nessa matéria, a jurisprudência caminhou sempre adiante da doutrina.11
Disseminada a criação pretoriana da dissolução parcial, o instituto ganhou progressivo
prestígio entre os magistrados, que alargam suas fronteiras. Consagrou-se a possibilidade de
expulsão de sócios do quadro societário, cuja motivação, em última instância, repousa sobre
a preservação da empresa.12
Em 1960, o Supremo Tribunal Federal – que havia admitido a exclusão de
sócio existindo disposição contratual autorizadora – não conheceu do Recurso
Extraordinário interposto contra acórdão assim ementado:
Compete à sociedade o pedido de exclusão de sócio cumprindo, aliás,
deliberação da maioria, e não dos sócios individualmente.13
“Causa impressão [...] a circunstância de ter a jurisprudência de nossos tribunais avançado largos passos à
frente da doutrina, no que se refere à exclusão do sócio, no sentido preservativo da sociedade. Nossos
doutrinadores se mantiveram estacionários, enquanto os tribunais, em longas passadas, tanto quanto pode a
cautela que os caracteriza, vêm delineando os modernos contornos do instituto, quebrando certos preconceitos
e conquistando horizontes na elaboração de novas soluções” (A preservação da sociedade comercial pela
exclusão do sócio. Tese apresentada para o concurso à Cátedra de Direito Comercial da Faculdade de Direito
da Universidade do Paraná, Curitiba, 1.959, 16).
12
Ressalta Avelãs Nunes: “Como consequência da evolução histórica da necessidade de conservação das
empresas sociais, surgiu [...] um instituto [...] que depois passou para quase todas as legislações modernas: o
direito de a sociedade excluir do seu seio o sócio que põe em perigo o normal desenvolvimento da sua empresa.
A possibilidade de exclusão de sócios representa, na história das sociedades comerciais, um progresso jurídico
traduzido na superação da linha tradicional de valoração individualista do interesse dos sócios e na afirmação
do valor da empresa em si, com a necessidade consequente de defender sua continuidade” (NUNES, Antônio
José de Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. Reimpressão da 1ª edição de 1968,
Coimbra: Almedina, 2002, p.17).
13
STF, Recurso Extraordinário 43.861-GB, j. 08.07.1.960, Rel. Min. Lafayette de Andrada.
11
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Posteriormente, em demonstração da influência obtida pelo princípio da
preservação da empresa nos tribunais, rompeu-se o dogma da pluralidade de sócios,
permitindo que, mesmo em sociedades compostas por apenas duas pessoas, opere-se a
exclusão daquele que perturba o bom andamento dos negócios sociais.14-15
Mais uma vez, na súmula de Requião: “A preservação da empresa, em face
das disputas entre sócios, é a preocupação constante dos tribunais”.16
9. A partir de então, foi-se fincando o entendimento de que a maioria do
capital poderia excluir a minoria que comprometesse o andamento dos negócios sociais. Ao
longo das décadas de 80 e 90, molda-se a corrente majoritária no Tribunal de Justiça de São
Paulo – e também no STJ – tendendo a considerar o mero fim da affectiosocietatis motivo
suficiente para exclusão da minoria pela maioria e a possibilidade de exclusão, mesmo na
ausência de cláusula autorizativa e de decisão judicial.17
“Traço mais expressivo da evolução jurisprudencial deu-se nos casos em que a sociedade continha apenas
dois sócios, pedindo um deles sua dissolução. Considerando o pressuposto clássico do contrato de sociedade,
consistente na existência de pelo menos dois sócios, parece um contrassenso cogitar da hipótese [...]. Não
obstante a lógica linear, consolidou-se a jurisprudência no sentido da possibilidade de subsistir a sociedade
com apenas um sócio” (FRONTINI, Paulo Salvador. Sociedade por quotas – Morte de um dos sócios –
Herdeiros pretendendo a dissolução parcial – Dissolução total requerida pela maioria social; continuidade da
empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, v. 39, nº. 146, abr./jun. 2000, p.
171).
15
Confirmando o prestígio da salvaguarda do ente produtivo, no passado, alguns chegam a defender que seria
possível a exclusão do sócio majoritário. Segundo Fábio Konder Comparato, a polêmica tese que “pode
parecer, de fato, absurda”, encontraria suporte “no momento em que o fundamento para a exclusão do sócio
[...] é encontrado por último, em última análise, na preservação da empresa que está sendo afetada pela conduta
irresponsável de um sócio”, não sendo lícito “manter ainda a maioria como árbitro da situação”
(COMPARATO, Fábio Konder. Exclusão de sócio nas sociedades por cotas de responsabilidade limitada.
Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, São Paulo, v. 25, p. 47-48). Em outra sede,
ensina: “Na hipótese de expulsão do sócio por sentença, o fundamento da decisão não é a deliberação da
maioria e sim o poder resolutório conferido aos prejudicados, pelo inadimplemento do dever de colaboração
social, sejam eles, ou não, majoritários. A maioria não se confunde nunca com a sociedade, e o seu interesse
próprio pode contrastar com o da empresa, por ela explorada. São essas algumas verdades elementares, que o
Direito moderno vem iluminando sempre mais intensamente. A observação do direito comparado demonstra
que o raciocínio que se acaba de expor nada tem de aberrante ou heterodoxo” (COMPARATO, Fábio Konder.
Exclusão de sócio, independentemente de específica previsão legal ou contratual. Ensaios e pareceres de
direito empresarial, Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 141). Não se vislumbra, em absoluto, a existência de
tendência jurisprudencial a acolher essa hipótese de expulsão; julgados nesse sentido são raros. Tem-se notícia
dos seguintes acórdãos: Tribunal de Justiça do Paraná, Apelação Cível 154.990-2, j. 19.06.2.000, Rel.
Manassés de Albuquerque; Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível 592076970, j.
14.09.1.993, Rel. Sérgio Gischkow; e Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 88.171-2, j.
17.04.1.985, Rel. Bueno Magano.
16
REQUIÃO, Rubens. A preservação da sociedade comercial pela exclusão do sócio. Curitiba, 1959. Tese
apresentada para o concurso à cátedra de Direito Comercial – Universidade do Paraná, 1959, p. 174.
17
Para não correr o risco de ser equivocadamente interpretada, vale esclarecer que uma tendência
jurisprudencial não representa, necessariamente, unanimidade do sentido de todos os acórdãos havendo, aqui
e acolá, decisões um tanto divergentes, que se formam a partir dos casos concretos.
14
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129
O raciocínio desdobra-se a partir da afirmação de que, em sociedade de
pessoas, não se há de obrigar os sócios a permanecerem associados, sob pena de perpetuar
situação de instabilidade e animosidade. Coloca-se o interesse da continuação da empresa
sobre aqueles egoístas dos sócios e os casos de discórdia devem levar à exclusão do
minoritário.
10. O debate reacendeu-se com a entrada em vigor do art. 1.085 do Código
Civil. In verbis:
“Art. 1.085. Ressalvado o disposto no art. 1.030, quando a maioria dos
sócios, representativa de mais da metade do capital social, entender que
um ou mais sócios estão pondo em risco a continuidade da empresa, em
virtude de atos de inegável gravidade, poderá excluí-los da sociedade,
mediante alteração do contrato social, desde que prevista neste a exclusão
por justa causa”.
Diante do novo texto, a pergunta que emerge é uníssona: qual o grau de
gravidade dos atos do minoritário necessário para justificar sua exclusão?
A doutrina especializada tem explorado o tema. Há autores, como Modesto
Carvalhosa, para quem o fim da affectiosocietatisjá seria motivo suficiente para a exclusão18.
Para outros, o Código Civil inovou marcadamente nosso ordenamento
nesse aspecto, exigindo que o sócio a ser excluído esteja “pondo em risco a continuidade da
empresa, em virtude de atos de inegável gravidade”, de forma que somente poderia ser
retirado o minoritário que praticasse atos realmente capazes de comprometer o futuro do
empreendimento. O término do ânimo de se associar e permanecer associado não seria
suficiente para a extinção do vínculo societário. Essa a veemente posição, por exemplo, de
Erasmo Valladão Novaes e França e de Marcelo von Adamek.19
A jurisprudência do TJSP ondeia a respeito do argumento.
11. Contudo, por mais incrível que possa parecer, essa discussão [ainda
que importante para a compreensão dos argumentos lançados pelas partes ao longo do
processo] não é relevante para o problema posto na Consulta.
No original: “É também justa causa para exclusão a conduta do sócio que, mesmo sem caracterizar-se como
violação da lei ou do contrato social, cria grave divergência entre eles, implicando a quebra da
affectiosocietatis” (AZEVEDO, Antonio Junqueira de. (Org.) Comentários ao código civil, v. 13, São Paulo:
Saraiva, 2003, p. 311).
19
FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes; ADAMEK, Marcelo Vieira von. Affectiosocietatis: um
conceito jurídico superado no moderno direito societário pelo conceito de fim social. Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, 2008, p. 108
18
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130
É do que passo a tratar.
II.2. A particularidade do caso em tela: o contrato social prevê a grave discórdia como
motivo necessário e suficiente para exclusão do minoritário
12. A solução do litígio entre os sócios da C.V. Ltda. não pode derivar da
consideração isolada do art. 1.085, pois o contrato social contém regra expressa no
sentido de que a grave discórdia é, sim, causa de exclusão da minoria pela maioria na
sociedade. O próprio pacto, em sua cláusula 10a, parágrafo único, estabelece quais os atos
que hão ser considerados ensejadores da exclusão do minoritário:
“Para o efeito do disposto nesta Cláusula, entende-se,
exemplificativamente, como justa causa para exclusão de sócio, além de
outras hipóteses previstas em lei [...] (viii) ocasionar grave
desinteligência entre os sócios”20.
13. Note-se que, por força de cláusula do contrato social, não é preciso que
a cizânia interna seja de tal ordem a ponto de comprometer o bom andamento da empresa,
tampouco a comprovação da prática de “atos de inegável gravidade”. Basta a séria
discórdia,a desinteligência causada pelo minoritário.
14. Ao pôr em relevância a necessidade da manutenção do espírito de
harmonia entre os sócios, o contrato social mantém vigente a posição consolidada antes do
advento do novo Código, dirigindo a análise da possibilidade de exclusão para o
desaparecimento da affectiosocietis, isto é, para o término do
elemento psicológico considerado decisivo para a caracterização do
contrato, elemento que possibilita distingui-lo de figuras afins [...]. Não é
fácil fixar em fórmula precisa e clara o elemento subjetivo do contrato de
sociedade. Não basta defini-lo com o propósito de cooperar. É mais alguma
coisa, ‘o sentimento de que o trabalho de um, dentro da sociedade,
reverterá em proveito de todos’ ” [Orlando Gomes].21
No mesmo sentido é a clássica lição de THALLER, para quem a sociedade
caracteriza-se por:
20
Os destaques não são do original.
GOMES, Orlando. Contratos. 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 443 e ss., e LOPES, Miguel Maria
de Serpa. Curso de direito civil, v. 4, 5ª. ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 551 e ss.
21
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a] La constitutiond’un capital, aumoyend’apportsrespectivementfaits par
chaque asocié; – b] Une vocationsimultanée de tous les
membresauxbénéfices et auxpertes; – c] Un lien de collaboration active
entre les associés.22
Ou seja, a exclusão está autorizada porque se romperam
aqueles pressupostos de circunstâncias indicativas da intenção de dois ou
mais indivíduos em se ligarem entre si com o propósito de realização de
fins inerentes a uma coletividade societária.23
É a proteção dessa affectio, desse “lien de collaborationactive entre
lesassociés”24 que vem preservada no parágrafo único do art. 10 do contrato social de
C.V. Ltda., na medida em que o pacto autoriza a exclusão daquele que aviltar esse
aninus.
15. Independentemente da origem de suas quotas, os sócios estão adstritos
aos termos do contrato social. Afinal, as sociedades limitadas são contratuais e as linhas do
pacto que une os sócios formatam seus direitos e obrigações, estabelecendo limites e
impondo regras para exercício de poderes.
Se a lei estipula condições mais rígidas para a exclusão, e o contrato social
complementa-as, colocando-se a par do texto normativo, deve-se também respeitar a letra e
o espírito do trato privado. Como visto acima, os sócios [H.W.B.H. e V.M.B.] entenderam
por bem estipular gabarito que expusesse ainda menos a estabilidade empresarial, no sentido
de que a grave animosidade entre os sócios bastaria para justificar a exclusão da minoria
pela maioria. Em outras palavras, o contrato social é mais rígido ao estabelecer quais atitudes
dos sócios seriam ou não admitidas na sociedade.
Ademais, na estrutura arquitetada no contrato social, em caso de desavença
entre os filhos [L.C.H.B. e F.C.H.] o fiel da balança, capaz de formar a maioria, seria seu
genro V.M.B., que administrava a sociedade com o patriarca. Nisso, não há surpresa alguma.
II.3. A incidência do parágrafo único do art. 10 do Contrato Social. A grave discórdia
existente entre os sócios
22
THALLER, Edmond-Eugène. Traité élémentaire de droit comercial. Paris: Arthur Rousseau, 1910, p. 188.
Destaquei.
23
Obra citada, 554.
24
THALLER, Edmond-Eugène. op. cit. p. 188. Destaquei.
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16. Dos fatos narrados e dos documentos juntados aos autos, a
animosidade entre os sócios aparece incontroversa; as partes discutem apenas se seria ela
suficiente para justificar a exclusão do minoritário, nos termos do art. 1.085 do Código Civil.
Não é possível deixar de notar a severa desarmonia existente entre os
sócios. Assim não fosse e F.C.H. não teria, valendo-se de sua condição de inventariante,
buscado a destituição de seu cunhado da administração social e procurado votar com as cotas
de sua irmã L.C.H.B.. Igualmente, L.C.H.B. e V.M.B. não almejariam a exclusão de seu
irmão/cunhado. O Poder Judiciário paulista não estaria dando testemunho dessa autêntica
guerra societária em suas varas, com pedidos e contra-pedidos de medidas cautelares e
afastamentos, desaprovação de contas etc.
Qualquer profissional habituado à dinâmica das limitadas familiares
não pode negar que a tentativa de um sócio de destituir o cunhado da administração,
usando o direito de voto das quotas da própria irmã para destituir seu marido, contra
a vontade desta, gera pesado desentendimento, praticamente impossível de ser
contornada no dia-a-dia empresarial.
17. Não obstante, como é normal acontecer, o sócio minoritário alega que
não há cizânia e que, se os negócios sociais estão comprometidos, a culpa não é sua. Os
majoritários, por sua vez, sustentam ser deletéria a atuação do minoritário. Essa a história
que sempre se repete, ainda mais após a entrada em vigor do art. 1.085 do Código Civil.
Mas se insista que, aqui, não é necessário discutir se o antagonismo é
suficiente para, de acordo com a ponderação do julgador, comprometer a sobrevivência da
empresa. O patamar posto no contrato social é mais baixo, autorizando a exclusão
diante da desestabilização do espírito associativo.25
25
Acontecimento que merece atenção são as auditorias promovidas pelo minoritário [em 2.011 e 2.012], que
não encontraram irregularidades contábeis, desvios de recursos, passivos ocultos ou mesmo sonegação de
impostos. Os profissionais por ele indicados [sendo deles a que pretendia ver na administração da empresa, se
conseguisse destituir seu cunhado] declararam ter tido plenas condições de investigação, nos exercícios de
2.011 e 2.012. De praxe, essas auditorias são levadas a efeito para municiar o minoritário com argumentos para
recusa das contas da administração. Todos aqueles acostumados ao dia-a-dia do direito empresarial têm ciência
dessa prática. Percebe-se que nenhuma irregularidade relevante foi encontrada porque nada foi apresentado nas
reuniões de sócios realizadas para apreciação das contas dos mencionados exercícios. A única exceção diz
respeito à remuneração do administrador que, na opinião de F.C.H., impactaria as contas. Contudo, essa
retribuição encontrava-se devidamente registrada e, portanto, não foi escondida do minoritário.
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18. A dissensão entre minoria e maioria exigida pelo contrato social para
a exclusão mostra-se evidente diante do quadro global dos últimos acontecimentos,
ocorridos após a morte do patriarca:
Reuniao convocada por Fernando
para destituir Vinicius da
administração
Empate que impediu
a aprovação das contas e a
distribuição de dividendos
Ação cautelar inominada proposta
por Lucia e Vinicius para suspensão
da reunião
Desaprovação das contas por
Fernando
Reunião suspensa com a manutenção
de Vinicius na Administração
Reunião de sócios para apreciação
das contas
abril
Dezembro de 2011
Abril de 2012
Julho de 2012
Fevereiro de 2012
Realização de auditoria por
Fernando
Relização de auditoria por
Fernando
17 de Abril de 2013
30 de Abril de 2013
Deliberação da exclusão de Fernando
por Lucia e Vinícius
Reunião de sócios para apreciação
das contas
Propositura de ação declaratória de
invalidade de deliberação social
por Fernando
Desaprovação das contas por
Fernando
Oposição de Fernando à
aprovação das contas com base
em precedente jurisprudencial
III. Conclusão
19. A resolução do litígio envolvendo a C.V. Ltda. não tem seu foco na
interpretação do art. 1.085 do Código Civil, porquanto o parágrafo único do art. 10 de seu
contrato social vai além do texto normativo, simplificando a questão ao autorizar a grave
discórdia como causa de exclusão.
Os fatos e documentos levados ao conhecimento do Poder Judiciário
deixam claro o sério dissenso existente entre os sócios, autorizando a exclusão do minoritário
pela maioria do capital social.
A decisão proferida merece reforma, por não respeitar expressa previsão
do contrato social.
É o meu parecer.
São Paulo, 15 de agosto de 2.013.
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ATUALIDADES
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR DANOS MORAIS CAUSADOS
A PRESOS EM DECORRÊNCIA DE VIOLAÇÕES À SUA DIGNIDADE,
PROVOCADAS POR SUPERLOTAÇÃO PRISIONAL E CONDIÇÕES
DESUMANAS OU DEGRADANTES DE ENCARCERAMENTO E A IMPOSIÇÃO
DE MEDIDA REPARATÓRIA NÃO PECUNIÁRIA, POR MEIO DA REMIÇÃO
DE PARTE DO TEMPO DE PENA, EM ANALOGIA AO ART. 126 DA LEI DE
EXECUÇÃO PENAL
Voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso no RE 580.252/MS
Fabiano Pinto de Magalhães
Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
Especialista em Direito Privado Patrimonial pela PUC-Rio. Professor do Curso de PósGraduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV e da Escola Superior de Advocacia Pública do Estado –
ESAP/PGE-RJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Advogado.
Nos autos do Recurso Extraordinário 580.252/MS, em que se discute a
existência de dever de indenizar do Estado, por danos morais, em razão de lesão à dignidade
de preso por superlotação e encarceramento sob condições desumanas ou degradantes, o
Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 17.02.2011, a repercussão geral da questão
constitucional “atinente à contraposição entre a chamada cláusula da reserva financeira do
possível e a pretensão de obter indenização por dano moral decorrente da excessiva
população carcerária”.1
1
A discussão sobre a responsabilidade civil do Estado por danos morais sofridos por detentos é também objeto
da ADI 5.170/DF, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB e sob a relatoria da Min. Rosa Weber, na qual se
pretende a interpretação conforme a Constituição dos artigos 43, 186 e 927, caput e parágrafo único, do Código
Civil, “de modo a declarar que o Estado é civilmente responsável pelos danos morais causados aos detentos
quando os submete à prisão em condições sub-humanas, insalubres, degradantes e de superlotação”. A ação,
ainda pendente de julgamento, conta com parecer da Procuradoria Geral da República no sentido de seu não
conhecimento, ao argumento de que a “aplicabilidade da norma a fatos jurídicos indeterminados não significa
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No caso concreto, o autor, que cumpria pena de 20 (vinte) anos de reclusão
em estabelecimento penal em Corumbá/MS, alegou que teria direito a indenização por danos
morais, em razão da submissão a tratamento degradante, consistente na excessiva população
carcerária e de problemas estruturais do presídio, como condições precárias de
habitabilidade, insalubridade e falta de espaço mínimo nas celas.
O Tribunal de Justiça local condenou, por maioria, em grau de apelação, o
Estado a pagar o montante de R$ 2.000,00 (dois mil reais), a título de indenização de danos
morais. Em sede de Embargos Infringentes, embora reconhecendo a superlotação carcerária
e as condições precárias impostas aos detentos, afastou-se a condenação ao pagamento da
indenização pecuniária, sob o fundamento da reserva do possível, pois a cessação do dano e
sua indenização demandariam a implementação de políticas públicas e o dispêndio de verba
orçamentária.
O Ministro relator Teori Zavascki, em voto acompanhado pelo Ministro
Gilmar Mendes, reconheceu a existência das condições degradantes e deu provimento ao
recurso extraordinário para determinar o restabelecimento da condenação nos termos
anteriormente fixados. Para tanto, fundamentou-se que se trata de hipótese de
responsabilidade civil objetiva do Estado, que o princípio da reserva do possível serve à
lógica dos direitos sociais e não à responsabilidade civil e que a negação de reparação, na
espécie, favorece a perpetuação da situação desumana.
O Ministro Luís Roberto Barroso, em voto-vista proferido na sessão
plenária de 06.05.2015, acompanhou os fundamentos do voto do relator para reconhecer, na
hipótese, o dever do Estado de indenizar o preso submetido à superlotação prisional e a
condições desumanas ou degradantes de encarceramento.
Este aspecto, por si só, já constitui motivo suficiente para atrair a atenção
da comunidade jurídica para este julgamento, que eleva a discussão posta a outro patamar
civilizatório.
pluralidade de interpretações, mas multiplicidade de situações jurídicas passíveis de sofrer eficácia da lei”,
circunstância que não autoriza a aplicação da técnica de interpretação conforme a Constituição. No mérito,
opina pela improcedência do pedido, ao argumento de que “deixar o Estado de cumprir política pública de
ampliação e adequação do sistema prisional não gera automático dever de indenizar por superlotação
carcerária, sob pena de convolar o poder público em segurador universal”. Assim, a “responsabilidade subjetiva
do Estado depende de comprovação de dolo ou culpa do agente, de mau funcionamento ou falta da
administração (fauteduservice) e de nexo de causalidade entre a omissão específica atribuída ao poder público
e o dano gerado a terceiro”, sendo certo que a apreciação de relações jurídicas concretas que possam gerar a
responsabilidade civil do Estado foge ao âmbito objetivo dos processos de fiscalização abstrata de
constitucionalidade.
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Não obstante, o voto-vista do Ministro Barroso se destaca, especialmente,
por divergir quanto às consequências jurídicas propostas pelo relator (restabelecimento da
reparação pecuniária), na medida em que sugere, em posição corajosa, a adoção de
mecanismo alternativo de reparação, não pecuniário, consistente na remição do tempo de
execução da pena, em razão do número de dias submetidos àquelas condições.
Eis a razão primordial pela qual o voto-vista merece detida análise.
As condições cruéis e desumanas e de superlotação encontradas na maioria
das instituições penitenciárias no Brasil são apontadas por diversos estudos e estatísticas
(como recente relatório do Conselho Nacional de Justiça), que informam que o país possui
a quarta maior população carcerária do mundo, cujo aumento exponencial nos últimos anos
superou, significativamente, em termos proporcionais, o crescimento demográfico
brasileiro.
O colapso do sistema prisional – marcado por condições insalubres, falta
de água potável, higiene, saneamento, assistências material, social, médica e jurídica e
repetição de casos de violência psicofísica aos presos – constitui um quadro de graves
violações à Constituição Federal de 1988, à Lei de Execução Penal e a tratados internacionais
sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil.2
Como consequência, verifica-se um aumento da criminalidade e da
violência e um elevado índice de reincidência, indicando a incapacidade de o atual sistema
promover a ressocialização do preso.3
2
De forma exemplificativa, citem-se os seguintes dispositivos constitucionais: art. 1º, III (princípio da
dignidade da pessoa humana), art. 5º, III (vedação de tortura e tratamento desumano ou degradante), art. 5º,
XLVII, e (proibição de sanções cruéis), art. 5º, XLVIII (determina o cumprimento de pena em estabelecimentos
distintos, conforme a natureza do delito, a idade e o sexo do condenado) e art. 5º, XLIX (proteção à integridade
física e moral dos presos); bem como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a Convenção contra
a Tortura e outros Tratamentos e Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes e a Convenção Interamericana de
Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica.
3
Este cenário é detalhadamente apresentado por Daniel Sarmento: “As prisões brasileiras – que já foram
descritas pelo Ministro da Justiça, sem nenhum exagero, como ‘masmorras medievais’ – são, em geral,
verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças
infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos
básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos são frequentes, praticadas por
outros detentos ou por agentes do próprio Estado. As instituições prisionais são comumente dominadas por
facções criminosas, que impõem nas cadeias o seu reino de terror, às vezes com a cumplicidade do Poder
Público. Faltam assistência judiciária adequada aos presos, acesso à educação, à saúde, à seguridade social e
ao trabalho. O controle estatal sobre o cumprimento das penas deixa muito a desejar e não é incomum que se
encontrem em mutirões carcerários, presos que já deveriam ter sido soltos há anos. Há mulheres em celas
masculinas e outras que são obrigadas a dar à luz algemadas. Neste cenário revoltante, não é de se admirar a
frequência com que ocorrem rebeliões e motins nas prisões, cada vez mais violentos. (...) Em minha opinião,
o drama carcerário é a mais grave questão de direitos humanos do Brasil contemporâneo. Mas além disso, as
mazelas do sistema prisional brasileiro comprometem também a segurança da sociedade. Afinal, as condições
degradantes em que são cumpridas as penas privativas de liberdade, e a ‘mistura’ entre presos com graus muito
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Esta realidade não passou despercebida à análise do Ministro Barroso, que
empreendeu profundo inventário sobre a precariedade do sistema prisional nacional,
marcado por problemas generalizados, estruturais e sistêmicos, de grande complexidade e
magnitude.4
Por tal razão, não há soluções fáceis ou unilaterais, de modo que a
efetividade das medidas demanda a atuação conjunta e coordenada de todos os órgãos
relativos ao sistema carcerário e todas as esferas de poder, em relação às três principais
causas apontadas pelo Ministro Barroso: a superlotação, a lógica do hiperencarceramento e
as deficiências na estruturação e funcionamento dos presídios.
Após a indicação das graves causas e suas nefastas consequências no
sistema e a sugestão de medidas específicas de atuação, o Ministro Luís Roberto Barroso
passa à análise do caso concreto.
A existência ou não de dever de indenizar do Estado, nestas hipóteses,
desdobra-se em “duas questões fundamentais: (i) a existência de responsabilidade civil do
Estado pelos danos morais causados aos presos em decorrência da superlotação e do
encarceramento em condições desumanas ou degradantes, e (ii) a possibilidade de invocação
da cláusula da reserva do possível para afastar a obrigação do Estado de indenizar os danos
produzidos nessas circunstâncias.”
Quanto ao primeiro ponto, o Ministro Barroso, com fundamento na
doutrina de Maria Celina Bodin de Moraes,5 qualifica os danos morais como a lesão à
dignidade da pessoa humana,6 cuja centralidade na ordem constitucional brasileira faz o
diferentes de periculosidade, tornam uma quimera a perspectiva de ressocialização dos detentos, como
demonstram as nossas elevadíssimas taxas de reincidência. Neste contexto, a prisão torna-se uma verdadeira
‘escola do crime’, e a perversidade do sistema ajuda a ferver o caldeirão em que vêm surgindo e prosperando
as mais perigosas facções criminosas.” SARMENTO, Daniel. Constituição e sociedade: as masmorras
medievais e Supremo. Disponível em http://jota.info/constituicao-e-sociedade-masmorras-medievais-e-osupremo; acesso em 23.05.2015.
4
Esta situação calamitosa levou o Ministro Barroso a asseverar que, “na esmagadora maioria dos casos, mandar
uma pessoa para o sistema prisional é submetê-la a uma pena mais grave do que a que lhe foi efetivamente
aplicada. Mais do que a privação de liberdade, impõe-se ao preso a perda da sua integridade, de aspectos
essenciais de sua dignidade, assim como das perspectivas de reinserção na sociedade.” Assim, conclui o
Ministro, “o sistema punitivo no Brasil não realiza adequadamente qualquer das funções próprias da pena
criminal: além de não prever retribuição na medida certa, não previne, nem ressocializa.”
5
Segundo a autora, “o dano moral tem como causa a injusta violação a uma situação jurídica subjetiva
extrapatrimonial, protegida pelo ordenamento jurídico através da cláusula geral de tutela da personalidade que
foi instituída e tem sua fonte na Constituição Federal, em particular e diretamente decorrente do princípio
(fundante) da dignidade da pessoa humana (também identificado com o princípio geral de respeito à dignidade
humana).” BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à pessoa humana:uma leitura civil-constitucional dos
danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 132-133.
6
Vale destacar que, para dar concretude e evitar o risco de inutilidade e generalização absoluta, Maria Celina
Bodin de Moraes propõe que o conteúdo material da dignidade da pessoa humana seja preenchido pelos
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sistema da responsabilidade civil extrair sua fonte primária da Constituição Federal de 1988,
que assegura a ampla indenização pelos danos materiais ou morais decorrentes de violações
a uma ampla gama de interesses existenciais, como a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas (art. 5º, V e X, CF).
Neste particular, o Ministro Barroso, de forma salutar, refuta a
possibilidade de alegações vagas de violação à dignidade humana7 ou “afirmações genéricas
a respeito da crise do sistema prisional do país”. Nesta medida, “os danos morais devem ser
efetivamente comprovados para que sejam indenizáveis”,8 mediante a demonstração de que
o preso foi, de fato, exposto a fatores lesivos à sua dignidade, como situações de superlotação
ou insalubridade ou condições degradantes ou desumanas.9
Portanto, “o dano moral deve ser demonstrado a partir de elementos
concretos da realidade do detento, tais como espaço físico individual disponível na cela, a
salubridade do ambiente, as condições estruturais do presídio e as deficiências na prestação
das assistências material, de saúde, laboral e educacional.”
Sobre a efetiva comprovação dos danos extrapatrimoniais, na hipótese em
concreto, imprescindível a leitura do seguinte excerto do voto-vista:
princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica –, da liberdade e da solidariedade.
Estes princípios são corolários dos seguintes postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos
outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que ele é
titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem
a garantia de não vir a ser marginalizado”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. O princípio da dignidade da
pessoa humana. In Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 71-120, p. 85. Notável
esforço de concretização também foi empreendido por BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa
humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da
jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Forum, 2013.
7
Sobre a insuficiência da simples alusão à dignidade humana, ver SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas
da Responsabilidade Civil. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 124-127.
8
Em defesa da exigência de efetiva demonstração do dano, Anderson Schreiber assevera que “na teoria do
dano in reipsa parece, contudo, residir um grave erro de perspectiva, ligado à própria construção do dano
extrapatrimonial e à sua tradicional compreensão como pretiumdoloris.” E conclui: “visto como lesão à
personalidade humana, o dano moral exige, evidentemente, a prova da lesão, da mesmíssima forma, aliás, que
a exige o dano patrimonial, como lesão ao patrimônio. E o fato de que tal prova se mostre mais difícil nos casos
em que a lesão não deixa traços materiais tampouco é prerrogativa do dano extrapatrimonial, como se pode
verificar, no campo patrimonial, nos tormentosos casos de indenização por lucros cessantes ou por perda de
uma chance.” SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da Responsabilidade Civil, cit., p. 202 e 205.
9
A efetiva comprovação do dano também é chancelada pela jurisprudência Corte Europeia de Direitos
Humanos, que se posicionou no sentido de reconhecer a responsabilidade civil do Estado por danos morais
causados a detentos submetidos a essas condições, desde que o tratamento degradante atinja um nível mínimo
de gravidade para dar causa à indenização, a partir da análise das circunstâncias do caso concreto, tais como a
duração do encarceramento, seus efeitos físicos e mentais e as condições efetivas da detenção, como o espaço
físico individual na cela, a privacidade no uso dos lavatórios, a ventilação e a iluminação das celas e a higiene.
A título de exemplo, vejam-se os casos AnanyevandOthers v. Russia, TorreggianiandOthers v. Italy e Stella
andOthers
v.
Italy,
disponíveis,
respectivamente,
em
hudoc.echr.coe.int/sites/engpress/pages/search.aspx?i=003-3800862-4354469,
hudoc.echr.coe.int/sites/engpress/pages/search.aspx?i=003-4212710-5000451
e
hudoc.echr.coe.int/sites/engpress/pages/search.aspx?i=003-4881114-5965675. Acesso em 26.05.2015.
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No caso em exame, a violação à dignidade humana e os danos morais
suportados pelo recorrente são incontroversos. Nos autos, há relatório da
Vigilância Sanitária do Município (fls. 50/52), documento do
Departamento Penitenciário Nacional (fls. 247/248) e Decreto editado pelo
Governador do Estado do Mato Grosso do Sul (fls. 442/443) que
comprovam a situação alarmante a que são submetidos o recorrente e
outros detentos que cumprem pena no presídio de Corumbá, causada pela
superlotação e por problemas estruturais, como a ausência de condições
mínimas de higiene e habitabilidade e de espaço nas celas. A violação a
direitos fundamentais do recorrente é igualmente reconhecida em todas as
decisões proferidas no processo, mesmo naquelas que afastaram o dever
estatal de indenizar. Nesse sentido, o acórdão recorrido reconhece
expressamente que ‘[n]ão há dúvidas quanto à superlotação carcerária e as
precárias condições a que são submetidos os reclusos’ (fls. 405).
Comprovada a lesão em concreto a interesse extrapatrimonial merecedor
de tutela, coube a definição do regime de responsabilidade civil do Estado pelos danos
morais causados aos presos em decorrência de condições degradantes e de superlotação.
A esse respeito, o Ministro considerou que a responsabilidade do Estado
possui caráter objetivo, em razão da existência de dever individualizado de proteção da
integridade dos presos. Veja-se:
Diferentemente do que alegam as partes, entendo que, na hipótese em
exame, a responsabilidade civil do poder público é por ação, e não por
omissão. Afinal, o Estado, ciente das péssimas condições de detenção,
envia pessoas a cárceres superlotados e insalubres. Ainda que assim não
fosse, a definição da natureza da responsabilidade civil no caso deve
considerar a particularidade de que os presos encontram-se sob a custódia
do Estado. Nessa situação, estão inseridos em uma instituição total, na qual
se submetem inteiramente ao controle do poder público e dependem de
agentes estatais para quase todos os aspectos de sua vida, inclusive para o
atendimento de suas necessidades mais básicas e para sua autoproteção.
Como contrapartida, o Estado assume uma posição especial de garante em
relação aos presos, circunstância que lhe confere deveres específicos de
vigilância e de proteção de todos os direitos dos internos que não foram
afetados pela privação de liberdade, em especial sua integridade física e
psíquica, sua saúde e sua vida.
Quanto à alegação da cláusula da reserva do possível para afastar a
obrigação do poder público de indenizar os danos sofridos, o Ministro Barroso consignou
que “o Estado não se desincumbiu do ônus da prova da insuficiência de recursos para custear
a indenização assegurada ao preso”. Além disso, haveria outras três razões para afastar a
aplicação desta teoria: (i) a reserva do possível segue uma lógica de justiça distributiva,
enquanto, “no campo da responsabilidade civil impera um racional diverso, fundado na
realização da justiça comutativa ou corretiva”; (ii) a “impossibilidade de emprego da teoria
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da reserva do possível nos casos em que isso serve como meio de anular direitos
fundamentais conferidos pela Constituição”10; e (iii) o valor intrínseco dos seres humanos,
que impede que alegações de ordem financeira neguem a compensação dos danos morais,
sob o fundamento de que os recursos seriam destinado à reforma do sistema prisional.
Embora estas preocupações quanto à saúde financeira do Estado não
possam servir à negação da compensação, de acordo com o voto-vista, “os efeitos financeiros
da medida podem ser levados em consideração na definição da melhor forma de reparação
dos danos sofridos”, considerando-se que “a disponibilidade de recursos é essencial para que
os Estados sejam capazes de implementar uma solução sistêmica para remediar a atual crise
prisional”.
Exatamente neste momento, chega-se àquela que parece ser a proposta
mais corajosa formulada pelo Ministro Luís Roberto Barroso: a adoção, no caso concreto,
de medida de reparação não pecuniária do dano moral.
De fato, esta hipótese expõe, com significativa clareza, as deficiências e
insuficiências do sistema tradicional da responsabilidade civil, que, fortemente influenciado
por uma lógica patrimonialista, apresenta como única resposta – mesmo em casos de lesões
extrapatrimoniais – a indenização em dinheiro, que possui pouquíssima efetividade de
reparação dos danos morais concretamente sofridos.
Do voto-vista, vale a leitura da passagem que segue:
Diante do estado de inconstitucionalidade estrutural do sistema prisional
brasileiro, entendo que a fixação de uma compensação estritamente
pecuniária confere uma resposta pouco efetiva aos danos existenciais
suportados pelo recorrente e pelos presos em geral. Afinal, o detento que
postular a indenização continuará submetido às mesmas condições
desumanas e degradantes após a condenação do Estado. A reparação em
dinheiro, além de não aplacar ou minorar as violações à sua dignidade,
tende a perpetuá-las, já que recursos estatais escassos, que poderiam ser
utilizados na melhoria do sistema, estariam sendo drenados para as
indenizações individuais.
A reparação pecuniária de danos morais constitui um instrumento
inadequado e insuficiente para repor a vítima no estado anterior ao dano – ou o mais próximo
Segundo o Ministro Luís Roberto Barroso, “preocupações com a saúde financeira dos Estados não podem
ser utilizadas para simplesmente negar aos presos a compensação pelos danos morais. Afinal, como justificar
o deferimento de indenizações por danos morais em situações de menor afronta à dignidade, como o
cancelamento injustificado de voos e a devolução indevida de cheques, e negá-las a detentos que sofrem
gravíssimas violações aos seus direitos nas prisões?”
10
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disto –, eis que se trata de “bens diversos por natureza e incomparáveis na sua
importância”,11 provocando uma série de distorções e efeitos nocivos.12
As insuficiências e os problemas apontados conduzem a uma tendência,
na atual responsabilidade civil brasileira, de despatrimonialização da reparação dos danos
morais, mediante a adoção de medidas não pecuniárias ou em natura, que reparam, na
medida do possível, a lesão sofrida com bem – interesse – de mesma natureza e recuperam
as condições mínimas de dignidade subtraídas dos detentos.
Este movimento significa, a rigor, a concretização da opção do
ordenamento jurídico brasileiro pelas medidas não pecuniárias de reparação, que devem
gozar de posição prioritária sobre a indenização em dinheiro,13 que não é de todo afastada,
mas passa a apresentar caráter subsidiário, de modo a incidir em hipóteses, por exemplo, de
impossibilidade ou insuficiência da reparação não pecuniária (situação na qual poderão ser
cumuladas ambas as formas de reparação).
Neste ponto, pode-se extrair, do voto-vista, que o Ministro Barroso não se
limitou a propor a solução da reparação não pecuniária dos danos morais, mas a condicionou
ao preenchimento de alguns pressupostos, como a viabilidade jurídica, a possibilidade e a
aptidão reparatória da medida.
O mecanismo proposto – remição de parte do tempo de execução da pena
– deverá submeter-se a tais pressupostos e será aplicada da seguinte forma:
Nessa linha, a solução que se propõe é a de que os danos morais causados
aos presos em função da superlotação e de condições degradantes sejam
reparadas, preferencialmente, pelo mecanismo da remição de parte do
tempo de execução da pena, em analogia ao art. 126 da Lei de Execução
Penal, que prevê que “[o] condenado que cumpre a pena em regime
fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do
11
SCHREIBER, Anderson. Reparação não pecuniária dos danos morais. In Direito civil e Constituição. São
Paulo: Atlas, 2013, p. 205-219, p. 207. Esta percepção é compartilhada por Maria Celina Bodin de Moraes: “O
problema mais difícil hoje se refere, sem qualquer dúvida, à avaliação ou quantificação da reparação nos
inúmeros tipos de dano moral. Se, como de fato, se trata de situações existenciais, haverá alguma possível
fórmula pela qual, com justiça, se indenizará pecuniariamente os danos causados às pessoas? Assemelha-se
esta situação à regra lógica primária da impossibilidade de se somarem ‘bananas’ e ‘maçãs’; contudo, aqui é
imperioso que se chegue a algum resultado, para que a vítima não fique irressarcida.” BODIN DE MORAES,
Maria Celina de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais, cit., p. 50.
12
Anderson Schreiber enumera os seguintes efeitos: “(i) a propagação da lógica de que os danos morais podem
ser causados desde que seja possível pagar por eles; (ii) o estímulo ao ‘tabelamento’ judicial das indenizações;
(iii) a crescente ‘precificação’ dos atributos humanos; (iv) o incentivo a demandas frívolas, propostas de modo
aventureiro, por pessoas que pretendem se valer de cada inconveniente ou aborrecimento social para conseguir
uma indenização.” SCHREIBER, Anderson. Reparação não pecuniária dos danos morais, cit., p. 210.
13
A posição de precedência da reparação não pecuniária pode ser extraída, além do texto constitucional, do
artigo 947, do Código Civil e dos artigos 461 e 461-A, do Código de Processo Civil, entre outros dispositivos
encontrados em leis extravagantes. No direito estrangeiro, citem-se, por exemplo, o art. 566º do Código Civil
português e o artigo 1.083 Código Civil argentino.
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tempo de execução da pena”. Vale dizer: a cada “x” dias de cumprimento
de pena em condições desumanas e degradantes, o detento terá direito à
redução de 1 dia de sua pena. Como a “indenização mede-se pela extensão
do dano”, a variável “x”, isto é, a razão entre dias cumpridos em condições
adversas e dias remidos, será fixada pelo juiz de forma individualizada, de
acordo com os danos morais comprovadamente sofridos pelo detento.
Em primeiro lugar, o voto-vista demonstra a viabilidade jurídica da
utilização analógica do mecanismo de remição de pena como reparação não pecuniária de
danos morais decorrentes de encarceramento em condições degradantes ou desumanas, não
havendo que se falar em pretensa violação do princípio da legalidade.
No Brasil, muito embora a remição da pena como meio indenizatório
ainda não tenha sido cogitada pelo Direito, ela é inteiramente
reconduzível ao sistema normativo vigente, tanto em sua lógica
estruturante, quanto em sua forma e modo de execução.
Primeiro, sua lógica estruturante corresponde à ideia de que o tempo
de pena cumprido em condições degradantes e desumanas deve ser
valorado de forma diversa do tempo cumprido nas condições
normais, prevista em lei. (...) Neste sentido, a redução do tempo de
prisão nada mais é do que o restabelecimento da justa proporção
entre delito e pena que havia sido quebrada por força do tratamento
impróprio suportado pelo detento.
Esta lógica não é estranha ao ordenamento jurídico brasileiro. Ao
contrário, trata-se da mesma ratio adotada na concessão de
aposentadoria especial a quem tenha trabalhado em condições que
prejudiquem a saúde ou a integridade física. (...)
Segundo, no que se refere à sua forma, a remição da pena nada mais
é do que um dos diversos mecanismos possíveis de reparação
específica ou in natura de lesões existenciais. (...) Assim, ao abreviar
a duração da pena, o remédio cumpre o papel de restituir ao detento
o exato “bem da vida” lesionado. (...)
Essa espécie de reparação é plenamente compatível com a
Constituição, que assegura a indenização pelos danos morais (art. 5º,
V e X, CF), mas não elege um meio determinado para seu
ressarcimento. Mais do que isso, a busca de mecanismos que
assegurem a tutela específica dos interesses extrapatrimoniais
constitui um imperativo constitucional, que decorre do princípio da
reparação integral dos danos sofridos e da prioridade conferida pela
Carta de 88 à dignidade da pessoa humana. (...)
Terceiro, e por fim, o modo de execução do remédio proposto
corresponde ao do instituto da remição penal, previsto na LEP. É
certo que os mecanismos não se confundem. A remição da Lei de
Execução Penal consiste no direito do preso de reduzir o tempo de
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cumprimento da pena, em razão do trabalho ou do estudo. O instituto
possui, assim, um sentido ressocializador. (...) Já a remição penal
aqui proposta é um mecanismo de reparação de danos. No entanto,
ela deverá ser executada a partir do mesmo modus operandi da LEP.
(...)
Não se diga que o mecanismo de reparação apresentado equivaleria
à concessão da remição em hipótese não prevista em lei. Como já se
disse, trata-se de instituto diverso, que se insere no campo da
responsabilidade civil. Ainda assim, o direito processual penal tem
admitido a remição da pena em hipóteses não contempladas na LEP,
inclusive criadas por Tribunais. A própria remição penal pelo estudo
foi concedida durante muitos anos por decisões judiciais (...).
Atualmente, também a remição pela leitura é aplicada, no âmbito
federal, sem que haja autorização em lei.
Outro pressuposto consiste na possibilidade de aplicação concreta do
mecanismo da remição de pena, que dependerá da reminiscência de tempo de pena a ser
cumprido, sem o qual se torna impossível a redução pretendida. Este é o caso de detentos
que já tiverem cumprido integralmente a pena ou de preso provisório que tivesse se sujeitado
a condições desumanas de encarceramento, mas fosse posteriormente absolvido.
O último pressuposto utilizado, decorrente da possibilidade, consiste na
concreta aptidão reparatória da medida, ou seja, na capacidade de, através de bem de mesma
natureza e importância, reparar a lesão existencial sofrida e recolocar o lesado no estado em
que estaria caso o dano não tivesse ocorrido – ou o mais próximo disso.
Neste sentido, esclarece o Ministro Luís Roberto Barroso:
Deverão postular a remição da pena como meio de reparação dos danos
morais causados pelo encarceramento em condições desumanas e
degradantes os detentos que ainda estejam cumprindo pena,
independentemente do atual regime de cumprimento da pena (fechado,
semiaberto ou aberto) e da eventual concessão de livramento condicional
ou de prisão domiciliar. Também, os presos provisórios que fossem
posteriormente condenados deverão requerer a redução de parte do tempo
de execução da pena, a título de indenização de danos, de acordo com a
lógica da detração, prevista no art. 42 do Código Penal.
É certo que a remição conferirá um benefício maior àquelespresos que
ainda estiverem cumprindo pena em regime fechado ousemiaberto, porque
reduzirá o tempo de encarceramento. No entanto,mesmo para aqueles que
se encontram fora dos cárceres, há vantagensconsideráveis na abreviação
do tempo para que alcancem o término daexecução da pena com a sua
consequente extinção. É que o cumprimentode pena, ainda que em regimes
mais benéficos, possui caráter punitivo,impondo ao apenado diversas
obrigações e restrições. No caso dolivramento condicional, por exemplo, o
liberado deve comunicarperiodicamente ao Juiz sua ocupação, não pode
mudar do território dacomarca do Juízo da execução, sem prévia
autorização deste, e pode ficarainda sujeito ao recolhimento à habitação
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em hora fixada e à proibição defrequentar determinados lugares. O
descumprimento de qualquer dasobrigações constantes da sentença produz
a revogação do benefício, como retorno do condenado à prisão, e todo o
tempo em que esteve soltopassa a não ser descontado da pena.
Além de deixar de se sujeitar às obrigações e condiçõespara o cumprimento
da pena e ao risco de perder o benefício e regressarao presídio, a remição
de parte do tempo restante de cumprimento dapena traz, ainda, os seguintes
benefícios ao apenado: (i) oreestabelecimento antecipado dos direitos
políticos suspensos emdecorrência da condenação criminal, permitindo
que possa votar e servotado e que possa recuperar o título de eleitor, muitas
vezes exigidopara a obtenção de trabalho (arts. 14, § 3º, III, CF), (ii) a
antecipação dacontagem do prazo de 5 anos para retornar à primariedade
(art. 64, Código Penal), e (iii) a antecipação do prazo para requerimento
dareabilitação criminal, assegurando o sigilo dos registros sobre o
seuprocesso e condenação (art. 93, Código Penal). Finalmente, a
abreviaçãodo prazo para a extinção da pena possui um efeito
ressocializadorimportante, diminuindo o estigma que pende sobre o
indivíduo quecumpre pena, tornando-o menos vulnerável a abordagens
policiais efacilitando o reingresso no mercado de trabalho.
Por último, o Ministro Luís Roberto Barroso demonstrou salutar
preocupação14 com a necessidade de objetivação e transparência no procedimento de fixação
da medida reparatória, através da adoção de critérios objetivos de quantificação,
reconduzíveis às circunstâncias fáticas concretas.
Assim, propôs a fixação de quocientes mínimo e máximo – entre 3 e 7 dias
– da razão entre dias cumpridos em condições degradantes e dias remidos, que será
determinado, no caso concreto, pelo juiz da causa, de forma adequada e compatível com a
extensão dos danos efetivamente sofridos pelo detento.
O juiz analisará as condições concretas a que foi submetido o preso (tais
como, o espaço físico individual disponível na cela, a salubridade do ambiente, as condições
estruturais do presídio e as deficiências na prestação das assistências material, de saúde,
laboral e educacional) e, considerada a gravidade do quadro, estabelecerá uma razão maior
ou menor de remição da pena.
A esse respeito, cumpre transcrever o seguinte trecho do voto:
Caso o Juiz da Execução entenda pela configuração dosdanos morais
no caso, caberá a ele a fixação da razão entre diascumpridos em
condições degradantes e dias remidos, de acordo com aextensão dos
Em uma passagem de seu voto-vista, alerta que “em nenhum momento nos autos houve discussão a respeito
dos critérios utilizados para a quantificação da indenização. Na apelação, definiu-se que o recorrente, que
permaneceu por cerca de 5 anos em presídio superlotado com condições degradantes, fazia jus à módica quantia
de R$ 2 mil. Todavia, não há uma linha sequer sobre os parâmetros utilizados para a fixação do montante, tais
como o tempo de encarceramento e a gravidade das violações suportadas.”
14
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danos suportados pelo preso. Entendo, porém, que érazoável – e
mesmo desejável – que este Tribunal fixe quocientes mínimoe
máximo de remição da pena, de modo a criar balizas para a atuação
dosjuízes e permitir que a redução da pena confira uma reparação
efetiva aodetento, tendo um impacto mensurável sobre o tempo de
prisão. Essatécnica me parece mais correta do que a fixação de um
quociente únicopor meio do qual a remição se opere. Tal remição
automática seriaincompatível com a ideia básica de que a métrica da
responsabilizaçãocivil é a extensão do dano, e, ainda, com o
princípio da reparação integral,que somente é possível a partir da
análise individualizada das condiçõesda pessoa lesada.
Nesse sentido, proponho, em primeiro lugar, que oquociente
máximo, aplicável aos casos de maior violação à dignidadehumana,
seja de 1 dia de remição para cada 3 dias de cumprimento depena em
condições degradantes, em analogia ao art. 126 da LEP. Já
comrelação ao quociente mínimo, não vislumbro outro parâmetro
legal quepudesse ser empregado por analogia. No entanto, parece
evidente queeste quociente não pode ser fixado em razão menor do
que aquela quetem sido empregada para a remição da pena pela
leitura, sob pena debarateamento da dignidade do preso. Afinal, não
se pode admitir que acompensação a que o preso faz jus pela
submissão a condiçõesdesumanas de detenção seja menor do que a
que ele obteria pela leiturade um livro. Segundo a Portaria Conjunta
Depen/CJF nº 276, de 2012, aremição pela leitura pode atingir o
máximo de 4 dias por mês e 48 dias noprazo de 12 meses, o que
representa a remição de 1 dia de pena para cada7 dias de
cumprimento de pena68. Esta, portanto, deve ser a razão mínimaa
ser observada nos casos de violações de menor intensidade à
dignidadehumana dos presos.
Proponho, assim, que a contagem do tempo de remiçãoseja feita à
razão de 1 dia de pena a cada 3 a 7 dias de encarceramento
emcondições degradantes, a depender da gravidade dos danos
moraissofridos nessas circunstâncias. Eventual dificuldade no
arbitramento doquociente de remição da pena em cada caso concreto
não será, porevidente, uma peculiaridade deste mecanismo de
reparação de danos. Naverdade, a dificuldade está na própria
mensuração dos atributoshumanos, ou seja, na necessidade de
“quantificar o inquantificável” que éinerente ao dano moral e está
presente de igual modo (e mesmo de formamais grave) na reparação
pecuniária.
Por todas as razões detalhadamente expostas ao longo deste texto, destacase a coragem do posicionamento proposto pelo voto-vista, que configura mudança de
paradigma e quebra da lógica patrimonialista da responsabilidade civil brasileira, fortemente
protegida pelo misoneísmo da doutrina tradicional.
As conclusões inovadoras comprovam a grandiosidade e a potencialidade
do tema da reparação não pecuniária dos danos morais, indicando, ainda, sua vocação
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expansiva a áreas do Direito não pensadas anteriormente, com renovadas possibilidades de
aplicação e fortalecimento de medidas mais efetivas de reparação.
Destaca-se, por fim, a enorme importância do voto-vista, na medida em
que não se limita a propor a reparação não pecuniária, e reconhecer sua possibilidade e seu
caráter prioritário, mas indica caminhos seguros de aplicação, através da adoção de
pressupostos de incidência e de critérios objetivos de quantificação.
A partir de agora, esta estrada parece estar definitivamente inaugurada, à
disposição dos aplicadores do Direito para ser explorada.
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SUBMISSÃO DE ARTIGOS
Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil
para publicação devem observar às seguintes normas:
1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não deve
estar pendente em outro local.
2. Os trabalhos
deverão ser
enviados via e-mail
para
o endereço
[email protected] . O processador de texto recomendado é o Microsoft Word. É
permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os artigos sejam
gravados no formato .rtf (RichTextFormat), formato de leitura comum a todos os
processadores de texto.
3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nominados de
acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado.
4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15 e
35 laudas.
5. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita. Não
devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve
utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio "ENTER" já determina
este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo 12. Os
parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado
direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve ser A4.
6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do
trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax, e-mail,
situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade exercida.
7. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89
(Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica básica
deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras
minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra edição
abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a
natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID, René.
Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
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8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do artigo, com
a indicação “Notas”.
9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não
ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por um
Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um
travessão.
Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2. Regras
jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5. A
Constituição – 6. A chamada descodificação.
10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve ser
feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.
11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações ou
devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos recebidos serão
submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a
publicação.
12. A publicação na RBDCivil implica a aceitação das condições da Cessão de
Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade, que serão
encaminhados ao(s) autor(es) com o aceite.
13. Como contrapartida pela Cessão de Direitos Autorais, o(s) autor(es)
receberá(ão) um exemplar da RBDC.
14. As revisões ortográfica e gramatical são inteiramente de responsabilidade do(s)
autor(es).
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