Propriedade intelectual e políticas públicas para acesso aos
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Propriedade intelectual e políticas públicas para acesso aos
Propriedade intelectual e políticas públicas para o acesso aos antirretrovirais nos países do Sul Tradução Marie José Parlange Lunardi Revisão Helô Castro Pedro Villela Produção Editorial Thaís Garcez Projeto gráfico e diagramação Juliana Jesus Capa Sheila Rego Cristina Possas Bernard Larouzé editores Propriedade intelectual e políticas públicas para o acesso aos antirretrovirais nos países do Sul Esta obra foi igualmente publicada na França no âmbito da coleção “Sciences Sociales et Sida”, da ANRS, com o título Propriété intellectuelle et politiques publiques pour l’accès aux antirétroviraux dans les pays du sud. Ela está acessível no site da ANRS: http:\\www.anrs.fr Rio de Janeiro, 2013 © ANRS/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2013. Todos os direitos reservados a ANRS/E-papers Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores. Impresso no Brasil. O conteúdo dessa obra é de única responsabilidade dos autores. ISBN 978-85-7650-368-2 ANRS 101 rue de Tolbiac 75013 Paris - France Tel : +33 (0) 1 53 94 60 00 Fax : +33 (0) 1 53 94 60 01 www.anrs.fr E-papers Serviços Editoriais. Rua Mariz e Barros, 72, sala 202 Praça da Bandeira – Rio de Janeiro Rio de Janeiro – Brasil Tel: + 55 (21) 2273-0138 http://www.e-papers.com.br Como citar este livro: POSSAS, C.; LAROUZÉ, B. (ed.). Propriedade intelectual e politicas publicas para o accesso aos antirretrovirais nos paises do Sul. Rio de Janeiro: ANRS e E-Papers, 2013. Para citar os capítulos (exemplo): SPIRE, B. Associação AIDES: 25 anos de luta. In: POSSAS, C.; LAROUZÉ, B. (ed.). Propriedade intelectual e politicas publicas para o accesso aos antirretrovirais nos paises do Sul. Rio de Janeiro: ANRS e E-Papers, 2013. CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ P958 Propriedade intelectual e políticas públicas para o acesso aos antirretrovirais nos países do Sul / editores Cristina Possas, Bernard Larouzé. - Rio de Janeiro : E-papers, 2013. 328 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-7650-368-2 1. Propriedade intelectual. 2. Propriedade industrial. 3. Medicamentos - Legislação - Brasil. 4. Indústria farmacêutica. 5. AIDS (Doença) - Pacientes - Tratamentos. 6. Acesso a medicamentos. 7. Saúde pública. I. Possas, Cristina. II. Larouze, Bernard. 13-0617. CDD: 362.1782 CDU: 364.444 Os editores Cristina Possas Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu de Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas, Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (IPEC). Conselho Político e Estratégico do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos, Bio-Manguinhos, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Bernard Larouzé Unidade mista de pesquisa Inserm 707, Universidade Pierre e Marie Curie, Paris, França. Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. Comitê editorial Marilena Corrêa Benjamin Coriat Véronique Doré Lia Hasenclever Suzy Mouchet Fabienne Orsi Isabelle Porteret Laurence Quinty Agradecimentos Os editores agradecem à Amélie Robine, Benjamin Coriat, Constance Meiners, Cristina d’Almeida, Eloan Pinheiro, Fabienne Orsi, Francisco Bastos, Fred Eboko, Guillaume Le Loup, Lia Hasenclever, Mamadou Camara, Maria Andrea Loyola, Marilena Corrêa, Maurice Cassier, Wanise Barroso, Yazdan Yazdanpanah por suas contribuições na revisão dos capítulos. Eles agradecem igualmente à Bruna Fanis, Andrea Salomão, Flavia Moreno, Letícia Teixeira, Alexandra Sanchez, Pedro Villela, Nevada Mendès e Murièle Matignon por suas contribuições na realização desta obra. Sumário Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 INTRODUÇÃO Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul no início da década de 2010: qual é o balanço? . . . . 13 Benjamin Coriat Fabienne Orsi PARTE I Novas moléculas, novas estratégias terapêuticas, a que preços e a que custos? CAPÍTULO 1 Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 Constance Meiners-Chabin, Camelia Protopopescu, Julien Chauveau e Jean-Paul Moatti CAPÍTULO 2 Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha: estudo feito a partir da experiência brasileira em matéria de tratamentos antirretrovirais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Sandrine Loubière, Julien Chauveau, David Zombre e Emily Catapano Ruiz PARTE II Propriedade intelectual: questões e desafios CAPÍTULO 3 Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento: inovação e acesso aos produtos farmacêuticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Cristina Possas CAPÍTULO 4 Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79 Gaëlle Krikorian CAPÍTULO 5 Procedimento de oposição: o caso Tenofovir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97 Wanise Borges Gouvea Barroso CAPÍTULO 6 Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109 Maurice Cassier e Marilena Correa PARTE III Genéricos e competências nacionais CAPÍTULO 7 Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras na produção e no fornecimento de ARVs genéricos pós-2005 . . . . . . .127 Lia Hasenclever, Julia Paranhos, Helena Klein e Benjamin Coriat CAPÍTULO 8 Institutional and procedural challenges to generic production in India: antirretrovirals in focus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .143 Cassandra Sweet e Keshab Das CAPÍTULO 9 A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids e suas implicações sobre as respostas nacionais nos países em desenvolvimento: a experiência brasileira na construção das redes nacionais de laboratórios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .161 Cristina d’Almeida e Benjamin Coriat CAPÍTULO 10 Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .179 Adelaide Antunes, Andressa Gusmão, Flavia Mendes, Fernando Tibau, Paola Galera e Rodrigo Cartaxo PARTE IV Diversidade dos modelos de políticas públicas e de abastecimento em antirretrovirais CAPÍTULO 11 Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV: conquistas e desafios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .199 Cristina Possas, Rogério Scapini e Mariângela Simão CAPÍTULO 12 Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil . . .221 Guillaume Le Loup, Andreia Pereira de Assis, Maria Helena Costa Couto, Jean-Claude Thoenig, Sonia Fleury, Kenneth Camargo e Bernard Larouzé CAPÍTULO 13 A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial: lições de uma parceria sustentável para os países do Sul . . . . . . . . . . . .239 Guillaume Le Loup, Andreia Pereira de Assis, Maria Helena Costa Couto, Jean-Claude Thoenig, Sonia Fleury, Kenneth Camargo e Bernard Larouzé CAPÍTULO 14 Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África: uma abordagem comparada da ação pública contra a Aids . . . . . . . . . . . . . .255 Fred Eboko CAPÍTULO 15 Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana: implicações na disponibilidade local de medicamentos. . . . . . . . . . . . .275 Mamadou Camara, Cristina d’Almeida e Benjamin Coriat PARTE V Acesso aos antirretrovirais: experiência e papel da sociedade civil CAPÍTULO 16 Associação AIDES: 25 anos de luta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .295 Bruno Spire CAPÍTULO 17 O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids: a participação da sociedade civil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .303 Maria Andréa Loyola, Pedro Villela Lista de autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .323 Apresentação Este livro foi elaborado a partir das discussões que ocorreram no Seminário organizado, no ano da França no Brasil, pela Agência Nacional Francesa de AIDS e Hepatites Virais (ANRS) e o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais, do Ministério da Saúde, com o apoio da Embaixada da França. O evento, que contemplou um tema de pesquisa central para a cooperação entre essas instituições, foi realizado em maio de 2009 no Rio de Janeiro e intitulado “Acesso aos medicamentos antirretrovirais nos países do Sul: 20 anos após a introdução ao tratamento antirretroviral”. Este Seminário permitiu aprofundar, de forma inovadora, um tema estratégico para os países em desenvolvimento, possibilitando o debate e a estruturação de redes de pesquisa que têm contribuído para o fortalecimento da cooperação científica e tecnológica na área. O livro está organizado em cinco partes e 17 capítulos, além da introdução temática que posiciona a questão do acesso aos medicamentos antirretrovirais nos países do Sul, 20 anos após a introdução ao tratamento conhecido como HAART (Highly Active Antirretroviral Therapy/Terapia Antirretroviral Altamente Ativa). A primeira parte, composta de dois capítulos, trata dos preços dos novos medicamentos e sua influência sobre os custos das novas estratégias terapêuticas. O primeiro capítulo analisa a estrutura do mercado de medicamentos antirretrovirais e sua evolução no Brasil e o segundo foca a atenção sobre a relação custo/eficácia dessas terapias. Ambos os capítulos têm como objeto de estudo a experiência brasileira, uma das mais bem-sucedidas entre os países do Sul. A segunda parte, composta de quatro capítulos, versa sobre a propriedade intelectual e os novos arranjos em curso para aumentar o acesso aos medicamentos antirretrovirais frente às regras impostas pelo acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights). O Capítulo 3 versa sobre os contraditórios entre, por um lado, a importância da inovação na dinâmica da indústria farmacêutica e, por outro, a questão do acesso a estas inovações. Os demais capítulos, quarto, quinto e sexto, analisam arranjos específicos adotados na Tailândia (Capítulo 4) e no Brasil (Capítulos 5 e 6) no sentido de buscar melhores práticas para a aplicação do TRIPS sem desconsiderar a questão do acesso. Na terceira parte, também composta de quatro capítulos, são discutidos os desafios da produção de medicamentos genéricos e avaliadas as competências técnico-científicas para a sua produção. Apresenta, ainda, uma análise do mercado de testes de monitoramento das pessoas vivendo com HIV. Os dois primeiros capítulos desta parte, Capítulos 7 e 8, contrapõem, respectivamente, as experiências da Índia e do Brasil na produção local de antirretrovirais. Os dois últimos trazem contribuições originais de análise do mercado de testes de monitoramento e das competências disponíveis na universidade e nas instituições de pesquisa para o desenvolvimento e a produção de antirretrovirais, respectivamente no nono e décimo capítulos. A quarta parte é composta de cinco capítulos e discute a diversidade de modelos adotados pelos países do sul para o suprimento dos medicamentos antirretrovirais ou para lidar com a epidemia. O décimo primeiro capítulo trata da difícil sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos antirretrovirais em um contexto de aumento rápido de custo do tratamento para o Ministério da Saúde. Nos capítulos seguintes são analisadas as políticas públicas frente à epidemia de AIDS no Brasil (Capítulos 12 e 13) e na África (14). O último capítulo trata de modelos de aquisição dos medicamentos e seu impacto sobre sua disponibilidade em vários países africanos. A quinta e última parte é composta de dois capítulos que destacam o papel da sociedade civil através do relato de experiências de organizações não governamentais de alcance nacional – tanto do Brasil quanto da França – e internacional. Agradecemos à equipe do Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde e à Embaixada da França pela sua valiosa participação na organização do Seminário que deu base à organização desse livro, em particular a Bruna Fanis, Andrea Salomão, Flavia Moreno e Carmen Balduino. Rio de Janeiro, setembro de 2012 OS EDITORES 12 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas INTRODUÇÃO Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul no início da década de 2010: qual é o balanço? Benjamin Coriat Fabienne Orsi A obra apresentada aqui, fruto de vários anos de intensa colaboração entre equipes brasileiras e francesas sob os auspícios da ANRS e do Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Sáude do Brasil, e representada por pesquisas sobre a situação atual da luta contra a Aids, oferece esclarecimentos múltiplos, inovadores e são, na maioria dos casos, fonte de dados originais, obtidos em primeira mão pelos pesquisadores autores dos textos em questão. Deixaremos ao leitor a descoberta dos detalhes desses estudos de forma a alimentar sua própria reflexão. Ele próprio poderá constatar que esses textos constituem um marco da colaboração franco-brasileira, mas que vão muito além, contribuindo de maneira decisiva para um melhor entendimento da década de 2010. A presente introdução pretende contribuir a esta construção coletiva, constatando, de nossa parte, que o quadro do combate contra a Aids sofreu, sem dúvida, algumas complicações, a partir de 2005. Por vários motivos (expostos e detalhados no decorrer deste texto, bem como em vários capítulos do livro), é evidente que o combate contra a pandemia entrou numa nova fase. Quer se trate dos financiamentos internacionais, do custo dos tratamentos ou da legislação e da regulamentação relativas à oferta de genéricos – três questões de suma importância sobre as quais esta introdução vai estar focada – as evoluções recentes relativamente a essas três questões indicam um contexto novo, inédito e, sob muitos aspectos, menos favorável que aquele do início da década de 2000. A proposta desta introdução é de aportar precisões sobre este ponto, assinalando as mudanças mais importantes ocorridas durante os últimos anos1. 1 Este capítulo de introdução da continuidade e atualiza um exercício de natureza semelhante em publicação anterior, em obra de síntese da ANRS. Cf. Coriat (ed, 2008), Introduction Générale de l’ouvrage. I. Financiamento: o esgotamento da ajuda pública O fato relevante da recente evolução é a desaceleração dos financiamentos públicos (especialmente sob a forma de ajuda pública multilateral), que se seguiu a um período de forte crescimento. O início dos anos 2000 foi cenário do surgimento de novas instituições (Fundo Global, mais tarde a UNITAID) construídas em uma base multilateral e que contribuíram de maneira significativa na solução de problemas encontrados pelos programas de acesso aos tratamentos dos países do Sul. No total, os financiamentos referentes ao combate contra as três pandemias (aids, malária e tuberculose) passaram de 200 milhões de euros em 1999, para 7 bilhões de euros/ano em 2008 e ultrapassaram os 10 bilhões, em 2010. O crescimento dos financiamentos públicos multilaterais, adicionado aos da ajuda pública bilateral (caso do The U.S. President’s Emergency Plan for AIDS Relief, PEPFAR) permitiu o lançamento de políticas de scaling up, em muitos países (inclusive na África subsaariana, onde a epidemia é mais intensa). Foi assim que mais de 5 milhões de pessoas estavam em tratamento nos países do Sul, ao final de 2010. Este período de crescimento dos financiamentos públicos e do que eles possibilitavam em termos de acesso de novos pacientes aos tratamentos antirretrovirais parece chegar aos seus limites. Um sinal das novas dificuldades foi o fato de, pela primeira vez na história, o Fundo Global ter deixado de financiar projetos já aprovados por seu Comitê2. Por falta de recursos, alguns projetos prioritários, representando um total aproximativo de US$ 4 bilhões 3 4 deixaram de ser concluídos. Tais fatos alarmantes foram confirmados nos meses seguintes, quando o Fundo Global iniciou uma campanha por recursos, para seu próprio refinanciamento para o período de 2011-2013. O Fundo desenhou três cenários5 que correspondem a três montantes de recursos financeiros. O Cenário 1 (considerado também como o cenário “mínimo”) foi concebido como aquele que garantiria o prolongamento do financiamento dos programas em andamento. Novos programas seriam possíveis, mas só poderiam ser aceitos e financiados num ritmo bem inferior ao adotado nos anos anteriores. Neste cenário, o financiamento de programas volumosos, baseados em tratamentos inovadores 2 Para os procedimentos de licitação dos projetos pelo Global Fund against AIDS, TB & Malaria GFTAM, ver a introdução geral, já mencionada em Coriat (ed. 2008). 3 GFATM. Report of the Executive Director. Twentieth Board Meeting. Addis Ababa, Ethiopia. Disponível no site do Fundo Mundial no endereço www.theglobalfund.org 4 Ver as observações de MSF: http://www.msfaccess.org/resources/key-publications/ 5 Para o balanço do Fundo Mundial na época do lançamento da campanha 2010 e para a campanha propriamente dita, ver o editorial publicado por Le Lancet com o título: The Global Fund: replenishment and redefinition in 2010, The Lancet (2010). 14 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas – logicamente esperados, tendo em vista a evolução da pandemia6 – estaria excluído, exceto em circunstâncias excepcionais. Resumindo, este cenário introduziria uma competição entre os candidatos a financiamento, com muitos demandantes e poucos escolhidos. O montante dos recursos para esse cenário mínimo foi fixado em US$ 13 bilhões para o período de 2011-2013. O Cenário 2 (que pode ser chamado de “intermediário”) foi elaborado para permitir não apenas a continuidade dos financiamentos para os programas existentes, mas também para garantir o lançamento de novos programas a um ritmo comparável àquele do final da década de 2000. Dessa maneira, a trajetória iniciada seria preservada. O total de recursos para esse cenário de preservação de conquistas anteriores representava US$ 17 bilhões. O Cenário 3 (dito «de progresso») foi pensado de forma que permitiria, além do refinanciamento dos programas existentes, uma aceleração do scaling up, para se chegar o mais perto possível dos objetivos do Milênio em matéria de saúde pública. Os recursos fixados para esse cenário foi de US$ 20 bilhões. Durante a campanha por recursos do Fundo visando a garantir o seu refinanciamento, esses cenários (inclusive o mais “favorável”: o cenário 3) foram objeto de críticas pela sua falta de ambição; crítica emanada por muitos atores da área e de ONGs. O argumento das críticas consistia em lembrar que, sendo o objetivo do enfrentamento da pandemia a garantia de recursos necessários para os tratamentos de todos os pacientes, as necessidades financeiras deveriam ser seriamente reavaliadas em um patamar superior. Dentre as contribuições para essa discussão que foram à época propostas e debatidas, J. Sachs publicou, no jornal The Guardian, uma estimativa das reais necessidades do Fundo Global: elas seriam de US$ 12 bilhões por ano, ou seja, US$ 36 bilhões para o período 2011-2013. Sachs precisou: “The total, $12bn per year for an expanded Global Fund, might seem unrealistically… But total annual funding of $12 billion is really very modest, representing around 0.033% (three cents per $100) of the donor countries’ GNP. This is a tiny sum, which could be easily mobilised if donor countries were serious”.7 Os resultados da campanha por recursos foram extremamente decepcionantes. O Fundo só conseguiu mobilizar US$ 11,7 bilhões, muito aquém do cenário “mínimo” aquele que só permitia a continuação das ações iniciadas, disponibilizando recursos suplementares para um número muito limitado de novas ações. Devemos acrescentar ainda, que os recursos mobilizados devem ser considerados ainda mais insuficientes, se notarmos, junto a vários observadores, que estes 6 Ver a Seção 2 desta introdução, onde está explicada a necessidade de programas inovadores. 7 “O total de US$ 12 bilhões por ano, para um Fundo Global expandido, pode parecer algo não realista... Mas, na verdade, um financiamento anual total de 12 bilhões é certamente algo muito modesto, representando cerca de 0,033% (três centavos por US$ 100) do PIB dos países doadores. Este é um valor pequeno que poderia ser facilmente mobilizado se os países doadores fossem sérios.” Artigo de Jeffrey Sachs, publicado no The Guardian em 25 de março de 2010. Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 15 cenários foram construídos sobre hipóteses de preços que correspondiam a regimes terapêuticos ditos “mínimos”: aqueles que não incluem (ou apenas excepcionalmente) as novas moléculas recomendadas ou em vias de sê-lo, tendo em vista a evolução da pandemia e a pesquisa clínica8. De fato, convém acrescentar aos recursos do Fundo aqueles do Pepfar, do Banco Mundial ou de doadores privados, ainda que o Fundo continue a representar a instituição de referência em matéria de financiamentos. Construído numa base multilateral, com editais transparentes, o Fundo se constituiu no padrão para se avaliar o engajamento da sociedade internacional no combate contra as três principais pandemias que assolam o mundo. O enfraquecimento da capacidade de ação do Fundo que, na prática, é acompanhado de uma maior relevância de mecanismos construídos na base de uma ajuda bilateral, concedida de maneira discricionária (caso da ajuda concedida pelos Estados Unidos no âmbito do Pepfar) ou das ajudas privadas concedidas sem nenhum controle e obedecendo à lógica ultrapassada da “caridade” é uma péssima notícia. E, sem dúvida, anunciadora de tempos bastante difíceis. A explosão da crise financeira de 2007-2009, o crescimento do endividamento e dos déficits públicos, consequências dessa crise, podem ser a causa desse enfraquecimento. As massas financeiras gigantescas (mobilizadas na base de empréstimos públicos), destinadas a salvar os bancos e as instituições financeiras e/ ou reaquecer economias quebradas pela crise das instituições financeiras já têm aqui uma consequência. Desde 2010, a saúde pública mundial e a luta contra a Aids foram atingidas por um contragolpe maior ligado aos erros e tropeços na área financeira. Neste contexto e encerrando nossa contribuição sobre este ponto, só podemos esperar que as campanhas lançadas para conseguir uma taxação dos fluxos financeiros internacionais tenham finalmente um desfecho feliz. Somente uma taxação deste tipo permitirá a perenização da mobilização de quantias condizentes com o problema em questão9. II. Evolução e custo dos tratamentos Essa evolução dos elementos capazes de garantir o financiamento da luta contra a pandemia é mais do que desejável, tendo em vista o brutal aumento dos custos 8 Para este ponto, ver especialmente a “Carta” endereçada por MSF a M. Kazatchkine, presidente do Fundo Mundial, disponível no site de MSF: www.msfaccess.org/ 9 Sob a denominação de “Taxa Robin Hood” uma campanha internacional está em andamento para exigir a taxação dos fluxos financeiros e alocar as quantias coletadas para objetivos de saúde pública. Informações atualizadas são disponíveis em: www.taxerobindesbois.org 16 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas dos medicamentos e dos tratamentos enquanto, como já foi lembrado, os financiamentos perdem fôlego ou regridem. A causa principal dessa situação reside no impacto, cada vez mais forte, sobre o preço dos medicamentos, da aplicação dos acordos ADPIC. Como é sabido, o dia 01 de janeiro de 2005 foi a data-limite concedida aos países do Sul para se adequarem às múltiplas restrições impostas pelos ADPIC10. Os efeitos da entrada nessa nova fase de aplicação dos acordos da OMC se traduzem no fato de medicamentos mais recentes, aqueles que não tinham versões genéricas antes de 2005 – ou para os quais os fabricantes de genéricos não tinham, ainda, feito investimentos significativos – não poderem mais ser produzidos sob a forma de genéricos. Na prática, trata-se da quase totalidade dos medicamentos ditos de segunda linha11. Ademais, o consumo destes medicamentos, já bem significativo, só tende a aumentar, e muito, com o passar do tempo. De fato, pode se considerar que, cada ano, 10% de uma coorte de pacientes sob tratamento com medicamentos de primeira linha deve migrar para aqueles de segunda linha12. Considerando que o custo de aquisição da segunda linha, em 2009, era de 7 a 12 vezes maior que os de primeira linha (dependendo dos países destinatários e das combinações terapêuticas administradas aos pacientes), é fácil entender que o impacto do pós 2005 é muito forte13. Se nada mudar, os aumentos observados de preço dos tratamentos irão abalar os equilíbrios financeiros (muitas vezes bastante frágeis) que permitem o acesso aos cuidados nos países em desenvolvimento (PED). O gráfico a seguir apresenta as diferenças de preços entre os custos dos tratamentos de 1ª e 2ª linhas. Em alguns casos, o preço dos tratamentos chega a ser multiplicado por até 17 vezes para alguns países “intermediários”14 que não podem ter acesso aos genéricos em razão de patentes em vigor, a partir de 2005 para os medicamentos em questão. A situação é ainda mais preocupante porque os tratamentos de segunda linha não são os únicos envolvidos neste problema de custo. De fato, mesmo para “os países de recursos limitados”, as recomendações terapêuticas da OMS incluem alguns 10 Na realidade, foram fixadas duas datas-limites para a incorporação das restrições dos acordos ADPIC às leis nacionais. O 1º de janeiro de 2005 para os países “intermediários” (este grupo reúne todos os países providos de uma indústria farmacêutica capaz de produzir genéricos) e 1º de janeiro de 2016 para os países “menos adiantados”, desprovidos de qualquer capacidade tecnológica em matéria de medicamentos. Sobre o detalhe dos acordos ADPIC em matéria de medicamentos, ver Coriat et al. (2006). 11 Os tratamentos de 1a linha são aqueles recomendados como primeira intenção para os pacientes virgens de tratamento. No entanto, em caso de falha terapêutica ou de mutação do vírus, (o que ocorre regularmente depois de alguns anos de tratamento de 1a linha) novas moléculas devem ser prescritas. Trata-se de tratamentos de 2a linha (eventualmente de 3a linha, caso seja necessário). 12 Estimativa fornecida pela Fundação Clinton. 13 Os argumentos apresentados neste capítulo visam atualizar as análises já apresentadas em Orsi et al. 2007. 14 A noção de “país intermediário” (mais adiante, usaremos também a expressão middle level income countries) refere-se aos países chamados “de renda intermediária”, categoria forjada a partir de indicadores macroeconômicos para distinguir esses países dos países “desenvolvidos” e dos países “de baixa renda”. Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 17 dos “novos” ARV cuja produção e venda são atingidas pelas restrições oriundas da plena aplicação dos TRIPS. O impacto da mudança para regimes terapêuticos de segunda linha sobre o preço do tratamento ARV (em US$) $1,800 $1,600 $1,400 $1,200 $1,000 $800 $600 $400 $200 $0 $1,548 $1,225 $1,090 $749 $819 $87 Lowest generic price 3TC/d4 T/NVP Best CF price ABC + ddl + LPV/r Originator price ABC + ddl + LPV/r Best CF price TDF/FTC + LPV/r Originator price for Cat 1 countries TDF/FTC + LPV/r Originator price for Cat 2 countries TDF/FTC + LPV/r “CF price” corresponde ao preço negociado pela Fundação Clinton. A categoria 1 (Cat 1) corresponde aos países com baixos níveis de renda e a categoria 2 (Cat 2) aos países de níveis de renda intermediário. Fonte: http://www.msfaccess.org/sites/default/files/MSF_assets/HIV_AIDS/Docs/AIDS_report_UTW11_ENG_2008.pdf Assim, em período recente, a OMS modificou duas vezes suas recomendações de tratamento para países com recursos limitados (em 2006 e 2009), levando em conta a experiência adquirida em matéria de tolerância e de toxicidade dos ARV de 1ª geração, hoje em dia distribuídos em grande escala, e dos benefícios trazidos pelos novos medicamentos (e pelas novas combinações terapêuticas que eles permitem). As novas recomendações da OMS incluem doravante vários medicamentos novos, sendo que nenhum deles – salvo circunstâncias excepcionais – pode ser produzido sob a forma de genérico. É o caso, em particular, do Tenofovir, do Lopinavir/r para a 1ª linha e de um novo medicamento, o Raltergravir, para a segunda linha. Segundo a OMS, em 2008, os países de baixa renda pagavam US$ 94/ pessoa/ano para um tratamento de 1a linha, enquanto esse preço atingia US$ 610 para um tratamento novo de 1ª linha15. Esses preços e custos adicionais para os programas de luta contra a Aids não incluem as últimas recomendações de 2009, as quais irão também contribuir para uma alta16. Esta tendência deve se acentuar com o passar do tempo. Dados para 2011 evidenciam que, a ausência de concorrência, pela redução do número de fabri- 15 WHO. Global Price Reporting Mechanism http://www.who.int/hiv/amds/gprm/en/index.html. 16 Lembramos que as novas recomendações da OMS preconizam, desde 2009, a introdução dos ARV a partir do nível de 200 e não mais de 300cc/m3, para os CD4. Esta mudança nas recomendações, justificada pelos progressos da pesquisa, tem como consequência: levando em conta esse nível, 5 milhões de pacientes adicionais são elegíveis para os tratamentos ARV. Cf. WHO/UNAIDS. AIDS Outlook. 2009 http://data.unaids.org/pub/Report/2008/JC1648_aids_outlook_en.pdf. 18 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas cantes de genéricos, o que permitiria o rebaixamento dos preços, a 3ª linha seria disponível para os países mais pobres (os da África subsaariana) ao custo mínimo de US$2.766 por paciente/ano. Evidentemente, isto representa uma quantia inviável para os programas de Aids desses países. No caso dos países intermediários, o custo da 3ª linha é bem mais elevado. No Brasil, por exemplo, o custo do único Raltegravir (novo medicamento, cada vez mais utilizado) ultrapassa US$ 6,000 por pessoa/ano17. Podemos prever que, no futuro, as boas práticas terapêuticas incluirão cada vez mais ARV de novas gerações, mesmo como primeira alternativa, para os pacientes que nunca fizeram tratamento. O resultado é que a situação que tinha favorecido o acesso em grande escala ao tratamento está se deteriorando rapidamente. A importância crescente da implantação de redes de ferramentas de acompanhamento biológico dos pacientes18 Não é somente o custo dos ARV que pesa nos orçamentos, e que confirma a tendência para a alta do custo dos tratamentos. De fato, o acompanhamento correto dos pacientes (possibilitando a detecção precoce de um estado de falha terapêutica, ligada ou não a uma mutação do vírus), exige exames periódicos para verificação do estado imunológico e virológico. Nos países do Norte, isto já é a regra. Periodicamente, a cada seis meses, os pacientes se submetem a testes para medir a carga viral. O custo de aquisição dos equipamentos para aplicação dos testes e, da mesma forma, a capacitação do pessoal encarregado de fazer a aplicação ou a interpretação dos testes ou ainda de administrar e fazer a manutenção dos equipamentos representa um peso econômico adicional considerável. Este peso é mais importante ainda nos países do Sul onde tais equipamentos (e o pessoal habilitado para utilizá-los) não são supridos de acordo com as necessidades. Convém ainda esclarecer que, diferentemente do mercado dos ARV, relativamente transparente e onde pode haver algum tipo de concorrência, o mercado dos testes e das ferramentas de acompanhamento biológico muito mais fechado e com barreiras à entrada muito maiores. O forte caráter oligopolístico desse mercado faz com que o custo de aquisição dessas ferramentas de acompanhamento e de implantação de redes de laboratórios habilitados para a utilização dos mesmos seja extremamente alto. Inevitavelmente, tais redes terão que ser instaladas nos países do Sul de acordo com recomendações recentes da OMS. 17 Dados extraídos da última publicação (2011) do relatório MSF “Untangling the Web of ARV Price Reductions” disponível em utw.msfaccess.org. 18 No quadro desta introdução, nós limitaremos a algumas indicações sobre esse ponto capital para o futuro da luta contra a Aids. Uma análise mais exata e detalhada pode ser consultada em Coriat et al. (2011). Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 19 Constatamos que, por todos esses motivos e se nada for feito, a luta contra a Aids no futuro corre o risco de ser enredada em um terrível impasse: de um lado, diminuição relativa dos financiamentos e, do outro, crescimento do custo dos tratamentos. Tal evolução ameaça seriamente o futuro do combate contra a pandemia. III. Propriedade Intelectual: o “Medicines Patent Pool” da UNITAID e as novas estratégias das grandes companhias farmacêuticas No contexto que acabamos de descrever, é claro que não se pode falar em saída sem soluções audazes e inovadoras, especialmente no que diz respeito à evolução do preço dos medicamentos. Essa questão depende essencialmente da evolução do âmbito legal que regulamenta a PI sobre os medicamentos e das margens de ação deixados para os países do Sul, especialmente no que diz respeito a oferta de genéricos. Nesta frente, as evoluções observadas são, no mínimo, controversas. Temos primeiro que elogiar a iniciativa inédita tomada por dois atores importantes da luta contra a Aids, no caso, a Tailândia e o Brasil, de recorrer ao uso da flexibilidade que representa a emissão de licenças compulsórias. As licenças emitidas para o Tenofovir (TDF), pelo primeiro país, e o Efavirenz, pelo segundo país, em 2008 e 2009 possibilitaram, para esses países, o abastecimento desses ARV essenciais a um custo muito mais baixo. Mas o resultado dessas políticas não é muito nítido19. Primeiro, porque a emissão de licenças compulsórias é um processo difícil e complexo. Além disso, esses procedimentos são politicamente perigosos, tendo em vista que eles ocorrem dentro de um contexto gerador de muitas tensões entre os países que emitem tais licenças e os governos dos países hóspedes das firmas farmacêuticas detentoras das patentes sobre os medicamentos envolvidos. Obviamente, estes procedimentos não podem ser recorrentes, enquanto a evolução da pandemia exige a inclusão contínua de novas moléculas nos tratamentos. Por todos esses motivos, para que a emissão de licenças compulsórias possa representar uma solução, o regime de emissão dessas licenças deve ser revisto, no sentido de uma adequação ao caso de pandemias envolvendo, como a Aids, doenças crônicas que necessitam tratamentos em constante evolução20. Abordaremos, novamente, esse ponto crucial na última seção da presente introdução. 19 Para uma apresentação circunstanciada da emissão das licenças compulsórias pelo Brasil e pela Tailândia, ver d’Almeida et al. 2008. 20 Nesse espírito, foi lançado no Le Lancet, um « call for action », assinado por um grupo de pesquisadores científicos implicados nas pesquisas sobre a Aids Cf. Orsi F. et al. (2010). 20 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Ante as dificuldades apresentadas pela emissão de licenças compulsórias, a única opção consistiria em procurar aquelas oportunidades abertas pelo sistema das licenças voluntárias. Nesse aspecto, o lançamento pela UNITAID do Medicines Patent Pool (MPP) reacendeu as esperanças. A missão do MPP é negociar com as grandes firmas farmacêuticas detentoras de patentes, acordos de cessão de licenças voluntárias aos fabricantes de genéricos, permitindo a fabricação (mediante o pagamento de taxas aos detentores das patentes), de modo a abastecer os países do Sul, de genéricos de qualidade a preço reduzido,21 mesmo no período de vigência das patentes. Após dificuldades iniciais, o MPP anunciou recentemente o primeiro acordo fechado com a firma Gilead. Ainda que este acordo apresente um interesse incontestável para alguns países beneficiários virtuais, ele indica de maneira clara que as soluções fornecidas por esse mecanismo serão – na melhor das hipóteses – limitadas. Pois os termos do acordo – ainda que considerado como histórico por muitos analistas e observadores – parecem bastante ambivalentes.22 Para se ater ao essencial, podemos realçar que o acordo envolve três moléculas de base. A primeira é a molécula de base do Tenofovir (TDF), medicamento atualmente utilizado nos tratamentos de 1ª e na 2ª linha, mas convém esclarecer que, no decorrer dos últimos anos, o preço deste medicamento, produzido por um número crescente de fabricantes de genéricos, caiu de maneira significativa23. Os dois outros medicamentos (o Elvitegravir, doravante designado por EVG, e o Cobicistats, doravante designado por COBI) são medicamentos cujo registro está em andamento junto a FDA. O acordo inclui também o QUAD (combinação em dose fixa associando TDF-COBI-EVG-emtricitabina) bem como qualquer combinação em dose fixa associando duas ou mais moléculas entre aquelas citadas anteriormente. A boa notícia é que podemos imaginar que os países do Sul citados e envolvidos nesse acordo poderão assim dispor do TDF e de outras moléculas a preço reduzido. A má notícia é que esse acordo exclui todos os países de renda intermediária bem como muitos países classificados como nível médio/baixo de renda, classificação que envolve quase todos os países da América Latina e vários países asiáticos24. Convém acrescentar que uma das disposições do acordo estipula que os princípios ativos para os ARV em questão deverão ser adquiridos diretamente da Gile- 21 No site, o histórico da constituição do MPP, bem como todos os documentos básicos regulamentando a sua atividade cf : www.medicinespatentpool.org . 22 O texto do acordo encontra-se no site do MPP, bem como um conjunto de releases de imprensa. Ver www.medicinespatentpool.org. Além do mais, uma discussão sobre o alcance e o significado foi desenvolvida no site ip-health, onde são debatidas opiniões muito divergentes sobre o interesse desse acordo. Cf : www.iphealth.com 23 Com o passar do tempo e com a entrada dos genéricos e sua proliferação, o preço do TDF passou de US$ 195 por pessoa/ano (preço inicial em 1997, na ausência de genéricos) para US$ 76 em 2011, (com cinco genéricos presentes no mercado). Números extraídos do relatório MSF (2011), já citado. 24 A lista dos países incluídos está anexada ao texto do acordo publicado no site do MPP. Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 21 ad ou das firmas indianas credenciadas pela Gilead. Mais ainda, os fabricantes de genéricos indianos são os únicos autorizados a utilizar as licenças cedidas ao Patent Pool, o que exclui do acordo os produtores de genéricos chineses, bem como aqueles operando a partir dos países de renda baixa, dispensados da aplicação do acordo sobre os ADPIC até 2016. Sem querer insistir sobre as suas implicações, podemos observar que, obviamente, tais disposições têm uma grande importância e produzirão, sem dúvida, um forte impacto sobre a oferta de genéricos fabricados sob as licenças voluntárias de Gilead (no sentido de restringi-las). Uma série de negociações está em andamento entre o MPP e algumas sociedades farmacêuticas. Precisamos esperar o fim desse ciclo de negociações para se ter uma melhor avaliação da situação. No entanto, caso a série de acordos em fase de negociação com o MPP concluir pela exclusão de todos os países de renda intermediária, podemos questionar o benefício real obtido por este mecanismo, no que diz respeito à luta mundial contra a pandemia, já que países como a Tailândia, o Brasil ou a África do Sul são aqueles que oferecem programas de combate mais consistentes e estão excluídos do acordo. Além disso, enquanto as negociações continuam, várias empresas farmacêuticas acabam de anunciar o fim dos programas de “preços preferenciais” para os países intermediários, iniciativa que tinha sido negociada no âmbito do programa ACCESS, assinado com apoio das Nações Unidas.25 É o caso da firma Merck, que declarou o fim dos preços preferenciais para todos os países (classificados pela própria empresa como países de renda lower midlle e upper middle). O aspecto mais preocupante desta decisão é que, no caso de Merck, as diferenças de preços entre as ofertas com preços preferenciais e os preços de cessão aos países desenvolvidos eram bastante significativas. Da mesma maneira, Tibotec/Johnson & Johnson acaba de excluir da sua lista todos os países de renda intermediária (middle income), para todos os ARV. Isso inclui a Nevirapina (medicamento-chave para o tratamento de 2ª linha), bem como os medicamentos mais novos como o Duranavir ou a Etravirina, recentemente incluídos como opções em certos regimes terapêuticos recomendados pela OMS. Finalmente, a título de último exemplo, o consórcio VIIV acaba de anunciar que, contrariando os anúncios anteriores, são excluídos do benefício das suas ofertas com preços preferenciais os medicamentos incluídos em programas integralmente financiados pelo Fundo Global ou o Pepfar. A exclusão envolve todos os países de renda média.26 25 Observamos aqui que, no âmbito do programa ACCESS, as grandes empresas farmacêuticas se comprometiam a propor aos países do Sul uma série de medicamentos a “preços preferenciais”. Dois tipos de preços diferentes eram propostos, aos países “intermediários” de um lado, e aos países de baixa renda do outro. O problema desse acordo é que cada empresa farmacêutica tem autonomia para estabelecer de maneira discricionária a lista dos medicamentos incluídos, o preço oferecido e os países beneficiários. Para uma apresentação desse acordo e de seus limites, ver Chauveau et al. (2008) e Coriat (2008). 26 Os diversos anúncios das empresas farmacêuticas e os comentários sobre o seu significado encontram-se no relatório MSF (2001). 22 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Para o conjunto desses países (e para inúmeros países considerados como upper ou middle low level) que reúnem a maioria dos pacientes em tratamento, a consolidação desses fatos – caso isso aconteça – provocaria uma deterioração significativa da situação. Sendo excluídos dos acordos MMP/farmas, esses países e os seus pacientes encontram-se igualmente banidos das listas de preços preferenciais. E ficam obrigados a adquirir medicamentos a um preço alto, com margens de lucro que possibilitam às empresas farmacêuticas distribuir dividendos elevados aos seus acionistas. Tal preço, obviamente, está fora de alcance dos orçamentos dos programas de Aids desses países. Essa situação de dupla exclusão dos países intermediários27 e dos seus pacientes (dos acordos de licenças voluntárias negociados pelo MPP e dos beneficiários de preços preferenciais estabelecidos de maneira discricionária pelas sociedades farmacêuticas) resultaria numa situação inédita com consequências explosivas. De fato, ela significaria, na prática, que a ajuda pública mundial contra a Aids (pelo Fundo Global ou o Pepfar) seria em grande parte desviada em benefício das empresas farmacêuticas que seriam, em razão dos novos preços impostos, os últimos receptores dessa ajuda. Recolocados nesse contexto, será que os benefícios acumulados pelos países de baixa renda (obtidos no âmbito dos acordos de cessão de licenças voluntárias negociados pelo MPP) – nos quais, na maioria das vezes, as sociedades farmacêuticas não depositaram patentes para os seus medicamentos – compensam esses efeitos negativos? Vale pelo menos levantar o assunto. IV. Como enfrentar isso? Tendo em vista as evoluções que nós acabamos de descrever, para dar uma nova chance de sucesso aos programas de combate contra a Aids dos países do Sul, novas iniciativas devem ser tomadas. Claro, tem que se dar tempo ao amadurecimento do MPP e aos processos de cessão de licenças voluntárias recentemente iniciados, como no caso do acordo firmado com Gilead. Mas permanece claro – inclusive para favorecer o desfecho de acordos de cessão de licenças voluntárias representando progressos significativos – que o recurso às licenças compulsórias, mais do que nunca, aparece como essencial. No entanto, esse processo deve ser atualizado, com as lições das experiências passadas. Na situação atual, o interesse real da luta contra a epidemia exige que o dossiê “flexibilidades” inclusas no TRIPS seja reaberto afim de esclarecer essas flexibilidades e, sobretudo, ampliá-las para que elas se tornem adequadas às novas exigências. 27 A noção de país “intermediário” (mais adiante, usaremos também a expressão middle level income countries) refere-se aos países chamados “de renda intermediária”, categoria forjada a partir de indicadores macroeconômicos para distinguir esses países dos países “desenvolvidos” e dos países “de baixa renda”. Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 23 Temos que realçar que no passado, pelo menos em duas ocasiões, foi necessário recorrer a essas revisões e esclarecimentos dos ADPIC28 e, portanto, não existem motivos para refutar uma nova iniciativa sobre esse ponto. Na falta disso e, no mínimo, para criar as condições necessárias para um abastecimento mais ou menos garantido, no espírito da nova declaração da OMS (2008) que pretende favorecer o acesso aos tratamentos, estimulando ao mesmo tempo a inovação e a produção de genéricos, poderíamos considerar uma proposta elaborada sobre os princípios a seguir. Primeiro, a OMS poderia introduzir regularmente os novos ARV colocados no mercado na sua lista de “medicamentos essenciais”, os quais completariam aos poucos aqueles que já fazem parte dela. Nessa base e para permitir a fluidez do processo, o Conselho dos ADPIC da OMC poderia emitir uma declaração tornando lícita para os países do Sul engajados no combate contra a pandemia, a emissão de licenças compulsórias válidas para o conjunto dos antirretrovirais inclusos na lista dos medicamentos essenciais da OMS; essas licenças poderiam valer durante vários anos, sem obrigatoriedade de especificação das quantidades ou formulações envolvidas. Tal flexibilidade permitiria aos países do Sul dispor de uma ferramenta jurídica adequada ao tipo de epidemia que representa a Aids.29 Desta maneira, seriam restabelecidas, para os novos ARV, condições mínimas de concorrência – entre fabricantes de genéricos e entre eles e as empresas inovadoras – as únicas em condição de abrir para os países do Sul uma margem de escolha em matéria de abastecimento e, portanto, de garantir a regulação dos preços.30 Em conclusão, pensamos que só assim o abastecimento de medicamentos a preços sustentáveis poderá ser garantido, num momento em que o número de 28 A primeira vez foi por ocasião da Declaração do Conselho dos ADPIC em 2001, chamada “Declaração de Doha” que enunciou princípios muito claros: a segunda vez em 2003, com o acordo esclarecendo as condições nas quais os países do Sul, desprovidos de recursos, podem recorrer a importações de medicamentos sob licença compulsória. Essas disposições são apresentadas de maneira detalhada em Coriat et al. (2006). 29 Um esclarecimento importante tem que ser dado aqui. O processo preconizado pode parecer inovador e, no entanto, possui vários precedentes. O primeiro consiste na Lei de PI indiana, de 2005 (Amended Intellectual Property Law). Essa lei estabelece que os medicamentos já produzidos pelas empresas indianas anteriormente a 2005 e que, depois dessa data (com a abertura da mail box prevista nos acordos ADPIC) seriam objeto de patente, continuariam a ser produzidos na versão genérica. Nesses casos, um fee seria pago às detentoras das patentes. Constatamos que, dessa maneira, foi estabelecido pela Lei Indiana de 2005 um tipo de licença compulsória generalizada e promulgada por antecipação. O mecanismo que nós preconizamos é muito semelhante àquele implantado por essa Lei, o qual não foi contestado no Conselho dos ADPIC. O segundo precedente é o caso do Equador: no ano de 2010, este país emitiu por antecipação uma licença compulsória única para várias dezenas de medicamentos. 30 Caso as empresas farmacêuticas renunciem à cláusula pétrea que elas acabaram de se engajar, excluindo os países intermediários de suas listas de preços preferenciais, a evolução aqui proposta poderia ser acompanhada de um acordo “ACCESS” renovado e mais elaborado no que diz respeito, mais especificamente, aos novos ARV (pós-2005), utilizados em tratamentos de 1ª ou 2ª linha. Nesse novo acordo, as empresas se comprometeriam a abastecer com prioridade os países do Sul, com os preços preferenciais anunciados e, em troca, processos de registro acelerados poderiam ser concedidos nesses mesmos países do Sul. 24 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas pacientes sob tratamento com ARV de nova geração aumenta de maneira significativa e em que os financiamentos para a luta contra a doença aparecem ainda mais restritos que no passado. Referências bibliográficas 1. D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; KRIKORIAN, G.; ORSI, F.; SWEET, C.; CORIAT, B. New Antirretroviral treatments and Post-2005 TRIPS constraints. First Moves towards IP Flexibilization in Developing Countries. In: CORIAT, B. (Ed.). The Political Economy of HIV/AIDS in Developing Countries, TRIPS, Public Health Systems and Free Access. Cheltenham (UK): Edgar Edward Editor, 2008. 2. CHAUVEAU J.; MEINERS C. M.; LUCHINI S.; MOATTI J. P. Evolution of prices and quantities for ARV drugs in African countries: from emerging to strategic markets. In: CORIAT (ed.). The Political Economy of HIV/AIDS in Developing Countries, TRIPS, Public Health Systems and Free Access. Cheltenham (UK): Edgar Edward Editor, 2008. 3. CORIAT, B.; ORSI, F.; D’ALMEIDA, C. TRIPS and the International Public Health Controversies: Issues and Challenges. Industry and Corporate Change, p. 1-30, 2006. 4. CORIAT, B. (ed.) The Political Economy of HIV/AIDS in Developing Countries, TRIPS, Public Health Systems and Free Access. Cheltenham (UK): Edgar Edward Editor, 2008. 5. CORIAT, B. A new stage in the fight against the HIV/AIDS pandemic. An economic perspective. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/AIDS in Developing Countries, TRIPS, Public Health Systems and Free Access. Cheltenham (UK): Edgar Edward Editor, 2008. 6. CORIAT, B.; D’ALMEIDA, C.; ROUZIOUX, C. L’accès à la Charge virale dans les pays à ressources limitées. Etats des lieux et orientations pour l’action. Revue Transcriptase, 2011. 7. CORIAT, B.; ORSI, F.; D’ALMEIDA, C. TRIPS and the International Public Health Controversies: Issues and Challenges, Industry and Corporate Change, p. 1-30, 2006. 8. ORSI, F.; D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L. et al. TRIPS post-2005 and access to new antirretroviral treatments in southern countries: issues and challenges. AIDS, v. 21, oct. 2007. 9. ORSI, F.; CARRIERI, P.; CORIAT, B.; DELAPORTE, E.; MOATTI, J. P.; SPIRE, B.; TAVERNE, B.; BARRÉ-SINOUSSI, F. Call for action to secure universal access to ART in developing countries. The Lancet, n. 375 (9727), p. 1.693-1.694, 2010. 10. THE LANCET. Editorial: The Global Fund: replenishment and redefinition in 2010. Oxford (UK), v. 375, Issue 9.718, p. 865, march 2010. 11. MSF (2011). Untangling the Web of ARV Price Reductions. Disponible à l’adresse: utw.msfaccess.org. Introdução. Propriedade intelectual e acesso aos tratamentos antirretrovirais nos países do Sul 25 PARTE I Novas moléculas, novas estratégias terapêuticas, a que preços e a que custos? CAPÍTULO 1 Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais no Brasil Constance Meiners-Chabin Camelia Protopopescu Julien Chauveau Jean-Paul Moatti Resumo: O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a fornecer acesso universal e gratuito a medicamentos antirretrovirais a pessoas vivendo com HIV/Aids. Em junho de 2009, o Programa de Aids do Ministério da Saúde atingia uma cobertura de quase 190 mil pacientes. Recentemente, o aumento do peso orçamentário de medicamentos patenteados causa preocupação quanto à sustentação dessa política. Este artigo apresenta uma análise estatística da evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais no mercado brasileiro, com base nas compras efetuadas pelo Ministério da Saúde entre 1998 e 2006. Embora tenha-se observado uma queda geral significativa na média de preços por dose diária de 1998 a 2002, a partir de então observa-se uma flutuação ascendente. Dentre os principais fatores associados à alta nos preços destacam-se medicamentos novos e a proteção patentária. Nesse sentido, as patentes farmacêuticas continuam a representar um dos principais obstáculos ao acesso aos tratamentos antirretrovirais. Palavras-chaves: HIV/Aids; Medicamentos Antirretrovirais; Patentes, Mercado Farmacêutico; Brasil. I. Introdução Até o final de 2009, havia cerca de 33,3 milhões de pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) no mundo. Ainda que alarmante, o aumento da prevalência do HIV/Aids tem ocultado dois avanços importantes na luta contra a epidemia: a queda continuada da incidência desde 1996 e a redução da mortalidade associada à doença.31 Avanços esses, vale notar, fruto de esforços de prevenção e aumento da cobertura do tratamento antirretroviral nos países em desenvolvimento [1]. A presente déca31 Para 2009, foram estimados 2,6 milhões de casos de novas infecções e 1,8 milhão de óbitos. da testemunhou uma mobilização de recursos e ativismo social sem precedentes com vistas à expansão do acesso a terapias antirretrovirais de alta potência (TARV) no mundo em desenvolvimento [2]. Segundo o último relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), em dezembro de 2009, mais de 5 milhões de indivíduos tiveram acesso à TARV. Não obstante, quase dois terços das PVHA que necessitam de tratamento permanecem sem cobertura32 [3]. Dentre as inúmeras barreiras a serem transpostas, o preço dos medicamentos antirretrovirais (ARV) permanece entre as mais significativas, sobretudo quando considerado o acesso a medicamentos mais novos, que agregam maior potência e menor nível de toxicidade, mas são geralmente protegidos por patentes. O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a fornecer medicamentos ARV de forma universal e gratuita às PVHA. O sucesso de seu Programa contribuiu para o reconhecimento da política brasileira de acesso ao tratamento antirretroviral como referência para outros países atingidos pela epidemia de HIV/AIDS [4,5]. À medida que esse programa expande sua cobertura e, com seu amadurecimento, cresce o número de pacientes em terapias de resgate e, ao mesmo tempo, ocorre a incorporação de novas tecnologias, consoante ao processo de atualização das recomendações brasileiras, o peso cada vez maior de medicamentos patenteados no orçamento [6] causa preocupação quanto à sustentação dessa política no longo prazo. Este artigo apresenta uma análise estatística da evolução dos preços dos medicamentos ARV no mercado brasileiro entre 1998 e 2006. O objetivo da análise consiste em examinar, dentre os fatores determinantes de preços, o papel das patentes farmacêuticas. Com vistas a contextualizar esta análise, as próximas seções trazem uma breve exposição da estrutura de mercado dos medicamentos ARV e das estratégias de acesso ao tratamento contra HIV/Aids no Brasil. Em seguida, são abordados os métodos e discussão dos resultados da análise da evolução dos preços no mercado brasileiro. Na conclusão, são destacadas as principais implicações desta análise para a continuidade do acesso às TARV. II. O mercado de medicamentos ARV Segundo dados disponibilizados pelo IMS Health, o mercado farmacêutico mundial atingiu a cifra de US$ 773,1 bilhões de vendas em 2008. O volume de vendas mais que dobrou de tamanho ao longo desta década, com uma taxa de crescimento média anual próxima a 8%.[7] Em termos regionais, América do Norte, Europa e Japão juntos representam mais de 80% do mercado mundial. O mercado latino-americano, representando pouco mais de 6% das transações globais, cresceu 12,6% em relação a 2007, onde Brasil e México se destacam como mercados emer32 A cobertura atingida em dezembro de 2009 foi de 36%. 30 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas gentes.[8] Além da forte concentração geográfica, pode-se afirmar que o mercado farmacêutico apresenta características de oligopólio. Apenas 10 empresas respondem por cerca de 43% das vendas globais [9]. A concentração dessas empresas no controle da produção e distribuição dos medicamentos é favorecida pela presença de barreiras à entrada de concorrentes. Essas barreiras são marcadas por: atividades intensivas e especializadas em pesquisa e desenvolvimento (P&D); presença de economias de escala e escopo; considerável volume de gastos e tempo investidos no processo de regulação e acesso ao mercado; e proteção concedida pelos direitos de propriedade intelectual, mais especificamente, patentes e marcas [10-12]. Os medicamentos ARV representaram cerca de 1,7% do mercado farmacêutico mundial em 2008, com uma cifra superior a US$ 12,2 bilhões. Em 2008, os ARV ocuparam o 12° lugar de vendas, sendo a terceira classe terapêutica que mais cresceu em relação a 2007.[13] Tomando-se por base os medicamentos com registro na agência reguladora de medicamentos e alimentos dos Estados Unidos (Foods and Drug Administration – FDA), foram lançados 27 ARV33 e cinco doses fixas combinadas (DFC) entre 1997 e 2007 [14]. Dentre os fabricantes dos produtos originais, encontram-se nove empresas farmacêuticas [9,14], cinco das quais figuram entre as 10 empresas líderes no mercado mundial [9].34 No que concerne à produção de ARV genéricos, a partir de registros junto à FDA e ao projeto de pré-qualificação da OMS, foram identificados 14 fabricantes,35 nove dos quais de origem indiana, para a produção de 16 ARV e 12 FDC [15,16]. Vale notar que a produção e comercialização de ARV genéricos estão restritas a países onde o pedido de patente não tenha sido depositado ou, ainda, onde a patente, uma vez concedida, tenha sido objeto de licenciamento compulsório ou voluntário.36 São comercializadas atualmente seis classes de ARV, sendo elas: Inibidores de Transcriptase Reversa Análogos de Nucleosídeos (ITRN), Inibidores de Transcriptase Reversa não Análogos de Nucleosídeos (ITRNN), Inibidores de Protease (IP), Inibidores de Fusão (IF), Inibidores de Entrada (IE) e Inibidores de Integrase (II). O tratamento para a infecção por HIV preconizado pelas autoridades de saúde consiste na combinação de três ARV, de forma geral, pertencentes a duas classes distintas. Conforme padrões de resitência viral ao tratamento, algumas classes de ARV 33 Dois dos quais foram retirados do mercado. 34 Pfizer (1°), GlaxoSmithKline (2°), Hoffman-La Roche (6°), Merck Sharp & Dome (8°), Abbott Laboratories (9°), Bristol-Myers Squibb, Gilead Sciences, Tibotec Therapeutics e Boehringer Ingelheim. A Agouron Pharmaceuticals foi comprada pela Warner-Lambert em 1999 que fusionou com a Pfizer em 2000. 35 Strides Arcolab, Matrix Laboratories, Cipla, Hetero Drugs, Aurobindo Pharma, Emcure Pharmaceuticals, Macleods Pharmaceuticals, Alkem Laboratories, Ranbaxy Laboratories (India); Barr Pharmaceuticals do grupo Teva (EUA/Israel); Combino Pharm (Espanha); Huahai (China) ; Aspen Pharmacare (África do Sul); e, Pharmacare Limited (Tailândia). 36 Em termos gerais, a licença compulsória refere-se à exploração da patente por decisão do ente do Estado que a outorgou por motivos de interesse público, emergência nacional ou abuso de poder, entre outros, com vistas a permitir que terceiros entrem no mercado, reservado ao titular o direito de receber o pagamento de royalties. A licença voluntária refere-se à negociação direta entre o titular e o(s) laboratório(s) interessado(s) sobre a cessão dos direitos da patente num mercado específico. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 31 encontram-se sob reserva para uso em esquemas de resgate.37 Adicionalmente, o desenvolvimento de toxicidade ou ainda casos de comorbidade, como por exemplo a coinfecção por tuberculose ou hepatites virais, acabam por restringir o uso de determinados ARV. Esses fatores conferem baixa possibilidade de substituição entre os ARV disponíveis, o que por sua vez reforça a tese de oligopólio da indústria. A alta concentração de mercado a um número pequeno de produtos e os limites impostos à concorrência de fabricantes genéricos dá lugar à prática de preços elevados e à obtenção de altos lucros pelas empresas fornecedoras de medicamentos ARV inovadores. Desta forma, nos países onde os recursos empenhados para a saúde pública são reduzidos, o acesso ao tratamento, assim como sua continuidade ao longo da vida dos pacientes, sofre constantes ameaças. O mecanismo de diferenciação de preços, visto como uma forma de reduzir os preços praticados pelos laboratórios farmacêuticos em países menos desenvolvidos, tendo por base o nível de renda per capita e a taxa de prevalência do HIV na população,38 pode contribuir para facilitar o acesso aos ARV [17]. Não obstante, quando da presença de proteção patentária, esse mecanismo, por se tratar de uma iniciativa essencialmente unilateral, que depende do voluntarismo das empresas é sujeita a riscos de ancoragem de preços e importação paralela,39 apresenta grande fragilidade. Diante dessas considerações, vale examinar o modelo apresentado pelo governo brasileiro para garantir a ampla cobertura de pacientes sob TARV, assim como compreender os desafios mais recentes à continuidade de sua política. III. O acesso ao tratamento contra HIV/Aids no Brasil O acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV foi legalmente instituído no Brasil em 1996 [18].40 Desde então, o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis, Aids e Hepatites Virais, edita e revisa periodicamente as recomendações terapêuticas para crianças, adolescentes, adultos e gestantes infectados pelo HIV, assim como para a profilaxia da transmissão vertical do vírus. Segundo fontes oficiais, cerca de 190 mil pacientes têm acesso 37 Como é o caso das classes IF, IE e II no Brasil e ainda da classe IP nas recomendações da OMS. 38 Para maiores explicações sobre preços diferenciados vide: Danzon PM e Towse A. Differential pricing for pharmaceuticals : reconciling access, R&D and patents. International Journal of Health Care Finance and Economics 2003; 3: 183-205. 39 Tratam-se de estratégias de regulação do mercado farmacêutico, utilizando como referência o preço praticado em outros mercados ou permitindo a importação do medicamento de um mercado onde os preços sejam mais baratos, que por sua vez colocam em risco a prática de preços diferenciados. 40 A distribuição gratuita de medicamentos ARV no país teve início já em 1991, quando do surgimento da Zidovudina (AZT) no mercado brasileiro. 32 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas à TARV pelo Sistema Único de Saúde (SUS).41 Atualmente, são dispensados 20 ARV e uma DFC, pertencentes a cinco classes terapêuticas, conforme nome e data de início de distribuição indicados na Tabela 1 a seguir. Tabela 1 – Medicamentos ARV dispensados pelo SUS Medicamento (sigla) Início da distribuição 1. ITRN Medicamento (sigla) Início da distribuição 3. IP Zidovudina (AZT)* 1991 Saquinavir (SQV)* 1996 Didanosina (ddI)* 1993 Ritonavir (RTV)* 1996 Lamivudina (3TC)* 1996 Indinavir (IDV)* 1997 Estavudina (d4T)* 1997 Amprenavir (APV) 2001 AZT + 3TC [DFC]* 1998 Lopinavir/RTV (LPV/r) 2002 Abacavir (ABC) 2001 Atazanavir (ATV) 2004 Tenofovir (TDF) 2003 Fosamprenavir (FPV) 2005 Didanosina EC (ddI EC) 2004 Darunavir (DRV) 2008 2. ITRNN 4. IF Nevirapina (NVP)* 1998 Enfuvirtida (T-20) Efavirenz (EFV)‡* 1999 5. II Etravirine (ETR) 2010 Raltegravir (RAL) 2005 2009 * Medicamentos produzidos localmente ‡ Medicamento sob licença compulsória desde 2007 Fonte: Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. A garantia do acesso às TARV tem como apoio uma série de estratégias utilizadas pelo Estado brasileiro com vistas a baratear o custo do tratamento sem comprometer a sua qualidade. Em primeiro lugar, a centralização do processo de compra pelo Ministério da Saúde [6], permitindo-lhe melhor organizar a compra de insumos ao mesmo tempo que lhe concede maior poder de barganha na negociação com fornecedores. Um outro aspecto fundamental consiste na exploração da capacidade industrial brasileira para a produção de oito medicamentos similares e uma DFC, não sujeitos à proteção patentária,42 que pôde contar com importação de princípios ativos da China e da Índia [6,19,20]. Merece também destaque a ameaça e o uso do mecanismo de licenciamento compulsório, em conformidade com o disposto no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacio- 41 Dados do Departamento DST/AIDS para junho de 2009. 42 Vale notar que a proteção patentária foi extendida a produtos e processos farmacêuticos somente a partir da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 33 nados ao Comércio (TRIPS), da OMC, de 1994. Em maio de 2007, o Brasil decretou o licenciamento compulsório de patentes relacionadas ao Efavirenz (EFV) [21], cuja produção local43 teve início em 2009. Por fim, cabe mencionar o exame qualificado dos pedidos de patentes farmacêuticas, por meio da exigência de anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a partir de 199944 [22,23]. Recentemente, o aumento expressivo do orçamento do Ministério da Saúde destinado à compra de medicamentos ARV tem gerado preocupações quanto à longevidade da política brasileira de acesso às TARV [24]. De um valor correspondente a quase US$ 312 milhões em 1998, o orçamento aprovado para 2009 atingiu cerca de US$ 543 milhões.45 Esse aumento deve-se, de um lado, à contínua expansão do programa e, de outro, ao aumento da sobrevida dos pacientes e, consequentemente, à introdução de medicamentos mais potentes para lidar com problemas relacionados ao desenvolvimento de toxicidade e resistência ao tratamento [25]. Segundo fontes oficiais, o número de pacientes em TARV teve um aumento de quase quatro vezes entre 1998 e 2009.46 Ao mesmo tempo, cabe notar que a participação dos produtos patenteados representa cerca de 80% dos gastos com medicamentos ARV nos anos mais recentes [6,26,27]. Nesse contexto, com vistas a melhor informar o debate em torno do impacto dos preços dos medicamentos sobre a sustentação da política de acesso às TARV, cabe analisar empiricamente os determinantes e a evolução dos preços dos ARV no mercado brasileiro para melhor avaliar as tendências que se desenham em período mais recente. IV. Análise da evolução dos preços dos medicamentos ARV no Brasil O programa intitulado “Avaliação econômica do acesso às TARV nos países em desenvolvimento”, conhecido como Programa ETAPSUD, foi lançado em 2001 pela Agência Francesa de Pesquisa sobre Aids e Hepatites Virais (ANRS). Este programa teve por finalidade estudar a capacidade de financiamento e gestão de programas em HIV/AIDS nos países em desenvolvimento para prover acesso ao tratamento de pacientes elegíveis, assim como estimar o impacto do HIV/AIDS sobre o desenvolvimento e como o acesso ao tratamento pode contribuir para aliviar esse 43 De maneira exclusiva. 44 Embora o escopo da anuência tenha sofrido limitações mais recentemente. 45 Valores informados pela Área de Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. 46 Dados fornecidos pela Área de Logística de Medicamentos e Insumos Estratégicos, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Secretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde. 34 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas impacto. O estudo da evolução dos preços dos medicamentos ARV47 teve como enfoque analisar quantitativa e qualitativamente os determinantes e variações dos preços, com o objetivo de orientar o processo de compra de ARV contribuindo para a expansão e melhoria do acesso ao tratamento contra HIV/AIDS nos países em desenvolvimento. A análise teve por base dados provenientes de 14 países, sendo 13 situados na África48 e o Brasil. A coleta de dados foi realizada in situ junto às autoridades responsáveis pela compra de ARV, a partir do preenchimento de formulários padronizados. Os resultados desta análise, referente ao período compreendido entre 1998 e 2002, foram relatados por Luchini et al., 2003 [17]. A análise apresentada nesse capítulo concentra-se no contexto e preços de medicamentos ARV praticados no mercado brasileiro entre 1998 e 2006. IV.1. Dados e métodos A base utilizada para esta análise contém o total de transações de medicamentos ARV informadas pelo Ministério da Saúde para o período entre 1998 e 2006. Esses dados foram fornecidos ao banco do Programa ETAPSUD pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Os preços encontram-se registrados em dólar americano, convertidos pelo valor da moeda nacional tomando-se por base a média geométrica da cotação para o ano de transação de referência.49 Consoante às recomendações terapêuticas editadas pelo Brasil para pacientes adultos acima de 60 quilos, preços unitários para cada ARV foram convertidos em preços por dose diária (PDD),50 de forma a permitir a comparação entre os diferentes ARV. Os 17 medicamentos incluídos na análise são: Zidovudina (AZT), Didanosina (ddI), Lamivudina (3TC), Zalcitabina (ddC),51 Estavudina (d4T), Abacavir (ABC), Tenofovir (TDF) e Didanosina Entérica (ddI EC), da classe ITRN; Nevirapina (NVP) e EFV, da classe ITRNN; Saquinavir (SQV), Indinavir (IDV), Nelfinavir (NFV),52 Amprenavir (APV), Lopinavir (LPV/r) e Atazanavir (ATV), da classe IP;53 e, Enfuvirtida (T-20), da classe IF. Dados 47 Este estudo foi confiado à Unidade de Pesquisa 379 do Instituto Francês de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm), atualmente, Unidade Mista de Pesquisa 912 (Inserm/IRD/Universités Aix-Marseille), intitulada SE4S “Ciências Econômicas e Sociais, Sistemas de Saúde, Sociedades”, situada em Marselha. 48 Benin, Botsuana, Burkina-Faso, Burundi, Camarões, República do Congo, Costa do Marfim, Gabão, Malawi, Mali, Nigéria, Quênia e Togo. 49 A média geométrica anual foi obtida a partir das cotações do dólar americano conforme valores publicados no site do Banco Central (disponível em : http://www.bcb.gov.br). 50 O preço da dose diária equivale ao preço pago por uma unidade do medicamento (comprimido, cápsula, ou injeção) multiplicado pelo número de unidades necessárias para compor a dose diária recomendada pelo Ministério da Saúde. 51 Descontinuado pelo Ministério da Saúde em 2001. 52 Descontinuado pelo Ministério da Saúde em 2007. 53 O medicamento Ritonavir (RTV) foi excluído da análise pois vem sendo utilizado desde 2000 como potencializador de outros medicamentos da classe dos IP e sua dosagem diária pode variar de acordo com o medicamento coadjuvante. Para os medicamentos da classe IP cujo uso é recomendado junto com o RTV, o cálculo do PDD leva em conta o preço total do medicamento potencializado. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 35 sobre a situação patentária de cada ARV foram obtidos mediante consulta junto a representantes do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), da Anvisa e do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), laboratório farmacêutico oficial, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Ministério da Saúde. A análise estatística se divide em duas partes. A parte descritiva baseia-se no estudo da evolução média do PDD, ponderada pela quantidade de doses diárias (QDD) adquiridas54 dos medicamentos ARV, agrupados por classe terapêutica e por ano. Essa análise é complementada por uma regressão multilinear que visa tomar em conta o impacto das características dos medicamentos e do contexto de compra, enquanto determinantes de preço, ao longo do período estudado. O modelo econométrico empregado inspira-se no modelo encontrado em Luchini et al., 2003 [17] e utiliza o método dos mínimos quadrados. A variável dependente deste modelo consiste no PDD transformado em logaritmo natural (log PDD).55 As variáveis explicativas selecionadas foram: ano da transação, volume de compra, classe terapêutica, situação patentária, idade do ARV e recomendação terapêutica.56 A relevância estatística de cada variável foi examinada a partir do Teste T de Student. Os pacotes estatísticos utilizados foram SPSS (versão 17.0) e Stata Intercooled (versão 10). A variável “ano da transação” compara a mudança de preços no período de 1999 a 2006, tendo como referência o ano de 1998. A inclusão de dummies para cada ano permite ajustar o efeito das demais variáveis inseridas no modelo ao efeito do ano em que teve lugar a transação. O “volume de compra” refere-se à quantidade de doses diárias compradas em cada transação. De acordo com a teoria econômica, tudo o mais constante, volumes mais importantes de compra tendem a ter um impacto negativo sobre os preços. A transformação por logaritmo natural desta variável tem por vantagem permitir interpretar seu coeficiente enquanto a elasticidade do preço em relação ao volume de compra.57 No tocante à “classe terapêutica”, a classe de referência trata-se dos ITRN à qual são comparadas as classes dos ITRNN, IP e IF.58 Quanto à “situação patentária”, para fins da análise, os medicamentos isen54 A média ponderada do PDD dos ARV para cada ano foi obtida dividindo-se a soma do produto da quantidade e do preço de cada transação pelo total da quantidade de doses diárias compradas naquele ano. 55 Tendo em vista que a regressão multilinear pelo método dos mínimos quadrados pressupõe uma distribuição simétrica dos valores tomados pela variável dependente, a variável preço não assumindo valor negativo, a tranformação logarítmica permite aproximá-la a uma distribuição normal (simétrica). 56 O modelo pode ser descrito como : Log PDDi = β0 + Σj=1999:2006 βj Yji + β1LogQDDi + β2NNRTIi + β3PIi + β4FIi + β5Pi + β6Ai + β7Ti +υi ; onde β representa os coeficientes a serem estimados, sendo β0 a constante, Y a variável ano, NNRTI, PI e FI classes terapêuticas, P a variável patente, A idade do medicamento, T uso preferencial no tratamento inicial e υ o termo residual, contendo erros de estimação e varíaveis não incluídas no modelo. À exceção de LogQDD, que é uma variável contínua, todas as demais variáveis explicativas são dummies. 57 A elasticidade (η) do preço em relação ao volume da demanda é dada por : η = q/p x Δp/Δq e se refere a como o preço de um bem responde a variações na quantidade demandada. Se η > |1|, o preço é elástico, pois Δp > Δq. Em contrapartida, se η < |1|, o preço é inelástico, pois Δp < Δq. Assim sendo, quanto mais próximo η de zero, mais inelástico o preço em relação ao volume da compra. 58 Até o final de 2006 apenas essas quatro classes terapêuticas encontravam-se disponíveis no mercado brasileiro. 36 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tos de proteção patentária são: AZT, ddI, ddI EC, 3TC, d4T, NVP, SQV, IDV, sendo os demais protegidos por pedidos de patentes em análise ou por patentes concedidas sobre seu princípio ativo. A variável “idade do ARV” foi construída a partir do número de anos contados da introdução do medicamento de referência no mercado mundial, tendo-se como base o mercado dos Estados Unidos [14]. De acordo com a literatura especializada [28], o preço de um novo medicamento tende a ser mais elevado no ano que segue o seu lançamento. Esse preço se reduz ao longo do tempo, sendo essa redução mais sensível a partir do quinto ano de comercialização, à medida que produtos concorrentes adentram o mercado. Nesse sentido, a variável foi construída separando medicamentos com menos de cinco anos daqueles com cinco anos ou mais. A variável “recomendação terapêutica” tem por base as recomendações brasileiras e diz respeito ao fato de o medicamento constar ou não como opção preferencial para o início do tratamento (i.e., de primeira linha) no ano em que foi feita a transação. IV.2. Resultados Após eliminação das compras referentes a medicamentos de dosagem infantil, dosagem específica para adultos com peso inferior a 60 quilos, Ritonavir (RTV), DFC e doações, os resultados da análise foram obtidos a partir do registro de 371 transações. Em termos gerais, o PDD médio ponderado pela quantidade, atingiu o seu valor mais baixo em 2003 (US$ 2,14), com uma queda de 62% desde 1998, mais acentuada entre 200059 e 2002. Até o final do período estudado, o PDD médio aumentou cerca de 27%, sendo a alta mais importante para os anos de 2004 e 2005. A Figura 1 abaixo ilustra o comportamento do PDD médio ponderado por classe terapêutica entre 1998 e 2006.60 Essa figura confirma uma tendência geral à queda dos preços até 2003, a partir de quando ocorrem oscilações. Vale notar que a presença de picos observados ao longo das curvas está fortemente relacionada ao impacto da incorporação de novos medicamentos pelo SUS, como é o caso do EFV, da classe ITRNN, em 1999, do TDF, da classe ITRN, em 2003 e do Atazanavir, da classe IP, em 2004. Por fim, enquanto o preço médio ponderado das classes ITRN e ITRNN tenderam a uma aproximação no período mais recente, para a classe IP, ainda que a queda do PDD tenha sido da ordem de 50% durante o período avaliado, os preços permaneceram, em média, quase o dobro das duas primeiras. 59 Vale notar que em 2000, a triterapia composta por 2 ITRN + 1 ITRNN ou 1 IP, passou a ser o tratamento de referência no Brasil. Até este ano, a biterapia, composta por 2 ITRN ainda era admitida. 60 Como a Enfuvirtida (T-20) foi incorporado apenas em 2005, a classe IF foi excluída em função do curto período de observação. O PDD médio ponderado do T-20 foi de US$ 45,80 e 44,43 para 2005 e 2006 respectivamente. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 37 Figura 1 – Evolução do PDD por classe terapêutica (1998-2006) 12,00 Total 10,00 ITRN 8,00 US$ ITRNN 6,00 IP 4,00 2,00 06 20 05 20 04 20 03 20 02 20 01 20 00 20 99 19 19 98 0,00 A Tabela 2, a seguir, reproduz o resultado da regressão multilinear sobre o log PDD. À exceção da variável “recomendação terapêutica”, todas as variáveis inseridas no modelo econométrico são estatisticamente significativas.61 Esta análise toma em conta o efeito de cada variável explicativa sobre o LogPDD, ajustado pelo efeito conjunto das demais variáveis presentes no modelo. Tendo como referência o ano de 1998, tudo o mais constante, a regressão multilinear indica uma queda contínua da média de preços até o ano de 2002, observando-se sua gradual retomada ao final do período. Quanto à classe terapêutica, em relação à classe NRTI, a classe NNRTI apresenta um preço em média 17% superior.62 Quando comparado com a classe IP o preço médio mais que dobra e chega a ser 3,6 vezes superior para a classe IF. O volume de compra, ainda que em correlação negativa com o preço, como seria esperado, tem elasticidade muito próxima a zero. Assim sendo, um aumento de 1% na quantidade demandada contribui para uma redução em apenas 0,10% da média de preços. As variáveis de maior impacto sobre o preço de ARV são a situação patentária e a idade do medicamento. Quando comparados os ARV com e sem proteção patentária, os medicamentos patenteados são em média 87% mais caros (p<0,001). Já medicamentos com menos de cinco anos, ou seja, novos, são em média 43% mais caros que os medicamentos mais antigos (p<0,001). Finalmente, o fato de um ARV constar entre os medicamentos preferenciais indicados para tratamento inicial não exerce impacto significativo sobre o preço (p=0.125). 61 A partir do teste t de Student, onde o valor p encontrado é inferior a 5% (α = 0,05). 62 O valor p assumido para essa variável encontra-se bastante próximo ao limite do nível de significância de 5%. 38 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Tabela 2 – Regressão multilinear do log PDD dos medicamentos ARV comprados pelo Brasil: 1998-2006 (N=371) Variável estimada: log PDD Desvio padrão Valor t Valor p estimado 2,621 0,374 7,009 < 0,001 1999 - 0,400 0,140 - 2,855 0,005 2000 - 0,457 0,139 - 3,286 0,001 2001 - 0,963 0,138 - 7,002 < 0,001 2002 - 1,222 0,132 - 9,222 < 0,001 2003 - 1,216 0,136 - 8,941 < 0,001 2004 - 1,255 0,134 - 9,378 < 0,001 2005 - 1,113 0,127 - 8,757 < 0,001 2006 - 0,998 0,148 - 6,728 < 0,001 Volume de compra (log QDD) - 0,097 0,026 - 3,770 < 0,001 ITRNN 0,177 0,088 2,000 0,046 IP 1,200 0,076 15,737 < 0,001 IF 2,596 0,313 8,293 < 0,001 0,873 0,084 10,430 < 0,001 - 0,429 0,088 - 4,871 < 0,001 - 0,091 0,059 - 1,536 0,125 (constante) Parâmetro Ano da transação (ref. 1998) Classe terapêutica (ref. ITRN) Situação patentária (ref. ARV sem patente) ARV com patente pendente ou concedida Idade do ARV (ref. < 5 anos) 5 anos ou mais Recomendação terapêutica (ref. outro uso) ARV de uso preferencial no tratamentto inicial R2 ajustado: 0,80 IV.3. Discussão Quando examinada a tendência de comportamento dos preços médios ponderados pela quantidade, o ano de 2003 representa um ponto de inflexão na queda que vinha sendo observada desde 1998. Quando tomado em conta o modelo econométrico, essa queda se mantém até o ano de 2002, não havendo diferença estatística entre os coeficientes estimados de 2003 a 2005. Para o ano de 2006, a partir do teste de igualdade dos coeficientes estimados, observa-se uma fraca tendência Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 39 à retomada da alta de preços (p=0,063). Muito embora não se possa afirmar, com base exclusivamente nesta análise, que haja uma tendência à alta de preços, os dados sugerem que o período de queda vertiginosa observado até 2002 se esgotou. Cabe salientar o papel da competição de medicamentos ARV produzidos localmente sobre a queda dos preços no primeiro período, que contribuiu para a expansão da cobertura da TARV não só no Brasil como em outros países em desenvolvimento [29]. Não obstante, o período mais recente combina um aumento de preços desses produtos no mercado interno com a apreciação do Real em relação à moeda americana, cujo maior impacto pode ser observado em relação ao PDD da classe ITRN (Figura 1). O aumento geral dos preços nos últimos anos reflete principalmente a crescente incorporação de novos medicamentos, mais potentes porém sujeitos à proteção patentária, em substituição a medicamentos mais antigos, que apresentam perfil de toxicidade menos adequados. Esses medicamentos ocupam um peso cada vez maior nas compras do Ministério da Saúde, consoante ao processo de revisão e atualização das recomendações terapêuticas, que prioriza a qualidade do tratamento em relação ao preço. Nesse sentido, num contexto dinâmico de aperfeiçoamento tecnológico, onde surgem novas opções de tratamento que, por sua vez, alimentam o processo de revisão das recomendações terapêuticas vigentes, o desafio que se segue consiste em conciliar cobertura e qualidade. A ausência de competição de genéricos no caso de medicamentos mais novos, em função da existência de direitos de propriedade intelectual, exerce um impacto extraordinário sobre os preços, sendo estes ainda mais importantes para novos medicamentos. Nesse sentido, a intensificação da proteção patentária tende a agravar o problema do acesso às TARV, se não comprometendo sua continuidade, podendo, num futuro próximo, colocar em risco a alta qualidade dos tratamentos oferecidos pelo SUS. Uma resposta a esse desafio revela-se premente tanto para o Brasil como para outros países em desenvolvimento onde não somente os recursos financeiros são escassos, mas também o contingente de PVHA elegíveis à TARV é considerável. Dentre as medidas vislumbradas para a contenção dos gastos, muitas já vêm sendo colocadas em prática pelo governo brasileiro: a produção local de medicamentos não passíveis de proteção patentária, o licenciamento compulsório e o uso de seu poder de barganha para obter preços mais favoráveis na compra de medicamentos importados. Infelizmente, as flexibilidades previstas pelo acordo TRIPS, em que se inclui o licenciamento compulsório, têm alcance limitado, especialmente face a uma nova realidade em que os direitos de propriedade intelectual sobre princípios ativos, entre outros produtos e processos químico-farmacêuticos, ganharam terreno na China e na Índia, em 2002 e 2005 respectivamente. Além disso, cabe destacar que a solução apresentada pelo uso da licença compulsória é de caráter temporário. Em vista das novas fragilidades que se apresentam no que tange à luta pelo acesso à TARV nos países em desenvolvimento, cabe reforçar o apoio junto à opi- 40 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas nião pública mundial no sentido de conter a expansão do regime de propriedade intelectual e mesmo exercer pressão, tanto em nível nacional quanto internacional, em favor de uma revisão mais equilibrada desse regime. De outro modo, como mostra a experiência brasileira, deve-se continuar investindo na capacidade produtiva local, tanto a partir da negociação de licenças voluntárias quanto no fomento à P&D e de recursos humanos mais qualificados; estimular a dispensação racional de medicamentos ARV, levando-se em conta sua relação custo-efetividade a longo prazo; e, além disso, fortalecer o sistema de exame de pedidos de patentes, sobretudo, aperfeiçoando o mecanismo para apresentação de subsídios ao exame de pedidos de patente quando de sua não elegibilidade. V. Conclusão O governo brasileiro logrou, ao longo da presente década, agir de maneira a reduzir o impacto dos preços dos medicamentos ARV sobre os objetivos de expansão da política de cobertura universal e gratuita das PVHA. Vale reconhecer que o Brasil contou com um cenário nacional e internacional bastante favorável. A exploração da capacidade industrial interna aliada à disponibilidade de fontes alternativas de matéria-prima, como a China e a Índia, permitiu a produção local de medicamentos ARV mais baratos que os oferecidos pelas empresas farmacêuticas multinacionais. Ao lado disso, o reconhecimento que a política brasileira inspirou junto à opinião pública mundial concedeu ao país uma posição privilegiada no processo de negociação com os laboratórios. De fato, a queda substancial dos preços de ARV, observada no início desta década, trouxe enorme benefício a outros países em desenvolvimento e deixou claro a importância do recurso a medicamentos genéricos. A análise da evolução dos preços dos medicamentos ARV no mercado brasileiro mostra que, no período mais recente, o processo de queda perdeu ritmo e começa a apresentar indícios de retomada. O enrijecimento do regime de propriedade intelectual restringe cada vez mais o recurso a medicamentos genéricos. Ainda que o acordo TRIPS apresente flexibilidades e que os detentores de direitos possam unilateralmente oferecer concessões aos países com menos recursos, as soluções oferecidas têm caráter precário. No período mais recente, as recomendações terapêuticas da OMS passam por um processo de revisão e têm como resultado imediato não somente o aumento do número de pacientes elegíveis ao tratamento,63 como também a adoção de medicamentos mais novos e mais potentes que, em alguns países em desenvolvimento, são patenteados. Desta forma, o impacto da proteção patentária sobre o preço dos medicamentos ARV continua sendo uma barreira importante ao acesso às TARV nesses países. Iniciativas devem ser tomadas 63 Uma vez que propõem o aumento da taxa de CD4 a partir do qual a TARV deve ser iniciada. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 41 no sentido de fortalecer os sistemas jurídico e produtivo internos, como também, de formar uma posição estratégica junto a outros países para conter a expansão dos direitos de propriedade intelectual e promover o equilíbrio entre interesses econômicos e sociais. Referências bibliográficas 1. UNAIDS. UNAIDS report on the global Aids epidemic 2010. Genebra: UNAIDS, 2010. 2. OMS, UNAIDS e UNICEF. Towards universal access: scaling up priority HIV/AIDS interventions in the health sector: progress report 2008. Genebra: WHO Press, 2008. 3. OMS, UNAIDS e UNICEF. Towards universal access: scaling up priority HIV/AIDS interventions in the health sector: progress report 2010. Genebra: WHO Press, 2010. 4. TEIXEIRA, P. R.; VITORIA, M. A.; BARCAROLO, J. The Brazilian experience in providing universal access to antirretroviral therapy. In: MOATTI, J. P.; CORIAT, B.; SOUTEYRE, Y. et al. (ed.). 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Diário Oficial da União, 2001. 24. GRANGEIRO, A.; TEIXEIRA, L. B.; BASTOS, F. I. et al. Sustentabilidade da política de acesso a medicamentos antirretrovirais no Brasil. Revista de Saúde Pública, 40(S): 60-69, 2006. 25. MEINERS, C. M. M. A. Patentes farmacêuticas e saúde publica: desafios à política brasileira de acesso ao tratamento antirretroviral. Cadernos de Saúde Pública, 24(7): 1467-78, 2008. 26. NUNN, A. S.; FONSECA, E. M.; BASTOS, F. I. et al. Evolution of antirretroviral drug costs in Brazil in the context of free and universal access to AIDS treatment. PLoS Medicine, 4(11): 1804-17, 2007. 27. LAGO, R.; COSTA, N. R. Antirretroviral manufacturers and the challenge of universal access to drugs through the Brazilian National STD/AIDS Program. Cadernos de Saúde Pública, 25(10): 2273-84, 2009. Capítulo 1. Estrutura de mercado e evolução dos preços dos medicamentos antirretrovirais 43 28. LU, Z. J.; COMANOR, W. S. Strategic pricing of new pharmaceuticals. The Review of Economics and Statistics, 80(1): 108-18, 1998. 29. CORIAT, B.; ORSI, F.; D’ALMEIDA, C. TRIPS and the international public health controversies: issues and challenges. Industrial and Corporate Change, 15(6): 1033-62, 2006. 44 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas CAPÍTULO 2 Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha: estudo feito a partir da experiência brasileira em matéria de tratamentos antirretrovirais Sandrine Loubière Julien Chauveau David Zombre Emily Catapano Ruiz Resumo: O objetivo deste estudo é avaliar a relação custo-eficácia de dois esquemas de primeira linha (AZT+3TC+EFV versus AZT+3TC+LPV/r) em pacientes HIV positivos atendidos no âmbito do Programa Nacional de DST e Aids no Brasil. Os dados se referem a uma coorte retrospectiva de adultos HIV+, acompanhados pelo Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo (CRT SP) entre 1998 e 2008. O tempo de tratamento antes da mudança de tratamento de primeira linha foi avaliado para cada grupo. Os resultados evidenciam uma vantagem clínica e econômica da estratégia EFV sobre a estratégia LPV/r. Somente uma redução de preço do LPV/r teria vantagem sobre a nítida dominância do EFV. Os resultados da presente análise econômica, conjugados com estudos feitos em prazo mais extenso são indispensáveis e serão considerados para a definição das recomendações para as políticas públicas em matéria de tratamento do HIV/Aids no Brasil e também nos países em desenvolvimento. Palavras-chave: HIV/AIDS, HAART, Custo-eficácia, Brasil, Lopinavir, Efavirenz I. Introdução O primeiro caso de Aids no Brasil foi registrado em 1982 e, na época onde muitos países lutavam para frear a propagação do HIV e oferecer o acesso ao tratamento para as pessoas vivendo com o HIV/Aids, a resposta do Brasil foi considerada como um êxito [1]. Desde a segunda metade dos anos 90, o Brasil tornou-se o primeiro país de recursos limitados a oferecer a todos o acesso gratuito aos tratamentos antirretrovirais (ART) [2, 3]. Em 1996, as terapias de alta potência (HAART) foram desenvolvidas e revolucionaram o tratamento do HIV. Mais uma vez, esses tratamentos foram disponibilizados para todos os pacientes. Desde 1980, em torno de meio milhão de casos foram notificados e, atualmente, mais de 180.000 pacientes afetados pelo HIV/Aids receberam algum tipo de multiterapia antirretroviral no Brasil [4, 5]. Este nível de cobertura terapêutica é excepcional para um país de renda intermediária como o Brasil e se aproxima mais do nível de um país industrializado. Assim, o Brasil conseguiu estabilizar a prevalência da doença em 0,6% desde 2000 e reduzir em 50% a taxa de mortalidade ligada ao HIV/Aids [5]. Essa rápida expansão da cobertura terapêutica é devida, em parte, à indústria farmacêutica brasileira, que fabrica nacionalmente antirretrovirais (ARV) genéricos, comprados pelo governo a preços inferiores aos preços dos ARV no mercado internacional [6]. Além disso, houve uma pressão muito forte sobre as companhias farmacêuticas internacionais para obter reduções de preços. Uma ferramenta muito útil para essas negociações reside em uma cláusula do acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual (acordos ADPIC) da OMS, oferecendo aos países em desenvolvimento a possibilidade de emitir licenças compulsórias para os medicamentos. Essas licenças compulsórias permitem aos países “quebrar” a patente desses medicamentos para que eles possam ser produzidos ou importados como genéricos. Cumprindo o seu compromisso, desde 1996 o Brasil desenvolve as suas próprias recomendações nacionais para o tratamento e o manejo dos pacientes afetados pelo HIV/Aids [1]. A experiência dos programas nacionais de acesso aos ARV nos países com recursos escassos, entre os quais o Brasil serviu de exemplo, ressalta a necessidade de encontrar um equilíbrio entre a efetividade dos programas, a extensão da cobertura para um número crescente de pacientes e a complexidade das multiterapias atuais exigindo 2a e 3a linhas terapêuticas, mais caras [7,8]. Um dos maiores desafios a ser enfrentado nos próximos anos é representado pela administração das falhas terapêuticas e da passagem para a 2ª linha de tratamento antirretroviral nos países com recursos limitados. Em um contexto de escassez de recursos, o aumento preocupante dos gastos ligados à chegada dos tratamentos de 2ª linha, patenteados na grande maioria, irá provavelmente acentuar ainda mais as imposições orçamentárias já existentes e reduzir de maneira significativa o acesso aos tratamentos eficazes nesses países. Neste contexto, a definição de estratégias de primeira linha aparece como uma prioridade; estas estratégias seriam as mais adequadas para atender à exigência de custo-eficácia, assegurando uma resposta inicial ao desafio da sustentabilidade do acesso universal ao tratamento nos países pobres. O objetivo do nosso estudo é de avaliar a eficácia e a relação custo-eficácia de dois tratamentos de primeira linha: início com triterapia incluindo um inibidor da transcriptase reversa não análogo de nucleosídeo (INNRT) e dois inibidores da transcriptase reversa análogos de nucleosídeos (INRT) versus triterapia associando 46 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas um inibidor de protease com “booster” de ritonavir (IP/r) e dois INRT, com especial atenção para o subcaso de esquemas incluindo o efavirenz (EFV) para a classe dos INNRT e o lopinavir/ritonavir (LPV/r) para a classe dos IP/r. Optamos pela comparação mais específica entre esses dois medicamentos pelos motivos seguintes: em primeiro lugar, as recomendações brasileiras de 2008 para o tratamento antirretroviral para os adultos baseiam-se nos dois esquemas seguintes: 1) a associação de 2INRT+1INNRT; o EFV sendo o INNRT de preferência comparado com a nevirapina (NVP); 2) a associação 2INRT+1IP/r; LPV/r e o atazanavir (ATV) sendo ambos recomendados. Um estudo feito pelo serviço de epidemiologia do CRT evidencia que, entre 2002 e 2005, as combinações zidovudina+lamivudina (AZT+3TC)+EFV e AZT+3TC+LPV/r foram os esquemas mais prescritos no CRT. Além disso, EFV e LPV/r foram os objetos de ameaça de licença compulsória no Brasil. Tal ameaça não foi bem-sucedida para o Kaletra,(LPV/r): um acordo foi assinado com a Abbott mas, para o efavirenz, produzido pelo laboratório Merck, o Brasil emitiu, em maio de 2007, uma licença compulsória permitindo a importação de versões genéricas desse medicamento ou a produção local pela indústria farmacêutica nacional [9]. Em 1999, o EFV foi incluído nas recomendações brasileiras de tratamentos de primeira linha e o LPV/r em 2001. Além disso, o LPV/r apresenta algumas vantagens que devem ser mencionadas: conservação sem refrigeração, nenhuma restrição alimentar, resistência que se desenvolve menos rapidamente do que no caso do EFV [10]. Além disso, o LPV/r é oferecido para os países em desenvolvimento a preços reduzidos, no âmbito do programa nacional para o acesso ao tratamento [11]. Por fim, estudos clínicos recentes evidenciaram uma melhor resposta clínica com o EFV, comparado ao LPV/r [12], com uma resposta imunológica idêntica, até levemente melhor com o EFV [10], apesar de uma meta-análise indicar que a resposta virológica é similar nas duas estratégias e não mostrar diferença significativa entre o EFV e o LPV/r quanto à mortalidade ou evolução da doença [13]. No entanto, a maior desvantagem do EFV é a fraca barreira genética, que favorece resistências rápidas aos INNRT e aos INRT. Tais resistências podem ter um efeito negativo sobre a qualidade de vida dos pacientes HIV+ [14] e aumentar o custo global do seu manejo [15]. Na seção seguinte, apresentamos a amostra de estudo e os métodos de coleta dos dados. As técnicas econômicas e estatísticas utilizadas foram descritas na segunda seção. Os resultados são então apresentados e debatidos na terceira e quarta seções. Na última parte do documento, analisamos as implicações de nossas conclusões para os pesquisadores e os detentores do poder de decisão. Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha 47 II. Metodologia de análise II.1.Definição da amostra e critérios de inclusão O Centro de Referência e Treinamento em Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids de São Paulo (CRT-DST/Aids) é um complexo sanitário64 do município de São Paulo (SP) e constitui um dos centros de referência para o atendimento das pessoas portadoras do HIV. Criado em 1988, ele atende tanto os pacientes para novas consultas quanto aqueles provenientes de outros serviços ou hospitais do Estado, além de realizar pesquisas visando o desenvolvimento ou a integração de novas tecnologias para a prevenção da Aids e seu tratamento no âmbito do sistema público de saúde do Brasil. O Centro é a sede do Programa Estadual DST/Aids de SP. O CRT-SP acolhe todos os dias em torno de 200 pacientes infectados pelo HIV/ Aids, residentes no município de São Paulo ou oriundos de outros serviços ou centros de atendimento do Estado. As análises aqui apresentadas se referem exclusivamente aos pacientes tratados com multiterapias ARV e cujo acompanhamento é feito no CRT. Em 2007, a fila ativa do CRT incluía 4.750 pacientes. Por ocasião de cada consulta dos pacientes em tratamento, o esquema terapêutico prescrito é sistematicamente registrado, bem como um conjunto de dados sociodemográficos, clínicos e imunológicos. O serviço de vigilância epidemiológica do CRT desenvolveu um sistema de informação semiautomatizado com máscara de entrada das informações contidas nos prontuários médicos dos pacientes. Uma equipe de enfermeiros e de médicos do serviço de vigilância epidemiológica é encarregada da entrada e da coleta dos dados. Desde 2000, este registro é feito diariamente como rotina para os pacientes recém-matriculados no CRT, aqueles diagnosticados como soropositivos ou com tuberculose pelo laboratório do CRT, aqueles que são atendidos no hospital-dia (serviço de internação parcial), aqueles que evoluem para óbito e as gestantes e crianças. Para serem incluídos na nossa análise retrospectiva como “intenção de tratar”, os pacientes deveriam atender a quatro critérios seguintes: (1) ter recebido um dos dois esquemas de primeira linha seguintes: AZT+3TC+EFV ou AZT+3TC+LPV/r, (2) ter 18 anos ou mais, (3) ter iniciado o tratamento no CRT de São Paulo entre 2002 e 2005, e (4) ser virgem de tratamento na época do início de um dos dois esquemas HAART considerados para o estudo. 64 Hospital-dia e alguns quartos disponíveis para atendimento durante várias noites, clínica geral, medicina especializada como o serviço de doenças infecciosas, consultas externas para DST, CTA etc. 48 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas II.2. Escolha do critério principal de eficácia Escolhemos como critério o tempo com o mesmo esquema terapêutico até a mudança de tratamento. Na ausência de definição exata de primeira e segunda linha nas recomendações brasileiras que não diferenciam os esquemas em termos de linhas terapêuticas, consideramos toda mudança de molécula como mudança de tratamento (seja ele definido a priori em razão de uma falha virológica ou de uma adaptação exigida pela ocorrência de efeitos indesejáveis e/ou de toxicidade). A variável elaborada “tempo com o mesmo tratamento antes da mudança de tratamento” foi calculada a partir da data de início do tratamento HAART até a data da ocorrência da mudança de tratamento. Para aqueles que não trocaram de tratamento no período de observação igual a três anos a partir da inclusão no estudo, os dados foram bloqueados na data correspondente à seguinte ocorrência: data da última consulta ou data do último contato com o paciente. Os estágios clínicos da OMS foram utilizados para definir os estágios da doença para cada paciente. II.3. Recursos consumidos e valorização As informações sobre o consumo de cuidados foram coletadas a partir da base de dados do serviço de vigilância epidemiológica do CRT e, de maneira pontual, a partir dos prontuários médicos dos pacientes. Os dados referentes aos exames laboratoriais e clínicos, bem como aqueles relativos ao número e duração das internações e ao número de consultas foram coletados. Os dados sobre a contagem de CD4 e a carga viral, realizada durante o período observado, foram coletados por meio do cruzamento da base de dados do serviço de vigilância epidemiológica do CRT e a base nacional SISCEL (Sistema de Controle de Exames Laboratoriais). Os dados sobre o custo unitário de uma internação completa (estada incluindo as despesas de hotel e as despesas gerais), bem como o custo unitário de uma consulta médica em ambulatório e no serviço especializado, o custo dos medicamentos contra a tuberculose e o custo dos exames laboratoriais e clínicos foram calculados a partir das informações contábeis do CRT. O custo dos esquemas terapêuticos foi calculado multiplicando o custo unitário de uma dose diária de cada componente do tratamento inicial pelo número de dias de tratamento. Os preços dos medicamentos antirretrovirais são provenientes do Programa Nacional de DST e Aids. Os custos expressados em real brasileiro em 2008 foram convertidos em US$, na base do câmbio médio vigente em 2008 (1 US$= 1,833 real: Fonte: FMI Bases de Dados Estatísticos, 2008). II.4. Análises estatística e econômica Foram utilizados o método de Kaplan-Meier e o teste log-rank para elaborar e comparar a sobrevida nos dois grupos. Um processo de imputação múltipla foi usado Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha 49 para controlar os dados faltantes. As análises foram ajustadas sobre um conjunto de variáveis: o sexo, a idade, a taxa de CD4 e o estágio da Aids no início. A análise de sobrevida foi estratificada sobre o número inicial de CD4(CD4<=350 células/mm3, CD4>350 células/mm3). Além disso, uma análise de sobrevida realizada pelo serviço epidemiológico do CRT na base 1988-2005 evidencia que desde 2001 nenhuma associação significativa entre fatores sociodemográficos e clínicos e a escolha por um início com um INNRT ou um IP/r foi encontrada (resultados não publicados). Desenvolvemos um modelo de Cox para determinar os fatores que são associados ao tempo de permanência com o mesmo tratamento antes de mudar, efetuando um controle sobre um conjunto de variáveis específicas. Extrapolamos o tempo de tratamento antes da falha além do período de acompanhamento de três anos para calcular a duração média antes da falha do tratamento em cada grupo. Essa extrapolação foi realizada a partir de uma distribuição paramétrica da variável “duração do tratamento antes da falência”, chamada distribuição de Weibull. Os cálculos foram efetuados com softwares SPSS (versão 15; SPSS sistema) e STATA (versão 10; Intercooled Stata). A média e o intervalo de confiança de 95% (IC 95%) das variáveis de consumo de cuidados bem como o custo total foram avaliados por paciente-ano e comparados entre os dois grupos. A avaliação econômica foi conduzida levando em conta o sistema de saúde. A razão custo-eficácia incremental (ICER) entre o esquema incluindo o EFV e o esquema incluindo o LPV/r sobre os três anos de acompanhamento da coorte foi calculada. O numerador foi definido como a diferença de custo total por paciente-ano entre os dois grupos e o denominador como a diferença sobre o critério de eficácia considerado, ou seja, a duração do tratamento antes da falha. Uma análise de sensibilidade foi conduzida para avaliar a variação dos ICER em função das variações dos parâmetros chave da análise. Mudamos o valor da variável duração do tratamento antes da falha dentro dos intervalos de confiança. As variações dos valores dos parâmetros de custo também foram exploradas. Os preços dos tratamentos foram submetidos a uma análise de sensibilidade. III. Resultados III.1. Características sociodemográficas e clínicas da inclusão 360 dos18 561 pacientes positivos para o HIV registrados no CRT na base de dados, entre 1988 e 2005, atendiam aos critérios de inclusão: 279 pacientes receberam AZT+3TC+EFV como primeiro esquema de tratamento (grupo EFV) e 81 pacientes receberam AZT+3TC+LPV/r (grupo LPV/r). Dois pacientes do grupo EFV foram ex- 50 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas cluídos da análise, por apresentarem valores aberrantes para as variáveis de consumo de cuidados. O quadro 1 apresenta as características sócio-demográficas e clínicas dos pacientes na época do início dos seus tratamentos. Mais de 75% dos pacientes são homens. A idade média por ocasião da inclusão é de 36,5 anos. Não havia diferença significativa entre os dois grupos no que diz respeito ao grau de escolaridade, a maioria sendo de nível secundário (58%). Mais da metade (80%) dos pacientes foram diagnosticados com um dos estágios Aids no início do tratamento. Quadro 1 – Características sócio-demográficas e clínicas (N=358) Totais AZT+3TC+EFV AZT+3TC+LPV/r Variáveis N=358 N=279 N=81 p Sexo Feminino 87 (24,3%) 63 (22,7%) 24 (29,6%) 0,20 Masculino 271 (75,7%) 214 (77,3%) 57 (70,4%) Média (SD) 36,5 (8,5) 36,6 (8,4) 36,2 (8,9) 0,67 <= 40 anos 262 (73,2%) 203 (73,3%) 59 (72,8%) 0,94 > 40 anos 96 (26,8%) 74 (26,7%) 22 (27,2%) Orientação sexual Heterossexuais 143 (39,9%) 102 (36,8%) 41 (50,6%) Idade Homo e bissexuais 170 (47,5%) 139 (50,2%) 31 (38,3%) Não informado 45 (12,6%) 36 (13,0%) 9 (11,1%) Raça Branca 244 (68,2%) 184 (66,4%) 60 (74,1%) Outras 114 (31,8%) 93 (33,6%) 21 (25,9%) Grau de escolaridade Primário 152 (42,5%) 114 (41,2%) 38 (46,9%) Segundário ou mais 206 (57,5%) 163 (58,8%) 43 (53,1%) Estágio Aids no início Não 71 (19,8%) 56 (20,2%) 15 (18,5%) Sim 287 (80,2%) 221 (79,8%) 66 (81,5%) 0,08 0,19 0,36 0,74 CD4 no início Média (IIQ) 288 (185-388) 313 (209-416) 204 (130-280) 0,000 ≤ 350 células/mm3 238 (66,5%) 166 (59,9%) 72 (88,9%) <0,0001 > 350 células/mm3 120 (33,5%) 111 (40,1%) 9 (11,1%) Sim 134 (37,4%) 91 (32,9%) 43 (53,1%) Não 224 (62,6%) 186 (67,1%) 38 (46,9%) Mudança de tratamento 0,001 SD: Intervalo-padrão. Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha 51 A mediana de CD4 no início era de 288 células/mm3, 29% dos pacientes apresentando taxas de CD4< 200 células/mm3. A mediana de CD4 no início variava de maneira significativa entre os dois grupos (313 células no grupo EFV vs. 204 células/ mm3 no grupo LPV/r; p<0,0001). III.2. Duração com o mesmo tratamento antes da falha A proporção de pacientes que responderam ao tratamento com 6, 12, 24 e 36 meses foi respectivamente de 94%, 90%, 81% e 80%. A taxa de mortalidade dentro de um período de três anos foi inferior a 6%, não apresentando diferença significativa entre os dois grupos. A metade dos óbitos ocorreu durante os três primeiros meses seguintes ao início. As falhas eram mudanças de classes de medicamentos (43%) ou intensificação do tratamento com adição de uma molécula (1%). A taxa de falha foi bem mais importante no grupo LPV/r do que no grupo EFV (53% contra 33% ; p = 0,001). A mediana de sobrevida no período de observação foi de 3,0 anos (IQR: 0,9-3,0) no grupo EFV e de 2,0 anos (IIQ:0,2-3,0) no grupo LPV/r; do ponto de vista estatístico, essa diferença foi significativa (teste log-rank, chi2 = 13,4 ; p <0,0001). A diferença de duração do tratamento antes da falha entre os grupos EFV e LPV/r foi igualmente significativa na faixa CD4<=350 células/mm3 (2,8 vs. 1,6 anos; chi2 = 8,6; p <0,0001), mas não significativa na faixa CD4>350 células/mm3. O modelo de Cox identificou dois fatores associados à “duração do tratamento antes da falha”: estar em tratamento com LPV/r multiplica por 1,7 o risco instantâneo de mudar de tratamento (HR: 1,7 IC 95%: 1,3 - 2,4; p = 0,004); ter mais de 40 anos multiplica esse risco por 1,5(HR: 1,5 (1,1 - 2,0); p = 0,04); enfim, apesar de não ser significativo (p>0,05), o fato de iniciar o tratamento no nível de CD4<=350 células/mm3 multiplica esse risco por 1,4(HR: 1,4 (1,0 - 2,0); p = 0,08) (Quadro 2). A partir da distribuição paramétrica de Weibull, a mediana da duração com o mesmo tratamento antes da falha era alcançada entre 20,2 e 17,7 anos no grupo EFV, conforme a idade do paciente por ocasião do início (<40 e ≥40 anos, respectivamente), em comparação com 16,7 e 15,0 anos no grupo LPV/r, respectivamente. Quadro 2 – Modelo de Cox Variáveis Avaliação de β Intervalo padrão β Hazard razão=exp(β) IC 95% p Homem 0,27 0,25 1,3 (0,8 – 2,0) 0,28 Idade >40 anos 0,38 0,19 1,5 (1,1 – 2,0) 0,04 Grau de escolaridade primário -0,06 0,19 0,9 (0,7 – 1,3) 0,72 Raça branca 0,18 0,20 1,2 (0,9 – 1,7) 0,35 52 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Variáveis Avaliação de β Intervalo padrão β Hazard razão=exp(β) IC 95% p Heterossexuais 0,18 0,24 1,2 (0,8 – 1,8) 0,46 Episódio de uso de droga injetável 0,05 0,25 1,1 (0,7 – 1,6) 0,84 Iniciar com AZT+3TC+LPV/r 0,56 0,19 1,7 (1,3 – 2,4) 0,004 CD4≤350 células/mm3 no início 0,35 0,20 1,4 (1,0 – 2,0) 0,08 Estágio Aids no início 0,06 0,21 1,1 (0,7 – 1,5) 0,77 2002 -0,31 0,26 0,7 (0,5 – 1,1) 0,25 2003 -0,07 0,22 0,9 (0,6 – 1,3) 0,74 2004 -0,33 0,26 0,7 (0,5 – 1,1) 0,20 Ano do início IC: intervalo de confiança. III.3. Os custos O número médio de internações, o número de consultas e de exames por pacienteano não apresentou diferença significativa entre os dois grupos. Em média, dentro de cada grupo, os pacientes fizeram uma consulta por mês e uma contagem de CD4 e de carga viral a cada seis meses. 14% dos pacientes foram internados, com uma média de uma internação por ano de acompanhamento. A média dos custos de manejo (sem os ARV) foi de US$ 465 por paciente-ano, esses custos variando entre US$ 408 para os pacientes com EFV e US$ 648 por paciente-ano para aqueles com LPV/r. Levando em conta os custos dos ARV, a média do custo total foi bem mais elevada no grupo LPV/r (2184 US$ vs 1108 US$ por paciente-ano, respectivamente). Os custos dos ARV representaram 79% vs 82% do custo total por paciente durante o período considerado, no grupo EFV e no grupo LPV/r, respectivamente. Os pacientes com uma contagem de CD4 ≤ 350 células/mm3 no início apresentaram um custo de manejo bem mais elevado (US$ 1486 por paciente-ano), comparados com os pacientes que tinham iniciado com CD4> 350 /mm3 (US$ 1033 por paciente-ano) p< 0,01). III.4. A razão custo-eficácia O tratamento de primeira linha associando o EFV apresentou uma maior duração de tratamento antes da falha e um custo menor comparado com o tratamento com LPV/r (Quadro 3). Sendo assim, o tratamento com EFV se apresenta como uma estratégia dominante, possibilitando uma economia financeira para um ganho em “sobrevida”, em qualquer faixa de CD4. Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha 53 A análise de sensibilidade evidenciou resultados sempre favoráveis à dominância nítida do tratamento de primeira linha com EFV sobre o tratamento com LPV/r. Dentro de um cenário onde surgia a hipótese de uma queda do preço do LPV/r de 80%, o tratamento com EFV não seria mais uma estratégia dominante, com o grupo LPV/r se mostrando até mais barato, considerando a alta baixa (75%) de l’IIQ para a variável “duração do tratamento antes da falha”. Quadro 3 – Custo total por paciente-ano, mediana e intervalo interquartil (IIQ) da sobrevida antes da mudança de tratamento (em anos) e custoeficácia da estratégia EFV versus estratégia LPV/r (em dólares 2008) 2INTI+EFV 2INTIs+LPV/r Custos anuais (PPA) 804 1 724 Mediana de sobrevida (anos, IIQ) 3,0 (0,9-3,0) 1,9 (0,2-3,0) ICER (custo por ano de vida ganho) Dominante Todos os pacientes Pacientes com CD4<=350 células/mm3 no início Custos anuais (PPA) 786 1 694 Mediana de sobrevida (anos, IIQ) 2,9 (0,7-3,0) 1,6 (0,2-3,0) ICER (custo por ano de vida ganho) Dominante Pacientes com CD4>350 células/mm3 no início Custos anuais (PPA) 819 1 737 Mediana de sobrevida (anos, IIQ) 3,0 (1,7-3,0) 3,0 (1,3-3,0) ICER (custo por ano de vida ganho) Dominante IV. Discussão Esse estudo fornece uma avaliação única dos resultados e dos custos de um centro de tratamento do HIV/Aids no Brasil. Ela estabelece uma comparação entre uma coorte de pacientes infectados pelo HIV iniciando um tratamento com EFV e uma coorte de pacientes similares ao primeiro grupo no que diz respeito às características imunológicas, clínicas e sociodemográficas, recebendo um tratamento de primeira intenção com um IP associado, o LPV/r. Esta comparação permite verificar que existe um aumento da duração com o mesmo tratamento antes da falha no grupo EFV em relação ao grupo LPV/r; além disso, constatamos custos relativamente diferentes para os ARV entre as duas estratégias (4,27 US$ vs. 1,93 US$ por dia para o esquema associando LPV/r e o esquema com EFV), sem diferença significa- 54 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tiva para as outras categorias de custos. Concluindo, o esquema com EFV é uma estratégia dominante. Conforme certos estudos clínicos [16-18] e avaliações econômicas realizadas em países de baixa renda e baseados sobre dados de observação [19,20] ou sobre modelos de simulação [21-23], o nosso estudo mostra a correlação entre a contagem dos CD4 no início do tratamento e a ocorrência de uma falha, a porcentagem de falhas sendo mais elevada nos pacientes apresentando valores de CD4<=350 células/mm3 no início. Da mesma maneira, o início de um tratamento HAART com mais de 40 anos era associado, no nosso estudo, a um risco mais elevado de falência do tratamento. Esses dois resultados indicam que o início precoce de um tratamento HAART (e, portanto, uma procura mais rápida dos testes para o diagnóstico da infecção pelo HIV) representa uma condição importante para um atendimento mais eficiente da doença HIV/Aids. Isso apresenta um interesse particular nos países de baixa renda, onde a incidência de manifestações oportunistas, incluindo a tuberculose e as infecções bacterianas, é sensivelmente mais elevada que nos países desenvolvidos e poderia ser associada a taxas de mortalidade mais elevadas nos pacientes iniciando um tratamento HAART. Ao contrário, o fato de iniciar uma multiterapia no estágio Aids não influencia de maneira significativa o critério de eficiência considerado. Esse resultado pode ser proveniente de um modo de seleção ligado ao fato de que a maioria dos pacientes da nossa amostra (mais de 80%) iniciaram o tratamento no estágio Aids. A duração com o mesmo tratamento antes da falha, mais elevada no grupo EFV, deve ser avaliada junto com a forte proporção de interrupções terapêuticas nesse mesmo grupo. De fato, mais de 62% das falhas no tratamento no grupo EFV consistia na mudança de classes de medicamentos, passando de um esquema 2INRT+INNRT para um esquema 2INRT+PI/r. No grupo LPV/r, menos de 45% dos pacientes com falha mudaram de classes terapêuticas (p<0,0001). Esses resultados confirmam o risco mais elevado de resistência aos medicamentos antirretrovirais nos tratamentos baseados no EFV [24-26]. O aumento previsto dos custos associados com a passagem para tratamentos de segunda linha ressalta a importância da procura pela melhor estratégia de primeira linha, tanto no aspecto clínico quanto econômico, para contribuir com a definição de políticas de saúde pública eficazes e sustentáveis em longo prazo [27]. No nosso estudo, com o cenário otimista da queda de 80% do preço do LPV/r, seja, US$ 400 por ano para a combinação AZT+3TC+LPV/r, o início de um tratamento de primeira linha com o LPV/r torna-se eficaz do ponto de vista do custo. Caso, tal diminuição dos preços dos medicamentos seja alcançada, o tratamento com o LPV/r poderia apresentar uma boa relação custo-eficácia no Brasil e, provavelmente, nos contextos similares onde, atualmente, esta opção é considerada unicamente como um tratamento de segunda linha. Tal queda é realista? Desde 2002, a parte do orçamento do programa brasileiro de luta contra o HIV/Aids destinada Capítulo 2. Análise custo-eficácia de estratégias terapêuticas de primeira linha 55 à aquisição dos ARV aumentou de maneira significativa com os ARV patenteados [3,18,11]. Na medida em que a patente tende a pressionar os preços para cima, ela pode constituir um obstáculo para a incorporação dos novos ARV pelos países de baixa renda. Sendo assim, a tendência é de excluir novos medicamentos dos esquemas de primeira linha e mesmo de segunda linha, quando existem opções mais baratas apresentando certo grau de eficiência [28]. No entanto, desde 2010 e graças ao acordo assinado entre a Fundação Clinton e a sociedade farmacêutica Matrix, uma coformulação genérica atazanavir (ATV), ritonavir (RTV) associada com uma combinação de dose única de TDF+3TC é disponibilizada ao preço de US$ 425 por paciente e por ano. Este novo tratamento poderia exercer uma pressão decisiva sobre os preços dos medicamentos, da qual os países como o Brasil se beneficiariam [29,30]. A nossa análise tem várias limitações. A mais importante e comum ao conjunto dos estudos de coorte observacionais, consiste na impossibilidade de avaliar o impacto das observações sobre a sobrevida dos pacientes no longo prazo [19,31]. A segunda limitação, também comum a todos os estudos observacionais, é a existência inevitável de desvios de seleção na inclusão dos pacientes nos dois grupos. No entanto, esses estudos permitem avaliar as alternativas de tratamento baseadas na prática e métodos estatísticos foram elaborados para limitar os desvios potenciais. Do mesmo modo, temos que ter cautela na generalização dos resultados, porque um único centro no Brasil foi utilizado para avaliar a eficiência e os custos do tratamento. No estado de São Paulo, 75.000 doentes afetados pelo HIV/Aids encontravam-se em HAART em 2007, tratamentos fornecidos pelo sistema público de saúde, a grande maioria acompanhados em mais de 170 serviços de saúde pública. O CRT integra esta rede de serviços e, atualmente, acompanha cerca de quatro mil pacientes com HIV/Aids. Enfim, os custos avaliados incluem somente os custos diretos; os custos indiretos não foram levados em consideração porque os dados sobre a perda de produtividade não estavam disponíveis. V. Conclusão As conclusões deste estudo evidenciam que a estratégia de primeira linha baseada nos INNRT – no caso o EFV – é a mais adequada, comparada com as estratégias iniciando com um PI/r, tendo em vista os resultados clínicos e a relação custo-eficácia, no contexto do CRT de São Paulo e, provavelmente, em contextos semelhantes no Brasil. Nossos resultados evidenciam também que uma multiterapia iniciada precocemente (quando a contagem de CD4 é superior a 350 células/mm3) tem um efeito positivo sobre a duração com o mesmo tratamento de primeira linha e sobre os custos de manejo. 56 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Referências bibliográficas 1. MINISTRY OF HEALTH. AIDS: the Brazilian experience. Brazil, 2001. 2. OKIE, S. Fighting HIV – lessons from Brazil. N. Engl. J. Med., 354:1977-1981, 2006. 3. GRECO, D. B.; SIMAO, M. Brazilian policy of universal access to Aids treatment: sustainability challenges and perspectives. Aids, 2007, 21 Suppl. 4:S37-45. 4. WHO, UNAIDS, UNICEF. 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São examinadas as atuais restrições na esfera legal da PI, que conduziram a um aumento de preços e ergueram novas barreiras ao acesso nesses países, com implicações éticas e de direitos humanos. São discutidos aqui os possíveis cenários e as perspectivas futuras, analisando as alternativas que surgem no panorama internacional, tais como novos mecanismos de financiamento para as atividades de Pesquisa e Desenvolvimento e iniciativas como o “Pool de Patentes” da UNITAID, permitindo minimizar as consequências das imposições legais e das barreiras para esses produtos. Palavras-Chave: Inovação, Propriedade Intelectual, HIV/Aids, Medicamentos ARV, Países em desenvolvimento. I. Introdução Em um cenário internacional caracterizado por uma forte competitividade e pela crise econômica recente, a implementação efetiva de sistemas nacionais de inovação, os desafios impostos pela regulação e pelo registro de processos e produtos, bem como pelo papel das políticas de propriedade intelectual se apresentam como questões cruciais do know how econômico. Nesse novo ambiente mundial, as economias emergentes como as da China, da Índia, do Brasil e da Rússia, fortalecem a sua capacidade local de formulação de políticas científicas, tecnológicas e industriais adequadas e de regulação dos resultados das atividades científica e tecnológica. Atualmente, essas economias tentam superar as limitações locais no âmbito da regulação, pela implementação de estruturas institucionais e de regulação envolvendo o registro de produtos, a avaliação da propriedade intelectual, a biossegurança e a ética. Assim, durante as duas últimas décadas, novos processos institucionais e legais foram incorporados às estruturas locais de regulação, traduzindo, por um lado, melhoras significativas de sua capacidade local de governo e, de outro lado, um aumento das demandas externas feitas por novos contatos comerciais internacionais. No entanto, um dos principais desafios que esses países, assim como outros países em desenvolvimento, enfrentam atualmente é a implementação de estratégias de política científica, tecnológica e industrial adequadas às condições específicas de cada setor econômico, sendo que as necessidades de regulação e o impacto dos processos de regulação variam muito de um setor para o outro. Especialmente para os setores econômicos ligados à qualidade de vida e à sobrevivência, ou seja, os produtos farmacêuticos e a agricultura, os processos e os impactos da regulação exigem estratégias de governo bem elaboradas e específicas, já que envolvem conceitos sociais e éticos e, nos países desenvolvidos, têm uma forte conotação política envolvendo os Direitos Humanos no que diz respeito ao acesso aos produtos farmacêuticos que salvam vidas e ao acesso à alimentação. No setor farmacêutico, a pandemia da Aids, que afeta 33 milhões de pessoas no mundo, ampliou essas contradições, principalmente depois do período de salvaguarda de 10 anos dos acordos sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio, ADPICs (TRIPS, em inglês) em 2005, aumentando as restrições legais impostas aos produtores de genéricos para a fabricação de medicamentos ARV, nos países em desenvolvimento. Tais restrições contribuem para um aumento significativo do custo do tratamento por paciente. Em consequência, os países em desenvolvimento tornaram-se cada vez mais dependentes das licenças compulsórias e outras “flexibilidades” do acordo ADPIC, para poder enfrentar os preços elevados dos medicamentos ARV [1]. Essas “flexibilidades” revelam-se muitas vezes de difícil aplicação, tendo em vista as pressões política e econômica. Além disso, várias dessas nações sofrem pressões internacionais para concluir acordos de livre comércio draconianos (FTA – Free Trade Agreements), o que impõe limitações para o uso dessas flexibilidades. Sem dúvida, esse novo cenário cria um impasse para a atual estrutura legal internacional da PI e incentiva os governos e as organizações internacionais a buscar estratégias alternativas. Este trabalho analisa de maneira breve as conexões entre os sistemas de inovação, a regulação das atividades de P&D no setor farmacêutico e a propriedade intelectual, discutindo as consequências para os produtores de ARV genéricos e as restrições atuais no âmbito legal da Propriedade Intelectual (PI), que conduziram a um aumento dos preços e ergueram novas barreiras para o acesso, nos países em desenvolvimento. Para concluir, serão examinadas as estratégias alternativas à PI que se apresentam no cenário internacional. 64 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas II. Sistemas de inovação: desafios para as economias emergentes Vários estudos de caso já foram elaborados sobre os sistemas de inovação em diferentes países [2,3]. Estes estudos apontam para uma grande complexidade das relações entre propriedade intelectual e inovação e indicam que levar em consideração as condições locais específicas do setor econômico envolvido, em cada país, parece ser a melhor abordagem dessas relações. A conclusão mais relevante desses estudos é que a propriedade intelectual representa apenas um dos elementos da política de inovação e que, na maioria dos setores econômicos, não há evidência de que ela seja responsável pela miríade de restrições à inovação. Por outro lado, esses estudos indicam que sistemas rígidos de propriedade intelectual limitam o fluxo de informação e atrasam a inovação em alguns setores econômicos específicos. De fato, na pesquisa médica e, em particular, no setor farmacêutico, alguns autores [4,5] apresentam exemplos de atraso na inovação e de redução das aprovações de novos medicamentos, resultantes de uma proteção rígida da PI e outras imposições da regulação. O Brasil e outros países emergentes empenham-se de maneira significativa em incentivar a capacidade local e promover a inovação na área dos produtos para a saúde pública, como os medicamentos ARV e as vacinas contra o HIV. Esses esforços resultaram num aumento considerável das fontes de financiamento destinadas ao desenvolvimento de novos candidatos, preventivos e terapêuticos. Estes países apoiaram também os seus centros de pesquisa de referência nacional, visando, por meio do fortalecimento da infraestrutura clínica e laboratorial, criar condições favoráveis para o desenvolvimento de novos produtos. Essas iniciativas foram fortalecidas pela implementação de normas internacionalmente reconhecidas e de critérios para a capacitação de laboratórios de pesquisa e de centros clínicos engajados na pesquisa e no desenvolvimento. Estes países vêm organizando também redes de pesquisa, cuja atividade é focada na descoberta e na inovação, estimulando a cooperação entre grupos de referência e grupos emergentes e apoiando a sua participação em estudos multicêntricos internacionais. Essas economias vêm efetuando também investimentos estratégicos em infraestrutura tecnológica e recursos humanos qualificados, com o objetivo de construir plataformas tecnológicas para o desenvolvimento dos produtos farmacêuticos, inclusive as vacinas recombinantes, apoiado em recursos humanos especializados. Ao mesmo tempo, elas incentivam a incorporação de novas tecnologias internacionais, por meio de acordos de transferência de tecnologia, adotando procedi- Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 65 mentos para a produção com BPF (Boas Práticas de Fabricação), o que permite o desenvolvimento e a produção de medicamentos e produtos vacinais, pela tecnologia do DNA recombinante, utilizando vetores virais recombinantes, as subunidades de proteína, o uso de proteínas purificadas de DNA plasmídico ou de qualquer outra biotecnologia inovadora esses medicamentos. Esses esforços de transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento, envolvem: o interesse e a possibilidade de execução científica, os aspectos da propriedade intelectual, o mercado, o estabelecimento de sistemas de lotessemente e a produção de lotes consistentes, o controle e a garantia de qualidade, a capacitação de laboratórios para as Boas Práticas de Fabricação e a biossegurança, e estudos clínicos para a validação e o registro dos dados do ensaio. Tais desafios exigem, por parte dos governos federais, negociações para estabelecer as condições dessa transferência, mediante o uso da sua força política e do seu poder de compra governamental. Essas iniciativas de transferência de tecnologia têm o apoio das políticas governamentais, industrial e tecnológica, que garantem os recursos financeiros necessários, já que as novas tecnologias exigem um longo período de desenvolvimento e de produção. Outro resultado importante para os sistemas de inovação é a disponibilidade local de políticas e de mecanismos visando à promoção das parcerias público-privadas. No Brasil, por exemplo, as disposições legais necessárias já existem, como a nova Lei da Inovação, permitindo a aquisição antecipada de inovações tecnológicas e a legislação que regula as Parcerias Público-Privadas. No entanto, existem poucas parcerias efetivamente implantadas. Para isso, é fundamental assegurar, além de uma disponibilidade ocasional de recursos para apoiar a inovação nesses países, um financiamento sustentável de longo prazo, por meio da coordenação interagências e da participação do setor privado. III. Regulação da inovação Os kits de vacinas, produtos farmacêuticos e testes com base na tecnologia do DNA recombinante e outros produtos medicinais modernos são cada vez mais incorporados às rotinas médicas no mundo inteiro, bem como à prevenção, aos diagnósticos e à terapia de várias doenças. Os novos métodos por imagem para as moléculas individuais de DNA, como os microscópios mais potentes capazes de escanear em farmacologia e projetar novos medicamentos antivirais, são muito mais velozes que os métodos tradicionais, fornecendo informações valiosas sobre como esses medicamentos se ligam aos genes. A tecnologia do DNA recombinante possibilitou a descoberta de vacinas mais seguras, eficazes e polivalentes, entre as quais 66 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas convém destacar: as vacinas recombinantes subunidades de segunda geração; as vacinas gênicas e as vacinas vetorizadas por micro-organismos, de terceira geração (genes carregados de DNA plasmídico). Esse cenário pressiona os países desenvolvidos, bem como os países em desenvolvimento, a estabelecer estruturas de regulação efetivas e coordenadas para essas novas tecnologias e protege os consumidores e os inovadores, fornecendo avaliações de qualidade nos campos da biossegurança, da propriedade intelectual, do registro do produto e da avaliação ética. Nos países em desenvolvimento, a implementação dessas estruturas representa um desafio importante, face a um ambiente comercial global em rápida mudança e, sem dúvida, vai introduzir mudanças radicais nos sistemas nacionais para a ciência e a tecnologia, bem como nos sistemas de saúde. IV. Registro de medicamentos ARV O demorado processo desde a criação de um medicamento ARV no laboratório até o seu acesso pelos pacientes é bastante complexo. Antes da introdução de um medicamento no mercado, ele deve ser submetido a vários controles, incluindo o registro do produto, para obter a autorização para ser comercializado, junto a um organismo nacional de regulação competente, em geral o Ministério da Saúde. Essa autorização é uma das condições para que o fabricante possa vender ou distribuir o medicamento nacionalmente. O processo de avaliação demora entre 6 a 24 meses, conforme o país. Em geral, um organismo de regulação nacional examina os dados submetidos pelo fabricante, referentes à eficácia e à segurança do medicamento. Para obter a aprovação para um medicamento ARV como genérico (exigência para qualquer genérico), o fabricante passa por vários estágios de avaliação. Ele deve demonstrar que o produto contém tantas substâncias ativas quanto o original; que ele não contém níveis inaceitáveis de qualquer substância; que é absorvido e distribuído pelo corpo humano do mesmo modo que o original (bioequivalente); que apresenta uma boa conservação; que foi produzido numa fábrica conforme as Boas Práticas de Fabricação (BPF-GMP em inglês). Durante o processo de avaliação, o fabricante pode, eventualmente, ter que fornecer dados complementares ou esclarecimentos sobre o produto. Organizações internacionais, como a OMS (WHO – sigla em inglês) são também solicitadas para conduzir experiências complementares, em resposta às conclusões do responsável pela avaliação. Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 67 Um número cada vez maior de países efetua também uma auditoria BPF das plantas de fabricação e não aceita nenhum medicamento proveniente de plantas que não tenham sido fiscalizadas. Tendo em vista a urgência da pandemia de Aids e a necessidade de registrar e entregar os medicamentos ARV genéricos nos países em desenvolvimento sem abrir mão da qualidade, alguns autores [6] chegaram a sugerir autorizações provisórias emitidas pelas agências de regulação locais para o produto previamente aprovado e/ou previamente qualificado pela OMS evitando recomeçar todo o processo e permitindo o acesso rápido a esses medicamentos nos países mais afetados pelo HIV/Aids. Eles argumentam que o uso dos medicamentos com autorização provisória seria válido a curto prazo e limitado aos serviços públicos de saúde e as organizações não governamentais, sendo regularmente monitorado e controlado. Na opinião desses autores, tal autorização provisória poderia ser confirmada após a conclusão satisfatória da avaliação pelo organismo de regulação ou cancelada, caso exista um motivo qualquer para negar a autorização ao produto. V. Propriedade Intelectual: licença compulsória e outras “flexibilidades” ADPIC Até a metade dos anos 1990, os países em desenvolvimento mais adiantados não forneciam proteção aos produtos farmacêuticos, nem aos produtos agrícolas destinados à alimentação. Essa ausência de proteção era proveniente, por um lado, de uma visão segundo a qual o acúmulo de conhecimento tecnológico da época não era suficiente para motivar a proteção desse conhecimento; por outro lado, existia o argumento de que as barreiras às patentes afetariam de maneira negativa o interesse público em setores sociais críticos. Como resultado da pressão da indústria farmacêutica e dos países desenvolvidos, a entrada forçada do Acordo sobre os ADPIC na Organização Mundial do Comércio, que inclui estes produtos no comércio, mudou totalmente o cenário mundial. Os casos do Brasil e da Tailândia ilustram bem essas novas imposições legais. Os dois países utilizaram as licenças compulsórias e as flexibilidades do Acordo ADPIC para obter reduções de preço significativas dos medicamentos ARV essenciais. Em 2006, a empresa Abbott reduziu o preço do lopinavir/ritonavir (Kaletra) para US$ 500 por paciente/ano para os países africanos pobres, mas tentou impor ao governo da Tailândia uma oferta de US$ 2.967. Em consequência dos protestos dos ativistas, o laboratório baixou o preço para US$ 2.000 para os países de renda média. No entanto, como o preço de custo era de somente US$ 400, o governo da Tailândia decidiu emitir uma licença compulsória. Em represália, a Abbott negou- 68 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas -se a entregar novos medicamentos à Tailândia durante o período da licença compulsória. Em 2007, a Merck decidiu baixar os preços dos ARV na Tailândia (o efavirenz, reduzido a US$ 244 por paciente/ano) depois da decisão do governo de emitir uma licença compulsória para importar um genérico equivalente da Índia. A Merck negou-se a oferecer ao Brasil um preço inferior a US$ 580 e o governo brasileiro emitiu também uma licença compulsória, passando a importar o efavirenz da Índia e estabelecendo as bases de uma futura produção local. O Brasil conseguiu, assim, reduzir custos em quase US$ 30 milhões, e a parcela dos recursos para os medicamentos ARV do Ministério da Saúde destinados ao efavirenz diminuiu de 12% para 4%. No Brasil, em 2005, quatro medicamentos ARV – o efavirenz (Merck, Sharp & Dome) –, o nelfinavir (Roche), o lopinavir/ritonavir (Abbott) e o tenofovir (Gilead Sciences) – representavam mais de 70% do orçamento do Ministério da Saúde para a terapia ARV (15 medicamentos). Como já foi mencionado, o Brasil pagava por esses medicamentos o equivalente a quatro vezes os preços internacionais. Com o aval do presidente da República e do ministro da Saúde, o então Programa Nacional de DST e Aids (hoje Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais) iniciou uma série de consultas com juristas, laboratórios públicos e empresas farmacêuticas nacionais, examinando os processos para emissão de licença compulsória desses medicamentos. Essas consultas provocaram um forte debate político: alguns dos responsáveis por essas políticas e outros atores do processo político sustentaram que a tentativa de emitir licenças compulsórias para vários medicamentos ao mesmo tempo seria um erro, cujas consequências seriam difíceis de administrar, bem como as pressões políticas. Mas o presidente da República decidiu apoiar a decisão e um documento legal foi elaborado pelo Ministério da Saúde declarando o interesse público do lopinavir/ritonavir, fabricado pelo laboratório Abbott e comercializado sob o nome comercial Kaletra. Contudo, nessa fase, o ministro da Saúde, até então favorável à decisão presidencial e não obstante o próprio discurso na Assembleia Mundial de Saúde, em Genebra, em defesa da licença compulsória para os medicamentos ARV, desistiu, para espanto de toda a comunidade, de assinar a licença compulsória para o Kaletra. Em vez disso, insistiu na retomada de negociações infrutíferas sobre as licenças voluntárias do Kaletra e de dois outros medicamentos (o tenofovir e o efavirenz, das firmas Gilead e Merck, respectivamente) e, finalmente, assinou um acordo comercial inaceitável em relação ao Kaletra, beneficiando a Abbott. Sob intensa pressão política e internacional, o ministro tentou justificar essa decisão de última hora invocando a falta de capacidade de produção da indústria nacional. Esse argumento contrariava as estimativas favoráveis do Ministério da Saúde sobre a capacidade farmacêutica nacional, fornecidas pelo Programa Nacional de DST e Aids, mais tarde confirmadas pelas avaliações feitas pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, sigla em inglês), a Fundação Clinton e Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 69 o Grupo de Trabalho sobre a Propriedade Intelectual da Rede Brasileira para a Integração dos Povos (GTPI/REBRIP), atestando a capacidade dos laboratórios públicos brasileiros e das empresas privadas. Isso provocou um debate público, mas, até agora, a licença compulsória do Kaletra não foi emitida. Assim, o Brasil não seguiu a decisão do governo tailandês de emitir uma licença compulsória para o Kaletra, mas, em vez disso e de forma surpreendente, aceitou um acordo draconiano com a Abbott, prejudicando os interesses nacionais. Apesar de várias ameaças e tentativas para emitir licenças compulsórias para os ARV, feitas por vários ministros da Saúde no decorrer da última década, só recentemente uma medida legal teve êxito para um medicamento, o antirretroviral efavirenz, do laboratório Merck. Finalmente, o presidente do Brasil emitiu, em maio de 2007, a licença compulsória para a produção de uma versão genérica do efavirenz, a um custo bem inferior. Segundo as estimativas do governo, essa versão genérica do medicamento pode representar para o Brasil uma economia de US$ 240 milhões até 2012, ano do fim da validade da patente da Merck sobre o efavirenz. Estimativas recentes do governo brasileiro indicam que as negociações de preço e a licença compulsória do efavirenz já resultaram numa redução significativa de preço, representando uma grande economia para o país, em torno de US$ 75 milhões. Em abril de 2007, um mês antes da emissão da licença compulsória, o ministro da Saúde do Brasil havia assinado um decreto anunciando a compra, pelo país, de uma versão genérica do efavirenz de um produtor da Índia, caso a Merck não oferecesse um preço melhor para o medicamento. Conforme esse decreto, o efavirenz é um medicamento de “interesse público”. O Brasil concedeu à Merck um prazo de sete dias para negociar um preço inferior para o medicamento e solicitou uma redução de US$ 1,57 a US$ 0,65 a dose do efavirenz. A Merck não aceitou estas condições e a licença compulsória foi finalmente emitida pelo presidente. As reações das empresas multinacionais e do “Brazil-US Business Council” foram muito fortes. Em contrapartida, as organizações de pacientes de HIV/Aids no mundo inteiro saudaram a decisão do presidente como uma importante vitória. Num relatório publicado depois do anúncio do presidente, a Merck declarou que o Brasil “pode pagar mais caro pelos medicamentos contra o HIV que os países pobres ou aqueles mais afetados pela doença”. Um vice-presidente da Merck declarou que as economias emergentes, caso do Brasil, “devem ajudar o mundo desenvolvido a cobrir os custos de produção dos novos medicamentos e a estabelecer as bases da inovação em medicamentos”. Apesar desses poucos êxitos e de alguns progressos por parte dos dois países em desenvolvimento referentes ao uso da licença compulsória e das flexibilidades, convém destacar que o processo político é complexo: os governos se mostram vulneráveis a represálias e pressões por parte das empresas, dos ativistas e organiza- 70 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas ções do comércio internacional, dificultando a implementação dessa flexibilidade. Alternativas institucionais e legais são imprescindíveis e deveriam ser debatidas. VI. Alternativas: a iniciativa “Pool de Patentes” da UNITAID e outros incentivos em P&D (pesquisa e desenvolvimento) Existe uma conscientização crescente, principalmente nos países desenvolvidos, de que há urgência em reformular o sistema internacional dos Direitos de Propriedade Industrial (IPR, sigla em inglês) e que este deveria ser mais flexível, criando novos mecanismos para remunerar os investimentos feitos pelas empresas e pelos governos na área de pesquisa e desenvolvimento, reduzindo o preço dos produtos de salvaguarda da vida. Ao contrário, algumas sociedades farmacêuticas multinacionais argumentam que é impossível mudar a estrutura internacional existente dos DPI, porque isso afetaria seus enormes investimentos de longo prazo em P&D e, em consequência, a sua capacidade de inovação. Conforme essas empresas, o caso das patentes dos medicamentos ARV reside nos custos muito elevados da introdução no mercado desses novos medicamentos. No entanto, os economistas estimam que as empresas multinacionais são responsáveis por apenas um terço da pesquisa biomédica e do desenvolvimento no mundo, sendo que nos Estados Unidos e em muitos países desenvolvidos a pesquisa nessa área é desenvolvida, em grande parte, nas universidades e centros de pesquisa fortemente apoiados pelos governos federais. Além disso, essas empresas beneficiam-se de altas taxas de incentivos tributários, em torno de 20%, por parte do governo. Os numerosos pacientes vivendo com o HIV/Aids reconhecem os progressos da terapia ARV trazidos ao mercado por essas empresas multinacionais, melhorando a sua qualidade de vida, mas convém ressaltar que as inovações mais significativas nesse setor não são provenientes dessas empresas, e sim dos centros de pesquisa nas universidades e instituições acadêmicas, com um financiamento público considerável. Mecanismos de incentivo foram propostos, tal como o Fundo para a Pesquisa e o Desenvolvimento (P&D Fund), no caso da licença compulsória, com pagamento direto ao titular da patente e uma porcentagem ao P&D Fund, bem como uma participação desse titular ao Fundo [7,8]. No Brasil, esse Fundo foi incorporado a um instrumento legal proposto (mas não assinado) para a licença compulsória dos ARV em 2005. Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 71 Foi elaborado um novo sistema de remuneração para sustentar a inovação, o Fundo de Premiação da Inovação Médica, no qual o mercado dos produtos é distinto do mercado das inovações, podendo esses produtos serem disponibilizados ao público a preço de medicamentos genéricos, enquanto os inovadores beneficiam-se de um sistema diferente [9]. “Pools” para licenciamento de patentes [7] podem também ser criados, como entidades sem fins lucrativos, a título de estratégia de colaboração à gestão coletiva dos direitos de patentes. Recentemente, a UNITAID elaborou e iniciou a implantação de uma promissora Iniciativa de Pool de Patentes. A UNITAID é um dispositivo internacional, sediado em Genebra, na Organização Mundial da Saúde, destinado a facilitar a aquisição de medicamentos para o HIV/Aids, a malária e a tuberculose, criado em 2006 por iniciativa do Brasil e da França com base em mecanismos de financiamento inovadores, ou seja, uma taxa solidária sobre as passagens aéreas. Para a UNITAID, a missão do “Pool de Patentes” é de “reduzir os preços dos medicamentos ARV e apoiar o desenvolvimento e a produção de novas fórmulas já aprovadas (por exemplo, as combinações de dose fixa e os medicamentos pediátricos), permitindo o acesso à propriedade intelectual no caso desses produtos”. O objetivo dessa iniciativa é de abrir os mercados farmacêuticos monopolísticos à competição sobre os genéricos, com os titulares de patentes aceitando de maneira voluntária a licença das patentes pelo “pool” e incentivando a produção local nos países em desenvolvimento. O objetivo é aumentar a disponibilidade dos ARV dos quais necessitam os países em desenvolvimento e os países de renda média. A entidade “Pool de Patentes” é concebida como uma organização independente da UNITAID e como iniciativa voluntária, já que existe um conceito, por parte de alguns governos e ONG, segundo o qual não é possível determinar ou antecipar o resultado final dos acordos de licença nem a cobertura geográfica em vários desses países sem o “Pool de Patentes”, uma vez que eles dependem dos acordos entre os titulares de licença e os licenciados de um país específico. A estrutura da organização e a situação da Iniciativa “Pool de Patentes” ainda está em pauta na UNITAID. Para evitar o pagamento de royalties a patentes duvidosas, prolongando de maneira artificial a vida de patentes de produtos, os acordos de licença do Pool deverão estipular que as patentes não exploradas ou cujo pedido foi indeferido não receberão royalties. A criação de uma nova organização independente está sob análise, já que parece impossível, por motivos legais e administrativos, estabelecer a sede do “Pool de Patentes” da UNITAID na OMS: de fato, esta Organização beneficia-se de imunidades que, junto com outras questões legais, restringem as possibilidades, para os titulares de patentes e os licenciados, de defender os seus direitos por litígio. 72 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Algumas ONG e alguns governos, incluindo o do Brasil, opinaram que o novo cenário político mundial criado por esse novo mecanismo, independente da OMS, poderia dificultar a implementação das flexibilidades do acordo ADPIC. O argumento da UNITAID é que a Iniciativa do “Pool de Patentes” é uma iniciativa voluntária, não possuindo, assim, nenhuma relação com o direito dos países de fazer uso das flexibilidades do acordo ADPIC. Recentemente, surgiram outros novos mecanismos e novas estratégias de incentivo à inovação e destinados às aplicações comerciais de P&D, como a criação de pesquisas comunitárias e iniciativas incentivando o livre acesso ao know how; isso representa também uma alternativa importante para os países emergentes e em desenvolvimento [10]. VII. Acesso aos medicamentos ARV: ética e direitos humanos O cenário mais provável de deterioração do acesso ao tratamento ARV, resultante da crise econômica mundial, na maioria dos países em desenvolvimento em torno de 2015, e particularmente nos países da África, é o maior desafio para as organizações internacionais e os governos. As restrições do acesso ao tratamento que as populações mais pobres afetadas pela pandemia vivenciam sugerem a necessidade urgente de um debate internacional sobre as questões de ética e dos direitos humanos. Convém ressalvar que, durante os cinco últimos anos, várias iniciativas internacionais e locais conseguiram aumentar em quase 10 vezes o acesso ao tratamento [11], beneficiando 4 milhões de pessoas vivendo com o HIV/Aids, por meio da disponibilização de medicamentos ARV a preço reduzido produzidos pela Índia e a China (estes países eram os maiores produtores de princípios ativos e de medicamentos genéricos, favorecendo uma intensa competição sobre os genéricos e reduzindo os seus preços). No entanto, com a adesão desses países ao acordo ADPIC, vários medicamentos são atualmente protegidos por patentes e o ambiente internacional mudou rapidamente, elevando o custo do tratamento por paciente. Segundo relatórios internacionais, a demanda pelo tratamento cresce rapidamente nos países em desenvolvimento e apenas 42% dos 9,5 milhões de pessoas necessitando desse tratamento em 2008 tiveram acesso à terapia. Além disso, vários países passaram da primeira linha aos tratamentos de segunda linha, mais caros, protegidos por patentes. Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 73 Mais ainda, com a recente crise econômica, estima-se que as necessidades mundiais de financiamento para o HIV passarão de US$ 7,4 bilhões a US$ 19,3 bilhões, em 2009. As estimativas da UNITAID, feitas antes da crise econômica, previam um aumento do financiamento mundial de US$ 20 milhões por ano até 2015. Sem dúvida, tal situação será agravada pela recente redução dos recursos nacionais destinados à saúde em muitos países e pela diminuição das contribuições dos agentes de financiamento internacionais. Com certeza, esse cenário de crise terá impacto global, já que a disponibilização de medicamentos de baixo custo pelos produtores de ARV genéricos da Índia e da China era o fator crucial para o tratamento em todo o mundo. O Departamento das DST, Aids e Hepatites Virais tem o respaldo da lei e, desde 1996, garante o acesso ao tratamento e à cobertura da terapia ARV para todos os pacientes com HIV/Aids. Num período de apenas seis anos, de 1996 a 2002, essa política teve como resultado a queda impressionante de 70% da mortalidade e 80% da morbidade, refletidas na redução de 70% das internações, representando para o país uma economia de US$ 2,2 bilhões. Durante a última década, a pesquisa iniciada para produzir localmente alguns medicamentos ARV de primeira geração e para importá-los da China e da Índia permitiu ao Brasil negociar a redução de preços com as empresas farmacêuticas multinacionais. De fato, em alguns países em desenvolvimento, como o Brasil, a possibilidade de introduzir no mercado os medicamentos genéricos foi vista como uma estratégia para derrubar os custos elevados das terapias ARV [12]. De qualquer maneira, convém destacar que, apesar do êxito dessa estratégia de redução de preços, surgiram vários obstáculos depois de 2004, período de novo aumento dos medicamentos, como resultado da introdução de novos medicamentos no mercado, da redução da concorrência e da elevação dos preços dos genéricos. De fato, o declínio acentuado do preço dos medicamentos ARV de primeira linha no mercado internacional e a estratégia de negociação com as empresas farmacêuticas multinacionais, adotada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, contribuíram com uma queda de quase 40% para alguns medicamentos ARV no Brasil durante a última década. No entanto, a introdução no mercado da nova segunda geração e da terceira geração de medicamentos ARV, cada vez mais caros e protegidos por patentes, inverteu essa tendência e limitou as estratégias de negociações de preço por parte do governo brasileiro. Em 2006, esse problema foi agravado pelo crescimento da demanda por medicamentos ARV (180.000 pacientes em tratamento e 20.000 novos pacientes por ano) e, particularmente, pela adesão, em 2005, da Índia e da China ao acordo ADPIC, aumentando os preços dos genéricos, das matérias-primas e dos princípios ativos para os medicamentos ARV importados pelo Brasil. No Brasil, um exemplo perfeito desse impacto da PI sobre os preços é a batalha legal sobre o medicamento ARV tenofovir, que provocou um embate entre o 74 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas governo brasileiro e a empresa Gilead. Sob pressão do Ministério da Saúde e da sociedade civil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) rejeitou o pedido de patente para esse medicamento, argumentando que ele não representava uma invenção. Isso provocou uma queda do preço do medicamento (redução de um terço em 2009 e 2010). Como resultado das intensas mobilizações políticas e das estratégias dirigidas à sustentabilidade da política de acesso universal, o Brasil conseguiu, entre 2003 e 2009, por meio da licença compulsória para o efavirenz, de ameaças de licenças compulsórias para outros medicamentos e de negociações de preços com as empresas multinacionais, reduzir em 25% o custo médio por paciente referente aos medicamentos ARV, apesar da hostilidade crescente do meio legal. É claro, todavia, que isso não justifica a manutenção da sua estrutura legal atual no campo da propriedade intelectual. VIII. Considerações finais As patentes podem contribuir para criar monopólios, acarretando, como consequência, o aumento dos preços e podendo agravar as condições de setores já altamente concentrados, como o segmento dos medicamentos ARV no setor farmacêutico, afetando de maneira significativa a qualidade de vida das pessoas que vivem com HIV/Aids no mundo em desenvolvimento. Nesse setor, a tendência a regimes mais rígidos no que se refere à PI no cenário pós-ADPIC, agravada por acordos na Organização do Comércio Exterior (FTA – Free Trade Agreements) reduz a possibilidade de competição nos países em desenvolvimento, provocando uma escalada dos preços dos medicamentos ARV. Depois do período de salvaguarda de 10 anos do ADPIC, esses países tornaram-se cada vez mais dependentes das licenças compulsórias e de outras “flexibilidades” do acordo ADPIC, sujeitas a represálias políticas e muito difíceis de executar. Além disso, os acordos FTA impuseram a esses países altos níveis de proteção da propriedade intelectual, trazendo ainda mais restrições do que o ADPIC. Esses acordos limitaram as possibilidades de exclusão de uma patente, reduzindo os motivos para uma licença compulsória, e não contêm nenhum dispositivo contra as importações paralelas (permitindo ao titular da patente intentar uma ação contra as importações paralelas). Na maioria desses acordos, a vida útil da patente para os produtos farmacêuticos e químicos é prorrogada, restringindo a introdução de produtos genéricos e exigindo para os genéricos a possibilidade de comercialização para um período de, pelo menos, cinco anos. Esses acordos implementam também uma proteção Capítulo 3. Propriedade Intelectual e Aids nos países em desenvolvimento 75 da patente mais extensa no tempo, em razão de uma patente válida em outro país, mesmo se a patente expira num determinado país. Essas imposições da PI conduziram a um impasse internacional, consequência do crescimento da demanda, ligado à adesão da Índia e da China ao ADPIC e à queda dos recursos financeiros causada pela recente crise econômica. Esses medicamentos atingiram preços elevados oriundos das barreiras legais contra os produtores de genéricos nos países em desenvolvimento. No caso da China, este país modificou recentemente a legislação referente à propriedade intelectual, no objetivo de adequá-la ao Acordo ADPIC, ao qual aderiu na sua entrada na OMC, em 11 de dezembro de 2001. A China incluiu nas suas leis de propriedade intelectual o tratamento nacional, princípio essencial do Acordo ADPIC. Assim sendo, é possível prever um futuro sombrio para a produção dos medicamentos ARV e para o tratamento da Aids no mundo em desenvolvimento, caso a situação atual na área da propriedade intelectual não mude, o que trará consequências para a sustentabilidade do regime internacional atual dos DPI. Sem dúvida, a estrutura legal do Acordo ADPIC teve um enorme impacto sobre a saúde pública nas nações em desenvolvimento e, também, sobre os resultados da pesquisa e do desenvolvimento. As conclusões de algumas pesquisas indicam que, para alguns setores econômicos, DPI rígidos podem impedir o fluxo da informação e, portanto, retardar os progressos da inovação [13]. Isso assume um sentido particularmente verdadeiro para as ciências da Medicina e a Biotecnologia. Conforme Palombi [4], “observar como o sistema de patente interfere agora num território até então sagrado, a natureza, só fortalece os argumentos contra a continuação do sistema mundial de patentes. Isso levou à proliferação de patentes sobre milhares de materiais biológicos que não representam e nunca representaram invenções”. Esse aspecto deteve, também, o fluxo da informação nas Ciências Biomédicas, necessárias ao desenvolvimento dos produtos farmacêuticos essenciais. Apesar da evidência das consequências negativas do sistema da PI nos setores farmacêutico e da biotecnologia, uma questão crucial persiste: considerando que este sistema desfigurado vigora ainda, sem dúvida agravado durante as duas últimas décadas, como podemos conceber uma alternativa para o regime internacional atual da PI aceitável pelos atores mundiais? Alguns autores [14,15] consideram que as flexibilidades do Acordo ADPIC já representam uma iniciativa importante e que os países em desenvolvimento deveriam explorar todas as oportunidades desses acordos, incorporando essas salvaguardas no desenvolvimento da política e de suas leis internas, mediante a criação de uma coordenação interagências, evitando os termos draconianos dos acordos FTA. No entanto, o licenciamento compulsório e outras flexibilidades do TRIPS são muito difíceis de executar e estão sujeitos a pressões políticas e legais, vez que os 76 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas países em desenvolvimento enfrentam diversas barreiras para implementar essas salvaguardas. Várias alternativas para esse impasse estão surgindo no cenário internacional. Pools de patentes, como o recentemente proposto pela UNITAID, e outros mecanismos inovadores de financiamento para criar incentivos em P&D são naturalmente bemvindos e podem, sem dúvida, fazer uma diferença significativa para os países em desenvolvimento. Mas convém ressaltar que iniciativas como a mencionada Iniciativa de Pool de Patentes da UNITAID ultrapassam o âmbito das leis internacionais de PI. Sob uma perspectiva jurídica internacional, temos de rever com urgência o Acordo TRIPs, levando em consideração as crescentes exigências da pandemia de Aids e a necessidade de flexibilidades mais abrangentes para produtos de salvaguarda da vida, como os medicamentos ARV. As iniciativas locais em países emergentes, para incorporar as flexibilidades do Acordo ADPIC em suas leis e reformar suas políticas internas de PI, podem representar uma tendência positiva, mas certamente não poderão contribuir isoladamente para a ampliação do acesso aos medicamentos genéricos, uma vez que os entraves jurídicos internacionais e as barreiras comerciais ainda são os mesmos. Referências bibliográficas 1. CORIAT, B.; ORSI F. IPR, Innovation and public interest. Is the new IPR regime enforced worldwide by TRIPS sustainable? Economica, n. 10, p. 28-54, 2008. 2. ODAGIRI, H.; GOTO, A.; SUNAMI, A.; NELSON, R. Intellectual property rights, development and catch up – an international comparative study. Oxford University Press, 2010. 3. NELSON, R.; ROSENBERG, N. Technical Innovation and National Systems in Nelson, R. National Innovation Systems: a comparative analysis. Oxford University Press 2003t. 4. PALOMBI, L. The search for alternatives to patent in the 21st century. 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Designing patent policies suited to developing countries needs. Economica n. 10, p. 82-105, 2008. 78 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas CAPÍTULO 4 Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês Gaëlle Krikorian Resumo: Entre o fim de 2006 e o início de 2008, o ministro da Saúde Pública da Tailândia, Mongkol Na Songkhla, outorgou sete licenças compulsórias para permitir o acesso de doentes a tratamentos genéricos contra a Aids, o câncer ou acidentes cardiovasculares. Apesar das declarações da Organização Mundial do Comércio, essa política provocou uma série de reações hostis por parte da indústria farmacêutica e dos países ricos. Situando essa política em seu contexto histórico e social, o presente capítulo analisa as condições em que se produziu essas decisões do ministro da Saúde tailandês. Evidencia-se, particularmente, que esses processos se tornaram possíveis graças à conjunção de episódios recentes, mas também antigos ocorridos ao longo de várias décadas, bem como a ação coletiva de diferentes atores. O estudo deste caso abre caminho para uma reflexão mais abrangente sobre a governança da propriedade intelectual nos países em desenvolvimento. Palavras-chave: Licença compulsória, propriedade intelectual, acesso a medicamento, Tailândia, saúde pública, Organização Mundial do Comércio, HIV/Aids I. Introdução Em 29 de novembro de 2006, o ministro da Saúde Pública da Tailândia, Mongkol Na Songkhla, anunciou uma decisão até hoje tomada por poucos de seus homólogos nos países em desenvolvimento: suspendeu a proteção da patente de um medicamento para o tratamento da Aids com o objetivo de permitir o recurso a genéricos.65 Assim, o ministro fez uso de um dispositivo previsto no artigo 51 da lei tailandesa de patentes, a licença compulsória, também inscrito nos textos internacionais da Organização Mundial do Comércio (OMC). Apesar de ser legal e aparentemente legítima, essa decisão iria suscitar virulentas críticas por parte da indústria farmacêutica e dos governos dos países ricos, os mais veementes chegando a taxar 65 Obtidos inicialmente por importação a partir de fornecedores indianos, com a perspectiva de produção local a médio prazo. a Tailândia de país “ladrão”. Apesar dessas reações, entre novembro de 2006 e o início de 2008, Mongkol Na Songkhla emitiu sete licenças compulsórias. A primeira se referia ao efavirenz, antirretroviral (ARV) utilizado nas terapias de primeira linha contra o HIV/Aids e vendido sob o nome de marca Stocrin® pela Merck Sharp and Dohme (MSD). Nos dias 24 e 27 de janeiro de 2007, duas novas licenças foram expedidas, uma para a combinação ARV lopinavir/ritonavir utilizada como tratamento de segunda linha contra o HIV/Aids e conhecida pelo nome de marca Kaletra® do laboratório Abbott e a outra para o tratamento cardiovascular, o clopidogrel, comercializado pela Sanofi-Aventis sob o nome de marca Plavix®. Finalmente, quatro novas licenças foram concedidas em janeiro de 2008 para os medicamentos contra o câncer docetaxel (Taxotere®), da Sanofi Aventis, erlotinib (Tarceva®), da Roche, e letrozole (Femara®) e imatinib (Glivec®), da Novartis. A maioria dos países membros da OMC segue hoje os padrões exigidos pela organização, em matéria de proteção da propriedade intelectual. O acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relativos ao comércio (Trips/Adpic) impõe, em especial, uma proteção de 20 anos sobre os medicamentos, proibindo a produção, a importação ou a venda de versões genéricas durante esse período. A partir de meados da década de 1990, alguns estudos começaram a evidenciar o impacto negativo potencial desse fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual sobre o acesso a medicamentos nos países pobres [1, 2, 3]. O temor dessas consequências, manifestado pelas mobilizações internacionais pelo acesso aos medicamentos contra a Aids, resultou em intensos debates dentro da OMC e no surgimento de uma frente de oposição entre países ricos e países em desenvolvimento. Em novembro de 2001, as tensões diminuíram temporariamente com a adoção da Declaração de Doha sobre o acordo Trips/Adpic e saúde pública. Reconhecendo a legitimidade do “direito dos membros da OMC de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso aos medicamentos para todos”, essa declaração expõe sem ambiguidades o que o acordo Trips/Adpic estabelecia em termos legais menos transparentes, ou seja: “Cada membro tem o direito de conceder licenças compulsórias e liberdade para determinar os motivos pelos quais ele concede tais licenças”.66 Assim, a adoção desse texto apontou para uma inflexão no curso das negociações internacionais sobre a propriedade intelectual: pela primeira vez desde a ratificação do acordo Trips/Adpic, a relação de poder entre países ricos e países em desenvolvimento não resultava no fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual. Pelo contrário, chegou-se a um consenso sobre a necessidade de garantir uma aplicação desses direitos sem ameaçar o direito à saúde e aos medicamentos. Esse fato revelou, sem que isso representasse uma revolução na ordem estabelecida, o enfraquecimento, ao menos pontual, do predomínio dos interesses das empresas farmacêuticas. Podia-se esperar alguma evolução, não somente das representações, mas também das práticas dos Estados. 66 OMC (2001), §4, e §5.b. 80 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas No entanto, desde a adoção da Declaração de Doha, enquanto o número de patentes registradas nos países em desenvolvimento cresceu de maneira significativa, os direitos por elas garantidos se expandiram, especialmente pela assinatura de acordos bilaterais de livre comércio. As barreiras potenciais ao acesso aos produtos de saúde aumentaram; por outro lado, o número de países emitindo licenças compulsórias permaneceu pequeno. Alguns países pobres recorreram de maneira pontual a esse direito para se beneficiar dos genéricos, mas, em geral, o fizeram sem fazer qualquer publicidade por medo de represálias. Dessa maneira, apesar de a OMC ter reconhecido publicamente o direito dos países de utilizar esse dispositivo, pronunciando-se especificamente sobre a questão dos medicamentos e, portanto, dando mais legitimidade à ação dos Estados nesse campo, na prática, um número muito restrito deles tirou proveito desse direito. Não obstante o estabelecido em lei, como as políticas nacionais de propriedade intelectual são “adotadas em contexto mais abrangente de relações de poder assimétricas entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, e entre os produtores e os consumidores dos frutos da propriedade intelectual”[4], a margem de ação real e efetiva dos países pobres permanece limitada. É nesse contexto de tensão que se insere a decisão do ministro da Saúde da Tailândia de recorrer às licenças obrigatórias. Essa tomada de decisão, naquele momento, podia parecer paradoxal, já que a Tailândia era, desde o golpe de estado de outono de 2006, dirigida por um governo militar e atravessava um período de instabilidade que poderíamos imaginar ser pouco propício para a preocupação com as necessidades dos doentes. Além disso, essa decisão tinha toda chance de ser interpretada pelos Estados Unidos como uma mudança de rumo lastimável das autoridades tailandesas, já que os dois países estavam engajados desde 2004 na negociação de um acordo de livre comércio.67 O presente artigo pretende apresentar uma série de elementos que explicam esses paradoxos e permitiem entender o contexto político que determinou a decisão do ministro. Visa também induzir uma reflexão mais abrangente sobre a governança da propriedade intelectual nos países em desenvolvimento. A proteção da propriedade intelectual é uma forma de gestão e de controle do saber desenvolvida nos países ocidentais e progressivamente imposta ao resto do mundo, primeiramente pela colonização e, mais tarde, no contexto da globalização econômica neoliberal. No entanto, as políticas e as práticas dos Estados não podem ser consideradas como meras aplicações de dispositivos legais. Agindo sob a dupla exigência das regras internacionais e da pressão dos detentores de direitos de propriedade intelectual e dos países que os apóiam, cada Estado deve, em particular, avaliar o uso que deseja fazer das flexibi- 67 Na ocasião, as negociações estavam suspensas, mas iriam reiniciar e, muito provavelmente, iriam desembocar na limitação das possibilidades de uso das licenças compulsórias e no fortalecimento das regras de proteção da propriedade intelectual. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 81 lidades existentes para enfrentar as exigências locais particulares.68 A aplicação das licenças compulsórias pela Tailândia permite analisar esse processo de elaboração de políticas em um momento crítico: quando os enfrentamentos na OMC pareciam acalmados, mas a aplicação dos dispositivos legais sobre as patentes começava a impor limites concretos sobre o acesso a medicamentos nos países. Em outras palavras, o caso tailandês permite observar esse processo quando os países em desenvolvimento são praticamente obrigados a fazer uma escolha. A nossa análise baseia-se sobre uma série de entrevistas semidirigidas, realizadas com funcionários do Ministério da Saúde Pública, do Ministério do Comércio, do National Health Security Office (NHSO), com sociedades farmacêuticas tailandesas, multinacionais farmacêuticas, membros de ONG, representantes de embaixadas (Americana, Europeia, Francesa, Suíça), com jornalistas e membros do parlamento da Tailândia. Também se baseia em observações realizadas por ocasião de reuniões, manifestações ou conferências. A proposta se organiza a partir da análise de momentos selecionados em função do que eles revelam sobre as alianças, tensões e subordinações entre os atores, permitindo a decodificação da complexidade do jogo que os vincula. Como colocou pelo doutor Vichai Chokevivat, diretor do Laboratório Farmacêutico do Governo (GPO, sigla em inglês): entender o processo que levou o ministro da Saúde a autorizar o uso das licenças compulsórias pressupõe a revisão dos fatos históricos de várias décadas.69 De fato, recolocar essa decisão em seu contexto histórico possibilita a compreensão dos motivos pelos quais Mongkol Na Songkhla escolheu um caminho que tantos ministros da Saúde têm evitado até hoje. Pretendo, assim, expor as inúmeras dobras de histórias contemporâneas à decisão do ministro ou daquelas, menos recentes, coletivas ou individuais, ocorridas em um contexto nacional/local ou escritas no âmbito internacional, que contribuíram para tecer o contexto dessa tomada de decisão. II. As forças envolvidas Para entender a lógica de cada episódio e seu entrelaçamento, temos que expor de maneira breve as forças aqui envolvidas. De fato, a emissão de licenças compulsórias pode ser vista como o produto da interação entre diferentes forças num momento específico. Para facilitar a leitura das interações, podemos estabelecer que temos três conjuntos distintos de agentes: o movimento favorável a um fortalecimento dos direitos de propriedade intelectual, o movimento para o acesso 68 A questão dos limites e problemas específicos ao desenvolvimento de uma produção farmacêutica local não são levados em consideração aqui, pois o recurso à fabricação local não foi colocado como condição prévia ao uso das licenças compulsórias pelo governo tailandês, que contava, pelo menos em curto prazo, com a importação a partir de laboratórios indianos. 69 Comunicação pessoal, 4 de setembro de 2007. 82 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas aos medicamentos e o Estado tailandês. Eles não constituem grupos homogêneos e formalizados, mas sim conjuntos sem contornos nítidos que convivem, se interpenetram ou se enfrentam, conforme as ocasiões, às escondidas nas antecâmaras do poder ou, quando as tensões chegam no espaço público, aos olhos de todos. Falemos primeiro do Estado tailandês: essa designação não representa uma entidade homogênea pois abrange atores e instituições na posição de representar o Estado tailandês ou obrigados a seguir o que é apresentado como a posição do governo em um determinado momento. Em primeiro lugar, temos o primeiro ministro Thaksin Shinawatra, eleito em 2001 e reeleito em 2004. O início das negociações para a assinatura de um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, em junho de 2004, foi sua iniciativa. Acusado de corrupção, falcatruas e abuso de poder, foi obrigado a pedir demissão em razão do levante de parte da população tailandesa e acabou fugindo do país para escapar de uma condenação. Depois do período de agitação que culminou na sua saída do governo em setembro de 2006, os militares organizaram um golpe de estado e tomaram o poder. As licenças compulsórias foram emitidas durante a gestão desse novo governo. O Estado tailandês é também representado por diferentes ministérios, cada um visando seus objetivos, com suas motivações próprias e uma cultura política e institucional específica. Apesar do seu poder de influência limitado no governo, o Ministério da Saúde ocupa aqui um lugar de destaque. Conforme a lei tailandesa, o ministro da Saúde é um dos oficiais com poder para emitir licenças compulsórias. Outros atores, dependentes do Ministério da Saúde ou ligados a ele, intervêm na história que nos interessa: o National Health Security Office (NHSO, sigla em inglês), a instituição encarregada da implantação da cobertura médica universal adotada pelo National Security Act, em 2001, e também a Governmental Pharmaceutical Organization (GPO), fabricante de medicamentos genéricos envolvida na produção de ARVs contra a Aids desde o final da década de 1990. Na emissão de licenças compulsórias, também foram implicados o Ministério do Comércio e seu Departamento de Propriedade Intelectual, encarregado da concessão das patentes, que, em razão de suas atribuições, mantêm contatos frequentes com a indústria. Isso explica que este Ministério tenha demonstrado maior proximidade com o discurso das indústrias farmacêuticas do que com os argumentos dos defensores do acesso aos medicamentos. Finalmente, o Estado tailandês é representado em inúmeras situações, particularmente nas relações diplomáticas com outros países, pelo Ministério de Relações Exteriores cujos funcionários enfrentaram, após a emissão das licenças compulsórias, reações hostis do exterior, especialmente por intermédio das embaixadas. Em oposição ao governo tailandês, encontramos o segundo conjunto de atores, capitaneado pelas multinacionais farmacêuticas. Trata-se de firmas diretamente afetadas pelas licenças compulsórias, mas também da indústria farmacêutica detentora dos direitos de propriedade intelectual em geral, preocupada com o de- Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 83 senvolvimento de práticas que ela considera contrárias a seus interesses. Algumas empresas se envolveram individualmente, afirmando sua posição por meio de seus representantes na mídia ou por ocasião de conferências ou reuniões com oficiais tailandeses. Diversas associações desempenharam o papel de porta-voz dessas sociedades, como a Federação Internacional da Indústria do Medicamento (IFPMA, sigla em inglês), a Associação Americana da Indústria Farmacêutica (PhRMA, sigla em inglês) ou a Associação Tailandesa da Indústria Farmacêutica (PReMA, sigla em inglês). Localmente, a Câmara de Comércio Americana (AmCham, em inglês) em Bangkok defendeu os interesses de seus membros por meio de um comunicado agressivo, acenando mesmo com a ameaça da suspensão de investimentos externos na Tailândia. Além disso, alguns governos ou representantes deles se mobilizaram contra a ação do governo tailandês, em defesa das posições das sociedades farmacêuticas. O Departamento de Comércio americano (USTR, sigla em inglês), que promove e protege os interesses das sociedades farmacêuticas implantadas nos Estados Unidos e por extensão os da indústria farmacêutica exportadora de propriedade intelectual em geral, conduziu sem dúvida a ação mais espetacular e mais explorada pela mídia. Por ocasião da emissão das licenças compulsórias pela Tailândia, vários outros governos dos países ocidentais se manifestaram, especialmente por meio de suas embaixadas (Estados Unidos, França, Suíça) ou suas representações locais (Comissão Europeia) em contato direto com as empresas farmacêuticas, que intervieram de maneira mais ou menos formal junto às autoridades tailandesas. A Comissão Europeia interveio também pelo intermédio de seu comissário de Comércio, Peter Madelson, que escreveu ao ministro do Comércio tailandês, Krirkkrai Jirapaet, em 10 de julho de 2007, para comunicar sua “preocupação” e incentivar o governo tailandês a chegar a um consenso com a indústria. Por sua vez, em 20 de julho de 2007, o embaixador americano, Ralph Boyce, manifestou por escrito ao primeiro ministro Surayud Chulanont seu receio de ver a Tailândia conceder novas licenças compulsórias. Essas duas intervenções constituem uma amostra das pressões exercidas sobre o governo tailandês. Tanto os Estados Unidos quanto a Comissão Européia, na condição de membros da OMC, aprovaram a Declaração de Doha e, portanto, reconheceram formalmente o direito dos países de fazer uso das licenças compulsórias para garantir o acesso aos medicamentos. Nenhum deles nega publicamente a possibilidade de se recorrer a esse dispositivo, mas ambos invocam o medo de um uso sistemático dele e, de certa forma, o que eles questionam, em primeiro lugar, é a interpretação da lei tailandesa. A proximidade, no tempo, das duas correspondências leva a supor uma ação coordenada dos países. O fato de a carta do embaixador Boyle ter sido endereçada ao primeiro ministro evidencia a multiplicidade dos níveis a que se pretendiam levar as críticas (ou ameaças), solicitando até os mais altos níveis da hierarquia governamental. Isso indica também uma estreita comunicação entre a indústria e a administração americana. 84 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas A carta do comissário Mandelson, por sua vez, revela as tensões internas das instituições europeias, evidenciando as divergências da época entre o Parlamento e a Comissão sobre a questão do acordo Trips/Adpic e o acesso aos medicamentos[5]70. Temos aqui a ilustração da ausência de homogeneidade no seio de entidades representando um mesmo Estado ou uma Federação de Estados, mas muitas vezes afetadas por divergências significativas de opinião. Além das pressões ou medidas diretas de represálias praticadas pelas indústrias farmacêuticas ou pelos governos, a oposição às licenças compulsórias se manifestou também, de maneira indireta, na mídia. Isso evidenciou apoios favoráveis às posições da indústria, alguns mais esperados que outros. Assim, enquanto o presidente da filial tailandesa da Novartis declarava que não era “o momento para impor licenças compulsórias [sobre o Glivec]”,71 o doutor Saengsuree Joota, presidente da Sociedade Tailandesa de Hematologia, afirmou: “o governo deve refletir bastante antes de conceder licenças compulsórias para transpor as patentes de medicamentos contra o câncer, porque tal ação poderia provocar efeitos adversos em longo prazo. (...) Emitir uma licença compulsória para o Glivec poderia ter consequências negativas para os 900 pacientes afetados pela leucemia e que já têm acesso ao Imatinib, versão genérica do anticancerígeno, por meio de um programa filantrópico”.72 Podemos imaginar que uma boa parte dos 113 médicos trabalhando nos 34 centros beneficiários desse programa filantrópico deve ter expressado opiniões semelhantes, por medo de medidas de represálias. Por fim, o último conjunto de atores envolvidos é constituído por uma variedade de ONGs e os grupos sociais que essas organizações puderam mobilizar. De fato, inúmeros grupos distintos se juntaram para formar uma coalizão, mais ou menos formal, engajada nos acontecimentos que levaram à emissão de licenças compulsórias. Em primeiro lugar, encontramos grupos tailandeses mobilizados na luta contra a Aids, como a Aids Foundation e a Rede Tailandesa de Pessoas vivendo com Aids (TNP+). Outros grupos e alianças, frutos de mobilizações mais antigas sobre a propriedade intelectual, menos diretamente focados nas questões de saúde, reivindicaram o direito e apoiaram a utilização das licenças compulsórias. Trata-se, particularmente, da FTA Watch, entidade que reúne 11 redes mobilizadas contra o acordo de livre comércio com os Estados Unidos (sindicalistas, estudantes, agricultores etc); mas também algumas ONGs, como Bio Thai, dedicada à biodiversidade e à proteção dos recursos naturais e dos conhecimentos tradicionais das comuni70 Esta carta é nitidamente contrária à resolução do Parlamento europeu, adotada dois dias mais tarde, em 12 de julho de 2007, solicitando o apoio dos países membros aos países em desenvolvimento no uso das flexibilidades previstas pelo acordo Trips/Adpic. Acesso à resolução em: http://www.europarl. europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P6-TA-2007-0353+0+DOC+XML+V0//FR. 71 Sarnsamak P. (2007, July 21), “Novartis pleads for cancer drug; The maker of a leukaemia and intestinal-cancer drug is lobbying the government not to impose compulsory licensing”, The Nation. Acesso em : http://nationmultimedia.com/2007/07/21/national/national_30041806.php. 72 Treerutkuarkul A. (2007, July 21), “Govt urged to reconsider CL policy. Glivec ‘doesn’t need’ compulsory licence” Bangkok Post. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 85 dades locais. A atuação das ONGs locais foi elaborada em um contexto de colaboração com o meio universitário tailandês. Um grupo de universitários criado nos anos 1970 e dedicado à saúde pública e aos medicamentos, o Drug Study Group, apoia as reivindicações das ONGs para o acesso aos genéricos contra a Aids e tem colaborado com argumentos jurídicos e sanitários. Uma rede local heterogênea, composta de indivíduos e organizações, engajados no acesso aos medicamentos e nas questões sobre a propriedade intelectual, foi assim se desenvolvendo progressivamente na Tailândia, a partir do final dos anos 1980.73 Sua eficácia reside em sua capacidade de apreender assuntos técnicos e jurídicos com um nível de competência muitas vezes superior ao dos interlocutores institucionais. Para sustentar o uso dos genéricos, as ONGs apelaram para vários tipos de estratégias: encontros com as instituições, manifestações, petições, campanhas na mídia e, em alguns casos, recursos na justiça. Elas souberam mobilizar ativistas em todas as regiões do país, os quais se tornaram vetores de difusão de suas mensagens e agentes mobilizáveis por ocasião das manifestações. Esses grupos locais conseguiram o apoio de ONGs internacionais como MSF, Oxfam e Knowledge Ecology International (antigo CPTech). As posições da sociedade civil tailandesa foram, assim, retomadas e apoiadas por um grande número de ONGs e grupos ativistas externos na Índia, na França, no Brasil, nos Estados Unidos etc. Uma ampla coalizão internacional informal, constituída em torno da questão do acesso aos tratamentos contra a Aids e mobilizada alguns anos antes contra a OMC foi assim reativada, afirmando sua solidariedade com os doentes tailandeses e a decisão do ministro da Tailândia. Assim sendo, a atuação das ONGs na Tailândia se baseia, por um lado, sobre a existência de uma ampla coalizão nacional informal possuindo fortes conexões internacionais e, por outro, sobre uma forte dinâmica de apropriação e utilização do conhecimento e da expertise. A argumentação das ONGs em prol da concessão de licenças compulsórias, inscrita em uma longa trajetória de mobilização pelo acesso aos medicamentos, constitui um dos elementos que explica o fato de a Tailândia ter optado pela utilização desses dispositivos num momento em que o país era dirigido por um governo militar, período muitas vezes considerado como pouco propício à influência exercida pelas ONGs. 73 Convém observar que os representantes da indústria farmacêutica privada tailandesa eram praticamente ausentes das redes de mobilização sobre a questão da propriedade intelectual e do acesso aos medicamentos quando foi efetuado o trabalho de campo servindo de base para esse documento. 86 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas III. Histórias entremeadas III.1. O histórico de um conflito duradouro O histórico dos conflitos sobre propriedade intelectual entre a Tailândia e os Estados Unidos remonta pelo menos aos anos 1980. Essa questão está no centro de tensões marcadas por repetidas ameaças de sanções econômicas contra a Tailândia por meio do dispositivo 301 da lei americana sobre comércio. Em 1989, a Tailândia é colocada na Priority Watch List; em 1991, ela passa a fazer parte da Priority Foreign Country List [6, 7].74 Essas pressões provocaram uma emenda à lei tailandesa de patentes em 1992, destinada a instaurar níveis de proteção mais restritivos (às vezes, mais restritivos que os níveis atualmente exigidos pela OMC, embora esta instituição ainda não existisse). Diante de novas pressões, a lei foi mais uma vez modificada, em 1998. Quando as pressões não são exercidas pelo governo americano, as empresas farmacêuticas passam à ofensiva de maneira direta. No final dos anos 1990, os pacientes tailandeses soropositivos pagavam o tratamento do próprio bolso; o preço na época para uma triterapia era praticamente equivalente ao praticado nos países ocidentais, em torno de US$ 10.000 por paciente por ano. Obviamente, o custo dessa terapia era proibitivo para a maioria dos pacientes tailandeses. Tal situação levou o produtor governamental, GPO, a considerar a possibilidade de produção local de vários medicamentos ARVs, incluindo a ddl. A empresa farmacêutica Bristol-MyersSquibb (BMS) interveio, então, reivindicando direitos exclusivos, argumentando ser detentora de uma patente sobre uma versão melhorada do produto. O GPO esperava poder comercializar uma versão do medicamento fabricado conforme um processo de fabricação elaborado por seu departamento químico, o que permitiria uma redução do preço de 40%. A BMS impetrou uma ação e, apesar da legalidade da proposta, o GPO desistiu de produzir o medicamento. Perante essa situação, algumas ONGs solicitaram junto ao governo o recurso às flexibilidades autorizadas pelo acordo Trips/Adpic. Em 1997, o GPO apresentou um requerimento de licença compulsória no escritório de patentes tailandês [8]. Em 1998, ONGs apoiadas pelo Drug Study Group lançaram uma campanha nacional. Durante dois dias, 22 e 23 de dezembro de 1999, uma centena de pessoas infectadas pelo HIV, membros de grupos de luta contra a Aids, bem como inúmeros ativistas, se sentaram em protesto (sit-in) em frente ao Ministério de Saúde Pública do país. Eles reivindicavam o uso das licenças compulsórias para autorizar o GPO a 74 Conforme o programa Generalized System of Preferences (GSP), os Estados Unidos retiram então as reduções de taxas de importação de 19 produtos de exportação tailandeses. Em 1993, a Tailândia sai da Priority Foreign Country List e volta para a Priority Watch List, sinal de melhora da situação do ponto de vista americano. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 87 produzir comprimidos de ddl [9]. O representante da OMS na Tailândia na época, doutor E.B. Doberstyn, declarou “Reconhecemos que o uso da licença compulsória é uma das possibilidades para resolver o problema”.75 Desde fevereiro de 1999, em seu relatório anual enviado ao departamento de comércio, o sindicato americano da indústria farmacêutica pedia a inclusão da Tailândia na Priority Watch List. Esse requerimento não foi atendido, mas, apesar de a Tailândia ter modificado mais uma vez sua legislação de patentes para responder às expectativas americanas, ela permaneceu na Watch List. Além disso, o governo enfrentou ameaças de sanções aduaneiras sobre as exportações tailandesas, especialmente de madeira e de jóias [10], o que aniquilava qualquer tentativa de uso das licenças compulsórias. Em janeiro de 2000, ONGs tailandesas escreveram para o presidente americano Bill Clinton e, em 18 de janeiro, cerca de 200 pessoas organizaram uma manifestação em frente à embaixada dos Estados Unidos. Em sua resposta, o presidente americano reconheceu, de maneira implícita, a possibilidade do uso de licenças compulsórias dentro dos termos do acordo Trips/Adpic, mas o governo da Tailândia, cauteloso, continuou negando-se a usar essas licenças. Ele pediu que o GPO se limitasse a produzir o ddl em pó, que não era protegido pela patente da BMS. Em março de 2000, o GPO anunciou a produção de ddl em pó. Por sua vez, as ONGs de saúde e luta contra a Aids mudaram de estratégia, movendo processos na Justiça contra a BMS e o Departamento de Propriedade Intelectual (DIP, sigla em inglês). Depois desses processos, a BMS resolve abrir mão de sua patente. Essa série de conflitos favoreceu a aquisição progressiva de uma forte experiência em matéria de propriedade intelectual e acesso a medicamentos por parte da sociedade civil tailandesa. De maneira concomitante, se estabeleceu uma importante colaboração entre as ONGs e o meio universitário que, de seu lado, mantém contato com alguns funcionários das instituições governamentais. De certa forma, as ofensivas dos detentores dos direitos de propriedade, bem como as do governo americano, que os apoiava, favoreceram a emergência de uma resistência informada e organizada. III.2. Janeiro de 2006 – uma mobilização maciça Enquanto se desenvolve a sexta rodada de negociações do Acordo de Livre Comércio entre a Tailândia e os Estados Unidos, cerca de 10.000 pessoas manifestavam nas ruas de Chiang Mai. Foi uma mobilização maciça que ultrapassava consideravelmente as manifestações organizadas, até então, contra esse acordo. O líder da delegação tailandesa, Nit Phibunsongkhram, que reconheceu ter sido obrigado a escapar, por uma porta secreta, dos manifestantes que cercavam o hotel onde ocorriam as negociações, pediu demissão algumas semanas depois. Nessa mani75 Bhatiasevi, Aphaluck (2000, January 16), “Local production to benefit HIV patients”, Bangkok Post, http://lists.essential.org/pipermail/ip-health/2000-January/000047.html. [tradução livre] 88 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas festação que reuniu agricultores, estudantes, sindicatos e até alguns bancários, os grupos dedicados à saúde desempenham o papel principal. No desfile de 11 de janeiro 2006, mais de um terço dos manifestantes era, de fato, formado por grupos de pessoas vivendo com o HIV de diversas regiões do país. Isso atesta o importante trabalho de informação e educação desenvolvido pelas ONGs desde o começo das negociações. O compartilhamento de recursos – expertise, capacidades de comunicação, recursos financeiros – possibilitou a formação de ativistas encarregados de difundir a informação e o conhecimento, especialmente nas redes de pessoas doentes. Assim, um número crescente de pessoas adquiriu certa familiaridade com noções jurídicas de propriedade intelectual e a questão de seu impacto sobre o acesso aos medicamentos. As ONGs organizaram ateliês, conferências de imprensa, manifestações, produziram documentação, panfletos, publicações e vídeos denunciando o impacto negativo em termos de aumento da proteção intelectual que esse acordo poderia impor [11].76 Enquanto acontecia a sexta rodada de negociações, elas intimaram o governo a recusar os pedidos americanos em matéria de propriedade intelectual, especialmente as limitações ao uso das licenças compulsórias. O nível de detalhes dos documentos apresentados evidencia o grau de expertise adquirido por essas redes e o trabalho pedagógico e de comunicação desenvolvido junto à sociedade tailandesa. Um adesivo amplamente distribuído pelas redes ativistas proclama: “Right to CL = Right to live”.77 O slogan, que pareceria misterioso em outros contextos e em outros países é, no contexto tailandês, uma mensagem de mobilização. A dinâmica de educação e de apropriação do saber aplicado é confirmada por uma análise publicada na imprensa tailandesa. Para lutar contra o Acordo de Livre Comércio, as ONGs mobilizadas na luta contra a Aids se aproveitaram das relações desenvolvidas com a mídia desde o início da luta contra a epidemia. Apoiados nos vínculos criados e na credibilidade conquistada, seus porta-vozes e especialistas desenvolvem junto a jornalistas um trabalho de informação e educação sobre propriedade intelectual, os acordos de livre comércio e as licenças compulsórias, da mesma maneira que haviam feito anteriormente sobre a Aids, os modos de contaminação, a ação dos ARVs etc. Isso explica, em parte, a repercussão, até então sem igual durante as rodadas anteriores, que as manifestações contra o Acordo de Livre Comércio provocaram nos jornais no início de 2006. III.3. A trajetória de um homem A decisão de emitir licenças compulsórias tomada pela Tailândia se situa na conjunção de duas histórias: de um lado, uma sucessão de conflitos sobre propriedade intelectual marcante para o país e parte de seus cidadãos e, por outro lado, a traje- 76 Isso, entre outras coisas, era subentendido na proposta de um capítulo sobre a propriedade intelectual apresentada pelo lado americano durante as negociações. 77 “Right to Compulsory Licensing = Right to live”, direito à licença compulsória = direito à vida. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 89 tória individual de Mongkol Na Songkhla, nomeado ministro da Saúde em outubro de 2006. O Dr. Mongkol estudou na Universidade Mahidol, em Bangkok. Nos anos 1970, participou das manifestações estudantis pela democracia e se juntou à Sociedade dos Médicos Rurais (RDS, sigla em inglês). Em 1976, depois de passar boa parte da carreira nas províncias rurais da Tailândia, foi nomeado “Médico Rural Extraordinário”. Ao longo dos anos, ocupou cargos importantes em várias instituições sanitárias e, em particular, foi diretor do Hospital Phimai, diretor-geral do Departamento de Serviços Médicos e Secretário Permanente de Saúde Pública. Quando de sua nomeação como ministro, o doutor Mongkol escolheu como conselheiros alguns de seus antigos colegas da Universidade de Mahidol que, como ele, possuíam experiência em atuar nas províncias rurais. Alguns haviam se tornado especialistas em matéria de propriedade intelectual, engajados nos debates nacionais e internacionais no decorrer da década anterior. O Secretário geral do NHSO, Dr. Sanguan Nittayarumpon, também engajado nas mobilizações estudantis dos anos 1970 e membro das redes de médicos rurais, foi quem deu o alarme em 2006 sobre o impacto que a compra de tratamentos de segunda linha contra a Aids teria sobre o orçamento nacional para a saúde. Foi nesse contexto que o doutor Mongkol solicitou que seus serviços reunissem todos os fatos e dados necessários à sua decisão sobre a questão das licenças compulsórias. Um mês depois, ele tomou a decisão. A análise do contexto histórico e biográfico da decisão do doutor Mongkol nos indica que ela deve ser considerada como a decisão corajosa de um homem de implantar uma política em prol dos pobres e dos doentes. Levar em consideração elementos da trajetória pessoal do ministro pode parecer trivial, mas a comparação com a situação de outros países ressalta sua importância (e revela também o papel performático da micro-história sobre a história nacional). Em inúmeros países, a opção pelas licenças compulsórias é rejeitada por medo das represálias e por falta de segurança quanto às questões jurídicas implicadas. Na Tailândia, a conjunção do acesso à expertise jurídica e do clima de confiança, propiciado pelo compartilhamento de valores e de experiências entre o ministro e os seus colaboradores próximos, desempenhou sem dúvida um papel-chave em sua decisão. III.4. Setembro de 2006 – golpe militar Do ponto de vista político, o uso das licenças compulsórias na Tailândia ocorreu em um momento especial: quando o poder estava nas mãos de um governo militar transitório. Depois da demissão do primeiro-ministro Thaksin em abril de 2006 e de um golpe de Estado, em meados de setembro, os militares nomearam um governo temporário. Esse contexto, na verdade, viria a favorecer a decisão do ministro da Saúde que, tendo em vista a situação política, se viu liberado de certas exigências. Em primeiro lugar, com o governo sendo temporário por definição, Mongkol podia estar mais facilmente inclinado a tomar decisões politicamente perigosas para 90 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas seu cargo, já que, em princípio, não deveria ocupar o cargo por muito tempo. Por outro lado, ele se beneficiava de uma autonomia maior do que teria no seio de um governo comum. De fato, a vida política tailandesa e a maior parte da classe política estavam centradas em vários problemas de maior envergadura – garantir a estabilidade do País, organizar um referendo sobre a Constituição, definir o destino do antigo partido no poder, possibilitar a volta à democracia. Nesse contexto, o uso de licenças compulsórias para permitir o acesso a medicamentos genéricos não tinha, para a maioria dos atores políticos, a importância que poderia assumir em outras circunstâncias. Além disso, tendo em vista a situação, essa questão era mais facilmente relegada ao domínio de competência do ministro da Saúde, o qual consultou o Ministério do Comércio a respeito dos aspectos legais da concessão de licenças compulsórias e da interpretação da lei tailandesa, mas tomou sua decisão sem submetê-la ao Conselho dos Ministros ou solicitar a opinião do primeiro-ministro (o que seria o procedimento correto em um contexto normal). Essa conduta explica porque, mais tarde, representantes de outros ministérios deram a entender que Mongkol os tinha colocado diante do fato já consumado. Assim, entendemos melhor que nenhum outro ministro tenha podido se contrapor a sua iniciativa. III.5. Reações em cadeia As reações provocadas pela decisão do ministro da Saúde da Tailândia oferecem um prisma de análise interessante das alianças ou oposições atuando acerca das questões de propriedade intelectual e de acesso aos medicamentos. Esse episódio revela redes atuando por motivos mais complexos do que a priori se parece, em nível nacional e também internacional. Após o anúncio da primeira licença pela Tailândia, atores implicados no fortalecimento dos padrões de proteção da propriedade intelectual participaram de uma série de reações em cadeia muito exploradas pela midia. Aliás, em alguns casos, a própria mídia participou de medidas de represálias contra a Tailândia, como no caso do Wall Street Journal, que publicou uma série de editoriais e de artigos incriminando a Tailândia.78 No começo do mês de março, o laboratório Abbott resolveu retirar sete pedidos de registro de medicamentos no mercado tailandês. Em 1º de maio de 2007, o Departamento americano de comércio publica seu relatório anual 301, transferindo a Tailândia da Watch List para a Priority Watch List. Os responsáveis do Departamento do Comércio declararam que essa mudança de estatuto da Tailândia na lista não ocorreu em consequência da concessão de licenças compulsórias; no entanto, o relatório explicita: “Além de preocupações duradouras no que diz respeito a uma proteção deficiente dos direitos de propriedade intelectual na Tailândia, no final de 2006 e início de 2007, apareceram novos sinais de enfraquecimento do respeito das patentes, com 78 Em particular, ver os artigos publicados em 31 de janeiro, 9 e 10 de fevereiro, 7, 13 e 14 de março, 23, 25 e 30 de abril e 7 de maio. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 91 o anúncio feito pelo governo tailandês de licenças compulsórias de diversos produtos patenteados. Apesar de os Estados Unidos reconhecerem a capacidade de um país de emitir tais licenças conforme as regras da OMC, a falta de transparência do processo adotado pela Tailândia é um problema sério” [12]. Por sua vez, a USA Innovation, grupo que se autodefine como ONG – mas que, na realidade, revelou ser ligado a uma empresa de relações públicas cujo principal cliente é o laboratório Abbott –, lançou uma virulenta campanha de comunicação contra a Tailândia, acusando o país de ser um “ladrão de propriedade intelectual”, produtor de medicamentos de péssima qualidade, e cujo governo seria comparável à “ditadura militar” de Mianmar. O grupo escreveu também para os membros do Congresso e para a Secretaria de Estado dos EUA, Condoleezza Rice. Alguns membros do Congresso iniciaram uma mobilização: em 20 de março, vários senadores escreveram para a representante do Departamento de Comércio, Susan Schwab, denunciando a ação da Tailândia. Na Europa, o Comissário europeu para o Comércio escreveu para seu homólogo tailandês. Assim, uma mecânica bem azeitada de repressão e intimidação se instalou. Entre os protagonistas mobilizados para a defesa dos interesses da indústria, um grupo considerável reagiu, cada um utilizando os meios de ação a seu alcance. No entanto, as reações às iniciativas da Abbott e da USA Innovation produziram efeitos paradoxais e imprevistos. Pelo menos temporariamente, e mesmo que, no fundo, muitos atores fossem favoráveis à ação da empresa farmacêutica, sua virulência e a condenação moral por ela provocada no seio da opinião pública resultaram em uma fissura na frente dos defensores da propriedade intelectual, habitualmente muito unida. Pelo menos aparentemente, a Abbott ficou isolada de boa parte de seus aliados teóricos que temiam serem associados à posição extremista do laboratório. Os organismos que adotavam uma posição “dura”, como a Câmara de Comércio Americana em Bangkok (AmCham), apesar de afirmarem compreender o descontentamento da Abbott, reconheceram também que a sociedade farmacêutica errou ao retirar seus produtos do mercado.79 Como os Estados Unidos não queriam ser vistos como contrários por definição ao uso de licenças compulsórias (o que seria uma contradição com seu discurso oficial), o Departamento de Comércio não teve outra escolha a não ser reconhecer a legalidade da decisão tailandesa. Quanto à embaixada dos Estados Unidos, em Bangkok, ela não apoiava oficialmente a posição da Abbott, seguindo assim o exemplo de outras empresas farmacêuticas (como a Merck) que buscavam parecer mais flexíveis e conciliadoras, reiterando a sua vontade de manter o diálogo com o governo. Por ocasião da emissão das licenças compulsórias, as embaixadas e delegações dos países sedes das firmas afetadas por essas licenças se consultaram uns aos outros e trocaram informações sobre o que sabiam a respeito das intenções do governo. A ação da Abbott, a campanha da USA Innovation e a internacionalização 79 J. Benn, AmCham, comunicação pessoal, 5 September 2007. 92 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas da crise levou cada um a adotar certa distância e desenvolver uma linha de comunicação individual. Nenhum desses países queria ser considerado como tendo posições extremistas, renegando os compromissos assumidos em Doha e reabrindo um conflito sobre a propriedade intelectual e o acesso aos medicamentos. Do lado oposto, as iniciativas da Abbott e da USA Innovation, que se refere à Tailândia como «um eixo do mal da propriedade intelectual”, acabaram provocando uma reação de orgulho nacional e fortalecendo a solidariedade entre as instituições tailandesas cujos membros se diziam chocados pela violência das declarações a respeito de seu país e particularmente indignados pelas comparações com o regime ditatorial de Mianmar. Os ministérios implicados, cada um com sua lógica institucional própria e sob a pressão externa, poderiam ter dado lugar a importantes divisões no seio do governo tailandês, mas acabaram encontrando-se na posição de dever defender juntos uma “identidade nacional” e, frente à adversidade, formaram um grupo unido para justificar o recurso às licenças compulsórias. IV. Conclusão O modo como se cristalizaram e expressaram as tensões entre o governo tailandês e as empresas farmacêuticas (e seus defensores), entre 2006 e 2008, muitas vezes no limite da cortesia diplomática, evidencia a importância desse conflito. Em um contexto histórico (a proximidade da declaração de Doha), social (existência de uma forte mobilização internacional e de um consenso moral sobre a necessidade de propiciar o acesso aos medicamentos) e epidemiológico (uma epidemia sempre fora de controle), o confronto entre a indústria farmacêutica e a Tailândia obrigou inúmeros atores a tomar posição. Vimos como os defensores dos direitos de propriedade intelectual da indústria farmacêutica se mobilizaram. Por outro lado, nos Estados Unidos, alguns membros do Congresso e o ex-presidente Bill Clinton expressaram seu apoio à Tailândia. Representantes de outros países, como França, Reino Unido, Índia, Brasil e outros adotaram a mesma posição. Sendo assim, as tensões a respeito do uso das licenças compulsórias pela Tailândia traduzem mais que um mero conflito entre a Tailândia e os Estados Unidos. Elas são a ilustração de um confronto internacional entre duas frentes mobilizadas e constituídas novamente por ocasião desse acontecimento. De fato, esse episódio paroxístico de enfrentamento revela uma discórdia subjacente de magnitude internacional entre uma corrente a favor de uma aplicação inflexível dos direitos de propriedade intelectual e de um aumento progressivo de seus padrões, e uma corrente oposta, interessada em restringir o impacto negativo dessas proteções sobre a vida e a existência dos indivíduos, pelo menos nos países em desenvolvimento. Esse confronto provocou uma mudança inegável, ainda que restrita e temporária, no equilíbrio de poderes entre essas forças. No jogo de tensão permanente, o cursor se deslocou levemente. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 93 Provocados pelas ONGs tailandesas e seus aliados, os primeiros debates a respeito da utilização concreta das licenças compulsórias surgiram no país no final dos anos 1990. No entanto, o uso efetivo desse dispositivo legal não aconteceu antes do final do ano de 2006. Segundo Judith Butler, “Conditions are not the causes, conditions do not ‘act’ in the way that individual agents do, but no agent acts without them”.80 Apesar do contexto político tenso, que podia parecer desfavorável, a conjunção de fatos históricos recentes e antigos, bem como a ação coletiva de vários atores, acabou favorecendo o estabelecimento de condições que permitiram a emissão das licenças compulsórias pelo ministro da Saúde. No entanto, a experiência tailandesa, em razão da diversidade e da especificidade dos fatores sociais, políticos, econômicos e epidemiológicos que conduziram ao uso das licenças compulsórias, aponta para as dificuldades de replicação dessas condições em outros países. Do ponto de vista da governança da propriedade intelectual, o uso das flexibilidades previstas pelo acordo Trips/Adpic pelos países em desenvolvimento parece muito complexo. Assinado no final de 1994, o acordo Trips/Adpic da OMC representava o ponto máximo de um consenso que oferecia, em troca de certo nível de proteção, algumas flexibilidades para ponderar e limitar essas proteções, caso necessário, a fim de permitir um equilíbrio justo entre direitos e obrigações. As tentativas de utilização dessas flexibilidades, como no caso da Tailândia, indicam, além das restrições inerentes a essas flexibilidades, algumas importantes limitações políticas. Questiona-se a capacidade do acordo Trips/Adpic de, fora a proteção da propriedade intelectual imposta, fornecer para o conjunto dos países signatários os meios para levar em consideração as necessidades nacionais de ordem social, como a saúde pública. É dessa forma que a história local do uso das licenças compulsórias na Tailândia, reabrindo um debate delicado sobre a inadequação das regras da OMC à realidade dos países em desenvolvimento, poderia vir ao encontro da história mais global de negociações entre países ricos e países pobres. Referências bibliográficas 1. SUBRAMANIAN, A. Putting some numbers on the TRIPS pharmaceutical debate. International Journal of Technology Management, 10 (2/3): p. 252-68, 1995. 2. REMICHE, B.; DESTERBECQ, C. Les brevets pharmaceutiques dans les accords du GATT: l’enjeu? Revue internationale de droit économique, (1): p. 7-68, 1996. 80 Tradução livre: “Condições não são as causas, condições não ‘agem’ da mesma forma que agentes individuais fazem, mas nenhum agente age sem elas.” Butler J. P. (2004), ‘Precarious life: The powers of mourning and violence’, New York: Verso, p.9. 94 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas 3. VELÁSQUEZ, G.; BOULET, P. Globalization and access to drugs: perspectives on the WTO/ TRIPS Agreement. WHO, Health Economics and Drugs, EDM Series, Geneva, 1999, n. 7 (Revised). 4. SELL, S. TRIPS-plus Free Trade Agreements and access to medicines. Liverpool Law Review, 28(1): 41-75, 2007, p. 17. Traduction réalisée par l’auteure de ce chapitre. 5. CRONIN, D. EU split arises over Thai effort to obtain cheaper patented drugs. Intellectual property Watch, sept. 2007. Available at: http://www.ip-watch.org/weblog/index. php?p=732&res=1024&print=0. 6. SALLSTROM, L. R. US withdrawal of Thailand’s GSP benefits: real or imagined? TDRI Quarterly Review, 9(3): p. 15-22,1994. Available at: http://www.tdri.or.th/library/quarterly/text/gsp.htm; United States Trade Representative. (1996), ‘1996 National trade estimate–Thailand’, Available at: http://www.ustr.gov/Document_Library/Reports_Publications/1996/1996_National_Trade_Estimate/1996_NationalTrade_Estimate-Thail. html 7. MARKANDYA, S. Timeline of trade disputes involving Thailand and access to medicines. Consumer Project on Technology, 2001. Available at: http://www.cptech.org/ip/ health/c/thailand/thailand.html. 8. GUENNIF, S.; M’FUKA, C. Impact of intellectual property rights on Aids public health policy in Thailand. In: MOATTI, J. P.; CORIAT, B.; SOUTEYRAND, Y.; BARNETT, T.; DUMOULIN, J.; FLORI, Y. A. (ed.). Economics of AIDS and access to HIV/AIDS care in developing countries: issues and challenges. Anrs, Paris, 2003, p. 137-149, n. 144. 9. LIMPANANONT, J. Impact of US-Thailand FTA on access to medicines in Thailand. In: CHANYAPATE BAMFORD, C.; BAMFORD, A. (ed.). Free Trade Agreement: impact in Thailand. FTA Watch, Bangkok, Thailand, 2005, p. 59-74, p. 61. 10. BOSELEY, S. Battling pharma giants over AIDS drugs. Indian Express Newspapers, 1999. Available at: http://www.indianexpress.com/res/web/pIe/ie/daily/19991129/ige29091. html. 11. KRIKORIAN, G.; SZYMKOWIAK, D. Intellectual property rights in the making: the evolution of intellectual property provisions in US free trade agreements and access to medicine, Journal of World Intellectual property, 10(5): p. 388-418, 2007. 12. USTR. Special 301 Report. 2007, p. 27. Available at: http://www.ustr.gov/assets/Document_Library/Reports_Publications/2007/2007_Special_301_Review/asset_upload_ file230_11122.pdf Accessed: 25 march 2008. Capítulo 4. Condições de uso das licenças compulsórias: a ação do governo tailandês 95 CAPÍTULO 5 Procedimento de oposição: o caso Tenofovir Wanise Borges Gouvea Barroso Resumo: A Lei da Propriedade Industrial (LPI 9.279/96) passou a conceder patentes na área farmacêutica. A apresentação de subsídio a exame (oposição), usada em diversas áreas tecnológicas, poderia ser uma estratégia a ser adotada em produtos importantes para a saúde pública. Nesse procedimento, terceiros podem apresentar esclarecimentos fundamentados e documentos de modo a auxiliar o examinador durante o exame do pedido de patente, para impedir que patentes sejam concedidas indevidamente. Esses documentos e esclarecimentos devem comprovar que os critérios de patenteabilidade, necessários à concessão das patentes, não foram atendidos. Neste capítulo, descrevemos os fundamentos e a elaboração do subsídio ao exame aplicado ao pedido de patente do medicamento Tenofovir, antirretroviral incluído no consenso terapêutico brasileiro e amplamente utilizado no tratamento da HIV/Aids. Diferentemente da licença compulsória que é decretada após a patente já ter sido concedida, ocasionando a suspensão temporária do direito de propriedade atribuído pela carta patente ao seu detentor, o procedimento de subsídio ao exame acarreta menos danos técnicos e políticos para o governo por ocorrer, antes da concessão da carta patente, ao longo do processo de exame do pedido de patente. Palavras-chave: Patente, tenofovir, subsídio a exame, oposição, medicamento I. Introdução O presente estudo teve início em 2004 como resultado do estágio financiado conjuntamente pelo Programa Nacional de DST/Aids – Ministério da Saúde, pelo Brasil, e pelo Ministère des Affaires Etrangères, pela França81. Com a entrada em vigor da Lei da Propriedade Industrial n.. 9.279/96 - LPI, de 14 de maio de 1996 [1], a qual passou a estabelecer as cláusulas mínimas de Propriedade Intelectual definidas no Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (ADPIC – TRIPS em inglês). As consequên- 81 O estágio foi supervisionado na França pelo professor Luc Quoniam da Université de Toulon et du Var cias foram imediatas, principalmente no que diz respeito à área farmacêutica, ou seja, os produtos químico-farmacêuticos, agro-químicos e alimentícios: i) passaram a ser patenteados; ii) o tempo de proteção da invenção passou a ser de 20 anos; e, iii) o estatuto da patente pipeline permitiu o patenteamento de matéria já em domínio público no país. Essas modificações favoreceram, principalmente, os interesses dos proprietarios de produtos e processos farmacêuticos, em geral empresas farmacêuticas internacionais, em detrimento do acesso local ao conhecimento e aos bens produzidos. Em 1999, o Ministério da Saúde demonstrou seu descontentamento com os preços dos medicamentos patenteados praticados pelos laboratórios farmacêuticos, sinalizando com a possibilidade de usar a licença compulsória (RODRIGUES, 2009) [2]. No mesmo ano, devido ao alto custo dos medicamentos antirretrovirais (ARVs) comercializados no Brasil, o laboratório farmacêutico brasileiro Farmanguinhos82, que conta com especialistas altamente qualificados, começou a produzir os antirretrovirais que estavam em domínio público. Entretanto, outros medicamentos ARVs ainda estavam protegidos por patentes, como por exemplo o Kaletra, Nelfinavir e Efavirenz. Bermudez (2004) [3] descreve que, entre 2001 e 2003, os medicamentos Lopinavir/Ritonavir, Efavirenz e Nelfinavir (todos protegidos pelo mecanismo pipeline) foram alvo de negociações de preços entre o Ministério da Saúde e as empresas detentoras das patentes, em virtude do forte impacto que o consumo dos mesmos – de aproximadamente 60% – representava no orçamento para compra de ARVs. Rodrigues (2009) [2] esclarece que o país continuava refém das políticas de preços e distribuição de laboratórios titulares de patentes. Nos anos de 2001, 2003 e 2005, o Brasil não aplicou o mecanismo de licença compulsória a nenhum medicamento. O que ocorreu foram ameaças de aplicação desse mecanismo, durante a negociação de preços de medicamentos ARVs entre o governo e as empresas detentoras das patentes. Somente em 2007 o governo decretou, pela primeira vez, o licenciamento compulsório do medicamento Efavirenz. Sabemos da importância da proteção patentária de uma invenção, mas colocar em prática todos os dispositivos da legislação exige elevada capacitação e dispêndio de verba considerável, uma vez que o sistema é bastante burocrático e complexo, exige conhecimento e formação não apenas na área técnica, mas também em legislações nacionais e acordos internacionais referentes à propriedade industrial, domínio de diversos idiomas e de ferramentas de busca de informações, principalmente patentes e artigos, e especialização em novas tecnologias. Portanto, o conhecimento do Sistema de Patentes brasileiro é imprescindível para que se possa, por um lado, proteger e gerenciar adequadamente as inovações desenvolvidas em território nacional e, por outro, conhecer e empregar as flexibilidades previstas na 82 Instituto de Tecnologia em Fármacos – Unidade da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) produtora de medicamentos. 98 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas lei. Dentre as flexibilidades destacamos o licenciamento compulsório, discutido anteriormente, subsídio a exame (oposição) apresentado ao INPI durante o exame do pedido e nulidades administrativas e judiciais após a patente ter sido concedida. O dispositivo de subsídio ao exame deve ser utilizado com a finalidade de evitar o patenteamento da tecnologia que: (i) encontra-se em domínio público, (ii) não apresenta os requisitos de patenteabilidade; (iii) não foi suficientemente descrita, (iv) não trata de invenção e; (v) não consiste de matéria patenteável. Essa flexibilidade deve ser acionada antes de qualquer outra quando se tem por objetivo a comercialização e/ou produção de determinado produto para o qual haja um depósito de pedido de patente. Isso porque outras salvaguardas, como principalmente o licenciamento compulsório, gera grande desgaste técnico e político para os governos e integrantes de comissões responsáveis pela efetivação do licenciamento. Além disso, o tempo necessário para finalizar o processo é mais curto nos casos que contam com subsídio do que o tempo gasto em processo de licenciamento compulsório: a Figura 1 apresenta um fluxograma, onde se pode observar, que o tempo gasto até o final da análise do pedido de patente do medicamento Tenofovir com subsídio ao exame, foi de quatro. Já o processo de licenciamento compulsório do medicamento Efavirenz teve seis anos de duração. Figura 1 – Etapas e duração do processo de subsídio a exame de pedido (caso Tenofovir) e de licenciamento compulsório (caso Efavirenz). LICENÇA OBRIGATÓRIA EFAVIRENZ SUBSÍDIO AO EXAME TENOFOVIR 1a ameaça 22/08/2001 2001 2002 6 anos PRIMEIRA OPOSIÇÃO 06/12/2005 2003 2004 2a ameaça 06/2005 2005 2006 4 anos LICENÇA 07/05/2007 INDEF. (INPI) 08/04/2008 REJEIÇÃO (INPI) 26/08/2008 RECURSO (Gilead) 03/03/2009 REJEIÇÃO de RECURSO (INPI) 30/06/2009 Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir 2007 2008 2009 99 I.1. Por que estudar o medicamento Tenofovir? Dentre os medicamentos prescritos no tratamento e prevenção da HIV/Aids selecionamos nesse estudo o medicamento de nome comercial VIREAD®, tendo como princípio ativo o “tenofovir disoproxil fumarato” (Tenofovir DF), conhecido como Tenofovir, uma droga da classe de “Inibidor de transcriptase reversa nucleotídeo”. Ele é indicado para pacientes que apresentam rejeição aos medicamentos nucleotídeos utilizados como primeira linha no tratamento de Aids. O Ministério da Saúde (MS) incluiu o VIREAD® no tratamento de Aids no Brasil a partir do segundo semestre de 2003, sendo o 15º medicamento da lista de ARVs disponibilizados no Brasil, devendo ser administrado ao paciente 1 (um) comprimido de 300 mg por dia. Segundo fonte do MS, foram adquiridos 1.989.510 comprimidos de VIREAD® no ano de 2004, sendo que o preço de cada comprimido foi de US$ 7,68, o que correspondia a R$ 23,04, no câmbio da época. O total gasto pelo MS, em 2004, na compra do VIREAD® foi de US$ 15,25 milhões (ou R$ 45,8 milhões) e a previsão do gasto estimado para 2005 foi de US$ 23 milhões (ou R$ 69,2 milhões). De modo a se evitar gasto excessivo na aquisição do VIREAD®, foi estabelecido que o tratamento da HIV/Aids não deveria ser iniciado com o medicamento VIREAD®, e que antes de ser prescrito para o paciente dever-se-ia verificar, por meio de um teste de genotipagem, se o paciente apresentava resistência ao medicamento. Como esclarece Eloan Pinheiro, “é absurdo que o Brasil esteja pagando US$7 pelo tablete de Tenofovir, que é uma molécula muito velha. Nada justifica o Brasil estar pagando pesquisa e desenvolvimento de uma molécula inventada nos EUA em 1985, que foi aprimorada num sal para segundo uso, contra a Aids” [4]. Como esclarece Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional DST/Aids, “A redução do custo do Tenofovir possibilita o aumento do número de pacientes atendidos e, assim, o Tenofovir passa a ser um medicamento de escolha de primeira linha”, diz. Segundo ela, o remédio tem vantagens pela eficácia terapêutica, pela dosagem única diária e pela redução de sintomas colaterais [5]. II. Histórico de subsídios a exame (oposições) A Lei brasileira de propriedade industrial – LPI foi redigida de modo a cumprir as diretrizes mínimas do acordo ADPIC (TRIPS, em inglês), incluindo, também, disposições visando minimizar as imposições trazidas pelo Acordo, onde uma delas é o subsídio a exame (oposição) de pedido de patente estabelecido no Art. 31 da LPI 9.279/96, o qual pode ser apresentado até o final de exame. Esse dispositivo não pode ser considerado novo, pois o Código da Propriedade Industrial 5.772 – CPI, de 1971 [6], vigente até 1996, estabelecia em seu Art. 19 que as “oposições” de tercei- 100 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas ros poderiam ser protocoladas ao pedido de patente até 90 (noventa) dias após a publicação do pedido de exame na Revista da Propriedade Industrial (RPI). A proposta de substituir o antigo procedimento de oposição formal, com prazo definido de 90 dias a partir da publicação do pedido na RPI, por um novo procedimento de apresentação de subsídios a qualquer momento do exame surgiu na época em que o projeto que originou a LPI em vigor tramitava no Congresso Nacional. A minuta que circulava na época do Tratado de Harmonização de Leis de Patentes da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, defendia a inexistência de qualquer etapa de oposição anterior à concessão, o que representa uma forma de acelerar o exame de pedidos e a concessão das respectivas patentes. Assim, as fases de oposição formal de terceiros e o recurso contra o deferimento de pedidos de patente deixaram de ser incluídos na nova lei, sendo mantida, contudo, a possibilidade de terceiros apresentarem informações relevantes que pudessem subsidiar o exame, bem como o recurso contra o indeferimento. A ideia era que esses subsídios tivessem o efeito de uma denúncia e que os documentos fossem considerados como se tivessem sido encontrados pelo próprio examinador. Com isso, uma petição de subsídios entraria no “fluxo” normal do exame, dando oportunidade para que terceiros apresentassem informações relevantes, sem afetar o andamento do processo com prazos para apresentação de contestações e para que o depositante se manifestasse a respeito, em resposta. A fim de se evitar que o examinador se sentisse inclinado a aguardar até o final do prazo para uma possível apresentação desses subsídios para só então iniciar o exame, foi tido como mais apropriado manter em aberto até o final do exame a possibilidade de apresentação de subsídios. Logo, pelo fato de não incluir a figura da oposição ao pedido de patente reduziu-se a etapa processual uma vez que deixaram de existir: 1) o prazo de 90 dias, a partir da publicação do exame, para que terceiros apresentassem oposição; 2) a própria publicação do exame do pedido de patente na RPI, uma vez que não havia sentido em publicar o exame do pedido para contar o prazo de entrada de oposição; 3) a publicação de entrada de oposição no pedido, para que o depositante se manifestasse previamente sobre os termos da oposição, antes que o examinador iniciasse o exame do pedido. Somados todos esses prazos, logrou-se uma redução de, no mínimo, 3 meses e de pelo menos 6 meses nos casos em que uma oposição era apresentada. Na mesma linha, reduziu-se o lapso de tempo que decorre entre o deferimento e a expedição da patente, mediante extinção da possibilidade de que terceiros recorram contra o deferimento do pedido de patente. Face esse novo procedimento processual incluído na Lei brasileira de PI, o chamado “subsídio a exame”, foi mantida a nullidade administrativa, após expedida a patente, que, em realidade, passa a ser a única instância de contestação formal entre depositante e a parte contrária (terceiros interessados). Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir 101 III. Conceitos relevantes Discutir os conceitos referentes aos requisitos de patenteabilidade, independência das patentes e falta de suficiência descritiva são de extrema relevância quando desejamos apresentar subsídio ao exame. Para que uma patente seja concedida, ela deve atender aos seguintes requisitos de patenteabilidade: novidade: a invenção é considerada “nova” quando não estiver compreendida no estado da técnica83. atividade inventiva: a invenção é dotada de atividade inventiva quando não for considerada óbvia para um técnico no assunto. aplicação industrial: a invenção será considerada suscetível de aplicação industrial quando possa ser utilizada ou produzida em “qualquer tipo” de indústria. Conforme previsto na LPI 9.279/96 uma patente pode ser concedida a um produto, formulação ou processo, quando se deseja proteger alguma invenção da área farmacêutica. No entanto, muitos depositantes também reivindicam o uso do medicamento bem como o “método terapêutico” ou a “segunda indicação terapêutica”. Cabe a cada país definir os critérios de patenteabilidade ou seja: “critérios amplos” os quais podem levar a um maior número de patentes concedidas e “critérios mais limitados” onde serão concedidas patentes apenas para determinadas invenções, onde não serão concedidas patentes para modificações óbvias de produtos já conhecidos ou de fenômenos que ocorrem na natureza. Dessa forma, o tipo de adoção dos critérios de análise poderá levar um país a conceder mais patentes do que outro. Ressaltamos também que as patentes têm validade apenas no território em que foi concedida. Ou seja, o fato de uma patente ser concedida num determinado país não significa que seu pedido de patente correspondente deverá ser automaticamente concedido em outro país. Este é o chamado princípio da “independência das patentes” [7]. A concessão de uma patente é uma decisão nacional, baseada em critérios nacionais, tendo como patamar mínimo o estabelecido no Acordo ADPIC [8]. Outro questionamento bastante utilizado nos pedidos de patente é o da falta de suficiência descritiva da invenção, segundo o art. 24 da LPI, “O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução.” 83 Artigo 11 da LPI (9.279/96): A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica. § 1º – O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido de patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior, ressalvado o disposto nos arts. 12, 16 e 17. 102 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Ou seja, muitos pedidos de patente não apresentam a descrição suficiente da invenção de modo que um técnico no assunto possa reproduzir a mesma. Assim, no exame de um pedido deve ser avaliado se o mesmo apresenta suficiência descritiva. IV. Andamento do Pedido de Patentes do Tenofovir De modo a propiciar a visualização de todo o processamento de um subsídio a exame de pedido de patente, apresentamos a seguir o caso referente ao medicamento Tenofovir. Os dados bibliográficos do pedido de patente do Tenofovir são os seguintes: Pedido de Patente: PI9811045-4 Data do depósito: 23/07/1998 Prioridade Unionista: País Número Data US 08/900,752 25/07/1997 US 60/053,777 25/07/1997 Depositante: GILEAD SCIENCES, INC. Inventores: John D. Munger, Jr / John C. Rohloff / Lisa M. Schultze Título: Composição de análogo de nucleotídeo e processo de síntese Resumo: A invenção fornece uma composição que compreende bis(POC) PMPA e ácido fumárico (1:1). A composição é útil como um intermediário para a preparação de compostos antivirais, ou é útil para a administração a pacientes para terapia antiviral ou profilaxia. A composição é particularmente útil quando administrada oralmente. A invenção também fornece processos para obter PMPA e intermediários na síntese de PMPA. As modalidades incluem t-butóxido de lítio, 9-(2-hidroxipropil) adenina e p-toluenossulfonilmetóxifosfonato de dietila em um solvente orgânico tal como DMF. A reação resulta em preparações de PMPA de dietila contendo um perfil de subproduto melhorado comparado a PMPA de dietila obtida por métodos anteriores. PCT: País: US Número: US9815254 Data:23/07/1998 Data RPI : 22/08/2000 Despacho 1.3 Data da publicação: 04/02/1999 Publicação INPI: N° RPI: 1546 O pedido de patente PI9811045-4 passou pelas seguintes etapas: Em 5/9/2000 a Gilead requereu o exame do pedido de patente PI9811045 no INPI. Apresentação de três subsídios a exame ao pedido de patente, a saber: 1. Em 06/12/05 – Petição de subsídio ao exame apresentada pelo Instituto de Tecnologia em Fármacos – Farmanguinhos (n. 20050141995). Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir 103 2. Em 01/12/06 – Petição de subsídio ao exame apresentada pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e outros (n. 20060179654). 3. Em 02/01/07 – Petição de subsídio ao exame apresentada pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz (n. 20070000016). Nos três subsídios são apresentados esclarecimentos e anterioridades que mostram que a matéria reivindicada no PI9811045-4 não possui atividade inventiva pelo fato do composto fumarato de bis(POC)PMPA bem como a produção e formulação contendo o mesmo não apresentam efeito técnico novo face as anterioridades citadas. Assim, foi solicitado o indeferimento do PI9811045-4. Em 8/4/2008, na RPI n. 1944, foi publicado o parecer de ciência (código de despacho 7.1), redigido pelo examinador de patentes, alegando que o PI9811045-4 não era passível de proteção por estar em desacordo com os Artigos 8º, 10 (VIII), 13, 24 e 25 da Lei n. 9.279/96. O parecer foi assinado por uma comissão de examinadores do INPI composta por Luiz Eduardo Kaercher, Romi Lamb Machado e Liane Elizabeth Caldeira Lage, questionando não apenas a forma das reivindicações, como também os aspectos físico-químicos dos produtos e processos reivindicados, evidenciando ainda a completa fragilidade do pedido. O depositante Gilead teve até o dia 07/07/08 para apresentar manifestação face ao parecer técnico do INPI. Em 26/08/08, na RPI n. 1964, o INPI publicou indeferimento do pedido de patente do Tenofovir pelo fato do mesmo estar em desacordo com os Artigos 8º e 13 da LPI 9.279, onde a firma Gilead teve 60 dias para recorrer. Para observadores do processo, havia poucas chances de a decisão se reverter. Mesmo cabendo recurso, a decisão trouxe uma nova perspectiva para a negociação de preços do Tenofovir pelo Brasil, uma vez que o contrato entre o Ministério da Saúde e a firma Gilead terminaria dentro de pouco tempo. “Certamente, havia a possibilidade de solicitar um preço bem menor do que era cobrado”, disse Reinaldo Guimarães [9]. Na data 03/03/09 a Gilead apresentou recurso contra o indeferimento do pedido. Em 30/06/2009 foi publicada a manutenção do indeferimento pelo INPI. V. Discussão V.1. A exemplaridade do “caso Tenofovir” O subsídio ao exame apresentado para o pedido PI9811045-4 foi de grande relevância para o país, uma vez que, face ao seu indeferimento, o tenofovir pode 104 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas ser produzido e comercializado por qualquer laboratório interessado no país, não havendo impedimento legal e nem a necessidade de pagamento de royalties para o depositante do pedido. Essa iniciativa deve ser um exemplo a ser seguido não apenas pelo governo federal, através do Ministério da Saúde e de seu laboratório Farmanguinhos, mas por qualquer outro produtor que tenha interesse em produzir e/ou comercializar produto para o qual esteja sendo requerida proteção no país. É um procedimento muito utilizado pelas empresas farmacêuticas e deve também ser considerado um instrumento importante dos laboratórios oficiais que atuam no mesmo mercado e desejem influenciar a concorrência para a redução de preços. O subsídio ao exame evitou grande desgaste em negociações por parte do Ministério da Saúde (MS) com o laboratório farmacêutico que havia depositado o pedido de patente do Tenofovir, evitando, caso a patente tivesse sido concedida, o licenciamento compulsório da patente. Assim, é de grande relevância para o governo a adoção de estratégia de monitoramento de pedidos de patente de matéria de seu interesse, com a possível apresentação subsequente de subsídio ao exame, de modo a se evitar o patenteamento indevido de produto farmacêutico no país. O presente estudo mostrou a importância do trabalho multidisciplinar em rede, pois para se redigir subsídio ao exame com argumentos consistentes é necessária a participação de especialistas nas áreas da propriedade industrial, ciência da informação, síntese orgânica, formulação de medicamentos, direito, saúde pública, entre outros. Verificamos que para outros medicamentos, principalmente relacionados a HIV/ Aids, poderiam ser apresentados subsídios ao exame junto ao INPI, pois os pedidos de patentes de alguns medicamentos carecem dos requisitos de patenteabilidade. V.2. O acesso ao Tenofovir Com a redução do custo para o Ministério da Saúde, o Tenofovir passou a ser um medicamento de escolha no tratamento de primeira linha no Brasil. Assim, um número maior de pacientes portadores de HIV/Aids passaram a ter acesso ao tratamento com esse medicamento uma vez que conseguiu-se a redução do preço de comercialização. A diminuição do preço também permitiu que o Tenofovir fosse usado como primeira opção de tratamento para portadores de hepatite B. A previsão em 2009 é a de que, no primeiro ano, 2,5 mil pessoas recebam indicação para o remédio [10]. Os pacientes com Aids de outros países emergentes ou em desenvolvimento deverão ter mais acesso a tratamentos contra a doença, uma vez que, por exemplo, as autoridades indianas indeferiram o pedido de patente do Tenofovir. Da mesma forma, o escritório de patentes de Nova Delhi confirmou apelação da Cipla, fabri- Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir 105 cante de medicamentos genéricos da Índia, para rejeitar a proteção intelectual ao Tenofovir conhecido pelo nome de marca de Viread, um dos tratamentos mais usados contra a Aids [11]. A Cipla é uma empresa indiana produtora do genérico do Tenofovir que obteve certificação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Logo, tal medicamento está disponível para compra pelo Brasil. V.3. Discussões sobre o uso da legislação de PI no Brasil Após a apresentação do subsídio ao exame ao pedido de patente do Tenofovir ocorreram, no INPI, várias discussões referentes ao patenteamento na área farmacêutica e biotecnológica. Dentre os principais temas de discussões temos: polimorfos, segundo uso farmacêutico, patentes de seleção, sais de substâncias conhecidas e invenções incrementais. Tais discussões resultaram em importantes resoluções oficiais. Resolução 132 INPI de 17.11.2006 O INPI publicou resolução definindo critérios para exame prioritário de pedidos de patente. O Art. 3º da resolução estabelece que “serão examinados prioritariamente, de ofício, os pedidos de patente cujo objeto esteja abrangido pelo ato do Poder Executivo Federal que declarar emergência nacional ou interesse público”. Resolução 191 INPI de 10.10.2008 Face ao entendimento de que o país estaria decretando novo licenciamento compulsório a resolução 132 que trata de exame prioritário de pedidos de patente foi substituída pela resolução 191. Assim, o Art. 4º passou a definir que “seriam examinados prioritariamente, por solicitação do Ministério da Saúde, pedidos de patentes relativos a medicamentos que fossem regularmente adquiridos pelo SUS”. Em suma, este estudo sobre subsídio (oposição) a exames de patentes farmacêuticas nos mostrou o valor da utilização deste dispositivo, que tem impacto: no plano industrial, ao permitir que qualquer firma interessada venha a desenvolver o produto e produzi-lo; no preço do medicamento e, consequentemente, no acesso a tratamentos; e, ainda, na regulação da propriedade intelectual, ao propiciar um debate sobre diretrizes ao exame com vistas à melhoria da qualidade dos exames de patentes no país. Referências bibliográficas 1. 106 BRASIL. Lei da Propriedade Industrial n. 9.279. Regula Direitos e Obrigações Relativos à Propriedade Industrial. 14 mai. 1996. Propriedade Intelectual e Políticas Públicas 2. RODRIGUES, W. C. V.; SOLER, O. Licença compulsória do efavirenz no Brasil em 2007: contextualização. Rev. Panam. Salud Publica [online], v. 26, n. 6, p. 553-559, 2009. 3. BERMUDEZ, J. A. Z.; OLIVEIRA, M. A.; CHAVES, G.C. O Acordo TRIPS da OMC e os desafios para a saúde pública. In: BERMUDEZ, J. A. Z.; OLIVEIRA, M. A.; ESHER, A. (Org.). Acceso a medicamentos: derecho fundamental, papel del Estado. Rio de Janeiro: ENSP/FIOCRUZ, p. 69-89, 2004. 4. GENEBRA, A. M. Brasileira defende a quebra de patentes para baratear remédios, como já ocorre nos EUA. Valor Econômico, 22/11/2004. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/clipping/mostra_clipping.asp?id=19769> Acesso em: 23 fev. 2010. 5. NEWS.MED.BR, 2011. HIV: tenofovir, distribuído gratuitamente para 11 mil pessoas, fica 51% mais barato. Disponível em: <http://www.news.med.br/p/hiv++tenofovir++distri buido+gratuit-1288.html>. Acesso em: 25 fev. 2010. 6. BRASIL. Código da Propriedade Industrial n. 5.772. Institui o novo Código da Propriedade Industrial, e dá outras providências. 21 dez. 1971. 7. CUP. Convenção da União de Paris. Decreto n. 75.572, de 8 abril 1975. Promulga a Convenção de Paris sobre a Proteção da Propriedade industrial, revisão de Stockholm, 1967. 8. ADPIC. Acordo sobre aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionado ao comércio. Decreto n. 1.355, de 30 dez. 1994. Promulga a Ata Final que Incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT, 2004. 9. Consulta Remédios, 2008. INPI nega patente para anti-retroviral Tenofovir. Disponível em: <http://www.consultaremedios.com.br/noticia.php?id=1127>. Acesso em: 25 fev. 2010. 10. Confiantes no Futuro, 2009. Tenofovir – Droga para Aids vai tratar hepatite B . Ministério afirma que acordo entre farmacêuticas atrasou ampliação dos usos aprovados do medicamento. Disponível em: <http://confiantes-no-futuro.blogspot.com/2009/10/tenofovirdroga-para-Aids-vai-tratar.html>. Acesso em: 25 fev. 2010. 11. Agência Aids. Índia derruba patente do Tenofovir, destaca Valor Econômico. Disponível em: <http://www.hiv.org.br/internas_materia.asp?cod_secao=acontece&cod_materia=2648>. Acesso em: 25 fev. 2010. Capítulo 5. Procedimento de oposição: o caso Tenofovir 107 CAPÍTULO 6 Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos no Brasil Maurice Cassier Marilena Correa Resumo: A implementação da lei de propriedade industrial votada em 1996 instaurou patentes de produtos e processos farmacêuticos no Brasil, concomitantemente à difusão da política de luta contra a epidemia de Aids. Nesse contexto, os autores dessa biopolítica84 de acesso aos tratamentos, como o Ministério da Saúde, as associações de pacientes, as ONGs internacionais, os laboratórios de genéricos se engajaram na invenção e no uso de flexibilidades do direito de patentes com o objetivo de defender o interesse público e o interesse dos pacientes. Estudamos neste artigo as flexibilidades e as regulações usadas no Brasil: intervenção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) na atribuição das patentes farmacêuticas, obtenção do direito de fazer a engenharia reversa de medicamentos patenteados, decisão de licença compulsória, uso do direito de oposição a pedidos de patentes (“subsídios ao exame”), intervenções de ONGs e associações de pacientes e do laboratório farmacêutico federal do Ministério da Saúde no campo das patentes, da propriedade pública das invenções, e das invenções fora do âmbito da propriedade intelectual. Palavras-chave: patentes; medicamentos; flexibilidades; oposições; licença compulsória; sociedade civil. I. Introdução Com o advento das triterapias contra o vírus da Aids, o Brasil se tornou um espaço de uma tensão particular entre propriedade intelectual e saúde pública. De um 84 A noção de « biopolítica » proposta por M. Foucault, 1978-1979, recobre as intervenções dos Estados ou dos atores da sociedade civil no campo da saúde, da higiene, da natalidade, da longevidade etc. com o objetivo de gerenciar, manter e proteger as populações [1]. Pensamos que a política de acesso universal aos tratamentos do HIV/AIDS, estabelecida pelo governo do Brasil e defendida pelas associações, se adequa à utilização do termo. lado, o Congresso Nacional adota de maneira antecipada, a partir de 1996, o patenteamento farmacêutico para se adequar aos ADPIC – Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio (em inglês, TRIPS) – da OMC (Organização Mundial do Comércio), de outro lado o Estado, no âmbito do Ministério da Saúde, instaura uma política de acesso universal aos tratamentos para HIV/ Aids, inscrita em uma lei promulgada em novembro de 1996 pelo então Senador, ex-presidente da República, José Sarney85. Desse modo, o ano de 1996 vê o aparecimento de duas leis contrárias, uma vez que a nova lei brasileira de patentes86 estabeleceu uma propriedade exclusiva sobre os produtos terapêuticos, ao passo que a lei Sarney os tornou produtos de interesse público para responder à epidemia do HIV/Aids. O mesmo conflito se estende ao campo da cópia e da produção local de medicamentos genéricos. O programa de cópia de ARVs iniciado pelo Ministério da Saúde em 1997 logo se choca com o novo regime de patenteabilidade, no que tange os ARVs de gerações mais recentes. Assim, enquanto no início dos anos 2000, o laboratório federal empreende a engenharia reversa de ARVs patenteados, como foi o caso do Efavirenz, a firma Merck tenta fazer valer seu título de propriedade visando bloquear o trabalho de pesquisa dos químicos brasileiros, de cópia desse princípio ativo. Essa situação bastante contraditória entre as patentes de produtos farmacêuticos e a lei de acesso universal aos tratamentos para HIV/ Aids, entre o regime de livre cópia dos ARVs e os direitos exclusivos que abrangem os novos ARVs, entre as listas de medicamentos essenciais da RENAME – Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – e os monopólios de fornecimento dos medicamentos, gera um aumento das tensões e das lutas sobre e contra o direito de patentes para que se consiga um equilíbrio entre o interesse dos detentores de patentes e o interesse da saúde pública. A primeira hipótese que formulamos é a de fabricação do direito de patentes de medicamentos no Brasil no contexto de lutas e de regulações públicas e cidadãs voltadas para fazer valer o interesse público face ao direito de propriedade. A primeira forma de regulação estudada, diz respeito ao próprio processo de atribuição do direito de propriedade, ou seja, quando do exame e da concessão de patentes farmacêuticas. Sobre este ponto, em 1999, o ministro da Saúde José Serra decide conferir à ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária –, que ele acabara de criar, um direito de decisão na concessão de patentes farmacêuticas: “A concessão de patentes para produtos ou processos farmacêuticos deve depender da anuência prévia da ANVISA” (artigo 229-C da Lei 9.279/96). A intervenção de duas instituições, o INPI – Instituto de Propriedade Industrial – e a ANVISA, no processo de exame e de concessão de patentes farmacêuticas suscita uma forte oposição dos agentes de propriedade industrial e da indústria farmacêutica internacional, que denunciam a mistura de gêneros, a saúde pública e a propriedade das invenções. 85 Decreto 9.313 de 13 de novembro de 1996. 86 Lei brasileira de Propriedade Industrial – LPI 9.279/96.. 110 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Uma segunda forma de uso dos direitos de propriedade intelectual ocorre através do processo judicial que opõe a firma Merck ao laboratório público federal Farmanguinhos relativamente aos estudos ali empreendidos de engenharia reversa deste medicamento patenteado, o Efavirenz. Em dezembro de 2006, o Tribunal Federal do Rio de Janeiro proferiu decisão favorável à engenharia reversa do medicamento a fim de não atrasar a entrada de genéricos, que viria a ampliar o acesso a portadores do HIV/Aids. A terceira forma de regulação se refere ao uso das licenças compulsórias emitidas em razão de interesse público. Em maio de 2007, o presidente do Brasil assina um Decreto autorizando uma licença compulsória, “no interesse público e com fins não comerciais”, para importar matéria-prima e produzir o Efavirenz. Era a primeira vez no Brasil que uma licença compulsória envolvia um medicamento. É importante compreender as condições de possibilidades dessa licença compulsória em um país tão estratégico quanto o Brasil para a indústria farmacêutica e para a política de saúde pública em relação à epidemia de Aids. A quarta diz respeito ao uso das oposições que terceiros podem acionar perante o INPI do Brasil. Em 2006, várias oposições (subsídios aos exames) são feitas contra os pedidos de patentes do Tenofovir e do Kaletra, pelo laboratório federal de Farmanguinhos e por um coletivo de associações de luta contra o HIV/Aids e pelos direitos dos pacientes, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI/ REBRIP). Essas oposições terão um grande efeito, já que o INPI acabou por rejeitar a concessão de patente do Tenofovir à firma Gilead, que dessa forma cai em domínio público. A quinta consiste no depósito de patente pelos laboratórios farmacêuticos públicos como forma de controlar sua exploração futura. O laboratório federal de Farmanguinhos depositou pedidos de patentes para novos ARVs, desde o início dos anos 2000; tanto com o objetivo de desenvolver novos medicamentos em cooperação com a universidade e com os laboratórios nacionais privados, produtores de genéricos, quanto para controlar os seus preços. Finalmente, uma sexta forma de regulação consiste em gerenciar as invenções farmacêuticas fora do âmbito da patente, em consórcios industriais que visam a garantir a acessibilidade das inovações médicas e dos tratamentos. Trata-se em primeiro lugar, a partir de 2002, da participação do laboratório Farmanguinhos no consórcio FACT – Fixed-Dose Artesunate Combination Therapy – para desenvolver novas combinações de moléculas contra a malária. E, mais recentemente, desde 2007, do consórcio montado entre cinco laboratórios brasileiros, públicos e privados, para assegurar o desenvolvimento da tecnologia e o lançamento da produção industrial do Efavirenz no Brasil. A segunda hipótese que propomos se refere à expansão do círculo de atores no campo da propriedade intelectual. Enquanto o direito de oposição é tradicionalmente usado pelos industriais para limitar a extensão do domínio reservado de seus concorrentes, o direito de oposição no campo do medicamento é empregado Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 111 pelas associações de doentes ou pelo laboratório oficial do Ministério da Saúde para aumentar a acessibilidade aos tratamentos e viabilizar a política de saúde do Estado. Vimos que a análise dos pedidos de patentes de medicamentos não era apenas da alçada dos examinadores do Instituto de Propriedade Industrial, dependendo também da competência da ANVISA. Por sua vez, as campanhas públicas para as licenças compulsórias mobilizaram um amplo espectro de atores que vão desde as ONGs/Aids nacionais e as ONGs internacionais, os advogados universitários ou profissionais, os laboratórios fabricantes de genéricos, e o Ministério da Saúde. Esses embates dão lugar a alianças originais entre o Estado, as ONGs e os produtores de genéricos. Esses diversos atores, ONGs e Ministério da Saúde, têm gradualmente desenvolvido uma contra-expertise no campo do direito de patentes. As ONGs têm inclusive incluído advogados especializados em seus quadros. As monografias jurídicas circulam entre os diferentes atores, entre os especialistas do laboratório federal e as associações brasileiras; ou ainda, entre ONGs em escala internacional, com vistas à coordenação de suas ações no que diz respeito às oposições a pedidos de patentes de medicamento e na área farmacêutica. A abordagem sociológica utilizada neste artigo inclui uma sociologia do direito [2] que visa captar os usos das regras do Direito pelos atores; ou seja, durante as lutas sociais e os conflitos jurídicos, bem como os efeitos sociais dessas ações. A noção de biopolítica empregada neste texto supõe a interrogação dos atores que mobilizam esta ou aquela regra do Direito: por exemplo, as ONGs e as associações que militaram pela utilização das disposições de licença compulsória inscritas no direito de patentes do Brasil; os especialistas e as instituições passíveis de aplicar, utilizar, controlar o uso da regra de direito (escritórios de patentes, examinadores de patentes, advogados, juízes); os processos concretos de elaboração dos títulos de propriedade (os especialistas que redigem as patentes ou os examinadores que as avaliam); os processos de regulação e de julgamento (como nos processos de oposição às patentes que envolvem terceiros no exame e concessão das patentes). A abordagem sociológica se interessa, portanto, pelo trabalho diário de uso do direito de patentes, no INPI e na ANVISA, pelo trabalho parlamentar que, no momento, aponta para uma reforma da lei de PI (projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional) ou ainda pelos embates jurídicos (processos ou oposições às patentes), que podem promover um deslocamento da regra do Direito (como no julgamento do processo Merck/Farmanguinhos ocorrido em 2006) e que autorizou a engenharia reversa de medicamento patenteado em nome do interesse público. 112 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas II. A intervenção da ANVISA na fabricação e na concessão de patentes (a anuência prévia) Em 1999, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária foi criada, o ministro da Saúde, José Serra, decidiu submeter a concessão das patentes farmacêuticas ao consentimento prévio da ANVISA. Essa disposição temporária foi inscrita na lei de propriedade intelectual em 2001. A concessão das patentes farmacêuticas implica portanto na dupla autoridade do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, esta última tendo um direito de veto no processo de concessão das patentes. A autoridade da ANVISA no processo de atribuição de patentes farmacêuticas é justificada pela missão específica da agência que é de proteger e de promover a saúde pública e de garantir os interesses dos pacientes:”‘Uma vez que a missão da Anvisa é proteger e promover a saúde da população, garantindo a segurança sanitária dos produtos e dos serviços de saúde e participar da construção de seu acesso, a Agência, desde sua criação, considerou importante sua participação no processo de avaliação das patentes de medicamentos e processos farmacêuticos. A preocupação que a guia é o impacto dos direitos de propriedade intelectual nos preços dos medicamentos e, consequentemente, na acessibilidade de sua população”.87 Quando confere uma autoridade especial à ANVISA no processo de atribuição de patentes de medicamentos, o Estado brasileiro muda a natureza da propriedade industrial que tem de estar de acordo, agora, com o interesse da saúde pública. O responsável pela Coordenadoria de propriedade intelectual da ANVISA enfatiza a “função social” da propriedade88 que tem como base limitar os abusos, na medida que o patenteamento poderia prejudicar o interesse dos doentes e das populações. Os juristas das associações e ONGs envolvidos nas discussões sobre propriedade intelectual no Brasil veem na anuência prévia “uma medida para proteger os pacientes, impedindo a concessão indevida de patentes de medicamentos” [3]. Essa disposição é objeto de importantes controvérsias [3, 4, 5, 6, 7, 8, 9] e de processos movidos pelos laboratórios internacionais que tiveram importantes patentes negadas pela ANVISA como, por exemplo, a patente do Taxotère da firma Aventis, ao passo que o INPI a aceitara. Em 2004, a Aventis entrou com uma ação contra a ANVISA denunciando abuso de poder na área de concessão das licenças e pedindo a restrição de sua autoridade nas questões de saúde.89 Para a Aventis, o exame e a concessão de patentes devem depender unicamente do INPI. 87 www.anvisa.gov.br/rel/proprieintelectual.htm, citado por Guimarães, 2008. 88 A teoria da função social da propriedade está inscrita na Constituição brasileira de 1988, cf. Maristela Basso, 2006. 89 Julgamento do Tribunal Federal do Rio de Janeiro, 15 de julho de 2008. Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 113 Essa regulação especial das patentes farmacêuticas supunha o estabelecimento de um dispositivo concreto de exame dos pedidos de patentes no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A Coordenadoria de Propriedade Intelectual ou COOPI, instalada no Rio de Janeiro, em local próximo ao INPI para facilitar as trocas entre as duas instituições, foi colocada sob a autoridade de um diretor da ANVISA. Em 2001, a ANVISA selecionou 16 profissionais (químicos, farmacêuticos, biólogos) que receberam um treinamento em propriedade intelectual. Decidiu-se formar quatro equipes, cada uma delas sendo composta por quatro examinadores que tinham trabalhado durante dois anos no INPI [7]. A COOPI também dispõe de um Grupo de Apoio Técnico, composto de quatro engenheiros químicos, de um médico e de um advogado, que supervisiona e discute cada processo. Guimarães (2008) acompanhou o trabalho dos examinadores da COOPI que é bastante semelhante ao trabalho dos examinadores do INPI: busca das anterioridades e avaliação dos pedidos sob o ponto de vista dos critérios de patenteabilidade tradicionais, ou seja, novidade, atividade inventiva e aplicação industrial. Aparentemente, os examinadores da ANVISA dispõem de mais tempo para o exame de cada processo relativamente ao tempo disponível aos seus colegas do INPI, mesmo que se exija da ANVISA que ela dê seu parecer no prazo de 120 dias.90 É bom relembrar aqui que os examinadores da ANVISA intervêm depois dos examinadores do INPI e que dispõem do relatório de exame de seus colegas do INPI. Durante uma audiência pública na Câmara em novembro de 2009, o presidente do INPI denunciou com veemência a confusão das responsabilidades e a duplicação de tarefas entre as duas agências “quando enviamos um pedido de patente para ser analisada pela ANVISA, é porque o INPI já a aceitou. E quando eles recusam conceder essa patente, nós temos relatórios de exame diferentes”. O presidente do INPI também questiona a expertise da COOPI-ANVISA “nosso grupo de exame é mais importante e mais bem preparado do que o grupo da ANVISA que conta com apenas 18 pesquisadores”. Finalmente, ANVISA e INPI discordam sobre um projeto de lei que altera a lei das patentes, em tramitação na Câmara dos Deputados, em novembro de 2009. Ao mesmo tempo em que a ANVISA selecionava e treinava seus examinadores, em parte oriundos do INPI, ela tinha de estabelecer suas próprias orientações e procedimentos de exame. Com efeito, a lei de 2001 que estabelece a anuência prévia é muito sucinta: ela consagra o consentimento da ANVISA, mas não diz nada sobre sua organização nem sobre o conteúdo deste trabalho. Para avaliar as patentes, a Coordenação de Propriedade Intelectual se apoia nos critérios de patenteabilidade tradicionais e se baseia no texto de lei de patentes. Ela enfatiza a natureza técnica e jurídica de seu exame, ao contrário das acusações de “ideologia” de que às vezes ela é o objeto.91 Ao se reportar e se vincular à lei das patentes do Brasil e aos acordos 90 Visita à COOPI que fizemos em março de 2006; entrevista com seu diretor à época, Luis Carlos Lima, e os advogados do grupo técnico de apoio. 91 Audiência pública, Câmara dos Deputados, novembro de 2009. 114 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas TRIPS da OMC, a COOPI ancora seu trabalho no direito nacional e internacional. Ao mesmo tempo, e é nesse ponto que a COOPI reinventa o direito de patentes, ela interpreta os critérios de patenteabilidade dos medicamentos em função de sua missão, ou seja, a proteção dos pacientes e das populações. Daí a produção de um corpus próprio de interpretação e de diretrizes que foram parcialmente divulgadas em artigos de autoria dos advogados e do responsável pela COOPI; ou ainda, durante os debates ou audiências públicas na Câmara dos Deputados.92 As duas regras elaboradas e aplicadas pela COOPI que foram particularmente debatidas tratam da não patenteabilidade dos polimorfos e do 2º uso terapêutico das moléculas farmacêuticas [3, 7, 9]. A contribuição da Coordenadoria de Propriedade Intelectual da ANVISA aos exames de pedidos de patentes no Brasil é bem clara aqui, uma vez que ela produz um novo corpus de interpretação das regras de patenteabilidade e que eleva os padrões de concessão das patentes de medicamentos com o objetivo de preservar o interesse da saúde pública e a extensão do domínio público das invenções farmacêuticas. A COOPI é um campo de testes para colocar em ação as flexibilidades das patentes de medicamentos. III. Obter o direito de fazer a engenharia reversa de medicamentos patenteados: o processo MERCK/Farmanguinhos (2004-2006) No mesmo momento em que as negociações com a Merck para obter uma licença voluntária para a fabricação do Efavirenz no Brasil chegavam a um impasse, o laboratório público federal de Farmanguinhos lançava uma licitação internacional, em setembro de 2004, para compra de matérias-primas, no intuito de empreender estudos com vistas à reprodução de diversos ARVs patenteados; entre eles o Efavirenz. A compra de matérias-primas para o estudo de medicamentos patenteados é justificada pela necessidade de obtenção de informações tecnológicas necessárias para o registro de genéricos desses ARVs junto à ANVISA. A Merck logo contesta a validade da licitação: sendo ela a única proprietária do Efavirenz, não pode haver licitação e concorrência sobre a molécula. Farmanguinhos suspende por um tempo o andamento da licitação e se dirige à Merck para adquirir os 200 kg de matériasprimas necessárias para a fabricação dos lotes industriais de teste solicitados pela ANVISA para registro do genérico. A Merck discorda frontalmente da utilização dessas matérias-primas. Simultaneamente, recomeçam as negociações para a ob92 A questão da divulgação incompleta das diretrizes da COOPI e da ANVISA foi tema de discussões (3, 7). Podemos ver nesse fato o efeito da prudência da ANVISA que não pretendia tornar rígidas suas divergências em relação às diretrizes do INPI ou ainda o fato de que a COOPI estava ainda elaborando essas diretrizes. Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 115 tenção de uma licença voluntária entre a Merck e a Farmanguinhos: uma equipe da Merck visita as instalações industriais de Farmanguinhos em 14 de outubro de 2004. No final, as duas transações fracassam, já que as duas partes não concordam sobre o preço das matérias-primas: Farmanguinhos se baseia no preço do Efavirenz genérico; Merck refere-se ao preço de mercado do princípio ativo patenteado. Reconhecendo o impasse, Farmanguinhos relança a licitação e a Merck entra com um processo judicial, pedindo a anulação da referida licitação de Farmanguinhos. A perspectiva da licença voluntária desaparece e a da licença compulsória se define. O juiz do Tribunal Federal do Rio de Janeiro inicialmente concorda com a reivindicação da Merck e ordena a suspensão da importação de matéria-prima. Ele justifica sua decisão com base no fato de que as operações de engenharia reversa para o registro dos medicamentos genéricos se inscrevem em um determinado período – até a expiração da patente em 2012 – e que ela não responde a uma necessidade imediata. Farmanguinhos recorre e o juiz reconsidera a sua decisão em agosto de 2005.93 O juiz concorda com o argumento de Farmanguinhos que valoriza o interesse da saúde pública e a necessidade de fazer a engenharia reversa da molécula para isso: “o atraso no desenvolvimento das pesquisas mencionadas acima provocará o atraso da aquisição da tecnologia e da fabricação dos medicamentos genéricos”. O juiz declara que “... o atraso ou a proibição da produção trará prejuízos à saúde pública por causa da falta de medicamentos genéricos no mercado”.94 A reviravolta do julgamento envolve, de forma fundamental, a questão do interesse da saúde pública e da urgência em adquirir a tecnologia para enfrentar o seu desabastecimento. Já não é mais a duração dos direitos da patente que é prioritária, mas a do desenvolvimento de medicamentos genéricos no interesse da saúde da população. Essa hierarquia dos interesses é explicitada no julgamento de 6 de outubro de 2005: “A partir do confronto dos interesses nesse assunto, devemos nos concentrar na ideia de que o interesse econômico da Merck, detentora da patente do medicamento Efavirenz, não resiste perante o interesse comum em proteger a ordem econômica e a saúde pública” (Supremo Tribunal Federal, 6 de outubro de 2005). Aqui, a proteção da ordem econômica se refere ao interesse da economia pública ligada à P&D farmacêutica empreendida na Fiocruz que sofreria com qualquer atraso na aquisição da tecnologia farmacêutica. Essa decisão coloca em prática a exceção Bolar no campo jurídico brasileiro. Em dezembro de 2006, quando o Tribunal Regional Federal manteve a sua decisão, o diretor-geral da Farmanguinhos encorajou o Governo em sua decisão em favor de uma licença compulsória do Efavirenz [10]. 93 Decisão de 17 de agosto de 2005, Tribunal Federal Regional do Rio de Janeiro. 94 Decisão de 6 de outubro de 2005, Tribunal Regional da 2ª Região. 116 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas IV. O uso da licença compulsória: trabalho de laboratório, trabalho jurídico e debate público (2000-2007) Várias publicações têm enfatizado o valor estratégico do uso de uma licença compulsória no Brasil [11, 12] ou ainda a importância da mobilização do Ministério da Saúde e das ONGs no processo de decisão [3,13]. Nossos trabalhos exploram as diferentes arenas que intervieram no processo de fabricação dessa licença compulsória, a saber, os laboratórios industriais que adquiriram os conhecimentos necessários para a produção do Efavirenz; o palco judiciário com o processo que opôs a Farmanguinhos ao proprietário da patente (ver parágrafo acima); as ONGs em seu processo de aquisição de uma contra-expertise jurídica no campo da propriedade industrial. A implementação desse dispositivo de salvaguarda dos direitos de propriedade intelectual é aqui percebida como o produto da ação de atores industriais, associativos, ministeriais, universitários que participam da nova governança farmacêutica [13, 14, 15]. O Direito aqui é o produto do engajamento de várias forças sociais. Ao mesmo tempo, esse dispositivo da licença compulsória permite novas alianças entre Estado, sociedade civil e mundo industrial. O Direito perpassa aqui a economia e as relações sociais. Nossas pesquisas, realizadas entre 2002 e 2009, permitiram acompanhar a mobilização dos laboratórios farmacêuticos públicos e privados na preparação dessa licença compulsória. A decisão pela licença acontece depois de vários investimentos de pesquisa realizados, muitas vezes a pedido expresso do Ministério da Saúde, inclusive aos laboratórios privados [10]. A condição de o país deter a tecnologia é uma pré-condição para a decisão do Ministério da Saúde emitir a licença compulsória. Uma nota do Ministério de 2004 define o quadro das capacidades tecnológicas dos laboratórios nacionais, indicando as condições de se produzir o princípio ativo e o medicamento Efavirenz. Verificamos, assim, que três laboratórios públicos e um laboratório privado são capazes de produzir o medicamento ao passo que três laboratórios privados são capazes de produzir o princípio ativo, no Brasil. Mesmo assim, a capacidade tecnológica dos laboratórios brasileiros ainda é motivo de controvérsias. Por isso, a associação ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar da Aids – recorreu a dois químicos de renome internacional para visitar quatro laboratórios brasileiros, dois do setor público e dois do setor privado, de modo a produzir uma análise especializada, que foi publicada sob a forma de relatório, divulgado também em língua inglesa [16]. A implementação da licença compulsória, uma vez decidida em 2007, dará lugar a um edital para selecionar laboratórios capazes de produzir o princípio ativo: nove laboratórios privados responderão ao edital, o que atesta, ao mesmo tempo, Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 117 a anterioridade da capacitação dos laboratórios sobre a decisão jurídica e política e a distribuição de conhecimentos no interior de vários laboratórios. A licença compulsória do Efavirenz foi abordada em nossos estudos, também como campo de elaboração de uma nova governança farmacêutica caracterizada pela constituição de consórcios público/privado para desenvolver a tecnologia e produzir o medicamento; pela aprendizagem dos laboratórios farmacêuticos brasileiros no terreno da certificação dos medicamentos genéricos garantidos por testes de bioequivalência; pela execução dos contratos de serviços que estão redefinindo o mercado das matérias-primas farmacêuticas ao subtraí-las da regulação das compras públicas sujeitas à lei de licitação (e por isso à oferta do menor preço em detrimento das normas de qualidade). Em 2007, ainda, o Ministério da Saúde criou um comitê técnico para acompanhamento da licença compulsória e do desenvolvimento do Efavirenz, o que testemunha o forte envolvimento do Ministério em um alto nível de representação e de uma forte imbricação entre política, ciência e indústria. V. O uso do procedimento de oposição às patentes (subsídios aos exames): expertise jurídica e mobilização social (2006- ) A partir de 2006, os atores brasileiros, laboratórios de genéricos e associações de doentes, passaram a usar o meio de regulação jurídica no campo das patentes farmacêuticas denominado procedimento de oposição ao patenteamento – ou como conhecido na lei brasileira de PI, o chamado subsídio ao exame. Em 2006, quatro oposições foram formuladas junto ao INPI para os pedidos de patentes de dois ARVs, o Kaletra e o Tenofovir. De um lado, essas oposições foram apresentadas pelo laboratório público Farmanguinhos e de outro, pela ABIA. Essas quatro oposições introduzem várias novidades no campo da propriedade intelectual no Brasil: primeiro, os oponentes usam o procedimento de oposição para ressaltar os critérios de patenteabilidade e rejeitar patentes que, em sua opinião, carecem de novidade ou de inventividade [17]. É o que acontece com os relatórios de oposição apresentados por Farmanguinhos em relação ao Tenofovir. Em segundo lugar, as oposições introduzem critérios de justiça e de saúde pública para contestar a legitimidade do patenteamento de medicamentos. A oposição apresentada pela ABIA elabora uma rica construção jurídica para fazer valer o interesse público e o interesse dos pacientes.95 E terceiro, a apresentação dessas oposições marca a ampliação do círculo dos 95 Relatório de oposição apresentado pela ABIA sobre a patente do Tenofovir, 2006. 118 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas atores intervenientes no campo da propriedade intelectual. Normalmente, são as grandes empresas industriais, como a companhia petrolífera brasileira, Petrobras, que apresentam dezenas de oposições para combater as reivindicações de seus concorrentes. No caso que tratamos aqui, é um laboratório público pertencente ao Ministério da Saúde e uma associação de ativistas que fazem uso das flexibilidades da lei de patentes para reduzir a proporção dos direitos exclusivos sobre os medicamentos, uma vez que eles não seriam justificados por critérios de invenção suficientemente rigorosos, e para fazer valer as razões de justiça e de saúde pública. Em setembro de 2008, o INPI emitiu a decisão final de não conceder patente ao Tenofovir, da empresa Gilead. Essa decisão, que se segue aos procedimentos de oposição, resultou na entrada do Tenofovir em domínio público brasileiro. Duas parcerias industriais foram recentemente firmadas para desenvolver o Tenofovir no Brasil. VI. ONGs HIV/Aids e propriedade intelectual (2001- ) A virada dos anos 2000 foi marcada pela intervenção das associações de pessoas vivendo com o HIV/Aids no campo da propriedade intelectual de medicamentos [3, 18]. Dois eventos intervêm nesse deslocamento das intervenções das associações para o campo das patentes: campanhas públicas associadas ao processo de Pretória que opôs o governo sul-africano ao cartel de laboratórios farmacêuticos; e a queixa apresentada à OMC pelos Estados Unidos em relação a uma disposição da lei brasileira de patentes [18, 19, 20]. As ONGs brasileiras afiliadas à REBRIP – Rede Brasileira de Integração dos Povos – constituíram um grupo de trabalho sobre a propriedade intelectual, o GPTI [18]. O MSF-Brasil desempenha um papel importante na aculturação das associações à propriedade intelectual. Essa aprendizagem toma forma no âmbito dos fóruns e das campanhas para as licenças compulsórias, entre 2001 e 2007, e durante a primeira apresentação de uma oposição perante o INPI do Brasil em 2006. Essa oposição contra a patente do Tenofovir da firma Gilead marca uma importante evolução das ONGs/Aids: uma jurista das próprias associações elaborou um argumento jurídico sofisticado, envolvendo o direito à saúde inscrito na Constituição brasileira, uma lei sobre a participação das partes interessadas nos processos administrativos, a Lei Sarney sobre a distribuição gratuita dos ARVs bem como uma argumentação técnica sobre a patenteabilidade da molécula em questão. Podemos avaliar a trajetória da associação ABIA: antes de 2000, suas publicações não contêm referências a patentes; hoje, publica artigos sobre a intervenção da sociedade civil no campo da propriedade intelectual [21]. Em novembro de 2008, organiza um seminário internacional no Rio de Janeiro sobre a arte e a Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 119 maneira de se construir oposições às patentes. A ABIA convida uma ONG indiana, a I-MAK – Initiative for Medicines Access and Knowledge – que expõe sua metodologia [22]. As ONGs brasileiras participam hoje das lutas globalizadas sobre as patentes de medicamentos e o acesso aos tratamentos. Em junho de 2008, a ABIA apresenta, também, uma oposição junto ao escritório de patentes indiano em colaboração com uma ONG indiana [23]. Pouco tempo antes, em 2006, o MSF – Médicos Sem Fronteiras – tinha circulado o argumento da oposição de Farmanguinhos junto às ONGs indianas. VII. O papel do laboratório público federal na regulação da propriedade intelectual: depositar patentes e se opor a patentes em nome do interesse público; difundir tecnologia Ao mesmo tempo em que se engaja em uma política de cópia dos ARVs, o laboratório federal cria um núcleo responsável pela propriedade intelectual e pelas transferências de tecnologia. Ele recruta dois examinadores de patentes experientes bem como um jovem químico formado em propriedade intelectual ao longo das negociações e dos conflitos com laboratórios internacionais. Farmanguinhos decide depositar várias patentes sobre novos ARVs que são o resultado das pesquisas realizadas em parceria com químicos da Universidade.96 Mediante a apresentação de tais patentes, Farmanguinhos pretende manter o controle da exploração dessas invenções, para controlar os preços e a acessibilidade aos medicamentos. A divisão de propriedade intelectual de Farmanguinhos exerce uma vigilância sobre as patentes farmacêuticas internacionais, tanto para alimentar as bibliografias dos químicos que fazem a engenharia reversa dos ARVs, quanto, eventualmente, se opor às patentes. Barroso [17] pretende usar o sistema de vigilância tecnológica, criado pelo laboratório federal, para colocá-lo ao serviço do acesso universal aos medicamentos. Finalmente, o laboratório federal desempenha um papel especial na difusão das tecnologias que ele desenvolveu ao colocá-las à disposição dos laboratórios privados nacionais que estão interessados na produção dos princípios ativos desses medicamentos. Farmanguinhos também participou do consórcio FACT entre 2002 e 2004 para desenvolver novas combinações de moléculas que foram deliberadamente colocadas em domínio público. 96 Proteases inhibitors and their pharmaceutical uses, WO0242412. 2001 ; igualmente, WO 2006/086865. 120 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas VIII. Inovar fora do âmbito da patente: o consórcio FACT Desde 2002, o Laboratório Federal de Farmanguinhos no Rio de Janeiro participa de um consórcio internacional iniciado pelo MSF e pela DNDI para desenvolver novas combinações de moléculas contra a malária. A originalidade do consórcio se deve ao fato de que a inovação farmacêutica é compartilhada entre empresas privadas e laboratórios do norte – a combinação Artesunato/Amodiaquina será desenvolvida pela Universidade de Bordeaux em associação com a Sanofi Aventis e com uma start up, e empresas e laboratórios do sul, a combinação Artesunato/Mefloquina será desenvolvida pelo laboratório federal brasileiro de Farmanguinhos. Além da divisão da P&D farmacêutica entre o norte e o sul e as transferências de boas práticas de laboratório, o objetivo do consórcio era o desenvolvimento de medicamentos acessíveis para os países com renda média e baixa. A DNDI impôs a seus diferentes parceiros uma política de não patenteamento das novas combinações de moléculas que foi aceita pela Sanofi Aventis assim como pelo Laboratório Federal Farmanguinhos. O novo medicamento desenvolvido pelo laboratório é objeto de uma transferência de tecnologia para o laboratório de genéricos Cipla para ser produzido na Índia em escala industrial. O desenvolvimento de uma tecnologia farmacêutica não patenteada é acompanhada de uma transferência de tecnologia Sul-Sul; de um fabricante de genéricos brasileiro para um fabricante de genéricos indiano. IX. Conclusão A implementação da nova lei de patentes de 1996 que instaura patentes de produtos farmacêuticos no Brasil ocorreu no contexto da política de luta contra a epidemia de Aids desenvolvida pelo Governo. A política de acesso universal aos tratamentos contra o HIV/Aids, as listas de medicamentos essenciais da Rename – Relação Nacional dos Medicamentos Essenciais, a política de cópia dos ARVs pelos laboratórios locais introduziram importantes contradições, com a instauração de monopólios sobre os medicamentos possibilitados pela nova lei. Ao mesmo tempo, os autores dessa biopolítica do acesso aos tratamentos, o Ministério da Saúde, as associações de pacientes, as ONGs internacionais, os laboratórios de genéricos se engajaram na invenção e no uso das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos. Ao longo do tempo, os meios de regulação criados e usados são cada vez mais variados: a anuência prévia da Agência de Vigilância Sanitária, o direito de isenção para a pesquisa (exceção Bolar) e a duplicação de tecnologias para fins de registro de medicamentos genéricos, a licença compulsória, as oposições Capítulo 6. Aprendizagem e usos das flexibilidades dos direitos de patentes de medicamentos 121 perante os escritórios de patentes, a queixa junto ao Ministério Público para obter uma licença compulsória, a propriedade pública das invenções etc. Esse processo de fabricação de diretrizes para o uso do direito de patentes de medicamentos é caracterizado por um fenômeno de democratização. Novos atores investem no campo jurídico especializado, aprendem suas regras e procedimentos, intervêm para mudar seus padrões de aplicação. O programa de Aids do Ministério da Saúde, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, as associações de pessoas vivendo com o HIV e outras ONGs, e o Laboratório Federal de Farmanguinhos desempenham um papel essencial nesse processo de democratização. A apresentação de oposições às patentes junto ao INPI no Brasil, a partir de 2006, mostra a aculturação jurídica do laboratório federal e das associações que passam a contar com advogados que praticam uma verdadeira contra-expertise no campo da propriedade intelectual. Essa regulação jurídica em que as organizações da sociedade civil intervêm ativamente desde o início dos anos 2000 se reveste de um caráter globalizado. Observamos uma circulação internacional das expertises entre as ONGs brasileiras e as indianas. Essas redes são o espaço de uma importante criatividade para conceber novos usos do direito de patentes – o MSF iniciador do FACT – e de novos mecanismos para tornar os medicamentos acessíveis, mesmo após a obrigatoriedade da concessão de patentes para a área farmacêutica com o acordo ADPIC. Referências bibliográficas 1. FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Curso no Collège de France (1978-1979). Seuil, 2004. 2. CASSIER, M. Brevets et sociologie du droité. Sciences Sociales et Santé, v. 26, n. 4, p. 75-79, dez. 2008. 3. CHAVES, G.; VIERA, M.; REIS, R. Access to medicines and intellectual property in Brazil: reflections and strategies of civil society. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 5, n. 8, jun. 2008. 4. BASSO, M. Intervention of health authorities in patent examination: the Brazilian pratice of the prior consent. Int. J. Intellectual Property Management, v. 1, n. 1/2, p. 54-74, 2006. 5. RODRIGUES; MURPHY. 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The roles and experiences of PLHIV networks in securing access to generic ARV medicines in Asia. Relatório, 2009. 124 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas PARTE III Genéricos e competências nacionais CAPÍTULO 7 Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras na produção e no fornecimento de ARVs genéricos pós-2005 Lia Hasenclever Julia Paranhos Helena Klein Benjamin Coriat Resumo: O objetivo é investigar quais são os contornos institucionais e as estratégias de política industrial e tecnológica implantadas, entre 2003-2008, no Brasil, e se elas permitem dar continuidade à política de suprimento de ARVs genéricos para garantir a sustentabilidade econômica do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Seriam essas políticas capazes de responder às mudanças no regime de propriedade intelectual e a outras mudanças no setor farmacêutico sem afetar o fornecimento de ARVs genéricos para o Departamento? Consideram-se as distintas visões dos atores e instituições intervenientes e seus principais problemas e desafios no novo marco político institucional. Destacam-se também as soluções intermediárias que estão sendo adotadas, enquanto a política ainda permanece mais no nível da retórica do que de sua real execução. Finalmente, apontam-se mudanças necessárias para que seja obtida uma maior eficácia no aumento da oferta local de ARVs, entre as quais se destaca o fortalecimento da farmoquímica nacional. Palavras-chave: políticas industrial e tecnológica; compras públicas de antirretrovirais; Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais; política de saúde; Brasil. I. Introdução O Brasil é considerado um caso de sucesso no estabelecimento de uma política de saúde voltada para o combate à Aids, através do Programa Nacional de Controle das Doenças Sexualmente Transmissíveis e da Aids, criado em 1986, e a partir de 2010 denominado Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.97 Em 1996, foi promulgada a Lei 9.313, que garante a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores de HIV98 e doentes de Aids.99 A concepção de uma política de saúde é influenciada pelas políticas industrial e tecnológica principalmente para garantia de suprimentos de medicamentos, objeto de análise deste capítulo. Em relação aos ARVs,100 a produção local teve os seus primórdios em 1992, mesmo antes da criação do marco jurídico que deu direito de acesso universal ao tratamento, capitaneada por uma empresa da iniciativa privada, Microbiológica, e pelo principal laboratório público brasileiro, Farmanguinhos.101 Posteriormente, com a universalização do tratamento, outros laboratórios públicos passaram a participar do fornecimento de medicamentos, a partir da compra de princípios ativos nacionais e importados, principalmente da Índia e da China. Vigorou, desde então, um modelo de fornecimento baseado em compras públicas de princípios ativos realizadas pelos laboratórios públicos, por meio de processos de licitação nos quais não se faz distinção entre empresas nacionais ou estrangeiras. Estas regras obedecem ao preconizado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e pela lei brasileira de compras públicas (Lei 8.666/93). Neste modelo em questão, o importante é obter preços os mais baixos possíveis. Estas iniciativas foram discutidas por Orsi et al. [1] em artigo no qual os autores alertavam para o risco da saída das empresas nacionais da concorrência e para uma mudança no modelo de oferta de ARVs. Ainda de acordo com os autores, a redução da concorrência interna poderia ameaçar o excelente resultado obtido pelo modelo de fornecimento até então adotado, que logrou a redução dos preços dos medicamentos de primeira linha na primeira metade da década de 2000. De fato, um número menor de empresas competindo acaba por forçar o aumento de preços, o que ocorreu no Brasil em período recente [2; 3]. A discussão dessa questão é uma das motivações deste capítulo. Em 2005, o Acordo TRIPS102 passou a vigorar plenamente, incluindo os PEDs103 que haviam inicialmente optado por se beneficiarem do período de transição que lhes fora facultado, como foi o caso da Índia, um dos principais fornecedores de princípios ativos para os laboratórios públicos brasileiros. O Brasil não se beneficiou do período de transição e adequou sua legislação ao TRIPS em 1996. Adicionalmente, adotou o pipeline, um mecanismo que permitiu a concessão de patentes retroativas para casos em que as patentes houvessem sido concedidas em outros 97 Ao longo do texto denominado de Programa. 98 Sigla em inglês para Vírus da Imunodeficiência Humana. 99 Sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. 100 Medicamentos antirretrovirais. 101 Laboratório público farmacêutico ligado à Fundação Oswaldo Cruz. 102 Em português, Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. 103 Países em desenvolvimento. 128 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas países e cujos objetos ainda não tivessem sido comercializados [4]. A concorrência foi reduzida também, agora, entre os ofertantes internacionais de ARVs genéricos, já que a possibilidade de oferta desses ARVs foi deslocada para o final da vigência de suas patentes, salvo a concessão de licenças voluntárias ou a aplicação da salvaguarda de licença compulsória prevista no Acordo TRIPS. A consequência inevitável foi um aumento dos preços dos medicamentos pagos pelo Programa, a partir de 2004 [5]. O objetivo desse capítulo é investigar quais são os contornos institucionais e as estratégias de política industrial implantadas, entre 2003-2008, no Brasil, e se elas permitem ou não dar continuidade à política de suprimento de ARVs genéricos para garantir a sustentabilidade econômica do Programa frente às novas restrições que emergiram após 2005. Na primeira seção, discute-se o contexto de mudança e as implicações sobre o fornecimento de ARVs genéricos para o Programa. Consideram-se várias instituições e marcos jurídicos intervenientes no processo e seus principais problemas e desafios decorrentes de uma série de eventos internos e externos ao ambiente nacional. Entre eles irão se destacar: o novo regime de propriedade intelectual, o modelo de fornecimento através das compras públicas, as condições de concorrência da oferta local e do fornecimento nacional e internacional de ARVs, os aspectos regulatórios de registro e boas práticas de manufatura, e os investimentos em P&D.104 Na segunda seção, examina-se o que aconteceu no marco da política industrial e tecnológica brasileira de saúde e as soluções intermediárias em curso. Na última seção, discute-se, à guisa de conclusão, quais seriam as mudanças importantes e necessárias para que a política proposta alcance uma maior eficácia, especialmente no estímulo à produção de ARVs genéricos. II. Contexto de mudanças pós-2005 O ano de 2005, no qual terminou o prazo de transição facultado aos PED para satisfazer às restrições do TRIPS, marca a abertura de um novo período no que diz respeito à oferta de genéricos a preços reduzidos para o suprimento dos programas voltados para o combate à Aids. Este novo período que se inicia é ainda mais delicado do que o passado, uma vez que estas restrições irão se mostrar especialmente relevantes no que diz respeito à oferta de ARVs (ou dos princípios ativos que os compõem) ditos de nova geração,105 já que a maior parte deles encontra-se ainda 104 Pesquisa e desenvolvimento. 105 Os medicamentos de nova geração são aqueles indicados, em princípio, para atender o desenvolvimento de resistência por parte dos pacientes que já utilizam medicamentos de primeira geração por períodos prolongados. É preciso acrescentar que alguns dos medicamentos, antes reservados para segunda linha, são hoje prescritos na primeira linha. Uma importante característica dos medicamentos Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 129 sob proteção patentária. A consequência mais evidente é a redução da oferta potencial e real desses medicamentos. O período pós-2005 coloca em xeque tanto o modelo de fornecimento, baseado em compras de princípios ativos e de ARVs pelo menor preço ofertado, através da lei de compras públicas, quanto o modelo de oferta destes genéricos. Em ambos os modelos, de fornecimento e de oferta de ARVs, estão em curso adaptações com a intenção de aportar inovadoras e relevantes soluções, pelo menos parciais, para as novas restrições. Entretanto, elas ainda trazem embutidas muitas incertezas que dificultam a criação de um novo pacto de sustentabilidade econômica de fornecimento de ARVs para o Programa como desenvolvido a seguir. Um primeiro aspecto que merece atenção é a redução da concorrência real e potencial entre os produtores de ARVs, incluindo a nacional e a internacional, fato, em parte, herdado do período anterior pela redução da concorrência nacional, mas reforçado a partir de 2005 pela redução da concorrência internacional. Este aspecto afeta a adequação do modelo de fornecimento de ARVs, através das compras públicas, porque a lei que regula essas compras (Lei 8.666/93) pressupõe a existência de concorrência para o seu funcionamento ideal. O fornecimento exclusivo de matérias-primas pela Índia e pela China e a produção exclusiva pelos laboratórios oficiais na área de medicamentos através de, respectivamente, licitações para compras públicas e estabelecimento de convênios,106 levou ao desaparecimento de alguns competidores privados locais que já estavam produzindo esses produtos (como, por exemplo, a Microbiológica e o Labogen). Além disso, os potenciais competidores que haviam, no início do funcionamento do Programa, programado investimentos para se instalar no Brasil (como foi o caso da Ranbaxy) optaram por continuar importando esses produtos. Adicionalmente, o surgimento de um novo ator no processo de compras de medicamentos e princípios ativos, o broker – intermediário responsável por representar os produtores indianos e chineses – acelerou ainda mais a redução da concorrência nas licitações, já que ele reúne vários produtores para fornecimento em atacado. Com efeito, as empresas nacionais produtoras de princípios ativos (ou insumos farmacêuticos ativos), matérias-primas para a produção de ARVs, não têm participado das concorrências abertas pelos laboratórios públicos para compra de princípios ativos. A abertura das fronteiras praticada sistematicamente durante a década de 1990 no Brasil afetou consideravelmente a indústria farmoquímica nacional, expulsando do mercado um grande número de empresas e enfraquecendo a ca- de nova geração é que eles estão protegidos por patentes, enquanto os de primeira linha, mais antigos, não gozam desta proteção no Brasil. 106 A demanda para esses medicamentos é basicamente pública e tem sido atendida pelos laboratórios públicos através de convênios do Ministério da Saúde com os mesmos ou negociação direta com os proprietários dos produtos novos ainda com patentes em vigor. Entre 2000 e 2008, 48,4% das compras públicas de medicamentos foram feitas através de convênios e 41,4% através de compras diretas [3]. 130 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas pacidade de oferta. As poucas empresas que continuaram atuando não obtiveram sucesso nas licitações da década seguinte em grande parte devido às fortes assimetrias decorrentes da inexistência de isonomia tributária, segundo os produtores locais. A legislação nacional privilegia a importação, isentando os importadores do recolhimento do imposto industrial (IPI) e dos impostos sociais (PIS e Cofins). Ademais, só em 2009, o governo estabeleceu isonomia sanitária, através da Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa107 – RDC 57. Esta Resolução estendeu a obrigatoriedade de registro aos insumos farmacêuticos ativos importados.108 Um segundo aspecto que merece atenção é que a legislação de compras públicas não exige a pré-qualificação dos fornecedores, o que pode onerar os custos finais de produção e de gestão de compras, pelo não atendimento dos padrões mínimos necessários de qualidade. A compra da matéria-prima pelo menor preço e sem critério técnico de pré-qualificação impede a sua rastreabilidade e acaba criando a necessidade de purificação da matéria-prima importada para a produção de medicamentos, onerando o custo final dos mesmos pelo atraso de entrega e reprocessamento, ainda que o princípio ativo tenha sido comprado pelo menor preço. Alternativamente, a matéria-prima seria devolvida, o que elevaria também o custo de gestão de compras. A primeira questão leva a outro problema enfrentado pelos laboratórios públicos brasileiros e outros laboratórios que também importam a matéria-prima: romper a barreira técnica para o registro dos medicamentos genéricos devido a não rastreabilidade dos fornecedores, o que faz com que todos os medicamentos ARVs produzidos pelos laboratórios públicos, no Brasil, sejam registrados como similares. A primeira e única exceção foi o medicamento Efavirenz, produzido por Farmanguinhos, com registro obtido em dezembro de 2008. A solução adotada nesse caso será mais bem discutida na próxima seção. Todavia, a agência reguladora do registro de medicamentos brasileira, a Anvisa, através da RDC 134/03, estabeleceu prazo até o ano de 2009, para que todos os medicamentos similares na classe de antirretrovirais apresentem, na ocasião da renovação de seu registro, testes de bioequivalência e biodisponibilidade com os produtos de referência. Esta exigência vem representando um desafio para os laboratórios públicos brasileiros, tanto por exigir custos adicionais à comercialização de seus produtos quanto pela necessidade de ter fornecedores de matérias-primas certificadas e com rastreabilidade de seus fornecedores. Um terceiro aspecto digno de nota é a ausência de investimentos significativos em P&D. Uma de suas causas é o tamanho reduzido das empresas nacionais: o setor industrial brasileiro é constituído por 65,2% das empresas com 10 a 29 pes107 Agência Nacional de Vigilância Sanitária. 108 Ainda que tanto a isonomia tributária quanto a isonomia sanitária já estivessem previstas, de forma geral, pela lei 8.666/93, em seu art. 42, § 4º, apenas em 2008, com a publicação da Portaria Interministerial 128, mais precisamente no art. 5 º, no que tange aos aspectos tributários, e, em 2009, através da RDC 57, no que tange aos aspectos sanitários, é que foram estabelecidos parâmetros para a sua aplicação em licitações internacionais para aquisição de fármacos e medicamentos. Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 131 soas ocupadas e somente 1,7% de empresas com mais de 500 pessoas ocupadas. O setor farmacêutico segue o padrão da indústria brasileira e também é composto por um grande número de pequenas empresas [4]. Outra causa é que não se tem investido o suficiente em pesquisa nos laboratórios públicos para capacitação de reprodução ou até mesmo melhoria dos produtos patenteados ainda que em escala laboratorial; os poucos investimentos realizados não articulam os objetivos da saúde e de desenvolvimento industrial. Gadelha [6] mostra como as políticas de saúde e de desenvolvimento industrial se instituíram no Brasil segundo lógicas diferentes e, por muito tempo, permaneceram completamente dissociadas. Guimarães [7] complementa afirmando que é necessária uma articulação da agenda de pesquisa em saúde às políticas públicas da área de saúde. O autor sugere que esta articulação seja liderada pelo MS109 com possibilidade de criação de um órgão fomentador de pesquisa em áreas de necessidade específicas da população brasileira. Esta opção teria que contar com forte componente de subvenção econômica do governo dado que as empresas privadas locais não investem substantivamente em P&D. De acordo com dados da terceira edição da pesquisa de inovação tecnológica – PINTEC III [8], as empresas farmacêuticas privadas investiram apenas 1,27% da receita líquida de vendas em atividades de P&D entre 2003 e 2005, considerando atividades internas (0,72%) e externas (0,55%) às empresas. Desta forma e, aliado ao fato de que a produção de novos ARVs exige o aprendizado em relação a novas moléculas ainda sob proteção patentária, tem se constatado um enfraquecimento da capacidade de aplicar efetivamente a licença compulsória, que exige capacitação industrial e tecnológica prévias. Ainda associado à descoordenação dos investimentos em P&D, chama-se atenção para o fato de que as patentes não estão sendo utilizadas como instrumento de direcionamento da política industrial e tecnológica. Seu monitoramento em muito poderia acelerar o processo de produção de versões genéricas dos ARVs, colaborando não só para a redução dos preços como para o aumento de credibilidade da capacidade industrial e tecnológica do país em prol das negociações de preço dos produtos patenteados. Um exemplo dessa falta de coordenação de investimentos foi o indeferimento do pedido e sua posterior confirmação que resultou na não concessão da patente para o Tenofovir, respectivamente, em agosto de 2008 e junho de 2009, com base na falta de atividade inventiva. Embora se observe a mobilização do MS e dos laboratórios oficiais para a produção local do medicamento, o Tenofovir genérico já poderia estar no mercado desde 2009. Além do monitoramento das patentes com data de expiração próxima, poderia ser utilizado como instrumento de direcionamento das políticas industriais e tecnológicas, o controle do cumprimento da obrigatoriedade legal de produção local após três anos de concessão da patente prevista na legislação brasileira para produtos que tenham viabilidade de mercado local. 109 Ministério da Saúde. 132 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Um quarto, e último, aspecto é o problema de gestão dos laboratórios públicos. Estes foram modernizados e colocados em condições técnicas mais adequadas, mas não tiveram um desenvolvimento paralelo na questão gerencial produtiva e comercial. A antiga Central de Medicamentos, extinta em 1990, era responsável não só pelo registro dos laboratórios públicos, como pelos investimentos em P&D e ainda pelo processo de compras de matérias-primas e medicamentos, exercendo um papel coordenador importante sobre os laboratórios públicos. Esta coordenação, após a sua extinção, não foi substituída, ainda que o MS tenha estabelecido, em 2005, através da Portaria MS 843/05, a Rede Brasileira de Produção Pública de Medicamentos com este propósito, suas ações ainda não têm surtido efeito. Ao contrário, os antigos métodos de gestão foram mantidos, frente a importantes mudanças na política de saúde e nos métodos de compra, em prejuízo flagrante dos resultados obtidos [9; 10; 11]. Na próxima seção, examina-se em que medida as políticas industriais e tecnológicas para o setor de saúde são capazes de responder aos desafios apontados nesta seção. III. Políticas industrial e tecnológica brasileiras, 2003-2008 A posse do presidente Lula, em 2003, implicou na eleição de uma nova agenda de desenvolvimento econômico e social. Para criá-la e torná-la efetiva seria necessário que os diversos atores envolvidos compartilhassem as mesmas ideias acerca do caminho a ser trilhado em relação às transformações que a sociedade deveria buscar para o pagamento da dívida social. Entre as várias dimensões da inclusão social, proposta na nova agenda, destaca-se, nesta seção, a dimensão voltada para a saúde. Por um lado, este novo caminho implicou na adoção de uma nova política industrial e tecnológica de cunho bastante heterodoxo voltada para o setor de fármacos e, em seguida, para o complexo da saúde. Por outro lado, manteve-se o poder e a capacidade de influência dos setores mais conservadores da sociedade, que estão dificultando a efetivação das mudanças necessárias para sua realização. Estas dificuldades são os resultados da presença de visões distintas do caminho a trilhar para o processo de inclusão social da população, através da saúde. Segundo Erber [12], na disputa pela hegemonia entre os interesses divergentes sobre o melhor caminho a trilhar, existem pontes consensuais entre as duas correntes denominadas pelo autor, respectivamente, de institucionalista restrita e neo-desenvolvimentista. As possíveis pontes consensuais entre elas são a percepção de que os pobres tendem a ser os mais prejudicados em períodos de alta inflação e a neces- Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 133 sidade de ampliar-se a capacidade produtiva e a produtividade sistêmica, através das melhorias na infraestrutura, incluindo a saúde. Entretanto, ainda que estes dois grupos habitem o espaço político brasileiro, o primeiro grupo, aquele que privilegia a estabilidade dos preços, juros altos e taxas de câmbio flexível, é, para o autor, dominante no período entre 2003 e 2008, dificultando as transformações necessárias à realização da nova agenda de desenvolvimento econômico e social. Em resumo, ainda que exista uma proposta de política industrial e tecnológica bastante avançada em pensar transformações profundas para a área de saúde, ela não é consensual entre os atores envolvidos no processo de sua execução. A seguir, serão descritas as principais políticas e as suas dificuldades de operação. III.1. PAC da Saúde, PITCE e PDP A nova política industrial e tecnológica da saúde está contida nos seguintes documentos governamentais: PAC da Saúde,110 PITCE111e PDP.112 O PAC da Saúde é composto por sete eixos principais de atuação do Ministério da Saúde. O eixo três é direcionado à melhoria e fortalecimento do CIS113 para redução do crescente déficit da balança comercial brasileira em todos os segmentos ligados ao setor e conta com um orçamento de R$ 2 bilhões. O propósito da linha de atuação desse eixo é permitir a associação dos objetivos do SUS114 com a transformação necessária da estrutura produtiva do país, tornando-a compatível com um novo padrão de consumo em saúde e com novos padrões tecnológicos adequados às necessidades da saúde [13]. A PITCE, de 2003, e a PDP, de 2008, têm como diferencial em relação às políticas industriais anteriores o foco na inovação a partir de uma visão sistêmica do processo. Em ambos os documentos, os setores de fármacos e medicamentos são escolhidos como prioritários para o desenvolvimento produtivo do país. Essa escolha foi posteriormente atenuada em favor de políticas horizontais para todo o CIS, como a redução dos preços dos medicamentos para maior acesso da população, a busca de uma nova coalizão entre capital público e privado através das parcerias público-privadas, a redução da dependência externa de importação de insumos e tecnologias, a ênfase na importância da organização das atividades de inovação no setor público e de incentivos para o setor privado. As principais semelhanças e diferenças entre a PITCE e a PDP são: 1) manutenção da eleição do setor (fármacos) e ampliação de sua abrangência para todo o CIS, que envolve os setores de produção de equipamentos médicos hospitalares, de 110 Programa de Aceleração do Crescimento da Saúde. 111 Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior. 112 Política de Desenvolvimento Produtivo. 113 Complexo Industrial da Saúde. 114 Sistema Único de Saúde. 134 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas serviços hospitalares, de fármacos e de medicamentos; 2) ampliação também do número de ministérios, agências e instrumentos de políticas envolvidos; 3) no caso do CIS os responsáveis pela gestão são o MS e um comitê executivo formado por MS, MCT115 e BNDES.116 Como visto, Gadelha [6] destaca o fato de que há pouca interação entre as políticas de saúde e de desenvolvimento produtivo e que mesmo nos casos das avaliações tecnológicas em saúde não se pode dizer que a introdução de variáveis econômicas tenha como objetivo estabelecer uma relação com as políticas de desenvolvimento. O autor argumenta que a PITCE indicou uma mudança positiva no sentido da incorporação de “segmentos-chave do complexo industrial da saúde” na agenda de política industrial do governo, e que a PDP, dando continuidade à PITCE, segue na direção da articulação das políticas de saúde e industrial incorporando a dimensão do CIS, dedicando um programa estratégico exclusivo para o mesmo. Em termos de atuação efetiva no âmbito da PITCE, com ampliação e expansão na PDP, a atuação do BNDES tem sido uma das mais consistentes e melhor avaliada pelas empresas privadas no sentido de consolidação do CIS. Em 2004, foi criado o Profarma117 com o objetivo de modernização, reestruturação e expansão da capacidade produtiva, além do alinhamento das empresas aos aspectos regulatórios. Em maio de 2007, foi realizada uma revisão do programa na qual se concluiu que a primeira etapa havia sido completada. O Programa acumulou uma carteira de 47 operações, totalizando uma solicitação de financiamentos de R$ 935 milhões [14]. Foi então estabelecida uma segunda fase do programa, com ênfase na inovação e exportação, além da inclusão dos laboratórios oficiais entre os possíveis clientes a serem atendidos pelo Programa. Nesta nova fase, a atuação do BNDES busca uma melhor articulação entre a política industrial e a política de saúde através de uma aproximação com o MS. Um outro foco de atuação do Banco é o estímulo às fusões e aquisições no setor nacional, permitindo a consolidação de empresas nacionais e sua maior competitividade em nível internacional. No âmbito da PDP, ressalta-se a criação118 do GECIS,119 com o objetivo de promover medidas e ações concretas do marco regulatório brasileiro referente à estratégia de desenvolvimento do governo federal para a área da saúde. O GECIS tem competência para desenvolver e implantar, de forma integrada, o marco regulatório necessário para a concretização das estratégias e diretrizes previstas na PDP e no PAC da Saúde, promovendo a articulação dos órgãos e entidades envolvidas, 115 Ministério de Ciência e Tecnologia. 116 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. 117 Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica e, em 2007, Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. 118 A partir do Decreto de 12 de maio de 2008. 119 Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde. Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 135 com vistas a viabilizar um ambiente econômico e institucional propício ao desenvolvimento do CIS. O novo quadro legal e institucional brasileiro para o CIS, mesmo que bastante elaborado e desenhado nos documentos governamentais, ainda está longe de estar consolidado, refletindo o interesse antagônico entre os dois grupos e suas distintas visões sobre o desenvolvimento econômico e social através da saúde. Em uma das visões bastaria construir as instituições para que as falhas de mercado fossem corrigidas, enquanto para a outra seriam necessárias profundas transformações em prol da saúde. Estas divergências dão lugar a iniciativas e soluções pensadas para contornar a ausência de mudanças institucionais capazes de solucionar os impasses na produção e fornecimento de ARVs. III.2. Iniciativas e soluções intermediárias Entre as iniciativas mais representativas do conflito de interesses entre os atores, encontra-se o Anteprojeto de Lei de Compras Governamentais para o CIS, cuja minuta de texto foi elaborada pelo GECIS em março de 2009. Os aspectos jurídicos foram avaliados em julho de 2009 e a versão final a ser levada ao Congresso Federal foi aprovada em agosto do mesmo ano. Esse Anteprojeto pretende estabelecer as normas aplicáveis às licitações e contratos de prestação de serviços e de compras dos produtos necessários ao cumprimento do art. 196 da Constituição Federal – que determina que a saúde seja direito de todos e dever do Estado –, no que tange, em âmbito nacional, ao CIS. Além disso, deve definir o CIS e seu rol de produtos, vinculando a aplicação dos termos do Anteprojeto de Lei a ato específico do MS. Entre as proposições inseridas nesse Anteprojeto estão: o estabelecimento da criação dos Programas de Avaliação de Conformidade, a serem realizados pela Anvisa e pelo Inmetro,120 a instituição do “Regime Especial de Licitações e Contratos destinados à Aquisição de Bens e Serviços Inovadores”, com o propósito de possibilitar uma diferenciação na aquisição dos produtos e serviços de interesse estratégicos para o CIS e de induzir a inovação, a isonomia competitiva nas licitações internacionais, a inclusão de novo critério de Dispensa de Licitação, a adoção de Prêmio de Resultado e a permissão de aquisição pelo regime de técnica ou técnica e preço, entre outras. O Anteprojeto, se tornado projeto e aprovado como lei, representará uma inovação institucional muito importante para contornar os constrangimentos da Lei 8.666, e garantir que as soluções intermediárias até agora adotadas não sejam consideradas razões de insegurança jurídica anteriormente apontadas. Enquanto esse novo marco regulatório relativo às compras governamentais está sendo discutido e examinado, além da Portaria MS 978/08, foram editadas 120 Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial. 136 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas algumas Portarias pelo MS, tais como: a Portaria MS 3.031/08, que dispõe sobre critérios a serem considerados pelos Laboratórios Oficiais de produção de medicamentos em suas licitações para aquisição de matéria-prima; e a Portaria MS 374/08, que institui, no âmbito do SUS, o Programa Nacional de Fomento à Produção Pública e Inovação no CIS. Além dessas Portarias do MS, foi publicada a Portaria Interministerial121 128/08, que estabelece as diretrizes para a contratação pública de Medicamentos e Fármacos pelo SUS. Apesar de serem iniciativas importantes e se encontrarem ao abrigo da lei, essas Portarias não estão sendo respeitadas em benefício do CIS, da forma que se pretendia quando foram criadas, ilustrando a divergência existente entre os agentes. Farmanguinhos foi o único laboratório público que, até o momento, realizou, em alguns casos, os procedimentos previstos nessas Portarias, em benefício do CIS. Nenhum outro laboratório utilizou-as para subsidiar seus processos de compras e beneficiar o setor industrial no Brasil, mantendo os procedimentos que consideram o menor preço como critério exclusivo na escolha final dos fornecedores de produtos ou prestadores de serviços para a saúde. A estratégia utilizada por Farmanguinhos para solucionar as dificuldades na obtenção, através de licitação segundo os procedimentos da lei, de matérias-primas de boa qualidade, foi a da compra de “serviços de produção de matérias-primas (princípios ativos)”, no lugar das compras de matéria-prima propriamente dita.122 Através da compra de serviços foi possível, ao comprador, inspecionar as fábricas produtoras de matérias-primas e rastrear todo o processo de produção, evitandose futuros problemas de especificação. A expectativa é estimular que as empresas fabricantes de matérias-primas tenham sítios produtivos no Brasil, pois, caso contrário, o custo de acompanhamento do processo seria muito alto e, portanto, as mesmas não poderiam ser fornecedoras dos laboratórios públicos. Um outro caso que ilustra a utilização deste modelo por Farmanguinhos é o da produção do Efavirenz, cujas patentes tiveram seu licenciamento compulsório decretado no ano de 2007 [15]. A aquisição do princípio ativo se deu através de um consórcio formado por três laboratórios privados nacionais pré-qualificados que, ainda que tenham adquirido intermediários químicos da China, realizaram, no Brasil, a última etapa da síntese química, permitindo, desta forma, a rastreabilidade e a garantia de qualidade desse princípio ativo. Tratou-se de uma parceria 121 MS, MCT, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. 122 As empresas vencedoras e respectivos produtos encomendados através dos primeiros editais que seguiram o modelo da compra de serviços foram, no caso de medicamentos: Blanver (São Paulo) – AZT + Lamivudina; Cristália (Campinas) – AZT + Lamivudina; e Mappel (Rio de Janeiro) – AZT; Lamivudina; e Nevirapina. E no caso dos princípios ativos, as empresas vencedoras foram: Nortec (Rio de Janeiro) – AZT; e Globe (Campinas) – Lamivudina. Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 137 público-privada estabelecida com o laboratório público por meio de um contrato de prestação de serviços.123 Estas estratégias permitiram a pré-qualificação das empresas capazes de fornecer o princípio ativo, o estabelecimento do consórcio, e a parceria com o laboratório público por meio de contratos de prestação de serviços, constituindo-se em um modelo de compras alternativo ao previsto atualmente na Lei de Compras Públicas. Este novo modelo contém uma nova estratégia capaz de permitir a aquisição de matéria-prima cuja qualidade e rastreabilidade estejam de acordo com os critérios exigidos para o registro dos medicamentos como genéricos, entre eles a vedação do registro de mais de três fornecedores qualificados. Embora Farmanguinhos venha tentando consolidar o novo modelo de compras, este ainda se encontra sob a ameaça de ações judiciais, que se fundamentam na suposta ilegitimidade dos contratos de compras de serviços de produção de matérias-primas e no desrespeito à Lei de Compras Públicas atualmente em vigor. Mais uma vez, caberá à Justiça decidir, com base na interpretação da legislação, se as medidas propostas com o objetivo de beneficiar o CIS não serão interrompidas. O descompasso entre essas medidas e a legislação de compras públicas, cuja discussão tem avançado muito lentamente, torna os laboratórios pouco dispostos a tomar iniciativas como àquela de Farmanguinhos por se tornarem vulneráveis às decisões judiciais. Dessa forma, as Portarias são iniciativas importantes, mas insuficientes para garantir a segurança dos contratos que se baseiam nas suas determinações. Essa discussão é uma ilustração importante de que nem sempre há aderência entre a proposta de política e a sua execução. Ainda que as Portarias não sejam a solução definitiva para as compras públicas, dentre as Portarias publicadas, é importante destacar o papel da Portaria MS 978/08, que lista vários produtos de alto valor agregado de interesse do MS a serem fabricados no Brasil, através de parcerias formadas entre os laboratórios públicos e empresas farmoquímicas nacionais e estrangeiras. Aqui, claramente se reconhece uma faceta da visão desenvolvimentista de aproximação dos capitais públicos e privados (nacionais e estrangeiros), denominada pelo autor Peter Evans de aliança tripartite. Os principais objetivos dessas parcerias são o fortalecimento dos laboratórios públicos, a ampliação de seu papel de regulação do mercado, o estímulo à produção local de produtos de alto custo e/ou de grande impacto sanitário e social e o fomento ao desenvolvimento da capacidade produtiva da indústria farmoquímica nacional, possibilitando a verticalização da produção e ainda a capacitação tecnológica dos laboratórios através de transferências de tecnologia. Essas parcerias foram coordenadas pela Secretaria de Ciência e Tecnologia de Insumos Estratégicos do MS. No final do ano de 2009, nove termos de compromissos entre o MS e laboratórios públicos e privados foram formalizados, com o obje123 Para um melhor detalhamento desta ilustração ver D’Almeida et al., 2008 [15]. 138 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tivo de garantir a compra pública de 14 medicamentos, entre eles um ARV (Tenofovir), por preços determinados e descrescentes durante o período do acordo. Esses termos deverão ser revistos anualmente, uma vez que os orçamentos públicos são elaborados ano a ano. A economia média por ano estimada é da ordem de R$ 200 milhões. Na opinião de alguns atores do processo,124 a Portaria MS 978 é o melhor Programa de governo dos últimos 20 anos para empresas da cadeia farmacêutica de base científica e tecnológica, sendo uma excelente oportunidade para a criação de novos concorrentes na cadeia farmacêutica brasileira, com novos desenhos organizacionais e ideias inovadoras, e com a possibilidade, real, de desenvolvimento totalmente verticalizado no Brasil de todas as etapas do processo produtivo, sem necessidade de “transferência” de tecnologia exógena. Os principais desafios desse novo quadro institucional são: a necessidade da centralização das compras, atualmente descentralizadas entre Estados e Municípios e que terá de ser feita pelo MS para viabilizar todo o Projeto; a elaboração dos instrumentos jurídicos para a efetivação das parcerias estabelecidas no âmbito dos acordos entre as empresas farmoquímicas e os laboratórios públicos; o fato de a maioria dos medicamentos escolhidos agregarem pouco valor à indústria farmoquímica, apesar de os medicamentos prontos terem alto valor agregado após a incorporação dos princípios ativos; a dificuldade de concretização de algumas parcerias entre as empresas farmoquímicas e os laboratórios públicos, além da já conhecida dificuldade de gestão desses laboratórios. Em outras palavras, apesar da criação de uma política industrial e tecnológica voltada para a saúde, o novo quadro institucional está tendo dificuldades para sanar grande parte dos desafios apontados na seção II. IV. Considerações finais As limitações dos produtores brasileiros não se relacionam apenas aos reflexos da mudança observada no regime de proteção patentária após 2005. Como visto, o Brasil adotou o regime de patentes antecipadamente, em 1996, e ainda incluiu o mecanismo de pipeline (retroação de concessão de patentes), reduzindo o espaço de concorrência para atuação dos concorrentes nacionais e causando prejuízos para o orçamento público. As alterações na produção e comercialização de genéricos na Índia125 não afetaram o fornecimento de ARVs para o Brasil, em razão do grande fornecedor de intermediários para a indústria farmoquímica brasileira ser a 124 Entre eles a Abifina, associação que representa as empresas do segmento farmoquímico. 125 Quando esse país ficou impedido de fornecer os princípios ativos para a produção brasileira de medicamentos ARVs, cujas patentes foram concedidas após essa data. Capítulo 7. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras 139 China e a maioria dos intermediários básicos não estarem patenteados. Entretanto, a redução da concorrência internacional de genéricos, a partir da oferta indiana, afetou o modelo de fornecimento de compras públicas locais no que diz respeito à possibilidade de redução do preço dos ARVs. Outros fatores relativos ao contexto nacional impeditivos da execução de uma política industrial e tecnológica capaz de fortalecer a indústria local fornecedora de princípios ativos foram enumerados. Entre eles, destacamos o marco legal das compras públicas (Lei 8.666) e a consequente dependência dos laboratórios públicos de importação de princípios ativos, a redução da concorrência local e internacional de produtores genéricos, os baixos investimentos em P&D e a decorrente incapacidade de produzir medicamentos substitutos aos novos ARVs lançados pelas empresas multinacionais, e, finalmente, o despreparo gerencial dos laboratórios públicos. A principal limitação no suprimento de ARVs genéricos pós-2005 é que a indústria farmoquímica brasileira, por múltiplas razões, não participou de modo significativo do surgimento da indústria de genéricos brasileira. Dessa forma, a produção de genéricos no Brasil foi desenvolvida e permanece fortemente dependente da aquisição de princípios ativos importados. A causa mais importante da exclusão da farmoquímica nacional do processo de compras deu-se por uma concorrência desleal entre produtos nacionais e importados, graças à falta de isonomia tributária e sanitária. Um recente movimento para corrigir este curso foi a aprovação pela Anvisa da RDC 57/09, que inaugura o registro para os princípios ativos importados, marcando o início da isonomia sanitária entre os fornecedores nacionais e estrangeiros. Medidas de estímulos à produção nacional através das parcerias públicoprivadas têm sido também realizadas, conforme discutido anteriormente. O capítulo analisou as principais dificuldades de execução das políticas industrial e tecnológica formuladas entre 2003 e 2008, exemplificando-as através da análise de fornecimento de ARVs. A concepção das políticas se traduziu em leis e regulamentações, mas também na atuação dos atores na operação do complexo da saúde. Nem sempre houve uma perfeita aderência entre as regras formais e as de operação, refletindo um flagrante conflito de interesses entre os atores participantes do processo e levando a uma maior lentidão na consecução da política proposta. Conclui-se que existe uma fragilidade das políticas industrial e tecnológica que pode ser resumida na incapacidade de fomentar uma indústria farmoquímica nacional para aumentar a competição e sustentar preços baixos. Mais do que nunca uma política de Estado consistente, que privilegie a farmoquímica nacional, de forma rápida e eficiente, é atualmente necessária. Outras medidas de política industrial e tecnológica neste sentido são esperadas. Somente a este custo a indústria nacional poderá ocupar todo o seu potencial na oferta de medicamentos para apoiar a política de saúde pública do país. 140 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Referências bibliográficas 1. ORSI, F.; HASENCLEVER, L.; FIALHO, B. C.; TIGRE, P.; CORIAT, B. 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Disponível em: http://www.bndes.gov.br Acesso em: 2 jul. 2007. 15. D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; KRIKORIAN, G. et al. New antirretroviral treatments and post-2005 TRIPS constraints: first moves towards IP flexibilization in developing countries. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/Aids in Developing Countries. Northampton: Edward Elgar Publishing, Inc., 2008: cap. 1. 142 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas CAPÍTULO 8 Institutional and procedural challenges to generic production in India: antirretrovirals in focus126 Cassandra Sweet Keshab Das Summary: The Indian pharmaceutical industry has played a central role in providing generic antirretroviral medicine to national and global antirretroviral therapy programs over the last two decades. Indeed it is no exaggeration to say that the industry has become the primary supplier of medicines, and in particular, of antirretroviral medicines, to the developing world, through both international organizations and nation-level antirretroviral access programs. Given India’s important role as a global supplier, this chapter reviews the legal and political situation in India with special attention to adaptations in regulatory procedure and trends in jurisprudence since India’s adherence to the World Trade Organization (WTO) Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS) agreement in 2005. The chapter comprises three sections. The first reviews the historic role of India as a supplier of antirretroviral medicines. The second outlines some of the key rulings in Indian courts as the interpretation of the new patent laws are tested. The third section presents an analysis of recent challenges to the Bolar exception in India. The aim of the chapter is to introduce the reader to some of the most crucial changes in Indian patent law and procedure which are likely to shape production of local antirretroviral medicine. Key words: Indian pharmaceutical industry, HIV/AIDS, antirretrovirals, intellectual property. The ability to transform HIV/AIDS from a veritable death sentence into a manageable, chronic disease is largely attributable to two major shifts over the last decade: first, the political will to confront the disease and, second, the technical ability to supply antirretroviral medicine. Recent gains in the expansion of access to antirret- 126 Thanks are due to Benjamin Coriat, Bernard Larouzé, Lia Hasenclever, Tara Nair and Madhu J for their helpful comments and interventions in preparing this chapter. rovirals have been unprecedented. Antirretroviral access has expanded remarkably over the last decade: from the period 2003-2007 for example, the number of people in the developing world receiving antirretrovirals increased more than seven times [1]. By the end of 2008, more than four million people in low and middle income countries were receiving antirretroviral therapy, up from nearly three million just the previous year. More than a quarter of a million of those receiving antirretrovirals were children [2]. These achievements, however, remain overshadowed by enormous challenges facing the global community. In 2007, 33 million people were living with HIV/AIDS, 2.7 million became infected with the virus and 2 million people died as a result of causes related to the virus. UNAIDS reports that only a third of those in developing countries needing antirretroviral therapy are receiving it [3]. For those who have begun treatment, major barriers remain for their continued access. In the developing world, where 95 per cent of the people with HIV/AIDS reside, issues regarding the supply of the first-line medicines have been largely hampered by accessibility and adaptability [4]. Although it is now widely accepted that antirretroviral therapy programs can be effectively managed in developing countries [5], putting an end to earlier debates about the dangers of antirretroviral access provoking resistances [6, 7], the rising costs of new first-line and second-line therapies are increasingly prohibitive [8]. The cost of new first-line and second-line antirretroviral regimens are approximately US$ 610 and US$ 1,660 on average perperson per year (respectively) compared to the old generation of first-line treatment US$ 88 [9]. For those patients on antirretroviral, access to the second-line treatments will be critical if the gains of the first line-treatments are to be preserved. The Indian pharmaceutical industry has played a central role in providing generic antirretroviral medicine as national and global antirretroviral programs have expanded their operations over the last decade. More than 80 per cent of global antirretroviral generics are sourced from Indian suppliers. In 2008, Indian paediatric antirretroviral and adult nucleoside and non-nucleoside reverse transcriptase inhibitory products represented 91 per cent and 89 per cent of global purchase volumes127 [10]. India’s role as the so-called “pharmacy of the developing world”128 and as a key supplier of HIV/AIDS antirretrovirals129, stems from legal and industrial systems, which until 2005, did not recognize product patents. Since 2005, 70 per cent of antirretrovirals purchased by the UNICEF, IDA Foundation, the Global Fund, 127 Waning et al provide a fascinating survey of the depth India’s global antirretroviral supply to the developing world, tracking over 17,600 purchases of antirretroviral tablets made by 115 low and middle income countries from 2003-2008. They show the dominance of the Indian generic products and their comparative price advantage over non-generic suppliers [10]. 128 In addition, over 80 per cent of the stock comprising Médecins Sans Frontières (MSF), HIV/AIDS treatment programs are supplied by Indian firms. Doctors Without Borders, December 18, 2006. http:// www.doctorswithoutborders.org/news/access/novartis_qa.cfm. Accessed December 28, 2006. 129 Unni Karunakara, Medical Director of MSF’s Campaign for Access to Essential Medicines, http:// www.accessmed-msf.org/. Accessed February 7, 2007. 144 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas and the Clinton Foundation130 are being sourced from Indian producers [11]. In addition to supplying generics, India is also a major source of active pharmaceutical ingredients – those bulk inputs which have been fundamental sources for the generic programs pursued in both Brazil and Thailand. With India’s harmonization of patent standards with those set by the WTO’s Agreement on Trade-related Aspects of Intellectual Property Rights (TRIPS), its pharmaceutical firms will no longer be able to provide generic copies of antirretroviral medicines for which patent applications have been filed according to the new rules set in India’s Patent Office. The end of this system will have vast implications for the access to medicine issues around the world, in particular for populations in the developing world, where over 90 per cent of purchases are made through out-of-pocket payments and medicines account for the second largest household expenditure [12]. With this backdrop, this chapter explores the post-2005 situation in India with special attention to adaptations in regulatory procedure and legal jurisprudence which could affect the production decisions of Indian generics pharmaceutical companies131. The chapter comprises three sections. The first reviews the historic role of India as a supplier of antirretroviral medicine. An analysis of the three areas of patent law currently tested in Indian courts is presented in the second section. The third and final section reviews debates regarding the implementation of the Bolar exception and so-called “patent linkage” in India. In conclusion, we reflect on how these changes may influence the strategies taken by the Indian pharmaceutical firms. The aim of this exercise is not to provide a complete picture of transformations in Indian law, but to focus on those which are most relevant to production by the local industry. 130 The Clinton Foundation HIV/AIDS Initiative (CHAI) supports national governments to expand highquality care and treatment to people living with HIV/AIDS. CHAI offers reduced prices for antirretrovirals to members of its Procurement Consortium. CHAI has agreements with eight manufacturers of antirretroviral formulations, active pharmaceutical ingredients and/or pharmaceutical intermediates: Aurobindo Pharma, Cipla Ltd., Hetero Drugs, Macleods Pharmaceuticals, Matrix Laboratories, Ranbaxy Laboratories, Strides Arcolab and, Zhejiang Huahai Pharmaceutical Co. The antirretrovirals included in CHAI’s pricing agreements are: abacavir, didanosine, efavirenz, emtricitabine, lamivudine, lopinavir/ ritonavir, nevirapine, stavudine, tenofovir and zidovudine. 131 The larger aim of the project, which will comprise a two year period, is to investigate how the production of antirretrovirals has changed since the implementation of TRIPS standards and to identify how it will affect access to antirretrovirals. This research project, directed by Dr. Keshab Das and linked in tandem with the grant application coordinated by Professor Benjamin Coriat of University Paris 13, “Production et approvisionnement en antirétroviraux génériques dans l’après 2005 : une analyse à partir des cas du Brésil et de l’Inde” proposes a three-fold but interrelated set of objectives – namely, legal, industrial and access – towards understanding the consequences of the product patent regime on production of first- and second-line antirretrovirals and their respective active principal ingredients by Indian generic firms. The proposed research will benefit from the larger research project directed by Professor Benjamin Coriat in collaboration with Dr. Lia Hasenclever of the Universidade Federal do Rio de Janeiro. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 145 “The pharmacy of the developing world” in transformation A contradiction confronts current efforts at dealing with the HIV/AIDS epidemic. Globally, whereas the political motivation to address the HIV/AIDS crisis has gained momentum132, the future source for procurement of affordable antirretrovirals, in particular, second-line treatments, appears increasingly dubious133. Much depends, at least in the short and medium term, on outcomes in the Indian patent system, where issues in the implementation of international patent laws are currently under debate. Throughout the 1990s, while other developing countries experienced a decline in their ability to produce the active pharmaceutical ingredients necessary for antirretroviral production, India’s capacity expanded with growing demand134 [13]. During the period 2000-2005, Indian generic competition was essential for reducing the first-line AIDS drug prices from approximately 12,000 dollars per year to 150 dollars per year. In addition to providing a source of competitive antirretrovirals prices, Indian firms’ ability to innovate on molecules patented elsewhere resulted in a series of technical improvements to antirretroviral therapies. One such critical breakthrough ushered in by the Indian firms was the development of a “fixeddose combination” drug compounding three antirretrovirals in a single dose135. During the 1990s, Asian manufacturers, largely Indian and Chinese bulk producers, played a central role in the ability of national governments, such as Brazil and Thailand, to scale up programs for universal access [14-16]. India’s role as a global supplier of low-cost medicines is rooted in the nation’s early policies to foster national industrialization in the pharmaceutical sector. In 1970, the Indian Congress 132 The scaling up of programs on a global level, from the Global Fund to UNITAIDS, has been compounded by increased focus on the issue at the national level. A recent paper, “Programme Implementation Guidelines for a Phased Scale up of Access to Antirretroviral Therapy for People Living with HIV/AIDS” from the National AIDS Control Organization (NACO) highlights the importance of both global initiatives promoting the use of antirretroviral treatment in addressing the HIV/AIDS epidemic, and the drop in prices for those treatments. See, NACO, http://www.nacoonline.org/guidelines/ guideline_1.pdf 133 Current production of the first-line antirretrovirals are sufficient, but as the Director General of India’s NACO, Dr. Quraishi, puts it, “the problem will come when we need second line drugs... I’m personally very worried about the second line drugs.” AIDSMAP, “India, China or Brazil, Who will produce the second line antirretrovirals?”, Reproduced from Health and Development Networks SEA-AIDS Forum coverage of the 7th International Conference on AIDS in Asia and the Pacific. July 12, 2005, www.aidsmap. com. Accessed February 10, 2007. 134 Vijay Kumar Kaul shows that Indian exports of pharmaceutical chemicals have been steadily growing over the last decade. In contrast, while Brazil is heralded as a successful case in its ability to negotiate with multinationals for lower antirretroviral prices, its national pharmaceutical chemical base has witnessed a contraction in the already small number of companies producing antirretrovirals. Brazilian laboratory Labogen, for example, has discontinued production of antirretroviral active pharmaceutical ingredients and Cristália has reduced production to three (ritonavir, saquinavir, and saquinavir mesylate [13]. 135 This was orchestrated by Cipla in the so called (D4T+3TC+NVP) combination. 146 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas enacted a Patent Act which sought to address the low level of local pharmaceutical production. The 1970 Act provided for patents for pharmaceutical processes but eschewed the granting of monopoly ownership for pharmaceutical products136 [17]. This distinction opened the door for reverse engineering by Indian firms and harboured the growth of one of the world’s largest generic drug industries137 [17, 18]. Despite the achievements of Indian firms during 1970-1995 in developing high skills of adaptation and growth, they face steep difficulties competing in innovation and remain a highly generic industry with comparatively meagre success in new molecule discovery138 [19]. During the Uruguay Rounds (1984-1996), which culminated in the formation of the World Trade Organization, India was an avid negotiator for the rights of its generics industry, negotiating a transition period for the implementation of the new TRIPS standards which many developing countries hastily enacted [20]. Over the following decade, several stages marked the transformation of Indian law from a process to product patent regime139 [21, 22]. Two of the most significant legislative changes took place in the last year of the transition. On the eve of the TRIPS implementation deadline, the Indian Parliament enacted the Indian Patent Ordinance (codified on December 26, 2004). The Ordinance was widely viewed as multinational enterprise-friendly, with the patent process lessening requirements for patent applications and terminating a clause for procedures for contestation of applications during the pre-grant period. In terms of potential impact on pharmaceutical trade, the Ordinance constrained Paragraph 6, regulating export and provided for export only to those countries which had issued compulsory licenses. Finally, the Ordinance did not specify the procedure for issuing compulsory licenses. The Ordinance provoked a great deal of concern among both the public health community and in intellectual rights law circles. In contrast, the final version of India’s domestic application of Intellectual Property law, the Patents (Amendment) Act of 2005 (henceforth, “the 2005 Act”) which was passed in March, provided for 136 It is important to note that process patents were granted for a period of five years from the date of the patent grant or alternatively, seven years from the filing date of a patent, whichever was earlier. Additionally, the 1970 Patent Act included multiple provisions for compulsory licensing of process patents. Three years after the sealing date of the patent, any party interested in working on the patented invention could apply for a compulsory license. Finally, the Patent Act included a clause for “licenses of right” enforceable three days after the sealing of the patent should the government believe that the invention was not available to the public at a “reasonable” price [17]. 137 Indian generic medicines account for 22 per cent of generic medicines worldwide [18]. There is some disagreement about the actual source of Indian pharmaceutical development. A report from the Chemicals & Pharmaceuticals division of the Federation of Indian Chambers of Commerce and Industry (FICCI) concludes that the 1970 Indian Patent Act has been the “single most important factor pushing the growth and development of the domestic pharmaceutical industry” [17]. 138 Srinivas outlines three core challenges for Indian firms in entering innovative areas: finance, experience and institutional environment [19]. 139 Janice Mueller provides a thorough review of the key transformations in the three stages of the Indian patent system, arguing that the emerging system has taken on a “mosaic” nature, incorporating western standards and Indian norms [22]. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 147 a comparatively flexible framework and addressed some of the core issues which had not been addressed in the Ordinance. The key change brought about by the 2005 Act was the extension of product patents in the area of pharmaceuticals and chemical inventions. The Act defined new invention and patentability on the basis of three attributes – a novelty standard, inventive step and industrial applicability [23]. The Act also expanded on the exception provided under Section 3 (d) of the Patents Act 1970 and provided that any discovery of a new form of a known substance is not patentable unless it results in the enhancement of the known efficacy of that substance (Ibid.). Section 3 (d) was introduced as a measure to prevent the ever greening of patents, this rather liberal – and vague according to legal experts – provision paved the way for a prolonged legal battle between Novartis and the Union of India, a case dealt with later in the chapter. Another significant change was the introduction of the post-grant opposition mechanism and revocation mechanism to complement the pre-grant mechanism that the 1970 Act was already endowed with. This again is considered as a strategic provision that can effectively discourage frivolous patent applications. One of the most significant changes in the Act, and the most promising in terms of use of TRIPS flexibilities, is in the area of compulsory licensing. In pursuance of a TRIPS obligation, the 1999 amendment of the Patent Act provided for a “mail box”, whereby patent applications during 1995-2005 were to be put away to be reviewed in 2005. The Act provided that generic companies which had made significant investment and were producing and marketing drugs covered by the mail box applications prior to January 1, 2005 would be granted automatic compulsory licenses subject to payment of a reasonable royalty. In this way the Act ensured that generic producers of such drugs continued their business even after the Act came into effect. A number of scholars have attempted to understand how the Indian case reflects trends in the “harmonization” of international legal standards to a developing country [24, 25] and what the quantitative effects of the TRIPS implementation in India might be [26-29]. Yet little consensus has emerged on how India’s adoption of the patent regime has affected the supply of medicine in great part, because the implementation of the standards continues to be undergoing a process of definition140 [30]. One of the most important areas of flexibility and continued definition and re-definition which remained in place in the 2005 Act was a system of pre-grant and post-grant patent opposition channels141 [31]. Patent decisions in India are administered by the Patent Office, which has four branches, in Kolkata (head office), 140 Oxford’s Carolyn Deere-Birbeck has called this process the “Implementation Game” [30]. 141 Discussion regarding “flexibilities” has garnered increasing attention in the legal and public health communities. One important contribution was a study published by the South Centre [31]. 148 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Chennai, Mumbai and New Delhi142. Patent applications in India may be routed through the national application system or, for foreign applicants, through the Patent Cooperation Treaty. In the year 2006-2007 for example, the conventional national applications accounted for 3165, a 10 per cent increase over that of the previous year. The total applications through the Patent Cooperation Treaty route were 19,768, about 28 per cent higher than that of the previous year. In the specific category of medicines, the number of applicants for patents was 3,239, an increase of 46 per cent from that of the previous year. The number of patents registered was 787, an increase of 72 per cent over that of the preceding year. Based on these statistics, revealing the immediate post-implementation trends, a rise in the general patent applications is visible, and particularly so in the sphere of medicines. Importantly, in terms of patent oppositions during the same period, the Indian Patent Office recorded 44 pre-grant oppositions and 27 post-grant oppositions. Despite receiving a relatively low proportion of applications for which there are oppositions in process, almost all applications for antirretrovirals or cancer drugs face preor post-grant oppositions from national or international groups. Legal turf wars: interpreting and applying the patent law in India Over the past 5 years, a number of cases in Indian jurisprudence have begun to shape the legal interpretation of intellectual property standards with direct results for the amendment’s implementation. In this section, three cases have been presented with discussions on their preliminary implications for the Indian generics industry. These include: 1) a case testing the infamous Section 3(d) clause setting a standard for levels of minimum innovation; 2) consideration of public interest; and 3) withdrawal of patent applications and the granting of voluntary licenses by multinational enterprises. The aim here is not to provide a complete review of trends in Indian patent jurisprudence, which is beyond the scope of this chapter, but to focus on some of the key, recent political and legal issues emerging for the production of some life-saving medicines. Many of these cases are still under consideration; for those in which judgements have been released, appeals may leave the door open for debate for years to come. 142 Prior to the 2005 Act, the period for consideration of patents was approximately 6 years but now the Patent Office has undergone a series of steps to modernize the process, and suggests that this average has been reduced to 3 years. As part of the modernization process, the patent office has begun to computerize its systems. All applications filed after January 1, 2005 have their information held electronically (with a classification of the application, name of application, country type etc.) The ability to track patents and their stage in the application process is of paramount public interest. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 149 Testing the constitutional validity of Section 3(d): Novartis and Glivec In 2006, the Patent Office in Chennai rejected the Swiss-based Novartis’ patent application for the anti-cancer drug Glivec143. The rejection of Novartis’ application set into motion a series of rulings with implications reaching well beyond the question of the Glivec application. Novartis’ response was not merely to appeal the rejection, but to question the constitutionality of Section 3(d). As briefly discussed earlier, Section 3(d) prohibits the granting of patents for what are considered negligible modification of existent drugs, defining such substances as a “mere discovery of a new form of a known substance which does not result in the enhancement of the known efficacy of that substance144.” This clause is considered critical in preventing firms from engaging in evergreening, or for firms’ seeking extensions to monopoly rights for insignificant molecular adaptations. The Madras High Court rejected Novartis’ claim, and found that Section 3(d) was constitutional145 [32]. Novartis, the Swiss pharmaceutical company, filed an application in 1998 claiming a patent over Glivec, a life-saving cancer drug to treat patients suffering from chronic myeloid leukemia. Glivec is the β crystalline form of imatinib mesylate. Imatinib, the free base molecule, was invented by Novartis in 1992 and the 1993 US patent for imatinib discloses imatinib mesylate (US Patent No. 5521184). Despite this, Novartis filed the patent application in India in 1998 and argued before the Patent Controller that they had invented two compounds – imatinib mesylate and its β crystalline form. Novartis had been granted patents on corresponding patent applications in over 40 countries including China and Russia. The Cancer Patient Aid Association filed a pre-grant opposition, claiming that Glivec could not be patented. The Association claimed the grounds of (1) prior publication in an earlier patent, (2) obviousness, (3) lack of enhancement of efficacy, and (4) incorrect claim of priority146. As India did not recognise product patents for pharmaceuticals at the time of this application, it was to be examined only after 2005. In the meantime, in 2003, Novartis obtained the exclusive marketing right for imatinib mesylate based on its patent application147. Based on the exclusive marketing right, Novartis obtained 143 Sold in the United States under the commercial name Gleevec. 144 The Patents (Amendment) Act 2005, Office of the Controller General of Patents, Designs and Trademarks, Delhi, India. 145 It also held that it did not have “jurisdiction” for evaluation of TRIPS, which has been artfully challenged in Basheer, & Reddy [32]. For an excellent discussion on this case, see, Raju [33]. 146 See the group the Lawyer’s Collective for a discussion of this case, http://www.lawyerscollective. org/hiv-aids/activities/legal-services-access-to-medicines-patents 147 Before its harmonization with the full-fledged TRIPS patent regime in January 2005, India incorporated into its 1970 Patent Act a provision allowing for “exclusive marketing rights.” The term 150 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas orders from the Madras High Court to stop several generic pharmaceutical companies from manufacturing generic versions of imatinib mesylate, while the Bombay High Court did deny the same. While generic versions were available at a cost of around Rs. 8 000 (US$ 160) to Rs. 12,000 (US$ 240) per month, Novartis sold its version at Rs. 120 000 (US$ 2,400) per month. The court order resulted in the reduction of the supply of generic versions, and consequently impacted patients suffering from chronic myeloid leukemia. In 2006 the Indian patent office rejected the application on the ground that the product claimed by Novartis lacked a sufficient level of novelty and failed to show an increased efficacy over the known substance148. The base substance known at the time of application was not imatinib but imatinib mesylate; thus, Glivec being only a β crystalline form of imatinib mesylate was deemed to be only a new form of a known substance and not an enhancement of efficacy. Rejecting Novartis’ argument that it was 30 per cent more bio available in rats, the controller held that there had been no enhancement of efficacy149. With the rejection of patent the exclusive marketing right came to an end. Subsequently, Novartis filed multiple challenges in the Madras High Court. It challenged not only the decision of the Patent Office rejecting its patent application, but also the Section 3(d) of the Patents Act – a crucial public health safeguard introduced in the law by Parliament to prevent evergreening. The company argued that the section 3(d) was vague and not compatible with the Constitution of India and was not compliant with the TRIPS Agreement. Its position was that since the free base of imatinib was never patented in India, there was no question of extending the life of the patent and thereby engaging in evergreening. In 2007, the Madras High Court rejected Novartis’ challenge to Section 3(d) and held that it had no jurisdiction to determine the issue of TRIPS compatibility. In determining the issue of constitutional validity, the court held that the word “efficacy” used in section 3(d) had a definite meaning in the pharmaceutical field. The set of appeals filed by Novartis challenging the Chennai Patent Office’s decision was transferred from the Madras High Court to the Intellectual Property Ap- refered to products which were granted provisional monopoly marketing rights for patented products, or products for which a patent application was pending, based on 3 criteria, including its patent status in other World Trade Organization countries. Rights were granted for a period of 5 years or until the rejection or grant of the patent. With the entry into the TRIPS system, the intermediate stage of the exclusive marketing right was abolished. For specificities on this system see the Indian Patent office, http://www.patentoffice.nic.in/ipr/patent/emr.htm. As accessed, November 2010. 148 It was noted by the Patent Controller that the 1993 patent claimed all salts related to the free base that was being patented. Since Glivec was a salt of that free base, and was obtained in the customary manner and was the form that the salt normally exists in, Glivec was a known salt and could not be patented. Since Glivec’s salt form was the most thermodynamically stable and also the form that the salt normally assumes, it was obvious. In other words, the application only claims a new form of a known substance. 149 http://www.lawyerscollective.org/node/1042 Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 151 pellate Board (IPAB) which released its decision in June 2009. The IPAB too held that Novartis was not entitled to a patent on imatinib mesylate as its claimed product did not meet the requirement of increased therapeutic efficacy. He, however, reversed the findings of the Patent Controller on novelty and inventive step. It held that imatinib mesylate was novel and not obvious to a person skilled in the art. It also allowed Novartis to proceed with certain process claims. Novartis approached the Supreme Court on August 28, 2009 arguing that the Intellectual Property Appellate Board had wrongly relied on the interpretation of Section 3(d) by the Madras High Court – that a patent applicant has to show an increase in therapeutic efficacy. In a statement justifying legal arguments, the company declared that “Section 3(d) of the Indian patent law will limit pharmaceutical research and development in India because it limits the ability to patent incremental innovation.” The company contended that “Acknowledging innovation by granting a patent is unrelated to the access to medicines issue. Improving access to medicines is a matter of making medicines available. Medicines can be made available through access safeguards in international agreements and, in the case of essential and life-saving medicines, special pricing arrangements in developing countries can, and must, be made150.” What are the implications of Novartis’ legal challenge of Section 3(d), a clause hailed as symbol of responsible use of public health safeguards? Any compromise with this section would eventually help pharmaceutical companies with deep pockets to patent incremental changes to the existing drugs. This would hamper competition in generic drugs which has been largely responsible for the reduction of drug prices and increased affordability and access. More specifically, access to recently developed second-line generic antirretroviral drugs by people living with HIV/AIDS all around the developing world would be seriously affected by any weakening of Section 3(d)151. Mass scale treatment programmes for other diseases like tuberculosis too would also face rapid shortages of low-cost generic medicines. Consideration of public interest: Roche and Tarceva One of the fundamental characteristics of the Indian patent system is that while patents are valid for a period of 20 years, calculated from the date of filing/priority of the patent application (whichever is earlier), patents may be challenged through systems of pre-grant and post-grant opposition. Post-grant opposition was origi- 150 Novartis company release, http://www.novartis.com/downloads/about-novartis/Novartis_positionGlivec_Gleevec_patent_case_india.pdf, as accessed 26 September 2010. 151 CARE, “The Novartis case and access to affordable drugs,” http://www.care.org/newsroom/ articles/2007/06/20070613_novartis.asp, as accessed 27 September 2010. 152 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas nally outlined in India’s 1970 Patent’s Act, in Section 25(2), and was brought forth in the 2005 Act. Procedures for post-grant opposition allow any interested party, be they representatives of civil society, or generic producing competitors, to challenge the validity of a patent as far as one year from the date of publication of the patent issuance152. The process of how post-grant oppositions are reviewed and what issues are taken into consideration during their review have been illustrated in a case which is currently ongoing between the Swiss-based Roche and local (Indian) producer Cipla153. Roche introduced the drug “Erlontinib” under the trademark name of Tarceva in India in April 2006 and was granted patent rights in June 2007. Nearly six months following the patent’s issuance, local generics producer Cipla launched a generic version called of Erlocip. In response, Roche challenged Cipla’s right to generic production and requested an injunction which would prohibit its manufacture. Cipla’s response reflected the view of many local producers and public health groups in India; according to Indian jurisprudence there is no presumption of the validity of patents, given the multiple stages at which a patent application may face objection and review. Cipla suggested that examination and opposition at India’s patent offices comprise a first stage of patent review: “The patent is subject to scrutiny at several higher levels, unlike the case of trademarks.” In addition to its procedural arguments against the issuance of an injunction, Cipla argued that patent had been granted without proving sufficiently innovative under Section 3(d). Cipla pointed out that Erlontinib was merely a derivative from quinazolin compounds, which are widely known to inhibit growth and proliferation of mammalian cells154. Thus far, the importance of this case has not been in the debates over the application of Section 3(d). In 2009, Delhi High Court Justice Ravindra Bhat dismissed the request by Roche for an injunction, on the grounds that the Cipla alternative was being offered at one third the price of the originator product. Prohibiting the product from entering the market, before a full evaluation of the patent’s validity, would be in conflict with public interest. Bhat’s order represented, for the first time in India, that public interest was brought into explicit consideration in the rejection or granting permission of an injunction. As a number of HIV/AIDS cases move forward, having established the “public interest” precedent is an important and positive development in the wake of the 2005 Act. 152 Recent post-grant opposition decisions include; Novartis vs. Cipla (Dulera), Gendon vs. Cipla (Ipill), Roche vs. Cipla (Valcyte), Roche vs. Wockhardt (Pegasys) 153 The case has now evolved into a full-blown series of suits against Indian producers, including locally based Matrix. See posts by Shamand Basheer, at Indian IP bloc, SPICY IP, for full legal coverage of this case. 154 An important case on evergreening which is used as a reference in this case is the ruling of the Madras High Court in Novartis vs. Union of India, 2007 (4) MLJ 1153. Cipla also shows three European patents of similar compounds dating back to 1993. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 153 Defensive strategy: GlaxoSmithKline and Abacavir While a number of important cases are currently being fought out in Indian courts others are taking shape in the public ambit. One such interesting example has emerged through the multiple cases of multinational enterprises which have withdrawn patent applications, or issued voluntary licenses. Such is the case of GlaxoSmithKline which withdrew its application for abacavir sulfate in India in 2007155. The Indian Network of Positive People had filed an opposition against the GlaxoSmithKline’s application, arguing that it did not meet innovative standards set out in Section 3(d). The Indian Network of Positive People noted that in an earlier published patent (1991, EP 0434450) the release of sulfuric acids make the addition of hemisulfate salt an obvious step and therefore the mere large scale manufacture of these combinations does not entail sufficient innovation. The Indian Network of Positive People was joined in its patent opposition by the local producer Cipla. In response to the oppositions generated by the abacavir application, GlaxoSmithKline withdrew its claim, citing its concern for the “public interest.” A number of local groups questioned if the motivations of the company were less than altruistic and merely represented a calculated defensive strategy: “We wonder whether GSK is truly acting in the public interest or is avoiding the build up of case law by the patent office that could serve to hinder other similar applications/granted patents in India and other countries156.” Withdrawal of a patent application in the face of public scrutiny or a potentially damaging case law is one approach multinationals appear to be adopting157. Another strategy is that of issuing a voluntary license to a select number of generic companies, essentially granting them permission to produce the product and, thus, avoiding costly legal battles over patent rights. Gilead Sciences, the proprietor of the key antirretroviral Tenofovir Disproxil Fumarate, known by the brand name Viread, followed this route when it permitted 11 Indian generic manufacturers to produce the drug at a much lower price. Voluntary licensing, like the withdrawal of patent applications, does not present a sustainable solution for public health groups because it depends on the interests of private firms. What these doublepronged strategies reflect in India is how firms are adapting to local challenges; with some products not worth the legal investment and others used as tools to create alliances with local industry. 155 Marketed as Ziagen, application n. 872/Cal/1998. 156 I-MAK, “Initiative for Medicines, Access & Knowledge,” http://www.i-mak.org/i-mak-blogupdates/2007/12/9/gsk-withdraws-its-application-for-abacavir-in-india.html (accessed June 1, 2008). 157 In another case, GlaxoSmithKline withdrew its patent application in India for the antirretroviral combination known as Combivir. Facing a similar controversy in Thailand, GlaxoSmithKline adopted a similar strategy for abacavir. 154 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Ensuring generic market entry: challenges to the Bolar exception The intellectual property standards established under the TRIPS agreement mandated the introduction of patent ownership for pharmaceutical products for all World Trade Organization members158. As discussed earlier, in a number of developing countries, India among them, pharmaceutical products were previously not considered patentable goods159 [34]. Despite the push toward a universal, homogenous standard system of patenting processes, the TRIPS agreement did provide a number of flexibilities allowing for national governments to tailor international standards to local demands [35]. These flexibilities have been largely underutilized by developing countries, and have been the frequent target of bilateral trade agreements160 [36-38]. One specific area of flexibility is the so-called Bolar exception. The Bolar exception stipulates that generic manufacturers have the right to manufacture a patented drug in limited quantities during a period in which patent rights are valid. The exception allows generic manufacturers to produce a patented drug with the intent of collecting data to submit to drug approval regulatory authorities. Regulatory systems in developed and developing countries alike may take as many as 1-5 years to grant approval for the entry of a pharmaceutical product into the market. In short, the Bolar exception allows generics firms to prepare products for market entry so that, with the expiration of the patent period, generic alternatives are readily available161. Without the Bolar exception, generic firms would have to wait until a patent period had fully expired before initiating regulatory approval processes, thereby granting patent-holding firms a de facto extension of their product’s market monopoly. The rejection of Bolar rights is frequently referred to as “linkage” of the regulatory approval system with the patent granting processes, as restricting Bolar rights would mandate regulatory agencies to review only those market access applications which have patent rights. Linkage of patenting and regulation processes is 158 See Part II, Article 5 of the TRIPS Agreement (http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips.pdf). 159 Brazil, for example, was another country which did not consider pharmaceutical goods patentable due to public interest. A number of developed countries also shirked patent systems for pharmaceutical products; as late as 1976, Switzerland did not have pharmaceutical patents [34]. 160 A number of studies have identified a pattern in bilateral trade agreements between northern and southern partners, in which countries such as the United States make tighter patent restrictions a requirement of preferential trade status [36-38]. 161 The name Bolar exception is derived from US case law more than a quarter of a century ago through the case Roche Products Inc. v. Bolar Pharm. Co. Inc. 733 F: 2d 858 which ruled against the right of generic producers. This ruling was overturned by the US Congress’ enactment of the Hatch-Waxman Act, which established the right to pre-term patent production for generic firms. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 155 currently opposed in a number of developing and developed countries, including the European Community and United States162 [39]. In India, the 2005 Amendment included the Bolar exception163 [23]. Generic firms in India may seek regulatory approval of drugs for which patents are valid; if firms go beyond the purview of activities related to seeking regulatory permission, and bring drugs to market without patent approval, they may be held legally responsible164. Yet, the ensured existence of the Bolar exception in India has been repeatedly challenged by political and legal pressures to link patent and product approval systems. In 2007, the Drug Controller General of India (the organization which regulates the market entry of pharmaceutical products) announced that he intended to reject applications for regulatory approval of patented generics from non-patented holders. Soon thereafter, facing an uproar in the public health community, this proposal was withdrawn. Nevertheless, in subsequent years, a number of legal suits levelled by the international pharmaceutical community have challenged the Bolar exception in India, arguing that the courts should restrict the ability of generics firms to seek regulatory approval for a product for which they do not enjoy patent ownership. Two recent cases highlight the attempts of multinationals to challenge the Bolar exception in India. In January 2009, Bristol Myers Squibb filed a suit against local generics producer Hetero Drugs. He argued that Hetero should be prevented from manufacturing, selling, or offering to sell “dastinib”, used by patients with leukemia. Hetero had not yet been granted regulatory permission for the drug at the time of the suit, nor had it brought the product to market. The Delhi High Court granted a restraining order in favor of Bristol Myers Squibb, ruling that permissions to seek regulatory approval amounted to patent infringement. Yet, in another ruling, in August 2009, the Delhi High Court rejected a suit brought by Bayer Corporation against Cipla Ltd. and the Union of India, arguing that the Drug Controller General of India should consider the patent status for its cancer drug sorefenib tosylate. After initially granting an injunction on production of Bayer’s drug in October 2008, the Court’s final dismissal of the case included the “vexatious and luxury litigation which should be discouraged” [40]165. Bayer has now appealed the High Court’s ruling and the case is currently before India’s Supreme Court. 162 See, Section 271 (e) (1) of the Drug Price Competition and Patent Term Restoration Act. For a discussion of recent rulings related to the Bolar exception in the United States, see MJ Adelman [39]. 163 As ensured in Section 107A of the Patents Act (2002 version). The 2005 Act updated and expanded Bolar exception rights to include the act of “importing.” According to Indian legal scholar Shamand Basheer, this will “no doubt aid the efforts of generic manufacturers, who are exploring all possible means to help mitigate the adverse consequences of a pharmaceutical patent regime” [23]. 164 An example is the case of cancer drug Tarceva, in which Cipla was granted the approval to market, although the drug was patented by Swiss drug maker F Hoffmann-La Roche. Cipla went ahead with the production of Tarceva and a lawsuit proceeded. 165 The ruling can be found at “High Court of Delhi at New Delhi” LPA/443/2009, http://lobis.nic.in/dhc/ SMD/judgement/09-02-2010/SMD09022010LPA4432009.pdf. 156 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Legal attacks on the Bolar exception in India, and their continued evaluation in India’s highest courts illustrate that nearly half a decade following the passage of the Patent Amendment, fundamental issues regarding the implementation of India’s patent system are still under definition. The Drug Controller General of India is not qualified to evaluate the validity of patents granted, nor does it enjoy reliable data regarding which patents are granted [41]. In addition to these issues of institutional capacity, the policy implications of product-patent approval linkage would create a significant barrier to national and international access of generic drugs. The potential linkage of India’s patent and regulatory approval systems would present a great challenge for local generic producers. A committee appointed by India’s Ministry of Chemicals and Fertilizers (the Satwant Reddy Committee) was convened in 2007 to examine patent linkage and determined that it was not in India’s interest, but the “implementation game” [30] regarding how national laws will apply international patent laws remains in full play. Concluding observations This chapter has reviewed the importance of Indian generic products for global antirretrovirals access, provided an overview of the major changes in Indian patent law through its 2005 Amendment, and introduced some of the most recent debates which will affect the implementation of patent law in India. The shape of institutions regulating the insertion of products in the Indian market, and the systems by which patents are granted, will have direct impact on the drugs which are brought to market by Indian firms and the strategies of these firms. In the past, Indian firms have been at the front line, not only in providing cheap, quality medicine to global health and public national programs, but also in leading the way for a number of delivery system improvements and improved combination formulae, for which Indian firms have a history of developing. How Indian producers react to the legal challenges they are facing in Indian courts and in other courts abroad will have a significant impact on the types of drugs they choose to produce. The cost of litigation, for example, can serve as a barrier for generic firms hoping to access developing markets166. Trends in the generic sector will likely lead toward local Indian firms adopting strategies for survival in the new competitive framework. We can expect for Indian firms to increasingly focus their resources on developing R&D for drugs intended for export where high-value revenue is anticipated. The battlefield of current litigation in India, much of it pending, will be 166 Managing director of Dr. Reddy’s, Satish Reddy, reports that the firm spent 12 million US$ on legal costs in 2005, equivalent to above 25 per cent of its R&D allocations. The Economist, “A survey of pharmaceuticals,” p.17. Capítulo 8. Institutional and procedural challenges to generic production in India 157 critical in determining how the 2005 Act is interpreted and applied. The strategies of multinationals in relationship to their Indian competitors and the future of the Bolar exception will all be important issues in determining the future of low-cost antirretroviral medicine production in India. Bibliography 1. 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Não obstante, as tecnologias de contagem dos linfócitos T- CD4+/CD8+ e de quantificação da carga viral permanecem ainda inacessíveis aos países do hemisfério sul. Esta situação é devida à natureza oligopolística e cartelizada deste mercado particular, assim como pelas elevadas restrições impostas pela propriedade intelectual e pela complexidade tecnológica destes testes. A experiência brasileira referente à aquisição e distribuição dos testes de monitoramento do HIV/Aids constitui-se em uma importante fonte de aprendizado quanto ao estabelecimento de estratégias nacionais efetivas no confronto às barreiras do mercado, através do estabelecimento das Redes Nacionais de Laboratórios. Palavras-chave: Monitoramento do HIV/Aids; Redes Nacionais de Laboratórios, Centralização; Descentralização; Brasil. I. Introdução Os testes utilizados no monitoramento terapêutico de pacientes de HIV/Aids (testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/CD8+, testes de quantificação da carga viral e testes de genotipagem) constituem-se em tecnologias essenciais para o monitoramento do HIV/Aids [1]. No entanto, devido ao elevado custo destas tecnologias, a maioria dos países em desenvolvimento (PED) ou de menor desenvolvimento relativo (PMDR) é desprovida de um programa de monitoramento laboratorial ade- quado, devido à natureza oligopolística e cartelizada deste mercado, assim como pelas elevadas restrições impostas pela propriedade intelectual destas tecnologias e pela complexidade tecnológica destes testes. Neste contexto, a experiência brasileira referente ao acesso universal aos testes de monitoramento do HIV/Aids reflete não somente as características deste mercado, mas as dificuldades enfrentadas pelos países em desenvolvimento na manutenção deste acesso, sobretudo, no que diz respeito às estratégias de redução de preços destes produtos e na capacitação dos laboratórios nacionais. O presente capítulo visa descrever as estratégias nacionais adotadas pelo governo brasileiro na constituição das Redes de Laboratórios. Desta forma, o capítulo será organizado através de duas seções. Primeiramente, apresentará uma avaliação geral do mercado dos testes de monitoramento, no qual serão detalhadas as características do mercado e as principais tecnologias empregadas. A segunda seção visa descrever as experiências da Resposta Brasileira ao HIV/Aids no que tange às estratégias de centralização e de descentralização adotadas para o acesso universal às tecnologias de monitoramento. Ao final do capítulo, é apresentada uma breve discussão na qual serão apontadas algumas tendências deste mercado e algumas proposições para as Respostas Nacionais dos países em desenvolvimento. II. Testes de monitoramento do HIV/Aids: tecnologias e características de mercado Entre todos os insumos utilizados para o combate ao HIV/Aids, os testes de monitoramento são os que apresentam maior complementaridade institucional e tecnológica em relação ao mercado dos medicamentos antirretrovirais. Esta complementaridade torna-se ainda mais relevante se observarmos o significativo aumento do acesso ao tratamento antirretroviral, no contexto global, tendo em vista que a diversidade genética do HIV, o número crescente de casos de falhas terapêuticas, assim como de resistência viral constituem-se nos principais fatores que contribuem para a demanda crescente pelos testes de monitoramento nestes países [2-3]. No entanto, os preços praticados para estes insumos encontram-se muito acima dos orçamentos nacionais dos países de média e baixa renda, desta forma comprometendo a eficácia dos tratamentos antirretrovirais utilizados e a sustentabilidade das suas Respostas Nacionais [4-5]. As principais categorias que constituem o mercado dos testes de monitoramento do HIV/Aids estão organizadas em três grupos distintos, a saber, os tes- 162 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tes imunológicos (contagem dos linfócitos167 T-CD4+/CD8+); os testes virológicos (quantificação da carga viral) e os testes genotípicos (genotipagem do HIV).168 Os testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/CD8+ correspondem ao recurso adotado pelas recomendações da OMS (ver Tabela 1) para a avaliação do estado do sistema imunológico do paciente de HIV/Aids. As informações providas por estes testes contribuem de maneira crucial tanto para a profilaxia de infecções oportunistas, como para a definição do momento de introdução de terapias antirretrovirais [611]. Os testes de quantificação da carga viral (CV) constituem-se no padrão de referência para a quantificação de vírus em amostras de sangue total, em nível global [12-13]. Os equipamentos utilizados nesta quantificação são robustos e projetados como verdadeiras “caixas pretas”, nas quais decorre a etapa de extração e isolamento do DNA viral, seguida pela etapa de amplificação e detecção do ácido nucléico. Tabela 1 – As Diretrizes da OMS (2005) referente ao uso dos testes de monitoramento do HIV/Aids Contagem CD4+/CD8+ Quantificação da Carga Viral Pacientes assintomáticos A cada 3-4 meses/ano A cada 3-4 meses/ano Pacientes de Aids Pacientes “naive”: 2-8 semanas após início do TARV A cada 3-4 meses/ano A cada 3-4 meses/ano Falha terapêutica 2-8 semanas após início do TARV 2-8 semanas após início do TARV Uma vez comparados aos testes imunológicos, as tecnologias para quantificação da CV apresentam custos muito mais elevados, tanto no que se refere ao equipamento, quanto ao valor unitário dos testes. Os valores dos equipamentos para a contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ variam entre 20 e 35 mil dólares americanos, enquanto que os equipamentos para a quantificação da CV poderá variar entre 70 e 80 mil dólares americanos, de acordo com a técnica adotada [11]. No que se refere ao valor unitário para a realização do teste, os valores são igualmente discrepantes, sendo o custo unitário para a contagem imunológica de 5 a 10 dólares americanos, enquanto que os testes virológicos são comercializados a um valor unitário entre 15 e 20 dólares americanos [14]. As principais razões para esta disparidade considerável entre ambas as tecnologias referem-se à complexidade tecnológica dos testes de quantificação da CV, assim como ao forte impacto advindo da propriedade intelectual das mesmas. Outro fator relevante no impacto sobre 167 Estas células constituem um subtipo particular de linfócitos, os quais sofrem um considerável decréscimo durante a reprodução do HIV no paciente. Esta situação deve-se ao fato destes linfócitos consistirem na “porta de entrada” do vírus HIV na célula hospedeira sendo, portanto, um importante indicador da condição do sistema imune do paciente. 168 Por se tratarem de uma tecnologia que visa essencialmente a detecção de ocorrência de resistência viral nos pacientes de HIV/AIDS, o presente artigo não abordará as tecnologias de genotipagem. Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 163 os custos da tecnologia de quantificação da CV decorre de um intenso processo de concentração do mercado, sobretudo, quanto à utilização da tecnologia dominante, em nível mundial, como veremos a seguir. Atualmente, o mercado de testes de contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ é caracterizado pela presença de quatro empresas dominantes, a saber, Becton Dickinson (EUA), Beckman Coulter (EUA), Partec (Alemanha) e Guava Technologies (EUA), as quais possuem um vasto portfolio de patentes compreendendo todos os componentes dos testes (calibradores, reagentes, softwares e consumíveis), como principal estratégia de mercado. Ao contrário das empresas compreendidas no mercado de testes moleculares (quantificação da CV), estas empresas utilizam a mesma tecnologia (imunofluorescência) para a contagem dos linfócitos e estabelecem uma tática de diferenciação de produto baseada na proteção intelectual de processos de imunofluorescência direcionada (targeted). No que se refere aos testes de quantificação da CV, quatro empresas líderes destacam-se no mercado: Roche (Suíça, compreendendo 56% do mercado internacional), Siemens (EUA, 21%), Abbott (EUA, 5%) e BioMérieux (França, 18%), sendo que Roche detém mais da metade do volume total de vendas. Esta situação devese ao fato de a tecnologia de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR169) proprietária da empresa Roche ser a mais utilizada em nível global, assim como pela posição estratégica adotada pela empresa no que se refere à propriedade intelectual dos processos em tempo real (qPCR), os quais serão amplamente adotados no futuro próximo, devido às suas vantagens tecnológicas.170 Além da natureza oligopolística deste mercado, a pluralidade de componentes que constituem os testes (primers, marcadores, calibradores, enzimas, corantes, instrumentos, softwares e consumíveis) representa um fator crucial que conferem uma organização industrial particular e mais complexa do que aquela observada para os testes imunológicos, caracterizada pela elevada concentração do número de atores, os quais são coordenados em redes. Estas redes fechadas representam uma estratégia poderosa para a proteção de mercado, com vistas à redução do número de potenciais competidores [15] [16]. Tais características de mercado constituem-se em uma significativa barreira à ampliação do acesso à medicina laboratorial, assim como o monitoramento do tratamento antirretroviral destinado aos pacientes de HIV/Aids nos países de baixa renda, sobretudo, no continente Africano [17]. Da mesma forma, os testes de monitoramento ainda não têm configurado nas políticas de combate ao HIV/Aids destes países como um insumo primordial nas estratégias nacionais de combate à 169 Polymerase Chain Reaction, em inglês. 170 De fato, contrariamente às tecnologias padrão de quantificação da CV citadas anteriormente, a metodologia de PCR em tempo real (qPCR) permite a detecção da amplificação de uma determinada região do material genético viral durante as primeiras etapas da reação (fase exponencial), desta forma, permitindo a análise da reação em tempo real. A técnica tradicional de PCR, por exemplo, permite apenas a detecção da amplificação na fase final da reação (end point), desta forma incorrendo em limitações. 164 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas epidemia; tão pouco, as iniciativas internacionais de financiamento têm dado a devida relevância ao monitoramento do HIV/Aids. De fato, o que se observa é que, em sua grande maioria, a prioridade é geralmente dada às estratégias de prevenção e tratamento [18]. Não obstante, algumas iniciativas recentes têm envidado esforços no sentido de suplantar estas barreiras e promover o estabelecimento de redes nacionais e regionais de laboratórios destinadas ao monitoramento terapêutico do HIV/Aids no continente Africano. Estas iniciativas visam promover o fortalecimento da capacidade técnica e de recursos humanos no uso racional destes insumos, assim como de normalizar os procedimentos laboratoriais nestes países [19-22]. III. A experiência brasileira na aquisição, utilização e distribuição de testes de monitoramento do HIV/Aids Os testes de monitoramento têm sido parte integrante do Programa Brasileiro de combate ao HIV/Aids desde a sua concepção e passaram a ser fornecidos de maneira centralizada desde 1997, com a implantação das Redes Nacionais de Laboratórios. Atualmente o país garante o acesso destes testes a 352.000 pessoas vivendo com HIV/Aids,171 nos quais estão compreendidos pacientes assintomáticos (aproximadamente, 80%), gestantes (cerca de 13.000, em 2010), recém-nascidos de mulheres HIV+ e pacientes apresentando falha terapêutica.172 A Figura 1 apresenta o uso dos testes de contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+ e de quantificação da CV, administrados por classe de pacientes. Desde 2008, o governo brasileiro passou a adquirir 820.000 testes para CD4 e 820.00 para CV (cerca de 70% da demanda nacional), os quais representam um mercado considerável para as empresas multinacionais, neste setor. Os resultados das licitações das compras realizadas em 2008 são apresentados em detalhe na Tabela 2. 171 Fonte: SISCEL (2007). 172 Fonte: MONITORAIDS (2007). Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 165 Figura 1 – Distribuição dos testes de monitoramento, por categoria de pacientes 16% 2% 2% Sintomáticos Recém-nascidos HIV+ 5% 53% Gestantes Assintomáticos Crianças HIV+ 22% Falhas terapêuticas Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008) Tabela 2 – Resultado dos pregões realizados pelo Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais para a aquisição dos testes de monitoramento do HIV/Aids, em 2008 Teste de Monitoramento Demanda Anual Fornecedor Preço Unitário (USD) Marca CD4+/CD8+ 720.000 Becton Dickinson USD 7,20 FacsCount CD4+/CD45+ 30.000 Becton Dickinson USD 16,00 FacsCalibur (3 colors) Carga Viral 720.000 Siemens USD 10,04 Versant HIV-1 RNA 3.0 Assay (b-DNA) Genotipagem 15.000 Siemens USD 122 Trugene Total 1.485.000 ® ® ® ® Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008) III.1. As estratégias de aquisição dos testes de monitoramento do HIV/Aids O governo federal, representado pelo Ministério da Saúde e pelo Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais, desempenha um papel fundamental nos estágios ex-ante e ex-post nos processos de aquisição, os quais têm início na compreensão da estrutura do mercado e na negociação de preços até a regulação sanitária e distribução dos testes de monitoramento do HIV/Aids. As aquisições são realizadas de acordo com o critério de menor preço, através da modalidade de “pregão”. O cálculo da demanda é feito com base nas estimativas das necessidades anuais. Os equipamentos necessários à execução dos testes não são adquiridos pelo governo mas negociados através de uma estratégia de comodato, cujo custo é embutido no valor de venda dos respectivos testes, consideran- 166 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas do-se um horizonte de cinco anos para a depreciação do equipamento. Importa também lembrar que a transação de um sistema de diagnóstico (compreendendo o analisador, o equipamento, os reagentes e o respectivo software) vai além da mera comercialização dos produtos (kits), uma vez que um pacote de serviços também faz parte da negociação 173 [23]. Desta forma, observa-se que o bem a ser comercializado assume uma dupla dimensão: (i) uma dimensão técnica referente à aquisição dos testes de monitoramento, o seu uso e as atualizações referentes à metodologia aplicada (“produto em mãos”) e (ii) uma dimensão de aprendizado/conhecimento, mediante o treinamento local oferecido pelo fornecedor aos laboratórios nacionais (“know-how em mãos”). No entanto, o conhecimento adquirido pelos laboratórios limita-se ao uso da tecnologia (através de atualizações tecnológicas e da assistência técnica) e não a um efetivo fortalecimento da capacitação técnica nacional referente ao desenvolvimento tecnológico e aos mecanismos de fabricação dos testes de monitoramento. As complexidades tecnológicas referentes à cada metodologia de monitoramento do HIV/Aids, assim como a propriedade intelectual das mesmas e as dimensões territoriais do país constituem-se em importantes barreiras à entrada de outros competidores, no mercado nacional. Primeiramente, devido à intensidade tecnológica destes testes (dimensão técnica), a comercialização destes produtos só pode ser realizada por um número restrito de empresas detentoras deste conhecimento. Ainda, os requerimentos quantos aos serviços a serem prestados pelo fornecedor (distribuição, capacitação e assistência técnica de toda a Rede) demandam uma robusta infraestrutura por parte do mesmo, a qual também colabora para reduzir o número de competidores. III.2. A implementação das redes nacionais de laboratórios: uma combinação evolutiva das políticas de centralização e de descentralização No Brasil, a necessidade pela harmonização de boas práticas, experiências e infraestrutura dos laboratórios nacionais que executam testes de monitoramento, assim como a ausência de um sistema nacional de monitoramento do HIV/Aids levaram as autoridades de Saúde Pública a decidirem-se pela implementação das Redes Nacionais de Laboratórios, em 1997. As especificidades inerentes à cada uma das tecnologias de monitoramento do HIV/Aids gerou a criação de duas redes 173 De acordo com a Ata Pública dos Pregões de aquisição dos testes de monitoramento publicada pelo Ministério da Saúde, o fornecedor deverá prover os itens a seguir: (i) o kit de reagentes; (ii) os equipamentos e softwares necessários; (iii) uma linha telefônica exclusiva (0-800) para o fornecimento gratuito de assistência técnica; (iv) serviço in-loco de assistência técnica e científica e manutenção dos equipamentos; (v) treinamento técnico para a execução da tecnologia, (vi) serviço de distribuição dos testes em todo o território nacional e (vii) treinamento continuado nas atualizações da técnica. Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 167 distintas de laboratórios, as quais compreendem apenas os laboratórios nacionais de referência: (i) a Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos Linfócitos CD4+/CD8+ (RCD); (ii) a Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral (RCV) 174 [24]. O estabelecimento e a implementação das redes nacionais de laboratórios submeteram-se a três etapas distintas: (i) o primeiro período de centralização, entre 1997-2001; (ii) o período de descentralização, entre 2001-2004 e; (iii) o segundo período de centralização, iniciado em 2004 e vigente até o presente momento. 1997-2001 – a escolha pela centralização e seus impactos Primeiramente, duas redes de monitoramento foram prioritariamente estabelecidas, sendo uma destinada à execução dos testes imunológicos e outra à execução de testes virológicos.175 O financiamento e gerenciamento destas redes foram fundamentados nos princípios que regem o Sistema Único de Saúde (SUS), segundo as quais as responsabilidades e os custos foram divididos entre os governos federal, estadual e municipal [25]. O estabelecimento desta primeira fase contou também com o importante Acordo de Empréstimo concedido pelo Banco Mundial, cujos fundos foram geridos pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). No início da construção da Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos Linfócitos CD4+/CD8+ (RCD), 32 laboratórios constituiam a Rede, cuja maioria localizava-se em universidades federais e estaduais. Apesar da presença de quatro empresas líderes no mercado mundial de testes para CD4+/CD8+ (Becton Dickinson, Beckman & Coulter, Partec e Guava), a empresa americana Becton Dickson176 permaneceu como o único fornecedor para a região, apesar do esforço do governo brasileiro em promover a realização de licitações internacionais que propiciassem a participação de todos os concorrentes no mercado. Importa considerar, ainda, que a arquitetura do mercado nacional (elevada extensão territorial), assim como os requerimentos referentes ao processo de aquisição, contribuiu para a limitação do número de competidores. Os testes eram comercializados ao preço unitário de 26,50 dólares americanos. Em 2001, a RCD passou por um crescimento considerável, no qual o número de laboratórios aumentou de 32 para 78.177 A expansão do mercado nacional para estes testes também permitiu uma redução de preço (unitário) de 40%, se comparado ao preço comercializado em 1997. Nesta ocasião, 174 Com o intuito de monitorar a diversidade do vírus HIV, assim como o nível de resistência viral no nível nacional, o Ministério da Saúde também criou a Rede Nacional para o Isolamento do HIV em 1999 e a Rede Nacional de Laboratórios de Genotipagem (RENAGENO), em 2001. No entanto, este capítulo pretende focar na quantificação dos linfócitos CD4+/CD8+ e da carga viral, exclusivamente. 175 A Rede Nacional de Laboratório de Genotipagem foi estabelecida posteriormente, em 2001. 176 Representada pela empresa nacional Ambriex, no Brasil. 177 Ver Figura 1 referente à evolução das Redes Nacionais de Laboratórios. 168 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas dois testes foram adquiridos ao mesmo tempo – FacsCountTM e o FACSCaliburTM – ambos fornecidos pela Becton Dickinson.178 A decisão de compra de dois testes deveu-se às diferentes necessidades e infraestruturas dos laboratórios compreendidos na Rede. Nesta ocasião, os testes eram comercializados aos valores unitários de 14,73 e 15,73 dólares americanos, respectivamente. Ainda em 1997, deu-se o início ao estabelecimento da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral (RCV), a qual contou com a participação de 30 laboratórios de referência. No entanto, a constituição desta Rede ocorreu mediante um contexto institucional e cientificamente mais complexo em relação aos testes imunológicos, devido às características intrínsecas do próprio vírus HIV. Naquela ocasião, três empresas multinacionais de diagnóstico – Roche (detentora da tecnológica de RT-PCR179), Chiron180 (detentora da tecnologia de b-DNA181) e Organon Teknika182 (detentora da tecnologia NASBA183) participaram do pregão. No entanto, apenas a Organon estava apta a atender todos os requisitos administrativos, tecnológicos, assim como ao critério de menor preço, no qual são baseados os processos licitatórios. De fato, o “objeto” da licitação a ser fornecido pela empresa consistia de um “pacote” compreendendo o sistema de diagnóstico (equipamentos, analisadores e respectivos softwares) de quantificação da CV através da técnica NASBA, reagentes, a implantação da tecnologia em todos os 30 laboratórios integrantes da Rede, assim como a permanente assistência técnica e científica e treinamento. No decorrer deste primeiro período de centralização (1997- 2001), o número de pacientes em tratamento antirretroviral aumentou vertiginosamente, passando de 48.600 pacientes, em 1997, para 113.200 pacientes, em 2001.184 No decorrer destes quatro anos, o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais forneceu 687.250 testes de CV e investiu massivamente na capacitação e aprimoramento dos laboratórios de referência [26]. Neste mesmo período, o número de laboratórios integrando a RCV praticamente dobrou, aumentando de 30 para 65 laboratórios (Figura 2). A empresa Organon permaneceu como a única fornecedora de testes de CV durante todo o período, os quais eram comercializados a um valor unitário de 56 dólares 178 O primeiro teste, FacsCountTM, consiste de uma tecnologia manual, utilizada para uma quantidade menor de amostras (cerca de 30/dia), sendo, portanto, mais adaptada a laboratórios de menor porte. O teste FACSCaliburTM, por outro lado, refere-se à uma tecnologia automatizada, destinada a execução de um grande número de amostras (cerca de 150/dia) e é recomendada para os laboratórios de médio e grande porte. 179 Reação em cadeia da Polimerase-Transcriptase Reversa. 180 A empresa Chiron era a representante da multinacional Bayer no Brasil. 181 branched DNA. 182 Posteriormente adquirida pela empresa francesa BioMérieux, em junho de 2001 (Fonte: http:// www.biomerieux.com/servlet/srt/bio/portail/dynPage?open=PRT_NWS_REL&doc=PRT_NWS_REL_G_ PRS_RLS_13&crptprm=ZmlsdGVyPQ). 183 Amplificação do ácido nucléico baseada em sequências. 184 Apresentação interna do Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais (2009). Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 169 americanos. Importa também lembrar que neste período foi instaurada a modalidade de aquisição de equipamentos (tanto para testes imunológicos como para virológicos) através do comodato. Esta estratégia foi adotada com vistas a reduzir os custos fixos relativos à depreciação do equipamento (cerca de 5 anos) e à sua manutenção técnica, ao mesmo tempo em que permitia a introdução de equipamentos mais modernos, caso necessário. Figura 2 – Evolução das Redes Nacionais de Laboratórios (RNL) 100 90 CD4/CD8 80 Carga Viral 78 Número de labs 70 73 65 50 52 40 20 82 70 60 30 91 88 82 41 32 30 10 0 1997 1998 2001-2002 2004 2005/2006 2007 Ano Fonte: Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais (2008). No intuito de romper o monopólio das empresas fornecedoras e promover uma significativa redução do preço dos testes de monitoramento, o governo brasileiro decidiu proceder à descentralização dos processos de aquisição, em meados de 2001. 2001-2004 – o período de descentralização Este período estabeleceu o marco histórico mais relevante no processo de desenvolvimento tecnológico e fortalecimento institucional das Redes Nacionais de Laboratórios. Nesta ocasião, foi desenvolvido um novo instrumento institucional, a Ata Nacional de Preços, o qual visava promover homogeneidade nos processos de aquisição realizados entre os laboratórios de referência de todo o país. Além disso, a Ata destinava assegurar a definição de um preço mais acessível, a partir da negociação centralizada em nível federal, a qual permitia melhor margem de negociação, graças às economias obtidas nas aquisições realizadas em grande volume. Uma das características mais relevantes do período de descentralização refere-se à tentativa de uma estratégia nacional que visasse o estabelecimento do equilíbrio entre as atividades realizadas de forma centralizada, realizadas no âmbito do Departamento de DST/Aids – tais como o planejamento da demanda, a definição de padrões de qualidade e boas práticas e a definição dos orçamentos de esta- 170 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas dos e municípios – e as atividades de implantação e gestão realizadas de maneira descentralizada, realizadas no âmbito dos estados e municípios [27]. O fortalecimento institucional das Redes contou também com o suporte financeiro provido pelo Banco Mundial, através do Acordo de Empréstimo Aids II185, 186. Ainda, é importante mencionar a criação do SISCEL,187 um sistema nacional de informação para o gerenciamento dos testes de T- CD4+/CD8+ e de CV em nível nacional, o qual contribui significativamente para o desenvolvimento das estratégias de coordenação das Redes. Da mesma forma, este Sistema consiste em um forte indicador da eficiência do Sistema Único de Saúde (SUS) 188 [28]. A RCD observou uma fraca expansão no número de laboratórios (apenas quatro novos laboratórios integraram-se à Rede) neste período e o aumento no número de testes adquiridos foi de 18% (cerca de 623.000 testes, no total). No entanto, a Rede submeteu-se a um considerável desenvolvimento no uso de tecnologias mais sofisticadas. A partir de 2004, todos os laboratórios nacionais foram capacitados pelo Departamento de DST/Aids no uso do sistema FacsCaliburTM,189 fornecido pela Becton Dickinson. No que tange à expansão da RCV, este foi um período de grandes desafios tecnológicos, uma vez que os laboratórios viram-se impelidos a se adaptarem às novas tecnologias de quantificação, através da introdução de novas empresas concorrentes (Bayer e Roche) no mercado nacional. De fato, com o intuito de estimular a competição de mercado e confrontar o monopólio estabelecido pela empresa BioMérieux (antiga Organon),190 o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais estabeleceu uma divisão “virtual” do território nacional, a qual consistiu de três regiões, com vistas a promover uma efetiva redução de preço para esta tecnologia. Esta divisão foi estabelecida tomando como principal critério que todas as regiões 185 O Banco Mundial, em parceria com o BIRD, investiu 300 milhões de dólares americanos no Programa de Aids no Brasil, no período entre 1998-2003, através do Acordo de Empréstimo AIDS II. O Acordo consistia de três eixos principais: (i) Prevenção da Aids e de DST (128 milhões de dólares americanos); (ii) Diagnóstico, tratamento e aconselhamento de pessoas vivendo com HIV, Aids e DST (102 milhões de dólares americanos) e (iii) Fortalecimento Institucional (70 milhões de dólares americanos). 186 O eixo do Acordo Aids II intitulado “Fortalecimento Institucional” incluía, entre outras atividades, o suporte financeiro referente à implementação das Redes Nacionais de Laboratórios para o monitoramento do HIV/AIDS [28]. 187 Sistema de Controle de Exames Laboratoriais da Rede Nacional de Contagem de Linfócitos Cd4+/ Cd8+ e Carga Viral (SISCEL). 188 Por exemplo, no ano de 2006, de acordo com os dados do SISCEL, o uso de testes de CD4+/CD8+ e de CV corresponderam, respectivamente, a 82.9% e 71.6% da demanda nacional estimada. 189 Decorridos 12 anos após a sua comercialização no Mercado internacional, o sistema FACSCountTM foi atualizado com vistas a atender às novas demandas solicitadas pela epidemia de DST/AIDS, tais como o monitoramento pediátrico. A empresa foi solicitada a modificar os parâmetros desta tecnologia, a fim de preencher esta lacuna. O novo sistema, baseado na citometria de fluxo realizada a partir de três cores, permite o cálculo simultâneo do valor absoluto e percentual para as células CD4+, sendo o primeiro parâmetro um indicador essencial para o monitoramento de recém-nascidos e crianças [29]; [30]. Ainda, o sistema permite a realização da quantificação dos valores absolutos para as células CD3+ e CD8+. 190 A empresa BioMérieux adquiriu a empresa Organon Teknika em junho de 2001. Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 171 apresentassem aproximadamente a mesma demanda por testes de CV. Inicialmente, esta estratégia alcançou resultados exitosos para a redução do preço unitário dos testes de CV, uma vez que o Departamento de DST/Aids reduziu o preço do teste de CV para 29 dólares americanos.191 No entanto, apesar das economias obtidas nos primeiros anos deste período, o número limitado de fornecedores e as especificidades de cada tecnologia favoreceram o estabelecimento de práticas de cartel entre as empresas. A este respeito, o processo de licitação realizado no ano de 2004 foi bastante representativo desta situação uma vez que, nesta ocasião, as três empresas fornecedoras (Roche, BioMérieux e Bayer), apesar de terem participado do processo, não atingiram o preço de referência estabelecido. Ainda, o processo de descentralização não obteve êxito no âmbito dos laboratórios estaduais de menor porte, os quais careciam de visão política local e de capacidade técnica e gerencial.192 De fato, a experiência de descentralização trouxe sérias consequências para a continuidade do monitoramento dos pacientes de HIV/Aids e, consequentemente, em custos adicionais para o Departamento de DST/Aids e Hepatites Virais. As dificuldades no gerenciamento pelos governos estaduais quanto aos seus respectivos orçamentos incorreram em significativos atrasos no pagamento às empresas fornecedoras de testes e no desabastecimento de determinadas regiões. Em determinados estados, os pacientes limitaram-se à execução de apenas um teste por ano. Deste modo, a fim de sanar as precariedades destes laboratórios, assim como de assegurar a redução de preços para os testes de monitoramento, o governo brasileiro decidiu reinstaurar o processo de centralização, em 2004.193 De meados de 2004 até hoje – a retomada do processo de centralização O início da retomada do processo de centralização pelo Departamento de DST/ Aids caracterizou-se não somente como uma iniciativa visando sanar as dificuldades acima mencionadas, como também pela necessidade de introdução de novos regimes terapêuticos de segunda e terceira geração, assim como dos testes de contagem dos linfócitos T-CD45+ empregados no monitoramento de crianças HIV+. Este período alavancou consideravelmente a expansão da RCD, através da incorporação de 10 novos laboratórios de referência, assim como no aumento de 95% do número de testes imunológicos a serem distribuídos, entre 2004 e 2006. Neste mesmo período, 1.214.190 testes FacsCountTM foram distribuídos para estados e municípios, assegurando, desta forma, a cobertura nacional. Ainda, o De- 191 Outro fator relevante refere-se ao aumento da demanda pour ARV (vide Referência 9). 192 Comunicação pessoal com Paulo Teixeira e Alexandre Grangeiro (2008). 193 Através da Portaria n. 1015/2004. 172 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas partamento de DST/Aids alcançou uma redução de preço considerável no preço unitário deste teste, reduzindo-o para 7,20 dólares americanos. A introdução da contagem dos linfócitos T-CD45+ para o monitoramento pediátrico nas diretrizes nacionais de 2007, não somente criou uma nova demanda nacional – e, portanto, um novo mercado – como também apresentou um impacto considerável na organização da demanda por testes imunológicos a partir de 2008.194 Isto decorreu do fato de que a quantificação deste tipo de linfócitos passou a exigir a utilização de uma tecnologia mais sensível, também comercializada pela Becton Dickinson, denominada pela marca MultiTEST TM. No início do ano, apenas 20 dos 92 laboratórios que constituem a Rede eram capazes de realizar esta tecnologia. Decorridos 18 meses, todos os laboratórios integrantes da Rede encontravam-se aptos para a realização destes testes. [24] A necessidade da retomada do processo de centralização pelo Departamento de DST/Aids fez-se sentir de maneira mais evidente pelos laboratórios integrantes da RCV, devido às dificuldades dos laboratórios de pequeno e médio porte de confrontarem-se às barreiras específicas impostas pelo mercado de testes de quantificação da carga viral. Estas barreiras tornaram-se ainda mais evidentes no decorrer do período de descentralização, devido ao período de forte turbulência política estabelecido pelas negociações com duas das empresas fornecedoras (particularmente, Roche e Abbott) quanto ao estabelecimento de iniciativas visando a redução de preços de determinados antirretrovirais estratégicos. Desde o início do período de centralização, o Departamento de DST/Aids tem ampliado consideravelmente a aquisição de testes de quantificação da carga viral e investido na expansão da Rede. O número de testes distribuídos passou de 604.181 para 981.091, no período entre 2004-2006 e 13 novos laboratórios de referência passaram a integrar a RCV (ver Figura 2). Da mesma forma, os laboratórios passaram a receber cursos de treinamento anuais com vista à promoção da capacidade nacional na incorporação da nova tecnologia de quantificação da CV em tempo real, a qual deverá ser qualificada mediante avaliação da eficácia em relação ao painel sorológico nacional e incorporada em toda a Rede, até meados de 2010. [31 – 32] III.3. Discussão Contrariamente às experiências observadas na expansão da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral, não foram observadas iniciativas por parte do governo federal visando à oposição do monopólio estabelecido pela empresa Becton Dickinson no mercado de testes de contagem dos linfócitos T- CD4+/ 194 Em 2008, o Departamento de DST/AIDS e Hepatites Virais procedeu à aquisição de 30.000 testes de CD45+, a um preço unitário de 16 dólares americanos por teste. Se comparado à demanda nacional por testes de CD4+/CD8+ destinados ao monitoramento de adultos, os testes de CD45+ são comercializados a um preço 2,2 vezes mais elevado e representa 8% da demanda nacional por testes imunológicos destinados ao monitoramento do HIV/AIDS (vide Tabela 2). Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 173 CD8+. Embora o governo federal fizesse várias investidas em potenciais empresas entrantes no mercado mundial, as mesmas não demonstraram interesse em abastecer o mercado nacional devido ao elevado número de laboratórios constituindo as Redes e pela intensa divisão do mercado global entre as três empresas líderes anteriormente citadas.195 Não obstante as garantias quanto à utilização de equipamentos e técnicas atualizadas para a execução destes testes imunológicos (contagem dos linfócitos T-CD4+/CD8+) estabelecida pelos processos de licitação, os laboratórios nacionais permanecem à margem de uma efetiva capacitação nacional quanto ao desenvolvimento tecnológico dos mesmos, visto que, desde a implantação da Rede, não se observou qualquer iniciativa referente à transferência das tecnologias empregadas para a sua produção. A mesma situação é observada para o novo mercado dos testes de contagem dos linfócitos T-CD45+, destinados à crianças HIV+. Esta situação estabelece, portanto, uma condição de elevada dependência tecnológica dos laboratórios, os quais são constantemente compelidos à adaptarem-se – técnica e fisicamente – às novas exigências estabelecidas pelo fornecedor. Ainda, importa lembrar que, à medida que a tecnologia para a quantificação dos linfócitos T evolui, o preço final destes testes de monitoramento aumenta proporcionalmente, sobretudo, no que se refere aos novos equipamentos utilizados.196 Ainda que este custo seja introduzido no valor final do teste, através da modalidade de comodato, este representa uma questão importante para a sustentabilidade da expansão da Rede Nacional de Laboratórios para contagem dos Linfócitos CD4+/CD8+, em particular, em situações de transição tecnológica (a exemplo da migração da tecnologia FACSCount para a tecnologia FACSCalibur). Tais situações requerem o uso de tecnologia e equipamentos mais sofisticados, os quais representam um custo adicional considerável para a Rede, tendo em vista que o equipamento anterior (FACSCount) custa aproximadamente 25.000 dólares americanos, enquanto que o atual (FACSCalibur) é comercializado no valor médio de 85.000 dólares americanos.197 A transição de um monopólio para um oligopólio ocorrida no período de descentralização permitiu não somente a capacitação da Rede Nacional de Laboratórios para quantificação da Carga Viral nas diversas tecnologias disponíveis, como também uma melhor compreensão da organização deste mercado. Não obstante, a elevada especialização das tecnologias, a dependência tecnológica dos laboratórios nacionais em relação aos fornecedores e as dificuldades técnicas e logísticas quanto à negociação, aquisição e execução dos testes estabeleceram uma situação de vulnerabilidade dos pequenos e médios estados, os quais ainda carecem 195 A empresa beneficia-se da vantagem competitiva vis-à-vis seus competidores, de ter sido a primeira a se estabelecer no mercado nacional. 196 O tempo estimado para a depreciação do equipamento é de 4 anos. 197 Preço FOB. 174 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas de apoio técnico e financeiro para atingir sua autonomia na gestão dos testes de monitoramento. Esta situação poderá tornar-se ainda mais evidente a partir da introdução das técnicas de quantificação da CV em tempo real, a qual demandará ainda maiores investimentos no treinamento e na infraestrutura destes laboratórios e contará com a participação de um número ainda maior de empresas concorrentes.198 Uma potencial solução para esta situação consiste no estabelecimento de uma política nacional visando o fortalecimento das capacidades de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico dos laboratórios universitários, os quais correspondem a 20% do número total de laboratórios integrantes [31-32]. IV. Conclusões O mercado de testes de monitoramento apresenta características distintas no que se refere aos mercados de testes imunológicos e virológicos. A necessidade de fortalecimento institucional, não somente em nível político como também no que se refere à organização das Redes Nacionais de Laboratórios, tenderá a ser ainda mais clara, à medida que a demanda por tratamentos mais robustos de segunda e terceira linha, assim como o monitoramento da resistência viral, evolua com o perfil da epidemia. A experiência brasileira quanto à construção das Redes Nacionais representa, desta forma, uma importante fonte de aprendizado quanto ao entendimento da organização e do comportamento do mercado de testes de monitoramento do HIV/Aids, assim como os diversos desafios que o mesmo impõe à sustentabilidade das Respostas Nacionais ao HIV/Aids em países em desenvolvimento e países de menor desenvolvimento relativo. A situação de elevada dependência tecnológica dos laboratórios nacionais quanto ao conhecimento das tecnologias de monitoramento do HIV/Aids poderá ser redimida através da implantação de políticas de incentivo à pesquisa e desenvolvimento em tecnologias de laboratório visando a produção nacional das mesmas, a exemplo da experiência nacional na produção de medicamentos antirretrovirais. Para tanto, as Redes Nacionais de Laboratórios contam com um número considerável de laboratórios universitários (cerca de 20%), os quais poderão absorver esta capacidade tecnológica e, potencialmente, reduzir os preços destes testes. As fragilidades físicas, técnicas e a evasão de competências dos laboratórios localizados nos pequenos e médios estados, apresentadas nos diversos períodos de centralização e de descentralização, representam desafios importantes para a 198 Atualmente, cinco empresas líderes detêm as tecnologias de quantificação da CV em tempo real: Siemens, Roche, Abbot, BioMérieux, e Quiagen, Atualmente, o Departamento de DST/AIDS e HV têm envidado esforços para a avaliação das cinco metodologias de mercado, baseada nos custos, infraestrutura necessária e avaliação do desempenho destas quanto à detecção de todos os subtipos circulantes no Brasil. Capítulo 9. A arquitetura do mercado de teste de monitoramento do HIV/Aids 175 sustentabilidade do monitoramento terapêutico de indivíduos vivendo com o HIV/ Aids, o qual constitui-se em um componente essencial da Resposta Nacional à epidemia. Estas fragilidades poderão acentuar-se ainda mais com a introdução das novas tecnologias de monitoramento em tempo real, a ser utilizada na quantificação da CV. Neste contexto, importa que as iniciativas de capacitação e treinamento das equipes de laboratório sejam ainda mais reforçadas, mediante o estabelecimento de uma parceria público-privada entre o Departamento de DST/Aids e o setor privado, representado pelos fornecedores dos testes de monitoramento. A experiência brasileira referente à implantação das Redes Nacionais de Laboratórios, poderá servir como importante fonte de aprendizado para os países de baixa renda engajados na luta contra o HIV/AIDS. Diversos são os conhecimentos adquiridos a partir do caso brasileiro, dentre os quais: (i) o entendimento da dinâmica do mercado dos testes de monitoramento; (ii) o uso de estratégias visando a quebra da estrutura de monopólio/oligopólio; (iii) a avaliação dos custos de aprendizado e de coordenação ao se estabelecer as Redes Nacionais de Laboratórios; e finalmente, (iv) a percepção da premente necessidade de promoção de uma constante qualificação dos laboratórios e dos recursos humanos envolvidos. Muitas dificuldades restam ainda a ser enfrentadas por estes países, sobretudo no que diz respeito à normalização das técnicas laboratoriais e da informatização dos resultados dos testes. Não obstante, o monitoramento terapêutico do HIV/Aids é uma premissa essencial para o bom funcionamento das políticas nacionais de HIV/Aids e é necessário que os governos destes países sejam sensibilizados a este respeito. Referências bibliográficas: 1. WHO. Towards universal access. 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Para isso, utiliza-se a metodologia de prospecção mercadológica para análise dos fármacos e medicamentos utilizados no tratamento da Aids no Brasil, a produção e o potencial nacional, os produtores internacionais de princípios ativos e explicita-se a capacidade técnico-científica do país em síntese química, formulação, ensaios clínicos, estabilidade de medicamentos, controle de qualidade, biodisponibilidade e bioequivalência. Palavras-chaves: Medicamento antirretroviral, Competências, Produtores, Prospecção mercadológica, Patentes. I. Introdução No Brasil, aproximadamente 187 mil pacientes faziam tratamento, em 2009, com os medicamentos antirretrovirais (ARVs), que são distribuídos gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) [1]. Em 2008, o SUS utilizava 18 princípios ativos para o tratamento da Aids, divididos em cinco classes terapêuticas: a classe dos Inibidores Nucleosídeos de Transcriptase Reversa (ITRN), que envolve a Zidovudina, o Abacavir, a Didanosina, a Estavudina, a Lamivudina e o Tenofovir; a classe dos Inibidores Não Nucleosídeos de Transcriptase Reversa (ITRNN), que compreende o Efavirenz e a Nevirapina; os Inibidores de Protease (IP), onde se enquadram o Amprenavir, o Atazanavir, o Darunavir, o Fosamprenavir, o Indinavir, o Lopinavir, o Ritonavir e o Saquinavir; os Inibidores de Fusão (IF), com a Enfuvirtida; e os Inibidores de Integrase (II), representados pelo Raltegravir [2]. Até o ano de 2007, 16 medicamentos eram utilizados para o tratamento da Aids no Brasil. O medicamento contendo o princípio ativo Nelfinavir fazia parte da lista do SUS, mas foi retirado de circulação após problemas de contaminação no processo de produção de alguns lotes da empresa produtora Roche, quando houve o cancelamento do contrato entre o Ministério da Saúde (MS) e o laboratório responsável. Em 2008, com a divulgação da 7ª edição das Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos Infectados pelo HIV, do Ministério da Saúde, foram incluídos o Darunavir, o Fosamprenavir e o Raltegravir na lista dos medicamentos fornecidos gratuitamente pelo governo brasileiro, como uma alternativa aos pacientes que desenvolveram resistência a outros ARVs. O Brasil conta com produção de alguns princípios ativos e medicamentos ARVs, entretanto, a produção não é suficiente para atender totalmente a demanda do país, havendo necessidade de importação complementar, além da aquisição de fármacos e medicamentos que não possuem produção nacional. Tendo em vista a referida dependência de importações, seria muito desejável o aumento de investimentos na integração universidade-empresa para a produção interna de princípios ativos e medicamentos, no país. O primeiro caso sucesso de produção de antirretroviral (ARV) foi com a empresa brasileira Microbiológica Química e Farmacêutica Ltda., formada por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que deu início em 1990 a um projeto que permitiu que se chegasse, em pouco tempo, ao princípio ativo da Zidovudina (AZT). A grande contribuição da empresa foi produzir, de forma totalmente verticalizada, o princípio ativo e o medicamento em cinco etapas de síntese, a partir da matéria-prima básica Timidina. O Brasil tornou-se, então, o único país da América Latina a produzir o AZT [3]. A Zidovudina brasileira foi aprovada em 1992 pela então Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária (atual Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA199) e lançada oficialmente no ano seguinte, durante a conferência internacional de Aids, realizada no Rio de Janeiro. A Microbiológica passou a produzir a matéria-prima e a formular este medicamento utilizando técnicas inovadoras. Ainda em 1992, a empresa venceu uma concorrência aberta pelo Ministério da Saúde, para fornecer 16.600 frascos de AZT, fazendo com que, inicialmente, o custo médio do frasco caísse 50% em relação ao produto importado. Este exemplo do AZT mostra que, com o incentivo de garantia de compra feito pelo Estado, é possível a produção de ARVs no país com competências nacionais. Este capítulo tem como objetivo apresentar as competências brasileiras em oferta de ARVs, bem como os desafios a serem enfrentados para alcançar uma 199 A criação da ANVISA se deu apenas em 1999. 180 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas maior oferta no país. O capítulo está dividido em quatro seções, onde na primeira são analisadas as importações dos fármacos e medicamentos ARVs, apresentando o déficit na balança comercial brasileira. A segunda seção diz respeito às competências na produção de intermediários de síntese, princípios ativos e medicamentos ARVs no Brasil, apresentando a capacidade produtiva e os gargalos enfrentados para cada uma das etapas de produção nas empresas e laboratórios. Nesta mesma seção são abordadas as competências nacionais existentes nas universidades, como forma de aumentar a pesquisa e desenvolvimento do País. A terceira seção foca o potencial de inovação brasileiro e sua comparação com o mundo, através da análise de depósitos de patentes dos ARVs distribuídos pelo Ministério da Saúde. A quarta seção apresenta algumas propostas para superar os desafios do setor e aumentar a produção de fármacos e medicamentos ARVs, seguida pela última seção, onde são feitas as considerações finais. II. A dependência nas importações de ARVs A dependência externa de intermediários farmacêuticos, princípios ativos e medicamentos está refletida no déficit da balança comercial de produtos químicos brasileira. Segundo a Associação Brasileira de Produtos Químicos, apesar do aumento das exportações nos últimos anos, a importação também vem crescendo de forma significativa [7]. Com relação aos ARVs, existe uma grande dependência nas importações do Abacavir, Amprenavir, Atazanavir, Darunavir, Enfuvirtida, Fosamprenavir, Lopinavir, Raltegravir e Tenofovir. Esses nove princípios ativos não são produzidos nacionalmente e são importados diretamente como medicamento. Observa-se também, que os outros nove princípios ativos restantes dos 18 distribuídos pelo SUS: Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Saquinavir e Zidovudina, possuem parte da demanda interna suprida pela oferta nacional, mas ainda assim existe grande dispêndio em importação desses princípios ativos e seus medicamentos. Essa grande dependência externa para aquisição de produtos farmacêuticos destinados ao tratamento da Aids, pode ser observada na Tabela 1 onde constam, para cada ARV, os valores de importação em 2008 dos princípios ativos, Capítulo 29 da Nomenclatura Comum Mercosul (NCM),200 e dos medicamentos, Capítulo 30 da NCM. 200 NCM é o código para a classificação de mercadorias importadas e/ou exportadas utilizado pelos países do Mercosul. Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 181 Tabela 1 – Relação dos medicamentos para tratamento da Aids no Brasil e valores de importação, 2008 Medicamentos distribuídos no Brasil Sigla Valor de Importação em 2008 do PRINCÍPIO ATIVO Valor de Importação em 2008 do MEDICAMENTO US$ FOB US$ FOB Abacavir ABC 0 4.960 Atazanavir ATV 0 57.589.482 Amprenavir APV 0 2.036.764 Darunavir DRV 30 3.400.878 Didanosina ddI 1.627 4.581.200 Efavirenz EFV 418.276 14.184.764 Enfuvirtida ENF 0 21.203.112 Estavudina d4T 0 72.704 Fosamprenavir FPV 0 6.113.400 Indinavir IDV 940.000 0 Lamivudina 3TC 2.730.637 1.055.114 Lopinavir LPV 0 46.431.769 Nevirapina NVP 497.050 440.846 Raltegravir - 0 3.672.365 Ritonavir r 284.508 5.055.987 Saquinavir SQV 362.859 14.534 Tenofovir TDF 0 52.116.625 Zidovudina AZT 3.423.079 51.100 8.658.066 220.554.778 TOTAL DE IMPORTAÇÃO Fonte: elaboração do SIQUIM/EQ/UFRJ com fonte da ALICEWEB e do Ministério da Saúde, ambos com acesso em março/2010. Os gastos totais em 2008 com a importação de princípios ativos ARVs foram de aproximadamente US$ 8,7 milhões. Já a importação de medicamentos ARVs, no mesmo ano considerado, foi superior a US$ 200,5 milhões, sendo o Atazanavir e o Tenofovir responsáveis por mais de 50% deste valor. Dessa forma, o desafio está em reverter a alta dependência externa. A seguir, serão avaliadas as competências produtivas de empresas e laboratórios, apontando os principais gargalos quando analisadas a produção de intermediários, princípios ativos e medicamentos ARVs, bem como a competência nacional em P&D presente nas universidades. 182 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas III. Competências nacionais III.1. Competências produtivas: empresas e laboratórios A produção de ARVs, assim como a de medicamentos em geral, é feita por um conjunto de processos químicos/físicos complexos, que estão sujeitos a rígidos regulamentos para garantia da qualidade dos mesmos. A cadeia produtiva pode ser dividida em três grandes elos, que compreendem: a fabricação dos intermediários de síntese (matéria-prima para a produção dos princípios ativos); a produção do princípio ativo (fármacos); e a formulação do medicamento. Considerando esses elos, a produção de “intermediários de síntese” se caracteriza como a mais frágil no Brasil, não só para os intermediários utilizados na produção de medicamentos para o tratamento da Aids, mas em medicamentos de uma maneira geral, sendo raros os casos de produção de matérias-primas para o setor farmacêutico no país. Isso se deve ao fato do complexo farmacêutico brasileiro estar apoiado principalmente na formulação de medicamentos e em sua comercialização e marketing. Além disso, os países asiáticos, com destaque para China e Índia, possuem inúmeros fornecedores com baixos preços, o que, associado à política cambial brasileira desfavorável e falta de isonomia sanitária e tributária com os produtos importados, inviabiliza a competição e a produção nacional [4]. Assim, a importação de intermediários acaba sendo mais vantajosa economicamente para as empresas nacionais produtoras de princípios ativos, representando um entrave para o desenvolvimento deste elo no país. No caso dos ARVs, segundo especialistas, o país produz apenas três intermediários destinados à fabricação de princípios ativos: a Betatimidina, para a produção da Zidovudina e Estavudina; e a Citosina e o Glioxilato de L-mentila, para Lamivudina. Em parte, o fato está relacionado à modalidade de compra governamental que é feita através de leilões eletrônicos sem anúncio prévio, onde se avalia o menor preço ofertado. Se o planejamento de compra dos medicamentos for estabelecido e divulgado para os próximos três a cinco anos, a produção de princípios ativos assim como de intermediários no país poderia ser mais diversificada. Da mesma maneira que os intermediários de síntese, a produção de princípios ativos também é dificultada pelo sistema de compras praticado pelo governo através dos laboratórios oficiais, onde há a necessidade de produção em um curto espaço de tempo. As empresas nacionais, para se tornarem competitivas nos pregões, sintetizam o fármaco a partir da importação de um intermediário químico mais avançado, realizando um número menor de etapas de síntese. Dessa forma, conseguem reduzir o tempo de produção e atender parte da demanda interna. A compra de intermediários mais avançados reflete em um aumento no valor das importações de produtos químicos. Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 183 Em consulta às empresas de síntese no Brasil, existem apenas seis delas dedicadas à produção de princípios ativos farmacêuticos para fabricação de medicamentos ARVs: a Cristália, a Ecadil Indústria Química,201 a Globe Química, a Medapi, a Microbiológica e a Nortec Química. Todas são de capital privado e juntas possuem capacidade produtiva de 10 fármacos: Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Saquinavir, Tenofovir202 e Zidovudina. Outro fator apontado pelo empresariado nacional, como barreira para produção de princípios ativos no país, está relacionado à absorção de tecnologia das universidades para o setor produtivo. Existem diversos entraves na transposição da escala laboratorial para a escala-piloto ou industrial, relacionados com parâmetros de produção como temperatura e pressão. Considerando a formulação de medicamentos, o Brasil possui laboratórios oficiais financiados pelo governo que formulam medicamentos para atender às necessidades dos programas do SUS, além de empresas privadas. Segundo o Ministério da Saúde, existem atualmente 20 laboratórios oficiais no país. A partir da década de 1990, alguns começaram a disponibilizar ARVs, sendo que em 2010, foram identificados sete laboratórios produtores de medicamentos ARVs: Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fundação Oswaldo Cruz (Farmanguinhos/Fiocruz), Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (LAFEPE), Fundação para o Remédio Popular (FURP), Laboratório Industrial Farmacêutico de Alagoas (LIFAL), Fundação Ezequiel Dias (FUNED), Indústria Química do Estado de Goiás (IQUEGO) e Laboratório Químico-Farmacêutico da Aeronáutica (LAQFA). Esses laboratórios são responsáveis pela formulação da Didanosina, Efavirenz, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina e Zidovudina. O país conta também com três laboratórios farmacêuticos nacionais de capital privado: Cristália, Blausiegel e Laborvida, que produzem medicamentos ARVs e participam dos leilões do governo. Tais laboratórios produzem efavirenz, lamivudina, ritonavir, saquinavir e zidovudina. Deve ser observado que há leilões para a aquisição do produto acabado, quando não há ARVs, registrados pela rede de laboratórios públicos ou quando excepcionalmente há falta de estoque. Verificou-se a existência de laboratórios multinacionais que somente comercializam os ARVs no Brasil, mas não foram abordados neste estudo, pois sua produção é feita em outros países. A título de comparação foi montada a Tabela 2 com informações sobre o número de produtores nacionais e internacionais de princípios ativos ARVs. A Tabela também apresenta o levantamento dos laboratórios nacionais produtores dos fármacos e medicamentos ARVs. 201 Atualmente a empresa está com suas atividades para produção farmoquímica temporariamente paralisadas. 202 Ainda na fase de transposição de escala. 184 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Tabela 2 – Número de produtores nacionais e internacionais de princípios ativos e levantamento dos produtores nacionais de princípios ativos e medicamentos ARV Produtores de Princípios Ativos (PA) Mundo Brasil Produtores Nacionais de Medicamentos Abacavir 10 (7 China e 3 Índia) 0 0 Amprenavir 3 (2 China e 1 Grã-Bretanha) 0 0 Atazanavir 3 (1 China, 1 Índia e 1 Japão) 0 0 Darunavir 1 Estados Unidos 0 0 Didanosina 27 (14 China e 5 Índia) 2: Nortec Química, Globe Química* 4: Farmanguinhos/Fiocruz, FURP, LAFEPE, LIFAL Efavirenz 13 (7 Índia e 5 China) 3: Globe Química, Cristália, Nortec 2: Cristália, Farmanguinhos/ Fiocruz Enfurvirtida 3 (2 China e 1 Alemanha) 0 0 Estavudina 36 (14 China e 11 Índia) 3: Ecadil Indústria Química**, Nortec Química, Microbiológica 3: Farmanguinhos/Fiocruz, FURP, LAFEPE Fosamprenavir 1 Estados Unidos 0 0 Indinavir 14 (6 Índia e 7 China) 2: Ecadil Indústria Química**, Nortec Química 2: LAFEPE, LIFAL Lamivudina 41 (17 China e 16 Índia) 4: Globe Química, Nortec Química, Medapi, Microbiológica 8: Blausiegel, Cristália, Farmanguinhos/Fiocruz, FUNED, FURP, IQUEGO, Laborvida, LAFEPE Lopinavir 8 (5 China e 3 Índia) 0 0 Nevirapina 22 (11 China e 7 Índia) 3: Ecadil Indústria Química**, Medapi, Nortec Química 3: Farmanguinhos/Fiocruz, FUNED, LIFAL Raltegravir 2 (1 EUA e 1 Canadá) 0 0 Ritonavir 13 (7 China e 4 índia) 1: Cristália 1: Cristália Saquinavir 15 (6 Índia e 5 China) 1: Cristália 1: Cristália Tenofovir 17 (11 China e 4 Índia) 1: Globe Química*** 0 Zidovudina 42 (15 China e 12 Índia) 4: Ecadil Indústria Química**, Microbiológica, Nortec Química, Globe Química*** 7: Blausiegel, Farmanguinhos/Fiocruz, FUNED, FURP, IQUEGO, Laborvida, LAFEPE Fonte: Elaboração própria com dados de [8], Directory of World Chemical Producers, 2010 e contato direto com empresas em novembro/2010. Notas: Não foram localizados produtores nacionais nos itens com 0. * Em fase de desenvolvimento. Segundo contato com a empresa, a comercialização está prevista para 2011-2012. ** A empresa Ecadil Indústria Química possui capacidade de produção dos fármacos, entretanto está com suas atividades temporariamente paralisadas para produção farmoquímica. *** Em fase de scale-up. Segundo contato com a empresa, a comercialização estava prevista para 2011. No Brasil, é possível observar que alguns medicamentos só são produzidos por laboratórios oficiais: Didanosina, Estavudina, Indinavir e Nevirapina; outros possuem produção em laboratórios do governo e de capital privado: Efavirenz, Lamivudina e Zidovudina; e dois deles possuem produção exclusivamente de empresa privada: Ritonavir e Saquinavir, pela Cristália. Neste último caso, nota-se que a empresa em questão, Cristália, fabrica o princípio ativo apenas para uso cativo, sendo uma empresa integrada de princípio ativo/medicamento. Em relação à produção de princípios ativos no mundo, nota-se o domínio da China e da Índia. Comparando tais países com o Brasil, uma vez que juntos com Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 185 a Rússia fazem parte do BRIC,203 nota-se uma grande discrepância no número de produtores. Tal fato pode ser explicado pela política industrial adotada por estes países asiáticos. É oportuno lembrar que a estratégia da Índia em relação ao acordo TRIPs,204 adiando por 10 anos o reconhecimento de documento de patente, possibilitou a este país se estruturar na produção de intermediários. Assim, enquanto o Brasil aderiu ao TRIPs em 1995, abrindo mão do prazo disponível para os países em desenvolvimento, a Índia só reconheceu a proteção da patente no setor farmacêutico no prazo final, ou seja, em 2005. Os países menos desenvolvidos, como alguns países da África, terão até 2016 para implementar as disposições do acordo na área farmacêutica. III.2. Competências em P&D: universidades A avaliação das competências nacionais não pode ser restringida apenas às empresas e laboratórios oficiais, é necessário abordar a existência de um complexo tecnológico envolvendo, além desses atores, as universidades. No Brasil, as pesquisas no setor farmacêutico são feitas principalmente em universidades, dessa forma busca-se a capacitação de mão de obra qualificada no país a fim de estimular o crescimento do setor. A aproximação do setor produtivo com a academia tem como objetivo a complementaridade das competências, buscando uma relação direta para geração de inovações e conhecimento compartilhado. Dessa maneira, para estimular a P&D, as empresas do setor farmacêutico vêm buscando na academia certas competências nelas não existentes, já que a Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (P&D&I) são essenciais para se tornarem competitivas. Considerou-se fundamental para avaliação das competências nacionais a análise da existência de especialistas em síntese e formulação, uma vez que somos tradicionais importadores de tecnologias para produção da grande maioria de medicamentos. O mapeamento das competências do país em P&D de fármacos e medicamentos em geral identificou 561 líderes de pesquisa cadastrados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o apoio de 329 grupos de pesquisadores em áreas essenciais ao desenvolvimento de fármacos e medicamentos. Segundo o Portal de Inovação, do Ministério e Ciência e Tecnologia (MCT), foram identificadas as instituições dos especialistas de maior relevância205, levando 203 Brasil, Rússia, Índia e China – países emergentes que possuem características comuns. 204 O Acordo TRIPs (Agreement on Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) é um acordo internacional assinado no final de 1994 que foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro a partir de 1º de janeiro de 1995. O TRIPs estabelece padrões mínimos de proteção à propriedade intelectual a serem adotados por todos seus países signatários, diferenciando-se a data da obrigatoriedade para essa adoção em função do grau de desenvolvimento relativo do país. 205 A classificação representa o percentual da ocorrência de palavras-chaves no currículo Lattes do pesquisador, onde foram utilizados os nomes comuns dos ARVs juntamente com os termos síntese 186 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas em consideração a capacitação em síntese e formulação especificamente de ARVs, que estão descritos na Tabela 3. Os profissionais encontrados com capacitação em ensaios clínicos, estabilidade de medicamentos, controle de qualidade e biodisponibilidade e bioequivalência também foram levados em consideração. O resultado encontrado nas áreas analisadas mostra que a grande competência do país nas universidades está voltada para a síntese de princípios ativos, com 32 especialistas, em sua maior parte doutores em Química. As instituições com maior atuação nessa área são: Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Em relação à formulação especificamente de ARVs, foram encontrados somente três especialistas de diferentes universidades, levando a crer que estes profissionais estão mais presentes em empresas e laboratórios produtores de medicamentos do que em universidades e centros de pesquisa. Para a estabilidade de medicamentos, controle de qualidade e biodisponibilidade e bioequivalência, o país conta com 12 especialistas, sendo quatro deles pertencentes à Universidade de São Paulo (USP). No ramo de ensaios clínicos em ARVs, foram identificados oito doutores, com destaque para a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Ainda que estes profissionais, que formam uma massa crítica de alto nível para o desenvolvimento de ARVs, estejam empregados nas instituições respectivas indicadas na Tabela 3, a Lei de Inovação (Lei 10.973/04), permite a flexibilidade e a integração entre os pesquisadores presentes nas universidades e centros de pesquisas com o setor produtivo. Esta Lei, implantada em 2004, estabelece medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo, com vistas à capacitação e ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento industrial do país. A partir desta lei, pretende-se estimular a inovação tecnológica no Brasil, reduzindo assim a lacuna tecnológica existente, mas seu estabelecimento ainda é bastante incipiente, tanto nas instituições de ensino quanto nas empresas. e formulação. Após a leitura dos currículos encontrados, foram selecionados os doutores com maior relevância no assunto. Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 187 Tabela 3 – Especialistas com capacitação técnica em fármacos/medicamentos ARVs no Brasil localizados no portal de Inovação do MCT Capacitação Instituição Formação (Nível Doutorado) Síntese FIOCRUZ/RJ Química Orgânica e Biorgânica (1) Química Orgânica (1) Química (3) IME, SBQ Química (1) UERJ Química (1) UFF Química Orgânica (1) Química (1) UFMG Química Orgânica (1) Química de Carboidratos (1) UFPE Química (2) Farmácia (4) UFPEL Química (1) UFRJ Química Medicinal (1) Química (1) Química Orgânica (1) UFSC Química (1) UFSCAR Química (1) UNICAMP Química (4) Física (1) Formulação 188 UNISA, MACKENZIE Farmácia (1) URI Química (1) USP Química Orgânica (2) UFAL Farmácia (1) UFPE Farmácia (1) USP Fármacos e Medicamentos (1) Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Capacitação Instituição Formação (Nível Doutorado) Estabilidade de Medicamentos / Controle de Qualidade / Biodisponibilidade e Bioequivalência UFAL Farmácia (1) UFPB Química (1) UFPE Farmácia (2) UFRGS Fármacos e Medicamentos (1) Ciências Farmacêuticas (1) UFRJ Química (1) UFS Fármacos e Medicamentos (1) USP Química (Química Inorgânica) (1) Fármacos e Medicamentos (2) Química Analítica (1) Ensaios Clínicos FIOCRUZ Medicina (1) UFBA Medicina e Saúde (2) Doenças Infecciosas e Parasitárias (1) UFRJ Medicina Tropical (1) UNIFESP Ciências (Fisiopatologia Experimental) (1) Infectologia (1) USP Doenças Infecciosas e Parasitárias (1) Fonte: Portal de inovação do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), acesso on-line em outubro de 2010. Os números entre parênteses representam o número de pesquisadores por área de formação. Ainda assim, seus efeitos já podem ser observados, uma vez que nos últimos anos, houve uma aproximação maior com a universidade por parte da indústria, na busca por consultores acadêmicos, o que tem levado à formação de parcerias no desenvolvimento de princípios ativos e medicamentos, como é o caso da Cristália com o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-INOFAR206). A competição na indústria farmacêutica se baseia principalmente na diferenciação de produto, refletida nos elevados e contínuos investimentos em atividades de P&D. Assim, o aumento da capacitação nacional se refletirá na maior inovação para o país. 206 O INCT-INOFAR possui como metas principais articular, organizadamente, as competências nacionais existentes no país e situadas nos diferentes estágios da cadeia de fármacos e medicamentos, permitindo o avanço da inovação neste setor. Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 189 IV. Potencial de inovação no Brasil e no mundo A dinâmica das indústrias Farmoquímica e Farmacêutica é caracterizada pelo intensivo investimento em P&D. Esses setores necessitam do monitoramento da concorrência e das tendências de P&D para guiar estratégias de inovação, produção e mercado. Devido aos elevados riscos na produção de novas moléculas, tempo de desenvolvimento e altos investimentos em P&D, os laboratórios farmacêuticos alegam que os custos só são possíveis de serem compensados mediante a exploração comercial e o pagamento de royalties pelos licenciados. Isso torna o documento de patente um importante mecanismo de proteção no setor por assegurar retorno financeiro às empresas farmacêuticas, diferentemente de outros segmentos, mesmo aqueles de alta tecnologia, onde existem outras possibilidades de garantir esse retorno financeiro que envolve capacidade de produção, segredo industrial e know how. Por ser uma indústria que se baseia na diferenciação do produto, as empresas líderes do mercado mundial destinam cerca de 10 a 20% do faturamento em P&D [4]. No Brasil, o setor farmacêutico ainda investe muito pouco, menos de 1% do faturamento, tornando fundamental para o país transformar o conhecimento científico em inovação [5]. Considerando-se que o documento de patente possui vigência de 20 anos após o primeiro depósito, foi analisado o ano dos primeiros depósitos em ARVs para avaliar se a primeira patente ainda está em vigor ou se já expirou, e também se o mesmo depósito foi protegido no Brasil. Constata-se que o Abacavir, a Didanosina, a Estavudina, a Lamivudina, a Nevirapina, o Saquinavir e a Zidovudina já não estão sob proteção dessas patentes no mundo, possibilitando a produção de medicamentos genéricos. Desses princípios ativos com a primeira patente já expirada, o Brasil somente não produz o abacavir. As primeiras patentes do Darunavir, Didanosina, Enfuvirtida, Estavudina, Indinavir, Lamivudina, Nevirapina, Ritonavir, Tenofovir e Zidovudina não foram protegidas no Brasil, permitindo aqui a cópia dessas patentes para a produção do Darunavir e Enfuvirtida, que ainda não são fabricados no país. Para análise do potencial de inovação em ARVs no âmbito internacional, foi realizada a busca de patentes na base Derwent Innovation Index, uma base de dados de reconhecida confiança, disponível no Portal Capes. A estratégia de busca utilizada leva em consideração o nome comum do ARV junto com os termos Aids ou HIV presentes no título e/ou no resumo do documento. O período considerado foi de 1996 a 2010, pois somente em 1996 foi aprovada a Lei de Patentes no Brasil, Lei 9.279/96, que regula os direitos e obrigações relativos à concessão de patentes. O resultado do patenteamento no período mencionado pode ser observado no Gráfico 1. 190 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Gráfico 1 – Número de depósitos de patentes no mundo por Antirretroviral para o tratamento de HIV, no período de 1996 a 2010 Ritonavir Indinavir Saquinavir Zidovudina Lamivudina Nevirapina Efavirenz Amprenavir Abacavir Didanosina Estavudina Tenofovir Lopinavir Atazanavir Enfuvirtida Darunavir Raltegravir 527 461 441 434 383 362 329 320 304 297 293 216 216 172 107 63 36 Fonte: Elaboração SIQUIM com base nos dados de busca na Derwent Innovations Index, outubro/2010. Ao analisarmos todas as patentes depositadas dos ARVs no mundo, considerado o período mencionado, constatou-se a existência de 1.037 documentos distintos. Vale observar que uma mesma patente pode fazer referência a mais de um ARV, por exemplo, foram identificadas 15 patentes onde constavam os 18 ARVs estudados. Tais documentos são relacionados a novos compostos utilizados nos medicamentos ARVs, que buscam inibir o desenvolvimento de resistência ao medicamento, além de novos métodos para aumentar a farmacocinética dos medicamentos. Analisando a série histórica de depósito dos documentos nos últimos 15 anos, observa-se que em 1996 o número de patentes de ARVs no mundo era inexpressivo. O patenteamento ganhou força internacional apenas em 1998, com o depósito de 69 patentes. Os anos seguintes apresentaram crescimento oscilante, atingindo o pico em 2007, ano em que 118 patentes foram depositadas. Pode-se destacar que, utilizando a estratégia de busca descrita anteriormente, o antirretroviral Ritonavir, apresenta o maior número de patentes, possuindo 527 depósitos. Em seguida aparecem Indinavir, Saquinavir e Zidovudina, todos com mais do que 400 depósitos de patentes cada. Cabe ressaltar que 15 do total de 18 ARVs apresentaram mais do que 100 patentes nesse período, o que evidencia projetos de pesquisa nessa área. Com a análise das patentes encontradas, observa-se que a maior parte está relacionada a inovações incrementais de depósitos feitos anteriormente. Drogas que já tiveram suas patentes vencidas ainda estão sendo objetos de novos pedidos de patenteamento que poderão vir a se constituir em inovações. As inovações incrementais que constam nessas patentes são, em sua maioria, preparação de novos compostos e novas composições, assim como a preparação de derivados de compostos voltados para o tratamento do HIV. Em relação aos depositantes em âmbito internacional, as empresas que mais se destacam com patentes de ARVs são a SmithKline Beecham Corp. (41 patentes), Abbot (40 patentes), Bristol Myers Squibb (40 patentes), Hoffmann La Roche (25 patentes), Glaxo Group Ltd. (24 patentes) e Gilead SCI Inc. (23 patentes). Os demais depositantes possuem menos do que 20 patentes depositadas. Em se tratando do detentor da tecnologia (sendo em geral o país de primeiro depósito, ou seja, país de prioridade), os Estados Unidos é o principal líder em patenteamento com 721 patentes nos últimos 15 anos, o que representa 70% do total de documentos encontrados na estratégia de busca utilizada. Os Estados Unidos possuem 10 vezes mais patentes do que a Índia, que está em segundo lugar no número de depósitos, mostrando a potência e a hegemonia que os americanos têm com relação ao patenteamento em ARVs. Numa análise de em quais países os Estados Unidos estão protegendo essas patentes, verificou-se que existe uma preocupação em proteger tanto no próprio país como também na Europa (369 depósitos), Ásia (305 depósitos), Austrália (329 depósitos), Canadá (109 depósitos) e México (149 depósitos). Enquanto no Brasil, com um pouco menos destaque do que os outros países, foram depositadas 90 patentes pelos Estados Unidos. Entretanto, quando se fala em mercados mais protegidos, ou seja, os locais com maior depósito de patentes, os Estados Unidos já não se apresenta mais como o mercado de maior proteção, pois 82% dos depósitos alocados no país são de residentes, isto é, empresas americanas. Numa análise mais detalhada, constata-se que países como Austrália, Japão, China e Índia recebem mais depósitos de patentes realizados por outros países do que documentos originados internamente. Nesses quatro países, respectivamente, 98%, 94%, 84%, 77% das patentes foram depositadas por estrangeiros. Isso nos leva a concluir que o mercado asiático (Japão, China e Índia) e a Austrália são o foco de proteção através do patenteamento em antirretrovirais. Com referência ao Brasil, foram constatados sete depósitos de patentes, nos últimos 15 anos, sendo o Brasil o país de prioridade do pedido de depósito. O país de prioridade é o primeiro lugar do depósito da patente e indica, na grande maioria das vezes, o país de origem da empresa e/ou inventores, ou seja, o local onde a tecnologia/pesquisa que levou à patente foi desenvolvida. Após este primeiro pedido, o detentor da patente escolhe os outros países de interesse de proteção. Em relação aos documentos de patente com prioridade no país, quatro são da empresa 192 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas brasileira Cristália, duas da Instituição Fiocruz e uma da empresa SmithKline. A empresa brasileira Cristália possui como foco, em suas quatro patentes, a preparação de novas composições contendo Ritonavir ou Saquinavir, ou ainda o Ritonavir associado ao Lopinavir para o tratamento do vírus HIV. Já o foco das duas patentes da Fiocruz está na formulação do medicamento, no caso, tendo como componentes a Nevirapina, Zidovudina e Lamivudina. Enquanto a SmithKline, como a empresa Cristália, em sua única patente teve o foco para a preparação de nova composição para o tratamento do vírus HIV. Em relação ao mercado de proteção, 13% das patentes encontradas (133 patentes das 1.037) foram depositadas no Brasil. Dentre os depositantes, somente aparecem como residentes a empresa Cristália e a Instituição Fiocruz, conforme citado anteriormente; e como não residentes, empresas multinacionais e universidades e institutos de outros países. Pode-se mencionar como exemplo de multinacionais não residentes, com depósitos no Brasil, as empresas Bristol Myers Squibb, Glaxo Group Ltd., Abbott e Pfizer. Já as universidades e instituições internacionais com proteção no Brasil são, em sua maioria, universidades americanas, tais como a Universidade da Geórgia, Universidade de Pittsburgh, Universidade do Texas, Universidade da Carolina do Sul, Universidade da Califórnia e Instituto de Biotecnologia da Universidade de Maryland. Porém, o Brasil não foi o único país de depósito dessas instituições, que buscaram proteger também em outros países. As patentes depositadas no Brasil pelas empresas e instituições não residentes tratam de formulação de medicamentos, preparação de novos derivados de alguns compostos, preparação de composição farmacêutica, preparação de combinações anti-HIV, método para melhorar a farmacocinética de determinado composto no tratamento, nova célula recombinante para detectar o vírus do HIV, preparação de novo nucleosídeo como agente antiviral, entre outras novidades e aplicações. Em resumo, pode-se dizer que as patentes depositadas no Brasil, tanto das empresas multinacionais quanto das instituições estrangeiras, abrangem vários tipos de vantagens e melhoramento das tecnologias já depositadas, assim como novas aplicações e usos, demonstrando a tendência dessas empresas em proteger no Brasil tecnologias que envolvem inovações incrementais. V. Como superar desafios Existem diversos desafios que precisam ser enfrentados para alavancar a produção integrada de ARVs no Brasil, que envolve a produção de intermediários de síntese, princípios ativos e medicamentos. A produção nacional de fármacos e medicamentos ARVs não possui infraestrutura suficiente, em relação à capacidade tecnológica e incentivos legais, para competir internacionalmente. A produção em países asiáticos Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 193 está muito mais avançada em termos tecnológicos, além do valor de produção ser extremamente baixo, não sendo viável a competição. Entretanto, se houver investimento e apoio governamental, os laboratórios e empresas brasileiras terão condições de aumentar sua capacidade de produção para suprir a demanda interna. Outro problema que o Brasil enfrenta é em relação à qualidade dos importados. De acordo com especialistas da Fiocruz e da FURP, muitas vezes o princípio ativo importado não está com qualidade compatível para o processamento, sendo necessário, em alguns casos, descartar até 50% do fármaco. Somente cerca de 30% chegam com qualidade e os 20% restantes ainda precisam ser refinados para o seu aproveitamento. Esta é uma questão que pode ser superada com o aumento da produção nacional. De maneira geral, as parcerias estão presentes como um fator positivo para o aumento da competência nacional, estimulando a pesquisa e desenvolvimento no país, além da produção de fármacos e medicamentos. Geralmente as parcerias envolvem: empresas com universidades, para desenvolvimento de pesquisas, tecnologias próprias e prestação de serviços analíticos especiais; empresas com centro de pesquisa, para cooperação tecnológica; e empresas com outras empresas, visando o fornecimento de insumos e representação comercial no Brasil/América do Sul, ou para verticalização da produção. A parceria universidade-empresa é uma alternativa. No entanto, há que superar o desafio do scale-up na produção de fármacos. Em termos de escala, é essencial para as indústrias trabalhar no desenvolvimento de produtos com gramas/quilogramas, e por outro lado, nas universidades trabalha-se com miligramas. Analisando a indústria, os princípios ativos se enquadram na chamada química fina que possui como característica a flexibilidade e planejamento da diversificação da produção, otimização do maior uso da capacidade produtiva vis a vis competitividade. O Brasil conta com plantas multipropósitos de diversos setores com unidade de scale-up que tem disponibilidade de reatores de 20, 50, 100, 250, 500, 1.000, 2.000 a 5.000 litros, e com empresas experientes em validar processos e metodologia, conforme previsto nas normas da ANVISA. Já as universidades possuem know-how na síntese de produtos, havendo assim a necessidade de Parcerias Público Privadas (PPP). A parceria entre esses atores possibilitará na transposição da P&D da universidade para a empresa, o que superará este gargalo. A proposta é a criação de infraestrutura nas próprias universidades, ou seja, laboratórios dedicados a transpor da escala de bancada – miligramas – a escala que possa ser trabalhada pela indústria – gramas, para o scale-up promovendo a real integração com as empresas para o desenvolvimento final do produto. Esses laboratórios podem contar com mão de obra qualificada, ou seja, recém-doutores orientados por professores especialistas, que não foram absorvidos pela Indústria. Observa-se que tal infraestrutura não segue a mesma concepção das empresas incubadas, pois há que se criar massa crítica do processo e da demanda contínua por parte das empresas [6]. 194 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Para aumentar a produção brasileira de ARV e torná-la competitiva com as ofertantes internacionais, há a necessidade de incentivos governamentais e adaptação de algumas medidas existentes. É preciso criar mecanismos para produção de intermediários de forma a incentivar as empresas nacionais a produzir matériasprimas voltadas para a indústria farmacêutica. Isso só ocorrerá através de políticas públicas que subsidiem o setor para redução da aquisição externa, principalmente do mercado asiático, e foco no mercado interno. As medidas de estímulo à produção de princípios ativos no Brasil precisam ser continuadas, pois em média o valor do medicamento é 20 vezes o valor do princípio ativo, isso implica que a produção deste agregará valor no país. Para isso torna-se essencial o financiamento nas empresas para se adequarem em termos de infraestrutura voltadas à exportação segundo as boas práticas produção. Em relação aos laboratórios oficiais, incentivos governamentais são necessários para que estes iniciem produção de novos medicamentos. Tais medidas auxiliarão na redução dos preços dos princípios ativos e medicamentos produzidos nacionalmente, o que tornaria a empresa nacional mais competitiva nos leilões. O sistema de compras do governo, como entrave à produção, precisa ser readaptado. Os pregões deveriam ser anunciados com antecedência, para garantia da qualidade da compra de fornecedores rastreados, e assim os laboratórios públicos e nacionais poderiam se associar para incrementar as quantidades e as exigências técnicas necessárias. Além disso, as compras deveriam ser para períodos maiores, pois mudar fornecedores de matérias-primas/intermediários é uma transgressão das BPF e das condições do registro sanitário da ANVISA. VI. Considerações finais Em termos gerais, o Brasil não é visto como prioridade de proteção de fármacos e medicamentos para Aids, já que não apresenta um número considerável de depósitos de patentes em comparação à Austrália, Japão, China e Índia. Deve-se notar que as patentes depositadas no Brasil são, em sua maioria, de multinacionais que depositam em todo o mundo, portanto esta proteção não resulta de uma preocupação internacional na fabricação de fármacos e medicamentos ARVs. Tomando como base os valores de importação, as competências existentes no país e a proteção patentária, o Brasil possui condições de aumentar o portfólio de produção dos fármacos e medicamentos ARVs. A produção de Abacavir, Darunavir, Enfuvirtida e Tenofovir já poderia estar sendo feita por empresas e laboratórios nacionais, uma vez que não estão sob proteção de patente e representam altos valores de importação. Capítulo 10. Competências e desafios para uma maior oferta de antirretrovirais no Brasil 195 Referências bibliográficas 1. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico Aids/DST. 2009. 2. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretária de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos Infectados pelo HIV: 2008. Brasília: Ministério da Saúde, 2008. 3. RABI, J. Políticas públicas e o empreendedorismo em química no Brasil: o caso da Microbiológica. 6. ed. [s.l.]: Química Nova, 2007, v. 30, p. 1.420-1.428. 4. HASENCLEVER, L. et al. Reflexo das políticas industriais e tecnológicas de saúde brasileiras e a produção e o fornecimento de ARVs genéricos pós-2005. In: LAROUZÉ, B. et al. (Org.). Acesso aos antirretrovirais nos países do sul: 20 anos após a introdução da terapia antirretroviral. No prelo. 5. GADELHA, C. A. G. Biotecnologia em Saúde: um estudo da mudança tecnológica na indústria farmacêutica e das perspectivas de seu desenvolvimento no Brasil. Dissertação (mestrado) – Instituto de Economia, Campinas, 1990. 6. ANTUNES, A. M. S. et al. Verificação da capacitação do país em síntese de princípios ativos e formulação de medicamentos ARV de segunda linha. [Francisco Rossi (organizador)]. Avaliação Técnica, Econômica e Legal da Capacidade de Produção de Antirretrovirais no Brasil. Brasília: s.n., 2008. 7. BUSS, P. M.; CARVALHEIRO, da R. J.; CASAS, C. P. R. (Org.). Medicamentos no Brasil. Inovação e Acesso. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. 8. MAGALHÃES, J. L. de. Estratégia governamental para internalização de fármacos & medicamentos em doenças negligenciadas. Tese (doutorado – Escola de Química) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. vol. 196 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas PARTE IV Diversidade dos modelos de políticas públicas e de abastecimento em antirretrovirais CAPÍTULO 11 Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV: conquistas e desafios Cristina Possas Rogério Scapini Mariângela Simão Resumo: Este artigo descreve as conquistas da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos antirretrovirais, internacionalmente reconhecida por seu pioneirismo e impacto junto às pessoas que vivem com HIV/Aids. Discute os diferentes aspectos desta política, inclusive questões da política tecnológica e industrial e do sistema nacional de inovação: propriedade intelectual, política de compras públicas e suas relações com as restrições impostas aos produtores públicos e privados nacionais. O artigo conclui chamando atenção para o fato de que, apesar da expressiva economia de recursos governamentais alcançada por medidas como a licença compulsória do medicamento Efavirenz, em 2007, e mais recentemente, o pedido de subsídio ao exame de patente do Tenofovir, os gastos governamentais com medicamentos para tratamento de terceira linha, protegidos por patentes, consumidos por apenas 3% dos pacientes, estão crescendo exponencialmente. Palavras-chaves: Acesso universal, inovação, ARV, propriedade intelectual, capacidade nacional. I. Introdução A política brasileira de acesso universal e gratuito das pessoas que vivem com HIV/ Aids aos medicamentos antirretrovirais (ARV) é internacionalmente reconhecida como um caso de sucesso na implementação de uma política pública de saúde. De forma pioneira, o Brasil implementou esta política logo após a promulgação da Lei n. 9.313, em novembro de 1996, que garante a oferta gratuita de medicamentos ARV no Sistema Único de Saúde, em consonância com o surgimento da HAART,207 terapia então recém-instituída. Esta política permitiu o controle da epidemia no País, com expressivo declínio, de 1996 a 2002, de cerca de 70% na mortalidade e 80% das internações hospitalares, chegando em 2006 a uma prevalência de 0,6 %. Os baixos níveis de resistência aos medicamentos ARV, quando comparados com outros países [1] permitiram que o País chegasse hoje a uma situação bastante favorável no manejo terapêutico, visto que em 2009 cerca de 80% dos pacientes (150 mil pacientes) em tratamento no Brasil encontravam-se controlados, com carga viral indetectável e portanto sem falha terapêutica (SISCEL, 2009). Esta situação contrasta com a dramática situação de boa parte dos países em desenvolvimento. Com efeito, segundo dados de organismos internacionais [2, 3], mais de um terço da população mundial afetada não tem acesso regular aos medicamentos ARV. Esta situação é particularmente grave nos países da África e da Ásia, nos quais cerca de metade da população afetada pela epidemia não tem acesso a esses medicamentos. Além disso, em boa parte destes países, entre outros fatores, a descontinuidade do tratamento, pela baixa cobertura dos serviços de saúde, propicia baixos níveis de adesão, podendo levar a altos níveis de resistência aos medicamentos ARV. No entanto, em que pese as importantes conquistas alcançadas no País desde a implementação desta política, com respaldo constitucional e legal, bem como a forte mobilização das pessoas vivendo com HIV/Aids e organizações da sociedade civil, ainda persistem importantes desafios a serem superados para assegurar a sua sustentabilidade. No plano internacional, o cenário pós-TRIPS favoreceu a elevação dos preços dos medicamentos ARV protegidos por patentes, limitando o Brasil, signatário do acordo TRIPS, à importação de princípios ativos e genéricos pré-qualificados de baixo custo da China e da Índia, nossos principais fornecedores. A política governamental bem-sucedida de negociação de preços, que permitiu, ao longo das duas últimas décadas, rebaixar consideravelmente os preços desses medicamentos no País, é uma estratégia que, embora importante e de reconhecido impacto, vem encontrando agora limites neste novo cenário internacional. A licença compulsória do Efavirenz pelo governo brasileiro foi certamente um indicativo desse impasse. Esta situação é particularmente grave no caso de medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas, patenteados e, portanto, de preços bem mais elevados do que os dos medicamentos utilizados no tratamento de primeira linha e, como se verá mais adiante, cada vez mais consumidos no Brasil. 207 HAART – Highly Active Anti-Retroviral Therapy. 200 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas No plano nacional, este cenário internacional restritivo vem impondo ao Brasil a necessidade de rapidamente reduzir a dependência de importações de medicamentos ARV e sobretudo intermediários de síntese e de princípios ativos, fortalecendo as instituições públicas de pesquisa e desenvolvimento nacionais, os laboratórios oficiais e as empresas farmacêuticas nacionais, favorecendo o estabelecimento de parcerias público-privadas. Este capítulo apresenta uma descrição sucinta dos desafios para a sustentabilidade desta política e as principais estratégias nacionais implementadas pelo Ministério da Saúde brasileiro, por meio de seu Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, em parceria com outras instâncias governamentais, nos diferentes níveis de governo, para sua superação. II. A política de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV A política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV foi implementada numa perspectiva abrangente e inclusiva de políticas públicas, fundamentada nos direitos humanos, transcendendo portanto, sua dimensão estritamente assistencial [4]. A Constituição Brasileira estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado. Fundamentada nesse contexto, em 1996 foi editada a Lei n. 9.313, garantindo o tratamento gratuito dos medicamentos antirretrovirais no âmbito do SUS. Desde então, tem sido ampliado o acesso gratuito ao diagnóstico do HIV e ao tratamento da Aids. Estima-se que existam no Brasil 630 mil pessoas portadoras do HIV. Até dezembro de 2009, 195.000 delas estavam em uso dos antirretrovirais (ARV). Anualmente, são aproximadamente 35.000 novos casos diagnosticados e notificados por ano. O sucesso na luta contra a epidemia de Aids no Brasil, sustentado pela organização da rede de serviços, pela disponibilização de medicamentos antirretrovirais e pelas ações de prevenção desenvolvidas, foi uma conquista do governo, da sociedade civil organizada e dos profissionais de saúde envolvidos com o enfrentamento da epidemia. O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais responsabiliza-se, no Ministério da Saúde, pela política pública nessa área, orientando o tratamento de indivíduos portadores da infecção pelo HIV e Aids, apoiando organizações de pessoas que vivem com esta doença, assim como projetos de organismos não governamentais e promovendo a adoção de estratégias de melhoria da adesão ao tratamento antirretroviral na rede de serviços de atendimento. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 201 As orientações para o tratamento seguem as Recomendações para Terapia Antirretroviral em Adultos, em Crianças e Adolescentes e em Gestantes, elaboradas por comitês assessores formados por especialistas da área, representantes da sociedade civil e de sociedades médicas e periodicamente publicadas. Essas recomendações são revistas e atualizadas à medida que novas evidências demonstrem a necessidade de novos medicamentos e estes já estejam registrados na ANVISA, sempre na perspectiva do uso racional desses medicamentos e do alinhamento técnico-científico às premissas da política de acesso universal aos antirretrovirais no Brasil. Desde a década de 1980, o país tem implementado campanhas educativas e de prevenção, incluindo a distribuição de preservativos no âmbito nacional, bem como campanhas direcionadas a populações vulneráveis, tais como profissionais do sexo, usuários de drogas injetáveis e homens que fazem sexo com homens. A organização da rede de serviços de referência no Brasil teve um papel histórico no manejo clínico da infecção pelo HIV, com grande impacto na sobrevida dos pacientes. Essa rede conta atualmente com 675 Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM), 636 unidades de referência para o tratamento (Serviços de Assistência Especializada – SAE), 434 hospitais de referência, 79 hospitais-dia e 54 unidades de atendimento domiciliar terapêutico, num total de 1.210 serviços. A ampla utilização da terapia antirretroviral altamente ativa resultou, além da melhora nos indicadores de morbidade, de mortalidade e qualidade de vida dos brasileiros que realizam tratamento para o HIV e a Aids, no perfil crônico-degenerativo assumido pela doença na atualidade. A política governamental enfrenta hoje o grande desafio de encontrar formas de prevenir e tratar uma parcela significativa dos pacientes com Aids, que vêm convivendo com os eventos adversos ao uso de antirretrovirais, como as dislipidemias (aumento de colesterol e triglicérides), a lipodistrofia (alterações na distribuição da gordura corporal), a resistência periférica à insulina (acarretando aumento do açúcar no sangue) e a acidose metabólica (por disfunção mitocondrial). O envelhecimento da população em tratamento, pelo significativo aumento da sobrevida, que hoje já é de mais de 108 meses em pacientes adultos, coloca também novos desafios. Medidas de estímulo à adesão aos serviços e à terapia antirretroviral vêm sendo implementadas, apoiadas por ações contínuas e duradouras. Da mesma forma, esforços vêm sendo direcionados à busca de estratégias inovadoras e efetivas de abordar a prevenção entre os pacientes com HIV, incorporando-as à rotina dos serviços. A adesão ao tratamento, crucial para a melhoria da qualidade de vida e diminuição dos índices de mortalidade, é também decisiva para a sustentabilidade da política de acesso universal aos medicamentos ARV. Níveis elevados de adesão permitem que se assegure a manutenção dos pacientes em tratamento pelo maior 202 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tempo possível nos esquemas terapêuticos iniciais e baratos, com qualidade, diminuindo a pressão pela utilização de esquemas mais complexos e caros. Em síntese, a adesão ao tratamento deve ser entendida tanto na sua dimensão clínica, de melhoria da qualidade da atenção e da qualidade de vida quanto na sua dimensão econômica, como uma estratégia crucial para a sustentabilidade da política governamental de enfrentamento da epidemia. III. A distribuição e a logística em um país de dimensões continentais O desafio e a complexidade da distribuição de medicamentos em uma política de acesso universal e gratuito impuseram, já em 1997, a necessidade de implementação de um Sistema de Controle e Logística de Medicamentos ARV (SICLOM). Para tanto foi necessário conceber um sistema de gerenciamento logístico centralizado apoiado em ações descentralizadas de distribuição pelas 675 Unidades Dispensadoras de Medicamentos (UDM) em todas as cinco regiões do País, nos serviços locais de saúde nos Estados e Municípios. Este sistema de gerenciamento, apoiado no sistema de informação SICLOM, permite acompanhar o processo da cadeia logística de cada medicamento ARV, abrangendo desde a seleção, programação, aquisição/entrega, armazenamento até a distribuição e dispensação. Ele permite que o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais se mantenha atualizado em relação ao fornecimento de medicamentos aos pacientes em TARV, nas várias regiões do país. As informações são utilizadas para controle dos estoques e da distribuição dos ARV, assim como para obtenção de informações terapêuticas dos pacientes de Aids e uso de diferentes esquemas ARV. A utilização do SICLOM permitiu melhorar de forma significativa a capacidade de resposta da área de logística de medicamentos tanto no nível central quanto nas Unidades Federadas e Locais. Com a melhoria da qualidade das informações foi possível ampliar a capacidade de planejamento das aquisições, otimizar o fluxo nas diferentes esferas de gerenciamento e controlar o estoque mensal na rede de serviços, e monitoramento, o que possibilitou a gestão e avaliação local dos medicamentos utilizados nas diferentes categorias de usuários e da qualidade da assistência. Finalmente, cabe observar que as estratégias de relacionamento do Banco de Dados do SICLOM com outros bancos de dados nacionais como o SINAN (Sistema Nacional de Notificação de Agravos), SISCEL (Sistema de Informações Laboratoriais) e SIM (Sistema Nacional de Informações sobre Mortalidade) vêm permitindo Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 203 aprimorar a qualidade das informações no enfrentamento da epidemia e no tratamento ARV. Este relacionamento dos bancos de dados vem permitindo superar, em boa parte, as dificuldades relacionadas à subnotificação epidemiológica. No futuro, a análise em maior profundidade do SICLOM e dos demais sistemas nacionais de informação, por meio de estudos e pesquisas de natureza avaliativa e operacional, permitirá fortalecer a resposta governamental na política de acesso aos medicamentos antirretrovirais. IV. O gasto brasileiro com medicamentos ARV Os gastos anuais do programa brasileiro com a compra de medicamentos antirretrovirais (ARV) pelo Ministério da Saúde, da ordem de US$ 400 milhões, já representam hoje cerca de 62% do gasto total no enfrentamento da epidemia do HIV/Aids e 17% dos gastos federais com medicamentos (Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde, 2010). Além do aumento no número de pacientes e aumento do tempo de permanência dos pacientes em tratamento, pelo expressivo aumento da sobrevida, fatores diversos estão contribuindo para a elevação desse gasto, que deverá aumentar ainda mais nos próximos anos. O primeiro fator diz respeito à inclusão de novos medicamentos no tratamento, através dos Consensos Terapêuticos nacionais. O segundo refere-se ao aumento da demanda por medicamentos mais caros, utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas. A análise da evolução das despesas do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais entre 2000 e 2010, apresentada no Gráfico I, indica que neste período as despesas com medicamentos utilizados nos tratamentos de primeira linha foram drasticamente reduzidas (de 41% em 2000 para 28% em 2010), contrastando com o aumento expressivo das despesas com os medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas, bem mais caros (os medicamentos de segunda linha passaram de 59% em 2000 para 42% em 2010 e os de terceira linha de 4,5% em 2005, ano em que foram introduzidos, para 29% em 2010). Esta tendência de aumento dos gastos com medicamentos para tratamentos de segunda e terceira linhas fica evidenciada nos dados a seguir, disponibilizados pela Unidade de Logística do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. 204 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Gráfico 1 – Evolução dos gastos com medicamentos ARV segundo linha de tratamento Brasil, 2000 – 2010 (%) 70,00 62,09 62,07 59,42 60,00 58,95 57,49 57,30 58,31 42,70 41,69 57,07 53,30 50,00 42,51 41,05 46,08 42,68 38,09 40,00 38,36 37,93 31,29 33,41 30,00 29,64 28,54 28,78 22,63 20,00 8,34 10,00 4,50 4,84 2005 2006 10,94 0,00 2000 2001 2002 2003 2004 1ª linha 2ª linha 2007 2008 2009 2010 3ª linha Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde. Em termos de valores, enquanto os gastos com os medicamentos utilizados nos tratamentos de 1ª linha reduziram de US$131,4 milhões para US$ 92 milhões entre 2000 e 2008, as despesas com os medicamentos utilizados nos tratamentos de 2ª linha saltaram de US$178,6 milhões para US$213 milhões. Destaca-se, como observado, o grande aumento da participação dos medicamentos do tratamento de terceira linha na despesa com medicamentos ARV. Entre 2005, quando estes entraram no Consenso Terapêutico, e 2008, observou-se aumento de 87,6%, passando de US$17,8 milhões em 2005 para US$33,4 milhões em 2008. Isto indica tendência expressiva ao aumento da despesa nos próximos anos porque estes medicamentos são mais caros, sem a disponibilidade de genéricos no mercado externo [5]. Apresentamos finalmente a situação atual da despesa para o ano de 2010 (Tabela 1 e Gráfico 2) e da demanda por medicamentos ARV (Tabela 2 e Gráfico 3) segundo a linha terapêutica, que apontam para uma expressiva participação do valor dos medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, que consumidos por apenas 3% dos pacientes já respondem por despesa equivalente à dos medicamentos utilizados nos tratamentos de primeira linha (cerca de 28%). Tabela 1 – Despesa em US$ milhões segundo linha de TARV Brasil, 2010 Linha de TARV Despesa US$ milhões % 1º linha 112.62 28,27% 2º linha 170.30 42,75% 3º linha 115.48 28,99% Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 205 Gráfico 2 – Despesas com medicamentos ARV segundo linha de TARV (em milhões de US$) Brasil, 2010 3º linha 115,48 28,99% 1º linha 112,62 28,27% 2º linha 170,30 42,75% Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde. Gráfico 3 – Número e percentual de pacientes segundo linha de TARV Brasil, 2010 3º linha 5,899 3% 2º linha 108,111 58% 1º linha 72,196 39% Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde. Tabela 2 – Pacientes segundo linha de TARV Brasil 2010 Linha Nº Pacientes % 1ª linha 72.196 39% 2ª linha 108.111 58% 3ª linha 5.899 3% Fonte: Unidade de Logística, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, Ministério da Saúde. 206 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas V. A negociação de preços e licença compulsória do Efavirenz Ao longo do seu percurso, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais logrou sucesso na sua negociação de preços com as empresas farmacêuticas multinacionais, que representam cerca de 76% do gasto governamental com medicamentos ARV, conseguindo reduções de preço significativas que variaram de 15 a 25% nesta década. Esta política de negociação de preços permitiu, neste período, expressiva economia para o País. Contudo, a partir de 2005, esta política de negociação de preços passou a enfrentar alguns impasses no cenário pós-TRIPS, com a adesão a este acordo internacional de países como a Índia e a China, exportadores de genéricos e princípios ativos dos medicamentos ARV para o Brasil [6, 7]. Cabe aqui, no entanto, ressaltar que estes impasses devem ser analisados caso a caso, por cada medicamento, uma vez que, apoiada em brechas legais, a adesão da Índia ao TRIPS não a impediu, por exemplo, de não reconhecer determinadas patentes como as do Tenofovir e do Atazanavir. A disponibilidade destes genéricos e princípios ativos de baixo custo no mercado brasileiro certamente contribui, entre outros fatores, para a política governamental de negociação de preços. A reversão deste quadro após 2005 acabou favorecendo a pressão por preços mais elevados por parte das empresas farmacêuticas multinacionais, especialmente no caso de medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas, protegidos por patentes. Como se pode verificar nas Tabelas 3 e 4 a seguir, apesar do sucesso na negociação dos preços dos medicamentos de terceira linha, eles ainda permanecem muito altos: Tabela 3 – Preço por Frasco e percentual de redução no Brasil, 2005-2010 ARV/ano 2005* 2006 2007 2008* 2009* 2010 % reducão Fuseon® 1,382.91 1,333.13 1,333.13 1,325.19 1,156.29 1,052.22 23,91 Prezista® 576.72 548.40 477.60 17,19 Isentress® 570.78 482.52 15,46 Fonte: Burgos e Scapini (2010) [8] * ano de introdução dos medicamentos no Brasil Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 207 Tabela 4 – Economia anual depois da negociação de preços no Brasil, 2005-2010 ARV/ano 2005* 2006 2007 2008* 2009* 2010 US$ reducão Fuseon® 552,580.00 0.00 126,968.00 4,332,400.00 2,263,522.00 7,275,470.00 Prezista® 789,664.00 7,646,400.00 8,436,064.00 Isentress® 4,962,300.00 4,962,300.00 Total 20,673,834.00 Fonte: Burgos e Scapini (2010) [8] * ano de introdução dos medicamentos no Brasil Este aumento da pressão por preços acabou obrigando o governo brasileiro a buscar a utilização de flexibilidades do TRIPS. Com efeito, já em 2005, houve uma tentativa do Ministério da Saúde de licença compulsória para quatro medicamentos antirretrovirais que, por decisão no último minuto do então ministro da Saúde, acabou não se concretizando. A justificativa na ocasião foi de que o País não teria ainda capacidade de produção imediata e não dispunha de genéricos pré-qualificados para adquirir. Recentemente, em 2007, o Ministério da Saúde, considerando a inflexibilidade da empresa Merck no processo de negociação de preços, que se recusou a reduzir o custo do comprimido do Efavirenz 600mg de US$ 1,59 para US$ 0,65, preço praticado na Tailândia à época, finalmente decidiu emitir a licença compulsória deste medicamento com grande repercussão no País e no exterior, pelas enormes pressões econômicas e políticas envolvidas nesta decisão [9]. Além de sua inflexibilidade na negociação de preços do Efavirenz, que acabou precipitando a decisão ministerial por uma licença compulsória deste medicamento, a empresa Merck acabou cometendo neste processo outro erro estratégico, ao desconsiderar que o Brasil poderia se beneficiar temporariamente da recente pré-qualificação pela Organização Mundial da Saúde das empresas indianas Aurobindo e Ranbaxy em maio de 2006 para produção do Efavirenz, enquanto fazia os desenvolvimentos necessários internamente para produzi-lo no País. Desta forma, ao contrário do que acreditava a empresa Merck durante o processo de negociação, o licenciamento compulsório deste medicamento era possível, apesar das pressões comerciais americanas junto à Organização Mundial do Comércio, pois agora havia condições de aquisição de medicamento pré-qualificado enquanto ocorria o desenvolvimento do medicamento no País, o que durou um ano e meio. Uma conclusão importante é que apesar da complexidade e das resistências que permearam o processo de licença compulsória do Efavirenz, ele resultou em enormes benefícios para o País. Estimativas do governo brasileiro, considerando o impacto de medidas recentes, como negociações de preços, a licença compulsória 208 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas do Efavirenz e, mais recentemente, o subsídio ao exame de patente do medicamento Tenofovir, que acabou por ter a sua patente negada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), mostram que tais medidas já possibilitaram uma economia expressiva para o País. Só com o Efavirenz, que o Ministério da Saúde deixou de comprar da Merck ao valor US$ 1,59 pelo comprimido de 600 miligramas e passou a importá-lo da Índia por US$ 0,45 o comprimido enquanto o desenvolvia localmente, foi possível economizar desde 2007 US$ 154, 8 milhões. Com o Tenofovir foi possível economizar desde 2003 US$ 78,4 milhões e, mais recentemente, com a oposição ao pedido de patente deste medicamento deferida em 2009, o governo brasileiro economizou neste ano US$ 23,7 milhões.208 Em síntese, a economia brasileira com medicamentos ARV de 2003 a 2010 é estimada em US$ 261,4 milhões, sem considerar a economia mencionada com a licença compulsória do Efavirenz, de US$ 154,8 milhões. VI. O fortalecimento da capacidade nacional para inovação e parcerias público-privadas Conforme apontado anteriormente, a participação das empresas farmacêuticas multinacionais no gasto governamental brasileiro com medicamentos ARV ainda é muito elevada, representando cerca de 71,9% dos gastos em 2010. O mercado brasileiro de ARV, pelo lado da oferta, é basicamente composto por laboratórios farmacêuticos públicos, como, entre outros, Farmanguinhos, Lafepe e FURP, e algumas poucas empresas privadas, como a Cristália, Nortec e Globe, que produzem medicamentos mais antigos e/ou seus princípios ativos e que não estão sob patentes. Já os medicamentos patenteados são ofertados pelos laboratórios farmacêuticos multinacionais que não produzem este tipo de medicamento no País e por isso a demanda é suprida pela importação dos mesmos [5,10]. A demanda, por sua vez, é essencialmente pública, ou seja, o mercado nacional de ARV é oligopsônico, tendo o Ministério da Saúde como o seu principal demandante, devido à política de centralização das compras governamentais de medicamentos ARV. Sendo assim, as transações entre os produtores de matérias-primas, produtores de ARV, entre produtores públicos e privados e entre produtores nacionais e estrangeiros são importantes elementos para o estudo da dinâmica deste mercado [10]. Um esforço importante vem sendo realizado recentemente, a partir de 2009, pelo governo brasileiro para reverter este quadro de baixa participação dos produtores nacionais (laboratórios oficiais e empresas nacionais) na produção desses 208 Cálculo feito pelo Ministério da Saúde. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 209 medicamentos. No âmbito do sistema nacional de inovação, a política governamental tem se voltado ao fortalecimento dos laboratórios oficiais e das empresas farmacêuticas nacionais, na perspectiva de consolidação do chamado complexo industrial da saúde. Esta política vem estimulando parcerias público-privadas (PPP), com apoio de agências de fomento à política tecnológica e industrial, como a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A compra de medicamentos ARV por meio de parcerias público-privadas para a produção de ARV encomendados, é prevista na legislação brasileira (Lei 8.666/93) [11] e constitui uma modalidade de contratação de serviços. Com diversas parcerias público-privadas recentemente iniciadas para a produção local de medicamentos, através de convênios e com dispensa de licitações, o Ministério da Saúde poderá ter acesso a medicamentos ARV a preços bem mais acessíveis que os medicamentos importados. As parcerias público-privadas (PPP), previstas na Lei 11.079/04 e que estavam em andamento em 2010 para os medicamentos ARV eram as seguintes: Farmanguinhos/Bristol para o Atazanavir, FUNED/Nortec/Blanver para o Tenofovir, FUNED/ Microbiológica para o Entecavir, LAFEPE/Cristália para o Ritonavir, Farmanguinhos/ Nortec/Cristalia/Globe para o Efavirenz, LAFEPE/Cristalia para o Tenofovir. No entanto, é importante observar que a maioria dessas parcerias encontra-se ainda em estágio inicial. Nesse estágio uma PPP consiste na verdade de um acordo de confidencialidade entre as partes interessadas para examinar a possibilidade de uma parceria que pode não se concretizar. Portanto, como se trata de um esforço muito recente, iniciado em 2009, é importante ressaltar que tais políticas só surtirão efeitos a médio e longo prazos. Outro ponto importante é que, diferentemente da legislação em outros países, a Lei 8.666/93 [11] referente à compra pública, não possui incentivos para a aquisição de produtos nacionais, uma vez que apenas em caso de empate a preferência é do produtor nacional. Os produtos estrangeiros baratos, de baixa qualidade e beneficiados com incentivos à exportação dados por seus países, acabam levando vantagem sobre os produtores nacionais [5]. Cabe destacar aqui que esta afirmação não se aplica aos medicamentos ARV acabados, já que o governo brasileiro não compra genéricos de ARV produzidos nacionalmente e sim as matérias-primas. Neste caso, isto ocorre com as empresas farmoquímicas nacionais, prejudicando-as. É importante lembrar ainda que a importação de intermediários químicos por parte dos laboratórios oficiais é isenta de impostos, enquanto a compra dos produtos nacionais não [5]. Como bem aponta Hasenclever (2003) [12], se, por um lado, a Lei 8.666/93209 [10] permite a importação de intermediários a preços baixos para a 209 A Lei 8.666/93 é a lei que institui normas para Licitações e Contratos com a Administração Pública. 210 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas produção local de antirretrovirais, tem, por outro lado, o efeito de inviabilizar paulatinamente a competitividade das poucas empresas ainda envolvidas na síntese de antirretrovirais. A esse cenário, como destacam esses autores, soma-se o fato de que a Lei de Compras Públicas não exige uma pré-qualificação dos fornecedores, as compras são feitas levando em consideração apenas critérios de preço e não considerando a qualidade, o que agrava o quadro preocupante de falta de incentivo à indústria química nacional. As parcerias público-privadas, aliadas a outras medidas que vêm sendo propostas no âmbito do sistema nacional de inovação, como o aprimoramento do sistema de compras públicas e do arcabouço legal, poderão contribuir no médio e no longo prazos para minimizar o impacto deste quadro de elevada dependência externa. Estratégias para o estabelecimento de parcerias público-privadas, visando reduzir esta dependência, foram iniciadas a partir de acordos firmados por ocasião da licença compulsória do Efavirenz. Como bem lembram Almeida et al. (2008) [13], na ocasião, parcerias com indústrias farmoquímicas nacionais foram vistas pelo governo brasileiro como um meio efetivo para assegurar a sustentabilidade da resposta nacional. O laboratório público farmacêutico Farmanguinhos estabeleceu iniciativas de cooperação tecnológica com duas empresas farmacêuticas nacionais (Nortec Química e Cristália), por meio de uma parceria inovadora, baseada em service contracting, em curso. Como apontam esses autores, embora a produção local do Efavirenz possa vir a ser um pouco mais cara que os medicamentos genéricos importados da Índia (por Farmanguinhos a uma faixa de 10% a 15% sobre o preço indiano), o Ministério da Saúde mostrou-se disposto a arcar com esta diferença, não apenas pela característica “customizada” a ser apresentada pelo medicamento genérico nacional, mas sobretudo como uma estratégia de reinvestimento nos setores farmacêutico e farmoquímico nacionais. VII. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal aos ARV A avaliação das condições de sustentabilidade de uma política nacional de acesso aos medicamentos ARV é bastante complexa, pela diversidade das variáveis a serem consideradas. A modelagem das condições de sustentabilidade, visando a construção de cenários, com base em alguns parâmetros econômicos, tem prevalecido na literatura. Recentemente, um desses autores [5] observou, a partir de modelagem, que o cenário apresentado para 2013 a partir das projeções feitas é pessimista, com previsão de aumentos de gastos com ARV da ordem de 150% no período de 2009 a 2013. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 211 Segundo este autor, com a expectativa de atender cerca de 300 mil pacientes, o custo estimado total para compra e ARV em 2013 ficaria em cerca de US$ 1.116 milhões. Com isso, segundo o autor, a sustentabilidade do Departamento tornar-se-ia bem mais difícil, pois este quadro levaria a um aumento das despesas mais que proporcional ao aumento das receitas. Observa ainda que devemos considerar que o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais continuará a concorrer com os demais programas de saúde pública do Ministério e um aumento tão grande nas despesas com ARV poderá não ser absorvido com tanta facilidade. Embora reconhecendo a grande importância do trabalho e dos alertas desse autor, que certamente contribuirão para a estratégia de enfrentamento da epidemia, apontamos nesse capítulo para a necessidade de um tratamento mais abrangente da questão da sustentabilidade, chamando atenção para a necessária distinção, nesse esforço de modelagem e construção de cenários, entre uma “sustentabilidade econômica”, restrita à análise de indicadores monetários, mensurados pela evolução dos preços de mercado dos medicamentos ARV, e uma sustentabilidade “clínicocomportamental” que considera outras variáveis igualmente importantes, associadas às estratégias terapêuticas e à adesão ao tratamento, que podem igualmente, pelo lado da demanda por medicamentos, impactar nos cenários projetados. Com essa perspectiva, é importante destacar quatro aspectos: negociações de preços para as aquisições anuais; desenvolvimento tecnológicos de fármacos (novos e atuais); terapia sequencial; e adesão ao tratamento. Esses quatro aspectos correm em paralelo e vêm possibilitando a sustentabilidade a curto, médio e longo prazos da política brasileira de acesso universal aos medicamentos ARV, devendo portanto ser considerados na modelagem de cenários para o acesso à TARV. Os dois primeiros devem ser incorporados a uma visão mais abrangente da “sustentabilidade econômica”, contemplando, além da evolução dos indicadores monetários, o impacto das estratégias de redução dos preços (negociação de preços, licença compulsória e outras) e as condições existentes para o desenvolvimento tecnológico de fármacos. Os dois últimos, terapia sequencial e adesão, referentes às condições de sustentabilidade “clínico-comportamental”, são igualmente importantes para as avaliações de condições futuras de sustentabilidade da política brasileira de acesso universal. VII.1. Redução de preços: negociações para as aquisições anuais Como observado anteriormente, o Ministério da Saúde, por meio do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, evoluiu bastante, ao longo da última década, no processo de negociação de preços de medicamentos ARV, alcançando uma redução cada vez mais expressiva (que variou de 15 a 25%, conforme o medicamento) na negociação com as empresas farmacêuticas. 212 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Anualmente, por ocasião das aquisições de ARV, é realizada negociação com cada uma das empresas fornecedoras, especialmente as empresas farmacêuticas multinacionais, o que vem assegurando reduções sistemáticas dos preços praticados, levando em conta as seguintes garantias e vantagens que proporciona: aquisições centralizadas; distribuição gratuita; pagamento garantido e dentro dos prazos estabelecidos; e aquisições anuais, considerando as recomendações terapêuticas estabelecidas pelo Departamento. Em especial, a centralização na aquisição e a distribuição gratuita exercem papel crucial na redução de preços, uma vez que o governo estabelece a regra mais custo-efetiva para o paciente, minimizando com isto o poder de negociação das empresas. Mesmo quando o medicamento é recém-introduzido ou não haja competição na classe terapêutica a que pertence, existe um parâmetro mínimo estabelecido, que é o preço registrado para comercialização (Preço CMED/ANVISA – Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que foi fixado considerando os menores preços praticados em oito países de referência. Além disso, o Ministério da Saúde, por intermédio do Departamento de DST, Aids e Hepatites tem conseguido aplicar um redutor de preço (CAP – Coeficiente de Adequação de preços) que hoje está em 22% ao preço de fábrica registrado na CMED, para as compras feitas pelo governo. Isso já implica inicialmente em redução de 22% dos menores preços registrados no País. Cabe finalmente destacar que estas estratégias são complementadas pela busca de outras oportunidades de redução de preço encontradas durante as negociações, tais como, por exemplo, a compra de medicamentos ARV de baixo custo pré-qualificados pela OMS, a não concessão de patentes, o acompanhamento do término do período de concessão da patente, os pedidos de subsídio ao exame, o licenciamento compulsório e o interesse e oportunidade de transferência de tecnologia (licenciamento voluntário) entre os laboratórios públicos e as empresas farmacêuticas multinacionais. VII.2. Terapia sequencial A terapia sequencial, adotada pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, com base no Consenso Terapêutico, tem sido fundamental para se contornar as estratégias das empresas de tentar lançar seus novos ARV para início de terapia, com impacto importante no custo do tratamento. A terapia sequencial, estabelecida por meio de achados clínicos baseados em evidências, garante a efetividade das combinações terapêuticas, considerando os parâmetros de durabilidade do esquema terapêutico em uso, efeitos adversos/colaterais e os níveis de resistência às outras classes terapêuticas. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 213 Os novos ARV sempre são introduzidos como medicamento de resgate terapêutico, preservando a lógica de custo-efetividade, ao manter os medicamentos ARV mais antigos, mais baratos e efetivos como início de terapia e reservando os novos ARV mais caros e também efetivos para resgatar falhas terapêuticas. VII.3. Adesão Como observado anteriormente, este é um aspecto extremamente importante da política de sustentabilidade do acesso universal aos ARV, ao qual vem sendo conferido alta prioridade pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, considerando-se sua importância na manutenção, pelo maior tempo possível, dos esquemas terapêuticos iniciais (mais baratos e efetivos) e mesmo dos esquemas para a primeira falha (também ainda baratos e efetivos). Os serviços de saúde exercem papel fundamental nesse aspecto, pois ao se assegurar um serviço estruturado e com qualidade, as ferramentas de estímulo à adesão acabam fazendo parte da sua rotina de trabalho. Estudos indicam que os níveis de não-adesão na rede do SUS sejam da ordem de 34,4% [14] e indicam, com a intensificação dos esforços governamentais a possibilidade de uma redução desta taxa da ordem de 5% ao ano. Nesse sentido o Qualiaids (ferramenta on-line de gestão da qualidade) tem sido vital para a melhoria da qualidade dos serviços, reforçando as boas práticas e garantindo não só a qualidade dos serviços mas também a qualidade de vida de seus usuários. Esta estratégia de melhoria da qualidade dos serviços e de elevação dos níveis de adesão vem permitindo ao governo brasileiro reduzir consideravelmente a demanda por medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, buscando reverter a situação atual de crescimento exponencial da demanda por esses medicamentos. VII.4. Desenvolvimentos tecnológicos de fármacos (novos e atuais) Embora seja difícil conceber parâmetros que permitam a modelagem e a construção de cenários dos avanços de um país na área de fármacos e medicamentos, certamente os recentes esforços do governo brasileiro no desenvolvimento tecnológico de fármacos poderão, a médio e longo prazos, se revelar estratégicos na garantia da sustentabilidade da política de acesso universal aos ARV. A perspectiva de alcançar autossuficiência no fornecimento dos ARV poderia evitar os atuais gargalos na produção mundial de matéria-prima e produto acabado. O investimento nos parques fabris de medicamento e as transferências de tecnologia de ARV feitas por meios das Parcerias Público-Privadas (PPP) poderão, a 214 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas médio e a longo prazo, assegurar a estabilidade e “expertises” fundamentais para o enfrentamento do aumento do número de pacientes, viabilizando a incorporação a menor custo dos novos ARV. VII.5. A importância do real dimensionamento da demanda Como observado, as estratégias voltadas ao fortalecimento de condições assistenciais e comportamentais nos serviços de saúde que assegurem o aumento nos níveis de Adesão ao Tratamento e a efetiva adoção da Terapia sequencial na rede de serviços de saúde, são na verdade o cerne da sustentabilidade, conferindo destaque ao seu componente clínico-comportamental, que deverá ser considerado nos processos de modelagem e construção de cenários. Do ponto de vista da demanda, atualmente ingressam a cada ano 35 mil novos pacientes ao tratamento ARV no País e destes cerca de 10 mil morrem. Teríamos então 25 mil pacientes ingressando no tratamento anualmente, chegando a 2013 com cerca de 100 mil novos pacientes em tratamento. Somando-se esses novos pacientes aos 195 mil em tratamento em 2009, podemos estimar que chegaremos a 2013 com cerca de 300 mil pacientes em tratamento com ARV. Este cenário para a demanda deve, no entanto, considerar ainda as estratégias de impacto que já vêm sendo implementadas pelo governo brasileiro para enfrentar esta situação. Entre estas medidas destacam-se: a identificação precoce dos pacientes HIV positivos antes do adoecimento e o estímulo à adesão, minimizando as falhas terapêuticas. Esta estratégia apoia-se na constatação de que os ainda elevados níveis de não-adesão ao tratamento antirretroviral acabam acarretando, como vimos anteriormente, um crescimento exponencial da demanda por medicamentos de terceira linha, bem mais caros. Um possível cenário de redução da taxa de não adesão e consequentemente da redução da demanda por medicamentos de terceira linha deverá ser levado em conta nas projeções de médio e longo prazos. Esta possibilidade deverá ser considerada nos esforços de modelagem e nas considerações quanto à sustentabilidade, apontando para a necessidade de revisão das atuais estimativas do número de usuários, que deverão ser ajustadas às condições de adesão ao tratamento e às diferentes linhas terapêuticas. Estima-se que, com o sucesso de uma estratégia de redução gradual dos níveis de não-adesão, reduzindo a demanda dos medicamentos utilizados nos tratamentos de terceira linha, bem mais caros, e com os investimentos recentes no fortalecimento da capacidade nacional de produção de princípios ativos e medicamentos ARV de baixo custo, seria possível prever uma considerável redução dos gastos governamentais e um cenário um pouco mais otimista do que foi projetado por Santos (2010) [5] que, estimou uma demanda de 300 mil pacientes em 2013, e uma despesa para aquele ano da ordem de US$ 1.116 milhões. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 215 Em síntese, uma projeção de cenários restrita à sustentabilidade econômica, pelo lado da oferta de medicamentos ARV, poderá se mostrar insuficiente se não for complementada por um esforço para uma adequada projeção da evolução da demanda por estes medicamentos. VIII. Considerações finais Neste artigo procuramos destacar que a avaliação de uma política nacional de acesso a medicamentos antirretrovirais requer que se transcenda uma perspectiva estritamente assistencial, circunscrita aos serviços e ao sistema de saúde. Ela impõe, sobretudo, a necessidade de uma discussão mais ampla das reais condições do sistema nacional de inovação em questão e de sua articulação com o complexo industrial no setor farmacêutico. Embora reconhecendo as importantes conquistas e avanços alcançados até aqui na política brasileira de acesso universal aos antirretrovirais, apontamos para o fato de que as políticas tecnológica e industrial nacionais ainda encontram consideráveis obstáculos para a superação do quadro atual de elevada dependência externa, sobretudo no que diz respeito à produção de princípios ativos de medicamentos ARV. Esses obstáculos, se não superados, poderão comprometer as condições de sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito aos medicamentos ARV no próximo quinquênio. A construção de cenários futuros para dimensionar as condições de sustentabilidade deve considerar um complexo de variáveis. Estas dizem respeito não apenas à evolução das condições de oferta de medicamentos antirretrovirais mas também à evolução da demanda por estes medicamentos, sobretudo pelos medicamentos de terceira linha. Esses medicamentos, consumidos por apenas 3% dos pacientes, já representam hoje cerca de 29% da despesa, já superando os gastos com medicamentos utilizados nos tratamentos de primeira linha, consumidos por 39% dos pacientes. Para reduzir o impacto do expressivo aumento da despesa, projetado para cerca de US$ 1 milhão em 2013 e assegurar a sustentabilidade de sua bem-sucedida política, o governo brasileiro está tomando medidas importantes, tanto no que diz respeito à evolução da demanda quanto à da oferta de medicamentos. Esforço significativo vem sendo realizado pela política governamental junto aos serviços de saúde, concentrado no grupo de pacientes não aderentes, onde a tendência de crescimento do consumo de medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas é muito rápida, procurando reduzir a falha terapêutica e a resistência aos medicamentos ARV, melhorando a qualidade de vida 216 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas destes pacientes e permitindo, ao mesmo tempo, redução significativa do gasto governamental. Ainda com relação à demanda, esforços vêm também sendo realizados pelo governo brasileiro, através do teste rápido nas diversas regiões do País, e do aprimoramento da vigilância epidemiológica, buscando-se identificar e tratar precocemente os pacientes HIV, permitindo, além da melhoria das suas condições de saúde e qualidade de vida, a redução da demanda por medicamentos utilizados nos tratamentos de segunda e terceira linhas. Esta política de ampliação da testagem e do acesso precoce dos pacientes HIV ao tratamento volta-se especialmente aos grupos populacionais mais vulneráveis (HSH, profissionais do sexo e usuários de drogas), considerando-se o fato de que a epidemia brasileira é uma epidemia concentrada nestes grupos. Outras medidas importantes de prevenção, como a significativa ampliação da distribuição de preservativos no País e a redução da transmissão vertical do HIV, apoiam esta estratégia. Com relação à oferta de medicamentos ARV, a estratégia governamental vem se concentrando na superação dos principais obstáculos identificados. O principal deles diz respeito aos elevados preços dos medicamentos na aquisição governamental brasileira, apesar dos esforços de negociação de preços e do sucesso de medidas como a licença compulsória do Efavirenz e do pedido de subsídio ao exame de patente do Tenofovir. A intensificação destas medidas, explorando as flexibilidades existentes no TRIPS e na Lei Brasileira de Propriedade Industrial, será essencial para assegurar a sustentabilidade desta política de acesso universal, considerando-se que atualmente boa parte dos medicamentos ARV já se encontra sob patente. Outro aspecto importante desta política governamental diz respeito à necessidade de fortalecimento da capacidade de produção dos laboratórios públicos e das empresas farmacêuticas nacionais, bem como à importância do processo de transferência de tecnologia e das parcerias público-privadas. Este esforço, apoiado pela urgente reformulação do arcabouço legal que fundamenta hoje as compras públicas, poderá permitir superar a falta de produção local dos princípios ativos farmacêuticos, reduzindo o atual quadro de dependência nacional. Esta política de fortalecimento da capacidade nacional é certamente condição essencial para assegurar a sustentabilidade do fornecimento de medicamentos ARV de baixo custo para os serviços de saúde no SUS. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 217 Referências bibliográficas 1. BRINDEIRO, R. M.; DIAZ, R. S.; SABINO, E. C.; MORGADO, M. G.; PIRES, I. L.; BRIGIDO, L.; DANTAS, M. C.; BARREIRA, D.; TEIXEIRA, P. R.; TANURI, A. Brazilian Network for HIV Drug Resistance Surveillance (HIV-BResNet): a survey of chronically infected individuals. Aids, 17(7): 1.063-9, 2003. 2. OMS/UNAIDS. Draft report on WHO/UNAIDS Meeting on Forecasting ARV Needs up to 2010. Geneva, 2006. 3. UNAIDS/WHO. Aids Epidemics Update. Geneva, 2008. 4. CORDEIRO, I.; BACCARINI, R.; POSSAS, C. Adesão no contexto da terapia antirretroviral no Brasil: Políticas Públicas e Desafios. In: GUIMARÃES, M. D. (Org.). Adesão ao Tratamento Antirretroviral no Brasil: coletânea de estudos do projeto ATAR, Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 5. SANTOS, R. L. Sustentabilidade do Programa Nacional de DST/Aids: análise da capacidade de oferta e preços dos medicamentos antirretrovirais. Dissertação (mestrado – Instituto de Economia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2010. 6. CORIAT, B.; ORSI, F. Brevets pharmaceutiques, génériques et Santé Publique – Le cas de l´accès aux traitements antirétroviraux. Revue d´Economie Politique, etudes et recherches, v. 12, p.153-177, 2003. 7. POSSAS, C. A. Emerging Issues: pharmaceuticals and patents in developing countries. Economica, 10(2): 147-166, 2008. 8. BURGOS, R.; SCAPINI, R. Ensuring the sustainability of free universal access to treatment for people living with HIV/Aids in Brazil – Financial Impacts. Poster THPE0868. In: International Aids Conference, Viena, 2010. 9. POSSAS, C. Compulsory licensing in the real world: the case of ARV drugs in Brasil. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/Aids in Developing Countries, Edward Elgar, 2008. 10. HASENCLEVER, L. (Coord.). Propriedade intelectual, política industrial-tecnológica e mercado de antirretrovirais. Rio de Janeiro: IE/UFRJ – ANRS, 2006. 11. BRASIL. Lei n. 8.666 de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 jun. 1993. 12. HASENCLEVER, L. (Coord.). O programa brasileiro de combate à Aids e a experiência brasileira na produção local de medicamentos antirretrovirais. Rio de Janeiro: IE/UFRJ-ANRS, 2003. 13. ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; KRIKORIAN, G.; ORSI, F.; SWEET, C.; CORIAT, B. New antirretroviral treatments and post-2005 TRIPS constraints: first moves towards IP flexibilization in developing countries. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/Aids in Developing Countries. Edward Elgar, 2008. 218 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas 14. GUIMARÃES, M. D. (Org.). Adesão ao tratamento antirretroviral no Brasil: coletânea de estudos do projeto ATAR. Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. Capítulo 11. Sustentabilidade da política brasileira de acesso universal e gratuito 219 CAPÍTULO 12 Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil Guillaume Le Loup Andreia Pereira de Assis Maria Helena Costa Couto Jean-Claude Thoenig Sonia Fleury Kenneth Camargo Bernard Larouzé Resumo: O estudo qualitativo baseado sobre a análise das políticas públicas efetuado de 2005 até 2007 junto aos atores da luta contra o HIV/Aids e nos serviços de saúde nos estados de São Paulo e do Pará possibilitou a identificação de três padrões de controle da epidemia. Face às novas tendências da epidemia – interiorização, feminização e “pauperização” – a forte coordenação entre os atores públicos e associativos da Aids e os cuidados básicos possibilita uma resposta de saúde pública adequada no modelo 1, com ampla cobertura para as populações afetadas pela epidemia. Mas o risco de banalização ameaça, a curto prazo, a mobilização em torno do HIV/Aids. No segundo modelo, o HIV/Aids permanece como um desafio excepcional, dentro de um contexto de forte estigmatização. Este caráter de excepcionalidade do HIV, no entanto, representa um freio para os cuidados básicos e isso resulta em uma resposta deficiente à evolução da epidemia. Por fim, no terceiro modelo, o da gestão administrativa da epidemia, na ausência de ONGs fortes e bem estruturadas, nenhuma mobilização acontece de fato e a resposta à epidemia é inadequada. Palavras-chave: políticas públicas, descentralização, HIV/Aids, Brasil, prevenção e tratamento. I. Introdução Desde o final dos anos 1990, a política conduzida no Brasil se impôs como um modelo da luta contra o HIV/Aids. Esse país implementou um programa nacional de referência, do ponto de vista de sua organização, da articulação da prevenção e do tratamento, e da mobilização dos atores sociais. Ele foi o primeiro país em desenvolvimento a oferecer tratamento antirretroviral universal e gratuito no interior do sistema público de saúde [1-3]. Esse programa encontra-se agora frente às mudanças epidemiológicas e aos novos problemas. Desde os anos 1990, foram observados: uma difusão em direção ao interior do país (“interiorização”), um aumento dos casos na população de baixo nível de educação e de renda (“pauperização”), e, finalmente, uma feminização da epidemia [4-5]. Por outro lado, o custo novamente crescente dos medicamentos antirretrovirais no Brasil pesa no financiamento do programa. Essas evoluções levantam a questão dos recursos humanos e financeiros e da organização do programa. Em resumo, a sustentabilidade da política de luta contra o HIV/Aids faz parte do processo. A maioria das publicações na literatura internacional não estudou essa evolução recente. Além do mais, elas se concentraram nas dimensões nacionais da política de controle, em suas linhas diretrizes e em seus princípios gerais [6]. Enfim, trata-se principalmente de estudos descritivos. Então, para compreender o programa brasileiro e estudar as lições que podem ser extraídas pelos outros países, parece útil centrar a pesquisa em nível local, principal nível operacional do SUS. Sendo também indispensável utilizar um método de análise dos mecanismos e das competências da mobilização e do programa brasileiro. O programa brasileiro de Aids se desenvolveu no interior do sistema público de saúde, o SUS (Sistema Único de Saúde). Este foi criado pela Constituição de 1988, segundo os princípios de descentralização, de participação dos usuários e de controle social. Ele prevê o acesso universal à atenção integral a prevenção e tratamentos curativos [7-9]. O SUS estabelece uma autoridade político-administrativa descentralizada por nível de governo. No interior desse sistema, o programa de Aids foi implantado nos níveis: federal, estadual e municipal. O programa nacional foi criado em 1985, os programas estaduais existem em todos os 27 estados do país (inclusive no Distrito Federal), os programas municipais se desenvolveram em 400 municípios, dos 5.565 existentes. Para diagnosticar e tratar os pacientes, vários tipos de estruturas foram estabelecidas. Trata-se principalmente dos Centros de Testagem Anônimo (CTA), dos Serviços de Assistência Especializados (SAE) que realizam o atendimento ambulatorial, os serviços hospitalares de diversos tipos (serviço de infectologia, hospital-dia, tratamento domiciliar) [10]. Várias organizações não governamentais, específicas ou não do HIV/Aids, intervêm na prevenção e no tratamento aos doentes, bem como na elaboração das políticas [11]. O programa nacional estimula a descentralização das ações de controle da epidemia por meio de uma política de incentivos. No âmbito dessa política, iniciada a partir de 2002 para responder às mudanças da epidemia, os 27 estados e os cerca de 400 municípios que representam 90% dos casos de Aids do país, recebem recur- 222 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas sos federais para o HIV/Aids por meio de uma transferência automática de fundos. Em contrapartida, eles estabelecem, em seu nível, o diagnóstico epidemiológico e a estratégia de luta contra a epidemia. Um plano anual de ações descreve essa estratégia. Ele é adotado pelo conselho municipal e/ou estadual de saúde. Este reúne por meio de uma representação igualitária profissionais de saúde, usuários e representantes da autoridade política local. II. Objeto e metodologia da pesquisa conduzida Nossa pesquisa estuda, por meio de uma enquete qualitativa local, o método brasileiro de controle da epidemia em nível local, estadual e municipal. O objetivo é o de analisar a resposta brasileira à evolução epidemiológica e ao problema da sustentabilidade do programa de Aids. Essa pesquisa tem seu foco nas modalidades de cooperação entre os diferentes atores e os seus impactos sobre o controle da epidemia. A pesquisa foi realizada em dois estados brasileiros, o estado de São Paulo (região Sudeste) e o estado do Pará (região Norte) no interior de cinco municipalidades. As informações foram recolhidas em 2005-2006 da seguinte maneira: 100 entrevistas semidirigidas com atores administrativos e operacionais públicos e não governamentais do programa de Aids e do sistema de saúde brasileiro; uma observação direta do sistema de saúde e de comunidades vulneráveis (habitantes de favelas, prostitutas, travestis); uma pesquisa documental nas principais bases de dados (MEDLINE, BIREME, SCIELO, JSTOR, GLOBAL HEALTH, FRANCIS, WEB of SCIENCE, GOOGLE SCHOLAR) e um estudo da literatura acadêmica. O estado de São Paulo, fortemente urbanizado (92%), é o mais rico do país. Ele dispõe de uma densa rede de infraestruturas de saúde. A população pobre (12% da população total) concentra-se em vastos territórios de exclusão [12]. Foi nesse estado que a partir de 1981 surgiram os primeiros casos de Aids. Vinte anos depois, a incidência da epidemia permanece bastante elevada (22,8 para 100.000 habitantes em 2002). Ela se espalha para o interior do estado e para os municípios menores. Dois municípios foram escolhidos para o estudo: i. Guarulhos, 1 milhão de habitantes, segunda cidade da região metropolitana de São Paulo, que conta com uma importante população pobre; ii. Ribeirão Preto, cidade de 500.000 habitantes, situada no interior do estado, em uma das rotas do tráfico de entorpecentes, com uma população em média mais rica, e melhores índices de desenvolvimento. O estado do Pará se inscreve no contexto geográfico e social da Amazônia. A taxa de urbanização é de 68%, sendo que 38% da população vivem abaixo do ní- Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 223 vel de pobreza. Observam-se importantes migrações de populações rurais para os bairros periféricos das cidades. As estruturas de saúde pública são menos desenvolvidas e a esses problemas se somam as dificuldades ligadas ao isolamento geográfico das populações rurais e a elevada prevalência de patologias tropicais [13]. No estado do Pará, o primeiro caso de Aids data de 1985, mas em comparação com o estado de São Paulo, a incidência permanece baixa. Mas a epidemia avança e existe uma provável subnotificação dos casos. Três cidades foram estudadas: i. Belém e Ananindeua, pertencendo ambas à principal região metropolitana do estado; ii. Santarém, 300.000 habitantes, situada no interior do estado. As informações coletadas foram avaliadas com base na análise estratégica e sistêmica [14]. Ela de fato se revelou fecunda para analisar principalmente as políticas públicas da luta contra a Aids, em nível nacional ou local [15]. Nossa pesquisa estuda o programa de Aids como uma ação pública. Esta pode ser definida como “a maneira pela qual uma sociedade constrói e qualifica problemas coletivos, elabora respostas, conteúdos e processos para tratá-los. O foco se coloca de forma mais abrangente sobre a sociedade e não somente sobre a esfera institucional do Estado” [16]. Por outro lado, essa pesquisa utiliza os conceitos de excepcionalismo e de normalização da forma como foram definidos nas pesquisas anteriores que tratam do HIV/Aids [17, 18]. III. Resultados: três modelos locais com características contrastadas Nossa pesquisa evidencia três modelos locais de controle da epidemia no Brasil. Eles são apresentados no Quadro 1. Resumindo, o modelo 1, em um contexto de diminuição da estigmatização, evidencia a passagem da excepcionalidade à normalização do HIV/Aids, favorecendo dentro do sistema público de saúde o envolvimento dos atores do cuidado básico e das ONGs “generalistas” (ou seja, não específicas para o HIV/Aids) no controle da epidemia. Essas mudanças permitem responder aos desafios colocados pela evolução da epidemia, garantindo uma cobertura adequada à população pobre, mas, a longo prazo, ameaçam a sustentabilidade do programa de Aids, pois os novos atores envolvidos geralmente não consideram a epidemia de HIV como uma prioridade de saúde pública. 224 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Quadro 1 – As propriedades dos três modelos de controle Modelo 1 : integração e banalização Modelo 2 : Excepcionalismo e enquistamento Modelo 3 : O excepcionalismo impossível Discriminação das pessoas soropositivas Baixa, na família, no bairro, no sistema de saúde Alta, na família, no bairro, variável no interior do sistema de saúde Alta, na família, no bairro, variável no interior do sistema de saúde Atores principais da política de controle do HIV/Aids (a) Programa municipal e estadual de Aids, (a) Programa municipal e estadual de Aids, (a) Programa municipal+/- estadual (b) ONGs específicas e não específicas, (b) ONGS específicas, (b) CTA , SAE (c) CTA, SAE (c) autoridades políticas locais (d) unidades básicas de saúde, CTA, SAE, serviços hospitalares Tipos e atividades das ONGs ONGs específicas para o HIV/Aids e ONGs nãoespecíficas. Prestação de serviços > Ativismo Poder dos programas de Aids (a) estadual: alto (b) municipal: médio ou alto ONGs específicas principalmente Ativismo > Prestação de serviços ONGs não específicas. Prestação de serviços > > Ativismo (a) estadual: médio a baixo (a) estadual médio a baixo (b) municipal: médio a baixo (b) municipal: baixo Conflituoso Elaboração e execução da política de controle Consensual Arranjos locais entre ONGs autoridades políticas locais Conflituoso com autoridades políticas e outros atores do sistema de saúde Cooperação operacional no interior do sistema público de saúde Forte cooperação dos programas de Aids com as unidades de cuidados básicos Baixa cooperação dos programas de Aids com as unidades de cuidados básicos O modelo 2 descreve a persistência da excepcionalidade do HIV e suas consequências na resposta às evoluções da epidemia. A capacidade dos programas de Aids e das ONGs/Aids em manter o HIV no rol de um problema excepcional contribui, em um contexto de estigmatização que permanece elevado, para o isolamento desses atores no interior do sistema de saúde e para o frágil envolvimento das unidades de cuidados básicos. Disso resulta uma cobertura insuficiente da população pobre e dos territórios geográfica e socialmente marginalizados. Enfim, no modelo 3, a emergência do HIV como problema de saúde pública é mais tardia e não existem, em nível local, ONGs/Aids. O ator-chave da resposta à epidemia é um ator administrativo, o programa de AIDS, que faz parte das Secretarias de Saúde. Nesse contexto, não há excepcionalidade do HIV. A cobertura das populações pobres atingidas pela epidemia é insuficiente. A sustentabilidade a curto e longo prazo do programa de Aids está ameaçada. Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 225 A seguir, apresentam-se as características de cada um dos modelos e os primeiros resultados observados. III.1. O modelo 1: integração ao sistema público de saúde e risco de banalização III.1.1. As propriedades do modelo No primeiro modelo, quatro grupos principais de atores cooperam estreitamente para a elaboração e a execução da política de controle: as autoridades políticas locais estaduais e municipais; os programas de Aids municipais e estaduais; as organizações não governamentais, específicas para HIV/Aids (ONGs/Aids) ou não específicas, isto é, que têm um leque de atividades mais amplo; e as unidades operacionais de saúde, que reagrupam os CTA e SAE, os serviços hospitalares de infectologia, as maternidades e as unidades de cuidados básicos. Observamos uma baixa discriminação em relação às pessoas soropositivas tanto nas famílias e nos bairros em que eles residem quanto dentro do sistema de saúde. As autoridades políticas locais dão seu apoio ao programa municipal de Aids. Este é igualmente mantido por um poderoso programa estadual por meio de seu know how e de seus recursos. Esse duplo apoio fortalece a capacidade de negociação e de ação (poder) do programa municipal de Aids. As ONGs especialistas ou generalistas desenvolvem relações de parcerias tanto com os programas de Aids quanto com as autoridades políticas locais, que lhes alocam os fundos públicos. O perfil das ONGs/Aids evoluiu. Em nível municipal, seu papel de ativismo se reduziu sensivelmente à medida que suas reivindicações foram satisfeitas. Suas atividades de gestão da atividade de saúde, muitas vezes financiadas pelas autoridades locais, se desenvolveram. Essas relações de parcerias baseadas em acordos com os serviços e as autoridades municipais estão hoje em dia muito desenvolvidas. A tal ponto que às vezes os responsáveis pelos programas de Aids lamentam a falta de pressão exercida pelas ONGs. As reivindicações, centradas no tratamento dos doentes, são discutidas principalmente em nível estadual, entre o fórum das ONGs e o programa de Aids estadual. A elaboração e a execução da política de controle são consensuais. O plano anual define as ações em matéria de prevenção, diagnóstico e tratamento, bem como o apoio às organizações não governamentais. Ele é adotado sem dificuldade pelo Conselho Municipal de saúde e executado no local pelas ONGs e pelas unidades operacionais de saúde. 226 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Observamos um forte envolvimento das unidades de cuidados básicos na prevenção e no diagnóstico do HIV/Aids. Esse envolvimento se explica pela: a baixa estigmatização das pessoas soropositivas no seio da população; o suporte das autoridades políticas ao programa de Aids e à cooperação interserviços; as iniciativas dos programas de Aids que têm uma forte capacidade de negociação com os outros serviços de saúde; e em alguns casos, a participação dos médicos infectologistas especializados nas atividades das unidades de saúde primária. Essa participação facilita a cooperação entre os diversos escalões primário e secundário e terciário do sistema de saúde e o atendimento integrado dos soropositivos. Além dos infectologistas, os médicos sanitaristas estão fortemente envolvidos nos programas. Eles compartilham com as ONGs/Aids um papel de integrador entre os diversos componentes da política de controle: diagnóstico, prevenção e tratamento. Em contrapartida, no local, e no mesmo território, não existe cooperação entre serviços de saúde e ONGs. Ao contrário, o que prevalece é a ignorância das atividades tanto de uns quanto das outras. III.1.2. As consequências para a política de controle Essas modalidades de cooperação têm consequências diretas sobre a política de controle. Elas são apresentadas no Quadro 2. O apoio das autoridades políticas locais e a capacidade de negociação do programa de Aids permitem mobilizar localmente importantes recursos tanto financeiros quanto humanos. Assim, a participação financeira local é percentualmente elevada dentro do financiamento federal. No campo da prevenção, o envolvimento das unidades de cuidados básicos tem como consequência uma cobertura sistemática, ainda que heterogênea, da população pobre. Com efeito, essas unidades de cuidados básicos esquadrinham o território nacional. Além do mais, ela permite focar nas mulheres gestantes, cuja gravidez é acompanhada nessas unidades. Paralelamente, as ONGs focam as categorias em risco como as dos profissionais do sexo, dos homossexuais, dos usuários de drogas injetáveis. Outras ONGs também agem no seio da população em geral, em paralelo com as atividades das unidades de cuidados básicos, além das poderosas instituições de caridade que derivam das igrejas. Em resumo, são muitos os que intervêm no campo da prevenção, e suas ações são diversificadas (preservativos masculinos e femininos, educação à saúde, ...). E no âmbito das unidades de cuidados básicos e das maternidades, uma prevenção da transmissão da mãe para o filho é efetivamente realizada. Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 227 Quadro 2: As consequências sobre a política de controle da epidemia Mobilização dos recursos humanos e financeiros Prevenção Modelo 1 Modelo 2 Modelo 3 + +/- - Foco na população geral pobre, principalmente as mulheres pobres; Ferramentas de prevenção diversificadas Foco principalmente em certos grupos de risco (Homossexuais, toxicômanos, profissionais do sexo) Depende das ONGs envolvidas no programa. Prevenção efetiva da transmissão vertical Variedade limitada das ferramentas de prevenção Prevenção limitada ou inexistente da transmissão vertical Variedade limitada das ferramentas de prevenção Prevenção limitada da transmissão vertical Barreiras à prevenção Prioridades dadas aos grupos específicos no interior das unidades de cuidados básicos; Estigmatização no sistema de saúde Baixa cooperação das unidades de cuidados básicos /ONGs; Subdiagnóstico e tratamento das DSTs Idem modelo 2 Baixa cobertura territorial das ONGs Baixa cooperação do programa de Aids e dos serviços hospitalares Cuidados Variedade limitada das modalidades de cuidados. Tratamento efetivo das infecções oportunistas (IO) e das DST. ARV disponíveis Variedade importante das modalidades de cuidados. Carências no tratamento das IO e DST. ARV disponiveis. Variedade limitada das ferramentas de cuidados. Carências no tratamento das IO e DST. ARV disponíveis. Cobertura População geral pobre e grupos de risco Principalmente grupos de risco Limitada. Atende a população pobre via as ONGs não específicas. Resposta à: – pauperização + +/- +/- – interiorização +/- +/- - + +/- - – feminização Sustentabilidade Risco de banalização Risco ligado à instabilidade política Risco ligado à falta de mobilização No campo dos tratamentos, observamos uma boa disponibilidade dos medicamentos: antirretrovirais, medicamentos para as infecções oportunistas, tratamentos das DST. Os centros hospitalares das cidades médias se responsabilizam pelos pacientes das pequenas cidades situadas em sua periferia. Mas importantes carências ainda permanecem: os prazos muito longos de espera para as consultas, a falta de especialistas, como, por exemplo, em psiquiatria, o baixo desenvolvimento das modalidades de hospitalização, a relativa insuficiência dos leitos hospitalares. Essas carências são uma possível consequência da dimi- 228 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas nuição da pressão exercida pelas ONGs. Elas resultam também do foco mantido na disponibilidade dos antirretrovirais. Em suma, nesse modelo, uma resposta é dada ao problema da pauperização e da feminização. A resposta à interiorização da epidemia se choca com a resistência dos pequenos municípios, com carências em recursos humanos. Disso resultam lacunas na cobertura do território estadual em matéria de prevenção, atrasos no atendimento (prevenção, tratamento). O duplo apoio das autoridades locais e dos programas estaduais garante certa estabilidade aos programas de Aids municipais. Ela é fortalecida pela contribuição dos fundos federais por meio dos incentivos (cf. introdução). Mas dois fatores criam um risco de banalização. De um lado, trata-se da desmobilização relativa das ONGs/Aids. Por outro, trata-se do envolvimento das unidades de cuidados básicos. Com efeito, essas unidades, e os usuários que participam de sua gestão, consideram a epidemia de Aids como um problema secundário. Quando a população ou os gestores são questionados, qualquer que seja a importância da epidemia, nunca o HIV/Aids aparece como uma prioridade. III.2. O modelo 2: excepcionalidade e “enquistamento” III.2.1. As propriedades do modelo A discriminação em relação às pessoas soropositivas é muito mais forte, tanto no interior dos serviços de saúde quanto no da família ou do bairro. O grupo de atores que cooperam fortemente para a elaboração e a execução da política de controle é reduzido. Trata-se dos programas estaduais e municipais de DST/Aids, das ONGs específicas para o HIV/Aids, e dos CTA e das SAE. Esses atores compartilham um imperativo: manter a política do HIV/Aids como uma prioridade de saúde dentro de um clima de hostilidade e escassez dos recursos humanos e financeiros. Os programas locais não são apoiados pelas autoridades políticas locais. Além do mais, as relações são distantes e até mesmo conflituosas entre programas municipais e estaduais. Privado de dois apoios fortes, os programas municipais têm uma capacidade de negociação e de ação limitada. Nesse contexto, as ONGS/Aids são, portanto, um parceiro indispensável dos programas locais. Juntos, eles tentam impor a epidemia de Aids como um problema sanitário e cívico excepcional, exigindo respostas públicas excepcionais. O ativismo das ONGs é apoiado pelo programa nacional de Aids e divulgado pelas mídias. Com o ocasional recurso à Justiça, este ativismo é uma condição essencial para manter uma pressão sobre os poderes públicos e os serviços de saúde. As unidades de cuidados básicos não parecem persuadidas a se envolverem na política de controle do HIV. Várias razões explicam isso: a forte discriminação nos Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 229 bairros em que elas estão implantadas; a hostilidade ou a indiferença das autoridades políticas locais; o controle social exercido pelas ONGs/Aids sobre os serviços de saúde; a não participação dos médicos infectologistas nas consultas de cuidados básicos. Enfim, há poucos médicos sanitaristas nos programas de Aids. Assim, os diferentes fatores de integração (envolvimento das autoridades políticas, presença de infectologistas em diferentes níveis do sistema de saúde, implicações de médicos sanitaristas) são deficitários neste contexto. III.2.2. As consequências para a política de controle Nesse modelo, a política de prevenção foca os grupos de risco tradicionais: homossexuais, toxicômanos, profissionais do sexo. Esses grupos de risco na maioria das vezes constituíram ONGs específicas para a Aids. Eles são os arquitetos da política de prevenção, centrada na distribuição de preservativos. As unidades de cuidados básicos quase não participam da prevenção. Elas recebem regularmente estoques de preservativos, julgados insuficientes, mas sua distribuição não se inscreve em uma estratégia. No interior das unidades, a discriminação em relação aos portadores de uma DST, aos soropositivos, é muito forte. A existência de uma epidemia local é negada. A ausência de participação das unidades de cuidados básicos na política de prevenção explica a inexistência de uma cobertura territorial sistemática. As atitudes discriminantes contribuem para o subdiagnóstico do HIV e das DSTs, em particular entre as gestantes. Em matéria de tratamento, não existem problemas de distribuição de antirretrovirais, que são da responsabilidade federal. Em contrapartida, os medicamentos para DST e infecções oportunistas, a cargo dos estados e dos municípios, faltam com frequência. Enfim, o atendimento hospitalar é muitas vezes retardado pela falta de leitos disponíveis, real ou não. Mas o ativismo das ONGs e a ameaça do recurso à justiça permitem o surgimento de vários obstáculos. Em resumo, os atores da política de controle sofrem para se adaptarem à nova etapa epidemiológica. Observamos uma espécie de “enquistamento” desses atores no interior do sistema de saúde. Eles permanecem isolados, cooperam pouco. A resposta à pauperização e à feminização da epidemia é frágil. Essa fragilidade se explica pela: ausência de participação das unidades de cuidados básicos; o foco das ONGs/Aids nos grupos de risco tradicionais e sua recusa em atenderem novos desafios (sífilis congênita, por exemplo); e a escassez e a fragilidade das associações que representam ou trabalham em benefício das populações pobres e das mulheres. A resposta à interiorização da epidemia se choca com os mesmos obstáculos encontrados no modelo 1, acentuados pela discriminação e pela carência dos recursos. 230 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas III.3. O modelo 3: o excepcionalismo impossível III.3.1. As propriedades do modelo O terceiro modelo se inscreve igualmente em um contexto de forte discriminação no interior do sistema de saúde e dos bairros e pela ausência de ONGs/Aids poderosas. Os atores que cooperam entre si são os programas municipais para o HIV/Aids, os serviços de cuidados e de diagnóstico CTA e SAE. Assim, o desenvolvimento da política de controle do HIV/Aids se baseia exclusivamente nos atores públicos, administrativos e operacionais, do sistema de saúde. As tentativas dos programas de Aids para que novas ONGS/Aids surjam frequentemente fracassam. Ainda que eles se beneficiem da política de incentivos estabelecida pelo Ministério da Saúde, esses programas estão em uma situação de forte dependência em relação às autoridades políticas municipais. Essa dependência é reforçada pela relativa fragilidade do programa estadual. Entre os programas municipais e estaduais, as relações oscilam entre cooperação e desconfiança, em razão de orientações ou de conflitos políticos entre suas autoridades de tutela. Uma grande parte das atividades de prevenção como a distribuição de preservativos é confiada às ONGs não específicas. Estas integram as atividades de prevenção da Aids entre suas outras atividades, das quais aquelas são apenas um componente menor. Com o programa de Aids local, elas são apenas uma prestadora de serviço. Apesar das diversas iniciativas do programa, as unidades de cuidados básicos não participam da política de controle da epidemia. As maternidades também estão pouco envolvidas. A forte estigmatização, a fragilidade dos programas contribuem para o baixo envolvimento dos médicos, especialistas ou não, nos programas de Aids. Às carências financeiras se somam as pesadas carências humanas. Em resumo, não há um fator integrador da política do HIV/Aids. Sob esse aspecto, faltam aqui autoridades políticas, médicos infectologistas e ONGs/Aids. Isso explica a abrangência bastante reduzida da política de controle. III.3.2. As consequências para o controle da epidemia Nesse modelo, a mobilização de recursos financeiros como complementos dos recursos federais é baixa. A prevenção depende quase que exclusivamente da atividade das ONGs generalistas presentes no município. Estas têm um acesso limitado aos grupos de risco bastante estigmatizados que são os homossexuais, os toxicômanos, os profissionais do sexo. Em contrapartida, elas proporcionam o acesso ao programa da Aids a seu público beneficiário, composto de populações pobres. A cobertura geográfica é limitada, mas essas ONGs às vezes têm importantes recursos, são antigas, com uma forte implantação local. Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 231 Em matéria de tratamento, constatamos igualmente uma boa disponibilidade dos ARV, uma disponibilidade irregular dos medicamentos para as infecções oportunistas e para as DSTs. Mas a carência geral em médicos retarda os diagnósticos e o atendimento. Ainda que pouco sistematizada, a resposta à pauperização da epidemia existe, graças à atividade das ONGs não específicas. Mas a resposta à interiorização se choca com a resistência das autoridades locais e com a carência de atendentes. A resposta à feminização da epidemia é baixa, em razão da não participação das maternidades e das unidades de cuidados básicos na política de controle. IV. Conclusões Essa pesquisa traz vários resultados relativos ao programa de Aids brasileiro aprofundando os conhecimentos já disponíveis. Ela também propõe modelos-tipo de controle da epidemia cujo interesse ultrapassa o âmbito estrito do Brasil. Para além da política nacional de controle da epidemia, que permitiu obter resultados notáveis [19, 20], ela evidencia a diversidade das estratégias locais de controle e de mobilização brasileiras, que contrasta com a aparente uniformidade do programa brasileiro. Ela reúne essa diversidade aos elementos contextuais, em particular às formas e aos níveis de discriminação. Essa pesquisa mostra os conteúdos diversos que as noções de descentralização adquirem, de participação, de cooperação com as unidades de cuidados básicos, em função dos contextos locais. Critica-se assim, à luz de uma enquete qualitativa local, resultados adquiridos em outras publicações [1, 3, 6]. Dessa forma, a descentralização foi considerada como um elemento-chave do sucesso da política brasileira de luta contra a Aids. Mostramos que ela pode questionar a mobilização política sobre o problema da Aids e a própria existência dos programas. Isso se explica tanto pela forte discriminação local e pela instabilidade política dos programas de saúde, quanto pelo risco de banalização do problema da Aids. Da mesma forma, a cooperação entre atores públicos e organizações não governamentais é considerada pela maioria dos autores como um elemento-chave do sucesso brasileiro. Essa pesquisa mostra que é preciso diferenciar as situações em função do tipo de ONGs, de suas atividades e da fase do programa. O papel das ONGs parece determinante para garantir uma mobilização na fase inicial do programa. Mas, como mostrou a análise dos modelos 1 e 2, a ação delas pode, em seguida, ter efeitos negativos em termos de cobertura e de sustentabilidade. 232 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Essa análise da descentralização e do papel das ONGs contribui para explicar, por exemplo, a diversidade dos resultados registrados no Brasil no campo da prevenção da transmissão mãe-bebê ou do tratamento das infecções sexualmente transmissíveis [21]. Os modelos-tipo de controle da epidemia que descrevemos têm suas lógicas próprias, seus pontos fortes e suas fragilidades (Quadro 3), e suas consequências específicas em termos de saúde pública. Pensamos que eles podem ser úteis, em outros contextos de países com recursos limitados, à análise das políticas de luta contra a Aids e às decisões de saúde pública. Capítulo 12. Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 233 PRINCIPAIS FRAGILIDADES – leva em conta o desafio HIV/Aids em todos os níveis do sistema de saúde; PRINCIPAIS FORÇAS – SEGUNDO TIPO DE CONTRADIÇÃO cobertura x sustentabilidade a longo prazo – baixa cooperação entre OGN e APS no local (não compartilhamento de informações, ausência de comunicação, daí a eficácia limitada). – mal funcionamento do sistema de cuidados básicos que repercutem na qualidade do diagnóstico e da prevenção. – institucionalização das ONGs/Aids e não envolvimento com os novos desafios de saúde, como gestantes e as populações mais pobres. Orientação prioritária da política de controle do HIV/Aids em função das demandas e das prioridades expressas pelas ONGs antigas e instaladas que correspondem a certos grupos vulneráveis (MSM, sex workers) e uma menor importância dada aos grupos que têm uma baixa capacidade de expressão, cujas necessidades serão principalmente atendidas pelas unidades de cuidados básicos; – risco de excessiva normalização da política do HIV/Aids, isto é, do desaparecimento do HIV/Aids como prioridade de saúde no momento em que a epidemia continua progredindo e se espalhando nas populações cada vez mais marginalizadas. Vários fatores podem contribuir para isso: a institucionalização das ONGs/Aids, a participação das unidades de cuidados básicos, as prioridades de saúde expressas pela população em geral, o envolvimento ativo das ONGs generalistas que não fazem da Aids um problema prioritário; – participação dos médicos nos diferentes níveis do programa de saúde. – consenso entre os que decidem favorecer a estabilidade e a continuidade a curto prazo do programa de Aids, diálogo que favorece a cooperação dos diferentes atores locais; – importante cobertura da população, devida (1) à participação das unidades de cuidados básicos e (2) à participação de ONGs generalistas, o que permite responder parcialmente ao novo dado da epidemia em termos de cobertura, de diagnóstico e de prevenção; – circulação possível do paciente entre os diferentes níveis primários, secundários e terciários de saúde sem impedimento importante; TIPO OU MODELO N° 1 – primeiro tipo de contradição: Entre mobilização política e cobertura. – nítidas divergências entre ONGs generalistas e ONGs/Aids; – cobertura amplamente incompleta da população pobre, da feminina em particular, e da população em geral, em razão da não participação das APS; – pressão exercida sobre as estruturas de cuidados básicos envolvidas no HIV/Aids e caráter das relações com autoridades contribui para desencorajar envolvimentos das estruturas de saúde na política do HIV /Aids; – proteção bastante eficaz das pessoas soropositivas vítimas de discriminação. – em um contexto de ausência de apoio político ou de franca hostilidade, capacidade para manter o programa de Aids em um nível de prioridade; – em um contexto de forte discriminação, manutenção de uma ala específica e identificada de cuidados dedicada aos pacientes com HIV no interior do sistema de saúde; – nível de pressão política e midiática exercida pelas ONGs/Aids sobre os que decidem para permitir captação dos raros recursos; TIPO OU MODELO N°2 Quadro 3 – Forças e fragilidades dos três modelos – cobertura limitada da população pobre. – ausência de ONGs/Aids; – falta de recursos financeiros e humanos; – ausência de advocacy; – presença de ONGs generalistas que atendem a população pobre e integram o problema do HIV em uma abordagem de educação para a saúde. TIPO OU MODELO N°3 – manter um financiamento direto de ONGs por meio do nível federal (isto é, diferente da política de incentivos) focando a execução de atividade de advocacy e o trabalho junto às novas populações atingidas; RECOMENDAÇÕES – focar nas campanhas de informação e de educação para a saúde junto aos responsáveis do bairro eleitos pela população. – criar benefícios para os agentes de saúde das unidades básicas que investem no campo do HIV (alas universitárias); TIPO OU MODELO N° 1 – estimular os médicos de terceiro nível a intervir nos níveis inferiores. – recorrer aos meios de detecção e de prevenção alternativos no aguardo de: diagnóstico rápido etc. – desenvolver as vantagens evidentes ao investimento no campo do HIV/Aids para as estruturas de cuidados básicos; – diagnóstico rápido: continuar a luta prioritária contra discriminações fomentando outros atores como igrejas, escolas; TIPO OU MODELO N°2 – aumentar a luta contra as discriminações. – no nível local, para o programa de Aids, reforçar os vínculos com as unidades de cuidados básicos e com as ONGs generalistas em torno de uma aliança não excepcionalista; – A prioridade é envolver por meio de incentivos financeiros importantes as ONGs generalistas no campo da Aids, proteger e ajudar os pequenos núcleos, grupos ou associações específicos para a Aids e formar o pessoal administrativo local do programa e os agentes de saúde dos hospitais; TIPO OU MODELO N°3 Evidenciam-se duas contradições importantes que têm implicações operacionais. Por um lado, trata-se da contradição entre mobilização e cobertura das populações. Uma mobilização política é necessária para superar as dificuldades financeiras e de recursos humanos inerentes ao sistema de saúde brasileiro. Essa mobilização política é iniciada pelas ONGs e se apoia nas mídias, no poder judiciário, às vezes nos partidos políticos locais. Ela é uma condição para superar a dupla barreira da estigmatização e dos racionamentos. Mas ela tem um efeito perverso imediato: ela gera para os outros atores do sistema de saúde um custo elevado de se engajar na luta contra a Aids, ligado à publicização da ação pública e ao controle associativo. Essa não-participação tem como consequência uma cobertura limitada das populações pobres. Por outro lado, trata-se da contradição entre a cobertura das populações e a sustentabilidade dos programas. Quando as unidades de cuidados básicos se envolvem na luta contra a Aids, no interior do sistema brasileiro tal como ele funciona, a infecção pelo HIV/Aids jamais aparece, qualquer que seja o contexto epidemiológico, como uma prioridade. Pelo contrário, as populações pobres urbanas, que participam da gestão das unidades de cuidados básicos, relegam a epidemia ao patamar de um problema como outro qualquer, e até mesmo como um falso problema. Essa banalização da questão da infecção surge, portanto, como uma consequência da participação das unidades de cuidados básicos na luta contra o HIV/Aids. Ora, essa participação permite por outro lado uma melhor cobertura da população a curto prazo. Referências bibliográficas 1. LEVI, G. C.; VITORIA, M. A. Fighting against Aids: the Brazilian experience. Aids, 2002; 16:2.37383. 2. MESQUITA, F.; DONEDA, D.; GANDOLFI, F.; NEMES, M. I.; ANDRADE, T.; BUENO, R. et al. 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Os modelos locais de controle da epidemia de HIV/Aids no Brasil 237 CAPÍTULO 13 A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial: lições de uma parceria sustentável para os países do Sul Guillaume Le Loup Andreia Pereira de Assis Maria Helena Costa Couto Jean-Claude Thoenig Sonia Fleury Kenneth Camargo Bernard Larouzé Resumo: Ator na situação excepcional do Brasil para o HIV/Aids, o Banco Mundial, apesar da sua posição inicial, favoreceu a mudança de escala do programa brasileiro, especialmente no que diz respeito à implementação efetiva do tratamento universal e gratuito. Os acordos AIDS I, II, III e AIDS SUS garantiram o financiamento plurianual da luta contra a Aids, incentivando os investimentos por parte dos detentores de decisão, locais e nacionais. As capacidades de preparo e de negociação das administrações brasileiras implicadas, a escolha clara de uma estratégia de controle da epidemia e, por fim, o apoio político nacional dado ao então Programa Nacional de DST/Aids pelas autoridades públicas brasileiras foram fatores essenciais de êxito. O exemplo brasileiro prova que a cooperação duradoura entre uma instituição internacional e um programa nacional pode ser particularmente importante em várias fases de um programa público: durante as fases iniciais de mobilização, permite inserir o problema na agenda política e institucional quando, ao contrário, a normalização do problema evolui de maneira concomitante com a falta de mobilização de vários atores principais. Palavras-chave: instituições internacionais, sustentabilidade, cooperação, HIV/Aids. I. Introdução Os anos 2000 foram marcados por uma profunda transformação na avaliação dos problemas de saúde pública em nível internacional. A mobilização sem precedente de recursos financeiros dedicados às principais patologias que afetam os países do sul, em especial o HIV, o paludismo e a tuberculose, foi acompanhada pela emergência dos novos atores, particularmente as Iniciativas Globais de Saúde (Global Health Initiatives, definidas como “A blueprint for financing, resourcing, coordinating and/or implemeting disease control across at least several countries in more than one region of the World”) [1], e as Parcerias Público-Privadas (PPP), que doravante representariam um importante papel na definição e na ação dos programas de saúde. Essa transformação trouxe incontestáveis resultados positivos, como o acesso de vários milhões de pacientes do sul à tri-terapia antirretroviral, ou a diminuição da transmissão do paludismo na África subsaariana. Mas também levantou, no final dos anos 2000, questões quanto ao seu impacto a médio e longo prazo sobre os programas e os sistemas de saúde beneficiários [2]. De maneira mais geral, essas questões trataram das modalidades e dos efeitos da cooperação entre as instituições internacionais, as IGS e os países do sul no campo da saúde. A experiência brasileira no campo do HIV/Aids oferece um modelo útil de análise e de reflexão nesse campo. De um lado, porque se trata de um duplo sucesso: sucesso da política de controle da epidemia e sucesso da cooperação entre os dois parceiros, que foi renovada em várias ocasiões. De outro, porque essa cooperação foi engajada e construída em um contexto marcado por divergências estratégicas entre os dois parceiros quanto às modalidades de controle da epidemia. E enfim, porque essa cooperação se prolongou durante duas décadas, de forma que ela participou e acompanhou a política de luta contra o HIV em etapas muito variadas de seu desenvolvimento e de sua realização. O objetivo de nossa pesquisa sobre a cooperação entre o Banco Mundial e o então Programa Brasileiro de DST/Aids foi o de descrever suas modalidades, as dimensões políticas, organizacionais e sanitárias, os efeitos em nível nacional e local, e enfim indicar com precisão suas lições para os outros países do Sul. II. Métodos de pesquisa II.1. A coleta dos dados O trabalho de pesquisa teve: Entrevistas semidirecionadas individuais e confidenciais, com importantes atores da política brasileira de luta contra a Aids, públicos ou não governamentais, em nível nacional e local, realizadas em dois estados brasileiros (o Estado de São Paulo e o Estado do Pará) em 2006 e 2007; Observação direta, realizada em 2006 e 2007, da atividade dos atores da política de controle da Aids e do sistema de saúde brasileiro e da maneira 240 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas como eles cooperavam no interior das estruturas especializadas de atendimento dos pacientes, das unidades de cuidados básicos do sistema público de saúde, dos programas locais de Aids e das ONGs; Um estudo documental bastante detalhado (relatório de reuniões, relatório de atividade, projetos etc.) a partir dos documentos do Banco Mundial e dos outros atores da política brasileira, conduzido até 2006; A análise secundária dos dados de estudos realizados por terceiros e das publicações nacionais e internacionais, conduzida igualmente até 2009. II.2. A análise dos dados De um lado, nossa pesquisa se apoiou nos conceitos e nos métodos utilizados na análise estratégica e sistêmica, de outro, na análise das políticas públicas. E essas já foram apresentadas detalhadamente [3]. Em resumo, a análise estratégica e sistêmica identifica os atores envolvidos na ação organizada, as modalidades e o grau desse envolvimento, e as estratégias racionais por eles empregadas para maximizar seu poder e os benefícios que obtêm da ação organizada. O conjunto das estratégias e das cooperações que disso resultam forma um sistema caracterizado por uma regulação específica. A análise das políticas públicas estuda as diferentes etapas de sua elaboração e de sua execução por atores públicos e/ou não governamentais e a maneira pela qual elas induzem a mudança social. III. Resultados da pesquisa III.1. O Banco Mundial, ator da excepcionalidade brasileira O conceito de “excepcionalidade”, assim como ele emergiu no contexto da Aids, remete à execução de medidas políticas, dispositivos de abordagens que rompem com o que estava feito anteriormente e ocasionam uma reviravolta nas práticas sanitárias anteriores. Como escrevem Rosenbrock e os demais: “HIV infections and the outbreak of Aids attracted not only special attention in all the countries impacted but also led to a high degree of readiness to try out innovative processes as well as to institutionalize matters and disburse large amounts of money – Aids became the exception from many rules in health policy, prevention and patient care” [5] Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 241 A dinâmica política da excepcionalidade brasileira Dois conjuntos principais de atores, que intervêm na elaboração e na execução da política brasileira de controle do HIV/Aids, se sucederam ao longo dos primeiros anos da epidemia: de 1981 a meados dos anos 1980, dois atores se afirmam em um cenário nacional fragmentado. De um lado, trata-se das Secretarias Estaduais de Saúde e, de outro, das populações atingidas pela epidemia que progressivamente se organizam no interior de associações e adquirem uma forte capacidade de expressão e de ação. Esses dois atores cooperam para definir a primeira resposta principalmente estadual (no sentido de nível político-administrativo), à epidemia. a partir de meados dos anos 1980, o então Programa Nacional de DST/ Aids pouco a pouco se estrutura no interior do Ministério da Saúde. Paralelamente, diferentes parceiros internacionais, em particular o Banco Mundial, desenvolvem programas de cooperação. A partir de então, a política se constrói principalmente entre quatro atores interdependentes no interior de uma “aliança excepcionalista” original: além do programa nacional e do Banco Mundial, fazem parte as organizações não governamentais e os estados. Até os anos 2003-2004, esse conjunto de atores define as modalidades da resposta brasileira à epidemia e conduz à sua intensificação. De um lado, todos os quatro atores principais dividem uma necessidade de reconhecimento em um cenário em que seu lugar ainda não está definido ou, no caso dos estados, tem de ser reafirmado. A luta contra a Aids lhes oferece um terreno para reforçar seu papel e suas competências. Por outro, eles têm um interesse compartilhado para que o HIV/Aids seja reconhecido no contexto brasileiro, pelo maior tempo possível, como um problema público excepcional que exige respostas excepcionais. Por problema público, nós compreendemos um problema relativo à sociedade em seu conjunto, que cria uma forte demanda social e justifica a mobilização e a intervenção das autoridades políticas em um clima de incertezas e de controvérsias sobre as estratégias a serem praticadas para a solução do problema [3]. O medo de uma generalização da epidemia no conjunto do País basta para criar, no final dos anos 80, uma demanda social importante. Essa noção de problema público se diferencia da noção de problema de saúde pública que “corresponde à intervenção programada dos poderes públicos para responder a uma doença, com a ajuda de uma ação determinada por um processo de decisão técnica, levando em conta a existência de meios capazes de responder à doença ou de preveni-la” [6]. Para os quatro principais atores, o HIV/Aids constitui um problema público pois, em um nível duplo, ele representa uma ameaça para o conjunto da sociedade brasileira, em razão de suas características próprias: ameaça para a saúde individual 242 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas e ameaça civil e política pelos riscos de discriminação em relação aos doentes e atentado aos direitos e liberdades de cada brasileiro. A epidemia de Aids tem valor de teste quanto à capacidade da sociedade brasileira para se democratizar. Como expressou um célebre ativista brasileiro, Herbert de Souza, o Betinho, a morte física é precedida, como no caso da lepra de que o Brasil permanece um dos principais focos, de uma morte social. Enfim, todos os atores que se beneficiam de um mínimo de recursos políticos (e em três de cada quatro casos ao mesmo tempo políticos e financeiros), podem contribuir para satisfazer os objetivos estratégicos de cada um dos outros atores. Dessa maneira, nos anos 1990, os principais atores da política brasileira de Aids compartilham uma regra comum, não explícita, mas que pode ser assim formulada: manter no Brasil e pelo maior tempo possível a excepcionalidade do HIV/Aids, ainda que a ameaça de uma epidemia generalizada venha a desaparecer. Para esse objetivo, cada ator está pronto a fazer concessões em relação à sua própria teoria dos meios de controle da epidemia. Assim se coloca em ação uma dinâmica de excepcionalidade que estrutura a intensificação do combate brasileiro. As ONGs, expressões dos grupos vulneráveis, dirigem fortes demandas aos poderes públicos, ministério e estados. São demandas de serviços sociais (prevenção e tratamento), de garantias jurídicas, de reconhecimento político e de participação no programa. Em troca, as associações oferecem acesso a esses grupos vulneráveis e à sua participação na prática da política de controle. Depois dos estados, somente o Ministério da Saúde pode responder a essas demandas públicas de prevenção e de tratamento, ainda mais que o então Programa Nacional de DST/Aids oferece realmente ao Ministério a oportunidade de conduzir um programa terapêutico exemplar pela sua universalidade e sua gratuidade. As relações entre o Programa Nacional de DST/Aids e o Banco Mundial: negociações complexas com múltiplos desafios Ao entrar em longas negociações com o Banco Mundial, o Ministério da Saúde não ignora que escolheu como principal parceiro uma instituição internacional cuja visão do controle da epidemia é profundamente diferente da sua. Mas a negociação com o Banco Mundial, renovada por duas vezes, oferece ao Ministério uma dupla oportunidade: por um lado, reunir sob sua autoridade, enquanto negociador, todos os atores da luta contra a Aids no Brasil, por outro, ter acesso a uma importante fonte de financiamento internacional. Para o Banco Mundial, o envolvimento no então Programa Nacional de DST/ Aids permite relançar a cooperação no campo social e sanitário com o Brasil e promover sua abordagem da saúde, que dedica um amplo espaço às organizações comunitárias e às estruturas descentralizadas na luta contra a epidemia. Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 243 Suas relações com o então Programa Nacional de DST/Aids brasileiro se desenvolvem no início dos anos 90, justamente no momento em que os problemas organizacionais e políticos afetam o Programa Nacional. A primeira década do Programa é, com efeito, marcada por uma importante crise de 1990 a 1992, que o enfraquece diante dos estados e das instituições internacionais. Essa importante crise está diretamente ligada à reorganização do Programa de Aids sob a presidência de Collor, que foi o governo que se propôs a fazer um programa liberal de redução drástica do Estado em todas as áreas, repassando suas responsabilidades a outros níveis de governo e/ou à sociedade civil. Foi prevista, em vez de uma estrutura nacional, a criação de comissões municipais de Aids encarregadas da execução da política. Por outro lado, após uma polêmica sobre a participação em um teste clínico de vacina, as relações com a Organização Mundial de Saúde (OMS) são interrompidas no mesmo período. Na mesma época, as relações são complexas entre o governo brasileiro e o Banco Mundial por causa das dificuldades encontradas para a execução de três programas definidos ao longo dos anos 1980: Northeast Health Services I (1986, empréstimo de 59 milhões de dólares), Northeast Endemic Disease Control (1988, empréstimo de 109 milhões de dólares), Amazon Basin Malaria (1989, 99 milhões de dólares). O projeto de 1988 compreende um baixo montante consagrado às atividades de prevenção do HIV/Aids (7 milhões de dólares) [7]. No entanto, no final dos anos 80, o Banco Mundial publica um relatório prevendo uma explosão dos casos de Aids concluindo que “as perspectivas são sombrias” [8]. As relações entre o Ministério da Saúde e o Banco Mundial melhoram ao longo dos anos seguintes e resultam, a pedido do governo brasileiro, em um primeiro acordo de empréstimo, AIDS I (1994-1998), longamente negociado. Esse empréstimo será seguido de dois outros AIDS II (1998-2003) e AIDS III (em 2003). Eles foram objeto de uma intensa preparação por parte do lado brasileiro, orquestrada pelo programa nacional. Esses acordos oferecem ao Banco Mundial a oportunidade de fazer prevalecer sua estratégia no setor sanitário, expressa no relatório “Investing in Health” [9] e sua estratégia de luta contra a epidemia tal como formulada no relatório “Confronting Aids ” de 1997 [10]: primazia dada à prevenção baseada em uma mudança dos comportamentos individuais; não “sustentabilidade” financeira do financiamento público do acesso universal aos tratamentos antirretrovirais (o que, como se verá mais adiante, não prevaleceu no Brasil); descentralização necessária dos programas de luta contra a Aids; forte participação das ONGs na execução do programa e envolvimento do Banco tanto no financiamento quanto no desenvolvimento de suas ações. 244 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Para o Banco, essas negociações também representam uma ocasião para afirmar seu papel internacional no campo da saúde que dessa maneira se inscreve em uma estratégia mais ampla da instituição de investimento (sob forma de empréstimos), na área da saúde. Por ocasião dos programas de ajustes e das crises financeiras que marcam os anos 1980 e 1990, o Banco Mundial dispõe de dois importantes trunfos em suas relações com o programa nacional e com o Ministério da Saúde: por um lado, o empréstimo e, por outro, a capacidade de conferir ao Estado uma credibilidade financeira internacional. A partir dessa base, o Banco pode negociar para que se reconheça a sua força de proposição e de ator operacional no campo da saúde, considerado como uma alavanca do desenvolvimento coletivo. Enfim, os Estados, principalmente aqueles em que a epidemia é mais intensa, não podem arcar sozinhos com o custo financeiro da política de controle e de atendimento. Mas seu engajamento na luta contra o HIV/Aids pode lhes trazer, ali onde a demanda social é forte, um triplo benefício: na cena político-administrativa local, por suas relações tecidas com a rede associativa; no campo da saúde, em que os estados têm em muitos casos uma posição de inovadores frente ao Ministério da Saúde e de coordenadores de iniciativas frente aos municípios. Esse é o papel representado, e que continua a ser plenamente representado, pelo programa do Estado de São Paulo, considerado como referência para o conjunto do Brasil e cujos quadros foram, por duas vezes, chamados para dirigir o programa nacional. Portanto, as estratégias dos atores, bem como a dinâmica de suas relações, conduzem a tratar a epidemia de HIV/Aids como um problema público excepcional, definido como uma ameaça sanitária e cívica para o conjunto da população. Essa excepcionalidade perdura no Brasil durante os anos 1990 e no início dos anos 2000: a escolha de um tratamento gratuito pela triterapia universal, a posição do programa de Aids dentro do Ministério da Saúde até o início da década de 2000 e a mobilização midiática e associativa sobre o HIV/Aids, são algumas das manifestações dessa excepcionalidade. Ela é mantida pela ação dos atores; os acordos com o Banco Mundial são renovados, as associações se organizam no interior de poderosas redes capazes de se fazerem ouvir pelas mídias e pelos agentes políticos, a cooperação com o programa nacional se institucionaliza. Esse primeiro círculo de quatro atores (Ministério da Saúde, Banco Mundial, estados, ONG/Aids), que forma a aliança “excepcionalista” brasileira, recorre, quando as negociações se bloqueiam, a um segundo círculo de atores formado por responsáveis políticos, alguns deles constituindo, no início dos anos 2000, grupos parlamentares consagrados ao HIV/Aids; pelas mídias; pelo aparelho judiciário. A intervenção desse segundo círculo muitas vezes teve como efeito reforçar a excepcionalidade do HIV/Aids e resolver os conflitos, quer se trate de soluções judiciárias ou de liberações obtidas após a intervenção do poder executivo local ou federal. Esse segundo círculo constitui um recurso para os atores de primeiro círculo, em Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 245 caso de problemas que coloquem em risco o acesso dos pacientes, coletiva ou individualmente, aos tratamentos e aos cuidados. Ele representou um importante papel durante a elaboração da lei de 1996 que garante o acesso universal gratuito aos tratamentos antirretrovirais, nos casos de escassez de antirretrovirais ou de medicamentos para as infecções oportunistas em nível nacional ou estadual, e, enfim, quando pacientes infectados não tiveram acesso aos leitos de hospitalização. III.2. O Banco Mundial e a intensificação do programa de Aids brasileiro (1993-2002) Os dois primeiros acordos Aids acontecem em um período decisivo da resposta brasileira à epidemia, o do estabelecimento, no conjunto desses países com dimensões continentais, de uma estratégia de controle que associa prevenção e acesso universal ao tratamento antirretroviral. Os acordos AIDS I e II constituem poderosas alavancas para esse processo. AIDS I O primeiro programa AIDS I atinge 250 milhões de dólares dos quais 160 sob forma de empréstimo do Banco Mundial [11-13]. Ele está centrado nas atividades de prevenção e de controle da epidemia. Os 27 estados do país e os 41 municípios são selecionados para receber financiamentos no âmbito desse acordo, mas a autoridade do programa nacional está claramente estabelecida, principalmente pelas condições colocadas para a obtenção desses recursos: definição das ações com o programa nacional, que resultam na assinatura de acordos contratuais. O Acordo AIDS I coloca então o Programa Nacional como o único interlocutor direto do Banco Mundial e como a interface obrigatória com as estruturas descentralizadas, para a distribuição dos 115 milhões de dólares atribuídos a essas estruturas. Além do mais, o Acordo AIDS I prevê o financiamento das ONGs que intervêm no campo da prevenção. Ao longo desse acordo, as 181 ONGs que apresentaram 444 projetos recebem recursos diretamente do programa nacional para ações de informação, de prevenção e de apoio/acompanhamento que focam principalmente três grupos vulneráveis: homens que mantiveram relações sexuais com outros homens, usuários de drogas injetáveis, profissionais do sexo. Entre esses projetos, 62% são desenvolvidos na região Sudeste, 20 % no Nordeste, 10% no Sul, 7% no Centro-Oeste e 2% no Norte. A escolha das ONGs beneficiárias se baseia em uma submissão competitiva de projetos que serão avaliados por uma comissão independente composta de membros de instituições científicas e de universidades, em um mesmo contrato-padrão para todas as ONGs, e na aceitação de uma avaliação pelo Programa Nacional. 246 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Enfim, AIDS I estabelece um eixo que será conservado posteriormente: a formação (“capacitação” de acordo com o termo brasileiro) dos funcionários de saúde no campo do HIV/Aids, que engloba 21.000 profissionais ao longo desse primeiro projeto. AIDS II O Acordo AIDS II cobre o período 1999-2002 [13-16]. Ele acontece em um contexto de crise financeira nacional. É negociado pelo Programa Nacional a despeito de resistências no interior da administração brasileira, em especial por parte da COFIEX (Comissão dos Financiamentos Exteriores), organismo cuja função é aprovar os parceiros externos dos diferentes ministérios – entre eles o Ministério da Saúde. Esse acordo acontece pouco depois de o governo brasileiro ter adotado o princípio de um acesso universal e gratuito à triterapia antirretroviral altamente ativa. As discussões bilaterais em torno desse novo acordo revelam importantes divergências entre o Programa Nacional e o Banco Mundial sobre o financiamento público do acesso universal e gratuito aos antirretrovirais. Todavia, o Acordo AIDS II não está apenas centrado na prevenção. Ele também se apoia, como o AIDS I, no reforço das estruturas de cuidados que garantem o acompanhamento dos pacientes e a execução de seu tratamento. O Acordo AIDS II atinge 300 milhões de dólares (dos quais 165 milhões do Banco Mundial). Ele se baseia, diferentemente do AIDS I, cujo campo de intervenção era mais limitado, em quatro princípios que guiam as intervenções financiadas: a descentralização, a “sustentabilidade”, a institucionalização e a participação política. Os acordos sucessivos contribuem diretamente para o estabelecimento de um programa de Aids “vertical”, implantado no interior do sistema público de saúde, mas que se beneficia de suas próprias unidades de diagnóstico e de tratamento especializado ambulatorial. O Acordo AIDS II permite assim sustentar 145 SAE (Serviço de Atendimento Especializado), 66 unidades intra-hospitalares, e 50 unidades de cuidados no domicílio dedicadas ao HIV/Aids [17]. Os grupos vulneráveis prioritários são ampliados, com a inclusão das mulheres e das crianças. Durante os cinco anos do programa AIDS II, o número de ONGs e de projetos associativos financiados alcança uma progressão muito alta, passando respectivamente de 181 para 785, e de 444 para 2183. Os acordos AIDS I e AIDS II são, portanto, uma importante ferramenta na realização da intensificação do então Programa Nacional de DST/Aids ao longo da década de 1990. Mas essa cooperação, sustentada pela dinâmica da excepcionalidade, também tem efeitos induzidos indiretos. Em primeiro lugar, a excepcionalidade do HIV/Aids favorece o estabelecimento de um programa vertical e freia a descentralização das ações de luta contra a epidemia, ainda que a integração e a Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 247 descentralização sejam dois aspectos importantes da estratégia sanitária do Banco Mundial. Embora a descentralização seja um dos princípios organizadores do SUS seu desenho foi do tipo top-down, mantendo a função estratégica e a capacidade de negociação da autoridade sanitária nacional. E mais ainda, ao apoiar a criação e o desenvolvimento de ONGs dedicadas ao HIV, o Banco Mundial contribui indiretamente, via o desenvolvimento dessa força de advocacy e de reivindicações, à criação das condições políticas para a execução de um acesso universal e gratuito à triterapia antirretroviral, ao passo que na década de 90, ela se opõe a essa opção tanto por razões econômicas quanto epidemiológicas. Essas reivindicações das ONGs foram possibilitadas pela existência de um sistema universal e integral de atenção pública, mantido mesmo durante os governos mais liberais. III.3. O Banco Mundial e a “sustentabilidade” do programa brasileiro (2002- ) Na virada dos anos 2000, no exato momento em que a política brasileira de luta contra o HIV/Aids é reconhecida como um modelo para os países do sul, a epidemia brasileira conhece uma profunda mudança que afeta por muito tempo o programa. Essa mudança foi caracterizada pelos epidemiologistas brasileiros com os termos de feminização, pauperização, interiorização. Dessa maneira, desde meados dos anos 1990, a epidemia atinge com uma crescente frequência a população feminina e a população de baixa renda e educação. Inicialmente concentrada nas principais cidades do Sul e do Sudeste do país, a epidemia avançou progressivamente para o Norte e o Centro-Oeste do país, e para os pequenos e médios municípios [18-20]. Essa evolução epidemiológica teve várias consequências importantes para o programa. Por um lado, a capacidade desses grupos de se organizarem e de participarem da resposta à epidemia é, na maioria das vezes, mínima em comparação com os grupos mais atingidos nos primeiros anos da epidemia (homens que tiveram relações sexuais com outros homens [HSH], profissionais do sexo, em particular). Por outro lado, o sistema de saúde apresenta muito mais carências e é mais frágil no interior do país, em particular nas regiões Norte e Nordeste, mas também nos bairros pobres das grandes cidades, o que coloca o problema da carência dos recursos humanos e financeiros disponíveis para executar a política de controle. Paralelamente, o aumento do custo dos medicamentos antirretrovirais, associado ao aumento do número de pacientes tratados e ao aumento da duração de vida das pessoas portadoras do HIV, coloca o problema relativo ao financiamento da política de acesso universal e gratuito ao tratamento [21-23]. No contexto dessa dupla evolução epidemiológica e financeira, o programa de Aids é confrontado, desde o início dos anos 2000, com a questão da sustentabili- 248 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas dade a médio e longo prazos. Uma das respostas trazidas em nível nacional é a de relançar a descentralização da política de luta contra o HIV, com a finalidade de envolver mais fortemente, no plano administrativo, médico e financeiro, o conjunto dos estados e cerca de 500 municípios em várias regiões do interior. Esse relançamento, executado a partir de 2002, foi denominado política dos “incentivos”. [24]. O objetivo é triplo: atender melhor as populações social ou geograficamente marginalizadas; favorecer a articulação da política de Aids com a política de saúde; “garantir a sustentabilidade do programa”, isto é, implicar muito mais os níveis descentralizados no financiamento do programa. Essa política nacional, dita de “incentivos”, transfere aos municípios e secundariamente aos Estados, a responsabilidade pela elaboração de um plano anual de luta contra a Aids no nível de seu território, em resposta aos incentivos financeiros que lhes são alocados. Essa política consagra principalmente a emergência dos municípios brasileiros na luta contra a Aids: é nesse nível que se deve elaborar o primeiro plano de luta, a definição das principais prioridades, a coerência das ações. Cerca de 400 municípios, foram selecionados a partir de critérios variados (incidência dos casos de AIDS, capacidades de gestão etc.) e representando 90% dos casos de AIDS do país bem como todos os estados. As competências oferecidas nesse âmbito aos municípios são amplas. Cabe a eles em primeiro lugar estabelecer o diagnóstico epidemiológico sobre seu território e qualificar o problema que a epidemia provoca. Em seguida, as administrações locais devem definir as prioridades no interior de um Plano de Ações e de Metas (PAMs) de acordo com quatro eixos: 22. promoção da saúde, prevenção e proteção das populações; 23. diagnóstico, tratamento e assistência (os municípios dividem com os estados a responsabilidade pelos medicamentos para as infecções oportunistas e para as doenças sexualmente transmissíveis. Em contrapartida, o abastecimento das unidades de atendimento em antirretrovirais permanece sob a responsabilidade do governo federal); 24. desenvolvimento institucional; 25. parceria com as organizações não-governamentais. Sob este último ponto de vista, é indispensável, para se beneficiar dos incentivos financeiros, que as ONGs que trabalham no campo da Aids estejam associadas à elaboração do plano; por outro lado, os fundos pagos às ONGs devem representar pelo menos 10% das somas dadas pelo governo federal; se a soma representar menos de 10%, a diferença deve ser devolvida ao governo federal. Os fundos provenientes do governo federal devem ser, sob pena de sanções, especificamente destinados pelos municípios à política de controle da Aids. Várias configurações locais se estabelecem [25]. A principal, predominando no sul do país, é caracterizada por uma estratégia de regulação e de gestão do proble- Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 249 ma HIV/Aids que permite a integração dos programas locais de Aids ao sistema de saúde e uma cooperação bastante estreita com os diferentes componentes desse sistema, em particular as unidades de cuidados básicos. Essa integração favorece uma responsabilização pelo diagnóstico e pela terapêutica das populações pobres atingidas pela epidemia. No entanto, ela favorece também a desmobilização para a questão do HIV/Aids, facilitada pela evolução das ONGs que apresentam principalmente um importante perfil de atores da advocacy para um perfil de prestadores de serviços de saúde. Ao contrário, nos contextos locais de recursos bastante restritos e de discriminação persistente, outra configuração é a da manutenção da excepcionalidade do HIV/Aids pelos principais atores da resposta à epidemia. As ONGs, em particular, permanecem fortemente mobilizadas diante das ameaças civis e para garantir a obtenção de recursos humanos e financeiros suficientes. Nessa configuração, traduzida por um isolamento relativo dos programas de Aids no interior do sistema de saúde e por uma resposta pouco adaptada às novas tendências da epidemia, a sustentabilidade da resposta está ameaçada pelo frágil apoio, e às vezes até mesmo pela hostilidade declarada, das autoridades políticas aos programas de Aids em razão do custo político, para as autoridades políticas locais, associado ao envolvimento na luta contra o HIV/Aids, nos lugares onde persiste uma estigmatização importante dos doentes. Nesses contextos, como foi que a cooperação entre o programa brasileiro de Aids e o Banco Mundial influiu na sustentabilidade da resposta brasileira à epidemia, sendo a sustentabilidade definida como “the long-term ability of an organisational system to mobilize and allocate sufficient and appropriate resources for activities that meet individual or public health needs and demands” [26]? Em primeiro lugar, ainda que inicialmente o Banco e o Programa Nacional tenham previsto não concluir senão um único acordo de financiamento, um terceiro acordo chamado Aids III foi concluído em 2003, e no final da década de 2000, novas negociações foram engajadas para preparar um novo acordo, denominado AIDS SUS, para cobrir o período de 2010 a 2014. Dessa maneira, em 2014, o programa brasileiro terá sido beneficiado por um apoio ininterrupto do Banco Mundial por mais de duas décadas. O Acordo AIDS III está centrado na questão da sustentabilidade do Programa brasileiro na dupla perspectiva de sua descentralização e de sua horizontalização [27-29]. No documento inicial do Acordo AIDS III (Project appraisal) o Banco Mundial e o programa de Aids analisam os maiores riscos para a sustentabilidade e sugerem classificar os 27 estados brasileiros de acordo com os riscos financeiros e técnicos para prever níveis de financiamentos adaptados às necessidades em termos de sustentabilidade de Programa. O risco técnico é definido como a capacidade do estado em matéria de recursos humanos, de capacidade de acompanhamento dos pacientes, de parcerias com as ONGs, de execução de atividades de prevenção 250 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas no interior dos grupos mais vulneráveis, e de atividades de controle dedicadas à prevenção da transmissão mãe-bebê do HIV. No programa AIDS III, a estratégia para favorecer a sustentabilidade do Programa baseia-se na busca de um apoio importante às ONGs, na capacitação dos profissionais de saúde do sistema público de saúde (em particular das unidades de cuidados básicos) na área do HIV/Aids, no encorajamento à cooperação entre os programas de Aids locais e as unidades de cuidados básicos a fim de melhorar a cobertura das populações vulneráveis, em particular das populações vulneráveis pobres, e enfim um apoio financeiro específico aos estados que apresentam os riscos mais elevados. O programa AIDS SUS (2010-2014), assim como emerge das discussões e das negociações anteriores, será centrado na cooperação entre os programas de Aids locais e as unidades de cuidados básicos, particularmente nas três macrorregiões com recursos limitados: o Norte, o Nordeste, e o Centro-Oeste. Os profissionais do programa de saúde familiar (Programa de Saúde da Família), que desenvolve uma abordagem específica da saúde básica (equipe pluridisciplinar móvel dedicada a um território de saúde nos bairros menos favorecidos), estarão fortemente envolvidos na detecção e no acompanhamento dos pacientes com HIV, principalmente mulheres grávidas. Paralelamente, a cooperação entre o Banco Mundial e o Ministério da Saúde brasileiro para a melhoria da qualidade da oferta de cuidados básicos será perseguida no interior de diferentes projetos existentes tais como Qualisus e Saúde Familiar. O montante previsto para o AIDS SUS é de 200 milhões de dólares. IV. Conclusão: as lições da cooperação entre o Banco Mundial e o programa brasileiro de luta contra o HIV/Aids Em primeiro lugar, a cooperação foi claramente benéfica para a política brasileira de luta contra a Aids, em diferentes etapas de seu desenvolvimento [30], ainda que de um lado a estratégia financeira do Banco Mundial nos anos 1990 (política de ajuste) tenha tido um impacto muito negativo em inúmeros países do Sul [31], e que, por outro lado, as estratégias de resposta à epidemia fossem divergentes e até mesmo conflitantes entre os dois parceiros. A esse respeito, a negociação e a execução dos acordos AIDS I e AIDS II ilustram a evolução do Banco Mundial em sua própria concepção da resposta à epidemia, com a passagem de uma abordagem essencialmente preventiva a uma abordagem que associa prevenção e tratamento universal, assim como ela era promovida pelo Programa Nacional brasileiro. Sob esse ponto de vista, as capacidades de preparação e de negociação das admi- Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 251 nistrações brasileiras implicadas, a clara escolha de uma estratégia de controle da epidemia, e enfim o apoio político nacional dado ao então Programa Nacional de DST/Aids pelas autoridades públicas brasileiras foram fatores essenciais do sucesso dessa cooperação. Os benefícios da cooperação se manifestaram tanto no nível político quanto financeiro, social e organizacional, tanto em escala local quanto em escala nacional. Essa cooperação pode se tornar decisiva ou particularmente importante em diferentes momentos-chave da vida de um Programa e de uma política pública: durante as fases iniciais de mobilização que permite inscrever o problema na agenda política e institucional, e quando, ao contrário, a normalização e rotinização do problema se desenvolve, em geral de maneira concomitante com a desmobilização de vários dos principais atores. Enfim, uma dimensão importante da cooperação entre o Banco Mundial e o então Programa Nacional de DST/Aids foi sua duração. Os acordos Aids garantiram um financiamento plurianual estável das ações de luta contra a Aids, favorecendo o envolvimento e o investimento dos gestores locais e nacionais, contribuindo para reforçar a dimensão pública da luta contra o HIV/Aids. Referências bibliográficas 1. BRUGHA, R. Global Health initiatives and public health policy. In: HEGGENBOUGEN, K., QUAH, S. R. (eds.). International encyclopedia of public health. San Diego, CA: Academic Press: p. 72-81, 2008. 2. COLLECTIF. WHO maximizing positive strategies group. An assessment of interactions between global health initiatives and country health systems. Lancet, 2009; 373:2137-69. 3. CROZIER, M.; FRIEDBERG, E. L’acteur et le système. Paris: Seuil, 1977. 4. MENY, Y.; THOENIG, J. C. Politiques publiques. Paris: PUF, 1989. 5. ROSENBROCK, R.; DUBOIS-ARBER, F.; MOERS, M.; PINELL, P.; SCHAEFFER, D.; SETBON, M. 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Brazil – First and second Aids and STD control project. Project performance assessment report. Report n. 28.819. Washington D.C: The World Bank, 2004. 14. WORLD BANK. Brazil – Second Aids and STD control project. Project appraisal document. Report n. 18.338. Washington DC: The World Bank, 1998. 15. WORLD BANK. Brazil – Second Aids and STD control project. Project information document. Report PID n. 6.641. Washington DC: The World Bank, 1998. 16. WORLD BANK. Brazil – Second Aids and STD control project. Information completion and results report. Report n. 29.146. Washington DC: The World Bank, 2004. 17. LE LOUP, G.; DE ASSIS, A.; COSTA-COUTO, M. H. et al. The Brazilian experience of “scalingup”: a public policy approach. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/Aids in Developing Countries. Cheltenham: Edward Elgar, 2008. 18. SZWARCWALD, C. L.; BASTOS, F. I.; BARCELLOS, C. et al. A disseminação da epidemia de Aids no Brasil, no período de 1987-1996: uma analise espacial. Cad. 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Portaria n. 2.104/GM em 19 de novembro de 2002. Brasília: Ministério da Saúde, 2002. 25. LE LOUP, G.; DE ASSIS, A.; COSTA-COUTO, M. H. et al. The local models of control of the HIV/Aids epidemic in Brazil. Am. J. Public Health, 99, 1108-15, 2009. 26. OLSEN, I. T. Sustainability of health care: a framework for analysis. Health Policy Plan, 1998;13, 287-95. Capítulo 13. A cooperação entre o programa de Aids brasileiro e o Banco Mundial 253 27. WORLD BANK. Brazil – Third Aids and STD control project. Project appraisal document. Report n. 25.759. Washington D.C: The World Bank, 2004. 28. WORLD BANK. Brazil – Third Aids and STD control project. Project information document. Report PID n. 11.512. Washington D.C: The World Bank, 2002. 29. WORLD BANK. Brazil – Third Aids and STD control project. Information completion and results report. Report ICR n. 783. Washington DC: The World Bank, 2008. 30. LE LOUP, G.; FLEURY, S.; CAMARGO, K.; LAROUZE, B. Global HeaIth Initiatives and the challenge of sustainability. Trop. Med. Intern. Health, 2010;15:5-10. 31. PARKER, R. The global HIV/AIDS pandemic, structural inequalities, and the politics of international health. Am. J. Public Health, 92, 343-6, 2002. 254 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas CAPÍTULO 14 Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África: uma abordagem comparada da ação pública contra a Aids Fred Eboko Resumo: Esse capítulo visa descrever os processos políticos que buscaram responder ao advento da pandemia de Aids na África. Ele evidencia algumas respostas diferenciais dos Estados africanos frente às dinâmicas epidemiológicas do início da pandemia até as políticas de acesso às multiterapias antirretrovirais (ARVs). Os programas nacionais de luta contra a Aids (PNLS, sigla em francês) sob os auspícios e as diretrizes do Global Programme on Aids (GPA, sigla em inglês) da Organização Mundial da Saúde (OMS), constituem a base das políticas públicas de luta contra a Aids na África antes da descoberta dos ARVs. O acesso a esses tratamentos veio a modificar as atitudes políticas, as mobilizações internacionais, bem como o lugar das associações e organizações não governamentais (ONGs). A tipologia de respostas dos Estados africanos pode ser ilustrada por três “modelos”: a “participação ativa”, “o estado militante” e a “adesão passiva”. A análise comparada das interações de atores nacionais e internacionais exige recorrer, para cada modelo, a um pano de fundo histórico a fim de apreender o peso da conjuntura sóciossanitária e política, bem como o efeito de dinâmicas anteriores ao acesso aos ARV. Palavras-chave: Aids, tratamento ARV, África, Política pública, Abordagem comparativa. I. Introdução Os últimos 25 anos representam um grande marco para o surgimento de respostas internacionais às grandes pandemias. Por exemplo, no final do ano de 2009, a soma mundial dos financiamentos dirigidos às três grandes patologias (Aids, tuberculose e malária) alcançou a marca de US$15,5 bilhões. Metade dessa soma provém de adjuda bilateral e multilateral. Nesse contexto, a resposta à Aids permanece uma alavanca extraordinária, uma figura de proa que abriu caminho para um melhor gerenciamento das outras pandemias. Entre o aparecimento dos primeiros casos de Aids no começo dos anos 1980 e o fim dos anos 1990, a pandemia de Aids foi sem dúvida, dentro de um período tão curto, uma das mais mortíferas na história das doenças e a África subsaariana aparece como a região do mundo que mais sofreu com essa pandemia. Essa região do mundo abriga sozinha mais de 60% dos casos de contaminação: 22,4 milhões de um total mundial de 33,4 milhões [1]. Durante as duas primeiras décadas de luta contra a Aids (anos 1980 e 1990), as regiões mais pobres do mundo, incluindo a África, constituíam também o “ponto cego” da resposta internacional em termos de tratamento. Com a descoberta em 1996 das multiterapias, o abismo entre os países do Norte e os do Sul cresceu ainda mais. Um slogan de organizações não governamentais (ONGs) resume bem essa situação: “os medicamentos estão no Norte e os doentes no Sul”. Na virada dos anos 2000, uma verdadeira revolução terapêutica foi iniciada graças a uma sucessão de iniciativas internacionais. Frente à situação trágica dos países do Sul, sem recursos suficientes para ter acesso aos tratamentos, as ONGs atuaram de maneira decisiva para que as organizações internacionais e os Estados do Norte adotassem medidas para atenuar essas desigualdades radicais. Diversas iniciativas se sucederam em nível internacional. Em 2003, menos de 2% dos pacientes africanos à espera de tratamento tinha acesso aos medicamentos. No fim de 2008, essa porcentagem alcançou 44%, ou seja, um milhão de pessoas [1]. Em alguns países, como Botsuana, cerca de 90% dos doentes elegíveis para o tratamento o receberam. Esse capítulo propõe uma apresentação da evolução diferenciada da luta contra a Aids na África no tocante à questão dos tratamentos. Quadro 1 – Taxas de Soroprevalência para o HIV/Aids na Faixa de 15-49 Anos em alguns Países Africanos Porcentagem Menos de 1% 1% a 5% 6% a 10% 11 % a 15% Mais de 15% País Senegal (0,7%) Guiné-Bissau (2,5%) Camarões (5,5%) Malawi (11%) África do Sul (17,8%) Mauritânia (0,7%) Costa do Marfim (3,4%) Etiópia (2,4%) Moçambique (11,5%) Botsuana (24,8%) Níger (0,8%) CongoBrazzaville (3,4%) Quênia (6,3%) Namíbia (13,1%) Suazilândia (26%) Uganda (6,5%) Zimbábue (14,3%) República Centro-Africana (4,7%) Fonte: ONUSIDA, Le point sur l’épidémie de sida, Genebra, dezembro de 2010. A evolução epidemiológica da Aids na África subsaariana é caracterizada por uma acentuação da prevalência do norte ao sul do continente (Quadro 1). Entretanto, as respostas políticas dos Estados africanos não são estruturadas segundo uma relação de causa-efeito entre a amplitude da epidemia e a construção da ação 256 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas pública. Uma série de pesquisas permitiu evidenciar “modelos” provisórios e evolutivos das respostas políticas. Eles são ligados à situação respectiva de cada país frente às características da epidemia em diversos setores. Podemos destacar diversas variáveis: a situação do sistema de saúde, os indicadores macroeconômicos do país, a estabilidade/instabilidade política e a liderança política, bem como as mobilizações sociais. A combinação qualitativa dessas diferentes variáveis e a análise da evolução histórica de cada país, antes e depois do início da epidemia, oferecem os elementos para essa análise. Trata-se de caracterizar a situação de cada país em relação a essas quatro variáveis no momento em que a existência da pandemia foi reconhecida em seu território e, em seguida, identificar como foi constrúida a resposta política, administrativa, social e sanitária frente às modalidades de expansão da doença. Dentro dessa lógica, os modelos a seguir constituem os principais tipos de resposta à epidemia de HIV na África subsaariana. Esses modelos não são estanques nem definitivos: eles estão em evolução permanente. Eles representam uma ferramenta de análise sociopolítica com a qual é possível observar a evolução dos países que podem passar, ao longo do tempo, de um modelo a outro ou ficar na interface entre dois modelos. Os três modelos aqui considerados antes de serem modificados pelo acesso aos ARVs, são: a “participação ativa”, a “adesão passiva” e o “Estado militante”, esse mais recente, ilustrado pelo caso emblemático de Botsuana [2-3]. Esses “modelos” concebidos levam em consideração diversos fatores: a liderança política, a mobilização associativa, a conexão entre, de um lado o PNLS e de outro, essa dinâmica associativa representando as questões sociais geradas pela epidemia (luta contra o estigma, representação das pessoas vivendo com o HIV/ Aids, defesa dos grupos vulneráveis etc.). Essa abordagem se baseia nas “culturas políticas” e o modo como elas se articularam na luta contra a Aids [5-6]. Depois desses determinantes sociopolíticos apresentados seguindo a síntese de uma abordagem comparativa, amplamente documentada em outras publicações [2-3], analisaremos o exemplo particular de Camarões. Além da diversidade das situações atuais em matéria de acesso a ARVs, o caso de Camarões resume e explica em detalhes os progressos, as possibilidades e os limites da descentralização do acesso a ARVs em países de recursos limitados, na dinâmica dos Objetivos do Milênio (ODM) editados em 2006 em âmbito internacional. Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 257 II. Dos Programas Nacionais de Luta Contra a Aids (PNLS) ao acesso a ARVs na África: gênese e evolução de uma tipologia de Políticas Públicas AntiAids II.1. Emergência dos PNLS e cooperação bilateral contra a Aids na África: uma filiação internacional Dois períodos (de 1986 a 1996 e de 1996 até hoje) foram caracterizados por ofertas de cooperação internacional a que os Estados africanos responderam de maneira diferenciada. Após a descoberta do primeiro caso de Aids nos Estados Unidos, em 1981 e o isolamento formal do vírus HIV em 1983, a epidemia de Aids se agravou no continente africano desde meados dos anos 1980. Dois obstáculos de natureza distinta atrasariam a resposta institucional. A primeira dificuldade esteve ligada à carência de ferramentas de diagnóstico disponibilizadas somente no final de 1985 para a maioria dos países. O segundo obstáculo é de ordem ideológica. Alguns chefes de Estado e de governo demoraram a reconhecer oficialmente a existência da doença em seu território, sobretudo em razão de certos “a prioris” racistas, ou percebidos como tais, que eram associados à doença e do caráter delicado do principal modo de transmissão na África, o sexo. Com a disponibilização de testes de detecção (teste Elisa: Enzyme Linked Sorbent Assay 210) em uma série de países, foram criados comitês, grupos e redes que procuram respostas terapêuticas e medidas de prevenção ao HIV. Apesar dos recursos irrisórios, médicos locais se integraram a redes de intercâmbio com seus colegas europeus e americanos. Na mesma época, em 1986, sob a direção de Jonathan Man, o Global Programme on Aids (GPA, sigla em inglês) nasceu em Genebra, no seio da Organização Mundial da Saúde (OMS). O objetivo desse programa foi produzir uma resposta internacional para o risco sanitário representado pela Aids nos países do Sul, especialmente na África subsaariana. O GPA propõe aos governos a criação de Programas nacionais de luta contra a Aids (PNLS) com a missão de implantar mecanismos de coleta e vigilância epidemiológica, de elaborar programas de prevenção junto aos grupos alvos e de garantir, na medida do possível, a segurança nas transfusões sanguíneas [4]. 210 Técnica imunoenzimática visando a detecção dos anticorpos anti-HIV. 258 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Os PNLS foram constituídos conforme as modalidades propostas pela OMS. Um órgão executivo, o Comitê nacional de luta contra a Aids (CNLS, sigla em francês), era encarregado de coordenar as ações no território nacional, em colaboração com um órgão consultivo. Um plano de avaliação rápida da situação epidemiológica em curto prazo devia preceder um primeiro e um segundo plano em médio prazo. As diretrizes de Genebra foram acompanhadas de recursos financeiros que colocavam os serviços ligados à Aids sob completa tutela material. Os governos nacionais tinham a obrigação de fornecer o pessoal e os locais, mesmo se estivessem submetidos a planos de ajustes estruturais. Ainda que a maioria dos países africanos tenha seguido as diretrizes do GPA da OMS, a implementação de políticas públicas durante a primeira década de luta institucional contra a Aids (1986-1996) foi marcada por uma relativa diversidade. Nessa perspectiva, três modelos constituem a proposta de tipologia dessas mobilizações políticas contra a Aids nos países africanos. II.2. Uma tipologia das mobilizações políticas “ativas” contra a Aids na África II.2.1. A “participação ativa”: Uganda e Senegal A “participação ativa” é o modelo que caracteriza os países que conceberam políticas públicas contra a Aids que vão além da incorporação formal das diretrizes internacionais. Antes do acesso aos ARV, esses países implantaram programas de prevenção originais e adaptados aos conhecimentos propiciados pela vigilância epidemiológica. Os dois países considerados aqui como exemplos apresentam as características dessa dinâmica. As trajetórias desses países se inscrevem em uma mobilização de dinâmicas sociais locais em benefício da luta contra a Aids. Esses dois países apresentam situações epidemiológicas diferentes com uma taxa de soroprevalência de menos de 1% no Senegal e mais de 6% em Uganda para a faixa etária de 15 a 49 anos. No entanto, a vontade política das respostas dos dois países e o controle da evolução da epidemia os reúne no grupo dos países onde a luta contra a Aids conhece alguns êxitos, especialmente em termos de prevenção, antes do acesso a ARVs. Eles têm a particularidade de ter iniciado políticas públicas compatíveis com as recomendações internacionais e, ao mesmo tempo, específicas para as dinâmicas epidemiológicas e políticas do país. No Senegal, desde muito cedo, foram, por um lado, priorizadas as campanhas de acompanhamento sanitário e social às profissionais do sexo; por outro lado, as autoridades sanitárias dirigiram a ação de prevenção para a regulação da sexualidade, apostando no pano de fundo religioso e cultural. Isso apresentou a vantagem da coerência social e sanitária mas também a inconveniente desconsideração Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 259 de sexualidades que não se enquadravam nas representações estabelecidas, em particular as práticas homossexuais masculinas. Em 1986, quando Yoweri Museveni tomou o poder em Uganda, o país se encontrava arrasado por 20 anos de “etnocracia militar”, sendo uma década de violências patológicas exercidas por Idi Amin. Em meados dos anos 1980, os números relativos à Aids, já eram dos mais alarmantes para Uganda. A população “sexualmente ativa” (entre 15 e 49 anos) da capital, Kampala, apresenta uma soroprevalência de cerca de 30%. Mas, na segunda metade dos anos 1990, Uganda conheceu uma queda da soroprevalência. Por exemplo, a taxa de soroprevalência das mulheres efetuando o prenatal e com idade inferior a 20 anos era de 28%, em 1991 e de 6%, em 1998. Uganda é o primeiro país africano cuja queda das taxas de soroprevalência de HIV/ Aids é confirmada e reconhecida pelas organizações internacionais, a mídia e observadores (atores institucionais e pesquisadores) [7]. Esse “êxito” deve ser creditado à conjunção entre o engajamento político e a mobilização dita “comunitária”. II.2.1.a. Uma mobilização social importante A associação que melhor representa essa implicação associativa é, sem dúvida, a Taso (“The Aids Support Organization”). Criada em 1987 pela viúva de um doente da Aids, Noreen Koleba, a Taso e sua presidente se posicionaram como líderes da mobilização dita “comunitária” em Uganda. Em razão da forte confrontação (direta ou indireta) com a doença em Kampala nos anos 1980 (30% das grávidas fazendo o prenatal eram soropositivas), a mobilização conduzida por Noreen Koleba teve logo a adesão de famílias afetadas pela epidemia. A Taso, cuja principal missão era ajudar as pessoas vivendo com o HIV/Aids, se beneficiou da ajuda de ONGs britânicas e americanas e do apoio político do Estado ugandês. Em 1997, dez anos após sua criação, a Taso já havia dedicado um milhão de dólares americanos ao tratamento de doenças oportunistas para os membros da associação antes mesmo do acesso a ARVs. No final da década de 1990, a Taso contava com quase 2.000 voluntários em todo o país e 150 trabalhadores permanentes em benefício de mais de 16.000 pessoas atendidas em domicílio e nos centros criados pela associação [7]. A Taso incentivou a dinâmica associativa em Uganda e se colocou como interlocutor do Estado e de parceiros internacionais de Uganda na luta contra a Aids antes e durante a virada representada pelo acesso a ARVs. Ainda que esse país tenha sofrido pesadamente com a epidemia no decorrer dos anos 1980 e 1990, ele soube conseguir uma posição de destaque por meio de uma política de prevenção voluntarista e de uma coordenação das mais notáveis entre o Estado e as ONGs (locais e internacionais). A esses fatores de sucesso foi acrescentada a vontade, desde meados dos anos 1980, de engajar todos os setores ministeriais na luta contra a Aids. Muito antes das diretrizes da Unaids, Uganda foi o precursor das “políticas multissetoriais” de luta contra a Aids. 260 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas No caso de Uganda e do Senegal, a implicação multissetorial e o trabalho com ONGs, incluindo as associações ligadas ao setor religioso, favoreceram a dinâmica da luta contra a Aids. Da mesma maneira, a dinâmica política foi mais forte, mais precoce e mais importante quantitativamente em Uganda do que no Senegal [9]. II.2.1.b. Uma questão de liderança Os dois países são ligados por um histórico de liderança política sob a batuta, respectivamente, do ex-presidente senegalês Abdou Diouf e do presidente ugandês Yoweri Museveni [7-8-9]. Em ambos os casos, “O Estado desempenhou um papel decisivo, cedendo às associações a margem de ação necessária, mas também liderando a mobilização contra a Aids” [9]. As autoridades políticas nacionais e locais dos dois países incentivaram muito o engajamento contra a epidemia e implantaram estratégias de prevenção baseadas nos contextos socioculturais nacionais. No caso de Uganda, os diversos escalões administrativos foram mobilizados para multiplicar as atividades de prevenção e de atendimento [7]. Em 1998, o Senegal foi o primeiro país africano a lançar, por conta própria, uma iniciativa pública de acesso aos ARVs: a Iniciativa Senegalesa de Acesso aos ARV (Isaarv) [11]. Mais uma vez, essa iniciativa é realizada por meio de acordos com um oligopólio das empresas farmacêuticas detentoras das patentes, mas dessa vez sem a intervenção da Unaids. Ainda que o caso do Senegal seja especial em razão da taxa de soroprevalência relativamente baixa em comparação com os seus homólogos africanos, a ação deste país permitiu evidenciar as possibilidades políticas de negociação direta para os países africanos. No Senegal no final de 2009, 75% dos pacientes elegíveis para receber ARV estavam sob tratamento. Uganda se envolveu em protocolos de acesso a politerapias firmados com a Unaids desde 1997. No final de 2009, a percentagem de pacientes elegíveis para o tratamento e tomando ARVs era de 53%, dentro de uma dinâmica reunindo os antecedentes locais da mobilização e a contribuição da comunidade internacional [7]. Os “Aids Awards” recebidos pelo casal presidencial ugandês (Yoweri e Janet Museveni) ilustram o reconhecimento da liderança política desses personagens centrais da luta contra a Aids. Entre 1998 e 2004, o chefe de Estado ugandês e sua esposa receberam respectivamente oito recompensas. O primeiro prêmio recebido por Yoweri Museveni lhe foi atribuído pela Society for Woman and Aids in Africa, juntamente com o presidente senegalês Abdou Diouf, em dezembro 1998, consagrando, assim, esses dois líderes [7]. A liderança senegalesa se beneficiou também do sucesso internacional de cientistas senegaleses, especialmente da equipe do prof. Souleymane M´Boup, codescobridor do HIV-2, em 1984 [10]. Assim, as recompensas e elogios relativos à luta contra a Aids em Uganda se referem essencialmente à constância dos esforços políticos e comunitários no âmbi- Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 261 to da prevenção, da detecção e da baixa estigmatização contra as pessoas vivendo com o HIV. O acesso a medicamentos conheceu progressos importantes graças, entre outros, ao Pepfar dos EUA (President Emergency Plan for Aids Relief) desde 2004. A entrada dos recursos do Fundo Global em 2006 encontrou uma forte presença do programa americano. De fato, a segunda rodada de financiamento do Fundo Global foi suspensa em razão da subutilização dos recursos financeiros. Isso manifesta a nítida força das trocas bilaterais entre os Estados Unidos e Uganda, e uma conexão política mais fraca com as parcerias multilaterais na luta contra a Aids [7]. II.2.2. “O Estado ativista”: o caso do Botsuana, uma resposta política voluntarista frente ao choque epidemiológico ocorrido na África austral Enquanto os anos 1980 e a primeira metade dos anos 1990 conheceram taxas de soroprevalência muito elevadas na África oriental (Uganda, Ruanda, Burundi, Quênia etc.), os picos da epidemia ao final dos anos 1990 estavam localizados na África austral (África do Sul, Botsuana, Suazilândia, Zimbábue, Namíbia, Moçambique). Essa parte da África concentraria, a partir de então, as taxas mais elevadas de HIV/ Aids. De todos os adultos infectados no mundo, um em cada cinco vive na África austral. Quando a Aids ultrapassou a marca simbólica de 30%211 de soroprevalência em Botsuana, patamar inédito para qualquer país, esse Estado é, por outro lado, apresentado como “modelo” de sucesso econômico [12]. Em 1966, quando da proclamação de sua independência, Botsuana era um dos países mais pobres no mundo. Em 40 anos, ele se tornou um dos países mais “ricos” da África subsaariana com um PIB por habitante avaliado em US$ 3.500. Na mesma época, a comunidade internacional elogiava a estabilidade do regime político do país, baseado numa democracia bipartidária desde 1966 [13]; ou seja, bem antes da liberalização maciça da vida política no continente africano, que só aconteceria a partir do ano 1990. O primeiro caso de Aids em Botsuana foi diagnosticado em 1985, por ocasião da disponibilização dos testes de detecção. O Ministério da Saúde começou a implantar os planos recomendados pelo GPA da OMS desde 1987, priorizando a qualidade da vigilância epidemiológica graças a um sistema de saúde eficiente. No entanto, as ações de prevenção não renderam os frutos esperados e a soropre- 211 Os métodos de cálculo das taxas de soroprevalência evoluíram e são mais precisos. Com os antigos métodos de cálculo baseados numa extrapolação efetuada a partir de locais sentinelas (especialmente para as grávidas em consulta prénatal), essa taxa foi estimada em mais de 37% na faixa dos adultos jovens para Botsuana em 2003. Posteriormente os cálculos foram refeitos na maioria dos países, a partir de pesquisas realizadas com famílias representativas da população geral, tendo sido as taxas encontradas mais baixas em todos os casos. Hoje em dia, a estimativa da taxa de soroprevalência em Botsuana é de mais ou menos 25%. Para mais detalhes sobre esses cálculos, ver Joseph Larmarange [14]. 262 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas valência conheceu uma progressão exponencial. O fator mais comumente citado para explicar tal situação é a mobilidade dos trabalhadores das minas de diamante. De maneira paradoxal, a qualidade da infraestrutura rodoviária e a facilidade de deslocamento desses trabalhadores entre o domicílio familiar e as minas de diamante explicam em parte a exposição direta à doença para esses operários que vivem longe da família durante a semana inteira. O fraco uso do preservativo e os contatos sexuais com profissionais do sexo nas regiões das minas de diamantes explicariam também a dinâmica da epidemia em Botsuana, sobre a qual os discursos moralistas oficiais produziram pouco efeito [2]. Até meados da década de 1990, a Aids não suscitou engajamento político (leadership) especial. A situação se modifica em 12 de outubro de 1992 com a eleição de Festus Mogae, ex-deputado do partido no poder desde 1992 e ex-funcionário do Fundo Monetário Internacional. Seu mandato coincidiu com a midiatização nacional e internacional da gravidade da epidemia de Aids em Botsuana. Ele se tornou a primeira personalidade do país a definir a Aids como “emergência nacional” e, ao mesmo tempo, tomou as rédeas da luta contra a Aids ao assumir a presidência do National Aids Council (NAC) [3-15]. O programa contra a Aids foi estruturado sobre a plataforma “Achap”: African Comprehensive HIV/Aids Partnership. Criada no ano 2000, “Achap” é fruto de uma colaboração com a Fundação Bill e Melinda Gates e o laboratório farmacêutico Merck. Essa parceria foi precedida, acompanhada e seguida por uma série de outros acordos que criaram uma coalizão de atores internacionais no campo da Aids em Gaborone, capital de Botsuana: o Botusa (governo de Botsuana e Center for Diseases Control – CDC, de Atlanta, EUA); o “ Botsuana Harvard Institute” (governo do país e Harvard Institute, de Boston, EUA); o “Secure the Future” (governo do país e laboratório Bristol-Myers Squibb) [3-15]. O programa de acesso aos ARV, batizado de “Masa” (“a aurora”, “o recomeço”, na língua setswana), foi lançado em janeiro de 2002. Desde o início, as autoridades de Botsuana determinaram e garantiram a gratuidade desse programa para todos os pacientes elegíveis, sob a condição de serem de nacionalidade botswanesa [15]. A mobilização política alcançou um de seus objetivos prioritários: favorecer o acesso aos tratamentos para o HIV/Aids. Contudo, entre 2002 e 2005, o número de pacientes em tratamento com ARVs e a aceitação dos testes recomendados pelos responsáveis de saúde pública pareciam não corresponder às ambições oficiais do país. Nesse contexto, o presidente Festus Mogae tomou uma medida simbólica e midiática extraordinária. Em meados de novembro de 2005, os telespectadores da rede de televisão Botsuana Television (BTV) presenciaram um momento inédito revelando, de maneira espetacular, o lugar do país na luta contra a Aids e a relação entre o político e os cidadãos: o presidente Festus Mogae se submeteu ao vivo a um teste de detecção do HIV/Aids. Esse ato proclamava ao mesmo tempo a vontade dos altos escalões do Estado de provocar um choque benéfico para uma Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 263 campanha maciça de detecção e a impotência desse mesmo Estado em conseguir a aceitação da oferta inédita feita ao público: o atendimento integral (incluindo triterapias) e gratuito para os pacientes afetados pelo HIV/Aids [16]. Essa ação pertence ao “Estado estrategista”, conceito analisado no caso dos Estados ocidentais e que pode ser aplicado a Botsuana. Ele ilustra o “Estado estrategista [que] se apresenta como um discurso pertencendo ao mesmo tempo à ordem analítica e à ordem normativa (...). A realidade do Estado estrategista e sua representação como estrategista se apoiam uma na outra” [17]. Em termos de liderança, Festus Mogae é um vetor desse “Estado ativista”, “estrategista”, que coloca o poder em cena a partir de objetivos definidos, a fim de estabelecer uma dinâmica, no caso, o processo que levasse ao atendimento das pessoas infectadas pelo HIV/ Aids: sensibilização, detecção, atendimento terapêutico e psicossocial. Três anos após sua façanha “espetacular em rede de televisão”, Festus Mogae se apresentou em agosto de 2008 na abertura da Conferência Internacional sobre a Aids na cidade do México. Ali anunciou, de maneira sóbria, que mais de 90% das grávidas infectadas em Botsuana seguiam um tratamento de Prevenção da Transmissão de Mãe para Filho (PTME/PMCT, siglas em francês e inglês). Ele informou também que, em seu país, mais de 80% dos pacientes elegíveis ao tratamento usavam ARV, o que representa um recorde para a África subsaariana. No entanto, o limite desse modelo reside na fraqueza das mobilizações coletivas associativas em Botsuana, o que o diferencia de Uganda e explica os baixos resultados de Botsuana em termos de prevenção. III. Da adesão passiva à “revolução terapêutica”212 III.1. “A adesão passiva” às diretrizes internacionais (1986-2000) A adesão passiva foi o modo como a maioria dos Estados africanos (incluindo por exemplo a Costa do Marfim, Camarões e Burkina Faso) adotou formalmente as recomendações internacionais do GPA da OMS entre 1986 e o final dos anos 1990. Essa postura se orientava por dois critérios: a ausência de liderança política e a subordinação das associações de luta contra a Aids às autoridades de saúde ou às agências de cooperação internacional presentes nesses países. A ausência de conexão entre os atores da sociedade civil e a política pública de luta contra a Aids foi um dos primeiros efeitos amplamente documentados nas pesquisas de ciências sociais sobre o tema. 212 Esse trecho repete, em parte, uma publicação recente sobre o mesmo tema: Fred Eboko, “A l’articulation du national et de l’international: bref historique de l’accès aux antirétroviraux au Cameroun”. In: Eboko F., Abé C., Laurent C. (Eds.), 2010. Accès décentralisé au traitement du VIH/sida. Evaluation de l’expérience camerounaise, Paris, ANRS: 1-11 [26]. 264 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas III.1.1. O domínio das “oligarquias biomédicas” sobre as associações: da ambivalência às redes de ação terapêutica Na maioria dos países acima mencionados, os profissionais da biomedicina, em particular os responsáveis sanitários pela luta contra a Aids, desempenharam o papel de ponta de lança para os laboratórios farmacêuticos tradicionais. Nesse contexto, eles tiraram proveito da visibilidade adquirida nos anos 1980-1990 no campo da luta internacional contra a Aids para integrar redes transnacionais que as empresas farmacêuticas faziam parte. Por sua posição estratégica entre os dois níveis, o local e o internacional, eles se colocaram como “oligarquias biomédicas” [19]. Antes do advento dos ARVs, a maioria dos países africanos aqui considerados praticou uma separação de poderes, delegando a responsabilidade da luta contra a Aids para os médicos, por meio da direção dos PNLS. Nesse contexto, o espaço político da Aids era ocupado pelos médicos encarregados de implantar os planos recomendados pelo GPA da OMS, ou seja, os Planos de Médio Prazo (PMT1 e PMT2). Em diversos dos casos estudados, os chefes de Estado e chefes de governo se envolveram relativamente pouco do ponto de vista midiático, mesmo nos casos em que o PNLS dependia dos serviços do presidente da República ou do primeiroministro. O apelo do presidente senegalês da época, Abdou Diouf, convocando solenemente seus homólogos a tomar as rédeas da luta contra a Aids em seus respectivos países, por ocasião de uma reunião de cúpula dos chefes de Estado africanos em Dakar, em 1992, surtiu poucos efeitos. Essa relativa apatia política e coletiva estabelece a nítida diferença entre a “adesão passiva”, a “participação ativa” e o “Estado ativista”. Na maioria dos países considerados, a questão da Aids foi mobilizada sobretudo como modalidade de trocas com parceiros e organismos internacionais. Nesses casos, a luta contra a Aids era, ao mesmo tempo, considerada “prioridade nacional” pelas agências de cooperação e pelos organismos da ONU, por um lado, mas por outro, era acompanhada, nas relações internas do país, por uma inércia que marcou muitos países. O caso de Burkina Faso, por exemplo, evidencia “um Estado contra a saúde pública” e, quando se trata do destino das crianças, uma “epidemia do silêncio” [20]. No caso de Camarões, podemos estigmatizar a situação amplamente difundida com uma fórmula que ilustra essa tendência comum aos países da África subsaariana, “a síndrome da imunodeficiência política adquirida” [21]. Em ambos os casos, trata-se de realçar a dupla linguagem das autoridades políticas africanas entre a adesão ao discurso sobre o perigo da Aids na África e a carência da “participação ativa”. Quanto a isso, os grupos sociais mobilizados por mudanças sociais na África, em particular aqueles mobilizados por mudanças políticas e pela democracia, também permaneceram notavelmente ausentes do palco da luta contra a Aids, o que deixou as autoridades africanas muito à vontade nesse jogo duplo. Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 265 III.1.2. O modelo da “adesão passiva” traz à luz uma configuração particular do campo das associações de luta contra a Aids, da subordinação à emancipação progressiva As culturas políticas da ação coletiva, ligadas a passados coloniais diferentes, no caso, “países anglófonos” versus “países francófonos”, explicam sem dúvida, ainda que em parte, por que os primeiros estavam mais inclinados a desenvolver esse tipo de ação coletiva. No entanto, o papel dos fatores socioepidemiológicos foi provavelmente determinante. Os países anglófonos em que essas primeiras mobilizações coletivas surgiram (Uganda, Zâmbia e, um pouco mais tarde, África do Sul) fazem parte dos países onde as taxas observadas de prevalência do HIV/Aids eram as mais elevadas desde os anos 1980. As cidades onde surgiram as mobilizações mais visíveis e mais perenes desde os anos 1980 apresentavam verdadeiras situações de crise epidemiológica: Kampala, em Uganda [8], Kinshasa, no antigo Zaire de antes da guerra civil. Da mesma maneira, para os países “francófonos”, as associações mais dinâmicas e mais ativas surgiram no país então considerado como o mais afetado da África ocidental e central, a Costa do Marfim [22].213 No entanto, essa variável epidemiológica deve estar relacionada com a capacidade histórica da sociedade civil de se mobilizar em prol de uma causa comum, para além da intervenção isolada do Estado. Devemos acrescentar a variabilidade das dinâmicas propriamente políticas a esses determinantes epidemiológicos e sócio-históricos das mobilizações coletivas. A organização específica do Estado, bem como a situação política e econômica de cada país, dependendo do caso, favoreceram as mobilizações associativas (em razão da fraqueza do Estado, especialmente nos lugares onde o Estado era muito fraco para organizar a luta contra o HIV/Aids) ou retardaram sua evolução (em razão da preeminência dos poderes públicos) [23,24]. A capacidade de intervenção dos parceiros internacionais (organizações não governamentais internacionais e agências de cooperação bi e multilaterais etc.) também desempenhou um papel significativo em diversos países e, de modo geral, esses parceiros buscaram apoiar-se na ação de ONGs para contornar o que percebiam muitas vezes como o peso burocrático das administrações. A situação epidemiológica de Camarões era muito parecida com a da maioria dos outros países francófonos da África ocidental e central, apresentando, nos anos 1980, taxas de prevalência consideradas pequenas (0,5%, em 1988) mas cuja progressão se acelerou nos anos 1990 e 2000 (5,5%, desde 2004). Nesses países, tanto nos pouco afetados quanto naqueles em que se estabeleceu uma dinâmica epidêmica importante (como Camarões), as mobilizações das pessoas vivendo com HIV/Aids (PVHA) enfrentaram muita dificuldade para emergir, exceto na Costa do Marfim [22]. Um ponto comum ao conjunto desses países francófonos, incluindo 213 Na Costa do Marfim, a taxa de prevalência do HIV era estimada em 10% para a população adulta em geral, nos anos 1990, com um pico de 20% na zona da capital, Abidjan. Essa taxa foi reavaliada para baixo desde o ano 2000 (na ordem de 5%). 266 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas a Costa do Marfim, é que a criação de associações não resultou numa mobilização espontânea e tampouco numa auto-organização das próprias PVVS. Nesses países, as associações foram criadas, em grande parte, com o incentivo de profissionais de saúde, de ONGs de luta contra a Aids dirigidas por esses mesmos profissionais ou a pedido de organizações internacionais como a Unaids ou o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento). A autonomização das associações ocorreu em primeiro lugar na Costa do Marfim graças à integração delas a redes de ONGs internacionais e francesas, especialmente [22]. O Camarões apresenta uma combinação dos modelos anteriores. As associações de PVVS foram inicialmente criadas pela iniciativa de médicos hospitalares desempenhando um tipo de papel de “agente duplo”, atuando simultaneamente como médicos e como presidentes das principais associações de luta contra a Aids [25]; depois, elas evoluíram nitidamente para uma autonomia mais ampla em relação ao mundo médico, apoiada em conexões internacionais estabelecidas a partir dos anos 2000. Paradoxalmente, o acesso ao tratamento ARV produziu assim um enfraquecimento da influência das redes de médicos sobre o campo associativo em consequência da crescente medicalização do tratamento dos pacientes. De fato, a África entrou no cenário dos ARVs no ano de 1997. Naquele ano ocorreram as primeiras reuniões internacionais de especialistas na prescrição de moléculas ARVs no continente, sucessivamente em Dakar (Senegal), Abidjan (Costa do Marfim) e Yaoundé (Camarões). Fora desses três países observamos certa diversidade no acesso aos ARVs no continente em função de protocolos diversos, tipos diferentes de parcerias e múltiplos acordos internacionais (Quadro 2). No exemplo de Camarões, na África central, é sintomática a transição da “adesão passiva” para uma postura mais ativa com o acesso aos ARVs. Quadro 2 – Taxa de soroprevalência de HIV e acesso ao tratamento ARV em alguns países africanos País Taxa de soroprevalência de HIV/Aids (15-49 ans)1 Porcentagem de adultos e crianças em estágio avançado de infecção pelo HIV e que recebem tratamento ARV2 Ano 2007 2008 2009 2007 2008 2009 Camarões 5,1% - 7,6 % - 39% 46,5% Senegal 1,0% - 0,7% - 64% 75,6% Burkina Faso 1,6% 2,0% - - 48,1% 47,0% Costa do Marfim 3,9% - - 31% - - 1UNAIDS, 2008 Report on the global Aids epidemic, Annex 1, http://www.unaids.org/en/KnowledgeCentre/HIVData/ GlobalReport/2008/2008_Global_report.asp 2 Dados UNGASS-AIDS. Disponíveis nos relatórios dos países 2010, cf. www.unaids.org Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 267 III.2. Camarões – da “adesão passiva” à descentralização ativa do acesso aos ARVs214: a gênese do acesso aos ARVs em Camarões O histórico do acesso aos ARVs em Camarões ilustra o encontro de várias dinâmicas sociais, científicas e políticas. Desde a Conferência Mundial sobre a Aids em Vancouver (1996), onde foram apresentados os primeiros resultados evidenciando a eficácia das multiterapias ARVs para reduzir a mortalidade e a morbidade associadas à infecção pelo HIV, diversas etapas marcaram o atendimento terapêutico e social dos pacientes camaroneses. Os parágrafos a seguir tentam trazer à luz as principais etapas desse processo com o objetivo de realçar a originalidade, as perspectivas e as possibilidades representadas pela política de acesso aos ARVs em Camarões. III.2.1. Uma mudança de ritmo e de escala O dia 1º de maio de 2007 representou o desfecho de um processo. Desde essa data, os medicamentos ARVs contra a Aids são distribuídos gratuitamente aos pacientes tratados em todas as Unidades de Atendimento (UPEC, sigla em francês) e nos Centros de Tratamento Habilitados (CTA, sigla em francês) para essa patologia em Camarões. Em toda a extensão do território nacional, as pessoas elegíveis para o tratamento, conforme as recomendações nacionais estabelecidas a partir de recomendações da OMS, podem ter acesso “gratuitamente” às multiterapias contra a Aids. A mutação do GPA da OMS e a quase ausência de diretoria no CNLS camaronês em 1997 fortaleceram o sentimento de afastamento de Camarões com relação ao que estava em jogo no momento após Vancouver. De fato, em 1997, durante o período de vacância da presidência, o CNLS foi dirigido pela Diretoria de Saúde Comunitária (chamada mais tarde de Diretoria da Luta contra a Doença). O Unaids, criado em 1996 em Genebra, enviou seu primeiro representante a Yaoundé apenas no ano de 2000. III.2.2. Uma multinacional no debate de saúde pública Em 1999, foi a maior empresa privada do país que orientou e impôs novas perspectivas ao debate sobre o acesso aos ARVs. A empresa Alucam/Socatral, sediada em Edéa, havia iniciado em 1997 um programa de prevenção do HIV para seus funcionários e a comunidade do entorno de seus empreendimentos, além de garantir atendimento médico gratuito para as pessoas afetadas (funcionários e familiares). Esta empresa requereu ao governo autorização para lançar um programa piloto de tratamento com ARVs dirigido a essas pessoas. O Ministério da Saúde viu-se diante de um dilema: o da equidade. Como aceitar que algumas pessoas recebessem o tratamento numa empresa privada, sem que o resto da população se beneficiasse 214 Esta parte reproduz e sintetiza o artigo de F. Eboko, “A l’articulation du national et de l’international: bref historique de laccès aux antirétroviraux au Cameroun”, in F. Eboko, C. Abé, C. Laurent [26]. 268 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas também de um acesso equivalente? Finalmente, depois de muitos debates, a Alucam conseguiu a autorização e o Ministro da Saúde em pessoa participou do lançamento do projeto “Tricam” (“Triterapias em Camarões”), fruto de uma colaboração científica e técnica entre a equipe do Centro Médico das Empresas da Sanaga (clínica da Alucam) e a equipe do professor Rozenbaum (Hospital Rothschild, Paris). Na ocasião, a Alucam deu uma reviravolta completa em sua política de comunicação sobre a questão do HIV: vista até então como potencialmente estigmatizante para a imagem até mesmo da empresa, a questão do HIV representava, por meio do “Tricam”, a oportunidade de a empresa afirmar que pretendia não poupar esforços para preservar seu “capital humano”. Filial do grupo Pechiney que despachou o n. 2 de sua hierarquia para a cerimônia de lançamento do programa, a Alucam seria inspiradora, no setor privado, de uma dinâmica propícia à tomada de consciência por muitas empresas de Camarões. III.2.3. Mobilização internacional e queda dos preços dos ARVs O ano de 2000 ofereceu novas oportunidades para o programa camaronês, em particular para o acesso aos ARVs. Em vez de se orientar exclusivamente para o programa “Access” implantado por uma parceria negociada entre organizações da ONU (OMS, UNAIDS etc.) e as multinacionais farmacêuticas em âmbito mundial, Camarões apareceu como um dos primeiros países africanos que se empenhou em aproveitar o advento dos genéricos. As análises econômicas retrospectivamente efetuadas confirmariam sua escolha: as maciças quedas dos preços dos ARVs de primeira linha, condição necessária para a expansão dos tratamentos para a Aids na África, não poderiam ter sido obtidas unicamente por meio de negociações internacionais com as firmas detentoras das patentes na ausência de pressão da concorrência introduzida pela entrada dos genéricos nos mercados. Ao mesmo tempo, no dia 12 de setembro de 2000, o primeiro-ministro da época apresentou um plano estratégico de emergência ao governo e seus parceiros (Unaids e Banco Mundial especialmente) para o período de 2000 a 2005. Camarões iniciou, então, de maneira concreta, o processo de descentralização do acesso aos ARVs. O ministro da Saúde Pública, nomeado em 2000, transformou a presidência do Grupo Técnico Central (GTC) do Comitê Nacional de Luta contra a Aids (CNLS, sigla em francês) em Secretaria Permanente. Seguindo a mesma lógica, o ministro criou e designou Centros de Tratamento Habilitados (CTA, sigla em francês) para o atendimento com ARVs para PVHA.215 Entre 2000 e 2001, a introdução de genéricos e a disponibilização de ARVs a preço de custo na farmácia do Hospital Laquintinie de Douala (HLD) e do Hospital Central de Yaoundé (HCY) provocaram um forte aumento da demanda por parte dos pacientes (50% por mês no HCY, em 2001). No final do ano de 2001, o número 215 Decretos ministeriais n. 0178/DMSP/CAB e n. 0190/D/MSP/CAB. Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 269 de pacientes no HCY havia quintuplicado [9-10] e mais de 500 pacientes haviam iniciado tratamento no Hospital HLD.216 Antes das primeiras quedas de preço, algumas centenas de pacientes seguiam oficialmente o tratamento ARV ao custo aproximado de US$1.000 por mês e por pessoa. Em abril de 2001, a redução dos preços dos ARV, devida também à iniciativa Access, se tornou uma realidade em Camarões com custos residuais para os pacientes 5 a 10 vezes inferiores. III.2.4. Jogos e desafios internacionais acerca do acesso a ARVs em Camarões Quatro decisões políticas e econômicas importantes iriam mais tarde favorecer a expansão das multiterapias para a Aids no país, a partir da década de 2000. A primeira decisão do dia 4 de abril de 2001, já mencionada, era um protocolo de acordo com o representante do laboratório Merck, Sharpe & Dhome (MSD) habilitado para representar esse laboratório e quatro outras empresas farmacêuticas. Este protocolo cujas modalidades permaneceram confidenciais, resultou numa declaração pública: nessa data, o preço de uma triterapia era reduzido em mais de 90% em relação ao preço anterior. Além da importação dos genéricos por intermédio do laboratório indiano Cipla, Camarões alcançava um equilíbrio entre o acordo sobre os Direitos de Propriedade Intelectual relativos ao Comércio (Trips/Adpic) da OMC de que o país é signatário e as prioridades de saúde pública estabelecidas pelo governo. Nessa ocasião, o custo mensal para o paciente chegava a menos de FCFA 70.000 (107 euros) para um tratamento de primeira linha. Decisões ministeriais ligadas a parceiros internacionais possibilitariam mais tarde quedas regulares do custo dos tratamentos para os pacientes. No âmbito das rodadas do Fundo Global, a subvenção pública aos medicamentos ARVs resultou, finalmente, desde o dia 1º de maio de 2007, na gratuidade do acesso ao tratamento ARV. Os financiamentos oriundos da iniciativa “Unitaid” se somaram a esses recursos. A consequencia foi uma aceleração do crescimento do numero de pessoas sob tratamento antirretroviral (Figura 1). Na República de Camarões, a estimativa era, no final de 2009, de 75.000 PVHA elegíveis para tratamento imediato com ARVs (na base do critério da OMS na época, recomendando o tratamento sistemático das pessoas infectadas, apresentando uma contagem de CD4 inferior ou igual a 200/mm3) e o programa nacional havia conseguido uma taxa de cobertura de 46% das necessidades estimadas [16], levemente superior à média da África subsaariana. Em junho de 2010, a cobertura dos pacientes recebendo ARV na República de Camarões foi estimada em 50%. Camarões propõe um modelo particular que deve ser inscrito dentro de um debate econômico e político mais amplo no plano internacional [15,16,17]. 216 Fonte: Jean-Baptiste Guiard Schmid, Conferência Internacional sobre a Aids e as Doenças Transmissíveis (CISMA, sigla em francês), Ouagadougou, 2001. 270 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Figura 1. Aumento do número de pessoas sob tratamento antirretroviral na República de Camarões entre 2005 e 2008 55 000 50 005 50 000 45 000 45 605 40 000 37 081 35 000 29 198 30 000 23 838 25 000 20 000 17 156 28 403 20 393 15 000 10 000 11 769 julho 2005 dezembro 2005 março 2006 junho 2006 dezembro 2006 março 2007 junho 2007 dezembro 2007 março 2008 Fonte: Comitê nacional de luta contra a Aids, para o acesso universal aos tratamentos e cuidados para adultos e crianças, relatório de progresso, no 10, Yaoundé, 2008. IV. Conclusão: os desafios a serem enfrentados O exemplo de Camarões ilustra a passagem de um padrão de resposta política para outro mas permite, ao mesmo tempo, lembrar que o programa de descentralização do acesso aos ARVs foi alimentado pela mobilização das redes de médicos mais do que pela mobilização social de grande amplitude ou pela liderança política voluntarista, exceto em alguns casos ( Botsuana, Uganda, Senegal). A segunda ótica evidencia a adaptação de uma resposta política já elaborada para o desafio do acesso aos ARV. É o caso da “participação ativa” (Senegal, Uganda etc.) dos países que conduziram uma ação pública já ampliada antes da expansão do tratamento. O caso de Botsuana representa uma postura inédita, situada entre uma liderança proativa, ofensiva e, em contraste, uma mobilização associativa bastante fraca. No entanto, os resultados em matéria de cobertura do acesso aos ARVs não são um simples reflexo do tempo de mobilização política. O acesso aos ARVs representa de fato a continuidade da luta contra a Aids mas também, e acima de tudo, um marco significativo de questões específicas. A situação dos sistemas de saúde se tornou um elemento mais crucial que durante o período do “tudo pela prevenção” (1986-1996). Essa variável deslocou o cursor da política pública para atores situados dentro do sistema de saúde e fora dele. Nesse último caso, trata-se de “mediadores adicionais” [16] que podem ser empresas privadas locais, laborató- Capítulo 14. Determinantes sociopolíticos do acesso a ARVs na África 271 rios farmacêuticos, associações nacionais e/ou internacionais ou, ainda, personalidades políticas de alto escalão exercendo uma liderança voluntarista [18], como é o caso de Festus Mogae em Botsuana [15]. Em outro registro, Camarões e seu programa de descentralização do acesso ao tratamento do HIV/Aids manifestam um impulso desconhecido durante as duas primeiras décadas da luta contra a Aids [26]. Com essa nova configuração da ação pública contra a Aids, as variáveis ligadas ao mapeamento sanitário do território nacional se tornaram especialmente importantes. Os países onde as estruturas políticas estavam mais falidas eram os mesmos onde o atendimento dos pacientes era menos coerente, dividido entre os diferentes atores (associativos, privados, públicos, nacionais, internacionais etc.). Os desafios internacionais e o perigo anunciado da diminuição eventual dos financiamentos internacionais devem suscitar a maior vigilância. Frear a evolução da cobertura do acesso aos ARV na região mais afetada pela epidemia não seria somente um drama africano; seria uma catástrofe mundial. Raros são os desafios que ligam tanto a África ao resto do mundo; essa mobilização é menos questão de solidariedade do que de bom senso e pragmatismo. Referências bibliográficas 1. ONUSIDA. Le point sur l’épidémie de Sida, 2009, ONUSIDA, Genève, décembre. 2. EBOKO, F.; NEMECKOVA. Aids-Challenge to health Security in Africa: Politics in Africa and Case Study on Botswana. In: BRAUCH, H. G. et al., Globalisation and Environmental Challenges: Reconceptualising Security in the 21st century, Berlin-Heidelberg-New York, Springer-Verlag : 539-562, 2009. 3. EBOKO, F. Botswana, Cameroun: deux approches dans l’accès aux antirétroviraux. 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Mémoire DESS «Coopération et Développement»: Université Paris I – Panthéon Sorbonne, Département de Science politique (sous la direction de Richard Banégas et Fred Eboko), 118 p., 1998. 9. PUTZEL, J. Histoire d’une action d’Etat : La lute contre le Sida en Ouganda et au Sénégal. In: DENIS, P.; BECKER C. (eds.) L’épidémie du Sida en Afrique subsaharienne. Regards d’historiens, Paris, Karthala (coll. “Espace Afrique”): 245-270, p. 261, 2006. 10. SEYTRE, B. Sida: les secrets d’une polémique, Paris, Presses Universitaires de France, 1993. 11. DESCLAUX, A.; LANIECE, I.; NDOY, I.; TAVERNE, B. Sciences sociales et Sida. L’Initiative sénégalaise d’accès aux antirétroviraux. Analyses économiques, sociales, comportementales et médicales, Paris, ANRS, coll: 260 p., 2002. 12. BENKIMOUN, P. Botswana: une “success story” économique assombrie par le Sida. Le Monde, “Economie”, “L’Afrique noire revendique sa renaissance”, numéro spécial, 25 juin 2001, p. 3. 13. 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Evaluation de l’expérience camerounaise, Paris, ANRS (coll. “Sciences sociales et sida”), 324 p., 2010. 274 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas CAPÍTULO 15 Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana: implicações na disponibilidade local de medicamentos Mamadou Camara Cristina d’Almeida Benjamin Coriat Resumo: Esse capítulo identifica e descreve vários modelos de aquisição de antirretrovirais (ARVs), baseando-se em dados de campo coletados em cinco países da África Subsaariana. Esses modelos revelam os limites impostos às instituições encarregadas do abastecimento, levando em consideração principalmente as origens e as fontes de financiamento, as condicionantes a elas associadas, bem como a natureza e a autonomia das centrais de aquisição. São analisadas e esclarecidas as ameaças para o futuro desses modelos, especialmente em razão do fortalecimento das imposições de propriedade intelectual, mais acentuadas nos anos posteriores a 2005. Palavras-chave: modelos de abastecimento, antirretrovirais genéricos, propriedade intelectual, recursos externos, aquisição de medicamentos. I. Introdução A partir da década de 2000, a maioria dos governos africanos tem lançado iniciativas nacionais em matéria de acesso aos ARVs. Esses programas públicos de organização da aquisição e da distribuição de ARVs são estabelecidos em cooperação com os doadores e agências internacionais. A ascensão desses programas nacionais de luta contra a Aids marca uma renovação das políticas de abastecimento de medicamentos nos países aqui analisados. As políticas de abastecimento estabelecidas217 buscariam se organizar, a partir de então, em torno de dois objetivos: por um lado, a vontade de generalizar a autonomia de gestão das centrais de compra para aumentar sua eficácia e, por outro lado, quando possível, favorecer a seleção de fornecedores de medicamentos priorizando os genéricos. Essa nova política de abastecimento incluindo os ARVs viria aos poucos modificar a composição da oferta de medicamentos disponíveis, em relação estreita com a implementação dos programas nacionais de acesso aos ARVs. No entanto, mesmo se alguns progressos são observados, muitos problemas ainda subsistem. Particularmente, a implantação da nova política enfrentou certa instabilidade das cadeias de abastecimento e distribuição, acarretando consequências notáveis sobre a disponibilidade de ARV. Os problemas encontrados são relacionados à variedade (natureza e quantidade das moléculas presentes no território analisado) e aos preços (variações de preço dos diferentes regimes terapêuticos, em função de sua composição molecular e do fato de as moléculas serem ou não patenteadas nos países analisados). A partir de uma metodologia combinando pesquisas bibliográficas, estudo de documentos institucionais e dados de campo colhidos junto aos atores, esse capítulo, prolongamento de trabalhos oriundos de pesquisas publicadas pela equipe do CEPN [3, 4 e 5], propõe uma reflexão sobre cinco países da África Subsaariana: Mali, Senegal, Burkina Faso, Guiné e Camarões.218 O capítulo é dividido em três seções. A primeira apresenta e descreve os diferentes modelos de abastecimento em ARVs nos países considerados, segundo seus modos de implantação a partir dos anos 2000. A segunda seção evidencia o papel crucial dos financiamentos externos no funcionamento dos modelos nacionais de aquisição e mostra como esses padrões são sujeitos à uma dependência multiforme. Enfim, a terceira seção debate as implicações desses modelos sobre a disponibilidade de ARVs nesses países. II. Os modelos de abastecimento e seu modo de governança A partir dos anos 2000, a maioria dos governos dessa região lançou iniciativas nacionais de acesso aos ARVs. Estes eram programas públicos, com o objetivo de 217 O seminário de Dakar constitui um documento de referência[1]. Ver também [2]. 218 Após uma fase de pesquisa prévia, esses países foram escolhidos porque, apesar de pertencerem à mesma zona geográfica, eles apresentam experiências e modelos diferentes em matéria de política de aquisição de medicamentos e de luta contra a Aids. Um estudo de campo foi efetuado em cada um desses países, baseado na mesma metodologia e focado em entrevistas semidirigidas com os atores principais encarregados da concepção ou da implantação da política de aquisição. 276 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas organizar a aquisição e a distribuição de ARVs. Com o fortalecimento desses programas de acesso, o número de pacientes tratados aumentou drasticamente de algumas centenas para vários milhares.219 Até meados da década de 1990 e, em alguns casos, até seu fim, os sistemas de abastecimento de medicamentos desses países eram caracterizados por uma multiplicidade de organizações oriundas do setor público, privado ou associativo, que utilizavam circuitos de aquisição muito variados. Essa situação insatisfatória criava inúmeras dificuldades e a necessidade de racionalização se tornou premente. O objetivo dessa racionalização era transformar as centrais de compras em elemento central do sistema de aquisição e distribuição de medicamentos, com uma autonomia de gestão efetiva, considerada como garantia de eficiência. Era imprescindível incentivar a cooperação das novas instituições com os atacadistas privados, por meio, especialmente, dos comitês paritários, e fornecer os meios para tanto. Foi também recomendado que as várias centrais harmonizassem suas modalidades de licitação, a fim de possibilitar uma pré-seleção comum dos fornecedores e incentivar a produção nacional e regional, por meio de aquisições junto a empresas locais de, pelo menos, 15% do total das aquisições. No entanto, quase uma década após o início dessas políticas, temos que constatar a inexistência, nessa região da África, de um padrão de organização de referência, que atendesse aos objetivos e critérios citados. Graças à cooperação com a União Europeia e o Japão, podemos observar atualmente, na maioria desses países, uma organização centralizada encarregada do abastecimento de medicamentos, mas, na prática, essas estruturas apresentam grandes diferenças de um país a outro. O Quadro 1 mostram as várias características observadas. 219 No Mali, por exemplo, o número de pacientes em tratamento antirretroviral passou de 200 para quase 8.000 entre 2001 e 2006; em Camarões, de 9.000 para 22.000, entre 2003 e 2006, e para quase 75.900, em 2009; no Burkina Faso, pulou de 300 para quase 11.000, entre 2001 e 2006. Para uma avaliação mais completa do número de pessoas nessa região, ver um estudo da OMS, de novembro de 2009, que descreve detalhadamente a cobertura oferecida por vários países no que se refere aos ARV. Ver https://www.who.int/hiv/pub/tuapr_2009_fr.pdf Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 277 Projeto oriundo da cooperação entre a Bélgica, a União Europeia e Camarões, agora sociedade de economia mista Estabelecimento público a caráter Industrial e Comercial (EPIC) EPIC Associação privada sem fins lucrativos EPIC CENAME República de Camarões Farmácia Central da Guiné : PCG Senegal Farmácia Nacional de Abastecimento : PNA CAMEG- Burkina Farmácia Popular do Mali : PPM Fonte: Camara et al. (2008). Estatuto jurídico Nome da estrutura de abastecimento e país Não tem autonomia de gestão. Autonomia de gestão com controle assegurado por um conselho administrativo incluindo: Estado, parceiros do desenvolvimento e grupos de prescritores e usuários. Autonomia de gestão Controlado pelo Estado da Guiné. Autonomia de gestão desde 1995. Autonomia de gestão Modalidades de controle Existência de um setor privado de atacadistas distribuidores representando uma pequena parte do total das importações, mas distribuindo 90% da produção local dos outros medicamentos Monopólio das importações de ARV desde 2001 em colaboração com o PNUD que compra os ARV e os disponibiliza para a distribuição. Monopólio para a importação dos ARV por meio de licitações e de contratos consensuais. Abastece o setor público e associativo. No âmbito de uma parceria com a União Europeia e o sistema das Nações Unidas, a PPM se tornará o foco principal do novo sistema de abastecimento em ARV e medicamentos para as infecções oportunistas. Não existe monopólio para a importação dos outros medicamentos; ela também é assegurada por, mais ou menos, 20 atacadistas. Existência de um circuito privado de atacadistas importadores de outros medicamentos. Não tem o monopólio das aquisições de medicamentos nem da sua distribuição. Ponto central do sistema de distribuição dos ARV. Não existe monopólio de importação dos outros medicamentos Existência de um circuito informal e de um circuito privado. Sistema consensual entre o PNLS e os fornecedores externos. A PNA está fora do circuito de abastecimento em ARV. A Farmácia Central de Fann é o ponto importante da distribuição de medicamentos Centralização das aquisições de ARV na farmácia do hospital de Fann O abastecimento do setor privado é assegurado por atacadistas. Abastece o setor público em medicamentos essenciais O papel principal para as aquisições de ARV (para o programa nacional) pertence à UNICEF. Programa prévio, aquisição de ARV pelo sistema de contrato consensual e na modalidade de pagamento pós venda. Não constitui o ponto central do sistema de distribuição. Papel marginal para a importação dos ARV Continuação de um circuito de abastecimento paralelo para a educação sanitária confessional Ponto central no sistema de distribuição dos ARV Monopólio de importação de ARV Papel no sistema nacional de abastecimento de medicamentos Processos de licitações, pré-seleção e seleção a partir de uma lista reduzida, mas Modalidades de aquisição dos ARV Quadro 1: Perfil institucional das estruturas de abastecimento em ARV de Camarões, Guiné, Senegal, Burkina e Mali Para ressaltar os traços comuns e as diferenças entre as várias estruturas implantadas, podemos observar as observações que se seguem. A autonomia de gestão aparece como um fator comum, já que todas as centrais de compras – exceto no Mali – a possuem. Fazendo uso dessa autonomia e cumprindo sua missão de serviço público, as centrais devem cobrir a totalidade dos custos de aquisição e de gestão com os recursos provenientes da venda dos medicamentos. No entanto, segundo os dados do Quadro 1 apresentando as características essenciais do perfil institucional das centrais, constatamos que, no Senegal e na Guiné, e também no Mali, ainda que em menor grau, a central de abastecimento possui um papel apenas marginal no processo de aquisição de ARVs. Essa situação se deve, no caso do Senegal, à implantação pelo CNLS de um mecanismo específico, utilizando um suporte logístico nacional original (a Farmácia do Hospital de Fann220); em outros casos, a causa reside no papel de aquisição e estocagem de medicamentos, desempenhado por um organismo “externo”; é o caso na Guiné, onde esse papel cabe à Unicef, e no Mali, onde o papel de central de compras pertence ao PNUD). Nos casos de Burkina e Camarões, as centrais estabelecidas localmente efetuam as aquisições de ARVs. Elas detêm o monopólio de importação e lançam licitações internacionais periódicas para selecionar os fornecedores. No que diz respeito à disponibilidade local de ARVs, cada tipo de configuração apresenta vantagens e desvantagens. Seria lógico imaginar que uma central com estatuto de EPIC (Estabelecimento Público Industrial e Comercial) é, em princípio, mais adequada para a consecução e aplicação dos objetivos estabelecidos pela política farmacêutica nacional do que uma central com estatuto de associação privada, obrigada a cumprir metas de rentabilidade mais severas. Na prática, no entanto, as centrais públicas não possuem recursos humanos e logísticos suficientes e, sendo consideradas incapazes de administrar de maneira eficaz os programas, são muitas vezes “dribladas” por outras operadoras.221 Às vezes, como no caso do Mali, as autoridades preferem (ou são obrigadas a) apelar para um mecanismo específico ou organismo externo para administrar a cadeia de abastecimento. Em outros casos, como, por exemplo, Camarões ou Burkina Faso, onde as centrais possuem o estatuto de sociedade de economia mista ou de associação privada, não existe relação de subordinação entre as centrais e o CNLS (ou o Ministério da Saúde). A relação é “simples”, do tipo mandatário/mandante. O CNLS desempenha o papel de mandatário e a central, o de mandante encarregado por mandato oficial”... de comprar ARVs de qualidade a preços acessíveis para a maioria da população...”. 220 Este hospital adquire e armazena medicamentos para o CNLS. 221 Algumas vezes, como no caso do Mali, as centrais dotadas de um estatuto público (Epic) solicitaram junto à autoridade de tutela recursos adicionais para profissionais capacitados, equipamentos e recursos financeiros, a fim de integrar a gestão dos ARVs a seu dispositivo. No entanto, os financiamentos provêm de parceiros externos e são alocados segundo linhas orçamentárias fora do controle do CNLS ou do Ministério da Saúde, o que explica o fato de esses não terem podido ou querido disponibilizar os meios solicitados por essas centrais. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 279 Em geral, entretanto, mesmo se o padrão focado sobre uma autonomia verdadeira e um monopólio de importação (como pode ser observado em Camarões, por exemplo) apresenta algumas contradições, ele parece cumprir seu papel de maneira adequada. A principal vantagem dessas fórmulas consiste no caráter parapúblico da estrutura, aplicando uma taxa de margem única, moderada e prefixada, quaisquer que sejam os medicamentos considerados.222 Ao contrário, o estatuto jurídico de associação privada, da qual o Estado é apenas uma das partes, não é sempre compatível com os objetivos de saúde pública, caso não seja estabelecida uma relação sólida, quase de subordinação, entre o mandatário e o mandante. O caso de Burkina Faso constitui um excelente exemplo, pois, antes de 1999, a central de compras de medicamentos do país não tinha julgado necessária uma oferta diversificada e a baixo custo dos ARVs. Seguindo uma lógica estritamente comercial, só um dos ARVs oferecidos pela central constava da lista de medicamentos essenciais. Obedecendo a uma diretriz das autoridades, a estrutura iniciou uma política de diversificação de suas aquisições. No caso de Camarões, até 2006, a Cename funcionou sem estatuto jurídico definido. Seus recursos eram provenientes de financiadores internacionais e do governo [6]. Desde 2007, possui o estatuto jurídico de “sociedade mista”, com uma ampla autonomia de gestão. Como contrapartida à essa autonomia e cumprimento de sua missão de serviço público, a central deve cobrir a totalidade de seus custos de administração com os recursos provenientes da venda de medicamentos. As primeiras aquisições de ARVs foram feitas pela Cename em 2000 e só contemplaram ARVs de primeira linha. Em resumo, a ausência de instituições públicas dotadas de recursos humanos e financeiros suficientes provocou, nos países analisados, uma dependência de parceiros externos, sobretudo, de dispositivos institucionais de luta contra a Aids. Na seção seguinte, vamos apresentar uma análise das implicações relacionadas a essa dependência. III. Programas caracterizados por uma grande dependência de recursos externos Segundo dados da OMS [7], confirmados pelo estudo de Muthuri-Kirigia e DiarraNama [8], o sistema de saúde da região da África é o mais dependente de recursos financeiros externos (10,2% do total dos gastos com saúde em 2005, contra 2,1% 222 A taxa de margem aplicada atualmente pela Cename sobre os ARVs em Camarões é de 14%. Ela visa a cobrir as despesas estruturais da central, bem como garantir sua independência. 280 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas no Sudeste Asiático e apenas 1,2% nos países mediterrâneos). Essa dependência, 20 vezes maior que no conjunto das regiões em 2005 (10,2% contra 0,4%), cresceu no decorrer dos anos 2000 devido à pandemia da Aids.223 No caso dos países considerados, essa dependência é ainda mais significativa. Tabela 1 – Participação dos recursos externos no total das despesas com a saúde 2001 2002 2003 2004 2005 Burkina Faso 13,6 14,5 20,4 26,7 29,5 Camarões 4,8 5,9 5,7 5,2 5,3 Guiné 7,8 7,4 6,5 8,2 12,2 Mali 17,8 14,8 11,7 13,8 15,6 Senegal 16,5 15,9 13,2 12,7 13 Média 12,1 11,7 11,5 13,32 15,12 Fonte: WHO Statistical Information System (WHOSIS), acessível em http://who.int/whosis/en/ Assim, como indicam os dados da Tabela 1, a taxa de dependência financeira externa para os países considerados é muito superior àquela do conjunto da região da África (15,12% contra 10,20%, em 2005). No entanto, trata-se de um fenômeno mais acentuado nos países que apresentam forte prevalência do HIV, como Burkina Faso, a Guiné e, em menor grau, Camarões. Em termos de evolução, o Mali e o Senegal, apesar de parecerem mais dependentes que Camarões e a Guiné, iniciam um processo contrário, apontando para um fortalecimento da capacidade nacional. No caso do Mali, esse esforço é sustentado por despesas públicas, enquanto, no Senegal, ele provém essencialmente das despesas familiares privadas. No caso específico da Aids, os recursos nacionais investidos eram muito reduzidos até o fim dos anos 1990 e provinham essencialmente dos fundos PPTE. Após esse período, os recursos internacionais foram diversificados, com o Fundo Global e o Banco Mundial desempenhando o papel principal. A Tabela 2 apresenta suas contribuições respectivas.224 223 Em todas as outras regiões em desenvolvimento – exceto os países do Mediterrâneo –, essa dependência financeira diminuiu no decorrer do mesmo período. 224 Para um estudo mais detalhado do investimento do Banco Mundial, ver [9]. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 281 Tabela 2 – Estrutura dos financiamentos internacionais dirigidos à luta contra Aids Países Contribuições do fundo global em milhões de US$ (20032007) e (em % do total) Contribuições do Banco Mundial em milhões de US$ (2001-2007) e (em % do total) Total em milhões de US$ Burkina Faso 47,1 (38,6) 74,7 (61,4) 121,8 Camarões 76,0 (60,3) 50 (39,7) 126 Guiné 14,2 (41,2) 20,3 (58,8) 34,5 Mali 52,3 (67,2) 25,5 (32,8) 77,8 Senegal 23,5 (43,9) 30 (56,1) 53,5 Fonte: Banco Mundial (2008) “L’engagement de la Banque Mondiale face au VIH/SIDA en Afrique” extraits des quadrox Pages 91-92. Podemos observar certa divisão do trabalho no financiamento dos programas nacionais de luta contra a Aids. Os recursos disponibilizados pelo Banco Mundial são, em geral, dirigidos à prevenção e os do Fundo Global, às aquisições de ARVs. Os dados da Tabela 2 mostram que dois países, Camarões e o Mali, obtiveram mais recursos do Fundo Global do que do Banco Mundial, US$ 76 milhões contra 50 e 52.3 milhões contra 25.5, respectivamente, ao contrário de Burkina Faso, Guiné e Senegal. Todavia, convém ressaltar que, mesmo que esses dois organismos tenham mantido o papel de principais financiadores dos programas de luta contra a Aids nos países analisados, outros agentes participaram desse financiamento225 em outros níveis, principalmente no da gestão das compras de ARVs. Além da dependência financeira observada, os recursos, tanto tangíveis quanto intangíveis, necessários à implantação de PNLS eficientes são tão amplos e complexos que exigem, no caso desses países, cooperações múltiplas e multifacetadas. O quadro 2 ilustra os diferentes tipos de cooperação e parceria observados na região. 225 No caso de Camarões, podemos observar que o programa desse país possui três fontes essenciais de recursos provenientes de financiadores internacionais e, mais recentemente, de uma quarta fonte. Trata-se de: (i) recursos do fundo global de luta contra a Aids, a tuberculose e a malária, dirigidos essencialmente para as aquisições de ARVs; (ii) recursos PPTE do Banco Mundial destinados às estratégias de prevenção; (iii) recursos da Agência Internacional de Desenvolvimento (IDA, sigla em inglês) para aquisição de material de diagnóstico e testes laboratoriais. Desde 2008, Camarões conta também com recursos da Unitaid, com os quais a fundação Clinton adquire para o país ARVs de segunda linha. Ver [6]. 282 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Quadro 2 – A dependência multidimensional externa dos sistemas de abastecimento dos países da África francófona Modalidades de financiamento das aquisições de ARV : Organismo encarregado das aquisições Origem dos produtos adquiridos Banco Mundial: 6 países, incluindo Camarões, Mali, Senegal (fundo PPTE) e Guiné (MAP) UNICEF : 4 países, RCA, Guiné, Tchad, Togo Produtores de genéricos (país em desenvolvimento): em todos, particularmente: Burkina, Camarões, Guiné Fundo Global: 18 países, incluindo Camarões PNUD : Mali (2006) Sociedades Farmacêuticas: todos (somente quando não ha disponibilidade de produtos genericos no mercado, em particular, Senegal e Gabão) Orçamento nacional : 11 países Central nacional: 12 países incluindo Burkina e Camarões Produção nacional de ARV: nenhum país francófono é produtor de ARV apesar da futura eventual produção do Gabão Recursos próprios da CNA : 4 países; Burkina, Camarões, Ruanda, Togo Outros: associações em 2 países (Madagascar e Nigéria) Produção regional: apesar do desejo de instituições regionais, como a CEDEAO, de mobilizar recursos para uma produção regional, nenhum projeto regional foi concretizado até hoje. Outros: PEPFAR (2 países), União Européia (3 países), Esther (2) PNLS: 4 países incluindo o Senegal Fonte: Elaborado com base de dados de pesquisa e daqueles fornecidos pelo artigo de Boisseau, Degui, Brunetton et Rey (2006): “Difficultés d’Accès aux Antirétroviraux dans les pays d’Afrique Francophone: état des lieux en 2004” em Médecine tropicale n. 66, P 589-592. de Camara et al. (2008). Na maioria dos casos, essas cooperações, que contribuem para disponibilizar recursos adicionais (tangíveis ou intangíveis) para os atores locais, impõem suas próprias condicionalidades (normas e protocolos de implantação, relatório periódico etc.). Assim, a dependência financeira se traduz em um conjunto de condições múltiplas que se sobrepõem umas às outras.226 Num estudo anterior [6], mostramos detalhadamente, no caso de Camarões, como uma mudança (ocorrida a partir de 2007) nas modalidades de financiamento das aquisições de ARVs por parte de atores nacionais produziu um efeito em cascata sobre toda a cadeia de distribuição. Em particular, um dos resultados dos acordos concluídos é a imposição feita aos atores locais de delegar as aquisições de ARVs à uma central não nacional (subordinada ao Pnud, à Unicef, dentre outros). Essas centrais, por sua vez, devem abastecer- 226 Assim, por exemplo, analisando os dois financiadores principais, ou seja, o Fundo Global e o Banco Mundial, cada um exige que os recursos alocados sejam administrados por organizações próprias e segundo regras distintas, específicas de cada uma dessas entidades. São os CCM (Country Coordinating Mechanism) para o Fundo Global, as NAC (National Aids Country) para o Banco Mundial. Para os atores locais, essas regras diferentes se sobrepõem e dificultam muito a implantação dos programas. Ver [13]. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 283 -se de medicamentos patenteados ou pré-qualificados pela OMS, o que, inevitavelmente, tem um forte impacto sobre a disponibilidade local de medicamentos. O caso da Guiné ilustra muito bem a importância e a gravidade das consequências que a situação de dependência dos atores locais pode ter sobre o acesso ao tratamento [3, 5]. A ausência de recursos financeiros e, portanto, de centros de poder e de decisão independentes em escala nacional constitui um dos fatores essenciais a explicar porque, no país, até 2002, o acesso a ARVs foi muito limitado para os pacientes, ainda que esses medicamentos – adquiridos pela farmácia central – estivessem disponíveis no mercado nacional. Isso pode ser explicado pelo fato que, até essa data, a maioria das instituições internacionais atuando no país concentrava seus esforços mais em prevenção do que em tratamento.227 Assim, os recursos externos, únicos capazes de atender a demanda interna, não eram destinados às aquisições de ARVs. Mais tarde, quando se resolveu estabelecer uma política de tratamento, a situação não melhorou muito. De fato, vários fatores (provável existência de corrupção, ausência de política farmacêutica bem definida etc.) desestimularam a liberação direta para o governo da Guiné, por parte do Fundo Global e do Banco Mundial, de recursos dirigidos à aquisição dos ARVs necessários ao bom funcionamento do PNLS. A Unicef foi incumbida dessa missão. A instituição desempenhou, assim, o papel de intermediário entre os fornecedores de ARVs e o programa público de acesso a esses medicamentos. A tutela sobre as aquisições públicas de ARV então observada tornou o acesso aos medicamentos fortemente dependente da política de compras da Unicef. Na prática, foram as rotinas e os protocolos dessa organização para as aquisições que determinaram a evolução da estrutura dos ARVs disponíveis no país, situação que deve prosseguir nos próximos anos. A complexidade das estruturas e dos mecanismos aqui expostos tem efeitos bem visíveis sobre a disponibilidade de ARVs nos vários países analisados. IV. Padrões de aquisição e disponibilidade em ARV Com base nos dados colhidos sobre os cinco países examinados, podemos definir e comparar três modelos de aquisição de ARVs. Esses “modelos” refletem as limitações enfrentadas pelas instituições encarregadas do abastecimento, levando em 227 Os primeiros grupos de doentes a receber tratamento ARV apareceram com a chegada de ONGs, como GTZ (Alemanha) e Médicos Sem Fronteiras (Bélgica). Tendo em vista os resultados animadores obtidos com esses tratamentos e a pressão exercida pelas associações de doentes, a Unaids e o Banco Mundial resolveram finalmente financiar um programa público de aquisição de ARVs, com uma condição: as encomendas do comitê executivo do CNLS deveriam passar pela Unicef, que recebeu, então, um mandato para a compra de ARVs para o governo da Guiné. 284 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas conta, particularmente, as origens e as fontes de financiamento, as condições associadas, bem como a natureza e a autonomia das centrais de compra. IV.1. O modelo “focado nas especialidades”228 O primeiro modelo analisado é do tipo “focado nas especialidades”, assim denominado para indicar que as forças em jogo na governança incitam a compra de medicamentos, sobretudo os de especialidades, os quais são, em geral, patenteados. Ainda hoje,229 o Senegal constitui o melhor exemplo desse modelo, caracterizado por uma predominância de ARVs fornecidos por grandes empresas farmacêuticas e alguns genéricos provenientes de país em desenvolvimento. Em julho de 2004, a oferta de ARVs era muito pouco diversificada no Senegal e abarcava mais medicamentos de especialidades de grandes empresas farmacêuticas do que genéricos [5]. A lista de medicamentos disponíveis era muito reduzida.230 Essa oferta era caracterizada pela predominância de ARVs de especialidades, fortemente dominada pelos laboratórios GSK e Merck, e uma penetração muito fraca de genéricos no mercado. Um único produto do laboratório Aurobindo era distribuído, enquanto Ranbaxy e Cipla invadiam o mercado dos países vizinhos, como Burkina Faso. A adoção desse modelo de abastecimento pelo Senegal remete ao fato de o país ter sido um dos que, na África subsaariana, aderiu de maneira mais precoce e decidida à iniciativa Access. Nesse modelo, a operadora central (papel desempenhado pelo Hospital Fann e não pelo PNA, como já mencionado) negocia diretamente as aquisições de medicamentos com as empresas farmacêuticas participantes do Access, algumas delas já implantadas no território Senegalês, por meio de filiais. Conforme alguns especialistas do comércio local, a presença de filiais dos maiores grupos farmacêuticos e o controle que eles exercem sobre a indústria farmacêutica local explicam provavelmente as dificuldades enfrentadas pelos produtores de genéricos de país em desenvolvimento para penetrar no mercado de ARVs no Senegal. O fato de essas filiais (no caso, Cophase, Laborex e Sodipharm) participarem de licitações públicas para a importação das especialidades cria um proble228 Especialidades são aqui definidas como medicamento de marca. Por tratarem-se de medicamentos inovadores (ou seja, são os primeiros a serem disponibilizados no mercado), estes produtos são, em geral, patenteados, caso a legislação nacional assim o permita. 229 Essa precisão tem aqui um valor duplo. Ela indica que os países não são eternamente dependentes de um modelo único de aquisição, que pode evoluir e, de fato, evolui conforme as mudanças nas imposições a que as centrais são submetidas e/ou se os poderes públicos mandantes conseguem se livrar total ou parcialmente das imposições feitas. Assim, o Senegal, que tinha inicialmente um programa de aquisição quase totalmente dirigido para as especialidades, mudou parcialmente no decorrer dos últimos anos para a aquisição de genéricos [10]. 230 Ela incluía seis inibidores nucleosídicos, sendo que a única combinação (o combivir®) estava em falta; dois inibidores não nucleosídicos (Viramune® e Sustiva/Stocrin®), três inibidores de protease (Crixivan®, Viracept® e Kaletra®) e um único ARV da classe dos inibidores nucleosídicos da transcriptase reversa. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 285 ma de concorrência para a operadora local. De fato, isso limita a possibilidade de essa operadora se posicionar em situação de monopsônio face aos fornecedores externos para obter economias de escala mais significativas e negociar preços mais baixos para os medicamentos. No entanto, no fim de 2004, o desejo de adquirir ARVs a preços mais baixos levou a operadora local a diversificar suas fontes de abastecimento, apelando para os produtores de genéricos. Os dados mais recentes [10] apontam para uma leve evolução da estrutura de aquisições, com uma presença mais forte de genéricos depois de 2004. Esse padrão focado nas especialidades inclui uma forte limitação financeira, pois qualquer ampliação de escala aumenta de maneira considerável as necessidades de recursos financeiros. Além disso, a demanda cada vez maior por terapias de segunda linha contribui para fortalecer essas limitações. Em 2006, o único protocolo de tratamento de segunda linha disponível localmente era a combinação tenofovir, didanosina, lopinavir/ritonavir, comprada ao preço anual de US$1.885/ paciente/ano, enquanto o mesmo protocolo genérico era oferecido ao preço de US$853/paciente/ano. Sendo assim, parece que o modelo de abastecimento baseado em especialidades continuava sua trajetória de evolução. IV.2. O modelo “focado nos genéricos” O segundo modelo, que caracterizamos como “focado nos genéricos” e cuja melhor ilustração é Camarões, possui a vantagem de permitir uma ampliação de escala com recursos financeiros menos pesados que os necessários para o modelo anterior. A análise da estrutura dos ARVs adquiridos pelo programa desse país evidencia a predominância de genéricos, essencialmente por meio do abastecimento prioritário de combinação de dose fixa (FDC) de Triomune (composta de três moléculas: lamivudina, estavudina e nevirapina). A repartição, em termos de valores, dos estoques adquiridos em 2005 (ver Figura 1) indica que 70% das aquisições são representados por genéricos fornecidos por laboratórios indianos, contra 26% para as moléculas de especialidades (efavirenz, comercializado sob o nome de Sustiva® ou Stocrin®; e indinavir, comercializado sob o nome de Crixivan®). Apesar do aumento da diversificação das moléculas adquiridas e disponibilizadas para os pacientes locais, com aumento relativo dos medicamentos de especialidades, a análise da composição das aquisições das ARVs pela Cename evidencia que, comparando Camarões com outros países da mesma região, a política de abastecimento desse país parece fortemente dominada pelos genéricos. 286 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Figura 1 – Distribuição do estoque acumulado de ARV em diferentes triterapias comprado pela Cename, Camarões, 2005 Zidovex LN; 1 096; 0,5% Efavirenz 200; 21 470; 9,3% (Lamivudine 150mg + Stavudine 40mg + Névirapine 200mg, Comp.) TRIOMUNE 40; 114 004; 49,2% Efavirenz 600; 35 865; 15,5% Indinavir 400; 2 433; 1,0% Nlfinavir 250; 607; 0,3% Névirapine 200; 8 114; 3,5% (Lamivudine 150mg + Stavudine 30mg + Névirapine 200mg, Comp.) TRIOMUNE 30; 48 127; 20,8% Dados mais recentes confirmam essa predominância de genéricos nas aquisições de ARVs em Camarões. A distribuição dos protocolos utilizados pelos adultos indica que, no final de março de 2009, a Triomune 30 representava 52,40% dos protocolos de primeira linha consumidos pelos adultos.231 Outro protocolo genérico (lamivudina, zidovudina, nevirapina) representa 15,77% dos protocolos de primeira linha. No entanto, os protocolos, incluindo moléculas patenteadas como o efavirenz, o tenofovir ou o abacavir, conquistam, aos poucos, mais espaço nos tratamentos de primeira linha. O crescimento futuro dos tratamentos de segunda linha irá, sem dúvida, atenuar o caráter “focado nos genéricos” do padrão de abastecimento de Camarões.232 Por enquanto, a predominância de genéricos é incontestável e confirmada pela análise dos dados relativos aos ARVs disponíveis em Camarões, no fim de março de 2007 [6]. Segundo esses dados, sete laboratórios, cuja maioria é constituída por produtores de genéricos, oferecem ARVs. Os medicamentos de especialidades são adquiridos somente na ausência de equivalente genérico. Esse modelo, como o anterior, sofre muita influência da evolução da propriedade intelectual. O cenário pós-2005 pode comprometer o desenvolvimento desse 231 Em 2005, o protocolo mais utilizado era a Triomune 40 (49.2% do estoque acumulado contra 20.8 para a Triomune 30), mas em 2007, tendo em vista os efeitos clínicos secundários constatados (devido à forte dose de estavudina 40mg), as diretrizes do Ministério da Saúde relativas aos protocolos indicaram a Triomune 30 como tratamento de primeira linha mais adequado. 232 Um estudo recente foi dedicado à política e distribuição de ARVs de segunda linha em Camarões. Ver (d’Almeida et al. 2010). Ele confirma, entre outras coisas, que, sem o investimento maciço de recursos externos (fornecidos pela Unitaid), as autoridades locais não poderiam ter sustentado essa política. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 287 tipo de modelo. Caso o fortalecimento das imposições relativas à propriedade intelectual crie obstáculos ao abastecimento com ARVs genéricos, toda a cadeia de aquisição/distribuição será desestabilizada. IV.3. O modelo “misto” Finalmente, o terceiro e último modelo, qualificado de “misto”, vigente em países como a Guiné e o Mali, é caracterizado por uma disponibilidade razoável de ARVs, incluindo genéricos e de especialidades, provenientes de vários circuitos de abastecimento. No caso da Guiné, além das aquisições de ARVs efetuadas pela Unicef por meio de sua central na Dinamarca, existem duas outras fontes de abastecimento. Por um lado, há as aquisições feitas por ONGs, como GTZ (Alemanha) e Médicos Sem Fronteiras (Bélgica) e, por outro lado, os ARVs introduzidos via atacadistas privados, como Sodipharm. Esses atacadistas introduziram no mercado ARVs genéricos. A chegada desses medicamentos genéricos deveria, em princípio, tornar a oferta de ARVs mais diversificada e mais competitiva (ver Quadro 3). Quadro 3 – Lista dos ARVs por laboratório habilitado para introdução no mercado da Guiné e dos ARVs atualmente disponíveis. ARVs por laboratório Nom e genérico Data de registro ARVs* disponíveis em 2007 por laboratório Videx (25mg, 50mg, 100mg, 150mg, 1g, 4g). Didanosina 20/06/2001 para todos Zerit (15mg, 20mg, 30mg, 40mg) Estavudina 20/06/2001 para todos Securinina antiviral hepatite A, B, C, D, E 05/01/1999 Combivir AZT+3TC 21/01/1999 ABACAVIR Epivir 150 mg Lamivudina 09/08/1999 ZIDOVUDINA+LAMIVUDINA Ziagen (ziagen 300) Abacavir 11/04/2000 ZIDOVUDINA Trizivir Abacavir 30/06/2001 Retrovir 250 AZT 11/05/2003 Invirase 200 Saquinavir 14/09/1998 para todos Viracept (50 et 250) Nelfinavir BMS: GGIA: Hepantivir 200mg GSK: ROCHE: 288 NELFINAVIR Propriedade Intelectual e Políticas Públicas ARVs por laboratório Nom e genérico Data de registro ARVs* disponíveis em 2007 por laboratório CIPLA: Duovir AZT+3TC Nevimune 200 Nevirapina NEVIRAPINA Stavir (30 e 40) Estavudina ESTAVUDINA Triomune (30 e 40) D4T+3TC+NVP Zidovir (100 e 300) Azt NEVIRAPINA+ESTAVUDINA+LA MIVUDINA (TRIOMUNE) 09/04/2002 para todos LAMIVUDINA ZIDOVUDINA+LAMIVUDINA (DUOVIR) ABBOTT NOVO: Kaletra 33,3 Lopinavir/RTV Norvir 100 Ritonavir 02/03/2002 RANBAXY : Aviro-z 300 Zidovudina Avocomb AZT+3CT Avolan Lamivudina avostav Estavudina INDINAVIR (AVIRODIN) 02/05/2002 para todos BAVYA PHARMACHEM: Lamivudina 150 26/04/2002 para todos Lamivudina+ Zidovudina Nevirapina 200 Zidovudina 300 HETERO Estavudina MSD INDINAVIR EFAVIRENZ Fonte: Dados colhidos durante missão em agosto de 2004 e completados em 2007. * A coluna contém dados fornecidas pelo doutor Mohamed Cissé do CHU Donka de Conakry, a quem agradecemos. No entanto, convém ressaltar que, como apontado pelos dados da última coluna do Quadro 3, a Guiné não dispõe de oferta efetiva de ARVs condizente com a oferta potencialmente possibilitada pelas numerosas autorizações de registro de genéricos introduzidos em seu mercado (AIMs) entre 1998 e 2002. Como já foi mencionado, o fato de uma agência externa – a Unicef – ser encarregada das aquisições de medicamentos explica, em parte, o descompasso entre as AIMs e a variedade de ARVs disponíveis. No caso do Mali, até 2001, a gerência da farmácia responsável pelas aquisições de ARVs encomendava esses medicamentos aos laboratórios farmacêuticos por intermédio de Laborex233 (representante local de várias sociedades farmacêuticas e, 233 Labores Mali é uma sociedade atacadista distribuidora de produtos farmacêuticos que abastece regularmente mais de 240 farmácias e possui 2.500 referências. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 289 portanto, importadora de medicamentos no Mali). A partir de 2002, a queda dos preços provocada pela introdução de genéricos no mercado local permitiu a diversificação da oferta. O número de fornecedores passou de três (BMS, GSK e Merck) para seis. Além dos fornecedores de especialidades já mencionados, o país contou, a partir dessa época, com três produtores de genéricos: as sociedades Cipla, Ranbaxy e Hétero. Da mesma maneira que na Guiné, esse modelo é misto. Essa característica aparece como o ponto forte desses modelos. No entanto, eles não escapam de uma dupla determinação: para as especialidades, se trata da restrição ligada às possibilidades de financiamento e, no caso dos genéricos, são as imposições relativas à evolução das regras da propriedade intelectual. Como observado em [11 e 12], esse padrão pode ser influenciado por vários tipos diferentes de evolução, especialmente em função do fortalecimento (ou não) das imposições feitas sobre o abastecimento de medicamentos genéricos durante o período iniciado em 2005. V. Conclusões O presente estudo das políticas de aquisição de ARVs em cinco países da África subsaariana permitiu estabelecer o seguinte: Em primeiro lugar, podemos evidenciar três modelos de governança: o modelo “focado nas especialidades”, o modelo “focado nos genéricos”, pouco diversificado, e o modelo “misto”. Uma característica central e comum a esses modelos é sua dependência de recursos externos (financeira e de outras ordens). Procuramos também mostrar o impacto desses modelos de aquisição sobre a disponibilidade local de ARVs, em preços e quantidades para cada uma das configurações analisadas. O impacto provocado por uma central de compras “nacional” é diferente daquele provocado por uma central “não nacional”, nos casos em que essa foi imposta aos atores locais pelos financiadores. Cada um desses modelos é diretamente afetado pelo crescimento das demandas por tratamentos de segunda linha e, de modo geral, pela entrada de novas gerações de medicamentos nas recomendações terapêuticas para tratamentos de primeira intenção. No primeiro modelo, isso é devido ao fato de que, até prova em contrário, esses novos ARVs não serem disponibilizados a preços reduzidos, sob a forma de genéricos. No caso dos modelos 2 e 3, os preços de introdução de novas especialidades no mercado – apesar dos preços diferenciados para os programas Access, por exemplo – acarretam tal explosão de custos que são capazes de comprometer a sustentabilidade financeira das políticas de aquisição. Em todos esses casos e no cenário pós-2005, o endurecimento das imposições de propriedade intelectual marcado por essa data se apresenta como o maior desafio que esses países devem enfrentar. 290 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Os autores agradecem a dois pareceristas anônimos pela qualidade da leitura e pelas suas observações. Referências bibliográficas 1. Communications issues du Séminaire pour les consultants francophones dans la gestion des achats et des approvisionnements pour le Vih/sida, “la tuberculose et le paludisme”, Dakar 6-9 mars 2006. Accessible sur http: www.remed.org. 2. BOISSEAU, C.; DEGUI, H.; BRUNETTON, C.; REY, J. L. Difficultés d’Accès aux Antirétroviraux dans les pays d’Afrique Francophone: état des lieux en 2004. Médecine tropicale, n. 66, p. 589-592, 2006. 3. CAMARA, M.; D’ALMEIDA, C.; ORSI, F.; CORIAT, B. Procurement Policies, Governance models and availability of ARVs in some African Francophone countries. An Overview. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/Aids in developing Countries. TRIPS, Public Health Systems and Fee Access. London: Edward Edgar Publisher, p. 225-254, october 2008. 4. CAMARA, M. Le difficile accès des pays d’Afrique Francophone aux ARV: l’exemple du Burkina Faso. Rapport de recherche, CEPN-IIDE, novembre 2003. 5. CAMARA, M. L’accès des malades du sida de l’Afrique subsaharienne aux ARV: une identification de quelques contraintes institutionnelles, défis et opportunités nouvelles à travers les exemples du Sénégal et de la Guinée Conakry. Rapport de recherche CEPNIIDE septembre 2004. 6. CAMARA, M.; D’ALMEIDA, C.; ESSI, M. J.; CORIAT, B. Passage à l’échelle et politiques d’acquisition/distribution des ARV dans le contexte de la décentralisation au Cameroun» dans (sous la direction de) EBOKO, F.; ABÉ, C.; LAURENT, C. Accès décentralisé au traitement du VIH/SIDA: Evaluation de l’expérience camerounaise. ANRS, p. 95-112, 2010. (Collection Sciences Sociales et SIDA). 7. WHO Statistical Information System (WHOSIS), accessible sur http://who.int/whosis/en/ 8. MUTHURI-KIRIGIA, J.; DIARRA-NAMA, A. Can countries of who african region wean themselves off donor funding for health. Bulletin of World Health Organization, v. 86, p. 889-892, n. 11, november 2008. 9. Banque Mondiale. L’engagement de la Banque Mondiale face au VIH/SIDA en Afrique, notre programme d’action 2007-2011. Washington, 2008. 10. DIOP, K.; KOÏTA FALL, M. B.; TAVERNE, B. Evolution of prices for antirretroviral drugs in Sénégal 1998 – 2006. Communication au colloque Aids Impact – Marseille, juillet 2007. 11. ORSI, F.; CAMARA, M.; CORIAT, B. Aids, TRIPS and “TRIPS plus” The case for Developing and Less Developed Countries. In: LIBBY, E. (ed.). Intellectual Property Rights: Innovation, Governance and the Institutional Environment. Oxford Press University, p. 70-106, 2006. Capítulo 15. Modalidades e modelos de aquisição de ARVs na África Subsaariana 291 12. ORSI, F.; D’ALMEIDA, C.; HASENCLEVER, L.; CAMARA, M.; TIGRE, P.; CORIAT, B. Trips post2005 and access to new antirretroviral treatments in Southern countries Issues and Challenges. AIDS, Editorial Review, october, 21: p. 1997-2003, 2007. 13. CORIAT, B. Introduction: a new stage in the fight against the hiv/aids pandemic –an economic perspective. In: CORIAT, B. (ed.). The Political Economy of HIV/AIDS in developing Countries. TRIPS, Public Health Systems and Fee Access. London: Edward Edgar Publisher, october, p. 1-19. 292 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas PARTE V Acesso aos antirretrovirais: experiência e papel da sociedade civil CAPÍTULO 16 Associação AIDES: 25 anos de luta Bruno Spire Resumo: A associação AIDES, fundada em 1984, é um movimento de pessoas “soroafetadas”, cujo objetivo é garantir às pessoas vivendo com HIV/Aids o exercício de seus direitos e sua participação nos processos de tomada de decisão que afetam suas próprias vidas. A associação segue um princípio de ação comunitária dividido em três dimensões: a necessidade de atuar com as pessoas afetadas e não por elas; o reconhecimento do saber adquirido pela vivência com a doença ou com o risco; e o objetivo de transformação social pela ação sobre os tomadores de decisão e pela mobilização dos grupos vivendo com a epidemia. A associação integrou novos conceitos nas políticas de saúde pública, como a redução de riscos, o atendimento integral e a democracia sanitária. Ela age contra a estigmatização, que permanece sendo um dos maiores obstáculos para o acesso ao atendimento e à prevenção. A associação é membro fundador da Coalizão Internacional PLUS, que procura levar os pleitos das pessoas “soroafetadas” a uma escala mundial. Palavraschave: AIDS, ONGs, França, Saúde Pública, Estigmatização. I. Os princípios fundadores da AIDES A Associação AIDES foi criada em 1984 por Daniel Defert, companheiro do filósofo Michel Foucault, que, pouco tempo antes, havia falecido por complicações relacionadas à Aids. Desde o início, a associação foi fundada em torno de valores éticos fortes: o não julgamento das pessoas, o respeito à confidencialidade e a afirmação de que o respeito aos direitos humanos é parte integrante das políticas de saúde pública. Mas, além desses valores, a associação reivindica também um princípio de ação fundamental, o princípio da ação comunitária. Esse princípio, muitas vezes mal interpretado pelas autoridades públicas, não diz respeito a qualquer tipo de comunitarismo, mas pode ser desmembrado em três dimensões: i. A abordagem comunitária se baseia no “fazer com as pessoas envolvidas” e não “por elas”. Trata-se de uma abordagem ascendente e participativa, que parte das necessidades das pessoas vivendo com HIV/Aids e, particularmente, dos mais afetados, ou seja, aqueles vivendo com HIV/Aids ou com o risco de infecção. Na maioria das vezes, são homossexuais masculinos, usuários de drogas ou imigrantes vindos da África Subsaariana, pois é nesses grupos que a prevalência de HIV/Aids é mais forte. ii. O princípio de ação comunitária reconhece o saber profano adquirido pela experiência do “viver” com a doença ou com o risco. Ele se baseia no princípio de que as pessoas afetadas por um problema de saúde têm legitimidade para não apenas identificar suas necessidades, mas também para agir e encontrar soluções, contribuindo, assim, para a formação de uma resposta global. Foi dessa forma que as primeiras ações de acompanhamento das pessoas vivendo com HIV/Aids foram concebidas, junto com os doentes, diante da angústia associada à doença e à rejeição que eram objeto de uma vivência comum. iii. Enfim, a abordagem comunitária abrange princípios de transformação social, visando agir sobre os tomadores de decisão pela mobilização dos grupos mais afetados pela epidemia. Não se trata somente de obter respostas, mas de estendê-las ao conjunto da comunidade de pessoas afetadas, por meio de ações sobre os regulamentos, as leis e as mentalidades. Baseada nesses princípios, a AIDES implantou algumas ações, que podem ser divididas entre ações de prevenção e ações de suporte. A associação privilegia ações inovadoras, a fim de experimentá-las e depois, quando possível, transferi-las para o direito comum. As ações representam também um campo de observação útil para enriquecer a argumentação necessária à transformação social. II. As ações de suporte Antes da chegada dos tratamentos, o objetivo das ações de suporte era melhorar a qualidade de vida das pessoas vivendo com HIV/Aids. Tratava-se, essencialmente, de oferecer acompanhamento individual e ajuda domiciliar. Com o advento das multiterapias, o objetivo das ações passou a ser “viver melhor” com o HIV e com os tratamentos complexos. O suporte tem como objetivo fortalecer as capacidades das pessoas vivendo com HIV/Aids, para melhor prepará-las e, assim, aumentar seu desejo de se tratar e de aderir ao tratamento, e também propiciar uma boa qualidade de vida em todas suas dimensões, física, social, afetiva e sexual. A AIDES defende um atendimento integral, incluindo atendimento social e psicológico, envolvendo militantes associativos como atores. Para tanto, as ações de suporte devem ser baseadas em alianças entre profissionais de saúde e pesquisadores. Há alguns anos, a AIDES vem implantando ações de autossuporte, grupos de conversação, finais de semana terapêuticos, universidades para os pacientes, fóruns, desenvolvendo um know-how para fortalecer a capacidade das pessoas vivendo com HIV/Aids de 296 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas tomarem conta de si. Essas ações representam uma oportunidade de fornecer às pessoas informações de fácil compreensão e validadas por seus pares; elas possibilitam uma troca de experiências e a autoajuda entre pessoas com vivências similares; enfim, essas ações favorecem a mobilização das pessoas vivendo com HIV/ Aids e as ajudam na afirmação de seu estatuto sorológico. Propiciam encontros de grupos com os profissionais de saúde fora do hospital, fora da relação médico/paciente. Atualmente, essas ações são padronizadas e registradas em guias de ação e documentos de referência. Os programas de educação terapêutica que, durante muito tempo, foram desdenhados pelas autoridades de educação terapêutica por serem fundados em saberes profanos, sem reconhecimento hospitalar ou acadêmico, poderiam, a partir de então, serem co-construídos entre médicos e atores associativos, desde que pelo menos um médico estivesse envolvido no programa. As ações de suporte também são associadas à retórica do acesso ao tratamento e à pesquisa para todos, bem como à luta contra a falência terapêutica e pelo acesso precoce a novas moléculas. Essa argumentação se fez em parcerias com outras associações de luta contra a Aids, reunidas em um coletivo interassociativo, o grupo TRT-5,234 hoje parceiro indispensável das principais instituições francesas. A argumentação se baseia, por um lado, na expertise individual de membros do TRT-5 que detêm bons conhecimentos dos aspectos científicos relacionados aos medicamentos, mas também no acompanhamento das disfunções observadas por ativistas de campo das associações membros. No início dos anos 2000, o objetivo principal consistia em promover o acesso mais célere possível às novas moléculas para as pessoas em falência terapêutica. Hoje em dia, trata-se de pressionar a indústria por medicamentos que permitam uma melhor qualidade de vida, com a melhor tolerância possível em longo prazo. III. A luta contra a estigmatização Grandes progressos foram observados no atendimento à doença desde o início da epidemia, mas, infelizmente, podemos constatar que o olhar da sociedade sobre o HIV e os doentes ainda é pejorativo. Hoje, como há 25 anos, ainda é muito difícil assumir a própria soropositividade. Essa situação é bem específica ao HIV e muito diferente do que acontece em outras doenças crônicas, como o diabetes e a hipertensão. Sendo assim, a AIDES tem como objetivo modificar a visão da sociedade sobre os doentes e, para tanto, propôs uma campanha de luta contra as discriminações. A proposta se baseava no slogan “se eu fosse soropositivo?”, para que cada um pudesse refletir sobre os impactos que esse fato poderia ter sobre sua vida. 234 Coalizão de interesses entre cinco associações francesas (Actions Traitments, Act Up Paris, AIDES, Arcatsida e VLS) para definição de diretrizes no campo da pesquisa terapêutica e clínica, criada em 1992. Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta 297 Essa campanha elencou celebridades de esferas diferentes, no intuito de combater a exclusão das pessoas soropositivas. Por ocasião da eleição presidencial, a campanha focou em personalidades do meio político; na Copa do Mundo de Rugby, a campanha apresentou jogadores do time nacional, o XV de France. Sem dúvida, a luta contra a estigmatização não pode ser resumida a campanhas publicitárias. As ações de suporte coletivo visando levantar a autoestima representam alavancas poderosas, permitindo às pessoas preparar-se melhor para abordar a questão do HIV em sua vida cotidiana, profissional e afetiva. IV. As ações de prevenção As ações de prevenção focalizam principalmente os grupos mais expostos ao HIV e, no caso da França, a epidemia é concentrada. As ações concernem à prevenção da transmissão sexual e sanguínea junto a usuários de drogas injetáveis. Nos anos 1990, a associação foi pioneira na disponibilização de material para injeção estéril. Essa abordagem de redução de riscos possibilitou uma grande redução da incidência do HIV entre os usuários de drogas injetáveis. Atualmente, a associação está experimentando programas de educação para melhorar a segurança da prática da injeção e, assim, evitar a transmissão dos vírus HIV e das hepatites. As ações de prevenção sexual vão muito além da informação e da distribuição de preservativos, masculinos ou femininos. A informação é necessária, mas insuficiente para modificar os comportamentos. Para que as pessoas em situação de risco possam se apropriar da prevenção, é imprescindível chamar a atenção para todas as barreiras (emocionais, de autoconfiança, de autoestima). Por meio da abordagem comunitária, a AIDES conseguiu evidenciar as dificuldades de uma prevenção baseada exclusivamente no uso sistemático do preservativo. A AIDES recomenda uma abordagem pragmática da redução de riscos sexuais visando alcançar soluções, ainda que imperfeitas, para todos aqueles que não podem ou não querem utilizar o preservativo em qualquer circunstância. Entre essas soluções, podemos ressaltar a escolha sorológica (“séro-choix”), a adaptação das práticas sexuais ou “positionning” entre os gays, o reforço da observância pelas pessoas infectadas e o controle da carga viral, um dos maiores fatores associados à transmissibilidade do HIV. No entanto, o controle da carga viral por tratamento antirretroviral implica o conhecimento do próprio estatuto sorológico. Por essa razão, a AIDES está atualmente engajada em ações de detecção comunitária, ou seja, campanhas de detecção conduzidas pelas próprias “soroafetadas” e tornadas possíveis pela disponibilidade, hoje em dia, de testes rápidos de detecção do HIV/Aids, realizados a partir de pequenas extrações de sangue na ponta do dedo. Essas ações foram concebidas para atender à necessidade de realizar testes de detecção repetidamente, 298 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas constatada entre pessoas expostas ao risco, e tomaram a forma de uma pesquisa operacional sobre testes de detecção rápidos realizada por atores não profissionais junto a gays (projeto ANRS COM’-TEST). Graças à colaboração com pesquisadores, a AIDES tem realizado a experiência do teste rápido junto com a delegação de tarefas antes reservadas aos profissionais da saúde, a fim de diversificar a oferta de detecção na França. A ideia é que a oferta de testes de detecção num ambiente associativo, realizados por pessoal não médico, porém capacitado e mais apto a compreender as dificuldades enfrentadas pelos gays e oferecer escuta e conselhos adequados, poderá ser mais eficiente para atrair populações regularmente expostas ao risco de infecção pelo HIV. Esse tipo de pesquisa-ação aproximou a AIDES do mundo da pesquisa, e possibilitou também uma melhor formalização de seus modos de operação para melhor integrar-se em protocolos de pesquisa biomédica. V. AIDES e o âmbito internacional A AIDES firmou parcerias com várias associações de luta contra a Aids no mundo, especialmente na África francófona, onde a AIDES faz parte de várias redes associativas: rede Afrique 2000 (com parceiros da África ocidental) e rede Afrique centrale. Os objetivos dessas redes consistem em fortalecer as capacidades das associações membros por meio de trocas, atividades de capacitação e estágios. Atendendo a pedidos de atores africanos, a AIDES contribuiu para a criação da rede Africagay contra a Aids, cuja meta é fortalecer as ações comunitárias na área da saúde dirigidas aos homens que mantêm relações homossexuais e permitir uma argumentação eficaz junto aos tomadores de decisão. Essa rede permitiu que emergissem a voz dos homens homossexuais na África, as maiores dificuldades que enfrentam para serem contemplados pelas políticas de saúde e os obstáculos para o acesso ao atendimento e ao material de prevenção (preservativos e, particularmente, gel lubrificante). Recentemente, a AIDES esteve à frente da iniciativa de coalizão PLUS.235 De fato, tendo em vista o crescimento da mobilização humana e financeira exigida pela luta contra o HIV e as disfunções observadas na implantação dos programas organizados (principalmente no repasse de recursos, na qualidade do atendimento, no acesso às moléculas de segunda e terceira linhas e aos testes biológicos, na eficiência dos programas de prevenção etc.), as associações de combate contra a Aids AIDES, na França, ALCS, no Marrocos, Arcad-Sida, no Mali, e COCQ-Sida, no Québec, manifestaram sua vontade de ir além das parcerias já estabelecidas em nível internacional, para construir uma estrutura comum de promoção da atuação comunitária. Por consequência, decidiram juntas constituir uma união em que possuem o estatuto de fundadores. Promovendo a atuação comunitária na luta contra o HIV/ 235 Informações sobre a iniciativa de coalizão PLUS podem ser obtidas no site www.coalitionplus.org. Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta 299 Aids, essa união pretende abranger novas associações, compartilhando os mesmos valores e a mesma atuação. Recentemente, Kirimina, do Equador, Amongo, do Congo, Revs+, de Burkina Faso, e Aras, da Romênia, ingressaram na união. A argumentação da PLUS segue alguns eixos estratégicos: i. O primeiro eixo é a otimização do acesso aos direitos, à prevenção e ao atendimento de qualidade, especialmente para os grupos vulneráveis: trata-se de exigir, para os países do Sul, padrões de atendimento idênticos aos dos países do Norte, em particular o acesso às primeiras linhas de medicamentos menos tóxicas e às segunda e terceira linhas de tratamento, a carga viral e aos testes de resistência. Essa argumentação inclui também a luta contra a penalização da transmissão do HIV. Ela visa também o reconhecimento das associações comunitárias por parte dos programas de pesquisa sobre novas estratégias de prevenção. ii. O segundo eixo consiste em apoiar a mobilização de recursos, atuando em nível mundial para maximizar os recursos disponíveis, concorrer a financiamentos do Fundo Global, atuando junto à Unitaid para acelerar a queda dos preços dos produtos essenciais para a luta contra a Aids e, assim, liberar recursos novos nos atuais orçamentos. Nesse âmbito, PLUS iniciou uma campanha para instaurar uma taxa sobre movimentações financeiras (a taxa Robin), que poderia garantir a longevidade do Fundo Global. Outra das ações de PLUS consiste nos esforços para derrubar os preços dos medicamentos, especialmente no que se refere às barreiras de propriedade intelectual, que bloqueiam a diminuição dos preços. PLUS é, juntamente com Médicos Sem Fronteiras e Oxfam, um dos líderes internacionais da luta pela implantação rápida do Patent Pool, iniciativa da Unitaid por meio da qual os grandes laboratórios ocidentais autorizariam a fabricação e a comercialização de versões genéricas dos medicamentos antirretrovirais de última geração nos países do Sul. iii. O terceiro eixo é otimizar a utilização do sistema Fundo Global. Trata-se de agir sobre o Fundo Global e a Unaids para melhorar o funcionamento das instâncias de coordenação dos países (CCM), acelerando a implantação efetiva do fortalecimento das associações comunitárias e, assim, permitir uma maior implicação das pessoas afetadas. Trata-se também de motivar os financiadores a favorecer o acesso dos ativistas do Sul a seus fundos. A luta para aumentar os recursos dos organismos de ajuda multilateral é importante e PLUS tem como missão defender os interesses das pessoas envolvidas dentro das prioridades financeiras desses organismos. Os interlocutores naturais da argumentação de PLUS são os organismos internacionais, enquanto as associações-membros visam pressionar seus respectivos Estados para financiar a luta contra a Aids em nível internacional. 300 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas VI. Perspectivas Hoje em dia, a principal questão em jogo é a luta contra a banalização do HIV/Aids entre os tomares de decisão. Parar a epidemia é hoje um fato concebível, já que os tratamentos antirretrovirais possuem efeito maior na diminuição da transmissibilidade do vírus. Caso todas as pessoas infectadas fossem hoje detectadas e tratadas, poderíamos impedir as novas infecções nas gerações futuras. Porém, para alcançar essa meta, existem várias condições. A primeira delas é a supressão do medo. O medo de se submeter ao teste de detecção é o maior obstáculo para o fim da epidemia. Esse medo é devido ao estigma e ao fato de que o HIV/Aids é, antes de tudo, uma doença de caráter social. É preciso mudar a maneira de se comunicar sobre o HIV, especialmente nos grupos mais envolvidos com a doença. A segunda condição consiste em favorecer o acesso aos testes de detecção por meio da oferta de diversas possibilidades de se testar, incluindo o acesso à testagem comunitária pelos pares, não necessariamente profissionais da saúde. Abrimos o caminho e não mediremos esforços para que os ativistas da AIDES e, claro, de outras associações possam se engajar no caminho da testagem comunitária. A terceira condição é o acesso ao atendimento de qualidade para todos, em qualquer lugar do mundo, incluindo as pessoas em situação de precariedade, os estrangeiros, os detentos etc. Qualidade implica o acesso a medicamentos potentes, testes biológicos, atendimento psicossocial, no Norte como no Sul. A quarta condição é a ampliação da prevenção nas populações onde o vírus provoca mais danos. Para tanto, AIDES clama por uma prevenção baseada no uso combinado ao máximo de todas as ferramentas, incluindo as ferramentas biomédicas validadas ou em desenvolvimento, como os tratamentos pré e pós-exposição. A quinta condição consiste em obter financiamentos: é preciso continuar a demonstrar que a epidemia de HIV não acabou, a lutar contra a desistência das autoridades de saúde, a falta de liderança dos governos ou das instâncias internacionais que gostariam de acreditar que a luta contra a Aids pode ser diluída em meio a outros problemas sociossanitários. É somente dessa forma que daremos fim à epidemia! Capítulo 16. Associação AIDES: 25 anos de luta 301 CAPÍTULO 17 O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids: a participação da sociedade civil Maria Andréa Loyola Pedro Villela Resumo: Esse trabalho estuda a participação da sociedade civil – médicos, juristas, jornalistas, empresários – e, sobretudo, das ONGs/Aids na construção do modelo brasileiro de enfrentamento da epidemia de Aids. Ele se baseia em entrevistas realizadas com esses atores, em documentos, artigos de jornais e bibliografia especializada. A participação das ONGs/Aids no combate à Aids se deu, inicialmente, com a prestação de assistência aos doentes e como grupo de mobilização e de pressão junto ao Estado, lutando por prevenção e tratamento. Entretanto, a ameaça à sustentabilidade do programa governamental de distribuição de medicamentos, em razão da elevação dos custos dos medicamentos protegidos por patentes, as levou a uma mudança de posição. Sob a influência de ONGs internacionais, o tema das patentes foi politizado, dando origem à constituição, em 2001, do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), voltado para a discussão desse tema. Nesse grupo e juntamente com outros setores da sociedade civil, notadamente os juristas e a mídia, as ONGs/Aids continuam a exercer um papel fundamental na preservação do modelo de luta contra a epidemia no País. Palavras-chaves: Aids; ONGs, sociedade civil; modelo brasileiro de combate à Aids; propriedade intelectual. I. Introdução A política brasileira de combate à Aids se tornou internacionalmente conhecida por abordar não apenas os aspectos preventivos da transmissão da doença, mas também aqueles referentes ao tratamento. A eficiência dessa política se deve também ao fato de ter sido articulada a programas industriais de cópia e produção de medicamentos antirretrovirais (ARVs) [1]. Embora, para alguns, tal experiência deva ser vista como localizada, ela aponta para alterações nas relações históricas entre os setores nacionais e internacionais da indústria farmacêutica, que vêm se manifestando notavelmente no tratamento relativo ao problema das patentes de medicamentos ARVs [2, 3, 4]. A construção, implantação e desenvolvimento desse modelo de enfrentamento da epidemia de Aids resultam, em grande parte, da vontade política de governantes e atores sociais estrategicamente posicionados, que souberam empreender, mobilizar, conjugar e explorar positivamente e numa mesma direção uma série de ações e fatores favoráveis [5].236 Dentre esses atores, se destacam, historicamente, os médicos e profissionais de saúde ligados ao Movimento Sanitarista, que tiveram um papel de destaque na formulação da política de medicamentos nos anos 1980 e 1990 e, em especial, na política de combate à epidemia de Aids. Esse movimento, conhecido como Reforma Sanitária,237 foi responsável por algumas conquistas de extrema importância para o setor da saúde, que se consolidaram com a redemocratização do país. Por influência dos sanitaristas na Assembléia Nacional Constituinte, a saúde foi consagrada na Constituição Federal de 1988 como um direito fundamental: nos artigos 196 a 200 do capítulo relativo à Ordem Social, foi preconizado que “a saúde constitui direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.238 Esse movimento conduziu à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), concebido como uma rede nacional de serviços regionalizados, hierarquizados e descentralizados de atenção integral à saúde (lei orgânica 8.080 de 1990). Sob a liderança de médicos ligados ao Movimento Sanitarista, foi criado, em São Paulo, em 1983, o primeiro Centro de Referência e Treinamento (CRT) para o combate à Aids do país. Não apenas os sanitaristas, mas médicos de outras especialidades associadas à Aids – dermatologistas, infectologistas, cancerologistas –, que começavam a atender em clínicas particulares pessoas vivendo com HIV, também contribuíram de forma decisiva para o espaço que a epidemia viria a ocupar naquele momento e também no Ministério da Saúde. O Programa Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids (PN-DST/Aids), criado em 1985, teve papel fundamental não apenas na redução da morbimortalidade por Aids, mas também na liderança, coordenação e formulação de uma política de medicamentos que alterou a relação entre o governo e as multinacionais farmacêuticas e tornou possível, mais tarde, a promulgação da lei de genéricos no país [9]. 236 A análise aqui desenvolvida se baseia em um conjunto de entrevistas realizadas com atores que estão ou estiveram envolvidos com a política de enfrentamento da Aids no Brasil, de produção e de distribuição de ARVs, além de documentos, artigos de jornais e bibliografia especializada. 237 Sobre a Reforma Sanitária, consultar [6] e [7]. 238 Não obstante as sucessivas mudanças ocorridas na assistência pública à saúde até sua desvinculação definitiva da Previdência Social, ela não era, até então, extensiva a toda população brasileira. Sobre esse processo, consultar [8]. 304 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas II. As respostas da sociedade civil e as ONGs/Aids Os profissionais de saúde não foram os únicos atores responsáveis pela construção do modelo brasileiro de combate à Aids e seus desdobramentos atuais. A participação da sociedade civil é tida como um dos pontos fortes da resposta brasileira à epidemia. Ela compreende a participação, por vezes complexa e contraditória, de Igrejas de diferentes credos, associações profissionais e filantrópicas, intelectuais, juristas, jornalistas e outros. Mas, no caso da Aids, é sobretudo com as organizações não governamentais (ONGs) que o termo “sociedade civil” é correntemente identificado. Em parte porque, enquanto Igrejas e demais grupos se dedicaram principalmente a atividades de assistência a pessoas vivendo com HIV/Aids, as ONGs/ Aids tiveram também um papel político, como grupo de pressão junto ao Estado e de mobilização da sociedade junto à mídia, ganhando visibilidade como representantes da sociedade civil, em nome de quem atuavam.239 A categoria ONGs/Aids, entretanto, é problemática, porque tende a incluir, sob um único título, o que constitui, de fato, uma variedade de respostas não governamentais à epidemia [10]. Como, a exemplo de outros países, a Aids no Brasil atingiu primeiramente os homossexuais masculinos, grupos gays, como o Grupo Gay da Bahia e o Grupo Somos, de São Paulo, estiveram na origem das primeiras reações à epidemia. Em 1985, uma das primeiras ONGs/Aids do Brasil, o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), surgiu como um movimento de luta para melhorar as condições de tratamento e proteção contra a doença, desempenhando importante papel como grupo de pressão e colaboração junto à Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Outra ONG/Aids de destaque nesse período, congregando uma ampla gama de profissionais e líderes comunitários, é a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), fundada no Rio de Janeiro, em 1986. A Abia, ao contrário do Gapa, rejeitava declaradamente qualquer papel direto na proteção e tratamento de pessoas com HIV/Aids, o que considerava obrigação do Estado, concentrando suas atenções na crítica às políticas – ou à inexistência de políticas – de governo nessa área [11, 12]. Muito importante na área assistencial, mas principalmente por sua atuação na área jurídica, e também formado no Rio de Janeiro, foi o Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Grupo pela Vidda), que deu início ao movimento de ações judiciais em defesa dos direitos civis – relacionados à moradia, benefícios, assistência etc. – de pessoas com HIV/Aids. Essas ações, apoiadas no direito universal à saúde, consagrado pela Constituição de 1988, eram geralmente acatadas e deferidas pelo Judiciário, constituindo, assim, um poderoso mecanismo de pressão em favor da ampliação da política de distribuição de medicamentos adotada pelo Ministério da Saúde [13, 14]. 239 A primeira casa de apoio a pessoas vivendo com HIV/Aids, criada em 1984, foi a pensão para prostitutos masculinos mantida pelo travesti Brenda Lee, em São Paulo, que deu início às primeiras ações assistencialistas naquela cidade, com apoio financeiro de “um grupo de senhoras da sociedade” [9]. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 305 Finalmente, cabe mencionar a mídia que, no nível da sociedade civil, teve grande importância no enfrentamento da Aids. Ao contrário das doenças mais comuns, que atingem grande parte da população brasileira, muitos portadores do HIV/Aids eram pessoas de classe média e alta, artistas, costureiros, cabeleireiros e outras pessoas com acesso direto ou capazes de despertar o interesse dos meios de comunicação de massa – rádio, televisão, jornais e revistas –, o que contribuiu enormemente para tornar a doença conhecida [15], bem como divulgar as ações das ONGs e as decisões judiciárias favoráveis às pessoas vivendo com HIV/Aids [16]. III. A distribuição nacional de medicamentos contra a Aids Desde seu aparecimento até o final do governo Collor, em 1992, as ONGs/Aids, tanto as “assistencialistas” quanto as “políticas”, atuaram principalmente na oposição ao governo, notadamente como grupos de pressão por atenção médica, prevenção e tratamento da Aids. No período Collor, a então já poderosa coordenação do PN-DST/ Aids perdeu grande parte de seus funcionários, ao mesmo tempo em que os quadros da burocracia estatal oriundos do Movimento Sanitarista e das ONGs/Aids experimentaram um refluxo em sua atuação. Mas é nesse período, especialmente polêmico e tido por muitos atores como um retrocesso no combate à epidemia, que teve início a compra para distribuição gratuita do AZT, o primeiro ARV aprovado para o tratamento do HIV/Aids – que já ocorria no estado de São Paulo, desde 1990 –, em escala nacional [17]. Segundo o coordenador do PN-DST/Aids na época, essa distribuição tinha por objetivo forçar a notificação e o controle da doença, pois era cada vez mais evidente que a Aids apresentava características endêmicas e universais, isso é, passaria dos homo para os heterossexuais e dos homens para as mulheres e crianças. Com a queda de Collor em 1992, a equipe de sanitaristas retorna ao PN-DST/Aids e inaugura um novo tipo de relação com as ONGs, passando de uma atitude de total independência para uma que procurava direcionar o poder de pressão e de mobilização dessas organizações em favor de suas políticas. As ONGs/Aids, por sua vez, de uma oposição quase radical ao PN-DST/Aids durante os anos 1980 e início dos 1990, passaram a assumir uma posição ao mesmo tempo ainda crítica, mas também de colaboração. Voltaram a integrar a recriada Comissão Nacional de Aids e a participar, como consultores, do projeto de financiamento de ações contra a Aids do Banco Mundial, que permitiu ao Ministério da Saúde repassar recursos para projetos das ONGs. Esses recursos do Banco Mundial tornaram mais efetivas as ações das ONGs/ Aids em diferentes esferas e estimularam uma notável proliferação desse tipo de 306 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas organização.240 Mais ainda: na opinião de alguns ativistas e analistas, a ênfase quase exclusiva em projetos tendeu a limitar e mesmo esvaziar a atuação política, que havia marcado a atuação das primeiras ONGs/Aids [10, 11, 19]. Por outro lado, as ações visando à atenção médica e à distribuição de medicamentos, vistas como onerosas e pouco eficazes, não eram consideradas prioritárias para o Banco Mundial.241 Grande parte do financiamento era, assim, destinada a atividades de prevenção, o que explica, em parte, o distanciamento das ONGs/Aids dos primeiros embates travados pelo governo brasileiro com os laboratórios multinacionais para garantir a distribuição de ARVs. De qualquer forma, a compra para distribuição gratuita de medicamentos pelo Ministério da Saúde se tornava irreversível, bem como os custos do PN-DST/Aids, que, além de conviver com o crescimento da demanda, se viu obrigado a enfrentar novas pressões sobre os preços dos medicamentos, que se tornaram excessivamente elevados com a entrada em vigor da nova lei de patentes, em 1997, antes de o mercado poder contar com os genéricos brasileiros e indianos. IV. A Lei de Patentes e a Lei Sarney: entraves e soluções na distribuição de ARVs A abertura da economia iniciada no governo Collor (1990-1992) criou um ambiente favorável à pressão internacional pela ampliação do escopo da patenteabilidade na legislação brasileira, em especial para produtos farmacêuticos. A Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1995 para regular o comércio internacional, colocou como condição de filiação a adesão a diversos acordos, como aquele sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (Trips). Dessa forma, o Brasil e demais países interessados em se filiar à OMC deveriam revisar suas leis de propriedade intelectual, conformando-as aos preceitos do Trips, o que implicava, dentre outras coisas, concessão de direitos de patente a todas as áreas tecnológicas. O Brasil, que, desde 1945, não reconhecia patentes de produtos farmacêuticos, se viu obrigado a estender a possibilidade de patenteamento a todos os tipos de medicamentos e produtos terapêuticos, inclusive, por consequência, àqueles usados no tratamento do HIV/Aids. 240 Em 1993, o PN-DST/Aids aprovou 75 projetos, no valor total de US$4 milhões, submetidos por ONGs/Aids, organizações religiosas, grupos feministas, sindicatos e uma variedade de outras organizações da sociedade civil [18]. Já em 1995, de acordo com algumas estimativas, o número de ONGS/Aids, antes estimadas em cerca de 30, havia crescido para 400 organizações [10]. E, no final da década de 2000, o PN-DST/Aids registrava 698 ONGs/Aids. 241 No entendimento do Banco Mundial, um sistema de saúde baseado na distribuição gratuita de medicamentos poderia levar a um desastre nas contas públicas no país [20]. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 307 Em comparação com a de outros países, a nova Lei de Patentes brasileira (lei 9.279 de 1996) é tida como bastante liberal. Dentre outros dispositivos, ela antecipou em 10 anos o período de transição previsto pelo Acordo Trips para a inclusão de medicamentos no rol de bens patenteáveis, prazo de que a Índia e a China, ao contrário, souberam se aproveitar. Também permitiu o reconhecimento retroativo de patentes, isso é, aquelas requeridas no exterior até cinco anos antes da entrada em vigor da lei brasileira, dispositivo que ficou conhecido como pipeline. Por outro lado, a lei prevê, em seu artigo 68, a possibilidade de licenciamento compulsório de uma patente registrada no Brasil, em casos de abuso de poder econômico (práticas anticompetitivas), quando o produto não é fabricado em território brasileiro até três anos após a concessão de sua patente, ou ainda por interesse público. Essa lei entrou em vigor num momento em que crescia enormemente a pressão por medicamentos no âmbito do Judiciário, a ponto de os recursos orçamentários para a compra de ARVs e as normas para sua aquisição e distribuição terem sido assegurados pelo Decreto n. 9.313 (de 1996), conhecido como Lei Sarney. Esse decreto garantiu a todos os pacientes vivendo com HIV/Aids o direito ao acesso gratuito a toda medicação necessária e determinou que os critérios para essa distribuição seriam estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Para a definição desses critérios, foi constituído um comitê assessor, formado por especialistas no tratamento da doença, a chamada Comissão do Consenso Terapêutico, que viria a definir os protocolos de tratamento. No curto prazo, a lei Sarney contribuiu para pressionar mais ainda o orçamento do Ministério da Saúde. Por um lado, pela ampliação da demanda por medicamentos; por outro, pela qualificação dessa demanda, a partir das recomendações da Comissão do Consenso Terapêutico por terapias de diferentes complexidades, algumas incluindo medicamentos de última geração, patenteados e, portanto, sujeitos aos preços praticados pelas multinacionais. Em 1997, quando teve início a disponibilização dos inibidores de protease, o número de pacientes em tratamento aumentou em cerca de 26.000 pessoas. Em 1998, esse crescimento foi de cerca de 14.000 e, em 1999, de 19.500 pacientes. Em 2002, cerca de 90.000 pacientes recebiam ARVs na rede pública de saúde. Esses pacientes se concentravam, principalmente, nas regiões mais desenvolvidas, com maior capacidade de pressão e maior acesso a serviços de saúde.242 Os gastos do Governo Federal com aquisição de medicamentos, que, em 1996, havia consumido cerca de US$35 milhões, passaram para US$224 milhões em 1997, US$305 milhões em 1998 e US$335 milhões em 1999. Entre 1997 e 1998, ainda foram instituídos os exames de diagnóstico CD4 e carga viral243 [17]. 242 70% na Região Sudeste – com destaque para os estados de São Paulo (44%) e Rio de Janeiro (20%) –, 17% na Região Sul, 7% no Nordeste, 4% no Centro-Oeste e 2% na Região Norte. 243 Ao contrário da expectativa do Banco Mundial, que estimou, no início dos anos 1990, que, em torno do ano 2000, 1,2 milhão pessoas poderiam estar vivendo com HIV/Aids no Brasil, uma previsão recente 308 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Diante dessas múltiplas pressões, técnicos do Ministério da Saúde e do PNDST/Aids decidiram investir na fabricação local de medicamentos, contando com os laboratórios públicos nacionais [21, 22]. Esses laboratórios se tornaram componentes estratégicos para a execução da política de medicamentos do Ministério da Saúde, notadamente Farmanguinhos, que passou a desenvolver os produtos que já eram comercializados no país em 1996 e, assim, não poderiam ser patenteados. Farmanguinhos assumiu papel muito importante também na troca e difusão de tecnologia entre laboratórios oficiais, se consolidou como referência para o monitoramento de preços do Ministério da Saúde e para o enfrentamento dos laboratórios multinacionais, no que ficou conhecido na mídia como “guerra das patentes”. O que melhor ilustra essa “guerra” foram os repetidos conflitos entre, de um lado, o PN-DST/Aids e o Ministério da Saúde e, de outro, as firmas farmacêuticas internacionais, conflitos ligados às negociações de preços de medicamentos, que contavam sempre com a ameaça de licenciamento compulsório, em caso de fracasso das negociações [1]. Em 1999, 47% dos medicamentos contra a Aids foram adquiridos de empresas nacionais (93% de laboratórios oficiais e 7% de privados) e os 53% restantes, de multinacionais, correspondendo, respectivamente, a 19% e a 81% dos gastos com ARVs [20]. À medida que a produção local de medicamentos contra Aids aumentou, esses gastos encolheram. Mas o processo foi freado e invertido com o início da distribuição de novos ARVs patenteados, lançados no mercado após 1996, necessários ao combate de formas resistentes da infecção e que não poderiam ser produzidos no país, salvo sob licença compulsória. Com base no Decreto 3.201 de 1999 da Presidência da República – que torna possível a concessão de licença compulsória nos casos de emergência nacional e de interesse público, de que fala o artigo 71 da lei de patentes –, o Ministério da Saúde ameaçou licenciar compulsoriamente dois medicamentos, o Nelfinavir, da Roche, e o Efavirenz, da Merck. A licença não foi levada a termo, pois os laboratórios envolvidos se anteciparam e reduziram o preço dos medicamentos em questão, mas a simples ameaça produziu um efeito em cascata sobre outros laboratórios, levando a uma redução generalizada dos preços dos ARVs. No total, o custo do tratamento ARV individual caiu de US$6.240, em 1997, para US$2.210, em 2001 [23].244 Esse episódio suscitou uma forte reação dos Estados Unidos, que, em 2001, requereram à OMC um painel de arbitragem questionando a aplicação da lei de patentes brasileira. O painel, entretanto, foi retirado, ainda em 2001, devido à reação negativa de outros países [24]. No final do ano, na Conferência Ministerial da OMC, foi aprovada, contra a vontade dos Estados Unidos, a Declaração de Doha, reavaliou esse número para 500 mil pessoas [9]. Esse quadro favorável tem sido atribuído, por diversos autores, ao acesso à triterapia. 244 Essa tendência de queda se verificou até 2004, quando o custo do tratamento ARV individual atingiu US$1.336, voltando a subir, em 2005, para 2.500, em função da introdução progressiva de mais drogas patenteadas no coquetel distribuído, ameaçando, com seus altos preços, a sustentabilidade do programa de distribuição de medicamentos [25]. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 309 defendida pela delegação brasileira e que preconizava o acesso a medicamentos para pessoas vivendo com HIV/Aids como uma questão de saúde pública e direito humano fundamental. Com exceção da mídia, que deu ampla cobertura a essa disputa [16], os principais segmentos da sociedade civil participaram ainda de forma incipiente e, por vezes, contraditória das ameaças de quebra de patente de ARVs pelo governo brasileiro. Alguns médicos atuantes no setor consideram essas tentativas meras peças ficcionais que desencorajavam as multinacionais a investirem no país; outros, como uma estratégia de redução de preços, insuficiente para coibir a atuação das empresas contra a saúde pública. Algumas ONGs/Aids participaram mais de perto da discussão sobre licença compulsória, muitas vezes capitaneadas por associações internacionais, sobretudo Oxfam e Médicos sem Fronteiras (MSF), tendo sido inicialmente mobilizadas pelo próprio Ministério da Saúde e pelo PN-DST/Aids. A visão das ONGs/Aids brasileiras nesse período ainda era, segundo o presidente de MSF, a visão tradicional que marcou a prática dessas organizações: a de que a saúde era dever do Estado e de que o papel das ONGs era principalmente o de pressionar para cumprir sua função. Nesse processo, entretanto, o tema das patentes acabou sendo pouco a pouco politizado pelas ONGs/Aids, dando origem à constituição, em 2001, do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), coordenado pela Abia e voltado especificamente para a discussão desse tema [5, 26]. Essa é uma nova modalidade de luta política, que se dá em um cenário cada vez mais desfavorável. A introdução de mais drogas patenteadas no tratamento da Aids no Brasil fez seus custos progredirem de uma média de US$1.336 por paciente por ano, em 2004, para 2.500, em 2005 [27]. Essa ameaça à sustentabilidade do programa de distribuição de medicamentos levou o PN-DST/Aids a elaborar, em 2005, novo decreto para o licenciamento compulsório de dois ARVs. Esse processo foi também interrompido por uma negociação de preços considerada favorável pelo governo [28], mas que foi alvo de duras críticas de ONGs e de técnicos do próprio PN-DST/Aids. V. Politização da Propriedade Intelectual no Brasil: a criação do GTPI A inclusão da problemática das patentes farmacêuticas nas agendas de ativistas mobilizados contra o HIV/Aids no Brasil, que, durante muito tempo, foi empreendida quase exclusivamente por associações internacionais, começou a se adensar por volta da virada do século. Em novembro de 2000, no Fórum Comunitário América Latina e Caribe sobre HIV/Aids, ONGs brasileiras e internacionais reunidas solicitaram formalmente aos Estados Unidos que evitassem levar reclamações contra a lei de patentes brasileira à OMC. Em 5 de março de 2001, dia do julgamento de 310 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas uma ação movida por multinacionais farmacêuticas contra a África do Sul, cuja legislação autorizava o governo a importar ou produzir genéricos em situações de emergência – no caso da Aids, a importar ARVs genéricos brasileiros ou indianos –, foi decretado um Dia Global de Ação. Assim, em São Paulo, ativistas brasileiros organizaram passeata em frente ao consulado dos Estados Unidos, protestando em nome da prevalência dos direitos de saúde sobre os direitos de propriedade intelectual. Em maio do mesmo ano, evento semelhante ocorreu, dessa vez também diante do consulado dos Estados Unidos em Recife, durante o Encontro Nacional de ONGs/Aids, com a mobilização de mais de 250 associações. No mês seguinte, junho de 2001, nova passeata, também em frente ao consulado dos Estados Unidos e protestando contra abusos econômicos relacionados a patentes, reuniu ONGs/ Aids no Rio de Janeiro. Ao final desse ano, na Conferência Estadual de Saúde de São Paulo, o Fórum de ONGs/Aids desse estado apresentou uma moção ao governo solicitando que a Lei de Propriedade Intelectual brasileira fosse revisada à luz da recente Declaração de Doha, segundo a qual os países membros da OMC devem tomar medidas a fim de proteger seus interesses de saúde pública.245 Embora essas manifestações não fossem de fato coordenadas e provavelmente apresentassem sentido político ainda difuso, começava a despontar no País uma mobilização associativa mais ampla em torno do problema das patentes de medicamentos, que transborda, inclusive, para manifestações na mídia: em editorial publicado em maio de 2001,246 Mário Scheffer, do Grupo pela Vidda, elogiou a inclusão pela ONU do acesso a medicamentos como direito universal e atacou frontalmente a indústria farmacêutica e sua defesa inveterada das patentes, alegando que grande parte dos investimentos em pesquisa de novas drogas é invariavelmente feita em universidades e redes públicas de saúde. Foi de Scheffer a primeira voz a se levantar criticamente contra a decisão – “tímida e temerária” – do Ministério da Saúde de não levar a cabo a quebra das patentes do Efavirenz e do Nelfinavir, em favor de uma negociação junto aos laboratórios produtores. Ainda nesse ano, um evento de suma importância teve lugar, fornecendo uma consolidação formal à crescente presença de temas ligados à propriedade intelectual de medicamentos nas pautas de ONGs brasileiras e internacionais: a criação do Grupo de Trabalho Propriedade Intelectual (GTPI), filiado à Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip).247 A ideia da criação do GTPI surgiu após uma série 245 Fonte: palestra de Jorge Beloqui, do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), em conferência organizada por MSF para discutir os 10 anos do acordo Trips, em 2004. 246 Folha de São Paulo, 11/05/2001. 247 A Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip), criada em 1998, funciona como uma rede de articulação de ONGs, movimentos sociais, entidades sindicais e associações profissionais autônomas e pluralistas, que atuam sobre os processos de integração regional e comércio, a construção de uma sociedade democrática, e o desenvolvimento econômico, social, cultural, ético e ambientalmente sustentável, buscando alternativas de integração opostas à lógica da liberalização comercial e financeira predominante nos acordos econômicos internacionais. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 311 de reuniões convocadas pela Oxfam e por MSF na sede carioca da ActionAid,248 em maio de 2001, em que diversas ONGs foram convocadas a discutir como atuar no campo da regulação e da propriedade intelectual de medicamentos [29]. As entidades que, a partir de então, animam o GTPI formam um grupo diversificado, reunindo, dentre outros, ONGs que tradicionalmente militaram no campo da Aids, em defesa da distribuição de medicamentos: seis ONGs/Aids brasileiras (Abia, Gapa/ SP, Gapa/RS, Gestos, GIV e Grupo pela Vidda), duas grandes organizações internacionais trabalhando na área da saúde (MSF e Oxfam) e quatro ONGs de direitos humanos, de defesa da democracia ou do consumidor (Conectas, Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e Intervozes. Assim, a atuação do GTPI acabou por adquirir um caráter marcadamente nacional. Afinal, enquanto temas como a regulação do comércio internacional em agricultura ainda estavam em plena negociação nas instâncias internacionais, a regulação da propriedade intelectual, no entender de representantes do GTPI, já havia sido negociada e definida na OMC com o acordo Trips. Dessa forma, o GTPI busca se aproximar dos inescapáveis condicionantes da produção local de medicamentos, seus limites e possibilidades [26, 30]. As atividades do GTPI incluem: acompanhar questões relacionadas à propriedade intelectual, suas negociações em acordos comerciais; pressionar e sensibilizar autoridades e o público em geral a esse tema; lutar contra práticas entendidas como abusivas, tais como a concessão de patente de segundo uso. O GTPI também procura buscar interlocuções com outros atores de relevo para o campo da regulação de medicamentos, como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) e parlamentares que proponham projetos de lei versando sobre propriedade intelectual e/ou Aids, a fim de influenciá-los e participar dos processos que movem [30]. Em 2002, provavelmente em resposta a uma suposta insatisfação do governo brasileiro com a historicamente tímida mobilização da sociedade civil em torno das discussões sobre regulação de medicamentos, o GTPI encomendou uma pesquisa sobre as propostas de propriedade intelectual nas negociações de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Com base nos resultados dessa pesquisa, o grupo procurou o Ministério das Relações Exteriores, a fim de sensibilizar a classe política ao impacto da legislação patentária sobre a saúde e ao fato de que os Estados Unidos pretendiam acirrar as normas de patentes. O GTPI, a partir de então, assumiu a intenção de incluir, entre suas frentes de mobilização, a manutenção de canais diretos com o governo, a fim de criar instrumentos para pressionar, criticar e estabelecer ações conjuntas e estratégias. Mais uma vez, se assistiu à formação de alianças entre governo e ONGs “políticas”, sendo que, dessa vez, alguns ativistas da 248 Novo episódio que ratifica o papel de estruturação do campo desempenhado por algumas organizações internacionais. 312 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Abia chegaram a ingressar nos quadros burocráticos do Estado, atuando no interior do próprio governo, em cargos na direção do PN-DST/Aids. A partir de agosto de 2003, denotando a grande relevância que o tema das patentes ganhava no campo do Aids, o GTPI passou a ser coordenado na Abia, que, repetindo a experiência do Grupo pela Vidda no início da epidemia, montou na organização um setor jurídico especializado em patentes de medicamentos. A presença, nessa ONG e no GTPI, de profissionais familiarizados com propriedade intelectual e mobilizados segundo os objetivos das organizações, implica, ao menos potencialmente, uma capacidade de atuação técnica mais efetiva. Especialmente se levarmos em consideração que, por volta dessa mesma época, a Abia e o GTPI também passaram a contar, em seus quadros, com a contribuição de uma profissional de química farmacêutica [30]. Se os objetivos do grupo foram mantidos, a presença de ativistas familiarizados com os mais relevantes saberes para discutir o tema das patentes de medicamentos – o conhecimento jurídico e o conhecimento químico – pode ser vista como marco de um novo momento de atuação, senão do conjunto de ONGs brasileiras, ao menos das ONGs mais experientes na luta contra a Aids e notadamente da Abia. Em março de 2004, um seminário internacional foi organizado, em São Paulo, para discutir os “10 anos de Trips: em busca da democratização do acesso à saúde”.249 O conjunto de organizadores do evento é, em si, indicativo do adensamento desse tema entre a sociedade civil: MSF, Oxfam, GTPI, Abia, GIV, além do Instituto de Direito do Comércio Internacional e Desenvolvimento (Idcid, também uma ONG) e da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Reunidos, ONGs, representantes do governo e especialistas, do Brasil e de outros países, discutiram propostas para evitar que as patentes continuassem a ser uma das principais barreiras para o acesso a medicamentos. Ativistas, advogados, estudantes, parlamentares e representantes de agências reguladoras foram incitados a debater como proteger a saúde pública, sem necessariamente desrespeitar as regras do Trips, isto é, buscando interpretações possíveis do acordo, explorando suas flexibilidades e as previstas pela Declaração de Doha, de modo a encontrar um equilíbrio entre direitos de propriedade intelectual e direitos dos pacientes.250 249 Poucos meses antes, em 1º de dezembro de 2003, dia mundial da Aids, a OMC havia lançado a iniciativa 3 by 5, isso é, o compromisso de levar terapia ARV a 3 milhões de pessoas em 50 países até 2005. O objetivo pressupunha padronização das formas de prescrição medicamentosa e desenvolvimento de infraestrutura de saúde. Apesar de ter sido um marco e de ter impulsionado, em 2006, a iniciativa all by 2010 (ARV para todos até 2010, também da OMC), avaliações feitas em 2005 mostravam que o programa não havia atingido seus objetivos, chegando, nos melhores casos, a 50% da meta. 250 Fonte: entrevista com Michel Lotrowska. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 313 VI. Estratégias de intervenção: informar para mobilizar Convencidas da desinformação generalizada sobre a problemática da regulação e da produção de medicamentos, algumas ONGs decidiram por em prática a estratégia de informar para mobilizar. Passaram, assim, a criar ferramentas para a propagação de informação e conhecimento críticos sobre a lei brasileira de propriedade intelectual, a fim de sensibilizar e mobilizar diferentes atores sociais em torno de debates sobre as patentes de medicamentos. Com o apoio da OMS e da Unicef, o MSF publicou 10 edições de seu Guia de preços para a compra de ARVs para os países em desenvolvimento, resposta à falta de informações claras e confiáveis sobre os preços dos produtos farmacêuticos no mercado internacional, fator que, no entender de MSF, dificultava significativamente o acesso a medicamentos essenciais, especialmente nos países em desenvolvimento. Com esse guia, MSF pretendia conscientizar e mobilizar contra os abusos econômicos advindos da pouquíssima concorrência que enfrentam as multinacionais produtoras de ARVs. Em 2006, a Abia e o GTPI produziram uma cartilha intitulada Patentes farmacêuticas: porque dificultam o acesso a medicamentos?. O objetivo declarado era o de levar ao maior número possível de leitores informações sobre propriedade intelectual e medicamentos, de modo a reforçar um debate público sobre a questão e mobilizar politicamente a sociedade civil organizada para acompanhar criticamente e intervir nas políticas públicas relacionadas ao tema e à luta por acesso à saúde. Em tom emblemático, a cartilha afirma que “Estamos seguros que a informação constitui um dos instrumentos mais eficazes para enfrentarmos os desafios impostos pela epidemia de HIV/Aids” [31]. Os mesmos grupos lançaram, também em 2006, outra cartilha – Patentes: por que o Brasil paga mais por medicamentos importantes para a saúde pública? – alertando para o fato de que a proteção patentária, na sua essência, gera direitos de exclusividade para empresas farmacêuticas, reforçando uma virtual situação de monopólio e, logo, o aumento de preços dos medicamentos. Diante desse cenário e com essas estratégias, grupos e instituições da sociedade civil organizada têm questionado o sistema de patentes proposto e praticado no País, alegando que, na prática, ele favorece apenas os detentores das patentes [26]. 314 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas VII. Estratégias de intervenção: produção e inovações terapêuticas Também passou a fazer parte das estratégias de ativistas o debate sobre a produção e inovações terapêuticas. Um dos temas que ocupou espaço nas pautas de discussão de entidades como a Abia e o GTPI foi a possibilidade de produzir uma combinação de ARVs em dose única, o que tende a facilitar a adesão ao tratamento. Passando da mera discussão à prática, o MSF se aproximou do PN-DST/ Aids e de Farmanguinhos e financiou a P&D de uma combinação em dose única de três ARVs (AZT, 3TC e Nevirapina).251 O MSF propunha ainda novos arranjos para o sistema de produção local de medicamentos, de modo a otimizar a capacidade dos laboratórios nacionais e burlar as deficiências da indústria farmacêutica: em linhas gerais, a pesquisa fundamental deveria ser realizada nas universidades e a pesquisa aplicada, articulada com a indústria privada. Dessa forma, seria quebrado o chamado isolamento da Academia – vista como voltada apenas para publicações – e se estudariam aquelas mazelas de saúde que, por não oferecerem mercado atraente, deixam de suscitar o interesse de P&D dos grandes laboratórios privados – as chamadas doenças negligenciadas –, o que permitiria montar um sistema de produção de drogas mais eficiente e humanitário. Em 2006, a Abia, por sua vez, encomendou uma avaliação sobre a capacidade brasileira de produção de medicamentos, A produção de ARVs no Brasil: uma avaliação, realizada por um químico brasileiro e outro dos EUA, e baseada num estudo sobre quatro grandes laboratórios farmacêuticos nacionais: dois públicos (Farmanguinhos e o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco (Lafepe) e dois privados (Cristália e Nortec). A conclusão do estudo confirma e fundamenta a opção política adotada pelo Ministério da Saúde desde a década de 1990 e assumida por ONGs a partir de 2001. Fica clara a disposição de lutar pela produção local de ARVs, mostrando que, contrariamente a alguns usuais prognósticos do setor privado, “O Brasil está atualmente capacitado para fabricar no país um volume muito significativo dos princípios ativos necessários para os medicamentos ARVs. As empresas brasileiras teriam, com investimentos modestos, capacidade para expandir sua produção a fim de se adequar às necessidades nacionais.” [33]. De fato, em 2004, militantes da Abia e do GTPI já se mostravam convencidos de que o desenvolvimento de novas drogas poderia ficar bem mais restrito e que a sustentabilidade financeira do PN-DST/Aids e toda a política de medicamentos estavam ameaçadas. Esses ativistas defendiam a importância de os países em desen- 251 A iniciativa seria inviável no setor privado, pois as patentes dos três ARVs pertencem a três laboratórios multinacionais diferentes; em contrapartida, como Farmanguinhos já produzia versões genéricas dos três, o desenvolvimento de uma fixed dose combination (FDC) ou dose única dependeria apenas de um rearranjo nas linhas de produção, que o MSF pretendia estimular e financiar [32]. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 315 volvimento utilizarem imediatamente as salvaguardas previstas no Trips, como o licenciamento compulsório e a importação paralela, a fim de criarem mecanismos legais que permitissem, no futuro, o desenvolvimento de uma tecnologia nacional ou a compra a preços razoáveis de produtos que o Brasil não produz. Os militantes também reclamavam que a possibilidade de licenciamento compulsório ainda era usada apenas como moeda de barganha nas negociações com as companhias farmacêuticas internacionais. E que as reduções de preços oferecidas eram muito tímidas diante do que poderia ser obtido caso o Brasil estivesse produzindo localmente, o que, para a maioria dos medicamentos essenciais, incluindo os ARVs, só seria possível com o licenciamento compulsório ou voluntário das patentes desses medicamentos [30]. A defesa da licença compulsória se tornou, assim, bandeira entre ativistas da Aids. Bandeira que pressupõe a aquisição de conhecimentos específicos sobre patentes e o uso político desse conhecimento, baseado na ideia da importância da promoção da saúde pública, em detrimento de todos os outros interesses que as patentes possam promover. Entretanto, nos três momentos em que ameaçou e se preparou para emitir uma licença compulsória de ARVs, o governo brasileiro voltou atrás e fechou acordos largamente entendidos como desvantajosos. As ONGs defensoras da licença compulsória protestaram e criticaram, alegando que, se o Brasil não lançasse mão das salvaguardas possíveis, o parque industrial do país e sua capacidade técnica e humana eventualmente ficariam defasados e, nesse momento, a produção local de genéricos não poderia ser usada sequer como “blefe” de negociação. De um modo geral, cresceram gradualmente, ao longo das ameaças malogradas de 2001, 2003 e 2005, essa insatisfação e a convicção de que a continuidade da distribuição de ARVs dependia da garantia de que esses e todos os novos medicamentos pudessem ser produzidos localmente [34]. Em outubro de 2005, após várias ameaças, o governo brasileiro optou por um acordo com o laboratório Abbott que reduzia em 46,15% o preço do Kaletra, uma das drogas mais caras do coquetel anti-Aids. Tal acordo, entretanto, provocou desagrado entre ativistas de luta contra a Aids do país, pelo fato de se ter aberto mão da transferência de tecnologia, por se ter excluído a sociedade civil das negociações e pelo desrespeito à resolução do Conselho Nacional de Saúde, que havia recomendado o licenciamento compulsório de três ARVs, entre eles o Kaletra.252 252 Representantes do GTPI afirmaram, na ocasião, estarem surpreendidos e indignados com o fato de que novamente tenham tomado conhecimento pela imprensa de que um novo acordo com o Abbott estava prestes a ser assinado. “[O Ministério da Saúde] realizou a negociação às escondidas e sob termos que a sociedade civil e até o próprio governo desconhece. O caráter de pessoalidade que marca as negociações configura o descaso com a vida de milhares de brasileiros que dependem do sucesso e da manutenção do Programa Nacional de Aids (...), uma postura inaceitável, autoritária e inconstitucional”. 316 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas VIII. Estratégias de intervenção: subsídios ao exame Ativistas da Aids no Brasil não se limitaram a lutar pela licença compulsória de produtos já patenteados. Outra das frentes de intervenção privilegiadas diz respeito a um momento anterior, ou seja, o próprio processo ainda não finalizado de concessão de patente, por meio de subsídios ao exame. Em 1º de dezembro de 2006, Dia Mundial de Luta contra a Aids, ativistas do GTPI e algumas das mais eminentes ONGs brasileiras e internacionais mobilizadas em torno da epidemia convocaram uma conferência de imprensa, em que se discutiram temas como “o contexto atual de preços de medicamentos antirretrovirais”. Ao final da conferência, os ativistas reunidos dirigiram-se à sede do INPI, com o objetivo de depositar dois documentos de subsídio ao exame para dois ARVs usados no tratamento de pessoas vivendo com HIV/Aids, o Kaletra e o Tenofovir, drogas cujos pedidos de patente ainda tramitavam no INPI.253 Os documentos de subsídio ao exame apresentados se valiam de uma possibilidade jurídica, prevista pela lei brasileira de patentes de 1996, segundo a qual quaisquer interessados podem apresentar informações aos órgãos pertinentes, com vistas a subsidiar o exame de pedidos de patentes em processo. Elaborados por um grupo que incluía advogados, químicos e economistas, os documentos abriam com considerações gerais sobre a importância do uso desses dois medicamentos e a centralidade da problemática das patentes na questão do acesso às drogas anti-HIV/Aids, argumentando ser “fundamental que apenas os medicamentos que efetivamente cumpram os requisitos legais de patenteabilidade recebam proteção patentária”. Dentre os diversos argumentos contrários à concessão de patente ao Tenofovir, se destacam os de natureza técnica sobre química farmacêutica: “o composto ora reivindicado não constitui um salto inventivo para o tratamento de paciente infectado pelo HIV, uma vez que propõe-se apenas a formação de um sal de uma estrutura biologicamente ativa já conhecida e que não apresenta qualquer aspecto de novidade para um técnico no assunto, pois pode ser obtido por práticas usuais empregadas em síntese orgânica.” Com base nessas evidências, o documento conclui que “o presente pedido de patente de invenção não apresenta qualquer atividade inventiva, devendo ser indeferido por este Instituto [o INPI] [29].” Em virtude de movimentos como esse, liderados tanto pela sociedade civil organizada quanto pelo Estado, a patente do Tenofovir foi negada nos EUA, em janeiro de 2008, e, mais tarde, no Brasil, em setembro do mesmo ano. Trata-se de iniciativa que atualiza uma prática mais antiga, verificada em outros países, como 253 Nesse evento, um dos representantes do MSF afirmou que, “anteontem, a Tailândia emitiu a licença compulsória sobre o Efavirenz [um dos ARVs], infelizmente, a gente esperava que fosse o Brasil, mas a Tailândia teve mais coragem que os nossos ministros, os tigres sem dentes (que ameaçaram e nunca emitiram). A Tailândia emitiu a licença compulsória e vai comprar da Índia até conseguir ter o produto pronto para produzir localmente”. Capítulo 17. O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 317 a “oposição ao exame”, recurso legal e recorrente na agência de patentes da União Europeia. E constitui, provavelmente, a manifestação formalizada que melhor ilustra o grau de sofisticação que os argumentos e as posições associativas acabaram por assumir nos debates sobre regulação de medicamentos. IX. Conclusão Como em outros países, a participação da sociedade civil – médicos, juristas, jornalistas, empresários e, sobretudo, as ONGs/Aids – foi fundamental na construção do modelo brasileiro de enfrentamento da epidemia de Aids, que alia prevenção e tratamento e inclui a distribuição gratuita, a nível nacional, de medicamentos ARVs. Esse modelo enfrentou numerosos obstáculos, notadamente uma forte disputa com os laboratórios multinacionais fabricantes de ARVs, a maioria patenteados, em busca de preços mais razoáveis. Disputa que envolveu a fabricação de medicamentos genéricos pelos laboratórios públicos brasileiros e, com base em artigo especial da lei brasileira de patentes, a ameaça de licença compulsória desses medicamentos pelo governo brasileiro. A participação das ONGs/Aids nesse processo se deu, inicialmente, na assistência prestada aos doentes e como grupo de mobilização e de pressão junto ao Estado por prevenção e tratamento. A visão tradicional que marcou a prática dessas organizações era, como consagrado na Constituição de 1988, a de que a saúde é dever do Estado e de que o papel das ONGs era, principalmente, o de pressioná-lo para cumprir sua função. Entretanto, a ameaça à sustentabilidade do programa governamental de distribuição de medicamentos, face ao problema colocado pela aquisição de ARVs protegidos por patentes, levou ONGs/ Aids brasileiras a uma mudança de posição. Nesse processo, e sob a influência de ONGs internacionais que atuam nessa área, pouco a pouco, o tema das patentes acabou sendo politizado, dando origem à constituição, em 2001, do GTPI, voltado especificamente para a discussão do tema. Colocando em prática estratégias variadas, como a busca e a disseminação de informações sobre patentes e produção de medicamentos e o uso político dos subsídios ao exame dos pedidos de patentes, as ONGs/Aids, juntamente com outros setores da sociedade civil, notadamente os juristas e a mídia, entraram decisivamente nas disputas por credibilidade e legitimidade na construção de conhecimentos, posicionamentos e políticas sobre a epidemia. E, dessa forma, continuam a exercer um papel fundamental na preservação do modelo de luta contra a Aids no País. 318 Propriedade Intelectual e Políticas Públicas Referências bibliográficas 1. CASSIER, M.; CORREA, M. Propriedade intelectual e saúde pública: a cópia de medicamentos contra HIV/Aids realizada por laboratórios farmacêuticos brasileiros públicos e privados. Reciis, 2007; 1(1): 83-91. 2. NUNN, A. S.; DA FONSECA. E. M.; BASTOS, F. I.; GRUSKIN, S. Aids treatment in Brazil: impacts and challenges. Health Aff, 2009; 28(4): 1.103-1.1013. 3. 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O modelo brasileiro de combate à epidemia de Aids 321 Lista de autores Adelaide Maria de Souza Antunes Instituto Nacional de Propriedade Industrial Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Andreia Pereira de Assis Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE Fundação Getúlio Vargas Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Andressa Gusmão Sistema de Informação sobre Industria Química, Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Benjamin Coriat Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234 Villetaneuse, France E-mail: [email protected] Bernard Larouzé Escola Nacional de Saúde Pública/FIOCRUZ Rio de Janeiro, Brasil et INSERM U707/Université Pierre et Marie Curie Paris, France E-mail : [email protected] Bruno Spire Association AIDES Pantin et SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France E-mail : [email protected]; [email protected] Camelia Protopopescu SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France E-mail : [email protected] Cassandra Sweet Instituto de Ciencia Política, Pontificia Universidad Católica Santiago, Chile E-mail: [email protected]; [email protected] Constance Marie Milward de Azevedo Meiners-Chabin Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais Ministério da Saúde Brasília, Brasil E-mail: [email protected] Cristina d’Almeida Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234 Villetaneuse, France E-mail : [email protected] Cristina de Albuquerque Possas Programa de Pós-Graduação Stricto-Sensu de Pesquisa Clínica em Doenças Infecciosas (Mestrado e Doutorado) Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas -IPEC Fundação Oswaldo Cruz E-mail: [email protected] David Zombre SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France Emily Anna Catapano Ruiz Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT-DST/AIDS) Secretaria de Estado da Saúde São Paulo/SP, Brasil E-mail: [email protected] Fabienne Orsi SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France E-mail: [email protected] Fernando Tibau Sistema de Informação sobre Indústria Química, Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Flavia Mendes Sistema de Informação sobre Indústria Química, Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Fred Eboko SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France Affectation IRD/Institut Africain de la Gouvernance, Dakar, Sénégal E-mail: [email protected] Gaëlle Krikorian IRIS – Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux Sciences sociales, Politique, Santé Université Paris 13 – UFR SMBH UMR 8156 CNRS – Inserm Bobigny/Paris, France E-mail: [email protected] Guillaume Le Loup INSERM U707/Université Pierre et Marie Curie et Service des Maladies Infectieuses et Tropicales Hôpital Tenon, AP-HP Paris, France E-mail : [email protected] Helena Espelllet Klein Instituto de Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Jean-Claude Thoenig Dauphine Recherches en Management Université de Paris Dauphine Paris, France E-mail : [email protected] Jean-Paul Moatti SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France E-mail : [email protected] Julia Paranhos Instituto d’Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail : [email protected] Julien Chauveau SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France et Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234 Villetaneuse, France E-mail : [email protected] Kenneth Rochel de Camargo Júnior Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Keshab Das Gujarat Institute of Development Research, Gujarat, India E-mail : [email protected] Lia Hasenclever Instituto d’Economia Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Mamadou Camara Université Paris 13, CEPN-IIDE, UMR CNRS 7234 Villetaneuse, France E-mail : [email protected] Maria Andréa Rios Loyola Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Mariângela Batista Galvão Simão Division pour la prévention, la vulnérabilité et les droits UNAIDS Genève, Suisse E-mail: [email protected] Maria Helena Costa Couto Departamento de Política, Planejamento e Administração em Saúde Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Marilena Cordeiro Dias Villela Corrêa Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected]; [email protected] Maurice Cassier Centre de Recherche Médecine, Sciences, Santé et Société Villejuif, France E-mail: [email protected] Paola Galera Sistema de Informação sobre Indústria Química, Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Pedro Villela Instituto de Medicina Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Rodrigo Cartaxo Sistema de Informação sobre Indústria Química, Escola de Química/Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Rogerio Scapini Departamento de MST, Sida et Hépatites Virales Ministerio da Saúde Brasília/DF, Brasil Sandrine Loubière SESSTIM, UMR 912 INSERM-IRD-Université Aix-Marseille Marseille, France Sonia Fleury Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE Fundação Getúlio Vargas Rio de Janeiro/RJ, Brasil E-mail: [email protected] Wanise Borges Gouvea Barroso Farmanguinhos Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro/RJ E-mail: [email protected]; [email protected]