ESPELHOS MIDIÁTICOS: UMA REFLEXÃO SOBRE PROJEÇÕES E
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ESPELHOS MIDIÁTICOS: UMA REFLEXÃO SOBRE PROJEÇÕES E
REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 ESPELHOS MIDIÁTICOS: UMA REFLEXÃO SOBRE PROJEÇÕES E IDENTIFICAÇÕES ATRAVÉS DE TÉCNICAS E NARRATIVAS Profª Drª Andréia Perroni Escudero1 http://lattes.cnpq.br/4352353064316890 118 RESUMO – Este artigo traz uma reflexão sobre as técnicas que meios de comunicação, em especial a televisão e o cinema, utilizam para criar projeções, identificações e sentimentos de familiaridade através de seus personagens e narrativas. aborda algumas teorias sobre a homogeneização que se dá por condições de verossimilhança, mas especialmente por conter estruturas míticas comuns à humanidade, fazendo-se um paralelo com a função estética e mágica do espelho. PALAVRAS-CHAVE – Narrativas, identificações, projeções, mitos, homogeneização, espelhos contemporâneos, meios de comunicação. ABSTRACT – This article brings a reflection on the techniques that the media with special television and cinema, to create using projections, identification and familiarity feelings through their character and narrative. studied some theories about the mixing that gives in terms of likelihood but especially on structures mythical contain common to humanity by making up a parallel with the real function and magic mirror. KEYWORDS – Narratives, identification, projections, myths, contemporary mirrors, the media Espelhos Multifacetados O espelho, do latim Speculum, sempre foi objeto de fascínio para a humanidade, desde as primeiras tentativas de sua criação em cobre a cerca de 5.000 a.C. Em 3.000 a.C outros metais, como a prata, eram polidos a ponto de refletirem apenas os contornos das silhuetas. Já no final da Idade Média, o mercúrio começa a ser utilizado juntamente com o alumínio, trazendo maior nitidez ao reflexo. Em 1660 foi o símbolo de beleza e ostentação quando artesãos venezianos utilizaram todo o requinte de suas técnicas na construção da sala dos Docente na Universidade Anhembi Morumbi. Doutora pela Pontifícia Universidade Católica em Semiótica da Cultura. 1 Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 espelhos do Palácio de Versalhes. Muito se seguiu. A exclusividade da realeza foi popularizada e hoje qualquer pessoa conta com o acessório. Sua utilização permeia o estudo dos astros, funcionamento de máquinas, observação de fenômenos da física, decoração de ambientes, além da apreciação estética. Mas este objeto vai além do que reflete. Ele impulsiona o imaginário popular, desafia o real (unicidade, singularidade, originalidade) instiga contato com o próprio duplo2. Isto se verifica na grande quantidade de lendas e contos em que o espelho tem papel transcendental. Para algumas culturas orientais, o deus Yama julga os mortos através do seu espelho do Karma, pois nada pode ser escondido deste reflexo. Em livros druidas os espelhos são símbolos mágicos e femininos, muitos deles até afastam o mal (octagonais). Gerações mais antigas, aqui mesmo no Brasil, acreditavam que os recém-nascidos, por medida de proteção espiritual, não deveriam ser expostos ao seu próprio reflexo até que não fossem batizados. Em contos, os espelhos também são presenças marcantes como em “Branca de Neve e os Sete Anões”3, em que sempre que solicitado, comparece com a verdade objetiva; Alice no País das Maravilhas4, ele é o próprio elo entre mundos, ou seja, uma passagem para 119 dimensões paralelas. Desempenha também papéis coadjuvantes como em o “Conde Drácula”5, delator da verdadeira identidade das pessoas. Na maior parte das estórias representa sabedoria interior, consciência, verdade, sinceridade, conteúdo do coração, ligação entre o passado e presente e até futuro, etc. Todo esse imaginário ainda permeia nossa civilização, porém a contemporaneidade deu origem a outros tipos de espelhos. De superfície plana e formato retangular, são os écrans que agora também refletem o ser humano em seus mais variados ângulos, porém, mais do que a instantaneidade de um reflexo, trazem simulacros6 das imagens de realidade trabalhadas e 2Duplo - “Se manifesta como ser ou espectro autônomo, estranho, dotado duma realidade absoluta (...) o duplo concentra em si, como se aí se realizassem, todas as carências do indivíduo e, em primeiro lugar, o seu anseio mais loucamente subjectivo: a imortalidade. O duplo é efectivamente, essa imagem fundamental do homem, imagem anterior à íntima consciência de si próprio, imagem reconhecida no reflexo ou na sombra, projetada no sonho, na alucinação, assim como na representação pintada ou esculpida, imagem fetichizada e magnificada nas crenças duma outra vida, nos cultos e nas religiões. O duplo é efectivamente universal na humanidade primitiva. Talvez seja mesmo o único grande mito humano universal.(...) Outro e superior, o duplo detém a força mágica. Dissocia-se do homem que dorme, para ir viver a vida literalmente sobre-real dos sonhos” (MORIN:1970, 34 e 35) 3 Compiladores: Irmãos Grimm entre os anos de 1812-22 – Vol. Contos de Fadas para Crianças e Adultos. 4 Escritor Charles L. Dodgson, em 1865. 5 Escritor Bram Stoker, em 1893. 6 Entendido como produção artificial (mecânica, química, eletrônica) de uma imagem que não precisa referir-se a um modelo externo para a sua aceitação, mas também não funda nenhum valor de originalidade, isto é, não se Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 continuadas: através de narrativas sobre tragédias, amores, aventuras, dilemas, crises, guerras, mitos etc. além de notícias das mais variadas, moda, programas de auditórios, entrevistas, músicas e shows, tudo isto com o intuito de divertir, entreter e informar, mas também de espelhar indivíduos e gerar mimetismos. Cinema e televisão acabam incorporando além das características refletoras dos espelhos, também a magia e o aspecto transcendente do objeto que fascina e congela o olhar, pois o remete a uma realidade paralela, para dentro da estória contada. Comecemos pela legitimação do cinema, neste processo, que se dá através de técnicas desenvolvidas para romper com a realidade e penetrar no mundo paralelo dos sonhos. O ato de entrar em uma sala escura e nela permanecer sentado, em estado relaxante, rebaixa a consciência, diminuindo as barreiras para o acesso ao imaginário7. Além da narrativa, o que ajuda o indivíduo a participar de cada cena virtualmente é a tela gigantesca e de alta definição, que pelo seu formato “abraça” a sala de projeção como se fosse a própria realidade (telerrealidade8 ). O cinema, como diz Muniz Sodré, “aprofunda o simulacro moderno da fotografia ao 120 movimentar a imagem (fazendo-a desfilar num ritmo acelerado) e encenar um espaço e tempo imaginários”(90, p.30). Também tem papel relevante neste processo a sonoridade intensa e contagiante, que desperta o sentido auditivo de tal forma que este manda estímulos reais ao cérebro, como se as imagens e sons do ambiente fizessem realmente parte do contexto real do indivíduo. Quanto à televisão, é importante esclarecer que não é da técnica de transmissão e recepção de imagens que surge a magia de ver-se em situações inusitadas, em lugares instaura como modelo original nem gera imagens ambivalentes, a exemplo da obra de arte. Muniz, Sodré. A Máquina de Narciso, Televisão, Indivíduo e Poder no Brasil, p. 28, 1990, São Paulo. Segundo J. Baudrillard, em Simulacros e Simulação, 1991, p.151, Lisboa, Portugal, há três categorias de simulacros: 1) Simulacros naturais, naturalistas, baseados na imagem, na imitação e no fingimento, harmoniosos, otimistas e que visam à restituição ou a instituição ideal de uma natureza à imagem de Deus. 2) Simulacros produtivos, produtivistas, baseados na energia, na força, na sua materialização pela máquina e em todo o sistema da produção. 3) Simulacros de Simulação, baseados na informação, no modelo, no jogo sibernético – operacional total, hiper-realidade, objeto de controle total. 7 “Palavra genérica para sonhos mortos da humanidade, para os artefatos substitutivos da força de imaginação, para os restos de tudo aquilo que se imaginou, que se produziu, que se expôs, para as decepções de uma política utópica de alta-tensão, para os componentes mal-administrados da tecno-imaginação e as formas vazias da filosofia e da arte – em uma palavra: para o entulho da história humana que de forma alguma desapareceu, mas que se instalou ao redor do globo como uma barreira impenetrável”. (Kamper, 1994, apud Baitello Jr., 2002) 8 Produção de um espaço/tempo social absolutamente novo. Muniz Sodré, O Espelho de Narciso, 1990, p.31) Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 inimagináveis, vivendo aventuras que só os sonhos (ou pesadelos) nos permitiriam. Estamos falando de outras técnicas que dão origem a própria telerrealidade e que sem dúvida tem transformado pouco a pouco as relações humanas, os hábitos, costumes e ideologias desde a década de 50, quando surgiu a TV. O que se pode afirmar é que em quase 60 anos a TV não só invadiu a casa das pessoas, invadiu suas vidas, seus hábitos, sua cultura, assim como o espelho. Na poesia de Carlos Drumond de Andrade esta invasão de lares é sintetizada; Abre em nome da lei Abre sem nome e sem lei Abre mesmo sem rei Abre sozinho ou grei Não; não abras; à força De intimarte, repara: eu já te desventrei. (apud SEVCENKO, N. 1998, p. 616). Incorporando todas as técnicas de reprodução desenvolvidas na Modernidade, mas 121 também todo o ethos moderno de organização da vida social em termos de simultaneidade e de novidade, ela invade, com projetos de absorção, o campo existencial do expectador, oferecendo um espaço e tempo simulados (SODRÉ, 90, p. 30). Tendo como base o Censo de 2010 realizado pelo IBGE, a televisão está presente em 95,1% das residências brasileiras. Uma outra pesquisa, desenvolvida por Motorola Mobility afirma que o Brasil é um dos países no mundo que mais tempo fica diante da TV, 20 horas semanais (contra 23 dos EUA – primeiro lugar), conforme matéria veiculada na revista Exame.com. Esses dados nos mostram o quanto o povo brasileiro está imerso nos conteúdos midiáticos, o quanto nossas casas têm sido ocupadas por seus discursos e imagens. Esta invasão autorizada (como descrita no poema, quando se percebe já está sediada) tem uma razão principal, o fascínio que o ser humano tem em ver a si próprio. “O eu melhor que a TV apresenta é o que produz o homem real como um sujeito de desejos ilimitados [...]. O que fascina é essa duplicação aparentemente mais perfeita que eu mesmo, quase divina, porque ubíqua, instantânea, simultânea, global” (SODRÉ, 90, p.32). Conforme analisa Marchall McLuhan (apud Sodré, 1990, p. 17): o homem ocidental aprendeu, durante dezenas de séculos, a privilegiar a relação olho-cérebro (o olho transmite um sinal ao cérebro, que logo o Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 traduz), levando o pensamento a tornar-se cada vez mais abstrato (demonstrativo e racional). Então, sem dúvida que a contemporaneidade e seus novos espelhos se aproveitam deste sentido juntamente com a abstração que suas técnicas podem trazer, com objetivos diversos. Ratificando, então, pode-se dizer que, independente do espelho (midiático ou de mercúrio/alumínio) a base do encantamento provém do olhar. O olhar voltado a si mesmo: o olhar que se observa fascinado pelos movimentos, feições e gestos trabalhando concomitantemente com a imaginação. A imaginação tem como equivalentes o ato de ver e o fato de ser visto. “O fenômeno da fascinação consiste precisamente em saber que se é visto com intensidade, ou melhor, em se ver sendo visto” (SODRÉ, 1990, p.12). O Poder da Narrativa Se o que mais fascina o ser humano nesses novos espelhos é a possibilidade de ver-se 122 como isto poderia acontecer tendo em vista que o privilégio de estar nas telas restringe-se a poucos eleitos? Para que isso se concretize da melhor maneira, tendo em vista ser impossível que todas as pessoas do mundo apareçam de forma real na TV ou no cinema, há todo um mecanismo desenvolvido para criar essa “ilusão” e construir essa identificação. O início desse processo se dá quando a indústria da mídia eleva pessoas do meio comum e empresta-lhes uma aura especial, tornando-as personagens centrais de narrativas que em sua grande maioria são carregadas de conteúdos mitológicos. Segundo Contrera “A cultura muitas vezes determina totalmente a aceitação ou não de um produto, de acordo com a maior ou menor capacidade que ele tenha de evocar conteúdos do imaginário, provocando ou não uma identificação do público consumidor” (2003, p. 104). E, é exatamente com esta identificação do público que os meios de comunicação e a publicidade trabalham. “O mito9 é a primeira forma sistemática de narrativa. Em todas as culturas primitivas, o mito precede qualquer desenvolvimento de fabulação mais organizada” (MURAD, 2005). De acordo com Mircea Eliade (1986:84-88), o mito original conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do princípio. Em outros termos, o mito narra como - graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais 9- uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o 9 Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 A narrativa atua desde os primórdios como um mecanismo apaziguador para a humanidade que: satisfaz às necessidades religiosas; aspirações morais; sociais; é onde sonhos se realizam; onde respostas aos grandes enigmas do universo são dadas, entre inúmeras outras possibilidades, as quais se atualizam periodicamente. Pode-se dizer que as narrativas, devido à sua organização espaço-temporal, ordenam o pensamento gerando previsibilidade. As narrativas fazem parte do sistema comunicativo do homem e esse sistema, segundo Baitello Junior (1999, p. 99), “tem sempre função ordenadora dentro das sociedades: os símbolos regulamentam relações, convencionam significados e valores e, portanto, estabelecem ordem, tecem relações”. Desse sistema comunicativo depende o bom andamento dos relacionamentos em uma sociedade. Os personagens de uma narrativa estão intrinsecamente ligados a este processo, por serem um dos frutos desse sistema de significação. Entretanto, de onde vêm esses personagens do mito que dizem exatamente o que se precisa ouvir, que exorcizam os medos e “realizam” os sonhos coletivos? Eles são resgatados do mundo obscuro e encantado da Noosfera - “esfera das coisas do espírito, saberes, crenças, mitos, lendas, ideias, onde os seres 123 nascidos do espírito, gênios, deuses, ideias-força, ganham vida a partir da crença e da fé” (MORIN, 2005, p. 44). Ainda sobre o tema, Morin nos traz que: As representações, os símbolos, mitos, ideias, são englobados simultaneamente pelas noções de cultura e noosfera. Sob o ponto de vista da cultura, constituem em sua memória, os seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Sob o ponto de vista da nooesfera, são entidades feitas de substancia espiritual e dotadas de uma certa existência. Saída das próprias interrogações que tecem a cultura de uma sociedade, a noosfera emerge como uma realidade objetiva, dispondo de uma relativa autonomia e povoada de entidades a que vamos chamar de ‘seres do espírito’. (MORIN, 2005, p.101) Cosmo ou apenas um fragmento; uma ilha; uma espécie vegetal; um comportamento humano. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação” porque relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que realizaram no tempo prestigioso dos ‘primórdios’. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a Sacralidade (ou a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em resumo, os mitos descrevem as diversas e, algumas vezes, dramáticas, irrupções do sagrado (ou do sentido) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o mundo e o converte no que é hoje. É em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem se transformou em um ser mortal, sexuado e cultural. Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 Sendo assim, a Noosfera pode ser considerada uma fonte coletiva de conhecimento e inspiração para a humanidade onde são compartilhadas maneiras de ver, sentir e explicar as coisas do mundo. O Inconsciente Coletivo, termo criado pelo suíço Carl Gustav Jung, aponta para a mesma compreensão. Seria a camada mais profunda da psique humana constituída pelos materiais que foram herdados da humanidade. É nele que residiriam os traços formadores, tais como imagens virtuais, que seriam comuns a todos os seres humanos. O conjunto de imagens psíquicas do inconsciente coletivo seriam os arquétipos10. Existem tantos arquétipos quantas as situações típicas da vida. Uma repetição infinita gravou estas experiências em nossa constituição psíquica, não sob a forma de imagens saturadas de conteúdo, mas a princípio somente como formas sem conteúdo que representavam apenas a possibilidade de certo tipo de percepção e de ação. (JUNG, 1970, p. 53) Justamente por seu caráter comum, as pessoas se identificam muito com os mitos e 124 suas estórias de tal forma que quando a narrativa chega ao final, a sensação é de tranquilidade, equilíbrio, satisfação, e, ainda, uma certeza: a de que esses seres da imaginação que um dia nasceram através de uma história, certamente interferiram na formação cognitiva de quem os conheceu. Parte da complexidade do ser humano e de sua memória cultural se deve a esses personagens míticos. O que se faz hoje é aproveitar-se das características desses personagens míticos transpondo-as para personagens das narrativas televisivas e cinematográficas ou grandes personalidades da sociedade que geram mimetismos, ou seja, para os mitos da mídia11, que podem ser assim entendidos: A palavra arquétipo vem do grego achétypon, e significa "modelo", "padrão". Termo também proposto por Jung para "sistemas de prontidão para a ação e, ao mesmo tempo, imagens e emoções. São herdados junto com a estrutura cerebral - constituem de fato o seu aspecto psíquico." (JUNG, 1970: 53). 10 Utilizando uma proposição de Malena S. Contrera que a partir dos estudos sobre o tema propostos por Edgar Morin, assim o apresenta: “O mito da mídia é uma redução do mito original (...). Resultado: apresentam-se elementos suficientes para provocar a identificação do público, mas sem respeitar a relação desses elementos entre si e a composição do contexto primeiro, pondo a perder exatamente o caráter complexo, relacional e integrado do pensamento mítico. (...) Ao submeter esses motivos a um processo de pasteurização, impinge-se a esses motivos uma nova estética que opera a transformação do arquétipo em estereotipo”. (2003:109) 11 Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 Apesar de podermos sempre identificar suas raízes em algum mito original depois perdido, a estereotipia redutora predomina, e a função principal é a de impor modelos a serem reproduzidos em grande escala; ele tenta impor suas máscaras exatamente à custa das diversidades regionais, das realidades ambientais e sociais. É a imagem de Carmem Miranda (ou da Xuxa ou da modelo que está em alta) representando a mulher brasileira para o mundo, a de Marilyn Monroe representando a mulher americana, a de Lady Di representando a mulher inglesa, e assim por diante. (...) São mitos feitos para aumentar a sensação de impossibilidade de quem os vive ou de quem com eles entra em relação. (CONTRERA, 2003:110). Diante destes espelhos somos todos iguais: homogeneização e projeção Assim, o mito/narrativa acompanha a evolução humana desde o paleolítico, mas é na sociedade contemporânea, por intermédio dos meios de comunicação, que se transforma, se superficializa, se pulveriza e se ramifica em mito da mídia. Por mais superficializado que esteja, ainda assim gera identificações devido ao seu caráter arquetípico. A partir disto protagonistas de novelas, filmes, seriados e até atores e atrizes coadjuvantes acabam resgatando com seus personagens esse caráter mítico, onde mocinhos e vilões carregam em 125 suas “bagagens” símbolos comuns a toda a humanidade. Esta forma de falar com um público variado através de um denominador comum faz parte do processo de homogeneização. A homogeneização dos expectadores pelos meios de comunicação é feita, além das narrativas, através de informações variadas e segmentadas que atingem públicos de todos os níveis sociais, sexos e idades. Por exemplo, os programas de auditório que vão ao ar aos domingos, pela televisão brasileira aberta, apresentam pautas que abrangem curiosidades, reportagens, músicas, fofocas, danças, entrevistas e muitos substratos míticos. É uma forma de reunir diversos interesses para diversos públicos. É por este meio de se comunicar que nasce o homem universal12. É justamente para ele que os mitos da mídia são criados. A grande maioria da programação da mídia eletrônica e de suas narrativas são fundamentadas nessa homogeneização voltada para a estética da padronização. Porém, um dos motivos que torna convincente/sedutor esse processo é a presença do mito original Homem Médio ou Universal: “se trata do homem imaginário, que em toda a parte responde às imagens pela identificação ou projeção (...) se trata do homem-criança que se encontra em todo homem, curioso, gostando do jogo e do divertimento, do mito, do conto (...) de um homem que em toda parte dispõe de um tronco comum de razão perceptiva, de possibilidades de decifração, de inteligência. Nesse sentido, o homem médio é uma espécie de anthropos universal. A linguagem adaptada a esse anthropos é a audiovisual, linguagem de quatro instrumentos: imagem, som musical, palavra, escrita”. (MORIN, 1984:44-45). 12 Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 fragmentado e superficializado nos programas, filmes, telenovelas, etc., que arrancado de seu contexto original, ainda, estimula a identificação com os padrões arcaicos do mito. Assim, arquétipos como do mito do herói; o da grande mãe; da virgem inocente; do vilão, etc. cedem espaço a subarquétipos mais fiéis aos tipos empíricos. Isto serve de receita básica para a telenovela brasileira onde encontramos vários desses personagens com pequenas alterações contextuais entre si. Também, além das histórias mitológicas, para que haja identificação é necessário um certo equilíbrio entre o realismo e o sonho. Para Morin (1984, p. 82) é preciso haver condições de verossimilhança e de veracidade que assegurem a comunicação com a realidade vivida, que as personagens participem de algum lado da comunidade cotidiana. Mas é preciso também que o imaginário se eleve alguns degraus acima da vida. Isto é, a mídia escolhe situações cotidianas comuns e as privilegia com uma quantidade maior de emoções, de apelos afetivos. Ao assistir essas mesmas situações vividas 126 pelos anônimos no dia-a-dia, estes criam identificações e projeções. Fez-se a magia da imagem espetacular. Além do mais, este ciclo de projeções e identificações ganha forças na sociedade contemporânea, segundo Contrera (2003, p. 106) porque vivemos atualmente uma espécie de falência das experiências interpessoais cotidianas, que se tornaram aprisionadas por um modo de vida estereotipado (que limita as experiências interpessoais mais particulares) típico das sociedades de massa. O sentimento de familiaridade que tem sua origem no sentir-se pertencente a um grupo ligado a sua identidade, aos elos fortalecidos no cotidiano, entra em crise, justamente pela solidão em que vive o homem contemporâneo, e seu lugar é tomado por essa falsa sensação de familiaridade que as telenovelas e demais produtos seriados trazem. Nas narrativas de maior duração como novelas e seriados, esses personagens entram diariamente na casa dessas pessoas, período que se estende em média por oito meses, e no caso de alguns seriados, por anos. Durante este período, estabelece-se uma relação de Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 familiaridade13 por parte do expectador com esse personagem, pois dia-a-dia, o indivíduo o recebe em sua casa e participa de seus dramas, medos, sonhos e realizações sempre no mesmo local e horário. No final da telenovela, por exemplo, o espectador está inserido naquele contexto imaginário desenvolvido pela narrativa, criando vínculos que, ainda que efêmeros, são muito fortes com o protagonista ou outros personagens que lhe são simpáticos na trama. Além disso, o sentimento de familiaridade pode surgir quando uma personalidade aparece, ao mesmo tempo, em diferentes veículos de comunicação. Por exemplo: o ator de cinema que estreia um filme de sucesso é levado a programas de auditório para ser entrevistado. Simultaneamente sua história pessoal é contada por revistas e jornais. A popularidade acaba por trazer contratos publicitários que levam seu rosto a outdoors, luminosos, cartazes etc. Em pouco tempo, tudo se sabe a respeito daquela pessoa, seus amores e desamores, sonhos, fracassos, assim como se sabe a respeito de familiares. Esse processo de replicação dos mesmos temas por diversos veículos é o que Baitello Junior (1999) chama de autorreferência na mídia. 127 Segundo a antropóloga Silvia Borelli: Mediados por suas experiências cotidianas, e por repertórios que resultam de suas posições de classe, gênero, geração, etnia e formas de subjetivação, os receptores mergulham no fascínio das narrativas, histórias, enredos e personagens, reconhecendo os territórios de ficcionalidade14, dialogando com dimensões da videotécnica, estabelecendo conexões de projeção e identificação e construindo uma competência textual narrativa. (BORELLI, 2001, p. 34-35): Assim, a telerrealidade introduz o indivíduo, diariamente, às mais diversas dimensões midiáticas. Traz não só nosso reflexo, mas o mais perfeito deles. Cria identificações, projeções e além de tudo lhe proporciona a onipresença digna de portais/espelhos mágicos. Sentimento que se experimenta e se reforça no cotidiano porque se enraíza na sensorialidade dos estímulos da vida doméstica. (CYRULNIK, 1995, p.75). 14“Os territórios de ficcionalidade - ou gêneros ficcionais: melodramas, comicidade, aventura, indistintamente, mecanismos coletivos de projeção e identificação, quanto podem ser dirigidos, particularmente, a diferentes segmentos de público: jovens, crianças, adultos, homens ou mulheres, de etnias e estratos sociais distintos (...)”. Para o conceito de território de ficcionalidade ver: CALVINO, I. La machine littérature, Paris, Seuil, 1993. 13 Andréia Perroni Escudero REVISTA LUMEN ET VIRTUS ISSN 2177-2789 VOL. V Nº 10 MARÇO/2014 A combinação do poderoso sentido, que é a visão juntamente com o mundo imagético das mídias, produz-se o que temos atualmente: pessoas com necessidades plenas de tudo ver, falar, sentir, ouvir num espaço-tempo de imediatez, o que também é um reflexo da instantaneidade, simultaneidade e globalidade da TV e da internet. Muniz Sodré comenta o fato da seguinte forma: “Essa obsessão corresponde a modelos (organizacionais) de constituição do indivíduo como um Narciso onipotente. Daí a produção televisiva de novos ideais do eu”. (SODRÉ, 90, p. 66). E assim estes espelhos seguem, buscando refletir o homem em sua forma aparentemente mais real que a própria realidade, retroalimentando-o com imagens e cultura midiáticas, transpondo-o para mundos inimagináves e mantendo assim o fascínio que só os espelhos sabem exercer. O que é um espelho? É o único material inventado que é natural. Quem olha um espelho, quem consegue vê-lo sem se ver, quem entende que a sua profundidade consiste em ele ser vazio... esse alguém percebeu o seu mistério de coisa - Clarice Lispector 128 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAITELLO Jr., N. O Homem que parou os relógios. São Paulo: Annablume, 1999. BORELLI, S. “Telenovelas Brasileiras – Balanços e Perspectivas”, in XXIV Congresso Brasileiro da Comunicação Intercom, setembro/2001. Disponível em: <http: //www.reposcom.portcom.intercom.org.br>. Acesso em: 10/02/2007.´ CYRULNIK, B. Os Alimentos do Afeto. São Paulo: Ática, 1995. CONTRERA, M. S. O Mito na Mídia. São Paulo: Annablume, 1996. __________. Publicidade e Cia. (Organização). São Paulo: Thomson/Pioneira, 2003. ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. Lisboa: Livros do Brasil, 1986. JUNG, C.G. Mind and Earth. Collected Works of C.G. Jung Vol. 10. New Jersey: Princeton University Press, 1970. MORIN, E. Cultura de Massas no Séc. XX. O Espírito do Tempo – 1. Neurose. 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Disponível em: <http: //www.Cisc.org.br>. Acesso em: 10/02/07. 129 Andréia Perroni Escudero
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