1 A CONTABILIDADE NAS REPÚBLICAS ITALIANAS DA
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1 A CONTABILIDADE NAS REPÚBLICAS ITALIANAS DA
A CONTABILIDADE NAS REPÚBLICAS ITALIANAS DA BAIXA IDADE MÉDIA: O BERÇO DA DIGRAFIA Maria da Conceição da Costa Marques, Ph.D Professora Adjunta no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra Doutora em Gestão, especialidade em Contabilidade Miguel Maria Carvalho Lira, MsC Equiparado a Assistente do 1.º Triénio no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra Mestre em Contabilidade e Auditoria Resumo Neste trabalho procuraremos apresentar uma resenha sobre a evolução sofrida pela Contabilidade na Península Itálica, desde a Alta Idade Média à Baixa Idade Média, designadamente o desenvolvimento registado nesse período nas Repúblicas Italianas que surgiram após a queda do Império Romano do Ocidente. Para além desta análise e da apresentação de alguns exemplos de registos contabilísticos Italianos, da citada época, e dado que a quase totalidade dos historiadores da contabilidade considerarem que o método digráfico surgiu nessas Cidades-Estado, abordaremos – de uma forma sintética – a conjugação de factores que levaram ao aparecimento das Partidas Dobradas, nos finais do séc. XIII, no território da actual Itália. Em resumo, este trabalho procura demonstrar a enorme importância que as Repúblicas Italianas tiveram no desenvolvimento da Contabilidade mundial. 1 INTRODUÇÃO É inegável a peculiar importância da Península Itálica na evolução do pensamento contabilístico mundial, na medida em que foi aí que se deram os primeiros desenvolvimentos realmente importantes na Contabilidade. Deles sobressai a “invenção”, algures nos finais do século XIII, do método de registo contabilístico por partidas dobradas, fruto de um desenvolvimento gradual da técnica contabilística. Assim, o que este trabalho pretende é traçar o desenvolvimento sofrido pela Contabilidade na s Repúblicas Italianas no período compreendido, sensivelmente, entre os séculos XII a XVI. Para além dos aspectos contabilísticos, aqui serão incluídas breves caracterizações históricas, de forma a clarificar toda o contexto socio-económico da época anteriormente referida. Após estas caracterizações históricas, daremos início ao estudo da evolução da contabilidade na península itálica, apoiando- nos, para isso, em vários exemplos de registos contabilísticos da Baixa Idade Média. Existirá espaço ainda para uma análise dos factores que resultaram na criação do método digráfico, não esquecendo uma breve apresentação das primeiras formas de difusão desse método que foram apresentadas por autores italianos. 1 - BREVE CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA DA IDADE MÉDIA Após as invasões bárbaras, que resultaram no fim do Império Romano do Ocidente, a administração pública baseada nos métodos romanos desapareceu quase completamente, ao mesmo tempo que se deu uma considerável redução da actividade económica, nomeadamente do tráfico comercial. E isto porque após o desaparecimento do referido Império se seguiu o caos político, económico e social, de que resultou a total destruição de tudo aquilo que os romanos, paciente e metodicamente, haviam concebido e realizado ao longo de muitos séculos. Enumerando de forma sucinta as causas mais importantes para esta decadência, temos: 2 ° diminuição da população; ° incremento do latifúndio 1 ; ° corte das comunicações com a economia oriental; ° ruptura da unidade política. Assim foi decorrendo um período que os historiadores designaram de ´Idade Média e que abrangeu, aproximadamente, mil anos, desde o fim do Império Romano do Ocidente, em 476, até à queda de Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente, em 1453. Os historiadores modernos subdividiram este longo espaço temporal em duas etapas: ° Alta Idade Média (séc. V a X); e ° Baixa Idade Média (séc. XI a XV). 1.1 - Alta Idade Média A Alta Idade Média, com uma economia assente no latifúndio e na autosubsistência e auto-eficiência, apresentava como características próprias uma completa decadência das instituições públicas e da actividade económica e uma segmentação da população em classes sociais distintas, integrando a nobreza, o clero e o povo. Os membros do povo eram servos dos senhores feudais 2 , de que recebiam certos direitos em troca de certos deveres3 , e toda a sociedade medieval se baseava numa obediência indiscutível. O feudalismo era, assim, um sistema em que os membros da 1 2 3 O incremento do número das grandes propriedades funcionará como o começo de um círculo vicioso interligando várias das causas para a decadência – a vários níveis – registadas na Alta Idade Média. Por exemplo, os donos dessas propriedades irão virar-se para a auto-subsistência e a auto-eficiência, vendendo os excedentes apenas a nível local, o que resultará no declínio das trocas comerciais. Podemos apontar igualmente o facto de termos a trabalhar nestas terras, camponeses que não têm dinheiro para ter e cultivar terras próprias. Progressivamente, os senhores feudais irão ter cada vez mais poder sobre eles e assim temos a génese da obediência indiscutível que caracterizava a sociedade medieval. Os senhores feudais surgiram da aristocracia fundiária representada pelos chefes bárbaros invasores ou pelos líderes de bases locais onde a agricultura comunitária já era predominante (Cosenza, 1999, pg. 90). Como na época a mão-de-obra era o mais importante factor produtivo, o sistema feudal era desenhado para manter os servos nas terras dos senhores feudais. 3 sociedade deviam obediência a alguém hierarquicamente superior, até se atingir a autoridade suprema do Rei. A economia internacional da bacia do Mediterrâneo – característica da civilizção romana – retornou a uma economia regional, dividida em compartimentos estanques ou, pelo menos, com escassa comunicação entre si. Podemos inferir que a uma economia unitária sucedeu um mosaico de círculos económicos fechados. Portanto, e tendo em consideração este ambiente economicamente “inóspito”, não é de admirar que não sejam conhecidos registos contabilísticos inovadores datados deste período, até porque, segundo Noel Monteiro (1973, pg. 19), os mesmos acabaram por se tornar quase dispensáveis. Dentro desta perspectiva, e de acordo com Melis 4 , citado por Cosenza (1999, pg. 90), “a Contabilidade adquiriu, no início da Idade Média, formas tão rudimentares que chegava a lembrar os milénios anteriores”. Com toda a legitimidade podemos considerar que neste período se assistiu a um retrocesso temporal de todo o desenvolvimento da Contabilidade da civilização romana. O único sector da sociedade onde, porventura, existiu uma organização administrativa e contabilística digna desse nome foi no seio da Igreja Católica, que se tornou determinante para a forte influência que esta teve durante o período em estudo. Cosenza (Ibidem), argumenta que esta organização se fica a dever a vários factores, dos quais os mais importantes serão: 1. Pertencerem à Igreja grande parte dos domínios territoriais; 2. Possuir muitos bens móveis, obtidos através de heranças e doações dos fiéis; 3. E, decorrentes dos dízimos, serem seus, em grande parte, os escassos recursos financeiros. Tal facto impunha uma ordenada administração, bem como registos dos factos de cada entidade a ela subordinada. Desta forma, as escolas de formação religiosas 4 Melis, Federigo (1950). Storia de la Ragioneria: contibuto alla conoscenza e interpretazone delle fonti piú significativa della storia ecomica. Cesare Zuffi Editore, Bolonha, pg. 9. 4 ensinavam técnicas de administração patrimonial das paróquias, incluindo a aprendizagem e prática de Contabilidade. Mas viria o ressurgimento económico e o intercâmbio intelectual e económico entre o Ocidente e o Oriente iria ser restabelecido. Para isso, muito contribuíram alguns recantos do desaparecido Império Romano do Ocidente. 1.2 – Baixa Idade Média A partir do século XI observa-se na Europa um movimento de renascimento económico que, com a ascensão da burguesia, dá inicio à alteração da ordem vigente no mundo medieval. Estas alterações irão levar, por exemplo, a que a Igreja tenha cada vez menos poder sobre os indivíduos e os Estados. É neste contexto que surge a prática de cobrança de juros e o conceito de preço incluindo lucro, que se tornaram os alicerces do advento do capitalismo. Com estas alterações o espírito capitalista passou a encontrar maiores oportunidades de realização (Kam, 1990, pg. 14). Esta mudança de mentalidade pode considerar-se como verdadeiramente revolucionária, pois na Alta Idade Média a realização de lucro era considerada imoral. Daí que os que praticavam o comércio não fossem apreciados, nem estimados pelo resto da sociedade. Os dois principais pólos deste ressurgimento económico e social foram as Repúblicas Italianas do Norte e a Flandres. Nestas duas regiões, para além de um intenso comércio com outros povos, desenvolve-se a pequena indústria, principalmente a dos tecidos. A economia monetária volta a substituir o quase total regresso à economia natural, ocorrido no período anterior, o crédito propaga-se e com ele surgem as letras de câmbio e outros títulos, indiciados pelo surgimento, nesta época, dos banqueiros que ganhavam a vida a fazer empréstimos com garantia, ao mesmo tempo que promoviam transacções comerciais mediante a comandita de empresas e o seguro dos navios. Marques (2000, pg. 69), é de opinião que todo este desenvolvimento da actividade comercial é que forçou um aperfeiçoamento, gradual mas rápido, da técnica 5 contabilística. E assim, num período relativamente curto, se evolui do registo por partida simples para o método de registo por partidas dobradas 5 . 2 – EVOLUÇÃO DA CONTABILIDADE NAS REPÚBLICAS ITALIANAS O desenvolvimento da Contabilidade registado na península itálica, dentro do período em análise, foi algo de notável: o uso da partida simples foi sendo sucessivamente aperfeiçoado até surgir o que designamos por sistema digráfico ou método da partida dobrada. Nos próximos parágrafos, apresentaremos, então, a referenciada evolução. Os primeiros registos italianos conhecidos indicam que nos primórdios desta evolução os factos contabilísticos eram registados numa espécie de Memorial. Posteriormente, e como primeiro grande aperfeiçoamento, as contas dos devedores e credores passaram a estar destacadas. Em resumo, podemos afirmar que nestes primeiros tempos estamos perante uma contabilidade baseada na partida simples. Neste âmbito, as contas dizem-se simples porque cada assento consta ou só de débito ou só de crédito, conforme se refira ao registo da transacção inicial ou ao da sua liquidação. Quando liquidadas, as contas eram traçadas de modo a se saber, por simples inspecção visual, quais as que se encontravam extintas. Nelas aparecem as expressões deve dare (deve) e deve avere (tem a haver) que se tornaram na dialéctica da Contabilidade até aos nossos dias (Noel Monteiro, 1978, pg. 614). De um modo geral, e como assinala Goff (1991, pg. 28), a escrita dos livros de comércio tornou-se cada vez mais cuidada e os métodos de escrituração tornaram mais fácil a leitura dos livros contabilísticos. A opinião de Noel Monteiro (1978, pg. 618), sobre o que originou a digrafia, é clara: “foi a extensão das contas, primeiro de pessoas, na partida simples, aos elementos do património e do rédito, até representarem todo um sistema, o sistema patrimonial”. 5 Os requisitos necessários para se poder falar do método de partidas dobradas divergem de autor para autor; mas é geralmente aceite que o método digráfico é caracterizado pela existência de lançamentos simultâneos e antitéticos, de igual valor absoluto, em contas que constituem um sistema fechado (Gomes, 2000, pg. 14). 6 As partidas dobradas foram, assim, precedidas pelas partidas simples e pelas partidas mistas, constituindo a última fase desta evolução. Podemos mesmo afirmar que são o resultado final de um sem número de graduais aperfeiçoamentos. Lopes Amorim (1969, pg. 71 e 72) admite que a responsabilidade desta evolução se deveu aos contabilistas que, em virtude das alterações do comércio da época, designadamente, ao facto de as mercadorias nas viagens marítimas através do Mediterrâneo deixarem de estar sob “os olhos vigilantes dos seus possuidores”, viramse forçados a ir alargando progressivamente o método já conhecido “para o registo contabilístico dos débitos e dos créditos inerentes às pessoas e aos restantes elementos e componentes do património dos seus patrões”. Segundo Fourquin 6 , citado por Cosenza (1999, pg. 104), a Contabilidade por partidas dobradas surgiu no termo de quatro fases, a saber: 1. O registo das operações de crédito a terceiros foi confiado ao GuardaLivros, criando-se assim as contas individuais. A conta de cada cliente ou associado cobre duas páginas do registo: à esquerda, o deve, onde são lançados os débitos, somas devidas pelo titular da conta; à direita, o haver, onde são lançados os créditos, somas devidas ao titular. 2. O aperfeiçoamento da conta tradicional de Caixa, para a pôr de acordo com a técnica das contas-correntes individuais. 3. A presença, na Contabilidade, de contas que descrevem a totalidade dos negócios da sociedade, as contas de valores. 4. Finalmente, a conciliação destas novas contas pela interposição de uma conta também de natureza nova: o registo de lucros e perdas. Este processo evolutivo culminou numa série de três tipos de contas – em vez da conta única de Caixa anteriormente utilizada – as individuais, as de valores, e as de lucro e perdas, as quais eram unidas entre si mediante a aplicação da metodologia preconizada na escrita por partidas dobradas. 6 Fourquin, Guy (1991). História económica do ocidente medieval, 3.ª edição. Edições 70. Lisboa, pgs. 405 e 406. 7 No entanto, este método não se desenvolveu da mesma maneira em toda a Península Itálica: o avanço no Norte foi maior do que o registado na Toscana. Génova e Milão foram pioneiras, enquanto que Florença não utilizou o sistema bilateral até fins do século XIV. Por outro lado, na Toscana as contas eram registadas em italiano, enquanto que no Norte ainda se continuava a usar o latim no século XV. Em Florença, quando em 1382 um comerciante de seu nome Paliano indica que registava as suas contas alla Veneziana, a expressão que este utiliza parece sugerir que, para a capital toscana, o sistema teria vindo de Veneza. No entanto, Hodgett (1975, pg. 87) é da opinião que “Veneza não estivesse tão mais adiantada do que Génova e Milão na prática de fazer balancetes”. 3 – OS MAIS IMPORTANTES REGISTOS CONTABILÍSTICOS DAS REPÚBLICAS ITALIANAS DA BAIXA IDADE MÉDIA Data de 1211 o primeiro livro de registos contabilísticos da Idade Média hoje conhecido: um Diário 7 , onde se registava as operações por meio de parágrafos. É o Libri di Banchieri Fiorentinis escriturado na República de Florença, e que utilizava o princípio da unigrafia (Brito, 1997, pg. 3). Neste livro eram descritas, dia a dia, as operações do comerciante: nele se debitava o indivíduo que recebia bens para troca, e do mesmo modo que se creditava quem entregava bens. Mais porme nores sobre esta obra são adiantados por Lee (1994, pgs. 162 e 163), nomeadamente que é constituída por duas folhas de formato de 43x28 cm/s, o texto é escrito em italiano, com algumas expressões em latim, e que pertencia a uma firma bancária que operava em Bolonha, Florença e Pisa. De acrescentar que as entradas não estavam por ordem cronológica, o que leva a supor que deveriam ter sido lançadas no momento em que chegavam ao conhecimento dos contabilistas as evidências dos empréstimos 8 . 7 8 Este documento encontra-se na Biblioteca Mediceo-Laurenciana, sob o código AEDIL67 (Lopes de Sá, 1998, pg. 46). Este livro dizia respeito a empréstimos em moedas florentina e estrangeira (Noel Monteiro, 1973, pg. 20). 8 Para uma grande maioria de autores, o primeiro registo contabilístico completo conhecido e que usava o método digráfico data de 1340 9 , e intitula-se Libro dello Massari. Era o livro onde foram assentes as contas dos Massari 10 da Comuna de Génova. A análise deste documento demonstra o método digráfico aplicado com perfeição, usando para tal dois livros Razão: um pertencente aos Massari que eram em número de dois; e o outro pertença dos dois fiscais responsáveis pela auditoria da administração das contas da Comuna de Génova. Conforme refere Herrmann Jr. 11 , citado por Cosenza (1999, pg. 109), estes livros foram escriturados em Latim e evidenciavam os lançamentos de débito e crédito. Para o débito, utilizava-se a expressão debet nobis pro e, para o crédito, recépimus in. Ao lado de contas abertas a diversas categorias de pessoas, encontravam-se contas abertas a diversos valores e a conta da Comuna que fazia as vezes da conta do Capital. As despesas eram escrituradas numa conta denominada Avarie; enquanto que as perdas sobre mercadorias e os lucros sobre trocas em uma conta de Lucros e Perdas sob o título Proventus cambii et damnum de rauba vendita. Atendendo que os livros tinham um carácter anual, e considerando que muitas das contas apresentadas no exercício de 1340 haviam sido transportadas do exercício anterior, há uma forte probabilidade de que as partidas dobradas já fossem utilizadas desde 1339 ou, eventualmente, mesmo antes desta data12 . Marques (2000, pg. 70) admite a existência de registos mais antigos do que este, e que utilizavam o metido digráfico, – porventura não tão completos – concretamente os da Compagnia Burlamacchi de Lucca, da região da Toscana, escriturados entre 1332 e 1336. Por seu lado, Kam (1990, pg. 12) refere a existência de outros registos que já denotavam este tipo de escrituração, nomeadamente os de pertença a Rinerio e Baldo 9 Segundo Yamey (1996, pg. 309) existirão livros contabilísticos datados de 1339, e que pertenciam a um mercador de seu nome Freris Bonis. No entanto, o autor não adianta muitos pormenores sobre os mesmos, impossibilitando uma maior referência. 10 Massari era a designação de uma espécie de administradores municipais, encarregados da gestão do património e das finanças. 11 Herrmann Jr., Frederico (1945). Contribuição para o progresso da economia. Revista Paulista de Contabilidade n.º 250, Abril de 1945, pg. 10. 12 Hodgett (1975, pg. 87) aponta o ano de 1327 para o começo do uso das partidas dobradas pelos massari. 9 Fini, com movimentos entre 1296 e 1305, e o livro de Razão de Giovanni Forolfi que abarca os anos de 1299 e 1300. No entanto, para Lopes de Sá (1992, pg. 31), o mais antigo documento de que se tem prova do uso do método digráfico remonta a 1281, e foi produzido por uma casa mercantil e bancária 13 . Um bom exemplo da passagem da unigrafia para a digrafia é apresentado por Fabio Besta 14 , citado por Lopes Amorim (1969, pg. 72), e refere-se ao livro pertencente à corporação dos comerciantes do bairro veneziano de Castello, que contém lançamentos referentes ao período decorrente de 23 de Abril de 1430 a 1 de Setembro de 1438. As contas nele relevadas apresentam-se em secções divididas lateralmente, mas na sua primeira parte a escrituração não é digráfica porque lhe faltam quase sempre os históricos das contrapartidas e, a maior parte das vezes, as próprias contrapartidas. Todavia, à medida que os lançamentos se vão sucedendo no livro, vão-se integrando cada vez mais dados até que por volta do ano de 1436 (e daí em diante) a partida digráfica é aplicada correctamente. Este exemplo é muito curioso e sobretudo muito elucidativo, porque nos mostra como, na mesma entidade, a Contabilidade se foi adaptando progressivamente às necessidades da relevação do movimento patrimonial, mediante o melhoramento sucessivo do seu processo de registo, até se atingir a configuração do sistema digráfico, em que a causa e o efeito são simultaneamente postos em evidência no mesmo lançamento. A realização de inventário não era muito usual na época (séculos XIII a XV), na medida em que a regularização periódica das contas só começou a praticar-se no século XVII. Excepção a esta prática foi apontada por Cosenza (1999, pg. 110): a Contabilidade dos Datini, de Florença, cujas sucursais realizavam inventários anuais para a avaliação dos bens móveis e imóveis, levando em conta a depreciação desses activos, desde finais do século XIV. 13 14 No seu artigo, o autor não adianta muitos mais pormenores desse documento como, por exemplo, o nome da casa mercantil e bancária, cidade onde foi produzido, etc. Besta, Fabio (1929). La ragioneria. Casa Editice Dottor Francesco Vallardi. Milão, pgs. 309 e 310, Vol III. 10 O mais antigo documento de inventário que conseguiu chegar até aos nossos dias, na opinião de Lopes de Sá (1977, pg. 110), pertenceu à Filiale di Pisa della Compagnia di Fillippo Peruzzi, e era relativo ao ano de 1277. O mesmo autor aponta o ano de 1280 como sendo a data da elaboração do mais antigo documento de Balanço de que se tem notícia, e que pertencia à Compagnia Ugolini di Siena. Mas o Balanço mais antigo e que se encontra escriturado na integra – o anterior é um fragmento – é de 1306, e está escrito no Libro Segreto15 di Alberto del Giudice e Compagni. Tanto estes Balanços como o inventário referenciado no parágrafo anterior são da região italiana da Toscana. 4 – PRIMEIRAS FORMAS DE DIFUSÃO DO MÉTODO DIGRÁFICO Foram igualmente naturais das Cidades-Estado italianas os primeiros a divulgar o método digráfico através de obras impressas. O primeiro foi o frade franciscano Luca Pacioli 16 , no seu Tractactus de computis et scripturis, integrado na sua obra denominada Summa de Arithmetica, Geometria Proportioni et Proportionalita, publicada em Veneza em 10 de Novembro de 1494 17 . Não se tratava de uma obra dedicada exclusivamente à Contabilidade, era sim uma espécie de enciclopédia das ciências matemáticas: aritmética, álgebra, matemática financeira, cálculo de probabilidades e geometria. A Contabilidade era apenas abordada no Tratado XI – dividido em 36 capítulos – que estava inserido na Distinção IX, da primeira parte 18 . Aqui o autor disserta sobre como se deve escriturar, que cuidados são necessários, quais os principais registos, 15 Cosenza (1999, pgs. 98 e 99) relata a existência de um livro específico, denominado livro secreto (Libro Segreto), ou libro della ragione, assim denominado pelo carácter confidencial das suas anotações, sendo o seu acesso apenas permitido ao Guarda-Livros e aos sócios. Era objecto dos maiores cuidados, sendo utilizado para registro dos termos de associações e da participação dos associados no capital, dos dados que permitiam calcular, em qualquer momento, a posição destes sócios na sociedade, bem como da distribuição dos lucros e perdas. A importância da escrituração no libro della ragione residia no facto de ele ser o único capaz de mostrar com precisão os deveres e direitos dos associados, já que a parte de cada sócio no capital social, o montante de depósitos em dinheiro feitos por terceiros, a distribuição dos lucros ou perdas em fim de exercícios e o pagamento do salário do pessoal eram nele registrados. 16 Este autor é conhecido por vários nomes: Luca Pacioli, Luca Paciolo, Luca di Borgo (Marques, 2000, pg. 71), ou ainda Lucas Patiolus (Brown, 1968, pg. 108). 17 A obra de Pacioli teve quatro edições (1494, 1523, 1878 e 1911) e foi traduzida em várias línguas. 18 A Summa de Arithmetica, Geometria Proportioni et Proportionalita está dividida em duas partes, e cada uma em distinções, estas em tratados, que, por sua vez, se subdividem em capítulos. 11 como saldar contas, quais os principais livros que deveriam ser usados, etc. Por reflectir as práticas correntes na Veneza da época, o método digráfico aqui exposto ficou também a ser conhecido como método de Veneza ou método veneziano. Dada a importância desta obra, Melis 19 , citado por Lopes de Sá (1998, pg. 49), estabelece como marco da era da literatura contabilística o ano de 1494, tendo como base a obra do religioso toscano, que marca, inegavelmente, o aparecimento da Contabilidade sistemática. Não obstante a Summa de Pacioli ter sido a primeira obra impressa em que era abordado este tema, já 36 anos antes Benedetto Cotrugli escrevera Della mercatura e del mercante perfetto20 , que tal como a obra de Pacioli, foi escrita em italiano, mas que só foi publicada em 1573. Este era um trabalho sobre métodos comerciais, que continha um pequeno capítulo descrevendo o método digráfico. O primeiro livro importante impresso depois do de Pacioli foi, na opinião de Castel-Branco (1964, pg. 41), o Quaderno doppio col suo giornale, de Domenico Manzoni, publicado em 1534 ou 1540. O autor era contabilista profissional e professor, e deve salientar-se ainda que foi o primeiro a introduzir a prática de numerar os lançamentos do Diário. Antes de surgirem estes livros, designadamente desde inícios do século XIII, a divulgação da Contabilidade era feita através das scuole d’abaco, cujos mestres, os abachisti, ensinavam aritmética e Contabilidade, através de diversos documentos que continham, entre outras, lições de aprendizagem de Contabilidade. Embora nenhum deles tenha chegado até nós, sabe-se da sua existência porque algumas companhias debitavam nas suas contas de despesas a aquisição destes manuais. Todavia, não foram nem estes manuscritos de aprendizagem nem a obra de Beneditto Cotrugli que impulsionaram a difusão do método de Veneza. Esse papel coube à obra de Luca Pacioli. Citando Julve (2003, pg. 4): “a obra de Pacioli não deve a sua importância à originalidade ou à novidade, visto que o método já era utilizado, nada mais tendo ele feito 19 20 Melis, Federigo (1950). Storia de la Ragioneria: contibuto alla conoscenza e interpretazone delle fonti piú significativa della storia ecomica. Cesare Zuffi Editore, Bolonha. É uma anotação no fim deste trabalho que sugere o ano de 1458 como a data da sua conclusão (Zeff, 1961, pg. 24). 12 senão recolher em volume a prática do seu tempo, tal como então se desenvolvia, expondo os princípios e a estrutura matemática do que amplamente se viria a conhecer como o modo de «Veneza». A sua importância deriva, sim, do facto de ser o primeiro tratado sistemático impresso acerca de Contabilidade e de constituir um veículo eficaz para a expansão e difusão além- Alpes dos princípios do método”. Durante o século XVI publicaram-se vários livros dentro desta temática não só por autores italianos 21 , mas também por alemães, holandeses e ingleses. Todas estas obras, na opinião de Hendriksen (1970, pg. 28), apresentavam uma descrição da escrituração comercial por partidas dobradas semelhante à apresentada pelo frade, e que durante os séculos XVI e XVII levaram à disseminação do método italiano por toda a Europa. É esta a razão pelo qual Melis 22 , citado por Lopes de Sá (1998, pg. 49), estabelece como marco da era da literatura contabilística o ano de 1494, tendo como base a obra do religioso toscano, que marca, inegavelmente, o aparecimento da Contabilidade sistemática. 5 – FACTORES QUE LEVARAM À “INVENÇÃO” DO MÉTODO DIGRÁFICO NA PENÍNSULA ITÁLICA Como podemos deduzir pelos pontos anteriores, a importância das repúblicas italianas no desenvolvimento da Contabilidade resulta, principalmente, do facto de ter sido nestas Cidades-Estado que foi desenvolvido o método das partidas dobradas. Mas, algumas perguntas se levantam: porquê é que esse desenvolvimento aconteceu lá e não noutro qualquer ponto do mundo?; e porquê é que o método digráfico surgiu nos finais do século XIII e não noutro período temporal? A resposta está na conjugação de vários factores, a saber: 21 22 É apresentada, no Anexo 2, uma extensa lista dos livros mais importantes e representativos escritos por autores italianos, até princípios do século XIX. Melis, Federigo (1950). Storia de la Ragioneria: contibuto alla conoscenza e interpretazone delle fonti piú significativa della storia ecomica. Cesare Zuffi Editore, Bolonha. 13 ° Geo-Políticos; ° Cruzadas e o comércio com o Oriente; ° Banca e instrumentos de crédito; ° Sociedades comerciais ; ° Aumento da população urbana europeia ; ° Desenvolvimentos científicos e tecnológicos. A junção de todos os factores – que irão ser de seguida estudados – criou um clima económico adequado ao surgimento e posterior evolução da Contabilidade mercantil, na medida em que conduziram ao desenvolvimento do comércio e, posteriormente, da banca e das sociedades comerciais na Península Itálica, o que levou a que fosse necessária uma Contabilidade cada vez mais complexa e fiável. Isto é, resultaram num gradual aperfeiçoamento da Contabilidade até ser atingido o método das partidas dobradas no século XIII23 , sendo este precedido pelas partidas simples e pelas partidas mistas. Não será também de descurar a relevância de alguns desenvolvimentos científicos e tecnológicos que contribuíram, entre outros aspectos, para uma melhor e mais rápida divulgação do método digráfico. 5.1 – Factores Geo-Políticos As Repúblicas do Norte da Península Itálica retiveram algo da cultura e do espírito empreendedor da civilização romana, bem como os seus preceitos legais. Para além disso, conseguiram manter-se à parte do sistema feudal que dominou a Europa durante perto de cinco séculos 24 . 23 Kam (1990, pg. 12) refere a existência de registos que já denotavam este tipo de escrituração, nomeadamente os de pertença a Rinerio e Baldo Fini, com movimentos entre 1296 e 1305, e o livro de Razão de Giovanni Forolfi que abarca os anos de 1299 e 1300. No entanto, para Lopes de Sá (1992, pg. 31), o mais antigo documento de que se tem prova do uso do método digráfico remonta a 1281, e foi produzido por uma casa mercantil e bancária italiana. 24 Os elementos apresentados neste ponto foram retirados da obra de Kam (1990, pgs. 16 e 17). 14 A sua posição geográfica privilegiada, especialmente de Veneza e Génova, foi essencia l para as estabelecer como importantes intermediárias no comércio com o Oriente. Analisando pormenorizadamente os sistemas políticos, constatamos que Veneza teve uma organização governamental memorável. Isso deveu-se ao facto de a sua economia não ser baseada no trabalho da terra, mas sim no comércio e na indústria, levando a que o poder passasse a estar associado àqueles cuja riqueza provinha de outras fontes de rendimento diferentes da terra. Em Veneza, fundada depois da queda do Império Romano do Ocidente, os poderosos cedo compreenderam que a cooperação entre si era essencial para maximizarem as suas oportunidades. Por volta do século XII, a sua estrutura governamental passou a ser dirigida por um chefe, o doge, que prometeu respeitar as leis e a constituição, dispondo ainda de um parlamento eleito, o Grande Conselho. A classe que ditava as regras, proveniente dos sectores do comércio e da indústria, controlava o Conselho e assegurava-se de que as leis que eram promulgadas o fossem no seu interesse econó mico. Ao contrário de Veneza, uma hierarquia de senhores feudais controlava Florença, o que levou os mercadores a terem de lutar para fazerem ouvir a sua voz no governo. Como consequência, o século XIII assistiu a uma luta feroz de comerciantes e industriais com a nobreza, com vista a retirarem- lhe o poder, o que só conseguiram quando se agruparam em guildas 25 . Logo que a prosperidade da cidade passou a depender do comércio e da indústria, as guildas passaram a estar em condições de atingirem o seu objectivo. Em 1282, estas criaram um órgão chamado Priores das Artes, que assumiu o poder supremo da administração daquela Cidade-Estado. Ora, como eram os chefes das guildas que designavam os Priores, e como um Prior tinha de ser membro de uma das maiores guildas 26 , a política do governo era direccionada no sentido de proteger os interesses dessas guildas mais influentes. Historicamente, Génova é conhecida pela mortal luta de classes entre a nobreza e a burguesia. Várias formas de governo foram ensaiadas, incluindo a atribuição da autoridade a dirigentes estrangeiros. No entanto, quando muita da nobreza se tornou comerciante, as políticas governamentais passaram a favorecer os negócios. 25 26 Guilda é uma associação corporativa de artesãos, mercadores, artistas, etc. Como eram o caso das guildas dos juízes, importadores de roupa estrangeira, banqueiros, fabricantes de tecidos, mercadores de sedas, fabricantes de peles e boticários. 15 5.2 – As Cruzadas e o Comércio com o Oriente Como factores que impulsionaram grandemente este desenvolvimento comercial podem apontar-se as Cruzadas27 . E porquê? Por um lado, os cruzados necessitavam de barcos e de mantimentos, por outro, ao regressarem da guerra santa, aumentaram a procura dos produtos orientais 28 , que tinham tido a oportunidade de conhecer. Portanto, as cruzadas serviram para, numa primeira fase, estimular o comércio, e, numa segunda fase, para o desenvolvimento da indústria, pois era indispensável ao Ocidente criar produtos que servissem de objecto de troca 29 . 5.3 – Banca e Instrumentos de Crédito O desenvolvimento do comércio e, consequentemente, da economia nas Cidades-Estado italianas levou à acumulação de capital, cujo efeito directo foi a realização de operações de crédito (Chatfield e Vangermeersch, 1996, pg. 184). Os italianos não só se tornaram os mercadores da Renascença, como, na opinião destes dois autores, quase monopolizaram a banca internacional. O posterior desenvolvimento natural de instrumentos de crédito, que surgiram devido à necessidade de encontrar alternativas para o transporte de dinheiro nas viagens comerciais, levou a que, segundo Marques (2000, pg. 70), fossem necessários livros para registar os montantes em causa e as datas de recebimentos e pagamentos, isto é, exigiu um sistema de registos mais integrado. Em resumo, a partir do século XII, desenvolveram-se na Península Itálica métodos bancários e contabilísticos que ajudaram a minimizar o risco sobre o capital 27 28 29 As cruzadas surgiram na sequência da conquista de Jerusalém pelos Turcos, em 1079. Esta captura levou o Papa Urbano II, 16 anos depois, a declarar uma guerra santa que ficou conhecida pela 1ª Cruzada. Outras sete se seguiram: 1.ª (1095-1099); 2.ª (1147-1149); 3.ª (1189-1192); 4.ª (1202-1204); 5.ª (1217-1219); 6.ª (1228-1229); 7.ª (1248-1254); e 8.ª (1270) (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 8, pg. 171). De entre todas as mercadorias destacavam-se produtos de tinturaria, especiarias, perfumarias, marfim, pérolas, objectos de ouro e prata, pedras preciosas, tecidos de lã, seda, etc, sem esquecer a projecção que passaram a ter os vinhos do Oriente (Hodgett, 1975, pg. 77). Os produtos mais exportados para o Oriente eram o sal, couros curtidos e trabalhados, madeiras, armas, vidros, espelhos, cristais e tecidos de lã, de linho, etc. 16 investido, assegurando um rendimento atraente. Todas estas inovações contribuíram, e muito, para o desenvolvimento do comércio da época. 5.4 – Sociedades Comerciais À medida que o desenvolvimento económico continuava a expandir-se, o comércio por particulares isolados foi sendo substituído, em grande parte, pelo intercâmbio realizado através de sociedades e agências. A este respeito, Astuti30 , citado por Amzalak (1997, pg. 525) 31 , afirma que “na Itália, onde apareceram as primeiras formas de capitalismo na época das Cruzadas e até antes, é que se entrou a formar para o comércio um livro das associações efémeras, geralmente para a duração de uma única viagem, entre mercadores dotados de espírito de empreendimento e capitalistas aliciados pela perspectiva de grossos lucros”. Estas sociedades poderiam ser divididas em quatro tipos diferentes, a saber: 1. Commenda – associação onde o possuidor do capital emprestava os recursos para o empreendimento, correndo todos os riscos financeiros em caso de perda ou prejuízo, ao passo que o tomador do empréstimo apenas perdia o esforço pelo seu trabalho. Havendo lucro, o mesmo era repartido na proporção de 75% para o capitalista e 25% para o mercador; 2. Societas maris ou collegantia – associação onde o possuidor do capital emprestava 67% dos recursos para o empreendimento e o tomador do empréstimo aportava os 33% restantes, contribuindo, ainda, com o seu trabalho. Se houvesse perda ou prejuízo, repartia-se proporcionalmente ao capital investido. No caso de lucro, cada um tinha direito a 50% deste; 3. Societas terrae – associação ao nível do comércio terrestre, onde os riscos eram por conta do credor, sendo os ganhos partilhados 30 31 Astuti, Guido (1933). Rendiconti mercantili inediti di Giovini Scriba. Roover. Turim, pg. 174. De referir que Moses Bensabat Amzalak faleceu em 6 de Junho de 1978, por isso esta referência bibliográfica resulta da republicação dum artigo seu. 17 igualmente. De modo geral, apresentava certa flexibilidade em termos de capital investido e durabilidade do negócio; 4. Fraterna compagnia – associação comercial onde o investimento, o prejuízo e o lucro eram divididos igualmente entre as partes envolvidas. Efectivamente, a formação das sociedades comerciais foi um factor de progresso no desenvolvimento da técnica contabilística, pois estas levaram a que fosse necessário uma Contabilidade cada vez mais complexa e fiável. Recorrendo às palavras de Noel Monteiro (1978, pg. 614), podemos afirmar que estas sociedades conduziram ao reconhecimento da empresa como entidade separada e distinta dos donos, surgindo, assim, a conta Capital como fundo de valores da empresa, quer na forma colectiva quer na de uma conta aberta a cada sócio. Como os activos incorporados por um novo sócio eram anotados como um débito que entrava na firma, é muito natural que a contribuição do sócio fosse considerada como um crédito da sua conta de Capital. Ora, este aspecto é decisivo para o uso generalizado e sistemático do método digráfico: com o surgimento das Contas de Capital e Resultados radica-se o duplo assento de cada facto ou operação, o que caracteriza as partidas dobradas. 5.5 – Aumento da População Urbana Europeia Não se poderá descurar a importância do aumento da população nas cidades europeias derivado da desintegração do sistema senhorial. Muitos aproveitaram esta oportunidade para se fixarem na cidade, onde esperavam alcançar um nível de vida superior ao que tinham anteriormente. Assim, esta migração levou a um movimento social encadeado: aumento da procura de bens nas cidades; aumento da procura de mão-de-obra, ou seja, maior visibilidade no campo da oferta de postos de trabalho; e maior poder de compra, como resultado final desta escala ascendente, entrando-se assim num ciclo de crescimento económico urbano. 18 Consequentemente, o aumento da população urbana fez regredir a economia de auto-subsistência do sistema socio-económico anterior, acarretando um crescimento das trocas comerciais, que somente os mercadores italianos poderiam suprir. 5.6 – Desenvolvimentos Científicos e Tecnológicos Houve inovações técnicas com reflexos directos e indirectos na evolução do pensamento contabilístico. A título de exemplo, poderemos apontar a invenção da imprensa e da vela triangular ou vela latina 32 , e a introdução na Europa da numeração hindu-arábica, de cariz decimal33 , e do papel. Intimamente ligada à divulgação do papel está a invenção da imprensa por Johannes Gensfleisch34 . 32 A grande vantagem deste tipo de vela é que permitia a navegação mesmo quando o vento soprava em direcção contrária à pretendida. 33 A grande vantagem do sistema posicional de base dez é a de, com apenas dez símbolos, fáceis de escrever, se poderem representar todos os números imagináveis, por maiores que sejam. Outra vantagem desta, e com grande interesse para a Contabilidade, é a de este sistema facilitar a execução de cálculos numéricos. Embora não tenha constituído uma pré-condição para o desenvolvimento da partida dobrada, é inegável que esta numeração desempenhou um importante papel no aperfeiçoamento dos registos e na simplificação dos cálculos (Gomes, 2002, pgs. 6 e 7). 34 Johannes Gensfleisch ficou mais conhecido pelo seu nome materno: Gutenberg. 19 CONCLUSÕES Do que se expôs sobre a evolução da Contabilidade na Península Itálica, permite-nos retirar algumas conclusões. Assim: 1. A evolução da Partida Simples para a Partida Dobrada, registou-se pela primeira vez nas Cidades-Estado Italianas, algures nos finais do séc. XIII; 2. Esse desenvolvimento foi gradual, sendo o método digráfico precedido pelas Partidas Simples e pelas Partidas Mistas; 3. Este método não se desenvolveu da mesma forma na Península Itálica, destacando-se um maior desenvolvimento (mais rapidamente) do Norte, em especial em Veneza; 4. Foi também um italiano, Luca Pacioli, quem publicou o primeiro livro impresso onde foi exposto o método digráfico. Dentro da Summa de Arithmetica, Geometria Proportioni et Proportionalita, espécie de enciclopédia das ciências matemáticas, publicada em Veneza, em 10 de Novembro de 1494, encontrava-se o Tractactus de computis et scripturis. Nele, o autor disserta sobre como se deve escriturar, que cuidados são necessários, quais os principais registos, como saldar contas, quais os principais livros que deveriam ser usados, etc, no citado método contabilístico; 5. Para além da obra de Luca Pacioli – um marco na história da Contabilidade – são de salientar outras obras como o Quaderno doppio col suo giornale, de Domenico Manzoni ou o Della mercatura e del mercante perfetto de Benedetto Cotrugli, que junto com outros autores Italianos e de outras nacionalidades levaram à disseminação do Método Italiano por toda a Europa, durante os sécs. XVI e XVII; 6. Os principais factores que levaram ao desenvolvimento do método digráfico nas Repúblicas Italianas foram essencialmente: condicionalismos de índole geo-política, como a sua posição geográfica privilegiada, o facto de se terem mantido à parte do sistema feudal, os sistemas políticos adoptados, etc; a evolução o desenvolvimento da banca e dos instrumentos de crédito; o 20 aparecimento das sociedades comerciais substituindo, desta forma, o comércio praticado por particulares isolados, o aumento da população citadina europeia; e diversas inovações tecnológicas e científicas. 21 BIBLIOGRAFIA Amzalak, Moses Bensabat (1997). A Contabilidade e a história económica. Revista de Contabilidade e Comércio n.º 216, Vol. LIV, Outubro de 1997. Brito, Isabel (1997). História portuguesa da Contabilidade (Breve resenha). Centro de Estudos de História da Contabilidade. Brown, Richard (1968). History of Accounting and accountants. Frank Cass & Co. Ltd. Londres. Castel-Branco, D’Aca (1964). 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