Educomunicação: dimensão social e política
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Educomunicação: dimensão social e política
Seleção de textos [encontrados na internet] citados na elaboração de “Educomunicação: dimensão social e política” Entrevista com Ricardo de Paiva e Souza, sociólogo e coordenador de programa da ONG Save the Children * Educomunicação e a reinvenção da empresa do século XXI, de Paulo Monteiro * GALEANO. E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980. Consulte, entre tantos outros, os artigos de Osvaldo Coggiola, especialmente América Latina no olho da tormenta mundial * Leia aqui o significado, o histórico e as formas de democracia * Sobre a Ditadura Militar no Brasil * Educação pelos Meios de Comunicação, de Grácia Lopes Lima * A delinquência acadêmica, de Maurício Tragtemberg * Mário Kaplún: De medio y fines em comunicación * Como a comunicação e a educação podem andar de mãos dadas1 Entrevista com Ricardo de Paiva e Souza. Por Flávia Gomes.2 Flávia Gomes – Você acha importante o uso de meios de comunicação na escola? RICARDO SOUZA – Acho importante a utilização daquilo que a gente chama de comunicação ou das estratégias de comunicação. Obrigatoriamente, não precisam ser os meios de comunicação tradicionais – televisão, jornal, rádio. Se eles entram, isso pode agregar valor ao ensino, mas as estratégias de comunicação, para mim, são mais importantes que os próprios meios. FG - Então você acha que essas são as formas de inserir a comunicação na escola? RS – Não se pode pensar em transmissão de conhecimento sem comunicação. Escola é o espaço de transmissão de conhecimento, mas hoje em dia ela é tida quase como um castigo e a comunicação, como a arte, o esporte, pode e deve ser pensada como estratégia interessante para você desenvolver metodologias pedagógicas mais atraentes, mais lúdicas e, por conseqüência, uma maior aceitação dos alunos. FG – Você acha que isso acontece? RS – Claro que não. Infelizmente, a gente tem um modelo de ensino/aprendizagem terrível, que parou no tempo e que faz com que a nossa escola se torne um ambiente extremamente desagradável, no qual a gente vai por pura obrigação e não por prazer e, por conseqüência, a gente aprende muito menos do que aprenderia se fosse buscar algo com vontade e alegria. O modelo de escola brasileiro, que é o que domina o mundo, com raríssimas exceções, é 1 Publicado originalmente na revista “Vendo a Escola, revendo a Educação”, produzida pela Bem Tv – Educação e Comunicação, em 2006. 2 Ricardo de Paiva e Souza - sociólogo e coordenador de programa da ONG Save the Children. Flávia Gomes - integrante do grupo “Olho Vivo”, assessorado pela Bem Tv – Educação e Comunicação. Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br extremamente falho. Nem sei se existe um modelo oficial fora do Brasil que seja diferente. O que você tem são exemplos de algumas escolas que têm práticas diferenciadas. FG – Quais? RS – Existem várias, só na cidade do Rio você tem a Escola Parque, o Ceat [Centro Educacional Anísio Teixeira], tem o São Vicente que, embora seja uma escola de religiosos, tenta inserir práticas mais inovadoras. O que acontece é que eles não conseguem fugir do modelo tradicional de aula, de avaliação, de relação professor/aluno e chegar num modelo legal de horizontalidade, de participação. Continuamos com aquele modelo tradicional de repasse de conteúdos muito mais do que de incentivo a críticas e à criatividade. O aluno é visto como um ser inferior, que está ali para ser dirigido e não para ser facilitado nas suas descobertas. Essa história de você mudar o verbo “ensinar” para “aprender conjuntamente”, o verbo “ajudar” para “garantir a participação”, do “ensinar” para “facilitar” já daria um salto fantástico na educação. Há pessoas que brigam por isso e, engraçado, elas às vezes estão na universidade defendendo fortemente isso e, quando se formam professores, reproduzem o velho modelo tradicional de educação. Paulo Freire é estudado em todas as escolas de educação do país, é um brasileiro reconhecido mundialmente e eu lhe pergunto que escola realmente aplica os métodos de Paulo Freire. FG – Por que, apesar de haver uma formação nesse sentido, na prática isso não acontece? RS – Existe uma reação muito forte a essas mudanças que seriam uma grande revolução. O MEC [Ministério da Educação] não entende isso e, portanto, dificilmente ele cobra isso das escolas públicas. E, no Brasil, o ensino básico de qualidade é entendido como estando nas escolas privadas e não nas públicas. Você tem grandes escolas públicas, mas são exceções, um Pedro II aqui, um Colégio de Aplicação em Recife e que são tradicionalmente escolas de acesso da classe média. As escolas particulares respondem a uma sociedade que não está antenada para o fato de elas serem um comércio. A coisa mais fácil do mundo é você ver numa reunião de pais e mestres um pai ou uma mãe levantar o dedo pra dizer que acha que a filha ou o Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br filho está com muita liberdade porque chega em casa com pouco dever, quando, na verdade, devia dar graças a Deus porque o filho saiu do período de trabalho na escola para chegar em casa e ter um período de diversão, de convivência com os familiares. Quanto mais dura for a escola, melhor os pais vão achar que é. O parâmetro de qualidade do ensino hoje, no nosso país, é o percentual de aprovação no vestibular, o que é um grande equívoco. Diga-se de passagem, a maioria dos que passam no vestibular não sabe porque entrou naquele curso. Eu sou um exemplo disso. Iniciei sete cursos. Se tivesse sido preparado para a universidade, teria terminado meu primeiro curso, porque ele me serviria, como o curso de sociologia está servindo hoje. Entrei na faculdade em 80 e colei grau em abril de 97. Terminei o curso e emendei num mestrado. Esse sim me deu uma visão, uma qualificação para o meu trabalho. Mas quantos têm acesso a um mestrado? Muito poucos. FG – A cobrança é muito mais na classe média. RS – A escola, na verdade, embora esteja totalmente dirigida para o vestibular, não está dirigida para preparar para a universidade. A maioria das pessoas que entram numa universidade não sabe o que vai encontrar pela frente. Enfim, o grande problema está muito na pressão que a sociedade coloca nesse modelo escolar que a gente tem. E aí o ensino público, que poderia ser o que fizesse essa revolução, é um ensino totalmente relegado ao décimo quinto plano. Os nossos dirigentes não entendem isso como sendo a grande base para qualquer mudança estrutural, política, ideológica. FG – Nos outros países que você tem contato é diferente? RS – Na maioria dos países não, mas pelo menos há um investimento forte no ensino público, com uma qualidade relativamente boa. Se você chega nos países ditos desenvolvidos vai ver que nem sempre a universidade, mas o ensino médio é de acesso gratuito para todas as camadas. Até nos Estados Unidos, que não são exemplo de educação para canto nenhum. Por conseqüência, todos vão ter acesso à Universidade ou a um ensino técnico com uma certa qualidade. Quando você vai para a Europa essa situação melhora um pouco. Aquele que quiser Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br terá acesso a boas universidades, a partir de um ensino público. Na Inglaterra, você tem escolas de internato para onde você vai e fica a semana inteira ou o ano inteiro. A família quase que delega para a escola toda a obrigação com a educação dos filhos. Normalmente são ensinos autoritários e conservadores, mas pelo menos eles têm uma qualidade que vai lhe preparar para uma universidade. FG: E nos países da América Latina? RS: Na Argentina, por exemplo, você consegue ter a educação do seu filho, com qualidade, toda em escolas públicas, e se você for ver o número de analfabetos, o IDH saiu agora, se eu não me engano a Argentina está em 34º, nós somos 73º. FG: E comparando o sistema público de ensino com o particular, existe alguma diferença significativa da forma de usar a comunicação? RS: De uma maneira geral o ensino particular lhe garante maior acesso ao conhecimento, aquilo que o MEC entende como padrão de ensino/aprendizagem. Garante uma menor dificuldade de ingresso aos cursos de nível superior, e mais ainda, aos cursos das escolas públicas de ensino superior, que, ao contrário do ensino fundamental e do ensino médio, têm mais qualidade. Agora, ainda é na rede pública que você consegue encontrar projetos inovadores. No Rio de Janeiro você tem projetos do uso de vídeo em sala de aula na rede pública que você não vai encontrar na rede privada. Infelizmente, isso não se reflete na rede de ensino como um todo, não se espalha para as disciplinas verticais, é transversal. FG: O que você acha desse novo termo “educomunicação”? RS: A maior parte das pessoas que trabalha com comunicação e educação não gosta disso, acha que é na verdade uma invenção da academia para justificar uma nova área de estudo. Particularmente, não gosto muito dessas especializações, para mim qualquer um pode trabalhar com educação e comunicação. O importante é que quando você fala de educação e de comunicação você esta falando da área social e então você tem que ter um leque de Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br conhecimento extremamente abrangente. Não se faz projeto social sem um conhecimento legal de Economia, História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Pedagogia, Comunicação e, dependendo para onde você vá, de Administração. Esse conhecimento multidisciplinar, para mim, é muito mais agradável do que você estar criando novas disciplinas e quando você cria a disciplina “educomunicação” é porque está querendo garantir reserva de mercado para esses profissionais. FG: Você que trabalha com movimento social acha que ele tem influenciado na política pública? Na mudança? RS: Alguma influência, sim, mas mudança ainda é cedo para a gente dizer. Acho que, por exemplo, a criação no Brasil de uma Secretária Especial de Direitos Humanos já foi uma influência dos movimentos sociais. O resultado disso, os impactos, as mudanças, é que a gente ainda está por vir. Outro exemplo é o referendo do desarmamento. FG: E em relação à escola, à qualidade de ensino? RS: O movimento social comete erros. Enquanto a gente não estiver dentro das escolas tentando fazer as mudanças dentro dela, enquanto estivermos trabalhando paralelamente, vai ser muito difícil criar impactos nessa escola. Isso é uma coisa que não se entendia muito bem há algum tempo, mas que hoje em dia a gente vê que é a função da ONG. Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br Artigos ABERJE EDUCOMUNICAÇÃO E A REINVENÇÃO DA EMPRESA DO SÉCULO XXI Paulo Monteiro Em busca do sentido perdido "Eu conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo. Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou ninguém. Nunca fez outra coisa senão somas. E o dia todo repete como tu "Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!", e isso o faz inchar-se de orgulho. Mas ele não é um homem, é um cogumelo." Esse não é simplesmente um parágrafo de uma das obras literárias mais importantes da historia - O Pequeno Príncipe - mas uma profecia que se confirma e se materializa cada vez mais na atualidade. Esse planeta poderia muito bem se chamar Terra, e esse sujeito quase roxo, José, João, Márcia, Roberta, cada um dos milhões de seres que dedicamos tanto tempo a somar, a incharnos de orgulho fazendo "coisas sérias", esquecendo de olhar uma estrela, de amar alguém... Nos dias atuais enfrentamos uma trágica realidade: a falta de sentido nas coisas que fazemos, a prisão de ter que repetir ações mecânicas, sem usufruir o prazer de transcender em cada uma delas. Essa falta de sentido é também herança de uma mentalidade positivista, que baniu da existência humana qualquer sentido metafísico, espiritual, universal, para concentrar-se somente nos números, no empírico, na experiência "científica", numa aventura que levaria o homem a "conquistar" seu universo. Tal pretensão, fortalecida a partir do racionalismo, dominou quase todas as esferas das sociedades ocidentais, numa busca obsessiva por controlar, dominar, manipular toda a existência por meio da razão e da "técnica", mentalidade que prevaleceu também no mundo empresarial. Com o inicio da revolução industrial e a concentração na produção, a lógica predominante era a visão racional-econômica, que concebia a organização como um mero ente produtivo cuja missão essencial era obter os melhores resultados com os menores custos. Esse enfoque faz tudo girar em torno dos resultados, para o bem da "empresa", que passa a ser uma abstração quase sagrada, à qual todos devem acomodar-se e servir. Nesse âmbito autosuficiente e cientificamente "eficiente", o ser humano é visto como parte de uma engrenagem que deve gerar sempre a melhor produção possível; ele existe e tem sentido somente na medida em que é um instrumento para melhorar os "resultados" da empresa. Seria bom se esta descrição fosse simplesmente uma referência a um período histórico que já passou. Mas, em pleno século XXI, esse cenário ainda resiste a desaparecer de nossa história. Muitas empresas insistem em herdar o pensamento racional-econômico, centralizando-se nos resultados e submetendo as pessoas a essa obsessão que termina por transformar-se em um fim absoluto. Mas o paradoxal dessa mentalidade é que o campo "sagrado" dos resultados, que é o grande objetivo de toda empresa, termina sendo prejudicado precisamente por essa atitude que submete as pessoas às metas de produção e de lucro. Tal paradoxo ocorre porque o ser humano é um ser em busca de sentido, de transcendência; quer dar significado a todas as coisas que faz, sobretudo ao seu trabalho que, como parte de sua humanidade, é virtude, vocação, e por isso mesmo nunca deveria ser um fardo. A mentalidade economicista na empresa aliena o homem, fazendo-o escravo de uma produção que não possui, precisamente por pertencer aos "donos", aos "proprietários" da organização. Sem encontrar sentido no trabalho que exerce, o ser humano perde toda e qualquer motivação e seu agir profissional passa a ser necessidade de sobrevivência, conduta que termina por limitar os resultados de seu desempenho a níveis mínimos. O renascer do humanismo nas empresas Felizmente, em meio a essa visão pragmática e utilitarista, que ainda prevalece, do que deve ser a empresa, observamos um fenômeno de humanização cada vez maior no âmbito corporativo. São cada vez mais os autores que se dedicam ao tema da pessoa como fator central e vital para o desenvolvimento da empresa. Peter Druker, Stephen Covey, Fredy Kofman, Peter Senge, Daniel Goleman, são só alguns exemplos de pensadores de sucesso que levantaram a bandeira do ser humano como valor principal da organização. O surgimento da Responsabilidade Social Empresarial como uma forma global de ver e gerir a organização, é outra manifestação desse boom humanista que estamos observando no âmbito corporativo. A empresa passa a ser muito mais que um mero ente produtor, convertendo-se em entidade co-responsável pela construção de uma sociedade melhor, missão que abrange clientes, meio ambiente, colaboradores e funcionários, acionistas, enfim, todas as realidades e ambientes que interagem com a organização. Esse novo impulso humanístico concebe a empresa como um espaço significativo no qual cada pessoa passa a ser um elemento chave para a realização do projeto e da missão da organização. A identidade corporativa se funde com os valores e aspirações de cada funcionário, que se torna sócio, realizador do empreendimento comum que a organização põe em marcha. Nessa visão, o âmbito dos resultados deixa de ser um fim em si mesmo, para tornar-se fruto de uma motivação que se materializa no trabalho. É precisamente este sentido recuperado no ambiente profissional que, levando ao compromisso e à atitude, tem como conseqüência natural a conquista dos melhores resultados. A empresa como um totus significativo A organização que se atreve a ser autenticamente humana funciona, em palavras de Peter Senge, como uma comunidade consciente, um organismo vivo onde tudo comunica, porque tudo é significativo, tudo é parte de seu projeto comum e missão global. É nesse sentido que a empresa, em seu exercício de consciência, promove uma mudança de paradigma quanto à comunicação. Se a mentalidade cartesiana e racionalista vê a comunicação empresarial como produção de uma coleção de mídias, de boletins informativos e jornais murais - tarefa vista como específica do "departamento de comunicação"-, a concepção humanista define a organização como uma entidade viva e dinâmica que se comunica constantemente, em cada uma de suas ações e realidades. A arquitetura dos edifícios e salas, as cores, o material corporativo e promocional, a gestão, as ações e conversas dos funcionários - que passam a ser os "publicitários vivos" da marca são elementos comunicadores da essência da empresa. Esse universo comunicacional forma o que alguns autores chamam de ecossistema comunicativo, um cosmos organizacional no qual as diversas partes interagem num processo sinérgico e construtivo que tem uma orientação comum. Nesse ecossistema, o conjunto é mais que a soma das partes, e o organismo - mais que uma coleção de elementos independentes - se desenvolve como um sistema de relações ricas e significativas. Nesse contexto do "tudo comunica" qualquer divisão ou fragmentação da comunicação em ações isoladas e pontuais que não estejam encarnadas na identidade e na vida da empresa, passa a ser uma ação pobre e reducionista. A própria divisão entre "interna" e "externa", usada para a comunicação empresarial, perde sentido nessa concepção integradora e global de uma comunidade consciente na qual tudo comunica. O universo desse totus significativo implica, por outro lado, uma comunicação que é muito mais que uma mera transmissão unilateral ou vertical de dados e informações. A palavra "comunicar" vem do latim "communicare" que tem um sentido de "movimentar juntos" e tem a mesma raiz da palavra latina "communio", que significa comunhão. A comunicação verdadeira e autêntica deve estar, portanto, necessariamente comprometida com o ser humano e com seu enriquecimento. "Comunicar", visto por este ângulo, é levar a pessoa ao âmbito do sentido, num universo comum no qual se compartilham realidades significativas. A Educomunicação empresarial: formando ecossistemas comunicativos Essa conexão entre o "comunicar" e o sentido leva ao produtivo encontro entre a comunicação e a educação, num propósito comum de enriquecer e aperfeiçoar o ser humano e seus âmbitos sociais. O ato comunicativo deve pressupor um compromisso ético, "educativo", com a pessoa, e por outro lado, o exercício da educação deve ser um encontro, uma experiência de communio, de verdadeira comunicação, para que se cumpra realmente a meta educacional. O campo da "Comunicação e Educação" se apresenta, nesse sentido, como um novo âmbito do saber, uma nova linha de investigação e ação que muitos pensadores e profissionais começam a desenvolver como um verdadeiro propulsor de espaços significativos e conscientes. É nesse contexto que começa a ser usado o conceito de Educomunicação - termo utilizado de uma maneira mais "oficial" pelos participantes do Fórum Mídia e Educação, realizado em São Paulo, em 1999 - e que se refere a uma área de atuação que aspira criar espaços comunicacionais que buscam a formação de um sujeito crítico, participativo, inserido ativamente na dinâmica do próprio meio social ao qual pertence. A Educomunicação aplicada ao mundo empresarial surge como o meio mais adequado para fazer das organizações ecossistemas comunicativos, âmbitos de participação e de aprendizagem que permitam às pessoas que os compõem, a possibilidade de autorealização como seres chamados a uma vida significativa. Trata-se, portanto, de uma ação ética de comunicação, dirigida às pessoas e aos segmentos sociais envolvidos com a organização, e que busca desenvolvê-la como um ambiente de aprendizagem e crescimento, no qual cada indivíduo passa a ser um agente ativo e responsável de um projeto comum. Essa aplicação se dá por meio da promoção de uma linguagem verdadeira, que descobre a "beleza" do real, do existente (a "beleza" do mundo, da empresa e seus valores, da pessoa humana e de cada sujeito com suas capacidades etc.), e ao mesmo tempo constrói mundos significativos, realidades sociais que são a materialização de uma nova história, de um momento organizacional mais humano, de excelência, que leva as pessoas e a organização a serem o melhor que podem ser. Alguns dos principais campos de ação da Educomunicação empresarial são: A (re)afirmação ou (re)construção de uma identidade corporativa sólida: não se pode pensar em formar um espaço significativo sem uma clareza do que é a organização, qual a sua essência e identidade, quais seus valores e colunas, qual sua missão e visão. Esses elementos de identidade devem ser "re-lidos e re-definidos" com a participação dos membros da empresa, para que sejam parte de suas vidas e, portanto, tenham sentido. Formação e educação dirigida às pessoas da empresa, que englobem temas básicos para o desenvolvimento humano e social, tais como: inteligência emocional, liderança, comunicação, ética, entre outros. Esses temas devem ser oferecidos de maneira participativa, implicando os funcionários com a vida diária da organização, a partir de aplicações práticas das reflexões feitas e dos temas dialogados. Busca da integração entre pessoas e empresa através de unidades educativas, meios de comunicação e tecnologia da informação, processos e práticas organizacionais que levem a tal alinhamento. Educação e capacitação que busquem formar os funcionários como pensadores e arquitetos dos meios de comunicação e das tecnologias da informação, a partir de um melhor conhecimento e leitura de tais instrumentos. A intervenção educomunicacional dirigida à empresa, que contempla tais campos de ação, deve seguir certos passos ou fases, como: a investigação e o diagnóstico da realidade, a definição dos procedimentos e elaboração da ação a ser implementada, a execução do plano de ação, o seguimento e monitoramento constantes, a avaliação final e as conclusões para futuras ações. A intervenção deve cuidar também que as iniciativas de gestão sejam coerentes e caminhem na mesma linha do que se propõe, pois do contrário poderia surgir uma "esquizofrenia organizacional" provocada pelo desencontro entre o projeto desenhado e aplicado, e a realidade prática, cotidiana, da empresa. O campo da Educomunicação traz também a figura de um novo profissional, o Educomunicador, que deve ser - também no caso específico dos programas aplicados à empresa - o coordenador da ação proposta, trabalhando em conjunto com profissionais de outras áreas e buscando um enfoque pluridisciplinar, condição necessária para que se dê a gestão do conhecimento. Esse profissional pode ser um consultor externo que trabalhe em conjunto com uma equipe da empresa durante a intervenção proposta, ou um funcionário da própria organização capacitado para realizar tal ação em conjunto com outros colegas. A oportunidade histórica de reinventar a empresa atual Não há duvidas que o século XXI é o momento histórico de resgatar o sentido do trabalho humano, de unir âmbitos que por muito tempo estiveram separados pela "ruptura" positivista: o campo espiritual e ético da realização pessoal, e o campo pragmático dos "resultados", do crescimento econômico e da "eficiência" organizacional. Nessa "re-união" desses dois âmbitos, uma comunicação empresarial comprometida com a educação das pessoas e com a aprendizagem da organização, é o elemento chave para resgatar esse sentido, esquecido pela obsessão economicista e racionalista que prevaleceu por tanto tempo na história das organizações. É nesse contexto que a Educomunicação empresarial surge como um campo estratégico, que deve ser investigado e aprofundado como um caminho de excelência para fazer do âmbito profissional um universo significativo. Essa é a via ideal para recuperar a alegria perdida nos números e nas "metas", nos processos e sistemas "eficientes" que por tanto tempo ofuscaram o homem no contexto da cultura organizacional. Esse é o melhor meio para livrar-nos de um pragmatismo às vezes exagerado e frio, que nos torna seres "vermelhos quase roxos" que "só sabem somar", "homens sérios" que "nunca viram uma estrela ou cheiraram uma flor", que "nunca amaram alguém", verdadeiros "cogumelos ambulantes", nostálgicos de uma humanidade que intuímos carecer. Essa é a oportunidade histórica de desenvolver esse novo tipo de comunicação, que nos ajude a converter-nos em homens éticos e responsáveis, seres humanos que encontram sentido no que fazem, e que se descobrem como construtores de uma sociedade melhor. Esse necessário passo é o impulso vital que converterá a empresa em um ambiente participativo e criativo que, na medida em que seja autenticamente humano, experimentará também o doce sabor do desenvolvimento e da rentabilidade, frutos de um projeto vivido e realizado com consciência e motivação. Eis aqui um momento que deve ser aproveitado por todos os profissionais envolvidos com a empresa e com a comunicação e que sonham com uma era mais humana e verdadeira na trajetória das organizações. Se desperdiçarmos esta oportunidade, só nos restará esperar a volta do Pequeno Príncipe em seu cometa ambulante para dar-nos consultoria empresarial. http://www.aberje.com.br/novo/acoes_artigos_mais.asp?id=190 AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA EDUARDO GALEANO DIGITALIZADO E REVISADO PELO: W W W.INVENTATI.ORG/SABOTA G E M 1 Galeano, Eduardo As Veias Abertas da América LAtina: tradução de Galeano de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, (estudos latino-americano, v.12) Do original em espanhol: Las venas abiertas da America Latina Este livro não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzido para fins não comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservando o nome do autor. 2 3 4 CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver, coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um conceito medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos dominados. “Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-ameiricano Woodrow Wilson, Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se tenha investido.” E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa identificação. É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder.Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (Há quatro séculos, já existiam dezesseis das vinte cidades latino-americanas mais populosas da atualidade.) Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou 5 sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos. Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes - dominantes para dentro, dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga. A brecha se amplia. Em meados do século passado, o nível de vida dos países ricos do mundo excedia em 50% o nível dos países pobres. O desenvolvimento desenvolve a desigualdade: Richard Nixon anunciou, em abril de 1969, em seu discurso perante a OEA, que no fim do século XX a renda percapita nos Estados Unidos será quinze vezes mais alta do que esta mesma renda na América Latina. A força do conjunto do sistema imperialista descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas. Os países opressores tornam-se cada vez mais ricos em termos absolutos, porém muito mais em termos relativos, pelo dinamismo da disparidade crescente. O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar e acreditar em seus próprios mitos de opulência, mas os mitos não são comíveis, e os países pobres que constituem o vasto capitalismo periférico o sabem muito bem. A renda média de um cidadão norte-americano é sete vezes maior que a de um latino-americano, e aumenta num ritmo dez vezes mais intenso. E as médias enganam, pelos insondáveis abismos que se abrem, ao sul do rio Bravo, entre os muitos pobres e os poucos ricos da região. No topo, com efeito, seis milhões de latino-americanos açambarcam, segundo as Nações Unidas, a mesma renda que 140 milhões de pessoas situadas na base de pirâmide social. Há 60 milhões de camponeses, cuja fortuna ascende a 25 centavos de dólares por dia; no outro extremo, os proxenetas da desgraça dão-se ao luxo de acumular cinco milhões de dólares em suas contas privadas na Suíça ou nos Estados Unidos, e malbaratam na ostentação e luxo estéril - ofensa e desafio - e em inversões improdutivas, que constituem nada menos do que a metade da inversão total, os capitais que América Latina poderia destinar à reposição, ampliação e criação de fontes de produção e de trabalho. Incorporadas desde sempre à constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicância é a única forma possível de política internacional. Hipoteca-se a soberania porque “não há outro caminho”; os álibis da oligarquia confundem interessadamente a impotência de uma classe social com o presumível vazio de destino de cada nação. Josué de Castro declara: “Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que, infelizmente, não há outra solução que a violência para América Latina.” Cento e vinte milhões de crianças se agitam no centro desta tormenta. A população da América Latina cresce como nenhuma outra; em meio século triplicou com sobras. Em cada minuto morre uma criança de doença ou de fome, mas no ano 2000 haverá 650 milhões de latino-americanos, e a metade terá menos de 15 anos de idade: uma bomba de tempo. Entre os 280 milhões de latino-americanos há, atualmente, cinqüenta milhões de desempregados ou subempregados e cerca de cem milhões de analfabetos; a metade dos latino-americanos vive apinhada em moradias insalubres. Os três maiores mercados da América Latina - Argentina, Brasil e México - não chegam a igualar, somados, a capacidade de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, mesmo que a população reunida de nossos três grandes exceda de muito a de qualquer país europeu. A América Latina produz, hoje em dia, em relação a sua população, menos alimentos do que antes da última guerra 6 mundial, e suas exportações per capita diminuíram três vezes, a preços constantes, desde a véspera da crise de 1929. O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza, que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso. Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento - São Paulo, Buenos Aires, a cidade do México -, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita homens. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente mulheres e semeiam pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças; obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a todos o que a quase todos negam. Em princípios de novembro de 1968, Richard Nixon comprovou em voz alta que a Aliança para o Progresso havia cumprido sete anos de vida e, entretanto, agravaram-se a desnutrição e a escassez de alimentos na América Latina. Poucos meses antes, em abril, George W. Ball escrevia em Life: “Pelo menos durante as próximas décadas, o descontentamento das nações pobres não significará uma ameaça de destruição do mundo. Por mais vergonhoso que seja, o mundo tem vivido, durante gerações, dois terços pobres e um terço rico. Por mais injusto que seja, é limitado o poder dos países pobres”. Ball encabeçara a delegação dos Estados Unidos na Primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento em Genebra, e votara contra nove dos doze princípios gerais aprovados pela conferência, com o objetivo de aliviar as desvantagens dos países subdesenvolvidos no comércio internacional. São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada ano explodem, silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas de Hiroxima sobre estes povos, que têm o costume de sofrer com os dentes cerrados. Esta violência sistemática e real continua aumentando: seus crimes não se difundem na imprensa marrom, mas sim nas estatísticas da FA O. Ball diz que a impunidade é ainda possível, porque os pobres não podem desencadear uma guerra mundial, porém o Império se preocupa: incapaz de multiplicar os pães, faz o possível para suprimir os comensais. “Combata a pobreza, mate um mendigo!”, rabiscou um mestre do humor-negro num muro da cidade de La Paz. O que propõem os herdeiros de Malthus senão matar a todos os próximos mendigos, antes que nasçam? Robert McNamara, o presidente do Banco Mundial, que tinha sido presidente da Ford e secretário da Defesa, afirma que a explosão demográfica constitui o maior obstáculo para o progresso da América Latina e anuncia que o Banco Mundial dá prioridade, em seus empréstimos, aos países que realizam planos para o controle da natalidade. McNamara comprova, com pesar, que os cérebros dos pobres pensam cerca de 25% a menos, e os tecnocratas do Banco Mundial (que já nasceram) fazem zumbir os computadores e geram complicadíssimas teses sobre as vantagens de não nascer. “Se um país em desenvolvimento, que tem uma renda média percapita de 150 a 200 dólares anuais, consegue reduzir sua fertilidade em 50% num período de 25 anos, ao cabo de 30 anos sua renda per capita será superior pelo menos em 40% ao nível que teria alcançado mantendo sua fertilidade, 7 e duas vezes mais elevada ao fim de 60 anos”, assegura um dos documentos do organismo. Tornou-se célebre a frase de Lyndon Johnson: “Cinco dólares investidos contra o crescimento da população são mais eficazes do que cem dólares investidos no desenvolvimento econômico.” Dwight Eisenhower prognosticou que, se os habitantes da Terra continuassem multiplicando-se no mesmo ritmo, não só se intensificaria o perigo de uma revolução, mas também se produziria “uma degradação do nível de vida de todos os povos, o nosso inclusive”. Os Estados Unidos não sofrem, dentro de suas fronteiras, o problema da explosão demográfica, mas se preocupam, como ninguém, em difundir e impor, nos quatros pontos cardiais, a planificação familiar. Não somente o governo; também Rockefeller e a Fundação Ford sofrem pesadelos com milhões de crianças que avançam, como lagostas, partindo dos horizontes do Terceiro Mundo. Platão e Aristóteles haviam-se ocupado do tema antes de Malthus e McNamara; contudo, em nossos tempos, toda esta ofensiva universal cumpre uma função bem definida: propõe-se justificar a desigual distribuição de renda entre os países e entre as classes sociais, convencer aos pobres que a pobreza é o resultado dos filhos que não se evitam e pôr um dique ao avanço da fúria das massas em movimento e em rebelião. Os dispositivos intra-uterinos competem com as bombas e as metralhadoras, no Sudeste asiático, no esforço para deter o crescimento da população do Vietnã. Na América Latina é mais higiênico e eficaz matar os guerrilheiros nos úteros do que nas serras ou nas ruas. Diversas missões norte-americanas esterilizaram milhares de mulheres na Amazônia, apesar de ser esta a zona habitável mais deserta do planeta. Na maior parte dos países latino-americanos não sobra gente: ao contrário, falta. O Brasil tem 38 vezes menos habitantes por quilometro quadrado do que a Bélgica; Paraguai, 49 vezes menos do que a Inglaterra; Peru, 32 vezes menos do que o Japão. Haiti e El Salvador, formigueiros humanos da América Latina, têm uma densidade populacional menor do que a Itália. Os pretextos invocados ofendem a inteligência; as intenções reais inflamam a indignação. Afinal, não menos da metade dos territórios da Bolívia, Brasil, Chile, Equador,Paraguai e Venezuela está habitada por ninguém. Nenhuma população latino-americana cresce menos do que a do Uruguai, país de velhos; entretanto nenhuma outra nação tem sido tão castigada, por uma crise que parece arrastá-la aos últimos círculos dos infernos. O Uruguai está vazio e seus campos férteis poderiam dar de comer a uma população infinitamente maior do que a que hoje sofre, sobre seu solo, tantas penúrias. Há mais de um século, um chanceler da Guatemala tinha sentenciado profeticamente: “Seria curioso que do seio dos Estados Unidos, de onde nos vem o mal, nascesse também o remédio.” Morta e enterrada a Aliança para o Progresso, o Império propõe agora, com mais pânico do que generosidade, resolver os problemas da América Latina, eliminando de antemão os latino-americanos. Em Washington, já há motivos para suspeitar que os povos pobres não preferem ser pobres. Mas não se pode querer o fim sem querer os meios: aqueles que negam a libertação da América Latina, negam também nosso único renascimento possível, e de passagem absolvem as estruturas vigentes. Os jovens multiplicam-se, levantam-se, escutam: o que lhes oferece a voz do sistema? O sistema fala uma linguagem surrealista: propõe evitar os nascimentos nestas terras vazias; diz que faltam capitais em países onde estes sobram, mas são desperdiçados; chama de ajuda a ortopedia deformante dos empréstimos e à drenagem de riquezas que os investimentos estrangeiros provocam; convoca os latifundiários a realizarem a reforma agrária, e a oligarquia para pôr em prática a justiça social. A luta de classes não existe - decreta-se -, mais que por culpa dos agentes forâneos que a fomentam; em troca existem as classes sociais, e se chama a opressão de umas por outras de estilo ocidental de vida. As expedições criminosas dos marines têm por objetivo restabelecer a ordem e a paz social, e as ditaduras fiéis a W ashington fundam nos cárceres o estado de direito, proíbem as greves e aniquilam os 8 sindicatos para proteger a liberdade de trabalho. Tudo nos é proibido, a não ser cruzarmos os braços? A pobreza não está escrita nos astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. As classes dominantes põem as barbas de molho, e ao mesmo tempo anunciam o inferno para todos. De certo modo, a direita tem razão quando se identifica com a tranqüilidade e a ordem; é a ordem, de fato, da cotidiana humilhação das maiorias, mas ordem em última análise; a tranqüilidade de que a injustiça continue sendo injusta e a fome faminta. Se o futuro se transforma numa caixa de surpresas, o conservador grita, com toda razão: “Traíram-me.” E os ideólogos da impotência, os escravos, que olham a si mesmos com os olhos do dono, não demoram a escutar seus clamores. A águia de bronze do Maine, derrubada no dia da vitória da revolução cubana, jaz agora abandonada, com as asas quebradas sob o portal do bairro velho de La Habana. A partir de Cuba, outros países iniciaram, por vias distintas e com meios distintos, a experiência da mudança: a perpetuação da ordem atual das coisas é a perpetuação do crime. Recuperar os bens que sempre foram usurpados, eqüivale a recuperar o destino. Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada história latino-americana, emergem nas novas experiências, assim como os tempos presentes, pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será. Por isso, neste livro, que quer oferecer uma história da pilhagem e ao mesmo tempo contar como funcionam os mecanismos atuais de espoliação, aparecem os conquistadores nas caraveIas e, próximo, os tecnocratas nos jatos; Hernán Cortês e os fuzileiros navais; os corregedores do reino e as missões do Fundo Monetário Internacional; os dividendos dos traficantes de escravos e os lucros da General Motors. Também os heróis derrotados e as revoluções de nossos dias, as infâmias e as esperanças mortas e ressuscitadas: os sacrifícios fecundos. Quando Alexander von Humboldt investigou os costumes dos antigos habitantes indígenas do planalto de Bogotá, soube que os índios chamavam de quihica as vítimas das cerimônias rituais. Quihica significava porta., a morte de cada eleito abria um novo ciclo de cento e oitenta e cinco luas. 9 PRIMEIRA PARTE: A POBREZA DO HOMEM COMO RESULTADO DA RIQUEZA DA TERRA FEBRE DE OURO, FEBRE DE PRATA O SIGNO DA CRUZ NOS CABOS DAS ESPADAS Quando Cristóvão Colombo se lançou à travessia dos grandes espaços vazios a oeste da Ecúmene, havia aceitado o desafio das lendas. Tempestades terríveis balançariam suas naus, como se fossem cascas de nozes, e as arremessariam nas bocas dos monstros; a grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria à espreita. Só faltavam mil anos para que os fogos purificadores do Juízo Final arrasassem o mundo, como acreditavam os homens do século XV; o mundo era o mar Mediterrâneo com suas costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes portugueses asseguravam que os ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às vezes arrastavam troncos curiosamente talhados, mas ninguém suspeitava que o mundo seria, logo, assombrosamente acrescido por uma vasta terra nova. A América não só carecia de nome. Os noruegueses não sabiam que a haviam descoberto há muito tempo, e o próprio Colombo morreu, depois de suas viagens, ainda convencido de que tinha chegado à Ásia pela rota do oeste. Em 1492, quando a bota espanhola pisou pela primeira vez as areias das Bahamas, o almirante acreditou que estas ilhas eram uma ponta da fabulosa ilha de Cipango: Japão. Colombo levava consigo um exemplar do livro de Marco Polo, coberto de anotações às margens das páginas. Os habitantes de Cipango, dizia Marco Polo, “possuem ouro em enorme abundância, e as minas onde o encontram não se esgotam jamais... Também há nessa ilha pérolas do mais puro oriente em grande quantidade. São rosadas, redondas e de grande tamanho e superam em valor as pérolas brancas.” A riqueza de Cipango tinha chegado aos ouvidos do Gran Khan Kublai, tinha despertado em seu peito o desejo de conquistá-la: ele tinha fracassado. Das fulgurantes páginas de Marco Polo esvoaçavam todos os bens da criação; havia quase treze mil ilhas no mar da Índia com montanhas de ouro e pérolas, e doze tipos de especiarias em quantidades imensas, além da abundância da pimenta branca e preta. A pimenta, o gengibre, o cravo, a noz-moscada e a canela eram tão cobiçados como o sal para conservar a carne no inverno, sem que se apodrecesse ou perdesse o sabor. Os Reis Católicos de Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para se libertarem da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que açambarcavam o comércio das especiarias e plantas tropicais, as musselinas e as armas brancas, provenientes de misteriosas regiões do oriente. O desejo de metais preciosos, meio de pagamento para o tráfico comercial, impulsionou também a travessia dos mares malditos. A Europa inteira necessitava de prata: os filões da Boémia, Saxônia e Tirol já estavam quase exaustos. A Espanha vivia o tempo da reconquista. 1492 não foi só o ano do descobrimento da América, o novo mundo nascido do equívoco de conseqüências grandiosas. Foi também o ano da recuperação de Granada. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, superando com o casamento a perda de seus domínios, tomaram em começos de 1492 o último reduto dos árabes em solo espanhol. Custara quase oito séculos recobrar o que se havia perdido em sete anos,1 e a guerra de reconquista esgotara o tesouro real. Mas, esta era uma guerra santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é por acaso, além disso, que neste mesmo ano de 10 1492 cento e cinquenta mil judeus declarados foram expulsos do país. A Espanha adquiria realidade como nação; levantando espadas cujas empunhaduras desenhavam o sinal da cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da América não podia explicar-se sem a tradição militar de guerra de cruzadas que imperava na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para dar caráter sagrado à conquista de terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era espanhol, converteu a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela ampliava o reino de Deus sobre a Terra. Três anos depois do descobrimento, Cristóvão Colombo dirigiu pessoalmente a campanha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana. Um punhado de cavaleiros, duzentos infantes e alguns cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios. Mais de quinhentos, enviados à Espanha, foram vendidos como escravos em Sevilha e morreram miseravelmente.2 Entretanto alguns teólogos protestaram e a escravização dos índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida, mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os índios, sem intérprete mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Senão o fizerdes, ou nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, evos sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”3 A América era o vasto império do diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a fanática missão contra a heresia dos nativos confundia-se com a febre que provocava, nas hostes da conquista, o brilho dos tesouros do Novo Mundo. Bernal Díaz del Castillo, fiel companheiro de Fernão Cortez na conquista do México, escreve que chegaram à América “para servir a Deus e a Sua Majestade e também por haver riquezas”. Colombo ficou deslumbrado, quando atingiu a ilhota de San Salvador, pela colorida transparência do Caribe, a paisagem verde, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros esplêndidos e os mancebos “de boa estatura, gente mui formosa” e “bastante mansa” que ali habitava. Presenteou aos indígenas “uns botões vermelhos e umas contas de vidro que se punham no pescoço, e outras muitas coisas de pouco valor com que fizeram muito prazer e ficaram tão nossos que era uma maravilha”. Mostrou-lhes as espadas. Eles não as conheciam, seguravam-nas pelo fio, cortavam-se. Enquanto isto, conta o almirante em seu diário de navegação, “eu estava atento e trabalhava para saber se havia ouro, e tendo visto que alguns deles traziam um pedacinho pendente do buraco que tinham no nariz, por sinais pude entender que indo ao Sul ou contornando a ilha pelo Sul, que estava ali um Rei que tinha grandes vasos disto, e tinha muitíssimo”. Porque “do ouro se faz tesouro, e com ele quem o tem faz o que quiser no mundo e chega a levar as almas ao Paraíso”. Em sua terceira viagem, Colombo continuava acreditando que estava no mar da China, quando entrou nas costas da Venezuela: isto não o impediu de saber que dali se estendia uma terra infinita, que era o próprio paraíso terrestre. Também Américo Vespúcio, explorador do litoral do Brasil, enquanto nascia o século XVI, relataria a Lorenzo de Médici: “As árvores são de tanta beleza e tanta suavidade que nos sentíamos estar no Paraíso terrestre...”4 Com pesar escrevia Colombo aos reis, da Jamaica, em 1503: “Quando eu descobri as índias 1. J. H. Elliot, La España imperial, Barcelona, 1965. 2. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en América, antes y después de Colónn, Buenos Aires, 1948. 3. Daniel Vidart, Ideologia y realidad de América, Montevidéu, 1968. 11 disse que eram o maior senhorio rico que há no mundo.Eu disse do ouro, pérolas, pedras preciosas, especiarias...” Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de um homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo. As terras virgens, densas de selvas e perigos, inflamavam a cobiça dos capitães, dos cavaleiros fidalgos e dos soldados em trapos, lançados à conquista dos espetaculares despojos de guerra: acreditavam na glória, “o sol dos mortos”, e na chave para alcançá-la, que Cortez assim definia: “Aos ousados ajuda a Fortuna”. O próprio Cortez havia hipotecado todos seus bens pessoais para equipar a expedição ao México. Salvo raras exceções - Colombo, Dávila, Magalhães - as expedições de conquista não eram custeadas pelo Estado, mas pelos próprios conquistadores ou por empresários que financiavam a aventura5. Nasceu o mito do Eldorado, o monarca do ouro: de ouro eram as ruas e as casas das cidades de seus reinos. Um século depois de Colombo, Sir Walter Raleigh subiria o Orinoco, em busca do Eldorado, e seria derrotado pelas cataratas. A ilusão da “serra que emanava prata” tornou-se realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes morreram, vencidos pela fome e pela doença ou varados a flechadas pelos indígenas, muitos dos expedicionários que tentaram, infrutiferamente, alcançar o manancial da prata, subindo o rio Paraná. Havia, sim, ouro e prata em grandes quantidades, acumulados no planalto do México e no altiplano andino. Fernão Cortez revelou para a Espanha, em 1519, a fabulosa magnitude do tesouro asteca de Montezuma, e quinze anos depois chegou a Sevilha o gigantesco resgate, um aposento cheio de ouro e prata, que Francisco Pizarro mandou pagar ao inca Atahualpa antes de estrangulá-lo. Anos antes, com o ouro arrancado das Antilhas, a Coroa pagara o serviço dos marinheiros que acompanharam Colombo em sua primeira viagem6. Finalmente, a população das ilhas do Caribe deixou de pagar tributos, porque desapareceu: os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens de ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo mergulhada na água, ou lavrando os campos até a extenuação, com as costas dobradas sobre os pesados instrumentos de aragem trazidos da Espanha. Muitos indígenas da Ilha Dominicana antecipavam-se ao destino imposto por seus novos opressores brancos: matavam seus filhos e se suicidavam em massa. O historiador Fernández de Oviedo interpretava assim, em meados do século XVI, o holocausto dos antilhanos: “Muitos deles, por passatempo, mataram-se com veneno para não trabalhar, e outros se enforcaram com as próprias mãos”7. 4. Luís Nicolau D'Olwer, Cronistas de las culturas precolombinas, México, 1963. O advogado Antonio de León Pinelo dedicou dois tomos inteiros para demonstrar que o Éden estava na América. Em El Paraíso en el Nuevo Mundo (Madri, 1656), incluiu um mapa da América do Sul no qual se pode ver, no centro, o jardim de Êden regado pelo Amazonas, o rio da Prata, o Orinoco e o Magdalena. O fruto proibido era a banana. O mapa indicava o lugar exato de onde partira a Arca de Noé, quando do Dilúvio Universal. 5. J. M. Ots Capdequí, El Estado español en las índias, México, 1941. 6. Earl J. Hamilton, American treasure and the price revolution in Spain (1501- - 1650), Massachusetts, 1934. 7. Gonzalo Fernández de Oviedo, Historia general y natural de las Índias, Madri; 1959. A interpretação fez escola. Assombra-me ler, no último livro do técnico francês Renê Dumont, Cuba, estil socialiste?, Paris, 197O: "Os índios não foram totalmente exterminados. Seus gens subsistem nos cromossomas cubanos. Eles sentiam uma tal aversão pela tensão que exige o trabalho contínuo, que alguns se suicidaram antes de aceitar o trabalho forçado..." 12 OS DEUSES RETORNAM COM AS ARMAS SECRETAS De passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo havia presenciado uma formidável erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que aconteceria depois nas imensas terras novas, interrompendo, assombrosamente, a rota ocidental rumo à Ásia. A América estava ali, se mostrava por suas costas infinitas; a conquista estendeu-se, como uma maré furiosa, em ondas sucessivas. Os governadores sucediam os almirantes e as tripulações convertiam-se em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África à coroa de Portugal, e à coroa de Castela outorgaram as terras “desconhecidas como as até aqui descobertas por vossos enviados e as que se hão de descobrir no futuro...”: a América fora doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito de premiação real de todos os benefícios eclesiásticos8. O Tratado de Tordesilhas, de 1494, permitiu a Portugal ocupar, territórios americanos além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Sousa fundou as primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses intrusos. Já então os espanhóis, atravessando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado muito no processo de exploração e conquista. Em 1513, o Pacífico sul resplandecia ante os olhos de Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os dezoito sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que tinha unido pela primeira vez ambos os oceanos e verificado que o mundo era redondo ao dar-lhe uma volta completa: três anos antes, haviam partido da ilha de Cuba, em direção ao México, as dez naves de Fernão Cortez, e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco Pizarro, um criador de porcos e analfabeto, entrou triunfalmente em Cuzco, em 1533, apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam o Chaco e descobriam o Novo Mundo do Peru à nascente do rio mais caudaloso do planeta. Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro nem o arado, nem o vidro e a pólvora, nem empregava a roda, a não ser em pequenos carrinhos. A civilização que se abateu sobre estas terras, vinda do além-mar, vivia a explosão criadora do Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais, incorporada, junto com a pólvora, imprensa, papel e bússola, ao efervescente nascimento da Idade Moderna. O desnível do desenvolvimento de ambos os mundos explica a relativa facilidade com que sucumbiram as civilizações nativas. Fernão Cortez desembarcou em Veracruz acompanhado por não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, 10 canhões de bronze e alguns arcabuzes, mosquetões e pistolas. Bastou-lhe isto. E entretanto a capital dos astecas, Tenochtitlán, era cinco vezes maior do que Madri e tinha o dobro da população de Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro, por seu lado, entrou em Cajamarca com 180 soldados, 37 cavalos, e encontrou um exército de 100 mil índios. Os indígenas foram derrotados também pelo assombro. O imperador Montezuma recebeu, em seu palácio, as primeiras notícias: um grande “monte” andava mexendo-se pelo mar. Outros mensageiros chegaram depois: “...muito espanto lhe causou ao ouvir, como dispara um canhão, como ressoa seu estrépido, como derruba as pessoas; e 8. Guillermo Vázquez Franco, La conquista justificada, Montevidéu, 1968, e J. H. Elliot, op. cil. 13 atordoam-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma, bola de pedra sai de suas entranhas: vai chovendo fogo...” Os estrangeiros traziam “veados” nos quais montavam e “ficavam da altura dos tetos”. Por todas ás partes tinham o corpo envolto, “somente as caras aparecem. São brancas, como se fossem de cal. Têm cabelo amarelo, embora alguns os tenham pretos. Sua barba é grande...9” Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcóatl que voltava. Oito presságios haviam anunciado, pouco antes, o retorno. Os caçadores lhe tinham trazido uma ave que tinha na cabeça um diadema redondo com a forma de um espelho, que refletia o céu e o sol em direção do poente. Neste espelho Montezuma viu marchar sobre o México os esquadrões dos guerreiros. O deus Quetzalcóatl tinha vindo pelo leste e pelo leste tinha-se ido: era branco e barbudo. Também branco e barbudo era Viracocha, o deus bissexual dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heróicos dos maias10. Os deuses vingativos que agora regressavam para saldar contas com seus povos traziam armaduras e camisas de malhas, escudos brilhantes que devolviam os dardos e as pedras; suas armas disparavam raios mortíferos e escureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com refinamento e sabedoria, a técnica da traição e da intriga. Souberam aliar-se com os tlaxcaltecas contra Montezuma e explorar, com proveito, a divisão do império incaico entre Huáscar e Atahualpa, os irmãos inimigos. Uma vez abatidas, pelo crime, as chefias indígenas, souberam ganhar cúmplices entre as castas dominantes intermediárias, sacerdotes, funcionários, militares. Além disso, também usaram outras armas ou, se se prefere, outros fatores trabalharam objetivamente para a vitória. Os cavalos e as bactérias, por exemplo. Os cavalos tinham sido, como os camelos, originários da América11, mas haviam-se extinguido nestas terras. Introduzidos na Europa por cavaleiros árabes, tinham, naquelas comarcas, uma imensa utilidade militar e econômica. Quando reapareceram na América, através da conquista, contribuíram para dar forças mágicas aos invasores ante os olhos atônitos dos indígenas. Atahualpa viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados em briosos cavalos ornamentados com casquetes e penachos, que corriam provocando ruídos e poeira com seus cascos velozes: tomado pelo pânico, o inca caiu de costas.12 O cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro Alvarado, convencido de que formava parte do conquistador: Alvarado levantou-se e o matou13. Poucos cavalos, cobertos com arreios de guerra, dispersavam as massas indígenas e semeavam o terror e a morte. “Os padres e os missionários divulgaram, ante a fantasia vernácula”, durante o processo colonizador, “que os cavalos eram de origem sagrada, já que Santiago, o Padroeiro da Espanha, montava um potro branco, que tinha ganho valiosas batalhas contra os mouros e os judeus, com a ajuda da Divina Providência”14. As bactérias e os vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam consigo, como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias doenças pulmonares, intestinais e vené9. Segundo os informantes indígenas de frei Bernardino de Sahagún, no Códice Florentino, Miguel León-Portilla, Visión de Ias vencidos, México, 1967. 10. Estas assombrosas coincidências estimularam a hipótese de que os deuses das re-ligiões indígenas tivessem sido na realidade europeus chegados a estas terras muito antes de Colombo. Rafael Pineda Yáñez, La isla y Colón, Buenos Aires, 1955. 11. Jacquetta Hawkes, Prehistoria, em História de la Humanidad, da Unesco, Bue-nos Aires, 1966. 12. Huamán Poma, El primer nueva crónica y buen gobierno, em Miguel León- Portilla, El reverso de la conquista. Relaciones aztecas, mayas e incas, México, 1964. 13. Títulos de la Casa lzquiín Nehaib, Señora dei Território de Otziyá, em Miguel León-Portilla, op. cit. 14. Gustavo Adolfo Otero, Vida social en el coloniaje, La Paz, 1958. 14 reas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que aumentava a febre e descompunha as carnes? “Já se foram a mexer em Tlaxcala. Então se difundiu a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam”, diz uma testemunha indígena, e outro: “Muitos morreram com a pegajosa, compacta, dura doença de grãos”15. Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas contra doenças novas. E os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro calcula16 que mais da metade da população aborígene da América, Austrália e ilhas oceânicas morreu logo no primeiro contato com os homens brancos. “COMO PORCOS FAMINTOS, ANSEIAM PELO OURO” Com tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste, avançavam os implacáveis e escassos conquistadores da América. É o que contam as vozes dos vencidos. Depois da matança de Cholula, Montezuma envia novos emissários ao encontro de Fernão Cortez, que avança rumo ao vale do México. Os enviados presenteam os espanhóis com colares de ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis “deleitavam-se. Como se fossem macacos levantavam o ouro, como que se encantassem, gestos de prazer, como que se lhes renovasse e iluminasse o coração. Como que certo é que isso desejam com muita sede. Se lhes incha o corpo por isto. Como uns porcos famintos que anseiam pelo ouro”, diz o texto náhuatl, preservado no Códice Florentino. Mais adiante, quando Cortez chega Tenochtitlán, a esplêndida capital asteca de 300 mil habitantes, os espanhóis entram na casa do tesouro, “e logo fizeram uma grande bola de ouro, e puseram fogo, incendiaram, atearam fogo a tudo que restava, por mais valioso que fosse: com o que tudo ardeu. E em relação ao ouro, os espanhóis o reduziram a barras ...“ Houve guerra, e finalmente Cortez, que havia perdido Tenochtitlán, a reconquistou em 1521. “E já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos de que comer, já nada comíamos.” A cidade, devastada, incendiada e coberta de cadáveres, caiu. “Com os escudos foi seu resguardo, mas nem com escudos pôde ser sustentada sua solidão.” Fernão Cortez havia-se horrorizado ante os sacrifícios dos indígenas de Veracruz, que queimavam entranhas dos meninos para oferecer a fumaça aos deuses; todavia, não houve limites para sua própria crueldade na cidade reconquistada. “E toda a noite choveu sobre nós.” Mas a força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados não Preenchiam nunca as exigências da imaginação, e durante muitos anos escavaram os espanhóis o fundo do lago do México em busca do ouro e dos objetos preciosos que os índios teriam escondido. Pedro de Alvarado e seus homens atiraram-se sobre a Guatemala e “eram tantos os índios que mataram, que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque”, e tàmbém “o dia tornou-se vermelho pelo excesso de sangue que houve naquele dia”. Antes da batalha decisiva, “e visto que os índios atormentados disseram aos espanhóis que não os atormentassem mais, que ali havia muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas que tinham os capitães Nehaib Ixquín, Nehaib feito águia e leão. E logo deram aos espanhóis e ficaram com eles ...”17 Antes de Francisco Pizarro degolar o inca Atahualpa e lhe cortar a cabeça, arrancou-lhe um resgate em “pilhas de ouro e de prata que pesavam mais de vinte mil marcos de prata 15. Autores anônimos de Tlatelolco e informantes de Sahagún, em Miguel León- Portilla, op. Cit. 16. Darcy Ribeiro, As Américas e a civilizarão, tomo I: A civilizarão ocidental e nós. Os povostestemunhas, Buenos Aires, 1969, Rio, 1973. 17. Miguel León-Portilla, op. cit. 15 fina, um milhão e trezentos e vinte e seis mil escudos de ouro finíssimo...” Depois lançou-se sobre Cuzco. Seus soldados acreditavam entrar na cidade dos césares, tão deslumbrante era a capital do império incaico, mas não demoraram em saquear o Templo do Sol: “Forcejando, lutando entre si, cada qual procurando levar a parte do leão do tesouro, os soldados, com camisa de malha, pisoteavam jóias e imagens, martelavam os utensílios de ouro para reduzi-los a um formato mais fácil e manejável... Atiravam-nos ao crisol, para convertê-lo em barras, todo o tesouro do templo: as placas que cobriam as paredes, as assombrosas árvores esculpidas, pássaros e outros objetos de jardim.”18 Hoje em dia, no zócalo, a imensa praça nua do centro da capital do México, a catedral católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio do governo está situado sobre a residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca martirizado e morto por Cortez. Tenochtitlán foi arrasada. Cuzco, no Peru, teve sorte semelhante, mas os conquistadores não puderam destruir de todo seus muros gigantescos, e hoje pode-se ver, ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica. ESPLENDORES DE POTOSÍ: O CICLO DA PRATA Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de Potosi19. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em 1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com barras de prata. Em Potosí a prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa, derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A espada e a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Para arrancar a prata da América, encontravam-se em Potosí os capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados e frades. Convertidas em bolas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram substancialmente o desenvolvimento da Europa. “Vale um Peru” era o elogio máximo às pessoas ou as coisas, quando Pizarro tornou-se dono de Cuzco; mas a partir do novo descobrimento, Dom Quixiote de la Mancha adverte Sancho com outras palavras: “Vale um Potosí”. Veia jugular do vice-reinado, manancial da prata da América, Potosí contava com 120 mil habitantes, segundo o censo de 1573. Só 28 anos havia transcorrido desde que a cidade brotara entre os páramos andinos, e já tinha, como por mágica, a mesma população que Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri, Roma ou Paris. Por volta de 1650, um novo censo dava a Potosí 160 mil habitantes. Era uma das maiores e mais ricas cidades do mundo, dez vezes mais habitada do que Boston, no tempo em que Nova Iorque não tinha ainda esse nome. A história de Potosí não nasceu com os espanhóis. Tempos antes da conquista, o inca Huayna Cápaj ouvira falar, através de seus “vassalos” de Sumaj Orcko, da formosa montanha, e por fim pôde vê-la quando se fez levar, doente, às termas de Tarapaya. Das palhoças do povoado de Cantumarca, os olhos do inca contemplaram pela primeira vez aquele cone perfeito que se levantava, orgulhoso, por entre os cumes das serras. Ficou estupefato. As infinitas tonalidades avermelhadas, e a forma esbelta e o tamanho gigan18. Ibid. 19. Para a reconstrução do apogeu de Potosí, o autor consultou os seguintes teste-munhos do passado: Pedro Vicente Cañete y Dominguez, Potosí colonial; guía histórica, geográfica, política, civil y legal del gobierno e intendencia de Ia provicia de Potosi, La Paz, 1939; Luis Capoche, Relación general de Ia Villa Imperial de Potosi, Madri, 1959; e Nicolás de Martínez Arzanz y Vela, História de Ia Vilia Imperial de Potosí, Buenos Aires, 1943. Além disso, as Crónicas potosinas,'de Vi-cente G. Quesada, Paris, 1890, e La ciudad única, de Jaime Molins, Potosí, 1961. 16 tesco do monte continuaram sendo motivo de admiração e assombro. Mas o inca suspeitava que suas entranhas abrigavam pedras preciosas e ricos metais, e os quis para novos adornos ao Templo do Sol em Cuzco. O ouro e a prata que os incas arrancavam das minas de Colque Porco e Andacaba não saíam dos limites do reino: não serviam para comerciar, mas para adorar os deuses. Mal os indígenas cravaram suas machadinhas nos filões de prata do monte, uma voz cavernosa os derrubou. Era uma voz forte como um trovão, que saía das profundezas daquelas brechas e dizia, em quéchua: “Não é para vocês. Deus reserva estas riquezas para os que vêm de longe.” Os índios fugiram apavorados e o inca abandonou o monte. Antes, mudou-lhe o nome. O monte passou a chamar-se Potojsi, que significa: “Estronda, arrebenta, faz explosão.” “Os que vêm de longe” não demoraram muito a aparecer. Os capitães da conquista abriam caminho. Huayna Cápaj já tinha morrido quando chegaram. Em 1545, o índio Huallpa perseguia os rastros de uma lhama fugitiva e se viu obrigado a passar a noite no monte. Para não morrer de frio, fez fogo. A fogueira iluminou um filamento branco e brilhante. Era prata pura. Desencadeou-se a avalancha espanhola. Fluiu a riqueza. O imperador Carlos V deu imediatos sinais de gratidão, outorgando a Potosí o título de Vila Imperial e um escudo com esta inscrição: “Sou o rico Potosí, do mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos reis.” Apenas onze anos depois do achado de Huallpa, a recém-nascida Vila Imperial celebrava a coroação de Felipe II com festejos que duraram 24 dias e custaram oito milhões de pesos. Choviam caçadores de tesouro sobre a inóspita paragem. A montanha, a quase cinco mil metros de altura, era o mais poderoso dos ímãs, mas a seus pés a vida era dura, inclemente: passava-se frio como se fosse um imposto, e num abrir e fechar de olhos uma sociedade rica e desordenada brotou, em Potosí, junto com a prata. Auge e turbulência do metal, Potosí passou a ser “o nervo principal do reino”, como definiu o vice-rei Furtado de Mendonça. No começo do século XVII, a cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente ornamentadas, 36 casas de jogo e 14 escolas de danças. Os salões, os teatros e os tablados para as festas ostentavam riquíssimos tapetes, cortinas, brasões e obras de ourivesaria; dos balcões pendiam damascos coloridos e trançados de ouro e prata. As sedas e os tecidos vinham de Granada, Flandres e Calábria; os chapéus de Paris e Londres; os diamantes do Ceilão, as pedras preciosas da Índia, as pérolas do Panamá; as meias de Nápoles; os cristais de Veneza; os tapetes da Pérsia; os perfumes da Arábia, e a porcelana da China. As damas rebrilhavam com jóias, de diamantes, rubis e pérolas; os cavalheiros ostentavam tecidos bordados na Holanda. Ás touradas seguiam-se os jogos de argolinha e nunca faltavam os duelos no estilo medieval, rixas de amor e de orgulho, com elmos de ferro incrustados de esmeraldas e vistosas plumagens, arreios e estribos de filigrana de ouro, espadas de Toledo e cavalos chilenos paramentados com todo o luxo. Em 1579, queixava-se o ouvidor Matienzo: “Nunca faltam - dizia - novidades, safadezas e atrevimentos.” Por esta época já havia em Potosí 800 jogadores profissionais e 120 prostitutas célebres, a cujos resplandecentes salões acorriam os mineiros ricos. Em 1608, Potosí festejava as festas do Santíssimo Sacramento com seis dias de comédias e seis noites de festas de máscaras, oito dias de touradas e três de saraus, dois de torneios e outras festas. A ESPANHA TINHA A VACA, MAS OUTROS TOMAVAM O LEITE Entre 1545 e 1558 descobriram-se as férteis minas de prata de Potosí, na atual Bolívia, e as de Zacatecas e Guanajuato no México; o processo de amálgama com mercúrio, que tornou possível a exploração da prata de lei inferior, começou a ser aplicado neste 17 mesmo período. O rush da prata eclipsou rapidamente a mineração do ouro. Em meados do século XVII, a prata englobava mais de 99% das exportações da América hispânica20. A América era, nesta época, uma boca de mina centrada, sobretudo, em Potosí. Alguns escritores bolivianos, inflamados de excessivo entusiasmo, afirmam que em três séculos a Espanha recebeu tanto metal de Potosí que dava para fazer uma ponte de prata desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. A imagem é, sem dúvida, obra da fantasia, mas de qualquer maneira se refere a uma realidade que, de fato, parece inventada: o fluxo da prata alcançou dimensões gigantescas. A vultosa exportação clandestina de prata americana, que se evadia por contrabando rumo às Filipinas, à China e à própria Espanha, não figura nos cálculos de Earl J. Hamilton21 que, a partir dos dados obtidos na Casa de Contratação de Sevilha, oferece, de todos os modos, em sua conhecida obra sobre o terna, cifras assombrosas. Entre 1503 e 1660, chegaram ao porto de San Lúcar de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata transportada para a Espanha em pouco mais de um século e meio, excedia três vezes o total das reservas européias. E é preciso levar em conta que estas cifras oficiais são sempre minimizadas. Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até mesmo dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas, que Alexandre Magno despejou sobre o mundo helênico, poderiam comparar-se com a magnitude desta formidável contribuição da América para o progresso alheio. Não ao da Espanha, certamente, ainda que à Espanha pertencessem as fontes de prata americana. Como se dizia no século XVII, “a Espanha é como a boca que recebe os alimentos, mastiga-os, tritura-os, para enviá-los logo aos demais órgãos, e não retém deles por sua parte, mais do que um gosto fugidio ou as partículas que por acaso se agarram aos dentes”22. Os espanhóis tinham a vaca, mas eram outros os que bebiam o leite. Os credores do reino, em sua maioria estrangeiros, esvaziavam sistematicamente a Arca Verde da Casa de Contratação de Sevilha, destinada a guardar sob três chaves, e em três mãos distintas, o tesouro que vinha da América. A Coroa estava hipotecada. Cedia por adiantado quase todos os carregamentos de prata aos banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis23.Também os impostos arrecadados dentro da Espanha tinham, em grande parte, esta sorte: em 1543, uns 65% do total das rendas reais eram destinadas ao pagamento das anuidades dos títulos de dívida. Só uma mínima parte da prata americana se incorporava à economia espanhola; embora fosse formalmente registrada em Sevilha, parava em mãos dos Függer, poderosos banqueiros que adiantaram ao Papa os fundos para terminar a catedral de São Pedro, e de outros grandes usurários da época, no estilo dos Welser, os Shetz ou os Grimaldi. A prata destinava-se também ao pagamento de exportações de mercadorias não espanholas com destino ao Novo Mundo. Aquele império rico tinha uma metrópole pobre, embora nela houvesse a grande ilusão de prosperidade: a Coroa abria, em todos os lugares, frentes de guerra, enquanto a aristocracia consagrava-se ao desperdício; se multiplicavam, em solo espanhol, os padres e os guerreiros, os nobres e os mendigos, no mesmo ritmo frenético em que aumentavam os preços e as taxas de juro. A indústria morria ao nascer naquele reino de vastos latifúndios estéreis, e a enferma economia espanhola não podia resistir ao brusco impacto da alta da demanda de alimentos e mercadorias, inevitável conseqüência da expansão colonial. O grande aumento dos gastos públicos e a asfixiante pressão das necessidades de 20. Earl J. Hamilton, op. cit. 21. Ibid. 22. Citado por Gustavo Adolfo Otero, op. cit. 23. J. H. Elliot, op.. cit., e Earl J. Hamilton, op. cit. 18 consumo nas possessões de ultramar intensificavam o déficit comercial e deflagravam, a galope, a inflação. Colbert escrevia: “Quanto mais comércio com os espanhóis tem um Estado, mais prata tem.” Havia uma intensa luta européia pela conquista do mercado espanhol que oferecia, além disso, o mercado e a prata da América. Um memorial francês do fim do século XVII nos permite saber que a Espanha só dominava, por esta época, 5% do comércio com “suas” possessões coloniais, apesar do ilusionismo jurídico do monopólio: cerca de uma terça parte do total estava em mãos holandesas e flamengas, uma quarta parte pertencia aos franceses, os geneveses controlavam mais de 20%, os ingleses 10% e os alemães um pouco menos24 . A América era um negócio europeu. Carlos V, herdeiro dos Césares no Sacro Império por eleição comprada, só tinha passado na Espanha 16 dos 40 anos de seu reinado. Aquele monarca de queixo proeminente e olhar de idiota, que subira ao trono sem conhecer uma só palavra do idioma castelhano, governava rodeado por um séquito de flamengos vorazes aos quais dava salvo-condutos para tirar da Espanha mulas e cavalos carregados de ouro e jóias, e também recompensando-o com a outorga de dioceses e arquidioceses, títulos burocráticos e a primeira licença para levar escravos negros às colônias americanas. Lançando-se à perseguição do demônio por toda a Europa, Carlos V extenuava o tesouro da América em suas guerras religiosas. A dinastia dos Habsburgos não se extinguiu com sua morte; a Espanha teria de padecer os reinados dos austríacos durante quase dois séculos. O grande guia da Contra-Reforma foi seu filho, Felipe II. Do seu gigantesco palácio-mosteiro do Escorial, nas encostas de Guadarrama, Felipe II pôs em funcionamento, em escala universal, a terrível maquinaria da Inquisição, e lançou seus exércitos sobre os centros de heresia. O calvinismo tomava conta da Holanda, Inglaterra e França, e os turcos encarnavam o perigo de retorno da religião de Alá. O salvacionismo custava caro: os poucos objetos de ouro e prata, maravilhas da arte americana, que não chegavam já fundidos do México ou Peru, eram rapidamente arrancadas da Casa de Contratação de Sevilha e lançados às bocas dos fornos. Ardiam também os hereges ou os suspeitos de heresia, torrados pelas chamas purificadoras da Inquisição; Torquemada incendiava os livros e o rabo do diabo mostrava-se em todos os recantos. A guerra contra o protestantismo era, além disso, a guerra contra o capitalismo ascendente na Europa. “A perpetuação da cruzada - diz Elliot, em sua obra já citada - entranhava a perpetuação da arcaica organização social de uma nação de cruzados.” Os metais da América, delírio e ruína da Espanha, proporcionavam meios para lutar contra as forças nascentes da economia moderna. Carlos V já tinha arrasado a burguesia castelhana na guerra dos comuneros, que se convertera numa revolução social contra a nobreza, suas propriedades e seus privilégios. O levante foi derrotado a partir da traição da cidade de Burgos, que seria a capital do general Francisco Franco quatro séculos mais tarde. Extintos os últimos fogos rebeldes, Carlos V regressou à Espanha, acompanhado de quatro mil soldados alemães. Simultaneamente, foi também afogada em sangue a radicalíssima insurreição dos tecedores, fiadores e artesãos, que haviam tomado o poder na cidade de Valência e o estenderam por toda a comarca. A defesa da fé católica era uma máscara para a luta contra a História. A expulsão dos judeus havia privado a Espanha, no tempo dos Reis Católicos, de muitos artesão hábeis e de capitais imprescindíveis. Isto é mais importante que a expulsão dos árabes, em 1609, embora mais de 275 mil mouros fossem empurrados para a fronteira, tendo desastrosos efeitos sobre a economia valenciana e arruinando os férteis campos do sul do Ebro, em Aragón. Anteriormente, Felipe II tinha escorraçado, por motivos religiosos, milhares de artesãos flamengos convictos ou suspeitos de protestantismo. A Inglaterra os acolheu em 24. Roland Mousnier, Los siglos XVI y XVII, volume IV da Historia general de las civilizaciones, de Maurice Crouzet, Barcelona, 1967. 19 seu solo, e ali deram um importante impulso às manufaturas britânicas. Como se vê, as enormes distâncias e as difíceis comunicações não eram os principais obstáculos que se opunham ao progresso industrial da Espanha. Os capitalistas espanhóis se convertiam em usurários, através da compra dos títulos da dívida da Coroa, e não investiam seus capitais no desenvolvimento industrial. O excedente econômico escorria por leitos improdutivos: os velhos ricos, senhores de ancinho e foice, donos da terra e dos títulos de nobreza, levantavam palácios e acumulavam jóias; os novos ricos, especuladores e mercadores, compravam terra e títulos de nobreza. Nem uns nem outros pagavam impostos na prática, nem podiam ser presos por dívidas. Quem se dedicasse a uma atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia25. Sucessivos tratados comerciais, assinados a partir das derrotas militares dos espanhóis na Europa, outorgaram concessões que estimulavam o tráfego marítimo entre o porto de Cádis - onde se despejavam os metais da América - e os portos franceses, ingleses, holandeses e hanseáticos. A cada ano, quase oitocentas e mil naus descarregavam na Espanha os produtos industrializados por outros países. Levavam a prata da América e a lã espanhola, que ia para os teares estrangeiros de onde seria devolvida já tecida pela indústria européia em expansão. Os monopolistas de Cádis limitavam-se a remarcar os produtos industriais que expediam ao Novo Mundo: se as manufaturas espanholas não podiam sequer atender ao mercado interno, como iam satisfazer às necessidades das colônias? Os tecidos de Lille e Arraz, os panos holandeses, os tapetes de Bruxelas e os brocados de Florença, os cristais de Veneza, as armas de Milão e os vinhos e linhos da França26 inundavam o mercado espanhol, às custas da produção local, para satisfazer a ânsia de ostentação e as exigências de consumo dos ricos parasitas, cada vez mais numerosos e poderosos num país cada vez mais pobre. A indústria não se desenvolvia, e os Habsburgos fizeram todo o possível para acelerar sua extinção. Em meados do século XVI, chegou se ao cúmulo de autorizar a importação de tecidos estrangeiros, ao mesmo tempo em que se proibia toda a exportação de tecidos castelhanos, a não ser para América27: Ao contrário, como notou Ramos, muito diferentes eram as diretrizes de Henry VIII ou Elizabeth I na Inglaterra: proibiam nesta ascendente nação a saída do ouro e da prata, monopolizavam as letras de câmbio, impediam a extração de lã e expulsavam dos portos britânicos os mercadores da Liga Hanseática do Mar do Norte. Enquanto isto, as repúblicas italianas protegiam seu comércio exterior e sua indústria, mediante taxas, privilégios e proibições rigorosas: os artesãos que desejassem sair do país eram ameaçados com a pena de morte. A ruína abarcava tudo. Dos 16 mil teares que restaram em Sevilha em 1558, depois de Carlos V, só sobraram 400 quando morreu Felipe II, quarenta anos depois. Os sete milhões de ovelhas do rebanho andaluz reduziam-se a dois milhões. Cervantes retratou em Dom Quixote de la Mancha - por muito tempo proibido na América - a sociedade da época. Um decreto de meados do século XVI impossibilitava a importação de livros estrangeiros e impedia os estudantes de cursarem escolas fora da Espanha; os estudantes de Salamanca reduziram-se à metade em poucas décadas; havia nove mil conventos e o clero se multiplicava quase tão intensamente quanto a nobreza de capa e espada; 160 mil estrangeiros açambarcaram o comércio exterior, e os esbanjamentos da aristocracia condenavam a Espanha à impotência econômica. Por volta de 1630, pouco mais de uma centena e meia de duques, marqueses, condes e viscondes recolhiam cinco milhões de ducados de renda anual, que alimentavam copiosamente o brilho de seus títulos ostentosos. O duque de Medinaceli tinha setecentos criados, e eram trezentos os servidores do grão-duque de 25. J. Vicens Vives, História social y económica de España y América, Barcelona, 1957. 26. Jorge Abelardo Ramos, Historia de la nación latinoamericana, Buenos Aires, 1968. 27. J. H. Elliot, op. cit. 20 Osuna, que, para zombar do czar da Rússia, os vestia com capotes de peles28. 0 século XVII foi a época da desonra, da fome e das epidemias. Era infinita a quantidade de mendigos espanhóis, mas isso não impedia que também os mendigos estrangeiros afluíssem de todos as regiões da Europa. Por volta de 1700, a Espanha já contava com 625 mil fidalgos, senhores da guerra, embora o país se esvaziasse: sua população tinha-se reduzido à metade em pouco mais de dois séculos, e era equivalente da Inglaterra, que no mesmo período a tinha duplicado. 1700 assinala o fim do regime dos Habsburgos. A bancarrota era total. Desemprego crônico, grandes latifúndios, moeda caótica, indústria arruinada, guerras perdidas e tesouros vazios, a autoridade central desconhecia nas províncias: a Espanha que defrontou Felipe V estava “pouco menos defunta que seu amo morto”29. Os Borbóns deram à nação uma aparência mais moderna, mas em fins do século XVII o clero espanhol tinha nada menos que 200 mil membros e o resto da população improdutiva não detinha seu massacrante desenvolvimento, às expensas do subdesenvolvimento do país. Por esta época, havia ainda na Espanha mais de dez mil povoados e cidades sujeitos à jurisdição senhorial da nobreza e, portanto, fora do controle direto do rei. Os latifúndios e a instituição da primogenitura continuavam intactos. Continuava de pé o obscurantismo e o fatalismo. Não havia sido superada a época de Felipe IV: no seu tempo, uma junta de teólogos reuniu-se para examinar o projeto de construção de um canal entre o Manzanares e o rio Tajo, e terminou declarando que se Deus quisesse que os rios fossem navegáveis, Ele mesmo os teria feito assim. A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE O CAVALO E O CAVALEIRO Escreveu Karl Marx, no primeiro tomo de O Capital: “O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original” (p. 638). O saqueio, interno e externo, foi o meio mais importante para a acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade Média, possibilitou o surgimento de uma nova etapa histórica na evolução econômica mundial. À medida que se estendia a economia monetária, o intercâmbio desigual ia abarcando cada vez mais segmentos sociais e regiões do planeta. Ernest Mandel somou o valor do ouro e da prata arrancados da América até 1660, o espólio da Indonésia pela Companhia Holandesa das Índias Orientais desde 1650 até 1780, os lucros do capital francês no tráfico de escravos durante o século XVII, os ganhos obtidos pelo trabalho escravo nas Antilhas britânicas e o saque inglês da Índia durante meio século: o resultado supera o valor do capital investido em todas as indústrias européias até 180030. Mandel observa que esta gigantesca massa de capitais criou um ambiente favorável aos investimentos na Europa, estimulou o “espírito de empresa” e financiou diretamente o estabelecimento de manufaturas, dando um grande impulso à revolução 28. A espécie não se extinguiu. Abro uma revista de Madri, de fins de 1969, e leio: morreu dona Teresa Bertrán de Lis y Pidal Gorouski y Chico de Guzmán, duquesa de Albuquerque marquesa dos Alcañices y dos Balbases, e a chora o viúvo duque de Albuquerque, dom Beltrán Alonso Osorio y Díez de Rivera Martos y Figueroa, marquês de Alcañices, dos Balbeses, de Cadreita, de Cuéllar, de Cullera, de Montaos, conde de Fuensaldaña, de Grajal, de Huelma, de Ledesma, de la Torre, de Villanueva de Cañedo, de Villahumbrosa, três vezes Grande da Espanha. 29. John Lynch, Adminisiración colonial española, Buenos Aires, 1962. 30. Ernest Mandel, Tratado de economia marxista, México, 1969. 21 industrial. Mas, ao mesmo tempo, a formidável concentração internacional da riqueza em beneficio da Europa impediu, nas regiões saqueadas, o salto para a acumulação de capital industrial. “A dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas deste processo de concentração internacional, mas que também, posteriormente, tiveram de compensar o atraso industrial, ou seja, realizar a acumulação original de capital industrial, num mundo inundado pelos artigos manufaturados por uma indústria já madura, a ocidental.31” As colônias americanas foram descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do processo da expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o mundo inteiro. Nem a Espanha nem Portugal receberam os benefícios do envolvente, avanço do mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias as que, em grande parte, proporcionaram o ouro e a prata, que nutriram esta expansão. Como vimos, se bem que os metais preciosos da América iluminassem a enganosa fortuna de uma nobreza espanhola, que vivia sua Idade Média tardiamente e na contramão da, história, simultaneamente selaram a ruína da Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno, valendo-se, em grande parte, da expropriação dos povos primitivos da América. À rapinagem dos tesouros acumulados sucedeu a exploração sistemática, nos socavãos e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e escravos negros, arrancados da África pelos traficantes. A Europa necessitava de ouro e prata. Os meios de pagamentos em circulação se multiplicavam sem cessar e era preciso alimentar os movimentos do capitalismo na hora do parto: os burgueses se apoderavam das cidades e fundavam bancos, produziam e trocavam mercadorias, conquistavam novos mercados. Ouro, prata, açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que o valor das importações, compostas por escravos, sal e artigos de luxo. Os recursos fluíam para que os acumulassem as nações européias emergentes do outro lado do mar. Esta era a missão fundamental que trouxeram os pioneiros, embora, além disso, aplicassem o Evangelho quase tão freqüentemente como o chicote, aos índios agonizantes. A estrutura econômica das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em conseqüência, centralizada em torno do setor exportador, que concentrava renda e poder. Ao longo do processo, desde a etapa dos metais à provisão de alimentos, cada região se identificou com o que produzia, e produzia o que dela se esperava na Europa: cada produto, carregado nos porões dos navios que sulcavam o oceano, converteu-se numa vocação e num destino. A divisão internacional do trabalho, tal como foi surgindo junto com o capitalismo, parecia-se mais com a distribuição de funções entre o cavaleiro e o cavalo, com diz Paul Baran32. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado interno do capitalismo que emergia. Celso Furtado adverte33 que os senhores feudais europeus obtinham um excedente econômico da população por eles dominada, e o utilizavam, de uma forma ou de outra, em suas próprias regiões, enquanto o objetivo principal dos espanhóis, que recebiam do rei minas, terras e indígenas na América, consistia em subtrair um excedente para transferi-lo para a Europa. Esta observação contribuiu para esclarecer a meta final que teve, desde sua implantação, a economia colonial americana; embora formalmente mostrasse alguns as31. Ernest Mandel, La teoria marxista de Ia acumulación primitiva y la industrialización del Tercer Mundo, revista Amaru, nº 6, Lima, abril/junho de 1968. 32. Paul Baran, Economía del crescimento, México, 1959. 33. Celso Furtado, La economia latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución cubana, Santiago do Chile, 1969, México, 1969. 22 pectos feudais, atuava a serviço do capitalismo nascente em outras comarcas. No fim das contas, tampouco em nosso tempo a existência dos centros ricos do capitalismo pode explicar-se sem a existência das periferias pobres e submetidas: uns e outras integram o mesmo sistema. Mas nem todo o excedente evadia-se para a Europa. A economia colonial estava regida pelos mercadores, os donos das minas e, os grandes proprietários de terras, que repartiam entre si o usufruto da mão-de-obra indígena e negra, sob o olhar ciumento e onipotente da Coroa e seu principal sócio, a Igreja. O poder estava concentrado em poucas mãos, que enviavam à Europa metais e alimentos, e da Europa recebiam os artigos de luxo, a cujo desfrute consagravam suas fortunas crescentes. As classes dominantes não tinham o menor interesse em diversificar as economias internas, nem de elevar os níveis técnicos e culturais da população: era outra sua função, dentro da engrenagem internacional para a qual atuavam; e a imensa miséria popular, tão lucrativa do ponto de vista dos interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de consumo. Uma economista francesa34 sustenta que a pior herança colonial da América Latina, que explicou seu considerável atraso atual, é a falta de capitais. Entretanto, toda a informação histórica mostra que a economia colonial produziu, no passado, uma enorme riqueza para as classes associadas, dentro da região, ao sistema colonialista de domínio. A enorme mão-de-obra disponível, que era gratuita ou praticamente gratuita, e a grande demanda européia por produtos americanos tornaram possível, diz Sergio Bagú 35, “uma precoce e vultosa acumulação de capitais nas colônias ibéricas. O núcleo de beneficiários, longe de ir-se ampliando, foi-se reduzindo em proporção à massa da população, como se depreende do fato de que o número de europeus e criollos desempregados aumentasse sem cessar.” O capital que sobrava na América, uma vez deduzida a parte do leão que se dirigia ao processo de acumulação primitiva do capitalismo europeu, não gerava, nestas terras, um processo análogo ao da Europa, para lançar as bases do desenvolvimento industrial, mas se desviava para a construção de grandes palácios e templos ostentosos, à compra de jóias, roupas e móveis de luxo, à manutenção de numerosos serviçais e ao desperdício em festas. Em boa medida, este excedente também ficava imobilizado na compra de novas terras ou continuava girando nas atividades especulativas e comerciais. No ocaso da era colonial, encontrará Humboldt no México “uma enorme massa de capitais amontoados em mãos de proprietários de minas, ou dos negociantes que se haviam retirado do comércio”; não menos da metade da propriedade de base e do capital total do México pertencia, segundo seu testemunho, à Igreja, que além disso controlava boa parte das terras restantes mediante hipotecas36. Os mineiros mexicanos investiam seus excedentes na compra de grandes latifúndios, e nos empréstimos em hipoteca, como os grandes exportadores de Veracruz e Acapulco; a hierarquia clerical estendia seus bens na mesma direção. Grandes resistências palacianas brotavam na capital, e os suntuosos templos nasciam como cogumelos depois da chuva: a servidão indígena alimentava o luxo dourado dos poderosos. No Peru, em meados do século XVII, grandes capitais procedentes dos encomenderos, mineiros, inquisidores e funcionários da administração imperial voltavam-se ao comércio. As fortunas nascidas na Venezuela do cultivo do cacau, iniciado em fins do século XVI, investiam-se “em novas plantações e outros cultivos comerciais, assim como em minas, bens de base urbanos, escravos e gado”37. 34. J. Beaujeau-Garnier, L'économie de l'Amérique Latine, Paris, 1949. 35. Sergio Bagú, Economia de la sociedad colonial. Ensaio de história comparada de América Latina, Buenos Aires, 1949. 36. Alexander von Humboldt, Ensayo sobre el Reino de la Nueva España, Wéxico, 1944. 37. Sergio Bagú, op. cit. 23 RUÍNAS DE POTOSÍ - O CICLO DA PRATA Analisando a natureza das relações “metrópole-satélite”, ao longo da história da América Latina, como uma cadeia de subordinações sucessivas, André Gunder Frank destacou, em seus trabalhos38, que as regiões mais marcadas pelo subdesenvolvimento e pela pobreza são aquelas que no passado tiveram laços mais estreitos com a metrópole e desfrutaram de períodos de auge. São as regiões que foram as maiores produtoras de bens exportados para a Europa ou, posteriormente, para os Estados Unidos, e as fontes mais caudalosas de capital; regiões abandonadas pela metrópole, quando por uma razão qualquer os negócios decaíram. Potosí oferece um exemplo mais claro desta queda no vazio. As minas de prata de Guanajuato e Zacatecas, no México, viveram seu auge muito posteriormente. Nos séculos XVI e XVII, o rico monte de Potosí foi o centro da vida colonial americana: em seu redor giravam, de um modo ou de outro, a economia chilena, que lhe proporcionava trigo, carne seca, peles e vinhos; a pecuária e o artesanato de Córdoba e Tucumán, que abasteciam de animais de tração e tecidos; as minas de mercúrio de Huancavélica e a região de Arica, por onde se embarcava a prata para Lima, principal centro administrativo da época. O século XVIII marca o princípio do fim para a economia da prata, que teve seu centro em Potosí; todavia, na época da independência, a população do território que hoje compreende a Bolívia era superior à que habitava o que hoje é a Argentina. Um século e meio depois, a população boliviana é quase seis vezes menor do que a população argentina. Aquela sociedade potosina, enferma de ostentação e desperdício, só deixou na Bolívia a vaga memória de seus esplendores, as ruínas de seus templos e palácios, e oito milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante incrustado no escudo de um cavalheiro rico valia mais do que um índio podia ganhar em toda sua vida de mitayo, mas o cavalheiro fugiu com os diamantes. A Bolívia, hoje um dos países mais pobres do mundo, poderia vangloriar-se - se isso não fosse pateticanjente inútil - de ter alimentado a riqueza dos países mais ricos. Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia: “A cidade que mais deu ao mundo e a que menos tem”, como me disse uma velha senhora potosina, envolta num quilométrico xale de lã de alpaca, quando conversamos à frente do pátio andaluz de sua casa de dois séculos. Esta cidade condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo frio, é ainda uma ferida aberta do sistema colonial na América: uma acusação ainda viva. Vive-se dos escombros. Em 1640, o padre Álvaro Alonso Barba publicou em Madri, na imprensa do reino, seu excelente tratado sobre a arte dos metais. O estanho, escreveu Barba, “é veneno”39. Mencionou montanhas onde “há muito estanho, embora isso seja do conhecimento de poucos, que por não acharem a prata que todos buscam, deixam-no ali”. Em Potosí, se explora agora o estanho que os espanhóis deixaram de lado como lixo. Vendem-se as paredes das casas velhas como estanho de bom teor. Das bocas dos cinco mil socavãos que os espanhóis abriram na rica montanha, tem jorrado a riqueza ao longo dos séculos. A montanha tem mudado de cor à medida que os tiros de dinamite a esvaziam e lhe baixam o nível do cume. Os montões de pedra, acumulados em torno dos infinitos buracos, têm todas as cores: são rosados, lilás, púrpura, ocres, cinza, dourados e pardos. Uma colcha de retalhos. Os llamperos rompem a rocha e as palliris indígenas, de 38. André Gunder Frank, Capitalism and Underdevelopment, in Latin Americ, Nova lorque, 1967. 39. Álvaro Alonso-Barba, Arte de los metales, Potosí, 1967. 24 mão sábia para pesar e separar, picotam, como passarinhos, os restos minerais em busca do estanho. Nos velhos socavãos que ainda não estão inundados os mineiros entram, a lâmpada numa mão, os corpos encolhidos, para arrancar o que podem. Prata não tem, nem uma centelha; os espanhós rasparam os veios até com ancinhos. Os pallacos cavam com picareta e pá pequenos túneis para extrair filões dos despojos. “A montanha é rica entretanto - dizia-me sem assombro um desempregado que arranhava a terra com as mãos. - Deus tem de existir, imagine: o minério cresce como se fosse planta, igualzinho.” Frente à montanha rica de Potosí, levanta-se um testemunho da devastação. É um pico chamado Huakajchi, que em quéchua significa “montanha que chorou.” De suas encostas brotam muitos mananciais de água pura, “os olhos d’água” dão de beber aos mineiros. No seu auge, na metade do século XVII, a cidade tinha congregado muitos pintores e artesãos, espanhóis ou nativos, mestres europeus e nacionais ou santeiros indígenas que deixaram sua marca na arte colonial americana. Melchor Pérez de Holguín, o Greco da América, deixou uma vasta obra religiosa que ao mesmo tempo mostra o talento de seu criador e o abismo pagão destas terras: é difícil esquecer, por exemplo, a esplêndida Virgem Maria que, com os braços abertos, dá de mamar com um peito ao Menino Jesus e com o outro a São José. Os ourives, os cinzeladores de prataria e os entalhadores, os artesãos do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres, alimentaram as numerosas igrejas e mosteiros de Potosí com talhas de imaginação colonial e altares de infinitas filigranas, faiscantes de prata, e púlpitos e retábulos valiosíssimos. As frentes barrocas dos templos, trabalhadas em pedras, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não ocorreu com os quadros, em muitos casos mortalmente atacados pela umidade, nem com as figuras e objetos de pouco peso. Os turistas e os párocos esvaziaram as igrejas de tudo que puderam levar: desde os cálices e sinos até as talhas de São Francisco e Cristo em mogno ou carvalho. Estas igrejas descuidadas, já fechadas em sua maioria, estão caindo aos pedaços, arrasadas pelos anos. É uma pena, porque ainda constituem, embora tenham sido saqueadas, formidáveis tesouros de uma arte colonial que funde e ilumina todos os estilos, valiosíssima no gênio e na heresia: o “signo escalonado” de Tiahuanacu, em lugar da cruz de Cristo, e a cruz junto ao sagrado sol e sagrada lua, as virgens e os santos nus, as uvas e as espigas incrustadas nas colunas, até os capitéis, junto com a kantuta, a flor imperial dos incas; as sereias, Baco e a festa da vida, alternando com o ascetismo romântico, os rostos morenos de algumas divindidades e as cariátides de traços indígenas. Há igrejas que foram reacondicionadas para prestar, já vazia de fiéis, outros serviços. A igreja de Santo Ambrósio converteu-se em Cine Omiste; em fevereiro de 1970, sob os baixos-relevos barrocos da frente se anunciava a próxima estréia: “O mundo está louco, louco, louco.” O templo da Companhia de Jesus converteu-se também em cinema, depois em depósito de mercadorias da empresa Grace e por fim em armazém de víveres para a caridade pública. Mas outras poucas igrejas estão ainda, mais ou menos, em atividade: há pelo menos um século e meio que Os vizinhos de Potosí queimam círios à falta de dinheiro. A de São Francisco, por exemplo. Dizem que a cruz desta igreja cresce alguns centímetros por ano, e que também cresce a barba do Senhor de Vera Cruz, um imponente Cristo de prata e seda que apareceu em potosí, trazido por não se sabe quem, há quatro séculos. Os padres não negam que em cada tempo determinado lhe fazem a barba, e atribuem, até por escrito, todos os milagres: “conjurações sucessivas de secas e pestes, guerras em defesa da cidade acossada”. Entretanto, nada pode o Senhor da Vera Cruz contra a decadência de Potosí. O esgotamento da prata tinha sido interpretada como um castigo divino pelas atrocidades e pecados dos mineiros. Ficaram para trás as missas espetaculares; assim como os banquetes e as touradas, os bailes e os fogos de artifício, os luxuosos cultos religiosos, no fim das 25 contas, tinham sido também um subproduto do trabalho escravo dos índios. Os mineiros faziam, na época de esplendor, fabulosas doações às igrejas e aos mosteiros, e celebravam suntuosos ofícios fúnebres. Chaves de prata pura para as portas do céu: o mercador Álvaro Bejarano tinha ordenado, em seu testamento, que “todos os padres e sacerdotes de Potosí” acompanhassem seu cadáver. O curandeirismo e a bruxaria se misturavam com a religião autorizada, no delírio de fervores e pânicos da sociedade colonial. A extrema-unção com campainha e pálio podia, como a comunhão, curar o agonizante, embora fosse muito mais eficiente um vultoso testamento para a construção de um templo ou de um altar de prata. Combatia-se a febre com os envangelhos: as orações em alguns conventos refrescavam o corpo; em outros, davam calor.“O Credo era fresco como o tamarindo doce e a Ave Maria era cândida como a flor de laranja ou o cabelo do milho.”40 Na Rua Chuquisaca pode-se admirar a fachada, roída pelos séculos, dos condes de Carma e Cayara, mas o palácio é agora o consultório de um cirurgião-dentista; a heráldica do mestre-de-campo Dom Antônio López de Quiroga, à Rua Lanza, agora adorna uma escolinha; o escudo do marquês Otavi, com seus leões grimpantes, reluz no pórtico do Banco Nacional. “Em que lugares viverão agora? Longe devem ter ido...” A velha potosina, presa a sua cidade, me conta que primeiro se foram os ricos, e depois também se foram os pobres: Potosí tem agora três vezes menos habitantes do que tinha quatro séculos atrás. Contemplo a montanha de um terraço da Rua Uyuni, uma estreitíssima e serpenteante ruazinha colonial, onde as casas têm grandes balcões de madeira tão próximos uns dos outros, que os vizinhos podem beijar-se ou dar socos, sem necessidade de descer à rua. Sobrevivem aqui, como em toda a cidade, os velhos candeeiros de luz mortiça, sob os quais, no dizer de Jaime Molins, “se resolveram as rixas de amor e escorreram, como duendes, cavaleiros disfarçados, damas elegantes e jogadores profissionais”. A cidade tem agora luz elétrica, mas não se nota muito. Nas praças escuras, a luz dos velhos faróis, funcionam rifas durante as noites: vi rifar um pedaço de torta no meio de uma multidão. Junto com Potosí, decaiu Sucre. Esta cidade do vale, de clima agradável, que antes tinha-se chamado Charcas, La Plata e Chuquisaca, sucessivamente, desfrutou boa parte da riqueza gerada pelas veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de Francisco, instalara ali sua corte, faustosa como a de um rei; igrejas e casarões, parques e quintas de recreio brotavam continuamente junto com os juristas, místicos e poetas retóricos que foram dando à cidade, de século em século, sua marca. “Silêncio, é Sucre. Silêncio, só silêncio. Mas antes...” Antes, foi a capital cultural de dois vice-reinados, a sede da principal arquidiocese da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais brilhante e culta do Sul. Dona Cecilia Contreras de Torres e dona Maria de las Mercedes Torralba de Gramajo, senhoras de Ubina e Colquechaca, davam banquetes de Camacho: competiam no esbanjamento das fabulosas rendas que produziam suas minas de Potosí, e quando terminavam as suntuosas festas, jogavam pelos balcões vasilhas de prata e até objetos de ouro, para que os transeuntes de sorte os apanhassem. Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo; dizem que com as jóias de sua Virgem poder-seia pagar toda a gigantesca dívida externa da Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas, que 1809 cantaram com júbilo a emancipação da América, hoje oferecem um som fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes anunciara sublevações e motins, hoje dobra pela mortal imobilidade de Sucre. Pouco importa que continue sendo a capital legal da Bolívia, e que em Sucre se situe ainda a Suprema Corte de Justiça. Pelas ruas passeiam rábulas, doentes e de pele amarelada, sobreviventes testemunhas da decadência: doutores do tipo que usa pince-nez, com cinta preta e tudo. Dos grandes palácios vazios, os ilustres patriarcas de Sucre mandam seus 40. Gustavo Adolfo Otero, op. cit. 26 servidores venderem empadas na estação ferroviária. Houve quem soube comprar, em outras horas afortunadas, até um título de príncipe. Em Potosí e Sucre só ficaram vivos os fantasmas da riqueza morta. Em Huanchaca, outra tragédia boliviana, os capitais anglo-chilenos esgotaram, durante o século passado, filões de prata de mais de dois metros de largura, de altíssimo teor; agora só restam as ruínas cheias de poeira. Huanchaca continua nos mapas, como se existisse ainda, identificada como um centro mineiro ainda vivo, com seu ancinho e pá cruzados. Tiveram melhor sorte as minas mexicanas de Guanajuato e Zacatecas? Com bases nos dados que proporciona Alexander von Humboldt, em seu já citado Ensaio sobre o Reino da Nova Espanha, estimou-se em cinco bilhões de dólares atuais a magnitude do excedente econômico levado do México entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das exportações de prata e ouro41” Nesta época não havia minas mais importantes na América. O grande sábio alemão comparou a mina de Valenciana, em Guanajuato, com a Himmels Furst da Saxônia, que era a mais rica da Europa: a Valenciana produzia 36 vezes mais prata, no curso do século, e deixava a seus acionistas lucros 33 vezes maiores. O conde de Santiago de la Laguna vibrava de emoção ao descrever, em 1732, o distrito mineiro de Zacatecas e “os preciosos tesouros que ocultam seus profundos seios”, nas montanhas “honradas com mais de quatro mil bocas, para melhor servir com o fruto de suas entranhas a ambas Majestades”, Deus e o Rei, e “para que todos acorram para beber e participar do grande, do rico, do culto, do urbano, do nobre”, porque era “fonte de sabedoria, polícia, armas e nobreza...”42. O padre Marmolejo descreveria mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada por pontes, com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia e os templos faustosos, o teatro, a praça de touros, as arenas de rixa de galos e as cúpulas levantadas contra as verdes ladeiras das montanhas. Mas este era “o país da desigualdade” e Humboldt pôde escrever sobre o México: “Em nenhuma parte a desigualdade é mais espantosa... a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulheres, o ar da sociedade; tudo anuncia um extremo esmero que se contrapõe extraordinariamente à nudez, ignorância e rusticidade do populacho.” As novas veias de prata engoliam homens e mulas nas ondulações das cordilheiras; os índios, “que viviam só para sair de dia”, sofriam fome endêmica, e as pestes matavam como moscas. Num único ano, 1784, uma onda de doenças provocadas pela falta de alimentos, gerada por uma geada arrasadora, tinha ceifado mais de oito mil vidas em Guanajuato. Os capitais não se acumulavam, eram desperdiçados. Dizia-se: “Pai mercador,filho cavaleiro, neto mendigo.” Numa representação dirigida ao governo, em 1843, Lucas Alamán formulou uma sombria advertência, enquanto insistia na necessidade de defender a indústria nacional, mediante um sistema de proibições e fortes gravames contra a concorrência estrangeira: “É preciso recorrer ao fomento da indústria, como única fonte de prosperidade universal - dizia. - De nada serviria a Puebla a riqueza de Zacatecas, se não fosse para o consumo de suas manufaturas, e se estas decaíssem outra vez, como já ocorreu, arruinar-se-ia este departamento florescente, sem que se possa salvar da miséria a riqueza 41. Fernando Carmoga, prólogo a Diego López Rosado, Historia y pensamiento económico de México, México, 1968. 42. D. Joseph Ribera Bernárdez, Conde Santiago de la Laguna, Descripción breve de la muy nobre y leal ciudad de Zacatecas, em Gabriel Salinas de la Torre, Testimonios de Zacatecas, México, 1946. Além desta obra e do ensaio de Humboldt, o autor consultou: Luis Cháves Orozco, Revolución industrial - Revolución politica, Biblioteca del Obrero y Campesino, México, s.d; Lucio Marmolejo, Efemérides guanajuatenses, o datos para formar la historia de la ciudad de Guanajualo, Guanajuato, 1883; José Maria Luis Mora, México y sus revoluciones, México, 1965; e para os dados da atualidade, La economia del Estado de Zacatecas e La economia del Estado de Guanajuato, da série de pesquisas do Sistema Bancos de Comércio, México, 1968. 27 daquelas minas.” A profecia se realizou. Atualmente, Zacatecas e Guanajuato nem sequer são as cidades mais importantes de suas próprias comarcas. Ambas definham rodeadas pelos esqueletos dos acampamentos da prosperidade mineira. Zacatecas, alta e árida, vive da agricultura e exporta mão-de-obra para outros estados; são baixíssimos os teores atuais de seus minérios de ouro e prata, em relação aos bons tempos passados. Das cinqüenta minas que o distrito de Guanajuato mantinha em exploração sobram apenas agora duas. A população da belíssima cidade não cresce, mas afluem os turistas para contemplar o esplendor dos velhos tempos, passear pelas vielas de nomes românticos, ricas de lendas, e se horrorizar com as múmias que os sais da terra conservaram intatas. A metade das famílias do estado de Guanajuato, com uma média de cinco membros, vive atualmente em palhoças de uma única peça. O DERRAMAMENTO DE SANGUE E LÁGRIMAS: ENTRETANTO, O PAPA DECIDIRA QUE OS ÍNDIOS TINHAM ALMA Em 1581, Felipe II afirmara, perante o tribunal de Guadalajara, que um terço dos indígenas da América já tinha sido aniquilado, e aqueles que ainda viviam eram obrigados a pagar tributos pelos mortos. O monarca disse, além disso, que os índios eram comprados e vendidos. Que dormiam na intempérie. Que as mães matavam seus filhos para salvá-los do tormento nas minas.43 Mas a hipocrisia da Coroa tinha menos limites que o Império: a Coroa recebia uma quinta parte do valor dos metais que seus súditos arrancavam por toda a extensão do Novo Mundo hispânico, além de outros impostos; o mesmo acontecia, no século XVII, com a Coroa portuguesa em terras do Brasil. A prata e o ouro da América penetraram como um ácido corrosivo, no dizer de Engels, por todos os poros da sociedade feudal moribunda na Europa; a serviço do nascente mercantilismo capitalista os empresários mineiros converteram os índios e escravos negros em numerosíssimo “proletariado externo” da economia européia. A escravidão greco-romana ressuscitava de fato, num mundo distinto; ao infortúnio dos índios dos impérios aniquilados na América hispânica é preciso somar o terrível destino dos negros arrebatados às aldeias africanas para trabalhar no Brasil e nas Antilhas. A economia colonial latino-americana dispôs da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para possibilitar a maior concentração de riqueza que jamais possuiu qualquer civilização na história mundial. A violenta maré de cobiça, horror e bravura não se abateu sobre estas comarcas, senão ao preço do genocídio nativo: as mais bem fundadas e recentes investigações atribuem ao México pré-colombiano uma população que oscila entre os 30 e 37,5 milhões de habitantes. Calcula-se uma quantidade idêntica de índios na região andina, a América Central contava com 10 ou 13 milhões de habitantes. Os índios das Américas somavam entre 70 e 90 milhões de pessoas, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um século e meio depois tinham-se reduzido, no total, a apenas 3,5 milhões44 . Segundo o marquês de Barinas, entre Lima e Paita, onde viveram mais de dois milhões de índios, não sobraram mais do que quatro mil famílias indígenas, em 1685. 0 arcebispo Liñán y Cisneros negava o aniquilamento dos índios: “É que se escondem - dizia - para não pagar tributos, abusando da liberdade de que gozam e que não tinham na época dos incas.”45 O metal brotava sem cessar dos filões americanos, e da corte espanhola chegavam, também sem cessar, ordenações que outorgavam uma proteção de papel e uma “dignidade de tinta” aos indígenas, cujo trabalho extenuante sustentava o reino. A ficção da 43. John Collier, The Indians of America, Nova Iorque, 1947. 44. Segundo Darcy Ribeiro, op. cit., com dados de Henry F. Dobyns, Paul Thompson e outros. 45. Emilio Romero, Historia económica del Peru, Buenos Aires, 1949. 28 legalidade amparava o índio; a exploração da realidade sangrava-o. Da escravidão à encomienda de serviços, e desta à tributos e ao regime de salários, as variantes da condição jurídica da mão-de-obra indígena só alteraram superficialmente sua situação real. A Coroa considerava tão necessária a exploração desumana da força de trabalho aborígene, que em 1601 Felipe III ditou regras proibindo o trabalho forçado nas minas e, simultaneamente, enviou instruções secretas ordenando continuá-lo “em caso de aquela medida fizer fraquejar a produção”46. Do mesmo modo, entre 1616 e 1619, o visitador e governador Juan de Solórzano fez uma investigação sobre as condições de trabalho nas minas de mercúrio de Huancavélica: “ ... o veneno penetrava na medula, debilitando todos os membros e provocando um tremor constante, morrendo os operários, em geral, no espaço de quatro anos”, informou ao Conselho das índias e ao monarca. Mas em 1631, Felipe IV ordenou que se continuasse com o mesmo sistema, e seu sucessor, Carlos II, renovou o decreto tempos depois. Estas minas de mercúrio eram diretamente exploradas pela Coroa, ao contrário das minas de prata, que estavam em mãos de empresários privados. Em trezentos anos, a rica montanha de Potosí queimou, segundo Josiah Conder,oito milhões de vidas. Os índios eram arrancados das comunidades agrícolas e empurrados, junto com suas mulheres e seus filhos, rumo às minas. De cada dez que iam aos altos páramos gelados, sete nunca regressavam. Luís Capoche, dono de minas e de engenhos, escreveu que “os caminhos estavam tão cobertos que parecia que se mudava o reino”. Nas comunidades, os indígenas viram “voltar muitas mulheres aflitas, sem maridos, e muitos filhos órfãos sem seus Pais”, sabiam que na mina esperavam “mil mortes e desastres”. Os espanhóis percorriam centenas de milhas em busca de mão-de-obra. Muitos dos índios morriam pelo caminho, antes de chegar a Potosí. Mas eram as terríveis condições de trabalho na mina que mais gente matavam. O frei dominicano Domingo de Santo Tomás denunciava ao Conselho das índias, em 1550, logo do aparecimento da mina, que Potosí era uma “boca do inferno” que anualmente tragava índios aos milhares e milhares e que os rapazes mineiros tratavam os naturais “como a animais sem dono”. E frei Rodrigo de Loaysa diria depois: “Estes pobres índios são como as sardinhas no mar. Assim como os outros peixes perseguem as sardinhas para delas fazerem presa e devorá-las, assim todos nestas terras perseguem os miseráveis índios...”47 Os caciques das comunidades tinham a obrigação de substituir os mitayos que iam morrendo por novos homens de 18 a 50 anos de idade. O curral de apartar, onde se adjudicavam os índios aos donos das minas e engenhos, um gigantesco campo de paredes de pedra, serve agora para que os operários joguem futebol; o cárcere dos mitayos, um disforme montão de ruínas, pode ainda ser contemplado na entrada de Potosi. Na Recompilação de Leis das índias, não faltam decretos daquela época estabelecendo a igualdade de direitos entre os índios e os espanhóis para explorar as minas e proibindo expressamente que se violassem os direitos dos nativos. A história formal letras mortas que em nossos tempos recolhem as letras mortas dos tempos passados - não teria de que se queixar, mas enquanto se debatia em papeladas infinitas a legislação do trabalho indígena e marcava à tinta o talento dos juristas espanhóis, na América a lei “se acatava mas não se cumpria”. Nos feitos, “o pobre do índio é uma moeda -no dizer de Luis Capoche - com a qual se encontra tudo que é necessário, como ouro e prata, e muito melhor”. Numerosos indivíduos reivindicavam ante os tribunais sua condição de mestiços para que não fossem mandados aos socavões, nem vendidos e revendidos nos mercados. Em fins do século XVIII, Concolorcorvo, em cujas veias corriam sangue indígena, renegava assim os seus: “Não negamos que as minas consumam um número considerá46. Enrique Finot, Nueva Historia de Bolivia, Buenos Aires, 1946. 47. Obras citadas. 29 vel de índios, porém isto não procede do trabalho quem têm nessas minas de prata e mercúrio, mas da libertinagem em que vivem.” O testemunho de Capoche, que tinha muitos índios a seu serviço, é ilustrativo, neste sentido. As temperaturas glaciais do campo aberto alternavam-se com os calores infernais do fundo da montanha. Os índios entravam nas profundidades, e ordinariamente eram retirados mortos ou com cabeças e pernas quebradas, e nos engenhos todo o dia se machucam.” Os mitayos retiravam o minério com a ponta de uma barra e o carregavam nas costas, por escadas, à luz de uma vela. Fora do socavão, moviam enormes eixos de madeira nos engenhos ou fundiam a prata no fogo, depois de moê-la e lavá-la. A mita era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para a extração de prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da terra. Fazia cair o cabelo, os dentes e provocava tremores incontroláveis. Os “azogados” se arrastavam pedindo esmolas pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras ardiam na noite sobre as ladeiras da montanha, e nelas se trabalhava a prata, valendo-se do vento que o “glorioso Santo Agostinho” mandava do céu. Por causa da fumaça dos fornos não havia pastos nem plantações num raio de seis léguas ao redor de Potosí, e as emanações não eram menos implacáveis com os corpos dos homens. Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis para as consciências culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de carga, porque resistiam a um peso maior do que o que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem comprovava-se que, na realidade, os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar “a maldade natural” dos indígenas. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos, tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os “homens degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa48. No século XVII, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de ascendência judaica, porque, como os judeus, “são preguiçosos, não crêem nos milagres de Jesus Cristo e não são gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram”. Pelo menos, este sacerdote não negava que os índios descendiam de Adão e Eva: eram numerosos os teólogos e pensadores que não se convenceram com a Bula do Papa Paulo III, emitida em 1537, que tinha declarado os índios como “verdadeiros homens”. O padre Bartolomeu de Las Casas agitava a corte espanhola com suas inflamadas denúncias contra a crueldade dos conquistadores da América: em 1557, um membro do conselho real respondeu-lhe que os índios estavam nos últimos degraus da escala da humanidade para serem capazes de receber a fé49. Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa do índio, frente aos desmandos dos mineiros e encomenderos. Dizia que os índios preferiam ir ao inferno para não se encontrarem com os cristãos. Aos conquistadores e colonizadores eram “encomendados” indígenas para que os 48. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, México, 1960, e Daniel Vidart, op. cit. 49. Lewis Hanke, Estudios sobre fray Bartolomé de Las Casas y sobre la lucha por la Justicia en la conquista española de América, Caracas, 1968. 30 catequizassem. Mas como os índios deviam ao encomendero serviços pessoais e tributos econômicos, não sobrava muito tempo para introduzi-los na senda cristã da salvação. Em recompensa de seus serviços, Fernão Cortez recebeu 23 mil vassalos; repartiam-se os índios ao mesmo tempo que se outorgavam as terras, mediante favores reais ou por despojo direto. Desde 1536, os índios eram outorgados em “encomenda”, junto com sua descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imediato; a partir de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 por quatro vidas50. No século XVIII, os índios, os sobreviventes, já asseguravam a vida cômoda de muitas gerações futuras. Como os deuses vencidos persistiam em suas memórias, não faltavam santos álibis para o usufruto de sua mão-de-obra por parte dos vencedores: os índios eram pagãos, não mereciam outra vida. Tempos passados? Quatrocentos e vinte anos depois da Bula do Papa Paulo 111, em setembro de 1957, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu uma circular comunicando a todos os juizes do país que “os índios são tão seres humanos como os outros habitantes da república...” E o Centro de Estudos Antropológicos da Universidade Católica de Assunção realizou posteriormente uma pesquisa & opinião pública na capital e no interior: de cada dez paraguaios, Oito crêem que “os índios são como animais”. Em Caaguazú, no Alto Paraná e no Chaco, os índios são caçados como feras, vendidos a preços baratos e explorados em regime de virtual escravidão. Todavia, quase todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções, poemas e discursos em homenagem à “alma guarani”. A NOSTALGIA COMBATENTE DE TÚPAC AMARU Quando os espanhóis irromperam na América, o império teocrático dos incas estava em seu apogeu, estendendo seu poder sobre o que hoje chamamos de Peru, Bolívia e Equador, abarcando parte da Colômbia e do Chile e chegando até o norte argentino e à selva brasileira; a confederação dos astecas tinha conquistado um alto nível de eficácia no vale do México; em Yucatán e na América Central a esplêndida civilização dos maias persistia em todos os povos herdeiros, organizados para o trabalho e a guerra. Estas sociedades deixaram numerosos testemunhos de sua grandeza, apesar de todo o enorme tempo da devastação: monumentos religiosos levantados com maior sabedoria do que as pirâmides egípcias, eficazes criações técnicas para a luta contra a natureza, objetos de arte que denunciam um talento invicto. No museu de Lima podem ver-se centenas de crânios que foram objeto de puncturas e curas com placas de ouro e prata por parte dos cirurgiões incas. Os maias foram grandes astrônomos, tinham medido o tempo e o espaço com precisão assombrosa e descoberto o valor da cifra zero antes de qualquer outro povo na História. Os aquedutos e as ilhas artificiais criadas pelos astecas deslumbraram Fernão Cortez, embora não fossem de ouro. A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores conseqüências do que o sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas exigiam grandes deslocamentos da população e desarticulavam as unidades agrícolas comunitárias; não só extinguiam incontáveis vidas através do trabalho forçado, como abatiam indiretamente o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos socavãos, submetidos à servidão dos encomenderos e obrigados a entregarem por nada as terras que obrigatoriamente deixavam ou descuidavam. Na costa do Pacífico, Os espanhóis destruíram ou deixaram extinguir enormes cultivos de milho, mandioca, feijão, 50. J. M. Ots Capdequí, op. cit. 31 amendoim, batata doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões de terra que tinham sido trabalhadas pela rede incaica de irrigação. Quatro séculos e meio depois da conquista, só restam pedras e capim bravo em lugar da maioria dos caminhos que unia o império. Embora as gigantescas obras públicas dos incas fossem, em sua maior parte, arrasadas pelo tempo ou pela mão dos usurpadores, sobram ainda, desenhadas na cordilheira dos Andes, os intermináveis terraços que permitiam e ainda permitem cultivar as ladeiras das montanhas. Um técnico norte americano51 calculava, em 1936, que se neste ano se construíssem, com métodos modernos, os terraços incas, custariam uns 30 mil dólares por acre. Tanto os terraços como os aquedutos de irrigação foram possíveis, naquele império que não conhecia a roda, o cavalo nem o ferro, graças à prodigiosa organização e à perfeição técnica conseguida através de sábia divisão de trabalho, mas também graças à força religiosa que regia a relação do homem com a terra - que era sagrada e estava, portanto, sempre arada. Também foram assombrosas as respostas astecas ao desafio da natureza. Em nossos dias, os turistas conhecem por “jardins flutuantes” as poucas ilhas sobreviventes no lago ressecado onde agora se levanta, sobre as ruínas indígenas, a capital do México. Essas ilhas tinham sido criadas pelos astecas para responder ao problema da falta de terras no lugar eleito para a criação de Tenochtitlán. Os índios transportaram grandes massas de barro das margens e apresaram as novas ilhas de limo entre delgadas paredes de bambu, até que as raízes das plantas lhes dessem firmeza. Por entre os novos espaços de terra deslizavam os canais de água. Sobre estas ilhas inusitadamente férteis, cresceu a poderosa capital dos astecas, com suas amplas avenidas, seus palácios de austera beleza e pirâmides escalonadas: brotada magicamente da lagoa, Tenochtitlán estava condenada a desaparecer ante os embates da conquista estrangeira. Quatro séculos demoraria o México para alcançar uma população tão numerosa quanto a que existia naqueles tempos. Os indígenas eram, como diz Darcy Ribeiro, o combustível do sistema produtivo colonial. “É quase certo - escreve Sergio Bagú - que às minas espanholas foram lançados centenas de índios escultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos, confundidos entre a multidão escrava, para realizar um tosco e esgotador trabalho de extração. Para a economia colonial, a habilidade técnica destes indivíduos não interessava. Eles só eram contados como trabalhadores não qualificados.” Mas não se perderam todos os sinais daquelas culturas destruídas. A esperança de renascimento da dignidade perdida incendiaria numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco. Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores incas, encabeçou o movimento messiânico e revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião estourou na província de Tinta. Montado no seu cavalo branco, Túpac Amaru entrou na praça de Tugasuca e, ao som de tambores e pututus, anunciou que havia condenado à forca o corregedor real Antonio Juan de Arriaga, e dispôs a proibição da mita de Potosí. A província de Tinta estava ficando despovoada por causa do serviço obrigatório nos socavãos de prata da montanha. Poucos dias depois, Túpac Amaru expediu um novo comunicado pelo qual decretava a liberdade dos escravos. Aboliu todos os impostos e o repartimiento de mão-de-obra indígena em todas suas formas. Os indígenas se juntavam, aos milhares, às forças do “pai de todos os pobres e de todos os miseráveis e desvalidos”. À frente de seus guerrilheiros, o caudilho lançou-se sobre Cuzco. Marchava pregando seu credo: todos os que morressem sob suas ordens nesta guerra ressuscitariam para desfrutar as felicidades e riquezas de que tinham sido despojados pelos invasores. Sucederam-se vitórias e derrotas; no fim, traído e capturado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi entregue, amarrado com correntes, 51. Um membro do Serviço Norte-Americano de Conservação de Solos, segundo John Collier, op. cit. 32 aos espanhóis. Em seu calabouço, entrou o visitador Areche para exigir-lhe, em troca de promessas, os nomes dos cúmplices da rebelião. Túpac Amaru respondeu-lhe com desprezo: “Aqui não há mais cúmplice que tu e eu; tu por opressor, e eu por libertador, merecemos a morte”52. Túpac foi submetido a suplícios, junto com sua esposa, seus filhos e seus principais partidários, na praça do Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a língua. Amarraram seus braços e pernas em quatro cavalos, para esquartejá-lo, mas o corpo não se partiu. Decapitaram-no ao pé da forca. Enviaram sua cabeça para Tinta. Um de seus braços foi para Tungasuca e o outro para Carabaya. Mandaram uma perna para Santa Rosa e a outra para Livitaca. Queimaram-lhe o tronco e jogaram as cinzas no rio Watanay.Recomendou-se que fosse extinta toda sua descendência, até o quarto grau. Em 1802 outro cacique descendente dos incas, Astorpilco, recebeu a visita de Humboldt. Foi em Cajamarca, no local exato onde seu antepassado, Atahualpa, tinha visto pela primeira vez o conquistador Pizarro. O filho do cacique acompanhou o sábio alemão no passeio às ruínas do povoado e aos escombros do antigo palácio incaico, e enquanto caminhavam falava-lhe dos fabulosos tesouros escondidos sob o pó e as cinzas. “Não sentis às vezes o desejo de cavar em busca dos tesouros para satisfazer vossas necessidades?”, perguntou-lhe Humboldt. E o jovem respondeu: “Tal desejo não acontece comigo. Meu pai diz que seria pecaminoso. Se tivéssemos os ramos dourados com todos os frutos de ouro, os vizinhos brancos nos odiariam e nos fariam mal”53. O cacique cultivava um pequeno campo de trigo. Mas isso não lhe bastava para por-se a salvo da cobiça alheia. Os usurpadores, ávidos de ouro e prata e também de braços escravos para trabalhar nas minas, não demoraram em lançar-se sobre as terras quando os cultivos ofereceram lucros tentadores. A espoliação continuou durante todo o tempo, e em 1969, quando se anunciou a reforma agrária no Peru, os jornais anunciavam, freqüentemente, que os índios das comunidades destruídas da serra invadiam, de quando em vez, desfraldando suas bandeiras, as terras que lhes tinham sido roubadas, a de seus antepassados, e eram repelidos a bala pelo exército. Foi preciso esperar quase dois séculos desde Túpac Amaru para que o general nacionalista Juan Velasco Alvarado recolhesse e aplicasse aquela frase do cacique, de ressonâncias imortais: “Camponês! O patrão já não comerá mais tua pobreza!” Outros heróis que o tempo se ocupou de resgatar da derrota foram os mexicanos Hidalgo e Morelos. Miguel Hidalgo, que tinha sido até os 50 anos um pacífico cura rural, um belo dia sacudiu os sinos da igreja chamando os índios para lutar pela libertação: “Quereis empenhar-vos no esforço de recuperar, dos odiados espanhóis, as terras roubadas a vossos antepassados há trezentos anos?” Levantou o estandarte da virgem índia de Guadalupe, e em menos de seis semanas 80 mil homens o seguiam, armados com facões, lanças, fundas, arcos e flechas. O padre revolucionário pôs fim aos tributos e repartiu as terras de Guadalajara; decretou a liberdade dos escravos; lançou suas forças sobre a cidade do México. Porém foi finalmente executado, ao cabo de uma, derrota militar e, segundo dizem, deixou ao morrer um testemunho de apaixonado arrependimento54. A revolução não demorou a encontrar um novo chefe, o sacerdote José Maria Morelos: “Devem ter-se como inimigos todos os ricos, nobres e altos funcionários...” Seu movimento - insurgência indígena e revolução social - chegou a dominar uma grande extensão do território do México, até que Morelos foi também derrotado e fuzilado. A independência do México, seis anos depois, “acabou sendo um negócio perfeitamente hispânico, entre europeus e 52. Daniel Valcárcel, La rebelión de Túpac Amaru, México, 1947. 53. Alexander von Humboldt, Ansichten der Natur, citado em Adolf Meyer-Abich e outros, Alejandro de Humboldt (1769-1969), Bad Godesberg, 1969. 54. Tulio Halperin Donghi, Historia contemporánea de América Latina, Madri, 1969. 33 pessoas nascidas na América.... uma luta política dentro da mesma classe reinante”55.O encomendado foi convertido em peão e o encomendero em fazendeiro56. A SEMANA SANTA DOS ÍNDIOS TERMINA SEM RESSURREIÇÃO No começo do século, os donos dos pongos, índios dedicados ao serviço doméstico, ainda os ofereciam em aluguel através dos jornais de La Paz. Até a revolução de 1952, que devolveu aos índios bolivianos o esquecido direito à dignidade, os pongos comiam as sobras da comida do cachorro, com quem dormiam lado a, lado, e se curvavam para dirigir a palavra a qualquer pessoa de pele branca. Os indígenas foram bestas de carga para levar nas costas as bagagens dos conquistadores: as cavalgaduras eram escassas. Até hoje, podem ver-se, por todo altiplano, carregadores aimarás e quéchuas levando fardos até com os dentes em troca de um pão duro. A neumoconiosis foi a primeira doença profissional da América; atualmente, quando os mineiros bolivianos completam 35 anos de idade, seus pulmões já se negam a continuar trabalhando: o implacável pó de sílica impregna a pele do mineiro, racha-lhe o rosto e as mãos, aniquila-lhe os sentidos do olfato e sabor,e conquista-lhe os pulmões, os endurece e os mata. Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas típicas. Mas ignoram que a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos III em fins do século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram às índias a usarem eram calcados nos vestidos regionais das camponesas da Extremadura, Andaluzia e país basco, e o mesmo ocorre com os penteados das indígenas, repartidos no meio, impostos pelo vice-rei Toledo. Não acontece o mesmo, em troca, com o consumo de coca, que não nasceu com os espanhóis; já existia nos tempos dos incas. A coca se distribuía, entretanto, com moderação; o governo incaico tinha o monopólio e só permitia seu uso com fins rituais ou para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o consumo de coca. Era um negócio esplêndido. No século XVI, gastava-se tanto, em Potosí, em roupa européia para os opressores como em coca para os índios oprimidos. Quatrocentos mercadores espanhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca; nas minas de Potosí, entravam anualmente cem mil cestos, com um milhão de quilos de folha de coca. A Igreja cobrava impostos sobre a droga. O inca Garcilaso de la Vega nos diz, em seus “comentários reais”, que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam a muitos espanhóis. Com as escassas moedas que obtinham em troca de seu trabalho, os índios compravam folhas de coca em lugar de comida; mastigando-as, podiam suportar melhor, ao preço de abreviar a própria vida, as tarefas mortais que lhes eram impostas. Além da coca, os indígenas consumiam aguardente, e seus proprietários se queixavam da propagação, dos “vícios maléficos”. A esta altura do século XX, os índios de Potosí continuam mascando coca para matar a fome e matar-se e continuam queimando as tripas com álcool puro. São as estéreis vinganças dos condenados. Nas minas bolivianas, os operários ainda chamam de mita a seu salário, como nos velhos tempos. Desterrados em sua própria terra, condenados ao êxodo eterno, os indígenas da América Latina foram empurrados para as zonas mais pobres, as montanhas áridas ou o fundo dos desertos, à medida que se estendia a fronteira da civilização dominante. Os índios padeceram e padecem - síntese do drama de toda a América Latina - a maldição de sua própria riqueza. Quando se descobriram os bancos de areia cheios de ouro do rio Bluefields, 55. Ernest Gruening, Mexico and its heritage, Nova Iorque, 1928. 56. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968. 34 na Nicarágua, os índios carcas foram rapidamente lançados longe de suas terras nas ribeiras, e esta é também a história dos índios de todos os vales férteis e subsolos ricos do rio Bravo para o sul. As matanças dos indígenas começaram com Colombo e nunca cessaram. No Uruguai e na Patagônia argentina, os índios foram exterminados, no século passado, por tropas que os buscaram e os encurralaram nos bosques ou no deserto, com o objetivo de que não atrapalhassem o avanço organizado dos latifúndios de gado57. Os índios yaquis, do estado mexicano de Sonora, foram mergulhados num banho de sangue para que suas terras, ricas em recursos minerais e férteis para a agricultura, pudessem ser vendidas sem inconvenientes a diversos capitalistas norte-americanos. Os sobreviventes eram deportados para as plantações de Yucatán. Assim, a península de Yucatán converteu-se não só em cemitério dos indígenas maias, que haviam sido seus donos, mas também em tumba dos índios yaquis, que chegavam de longe: em princípios do século, os cinqüenta reis do sisal dispunham de mais de cem mil escravos indígenas em suas plantações. Apesar de sua excepcional fortaleza física, raça de gigantes formosos, dois terços dos yaquis morreram durante o primeiro ano de trabalho escravo58. Em nossos dias, a fibra de sisal só pode competir com seus substitutos sintéticos graças ao nível de vida humamente baixo dos operários. As coisas mudaram, é certo, porém não tanto como se crê, pelo menos para os indígenas de Yucatán: “As condições de vida destes trabalhadores assemelha-se muito com as do trabalho escravo”, diz o professor Arturo Bonilia Sárichez59 . Nas encostas andinas próximas a Bogotá, o peão indígena é obrigado a cumprir jornadas gratuitas de trabalho para que o fazendeiro lhe permita cultivar, nas noites de lua clara, sua própria parcela: “Os antepassados deste índio cultivavam livremente, sem contrair dívidas, o rico solo do platô, que não pertencia a ninguém. Ele trabalha grátis para assegurar o direito de cultivar a pobre montanha!”60 Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo, para os indígenas, o contato com a morte. As disposições legais que desde 1537 protegem os índios do Brasil voltaram-se contra eles. De acordo com o texto de todas as constituições 56. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968. 57. Os últimos charruas, que por volta de 1832 sobreviviam saqueando novilhos nas campinas selvagens do norte do Uruguai, sofreram a traição do presidente Fructuoso Rivera. Afastados da mata cerrada que lhes dava proteção, desmontados e desarmados por falsas promessas de amizade, foram abatidos numa paragem chamada a Boca do Tigre: "Os clarins tocaram o degolar conta o escritor Eduardo Acevedo Díaz (jornal La Época, 19 de agosto de 1890) - A horda se revolveu desesperadamente, caindo um após outro seus varões bravos, como touros feridos na nuca." Vários caciques morreram. Os poucos índios que puderam romper o cerco de fogo se vingaram pouco depois. Perseguidos pelo irmão de Rivera, armaram-lhe uma cilada e crivaram-no de lanças junto com seus solda-dos. O cacique Sepe "mandou cobrir com alguns nervos do cadáver o extremo da ponte de sua lança." Na Patagônia argentina, em fim do século, os soldados recebiam seu soldo contra a apresentação de cada par de testículos. O romance de David Viñas Los dueños de la tierra (Buenos Aires, 1959) se abre com a caça aos índios: "Porque matar era como violar alguém. Algo bom. E até agradava: tinha que correr, se podia gritar, se suava e depos sentia fome... Os disparos iam-se espaçando. Seguramente tinha ficado algum corpo enforquilhado num desses ninhos. Um corpo de índio deixado para trás, com uma mancha enegrecida entre as coxas..." 58. John Kenneth Turner, México bárbaro, México, 1967. 59. Arturo Bonilla Sárichez, Un problema que se agrava: la subocupación rural, em Neolatifundismo y explotación, de Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co., vários autores, México, 1968. 60. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963. 35 brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que quanto mais ricas são estas terras virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime. A caça de índios foi deflagrada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior seiva do mundo, gigantesco espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de um novo “sonho americano”. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados Unidos lançaram-se sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Esta invasão norte-americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios morrem sem deixar rastros e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O ouro e outros minerais vultosos, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que foram realizadas. Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio diretor do extinto Serviço de Proteção aos índios, designado pelo presidente Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968. A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da economia latino-americana. É verdade que há tribos brasileiras ainda encerradas na selva, comunidades do altiplano isoladas por completo do mundo, redutos de barbárie na fronteira da Venezuela, mas no geral os índios estão incorporados no sistema de produção e no mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma ordem econômica e social onde desempenham o duro papel dos mais explorados entre os explorados. Compram e vendem boa parte das escassas coisas que consomem e produzem, em mãos de intermediários poderosos e vorazes que cobram muito e pagam pouco; são diaristas nas plantações, a mão-de-obra mais barata, e soldados nas montanhas; gastam seus dias trabalhando para o mercado mundial ou lutando por seus vencedores. Em países como a Guatemala, por exemplo, constituem o eixo da vida econômica nacional: ano após ano, ciclicamente, abandonam suas terras sagradas, terras altas, para fornecerem 200 mil braços às colheitas do café, algodão e açúcar nas terras baixas. Os empreiteiros os transportam em caminhões, como gado, e nem sempre a necessidade decide: às vezes decide a cachaça. Os empreiteiros pagam uma orquestra de marimba e fazem correr o álcool forte: quando o índio acorda da bebedeira, já o acompanham as dívidas: Pagará trabalhando em terras quentes que não conhece, de onde regressará ao fim de alguns meses, talvez com alguns centavos no bolso, talvez com tuberculose ou impaludismo. O exército colabora eficazmente na tarefa de convencer os renitentes61. A expropriação dos indígenas - usurpação de suas terras e de sua força de trabalho - foi e é simétrica ao desprezo racial, que por sua vez se alimenta da objetiva degradação das civilizações indígenas arrasadas pela conquista. Os efeitos da conquista e todo o longo tempo de humilhação posterior despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado. Todavia, essa identidade fragmentada é a única que persiste na Guatemala62.Persiste na 61. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967. 62. Os maias quichés acreditavam num só deus, praticavam o jejum, a penitência, a abstinência e a confissão; acreditavam no dilúvio e no fim do mundo: o Cristianismo não lhes trouxe grandes novidades. A decomposição religiosa começou com a colônia. A religião católica só assimilou alguns aspectos mágicos e totêmicos da religião maia, na vã tentativa de submeter a fé indígena à ideologia dos conquistadores. O esmagamento cultural abriu caminho para o sincretismo e assim se recolhem, por exemplo, na atualidade, testemunhos da inovação com resPeito àquela evolução alcançada: "Dom Vulcão necessita de carne humana bem tostadinha." Carlos Guzmán Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación historico-social, México, 1970. 36 tragédia. Na semana santa, as procissões dos herdeiros dos maias dão lugar a terríveis exibições de masoquismo coletivo. Arrastam pesadas cruzes, participam da flagelação de Jesus passo a passo durante a interminável ascensão do Gólgota; com gemidos de dor, convertem Sua morte e Seu enterro no culto da própria morte e do próprio enterro, a aniquilação da formosa vida remota. A semana santa dos índios guatemaltecos termina sem Ressurreição. VILA RICA DE OURO PRETO: A POTOSÍ DE OURO A febre de ouro, que continua impondo a morte e a escravidão aos indígenas da Amazônia, não é nova no Brasil; muito menos seus estragos. Durante dois séculos a partir do descobrimento, o solo do Brasil tinha negado os metais, tenazmente, a seus proprietários portugueses. A exploração da madeira, o pau-brasil, cobriu o primeiro período de colonização das costas, e logo se organizaram grandes plantações de açúcar no Nordeste. Porém, ao contrário da América espanhola, o Brasil parecia vazio de ouro e prata. Os portugueses não tinham encontrado aqui civilizações indígenas de alto nível de desenvolvimento e organização, senão tribos selvagens e dispersas. Os aborígenes desconheciam os metais, foram os portugueses que tiveram de descobrir, por sua própria conta, os locais onde se depositavam os aluviões de ouro no vasto território que se ia abrindo, através da derrota e do extermínio dos indígenas, à passagem da conquista. Os bandeirantes63 da região de São Paulo atravessaram a vasta zona entre a Serra da Mantiqueira e a cabeceira do rio São Francisco, e notaram que os leitos e os bancos de vários rios e riachos que por ali corriam continham traços de ouro aluvional em pequenas quantidades visíveis. A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de ouro das rochas e os havia depositado nos rios, no fundo dos vales e nas depressões das montanhas. Sob as camadas de areia, terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de ouro, fácil de extrair do cascalho de quartzo; os métodos de extração tornaram-se mais complicados na medida em que se foram esgotando os depósitos mais superficiais. A região de Minas Gerais entrou assim, impetuosamente, na história: a maior quantidade de ouro então descoberta no mundo foi extraída no menor espaço de tempo. “Aqui o ouro era mato”, diz, agora, o mendigo, e seu olhar passeia pelas torres das igrejas. “Tinha ouro nas calçadas, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira próxima a Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, paralisada no tempo. “A morte é certa, a hora incerta. Cada um tem seu tempo marcado”, me diz o mendigo. Cospe sobre a escada de pedra e sacode a cabeça: “Não sabiam onde pôr o dinheiro e por isso faziam uma igreja ao lado da outra.” Em outros tempos, esta comarca era a mais importante do Brasil. Agora... “Agora não - me diz o velho.- Agora isto não tem vida nenhuma. Aqui não tem jovens. Os jovens se vão.” Caminha descalço, a meu lado, em passos lentos sob o tíbio sol da tarde: “Vê? aí, na frente da igreja, estão o sol e a lua. Isso significa que os escravos trabalhavam dia e noite. Este templo foi feito pelos negros; aquele, pelos brancos. E aquela é a casa do monsenhor Alípio, que morreu aos 99 anos justos.” Ao longo do século XVIII, a produção brasileira do cobiçado minério superou o volume total do ouro que a Espanha tinha extraído de suas colônias durante os dois séculos 63. As bandeiras paulistas eram bandos errantes de organização paramilitar e de força variável. Suas expedições selva adentro desempenharam um papel importante na colonização do interior do Brasil. 37 anteriores64. Choviam os aventureiros e os caçadores de fortuna. O Brasil tinha 300 mil habitantes em 1700; um século depois, no final dos anos do ouro, a população tinha-se multiplicado onze vezes. Não menos de 300 mil portugueses emigraram para o Brasil durante o século XVIII, “um contingente maior de população... do que a Espanha levou a todas suas colônias da América”65. Estima-se em uns dez milhões o total de negros escravos introduzidos desde a África, a partir da conquista do Brasil até a abolição da escravatura: apesar de não se dispor de cifras exatas para o século XVIII, deve ter-se em conta que o ciclo do ouro absorveu mão-de-obra escrava em proporções enormes. Salvador da Bahia foi a capital brasileira do próspero cicio do açúcar no Nordeste, mas a “idade do ouro” de Minas Gerais transladou para o sul o eixo econômico e político do país e converteu o Rio de Janeiro, porto da região, em nova capital do Brasil a partir de 1763. No centro dinâmico da florescente economia mineira, brotaram as cidades, acampamentos nascidos do boom e bruscamente ampliados na vertigem da riqueza fácil, “santuários para criminosos, vagabundos e malfeitores” - segundo as educadas palavras de uma autoridade colonial da época. A Vila Rica de Ouro Preto tinha conquistado categoria de cidade em 1711; nascida da avalanche de mineiros, era a quintessência da civilização do ouro. Simão Ferreira Machado a descrevia, 23 anos depois, e dizia que o poder dos comerciantes de Ouro Preto excedia incomparavelmente ao dos mais florescentes mercadores de Lisboa. “Para aqui, como para um porto, se dirigem e são recolhidas na casa real da moeda as grandiosas somas de ouro de todas as minas. Aqui vivem os homens mais bem educados, tanto os leigos como os clérigos. Este é o assento de toda a nobreza e força dos militares. Esta é, em virtude de sua posição natural, a cabeça da América íntegra; e pelo poder de suas riquezas, a pérola preciosa do Brasil.” Outro escritor da época, Francisco Tavares de Brito, definia Ouro Preto em 1732 como “a Potosí de ouro” 66. Com freqüência chegavam a Lisboa queixas e protestos pela vida pecaminosa em Ouro Preto, Sabará, São João d’El Rei, Ribeirão do Carmo e todo o turbulento distrito mineiro. As fortunas se faziam e se desfaziam num abrir e fechar de olhos. O padre Antonil denunciava que sobravam mineiros dispostos a pagar uma fortuna por um negro que tocasse bem trombeta e o dobro por uma prostituta mulata, “para entregar-se com ela a contínuos e escandalosos pecados”, porém os homens de batina não se portavam melhor: da correspondência oficial da época podem extrair-se numerosos testemunhos contra os “maus clérigos” que infestavam a região. Se lhes acusava de fazer uso de sua imunidade para retirar ouro de contrabando dentro de pequenas efígies dos santos de madeira. Em 1705, afirmava-se que não havia em Minas Gerais nem um só cura disposto a interessar-se na fé cristã do povo, e seis anos depois a Coroa chegou a proibir o estabelecimento de qualquer ordem religiosa no distrito mineiro. Proliferavam, de todos os modos, as formosas igrejas construídas e decoradas no original estilo barroco característico da região. Minas Gerais atraía os melhores artesãos da época. Exteriormente, os templos pareciam sóbrios, despojados; porém o interior, símbolo da alma divina, resplandecia no ouro puro dos altares, nos retábulos, nos pilares e nos baixo-relevos dos painéis; não se poupavam os metais preciosos, para que as igrejas pudessem alcançar “também as riquezas Céu”, como aconselhava o frei Miguel de São Francisco, em 1710. Os serviços religiosos tinham preços altíssimos, porém tudo era fantasticamente caro nas minas. Como havia ocorrido em Potosí, Ouro Preto se lançava ao esbanjamento de sua riqueza súbita. As procissões e os espetáculos davam lugar à exibição de vestidos e adornos de luxo asiático. Em 1733, uma festividade religiosa durou mais de uma semana. Não só se faziam procissões a pé, a cavalo e em triunfais carros de nácar, 64. Celso Furtado, op. cit. 65. 65. Celso Furtado, Formación económica del Brasil, México, 1959. 66. C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil (1695-1750), Califórnia, 1969. 38 sedas e ouro, com trajes de fantasia e alegorias deslumbrantes, mas também torneios de montaria, touradas e danças nas ruas ao som de flautas, gaitas e violas 67. Os mineiros desprezavam o cultivo da terra e a região sofreu epidemias de fome em plena prosperidade, por volta de 1700 e 1713; os milionários tiveram que comer gatos, cães, ratos, formigas, gaviões. Os escravos esgotavam suas forças e seus dias na lavagern de ouro. “Ali trabalham - escrevia Luís Gomes Ferreira -,68 ali comem, e muitas vezes têm que dormir ali; e como quando trabalham se banham em suor, com dois pés sobre a terra fria, sobre pedras ou na água, quando descansam ou comem, seus poros se fecham e se congelam de tal forma que se tornam vulneráveis a muitas doenças perigosas, como as mui severas pleurisias, apoplexia, convulsões, paralisia, pneumonia e muitas outras.” A doença era uma bênção do céu que aproximava a morte. Os capitães-do-mato de Minas Gerais cobravam recompensas em ouro em troca das cabeças cortadas dos escravos que se evadiam. Os escravos se chamavam “peças da índia” quando eram medidos, pesados e embarcados em Luanda; os que sobreviviam à travessia do oceano se convertiam, já no Brasil, em “mãos e pés” do amo branco. Angola exportava escravos bantus e presas de elefante em troca de roupa, bebidas e armas de fogo; porém os mineiros de ouro Preto preferiam os negros que vinham da pequena praia do Whydah, na costa da Guiné, porque eram mais vigorosos, duravam. um pouco mais e tinham poderes mágicos para descobrir ouro. Cada mineiro necessitava, ademais, de pelo menos uma amante negra de Whydah para que a sorte o acompanhasse nas explorações69. A explosão do ouro não somente incrementou a importação de escravos, mas, além disso, absorveu boa parte da mão-de-obra negra de outras regiões do Brasil, que ficaram sem braços. Um decreto real de 1711 proibiu a venda dos escravos ocupados em tarefas agrícolas com destino ao serviço das minas, com a exceção dos que mostraram “perversidade de caráter”. Era insaciável a fome de escravos em Ouro Preto. Os negros morriam rapidamente; só em casos excepcionais chegavam a suportar sete anos contínuos de trabalho. Isto sim: antes de cruzarem o Atlântico, os portugueses batizavam todos. E no Brasil tinham a obrigação de assistir à missa, embora lhes estivesse proibido de entrar na capela maior ou sentar nos bancos. Em meados do século XVIII, muitos dos mineiros já se tinham mudado para a Serra do Frio em busca de diamantes. As pedras cristais que os caçadores de ouro tinham jogado de lado enquanto exploravam os leitos do rio eram diamantes, segundo se soube. Minas Gerais oferecia ouro e diamantes em casamento, em proporções semelhantes. 0 florescente acampamento de Tijuco converteu-se no centro do distrito diamantino, e nele, à semelhança de Ouro Preto, os ricos vestiam a última moda européia e encomendavam roupas do outro lado do mar, como as armas e os móveis mais luxuosos: horas de delírio e desperdício. Uma escrava mulata, Francisca da Silva, conquistou sua liberdade ao converter-se em amante do milionário João Fernandes de Oliveira, virtual soberano de Tijuco, e ela que era feia e já tinha dois filhos, tornou-se a Chica que manda70.Como nunca tinha visto o mar e queria tê-lo próximo, seu cavalheiro lhe construiu um grande lago artificial no qual pôs um barco com tripulação e tudo. Sobre as fraldas da serra de São 67. Augusto de Lima Júnior, Vila Rica de Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva, Belo Horizonte, 1957. 68. C. R. Boxer, op. cit. 69. C. R. Boxer, op. cil. Em Cuba se atribuíam propriedades medicinais às escravas, Segundo o testemunho de Esteban Montejo, "tinha um tipo de doença que atingia os brancos. Era uma doença nas veias e nas partes masculinas. Passava para as negras. O que a sofria deitava com uma negra e a passava. Assim se curava logo." Miguel Barnet, Biografta de unt cimarrón, Buenos Aires, 1968. 70. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, Rio de.Janeiro, 1956. 39 Francisco levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas exóticas e cascatas artificiais; em sua honra dava opíparos banquetes regados pelos melhores vinhos, bailes noturnos de nunca acabar e funções de teatro e concertos. Ainda em 1818, Tijuco festejou o grande casamento do príncipe da corte portuguesa. Dez anos antes, John Mawe, um inglês que visitou Ouro Preto, assombrou-se com sua pobreza: encontrou casas vazias e sem valor, com letreiros que as colocavam infrutuosamente à venda, e comeu comida imunda e escassa71.Tempos atrás tinha explodido a rebelião, que coincidiu com a crise na comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tíradentes, tinha sido enforcado e despedaçado, e outros lutadores pela independência tinham partido de Ouro Preto rumo ao cárcere ou ao exílio. CONTRIBUIÇÃO DO OURO DO BRASIL AO PROGRESSO DA INGLATERRA O ouro começou a correr no exato momento em que Portugal assinava o Tratado de Methuen, em 1703, com a Inglaterra. Esta foi, a coroação de uma enorme série de privilégios conseguida pelos comerciantes britânicos em Portugal. Em troca de algumas vantagens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal abria seu próprio mercado, e o de sua colônias, às manufaturas britânicas. Dado o desnível de desenvolvimento industrial já então existente, a medida implicava uma condenação à ruína para as manufaturas locais. Não era com vinho que se pagavam os tecidos ingleses, mas com ouro, com o ouro do Brasil, e neste processo ficariam paralíticos os teares de Portugal. Portugal não se limitou a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos teares e fiadores brasileiros. Inglaterra e Holanda, campeãs de contrabando de ouro, que juntaram grandes fortunas no tráfico ilegal da carne negra, açambarcam por meios ilícitos, segundo se calcula, mais da metade do metal que correspondia ao imposto do “quinto real” que deveria receber, do Brasil, a coroa portuguesa. Porém a Inglaterra não recorria somente ao comércio proibido para canalizar o ouro brasileiro em direção a Londres. As vias legais também lhe pertenciam. O auge do ouro, que implicou o fluxo contínuo de grandes contingentes de população portuguesa para Minas Gerais, estimulou agudamente a demanda colonial de produtos industriais e proporcionou, ao mesmo tempo, meios para pagá-los. Da mesma maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais só passava de trânsito por Portugal. A metrópole converteu-se em simples intermediária. Em 1755, o marquês de Pombal, primeiro ministro português, intentou a ressurreição de uma política protecionista, mas já era tarde: denunciou que os ingleses haviam conquistado Portugal sem os inconvenientes de uma conquista, que abasteciam a duas terças partes de suas necessidades e que os agentes britânicos eram donos da totalidade do comércio português. Portugal não produzia praticamente nada, e tão fictícia era a riqueza do ouro que até os escravos negros que trabalhavam nas minas da colônia eram vestidos pelos ingleses.72 Celso Furtado fez notar73 que a Inglaterra, que seguiu uma política clarividente em matéria de desenvolvimento industrial, utilizou o ouro do Brasil para pagar importações 71. Augusto de Lima Júnior, op. cit. 72. Allan K. Manchester, British Preeminence in Brazil: its Rise and Fall, Chape Hill, Carolina do Norte, 1933. 73. Celso Furtado, op. cit. 40 essenciais de outros países e pôde concentrar inversões no setor manufatureíro. Rápidas e eficazes inovações tecnológicas puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de Portugal. O centro financeiro se transladou de Amsterdã para Londres. Segundo as fontes britânicas, a entrada de ouro brasileiro alcançava 50 mil libras por semana em alguns períodos. Sem esta tremenda acumulação de reservas metálicas, a Inglaterra não teria podido enfrentar,posteriormente, Napoleão. Nada ficou, no solo brasileiro, do impulso dinâmico do ouro, salvo os templos e as obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não se tivessem esgotado os diamantes, o país estava prostrado. A renda percapita dos três milhões de brasileiros não superava os 50 dólares anuais no atual poder aquisitivo, segundo os cálculos de Furtado, e este era o nível mais baixo de todo o período colonial. Minas Gerais caiu verticalmente numa grande onda de decadência e ruína. Incrivelmente, um brasileiro agradece o favor e sustenta que o capital que saiu de Minas “serviu para a imensa rede bancária que propiciou o comércio entre nações e tornou possível levantar o nível de vida dos povos capazes de progresso”74. Condenados inflexivelmente à pobreza em função do progresso alheio, os povos mineiros “incapazes” ficaram isolados e tiveram que se resignar a arrancar seus alimentos das pobres terras já despojadas de metais e pedras preciosas. A agricultura de subsistência ocupou o lugar da economia mineira75. Em nossos dias, os campos de Minas Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, teimosos bastiões do atraso. A venda de trabalhadores mineiros às fazendas de outros estados é quase tão freqüente quanto o tráfico que os escravos nordestinos padecem. Franklin de Oliveira percorreu Minas Gerais há pouco tempo. Encontrou casas de pau a pique, povoados sem água nem luz, prostitutas com idade média de treze anos na estrada do Vale do Jequitinhonha, loucos e famélicos à beira do caminho. Conta-o em seu recente livro A tragédia da renovação brasileira. Henri Gorceix disse, com razão, que Minas Gerais tinha um coração de ouro num peito de ferro,76 porém a exploração de seu fabuloso quadrilátero ferrífero corre por conta, atualmente, da Hanna Mining Co. e a Bethlehem Steel, associadas no projeto: as jazidas foram entregues em 1964, ao fim de uma sinistra história. O ferro, em mãos estrangeiras, não deixará mais do que o ouro deixou. Só a explosão de talento ficou como recordação da vertigem do ouro, para não mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal não pôde, tampouco, resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O convento de Mafra, orgulho de Dom João V, levantou Portugal da decadência artística: em seus carrilhões de 37 sinos, seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, cintila ainda o ouro de Minas Gerais. As igrejas de Minas foram bastante saqueadas e são raros os objetos sacros, de tamanho portátil, que nelas perduram, mas ficarão para sempre, alçadas sobre as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os retábulos, as tribunas, as figuras humanas, que desenhou, talhou e esculpiu Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o filho genial de uma negra escrava e um artesão famoso. Já agonizava o século XVIII quando Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjunto de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chama Osprofetas, mas já não havia nenhuma glória por profetizar.Toda a pompa e alegria tinham-se desvanecido e não sobrava espaço para nenhuma esperança. O dramático testemunho final, grandioso como um enterro para aquela fugaz civilização do ouro nascida para morrer,foi 74. Augusto de Lima Júnior, op. cit. O autor sente uma grande alegria pela "expansão do imperialismo colonizador, que os ignorantes de hoje, movidos por seus mestres moscovitas, qualificam de crime". 75. Roberto C. Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962. 76. Eponina Ruas, Ouro Preto. Sua história, seus templos e monumentos, Rio de Janeiro, 1950. 41 deixado aos séculos seguintes pelo artista mais talentoso de toda a história do Brasil. O Aleijadinho, desfigurado e mutilado pela lepra, realizou sua obra-prima amarrando o cinzel e o martelo em suas mãos sem dedos e arrastando-se de joelhos, cada madrugada, rumo a sua oficina. A lenda assegura que na igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, de Minas Gerais, os mineiros mortos celebram ainda missa nas frias noites de chuva. Quando o sacerdote se volta, levantando as mãos do altar-mor, se vêem os ossos do rosto. O REI AÇÚCAR E OUTROS MONARCAS AGRÍCOLAS AS PLANTAÇÕES, OS LATIFÚNDIOS E O DESTINO A busca do ouro e da prata foi, sem dúvida, o motor central da conquista. Porém, em sua segunda viagem, Cristóvão Colombo trouxe as primeiras raízes de cana-de-açúcar,das ilhas Canárias, e as plantou nas terras que hoje ocupa a República Dominicana. Uma vez semeadas, brotaram com rapidez, para o grande regozijo do almirante1. O açúcar, que se cultivava em pequena escala na Sicília e nas ilhas Madeira e Cabo Verde e se comprava, a preços altos, no Oriente, era um artigo cobiçado pelos europeus, que até nos enxovais das rainhas chegou a figurar como dote. Vendia-se nas farmácias, era pesado por grãos2. Durante pouco menos de três séculos a partir do descobrimento da América, não houve, para o comércio da Europa, produto agrícola mais importante que o açúcar cultivado nestas terras. Ergueram-se os canaviais no litoral úmido e quente do Nordeste do Brasil; posteriormente, também as ilhas do Caribe - Barbados, Jamaica, Haiti, Guadalupe, Cuba, Dominicana, Porto Rico -, Veracruz e a costa peruana foram sucessivos cenários propícios para a exploração, em grande escala, do “ouro branco”. Imensas legiões de escravos vieram da África para proporcionar, ao rei açúcar, a força de trabalho numerosa e gratuita que exigia: combustível humano para queimar. As terras foram devastadas por esta planta egoísta, que invadiu o Novo Mundo arrasando as matas, desgastando a fertilidade natural e exigindo o húmus acumulado pelos solos. O longo ciclo do açúcar deu origem, na América Latina, a prosperidades tão mortais como as que engendraram, em Potosí, Ouro Preto, Zacatecas e Guanajuato, os furores da prata e do ouro; ao mesmo tempo, impulsionou com força decisiva, direta ou indiretamente, o desenvolvimento industrial da Holanda, França, Inglaterra e Estados Unidos. A plantação nascida da demanda de açúcar no ultramar era uma empresa movida pela ânsia de lucro de seu proprietário e posta ao serviço do mercado que a Europa ia articulando internacionalmente. Por sua estrutura interna, entretanto, levando em conta que em boa parte se bastava a si mesma, alguns de seus traços predominantes eram feudais. Utilizava, por outro lado, mão-de-obra escrava. Três idades históricas distintas mercantilismo, feudalismo, escravidão - combinavam-se assim numa só idade econômica e social, porém era o mercado internacional que estava no centro da constelação de poder, integrado desde cedo pelo sistema de plantações. Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e 1. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, La Habana, 1963. 2. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960. 42 um dos fatores primordiais da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas. O latifúndio atual, mecanizado em medida suficiente para multiplicar os excedentes de mão-de-obra, dispõe de abundantes reservas de braços baratos. Já não depende da importação de escravos africanos nem da encomenda indígena. Ao latifúndio basta o pagamento de diárias irrisórias, a retribuição de serviços em espécies ou o trabalho gratuito em troca do usufruto de um pedacinho de terra; nutre-se da proliferação de minifúndios, resultado de sua própria expansão, e da contínua migração interna de legiões de trabalhadores que se deslocam, empurrados pela fome, ao ritmo de safras sucessivas. A estrutura combinada da plantação funcionava, e assim funciona também o latifúndio, como um coador armado para a evasão de riquezas naturais. Ao integrar-se no mercado mundial, cada área conheceu um ciclo dinâmico; logo, pela competição de outros produtos substitutivos, pelo esgotamento da terra ou pela aparição de outras zonas com melhores condições, sobreveio a decadência. A cultura da pobreza, a economia de subsistência e a letargia são os preços que cobra, no transcurso dos anos, o impulso produtivo original. O Nordeste era a zona mais rica do Brasil e hoje é a mais pobre; em Barbados e Haiti, residem formigueiros humanos condenados à miséria; o açúcar converteu-se na chave-mestra do domínio de Cuba pelos Estados Unidos, ao preço da monocultura e do empobrecimento implacável do solo. Não só o açúcar. Esta é também a história do cacau, que iluminou a fortuna da oligarquia de Caracas; do algodão do Maranhão, de súbito esplendor e súbita queda; das plantações de seringueira na Amazônia, convertidas em cemitérios para os operários nordestinos recrutados em troca de moedinhas; das fazendas de sisal, em Yucatán, onde os índios yaquis foram enviados ao extermínio. É também a história do café, que avança deixando desertos, e das plantações de frutas no Brasil, Colômbia, Equador e nos desditosos países centro-americanos. Com melhor ou pior sorte, cada produto tem-se convertido num destino, muitas vezes fugaz, para os países, regiões e homens. O mesmo itinerário seguiram, certamente, as zonas produtoras de riquezas minerais. Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria. A zona menos castigada por esta lei de ferro, o rio da Prata, que lançava couros e depois carne nas correntes do mercado internacional, não pôde, todavia, escapar à jaula do subdesenvolvimento. O ASSASSINATO DA TERRA NO NORDESTE DO BRASIL As colônias espanholas proporcionavam, em primeiro lugar, metais. Muito cedo descobriram-se, nelas, os tesouros e os veios. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi cultivado em São Domingos, depois em Veracruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba. Entretanto, até meados do século XVII, o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar. Simultaneamente, a colônia portuguesa da América era o principal mercado de escravos: a mão-de-obra indígena, muito escassa, extinguia-se rapidamente nos trabalhos forçados, e o açúcar exigia grandes contingentes de mão-de-obra para limpar e preparar os terrenos, plantar, colher e transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A sociedade colonial brasileira, subproduto do açúcar, floresceu na Bahia e Pernambuco, até que o descobrimento do ouro transferiu seu núcleo central para Minas Gerais. As terras foram cedidas, pela Coroa portuguesa, em usufruto, aos primeiros grandes senhores de terra do Brasil. A façanha da conquista tinha de correr paralelamente à organização da produção. Somente doze “capitães” receberam, por carta de doação, todo o imenso território colonial virgem,3 para explorá-lo a serviço do monarca. Todavia, foram 3. Sergio Bagú, Economia de la sociedad colonial. Ensayo de história comparada de ca Latina, Buenos Aires, 1949. Améri- 43 capitais holandeses os que financiaram, em maior medida, o negócio, que foi, em resumo, mais flamengo do que português. As empresas holandesas não só participaram na instalação dos engenhos e na importação dos escravos; além disso, recolhiam o açúcar bruto em Lisboa, refinavam-no, ganhando lucros que chegavam à terça parte do valor do produto4, e o vendiam na Europa. Em 1630, a Dutch West India Company invadiu e conquistou a costa nordeste do Brasil, para assumir diretamente o controle do produto. Era preciso multiplicar os lucros, e a empresa ofereceu aos ingleses da ilha de Barbados todas as facilidades para iniciar a cultura em grande escala nas Antilhas. Trouxe ao Brasil colonos do Caribe, para que aqui, em seus novos domínios adquirissem os necessários conhecimentos técnicos e a capacidade de organização. Quando os holandeses foram por fim expulsos do Nordeste brasileiro, em 1654, já tinham estabelecido as bases para que Barbados se lançasse numa competição furiosa e ruinosa. Haviam levado negros e raízes de cana, levantado engenhos e tinham todos os implementos. As exportações brasileiras caíram bruscamente para a metade, e os preços baixaram 50% no fim do século XVII. As Antilhas estavam mais perto do mercado europeu, Barbados tinha terras ainda virgens e produzia com melhor nível técnico. As terras brasileiras estavam cansadas. A formidável magnitude das rebeliões dos escravos no Brasil e a aparição do ouro no Sul, que arrebatava mão-de-obra às plantações, precipitaram também a crise do nordeste açucareiro. Foi uma crise definitiva. Prolonga-se, arrastando-se penosamente de século em século, até nossos dias. O açúcar arrasou o Nordeste. A faixa úmida do litoral, bem regada por chuvas, tinha um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto por matas tropicais da Bahia até o Ceará. Esta região de matas tropicais converteu-se, como diz Josué de Castro, em região de savanas5. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou a ser uma região de fome. Onde tudo germinava com exuberante vigor, o latifúndio açucareiro, destrutivo e avassalador,deixou rochas estéreis, solos lavados, terras erodidas. Fizeram-se, a princípio, plantações de laranjas e mangas, que foram abandonadas e se reduziram a pequenas hortas que rodeavam a casa do dono do engenho, exclusivamente reservadas para a família do plantador branco6. Os incêndios que abriam terras aos canaviais devastaram a floresta e com ela a fauna; desapareceram os cervos, os javalis, as toupeiras, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a flora e a fauna foram sacrificadas, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou rapidamente os solos. Em fins do século XVI, o Brasil tinha não menos de 120 engenhos, que somavam um capital próximo a dois milhões de libras, mas seus donos, que possuíam as melhores terras, não cultivavam alimentos. Importavam-nos, como importavam uma vasta gama de artigos de luxo, que chegavam, do ultramar, junto com os escravos e bolsas de sal. A abundância e a prosperidade eram, como de costume, simétricas à miséria da maioria da população, que vivia em estado crônico de subnutrição. A criação de gado foi relegada aos desertos do interior, longe da faixa úmida da costa: o sertão que, com duas cabeças de gado por quilômetro quadrado, proporcionava (e ainda proporciona) a carne dura e sem sabor, sempre escassa. Daqueles tempos coloniais nasce o costume, ainda vigente, de comer terra. A falta de ferro provoca anemia; o instinto leva as crianças nordestinas a compensar com terra os sais minerais que não encontram em sua comida habitual, que se reduz a farinha de mandioca, feijão e, raramente, charque. Antigamente, castigava-se este “vício africano” pondo-se mordaças nas bocas das crianças ou pendurando-as dentro de cestas a grande 4. Celso Furtado, Formación económica del Brasil, Buenos Aires-México, 1959. 5. Josué de Castro, Geografia da Fome, São Paulo, 1963. 6. Ibid. 44 distância do solo7. O Nordeste brasileiro é, na atualidade, uma das regiões mais subdesenvolvidas do hemisfério ocidental8. Gigantesco campo de concentração para trinta milhões de pessoas, padece hoje a herança da monocultura do açúcar. De suas terras nasceu o negócio mais lucrativo da economia agrícola colonial na América Latina. Atualmente, menos da quinta parte da zona úmida de Pernambuco está dedicada à cultura da cana-de-açúcar, e o resto não se usa para nada9:os donos dos grandes engenhos centrais, que são os maiores plantadores de cana, dão-se a este luxo do desperdício, mantendo improdutivos seus vastos latifúndios. Não é nas zonas áridas e semi-áridas do interior nordestino onde as pessoas comem pior, como equivocadamente se crê. O sertão, deserto de pedra e arbustos ralos, vegetação escassa, padece fomes periódicas: o sol inclemente da seca abate-se sobre a terra e a reduz a uma paisagem lunar; obriga aos homens o êxodo e semeia cruzes às margens dos caminhos. Porém é no litoral úmido onde se padece a fome endêmica. Ali onde mais opulenta é a opulência, mais miserável se forma, terra de contradições, a miséria; a região eleita pela natureza para produzir todos os alimentos, nega-os todos: a faixa costeira ainda conhecida, ironia do vocabulário, como zona da mata, em homenagem ao passado remoto e aos míseros vestígios da floresta sobrevivente aos séculos do açúcar. O latifúndio açucareiro, estrutura do desperdício, continua obrigado a trazer alimentos de outras zonas, sobretudo da região Centro-Sul do Brasil, a preços crescentes. O custo de vida no Recife é o mais alto do Brasil, muito acima do índice do Rio de Janeiro. O feijão custa mais caro no Nordeste do que em Ipanema. Meio quilo de farinha de mandioca eqüivale ao salário diário de um trabalhador adulto numa plantação de açúcar por sua jornada de sol a sol: se o operário protesta, o capataz manda buscar o carpinteiro para que tire as medidas do corpo, para saber o quanto de madeira será necessário para o caixão. Aos proprietários ou seus administradores continua em vigência, em vastas zonas, o “direito à primeira noite” de cada moça. A terça parte da população de Recife sobrevive marginalizada em palhoças de chão batido; num bairro, Casa Amarela, mais da metade das crianças que nascem morrem antes de chegar ao primeiro ano10. A prostituição infantil, meninas de dez ou doze anos vendidas por seus pais, é freqüente nas cidades do Nordeste. A jornada de trabalho em algumas plantações se paga a preços mais baixos do que a diária mais baixa da índia. Um informe da FA O, Organização das Nações Unidas, assegurava em 1957 que na localidade de Vitória de Santo Antão, perto de Recife, a deficiência de proteínas “provoca nas crianças uma perda de peso 40% mais grave do que se observa geralmente na África”. Em numerosas plantações subsistem ainda as prisões privadas, “mas os responsáveis pelos assassinatos por subnutrição - diz René Dumont - não são presos nelas, porque são os que têm a chave”11. Pernambuco produz agora menos da metade do açúcar que produz o Estado de São Paulo, e com rendimentos muito menores por hectare; todavia, Pernambuco vive do açúcar, e dele vivem seus habitantes densamente concentrados na região úmida, enquanto o Estado de São Paulo contém o centro industrial mais poderoso da América Latina. No 7. Ibid. Um viajante inglês, Henry Koster, atribuía o costume de comer terra ao contato dos meninos brancos com os negrinhos, "que se contagiam com este vicio africano". 8. O Nordeste padece, por várias vias, uma sorte de colonialisino interno em beneficio do Sul industrializado. Dentro do Nordeste, por sua vez, a região do sertão está subordinada à zona açucareira, e a abastece; os latifúndios açucareiros dependem das usinas industrializadoras do produto. A velha instituição do senhor de engenho está em crise; os moinhos centrais devoraram as plantações. 9. Segundo as investigações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de Pernambuco, citadas por Kit Sims Taylor em El nordeste brasileño: azúcar y plus-valia, Monthly Review, nº 63, Santiago do Chile, 1969. 1O. Franklin de Oliveira, Revolución y contrarrevolucién en el Brasil, Buenos Aires, 1965 11. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963. 45 Nordeste nem mesmo o progresso é progressista, porque até o progresso está em mãos de poucos proprietários. O alimento das minorias converte-se em fome das maiorias. A partir de 1870, a indústria açucareira modernizou-se consideravelmente com a criação dos grandes moinhos centrais, e então “a absorção das terras pelos latifúndios progrediu de modo alarmante, acentuando a miséria alimentícia desta zona”12. Na década de 1950, a industrialização em auge incrementou o consumo de açúcar no Brasil. A produção nordestina teve um grande impulso, porém sem o aumento de produtividade por hectare. Incorporam-se novas terras, de qualidade inferior, aos canaviais, e o açúcar novamente devorou as poucas áreas dedicadas à produção de alimentos. Convertido em assalariado, o camponês que antes cultivava sua pequena parcela não melhorou com a nova situação, pois não ganha o suficiente para comprar os alimentos que antes produzia13. Como de costume, a expansão expandiu a fome. EM MARCHA LENTA NAS ILHAS DO CARIBE As Antilhas eram as Sugar Lands, as ilhas do açúcar: sucessivamente incorporadas ao mercado mundial como produtoras de açúcar, ao açúcar Ficaram condenadas, até nossos dias, Barbados as ilhas de Sotavento, Trinidad Tobago, Guadalupe, Porto Rico e República Dominicana. Prisioneiras da monocultura da cana nos latifúndios de vastas terras exaustas, as ilhas sofrem o desemprego e a pobreza: o açúcar é cultivado em grande escala e em grande escala irradia suas maldições. Também Cuba continua dependendo, em medida determinante, de suas vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de 1959, iniciou-se um intenso processo de diversificação da economia da ilha, o que colocou um ponto final no desemprego: os cubanos não trabalham apenas cinco meses no ano, durante as safras, mas sim doze, ao longo da interrompida e decerto difícil construção de uma nova sociedade. “Pensareis talvez, senhores - dizia Karl Marx em 1848 -, que a produção de café e açúcar é o destino natural das índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que pouco tem a ver com o comércio, não tinha plantado ali nem a árvore do café nem a cana-deaçúcar.”14 A divisão internacional do trabalho não se foi estruturando por obra e graça do Espírito Santo, senão por obra dos homens ou, mais precisamente, por causa do desenvolvimento internacional do capitalismo. Na realidade, Barbados foi a primeira ilha do Caribe onde se cultivou o açúcar para a exportação em grandes quantidades, desde 1641, embora anteriormente os espanhóis tenham plantado cana na Ilha Dominicana e em Cuba. Foram os holandeses, como vimos, que introduziram as plantações na minúscula ilha britânica; em 1666, já havia em Barbados 800 plantações de açúcar e mais de 800 mil escravos. Vertical e horizontalmente ocupada pelo latifúndio nascente, Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do Brasil. Antes, a ilha desfrutava da policultura; produzia, em pequenas propriedades, algodão e tabaco, laranjas, vacas e porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e devastaram as densas matas em nome do efêmero apogeu. Rapidamente, a ilha descobriu que seus solos haviam-se esgotado, que não tinha como alimentar sua população e que estava produzindo açúcar a preços fora de concorrência15. O açúcar propagou-se a outras ilhas, em direção ao arquipélago de Sotavento, rumo à Jamaica e, em terras continentais, às Guianas. No começo do século XVIII, os escravos 12. Josué de Castro, op. cit. 13. Celso Furtado, Dialética do desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1964. 14. Karl Marx, Discurso sobre el libre cambio, em Miseria de la filosofla, Moscou, s.d. 15. Vincent T. Harlow, A History of Barbados, Oxford, 1926. 46 eram, na Jamaica, dez vezes mais numerosos do que os colonos brancos. Também seu solo cansou-se em pouco tempo. Na segunda metade do século, o melhor açúcar do mundo brotava do solo esponjoso das planuras da costa do Haiti, um colônia francesa que nessa época se chamava Saint Domingue. Ao norte e a oeste, Haiti converteu-se em sorvedouro de escravos: o açúcar exigia cada vez mais braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil escravos, e no ano seguinte 40 mil. No outono de 1791, explodiu a revolução. Num só mês, setembro, duzentas plantações de cana foram tomadas pelas chamas; os incêndios e os combates sucederam-se sem trégua à medida que os escravos insurretos iam empurrando os exércitos franceses até o oceano. Os barcos zarparam carregando cada vez mais franceses e cada vez menos açúcar. A guerra derramou rios de sangue e devastou as plantações. Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; em fins do século a produção caiu verticalmente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia antigamente florescente, era um grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski16. A revolução haitiana tinha coincidido, e não só no tempo, com a revolução francesa, e Haiti sofreu também, na própria carne, o bloqueio contra a França da coalizão internacional: a Inglaterra dominava os mares. Porém logo sofreu, à medida que sua independência ia-se fazendo inevitável, o bloqueio da França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos proibiu o comércio com Haiti, em 1806. Logo em 1825, a França reconheceu a independência de sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca indenização em dinheiro. Em 1802, pouco depois de Toussaint-Louverture caudilho dos exércitos escravos ser preso, o general Leclerc escreveu a seu cunhado Napoleão: “Eis minha opinião sobre o país: há que suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se somente as crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e não deixar na colônia nem um só negro que use jarreteiras”17. O trópico vingou-se de Leclerc, pois morreu “agarrado pelo vômito negro” apesar das esconjurações mágicas de Paulina Bonapart18 sem poder cumprir seu plano, porém a indenização em dinheiro tornou-se uma pedra esmagadora sobre as cosas dos haitianos independentes que haviam sobrevivido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o mais pobre da América Latina. A crise do Haiti provocou o auge açucareiro de Cuba, que rapidamente converteu-se na primeira supridora do mundo. Também a produção cubana de café, outro artigo de intensa demanda no ultramar, recebeu seu impulso da queda de produção haitiana, porém, o açúcar ganhou a corrida da monocultura: em 1862 Cuba viu-se obrigada a importar café do estrangeiro. Um membro direto da “sacarocracia” cubana chegou a escrever sobre as “profundas vantagens que se podem tirar da desgraça alheia”19. À rebelião haitiana sucederam os preços mais fabulosos da história do açúcar no mercado europeu, e em 1806 Cuba já tinha duplicado, ao mesmo tempo, os engenhos e a produtividade. CASTELOS DE AÇÚCAR SOBRE OS SOLOS QUEIMADOS DE CUBA Os ingleses haviam-se apoderado fugazmente de Havana em 1762. Nesta época, as pequenas plantações de tabaco e a pecuária eram as bases da economia rural da ilha; Havana, praça forte militar, mostrava um considerável desenvolvimento nos artesanatos, 16. Tadeusz Lepkowski, Haiti, tomo I, La Habana, 1968. 17. Ibid. 18. Há um romance esplêndido de Alejo Carpetier, O reino deste mundo, sobre este alucinante período da vida do Haiti. Contém uma recriação perfeita das andanças de Paulina e seu marido pelo Caribe. 19. Manuel Moreno Fraginals, El ingenio, Havana, 1964. 47 contava com uma importante fundição que fabricava canhões e dispunha do primeiro estaleiro da América Latina, para construir navios mercantes e navios de guerra em grande escala. Bastaram onze meses para que os ocupantes britânicos introduzissem uma quantidade de escravos que normalmente teria entrado em quinze anos; a partir desta época, a economia cubana foi moldada pelas necessidades estrangeiras de açúcar: os escravos produziam a cobiçada mercadoria com destino ao mercado mundial, e sua suculenta mais-valia seria desde então desfrutada pela oligarquia local e pelos interesses imperialistas. Moreno Fraginals descreve, com dados eloqüentes, o auge violento do açúcar nos anos seguintes à ocupação britânica. O monopólio comercial espanhol explodira, de fato, em pedaços; havia-se desfeito, além disso, os freios à entrada de escravos. O engenho absorvia tudo, homens e terras. Os operários do estaleiro e da fundição e os inumeráveis pequenos artesãos, cuja colaboração tornara-se fundamental para o desenvolvimento das indústrias, rumavam para o engenho; os pequenos camponeses que cultivavam tabaco nas terras baixas e planas ou frutas nos pomares, vítimas do bestial arrasamento das terras pelos canaviais, incorporaram-se também à produção do açúcar. A plantação extensiva ia reduzindo a fertilidade dos solos; multiplicavam-se nos campos cubanos as torres dos engenhos e cada engenho requeria cada vez mais terras. O fogo devorava as plantações de fumo e bosques, e arrasava as pastagens. Em 1792, o charque, que poucos anos antes era um artigo cubano de exportação, chegava em grandes quantidades do estrangeiro, e Cuba continuará importando-o sempre20 . Enfraqueciam o estaleiro e a fundição, caía verticalmente a produção do tabaco; a jornada de trabalho dos escravos do açúcar estendia-se a vinte horas. Sobre as terras fumegantes consolidava-se o poder da “sacarocracia”. Em fins do século XVIII, a euforia da cotação internacional nas nuvens, a especulação voava: os preços da terra se multiplicavam por vinte em Güines; em Havana, o juro real do dinheiro era oito vezes mais alto do que o legal; em toda Cuba a tarifa dos batismos, dos enterros e das missas subia em proporção à desatada carestia dos negros e dos bois. Os cronistas de outros tempos diziam que se podia percorrer Cuba, em toda extensão, à sombra de palmeiras gigantescas e das matas frondosas, nas quais abundavam a caioba e o cedro, o ébano e dagames. Pode-se contudo admirar as madeiras preciosas de Cuba nas mesas e nas janelas de El Escorial ou nas portas do palácio real de Madri, mas a invasão da cana fez arder, em Cuba, com vários incêndios sucessivos, as melhores matas virgens que antes cobriam o solo. Nos mesmos anos que arrasava sua própria floresta, Cuba convertia-se na principal compradora de madeira dos Estados Unidos. A cultura extensiva da cana, cultura de rapina, não só implicou a morte da mata mas também, a longo prazo, “a morte da fabulosa fertilidade da ilha”21. As matas eram entregues às 20. Já se tinham irrompidos os salgadouros no rio da Prata. A Argentina e o Uruguai, que por esta época não existiam separadamente nem se chamavam assim, haviam adaptado suas economias à exportação em grande escala de carne seca e salgada, couros, banhas e sebos. O Brasil e Cuba, os dois grandes centros escravistas do século XIX, foram excelentes mercados para o charque, um alimento muito barato, de fácil transporte e não menos fácil armazenamento, pois não se descompunha no calor do trópico. Os cubanos ainda chamam de "montevidéu" ao charque, porém o Uruguai deixou de vendê-lo em 1965, somando-se assim ao bloqueio disposto pela OEA contra Cuba. Desta maneira o Uruguai perdeu, estupidamente, o último mercado que restava para este produto. Tinha sido Cuba, em fins do século XVIII, o primeiro mercado que se abriu à carne uruguaia, embarcada em finas mantas secas. José Pedro Barrári e Benjamín Nahum, Historia rural do Uruguai moderno (1851-1885), Montevidéu, 1967. 21. Manuel Moreno Fraginais, op. cit. Até pouco tempo atrás, navegavam pelo rio Sagua os palanqueros. "Levam uma longa vara com uma ponta de ferro. Com ela vão ferindo o leito do rio até que cravam uma madeira... Assim, dia a dia, extraem do fundo do rio os restos das árvores que o açúcar cortara. Vivem dos cadáveres do bosque." 48 chamas, e a erosão não demorava a correr seus solos indefesos; milhares de riachos secaram. Atualmente, o rendimento por hectares das plantações açucareiras de Cuba é inferior em mais de três vezes ao do Havaí22. A irrigação e a fertilização da terra constituem as tarefas prioritárias para a Revolução Cubana. Estão se multiplicando as bombas hidráulicas, grandes e pequenas, enquanto se canalizam os campos e se disseminam, sobre as castigadas terras, os adubos. A “sacarocracia” iluminou sua enganosa fortuna enquanto selava a dependência de Cuba, uma feitoria distinta cuja economia ficou doente de diabetes. Entre os que devastaram as terras mais férteis por meios brutais, havia personagens de refinada cultura européia, que sabiam reconhecer um Brueghel autêntico e podiam comprá-lo; de suas freqüentes viagens a Paris traziam vasos etruscos e ânforas gregas, gobelins franceses e biombos Ming, paisagens e retratos dos mais cotados artistas britânicos. Surpreendeu-me descobrir, na cozinha de uma mansão de Havana, uma gigantesca caixa forte, com uma combinação secreta, que uma condessa usava para guardar sua louça. Até 1959, não se construíam fábricas, mas castelos de açúcar: o açúcar punha e depunha ditadores, proporcionava ou negava trabalho aos operários, decidia o ritmo das danças dos milhões e as terríveis crises. A cidade de Trinidad é, hoje, um cadáver resplandescente. Em meados do século XIX, havia em Trinidad mais de quarenta engenhos, que produziam 700 mil arrobas de açúcar. Os camponeses pobres que cultivavam tabaco foram deslocados pela violência, e a zona, que também tinha sido de pecuária, e que antes exportava carne, comia carne trazida de fora. Brotaram palácios coloniais, com seus portais de sombra cúmplice, seus aposentos de altos tetos, candelabros com chuvas de cristais, tapetes persas, um silêncio de tecido espesso e no ar as ondas do minueto, os espelhos nos salões para devolver a imagem dos cavalheiros de peruca e sapatos com fivela. Aí está, agora, o testemunho dos grandes esqueletos de mármore ou pedra, a soberba dos sinos mudos, as caleches invadidas pelo capim. Chamam agora Trinidad de “a cidade dos teve”, porque seus sobreviventes brancos sempre falam de algum antepassado branco que teve o poder e a glória. Porém veio a crise de 1857, caíram os preços do açúcar e a cidade caiu com eles, para não se levantar nunca mais23. Um século depois, quando os guerrilheiros da Sierra Maestra conquistaram o poder, Cuba continuava com seu destino amarrado à cotação do açúcar.“O povo que confia a sua subsistência a um só produto, se suicida”, havia profetizado o herói nacional, José Martí. Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial de exportações por habitante, superando inclusive a Inglaterra, e teve a maior renda per capita da América Latina. Porém, neste mesmo ano, em dezembro, o preço do açúcar caiu a quatro centavos, e em 1921 desfechou-se o furacão da crise: numerosas centrais açucareiras faliram, e foram adquiridas por interesses norte-americanos, e todos os bancos cubanos ou espanhóis, incluindo o próprio Banco Nacional. Só sobreviveram as sucursais dos bancos dos Estados Unidos24. Uma economia tão dependente e vulnerável como a de Cuba não podia escapar, posteriormente, ao impacto feroz da crise de 1929 nos Estados Unidos: o preço do açúcar chegou a baixar a menos de um centavo de dólar em 1932, e em três anos as exportações reduziram-se, em valor, à quarta parte. O índice de desemprego de Cuba 22. Celso Furtado, La economia Latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución Cubana, Santiago do Chile, 1969, México, 1969. 23. Moreno FraginaIs observou, agudamente, que os nomes dos engenhos nascidos no século XIX refletiam as altas eas baixas da curva açucareira: Esperanca, Atrevido, Casualidade; Aspirante, Conquista, Confiança, O Bom Sucesso; Pressa, Angústia, Desengano. Havia quatro engenhos chamados, premonitoriamente, Desengano. 24. Renê Dumont, Cuba (intento de crítica constructiva), Barcelona, 1965. 49 nesse tempo “dificilmente se igualou a qualquer país”25. O desastre de 1921 fora provocado pela queda do preço do açúcar no mercado dos Estados Unidos, e dos Estados Unidos não demorou a chegar um crédito de 50 milhões de dólares: nas ancas do crédito, chegou também o general Crowder; sob pretexto de controlar a utilização dos fundos, Crowder governaria, de fato, o país. Graças a seus bons ofícios, a ditadura Machado chega ao poder em 1924; com Cuba, paralisada pela greve geral, a grande depressão dos anos trinta leva adiante este regime de sangue e fogo. O que ocorria com os preços, repetia-se com os volumes das exportações. Desde 1948, Cuba recuperou sua quota para cobrir a terça parte do mercado norte-americano de açúcar, a preços inferiores aos que recebiam os produtores dos Estados Unidos, porém mais altos e mais estáveis do que os do mercado internacional. Já anteriormente os Estados Unidos haviam retirado as taxações das importações de açúcar cubano em troca de privilégios similares, concedidos à entrada de artigos norte-americanos em Cuba. Todos estes favores consolidaram a dependência. “O povo que compra manda, o povo que vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer morrer vende a um só povo, e o que quer salvar-se vende a mais de um”, havia dito Martí e repetiu Che Guevara na conferência da OEA, em Punta del Este, em 1961. A produção era arbitrariamente limitada pelas necessidades de Washington. O nível de 1925, uns cincos milhões de toneladas, continuava sendo a média dos anos cinqüenta: o ditador Fulgencio Batista assaltou o poder, em 1952, montado na maior safra até então conhecida, mais de sete milhões de toneladas, com a missão de apertar as cravelhas, e no ano seguinte, obediente à demanda do norte, a produção caiu para quatro26. A REVOLUÇÃO ANTE A ESTRUTURA DA IMPOTÊNCIA A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de beterraba, aparecido durante as guerras napoleônicas, nos campos da França e Alemanha, converteram os Estados Unidos em principal cliente das Antilhas. Já em 1850, os Estados Unidos dominavam a terça parte do comércio de Cuba, vendiam e compravam mais do que Espanha, embora a ilha fosse uma colônia espanhola, e a bandeira das listras e estrelas ondulava nos mastros da metade dos navios que ali chegavam. Um viajante espanhol encontrou por volta de 1859, no interior, em remotas aldeias cubanas, máquinas de costurar fabricadas nos Estados Unidos27. As principais ruas de Havana foram calçadas com blocos de granito de Boston. Quando despontava o século XX, se lia no Louisiana Planter: Pouco a pouco, a ilha de Cuba vai passando para mãos de cidadãos norte-americanos, o que é o meio mais simples e seguro de conseguir a anexação aos Estados Unidos.” No Senado norte-americano, se falava já de uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o general Leonard Wood governava a ilha. Ao mesmo tempo, passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e Porto Rico28. “Outorgaram-nos pela guerra - dizia o presidente Mckinley incluindo Cuba -, 25. Celso Furtado, La economia latinoamericana..., op. cit. 26. O diretor do programa de açúcar no Ministério de Agricultura dos Estados Unidos declarou tempos depois da Revolução: "Desde que Cuba saiu de cena, nós não contamos com a proteção deste país, o maior exportador mundial, já que dispunha sempre de reservas para atender, quando era preciso, nosso mercado." Enrique Ruiz García, América Latina: anatomia de una revolución, Madri, 1966. 27. Leland H. Jenks, Nuestra colonia de Cuba, Buenos Aires, 1960. 28. Porto Rico, outra feitoria açucareira, caiu prisioneiro. Do ponto de vista norte-americano, os porto-riquenhos não são suficientemente bons para viverem numa pátria própria, mas em 50 e com a ajuda de Deus e em nome do progresso da humanidade e da civilização, é nosso dever responder a esta grande confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de renunciar à cidadania norte-americana que havia adotado no exílio: as tropas norte-americanas de ocupação o converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o embaixador norte-americano em Cuba, Earl Smith, declara diante de uma subcomissão do Senado: “Até a chegada de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em Cuba uma influência de tal maneira irresistível que o embaixador norte-americano era a segunda personalidade do país, e às vezes ainda mais importante do que o presidente cubano.” Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo seu açúcar nos Estados Unidos. Cinco anos antes, um jovem advogado havia profetizado corretamente, ante aqueles que o julgavam pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria: havia dito em sua vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria de matéria-prima. Exporta-se açúcar para importar caramelos...”29 Cuba comprava nos Estados Unidos não só automóveis e máquinas, produtos químicos, papel e roupa, mas também arroz e feijão, alhos e cebolas, banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até jantares de luxo de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia, embora só a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente, e a metade das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas não produziam nada30. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área açucareira total e ganhavam por volta de 180 milhões de dólares em cada safra. A riqueza do subsolo - níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio - formava parte das reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas apenas exploravam os minerais de acordo com as variáveis exigências do exército e da indústria do norte. Havia em Cuba, em 1958, mais prostitutas registradas do que operários mineiros31. Um milhão e meio de cubanos sofria o desemprego total ou parcial, segundo as investigações de Seuret y Pino que cita Nuñez Jiménez. A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos atrás32, embora as necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a dependência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, havia-se chegado ao compensação são bons para morrerem na frente do Vietnã, em nome de uma pátria que não é deles. Num cálculo proporcional à população, o "Estado livre associado" de Porto Rico tem mais soldados que lutaram no sudeste asiático do que os restantes dos Estados Unidos. Aos portoriquenhos que resistem ao serviço militar obrigatório no Vietnã se agregam outras humilhações herdadas da invasão de 1898, além de cinco anos de prisão nos cárceres de Atlanta, e esta humilhações são benzidas por lei (por lei do Congresso dos Esta-dos Unidos). Porto Rico conta com uma representação simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem voz. Em troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico tinha, até a ocupação norteamericana, uma moeda própria e mantinha um comércio próspero com os principais mercados. Hoje, a moeda é dólar e as taxas alfandegárias são fixadas em Washington, que decide tudo sobre o comércio exterior e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, com os transportes, com as comunicações, com os salários e com as condições de trabalho. É a Suprema Corte dos Estados Unidos a que julga os porto-riquenhos; o exército local integra o exército do norte. A indústria e o comércio estão em mãos dos interesses privados norte-americanos. A desnacionalização quis se fazer absoluta pela via da emigração: a miséria empurrou a mais de um milhão de porto-riquenhos a buscarem melhor sorte em Nova Iorque, ao preço da perda de sua identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos bairros mais sórdidos. 29. Fidel Castro, La Revolución cubana (discursos), Buenos Aires, 1959. 30. A. Nuñez Jiménez, Geografia de Cuba, Havana, 1959. 31. René Dumont, op. cit. 32. Dudley Scees, Andrés Bianchi, Richard Jolly e Max Nolff, Cuba, the Economic and Social Revolution, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1964. 51 cúmulo de desmontar fábricas recém instaladas para vendê-las a outros países. Quando a Revolução triunfou, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as poucas fábricas com tecnologia moderna eram teledirigidas dos Estados Unidos. Um economista cubano, Regino Boti, co-autor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra, cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite concentrado em Bayamo: “Em caso de acidente, o técnico telefonava a Connecticut e observava que em seu setor alguma coisa não funcionava. Recebia em seguida instruções sobre as medidas a tomar e as executava mecanicamente... Se a operação falhasse, quatro horas mais tarde chegava um avião transportando uma equipe de especialistas de alta qualificação que consertavam tudo. Depois da nacionalização, já não se podia telefonar para pedir socorro e os raros técnicos que poderiam reparar os defeitos secundários haviam partido”33. O testemunho ilustra cabalmente as dificuldades que a Revolução encontrou desde que se lançou à aventura de converter a colônia em pátria. Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não foi fácil andar por conta própria. A metade das crianças cubanas não ia à escola em 1958, porém a ignorância era, como denunciara Fidel Castro tantas vezes, muito mais vasta e muito mais grave do que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens voluntários para ensinar ler e escrever a todos os cubanos e os resultados assombraram o mundo: Cuba ostenta atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO, a menor porcentagem de analfabetos é a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. Todavia, a herança maldita da ignorância não se supera da noite para o dia - nem em 20 anos. A falta de quadros técnicos eficazes, a incompetência da administração e da desorganização do aparato produtivo, o burocrático temor à imaginação criadora e à liberdade de decisão, continuam interpondo obstáculos ao desenvolvimento do socialismo. Mas apesar de todo o sistema de impotências, forjado pelos quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está renascendo, com um incessante entusiasmo: mede suas forças, alegria e desmesura, ante os obstáculos. O AÇÚCAR ERA O PUNHAL E O IMPÉRIO O ASSASSINO “Edificar sobre o açúcar é melhor do que edificar sobre a areia?”, perguntava-se Jean-Paul Sartre em 1960, em Cuba. No cais do porto de Guayabal, que exporta açúcar a granel, voam os alcatrazes sobre um galpão gigantesco. Entro e contemplo, atônito, uma pirâmide dourada de açúcar.À medida que as comportas se abrem, por baixo, para que as canaletas conduzam o carregamento, sem ensacar, até os navios, a rachadura do teto vai deixando cair novos jorros de ouro, açúcar recém-transportado dos moinhos dos engenhos. A luz do sol filtra-se e lhes arranca faíscas. Vale uns quatro milhões de dólares esta montanha macia que apalpo, e meu olhar não dá para enquadrá-la inteira. Penso que aqui se resume todo o drama e euforia da safra de 1970 que quis, mas não pôde, apesar do esforço sobre-humano, alcançar as dez milhões de toneladas. E uma história muito mais longa resvala, com o açúcar, ante o olhar.Penso no reino da Francisco Sugar Co., a empresa de Allen Dulles, onde passei uma semana escutando as histórias do passado e assistindo ao nascimento do futuro: Josefina, filha de Claridad Rodríguez, que estuda numa sala onde seu pai foi preso e torturado antes de morrer; Antonio Bastidas, o negro de setenta anos que uma madrugada deste ano pendurou-se com ambos os punhos na alavanca da sirena porque o engenho 33. K. S. Karol, Les guérrilleros au pouvoir, L'itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris, 1970. 52 tinha ultrapassado a meta e gritava: “Caralho! Cumprimos, caralho!”, e não houve quem tirasse a alavanca das mãos crispadas enquanto a sirena, que havia despertado o povoado, estava despertando toda Cuba; histórias de expulsões, de subornos, de assassinatos, a fome e os estranhos ofícios que o desemprego obrigava: caçador de grilos nas semeaduras, por exemplo. Penso que a desgraça tinha o ventre inchado, agora se sabe. Não morreram em vão os que morreram: Amancio Rodríguez, por exemplo, alvejado a tiros pelos fura-greves numa assembléia, que havia rechaçado furioso um cheque em branco da empresa e quando seus companheiros foram enterrá-lo descobriram que não tinha cuecas nem meias para levar ao caixão; ou por exemplo Pedro Plaza, que aos vinte anos foi detido e conduziu o caminhão dos soldados às minas que ele mesmo tinha semeado e voou com o caminhão e os soldados. E tantos outros nesta localidade e nas demais: “Aqui as famílias amam os mártires - disse-me um velho canavieiro -, mas depois de mortos. Antes eram puras queixas.” Penso não ser casual que Fidel Castro recrutasse as três quartas partes de seus guerrilheiros entre os camponeses, homens do açúcar, nem que a província do Oriente fosse, ao mesmo tempo, a maior fonte de açúcar e sublevações de toda a história de Cuba. Explico-me o rancor acumulado: depois da grande safra de 1961, a Revolução optou por vingar-se do açúcar. O açúcar era a memória viva da humilhação. Era também, o açúcar, um destino? Converteu-se depois em penitência? Pode ser agora a alavanca, a catapulta do desenvolvimento econômico? Sob a influência de uma justa impaciência, a Revolução abateu numerosos canaviais e quis diversificar, num abrir e fechar de olhos, a produção agrícola: não caiu no tradicional erro de dividir os latifúndios em minufúndios improdutivos, porém cada fazenda socializada partiu de cara para culturas excessivamente variadas. Era preciso realizar importações em grande escala para industrializar o país, aumentar a produtividade agrícola e satisfazer muitas necessidades de consumo que a Revolução, ao redistribuir a riqueza, acrescentou enormemente. Sem as enormes grandes safras de açúcar, de onde obter as divisas necessárias para essas importações? O desenvolvimento da mineração, sobretudo do níquel, exige grande inversões, que estão sendo realizadas, e a produção pesqueira multiplicou-se por oito, graças ao crescimento da frota, o que também exigiu inversões gigantes; os grandes planos de produção de cítricos estão em execução, porém os anos que separam a semeadura da colheita exigem paciência. A Revolução descobriu, então, que havia confundido o punhal com o assassino. O açúcar, que tinha sido o fator de subdesenvolvimento, converteu-se num instrumento do desenvolvimento. Não houve mais remédio que utilizar os frutos da monocultura e a dependência, nascidos da incorporação de Cuba ao mercado mundial, para quebrar o espinhaço da monocultura e da dependência. Porque as rendas que o açúcar proporcionava já não são utilizadas para consolidar uma estrutura da submissão34. As importações de maquinarias e de instalações industriais cresceram em 40% desde 1958 excedente que o açúcar gera é mobilizado para desenvolver as indústrias básicas e para que não fiquem ociosas as terras, nem os trabalhadores condenados ao desemprego. Quando caiu a ditadura de Batista, havia em Cuba cinco mil tratores e 300 mil automóveis. Hoje há 50 mil tratores, embora boa parte seja desperdiçada pelas graves deficiências de organização; daquela frota de automóveis, em sua maioria 34. O preço estável do açúcar, garantido pelos países socialistas, desempenhou um papel decisivo neste sentido. Também a ruptura do bloqueio disposto pelos Estados Unidos, que se desfez através do tráfico comercial com os países da Europa Ocidental. Um terço das exportações cubanas proporciona dólares, ou seja, divisas conversíveis, para o país; o resto se aplica à troca com a União Soviética e a zona do rublo. Este sistema de comércio implica também certas dificuldades: as turbinas soviéticas para as centrais termelétricas são de excelente qualidade, como todos os equipamentos pesados que a URSS produz, mas não acontece o mesmo com os artigos de consumo da indústria leve ou média. 53 modelos de luxo, não sobram senão alguns exemplares dignos do museu da sucata. A indústria de cimento e as usinas de eletricidade ganharam um assombroso impulso; as grandes fábricas de fertilizantes criadas pela Revolução possibilitaram que hoje se utilizem cinco vezes mais adubos do que 1958,35 e avançaram com botas de sete léguas as áreas de irrigação. Novos caminhos, abertos por toda Cuba, quebraram a incomunicabilidade de muitas regiões que pareciam condenadas ao isolamento eterno. Para aumentar a magra produção de leite do gado zebu, trouxeram para Cuba touros da raça Holstein, com os quais, mediante a inseminação artificial, fizeram nascer 800 mil vacas de cruza. Grandes progressos foram realizados na mecanização do corte e levantamento da cana, em boa medida com base em investigações cubanas, embora ainda sejam insuficientes. Um novo sistema de trabalho se organiza, com dificuldades, para ocupar o lugar do velho sistema desorganizado pelas mudanças que a Revolução traz consigo. Os macheteros profissionais, presidiários do açúcar, são em Cuba uma espécie extinta: também para eles a Revolução implicou a liberdade de eleger outras profissões menos pesadas e, para seus filhos, a possibilidade de estudar, através de bolsas, nas cidades. A redenção dos trabalhadores da cana provocou, em conseqüência - preço inevitável - severos transtornos para a economia da ilha. Em 197O, Cuba teve de utilizar o triplo de trabalhadores para a safra, em sua maioria voluntários, soldados ou trabalhadores de outros setores, ficando prejudicadas as demais atividades do campo e da cidade: as colheitas de outros produtos, o ritmo de trabalho nas fábricas. E é preciso levar em conta que, neste sentido, em uma sociedade socialista, ao contrário da sociedade capitalista, os trabalhadores já não atuam tangidos pelo medo ao desemprego nem pela cobiça. Outros motores - a solidariedade, a responsabilidade coletiva, a tomada de consciência dos deveres e direitos que colocam os homens além do egoísmo - devem ser colocados em funcionamento. E não se muda a consciência de um povo inteiro num instante. Quando a Revolução conquistou o poder, segundo Fidel Castro, a maioria dos cubanos não era sequer antimperialista. Os cubanos foram-se radicalizando junto com sua Revolução, na medida em que se sucediam os desafios e as respostas, os golpes e os contragolpes entre Havana e Washington, e na medida em que a Revolução ia convertendo em fatos concretos suas promessas de justiça social. Construíram-se 170 novos hospitais e outras tantas policlínicas, e a assistência médica tomou-se gratuita; multiplicou-se por três a quantidade de estudantes matriculados em todos os níveis, e também a educação se fez gratuita; as bolsas de estudos beneficiaram mais de 300 mil crianças e jovens, e multiplicaram-se os internatos e creches infantis. Grande parte da população não paga aluguel e já são gratuitos os serviços de água, luz, telefone, funerais e espetáculos esportivos. Os gastos em serviços sociais cresce, em cinco vezes em poucos anos. Porém, agora que todos têm educação e sapatos, as necessidades vão-se multiplicando geometricamente e a produção só pode crescer aritmeticamente. A pressão do consumo, que é agora consumo de todos e não de uns poucos, também obriga Cuba a um aumento rápido das exportações, e o açúcar continua sendo a maior fonte de recursos. Na verdade, a Revolução está vivendo tempos duros, difíceis, de transição e sacrifício. Os próprios cubanos acabaram de confirmar que o socialismo se constrói com os dentes cerrados e que a Revolução não é nenhum passeio. Afinal, o futuro não seria desta terra, se chegasse como um presente. Há escassez, é certo, de diversos produtos: em 1970, faltam frutas e geladeiras, roupa; as filas, muito freqüentes, não só resultam da desorganização da distribuição. A causa essencial da escassez é a nova abundância de consumidores: agora o país pertence a todos. Trata-se, portanto, de uma escassez de sinal invertido a que 35. Informe de Cuba à XI Conferência Regional da FA O.Versão de Prensa Latina, 13 de outubro de 1970. 54 padecem os demais países latino-americanos. No mesmo sentido, operam os gastos com a defesa. A Revolução é obrigada a dormir com os olhos abertos, e isto também custa, em termos econômicos, muito caro. Esta Revolução acossada, que teve de suportar invasões e sabotagens sem trégua, não cai porque - estranha ditadura! - defende-a o povo em armas. Os expropriadores expropriados não se conformam. Em abril de 1961, a brigada que desembarcou em Playa Girón não estava formada somente pelos velhos militares e policiais de Batista, mas também pelos donos de mais de 370 mil hectares de terra, quase dez mil imóveis, setenta fábricas, dez centrais açucareiras, três bancos, cinco minas e doze cabarés. O ditador da Guatemala, Miguel Ydígoras, cedeu campos de treinamento aos expedicionários em troca de promessas que os norte-americanos formularam, segundo ele mesmo confessou mais tarde: dinheiro sonante e cantante, que nunca lhe pagaram, e um aumento da quota guatemalteca de açúcar no mercado dos Estados Unidos. Em 1965, outro país açucareiro, a República Dominicana, sofreu a invasão de uns 40 mil marines dispostos a permanecerem “indefinidamente neste país, em vista da confusão reinante”, segundo declarou seu comandante, o general-Bruce Palmer. A queda vertical dos preços do açúcar foi um dos fatores que fizeram explodir a indignação popular; o povo levantou-se contra a ditadura militar e as tropas norte-americanas não demoraram em restabelecer a ordem. Deixaram quatro mil mortos nos combates que os patriotas sustentaram, corpo a corpo, entre rio Ozama e o Caribe, num bairro encurralado na cidade de Santo Domingo36. A Organização dos Estados Americanos - que tem a memória da mula, pois não esquece nunca onde come - benzeu a invasão e a estimulou com novas forças. Era preciso matar o germe de outra Cuba. GRAÇAS AO SACRIFÍCIO DOS ESCRAVOS NO CARIBE, NASCERAM A MÁQUINA DE JAMES WATT E OS CANHÕES DE WASHINGTON Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de cabeça enorme e barriga inchada: suas pernas débeis e seus braços curtos não se harmonizam com o resto do corpo. Havana resplandecia, zuniam os cadilaques por suas avenidas de luxo; no maior cabaré do mundo, ao ritmo de Lecuona, ondulavam as vedetes mais lindas; enquanto isso, no campo cubano, só um entre dez operários agrícolas bebia leite, apenas 4% consumia carne e, segundo o Conselho Nacional de Economia, as três quartas partes dos trabalhadores rurais ganhavam salários que eram três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida. Porém, açúcar não só produziu anãos. Também produziu gigantes, ou pelo menos contribuiu intensamente para o desenvolvimento de gigantes. O açúcar do trópico latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que 36. Ellsworth Bunker, presidente da National Sugar Refining Co., foi o enviado especial de Lyndon Johnson à ilha Dominicana depois da intervenção militar. Os interesses da National Sugar neste pequeno país foram salvaguardados sob o olhar atento de Bunker: as tropas de ocupação se retiraram para deixar no poder, ao fim de eleições muito democráticas, Joaquim Balaguer, que fora o braço-direito de Trujillo ao longo da sua feroz ditadura. A população de São Domingos havia lutado nas ruas e nos terraços com pedaços de pau, machetes e fuzis, contra os tanques, basucas e helicópteros das forças estrangeiras, reivindicando a volta ao poder do presidente constitucionalmente eleito, Juan Bosch, derrubado por um golpe militar. A História, burladora, joga com profecias. No dia em que Juan Bosch assumiu sua breve presidência, ao fim de trinta anos de tirania de Trujillo, Lyndon Johnson, na época vice-presidente dos Estados Unidos, levou a São Domingos o presente oficial de seu governo: uma ambulância. 55 mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe e selou a ruína histórica da África. O comércio triangular Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às plantações de açúcar.“A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de política e também de moral,” dizia Augusto Cochin. As tribos da África Ocidental viviam lutando entre si, para aumentar, com prisioneiros de guerra, suas reservas de escravos. Pertenciam aos domínios coloniais de Portugal, porém os portugueses não tinham naves nem artigos industriais para oferecer na época do auge do tráfico de negros, e se converteram em meros intermediários entre capitães negreiros e os régulos africanos. A Inglaterra foi, enquanto lhe era conveniente, a grande campeã da compra e venda de carne humana. Os holandeses tinham, contudo, maior tradição no negócio, porque Carlos V lhes havia presenteado o monopólio de transportes de negros para a América, tempos antes de a Inglaterra obter o direito de introduzir escravos em colônias alheias. Em relação à França, Luís XIV,oRei Sol, compartia com o rei da Espanha a metade dos lucros da Companhia da Guiné, formada em 1701 para o tráfico rumo à América, e seu ministro Colbert, artífice da industrialização francesa, tinha motivos para afirmar que o comércio de negros “era recomendável para o progresso da marinha mercante nacional”37. Adam Smith dizia que o descobrimento da América tinha “elevado o sistema mercantil a um grau de esplendor e glória, que de outro modo não seria alcançado jamais”. Segundo Sergio Bagú, o mais formidável motor de acumulação do capital mercantil europeu foi a escravatura americana; por sua vez, esse capital tornou-se a “pedra fundamental sobre a qual se construiu o gigantesco capital industrial dos tempos contemporâneos”38.A ressurreição da escravatura greco-romana no Novo Mundo teve propriedades milagrosas: multiplicou as naves, as fábricas, as ferrovias e os bancos de países que não estavam na origem nem, com exceção dos Estados Unidos, no destino dos escravos que cruzavam o Atlântico. Entre os albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários milhões de africanos, não se sabe quantos, atravessaram o oceano; sabe-se, sim, que foram muito mais que os imigrantes brancos, provenientes da Europa, embora, está claro, muito menos sobreviveram. Do Potomac ao rio da Prata, os escravos edificaram a casa de seus amos, abriram as matas, cortaram e moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram o cacau, colheram o café e o tabaco, afogaram se nos socavãos mineiros. A quantas Hiroximas eqüivaleram seus extermínios sucessivos? Como dizia um plantador inglês de Jamaica , “os negros, é mais fácil comprá-los do que criá-los”. Caio Prado Júnior calcula que até o princípio do século XIX havia chegado ao Brasil entre cinco a seis milhões de africanos; por esta época, Cuba já era um mercado de escravos tão grande como o havia sido, antes, todo o hemisfério ocidental39. Por volta de 1562, o capitão John Hawkins tinha arrancado 300 negros de contrabando da Guiné portuguesa. A rainha Elizabete ficou furiosa: “Esta aventura - sentenciou - clama vingança do céu.” Porém, Hawkins contou-lhe que no Caribe havia obtido, em troca dos escravos, um carregamento de açúcar e peles, pérolas e gengibre. A rainha perdoou o pirata e converteu-se em sócia comercial dele. Um século depois, o duque de York marcava a ferro quente suas iniciais, DY, sobre a nádega esquerda ou o peito dos três mil negros que sua empresa conduzia anualmente para “as ilhas do açúcar”. A Real Companhia Africana, entre cujos acionistas figurava o rei Carlos II, dava 300% de dividendos, apesar de que, dos 70 mil escravos que embarcaram entre 1680 e 1688, só 46 mil sobrevivessem à travessia. Durante a viagem, numerosos africanos morriam vítimas de 37. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en America, antes y después de Cólon, Buenos Aires, 1948. 38. Sergio Bagú, op. cit. 39. Daniel P. Mannix e M. Cowley, Historia de la trata de negros, Madri, 1962. 56 epidemias ou desnutrição, ou se suicidavam negando-se a comer, enforcando-se com suas correntes ou lançando-se pela borda ao oceano eriçado por barbatanas de tubarões. Lenta, porém firmemente, a Inglaterra ia quebrando a hegemonia holandesa no tráfico negreiro. A South Sea Company foi a principal usufrutuária do “direito de asiento” concedido aos ingleses pela Espanha, e nela estavam envolvidos os mais proeminentes personagens da política e das finanças britânicas: o negócio, brilhante como nenhum outro, enlouqueceu a bolsa de valores de Londres e deflagrou uma especulação legendária. O transporte de escravos elevou Bristol, sede dos estaleiros, à categoria de segunda cidade da Inglaterra, e converteu Liverpool no maior porto do mundo. Partiam os navios com seus porões carregados de armas, tecidos e rum abençoados, quinquilharias e vidros de cores, que seriam o meio de pagamento em troca da mercadoria humana da África. Os ingleses impunham seu reinado sobre os mares. Em fins do século XVIII, África e o Caribe davam trabalho a 180 mil operários têxteis em Manchester; de Sheffield vinham os punhais e de Birmingham, 150 mil mosquetões por ano40. Os caciques africanos recebiam as mercadorias da indústria britânica e entregavam os carregamentos de escravos aos capitães negreiros. Dispunham, assim, de novas armas e abundante aguardente para empreender as próximas caçadas nas aldeias. Também proporcionavam marfins, ceras e azeite de palmeira. Muitos dos escravos provinham da selva e nunca tinham visto o mar; confundiam os rugidos do oceano com os de alguns monstros submergidos que os esperavam para devorá-los ou, segundo o testemunho de um traficante da época, acreditavam, e de certo modo não se equivocavam, que “iam ser levados como carneiros ao matadouro, sendo sua carne muito apreciada pelos europeus.”41 De muito pouco serviam os chicotes de sete pontas para conter o desespero suicida dos africanos. Os “fardos” que sobreviviam à fome, às doenças e ao amontoamento da travessia, eram recebidos em farrapos, pura pele e ossos, na praça pública, depois de desfilarem pelas ruas coloniais ao som das gaitas. Os que chegavam ao Caribe demasiado exaustos podia-se engordá-los nos depósitos antes de exibi-los aos olhos dos compradores; os enfermos deixava-se morrer nos cais. Os escravos eram vendidos em troca de dinheiro em espécie ou promissórias de três anos de prazo. Os barcos zarpavam de regresso a Liverpool levando diversos produtos tropicais: em princípios do século XVIII, as três quartas partes do algodão fiado pela indústria têxtil inglesa provinham das Antilhas, embora logo Georgia e Louisiania se tornassem as principais fontes de abastecimento; em meados do século, havia 120 refinarias de açúcar na Inglaterra. Um inglês podia viver, naquela época, com seis libras por ano; os mercadores de escravos de Liverpool somavam lucros anuais de mais de 1.100 mil libras, contando exclusivamente o dinheiro obtido no Caribe e sem agregar os benefícios do comércio adicional. Dez grandes empresas controlavam um novo sistema de molhes; cada vez se construíam mais navios, maiores e de maior calado. Os ourives ofereciam “brincos e colares de prata para negros e cachorros”, as damas elegantes mostravam-se em público acompanhadas de um macaco vestido de colete bordado e um menino escravo, com turbante e bombachas de seda. Um economista escreveu por esta época: o comércio de escravos é “o princípio básico e fundamental de todo o resto; como o principal impulso da máquina que põe em movimento cada roda da engrenagem”. Os bancos se propagam em Liverpool e Manchester, Bristol, Londres e Glasgow; a empresa de seguros Lloyd’s acumulava lucros segurando escravos, navios e plantações. Desde muito cedo, os anúncios da London Gazette indicavam que os escravos fugidos deviam ser devolvidos ao Lloyd’s. Com fundos do comércio negro construiu-se a grande ferrovia inglesa do oeste e nasceram indústrias, como as fábricas de louças de Gales. O capital acumulado no comércio triangular - manufaturas, escravos, açúcar 40. Eric Williams, Capitalism and slavery, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1944. 41. Daniel P. Mannix e M. Cowley, op. cit. 57 tornou possível a invenção da máquina a vapor: James Watt foi subvencionado por mercadores que haviam feito assim suas fortunas. Eric Williams afirma-o em sua documentada obra sobre o tema. Em princípios do século XIX, a Grã Bretanha converteu-se na principal impulsionadora da campanha antiescravista. A indústria inglesa já necessitava de mercados internacionais com maior poder aquisitivo, o que obrigava a propagação do regime de salários. Ademais, ao estabelecer-se o salário nas colônias inglesas do Caribe, o açúcar brasileiro, produzido com mão-de-obra escrava, recuperava vantagens por seus baixos custos comparativos42. A Armada britânica lançava-se ao assalto dos navios negreiros, mas o tráfico continuava crescendo para abastecer Cuba e Brasil. Antes que os botes ingleses chegassem aos navios piratas, os escravos eram lançados ao mar: dentro só se encontrava o odor, as caldeiras quentes e um capitão que morria de rir. A repressão ao tráfico elevou os preços e aumentou os lucros enormemente. Em meados do século, os traficantes entregavam um fuzil velho por cada escravo vigoroso arrancado da África, para logo vendê-lo por mais de 600 dólares em Cuba. As pequenas ilhas do Caribe foram infinitamente mais importantes, para Inglaterra, do que suas colônias do norte. Em Barbados, Jamaica e Montserrat proibia-se o fabrico de uma agulha ou uma ferradura por conta própria. Muito diferente era a situação da Nova Inglaterra, e isto facilitou seu desenvolvimento econômico e, também, sua independência política. O tráfico de negros na Nova Inglaterra deu origem a grande parte do capital que facilitou a Revolução industrial nos Estados Unidos da América. Em meados do século XVIII, os barcos negreiros do norte levavam de Boston, Newport ou Providence barris cheios de rum até a África; na África trocavam-nos por escravos; vendiam os escravos no Caribe e dali traziam melaço a Massachusetts, onde se destilava e convertia, para completar o cicio, em rum. O melhor rum das Antilhas, o W est Indian Rum, não se fabricava nas Antilhas. Com capitais obtidos deste tráfico de escravos, os irmãos Brown, de Providence, instalaram o forno de fundição que produziu os canhões de George Washington na guerra da independência43. As plantações açucareiras do Caribe, condenadas à monocultura de cana, não só podem ser consideradas como o centro dinâmico do desenvolvimento das “treze colônias”, pelo alento que o tráfico de escravos presenteou à indústria naval e às destilarias da Nova Inglaterra. Também constituíram o grande mercado para o desenvolvimento das exportações de víveres, madeiras e implementos diversos com destino aos engenhos, com o que deram viabilidade econômica à economia de granjas e precocemente manufatureira do Atlântico Norte. Em grande escala, os navios fabricados por estaleiros dos colonos do norte levavam ao Caribe peixes frescos e defumados, aveia e grãos, feijões, farinha, manteiga, queijo, cebolas, cavalos e bois, velas e sabões, tecidos, travas de pinho, carvalho e cedro para caixas de açúcar (Cuba contou com a primeira serra a vapor que chegou à América hispânica, porém não tinha madeira que cortar), duelas, arcos, aros, argolas e cravos. Assim, ia-se esvaindo o sangue por todos estes processos. Desenvolviam-se os países desenvolvidos de nossos dias; subdesenvolviam-se os subdesenvolvidos. O ARCO-ÍRIS É A ROTA DO RETORNO À GUINÉ Em 1518, o advogado Alonso Zuazo escrevia a Carlos V, da Dominicana: “É vão o 42. A primeira lei que proibiu expressamente a escravidão no Brasil não era brasileira. Era, e não por casualidade, inglesa. O Parlamento britânico votou-a em 8 de agosto de 1845. Osny Duarte Pereira, Quem faz as leis no Brasil?, Rio de Janeiro, 1963. 43. Daniel P. Mannix e M. Cowley, op. cit. 58 temor de que os negros possam sublevar-se; viuvas há nas ilhas de Portugal mui sossegadas com 800 escravos; tudo está em como são governados. Eu achei ao vir alguns negros ladinos, outro fugidos para a montanha; açoitei uns, cortei as orelhas de outros; e já não ocorre mais queixas.” Quatro anos depois, explodiu a primeira sublevação de escravos na América: os escravos de Diego Colombo, filho do descobridor, foram os primeiros a se levantarem e terminaram pendurados em forcas nos caminhos dos engenhos44. Sucederam-se outras rebeliões em São Domingos e logo em todas as ilhas açucareiras do Caribe. Uns dois séculos depois do sobressalto de Diego Colombo, em outro extremo da mesma ilha, os escravos quilombolas fugiam para as regiões mais elevadas do Haiti e nas montanhas reconstruíam a vida africana: as culturas, de alimentos, a adoração aos deuses, os costumes. O arco-íris marca ainda, na atualidade, a rota de retorno à Guiné para o povo de Haiti. Numa nave de vela branca... Na Guiana holandesa, através do rio Courantine, sobrevivem há três séculos as comunidades djukas, descendentes de escravos que haviam fugido pelas matas do Suriname. Nestas aldeias existem “santuários similares aos da Guine, e cumprem-se danças e cerimônias que poderiam ser celebradas em Gana. Utiliza-se a linguagem dos tambores, muito parecida com a dos tambores de Ashanti”45. A primeira grande rebelião de escravos da Guiana ocorreu cem anos depois da fuga dos djukas: os holandeses recuperaram as plantações e queimaram a fogo lento os líderes dos escravos. Porém, tempos antes do êxodo dos djukas, os escravos quilombolas do Brasil haviam organizado o reino negro de Palmares, no nordeste do Brasil, e vitoriosamente resistiram, durante todo o século XVII, ao assédios das dezenas de expedições militares que se lançaram para abatê-lo, uma atrás da outra, os holandeses e portugueses. As investidas de milhares de soldados nada podiam contra as táticas guerrilheiras que tornaram invencível, até 1693, o vasto refúgio. O reino independente dos Palmares - convocatória à rebelião, bandeira da liberdade - havia-se organizado como um Estado “à semelhança de muitos que existiam na África no século VII”46. Estendia-se desde as vizinhanças do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a zona norte do rio São Francisco, em Alagoas: equivalia à terça parte do território de Portugal e estava rodeado por espesso cerco de selvas selvagens. O chefe máximo era eleito entre mais hábeis e sagazes: reinava o homem “de maior prestígio e felicidade na guerra ou no mando”47. Em plena época das plantações açucareiras onipotentes, Palmares era o único lugar do Brasil onde se desenvolvia a policultura. Guiados pela experiência adquirida por eles mesmos ou por seus antepassados nas savanas e nas selvas tropicais da África, os negros cultivavam o milho, a batata, os feijões, a mandioca, as bananas e outros alimentos. Não é em vão que a destruição dos cultivos fosse o objetivo principal das tropas coloniais lançadas para recuperar os homens que, depois da travessia do mar com correntes nos pés, haviam desertado das plantações. A abundância de alimentos de Palmares contrastava com as penúrias que, em plena prosperidade, padeciam as zonas açucareiras do litoral. Os escravos que haviam conquistado a liberdade a defendiam com habilidade e coragem porque compartiam seus frutos: a propriedade da terra era comunitária e não circulava o dinheiro no estado negro. “Não figura na história universal nenhuma rebelião de escravos tão prolongada quanto a de Palmares. A de Espartaco, que comoveu o sistema escravista mais importante da Antigüidade, durou 18 meses48. Para a batalha final, a Coroa portuguesa mobilizou o maior 44. Fernando Ortiz, op. cit. 45. Philip Reno, El drama de la Guyana británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por el socialismo, Monthly Review, nº 17/18, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1965. 46. Edison Carneiro, O quilombo de Palmares, Rio de Janeiro, 1966. 47. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, Rio de Janeiro, 1932. 48. Décio de Freitas, A guerra dos escravos, inédito. 59 exército conhecido até muito depois da independência do Brasil. Nada menos de dez mil pessoas defenderam a última fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados, lançados pelos precipícios ou vendidos aos mercadores do Rio ou de Buenos Aires. Dois anos depois, o chefe Zumbi, a quem os escravos consideravam imortal, não pôde escapar à traição. Encurralaram-no na selva e cortaram-lhe a cabeça. Porém as rebeliões continuaram. Não passaria muito tempo para que o capitão Bartolorneu Bueno do Prado regressasse do rio das Mortes com seus troféus da vitória contra uma nova sublevação de escravos. Trazia três mil e novecentos pares de orelhas nos alforjes dos cavalos. Também em Cuba teriam lugar as sublevações. Alguns escravos suicidavam-se em grupo; enganavam ao amo “com sua greve eterna e sua inacabável cisma pelo outro mundo”, diz Fernando Ortiz. Acreditavam que assim ressuscitavam, carne e espírito, na África. Os amos multilavam os cadáveres, para que ressuscitassem castrados, manetas ou decapitados; deste modo conseguiram que muitos renunciassem à idéia de se matar.Lá por 1870, segundo recente versão de um escravo que na juventude tinha fugido para as montanhas de Las Villas, os negros já não se suicidavam em Cuba. Mediante um cinturão mágico, “iam embora voando, voavam para o céu e escapavam para sua terra”, ou se perdiam na serra porque “qualquer um se cansava de viver. Os que se acostumavam tinham o espírito frouxo. A vida no morro era mais saudável”49. Os deuses africanos continuavam vivos entre os escravos da América, como vivas continuavam, alimentadas pela nostalgia, as lendas e os mitos das pátrias perdidas. Parece evidente que os negros expressavam assim, em suas cerimônias, em suas danças, em seus conjuros, a necessidade de afirmação de uma identidade cultural que o cristianismo negava. Mas também deve ter influído o fato de a Igreja estar materialmente associada ao sistema de exploração que sofriam. No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas inglesas os escravos acusados de crimes morriam esmagados entre os tambores dos trapiches de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenhos no Brasil, para evitar semelhantes excessos: “Aos administradores não se lhes deve consentir de nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que andam grávidas nem pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e podem ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”50. Em Cuba, os capatazes descarregavam seus chicotes de couro ou cânhamo sobre as costas das escravas grávidas que houvessem cometido qualquer falta, porém não sem antes deitá-las de boca para baixo, com o ventre num pequeno buraco, para não estropiar a “peça”; os sacerdotes, que recebiam como dizimo 5% da produção de açúcar, davam sua cristã absolvição: o capataz castigava como Jesus Cristo aos pecadores. O missionário apostólico Juan Perpinã y Pibernat publicava seus sermões aos negros. “Pobrezinhos! Não vos assusteis por muito que sejam as penalidades que tenhais que sofrer como escravos. Escravo pode ser o vosso corpo: porém tendes a alma para voar um dia à feliz mansão dos escolhidos”51. O deus dos párias não é sempre o mesmo deus do sistema que os faz párias. Embora a religião católica abarque, pela informação oficial, 94% da população do Brasil, na realidade a população negra conserva vivas suas tradições africanas e perpetuamente viva sua fé 49. Esteban Monteio tinha mais de um século de idade quando contou sua história a Miguel Barnet (Biografia de um cimarrón, Buenos Aires, 1968, México, 1971). 50. Roberto C. Simonsen, História econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962. 51. Manuel Moreno Fraginals, op. cit. Uma quinta-feira santa, o conde de casa Bayona decidiu humilhar-se ante seus escravos. Inflamado de fervor cristão, Iavou os pés de doze negros e os sentou para comer, com ele, em sua mesa. Foi a última ceia propriamente dita. No dia seguinte, os escravos se sublevaram, e tocaram fogo no engenho. Suas cabeças foram cravadas sobre doze lanças, no centro do pátio. 60 religiosa, freqüentemente camuflada por trás das figuras sagradas do cristianismo.52 Os cultos de raiz africana encontram ampla projeção entre os oprimidos - qualquer que seja a cor de sua pele. A mesma coisa ocorre nas Antilhas. As divindades do vodu do Haiti, do bembé de Cuba e da umbamda e da quimbanda do Brasil são mais ou menos as mesmas, apesar da maior ou menor transfiguração que sofreram, ao se nacionalizarem em terras da América, os ritos e os deuses originais. No Caribe e na Bahia, entoam-se cânticos cerimoniais em nagô, yorubá, congo e outras línguas africanas. Nos subúrbios das grandes cidades do sul do Brasil, em compensação, predomina a língua portuguesa, porém nasceram da costa do oeste africano as divindades do bem e do mal que atravessaram os séculos para se transformarem nos fantasmas vingadores dos marginais, a pobre gente humilhada que clama nas favelas do Rio de Janeiro: Força baiana, força africana, força divina, vem cá. Vem ajudá A VENDA DE CAMPONESES Em 1888, aboliu-se a escravidão no Brasil. Porém não se aboliu o latifúndio e neste mesmo ano uma testemunha escrevia do Ceará: “O mercado de gado humano esteve aberto enquanto durou a fome, pois compradores nunca faltaram. Raro era o vapor que não conduzisse grande número de cearenses”53. Meio milhão de nordestinos emigraram para a Amazônia, magnetizados pelas miragens da borracha, até o fim do século; desde então, o êxodo continuou, ao impulso de periódicas secas que assolaram o sertão e das sucessivas marés da expansão dos latifúndios açucareiros dá Zona da Mata. Em 1900, 40 mil vítimas da seca abandonaram o Ceará. Tomavam o caminho habitual por esta época: a rota do norte rumo à selva. Depois, o itinerário mudou. Em nossos dias, os nordestinos emigram rumo ao Centro e ao Sul do Brasil. A seca de 1970 lançou multidões famintas sobre as cidades do Nordeste. Saquearam trens e lojas; aos berros imploravam chuva a São José. Os flagelados lançaram-se na estrada. Um telegrama de abril de 1970 informa: “A polícia do Estado de Pernambuco deteve no último domingo, no município de Belém do São Francisco, 210 camponeses que iam ser vendidos aos proprietários rurais do Estado de Minas Gerais a 18 dólares por cabeça54. Os camponeses eram provenientes da Paraíba e Rio Grande do Norte, dos estados mais castigados pela seca. Em junho, os teletipos transmitem as declarações do chefe da Polícia Federal: seus serviços não dispõem ainda de meios eficazes para pôr fim ao tráfico de escravos e, embora nos últimos meses tenham sido iniciados dez processos de investigação, continua a venda de trabalhadores do Nordeste aos proprietários ricos de outras zonas do pais. 52. Eduardo Galeano, Los dioses e los diablos en las favelas de Rio, em Amaru, nº 10, Lima, junho de 1969. 53. Rodolfo Teófilo, História da Seca do Ceará (1877-1880), Rio de Janeiro, 1922. 54. France Presse, 21 de abril de 1970. Em 1938, a peregrinação de um vaqueiro pelos calcinados caminhos do sertão tinha dado origem a um dos melhores romances da história literária do Brasil. O açoite da seca sobre os latifúndios de gado do interior, subordinados aos engenhos de açúcar do litoral, não cessou e tampouco variou suas conseqüências. O mundo de Vidas Secas continua intacto: o papagaio imitava o latido do cachorro, porque seus donos já quase não faziam uso da voz humana. (Graciliano Ramos, Vidas secas, Havana, 1964) 61 O boom da borracha e o auge do café implicaram grandes levas de trabalhadores nordestinos. Mas também o governo faz uso deste caudal de mão-de-obra barata, formidável exército de reserva para as grandes obras públicas. Do Nordeste vieram, transportados como gado, os homens nus que da noite para o dia levantaram a cidade de Brasília no centro do deserto. Esta cidade, a mais moderna do mundo, está hoje cercada por um vasto cinturão de miséria: terminado o trabalho, os candangos foram expulsos para as cidadessatélites e, sempre prontos para qualquer serviço, vivem dos desperdícios da resplandescente capital. O trabalho escravo dos nordestinos está abrindo, agora, a grande estrada transamazônica, que cortará o Brasil em dois, penetrando a selva até a fronteira com a Bolívia. O plano implica também um projeto de colonização agrária para ampliar “as fronteiras da civilização”: cada camponês recebe dez hectares de superfície, se sobrevive às febres da floresta tropical. No Nordeste há seis milhões de camponeses sem terras, enquanto que quinze mil pessoas são donas da metade da superfície total. A reforma agrária não se realiza nas regiões já ocupadas, onde continua sendo sagrado o direito de propriedade dos latifundiários, mas em plena selva. Isto significa que os flagelados do Nordeste abrirão caminho para a expansão do latifúndio sobre novas áreas. Sem capital, sem meios de trabalho, que significam dez hectares a dois ou três mil quilômetros de distância dos centros de consumo? Muito diferentes são, deduz-se, os propósitos reais do governo: proporcionar mão-de-obra aos latifundiários norte-americanos, que compraram ou usurparam a metade das terras ao norte do rio Negro, e também à United States Steel Co., que recebeu do governo as enormes jazidas de ferro e manganês da Amazônia.55 O CICLO DA BORRACHA: CARUSO INAUGURA UM TEATRO MONUMENTAL NO MEIO DA SELVA Alguns autores calculam que pelo menos meio milhão de nordestinos sucumbiram às epidemias, ao impaludismo, à tuberculose ou ao beribéri na época do auge da goma. “Este sinistro ossário foi o preço da indústria da borracha.”56. Sem nenhuma reserva de vitaminas, os camponeses das terras secas realizavam a longa viagem para a selva úmida. Ali os aguardava, nos pantanosos seringais, a febre. Iam amontados nos porões dos barcos, em tais condições que muitos sucumbiam antes de chegar; antecipavam, assim, o próximo destino. Outros nem sequer conseguiam embarcar. Em 1878, dos oitocentos mil habitantes do Ceará, 120 mil marchavam rumo ao rio Amazonas, porém menos da metade pôde chegar; os restantes foram caindo, abatidos pela fome ou pela doença, nos caminhos do sertão ou nos subúrbios de Fortaleza57. Um anos antes, havia começado uma das sete maiores secas de quantas açoitaram o Nordeste durante o século passado. Não só a febre; também aguardava, na selva, um regime de trabalho bastante parecido com a escravidão. O trabalho pagava-se em espécies - carne seca, farinha de mandioca, rapadura, aguardente - até que o seringueiro saldasse suas dívidas, milagre que raras vezes ocorria. Havia um acordo entre os empresários para não dar trabalho aos operários que tivessem dívidas pendentes; os guardas rurais, postados nas margens dos rios, disparavam contra os fugitivos. As dívidas somavam-se às dívidas. À dívida original, pelo transporte do trabalhador do Nordeste, se agregava a dívida pelos instrumentos de trabalhos, 55. Paulo Schilling, Un nuevo genocidio, em Marcha nº 1501, Montevidéu, 10 dejulho de 1970. Em outubro de 1970, os bispos do Pará denunciaram ante o presidente do Brasil a exploração brutal dos trabalhadores nordestinos por parte das empresas que estão construindo a rodovia Transamazônica. O governo a denomina "obra do século". 56. Aurélio Pinheiro, A margem do Amazonas, São Paulo, 1937. 57. Rodolfo Teófilo, op. cit. 62 facão, faca, baldes, e como o trabalhador comia, e sobretudo bebia, quanto maior era a antigüidade do operário maior se fazia a dívida por ele acumulada. Analfabetos, os nordestinos sofriam sem defesas os passes de prestidigitação da contabilidade dos administradores. Priestly observou, por volta de 1770, que a borracha servia para apagar os traços do lápis sobre o papel. Setenta anos depois, Charles Goodyear descobriu, ao mesmo tempo que o inglês Hancock, o processo de vulcanização da borracha, que lhe dava flexibilidade e o tornava inalterável às mudanças de temperatura. Já em 1850, revestiam-se de borracha as rodas dos veículos. No fim do século, surgiu a indústria do automóvel nos Estados Unidos e na Europa, e com ela nasceu o consumo de pneumáticos em grandes quantidades. A demanda mundial de borracha cresceu verticalmente. A seringueira proporcionava ao Brasil, em 1890, uma décima parte de suas rendas por exportações; vinte anos depois, a proporção subia a 40%, com as vendas quase alcançando o nível do café, apesar de o café estar, por volta de 1910, no zênite de sua prosperidade. A maior parte da produção de borracha provinha então do território do Acre, que o Brasil havia arrancado à Bolívia ao cabo de fulminante campanha militar58. Conquistado o Acre, o Brasil dispunha da quase totalidade das reservas mundiais de borracha; a cotação internacional estava nos picos e os bons tempos pareciam infinitos; mas os seringueiros não os desfrutavam, embora fossem eles que saíam a cada madrugada de suas choças, com vários recipientes amarrados às costas, e se enganchavam nas árvores, as Hevea brasiliensis gigantescas, para sangrá-las. Faziam várias incisões, no tronco e nos ramos grossos próximos à copa; da ferida brotava o látex, suco leitoso e pegajoso que enchia os jarros em algumas horas. À noite, cozinhavam os discos planos da goma, que se acumulariam na administração da propriedade. O cheiro ácido e repelente da borracha impregnava a cidade de Manaus, capital mundial do comércio do produto. Em 1849, Manaus tinha cinco mil habitantes; em pouco mais de meio século cresceu em setenta mil. Os magnatas da borracha edificaram ali suas mansões de arquitetura extravagante e decoração suntuosa, com madeiras preciosas do Oriente, azulejos de Portugal, colunas de mármore de Carrara e móveis de ebanistas franceses. Os novos ricos da selva mandavam trazer os alimentos mais caros do Rio de Janeiro; as melhores modistas da Europa cortavam seus trajes e vestidos; enviavam seus filhos para estudar em colégios ingleses. O Teatro Amazonas, monumento barroco de bastante mau gosto, é o símbolo maior da vertigem daquelas fortunas do princípio do século. O tenor Caruso cantou para os habitantes de Manaus na noite de inauguração, por uma soma fabulosa, depois de subir o rio através da selva. Pavlova, que devia dançar, não pôde passar da cidade de Belém, porém enviou suas desculpas. Em 1913, de um só golpe, o desastre abateu-se sobre a borracha brasileira. O preço mundial, que havia alcançado os doze xelins três anos antes, reduziu-se à quarta parte. Em 1900, o Oriente só havia exportado quatro toneladas de borracha; em 1914, as plantações do Ceilão e da Malásia jogaram mais de setenta mil toneladas no mercado mundial, e cinco anos mais tarde suas exportações já estavam arranhando as quatrocentos mil toneladas. Em 1919, o Brasil, que havia desfrutado o virtual monopólio da borracha, só abastecia a oitava parte do consumo mundial. Meio século depois, o Brasil compra no estrangeiro mais da metade da borracha de que necessita. O que aconteceu? Lá por 1873, Henry Wickham, um inglês que possuía matas de caucho no rio Tapajós e era conhecido por suas manias de botânico, tinha enviado desenhos e folhas da seringueira ao diretor do jardim de Kew, em Londres. Recebeu a ordem de 58. A Bolívia foi mutilada em quase duzentos mil quilômetros quadrados. Em 1902, recebeu uma indenização de dois milhões de libras esterlinas e uma linha férrea que abriria o acesso aos rios Madeira e Amazonas. 63 obter boa quantidade de sementes, as pepitas que a Hevea brasiliensis abrigava em seus frutos amarelos. Tinha de tirá-las de contrabando, porque o Brasil castigava severamente a evasão de sementes, e não era fácil: as autoridades revistavam, com muito cuidado, os barcos. Então, como por encanto, um navio da Inman Line internou-se dois mil quilômetros além do habitual rumo ao interior do Brasil. No regresso, Henry Wickham estava entre seus tripulantes. Tinha escolhido as melhores sementes, depois de pôr os frutos a secar numa aldeia indígena, e as trazia dentro de um camarote fechado, enroladas em folhas de banana e suspensas por cordas no ar para que os ratos a bordo não as alcançassem. Todo o resto do barco ia vazio. Em Belém do Pará, frente à desembocadura do rio, Wickham convidou as autoridades para um grande banquete. O inglês tinha fama de maníaco; sabia-se em toda a Amazônica que colecionava orquídeas. Explicou que levava, por encomenda do rei da Inglaterra, uma série de mudas de orquídeas raras para o jardim de Kew. Como eram plantas delicadíssimas, explicou, as tinha num gabinete hermeticamente fechado, numa temperatura especial: se o abria, arruinavam-se as flores. Assim, as sementes chegaram, intactas, ao porto de Liverpool. Quarenta anos mais tarde, os ingleses invadiam o mercado mundial com a borracha malaia. As plantações asiáticas, racionalmente organizadas a partir dos brotos verdes de Kew, desbancaram sem dificuldade a produção extrativa do Brasil. A prosperidade amazônica virou fumaça. A selva voltou a fechar-se sobre si mesma. Os caçadores de fortunas emigraram para outras bandas; o luxuoso acampamento desintegrou-se. Ficaram, sim, sobrevivendo como podiam, os trabalhadores, que tinha sido trazidos de muito longe para serem postos a serviço da aventura alheia. Alheia, inclusive, para o próprio Brasil, que não tinha feito outra coisa senão responder aos cantos de sereia da demanda mundial de matéria-prima, mas sem participar na menor parcela do verdadeiro negócio da borracha: o financiamento, a comercialização, a industrialização e a distribuição. E a sereia ficou muda. Até que, durante a Segunda Guerra Mundial, a borracha da Amazônica recobrou um novo impulso transitório. Os japoneses tinham ocupado a Malásia e as potências aliadas necessitavam desesperadamente abastecer-se de borracha. Também a selva peruana foi sacudida, naqueles anos 40, pelas urgências da borracha59. No Brasil, a chamada “batalha da borracha” mobilizou novamente os camponeses do Nordeste. Segundo denúncia formulada no Congresso, ao fim da batalha, foram cinqüenta mil os mortos que, derrotados pelas pestes e fome, ficaram apodrecendo entre os seringais. OS PLANTADORES DE CACAU ACENDIAM CHARUTOS COM NOTAS DE QUINHENTOS MIL RÉIS A Venezuela identificou-se com o cacau, planta originária da América, durante muito tempo. “Os venezuelanos, tínhamos sido feitos para vender cacau e distribuir, em nosso solo, quinquilharias do exterior”, diz Rangel60. Os oligarcas do cacau, mais os agiotas e os comerciantes, integravam “uma Santíssima Trindade do atraso”. Junto com o cacau, formando parte de seu cortejo, coexistiam a pecuária nas planícies, o anil e o açúcar,o 59. No começo do século, as montanhas com matas de borracha também tinham oferecido ao Peru as promessas de um novo Eldorado. Francisco García Calderón escrevia em El Peru contemporâneo, por volta de 1908, que a borracha era a grande riqueza do futuro. Em seu romance La casa verde (Barcelona 1966), Mario Vargas Llosa reconstrói a atmosfera febril de Iquitos e na selva, onde os aventureiros despojavam os índios e se despojavam entre si. A natureza se vingava: dispunha da lepra e outras armas. 60. Domingo Alberto Rangel, El processo del capitalismo contemporâneo en Venezuela, Caracas, 1968. 64 tabaco e também algumas minas; porém Gran Cacao foi o nome com que o povo batizou, acertadamente, a oligarquia escravagista de Caracas. À custa do trabalho dos negros, esta oligarquia enriqueceu-se abastecendo de cacau a oligarquia mineira do México e a metrópole espanhola. Em 1873, inaugurou-se na Venezuela uma idade do café; o café exigia, como o cacau, terras de vertentes ou vales cálidos. Apesar da irrupção do intruso, o cacau continuou, de todos os modos, sua expansão, invadindo os solos úmidos de Carúpano. A Venezuela continuou sendo agrícola, condenada ao calvário das quedas cíclicas dos preços do café e do cacau; ambos produtos sortiam os capitais que tornavam possível a vida parasitária, o puro desperdício de seus donos, seus mercadores e seus usureiros. Até que, em 1922, o país converteu-se de súbito num manancial de petróleo. A partir de então, o petróleo dominou a vida do país. O ouro negro vinha dar razão, com quatro séculos de atraso, às fantasias dos conquistadores espanhóis: procurando sem sorte o rei que se banhava em ouro, eles chegaram à loucura de confundir uma aldeazinha de Maracaibo com Veneza e a fétida costa de Pariá com o paraíso terrestre61. Nas últimas décadas do século XIX, iniciou-se a glutonaria dos europeus e dos norte-americanos ao chocolate. O progresso da indústria deu um grande impulso às plantações de cacau do Brasil e estimulou a produção das velhas plantações da Venezuela e do Equador. No Brasil, o cacau fez seu ingresso impetuoso no cenário econômico ao mesmo tempo que a borracha e, como a borracha, deu trabalho aos camponeses do Nordeste. A cidade de Salvador, na Bahia de Todos os Santos, tinha sido uma das mais importantes cidades da América, como capital do Brasil e do açúcar, e ressuscitou então como capital do cacau. Ao sul da Bahia, desde o Recôncavo até o Estado do Espírito Santo, entre as terras baixas do litoral e a cadeia montanhosa da costa, os latifúndios continuam proporcionando, em nossos dias, a matéria-prima de boa parte do chocolate que se consome no mundo. Como a cana-de-açúcar, o cacau trouxe consigo a monocultura e a queimada das matas, a ditadura das cotações internacionais e a penúria sem trégua dos trabalhadores. Os proprietários das plantações, que vivem nas praias do Rio de Janeiro e são mais comerciantes do que agricultores, proíbem que se destine uma só polegada de terra a outras culturas. Seus administradores costumam pagar salários em espécie - charque, farinha, feijões; quando pagam em dinheiro, o camponês recebe por um dia inteiro de trabalho uma diária que eqüivale a uma garrafa de cerveja e deve trabalhar um dia e meio para poder comprar uma lata de leite em pó. O Brasil desfrutou por um bom tempo dos favores do mercado internacional. Não obstante, encontrou na África sérios competidores. Por volta da década de 20, Gana já havia conquistado o primeiro lugar: os ingleses desenvolveram a plantação de cacau em grande escala, com métodos modernos, neste país que por esta época era colônia e se chamava Costa do Ouro. O Brasil caiu para o segundo lugar, e anos mais tarde para o terceiro, como provedor mundial de cacau. Porém, houve mais de um período em que nada fazia crer que um destino medíocre aguardasse as terras férteis do sul da Bahia. Intocados durante toda a época colonial, os solos multiplicavam os frutos: os peões partiam as cascas a golpe de facão, juntavam os grãos, carregavam-nos nos carros para que os burros os levassem até os escoadouros, e era preciso cortar cada vez mais matas, abrir novos clarões, conquistar novas terras ao fio do machado e a tiros de fuzil. Nada sabiam os peões dos preços nem dos mercados. Nem sequer sabiam quem governava o Brasil: até pouco tempo ainda se encontravam trabalhadores nas fazendas convencidos de que Dom Pedro II, o imperador, continuava no trono. Os senhores do cacau esfregavam as mãos: eles sim sabiam, ou acreditavam saber. O consumo de cacau aumentava e com ele aumentavam a cotação e os lucros. O porto de Ilhéus, por onde se embarcava quase todo o cacau, chamava-se “a Rainha do Sul”, e embora definhe hoje, ali ficaram os sólidos 61. Domingo Alberto Rangel, Capital y desarollo, tomo I, La Venezuela agraria, Caracas, 1968. 65 palacetes que os fazendeiros mobiliaram com faustuoso e péssimo gosto. Jorge Amado escreveu vários romances sobre o tema. Assim recria uma etapa de alta de preços: “Ilhéus e a zona do cacau nadaram em ouro, banharam em champanha, dormiram com francesas vindas do Rio de Janeiro. No Trianon, o cabaré mais chique da cidade, o coronel Maneca Dantas acendia charutos com notas de mil réis, repetindo o gesto de todos os fazendeiros ricos do país nas altas anteriores do café, da borracha, do algodão e do açúcar”62. Com a alta de preços, a produção aumentava; depois os preços baixavam. A instabilidade se fez cada vez mais estrepitosa e as terras foram mudando de dono. Começou o tempo dos “milionários mendigos”: os pioneiros das plantações cediam seu sítio aos exportadores, que se apoderavam, executando dívidas, das terras. Em apenas três anos, entre 1959 e 1961, para dar apenas um exemplo, o preço internacional do cacau em amêndoa reduziu-se numa terça parte. Posteriormente, a tendência à alta dos preços não foi capaz de abrir, por certo, as portas da esperança; a Cepal prevê vida curta para a curva de ascenso63. Os grandes consumidores de cacau - Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha Federal, Holanda, França - estimulam a competição entre o cacau africano e o que Brasil e Equador produzem, para comer chocolate mais barato. Provocam, assim, dispondo como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores para sob elas dormir e bananas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça. Os chocolates valem cada vez mais; o cacau, em termos relativos, cada vez menos. Entre 1950 e 1960, as vendas de cacau do Equador aumentaram mais de 30% em volume, mas somente uns 15% em valor. Os 15% restantes foram um presente do Equador aos países ricos, que no mesmo período lhe enviaram, a preços crescentes, seus produtos industrializados. A economia equatoriana depende das vendas de bananas, café e cacau, três alimentos duramente submetidos ao naufrágio dos preços. Segundo dados oficiais, de cada dez equatorianos, sete padecem de desnutrição básica e o país sofre um dos índices de mortalidade mais altos do mundo. BRAÇOS BARATOS PARA O ALGODÃO O Brasil ocupa o quarto lugar no mundo como produtor de algodão; o México, o quinto. Em conjunto, da América Latina provêm mais da quinta parte do algodão que a indústria têxtil consome no planeta inteiro. No fim do século XVIII, o algodão havia-se convertido na matéria-prima mais importante dos viveiros industriais da Europa; a Inglaterra multiplicou por cinco, em trinta anos, suas compras desta fibra natural. O fuso que 62. O título de "coronel" é outorgado no Brasil, com suma facilidade, aos latifundiários tradicionais e, por extensão, a todas as pessoas importantes. O parágrafo foi tirado do romance de Jorge Amado, São Jorge dos Ilhéus (Montevidéu, 1966). Enquanto isto, "nem os meninos tocavam nos frutos do cacau. Sentiam medo daqueles cocos amarelos, de caroços doces, que os mantinham presos a esta vida de frutos de jaca e carne seca". Porque no fundo, "o cacau era o grande senhor a quem até o coronel temia" (Jorge Amado, Cacao, Buenos Aires, 1935). Em outro romance, Gabriela, Cravo e Canela, um personagem fala de Ilhéus em 1925, levantando o dedo, categórico: "Não existe na atualidade, no norte do país, uma cidade de progresso mais rápido." Atualmente, Ilhéus não é nem a sombra do que foi. 63. Referindo-se aos aumentos de preços do cacau, e do café, a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) das Nações Unidas diz que "têm um caráter relativamente transitório", que obedecem "em grande parte a contratempos ocasionais nas colheitas". CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1969, tomo II: La economia de América Latina en 1969, Santiago do Chile, 1970. 66 Arkwright inventou, ao mesmo tempo que Watt patenteava sua máquina de vapor,ea posterior criação do tear mecânico de Cartwright impulsionaram com decisivo vigor a fabricação de tecidos e proporcionaram ao algodão, planta nativa da América, mercados ávidos no ultramar. O porto de São Luiz do Maranhão, que dormira uma longa sesta tropical apenas interrompida por raros navios durante o ano, foi bruscamente despertado pela euforia do algodão: os escravos negros afluíram às plantações do Norte do Brasil, e entre 150 e 200 navios partiam cada ano de São Luiz carregando um milhão de libras de matéria-prima têxtil. Enquanto nascia o século XIX, a crise da economia mineira proporcionava ao algodão mão-de-obra escrava em abundância; esgotados o ouro e os diamantes do Sul, o Brasil parecia ressuscitar no Norte. O porto floresceu, produziu poetas em medida suficiente para que o chamassem de Atenas do Brasil64 mas a fome chegou, com a prosperidade, à região do Maranhão, onde ninguém cuidava de cultivar alimentos. Em alguns períodos, só houve arroz para comer65. Esta história terminou como havia começado: o colapso chegou de súbito. A produção do algodão em grande escala nas plantações do sul dos Estados Unidos, com terras de melhor qualidade e meios mecânicos para descaroçar e enfardar o produto, abateu os preços à terça parte e o Brasil ficou fora da concorrência. Uma nova etapa de prosperidade abriu-se com a guerra da Secessão, que interrompeu os fornecimentos norte-americanos, porém durou pouco. Já no século XX, entre 1934 e 1939, a produção brasileira de algodão incrementou-se num ritmo impressionante: de 126 mil toneladas passou a mais de 320 mil. Então sobreveio um novo desastre: os Estados Unidos jogaram seus excedentes no mercado mundial e o preço caiu. Os excedentes agrícolas norte-americanos são, como se sabe, o resultado dos fortes subsídios que o Estado outorga aos produtores: a preços de dumping e como parte dos programas de ajuda exterior, os excedentes se espalham pelo mundo. Assim, o algodão foi o principal produto de exportação do Paraguai até que a concorrência ruinosa do algodão norte-americano o deslocou dos mercados e a produção paraguaia reduziu-se, desde 1952, à metade. Assim o Uruguai perdeu o mercado canadense para seu arroz. Assim o trigo da Argentina, um país que tinha sido o celeiro do planeta, perdeu sua importância nos mercados internacionais. O dumping norte-americano do algodão não impediu que uma empresa norteamericana, a Anderson Clayton and Co., detenha o império deste produto na América Latina, nem impediu que, através dela, os Estados Unidos comprem algodão mexicano para revendê-lo a outros países. O algodão latino-americano continua vivo no comércio mundial, aos trancos e barrancos, graças a seus baixíssimos custos de produção. Inclusive as cifras oficiais, máscaras da realidade, delatam o miserável nível da retribuição do trabalho. Nas plantações do Brasil, os salários de fome se alternam com o trabalho servil; nas da Guatemala os proprietários orgulham-se de pagar salários de dezenove quetçais por mês (o quetçal eqüivale nominalmente ao dólar) e, como se fosse muito, eles mesmos advertem que a maior parte se liquida em espécies ao preço por eles fixado66; no México, os diaristas que deambulam de safra em safra cobrando um dólar e meio por jornada não só padecem o subemprego, mas também, e como conseqüência, a subnutrição, e muito pior é a situação dos trabalhadores do algodão da Nicarágua; os salvadorenhos que fornecem algodão aos industriais têxteis do Japão consomem menos calorias e proteínas que os famintos hindus. Para a economia do Peru, o algodão é a segunda fonte agrícola de divisas. José Carlos Mariátegui observou que o capitalismo estrangeiro, em sua perene busca de terras, braços e mercados, tendia a apoderar-se das culturas de exportação do Peru, através da execução de hipotecas 64. Roberto C. Simonsen, op. cit. 65. Caio Prado Júnior,Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, 1942. 66. Comité Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, Guatemala. Tenencia de la tierra y desarrollo socioeconómico del setor agrícola, Washington, 1965. 67 dos fazendeiros endividados67. Quando o governo nacionalista do general Velasco Alvarado chegou ao poder em 1968, estava em exploração menos da sexta parte das terras do país aptas para a exploração intensiva, a renda per capita da população era quinze vezes menor que a dos Estados Unidos e o consumo de calorias aparecia entre os mais baixos do mundo, porém a produção de algodão continuava, como a do açúcar, regida por critérios alheios ao Peru, como havia denunciado Mariátegui. As melhores terras, as campinas da costa, estavam em mãos de empresas norte-americanas ou latifundiários que só eram nacionais num sentido geográfico, como a burguesia de Lima. Cinco grandes empresas entre elas duas norte-americanas: a Anderson Clayton e a Grace - tinham em suas mãos a exportação do algodão e do açúcar e contavam também com seus próprios “complexos agro-industriais” de produção. As plantações de açúcar e algodão da costa, supostos focos de prosperidade e progresso por oposição aos latifúndios da serra, pagavam aos peões salários de fome até que a reforma agrária de 1969 as expropriou e as entregou, em cooperativas, aos trabalhadores. Segundo o Comité Interamericano de Desenvolvimento agrícola, a renda de cada membro das famílias de assalariados da costa só chegava aos cinco dólares mensais68. A Anderson Clayton and Co. conserva trinta filiais na América Latina, e não apenas se ocupa em vender algodão mas, além disso, monopólio horizontal, dispõe de uma rede que abarca o financiamento e a industrialização da fibra e de seus derivados, e produz também alimentos em grande escala. No México, por exemplo, embora não possua terras, exerce de todos os modos seu domínio sobre a produção de algodão; em suas mãos estão, de fato, os oitocentos mil mexicanos que o colhem. A empresa compra a preço muito baixo a excelente fibra de algodão mexicano, porque previamente concede créditos aos produtores com a obrigação de que vendam as colheitas ao preço com que ela abra o mercado. Aos adiantamentos em dinheiro se soma o fornecimento de fertilizantes, sementes, inseticidas; a empresa se reserva o direito de supervisionar os trabalhos de fertilização, semeadura e colheita. Fixa a tarifa que lhe apetece para descaroçar o algodão. Usa as sementes em suas fábricas de azeite, graxa e margarinas. Nos últimos anos, a Clayton, “não contente em dominar todo o comércio de algodão, irrompeu até na produção de doces e chocolates, comprando recentemente a empresa Luxus”69. Atualmente, a Anderson Clayton é a principal firma exportadora de café do Brasil. Em 1950, interessou-se pelo negócio. Três anos depois, já tinha destronado a Américan Coffee Corporation. No Brasil é, além disso, a primeira produtora de alimentos, e figura entre as trinta e cinco empresas mais poderosas do país. BRAÇOS BARATOS PARA O CAFÉ Há quem garanta que o café é quase tão importante como o petróleo no mercado internacional. Em princípios da década de 50, a América Latina abastecia as quatro quintas partes do café que se consumia no mundo; a concorrência do café robusta, da África, de pior qualidade mas de preço mais baixo, reduziu a participação latino-americana nos anos seguintes. Apesar disso, a sexta parte das divisas que a região obtém no exterior provém, atualmente, do café. As flutuações dos preços afetam quinze países do sul do rio Bravo. O Brasil é o maior produtor do mundo; do café ainda obtém o grosso de suas receitas por exportações. El Salvador, Guatemala, Costa Rica e Haiti, em grande medida, dependem 67. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, 1970. 68. Comité Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, Peru. Tenencia de la tierra e desarrollo socioeconómico del sector agrícola. Washington, 1965. 69. Alonso Aguilar M. e Fernando Carmona, México: riqueza y miseria, México, 1968. 68 do café, que além disso fornece dois terços das divisas da Colômbia. O café trouxe consigo a inflação ao Brasil: , entre 1824 e 1854, o preço de um homem se multiplicou por dois. Nem o algodão do Norte nem o açúcar do Nordeste, já esgotados os ciclos da prosperidade, podiam pagar aqueles caros escravos. O Brasil deslocou-se rumo ao Sul. Além da mão-de-obra escrava, o café utilizou o braço dos imigrantes europeus, que entregavam aos proprietários a metade de suas colheitas, num regime de meeiro que ainda hoje predomina no interior do Brasil. Os turistas que atualmente atravessam as matas da Tijuca para nadar nas águas da barra ignoram que ali, nas montanhas que rodeiam o Rio de Janeiro, houve grandes cafezais há mais de um século. Pelos flancos da serra, as plantações continuaram, rumo ao Estado de São Paulo, sua desenfreada caça do húmus de novas terras virgens. Já agonizava o século quando os cafeicultores, convertidos na nova elite social do Brasil, apontaram o lápis e fizeram as contas: eram mais baratos os salários de subsistência do que a compra e a manutenção dos escassos escravos. Aboliu-se a escravidão em 1888, e ficaram assim inauguradas as formas combinadas de servidão feudal e trabalho assalariado que persistem em nossos dias. Legiões de trabalhadores “livres” acompanhariam, desde então, a peregrinação do café. O vale do rio Paraíba converteu-se na zona mais rica do país, porém foi rapidamente aniquilado por esta planta que, cultivada num sistema destrutivo, ia deixando às suas costas matas arrasadas, reservas naturais esgotadas e decadência geral. A erosão arruinava, sem piedade, as terras antes intactas e, de saque em saque, ia baixando, seus rendimentos, debilitando as plantas e tornando-as vulneráveis as pragas. O latifúndio do café invadiu a vasta meseta púrpura do oeste de São Paulo, com métodos de exploração menos bestais, converteu-a em “mar de café”, e continuou avançando para oeste. Chegou às ribeiras do Paraná; à frente das savanas de Mato Grosso, desviou-se rumo ao sul para deslocar-se, nestes últimos anos, de novo rumo ao oeste, já por cima das fronteiras do Paraguai. Atualmente, São Paulo é o estado mais desenvolvido do Brasil porque contém o centro industrial do país, porém em suas plantações de café ainda abundam “moradores vassalos” que pagam com seu trabalho e o de seus filhos o aluguel da terra. Nos anos prósperos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, a voracidade dos cafeicultores determinou a virtual abolição do sistema que permitia aos trabalhadores das plantações cultivar alimentos por conta própria. Só podem fazê-lo, agora, em troca de uma renda que pagam trabalhando sem cobrar. Além disso, o latifundiário conta com colonos contratados, aos quais permite realizar culturas temporárias, porém em troca de que iniciem novos cafezais em seu benefício. Quatro anos depois, quando os grãos amarelos colorem as plantas, a terra multiplica seu valor e então chega, para o colono, o tempo de mudança. Na Guatemala, as plantações de café pagam ainda menos do que as de algodão. Na vertente do sul, os proprietários dizem retribuir com quinze dólares mensais o trabalho dos milhares de indígenas que baixam cada ano do altiplano até o sul, para vender seus braços nas colheitas. As fazendas contam com polícia privada; ali, como se diz corretamente, “um homem é mais barato do que uma mula” e o aparato de repressão encarrega-se para que continue sendo. Na região de Alta Verapaz a situação é ainda pior. Ali não há caminhões nem carretas, porque os fazendeiros não precisam deles: sai mais barato transportar o café no lombo do índio. Para a economia de El Salvador, pequeno país em mãos de um punhado de famílias oligárquicas, o café tem uma importância fundamental: a monocultura obriga a comprar no exterior feijões - única fonte de proteína para a alimentação popular –milho hortaliça e outros alimentos que tradicionalmente o país produzia. A quarta parte dos salvadorenhos morre vítima de avitaminose. Em relação ao Haiti, tem a taxa de mortalidade mais alta da América Latina; mais da metade de sua população infantil padece de anemia. O salário legal pertence, no Haiti, aos domínios da ficção; nas plantações de café, o salário real oscila 69 entre sete e quinze centavos de dólar por dia. Na Colômbia, território de vertentes, o café desfruta a hegemonia. Segundo informe publicado pela revista Time de 1962, os trabalhadores só recebem cinco por cento, através dos salários, do preço total que o café obtém em sua viagem desde a planta para os lábios do consumidor norte-americano70. Ao contrário do Brasil, o café da Colômbia não é produzido, em sua maior parte, nos latifúndios, mas em minifúndios que tendem a pulverizar-se cada vez mais. Entre 1955 e 1960, apareceram cem mil plantações novas, em sua maioria com extensões ínfimas, de menos de um hectare. Pequenos e muito pequenos agricultores produzem três quartas partes do café que a Colômbia exporta; 96% das plantações são minifúndios71. Juan Valdés sorri nos anúncios, porém a atomização da terra abate o nível de vida dos agricultores, de renda cada vez menor, e facilita as manobras da Federação Nacional de Cafeicultores, que representa os interesses dos grandes proprietários e que virtualmente monopolizam a comercialização do produto. As parcelas de menos de um hectare geram uma renda de fome: cento e trinta dólares, como média, por ano72. A COTAÇÃO DO CAFÉ JOGA NO FOGO AS COLHEITAS E MARCA O RITMO DOS CASAMENTOS O que é isto? O eletroencefalograma de um louco? Em 1889, o café valia dois centavos e seis anos depois tinha subido a nove; três anos mais tarde tinha baixado a quatro centavos e cinco anos depois a dois. Este foi um período ilustrativo73. Os gráficos do café, como os de todos os produtos tropicais, se assemelha sempre com os quadros clínicos de epilepsia, porém a linha sempre cai verticalmente quando registra o valor de troca do café, frente às maquinarias e os produtos industrializados. Carlos Lleras Restrepo, presidente da Colômbia, queixava-se em 1967: neste ano, seu país teve de pagar 57 sacas de café para comprar um jipe, e em 1957 bastavam 17 sacas. Ao mesmo tempo, o secretário de agricultura de São Paulo, Herbert Levi, fazia cálculos mais dramáticos: para comprar um trator em 1967, o Brasil necessitava de 350 sacas de café, porém 14 anos antes 70 sacas teriam sido suficientes. O presidente Getúlio Vargas arrebentou o coração com um tiro, em 1954, e a cotação do café não foi alheia à tragédia: “Veio a crise da produção do café - escreveu Vargas em seu esplêndido testamento - e valorizou-se nosso principal produto. Pensamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre nossa economia, a ponto de ver-nos obrigados a ceder.” Vargas quis que seu sangue fosse o preço do resgate do povo brasileiro. Se a colheita do café de 1964 tivesse sido vendida, no mercado norte-americano, a preços de 1955, o Brasil teria recebido 200 milhões de dólares a mais. A baixa de um só centavo na cotação do café implica uma perda de 65 milhões de dólares usurpados pelo país consumidor, Estados Unidos, ao Brasil, país produtor.Porém, em beneficio de quem? Do cidadão que bebe café? Em julho de 1968, o preço do café brasileiro nos Estados Unidos tinha baixado 30% em relação a janeiro de 1964. Todavia, o consumidor norte-americano não pagava mais barato seu café, senão 13% mais caro. Os intermediários ficaram, pois, entre 1964 e 68, com este 13% e com aquele 30%: ganharam nas duas pontas. No mesmo 70. Mario Arrubla, Estudios sobre el subdesarrollo colombiano, Medellín, 1969. O preço se descompõe assim: 40% para os intermediários, exportadores e importadores; 10% para os impostos de ambos governos; 10% para os transportadores; 5% para a propaganda do Escritório PanAmericano do Café, em Washington; 30% para os donos das plantações e 5% para os salários operários. 71. Banco Cafetero, La industria cafetera en Colombia, Bogotá, 1962. 72. Panorama económico latino-américano, nº 87, Havana, setembro de 1963. 73. Pierre Monbeig, Pionniers et planteurs de São Paulo, Paris, 1952. 70 espaço de tempo, os preços recebidos pelos produtores brasileiros, por cada saca de café reduziram-se à metade74. Quem são os intermediários? Seis empresas norte-americanas dispõem de mais da terça parte do café que entra nos Estados Unidos: são as firmas dominantes em ambos os extremos da operação75. Assim como a United Fruit exerce o monopólio da venda de bananas da América Central, Colômbia e Equador, e ao mesmo tempo monopoliza a importação e distribuição de bananas nos Estados Unidos, são empresas norte-americanas as que manejam o negócio do café, e o Brasil só participa como fornecedor e como vítima. É o Estado brasileiro quem suporta o ônus dos estoques, quando a superprodução obriga acumular reservas. Acaso não existe, todavia, um Acordo Internacional de Café para equilibrar os preços no mercado? O Centro Mundial de Informação do Café publicou em Washington, em 1970, um amplo documento destinado a convencer os legisladores para que os Estados Unidos prorrogassem, em setembro, a vigência da lei complementar correspondente à vigência do convênio. O informe assegura que o convênio beneficiou em primeiro lugar os Estados Unidos, consumidores de mais da metade do café que se vende no mundo. A compra do grão continua sendo uma gangorra. No mercado norte-americano, o irrisório aumento do preço do café (em benefícios, como vimos, dos intermediários) foi muito menor do que a alta generalizada do custo de vida e do nível interno dos salários; o valor das exportações dos Estados Unidos elevou-se, entre 1960 e 1969, uma sexta parte, e no mesmo período o valor das importações de café, ao invés de aumentar, diminuiu. Além disso, é preciso levar em conta que os países latino-americanos aplicam as deterioradas divisas que obtêm com a venda do café, na compra destes produtos encarecidos norte-americanos. O café beneficia muito mais a quem o consome do que a quem o produz. Nos Estados Unidos e na Europa, gera rendas e empregos e mobiliza grandes capitais; na América Latina paga salários de fome e acentua a deformação econômica dos países postos a seu serviço. Nos Estados Unidos o café proporciona trabalho a mais de 600 mil pessoas: os norte-americanos que distribuem e vendem café latino-americano ganham salários infinitamente mais altos do que os brasileiros, colombianos, guatemaltecos, salvadorenhos ou haitianos que semeiam e colhem o grão nas plantações. Por outro lado, a Cepal nos informa, por incrível que pareça, que o café despeja mais riqueza nas arcas estatais dos países europeus, do que a riqueza que deixa em mãos dos países produtores. De fato, “em 1960 e 196 1, as cargas fiscais totais impostas pelos países da Comunidade Européia ao café ascenderam a cerca de 700 milhões de dólares, enquanto as rendas dos países abastecedores (em termos de valor FOB das exportações) só chegaram a 600 milhões de dólares”76. Os países ricos, pregadores do comércio livre, aplicam o mais rígido protecionismo contra os países pobres: convertem tudo em que tocam em ouro para si e em lata para os demais - incluindo a própria produção dos países subdesenvolvidos. O mercado internacional do café copia de tal maneira o modelo de um funil, que o Brasil aceitou recentemente impor altos impostos a suas exportações de café solúvel para proteger - protecionismo ao contrário - os interesses dos fabricantes norte-americanos do mesmo artigo. O café instantâneo produzido pelo Brasil é mais barato e de melhor qualidade do que a florescente indústria dos Estados Unidos, porém no regime da livre concorrência, está visto, uns são mais livres do que outros. Neste reino do absurdo organizado, as catástrofes naturais convertem-se em bênçãos do céu para os países produtores. As agressões da natureza levantam os preços e 74. Dados do Banco Central, Instituto Brasileiro de Café e FA O,Revista Fator, nº 2, Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1968. 75. Segundo a investigação realizada pela Federal Trade Comission, Cid Silveira, Café, um drama na economia nacional, Rio de Janeiro, 1962. 76. CEPAL, El comercio internacional y el desarrollo de América Latina, México-Buenos Aires, 1964. 71 permitem mobilizar as reservas acumuladas. As ferozes geadas que assolaram a colheita de 1969 no Brasil condenaram à ruína numerosos produtores sobretudo os mais débeis, porém subiram a cotação internacional do café e aliviaram consideravelmente o estoque de sessenta milhões de sacas - equivalentes a dois terços da dívida externa do Brasil -, que o Estado tinha acumulado para defender os preços. O café armazenado, que estava deteriorando-se e perdia progressivamente seu valor, podia ter acabado na fogueira. Não seria a primeira vez. Em conseqüência da crise de 1929, que derrubou os preços e contraiu o consumo, o Brasil queimou 78 milhões de sacas de café: assim ardeu em chamas o esforço de 200 mil pessoas durante cinco safras77.Aquela foi uma típica crise de uma economia colonial: veio de fora. A brusca queda dos lucros dos plantadores e dos exportadores de café nos anos 30 provocou, além do incêndio do café, um incêndio da moeda. Este é o mecanismo usual na América Latina para “socializar as perdas” do setor exportador: compensa-se em moeda nacional, através das desvalorizações, o que se perde em divisas. Porém, o auge dos preços não tem melhores conseqüências. Deflagra grandes semeaduras, um crescimento da produção, uma multiplicação da área destinada ao cultivo do produto afortunado. O estímulo funciona como um bumerangue, porque a abundância derruba os preços e provoca o desastre. Isto foi o que ocorreu em 1958, na Colômbia, quando se colheu o café semeado com tanto entusiasmo quatro anos antes, e ciclos semelhantes se repetiram ao longo da história deste país. A Colômbia depende do café e sua cotação exterior a tal ponto que, “em Antióquia, a curva dos casamentos responde agilmente à curva dos preços do café. É típico de uma estrutura dependente: até o momento propício para uma declaração de amor em uma colina antioquenha se decide na bolsa de Nova lorque”78. DEZ ANOS QUE SANGRARAM A COLÔMBIA Lá pelos anos 40, o prestigioso economista colombiano Luis Eduardo Nieto Arteta escreveu uma apologia do café. O café tinha conseguido o que nunca conseguiram, nos ciclos anteriores econômicos do país, as minas nem o tabaco, nem o anil nem a quina: dar nascimento a uma ordem madura e progressista. As fábricas têxteis e outras indústrias leves nasceram, não por acaso, nos departamentos produtores de café: Antióquia, Caldas, Valle del Cauca, Cundinamarca. Uma democracia de pequenos produtores agrícolas, dedicados ao café, converteria os colombianos em “homens moderados e sóbrios”. “O pressuposto mais vigoroso - dizia -, para a normalidade no funcionamento da vida política colombiana foi a consecução de uma peculiar estabilidade econômica. O café a produziu, e com ela o sossego e o comedimento.”79 Pouco tempo depois, explodiu a violência. Na realidade, os elogios ao café não interromperam, como por arte de magia, a longa história de revoltas e repressões sanguinárias na Colombia. Desta vez, durante dez anos, entre 1948 e 1957, a guerra camponesa abarcou os minifúndios e os latifúndios, os desertos e os campos semeados, os vales e as selvas e os páramos andinos, empurrou comunidades inteiras ao êxodo, gerou guerrilhas revolucionárias e bandos de criminosos; converteu o país inteiro num cemitério: estima-se que deixou um saldo de 180 mil mortos.80 O banho de sangue coincidiu com um período de euforia econômica para a classe dominante: é lícito confundir prosperidade de uma classe com o 77. Roberto Simonsen, op. cit. 78. Mario Arrubla, op. cit. 79. Luis Eduardo Nieto Arteta, Ensayos sobre economia colombiana, Medellín, 1969. 80. Germán Guzmán Campos, Orlando Fals Borda e Eduardo Umaña Luna, La violencia en Colombia. Estudio de un processo social. Bogotá, 1963-64. 72 bem-estar do país? A violência começou como um enfrentamento entre liberais e conservadores, mas a dinâmica do ódio de classes foi acentuando cada vez mais seu caráter de luta social. Jorge Eliécer Gaitán, o caudilho liberal a quem a oligarquia de seu próprio partido, entre despicativa e temerosa, chamava de “El Lobo” ou “El Badulaque”, tinha ganho um formidável prestígio popular e ameaçava a ordem estabelecida; quando o assassinaram a tiros, desencadeou-se o furacão. Primeiro foi a maré humana incontida nas ruas da capital, o espontâneo bogotazo, e em seguida a violência derivou para o campo, onde, há tempos, os bandos organizados pelos conservadores já vinham semeando o terror. O ódio longamente mastigado pelos camponeses explodiu e, enquanto o governo enviava policiais e soldados para cortar testículos, abrir ventres de mulheres grávidas ou jogar crianças ao ar para espetá-las na ponta da baioneta, sob a palavra de ordem de “não deixar nem semente”, os doutores do Partido Liberal recolhiam-se em suas casas sem alterar seus bons modos nem o tom cavalheiresco de seus manifestos ou, no pior dos casos, viajavam para o exílio. Foram os camponeses que forneceram os mortos. A guerra alcançou extremos de incrível crueldade, impulsionada por um desejo de vingança que crescia com a própria guerra. Surgiram novos estilos da morte: no “corte gravata”, a língua ficava pendendo por um buraco no pescoço. Sucediam-se as violações, os incêndios, os saques; os homens eram esquartejados ou queimados vivos, escalpelados ou cortados lentamente em pedaços; os rios ficavam tingidos de vermelho; os bandoleiros outorgavam a permissão de viver, em troca de tributos em dinheiro ou carregamentos de café, e as forças repressivas expulsavam e perseguiam inúmeras famílias que corriam para as montanhas em busca de refúgio; nas matas pariam as mulheres. Os primeiros chefes guerrilheiros, animados pela necessidade de revanche, mas sem horizontes políticos claros, lançavam-se à destruição pela destruição, o desafogo a sangue e fogo sem outros objetivos. Os nomes dos protagonistas da violência (Tenente Gorila, Malasombra, El Cóndor,Pielroja,ElVampiro, Avenegra, El Terror del Llano) não sugerem uma epopéia da revolução. Porém o tom de rebelião social imprimia-se até nas cantigas que cantavam os bandos: Eu sou puro camponês, e não comecei a peleja, mas se procuram barulho dançam com a mais feia. E em definitivo, o terror indiscriminado aparecia, também, misturado com as reivindicações de justiça, na Revolução Mexicana de Emiliano Zapata e Pancho Villa. Na Colômbia, a raiva explodia de qualquer maneira, mas não é casual que daquela época de violência nascessem as guerrilhas políticas posteriores que, levantando bandeiras da revolução social, chegaram a ocupar e controlar extensas zonas do país. Os camponeses, assediados pela repressão, emigraram para as montanhas e ali organizaram “repúblicas independentes”. As chamadas “repúblicas independentes” continuaram oferecendo refúgio aos perseguidos depois de que os conservadores e liberais assinaram, em Madri, o pacto de paz. Os dirigentes de ambos os partidos, num clima de brindes e pombas, resolveram alternar-se sucessivamente no poder, no altar da concórdia nacional, e começaram, já de comum acordo, a faina de “limpeza” contra os focos de perturbação do sistema. Numa única operação, para abater os rebeldes de Marquetalia, dispararam um milhão e meio de projéteis, lançaram vinte mil bombas e mobilizaram, por terra e por ar, 16 mil soldados81. Em plena violência, havia um oficial que dizia: “Não me tragam estórias. Tragam-me orelhas”. O sadismo da repressão e a ferocidade da guerra poderiam explicar-se por razões 81. Germán Guzmán., La violencia en Colombia (parte descriptiva), Bogotá, 1968. 73 clínicas? Foram o resultado da maldade natural de seus protagonistas? Um homem que cortou as mãos de um sacerdote, pôs fogo em seu corpo e logo o despedaçou e o lançou num esgoto, gritava, quando a guerra já tinha acabado: “Eu não sou culpado. Eu não sou culpado. Deixem-me só”. Tinha perdido a razão, porém de certo modo a tinha: o horror da violência não fez mais do que pôr em evidência o horror do sistema. Porque o café não trouxe consigo a felicidade e a harmonia, como havia profetizado Nieto Arteta. É verdade, que, graças ao café, ativou-se a navegação do Magdalena, nasceram linhas férreas e estradas e se acumularam capitais que deram origem a certas indústrias, mas a ordem oligárquica interna e dependência econômica ante os centros estrangeiros de poder não só não foram afetados pelo processo ascendente do café, como, pelo contrário, tornaram-se infinitivamente mais angustiantes para os colombianos. Quando a década da violência chegava a seu fim, as Nações Unidas publicavam os resultados de sua pesquisa sobre a nutrição na Colômbia. Desde então a situação não melhorou em nada: 88% das crianças escolares de Bogotá sofria de avitaminose, 78% padecia arriboflavinose e mais da metade tinha um peso abaixo do normal; entre os operários, a avitaminose castigava 71% e entre os camponeses do vale de Tensa, 78%82. A pesquisa mostrou “uma marcada insuficiência de alimentos protetores - leite e seus derivados, ovos, carne, pescado, e algumas frutas e hortaliças -, que fornecem conjuntamente proteínas, vitaminas e sais”. Não só à luz do fogo das balas se revela uma tragédia social. As estatísticas indicam que a Colômbia ostenta um índice de homicídios sete vezes maior do que o dos Estados Unidos, mas também indicam que a quarta parte dos colombianos em idade ativa carecem de trabalho fixo. Duzentos e cinqüenta mil pessoas emergem cada ano no mercado de trabalho; a indústria não gera novos empregos e no campo a estrutura de latifúndios e minifúndios tampouco necessita de mais braços: pelo contrário, expulsa sem cessar novos desempregados para os subúrbios das cidades. Há na Colômbia mais de um milhão de crianças sem escola. Isto não impede que o sistema se dê ao luxo de manter 41 universidades diferentes, públicas ou privadas, cada uma com suas diversas faculdades e departamentos, para educação dos filhos da elite e da minoritária classe média83. A VARINHA MAGICA DO MERCADO MUNDIAL DESPERTA A AMÉRICA CENTRAL As terras da faixa centro-americana chegaram à metade do século passado sem que se lhes infligisse maiores danos. Além dos alimentos destinados ao consumo, a América Central produzia cochinilhas e anil, com poucos capitais, escassa mão-de-obra e preocupações mínimas. A cochinilha, inseto que nascia e crescia sem problemas sobre a espinhosa superfície dos cactos, desfrutava, como o anil, de uma continuada demanda na indústria têxtil européia. Ambos colorantes naturais morreram de morte sintética quando, por volta de 1850, os químicos alemães inventaram as anilinas e outras tintas mais baratas para tingir os tecidos. Trinta anos depois desta vitória dos laboratórios sobre a natureza, chegou a vez do café. A América Central transformou-se. De suas plantações recém-nascidas vinham, por volta de 1880, pouco menos da sexta parte da produção mundial de café. Foi através deste produto que a região ficou definitivamente incorporada ao mercado internacional. Aos compradores ingleses sucederam-se os alemães e norte-americanos; os consu82. Nações Unidas, Análisis y proyecciones del desarrollo económico, III, em El desarrollo económico de Colombia, Nova Iorque, 1957. 83. O professor Germán Rama descobriu que algumas destas veneráveis casas acadêmicas tém em suas bibliotecas, como acervo mais importante, a coleção encadernada de Seleções Reader's Digest. Germán W. Rama, Educación y movilidad social en Colombia, Eco, nº 116 Bogotá, dezembro de 1969. 74 midores estrangeiros deram vida a uma burguesia nativa do café, que irrompeu no poder político, através da revolução liberal de Justo Rufino Barrios, no começo da década de 1870. A especialização agrícola, ditada de fora, despertou o furor da apropriação de terras e de homens; o latifúndio atual nasceu, na América Central, sob as bandeiras da liberdade de trabalho. Assim passaram a mãos privadas grandes extensões de terras baldias, que eram de ninguém ou da Igreja ou do Estado, e aconteceu o frenético saque às comunidades indígenas. Os camponeses que se negavam a vender suas terras eram incorporados, à força, ao exército; as plantações converteram-se em cemitérios de índios; ressuscitaram as ordenações coloniais, o recrutamento forçado de mão-de-obra e das leis contra a vadiagem. Os trabalhadores fugitivos eram perseguidos a tiros; os governos liberais modernizavam as relações de trabalho instituindo os salários, mas os assalariados se convertiam em propriedade dos novos empresários do café. Em nenhum momento, é claro, ao longo de todo o século transcorrido desde então, os períodos de altos preços se fizeram notar sobre o nível dos salários, que continuam sendo retribuições de fome, sem que as melhores cotações do café se traduzissem em aumentos. Este foi um dos fatores que impediram o desenvolvimento do mercado interno do consumo nos países centro-americanos84. Como em todas as partes, o cultivo do café desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de alimentos destinados ao mercado interno. Também estes países foram condenados a padecer uma crônica escassez de arroz, feijões, trigo, tabaco e carne. Apenas sobreviveu uma miserável agricultura de subsistência, nas terras altas e quebradas onde o latifúndio encurralou os indígenas ao apropriar-se das terras baixas de maior fertilidade. Nas montanhas, cultivando em minúsculas parcelas o milho e os feijões imprescindíveis para sobreviverem, habitam, durante uma parte do ano, os indígenas que oferecem seus braços, na colheita, às plantações. Estas são as reservas de mão-de-obra do mercado mundial. Em um século, a situação não mudou: o latifúndio e o minifúndio constituem, juntos, a unidade de um sistema que se apoia sobre a cruel exploração da mão-de-obra nativa. Em geral, e muito especialmente na Guatemala, esta estrutura de apropriação da força de trabalho aparece identificada com todo o sistema de preconceito racial: os índios padecem o colonialismo interno dos brancos e dos mestiços, ideologicamente bendito pela cultura dominante, do mesmo modo que os países centro-americanos sofrem o colonialismo externo85. Desde o princípio do século, apareceram também, em Honduras, Guatemala e Costa Rica, os “enclaves” bananeiros. Para transportar o café aos portos, já tinham construído algumas linhas ferroviárias, financiadas pelo capital nacional. As empresas norteamericanas se apropriaram destas ferrovias e criaram outras, exclusivamente para levar a produção das suas plantações, ao mesmo tempo que implantavam o monopólio dos serviços de luz elétrica, correios, telégrafos, telefones e - serviço público não menos importante - também o monopólio da política: em Honduras, “uma mula custa mais do que um deputado” e em toda a América Central, os embaixadores dos Estados Unidos presidem mais do que os presidentes. A United Fruit Co. deglutiu seus competidores na produção e venda de bananas, transformou-se na principal latifundiária da América Central e suas filiais açambarcaram o transporte ferroviário e marítimo; fez-se dona dos portos, e dispõe de alfândega e policia próprias. O dólar converteu-se, de fato, na moeda nacional centro-americana. 84. Edelberto Torres-Rivas, Procesos y estructuras de una sociedad dependiente (Centroamérica), Santiago do Chile, 1959. 85. Carlos Guzmán Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación histórico-social, México, 1970. 75 OS FLIBUSTEIROS NA ABORDAGEM Na concepção geopolítica do imperialismo, a América Central não é mais do que um apêndice natural dos Estados Unidos. Nem sequer Abraham Lincoin, que também pensou em anexar seus territórios, pôde escapar aos ditados do “destino manifesto” da grande potência sobre suas áreas contíguas86. Em meados do século passado, o flibusteiro William Walker, que operava em nome dos banqueiros Morgan e Garrison, invadiu a América Central à frente de uma quadrilha de assassinos, que se autodenominavam “a falange americana dos imortais”. Com o apoio oficioso do governo dos Estados Unidos, Walker roubou, matou, incendiou e se proclamou presidente, em expedições sucessivas, da Nicarágua, El Salvador e Honduras. Reimplantou a escravidão nos territórios que sofreram sua devastadora ocupação, continuando, assim, a obra filantrópica de seu país nos Estados do México que tinham sido ocupados, pouco antes. Em seu regresso aos Estados Unidos, foi recebido como um herói nacional. Desde então sucederam-se as invasões, as intervenções, os bombardeios, os empréstimos obrigatórios e os tratados firmados ao pé do canhão. Em 1912, o presidente William H. Taft afirmava: “Não está longe o dia em que três bandeiras de listras e estrelas marcarão em três lugares eqüidistantes a extensão de nosso território: uma no Pólo Norte, outra no canal do Panamá e a terceira no Pólo Sul. Todo o hemisfério será nosso, de fato, como, em virtude de nossa superioridade racial, já é nosso moralmente”87.Taft dizia que o reto caminho da justiça na política externa dos Estados Unidos “não exclui de modo algum uma ativa intervenção para assegurar a nossas mercadorias e a nossos capitalistas facilidades para as inversões lucrativas”. Nesta mesma época, o ex-presidente Teddy Roosevelt recordava em voz alta a brilhante amputação de terra à Colômbia: - “I took the Canal”-, dizia o novo Prêmio Nobel da Paz, enquanto contava como tinha inventado o Panamá88.A Colômbia recebera, pouco depois, uma indenização de US$ 25 milhões: era o preço de um país nascido para que os Estados Unidos dispusessem de uma via de comunicação entre ambos os oceanos. As empresas apoderavam-se de terras, alfândegas, tesouros e governos; os marines desembarcavam por todas as partes para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos norte-americanos”, álibi exato que utilizariam, em 1965, para apagar com água benta as marcas do crime da República Dominicana. A bandeira envolvia outras mercadorias. O comandante SmedIey D. Butler, que encabeçou muitas das expedições, resumia assim sua própria atividade, em 1935, já aposentado: “Passei 33 anos e 4 meses no serviço ativo, como membro da mais ágil força militar deste país: o Corpo de Infantaria da Marinha. Servi em todas as hierarquias, desde segundo tenente até general-de-divisão. E durante todo este período, passei a maior parte do tempo em funções de pistoleiro de primeira classe para os Grandes Negócios, para Wall Street e para os banqueiros. Em uma palavra, fui um pistoleiro do capitalismo... Assim, por exemplo, em 1914 ajudei a fazer com que o México, e em especial Tampico, se tornassem uma presa fácil para os interesses petrolíferos norte-americanos. Ajudei a fazer com que o Haiti e Cuba fossem lugares decentes para a cobrança de juros por parte do National City Bank... Em 1909-1912 ajudei a purificar a Nicarágua para a casa bancária internacional Brown Brothers. Em 1916, levei a luz à República Dominicana, em nome dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1903, 86. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, tomo III, Los pueblos transplantados. Civilizacion y desarrollo, Buenos Aires, 1970. 87. Gregorio Selser, Diplomacia, garrote y dólares en América Latina, Buenos Aires, 1962. 88. Claude Julien, L'Empire Americain, Paris, 1968. 76 ajudei a ‘pacificar’ Honduras em benefício das companhias frutíferas norte-americanas”89. Nos primeiros anos do século, o filósofo William James tinha ditado uma sentença pouco conhecida: “O país vomitou de uma vez e para sempre a Declaração de Independência...” Para dar apenas um exemplo, os Estados Unidos ocuparam o Haiti durante vinte anos, e ali, nesse país negro que tinha sido o cenário da primeira revolta vitoriosa dos escravos, introduziram a segregação racial e o regime de trabalhos forçados, mataram mil e quinhentos operários em uma de suas operações de repressão (segundo a investigação do Senado norte-americano em 1922) e, quando o governo local se negou a converter o Banco Nacional numa sucursal do National City Bank de Nova Iorque, suspenderam o pagamento do presidente e de seus ministros, para que mudassem de opinião90. Histórias semelhantes se repetiam nas demais ilhas do Caribe e em toda a América Central, o espaço geopolítico do Mare Nostrum do Império, ao ritmo alternado do big stick ou da “diplomacia do dólar”. O Corão menciona a bananeira entre as árvores do paraíso, mas a bananização da Guatemala, Honduras, Costa Rica, Panamá, Colômbia e Equador permite suspeitar que se trata de uma árvore do inferno. Na Colômbia, a United Fruit tinha-se tornado dona do maior latifúndio do país, quando explodiu, em 1928, uma grande greve na costa atlântica. Os trabalhadores nas plantações de bananas foram aniquilados a bala, em frente a uma estação ferroviária. Um decreto oficial fora ditado: “Os homens da força pública ficam livres para castigar pelas armas...” e depois não houve necessidade de baixar nenhum decreto para apagar a matança da memória oficial do país91. Miguel Ángel Asturias narrou o processo da conquista e o saque da América Central. O Papa Verde era Minor Keith, rei sem coroa da região inteira, pai da United Fruit, devorador de países: “Temos portos, ferrovias, terras, edifícios, mananciais - enumerava o presidente -; corre o dólar, fala-se o inglês e se hasteia nossa bandeira...”. Chicago não podia senão sentir orgulho deste filho que marchou com um par de pistolas e regressava para reclamar seu posto entre os imperadores da carne, reis das ferro vias, reis do cobre, reis do chiclete”92. Em o paralelo 42, John dos Passos traçou a rutilante biografia de Keith, biografia da empresa: “Na Europa e Estados Unidos as pessoas começaram a comer bananas, assim que tombaram as selvas através da América Central para semear bananas e construir ferrovias para transportá-las, e cada ano mais vapores da Great White Fleet iam para o norte repletos de bananas; essa é a história do império norte-americano no Caribe e do canal de Panamá e do futuro canal de Nicarágua e os marines e os encouraçados e as baionetas...” As terras ficavam tão exaustas quanto os trabalhadores; às terras roubavam o húmus e aos trabalhadores os pulmões, porém, sempre havia novas terras para explorar e mais trabalhadores para exterminar. Os ditadores, próceres de opereta, velavam, pelo bem 89. Publicado em Common Sense, novembro de 1935. V. Leo Huberman, Man's Worldly Goods. The Story of the Wealth of Nations, Nova Jorque, 1936. 90. William Krehm, Democracia y tiranía en el Caribe, Buenos Aires, 1959. 91. Este é o tema do romance de Alvaro Cepeda Samudio, La casa grande (Buenos Aires, 1967), e também integra um dos capítulos de Cem anos de solidão de Garcia Marquez: "Certamente foi um sonho", insistiam os oficiais. 92. O ciclo compreende os romances Viento fuerte, El papa verde e Los ojos de los enterrados, trilogia publicada em Buenos Aires na década de 50. Em Vientofuerte, um dos personagens, mister Pyle, diz profeticamente: "Se em lugar de comprarmos novas plantações, nós comprássemos, dos produtores particulares, suas frutas, ganharemos muito no futuro." Isto é o que atualmente ocorre na Guatemala: a United Fruit exerce seu monopólio bananeiro através dos mecanismos de comercialização, mais eficazes do que a produção direta, e também menos perigoso. Cabe notar que a produção de banana caiu verticalmente na década de setenta, a partir do momento em que a United Fruit decidiu vender e/ou arrendar suas plantações na Guatemala, ameaçadas pelos fervores da agitação social. 77 estar da United Fruit com o punhal entre os dentes. Depois, a produção de bananas foi decaindo e a onipotência da empresa de frutas sofreu várias crises; mas a América Central continua sendo, em nossos dias, um santuário do lucro para os aventureiros, embora o café, o algodão e o açúcar tenham derrubado os bananais de seu pedestal de privilégio. Todavia as bananas ainda são a principal fonte de divisas para Honduras e Panamá e, na América do Sul, foi até pouco tempo a do Equador.Por volta de 1930, a América Central exportava 38 milhões anuais de cachos e a United Fruit pagava a Honduras um centavo de imposto para cada cacho. Não havia e não há maneira de controlar o pagamento de miniimpostos (que depois subiu um pouquinho), porque a United Fruit exporta e importa o que desejar à margem das alfândegas estatais. A balança comercial e o balanço de pagamentos do país são obras de ficção, a cargo de técnicos de pródiga imaginação. A CRISE DOS ANOS 30: “É UM CRIME MAIOR MATAR UMA FORMIGA DO QUE MATAR UM HOMEM” O café dependia do mercado norte-americano, de sua capacidade de consumo e de seus preços: as bananas eram um negócio norte-americano e para norte-americanos. Veio, de repente, a crise de 1929. O crack da Bolsa de Nova Iorque, que fez rachar os cimentos do capitalismo mundial, caiu no Caribe como um gigantesco bloco de pedra numa poça d’água. Baixaram verticalmente os preços do café e das bananas, e não menos verticalmente desceu o volume de vendas. As expulsões de camponeses recrudesceram com urna violência febril, o desemprego propagou-se no campo e nas cidades, levantou-se uma maré de greves; desapareceram bruscamente os créditos, as inversões e os gastos públicos, os salários dos funcionários do Estado reduziram-se a quase a metade em Honduras, Guatemala e Nicarágua93. As botas dos ditadores não demoraram a esmagar as tampas das marmitas; abria-se a época da política de boa vizinhança em Washington, porém era preciso conter a sangue, e fogo a agitação social que, por todas as partes, fervia. Por volta dos anos 20 - uns mais, outros menos -, permaneceram no poder Jorge Ubico na Guatemala, Maximiliano Hernández Martínez em El Salvador,Tiburcio Carías em Honduras e Anastasio Somoza na Nicarágua. A epopéia de Augusto César Sandino comovia o mundo. A longa luta do chefe guerrilheiro da Nicarágua derivara para a reivindicação da terra e levantava a ira camponesa. Durante sete anos, seu pequeno exército em farrapos combateu, ao mesmo tempo, contra os doze mil invasores norte-americanos e contra os membros da guarda nacional. As granadas eram feitas de latas de sardinhas cheias de pedras, os fuzis Springfield eram arrebatados do inimigo e não faltavam facões; a haste da bandeira era uma vara verde e em vez de botas os camponeses usavam, para se moverem nas montanhas emaranhadas, uma tira de couro chamada caite. Com música de Adelita, os guerrilheiros cantavam94: En Nicarágua, señores, le pega el ratón al gato. Nem o poder de fogo da Infantaria da Marinha nem as bombas que os aviões despejavam foram suficientes para esmagar os rebeldes de Las Segovias. Tampouco as calúnias que espalhavam pelo mundo inteiro as agências informativas Associated Press e United Press, cujos correspondentes na Nicarágua eram dois norte-americanos que tinham em suas mãos a alfândega do país95. Em 1932, Sandino pressentia: “Eu não viverei 93. Edelberto Torres-Rivas, op. cit. 94. Gregorio Selser, Sandino, general de hombres libres, Buenos Aires, 1959. 95. Carleton Beals, América ante América, Santiago do Chile, 1940. 78 muito tempo.” Um ano depois, sob o influxo da política norte-americana da boa vizinhança, celebrava-se a paz. O chefe guerrilheiro foi convidado pelo presidente para uma reunião decisiva em Manágua. No caminho caiu morto numa emboscada. O assassino, Anastasio Somoza, sugeriu depois que a execução tinha sido ordenada pelo embaixador norte-americano Arthur Bliss Lane. Somoza, nessa época chefe militar, não demorou muito para instalar-se no poder. Governou Nicarágua durante um quarto de século e depois seus filhos receberam, de herança, o cargo. Antes de pôr no peito a faixa presidencial, Somoza, tinha-se condecorado a si mesmo com a Cruz del Valor, a Medalha de Distinción e a Medalha Presidencial al Mérito. Já no poder, organizou várias matanças e grandes celebrações, para as quais fantasiava seus soldados de romanos, com sandálias e capacetes; converteu-se no maior produtor de café do país, com 46 fazendas, e dedicou-se à cria de gado em outras 51 fazendas. Nunca lhe faltou tempo, contudo, para semear também o terror. Durante sua longa gestão de governo, não passou, verdade seja dita, maiores necessidades, e recordava com certa tristeza os anos juvenis, quando tinha de falsificar moedas de ouro para se divertir. Também em El Salvador explodiram as tensões como conseqüência da crise. Quase a metade dos trabalhadores nos bananais de Honduras eram salvadorenhos e muitos foram obrigados a retornar a seu país, onde não havia trabalho para ninguém. Na região de Izalco, produziu-se um grande levantamento camponês em 1932, que se propagou rapidamente por todo ocidente do país. O ditador Martínez enviou soldados, com equipamentos modernos, para combater “os bolcheviques”. Os índios lutaram com facões contra as metralhadoras e o episódio encerrou-se com dez mil mortos. Martínez, um bruxo vegetariano e teósofo, sustentava que “é maior o crime de matar uma formiga do que um homem, porque o homem ao morrer reencarna, enquanto a formiga morre definitivamente”96. Se dizia protegido por “legiões invisíveis” que o informavam de todas as conspirações e que mantinha comunicação telepática com o presidente dos Estados Unidos. Um relógio de pêndulo, sobre o prato, indicava se a comida estava envenenada; sobre um mapa indicava-lhe os lugares onde se escondiam os tesouros de piratas ou os inimigos políticos. Costumava enviar cartões de condolências aos pais de suas vítimas e no pátio de seu palácio pastavam cervos. Governou até 1944. As matanças se sucediam por todas as partes. Em 1933, Jorge Ubíco fuzilou, na Guatemala, uma centena de dirigentes sindicais, estudantis e políticos, ao mesmo tempo que reimplantava as leis contra “a vadiagem” dos índios. Cada índio devia levar uma caderneta onde constavam seus dias de trabalho; se não fossem considerados suficientes, pagava a dívida no cárcere ou arqueando as costas sobre a terra, gratuitamente, durante dois anos e meio. Na insalubre costa do Pacífico, os trabalhadores que labutavam mergulhados até os joelhos no barro cobravam trinta centavos por dia, e a United Fruit demonstrava que Ubico a tinha obrigado a rebaixar os salários. Em 1944, pouco antes da queda do ditador,as Seleções Reader’s Digest publicou um artigo de ardentes elogios: este profeta do Fundo Monetário Internacional evitara a inflação, baixando os salários de um dólar para vinte cinco centavos diários, para a construção de uma rodovia militar de emergência, e de um dólar para cinqüenta centavos para os trabalhadores da base aérea na capital. Nesta época, Ubico outorgou aos senhores do café e às empresas de banana a permissão para matar: “Estarão isentos de responsabilidade criminal os proprietários de fazendas...” O decreto levava o número 2.795 e foi restabelecido em 1967, durante o democrático e representativo governo de Méndez Montenegro. Como todos os tiranos do Caribe, Ubico se acreditava um Napoleão. Vivia rodeado de 96. William Krehrn, op. cit. Krehm viveu longos anos na América Central como correspondente da revista norte-americana Time. 79 bustos e quadros do Imperador, que tinha, segundo ele, seu mesmo perfil. Acreditava na disciplina militar: militarizou os funcionários de correio, as crianças das escolas e a orquestra sinfônica. Os integrantes da orquestra tocavam de uniforme, a troco de nove dólares mensais, as peças que Ubico escolhia e com a técnica e os instrumentos por ele dispostos. Considerava que os hospitais eram para efeminados, de modo que os pacientes recebiam assistência no chão dos corredores, se tinham o azar de serem pobres, além de doentes. QUEM DEFLAGROU A VIOLÊNCIA NA GUATEMALA? Em 1944, Ubico caiu de seu pedestal, varrido pelos ventos de uma revolução de tendência liberal, encabeçada por alguns jovens oficiais e universitários da classe média. Juan José Arévalo, eleito presidente, pôs em marcha um vigoroso plano de educação e ditou um novo Código de Trabalho para proteger os trabalhadores do campo e das cidades. Nasceram vários sindicatos; a United Fruit Co., dona de vastas terras, ferrovia e porto, virtualmente isenta de impostos e livre de controles, deixou de ser onipotente em suas propriedades. Em 1951, em seu discurso de despedida, Arévalo revelou que teve de superar 32 conspirações financiadas pela empresa. O governo de Jacobo Arbenz continuou e aprofundou o ciclo de reformas. As rodovias e o novo porto de San José romperam o monopólio da empresa de frutas sobre os transportes e a exportação, Com capital nacional, e sem estender a mão a nenhum banco estrangeiro, puseram-se em marcha diversos projetos de desenvolvimento que conduziram à conquista da independência. Em junho de 1952, aprovou-se a reforma agrária, que chegou a beneficiar mais de cem mil famílias, embora só afetasse terras improdutivas e pagasse indenização, em bonos, aos proprietários expropriados. A United Fruit cultivava apenas oito por cento de suas terras, estendidas entre ambos os oceanos. A reforma agrária propunha-se “a desenvolver a economia capitalista camponesa e a economia capitalista da agricultura em geral”, mas uma furiosa campanha de propaganda internacional foi desencadeada contra a Guatemala: “A cortina de ferro desceu sobre a Guatemala”, vociferavam as rádios, os jornais e os próceres da OEA97. O coronel Castillo Armas, graduado em Fort Leavenworth, Kansas, lançou sobre seu próprio país tropas treinadas e equipadas, para este objetivo, nos Estados Unidos. O bombardeio dos F-47, com aviadores norte-americanos, apoiou a invasão. “Tivemos que nos desfazer de um governo comunista que tinha assumido o poder”, diria, nove anos mais tarde, Dwight Eisenhower98. As declarações do embaixador norte-americano em Honduras, ante uma subcomissão do Senado dos Estados Unidos, revelaram no dia 27 de julho de 1961 que a operação “libertadora” de 1954 fora realizada por uma equipe, da qual faziam parte, além dele mesmo, os embaixadores na Guatemala, Costa Rica e Nicarágua. Allen Dulles, que naquela época era o homem número um da CIA, havia-lhe enviado um telegrama de felicitações pelo trabalho feito. Anteriormente, o bom Allen tinha integrado a direção da United Fruit Co. Sua cadeira foi ocupada, um ano depois da invasão, por outro dirigente da CIA, o general Walter Bedell Smith. Foster Dulles, irmão de Allen, havia-se inflamado de impaciência na conferência da OEA que deu visto à expedição militar na Guatemala. Casualmente, em seus escritórios de advogado, tinham sido redigidos, em tempos do ditador Ubico, os rascunhos dos contratos da United Fruit. A queda de Arbenz marcou a fogo a história posterior do país. As mesmas forças que 97. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967. 98. Discurso na American Booksellers Association, Washington, 10 de junho de 1963. Citado por David Wise e Tomas Ross, El gobierno invisible, Buenos Aires, 1966. 80 bombardearam a cidade de Guatemala, Puerto Barrios e o porto de San José, no entardecer de 18 de junho de 1954, estão hoje no poder. Várias ditaduras ferozes sucederam-se à intervenção estrangeira, incluindo o período de Julio César Méndez Montenegro (1966-1970), que proporcionou à ditadura a aparência de um regime democrático. Méndez Montenegro havia prometido uma reforma agrária, porém limitou-se a assinar a autorização para que os fazendeiros portassem armas, e as usassem. A reforma agrária de Arbenz foi destruída quando Castillo Armas cumpriu sua missão, devolvendo as terras à United Fruit e aos outros fazendeiros expropriados. 1967 foi o pior dos anos do ciclo da violência iniciado em 1954. Um sacerdote católico norte-americano expulso da Guatemala, o padre Thomas Melville, informava ao National Catholic Reporter em janeiro de 1968: em pouco mais de um ano, os grupos terroristas da direita assassinaram mais de dois mil e oitocentos intelectuais, estudantes, dirigentes sindicais e camponeses que “intentaram combater as doenças da sociedade guatemalteca”. O cálculo do padre Melville foi feito com base em informações da imprensa, porém sobre a maioria dos cadáveres nunca se informou nada: eram pobres índios sem nome nem origem conhecidas, que o exército incluía, algumas vezes, só como números, nos comunicados das vitórias contra a subversão. A repressão indiscriminada fazia parte da campanha militar de “cerco e aniquilamento” contra os movimentos guerrilheiros. De acordo com o novo código em vigência, os membros dos corpos de segurança não tinham responsabilidade penal por homicídios, e os comunicados policiais ou militares eram considerados plena prova em juízo. Os fazendeiros e os administradores foram legalmente equipados à qualidade de autoridades locais, com direito a portar armas e formar corpos repressivos. Não vibraram os teletipos do mundo com os “furos” da sistemática carnificina, não chegaram à Guatemala os jornalistas ávidos de noticias, não se escutaram vozes de condenação. O mundo virava as costas, porém a Guatemala sofria uma longa noite de São Bartolomeu. A aldeia Cajón del Rio ficou sem homens e os da aldeia Tituque tiveram as tripas revolvidas a punhal; os de Piedra Parada foram escalpelados vivos e os de Agua Blanca da Ipala, baleados nas pernas e depois queimados vivos; no centro da praça de San Jorge cravaram num mastro a cabeça de um camponês rebelde. Em Cerro Gordo, encheram de alfinetes as pupilas de Jaime Velázquez; o corpo de Ricardo Miranda foi encontrado com trinta e oito perfurações e a cabeça de Haroldo Silva, sem o corpo, na beira de uma estrada para San Salvador; em Los Mixcos cortaram a língua de Ernestro Chinchilia; na fonte do Ojo de Agua, os irmãos Oliva Aldana foram mortos a tiros com as mãos amarradas nas costas e os olhos vendados; o crânio de José Guzmán converteu-se em quebra-cabeças de peças minúsculas lançadas pelo caminho; dos poços de San Lucas Sacatepequez emergiam mortos, invés de água; os homens amanheciam sem mãos nem pés na fazenda Miraflores. Às ameaças sucediam-se as execuções, ou a morte chegava, sem aviso, pela nuca; nas cidades indicavam-se com cruzes negras as portas dos sentenciados. Eram metralhados ao sair e lançavam-se os cadáveres pelos barrancos. Depois, não cessou a violência. Ao longo do tempo do desprezo e da cólera inaugurado em 1954, a violência tem sido e continua sendo uma transpiração natural da Guatemala. Continuaram aparecendo, embora em menor medida, os cadáveres nos rios ou na beira dos caminhos, os restos irreconhecíveis, desfigurados pela tortura, que jamais serão identificados. Também continuaram, e em maior medida, as matanças mais secretas: os cotidianos genocídios da miséria. Outro sacerdote expulso, o padre Blase Bonpane, denunciava no W ashington Post, em 1968, esta sociedade doente: “Das setenta mil pessoas que cada ano morrem na Guatemala, trinta mil são crianças. A taxa de mortalidade infantil na Guatemala é 40 vezes mais alta do que a dos Estados Unidos.” 81 A PRIMEIRA REFORMA AGRÁRIA DA AMÉRICA LATINA: UM SÉCULO E MEIO DE DERROTAS PARA JOSÉ ARTIGAS Ao ataque de lança ou golpes de facão, foram os expropriados os que realmente combateram, quando despontava o século XIX, contra o poder espanhol nos campos da América Latina. A independência não os recompensou: traiu as esperanças dos que tinham derramado seu sangue. Quando a paz chegou, com ela se reabriu uma época de cotidianas desditas. Os donos da terra e os grandes mercadores aumentaram suas fortunas, enquanto se ampliava a pobreza das massas populares oprimidas. Ao mesmo tempo, e ao ritmo das intrigas dos novos donos da América Latina, os quatro vice-reinados do império espanhol se quebraram em pedaços e múltiplos países nasceram como cacos da unidade nacional pulverizada. A idéia de “nação” que o patriciado latino-americano engendrou parecia-se demasiado à imagem de um porto ativo, habitado pela clientela mercantil e financeira do império britânico, com latifúndios e socavãos à retaguarda. A legião de parasitas que recebera os comunicados da guerra de independência dançando o minueto nos salões das cidades, brindava pela liberdade de comércio em taças de cristais britânicos. Puseram na moda as mais altissonantes palavras de ordem da burguesia européia: nossos países punham-se ao serviço dos industriais ingleses e dos pensadores franceses. Porém, qual “burguesia nacional” era a nossa, formada pelos donos de terras, os grandes traficantes, comerciantes e especuladores, os políticos de fraque e doutores sem raízes? A América Latina logo teve suas constituições burguesas, muito envernizadas de liberalismo, mas não teve, em compensação, uma burguesia criadora, no estilo europeu ou norte-americano, que se propusesse à missão histórica do desenvolvimento de um capitalismo nacional pujante. As burguesias destas terras nasceram como simples instrumentos do capitalismo internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangrava as colônias e semicolônias. Os burgueses de vitrina, agiotas e comerciantes, que açambarcaram o poder político, não tinham o menor interesse em impulsionar a ascensão das manufaturas locais, já mortas ao nascer quando o livre-cambismo abriu as portas à avalanche de mercadorias britânicas. Seus sócios, os donos das terras, não estavam, por sua vez, interessados em resolver “a questão agrária”, senão na medida de suas próprias conveniências. O latifúndio consolidou-se sobre o saque, ao longo do século XIX. A reforma agrária foi, na região, uma bandeira precoce. Frustração econômica, frustração social, frustração nacional: uma história de traições sucedeu à independência. A América Latina, desgarrada por suas novas fronteiras, continuou condenada à monocultura e à dependência. Em 1824, Simón Bolívar ditou o Decreto de Trujillo para proteger os índios do Peru e reordenar ali o sistema de propriedade agrária: suas disposições legais não feriram em absoluto os privilégios da oligarquia peruana, que permaneceram intactos apesar dos bons propósitos do Libertador, e os índios continuaram tão explorados como sempre. No México, Hidalgo e Morelos foram derrotados tempos antes e transcorreria um século antes que rebrotassem os frutos de sua prédica pela emancipação dos humildes e a reconquista das terras usurpadas. No sul, José Artigas encarnou a revolução agrária. Este caudilho, com tanta sanha caluniado e tão desfigurado pela história oficial, encabeçou as massas populares dos territórios que hoje ocupam Uruguai e as províncias argentinas de Santa Fé, Corrientes, Entre Ríos, Misiones e Córdoba, no cicio heróico de 1811 a 1820. Artigas quis lançar as bases econômicas, sociais e políticas de uma Pátria Grande nos limites do antigo vice-reinado do Rio da Prata, e foi o mais importante e lúcido dos chefes federais que combateram o centralismo aniquilador do porto de Buenos Aires. Lutou contra os espanhóis e portugueses e finalmente suas forças foram trituradas pelo jogo de tenazes do Rio de Janeiro e Buenos Aires, instrumentos do império britânico, e pela oligarquia que, fiel ao seu estilo, 82 traiu-o, tão logo sentiu-se traída, por sua vez, pelo programa de reivindicações sociais do caudilho. Seguiam Artigas, lança na mão, os patriotas. Em sua maioria eram “paisanos” pobres, gaúchos rústicos, índios que recuperavam na luta o sentido da dignidade, escravos que ganhavam a liberdade incorporando-se ao exército da independência. A revolução dos cavaleiros pastores incendiava a pradaria. A traição de Buenos Aires, que deixou em mãos do poder espanhol e tropas portuguesas, em 1811 , o território que hoje ocupa o Uruguai, provocou o êxodo maciço da população rumo ao norte. O povo em armas fez-se um povo em marcha; homens e mulheres, velhos e crianças, numa caravana de peregrinos sem fim. No norte, sobre o rio Uruguai, acampou Artigas, com as tropas de cavalo e carretas e no norte estabeleceria, pouco tempo depois, seu governo. Em 1815, Artigas controlava vastas comarcas de seu acampamento de Purifícación, em Paysandú. “Que lhes parece que vi?!” - narrava um viajante inglês99 – “O Excelentíssimo Senhor Protetor da metade do Novo Mundo estava sentado numa cabeça de boi, junto a um fogão aceso no solo lodoso de seu rancho, comendo carne da churrasqueira e bebendo gim num chifre de vaca! Rodeava-o uma dúzia de oficiais andrajosos...” De todas as partes chegavam, a galope, soldados, ajudantes e exploradores. Passeando com as mãos nas costas, Artigas ditava os decretos revolucionários de seu governo popular. Dois secretários - não existia papel carbono tomavam notas. Assim nasceu a primeira reforma agrária da América Latina, que se aplicaria durante um ano na Província Oriental, hoje Uruguai, e que seria feita em pedacinhos por uma nova invasão portuguesa, quando a oligarquia abriu as portas de Montevidéu ao general Lecor e o saudou como a um libertador, conduzindo-o sob pálio a um solene Te-déum, honra ao invasor, diante dos altares da catedral. Anteriormente, Artigas também havia promulgado um regulamento alfandegário que cobrava forte imposto da importação de mercadorias estrangeiras competitivas com as manufaturas e artesanatos da terra, de considerável desenvolvimento em algumas regiões hoje argentinas compreendidas nos domínios do caudilho, ao mesmo tempo que liberava a importação dos bens de produção necessários ao desenvolvimento econômico e adjudicava um gravame insignificante aos artigos americanos, como a erva-mate e o tabaco do Paraguai100. Os coveiros da revolução também enterrariam o regulamento alfandegário. O código agrário de 1815 - terra livre, homens livres - foi “a mais avançada e gloriosa constituição”101 de quantas chegariam a conhecer os uruguaios. As idéias de Campomanes e Jovellanos, no ciclo reformista de Carlos III, influíram sem dúvida sobre o regulamento de Artigas, porém este surgiu, definitivamente, como urna resposta revolucionária à necessidade nacional de recuperação econômica e de justiça social. Decretava-se a expropriação e a repartição das terras dos “maus europeus e piores americanos” emigrados por causa da revolução e não indultados por ela. Tomava-se a terra dos inimigos sem qualquer indenização, e aos inimigos pertencia - dado importante - a imensa maioria dos latifúndios. Os filhos não pagavam pela culpa dos pais: o regulamento lhes oferecia o mesmo que aos patriotas pobres. As terras eram distribuídas de acordo com o princípio de que “os mais infelizes seriam os mais privilegiados”. Os índios tinham, na concepção de Artigas, “o principal direito”. O sentido essencial desta reforma agrária consistia em assentar sobre a terra os pobres do campo, convertendo em cidadão o gaúcho acostumado à vida errante da guerra, e às tarefas clandestinas e contrabando, em tempos de paz. Os governos posterio99. J.P. e G.P. Robertson, La Argentina en la época de la Revolución. Cartas sobre el Paraguay, Buenos Aires, 1920. 100. Washington Reyes Abadie, Óscar H. Bruschera e Tabaré Melogno, El ciclo artiguista, tomo IV, Montevidéu, 1968. 101. Nelson de la Torre, Julio C. Rodríguez e Lucia Sala de Touron, Artigas, tierra y revolución, Montevidéu, 1967. 83 res da bacia do Prata liquidaram a sangue e fogo o gaúcho, incorporando o à força ao trabalho de peão nas grandes fazendas, mas Artigas quis torná-lo proprietário: “Os gaúchos insurretos começavam a gostar do trabalho honrado, levantavam ranchos e currais, plantavam suas primeiras semeaduras”102. A intervenção estrangeira acabou com tudo. A oligarquia levantou a cabeça e vingou-se. A legislação desconheceu, posteriormente, a validade das doações de terras realizadas por Artigas. Desde 1820 até fins do século foram desalojados, a sangue e fogo, os patriotas pobres que tinham sido beneficiados pela reforma agrária. Não conservariam “outra terra senão a de suas tumbas”. Derrotado, Artigas tinha marchado para o Paraguai, para morrer só ao fim de um longo exílio de austeridade e de silêncio. Os títulos de propriedade por ele expedidos não valiam nada: o fiscal do governo, Bernardo Bustamante, afirmava, por exemplo, que se advertia à primeira vista “a desprezibilidade que caracteriza os indigitados documentos”. Enquanto isso, seu governo se apressava para celebrar, já restaurada a “ordem”, a primeira constituição de um Uruguai independente, desgarrado da Pátria Grande por cuja consolidação Artigas tinha, em vão, lutado. O regulamento de 1815 continha disposições especiais para evitar a acumulação de terras em poucas mãos. Em nossos dias, o campo uruguaio oferece o espetáculo de um deserto: quinhentas famílias monopolizam a metade da terra total e, constelação do poder, controlam também as três quartas partes do capital investido na indústria e no sistema bancário103. Os projetos de reforma agrária acumulam-se, uns sobre os outros, no cemitério parlamentar, enquanto o campo se despovoa: os desempregados se somam aos desempregados e há cada vez menos pessoas dedicadas às tarefas agropecuárias, segundo o dramático registro dos sucessivos recenseamentos. O país vive da lã e da carne, porém em suas pradarias pastam, em nossos dias, menos ovelhas e menos vacas que no princípio do século. O atraso dos métodos de produção reflete-se nos baixos rendimentos da pecuária - entregue à paixão dos touros e carneiros na primavera, às chuvas periódicas e à fertilidade natural do solo - e também das culturas agrícolas. A produção de carne por animal não chega nem à metade da que obtém a França ou a Alemanha, e a mesma coisa ocorre com o leite em comparação à Nova Zelândia, Dinamarca e Holanda; cada ovelha rende um quilo menos de lã do que na Austrália. Os rendimentos do trigo por hectare são três vezes menores do que os da França e, no milho, os rendimentos dos Estados Unidos superam em sete vezes os do Uruguai104. Os grandes proprietários, que aplicam seus lucros no exterior, passam seus verões em Punta del Este; nem no inverno, de acordo com sua própria tradição, residem em seus latifúndios, os quais visitam, de vez em quando, de teco-teco: há um século, quando se fundou a Associação Rural, dois terços de seus membros tinham já seu domicílio na capital. A produção extensiva, obra da natureza e dos peões famintos, não dá maiores dores de cabeça. E certamente oferece lucros. As rendas e os lucros dos capitalistas pecuários somam não menos de US$ 75 milhões por ano, atualmente105. Os rendimentos produtivos são baixos, mas os lucros são altos por causa dos 102. Nelson de la Torre, Julio C. Rodríguez e Lucia Sala de Touron, op. cit. Dos mesmos autores, Evolución económica de la Banda Oriental, Montevidéu 1967, e Estructura económica de la Colónia, Montevidéu, 1968. 103. Vivian Trías, Reforma agraria en el Uruguay, Montevidéu, 1962. Este livro constitui todo um prontuário, família por família, da oligarquia uruguaia. 104. Eduardo Galeano, Uruguay: Promise and Betrayal em Latin America: Reform or Revolution?, ed. por J.Petras e M. Zeitlin, Nova Iorque, 1968. 105. Instituto de Economia, El proceso económico del Uruguay. Contribuición al estudio de su evolución y perspectivas, Montevidéu, 1969. Na época de auge da indústria nacional, fortemente subsidiada e protegida pelo Estado, boa parte dos ganhos do campo derivou para as fábricas nascentes. Quando a indústria entrou em seu agônico ciclo de crise, os excedentes de capital da pecuária se voltaram para outra direções. As mais inúteis e luxuosas mansões de Punta del Este 84 baixíssimos custos. Uma paisagem sem homens: os maiores latifúndios ocupam, e não durante todo o ano, apenas duas pessoas por cada mil hectares. Nas aldeias, à margem das estâncias, acumulam-se, miseráveis, as reservas sempre disponíveis de mão-de-obra. O gaúcho dos postais folclóricos, tema de quadros e poemas, tem pouco a ver com o peão que trabalha, na realidade, terras grandes e estranhas. As alpargatas ocupam o lugar das botas de couro; um cinturão comum, ou às vezes um simples barbante, substitui os largos cinturões com adornos de ouro e prata. Aqueles que produzem a carne perderam o direito de comê-la: os criollos raras vezes têm acesso ao churrasco criollo, a carne suculenta e tenra, dourada nas brasas. Embora as estatísticas internacionais sorriam, exibindo rendas médias enganosas, a verdade é que o “ensopado”, guisado de macarrões e tripas de capão, constitui a dieta básica, carente de proteínas, dos camponeses no Uruguai106. ARTEMIO CRUZ E A SEGUNDA MORTE DE EMILIANO ZAPATA Exatamente um século depois do regulamento de terras de Artigas, Emiliano Zapata pôs em prática, em sua comarca revolucionaria do sul do México, uma profunda reforma agrária. Cinco anos antes, o ditador Porfirio Díaz havia celebrado, com grandes festas, o primeiro centenário do grito de Dolores: os cavalheiros de fraque, México oficial, olimpicamente ignoravam o México cuja miséria alimentava seus esplendores. Na república dos parias, as rendas dos trabalhadores não haviam aumentado num só centavo desde o histórico levante do cura Miguel Hidalgo. Em 1910, pouco mais de 800 latifundiários, muitos deles estrangeiros, possuíam quase todo o território nacional. Eram playboys de cidade, que viviam na capital ou na Europa e raramente visitavam as casas grandes de seus latifúndios, onde dormiam protegidos por altas muralhas de perra escura, sustentadas por robustos contrafortes107. Do outro lado das muralhas, os peões se amontoavam em quartinhos de adobe. Doze milhões de pessoas dependiam, numa população total de 15 milhões, de salários rurais; as diárias se pagavam quase por inteiro nos pequenos armazéns das fazendas, traduzidas, a preços altíssimos, em feijões, farinha e cachaça. A cadeia, o quartel e a sacristia tinham a seu cargo a luta contra os defeitos naturais dos índios, os quais, no dizer de um membro de uma família ilustre da época, nasciam “frouxos, bêbados e ladrões”. A escravidão, amarrado o trabalhador por dívidas que se herdavam ou por contrato legal, era o sistema real de trabalho nas plantações de sisal de Yucatán, nas de tabaco do Valle Nacional, nos bosques de madeira e frutas de Chiapas e Tabasco e nas plantações de seringueira, café, cana-de-açúcar, tabaco e frutas de Veracruz, Oaxaca e Morelos. John Keneth Turner, escritor norte-americano, denunciou, num esplêndido tesbrotaram da desgraça nacional; a especulação financeira deflagrou, depois, a febre dos pescadores de água turva da inflação. Porém, sobretudo, os capitais fugiram: os capitais e os lucros que, anos após anos, o país produz. Entre 1962 e 1966, segundo dados oficiais, 250 milhões de dólares voaram do Uruguai rumo aos seguros bancos da Suíça e Estados Unidos. Também os homens, os homens jovens, baixaram do campo à cidade, há vinte anos, para oferecer seus braços à indústria em desenvolvimento, e hoje marcham, por terra ou por mar, rumo ao exterior. Mas, é claro, seu destino é diferente. Os capitais são recebidos com os braços abertos; aos peregrinos lhes aguarda um destino difícil, O desraizamento e a intempérie, a aventura incerta. O Uruguai de 1971, estreirecido por uma crise feroz, não é o oásis de paz e progresso que atraía os imigrantes europeus, mas um país turbulento que condena ao êxodo seus próprios habitantes. Produz violência e exporta homens tão naturalmente como produz e exporta carne e lã. 106. German Wettstein e Juan Rudolf, La sociedad rural, Nuestra Tierra, nº 16, Montevidéu, 1969. 107. Jesús Silva Herzog, Breve historia de la revolución mexicana, México-Buenos Aires, 1960. 85 temunho de sua visita, que “os Estados Unidos converteram virtualmente Porfirio Díaz num vassalo político e, em conseqüência, transformou o México em uma colônia escrava”108. Os capitais norte-americanos obtinham, direta ou indiretamente, suculentos lucros de sua associação com a ditadura. “A norte-americanização do México, da qual tanto se vangloria Wall Street - dizia Turner - está se executando como se fosse uma vingança.” Em 1845, os Estados Unidos tinham anexado os territórios mexicanos de Texas e Califórnia, onde restabeleceram a escravidão em nome da civilização. Na guerra, o México também perdeu os atuais estados norte-americanos de Colorado, Arizona, Novo México, Nevada, Utah. Mais da metade do país. O território usurpado eqüivalia à extensão atual da Argentina. “Coitado do México! - diz-se desde então - Tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.” O resto de seu território mutilado sofreu depois a invasão das inversões norte-americanas no cobre, no petróleo, na borracha, no açúcar, no banco e nos transportes. O American Cordage Trust, filial da Standard Oil, não estava em absoluto alheio ao extermínio dos índios maias e yaquis na plantações de sisal de Yucatán, campos de concentração onde os homens e as crianças eram comprados e vendidos como mulas, porque esta era a empresa que comprava mais da metade do sisal produzido e convinha-lhe dispor de fibras a preço barato. Outras vezes, a exploração da mão-de-obra escrava era direta, como descobriu Turner. Um administrador norte-americano lhe contou que pagava os lotes de peões empregados a cinqüenta pesos por cabeça, “e os conservávamos enquanto durem... Em menos de três meses enterramos mais da metade”109. Em 1910, chegou a hora do desquite. México levantou-se em armas contra Porfirio Díaz. Um caudilho do campo encabeçou desde então a insurreição no sul: Emiliano Zapata, o mais puro dos líderes da revolução, o mais leal à causa dos pobres, o mais fervoroso em sua vontade de redenção social. As últimas décadas do século XIX tinham sido tempos de espoliação feroz para as comunidades agrárias de todo o México; os povoados e as aldeias de Morelos sofreram a febril caçada de terras, águas e braços que as plantações de cana-de-açúcar devoravam em sua expansão. As fazendas açucareiras dominavam a vida do Estado e sua prosperidade gerara engenhos modernos, grandes destilarias e ramais ferroviários para transportar o produto. Na comunidade de Anenecuilco, onde vivia Zapata e à qual pertencia de corpo e alma, os camponeses indígenas reivindicavam sete séculos de trabalho contínuo sobre o solo: estavam ali desde antes da chegada de Fernão Cortez. Os que se queixavam em voz alta marchavam para os campos de trabalhos forçados em Yucatán. Como em todo o Estado de Morelos, cujas terras boas estavam em mãos de 17 proprietários, os trabalhadores viviam muito pior do que os cavalos de pólo que os latifundiários mimavam em seus estábulos de luxo. Uma lei de 1909 determinou que novas terras fossem arrebatadas a seus legítimos donos e pôs fogo às já ardentes contradições sociais. Emiliano Zapata, o cavaleiro de poucas palavras, famoso porque era o melhor domador do estado e unanimemente respeitado por sua honestidade e sua coragem, fez-se guerrilheiro. “Grudados no rabo do cavalo do chefe Zapata”, os homens do sul formaram rapidamente um exército libertador110. Caiu Díaz, e Francisco Madero, nas ancas da Revolução, chegou ao poder. As pro108. John Kenneth Turner, México bárbaro, publicado nos Estados Unidos em 1911, México, 1967. 109. John Kenneth Turner, op. cit. O México era o país preferido pelos investimentos norteamericanos: reunia em fins do século pouco menos da terça parte dos capitais dos Estados Unidos investidos no estrangeiro. No estado de Chihuahua e outras regiões do norte, William Randolph Hearst, o célebre Citizen Kane do filme de Orson Welles, possuía mais de três milhões de hectares. Fernando Carmona, El drama de América Latina. El Caso de México, México, 1964. 110. John Womack Jr., Zapata y la revolución mexicana, México, 1969. 86 messas de reforma agrária não demoraram em dissolver-se numa névoa institucionalista. No dia de seu casamento, Zapata teve que interromper a festa: o governo tinha enviado as tropas do general Victoriano Huerta para esmagá-lo. O herói convertera-se em “bandido”, segundo os doutores da cidade. Em novembro de 1911, Zapata proclamou seu Plano de Ayala, ao mesmo tempo que anunciava: “Estou disposto a lutar contra tudo e contra todos.” O plano advertia que a “imensa maioria das gentes e cidadãos mexicanos não são mais donos senão do terreno que pisam” e propugnava pela nacionalização total dos bens dos inimigos da Revolução, a devolução a seus legítimos proprietários das terras usurpadas pela avalanche latifundiária e a expropriação da terça parte das terras dos fazendeiros restantes. O plano de Ayala converteu-se num ímã irresistível que atraía milhares e milhares de camponeses às fileiras do caudilho reformista. Zapata denunciava “a infame pretensão” de reduzir tudo a uma simples troca de pessoas no governo: a Revolução não era feita para isso. Cerca de dez anos durou a luta. Contra Díaz, contra Madero, logo contra Huerta, o assassino, e mais tarde contra Venustiano Carranza. O longo tempo da guerra foi também um período de intervenções norte-americanas contínuas: os marines tiveram a seu cargo dois desembarques e vários bombardeios, os agentes diplomáticos urdiram conjuras políticas diversas e o embaixador Henry Lane Wilson organizou com êxito o crime do presidente Madero e seu vice. As mudanças sucessivas no poder não alteravam, em todo o caso, a fúria das agressões contra Zapata e suas forças, porque elas eram a expressão não mascarada da luta de classes no fundo da revolução nacional: era o perigo real. Os governos e os jornais bradavam contra “as hordas vandálicas” do general de Morelos. Poderosos exércitos foram enviados, um atrás do outro, contra Zapata. Os incêndios, as matanças, a devastação dos povoados, foram, vez por outra, inúteis. Homens, mulheres e crianças morriam fuzilados ou enforcados como “espias zapatistas” e às carnificinas seguiam os anúncios de vitória: a limpeza foi um êxito. Porém, pouco tempo depois voltavam a se acender as fogueiras nos moveis acampamentos revolucionários das montanhas do sul. Em várias oportunidades, as forças de Zapata contra-atacavam com êxito até os subúrbios da capital. Depois da queda do regime de Huerta, Emiliano Zapata e Pancho Villa, o “Átila do Sul” e o “Centauro do Norte”, entraram na cidade do México como vencedores e fugazmente compartilharam o poder. Em fins de 1914, abriu-se um breve ciclo de paz que permitiu a Zapata pôr em prática, em Morelos, uma reforma agrária ainda mais radical do que a anunciada no Plano de AyaIa. O fundador do Partido Socialista e alguns militantes anarcosindicalistas influíram muito neste processo: radicalizaram a ideologia do líder do movimento, sem ferir suas raízes tradicionais, e lhe proporcionaram uma imprescindível capacidade de organização. A reforma agrária propunha-se a “destruir pela raiz e para sempre o injusto monopólio da terra para realizar um estado social que garanta plenamente o direito natural que todo homem tem sobre a extensão de terra necessária a sua própria subsistência e à de sua família”. Restituíam-se as torras, as comunidades e indivíduos despojados a partir da lei de desamortização de 1856, fixavam-se limites máximos aos terrenos segundo o clima e a qualidade natural, e declaravam-se propriedade nacional as fazendas dos inimigos da Revolução. Esta última disposição política tinha, como na reforma agrária de Artigas, um claro sentido econômico: os inimigos eram os latifundiários. Formaram-se escolas de técnicos, fábricas de ferramentas e um banco de crédito rural; nacionalizaram-se os engenhos e as destilarias, que se converteram em serviços públicos. Um sistema de democracias locais colocava nas mãos do povo as fontes do poder e a sustentação econômica. Nasciam e difundiam-se escolas zapatistas, organizavam-se juntas populares para a defesa e a promoção dos princípios revolucionários, uma democracia autêntica tomava forma. Os municípios eram unidades nucleares do governo e o povo elegia as autoridades, seus 87 tribunais e sua polícia. Os chefes militares deviam submeter-se à vontade das populações civis organizadas. Não era a vontade dos burocratas e generais que impunha os sistemas de produção e de vida. A Revolução enlaçava-se com a tradição e operava “de conformidade com o costume e usos de cada povoado..., ou seja, que se determinado povoado pretende um sistema comunal assim será feito, e se outro povoado deseja o fracionamento da terra para reconhecer sua pequena propriedade, assim se fará”111. Na primavera de 1915, todos os campos de Morelos já estavam sendo cultivados, principalmente com milho e outros alimentos. A cidade do México padecia, enquanto isto, por falta de alimentos, a iminente ameaça de fome. Venustiano Carranza havia conquistado a presidência e ditou, por sua vez, uma reforma agrária, porém seus chefes não demoraram em apoderar-se desse benefício; em 1916, se lançaram sobre Cuernavaca, capital de Morelos, e as demais comarcas zapatistas. As culturas, que voltaram a dar frutos, os minerais, as peles e algumas maquinarias, foram um espólio excelente para os oficiais, que avançavam queimado tudo por onde passavam e proclamando, ao mesmo tempo, “uma obra de reconstrução e progresso”. Em 1919, um estratagema e uma traição terminaram com a vida de Emiliano Zapata. Mil homens emboscados descarregaram os fuzis sobre seu corpo. Morreu com a mesma idade de Che Guevara. Sobreviveu-lhe a lenda: o cavalo alazão que galopava só, rumo ao sul, pelas montanhas. Porém não só a lenda. Morelos inteira se dispôs a “consumar a obra do reformador, vingar o sangue do mártir e seguir o exemplo de herói”, e o país inteiro lhe fez eco. Passou o tempo, e com a presidência de Lázaro Cárdenas (1934-1940), as tradições zapatistas recobravam vida e vigor através da colocação em prática, por todo o México, da reforma agrária. Expropriaram-se, sobretudo sob seu período do governo, 67 milhões de hectares em poder de empresas estrangeiras ou nacionais e os camponeses receberam, além da terra, créditos, educação e meios de organização para o trabalho. A economia e a população do país tinham começado seu acelerado ascenso; multiplicou-se a produção agrícola, enquanto o país inteiro modernizava-se e industrializava-se. Cresceram as cidades e ampliou-se, em extensão e em profundidade, o mercado de consumo. Porém, o nacionalismo mexicano não derivou para o socialismo e, em conseqüência, como ocorreu em outros países que tampouco deram o salto decisivo, não realizou cabalmente seus objetivos de independência econômica e justiça social. Um milhão de mortos tinha tributado seu sangue, nos longos anos de revolução e guerra, “a um Huitzilopoxtli mais cruel, duro e insaciável do que aquele adorado por nossos antepassados: o desenvolvimento capitalista do México, nas condições impostas pela subordinação ao imperialismo”112. Diversos estudiosos investigaram os sinais de deteriorização das velhas bandeiras. Edmundo Flores afirma, numa publicação oficial113, que, “atualmente, 60% da população total do México tem uma renda menor de 120 dólares por ano e passa fome”. Oito milhões de mexicanos não consomem outra coisa além de feijão, tortas de milho e pimenta114".O sistema não revela suas profundas contradições somente quando caem quinhentos estudantes mortos na matança de Tlatelolco. Recolhendo cifras oficiais, Alonso Aguiar chega à conclusão de que há no México uns dois milhões de camponeses sem terra, três milhões de crianças que não recebem educação, cerca de onze milhões de analfabetos e cinco milhões de pessoas descalças115. A propriedade coletiva dos ejidatarios pulveriza-se conti111. John Wornack Jr., op. cit. 112. Fernando Carmona, op. cit. 113. Ednundo Flores, Adonde va la economia de México? cm Comércio exterior, vol. XX, nº 1, México, janeiro de 1970. 114. Ana María Flores, La magnitud del hambre en México, México, 1961. 115. Alonso Aguilar M. e Fernando Carmona, op. cit. Veja-se também, dos mesmos autores e Guillermo Motaño e Jorge Carrión, El milagro mexicano, México, 1970. 88 nuamente, e com a multiplicação de minifúndios, que se auto-fragmentam, surgiu um latifundismo de novo cunho e uma nova burguesia agrícola dedicada à agricultura comercial em grande escala. Os donos de terra e os intermediários nacionais que conquistaram uma posição dominante, driblando o texto e o espírito das leis, são por sua vez dominados, e num livro recente são incluídos nos termos “and company” da empresa Anderson Clayton116. No mesmo livro, o filho de Lázaro Cárdenas diz que “os latifúndios simulados constituíram-se nas terras de melhor qualidade, nas mais produtivas”. O romancista Carlos Fuentes reconstruiu, a partir da agonia, a vida de uma capitão do exército de Carranza que vai abrindo caminho, a tiros e com astúcia, tanto na guerra como na paz117. Homem de origem muito humilde, Artemio Cruz vai deixando para trás, com a passagem dos anos, o idealismo e o heroísmo da juventude: usurpa terras, funda e multiplica empresas, faz-se deputado, sobe em sua brilhante carreira rumo aos cumes sociais, acumulando fortuna, poder e prestígio, com base nos negócios, subornos, especulação, grandes golpes de audácia e repressão a sangue e fogo da indiada. O processo do personagem parece o processo do partido que, grande impotência da Revolução mexicana, virtualmente monopoliza a vida política do país em nossos dias. Ambos caíram para cima. O LATIFÚNDIO MULTIPLICA AS BOCAS MAS NÃO MULTIPLICA OS PÃES A produção agropecuária por habitante da América Latina é, hoje, menor do que na véspera da Segunda Guerra Mundial. Transcorreram 30 longos anos; no mundo, a produção de alimentos cresceu, neste período, na mesma proporção em que, em nossas terras, diminuiu. A estrutura do atraso do campo latino-americano opera também como uma estrutura de desperdício: desperdício da força de trabalho, da terra disponível, dos capitais, do produto e, sobretudo, desperdício das fugidias oportunidades históricas de desenvolvimento. O latifúndio e seu parente pobre, o minifúndio, constituem, em quase todos os países latino-americanos, o gargalo da garrafa que estrangula o crescimento agropecuário e o desenvolvimento de toda a economia. O regime de propriedade imprime sua marca no regime de produção: 1,5% dos proprietários agrícolas latino-americanos possui a metade do total das terras cultiváveis, e a América Latina gasta, anualmente, mais de US$ 500 milhões para comprar, no estrangeiro, alimentos que poderia produzir sem dificuldade alguma em suas imensas e férteis terras. Apenas 5% da superfície total é cultivada: a proporção mais baixa do mundo e, em conseqüência, o maior desperdício118.Nas escassas terras cultivadas, os rendimentos são, além de tudo, muito baixos. Em numerosas regiões, há muito mais arados de madeira que tratores. Não se empregam, com raras exceções, as técnicas modernas, cuja difusão não só implicaria a mecanização dos trabalhos agrícolas, mas também o auxílio e o estímulo aos solos, através dos adubos, herbicidas, sementes selecionadas, pesticidas e irrigação artificial119. O latifúndio integra, às vezes, como um Rei Sol, uma constelação de poder que, para usar a feliz expressão de Maza Zavala120, multiplica os famintos mas não os pães. Em vez de absorver mão-de-obra, o latifúndio a expulsa: em quarenta anos, a proporção de trabalhadores do campo caiu, na América Latina, de 116. Rodolfo Stavenhagen, Fernando Paz Sánchez, Cuauhtémoc Cárdenas e Arturo Bonilla, Neolatifundismo y explotación. De Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co., México, 1968. 117. Carlos Fuentes, La muerte de Artemio Cruz, México, 1962. 118. FA O, Anuario de la producción, vol. 19, 1965. 119. Alberto Baltra Cortés, Problemas y subdesarrollo económico latinoamericano, Buenos Aires, 1966. 120. D.F. Maza Zavala, Explosión demográfica y crescimiento económico, Caracas, 1970. 89 63 a 40%. Não faltam tecnocratas dispostos a afirmar, aplicando mecanicamente receitas feitas, que isto é um índice de progresso: a urbanização acelerada, a migração maciça da população camponesa. Os desempregados, que o sistema vomita sem parar, afluem, de fato, para as cidades e ampliam seus subúrbios. Porém as fábricas, que também segregam desempregados à medida que se modernizam, não oferecem refúgio a esta mão-de-obra excedente e não especializada. Os escassos progressos tecnológicos do campo aguçam o problema. Incrementaram-se os lucros dos donos de terra, quando incorporam meios mais modernos na exploração de suas propriedades, porém mais braços ficam sem atividade e se torna maior a brecha que separa ricos e pobres. A introdução de equipamentos motorizados, por exemplo, elimina mais empregos rurais do que os cria. Os latino-americanos que produzem, em jornadas de sol a sol, os alimentos, sofrem normalmente de desnutrição: suas rendas são miseráveis, a renda que o campo gera gasta-se nas cidades ou emigra para o exterior.As melhores técnicas, que aumentam os magros rendimentos do solo mas deixam intacto o regime de propriedade vigente, não são, decerto, embora contribuam para o progresso geral, uma bênção para os camponeses. Não crescem seus salários nem sua participação nas colheitas. O campo irradia pobreza para muitos e riqueza para muito poucos. Os aviões particulares sobrevoam desertos miseráveis, multiplica-se o luxo estéril nos grandes balneários e a Europa ferve de turistas latino-americanos cheios de dinheiro, que descuidam do cultivo de suas terras mas não se descuidam, é claro, do cultivo de seus “espíritos”. Paul Bairoch atribui a debilidade principal da economia do Terceiro Mundo ao fato de sua produtividade agrícola média só alcançar a metade do nível obtido, nas vésperas da Revolução Industrial, pelos países hoje desenvolvidos121. Com efeito, a indústria, para expandir-se harmoniosamente, requereria um aumento muito maior da produção de alimentos e de matérias-primas agropecuarias. Alimentos, porque as cidades crescem e comem; matérias-primas, para as fábricas e para a exportação, de maneira a diminuir as importações agrícolas e aumentar as vendas no exterior, gerando as divisas que o desenvolvimento requer.Por outra parte, o sistema de latifúndios e minifúndios implica o raquitismo do mercado interno e, sem sua expansão, a indústria nascente perde terreno. Os salários de fome no campo e o exército de reserva cada vez mais numeroso de desempregados conspiram neste sentido: os emigrantes rurais, que vivem a bater nas portas das cidades, empurram para baixo o nível geral de salário dos operários. Desde que a finada Aliança para o Progresso proclamou, aos quatro ventos, a necessidade da reforma agrária, a oligarquia e a tecnocracia não cessaram de elaborar projetos. Dezenas de projetos, gordos, magros, largos, estreitos, dormem nas prateleiras dos parlamentos de todos os países latino-americanos. A reforma agraria já não é um tema maldito: os políticos aprenderam que a melhor maneira de não fazê-la consiste em invocá-la continuamente. Os processos simultâneos de concentração e pulverização da propriedade da terra continuam, olímpicos, seu curso na maioria dos países. Não obstante, as exceções começam a abrir caminho. Porque o campo não é somente um viveiro de pobreza: é, também, um viveiro de rebeliões, embora as tensões sociais agudas se ocultem freqüentemente, mascaradas pela resignação aparente das massas. O Nordeste do Brasil, por exemplo, impressiona à primeira vista como um bastião do fatalismo, cujos habitantes aceitam morrer de fome tão passivamente como aceitam a chegada da noite ao fim do dia. Porém não está longe o tempo, afinal, da explosão mística dos nordestinos que combateram junto a seu messias, apóstolos extravagantes, levantando a cruz e os fuzis contra o exército, para trazer para esta terra o reino dos céus, nem as furiosas marés de violência dos cangaceiros: os fanáticos e os bandoleiros, utopia e vingança, deram razão ao protesto social, apesar de cego, dos 121. Paul Bairoch, Diagnostic de l'évolution économique du Tiers Monde. 1900-1966, Paris, 1967. 90 camponeses desesperados 122 . As ligas camponesas recuperariam mais tarde, aprofundando-as, estas tradições de luta. O regime militar que tomou o poder no Brasil em 1964 não demorou em anunciar sua reforma agrária. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária foi, como notou Paulo Schilling, um caso único no mundo: ao invés de distribuir terras para os camponeses, dedicou-se a expulsá-los, para restituir aos latifundiários as extensões espontaneamente invadidas ou expropriadas por governos anteriores. Em 1966 e 1967, antes do maior rigor da censura à imprensa, os jornais costumavam denunciar os saques, incêndios e perseguições que as tropas da polícia levavam a cabo por ordem do atarefado Instituto (IBRA). Outra reforma agrária digna de uma antologia é a que se promulgou no Equador em 1964. O governo só distribuiu terras improdutivas, facilitando, ao mesmo tempo, a concentração das terras de melhor qualidade em mãos dos grandes latifundiários. A metade das terras distribuídas pela reforma agrária da Venezuela, a partir de 196O, eram de propriedade pública; as grandes plantações comerciais não foram tocadas e os latifundiários expropriados receberam indenizações tão altas que obtiveram esplêndidos lucros e compraram novas terras em outras zonas. O ditador argentino Juan Carlos Organía esteve a ponto de antecipar em dois anos sua queda, quando em 1968 tentou aplicar um novo regime de impostos à propriedade rural. O projeto intentava tributar as improdutivas planuras peladas mais severamente do que as terras produtivas. A oligarquia do boi pôs a boca no trombone, mobilizou suas próprias armas no Estado Maior, e Organía teve que esquecer suas heréticas intenções. A Argentina dispõe, como o Uruguai, de pradarias naturalmente férteis que, sob o influxo de um clima benigno, lhe tem permitido desfrutar de uma prosperidade relativa na América Latina. Porém, a erosão vai corroendo sem piedade as imensas planuras abandonadas que não são destinadas à cultura nem ao pastoreio, e o mesmo ocorre com grande parte dos milhões de hectares dedicados à exploração extensiva do gado. Como no Uruguai, embora em menor grau, essa exploração extensiva está no fundo da crise que sacudiu a economia argentina nos anos 60. Os latifundiários argentinos não mostraram maior interesse por introduzir inovações técnicas em seus campos. A produtividade é baixa porque convém que seja assim; a lei do lucro pode mais do que todas as leis. A extensão das propriedades, através da compra de novos campos, é mais lucrativa e menos arriscada do que a colocação em prática dos meios que a tecnologia moderna proporciona para a produção intensiva123. Em 193 1, a Sociedade Rural opunha o cavalo ao trator: “Agricultores pecuaristas! proclamavam seus dirigentes - Trabalhar com cavalos nas tarefas agrícolas é proteger seus próprios interesses e os do país.” Vinte anos depois, insistia em suas publicações: “É mais fácil - disse um conhecido militar - que o pasto chegue ao estômago de um cavalo do que a gasolina ao tanque de um pesado caminhão”124. Segundo os dados da CEPAL, a Argentina tem, em proporção aos hectares de superfície arável, 16 vezes menos tratores do que a França e 19 vezes menos tratores do que o Reino Unido. O país consome, também em proporção, 140 vezes menos fertilizantes do que a Alemanha Ocidental125. Os rendimen122. Rui Facó, Cangaceiros e fanáticos, Rio de Janeiro, 1965. 123. O prado artificial representa, sob o prisma do capitalista pecuarista, um translado de capital para uma inversão mais volumosa, mais perigosa e simultaneamente menos rentável do que a inversão tradicional na pecuária extensiva. Assim, o interesse privado do produtor entra em contradição com o interesse da sociedade em conjunto: a qualidade do gado e seus rendimentos só podem ser incrementados, a partir de certo ponto, através do aumento do poder nutritivo do solo. O país precisa de que as vacas produzam mais carne e as ovelhas mais lã, porém os donos da terra ganham mais do que o suficiente, ao nível dos rendimentos atuais. As conclusões do Instituto de Economia da Universidade do Uruguai (op. cit.) são, neste sentido, também aplicáveis à Argentina. 124. Dardo Cúneo, Comportamiento y crisis de la clase empresaria, Buenos Aires, 1967. 91 tos do trigo, milho e algodão da agricultura argentina são muito mais baixos do que os rendimentos destas culturas nos países desenvolvidos. Juan Domingo Perón desafiou os interesses da oligarquia de terras da Argentina, quando impôs o estatuto do peão e o cumprimento do salário-mínimo rural. Em 1914, a Sociedade Rural afirmava: “Na fixação dos salários é primordial determinar o padrão de vida do peão comum. São às vezes tão limitadas suas necessidades materiais que um resíduo tem destinos socialmente pouco interessantes.” A Sociedade Rural continua falando dos peões como se fossem animais, e a profunda meditação a propósito das curtas necessidades de consumo dos trabalhadores oferece, involuntariamente, uma boa chave para compreender as limitações do desenvolvimento industrial argentino: o mercado interno não se estende nem se aprofunda na medida suficiente. A política de desenvolvimento econômico que impulsionou o próprio Perón não rompeu nunca a estrutura de subdesenvolvimento agropecuário. Em junho de 1952, num discurso que pronunciou do Teatro Colón, Perón desmentiu que tivesse o propósito de realizar uma reforma agraria, e a Sociedade Rural comentou oficialmente: “Foi uma boa dissertação.” Na Bolívia, graças à reforma agrária de 1952, melhorou visivelmente a alimentação em vastas zonas rurais do altiplano, tanto que até se comprovaram mudanças de estatura dos camponeses. Todavia, o conjunto da população boliviana consome ainda apenas uns 60% das proteínas e a quinta parte do cálcio necessário na dieta mínima; nas áreas rurais, o déficit é ainda mais agudo que estas médias. Não se pode dizer de modo algum que a reforma agrária fracassou, mas a divisão das terras altas não bastaram para impedir que a Bolívia gaste, em nossos dias, a quinta parte de suas divisas para importar alimentos do estrangeiro. A reforma agrária que o governo militar do Peru pôs em prática, em 1969, mostrou ser, desde o início, uma séria experiência de mudança em profundidade. E a respeito da expropriação de alguns latifúndios chilenos por parte do governo de Eduardo Frei, é justo reconhecer que abriu o leito à reforma agrária radical tentada por Allende. AS TREZE COLÔNIAS DO NORTE E A IMPORTÂNCIA DE NÃO NASCER IMPORTANTE A apropriação privada da terra sempre se antecipou, na América Latina, ao seu cultivo útil. Os traços mais retrógrados do sistema de posse, atualmente vigente, não provêm da crise, mas nasceram durante os períodos de maior prosperidade; ao contrário, os períodos de depressão econômica apaziguaram a voracidade dos latifundiários pela conquista de novas extensões. No Brasil, por exemplo, a decadência do açúcar e o virtual desaparecimento do ouro e diamante tornaram possível, entre 1820 e 1850, uma legislação que assegurava a propriedade da terra a quem a ocupasse e a fizesse produzir. Em 1850, a ascensão do café como novo “produto rei” determinou a sanção da Lei de Terras, cozinhada segundo o paladar dos políticos e dos militares do regime oligárquico, para negar a propriedade para os que nela trabalhassem, na medida em que iam-se abrindo, até o sul e o oeste, os gigantescos espaços inteiros do país. Esta lei “foi reforçada e ratificada, desde então, por uma copiosíssima legislação, que estabelecia a compra como única forma de acesso à terra e criava um sistema cartorial de registro que tornava quase impraticável que um lavrador pudesse legalizar sua posse...126 A legislação norte-americana da mesma época propôs-se ao objetivo oposto, para 125. CEPAL, Estudio económico de América Latina, Santiago do Chile, 1964 o 1966, e El uso de fertilizantes en América Latina, Santiago do Chile, 1966. 126. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, Tomo II, Los pueblos nuevos, Buenos Aires, 1969. 92 lotes de 65 hectares. Cada beneficiário comprometia-se a cultivar sua parcela por um período não menor do que cinco anos127. O domínio público colonizou-se com uma rapidez assombrosa: a população aumentava e se propagava como uma enorme mancha de óleo sobre o mapa. A terra acessível, fértil e quase gratuita, atraía os camponeses europeus como um ímã irresistível: cruzavam o oceano e também os Apalaches rumo às pradarias abertas. Foram os granjeiros livres, assim, os que ocuparam os novos territórios do centro e do oeste. Enquanto o país crescia em superfície e em população, criavam-se fontes de trabalho agrícola para evitar o desemprego e ao mesmo tempo gerava-se um mercado interno com grande poder aquisitivo, a enorme massa dos granjeiros proprietários, para sustentar o desenvolvimento industrial. Em compensação, os trabalhadores rurais que há mais de um século mobilizavam com ímpeto a fronteira interior do Brasil, não foram nem são famílias de camponeses livres em busca de uma nesga de terra própria - como observa Darcy Ribeiro - mas, trabalhadores braçais, contratados para servir aos latifundiários, que previamente tomaram posse dos grandes espaços vazios. Os desertos interiores nunca foram acessíveis à população rural. Em proveito alheio, os trabalhadores foram abrindo o país, a golpes de facão, através das selvas. A colonização foi uma simples extensão da área latifundiária. Entre 1950 e 1960, 65 latifúndios brasileiros absorveram a quarta parte das novas terras incorporadas à agricultura128. Estes dois sistemas opostos de colonização interior mostram uma das diferenças mais importantes entre os modelos de desenvolvimento dos Estados Unidos e da América Latina. Por que o norte é mais rico e o sul mais pobre? O rio Bravo marca muito mais do que uma fronteira geográfica. O profundo desequilíbrio de nossos dias, que parece confirmar a profecia de Hegel sobre a inevitável guerra entre uma e outra América, nasceu da expansão imperialista dos Estados Unidos ou tem raízes mais antigas? Na realidade, no norte e no sul tinham-se gerado, já na matriz colonial, sociedades muito pouco parecidas e a serviço de fins que não eram os mesmos129. Os peregrinos do Mayflower não atravessaram o mar para conquistar tesouros legendários nem para arrasar civilizações indígenas inexistentes no norte, mas para se estabelecer com suas famílias e reproduzir, no Novo Mundo, o sistema de vida e de trabalho que praticavam na Europa. Não eram mercenários, mas pioneiros; não vinham para conquistar, mas para colonizar: fundaram “colônias de povoamento”. É certo que o processo posterior desenvolveu, ao sul da baía de Delaware, uma economia de plantações escravistas semelhante a que surgiu na América Latina, mas com a diferença que nos Estados Unidos o centro de gravidade esteve, desde o começo, radicado nas granjas e oficinas da Nova Inglaterra, de onde sairiam os exércitos vencedores da Guerra de Secessão no século XIX. Os colonos da Nova Inglaterra, núcleo original da civilização norte-americana, não atuaram nunca como agentes coloniais da acumulação capitalista européia; desde o princípio, viveram ao serviço de seu próprio desenvolvimento e do desenvolvimento de sua terra nova. As treze colônias do norte serviram de desembocadura ao exército de camponeses e artesãos europeus que o desenvolvimento metropolitano ia lançando fora do mercado de trabalho. Trabalhadores livres formaram a base daquela nova sociedade deste lado do mar. Espanha e Portugal contaram, em compensação, com grande abundância de mão-de-obra servil na América Latina. À escravização dos indígenas sucedeu o transplante em massa dos escravos africanos. Ao longo dos séculos, houve sempre uma legião enorme de camponeses desempregados disponíveis para serem transferidos aos centros de produção: as zonas florescentes coexistiram com as decadentes, ao ritmo dos auges e quedas das exportações de metais preciosos ou açúcar, e as zonas em decadência supriam de 127. Edward C. Kirkland, Historia económica de Estados Unidos, México, 1941. 128. Celso Furtado, Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1969. 129. Lewis Hanke e outros autores Do the Americas have a common history? (Nova Iorque, 1964) soltam em vão a imaginação na ânsia de encontrar identidades entre os processos históricos do norte e do sul. 93 mão-de-obra as zonas florescentes. Esta estrutura persiste até hoje, e ainda implica um baixo nível de salários, pela pressão que os desempregados exercem sobre o mercado de trabalho, e frustra o crescimento do mercado interno de consumo. Mas além disso, ao contrário dos puritanos do norte, as classes dominantes da sociedade colonial latino-americana não se orientaram jamais para o desenvolvimento econômico interno. Seus ganhos vinham de fora; estavam mais vinculados ao mercado estrangeiro do que à própria comarca. Donos de terras, mineiros e mercadores tinham nascido para cumprir esta função: abastecer a Europa de ouro, prata e alimentos. Os caminhos transportavam cargas num só sentido: rumo ao porto e aos mercados de ultramar. Esta é também a chave que explica a expansão dos Estados Unidos como unidade nacional e o fracionamento da América Latina: nossos centros de produção não estavam conectados entre si, porém formavam um leque com o vértice muito longe. As treze colônias do norte tiveram, pode-se bem dizer, a dita da desgraça. Sua experiência histórica mostrou a tremenda importância de não nascer importante. Porque no norte da América não tinha ouro nem prata, nem civilizações indígenas com densas concentrações de população já organizada para o trabalho, nem solos tropicais de fertilidade fabulosa na faixa costeira que os peregrinos ingleses colonizaram. A natureza tinha-se mostrado avara, e também a história: faltavam metais, e mão-de-obra escrava para arrancar metais do ventre da terra. Foi uma sorte, No resto, desde Maryland até Nova Escócia, passando pela Nova Inglaterra, as colônias do norte produziam, em virtude do clima e pelas características dos solos, exatamente o mesmo que a agricultura britânica, ou seja, não ofereciam à metrópole, como adverte Bagú130, uma produção complementar.Muito diferente era a situação das Antilhas e das colônias ibéricas de terra firme. Das terras tropicais brotavam o açúcar, o algodão, o anil, a terebintina; uma pequena ilha do Caribe era mais importante para a Inglaterra, do ponto de vista econômico, do que as treze colônias matrizes dos Estados Unidos. Estas circunstâncias explicam a ascensão e a consolidação dos Estados Unidos, como um sistema economicamente autônomo, que não drenava para fora a riqueza gerada em seu seio. Eram muito frouxos os laços que atavam a colônia à metrópole; em Barbados ou Jamaica, em compensação, só se reinvestiam os capitais indispensáveis para repor os escravos na medida em que se iam gastando. Não foram fatores raciais, como se vê, os que decidiram o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros: as ilhas britânicas das Antilhas não tinham nada de espanholas nem portuguesas. A verdade é que a insignificância econômica das trezes colônias permitiu a precoce diversificação de suas manufaturas. A industrialização norte-americana contou, desde antes da independência, com estímulos e proteções oficiais. A Inglaterra mostrava-se tolerante, ao mesmo tempo que proibia estritamente que suas ilhas antilhanas fabricassem até mesmo um alfinete. AS FONTES SUBTERRÂNEAS DO PODER A ECONOMIA NORTE-AMERICANA PRECISA DOS MINERAIS DA AMÉRICA LATINA COMO OS PULMÕES NECESSITAM DE AR Os astronautas já tinham imprimido as primeiras marcas humanas sobre a superfície da lua, quando, em julho de 1969, o pai da façanha, Werner von Braun, anunciava à imprensa que os Estados Unidos se propunham a instalar uma longínqua estação no espaço, com propósitos bem mais próximos: “Desta maravilhosa plataforma de observa130. Sergio Bagú, op. cit. 94 ção - declarou - poderemos examinar todas as riquezas da Terra: os poços de petróleo desconhecidos, as minas de cobre e de zinco...” O petróleo continua a ser o principal combustível de nosso tempo, e os norte-americanos importam a sétima parte do petróleo que consomem. Para matar vietnamitas, precisam de balas, e balas precisam de cobre: os Estados Unidos compram fora de suas fronteiras a quinta parte do cobre que gastam. A falta de zinco se torna cada vez mais angustiosa: cerca da metade vem do exterior. Não se pode fabricar aviões sem alumínio, e não se pode fabricar alumínio sem bauxita: os Estados Unidos quase não têm bauxita. Seus grandes centros siderúrgicos - Pittsburgh, Cleveland Detroit - não encontram ferro suficiente nas jazidas de Minnesota, que estão a caminho de se esgotarem, nem têm o manganês de que necessita. Para produzir motores do retropropulsão, não contam com níquel nem com cromo em seu subsolo. Para fabricar aços especiais, é preciso ter tungstênio: importam a quarta parte. Esta dependência crescente, em relação aos fornecimentos externos, determina uma identificação também crescente dos interesses capitalistas norte-americanos na América Latina com a segurança nacional dos Estados Unidos. A estabilidade interior da primeira potência do mundo está intimamente ligada às inversões norte-americanas ao sul do rio Bravo. Cerca da metade destas inversões é dedicada à extração de petróleo e à exploração de riquezas minerais, “indispensáveis para a economia dos Estados Unidos, tanto na paz como na guerra”1. O presidente do Conselho Internacional da Câmara de Comércio do país do norte o define assim: “Historicamente, uma das razões principais de os Estados Unidos para investirem no exterior é o desenvolvimento de recursos naturais, particularmente minerais e, mais especialmente, o petróleo. É perfeitamente óbvio que os incentivos deste tipo de inversões devam ser incrementadas. Nossas necessidades de matérias-primas estão em constante aumento, na medida em que a população se expande e o nível de vida sobe. Ao mesmo tempo, nossos recursos domésticos se esgotam...”2 Os laboratórios científicos do governo, das universidades e das grandes corporações envergonham a imaginação com o ritmo febril de suas invenções e descobertas, mas a nova tecnologia não encontrou a maneira de prescindir dos materiais básicos que a natureza, e só ela, proporciona. Vão-se debilitando, ao mesmo tempo, as respostas que o subsolo nacional é capaz de dar ao desafio do crescimento industrial dos Estados Unidos3. O SUBSOLO TAMBÉM PRODUZ GOLPES DE ESTADO, REVOLUÇÕES, ESTÓRIAS DE ESPIONAGEM E AVENTURAS NA SELVA AMAZÔNICA No Brasil, as esplêndidas jazidas de ferro do vale do Paraopeba derrubaram dois presidentes - Jânio Quadros e João Goulart - antes que o marechal Castelo Branco, que tomou o poder em 1964, os cedesse a Hanna Mining Co. Outro amigo anterior do embaixador dos Estados Unidos, o presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-51), tinha concedido à Bethlehem Steel, alguns anos antes, as quarenta milhões de toneladas de manganês do Estado de Amapá, uma das maiores jazidas do mundo, em troca de 1,4% para o Estado sobre as rendas de exportação; desde então, a Bethlehem está transferindo as montanhas 1. Edwin Lieuwcn, The United States and the Challenge to Security in Latin America, Ohio, 1966. 2. Philip Courtney, num trabalho apresentado ante o II Congresso Internacional de Poupança e Inversão, Bruxelas, 1959. 3. Harry Magdoff, La era del imperialismo, em Monthly Review, seleções em castelhano, Santiago do Chile, janeiro-fevereiro de 1969, e Claude Julien, L'Empire Américain, Paris, 1969. 95 para os Estados Unidos com tal entusiasmo que se teme que daqui a quinze anos o Brasil fique sem manganês para abastecer sua própria siderurgia. De resto, de cada cem dólares que a Bethlehem investe na extração de minerais, oitenta e oito correspondem a uma gentileza do governo brasileiro: as isenções fiscais em nome do “desenvolvimento regional”. A experiência do ouro perdido de Minas Gerais - “ouro branco, ouro negro, ouro podre”, escreveu o poeta Manuel Bandeira - não serviu, como se vê, para nada: o Brasil continua despojando-se gratuitamente de suas fontes naturais de desenvolvimento4. Por sua parte, o ditador Renê Barrientos apoderou-se da Bolívia em 1964 e, entre uma e ou tra matança de mineiros, outorgou à firma Philips Brothers a concessão da mina Matilde, que contém chumbo, prata e grandes jazidas de zinco com um teor doze vezes mais alto do que as minas norte-americanas. A empresa foi autorizada a levar o zinco em bruto, para elaborá-lo em suas refinarias estrangeiras, pagando ao Estado nada menos de 1,5% do valor de venda do mineral5. No Peru, em 1968, perdeu-se misteriosamente a página número 11 do convênio que o presidente Belaúnde Terry tinha firmado aos pés de uma filial da Standard Oil; o general Velasco Alvarado derrubou o presidente, tomou as rédeas do país e nacionalizou os poços e a refinaria da empresa. Na Venezuela, no grande lago de petróleo da Standard Oil e da Gulf, tem lugar a maior missão militar norte-americana da America Latina. Os freqüentes golpes de estado da Argentina explodem antes e depois de cada licitação petrolífera. O cobre não está de modo algum alheio à desproporcionada ajuda militar que o Chile recebia do Pentágono até o triunfo eleitoral das forças de esquerda encabeçadas por Salvador Allende; as reservas norte-americanas de cobre tinham caído em mais de 60% entre 1965 e 1969. Em 1964, em seu gabinete de Havana, Che Guevara me mostrou que a Cuba de Batista não era só de açúcar: as grandes jazidas cubanas de níquel e manganês explicavam melhor, em seu juízo, a fúria cega do império contra a revolução. Desde aquela conversa ção, as reservas de níquel dos Estados Unidos se reduziram a um terço: a empresa norte-americana Nicro-Nickel fora nacionalizada e o presidente Johnson ameaçara os metalúrgicos franceses com o embargo de seus envios aos Estados Unidos, se comprassem o minério de Cuba. Os minérios tiveram muito que ver com a queda do governo do socialista Cheddi Jagan, que em fins de 1964 obtivera novamente a maioria dos votos no que então era a Guiana inglesa. O país que hoje se chama Guiana é o quarto produtor mundial de bauxita e figura no terceiro lugar entre os produtores latino-americanos de manganês. A CIA desempenhou um papel decisivo na derrota de Jagan. Arnold Zander, o dirigente máximo da greve que serviu de provocação e pretexto para negar com armadilhas a vitória eleitoral de Jagan, admitiu publicamente, tempos depois, que seu sindicato tinha recebido uma chuva de dólares de uma das fundações da Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos6. O novo regime, muito ocidental e muito cristão, garantiu que não correriam perigo os interesses da Aluminium Company of America na Guiana: a empresa poderia continuar levando, sem sobressaltos, a bauxita, e vendê-la a si mesma ao mesmo preço de 1938, embora desde então houvesse se multiplicado o preço do alumínio7. O negócio já 4. O governo do México advertiu a tempo, em compensação, que o país, um dos principais exportadores de enxofre, estava se esvaziando. A Texas Gulf Sulphur Co. e a Pan American Sulphur tinham assegurado que as reservas com que ainda contavam suas concessões eram seis vezes mais abundantes do que eram na realidade, e o governo resolveu, em 1965, limitar as vendas ao exterior. 5. Sergio Almaraz Paz, Réquiem para una república, La Paz, 1969. 6. Claude Julien, op. cit. 7. Arthur Davies, presidente da Aluminium Co. durante muito tempo, morreu em 1962 e deixou trezentos milhões de dólares de herança às fundações de caridade, com a expressa condição de que não gastassem os fundos fora do território dos Estados Unidos. Nem sequer por esta via pôde a Guiana resgatar ainda que fosse uma parte da riqueza que a empresa lhe arrebatou. (Philip 96 não corria perigo. A bauxita de Arkansas vale o dobro da bauxita da Guiana. Os Estados Unidos dispõem de muito pouca bauxita em seu território; utilizando matéria-prima alheia e muito barata, produzem, em compensação, quase a metade do alumínio que se elabora no mundo. Para abastecer-se da maior parte dos minerais estratégicos que se consideram de valor crítico para seu potencial de guerra, os Estados Unidos dependem das fontes externas. “O motor de retroprosulsão, a turbina de gás e os reatores nucleares têm hoje uma enorme influência sobre a demanda de materiais que só podem ser obtidos no exterior”, diz Magdoff neste sentido8. A imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescindíveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia brasileira. Na década de 60, numerosas empresas norte-americanas, conduzidas pela mão de aventureiros e contrabandistas profissionais, se lançaram num rush febril sobre esta selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipamentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de ondas de luz de intensidade variável, electromagnetrômetros, para radiografar o subsolo rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os informes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas, interessadas no assunto, graças aos bons serviços do Geological Survey do governo dos Estados Unidos9. Na imensa região, comprovou-se a existência de ouro, prata, diamantes, gipsita, hematita, magnetita, tantálio, toro, urânio, quartzo, cobre, manganês, chumbo, sulfatos, potássios, bauxita, zinco, circônio, cromo e mercúrio. O céu da selva virgem de Mato Grosso até as planuras do sul de Goiás é tão aberto que, segundo o delírio da revista Time, em sua última edição latino-americana de 1967, pode-se ver ao mesmo tempo o sol brilhante e alguns relâmpagos de tormentas diferentes. O governo tinha oferecido isenções de impostos e outras vantagens para colonizar os espaços virgens deste universo mágico e selvagem. Segundo o Time, os capitalistas estrangeiros tinham comprado antes de 1967, a sete centavos o acre, uma superfície maior do que a que somam os territórios de Connecticut, Rhode Island, Delaware, Massachusetts e New Hampshire. “Devemos manter as portas abertas à inversão estrangeira - dizia o diretor da SUDAM, agência governamental para o desenvolvimento da Amazonia -, porque necessitamos mais do que podemos obter.”Para justificar o levantamento aerofotogramétrico por parte da aviação norte-americana, o governo tinha declarado, antes, que carecia de recursos. Na América Latina é o normal: sempre entregam os recursos ao imperialismo em nome da falta de recursos. O Congresso brasileiro pôde realizar uma investigação que culminou com um volumoso informe sobre o tema10. Nele se enumeram os casos de venda de terras em vinte milhões de hectares, estendidas de maneira tão curiosa que, segundo a comissão de inquérito, “formam um cordão para isolar a Amazônia do resto do Brasil”. A “exploração clandestina de minerais muito valiosos” figura no informe como um dos principais motivos da avidez norte-americana para abrir uma nova fronteira dentro do Brasil. O testemuReno, Aluminium Profus and Caribbean People, Monthly Review, Nova Iorque, outubro de 1963, e do mesmo autor, El drama de Ia Guyana Británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por el socialismo, Monthly Review, seleções em castelhano, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1965. 8. Harry Magdoff, op. cit. 9. Hermano Alves, A Aerofotogrametria em Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8 de junho de 1967. 10. Informe da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a venda de terras brasileiras a pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras, Brasília, 3 de junho de 1968. 97 nho do gabinete do Ministério do Exército, recolhido no relatório, assinalou “o interesse do próprio governo norte-americano em manter, sob seu controle, uma vasta extensão de terras para sua utilização ulterior, seja para a exploração de minerais, particularmente os radiativos, seja como base de uma colonização dirigida”. O Conselho de Segurança Nacional afirma: “Causa suspeita o fato de que as áreas ocupadas, ou em vias de ocupação, por elementos estrangeiros, coincidam com regiões que estão sendo submetidas a campanhas de esterilização de mulheres brasileiras por estrangeiros”. De fato, segundo o Correio da Manhã, “mais de vinte missões estrangeiras, principalmente as da Igreja protestante dos Estados Unidos, estão ocupando a Amazônia, localizando-se nos pontos mais ricos em minerais radiativos, ouro e diamantes... Empregam em grande escala a esterilização mediante o método DIU (Dispositivo Intra Uterino) e ensinam inglês aos índios catequizados... Suas áreas estão cercadas por elementos armados e ninguém pode penetrar nelas”11. Não é demais advertir que a Amazônia é a zona de maior extensão entre todos os desertos do planeta habitáveis pelo Homem. O controle de natalidade pôs-se em prática neste grandioso espaço vazio, para evitar a competição demográfica dos muito escassos brasileiros que, em remotos rincões da selva ou das planícies imensas, vivem e se reproduzem. Por sua parte, o general Riograndino Kruel afirmou, diante da comissão de inquérito do Congresso, que “o volume de contrabando de materiais que contém tório e urânio alcança a cifra astronômica de um milhão de toneladas”. Algum tempo antes, em setembro de 1966, Kruel, chefe da polícia federal, denunciara “a impertinente e sistemática interferência” de um cônsul dos Estados Unidos no processo aberto contra quatro cidadãos norte-americanos acusados de contrabando de minerais atômicos brasileiros. A seu juízo, se houvesse sido encontrado com eles quarenta toneladas de material radiativo era suficiente para condená-los. Pouco depois, três dos contrabandistas fugiram misteriosamente do Brasil. O contrabando não era um fenômeno novo, embora tivesse intensificado muito. O Brasil perde a cada ano mais de cem milhões de dólares, segundo certas estimativas, somente pela evasão clandestina de diamantes em bruto12. Mas, na realidade, o contrabando só se faz necessário em medida relativa. As concessões legais arrancam ao Brasil, comodamente, suas mais fabulosas riquezas naturais. Para citar mais um exemplo, a maior jazida de nióbio do mundo, que está em Araxá, pertence à filial da Niobium Corporation, de Nova Iorque. Do nióbio provêm vários metais que se utilizam, por sua grande resistência às temperaturas altas, para a construção de reatores nucleares, foguetes e naves espaciais, satélites ou simples jatos. A empresa também extrai, de passagem, junto com o niobio, boas quantidades de tântalo, tório, urânio, pirocloro e terras raras de alto teor mineral. UM QUÍMICO ALEMÃO DERROTOU OS VENCEDORES DA GUERRA DO PACIFICO A história do salitre, seu auge e sua queda, ilustra muito bem a duração ilusória das prosperidades latino-americanas no mercado mundial: é sempre efêmero o sopro de glórias e o peso das catástrofes é sempre perdurável. Em meados do século passado, as negras profecias de Malthus pairavam sobre o Velho Mundo. A população européia crescia vertiginosamente e era imprescindível outorgar nova vida aos solos cansados, para que a produção de alimentos pudesse aumentar em proporção semelhante. O guano revelou suas propriedades fertilizantes nos laboratórios britânicos; desde 1840, começou sua exportação em grande escala a partir da costa peruana. Os alcatrazes e gaivotas, alimentados pelos fabulosos cardumes das correntes 11. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1968. 12. Paulo R. Schilling, Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966. 98 que lambem as margens, iam acumulando nas ilhas e ilhotas, desde tempos imemoriais, grandes montanhas de excrementos ricos em nitrogênio, amoníaco, fosfatos e sais alcalinos: o guano conservava-se puro nas costas sem chuva do Peru13. Pouco depois do lançamento internacional do guano, a química agrícola descobriu que as propriedades nutritivas do salitre eram maiores ainda, e em 1850 já se intensificara seu emprego como adubo nos campos europeus. As terras do velho continente, dedicadas ao cultivo do trigo, empobrecidas pela erosão, recebiam avidamente os carregamentos de nitrato de soda provenientes das salitreiras peruanas de Tarapacá e, depois, da província boliviana de Antofagasta14. Graças ao salitre e ao guano, que jaziam nas costas do Pacífico, “quase ao alcance dos barcos que vinham buscá-los”15, o fantasma da fome se afastou da Europa. A oligarquia de Lima, soberba e presunçosa como nenhuma outra, continua enriquecendo-se a mancheias e acumulando símbolos de seu poder nos palácios e nos mausoléus de mármore de Carrara, que a capital ergue em meio dos desertos de areia. Antigamente, as grandes famílias limenhas floresceram à custa da prata de Potosí, e agora passavam a viver da merda dos pássaros e da seiva branca e brilhante das salitreiras: meios mais grosseiros para os mesmos fins elegantes. O Peru acreditava ser independente, porém a Inglaterra ocupara o lugar da Espanha. “O país se sentiu rico - escrevia Mariátegui. O Estado usou sem medida seu crédito. Viveu no desperdício, hipotecando seu futuro às finanças inglesas.” Em 1868, segundo Romero, os gastos e as dívidas do Estado já eram muito maiores do que o valor das vendas ao exterior. Os depósitos de guano serviam de garantia aos empréstimos britânicos, e a Europa jogava com os preços; a rapina dos exportadores fazia estragos: o que a natureza tinha acumulado nas ilhas ao longo de milênios se desperdiçava em poucos anos. Enquanto isto, nos pampas salitreiros, conta Bermúdez, os operários sobreviviam em choças “miseráveis, um pouco mais altas do que o homem, feitas com pedras, cacos de caliças e barro, de um só quarto”. A exploração do salitre rapidamente se estendeu até a província boliviana de Antofagasta, embora o negócio não fosse boliviano mas peruano e, mais do que peruano, chileno. Quando o governo da Bolívia pretendeu aplicar um imposto às salitreiras que operavam em seu solo, os batalhões do exército do Chile invadiram a província para nunca mais abandoná-la. Até aquela época, o deserto servira de zona de amortecimento para os conflitos latentes entre Chile, Peru e Bolívia. O salitre desencadeou a luta. A guerra do Pacífico explodiu em 1879 e durou até 1883. As forças armadas chilenas, que já em 1879 tinham ocupado também os portos peruanos da região do salitre - Patillos, Iquique, Pisagua, Junín - entraram por fim vitoriosas em Lima, e no dia seguinte a fortaleza de Callao se rendeu. A derrota provocou a mutilação e a sangria do Peru. A economia nacional perdeu seus dois principais recursos, paralisaram-se as forças produtivas, caiu a moeda, fechou-se o crédito exterior16. O colapso não trouxe consigo, advertia Mariátegui, uma liquidação do 13. Ernst Samhaber, Sudamérica, biografia de un continente, Buenos Aires, 1946. As aves guaneiras são as mais valiosas do mundo, escrevia Robert Cushman Murphy muito depois do auge, "por seu rendimento em dólares por cada digestão". Estão por cima, dizia, do rouxinol de Shakespeare que cantava no balcão de Julieta, por cima da pomba que voou sobre a Arca de Noé e, desde logo, das tristes andorinhas de Bécquer. (Emílio Romero, Historia económica del Peru, Buenos Aires, 1949.) 14. Óscar Bermúdez, Historia del salitre desde sus orígenes hasta la Guerra del Pacífico, Santiago do Chile, 1963. 15. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de Ia realidad peruana, Montevidéu, 1970. 16. O Peru perdeu a província salitreira de Tarapacá e algumas importantes ilhas guaneiras, porém conservou as jazidas de guano da costa norte. O guano continuava sendo o fertilizante principal da agricultura peruana, até que a partir de 1960 o auge da farinha de pescado aniquilou os alcatrazes e gaivotas. As empresas pesqueiras, em sua maioria norte-americanas, arrasaram 99 passado: a estrutura da economia colonial permaneceu invicta, ainda que lhe faltassem suas fontes de sustentação. A Bolívia, por seu lado, não se deu conta do que tinha perdido com a guerra: a mina de cobre mais importante do mundo atual, Chuquicamata, se encontra precisamente na província, agora chilena, de Antofagasta. Porém, e os triunfadores? O salitre e o iodo representavam 5% das rendas do Estado chileno em 1880; dez anos depois, mais da metade das receitas fiscais provinha da exportação dos nitratos dos territórios conquistados. No mesmo período as inversões inglesas no Chile triplicaram; a região do salitre converteu-se numa feitoria britânica17. Os ingleses se apoderaram do salitre utilizando procedimentos nada custosos. O governo do Peru tinha expropriado as salitreiras em 1875 e pago com bônus; a guerra abateu o valor destes documentos, cinco anos mais tarde, à décima parte. Alguns aventureiros audazes, como John Thomas North e seu sócio Robert Harvey, aproveitaram-se da conjuntura. Enquanto chilenos, peruanos e bolivianos trocavam tiros no campo de batalha, os ingleses se dedicavam a ficarem com os bônus, graças aos créditos que o Banco de Valparaíso e outros bancos chilenos lhes proporcionavam sem dificuldade alguma. O governo chileno recompensou imediatamente o sacrifício de North, Harvey, Inglis, James, Busch, Robertson e outros laboriosos homens de empresa: em 1881 dispôs a devolução das salitreiras a seus legítimos donos, quando a metade dos bônus tinha passado às mãos bruxas dos especuladores britânicos. Não tinha saído um só penny da Inglaterra para financiar este despojo. Ao iniciar a década do 90, o Chile destinava a Inglaterra três quartas partes de suas exportações, e da Inglaterra recebia quase a metade de suas importações; sua dependência comercial era ainda maior do que a que então padecia a Índia. A guerra outorgara ao Chile o monopólio mundial dos nitratos naturais, porém o rei do salitre era John Thomas North. Uma de suas empresas, a Liverpool Nitrate Company, pagava dividendos de quarenta por cento. Este personagem tinha desembarcado no porto de Valparaíso, em 1886, com apenas dez libras esterlinas no bolso de seu velho traje cheio de pó; trinta anos depois, os príncipes e os duques, os políticos mais proeminentes e os grandes industriais se sentavam à mesa de sua mansão em Londres. North tinha inventado para si um título de coronel e se afiliado, como correspondia a um cavalheiro de seu quilate, ao Partido Conservador e à Loja Maçônica de Kent. Lord Dorchester, Lord Randolph Churchill e o Marquês de Stockpole assistiam suas festas extravagantes, nas quais North dançava disfarçado de Henrique VIII18. Enquanto isto, em seu distante reinado do salitre, os operários chilenos não conheciam o descanso dos domingos, trabalhavam até 16 horas por dia e cobravam seus salários com fichas que perdiam cerca da metade de seu valor nos barracões das empresas. Entre 1886 e 1890, sob a presidência de José Manuel Balmaceda, o Estado chileno realizou, diz Ramírez Necochea, “os planos de progresso mais ambiciosos de toda sua história”. Balmaceda impulsionou o desenvolvimento de algumas indústrias, executou importantes obras públicas, renovou a educação, tomou medidas para romper o monopólio da empresa britânica de ferrovias em Tarapacá e teve da Alemanha o primeiro e único empréstimo que o Chile não recebeu da Inglaterra em todo o século passado. Em 1888, anunciou que era necessário a formação de empresas chilenas, e se negou a vender aos rapidamente os bancos de anchovetas próximos da costa, para alimentar com farinha peruana os cervos e as aves dos Estados Unidos e Europa, e os pássaros guaneiros saíam a perseguir os pescadores, cada vez mais distantes, mar afora. Sem resistência para o regresso, caíam no mar. Outros não iam embora, e assim se podiam ver, em 1962 e em 1963, os bandos de alcatrazes buscando comida pela avenida principal de Lima: quando já não podiam levantar vôo ficavam mortos nas ruas. 17. Hernán Ramírez Necochea, Historia del imperialismo en Chile, Santiago do Chile, 1960. 18. Hernán Ramírez Necochea, Balmaceda y la contra-revolución de 1891, Santiago do Chile, 1968. 100 ingleses as terras salitreiras de propriedade do Estado. Três anos mais tarde explodiu a guerra civil. North e seus colegas financiaram folgadamente os rebeldes19 e os barcos britânicos de guerra bloquearam a costa do Chile, enquanto em Londres a imprensa bradava contra Balmaceda, “ditador da pior espécie”, “carniceiro”. Derrotado, Balmaceda se suicidou. O embaixador inglês informou ao Foreign Ofice: “A comunidade britânica não faz segredos de sua satisfação pela queda de Balmaceda, cujo triunfo, se crê, teria implicado sérios prejuízos aos interesses comerciais britânicos.” De imediato diminuíram as inversões estatais em estradas, ferrovias, colonização, educação e obras públicas, e as empresas britânicas estendiam seus domínios. Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, dois terços da receita nacional do Chile provinham da exportação de nitratos, porém o pampa salitreiro era mais amplo e indiferente do que nunca. A prosperidade não serviu para desenvolver e diversificar o país, mas acentuou, ao contrário, suas deformações estruturais. O Chile funcionava como um apêndice da economia britânica: o mais importante provedor de adubos do mercado europeu não tinha direito à vida própria. E então um químico alemão, em seu laboratório, derrotou os generais que tinham triunfado, anos atrás, nos campos de batalha. O aperfeiçoamento do processo Haber-Bosch, para produzir nitratos fixando o nitrogénio do ar, deslocou o salitre definitivamente e provocou a estrepitosa queda da economia chilena. A crise do salitre foi a crise do Chile, profunda ferida, porque o Chile vivia do salitre e para o salitre e o salitre estava em mãos alheias. No ressecado deserto do Tamarugal, onde os reflexos da terra chegam a queimar os olhos, fui testemunha do arrasamento de Tarapacá. Aqui tinha 120 usinas salitreiras na época do auge, e agora só resta uma em funcionamento. No pampa, não há umidade nem cupins, de modo que não só se venderam as máquinas como sucata, mas também as tábuas de pinho-de-riga das melhores casas, as pranchas de zinco e até as travas e cravos intactos. Surgiram operários especializados em desarmar povoados: eram os únicos que conseguiam trabalho nestas imensidades arrasadas ou abandonadas. Vi os escombros e os buracos, os povoados-fantasmas, as vias mortas da Nitrate Railways, os fios já mudos dos telégrafos, os esqueletos das usinas salitreiras despedaçadas pelo bombardeio dos anos, as cruzes dos cemitérios que o vento frio golpeia às noites, os montes esbranquecidos que os detritos da caliça iam erguendo junto às escavações. “Aqui corria dinheiro e todos acreditavam que não acabaria nunca”, me contaram os habitantes sobreviventes. Eles idealizaram o passado, que parece um paraíso em oposição ao presente, e até dos domingos - que em 1889 ainda não existiam para os trabalhadores e que foram conquistados na marra pela luta sindical - se recordam com todos os fulgores: “Cada domingo no pampa salitreiro - me contava um velho ancião muito velho - era para nós uma festa nacional, um novo 18 de setembro cada semana.” Iquique, o maior porto do salitre, “porto de primeira” segundo seu dístico oficial, tinha sido o cenário de mais de uma matança de operários, porem em seu teatro municipal, em estilo belle époque, chegavam os melhores cantores da opera européia. 19. O congresso encabeçava a oposição ao presidente e era notária a debilidade que muitos de seus membros sentiam pelas libras esterlinas. O suborno de chilenos era, segundo os ingleses, "um costume do país". Assim o definiu em 1897 Robert Harvey, o sócio de North, durante a causa que alguns pequenos acionistas tentaram contra ele e outros diretores de The Nitrate Railways Co. Explicando o desembolso de cem mil libras com fins de suborno, disse Harvey: "A administração pública no Chile, como você sabe, é muito corrompida... Não digo que seja necessário cortejar juízes, porém creio que muitos membros do Senado, escassos de recursos, tiraram algum benefício de parte desde dinheiro em troca de seus votos; e que serviu para impedir que o governo se negasse em absoluto a ouvir nossos protestos e reclamações..." (Hernán Ramirez Necochea, op. cit.) 101 DENTES DE COBRE SOBRE O CHILE O cobre não demorou muito a ocupar o lugar do salitre como viga-mestra da economia chilena, ao tempo em que a hegemonia britânica abria passagem ao domínio dos Estados Unidos. Em vésperas da crise de 29, as inversões norte-americanas no Chile ascendiam já a mais de US$ 400 milhões, quase todos destinados à exploração e ao transporte do cobre. Até a vitória eleitoral das forças da Unidade Popular em 1970, as maiores jazidas do metal vermelho continuavam em mãos da Anaconda Copper Mining Co. e da Kennecott Copper Co., duas empresas intimamente vinculadas entre si como partes de um mesmo consórcio mundial. Em meio século, ambas remeteram US5 4 milhões do Chile para suas matrizes, caudaloso sangue esvaído por diversas rubricas, e realizaram como contrapartida, segundo suas próprias cifras aumentadas, uma inversão total de 800 milhões, quase toda proveniente de lucros arrancados ao país20. A hegemonia foi aumentando à medida que a produção crescia, até superar os US$ 100 milhões por ano nos últimos tempos. Os donos do cobre eram os donos do Chile. Na segunda-feira 21 de dezembro de 70, Salvador Allende, já presidente, falou da sacada do palácio do governo para uma multidão fervorosa; anunciou que acabara de assinar o projeto de reforma constitucional que tornava possível a nacionalização da grande mineração. Em 1969, disse, a Anaconda conseguira no Chile lucros de US$ 79 milhões, que eqüivaliam a 80% de suas receitas em todo o mundo: e no entanto, continuou, a Anaconda tem no Chile menos da sexta parte de suas inversões no exterior. A guerra bacteriológica da direita, planificada campanha de propaganda, destinada a semear o terror para evitar a nacionalização do cobre e as demais reformas de estrutura anunciadas pela esquerda, tinha sido tão intensa como nas eleições anteriores. Os jornais exibiam pesados tanques soviéticos rondando o palácio presidencial de La Moneda; sobre as paredes de Santiago os guerrilheiros barbudos apareciam arrastando jovens inocentes rumo à morte; escutava-se a campainha de cada casa, uma senhora explicava: “Você tem quatro crianças? Dois irão para União Soviética e dois para Cuba.” Tudo foi inútil: o cobre “se põe ponchos e esporas”, volta a ser chileno. Os Estados Unidos, por sua parte, com as pernas presas na armadilha das guerras no Sudeste Asiático não ocultaram o mal-estar oficial ante a marcha dos acontecimentos no sul da cordilheira dos Andes. Porém o Chile não está ao alcance de uma súbita expedição de marines, e afinal de contas, Allende era presidente com todos os requisitos da democracia representativa que o país do norte formalmente prega. O imperialismo atravessa as primeiras etapas de um novo ciclo crítico, cujos signos se tornaram claros na economia; sua função de polícia mundial se faz cada vez mais cara e mais difícil. E a guerra de preços? A produção chilena é vendida em diversos mercados e pode abrir amplos mercados novos entre os países socialistas; os Estados Unidos carecem de meios para bloquear, em escala universal, as vendas do cobre que os chilenos se dispuseram a recuperar. Muito diferente era, por certo, a situação do açúcar cubano doze anos atrás, destinado inteiramente ao mercado norte-americano e por inteiro dependendo dos preços norte-americanos. Quando Eduardo Frei ganhou as eleições de 64, a cotização do cobre subiu de imediato com visível alívio; quando Allende ganhou as de 70, o preço, que já vinha baixando, declinou ainda mais. Porém o cobre, habitualmente submetido às mais agudas flutuações de preços, gozara de preços consideravelmente altos nos últimos anos; como a demanda excede à oferta, a escassez impede que o nível caia muito abaixo. Apesar de o alumínio ter 20. As mesmas empresas industrializam o mineral chileno em suas fábricas distantes. Anaconda American Brass, Anaconda Wire and Cable e Kennecott Wire and Cable figuram entre as principais fábricas de bronze e arame do mundo inteiro. José Cademartori, La economia chilena, Santiago do Chile, 1968. 102 ocupado, em grande medida, seu lugar como condutor de eletricidade, o alumínio também requer cobre, e como não se encontraram sucedâneos mais baratos e eficazes para deslocá-lo da indústria do aço nem da química, o metal vermelho continua sendo a matéria-prima principal das fábricas de pólvora, latão e arame21. Ao longo das escarpas da cordilheira, o Chile possui as maiores reservas de cobre do mundo, a terça parte do total até hoje conhecido. O cobre aparece, em geral, associado a outros metais como ouro, prata ou molibidênio. Isto é um fator adicional para estimular sua exploração. De resto, os operários chilenos são baratos para as empresas: com seus baixíssimos custos no Chile, a Anaconda e Kennecott financiam com sobras seus altos custos nos Estados Unidos, do mesmo modo que o cobre chileno paga, pela via dos “gastos no exterior”, mais de US5 10 milhões por ano para a manutenção dos escritórios em Nova Iorque. O salário médio das minas chilenas alcançava, em 1964, a oitava parte do salário básico nas refinarias da Kennecott nos Estados Unidos, apesar de que a produtividade de uns e outros estivessem ao mesmo nível22. Não eram iguais, em compensação, nem o são, as condições de vida. Em geral, os mineiros chilenos vivem em quartos estreitos e sórdidos, separados de suas famílias, que moram em casebres miseráveis nos subúrbios; separados também, é claro, do pessoal estrangeiro, que nas minas vivem num universo à parte, minúsculos estados dentro do Estado, onde se fala inglês e até se editam jornais para seu uso exclusivo. A produtividade operária foi aumentando, no Chile, à medida que as empresas mecanizaram seus meios de exploração. Desde 1945, a produção de cobre aumentou em 50%, porém a quantidade de trabalhadores ocupados nas minas reduziu-se numa terça parte. A nacionalização porá fim a um estado de coisas que se tornara insuportável para o país, e evitará que se repita, com o cobre, a experiência de saque e queda no vazio que sofreu o Chile no ciclo do salitre. Porque os impostos que as empresas pagam ao Estado não compensam de modo algum o esgotamento inflexível dos recursos minerais que a natureza concedeu, mas que não renovará. De resto, os impostos diminuíram, em termos relativos, desde 1955, quando se estabeleceu o sistema de tributação decrescente de acordo com os aumentos da produção, e desde a “chilenização” do cobre disposta pelo governo de Frei. Em 1965, Frei converteu o Estado em sócio da Kennecott e permitiu às empresas pouco menos que triplicar seus lucros através de um regime tributário muito favorável para elas. Os gravames se aplicaram, no novo regime, sobre um preço médio de 29 centavos de dólar por libra, embora o preço se elevasse, empurrado pela grande demanda mundial, até os setenta centavos. O Chile perdeu, pela diferença de impostos entre o preço fictício e o real, uma enorme quantidade de dólares, como o reconheceu o próprio Radomiro Tomic, candidato escolhido pela Democracia-Cristã para suceder Frei no período seguinte. Em 1969, o governo Frei pactuou com a Anaconda um acordo para comprar-lhe 51 % das ações em quotas semestrais, em condições tais que deflagaram um novo escândalo político e deram maior impulso ao crescimento das forças de esquerda. O presidente da Anaconda dissera previamente ao presidente do Chile, segundo a versão divulgada pela imprensa: “Excelência: os capitalistas não conservam os bens por motivos sentimentais, mas por razões econômicas. comum que uma família guarde um guarda-roupa porque pertenceu ao avô; porém as empresas não têm avós. A Anaconda pode vender todos seus bens. Só depende do preço que lhe paguem.” A maré nacionalista cresce por todas as partes e nem sequer o bom-humor pode limitá-la: o mal menor da “nacionalização Pactuada” teve vida escassa. A estrutura do mercado internacional do cobre está se desarmando perigosamente, e os quatro maiores 21. R. l. Grant-Suttie, Sucedáneos del cobre, em Finanzas y Desarrollo, revista do FMI e do BIRD, junho de 1969. 22. Mario Vera e Elmo Catalán, La encrucijada del cobre, Santiago do Chile, 1965 103 produtores - Chile, Zâmbia, Congo e Peru - estão se reunindo, há algum tempo, para aplicar uma política comum em defesa dos preços. Em fins de 1969, a filial peruana da American Smelting and Refining Co. aceitou assinar um contrato que lhe permitia conservar a riquíssima mina de Cuajone, que lhe fora concedida muitos anos atrás. Mas os termos deste contrato, a despeito de algumas “cláusulas tradicionais”, de certo modo refletem a debilidade e o desespero do truste ante uma situação internacional mais desfavorável do que nunca para seus interesses. Em condições normais, a American Smelting não teria aceito a liquidação de muitos dos privilégios que convertiam cada mina estrangeira num todo-poderoso enclave, alheio às necessidades de desenvolvimento da economia peruana; nas novas condições, impostas pelo nacionalismo em ascensão, a empresa se apressou a expressar em voz alta sua satisfação pelos termos do acordo. Embora subsistam profundas divergências de interpretação em torno do texto do convênio, o governo afirma que o recém-estabelecido monopólio da comercialização de minerais compreende também o cobre de Cuajone. Além disso, o Estado reserva o refino para suas usinas em projeto, que terão prioridade para receber o cobre bruto; a empresa fica obrigada a contratar técnicos peruanos e a compartilhar com o Estado suas inovações tecnológicas, além de comprometer-se a cumprir um plano de exploração, que estabelece prazos definidos para as inversões e para a produção. Por não cumprir as condições fixadas nas novas leis minerais, a Anaconda e a Smelting perderam já suas jazidas de monte Verde e Michiquillay, duas vastas reservas que tinham permanecido intocadas durante meio século. OS MINEIROS DO ESTANHO, POR BAIXO E POR CIMA DA TERRA Há pouco menos de um século, um homem meio morto de fome pelejava contra as rochas em meio às desolações do altiplano da Bolívia. A dinamite explodiu. Quando ele se aproximou para recolher os pedaços de pedra triturados pela explosão, ficou deslumbrado. Tinha, nas mãos, pedaços fulgurantes do veio de estanho mais rico do mundo. Ao amanhecer do dia seguinte, montou a cavalo rumo a Huanuni. A análise das amostras confirmou o valor do achado. O estanho podia marchar diretamente do filão ao porto, sem sofrer nenhum processo de concentração. Aquele homem se converteu no rei do estanho, e quando morreu, a revista Fortune afirmou que era um dos dez multimilionários mais multimilionários do planeta. Chamava-se Simón Patiño. Da Europa, durante muitos anos fez e desfez presidentes e ministros da Bolívia, planificou a fome de seus operários, organizou as matanças, ramificou e estendeu sua fortuna pessoal: a Bolívia era um país que existia para ele, a seu serviço. A partir das heróicas jornadas revolucionárias de abril de 1952, a Bolívia nacionalizou o estanho. Porém, já então, aquelas riquíssimas minas tinham-se tornado pobres. A serra Juan del Valle, onde Patiño descobrira seu fabuloso filão, a lei do estanho tinha-se reduzido 120 vezes. Das 156 mil toneladas de rocha que saem mensalmente pelas bocas-de-minas só se recuperam 400. As perfurações já somam, em quilômetros, uma distância duas vezes maior do que a que separa a mina da cidade de La Paz: a serra é, por dentro, um formigueiro esburacado por infinitas galerias, passadiços, túneis e chaminés. Está a caminho de se converter numa casca vazia. Cada ano perde um pouco mais de altura, e a derrubada vai carcomendo a crostra: parece, de longe, um dente cariado. Antenor Patiño não só cobrou uma indenização considerável pelas minas já quase exaustas que seu pai tinha espremido, mas manteve, além disso, o controle do preço e do destino do estanho expropriado. De suas mansões na Europa, não parava de rir. “Mister Patiño é o afável rei do estanho boliviano”, continuariam dizendo as crônicas sociais muitos anos depois da nacionalização23. Porque a nacionalização, conquista fundamental da 104 revolução de 1952, não modificara o papel da Bolívia na divisão internacional do trabalho. A Bolívia continuou exportando o mineral em bruto, e quase todo estanho se refina ainda nos fornos de Liverpool da empresa Williams, Harvey and Co., que pertence a Patiño. A nacionalização das fontes de produção de qualquer matéria-prima não é, como ensina a dolorosa experiência, suficiente. Um país pode continuar tão condenado à impotência como sempre, embora se seja normalmente dono do subsolo. A Bolívia produziu, ao longo de sua história, minerais em bruto e discursos refinados. Abundam a retórica e a miséria; os escritores cafonas e os doutores encasacados se dedicaram sempre a absolver os culpados de qualquer culpa. De cada dez bolivianos, seis não sabem, ainda, ler; a metade das crianças não vai à escola. Até 1971, a Bolívia deveria ter em funcionamento sua própria fundição nacional de estanho, levantada em Oruro ao fim de uma infinita história de traições, sabotagens, intrigas e sangue derramado24. Este país que não pôde, até agora, produzir seus próprios lingotes, se dá ao luxo, em compensação, de contar com oito diferentes faculdades de Direito que fabricam vampiros de índios em quantidades industriais. Contam que, um século atrás, o ditador Mariano Melgarejo obrigou o embaixador da Inglaterra a beber um barril inteiro de chocolate, em castigo por ter desprezado um copo de chicha. O embaixador foi exibido num burro, montado ao contrário, pela principal rua de La Paz. E foi devolvido a Londres. Dizem que então a rainha Vitória, enfurecida, pediu um mapa da América do Sul, riscou uma cruz sobre a Bolívia e sentenciou: “Bolívia não existe.” Para o mundo, com efeito, a Bolívia não existia nem existiu depois: o saque da prata e, posteriormente, o despojo do estanho não foram mais do que o exercício de um 23. O New Yorque Times, de 13 de agosto de 1969, o definia nestes termos, ao descrever em êxtase as férias do duque e duquesa de Windsor no suntuoso castelo do século XVI que Patiño possui nos arredores de Lisboa. "Gostamos de dar aos empregados um pouco de calma e paz", confessava a senhora, enquanto explicava a Charlotte Curtis seu programa do dia. Depois, é o tempo das férias de montanha na Suíça: os fotógrafos se abalançam sobre os condes e os artistas da moda em Saint-Moritz; as revistas os exibem. Uma milionária de cinqüenta anos acaba de perder seu segundo marido, vice-presidente da Ford, e sorri diante dos flashes: anuncia seu próximo casamento com um rapazola que a toma pelo braço e a olha com olhos assustados. Ao lado, outro casal do grande mundo. Ele é um homem de baixa estatura e traços de índio, olhos duros, nariz achatado, pôrnulos salientes. Antenor Patiño continua parecendo boliviano. Em outra revista, Antenor aparece disfarçado de príncipe oriental, com turbante e tudo, entre vários príncipes autênticos que se reuniram no palácio do barão Alexis de Rédé: a princesa Margarida da Dinamarca, o príncipe Henrique, Maria Pia de Saboya e seu primo Miguel de Borbón-Parma, o príncipe Lobckowitz e outros trabalhadores. 24. Quando o general Alfredo Ovando anunciou, em julho de 1966, que se chegara a um acordo com a empresa alemã Klochner para instalar os fornos estatais, disse que teriam um novo destino "estas pobres minas que somente serviram, até agora, para abrir socavãos nos pulmões de nossos irmãos mineiros". Estes homens que dão suas vidas pelo mineral, escrevia Sergio Almaraz (El poder y la caída. El estaño en Ia historia de Bolívia, La Paz-Cochabamba, 1967), "não o possuem. Nunca o possuíram; nem antes nem depois de 1952. Porque o que acontece é que o estanho nada vale, quanto ao aproveitamento imediato, senão sob o brilhante aspecto de um lingote. O mineral, pó pesado de aspecto terroso, certamente não serve para nada que não seja para despejá-lo na boca do forno." Almaraz contou a história de um industrial, Mariano Peró, que guerreou uma guerra solitária, ao longo de mais de trinta anos, para que o estanho boliviano fosse refinado em Oruro e não em Liverpool. Em 1946, poucos dias depois da queda do presidente nacionalista Gualberto Villaroel, Perá entrou no Palácio Quemado. Ia recolher os lingotes de estanho. Eram os primeiros lingotes produzidos em sua fundição de Oruro, e já não tinha sentido que aquele par de símbolos, que encarnavam a nação, continuassem adornando o escritório do presidente da república. Villaroel fora enforcado num poste da Plaza Murillo e o poder da rosca oligárquica foi restaurado a partir de sua queda. Mariano Peró recolheu os lingotes e foi-se embora com eles. Estavam manchados de sangue já seco. 105 direito natural dos países ricos. Afinal, a embalagem de lata identifica os Estados Unidos tanto como o emblema da águia ou a torta de maça. Porém a embalagem de lata não é somente um símbolo pop dos Estados Unidos: é também um símbolo, embora não se saiba, da silicose nas minas de Siglo XX ou Huanuni: os mineiros bolivianos morrem com os pulmões apodrecidos, para que o mundo possa consumir estanho barato. A lata contém estanho, e o estanho não vale nada: meia dúzia de homens fixa seu preço mundial. O que significa, para os consumidores de conservas ou manipuladores da bolsa, a dura vida do mineiro na Bolívia? Os norte-americanos compram a maior parte do estanho que se refina no planeta: segundo os dados da FA O, o cidadão médio dos Estados Unidos consome cinco vezes mais carne e leite e vinte e cinco vezes mais ovos do que o habitante da Bolívia. E os mineiros estão muito abaixo da baixa média nacional. No cemitério de Catavi, onde os cegos rezam pelos mortos em troca de uma moeda, dói encontrar, entre as lápides escuras dos adultos, uma inumerável quantidade de cruzes brancas sobre tumbas pequenas. De cada duas crianças nascidas nas minas, uma morre pouco tempo depois de abrir os olhos. A outra, a que sobrevive, será seguramente mineiro quando crescer. E antes de chegar aos 35 anos, já não terá pulmões. O cemitério geme. Por baixo das tumbas foram cavados infinitos túneis, socavões de boca estreita, onde cabem apenas os homens que se introduzem, como tatus, em busca do mineral. Novas jazidas de estanho acumularam-se nos desmontes ao longo dos anos; toneladas de resíduos sobre resíduos transformaram-se em gigantescos montes cinzentos que somaram, assim, estanho ao estanho da paisagem. Quando cai a chuva, que se lança com violência das nuvens próximas, os desempregados se agacham ao longo das ruas de terra de Llallagua, onde os homens se embebedam desesperadamente nas chicherías: vão recolhendo e medindo o peso do estanho que a chuva arrasta consigo. Aqui, o estanho é um deus de lata que reina sobre os homens e as coisas, e está presente em todas partes. Não só há estanho no ventre do velho morro de Patiño. Há estanho, delatado pelo brilho negro da cassiterita, até nas paredes de adobe dos acampamentos. Também tem estanho a lama amarelenta que avança arrastando os desperdícios da mina e o têm as águas que fluem, envenenadas, da montanha; encontra-se estanho na terra e na rocha, na superfície e no subsolo, nas areias e nas Pedras do leito do rio Seco, nas terras áridas e pedregosas, a quase quatro mil metros de altura, onde não cresce o capim e onde tudo, até as pessoas, tem a escura cor do estanho. Os homens sofrem resignadamente o jejum e não conhecem a festa do mundo. Vivem nos acampamentos, amontoados em casa de uma só peça de chão de terra; o vento cortante penetrando pelas frestas. Um informe universitário sobre a mina de Colquiri revela que, de cada dez varões jovens pesquisados, seis dormem na mesma cama com suas irmãs: “Muitos pais se sentem incomodados, quando seus filhos os observam durante o ato sexual”. Não há banheiros; as latrinas são pequenos cubículos públicos tampados de imundície e moscas. As pessoas usam os quintais, terrenos abertos, onde ao menos circula o ar, apesar da sujeira e dos excrementos dos porcos que refuçam felizes. Também é coletivo o serviço de água: há que esperar o momento em que a água chega e apressar-se, fazer a fila, recolher a água da pia pública em latas de gasolina ou baldes. A comida é escassa e feia. Consiste em batatas, macarrões, arroz, farinha, milho moído e, às vezes, um pouco de carne dura. Estávamos muito no fundo do morro Juan del Valle. O silvo penetrante da sirene, que chamava os trabalhadores da primeira ponta, tinha ressoado no acampamento várias horas antes. Percorrendo galerias, tínhamos passado do calor tropical ao frio polar e novamente ao calor, sem sair, durante horas, de uma mesma atmosfera envenenada. Aspirando aquele ar espesso - umidade, gases, pó, fumaça -, podia-se compreender porque os mineiros perdem, em poucos anos, os sentidos do olfato e do sabor.Todos mastigavam, enquanto trabalhavam, folhas de coca com cinza, e isto também fazia parte da obra de 106 aniquilação, porque a coca, como se sabe, ao adormecer a fome e mascarar a fadiga, vai apagando o sistema de alarma com que conta o organismo para continuar vivo. Porém o pior era o pó. Os cascos das vigas irradiam uma ondulação de círculos de luz que salpicavam a gruta negra e deixavam ver, em sua passagem, cortinas de branco pó denso: o implacável pó de sílica. O mortal alento da terra vai envolvendo pouco a pouco. Em um ano já se sentem os primeiros sintomas, e em dez anos se ingressa no cemitério. Dentro da mina se usam perfuradoras suecas, último modelo, porém os sistemas de ventilação e as condições de trabalho não melhoraram com o tempo. Na superfície, os trabalhadores independentes usam a picareta e pesadas marretas de doze libras para lutar contra a rocha, exatamente igual a cem anos atrás, e peneiras, crivadores e foles para concentrar o mineral no terreno da mina. Ganham centavos e trabalham como bestas. Todavia, muitos deles têm, pelo menos, a vantagem do ar livre. Dentro da mina, em compensação, os operários são presos, condenados, sem apelação, à morte por asfixia. Já tinha cessado o estrépito das brocas e os operários davam uma pausa enquanto aguardávamos a explosão de mais de vinte cargas de dinamite. A mina também oferece mortes rápidas e sonoras: basta errar na contagem das denotações, ou que uma mecha demore mais do que o devido em se queimar. Basta também que uma pedra, um tojo, se desprenda sobre o crânio. Ou basta o inferno das metralhadoras: a noite de São João de 1967 foi a última conta de um longo rosário de matanças. Na madrugada os soldados tomaram posição nas colinas, joelhos na terra, e lançaram um furacão de balas sobre os acampamentos iluminados pelas fogueiras da festa25. Porém a morte lenta e silenciosa constitui a especialidade da mina. O vômito de sangue, a tosse, a sensação de um peso de chumbo sobre as costas e uma aguda opressão no peito são os sinais que a anunciam. Depois da análise médica vem as peregrinações burocráticas de nunca se acabar. Dão um prazo de três meses para desalojar a casa. Já tinha cessado o estrépito das brocas e logo a explosão alcançaria aquele escorregadio veio cor de café e forma de víbora. Então pudemos falar. O volume da coca inchava a bochecha de cada operário e pelas comissuras dos lábios corriam os fios verdosos. Um mineiro passou, apressado, espalhando barro por entre os trilhos da galeria. “Este é um novato - me disseram. - Viu? Com sua calça do exército e seu boné amarelo se vê tão jovem. Entrou agorinha e como trabalha. Ainda é um sobressalente. Ainda não sente.” Os tecnocratas e os burocratas não morrem de silicose, mas vivem dela. O gerente-geral da Comibol, Corporação Mineira Boliviana, ganha cem vezes mais do que um operário. De um barranco que cai em prumo sobre o leito do rio, no limite de Llallagua, pode-se ver o 25. "Quando me assento, bêbado estou. Três, quatro, vejo as pessoas. Não posso comer só. Uma huahua sou, pois. Uma criança." Saturnino Condori, velho pedreiro do acampamento mineiro de Siglo XX, está deitado há quatro anos numa cama do hospital de Catavi. É uma das vítimas da matança da noite de São João, em 1967. Nem sequer tinha festejado nada. Por trabalhar no sábado, dia 24, lhe tinham prometido pagar o triplo, e assim decidiu não mergulhar, ao contrário de todos os outros, no delírio da chichicha e da farra. Deitou-se cedo. Esta noite sonhou com um cavaleiro que lhe jogava espinhas no corpo: "Espinhas grandes me iam chuchando." Acordou várias vezes, porque a chuva de balas se desencadeou sobre o acampamento desde as cinco horas da manhã."Meu corpo se desfez, se descompôs, o calor me pegou e eu assustado, e eu assustado. Minha mulher me diz: se manda, foge. Porém eu, o que tinha feito? Não fui a parte alguma. Se manda, se manda, me disse. Tiroteios tinha de noite, que será isso, que será, pap-pap-pap-pappap. E assim mesmo acordando e dormindo assim aos poucos, e nem assim mesmo me escapei, a minha mulher me disse: pois se manda, pois se manda, foge. O que vão me fazer, digo, eu sou pedreiro particular, que me vão fazer". Acordou com isso das balas às oito da manhã. Ergueu-se sobre o catre. A bala atravessou o teto, atravessou o chapéu da mulher e se enfiou no corpo dele e lhe arrebentou a coluna vertebral. 107 pampa de María Barzola. Chama-se assim em homenagem à militante operária que faz trinta anos caiu, à frente de uma manifestação, com a bandeira da Bolívia costurada no corpo pelas rajadas das metralhadoras. E além do pampa de Maria Barzola pode-se ver o melhor campo de golfe de toda a Bolívia: é o que usam engenheiros e principais funcionários de Catavi. O ditador Renê Barrientos reduziu à metade os salários de fome dos mineiros, em 1964 , e ao mesmo tempo aumentou as retribuições dos técnicos e burocratas proeminentes. Os soldos do pessoal superior são secretos. Secretos e em dólares. Há um todo-poderoso grupo assessor,formado por técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Aliança para o Progresso e do banco estrangeiro credor, cujos conselhos orientam o setor mineral nacionalizado da Bolívia, de tal maneira que, a esta altura, a Comibol, convertida num Estado dentro do Estado, constitui uma propaganda viva contra a nacionalização de qualquer coisa. O poder da velha rosca oligárquica foi substituído pelo poder dos numerossíssimos membros da “nova classe” que dedicou seus melhores esforços para sabotar, por dentro, a mineração estatal. Os engenheiros não só torpedearam todos os projetos e planos destinados à criação de uma fundição nacional, mas, além disso, contribuíram para que as minas do Estado ficassem fechadas nos limites das velhas jazidas de Patiño, Aramayo e Hochschild, em acelerado processo de esgotamento de reservas. Entre fins de 1964 e abril de 1969, o general Barrientos rompeu a barreira do som na entrega dos recursos do subsolo boliviano ao capital imperialista, com a cumplicidade aberta dos técnicos e dos gerentes. Sérgio Almaraz contou, num de seus livros26, a história da concessão da exploração de estanho à International Mining Processing Co. Com um capital declarado de apenas cinco mil dólares, a empresa de tão pomposo nome obteve um contrato que lhe permitirá ganhar mais de 900 milhões. DENTES DE FERRO SOBRE O BRASIL Para os Estados Unidos sai mais barato o ferro que recebem do Brasil ou da Venezuela do que o ferro que extraem de seu próprio subsolo. Porém, esta não é a chave do desespero americano para apoderar-se da jazidas de ferro no exterior: a captura das minas fora de fronteiras constitui, mais do que um negócio, um imperativo de segurança nacional. O subsolo norte-americano está ficando, como vimos, exausto. Sem ferro não se pode fazer aço e 80% da produção industrial dos Estados Unidos contém, de uma forma ou de outra, aço. Quando em 1969 se reduziram os abastecimentos do Canadá, isto se refletiu de imediato num aumento das importações de ferro da América Latina. A serra Bolívar, na Venezuela, é tão rica que a terra que lhe arranca a US Steel Co. é descarregada diretamente nos porões dos navios rumo aos Estados Unidos, e já exibe em seus flancos, as profundas feridas que lhe vão infligindo os bulldozers: a empresa calcula que contém cerca de oito bilhões de dólares em ferro. Em um só ano, 1960, a US Steel e a Bethlehem Steel repartiram lucros de mais de 30% de seus capitais investidos no ferro da Venezuela, e o volume destes lucros foi igual à soma de todos os impostos pagos ao Estado venezuelano nos dez anos transcorridos desde 195027. Como ambas as empresas vendem o ferro com destino a suas próprias usinas siderúrgicas nos Estados Unidos, não têm o menor interesse em defender os preços; ao contrário, convém que a matéria-prima seja a mais barata possível. A cotação internacional do ferro, que caíra em linha vertical entre 1958 e 1964, estabilizou-se relativamente nos anos posteriores e permanece estancada; enquanto isto, o preço do aço não parou de subir.O aço se produz nos centros ricos do mundo, e o ferro nos subúrbios pobres; o aço paga salários de “aristocracia operária,- e o ferro diárias de mera 26. Sergio Almaraz Paz, op. cit. 27. Salvador de la Plaza, no volume coletivo Perfiles de la economia venezolana, Caracas, 1964. 108 subsistência. Graças à informação que recolheu e divulgou, lá pelo ano de 1910, o Congresso Internacional de Geologia, reunido em Estocolmo, os homens de negócios dos Estados Unidos puderam pela primeira vez avaliar as dimensões dos tesouros escondidos sob o solo de uma série de países, um dos quais, talvez o mais tentador, era o Brasil. Muitos anos depois, em 1948, a embaixada dos Estados Unidos criou um cargo novo no Brasil, o adido mineral, que de entrada teve pelo menos tanto trabalho como o adido militar ou cultural. Tanto, que rapidamente foram designados dois adidos minerais em vez de um28.Pouco depois, a Bethlehem Steel recebia do governo de Dutra dois esplêndidos filões de manganês do Amapá. Em 1952, o acordo militar assinado com os Estados Unidos proibiu o Brasil de vender as matérias-primas de valor estratégico -como o ferro - aos países socialistas. Esta foi uma das causas da trágica queda do presidente Getúlio Vargas, que desobedeceu esta imposição vendendo ferro à Polônia e Tchecoslováquia, em 1953 e 1954, a preços muito mais altos do que os que pagavam os Estados Unidos. Em 1957, a Hanna Mining Co. comprou, por US$ 6 milhões, a maioria das ações de uma empresa britânica, a Saint John Mining Co., que se dedicava à exploração do ouro de Minas Gerais desde os longínquos tempos do Império. A Saint John operava no vale de Paraopeba, onde há a maior concentração de ferro do mundo inteiro, avaliada em US$ 200 bilhões. A empresa inglesa não estava legalmente habilitada para explorar esta riqueza fabulosa, nem estaria a Hanna, de acordo com disposições claras constitucionais e legais que Osni Duarte Pereira enumera em sua obra sobre o tema. Porém este foi, segundo se soube logo, o negócio do século. George Humphrey, diretor-presidente da Hanna, era então membro proeminente do governo dos Estados Unidos, como secretário do Tesouro e como diretor do Eximbank, o banco oficial para o financiamento das operações de comércio exterior. A Saint John tinha solicitado um empréstimo ao Eximbank: não teve sorte até que a Hanna se apoderou da empresa. Desencadearam-se, a partir e então, as mais furiosas pressões sobre os sucessivos governos do Brasil. Os diretores, advogados ou assessores da Hanna – Lucas Lopes, José Luiz Bulhões Pedreira, Roberto Campos, Mário da Silva Pinto, Octávio Gouveia de Bulhões - eram também membros, ao nível mais alto, do governo do Brasil, e continuaram ocupando cargos de ministros, embaixadores ou diretores de serviços nos ciclos seguintes. A Hanna não tinha escolhido mal seu estado-maior. O bombardeio se fez cada vez mais intenso, para que se reconhecesse à Hanna o direito de explorar o ferro que pertencia, a rigor, ao Estado. No dia 21 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros assinou uma resolução que anulava as ilegais autorizações dadas de favor à Hanna e restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os ministros militares obrigaram Jânio Quadros. a renunciar: “Forças terríveis se levantaram contra mim...” dizia o texto da renúncia. O levante popular encabeçado por Leonel Brizola em Porto Alegre frustrou o golpe dos militares e colocou no poder o vice-presidente João Goulart. Quando em julho de 1962 um ministro quis pôr em prática o decreto fatal contra a Hanna - que tinha sido mutilado no Diário Oficial -, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, enviou a Goulart um telegrama protestando com viva indignação pelo atentado que o governo ameaçava cometer contra os interesses de uma empresa norte-americana. O Poder Judiciário ratificou a validade da resolução de Quadros, porém Goulart vacilava. Enquanto isto, o Brasil dava os primeiros passos para estabelecer um entreposto de minerais no Adriático, com o intuito de abastecer de ferro vários países europeus, socialistas e capitalistas: a venda direta de ferro implicava um desafio insuportável para as grandes empresas que manejam os pre28. Osny Duarte Pereira, Ferro e independência. Um desafio à dignidade nacional, Rio de Janeiro, 1967. 109 ços em escala mundial. O entreposto nunca se tornou realidade, porém outras medidas nacionalistas - como a restrição à drenagem dos lucros das empresas estrangeiras - foram colocadas em prática e proporcionaram estopins à explosiva situação política. A espada de Dârnocles da resolução de Quadros permanecia em suspenso sobre a cabeça da Hanna. Por fim, o golpe de estado explodiu, no último dia de março de 1964, em Minas Gerais, que casualmente era o cenário das jazidas de ferro em disputa. “Para a Hanna - escreveu a revista Fortune - , a revolta que derrubou Goulart na primavera passada chegou como um desses resgates de último minuto pelo Primeiro da Cavalaria”29. Homens da Hanna passaram a ocupar a vice-presidência do Brasil e três dos ministérios. No mesmo dia da insurreição militar, o Washington Star publicou um editorial profético: “Eis aqui uma situação - anunciara - na qual um bom e eficiente golpe de estado, no velho estilo, dos líderes militares conservadores bem pode servir aos melhores interesses de todas as Américas”30. Goulart ainda não tinha renunciado, nem tinha abandonado o país, quando Lyndon Johnson não pode conter-se e enviou seu célebre telegrama de bons votos ao presidente do Congresso brasileiro, que assumira provisoriamente a presidência do país: “O povo norte-americano observou com ansiedade as dificuldades políticas e econômicas pelas quais atravessou sua grande nação, e admirou a resoluta vontade da comunidade brasileira para solucionar estas dificuldades dentro de um quadro de democracia constitucional e sem luta civil”31. Pouco mais de um mês tinha transcorrido, quando o embaixador Lincoln Gordon, que percorria, eufórico, os quartéis, pronunciou um discurso na Escola Superior de Guerra, afirmando que o triunfo da conspiração de Castelo Branco “poderia ser incluído junto à proposta do Plano Marshall, o bloqueio de Berlim, a derrota da agressão comunista na Coréia e a solução da crise de mudança da história mundial de meados do século XX”32. Um dos membros militares da embaixada dos Estados Unidos oferecera ajuda material aos conspiradores, pouco antes da denotação do golpe33, e o próprio Gordon lhes tinha sugerido que os Estados Unidos reconheceria um governo autônomo, se fosse capaz de sustentar-se dois dias em São Paulo34. Não vale a pena gastar testemunhos sobre a importância que teve, no desenvolvimento e desenlace dos acontecimentos, a ajuda econômica americana, da qual, de resto, nos ocuparemos mais adiante, ou da assistência dos Estados Unidos no plano militar ou sindical 35. Depois que se cansaram de lançar na fogueira ou no fundo da Baía de Guanabara os livros de autores tais como Dostoievski, Tolstoi ou Gorki, e após terem condenado ao exílio, à prisão ou à morte uma quantidade incontável de brasileiros, o recém-instalado regime militar de Castelo Branco pôs mãos à obra: entregou o ferro e todo o resto. A Hanna recebeu seu decreto no 24 de dezembro de 1964. Este presente de Natal não só lhe outorgava todas as seguranças para explorar em paz as jazidas de Paraopeba, mas, além disso, apoiava os planos da empresa para ampliar um porto próprio a 66 quilômetros do Rio de Janeiro, e para construir uma ferrovia destinada ao transporte de ferro. Em outubro de 1965, a 29. Immovable Mountains, em Fortune, abril de 1965. 30. Citado por Mário Pedrosa, A opção brasileira, Rio de Janeiro, 1965. 31. De Lyndon Johnson a Ranieri Mazzili, 2 de abril de 1964, versão da Associated Press. 32. Segundo informou o jornal Estado de S. Paulo, 4 de maio de 1964. 33. José Stacchini, Mobilização de audácia, São Paulo, 1965. 34. Philip Siekman, When executives turned revolutionaries, em Fortune, julho de 1964. 35. Vejam-se as declarações do Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, citadas por Harry Magdoff, op. cit., e o revelador artigo de Eugene Methvin em Seleções Reader's Digest, em espanhol, de dezembro de 1966; segundo Methvin, graças aos bons serviços do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre, com sede em W ashington, os golpistas brasileiros puderam coordenar por telegrama seus movimentos de tropas, e o novo regime militar recompensou o IADSL designando quatro de seus graduados "para que fizessem uma limpeza nos sindicatos dominados pelos vermelhos..." 110 Hanna formou um consórcio com a Bethlehem Steel para explorar em comum o ferro concedido. Este tipo de alianças, freqüentes no Brasil, não podem ser formalizadas nos Estados Unidos, porque ali as leis as proíbem36. O incansável Lincoln Gordon tinha posto fim à tarefa, todos já estavam felizes e o conto tinha acabado, e passou a presidir uma universidade em Baltimore. Em abril de 1966, Johnson designou seu substituto, John Tuthill, ao fim de vários meses de vacilação, e explicou que tinha demorado porque para o Brasil necessitava de um bom economista. A US Steel não ficou atrás. Por que iam deixá-la sem convite para o jantar? Antes de que se passasse muito tempo, se associou com a empresa estatal, a Companhia Vale do Rio Doce, que em certa medida se converteu, assim, em seu pseudônimo oficial. Por esta via, a US Steel obteve, resignando-se a nada mais do que 49% das ações, a concessão das jazidas de ferro da serra dos Carajás, na Amazônia. Sua magnitude é, segundo afirmam os técnicos, comparável à coroa de ferro da Hanna-Bethlehem em Minas Gerais. Como de costume, o governo aduziu que o Brasil não dispunha de capitais para realizar a exploração por conta própria. O PETRÓLEO, AS MALDIÇÕES E AS FAÇANHAS O petróleo é, com o gás natural, o principal combustível dos países que põem em marcha o mundo contemporâneo, uma matéria-prima de crescente importância para a indústria química e o material estratégico primordial para as atividades militares. Nenhum outro ímã atrai tanto como o “ouro negro” os capitais estrangeiros, nem existe outra fonte tão fabulosa de lucros; o petróleo é a riqueza mais monopolizada em todo o sistema capitalista. Não há empresários que desfrutem do poder político que exercem, em escala universal, as grandes corporações petrolíferas. A Standard Oil e a Shell levantam e destróem reis e presidentes, financiam conspirações palacianas e golpes de estado, dispõem de inúmeros generais, ministros e James Bonds, em todas as comarcas e em todos os idiomas decidem o curso da guerra e da paz. A Standard Oil de Nova Jérsei é a maior empresa industrial do mundo capitalista; fora dos Estados Unidos não existe nenhuma empresa industrial mais poderosa do que a Royal Dutch Shell. As filiais vendem o petróleo cru às subsidiárias, que o refinam e vendem os combustíveis às sucursais para sua distribuição: o sangue não sai, em todo circuito, fora do aparelho circulatório interno do cartel, que além disso possui os oleodutos e grande parte da frota de petróleo nos sete mares. Manipulamse os preços, em escala mundial, para reduzir os impostos a pagar e aumentar os lucros a cobrar: o petróleo cru aumenta sempre menos do que o refinado. Com o petróleo ocorre, como ocorre com o café ou com a carne, que os países ricos ganham muito mais por se darem ao trabalho de consumi-lo, do que os países pobres em produzi-lo. A diferença é de dez por um: dos onze dólares que custam os derivados de um barril de petróleo, os países exportadores da matéria-prima mais importante do mundo recebem apenas um dólar,resultado da soma de impostos e custos de extração, enquanto que os países da área desenvolvida, onde têm sua sede as casas-matrizes das corporações petrolíferas, ficam com dez dólares, resultado da soma de seus próprios impostos e taxas, oito vezes maiores do que os impostos dos países produtores e dos custos e dos lucros de transporte, refino, processamento e distribuição que as grandes empresas monopolizam37. O petróleo que brota dos Estados Unidos desfruta de um preço alto, e são relativamente altos os salários dos operários do petróleo norte-americano, porém a cotação do óleo 36. Osny Duarte Pereira, op. cit. 37. Segundo os dados publicados pela Organizagão dos Países Exportadores de Petróleo. Francisco Mieres, El petróleo y la problemática estructural venezolana, Caracas, 1969. 111 da Venezuela e do Oriente Médio foi caindo, desde 1957, e durante toda a década de 60. Cada barril de petróleo venezuelano, por exemplo, valia, em média, US$ 2.65 em 1957, e enquanto escrevo este capítulo, o preço é de US$ 1.85. O governo de Rafael Caldera anuncia que fixará unilateralmente um preço muito maior, porém o novo preço só retornará a níveis superiores ao de 1957 muito mais tarde. Os Estados Unidos são, ao mesmo tempo, os principais produtores e os principais importadores de petróleo no mundo. Na época em que a maior parte do petróleo cru que vendiam as corporações provinha do subsolo norte-americano, o preço se mantinha alto; durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos se converteram em importadores, e o cartel começou a aplicar uma nova política de preços: a cotação baixou sistematicamente. Curiosa inversão das “leis do mercado”: o preço do petróleo cai, embora a demanda mundial não deixe de aumentar,à medida que se multiplicam as fábricas, os automóveis e as usinas geradoras de energia. E outro paradoxo: embora o preço do petróleo baixe, sobe em todos os lugares o preço dos combustíveis que os consumidores pagam. Há uma desproporção descomunal entre os preços do cru e dos derivados. Toda esta cadeia de absurdos é perfeitamente racional; não é necessário recorrer às forças sobrenaturais para encontrar uma explicação. Porque o negócio do petróleo no mundo capitalista está, como vimos, em mãos de um cartel todo-poderoso. O cartel nasceu em 1928, num castelo do norte da Escócia rodeado pela bruma, quando a Standard Oil de Nova Jérsei, a Shell e a Anglo-lranian, hoje chamada British Petroleum, se puseram de acordo para dividirem o planeta. A Standard de Nova Iorque e a da Califórnia, a Gulf e a Texaco se incorporaram posteriormente ao núcleo dirigente do cartel38. A Standard Oil, fundada por Rockefeller, em 1870, tinha-se partido em trinta e cinco diferentes empresas em 1911, pela aplicação da Lei Sherman contra os trustes; a irmã maior da numerosa família Standard é, em nossos dias, a empresa de Nova Jérsei. Suas vendas de petróleo, somadas às vendas da Standard de Nova Iorque e à da Califórnia, abarcam a metade das vendas totais do cartel em nossos dias. As empresas petrolíferas do grupo Rockefeller são de tal magnitude que somam nada menos que a terça parte do total de lucros que as empresas norte-americanas de todos os tipos, em seu conjunto, arrancam do mundo inteiro. A Jérsei, típica corporação multinacional, obtém seus maiores ganhos fora de fronteiras; a América Latina lhe presenteia mais lucros do que os Estados Unidos e Canadá somados: ao sul do rio Bravo, sua taxa de lucros é quatro vezes mais alta39.As filiais da Venezuela produziram, em 1957, mais da metade dos lucros colhidos pela Standard Oil de Nova Jérsei em todos os lugares; nesse mesmo ano, as filiais venezuelanas proporcionaram à Shell a metade de seus lucros no mundo inteiro40. Estas corporações multinacionais não pertencem às múltiplas nações onde operam: são multinacionais, mas simplesmente, na medida em que dos quatro pontos cardeais arrastam grandes rios de petróleo, e dólares para os centros de poder do sistema capitalista. Não precisam exportar capitais, certamente, para financiar a expansão de seus negócios; os ganhos usurpados aos países pobres não só derivam em linha reta para as poucas cidades onde moram seus maiores cortadores de cupãos, mas, além disso, são reinvestidos parcialmente para robustecer e estender a rede internacional de operações. A estrutura do cartel implica o domínio de numerosos países e a penetração em seus numerosos governos; o petróleo encharca presidente e ditadores, e acentua as deformações estruturais das sociedades que põe a seu serviço. São as empresas que decidem, com um lápis sobre o mapa do mundo, quais serão as zonas de exploração e quais as de reserva, e são elas que fixam os preços que cobrarão os produtores e pagarão os consumidores. A riqueza 38. Informe do Senado dos Estados Unidos; Actas secretas del cartel del petróleo, Buenos Aires, 1961 e Harvey O'Connor, El imperio del petróteo, Havana, 1961. 39. Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, El capital monopolista, México, 1971. 40. Francisco Mieres, op. cit. 112 natural da Venezuela e outros países latino-americanos com petróleo no subsolo, objetos do assalto e saque organizados, converteu-se em principal instrumento de sua servidão política e sua degradação social. Esta é uma longa história de façanhas e de maldições, infâmias e desafios. Cuba proporcionava, por vias complementares, suculentos ganhos à Standard Oil de Nova Jérsei. A Jérsei comprava o petróleo cru da Creole Petroleum, sua filial na Venezuela, e o refinava e o distribuía na ilha, tudo a preços que melhor lhe convinha para cada uma das etapas. Em outubro de 1959, em plena efervescência revolucionária, o Departamento de Estado enviou uma nota oficial a Havana, na qual expressava sua preocupação pelo futuro das inversões norte-americanas em Cuba: já tinham começado os bombardeios dos aviões “piratas” procedentes do norte, e as relações estavam tensas. Em janeiro de 1960, Eisenhower anunciou a redução da cota cubana de açúcar, e em fevereiro Fidel Castro assinou um acordo comercial com a União Soviética para trocar açúcar por petróleo e outros produtos a bom preço para Cuba. A Jérsei, a Shell e a Texaco se negaram a refinar o petróleo soviético: em julho, o governo cubano interveio e nacionalizou, sem indenização alguma. Encabeçadas pela Standard Oil de Nova Jérsei, as empresas começaram o bloqueio. Ao boicote de pessoal qualificado se somou o boicote de peças de reposição essenciais para as maquinarias e o boicote dos fretes. O conflito era uma prova de soberania41,e Cuba venceu altivamente. Deixou de ser, ao mesmo tempo, uma estrela na constelação da bandeira dos Estados Unidos e uma peça na engrenagem mundial da Standard Oil. O México sofreu, vinte anos antes, um embargo internacional decretado pela Standard Oil de Nova Jérsei e pela Royal Dutch Shell. Entre 1939 e 1942, o cartel dispôs o bloqueio das exportações mexicanas de petróleo e dos abastecimentos necessários para seus poços e refinarias. O presidente Lázaro Cárdenas nacionalizara as empresas. Nelson Rockefeller, que em 1930 tinha-se formado economista, escrevendo tese sobre as virtudes de sua Standard Oil, viajou para o México para negociar um acordo, porém Cárdenas não voltou atrás. A Standard e a Shell, que dividiram o território mexicano, atribuindo-se a primeira o norte e a segunda o sul, não só se negavam a aceitar as resoluções da Suprema Corte na aplicação das leis trabalhistas mexicanas, mas além disso arrasaram as jazidas da famosa Faja de Oro a uma velocidade vertiginosa, e obrigavam os mexicanos a pagar,por seu próprio petróleo, preços mais altos do que aqueles que cobravam nos Estados Unidos e Europa por este mesmo petróleo42. Em poucos meses, a febre exportadora esgotara brutalmente muitos poços que poderiam continuar produzindo durante trinta ou quarenta anos. “Tiraram do México - escreve O’Connor - seus depósitos mais ricos e só lhe deixaram uma coleção de refinarias antiquadas, campos exaustos, a pobreza da cidade de Tampico e recordações amargas.” Em menos de vinte anos, a produção tinha-se reduzido a uma quinta parte. O México ficou com uma indústria decrépita, orientada para a demanda externa, e com 14 mil operários; os técnicos se foram, e até desapareceram os meios de transporte. Cárdenas converteu a recuperação do petróleo em grande causa nacional, e salvou a crise à força de imaginação e coragem. Pemex, Petróleos Mexicanos, a empresa criada em 1938, encarregada de toda a produção e mercado, é hoje a maior empresa não-estrangeira de toda a América Latina. À custa dos lucros que a Pemex. produziu, o governo mexicano pagou vultosas indenizações às empresas, entre 1947 e 41. Michael Tanzer, The political economy of international oil and the undendeveloped countries Boston, 1969. 42. Harvey O'Connor, La crisis mundial del petróleo Buenos Aires, 1963. Este fenómeno continua sendo usual em vários países. Na Colômbia, por exemplo, onde o petróleo é exportado livremente e sem pagar impostos, a refinaria estatal compra das companhias estrangeiras o petróleo colombiano com um sobrepreço de 37% sobre o preço internacional, e tem que pagar em dólares (Raúl Alameda Ospina em revista Esquina, Bogotá, janeiro de 1963). 113 1962, a despeito de que, como bem diz Jesús Silva Herzog, “o México não é devedor destas companhias piratas, mas credor legítimo”43. Em 1949, a Standard Oil interpôs seu veto a um empréstimo que os Estados Unidos iam conceder à Pemex, e muitos anos depois, já fechadas as feridas por obra das generosas indenizações, a Pemex viveu uma experiência semelhante ante o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O Uruguai foi o país que criou a primeira refinaria estatal na América Latina. A ANCAP,Administração Nacional de Combustíveis, Álcool e Portland, nasceu em 1931, e o refino e a venda de petróleo cru figuravam entre suas funções principais. Era a resposta, nacional a uma longa história de abusos do truste no rio da Prata. Paralelamente, o Estado assinou a compra de petróleo barato na União Soviética. O cartel financiou de imediato uma furiosa campanha de desprestígio contra a empresa industrial do Estado uruguaio e começou sua tarefa de extorsão e ameaça. Afirmava-se que o Uruguai não encontraria quem lhe vendesse maquinarias e que ficaria sem petróleo cru, que o Estado era um péssimo administrador, e que não poderia encarregar-se de tão complicado negócio. O golpe palaciano de 1933 emitia certo cheiro de petróleo: a ditadura de Gabriel Terra anulou o direito da ANCAP de monopolizar a importação de combustíveis, e em janeiro de 1938 assinou convênios secretos com o cartel, ominosos acordos que foram ignorados pelo público até um quarto de século depois e que ainda estão em vigência. De acordo com seus termos, o país é obrigado a comprar 40% do petróleo cru sem licitação e aonde indicarem a Standard Oil, a Shell, a Atlantic e a Texaco, nos preços que o cartel fixar. Além disso, o Estado, que conserva o monopólio do refino, paga todos os gastos das empresas, incluindo a propaganda, os salários privilegiados e os luxuosos móveis de seus escritórios44.“Esso é progresso”, canta a televisão, e o bombardeio dos anúncios não custa à Standard Oil nem um só centavo. O advogado do Banco da República tem também a seu cargo as relações públicas da Standard Oil: o Estado lhe paga os dois salários. Por volta de 1939, a refinaria da ANCAP levantava suas torres chamejantes: a empresa tinha sido mutilada gravemente, mal acabava de nascer, como vimos, porém constituída ainda um exemplo de desafio vitorioso ante as pressões do cartel. O chefe do Conselho Nacional de Petróleo do Brasil, general Horta Barbosa, viajou para Montevidéu e se entusiasmou com a experiência: a refinaria uruguaia tinha pago quase a totalidade de seus gastos de instalação durante o primeiro ano de trabalho. Graças aos esforços do general Barbosa, somados ao fervor de outros militares nacionalistas, a Petrobrás, a empresa estatal brasileira, pôde iniciar suas operações em 1953 ao grito de “Opetróleo é nosso!” Atualmente, a Petrobrás é a maior empresa do Brasil45. Explora, extrai e refina o petróleo brasileiro. Porém a Petrobrás também foi mutilada. O cartel lhe arrebata ainda partes de duas grandes fontes de ganhos: em primeiro lugar, a distribuição da gasolina, lubrificantes, querosene e diversos fluidos, um estupendo negócio que a Esso, Shell e a Atlantic manejam por telefone sem maiores dificuldades e com tão bom resultado que este é, depois da indústria automobilística, o item mais forte da inversão americana no Brasil; em segundo lugar, a indústria petroquímica, generoso manancial de lucros, que foi desnacionalizada, faz poucos anos, pelo governo do marechal Castelo Branco. Recentemente, o cartel desencadeou uma estrepitosa campanha destinada a despojar a Petrobrás do monopólio do refino. Os defensores da Petrobrás recordam que a iniciativa privada, que antes tinha campo livre, não se ocupara do petróleo brasileiro antes de 195346 e procuram devolver à 43. Jesus Silva Herzog, Historia de la expropiación de las empresas petroleras, México, 1964. 44. Vivian Trías, Imperialismo y petróleo en el Uruguay, Montevidéu, 1963. Veja-se também o discurso do deputado Enrique Erro no diário de sessões da Câmara de Representantes, nº 1211, tomo 577, 7 de setembro de 1966. 45. A Petrobrás figura no primeiro lugar da lista das quinhentas maiores empresas, publitada por Conjuntura Económica, vol. 24, nº 9, Rio de Janeiro, 1970. 114 frágil memória do público um episódio bem ilustrativo da boa-vontade dos monopólios. Em novembro de 1960, de fato, a Petrobrás encomendou a dois técnicos brasileiros uma revisão geral das jazidas sedimentares do país. Como resultado de seus informes, o pequeno Estado nordestino de Sergipe pagou à vanguarda na produção de petróleo. Pouco antes, em agosto, o técnico norte-americano Walter Link, que fora o principal geólogo da Standard Oil de Nova Jérsei, recebera do Estado brasileiro meio milhão de dólares por uma montanha de mapas e um extenso informe que tachava de “inexpressiva” a espessura sedimentar de Sergipe: até então tinha sido considerada de grau B, e Link a rebaixou para grau C. Depois se soube que era de grau A47. Segundo O’Connor, Link tinha trabalhado todo o tempo como agente da Standard, de antemão resolvido a não encontrar petróleo para que o Brasil continuasse dependendo das importações da filial de Rockefeller na Venezuela. Também na Argentina as empresas estrangeiras e seus múltiplos ecos nativos sustentam sempre que o subsolo contém escasso petróleo, ainda que as investigações dos técnicos da YPF,Yacimientos PetrolíferosFiscales, tenham indicado com toda certeza que em cerca da metade do território nacional exista petróleo, e que também há petróleo abundante na vasta plataforma submarina da costa atlântica. Cada vez que está em voga falar da pobreza do subsolo argentino, o governo firma uma nova concessão em beneficio de algum dos membros do cartel. A empresa estatal, YPF, tem sido vítima de uma contínua e sistemática sabotagem, desde suas origens até esta data. A Argentina foi, não faz muitos anos, um dos últimos cenários históricos da luta interimperialista entre Inglaterra, no desesperado ocaso, e os ascendentes Estados Unidos. Os acordos do cartel não impediram a Shell e a Standard disputarem o petróleo deste país por meios às vezes violentos: há uma série de eloqüentes coincidências nos golpes de estado que se sucederam ao longo dos últimos quarenta anos. O Congresso argentino se dispunha a votar a lei de nacionalização do petróleo, em 6 de setembro de 1930, quando o caudilho nacionalista Hipólito Yrigoyen foi derrubado da presidência do país pela quartelada de José Félix Uriburu. O governo de Ramón Castillo caiu em junho de 1943, quando resistia a assinar um convênio que promovia a extração de petróleo por capitais norte-americanos. Em setembro de 1955, Juan Domingo Perón marchou para o exílio quando o Congresso estava para aprovar a concessão à California Oil Co. Arturo Frondizi desendaceou várias e agudas crises militares, nas três armas, ao anunciar o chamado de licitação que oferecia todo o subsolo do país às empresas interessadas em extrair petróleo: em agosto de 1959 a licitação foi declarada extinta. Ressuscitou em seguida e em outubro de 1960 ficou sem efeito. Frondizi realizou várias concessões em benefício das empresas norte-americanas do cartel, e os interesses britânicos - decisivos na Marinha e no setor “colorado” do exército - não foram alheios a sua queda em março de 1962. Arturo Illia anulou as concessões e foi derrubado em 1966; no ano seguinte, Juan Carlos Onganía promulgou a lei dos hidrocarbonetos, favorecendo os interesses norte-americanos. O petróleo não provocou somente golpes de estado na América Latina. Também desencadeou uma guerra, a do Chaco (1932/35), entre os dois povos mais pobres da América do Sul “Guerra dos soldados nus”, chamou Renê Zavaleta a feroz matança reciproca da Bolívia e Paraguai48. Em 30 de maio de 1934, o senador por Louisiana, Huey Long, sacudiu os Estados Unidos com um violento discurso no qual denunciava que a Standard Oil de Nova Jérsei tinha provocado o conflito e que financiava o exército boli46. Declarações do engenheiro Márcio Leite Cesariano, no Correio da Manhã, 28 de janeiro de 1967. 47. O Correio da Manhã publicou um amplo extrato do documento em sua edição de 19 de fevereiro de 1967. 48. René Zavaleta Mercado, Bolivia. El desarrollo de la conciencia nacional, Montevidéu, 1967. 115 viano para apoderar-se, por seu intermédio, do Chaco paraguaio, necessário para estender um oleoduto da Bolívia até o rio, e, além disso, pressumivelmente rico em petróleo: “Estes criminosos foram lá e alugaram seus assassinos” – afirmou49. Os paraguaios marchavam para o matadouro, por sua vez, empurrados pela Shell: à medida que avançavam para o norte, os soldados descobriam perfurações da Standard no cenário da discórdia. Era uma disputa entre duas empresas, inimigas e ao mesmo tempo sócias dentro do cartel, porém não eram elas que derramavam o sangue. Finalmente, o Paraguai ganhou a guerra porém perdeu a paz. Spruille Braden, notório personagem da Standard Oil, presidiu a comissão de negociações que preservou para a Bolívia, e para Rockefeller, vários milhares de quilômetros quadrados que os paraguaios reivindicavam. Próximos ao último território daquelas batalhas estão os poços de petróleo e as vastas jazidas de gás natural que a Gulf Oil Co., a empresa da família Mellon, perdeu na Bolívia em outubro de 1969. “Acabou para os bolivianos o tempo do desprezo” - clamou o general Alfredo Ovando ao anunciar, da sacada do palácio Quemado, a nacionalização. Quinze dias antes, quando ainda não tinha tomado o poder, Ovando jurou que nacionalizaria a Gulf, ante um grupo de intelectuais nacionalistas; tinha redigido o decreto, tinha assinado e guardado, sem data, num envelope. E cinco, meses antes, no Cañadón del Arque, o helicóptero do general Renê Barrientos tinha-se chocado contra os fios de telégrafo e ido à pique. A imaginação não teria sido capaz de inventar uma morte tão perfeita. O helicóptero era um presente pessoal da Gulf Oil Co.; o telégrafo pertence, como se sabe, ao Estado. Junto com Barrientos arderam pastas cheias de dinheiro que ele levava para distribuir, nota por nota, entre os camponeses, e algumas metralhadoras que logo pegaram fogo e começaram a regar uma chuva de balas em torno do helicóptero incendiado, de tal modo que ninguém pôde chegar perto para resgatar o ditador enquanto se queimava vivo. Além de decretar a nacionalização, Ovando derrogou o Código do Petróleo, chamado Código Davenport em homenagem ao advogado que o redigira em inglês. Para a elaboração do Código, a Bolívia tinha obtido, em 1956, um empréstimo dos Estados Unidos; em compensação, o Eximbank, o sistema bancário privado de Nova Iorque e o Banco Mundial responderam sempre negativamente às solicitações de crédito para o desenvolvimento do YPFB, a empresa petrolífera do Estado. O governo norte-americano fazia sempre sua a causa das corporações petrolíferas privadas50. Em função do código, a Gulf recebeu, então, por um prazo de quarenta anos, a concessão dos campos mais ricos em petróleo de todo o país. O código fixava uma ridícula participação do Estado nos lucros da empresa: por muitos anos, apenas onze por cento. O Estado era sócio nos gastos do concessionário, mas não tinha nenhum controle sobre esses gastos, e chegou-se a uma situação extrema em matéria de oferendas: todos os riscos eram para a YPFB, e nenhum para a Gulf. Na Carta de Intenções assinada pela Gulf em fins de 1966, durante a ditadura de Barrientos, estabeleceu-se, de fato, que, nas operações conjuntas com a YPFB, a Gulf receberia o total de seus capitais investidos na exploração de uma área, se não encontrasse petróleo. Se o 49. O Senador Long não poupou adjetivos à Standard Oil: chamou-a de criminosa, malfeilora, facínora, assassina doméstica, assassina estrangeira, conspiradora internacional, antro de salteadores e ladroes rapaces, conjunto de vândalos e ladrões. Reproduzido na revista Guarania, Buenos Aires, novembro de 1934. 50. Os exemplos abundam na História, recente ou remota. Irving Florman, embaixador dos EUA na Bolívia, informava a Donald Dawson, da Casa Branca, em 28 de dezembro de 1950: "Desde que aqui cheguei, trabalhei diligentemente no projeto de abrir amplamente a indústria petrolífera da Bolívia à penetração da empresa privada norte-americana, e ajudar o nosso programa de defesa nacional em vasta escala." E também: "Sabia que a você interessaria escutar que a indústria petrolífera da Bolívia e esta terra inteira estão agora bem abertas à livre iniciativa norte-americana. A Bolívia é, portanto, o primeiro país do mundo que fez uma desnacionalização, ou uma nacio- 116 petróleo aparecesse, os gastos seria recuperados através da exploração posterior, porém já de entrada figurariam no passivo da empresa estatal. E a Gulf fixaria esses gastos a seu critério51. Nesta mesma Carta de Intenções, a Gulf se atribuiu também, com toda tranqüilidade, a propriedade das jazidas de gás, que nunca lhes foram concedidas. O subsolo da Bolívia contém muito mais gás do que petróleo. O general Barrientos distraiu-se: foi o suficiente. Um simples passe de mãos para decidir o destino da principal reserva de energia da Bolívia. Porém, a prática não tinha acabado. Um ano antes de que o general Alfredo Ovando expropriasse a Gulf na Bolívia, outro general nacionalista, Juan Velasco Alvarado, estatizara as jazidas e a refinaria da International Petroleum Co., filial da Standard Oil de Nova Jérsei, no Peru. Velasco tinha o poder à frente de uma junta militar e na crista da onda de um grande escândalo político: o governo de Fernando Belaúnde Terry tinha perdido a página final do convênio de Talara, subscrito entre o Estado e a IPC. Esta página misteriosamente evaporada, a página onze, continha a garantia do preço mínimo que a empresa norte-americana devia pagar pelo petróleo cru nacional em sua refinaria. O escândalo não terminava ali. Ao mesmo tempo, revelou-se que a subsidiária da Standard fraudara o Peru em mais de um milhão de dólares, ao longo de meio século, através dos impostos e incentivos e de outras variadas formas de fraude e corrupção. O diretor da 1PC tinha-se encontrado com o presidente Belaúnde em sessenta oportunidades, antes de se chegar ao acordo que provocou o levante militar; durante dois anos, enquanto as negociações avançavam, se rompiam e começavam de novo, o Departamento de Estado suspendera todo tipo de ajuda ao Peru52. Virtualmente não restou tempo para reativar a ajuda, porque a claudicação selou a sorte do presidente acossado. Quando a empresa de Rockfeller apresentou seu protesto ante a Corte Judicial peruana, o povo jogou moedinhas nos rostos de seus advogados. A América Latina é uma caixa de surpresas; não se esgotará nunca a capacidade de assombro desta região torturada do mundo. Nos Andes, o nacionalismo militar ressurgiu com ímpeto, como um rio subterrâneo longamente escondido. Os mesmos generais que hoje estão levando adiante, num processo contraditório e certo, uma política de reforma e de afirmação patriótica, aniquilaram pouco antes os guerrilheiros. Muitas das bandeiras do caídos foram recolhidas, assim, por seus próprios vencedores. Os militares peruanos regaram com napalm algumas zonas guerrilheiras, em 1965, e fora a International Petrolcum Co., filial da Standard Oil de Nova Jérsei, quem lhes tinha fornecido a gasolina e o know-how para que elaborassem as bombas na base aérea de Las Palmas, perto de Lima53. A empresa não podia pressentir o que a esperava. O LAGO DE MARACAIBO NO BUCHO DOS GRANDES ABUTRES DE METAL Embora sua participação no mercado mundial tenha-se reduzido à metade na última década, a Venezuela continua sendo o maior exportador de petróleo. Da Venezuela provém quase a metade dos ganhos que os capitais norte-americanos subtraem a toda América Latina. Este é um dos países mais ricos do planeta e, também, um dos mais pobres e mais violentos. Ostenta a renda per capita mais alta da América Latina, e possui 51. Marcelo Quiroga Santa Cruz, interpelação de 11 e 12 de outubro de 1966 na Câmara de Deputados, Revista jurídica, edição extraordinária, Cochabamba, 1967. 52. Quando o escândalo explodiu, a embaixada dos Estados Unidos não guardou um prudente silêncio. Um de seus funcionários chegou a afirmar que não existia nenhum original do contrato de Talara. (Richard N. Goodwin, El conflicto com la IPC: Carta de Perú, reproduzido de The New Yorker por Comercio exterior, México, julho de 1969.) 53. Georgie Anne Geyer, Seized US oil firm made napalm, no New York Post, 7 de abril de 1969. 117 -a rede de rodovias mais completa e ultramoderna; em proporção à quantidade de habitantes, nenhuma outra nação do mundo bebe tanto uísque escocês. As reservas de petróleo, gás e ferro que seu subsolo oferece à exploração imediata poderiam multiplicar por dez a riqueza de cada um dos venezuelanos; em suas vastas terras virgens poderia caber, inteira, a população da Alemanha ou Inglaterra. As sondas extraíram, em meio século, uma renda petroleira tão fabulosa que duplica os recursos do Plano Marshall para a reconstrução da Europa; desde que o primeiro poço de petróleo arrebentou em torrentes, a população se multiplicou por três e o orçamento nacional por cem, mas a maioria da população, que disputa as sobras de uma minoria fastuosa, continua tão pobre como na época em que o país dependia do cacau e do café54. Caracas, a capital, cresceu sete vezes em trinta anos; a cidade patriarcal de frescos pátios, praça maior e catedral silenciosa se eriçou de arranha-céus na mesma medida em que brotaram as torres de petróleo no lago de Maracaibo. Agora, é um pesadelo de ar condicionado, supersônica e estrepitosa, um centro da cultura do petróleo que bem poderia figurar como genuína capital do Estado do Texas. Caracas mastiga chiclete e ama os produtos sintéticos e os alimentos enlatados; não caminha nunca, só se mobiliza em automóvel, e envenenou com os gases dos motores o limpo ar do vale; Caracas custa a dormir, porque não pode apagar a ansiedade de gastar, comprar, consumir, obter, usar, apoderar-se de tudo. Nas ladeiras dos morros, mais de meio milhão de desvalidos contempla, de suas choças armadas de lixo, o desperdício alheio. Relampagueiam as centenas de milhares de automóveis último modelo pelas avenidas da cidade dourada: na civilização do consumo, nem todos consomem tudo. E a metade das crianças e dos jovens da Venezuela ficam, segundo os censos, fora das salas de aula. Três milhões e meio de barris de petróleo produz a Venezuela por dia para colocar em movimento a maquinaria industrial do mundo capitalista; porém, as diversas filiais da Standard Oil, a Sheil, a Gulf e a Texaco não exploram as quatro quintas partes de suas concessões, que continuam sendo reservas virgens, e mais da metade do valor das exportações não volta nunca ao país. Os folhetos de propaganda da Creole (Standard Oil) exaltam a filantropia da corporação na Venezuela, nos mesmos termos que proclamava, suas virtudes, em meados do século XVIII, a Real Companhia Guipuzcoana; os lucros arrancados desta grande vaca leiteira só são comparáveis, em proporção de capital investido, com as que no passado obtinham os mercadores de escravos ou os corsários. Nenhum país produziu tanto para o capitalismo mundial em tão pouco tempo: a Venezuela drenou uma riqueza que, segundo Ranqel, excede à que os espanhóis usurparam a Potosí ou os ingleses da Índia. A primeira Convenção Nacional de Economistas revelou que os ganhos reais das empresas petrolíferas na Venezuela ascenderam, em 1961, a 38%, e em 1962 a 48%, embora as taxas de lucro que as empresas denunciavam em seus balanços eram de 15 e 17% respectivamente. A diferença corre por conta da mágica da contabilidade e das transferências ocultas. Na complicada relojoaria do negocio petrolífero é muito difícil calcular o volume dos lucros que se ocultam por trás da baixa artificial da cotação do petróleo 54. Para a redaição deste capítulo, o autor utilizou, além das obras já citadas de Harvey O'Connor e Francisco Mieres, os seguintes livros: Orlando Araujo, Operación Puerto Rico sobre Venezuela, Caracas, 1967; Frederico Brito, Venezuela siglo XX, Havana, 1967; M. A. Falcon Urbano, Desarrollo e industrialización de Venezuela, Caracas, 1969; Elena Hochman, Hector Mujica e outros, Venezuela 1º, Caracas, 1963; William Krehm, Democracia y tirania en el Caribe, Buenos Aires, 1959; os ensaios de D.F. Maza Zavala, Salvador de la Plaza, Pedro Esteban Mejía e Leonardo Ortega no volume citado na nota 27; Rodolfo Quintero, La cultura del petróleo, Caracas, 1968; Domingo Alberto Rangel, El proceso del capitalismo contemporáneo en Venezuela, Caracas, 1968; Arturo Usiar Pietri, Tiene un porvenir la juventud venezolana?, em Cuadernos Americanos, México, março-abril de 1968; e Nações Unidas-Cepal, Estudio económico de America Latina, 1969, Nova Iorque - Santiago do Chile. 118 cru, que do poço à bomba de gasolina circula sempre pelas mesmas veias, e por trás da alta artificial dos gastos de produção, onde se computam salários de fábula e inflacionados custos de propaganda. O certo é que, segundo cifras oficiais, na última década, a Venezuela não registrou o ingresso de novas inversões do exterior, mas, pelo contrário, uma sistemática desinversão. A Venezuela sofre a sangria de mais de setecentos milhões de dólares anuais, convictos e confessos como “rendas do capital estrangeiro”. As únicas inversões novas provêm dos lucros que o próprio país proporciona. Enquanto isto, os custos de extração do petróleo vão baixando em linha vertical, porque cada vez as empresas ocupam menos mão-de-obra. Só entre 1959 e 1962 se reduziu em mais de dez mil a quantidade de operários: ficaram pouco mais de trinta mil em atividade, e em fins de 1970 o petróleo ocupava nada mais do que 23 mil operários. A produção, em compensação, cresceu muito nesta última década. Como conseqüência da desocupação crescente, aguçou-se a crise dos acampamentos petrolíferos do lago de Maracaibo. O lago é um bosque de torres. Dentro das armações de ferros cruzados, o implacável movimento de cabeça dos bate-estacas gera, há meio século, toda a opulência e toda a miséria da Venezuela. Junto aos bate-estacas ardem as mechas, queimando impunemente o gás natural que o país se dá ao luxo de presentear a atmosfera. Encontram-se bate-estacas até nos fundos das casas e nas esquinas das ruas das cidades que brotaram aos jorros, como o petróleo, nas costas do lago: ali o petróleo tinge de negro as ruas e as roupas, os alimentos e as paredes, e até as profissionais do amor usam apelidos petrolíferos, tais como “A Tubeira” ou “A Quatro Válvulas”, “A Guindaste” ou “A Rebocadora”. Os preços das roupas ou da comida são, aqui, mais altos do que em Caracas. Estas aldeias modernas, tristes de nascimento, porém ao mesmo tempo aceleradas pela alegria do dinheiro fácil, descobriram já que não têm destino. Quando morrem os poços, a sobrevivência se converte em milagre: ficam os esqueletos das casas, as águas oleosas de veneno matando peixes e lambendo as zonas abandonadas. A desgraça atinge também as cidades que vivem da exploração dos poços em atividade, pelas demissões em massa e a mecanização crescente. “Por aqui o petróleo nos passou por cima - diziam os povoadores de Lagunillas em 1966 -: para nós, se não viessem estas máquinas, teria sido melhor.” Cabimas, que durante meio século foi a maior fonte de petróleo da Venezuela, e que tanta prosperidade deu a Caracas e às empresas, não tem nem sequer vasos sanitários. Conta apenas com umas duas avenidas asfaltadas. A euforia corria solta muitos anos atrás. Por volta de 1917, o petróleo coexistia já, na Venezucla, com os latifúndios tradicionais, os imensos campos despovoados e de terras ociosas, onde os fazendeiros vigiavam o rendimento de sua força de trabalho açoitando os peões e os enterrando vivos até a cintura. Em fins de 1922, estourou o poço de La Rosa, que jorrava cem mil barris por dia, e se desatou a borrasca do petróleo. Brotavam as sondas e os guindastes no lago de Maracaibo, subitamente invadido pelos aparatos estranhos e os homens com capacetes de cortiça; os camponeses afluíam e se instalavam sobre os solos ferventes, entre tábuas e latas de óleo, para oferecer seus braços ao petróleo. Os sotaques de Ok1ahoma e Texas ressoavam pela primeira vez nas planícies e na selva, até nas mais escondidas comarcas. Setenta e três empresas surgiram de repente. O rei do carnaval de concessões era o ditador Juan Vicente Gómez, um pecuarista dos Andes que ocupou seus 27 anos de governo (1908-35) fazendo filhos e negócios. Enquanto as torrentes negras nasciam aos borbotões, Gómez extraía ações de seus bolsos cheios, e com elas recompensava seus amigos, parentes e cortesãos, o médico que lhe custodiava a próstata e os generais que lhe custodiavam as costas, os poetas que cantavam sua glória e o arcebispo que lhe outorgava permissão especial para comer carne na sexta-feira santa. As grandes potências cobriam o peito de Gómez com lustrosas condecorações: era preciso alimentar os automóveis que invadiam os caminhos do mundo. Os afilhados do ditador vendiam as 119 concessões à Shell, à Standard Oil ou à Gulf; o tráfico de influências e de subornos impulsionou a especulação e a fome de subsolos. As comunidades indígenas foram despojadas de suas terras e muitas famílias de agricultores perderam, por bem ou por mal, suas propriedades. A lei do petróleo de 1922 foi redigida pelos representantes de três firmas dos Estados Unidos. Os campos de petróleo estavam cercados e tinham polícia própria. Proibia-se a entrada de quem não tivesse ficha de inscrição nas empresas; estava vedado até o trânsito pelas estradas que conduziam o petróleo aos portos. Quando Gómez morreu, em 1935, os operários petroleiros cortaram as cercas de arame farpado que rodeavam os acampamentos, e se declararam em greve. Os anos seguintes foram explosivos, perigosos. Em 1948, com a queda do governo de Rómulo Gallegos, fechou-se o ciclo reformista inaugurado três anos antes, e os militares vitoriosos rapidamente reduziram a participação do Estado sobre o petróleo extraído pelas Filiais do cartel. A baixa de impostos se traduziu, em 1954, em mais de US$300 milhões de lucros adicionais para a Standard Oil. Em 1953, um homem de negócios dos Estados Unidos declarou, em Caracas: “Aqui, as pessoas têm a liberdade de fazer com o dinheiro o que quiserem; para mim, esta liberdade vale mais do que todas as liberdades políticas e civis juntas”55. Quando o ditador Marcos Pérez Jiménez foi derrubado em 1958, a VenezueIa era um vasto poço petrolífero rodeado de cárceres e câmaras de torturas, que importava tudo dos Estados Unidos: os automóveis e as geladeiras, o leite condensado, os ovos, as alfaces, as leis e os decretos. A maior das empresas de Rockfeller, a Creole, declarou em 1957 lucros que chegavam quase a metade de suas inversões totais. A junta revolucionária de governo elevou o imposto de renda das empresas maiores de 25 a 45%. Em represália, o cartel dispôs a imediata queda do preço do petróleo venezuelano e começou, então, a despedir em massa os operários. O preço caiu tanto que, apesar do aumento dos impostos e do maior volume de petróleo exportado, em 1958 o Estado arrecadou US$60 milhões menos do que no ano anterior. Os governos seguintes não nacionalizaram a indústria petrolífera, tampouco outorgaram, em 1970, novas concessões às empresas estrangeiras para a extração do ouro negro. Enquanto isto, o cartel acelerou a produção de suas jazidas do Oriente Médio e Canadá; na Venezuela cessou virtualmente a prospeção de novos poços, e a exportação está paralisada. A política de negar novas concessões perdeu sentido na medida em que a Corporação Venezuelana do Petróleo, o organismo estatal, não assumiu a responsabilidade vacante. A Corporação se limitou, em compensação, a perfurar uns poucos poços aqui e ali, confirmando que sua função não é outra senão a que lhe havia adjudicado o presidente Rômulo Betancourt: “Não alcançar uma dimensão de grande empresa, mas servir de intermediário para as negociações na nova fórmula de concessões.” A nova fórmula não se pôs em prática, embora tenha sido anunciada várias vezes. Em 1970, sob o governo democrata-cristão de Rafael Caldera, assegurou-se que estavam muito adiantadas as gestões para a assinatura de “contratos de serviço” pelos quais as empresas explorariam e bombeariam um quarto de milhão de hectares em sociedade com o Estado. Outra forma do imperialismo mascarado, o sistema das empresas mistas, tinha-se aplicado anteriormente para entregar em grande medida a indústria petroquímica - a borracha sintética, o polietileno, o amoníaco, a uréia - à Union Carbide e a uma subsidiária da Standard Oil. Enquanto isto, o forte impulso industrializador, que ganhara corpo e força desde há duas décadas, já mostra visíveis sintomas de esgotamento, e vive uma impotência muito conhecida na América Latina: o mercado interno, limitado pela pobreza das maiorias populares, não é capaz de sustentar o desenvolvimento manufatureiro além de certos limites. A reforma agrária, por outro lado, inaugurada no governo da Ação Democrática, ficou a menos da metade do caminho que se propunha, nas promessas de seus criadores, 55. Time, edição para América Latina, 11 de setembro de 1953. 120 a percorrer. Salvador Garmendia, o romancista que reinventou o inferno pré-fabricado de toda esta cultura de conquista, a cultura do petróleo, me escrevia numa carta, em meados de 69: “Você viu um bate estaca, o aparelho que extrai o petróleo cru? Tem a forma de um grande pássaro cuja cabeça pontiaguda sobe e desce pesadamente, dia e noite, sem parar um segundo: é o único abutre que não come merda. O que acontecerá quando ouvirmos o ruído característico do sorvedor ao acabar o líquido? A abertura grotesca já começa a ser ouvida no lago de Maracaibo, onde da noite para o dia brotaram povoados fabulosos com cinemas, supermercados, dancings, formigueiros de putas e jogos, onde o dinheiro não tinha valor. Há pouco fiz um passeio por aí e senti um embrulho no estômago. O cheiro de morto e de sucata é mais forte do que o do óleo. Os povoados estão semidesertos, carcomidos, todos ulcerados pela ruína, as ruas enlodadas, as lojas em escombros. Uma antiga prancha das empresas se submerge todo dia, armada com serras, para cortar pedaços de tubos abandonados e vendê-los como ferro velho. O povo começa a falar das companhias como quem evoca uma fábula dourada. Vive-se de um passado mítico e funambulesco de fortunas perdidas num golpe de dados e bebedeiras de sete dias. Entretanto, os bate-estacas continuam cabeceando e a chuva de dólares cai em Miraflores, palácio do governo, para transformar-se em autopistas e demais monstros de cimento armado. 70% do país vive marginado de tudo. Nas cidades prospera uma atoleimada classe média com altos salários, que se entope de objetos inservíveis, vive aturdida pela publicidade e professa a imbecilidade e o mau-gosto de forma gritante. Há pouco o governo anunciou com grande estrépito que tinha exterminado o analfabetismo. Resultado: na passada festa eleitoral, o censo de inscritos lançou um milhão de analfabetos entre os 18 e os 50 anos de idade.” 121 SEGUNDA PARTE: O DESENVOLVIMENTO E UMA VIAGEM COM MAIS NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES HISTÓRIA DA MORTE PREMATURA AS NAUS BRITÂNICAS SAUDAVAM A INDEPENDÊNCIA DO MEIO DO RIO Em 1823, George Canning, cérebro do Império britânico, celebrava seus triunfos universais. O encarregado de negócios da França teve que suportar a humilhação deste brinde: “Vossa seja a glória do triunfo, seguida pelo desastre e pela ruína; nosso seja o tráfico sem glória da indústria e a prosperidade sempre crescente... A idade da cavalaria passou; e a sucedeu uma era de economistas e calculistas.” Londres vivia o princípio de uma longa festa; Napoleão tinha sido definitivamente derrotado alguns anos atrás, e a era da Pax Britannica se abria sobre o mundo. Na América Latina, a independência soldara perpetuamente o poder dos donos da terra e dos comerciantes enriquecidos, nos portos, à custa da antecipada ruína dos países nascentes. As antigas colônias espanholas, e o Brasil também, eram mercados ávidos para os tecidos ingleses e as libras esterlinas a tanto por cento. Canning não errara ao escrever, em 1824: “A coisa está feita. A América espanhola é livre; e se nós não desgovernarmos tristemente nossos assuntos, é inglesa”1. A máquina a vapor, o tear mecânico e o aperfeiçoamento da máquina de tecer amadureceram a Revolução Industrial na Inglaterra. Multiplicavam-se as fábricas e os bancos; os motores de combustão interna modernizaram a navegação marítima e os grandes barcos navegavam rumo aos quatro pontos cardeais, universalizando a expansão industrial inglesa. A economia britânica pagava com tecidos de algodão os couros do rio da Prata, o guano e o nitrato do Peru, o cobre do Chile, o açúcar de Cuba, o café do Brasil. As exportações industriais, os fretes, os seguros, os juros dos empréstimos e os dividendos das inversões alimentariam ao longo do século XIX, a pujante prosperidade da Inglaterra. Na realidade, antes das guerras de independência os ingleses já controlavam boa parte do comércio legal entre a Espanha e suas colônias, e tinham lançado às costas da América Latina um caudaloso e persistente fluxo de mercadorias de contrabando. O tráfico de escravos oferecia um biombo eficaz para o comércio clandestino, embora no final também as alfândegas registrassem, em toda América Latina, uma esmagadora maioria de produtos que não provinham da Espanha. O monopólio espanhol não existia, nos fatos, nunca: “ ... a colônia já estava perdida para a metrópole muito antes de 1810, e a Revolução não representou senão um reconhecimento político de semelhante estado de coisas”2. As tropas britânicas conquistaram Trinidad, no Caribe, ao preço de uma só baixa, porém o comandante da expedição, Sir Ralph Abercromby, estava convencido de que não seriam fáceis outras conquistas militares na América hispânica. Pouco depois, fracassaram as invasões inglesas no rio da Prata. A derrota deu força à opinião de Abercromby sobre a ineficácia das expedições armadas e a vez histórica dos diplomatas, dos mercadores e dos banqueiros: uma nova ordem liberal nas colônias espanholas ofereceria à Grã Bretanha a oportunidade de abarcar as nove décimas partes do comércio da América espanhola3.A 1. Wilham W. Kaufmann, La política británicay la independência de la América Latina (18041828), Caracas, 1963. 2. Manfred Kossok, El virreinato del Río de la Plata. Su estrucutra económico-social, Buenos Aires, 1959. 122 febre da independência fervia em terras hispano-americanas. A partir de 1810, Londres aplicou uma política ziguezagueante e dúplice, cujas flutuações obedeceram à necessidade de favorecer o comércio inglês, impedir que a América Latina pudesse cair em mãos norte-americanas ou francesas e prevenir uma possível infecção de jacobinismo dos novos países que nasciam para a liberdade. Quando se constituiu ajunta revolucionária em Buenos Aires, em 25 de maio de 1810, uma salva de canhões dos navios britânicos a saudou a partir do rio. O capitão do barco Mutine pronunciou, em nome de Sua Majestade, um inflamado discurso: o júbilo invadia os corações britânicos. Buenos Aires demorou apenas três dias para eliminar certas proibições que dificultavam o comércio com estrangeiros: doze dias depois, reduziu de 50% para 7,5% os impostos que oneravam as vendas ao exterior de couros e de sebo. Decorreram seis semanas desde o 25 de maio quando se tornou sem efeito a proibição de exportar o ouro e a prata em moedas, de modo que pudessem fluir a Londres sem inconvenientes. Em setembro de 1811, um triunvirato substituiu ajunta como autoridade governante: foram novamente reduzidos, e em alguns casos abolidos, os impostos de exportação e importação. A partir de 1813, quando a Assembléia se declarou autoridade soberana, os comerciantes estrangeiros ficaram isentos da obrigação de vender suas mercadorias através dos comerciantes nativos: “O comércio se fez, em verdade, livre”4. Já em 1812, alguns comerciantes britânicos comunicavam ao Foreign Office: “Conseguimos... substituir com êxito os tecidos alemães e franceses.” Tinham substituído, também, a produção dos tecedores argentinos, estrangulados pelo porto livre-cambista, e o mesmo processo se registrou, com variantes, em outras regiões da América Latina. De Yorkshire e Lancashire, dos Cheviots e Gales, brotavam sem cessar artigos de algodão e lã, de ferro e de couro, de madeira e porcelana. Os teares de Manchester,as ferrarias de Sheffield, as olarias de Worcester e Staffordshire inundaram os mercados latino-americanos. O comércio livre enriquecia os portos que viviam da exportação e aumentava em muito o nível de esbanjamento das oligarquias, ansiosas por desfrutar de todo o luxo que o mundo oferecia, porém arruinava as incipientes manufaturas locais e frustrava a expansão do mercado interno. As indústrias domésticas, precárias e de muito baixo nível técnico, surgiram no mundo colonial, a despeito das proibições da metrópole e conheceram um auge, nas vésperas da independência, como conseqüência do afrouxamento dos laços opressores da Espanha e das dificuldades de abastecimento que a guerra européia provocou. Nos primeiros anos do século XIX, as oficinas estavam ressuscitando, depois dos mortíferos efeitos da disposição que o rei adotara, em 1778, para autorizar o comércio livre entre os portos da Espanha e América. Uma avalanche de mercadorias estrangeiras esmagou as manufaturas têxteis e a produção colonial de cerâmica e objetos de metal, e os artesãos não contaram com muitos anos para se recuperar do golpe: a independência abriu totalmente as portas à livre concorrência da indústria já desenvolvida na Europa. Os vaivéns posteriores nas políticas aduaneiras dos governos da independência gerariam sucessivas mortes e nascimentos das manufaturas “criollas”, sem a possibilidade de um desenvolvimento sustentado no tempo. AS DIMENSOES DO INFANTICÍDIO INDUSTRIAL Quando nascia o século XIX, Alexander von Humboldt calculou o valor da produção manufatureira do México em sete ou oito milhões de pesos, dos quais a maior parte correspondia a trabalhos têxteis. As oficinas especializadas elaboravam panos, tecidos de 3. H. S. Ferns, Gran Bretaña y Argentina en el siglo XIX, Buenos Aires, 1966. 4. Ibid. 123 algodão e lenços; mais de duzentos teares ocupavam mil e duzentos tecedores de algodão5. No Peru, os toscos produtos da colônia não chegaram nunca à perfeição dos tecidos indígenas muito anteriores à chegada de Pizarro, “mas sua importância econômica foi, em compensação, muito grande”6. A indústria repousava sobre o trabalho forçado dos índios, encarcerados nas oficinas antes de clarear o dia até muito tarde da noite. A independência aniquilou o precário desenvolvimento alcançado. Em Ayacucho, Cacamorsa, Tarma, os trabalhos eram de uma magnitude considerável. O povoado inteiro de Pacaicasa, hoje morto, “formava um só e vasto estabelecimento de teares com mais de mil operários”, diz Romero em sua obra; Paucarcolla, que abastecia de cobertores de lã uma região muito vasta, está desaparecendo “e atualmente não existe ali nem uma só fábrica”7. No Chile, uma das mais distantes possessões espanholas, o isolamento favoreceu o desenvolvimento de uma atividade industrial incipiente desde os albores da vida colonial. Tinha fiações, teares, curtumes; as fábricas chilenas forneciam cordas para todos os navios do Mar do Sul; fabricavam-se artigos de metal, desde alambiques e canhões até jóias, vasilhas finas e relógios; construíam-se embarcações e veículos8.Também no Brasil as oficinas têxteis e metalúrgicas, que vinham ensaiando desde o século XVIII seus modestos primeiros passos, foram arrasadas pelas importações estrangeiras. Essas atividades manufatureiras tinham conseguido prosperar em medida considerável, apesar dos obstáculos impostos pelo pacto colonial com Lisboa; porém, desde 1807, a monarquia portuguesa, estabelecida no Rio de Janeiro, já não era mais do que um joguete em mãos britânicas, e o poder de Londres tinha outra força. “Até a abertura dos portos, as deficiências do comércio português operava como barreira protetora de uma pequena indústria local - diz Caio Prado Júnior -; pobre indústria artesã, é verdade, porém assim mesmo suficiente para satisfazer a uma parte do consumo interno. Esta pequena indústria não poderá sobreviver à livre concorrência estrangeira, mesmo nos mais insignificantes produtos”9. A Bolívia era o centro têxtil mais importante do vice-reinado rio-platense. Em Cochabamba tinha oitenta mil pessoas dedicadas à fabricação de lenços de algodão, panos e toalhas, segundo o testemunho do intendente Francisco de Viedma. Em Oruro e La Paz também surgiram oficinas que, junto com as de Cochabamba, ofereciam mantas, ponchos e baetas muito resistentes para a população, às tropas de linha do exército e às guarnições de fronteira. De Mojos, Chiquitos e Guarayos provinham finíssimos tecidos de linho e de algodão, chapéus de palha, vicunha ou carneiro e charutos de folha. “Todas estas indústrias desapareceram ante a concorrência de artigos similares estrangeiros comprovava, sem maior tristeza, um volume dedicado à Bolívia no primeiro centenário de sua independência10. O litoral da Argentina era a região mais atrasada e menos povoada do país, antes de que a independência transferisse para Buenos Aires, em prejuízo das provinciais mediterrâneas, o centro de gravidade da vida econômica e política. Em princípios do século XIX, só a décima parte da população argentina residia em Buenos Aires, Santa Fé e Entre Rios11. Com ritmo lento e por meios rudimentares, tinha-se desenvolvido uma indústria nativa nas regiões do centro e do norte, enquanto que no litoral não existia, segundo dizia em 1795 o procurador Larramendi, “nenhuma arte nem manufatura. Em Tucumán e 5. Alexander von Humboldt, Ensayo sobre el reino de la Nueva España, México, 1949. 6. Emilio Romero, Historia económica del Perú, Buenos Aires, 1949. 7. Ibid. 8. Hernán Ramírez Necochea, Antecedentes económicos de la independencia de Chile, Santiago do Chile, 1959. 9. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960. 10. The University Society, Bolivia en el primer centenario de su independéncia, La Paz, 1925. 11. Luis C. Alen Lascano, Imperialismo y comercio libre, Buenos Aires, 1963. 124 Santiago del Estero, que atualmente são poços de subdesenvolvimento, floresciam as oficinas têxteis, que fabricavam ponchos de três tipos diferentes, as fábricas de carroças de boa madeira, a produção de charutos e cigarros, couros e solas. De Catamarca nasciam lenços de todos os tipos, panos finos, baetas de algodão preto para serem usadas pelos clérigos; Córdoba fabricava mais de mil ponchos, vinte mil cobertores e quarenta mil varas de baeta por ano, sapatos e artigos de couro, laços e chicotes, tapetes e cordas. Os curtumes e manufaturas de couro mais importantes estavam em Corrientes. Eram famosos os finos arreios de Salta. Mendoza produzia entre dois e três milhões de litros de vinho por ano, em nada inferiores aos de Andaluzia, e San Juan destilava 350 mil litros anuais de aguardente. Mendoza e San Juan formavam “a garganta do comércio” entre o Atlântico e o Pacífico da América do Sul12. Os agentes comerciais de Manchester, Glasgow e Liverpool percorreram a Argentina e copiaram os modelos dos ponchos santiaguenhos e cordobeses e dos artigos de couro de Corrientes, além dos estribos de pau para se conformarem “ao uso do país”. Os ponchos argentinos valiam sete pesos; os de Yorkshire, três. A indústria têxtil mais desenvolvida do mundo triunfava a galope sobre os teares nativos, e outro tanto ocorria na produção de botas, esporas, rédeas, freios e até cravos. A miséria assolou as províncias interiores argentinas, que logo levantaram lanças contra a ditadura do porto de Buenos Aires. Os principais mercadores (Escalada, Belgrano, Pueyrredón, Vieytes, Las Heras, Cervifio) tomaram o poder arrebatado à Espanha13, e o comércio lhes dava a possibilidade de comprar sedas e facas inglesas, panos finos de Louviers, caixinhas de Flandres, sabres suíços, genebra holandesa, salames de Westfália e charutos de Hamburgo. Em troca, a Argentina exportava couros, sebo, ossos, carne salgada, e os pecuaristas da província de Buenos Aires estendiam seus mercados graças ao comércio livre. O cônsul inglês no Prata, Woodbine Parish, descrevia em 1837 um robusto gaúcho dos pampas: “Tomem-se todas as peças de sua roupa, examine-se o que o rodeia e, excetuando-se o que seja de couro, que coisa haverá que não seja inglesa? Se sua mulher tem uma saia, há dez possibilidades contra uma que seja manufatura de Manchester. O caldeirão ou panela em que cozinha, a peça de louça ordinária em que come, sua faca, suas esporas, o freio, o poncho que o cobre, todos são levados da Inglaterra”14. A Argentina recebia da Inglaterra até as pedras das calçadas. Aproximadamente pela mesma época, James Watsori Webb, embaixador dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, relatava: “Em todas as fazendas do Brasil, os senhores e seus escravos se vestem com manufaturas do trabalho livre, nove décimos delas são inglesas. A Inglaterra proporciona todo capital necessário para melhorias internas do Brasil e fabrica todos os utensílios de uso corrente, da enxada para cima, e quase todos artigos de luxo ou de uso prático, do alfinete ao vestido mais caro. A cerâmica inglesa, os artigos ingleses de vidro, ferro e madeira são tão correntes como os panos de lã e os tecidos de algodão. A Grã-Bretanha fornece ao Brasil seus barcos a vapor e a vela, faz o calçamento e endireita as ruas, ilumina com gás as cidades, constrói as vias férreas, explora as minas, é seu banqueiro, levanta as linhas telegráficas, transporta o correio, constrói móveis, motores, vagões...”15. A euforia da livre importação enlouquecia os mercadores dos portos: naqueles anos, o Brasil recebia também ataúdes, já forrados e prontos para o alojamento de defuntos, selas para montar, candelabros de cristal, caçarolas e patins para gelo, de uso bem improvável nas ardentes costas do trópico; também carteiras, embora não existisse 12. Pedro Santos Martínez, Las industrias durante el virreinato (1776-1810), Buenos Aires, 1969. 13. Ricardo Levene, introdução; a Documentos para la historia argentina, 1919, e m Obras completas, Buenos Aires, 1962. 14. Woodbine Parish, Buenos Aires y las provincias del Rio de la Plata, Buenos Aires, 1958. 15. Paulo Schilling, Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966. 125 ainda no Brasil papel-moeda, e também uma quantidade inexplicável de instrumentos de matemática16. O Tratado de Comércio e Navegação, firmado em 1810, onerava a importação dos produtos ingleses com uma tarifa menor do que a que se aplicava aos produtos portugueses, e seu texto tinha sido tão atropeladamente traduzido do idioma inglês que a palavra policy, por exemplo, passou a significar, em português,polícia em lugar de política17. Os ingleses gozavam no Brasil de justiça especial, que os subtraía à jurisdição nacional: o Brasil era um “membro não oficial do império econômico da Grã-Bretanha”18. Em meados do século, um viajante sueco chegou a Valparaíso e foi testemunha do desperdício e da ostentação que a liberdade de comércio estimulava no Chile: “A única forma de elevar-se é submeter-se - escreveu - aos ditames das revistas de moda de Paris, à casaca negra e a todos os acessórios que correspondem... A senhora compra um elegante chapéu, que a faz sentir-se consumadamente parisiense, enquanto o marido se coloca um duro e alto gravatão e se sente no pináculo da cultura européia”19. Três ou quatro casas inglesas tinham-se apoderado do mercado do cobre chileno e manejavam os preços segundo os interesses das fundições de Swansea, Liverpool e Cardiff. O cônsul-geral da Inglaterra informava a seu governo, em 1838, sobre o prodigioso incremento das vendas de cobre, que se exportava “principalmente, senão por completo, em barcos britânicos”20. Os comerciantes ingleses monopolizavam o comércio em Santiago e Valparaíso, e o Chile era o segundo mercado latino-americano, em ordem de importância, para os produtos britânicos. Os grandes portos da América Latina, escalas de trânsito das riquezas extraídas do solo e do subsolo com destino aos distantes centros de domínio, se consolidavam como instrumentos de conquista e dominação contra os países a que pertenciam, e eram os vertedores por onde se dilapidava a renda nacional. Os portos e as capitais queriam se parecer com Paris ou Londres, mas à retaguarda havia o deserto. PROTECIONISMO E LIVRE-CAMBISMO NA AMÉRICA LATINA: O BREVE VÔO DE LUCAS ALAMÁN A expansão dos mercados latino-americanos acelerava a acumulação de capitais nos viveiros da indústria britânica. Já fazia tempo que o Atlântico tinha-se convertido no eixo do comércio mundial, e os ingleses sabiam aproveitar a localização de sua ilha, cheia de portos, a meio caminho do Báltico e do Mediterrâneo, apontando as costas de nossa América. A Inglaterra organizava um sistema universal e se convertia na prodigiosa fábrica abastecedora do planeta: do mundo inteiro provinham as matérias-primas e sobre o mundo inteiro se derramavam as mercadorias elaboradas. O Império contava com o maior porto e o mais poderoso aparato financeiro de seu tempo, tinha o mais alto nível de especialização comercial, dispunha do monopólio mundial dos seguros e dos fretes e dominava o mercado internacional do ouro. Friederich List, pai da união aduaneira alemã, advertira que o livre comércio era o principal produto de exportação da Grã-Bretanha21. Nada enfurecia os ingleses como o protecionismo aduaneiro e às vezes o faziam saber numa linguagem de sangue e fogo, como na Guerra do ópio contra a China. Porém a livre 16. Alan K. M anchester,British preeminence in Brazil: its rise and decline, Chape & Hill, Carolina do Norte, 1933. 17.Celso Furtado, Formación económica del Brasil, México-Buenos Aires, 1959. 18. J.F. Normano, Evoluffio económica do Brasil, Sáo Paulo, 1934. 19. Gustavo Beyhaut, Raíces contemporáneas de Améfica Latina, Buenos Aires, 1964. 20. Hernán Rarnírez Necochea, Historía del imperialismo en Chile, Santiago do Chile, 1960. 21. Este economista alemão, nascido em 1789, propagou nos Estados Unidos e em sua própria pátria a doutrina do protecionismo aduaneiro e do fomento industrial. Suicidou-se em 1846, porém suas idéias se impuseram nos dois países. 126 concorrência nos mercados se converteu numa verdade revelada para a Inglaterra, sóa partir do momento em que esteve segura de que era a mais forte, e depois de ter desenvolvido sua própria indústria têxtil ao abrigo da legislação protecionista mais severa da Europa. Nos difíceis começos, quando a indústria britânica ainda corria com desvantagem, o cidadão inglês surpreendido exportando lã crua, sem elaborar, era condenado a perder a mão direita e, se reincidia, o enforcavam; era proibido enterrar um cadáver sem que antes o pároco do lugar certificasse que o sudário provinha de uma fábrica nacional22. “Todos os fenômenos destruidores suscitados pela livre concorrência no interior de um país - advertiu Marx - se reproduzem em proporções mais gigantescas no mercado mundial”23. O ingresso da América Latina na órbita britânica, da qual só sairia para incorporar-se à órbita norte-americana, se deu no quadro deste panorama geral, e nele se consolidou a dependência dos independentes países novos. A livre circulação de mercadorias e a livre circulação do dinheiro para os pagamentos e transferências de capitais tiveram conseqüências dramáticas. No México, Vicente Guerrero chegou ao poder, em 1829, “nos ombros do desespero artesão, insulado pelo grande demagogo Lorenzo de Zavala, que lançou sobre as tendas repletas de mercadorias inglesas do Parián um turba faminta e desesperada”24. Guerrero durou pouco no poder, e caiu em meio à indiferença dos trabalhadores porque não quis ou não pôde limitar a importação de mercadorias européias, por cuja abundância - diz Chávez Orozco – “gemiam no desemprego as massas artesãs das cidades que antes da independência, sobretudo nos períodos bélicos da Europa, viviam com certa folga”. A indústria mexicana carecia de capitais, mão-de-obra suficiente e técnicas modernas: não tinha uma organização adequada, nem vias de comunicação e meios de transportes para chegar aos mercados e às fontes de abastecimento. “A única coisa que provavelmente sobrou - diz Alonso Aguilar - foram interferências, restrições e travas de toda ordem” 25. A despeito disso, como observara Humboldt, a indústria despertara nos momentos de estancamento do comércio exterior, quando se interrompiam ou se dificultavam as comunicações marítimas, e começara a fabricar aço e a fazer uso do ferro e do mercúrio. O liberalismo que a independência trouxe consigo agregava pérolas à coroa britânica e paralisava as manufaturas têxteis e metalúrgicas do México, Puebia e Guadalajara. Lucas Alamán, um político conservador de grande capacidade, advertiu a tempo que as idéias de Adam Smith continham veneno para a economia nacional e propiciou, como ministro, a criação de um banco estatal, o Banco de Avio, com o intuito de impulsionar a industrialização. Um imposto sobre os tecidos estrangeiros de algodão proporcionaria ao país os recursos para comprar no exterior as maquinarias e os meios técnicos de que o México necessitava para abastecer-se com tecidos de algodão de fabricação própria. O país dispunha de matéria-prima, contava com energia hidráulica mais barata do que o carvão e podia formar bons operários rapidamente. O Banco nasceu em 1830, e pouco depois chegaram, das melhores fábricas européias, as maquinarias mais modernas para fiar e tecer algodão; além disso, o Estado contratou peritos estrangeiros na técnica têxtil. Em 1844, as grandes fábricas de Puebia produziram um milhão e quatrocentos mil cortes 22. Cláudio Vóliz, La mesa de ires patas, em Desarrollo económico, vol. 3 n 1 e 2, Santiago do Chile, setembro de 1963. 23. “Nada há de estranho no fato de que os livre-cambistas sejam incapazes de compreender como um país pode enriquecer-se a custa de outro, pois estes mesmos senhores tampouco querem compreender como no interior de um país uma classe pode enriquecer-se a custa de outra”.Karl Marx, Discurso sobre el libre cambio, em Miseria de Ia filosofia, Moscou, s. d. 24. Luis Cháves Orozeo, La industria de transformación mexicana (1822-1867), em Banco Nacional del Comercio Exterior, ColecciÔn de documentos para Ia historia dei comercio exterior de México, México, 1962. 25. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968. 127 de manta grossa. A nova capacidade industrial do país desbordava a demanda interna; o mercado de consumo do “reino da desigualdade”, formado em sua grande maioria por índios famintos, não podia sustentar a continuidade daquele desenvolvimento fabril vertiginoso. Contra esta muralha chocava-se o esforço por romper a estrutura herdada da colônia. A tal ponto se modernizara, todavia, a indústria, que as fábricas têxteis norte-americanas contavam em média com menos fusos do que as fábricas mexicanas por volta de 184026. Dez anos depois, a proporção invertera-se com sobras. A instabilidade política, as pressões dos comerciantes ingleses e franceses e seus poderosos sócios internos, e as mesquinhas dimensões do mercado interno, de antemão estrangulado pela economia mineira e latifundiária, derrubaram por terra a experiência exitosa. Antes de 1850, já se tinha suspendido o progresso da indústria têxtil mexicana. Os criadores do Banco de Avio ampliaram seu raio de ação e, quando se extinguiu, os créditos abarcavam também os teares de lã, as fábricas de tapetes e a produção de ferro e de papel. Esteban de Antuflano sustentava, inclusive, a necessidade de que o México criasse o quanto antes uma indústria nacional de maquinarias, para se defender do egoísmo europeu. O maior mérito do ciclo industrializador de Alamán e Antuflano reside em que ambos restabeleceram a identidade entre independência política e a independência econômica, e no fato de preconizarem, como único caminho de defesa, contra os povos poderosos e agressivos, um enérgico impulso à economia industrial27. O próprio Alamán tornou-se industrial, criou a maior fábrica têxtil mexicana daquele tempo (chamava-se Cocolapan, ainda existe) e organizou os industriais como grupo de pressão diante dos sucessivos governos livre-cambistas28. Porém Alamán, conservador e católico, não chegou a colocar a questão agrária, porque ele mesmo se sentia ideologicamente ligado à velha ordem, e não advertiu que o desenvolvimento industrial estava de antemão condenado a ficar no ar, sem bases de sustentação, naquele país de latifúndios infinitos e miséria generalizada. AS LANÇAS MONTONERAS E O ÓDIO QUE SOBREVIVEU A JUAN MANUEL DE ROSAS Protecionismo contra livre-cambismo, o país contra o porto: esta foi a luta que se deu no pano-de-fundo das guerras civis argentinas durante o século passado. Buenos Aires, que no século XVIII não foi mais do que uma grande aldeia de quatrocentas casas se apoderou da nação inteira a partir da revolução de maio e da independência. Era o porto único, e por ele deviam passar todos os produtos que entravam e saíam do país. As deformações que a hegemonia portenha impôs à nação se vêem claramente em nossos dias: a capital abarca, com seus subúrbios, mais da terça parte da população argentina 26. Jan Bazant, Estudio sobre la productividad de la industria algodonero mexicana en 1843-1845 (Lucas A lamán y la Revolución industrial en México), cm Banco de Comércio Exterior, op. cit. 27. Luis Chávez Orozco, op. cil. 28. No tomo III, da citada coleção dos documentos do Banco Nacional de Comércio Exterior, se transcrevem várias alegações protecionistas publicadas em el Siglo XIX em fins de 1850: “Passada a conquista da civilização espanhola, com seus três séculos de dominação militar, entrou o México numa nova era que também se pode chamar de conquista, porém científica e mercantil. Sua potência é os navios mercantes; sua predicação é a absoluta liberdade econômica; sua norma poderosíssima com os povos menos adiantados é a lei da reciprocidade... leva, a Europa - nos disse - quantas manufaturas possais / excepto, todavia, as que nós proibimos / e em recompensa permiti que tragamos quantas manufaturas pudermos, ainda que seja arruinando vossas artes. Adotemos a doutrina que eles / são nossos senhores do outro lado do oceano e do rio Bravo / e dão e não toma e nosso erário crescerá um pouco, se quiser.... porém não será fomentando o trabalho do povo mexicano, e sim o dos povos inglês e francês, suíço e da América do Norte.” 128 total, e exerce sobre as províncias diversas formas de proxenetismo. Naquela época, detinha o monopólio da renda aduaneira, dos bancos e da emissão da moeda, e prosperava vertiginosamente à custa das províncias interiores. A quase totalidade da receita de Buenos Aires provinha da alfândega nacional, que o porto usurpava em proveito próprio, e mais da metade se destinava aos gastos de guerra contra as províncias, que deste modo pagavam para serem aniquiladas29. Da Sala de Comércio de Buenos Aires, fundada em 1810, os ingleses esticavam seus telescópios para vigiar o trânsito dos navios, e abasteciam os portenhos com panos finos, flores artificiais, caixinhas, guarda-chuvas, botões e chocolates, enquanto a inundação dos ponchos e estribos de fabricação estandardizada fazia estragos pelo país adentro. Para medir a importância que o mercado mundial atribuía então aos couros rio-pratenses, é preciso transladar-se a uma época na que os plásticos e os revestimentos sintéticos não existiam nem sequer como suspeita na imaginação dos químicos. Nenhum cenário mais propício do que a fértil planície do litoral para produção pecuária em grande escala. Em 1816, se descobriu um novo sistema que permitia conservar indefinidamente os couros por meio de um tratamento de arsênico; prosperavam e se multiplicavam, também, os salgadores de carne. O Brasil, as Antilhas e a África abriam seus mercados à importação de charque, e à medida que a carne salgada, cortada em mantas secas, ia ganhando consumidores estrangeiros, os consumidores argentinos notavam a mudança. Criaram-se impostos para o consumo interno de carne, enquanto se desoneravam as exportações; em poucos anos, o preço dos novilhos se multiplicou por três e as estâncias valorizaram suas terras. Os gaúchos estavam acostumados a caçar livremente novilhos a céu aberto, no pampa sem arames farpados, para comer o lombo e tirar o resto, com a única obrigação de entregar o couro ao dono do campo. As coisas mudaram. A reorganização da produção implicava a submissão do gaúcho nômade a uma nova dependência servil: um decreto de 1815 estabeleceu que todo homem de campo que não tivesse propriedades seria considerado servente, com a obrigação de portar uma papeleta visada por seu patrão cada três meses. Ou era servente ou era vagabundo, e aos vagabundos se alistava, à força, nos batalhões de fronteira30. O criollo bravio, que servira de carne de canhão nos exércitos patriotas, se convertia em pária, peão miserável ou milico de fortim. Ou se rebelava, lança na mão, alçando-se no redemoinho das montoneras31.O gaúcho arisco, destituído de tudo, 29. Miron Burgin, Aspectos económicos de¡ federalismo argentino, Buenos Aires,1960. 30. Juan Álvarez, Las guerras civiles argentinas, Buenos Aires, 1912. 31. A montonera “nasce no descampado como os redemoinhos.Arremete, brama e torce como os redemoinhos, e se detém, repentina, e morre como eles.” (Dardo de Ia Vega Díaz, La Rioja heroica, Mendoza, 1955.) José Hernández, que foi soldado da causa federal, cantou no Martín Fierro, o mais popular dos livros argentinos, as desditas do gaúcho desterrado de sua querência e perseguido pela autoridade: Vive a águia em seu ninho tigre vive na selva, raposa na cova alheia, só o gaúcho vive errante aonde a sorte o leva. Porque: Para ele são os calabouços, para ele as duras prisões em sua boca não há razões ainda que razão lhe sobre que são sinos de madeira as razões dos pobres. 129 menos da glória e da coragem, nutriu as cargas de cavalaria que às vezes desafiavam os exércitos de linha, bem armados, de Buenos Aires. O surgimento da estância capitalista, no pampa úmido do litoral, punha todo país a serviço das exportações de couro e carne e marchava de mãos dadas com a ditadura livro cambista de Buenos Aires. O uruguaio José Artigas fora, até a derrota e o exílio, o mais lúcido dos caudilhos que encabeçaram o combate das massas criollas contra os mercadores e fazendeiros atados ao mercado mundial; muitos anos depois também Felipe Varela foi capaz de deflagar uma grande rebelião no norte argentino porque, como dizia sua proclamação, “ser provinciano é ser mendigo sem pátria, sem liberdade, sem direitos”. Sua sublevação encontrou ressonância em todo o interior mediterrâneo. Foi o último montonero; morreu, tuberculoso e na miséria, em 187032. O defensor da “União Americana”, projeto de ressurreição da Pátria Grande despedaçada, é ainda um bandoleiro, como o era Artigas, para a história argentina que se ensina nas escolas. Felipe Varela nascera num povoado perdido entre as serras de Catamarca e fora um doloroso testemunho da pobreza de sua província arruinada pelo porto soberbo e distante. Em fins de 1824, quando Varela tinha três anos de idade, Catamarca não pôde pagar os gastos dos delegados que enviou ao Congresso Constituinte que se reuniu em Buenos Aires, e na mesma situação estavam Misiones, Santiago del Estero e outras províncias. O deputado catamarquenho Manuel Antonio Acevedo denunciava “a mudança ominosa” que a competição dos produtos estrangeiros tinha provocado: “Catamarca olhou há algum tempo, e olha hoje, sem poder remediar, sua agricultura, com produtos inferiores a suas expensas; sua indústria, sem um consumo capaz de alertar aos que a fomentam e exercem, e seu comércio quase ao abandono”33.O representante da província de Corrientes, brigadeiro-general Pedro Ferré, resumia assim, em 1830, as conseqüências possíveis do protecionismo pelo qual propugnava: “Sim, sem dúvida um pequeno número de homens de fortuna padecerão, porque se privarão de tomar em sua mesa deliciosos vinhos e licores estrangeiros... As classes menos acomodadas não acharão muita diferença entre os vinhos e licores que atualmente bebem, mas sim no preço, e diminuirão o consumo, o que não creio ser muito prejudicial. Não usarão nossos camponeses ponchos ingleses; não levarão bolas e laços feitos na Inglaterra; não vestiremos roupa feita no estrangeiro, e demais itens que podemos proporcionar; porém, em compensação, começará a ser menos desgraçada a condição de povoados inteiros de argentinos, e não nos perseguirá a idéia da espantosa miséria a que hoje estão condenados”34. Dando um importante passo para a reconstrução da unidade nacional perdida pela guerra, o governo de Juan Manuel Rosas ditou em 1835 uma lei alfandegária de marca acentuadamente protecionista. A lei proibia a importação de manufaturas de ferro e de estanho, selas de cavalo, ponchos, cintos, faixas de lã ou algodão, colchões, produtos de granja, rodas de carruagem, velas de sebo e pentes, e cobrava altos impostos sobre a introdução de carros, sapatos, cordões, roupas, montarias, frutas secas e bebidas alcoólicas. Jorge Abelardo Ramos observa (Revolución y contrarrevolución en Argentina, Buenos Aires, 1965) que os sobrenomes verdadeiros que aparecem no Martín Fierro, são os de Anchorena e Gaínza, nomes representativos da oligarquia que exterminou a criollaje em armas, e em nossos dias se fundiram na família proprietária do jornal La Prensa. Ricardo Giliraldes mostrou em Don Segundo Sombra (Buenos Aires, 1939) a outra cara de Martín Fierro: o gaúcho domesticado, amarrado à diária, adulador do amo, de bom uso para o folclore nostálgico e piedoso. 32. Rodolfo Ortega Pefia e Eduardo Luis Duhalde, Félipe, Varela contra el Império Británico, Buenos Aires, 1966. Em 1870, também caía banhado de sangue pela invasão estrangeira o Paraguai, único Estado latino-americano que não tinha entrado na prisão imperialista. 33. Miron Burgin, op. cit. 34. Juan Alvarez, op. cit. 34. Juan Álvarez, op. cit. 130 Não se cobrava imposto à carne transportada em barcos de bandeira argentina, e se impulsionava a selaria nacional e o cultivo do tabaco. Os efeitos se fizeram notar sem demora. Até a batalha de Caseros, que derrubou Rosas em 1852, navegavam pelos rios as escunas e os barcos construídos nos estaleiros de Corrientes e Santa Fé; havia em Buenos Aires mais de cem fábricas prósperas e todos os viajantes coincidiam em assinalar a excelência dos tecidos e sapatos elaborados em Córdoba e Tucumán, os cigarros e os artesanatos de Salta, os vinhos e aguardentes de Mendoza e San Juan. A marcenaria tucumana exportava para o Chile, Bolívia e Peru35. Dez anos depois da aprovação da lei, os barcos de guerra da Inglaterra e França romperam a tiros de canhão as cadeias estendidas através do Paraná, para abrir a navegação dos rios interiores argentinos que Rosas mantinha fechados a cal e pedra. À invasão sucedeu o bloqueio. Dez memoriais dos centros industriais de Yorkshire, Liverpool, Manchester, Leeds, Halifax e Bradford, assinados por mil e quinhentos banqueiros, comerciais e industriais, conclamavam o governo inglês a tomar medidas contra as restrições impostas ao comércio no Prata. O bloqueio pôs em evidência, a despeito do progresso iluminado pela lei alfandegária, as limitações da indústria nacional, que não estava capacitada para satisfazer à demanda interna. Em realidade, desde 1841 o protecionismo vinha esvanecendo, ao invés de acentuar-se; Rosas expressava como ninguém os interesses dos fazendeiros charqueadores da província de Buenos Aires, e não existia - nem existe - uma burguesia industrial capaz de impulsionar o desenvolvimento de um capitalismo nacional autêntico e pujante: a grande estância ocupava o centro da vida econômica do país, e nenhuma política industrial podia ser empreendida com independência e vigor sem abater a onipotência do latifúndio exportador. Rosas permaneceu sempre, no fundo, fiel à sua classe. O homem mais a cavalo de toda a província36, violeiro e bailarino, grande domador, que se orientava, nas noites de tormenta e sem estrelas, mastigando umas ervas de pasto para identificar o rumo, era um grande estancieiro e produtor de carne seca e couros, e os fazendeiros converteram-no em chefe. Sua lenda negra, urdida para difamá-lo, não pôde ocultar o caráter nacional e popular de muitas de suas medidas de governo37, mas a contradição de classes explica a ausência de uma política industrial dinâmica e sustentada, além da cirurgia aduaneira, no governo do caudilho dos pecuaristas. Esta ausência não pôde ser atribuída à instabilidade e às penúrias implícitas nas guerras nacionais e no bloqueio estrangeiro, porque, afinal, fora no meio do torvelinho de uma revolução acossada que José Artigas tinha articulado, vinte anos antes, suas normas industrialistas e integradoras, com uma reforma agrária em profundidade. Vivian Trías comparou, num fecundo livro38, o protecionismo de Rosas com o ciclo de medidas que Artigas irradiou a partir da Banda Oriental, entre 1813 e 1815, para conquistar a verdadeira independência da área do vice-reinado rio-platense. Rosas não proibiu os estrangeiros de exercerem o comércio no mercado interno, nem devolveu ao país as rendas da alfândega que Buenos Aires continuou usurpando, nem acabou com a ditadura do porto único. Em compensação, a nacionalização do comércio interior e a quebra do monopólio portuário e aduaneiro de Buenos Aires foram capítulos fundamentais, como a questão agrária, da política artiguista. Artigas quis a livre navegação dos rios interiores, porém Rosas nunca abriu às províncias esta chave de acesso ao comércio de ultramar. 35. Jorge Abelardo Ramos, op. cit. 36. José Luis Busaniche, Rosas visto por sus contemporáneos, Buenos Aires, 1955. 37. José Rivera Indarte realizou, em suas célebres Tablas de sangre, um inventário dos crimes de Rosas, para estremecer a sensibilidade européia. Segundo o Atlas de Londres, a casa bancária inglesa de Samuel Lafone pagou ao escritor um penny por morto. Rosas tinha proibido a exportação de ouro e prata, duro golpe para o Império, e tinha disso)vido o Banco Nacional, que era um instrumento do comércio britânico. John F. Cady, La intervención extranjera en el Rio de Ia Pla ta, Buenos Aires, 1943. 38. Vivian Trías, Juan Manuel de Rosas, Montevidéu, 1970. 131 Rosas também permaneceu fiel, no fundo, a sua província privilegiada. A despeito de todas estas limitações, o nacionalismo e o populismo do “gaúcho de olhos azuis” continuam gerando ódio nas classes dominantes argentinas. Rosas continua sendo “réu de lesapátria”, de acordo com uma lei de 1857 ainda vigente, e o país se nega ainda a abrir uma sepultura nacional para seus ossos enterrados na Europa. Sua imagem oficial a imagem de um assassino. Superada a heresia de Rosas, a oligarquia se reencontrou com seu destino. Em 1858, o presidente da comissão diretora da exposição rural declarava inaugurada a mostra com estas palavras: “Nós, na infância ainda, contentamo-nos com a humilde idéia de enviar para aqueles bazares europeus nossos produtos e matérias-primas, para que nos devolvam transformados por meio dos poderosos agentes de que dispõem. Matérias-primas é o que a Europa pede, para transformá-las em ricos artefatos”39. O ilustre Domingo Faustino Sarmiento e outros escritores liberais viram na montonera camponesa nada mais do que o símbolo da barbárie, do atraso e da ignorância, do anacronismo das campanhas pastorais frente à civilização que a cidade encarnava: o poncho e o chiripá contra a casaca; a lança e o punhal contra a tropa de linha; o analfabetismo contra a escola40. Em 1861, Sarmiento escrevia a Mitre: “Não trate de economizar sangue de gaúchos, é a única coisa que têm de humano. Este é adubo que é preciso fazer útil ao país”. Tanto desprezo e tanto ódio revelavam uma negação da própria pátria, que tinha, é claro, também uma expressão de política econômica: “Não somos nem industriais nem navegantes - afirmava Sarmiento -, e a Europa nos proverá por longos séculos de seus artefatos em troca de nossas matérias-primas”41. O presidente Bartolomeu Mitre levou adiante, a partir de 1862, uma guerra de extermínio contra as províncias e seus últimos caudilhos. Sarmiento foi designado diretor da guerra e as tropas marcharam ao norte para matar gaúchos, “animais bípedes de tão perversa condição”. Em La Riaja, “El Chacho” Pefialoza, general das planícies, que estendia sua influência sobre Mendoza e San Juan, era um dos últimos redutos da rebelião contra o porto e Buenos Aires considerou que tinha chegado o momento de terminar com ele. Cortaram-lhe a cabeça e a cravaram, em exibição, no centro da Plaza de Olta. A ferrovia e as estradas culminaram a ruína de La Rioja, que tinha começado com a revolução de 1810: o livre-cambismo tinha provocado a crise de seus artesanatos e tinha acentuado a crônica pobreza da região. No século XX, os camponeses riojanos fogem de suas aldeias nas montanhas ou nas planícies, e baixam para Buenos Aires a fim de oferecerem seus braços: só chegam, como os camponeses humildes de outras províncias, até as portas da cidade. Nos subúrbios encontram lugar junto a outros 700 mil habitantes das villasmiserias e se arranjam, bem ou mal, com as migalhas que lhes lança o banquete da grande capital. Nota você mudanças nos que se foram e voltam de visita?, perguntaram os sociólogos aos 150 sobreviventes de uma aldeia riojana, há poucos anos. Com inveja advertiam, os que ficaram, que Buenos Aires melhorara o traje, os modos e a maneira de falar dos emigrados. Alguns os achavam, inclusive, “mais brancos”42. 39. Discurso de Gervasio A. de Posadas. Citado por Dardo Cúneo, Comportamiento y crisis de la clase operária, Buenos Aires, 1967. En 1876, o ministro da Fazenda dirá no Congresso: “... Não devemos pôr um direito exagerado que torne impossível a introdução do calçado, de uma maneira que enquanto quatro remendões aqui florescem, mil fabricantes de calçado estrangeiro não podem vender um só par de sapatos.” 40. Armando Raúl Bazári, Las bases sociales de Ia montonera, em Revista de história americana y argentina, n9 7 e 8, Mendoza, 1962-63. 41. Domingo Faustino Sarmiento, Facundo, Buenos Aires, 1952. 42. Mario Margulis, Migración y marginalidad en la sociedad argentina, Buenos Aires, 1968. 132 A GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA CONTRA O PARAGUAI ANIQUILOU A ÚNICA EXPERIÉNCIA, COM ÊXITO, DE DESENVOLVIMENTO INDEPENDENTE O homem viajava a meu lado, silencioso. Seu perfil, nariz afilado, altos pôrnulos, se recortava contra a forte luz do meio-dia. Iamos a Assunção, partindo da fronteira do sul, num ônibus para vinte pessoas que continha, não sei como, cinqüenta. Ao fim de algumas horas, fizemos uma parada. Sentamo-nos num pátio aberto, a sombra de uma árvore de folhas carnosas. A nossos olhos, se abria o brilho cegante da vasta, despovoada, intacta terra vermelha: de horizonte a horizonte, nada perturba a transparência do ar no Paraguai. Fumamos. Meu companheiro, camponês guarani, articulou algumas palavras tristes em castelhano: “Os paraguaios somos pobres e poucos”, me disse. Explicou-me que havia baixado a Encarnación para procurar trabalho, mas não tinha encontrado. Mal pudera juntar alguns pesos para a passagem de volta. Anos atrás, quando moço, tentara a sorte em Buenos Aires e no sul do Brasil. Agora vinha a colheita de algodão e muitos trabalhadores braçais paraguaios rumavam, como todos os anos, à Argentina. “Porém eu já tenho sessenta e três anos. Meu coração já não suporta mais este tipo de coisa”. Somam meio milhão os paraguaios que abandonaram a pátria, definitivamente, nos últimos vinte anos. A miséria empurra os habitantes do país que era, há um século, o mais avançado da América do Sul. O Paraguai tem agora uma população que apenas duplica a que tinha, naquela época, e é, com a Bolívia, um dos dois países sul-americanos mais pobres e atrasados. Os paraguaios sofrem a herança de uma guerra de extermínio que se incorporou à história da América Latina como seu capítulo mais infame. Chamou-se a Guerra da Tríplice Aliança. Brasil, Argentina e Uruguai tiveram a seu cargo o genocídio. Não deixaram pedra sobre pedra nem habitantes varões entre os escombros. Embora a Inglaterra não tenha participado diretamente na horrorosa façanha, foram seus mercadores, seus banqueiros e seus industriais que se beneficiaram com o crime do Paraguai. A invasão foi financiada, do começo ao fim, pelo Banco de Londres, a casa Baring Brothers e banco Rothschild, em empréstimos com juros leoninos que hipotecaram o destino dos países vencedores43. Até sua destruição, o Paraguai se erguia como uma exceção na América Latina: a única nação que o capital estrangeiro não tinha deformado. O longo governo de mão-de-ferro do ditador Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840) incubaram, na matriz do isolamento, um desenvolvimento econômico autônomo e sustentado. O Estado, onipotente, paternalista, ocupava o lugar de uma burguesia nacional que não existia, na tarefa de organizar a nação e orientar seus recursos e seu destino. Francia tinha-se apoiado nas massas camponesas para esmagar a oligarquia paraguaia e conquistado a paz interior estendendo um rigoroso cordão sanitário frente aos restantes países do antigo vice-reinado do rio da Prata. As expropriações, os desterros, as prisões, as perseguições e as multas não serviram de instrumentos para a consolidação do domínio interno dos fazendeiros e comerciantes senão que, pelo contrário, foram utilizados para sua destruição. Não existiam, nem existiriam mais tarde, as liberdades políticas e o direito de oposição, porém naquela etapa histórica só os nostálgicos dos privilégios perdidos sofriam a falta de democracia. 43. Para escrever este capitulo, o autor consultou as seguintes obras: Juan Bautista Alberdi, Historia de la guerra del Paraguai (Buenos Aires, 1962); Pelham Horton Box, Los orígenes de la Guerra de la Triple Alianza, (Buenos Aires-Assungáo, 1958); Efraím Cardozo, El Império del Brasil y el Rio de la Plata (Buenos Aires, 1961); Júlio Cesar Chayes, El presidente López (Buenos Aires, 1955); Carlos Pereyra, Francisco Solano López e la guerra del Paraguay (Buenos Aires, 1945); Juan F. Pérez Acosta, Carlos A niónio López, obrero máximo. Labor administrativa y constructiva (Assunrio, 1948); José Maria Rosa, La guerra del Paraguay e ¡as monioneras argentinas (Buenos Aires, 1965); Bartolomeu Mitre e Juan Carlos Gómez, Cartas polémicas sobre la guerra del Paraguay,com prólogo de J. Natalicio Gonzalez (Buenos Aires, 1940). Também um trabalho inédito de Vivian Trías sobre o tema. 133 Não havia grandes fortunas privadas quando Francia morreu, e o Paraguai era o único país da América Latina que não tinha mendigos, famintos nem ladrões44. Os viajantes da época encontravam ali um oásis de tranqüilidade, em meio das demais comarcas convulsionadas pelas guerras contínuas. O agente norte-americano Hopkins informava em 1845 a seu governo que no Paraguai “não tem menino que não saiba ler e escrever...”. Era também o único país que não vivia com o olhar cravado no outro lado do mar. O comércio exterior não constituía o eixo da vida nacional; a doutrina liberal, expressão ideológica da articulação mundial dos mercados, carecia de respostas para os desafios que o Paraguai, obrigado a crescer para dentro por seu isolamento mediterrâneo, estava se colocando desde os princípios do século. O extermínio da oligarquia possibilitou a concentração das alavancas econômicas fundamentais nas mãos do Estado, para levar em frente esta política autárquica de desenvolvimento dentro de suas fronteiras. Os governos posteriores de Carlos Antonio López e de seu filho Francisco Solano continuaram e vitalizaram a tarefa. A economia estava em pleno crescimento. Quando os invasores apareceram no horizonte, em 1865, o Paraguai contava com uma linha telegráfica, uma ferrovia e uma boa quantidade de fábricas de materiais de construção, tecidos, lenços, ponchos, papel e tinta, louça e pólvora. Duzentos técnicos estrangeiros, muito bem pagos pelo Estado, prestavam sua colaboração decisiva. Desde 1850, a fundição de Ibycui fabricava canhões, morteiros e balas de todos os calibres; no arsenal de Assunção eram produzidos canhões de bronze, obuses e balas. A siderurgia nacional, como todas as demais atividades econômicas essenciais, estava em mãos do Estado. O país contava com urna frota mercante nacional, e tinham sido construídos no estaleiro de Assunção vários dos navios que ostentavam o pavilhão paraguaio ao longo do Paraná ou através do Atlântico e do Mediterrâneo. O Estado virtualmente monopolizava o comércio exterior: a erva-mate e o tabaco abasteciam o consumo do sul do continente; as madeiras valiosas eram exportadas para a Europa. A balança comercial mostrava um grande superávit. O Paraguai tinha uma moeda forte e estável, e dispunha de suficiente riqueza para realizar enormes inversões públicas sem recorrer ao capital estrangeiro. O país não devia nem um centavo ao exterior e, além disso, estava em condições de manter o melhor exército da América do Sul, contratar técnicos ingleses que se punham a serviço do país em lugar de pôr o país a seu serviço, e enviar à Europa alguns jovens universitários paraguaios para aperfeiçoarem seus estudos. O excedente econômico gerado pela produção agrícola não se desperdiçava no luxo estéril de uma oligarquia inexistente, nem ia parar nos bolsos dos intermediários, nem nas mãos bruxas dos agiotas, nem no item de lucros que o Império britânico nutria com os serviços de fretes e seguros. A esponja imperialista não absorvia a riqueza que o país produzia. Noventa e oito por cento do território paraguaio era de propriedade pública: o Estado cedia aos camponeses a exploração das parcelas em troca da obrigação de povoá-las e explorá-las de forma permanente e sem direito de vendê-las. Tinha, além disso, 64 fazendas da pátria, diretamente administradas pelo Estado. As obras 44. Francia integra, como um dos exemplares mais horrosos, o bestiário da história oficial. As deformações óticas impostas pelo liberalismo não são um privilégio das classes dominantes na América Latina; muitos intelectuais de esquerda, que costumam olhar com lentes alheias a história de nossos países, também compartilham certos mitos da direita, suas canonizações e suas excomunhões. O Canto general, de Pablo Neruda (Buenos Aires, 1955), esplêndida homenagem poética aos povos latino-americanos, exibe claramente este deslocamento. Neruda ignora Artigas e Carlos Antonio e Francisco Solano López; em compensação, se identifica com Sarmiento. A Francia qualifica de “rei leproso, rodeado/pelas extensões das plantações de erva-mate”, que “fechou o Paraguai como um ninho/de sua majestade” e “amaffou/tortura e barrou as fronteiras”. Com Rosas não é mais amável: clama contra os “punhais, gargalhadas de mazorca/sobre o martírio” de uma “Argentina roubada a lançadas/no vapor da alba, castigada/até sangrar e enlouquecer, vazia,/cavalgada por rudes capatazes”. 134 de regadio, represas e canais, e as novas pontes e estradas contribuíam em grau importante para a elevação da produtividade agrícola. Resgatou-se a tradição indígena das colheitas anuais, que tinha sido abandonada pelos conquistadores. O alento vivo das tradições jesuítas facilitava, sem dúvida, todo este processo criador45. O Estado praticava um zeloso protecionismo, muito reforçado em 1864, sobre a indústria nacional e mercado interno; os rios interiores não estavam abertos às naves britânicas que bombardeavam com manufaturas de Manchester e Liverpool todo resto da América Latina. O comércio inglês não dissimulava sua inquietação, não só porque aquele último foco de resistência nacional no coração do continente era invulnerável, mas também, e sobretudo, pela força do exemplo que a experiência paraguaia irradiava perigosamente para os vizinhos. O país mais progressista da América Latina construía seu futuro sem inversões estrangeiras, sem empréstimos do banco inglês e sem as bênçãos do livre comércio. Porém, à medida que o Paraguai ia avançando neste processo, sua necessidade de romper a reclusão se tornava mais aguda. O desenvolvimento industrial requeria contatos mais intensos com o mercado internacional e com as fontes de técnica avançada. O Paraguai estava objetivamente bloqueado entre Argentina e Brasil, e ambos países podiam negar o oxigênio a seus pulmões, fechandolhe, como o fizeram Rivadavia e Rosas, as bocas dos rios, ou fixando impostos arbitrários ao trânsito de suas mercadorias. Para seus vizinhos, por outra parte, era uma condição imprescindível, para os fins de consolidação do estado oligárquico, acabar com o escândalo daquele país odioso que se bastava a si mesmo e não queria ajoelhar-se ante os mercadores britânicos. O ministro inglês em Buenos Aires, Edward Thornton, participou consideravelmente nos preparativos da guerra. Às vésperas da explosão, tomava parte, como assessor do governo, nas reuniões do gabinete argentino, sentando-se ao lado do presidente Bartolomeu Mitre. Diante de seu atento olhar se urdiu a trama de provocações e de enganos que culminou com o acordo argentino-brasileiro e selou a sorte do Paraguai. Venâncio Flores invadiu o Uruguai, nas ancas da intervenção dos dois grandes vizinhos, e estabeleceu em Montevidéu, depois da matança de Paysandú, seu governo adjunto ao Rio de Janeiro e Buenos Aires. A Tríplice Aliança estava em funcionamento. O presidente paraguaio Solano 45. Os fanáticos padres da Companhia de Jesus, “guarda negra do Papa”, tinham assumido a defesa da ordem medieval ante as novas forças que irrompiam no cenário histórico europeu. Porém, na América hispânica, as missões dos jesuítas desenvolveram-se, sob um signo progressista. Vinham para purificar, mediante o exemplo da abnegação e do ascetismo, uma Igreja católica entregue ao ócio e ao gozo desenfreado dos bens que a conquista tinha posto à disposição do clero. Foram as missões do Paraguai as que alcançaram o maior nível; em pouco mais de um século e meio (1603-1768), definiram a capacidade e os fins de seus criadores. Os jesuítas atraíram, mediante a linguagem da música, os índios guaranis, que tinham buscado amparo na selva ou que nela tinham permanecido sem se incorporarem ao processo civilizatório dos encomenderos e donos de terra. Cento e cinqúenta mil índios guaranis puderam, assim, reencontrar sua organização comunitária primitiva e ressuscitar suas próprias técnicas nos oficios e nas artes. Nas missões não existia o latifúndio; a terra era cultivada em parte para a satisfação das necessidades individuais e em parte para desenvolver obras de interesse geral e adquirir os instrumentos de trabalho necessário, que eram de propriedade coletiva. A vida dos índios estava sabiamente organizada; nas oficinas e nas escolas, se tornavam músicos e artesãos, agricultores, tecedores, atores, pintores, construtores. Não se conhecia o dinheiro; estava proibida a entrada de comerciantes, que deviam negociar a partir dos hotéis instalados a certa distância. A Coroa sucumbiu finalmente às pressões dos encomenderos criollos, e os jesuítas foram expulsos da América. Os latifundiários e os escravistas se lançaram à caça dos índios. Os cadáveres pendiam das árvores nas missões; povoados inteiros foram vendidos nos mercados de escravos do Brasil. Muitos índios voltaram a encontrar refúgio na selva. As bibliotecas dos jesuítas foram parar nos fornos, como combustível, ou foram utilizadas para fazer cartuchos de pólvora. (Jorge Abelardo Ramos, Historia de Ia nación latino-americana, Buenos Áires, 1968.) 135 López ameaçou com a guerra, se assaltassem o Uruguai: sabia que assim se estava fechando a tenaz de ferro em torno da garganta de seu país encurralado pela geografia e pelos inimigos. O historiador liberal Efrafin, Cardozo não acha inconveniente em estabelecer, todavia, que López se colocou frente ao Brasil simplesmente porque estava ofendido: o imperador lhe tinha negado a mão de uma de suas filhas. O conflito estava colocado. Porém era obra de Mercúrio, não de Cupido. A imprensa de Buenos Aires chamava o presidente paraguaio López de “Átila da América”: - É preciso matá-lo como um réptil, clamavam os editoriais. Em setembro de 1864, Thornton enviou a Londres um extenso informe confidencial, datado de Assunção. Descrevia o Paraguai como Dante ao Inferno, porém colocava acento onde correspondia: Os direitos de importação de quase todos os artigos são de 20 a 25% ad valorem; mas como este valor se calcula sobre o preço corrente dos artigos, o direito que se paga alcança freqüentemente 40 a 45% do preço da fatura. Os direitos de exportação são de 10 a 20% sobre o valor... Em abril de 1865, o Standard, jornal inglês de Buenos Aires, já celebrava a declaração de guerra da Argentina contra o Paraguai, cujo presidente “infringiu todos os usos das nações civilizadas”, e anunciava que a espada do presidente argentino Mitre “levará em sua vitoriosa carreira, além do peso de glórias passadas, o impulso irresistível da opinião pública numa causa justa”. O tratado com o Brasil e Uruguai foi assinado em 19 de maio de 1865; seus termos draconianos foram publicados um ano mais tarde, no diário britânico The Times, que o obteve dos banqueiros credores da Argentina e Brasil. Os futuros vencedores repartiam-se antecipadamente, no tratado, os despojos do vencido. A Argentina se assegurava todo o território de Misiones e o imenso Chaco; o Brasil devorava uma extensão imensa rumo a oeste de suas fronteiras. Ao Uruguai, governado por um títere de ambas as potências, não tocava nada. Mitre anunciou que tomaria Assunção em três meses. Porém a guerra durou cinco anos. Foi uma carnificina, executada todo ao longo dos fortins que defendiam, de lado a lado, o rio Paraguai. O “oprobioso tirano” Francisco Solano López encarnou heroicamente a vontade nacional de sobreviver; o povo paraguaio, que não sofria guerra desde meio século antes, se imolou a seu lado. Homens, mulheres, meninos e velhos; todos se bateram como leões. Os prisioneiros feridos se arrancavam as ataduras para que não os obrigassem a lutar contra seus irmãos. Em 1870, López, à frente de um exército de espectros, anciões e meninos que punham barbas postiças para impressionar de longe, se internou na selva. As tropas invasoras assaltaram os escombros de Assunção com o punhal entre os dentes. Quando finalmente o presidente paraguaio foi assassinado a bala e a lança na espessura do morro Corá, chegou a dizer: “Morro com minha pátria!” e era verdade. O Paraguai morria com ele. Antes, López tinha mandado fuzilar seu irmão e um bispo, que com ele marchavam naquela caravana da morte. Os invasores vinham para redimir o povo paraguaio: exterminaram-no. O Paraguai tinha, no começo da guerra, pouco menos população do que a Argentina. Só 250 mil paraguaios, menos da sexta parte, sobreviviam em 1870. Era o triunfo da civilização. Os vencedores, arruinados pelo altíssimo custo do crime, ficavam em mãos dos banqueiros ingleses que tinha financiado a aventura, O império escravista de Pedro II, cujas tropas se nutriam de escravos e presos, ganhou territórios, mais de 60 mil quilômetros quadrados, e também mão-de-obra, porque muitos prisioneiros paraguaios marcharam para trabalhar nos cafezais paulistas com a marca de ferro da escravidão. A Argentina do presidente Mitre, que esmagara seus próprios caudilhos federais, ficou com 94 mil quilômetros quadrados de terra paraguaia e outros frutos do butim, segundo o próprio Mitre tinha anunciou, quando escreveu: “Os prisioneiros e demais artigos de guerra nós os dividiremos da forma convencionada”. O Uruguai, onde os herdeiros de Artigas foram mortos ou derrotados e a oligarquia mandava, participou da guerra como sócio menor e sem recompensas. Alguns dos soldados uruguaios enviados à campanha do Paraguai tinham subido aos navios com 136 as mãos atadas. Os três países sofreram uma bancarrota financeira que aguçou sua dependência frente a Inglaterra. A matança do Paraguai os marcou para sempre46. O Brasil cumpriu a função que o Império britânico lhe havia assinalado desde os tempos em que os ingleses transferiram o trono português para o Rio de Janeiro. A princípio do século XIX, tinham sido claras as instruções de Canning ao embaixador Lord Strangford: Fazer do Brasil um empório para as manufaturas britânicas destinadas ao consumo de toda a América do Sul. Pouco antes de lançar-se à guerra, o presidente da Argentina tinha inaugurado uma nova linha férrea britânica em seu país, e pronunciado um inflamado discurso: “Qual a força que impulsiona este progresso? Senhores: é o capital inglês!” Do Paraguai derrotado não só desapareceu a população; também as tarifas aduaneiras, os fornos de fundição, os rios fechados ao livre-comércio, a independência econômica e vastas zonas de seu território. Os vencedores implantaram, dentro das fronteiras reduzidas pelo despojo, o livre-cambismo e o latifúndio. Tudo foi saqueado e tudo foi vendido: as terras e os bosques, as minas, as plantações de erva-mate, os edifícios das escolas. Sucessivos governos títeres seriam instalados, em Assunção, pelas forças estrangeiras de ocupação. Nem bem terminou a guerra, sobre as ruínas ainda fumegantes do Paraguai caiu o primeiro empréstimo estrangeiro de sua história. Era britânico, logicamente. Seu valor nominal chegava a um milhão de libras esterlinas, porém ao Paraguai chegou apenas menos da metade; nos anos seguintes, os refinanciamentos elevaram a dívida a mais de três milhões. A guerra do ópio tinha terminado, em 1842, quando se firmou em Nanking o tratado de livre-comércio que assegurou aos comerciantes britânicos o direito de introduzir livremente a droga no território chinês. Também a liberdade de comércio foi garantida pelo Paraguai depois da derrota. Abandonaram-se os cultivos de algodão, e Manchester arruinou a produção têxtil; a indústria nacional não ressuscitou nunca mais. O partido Colorado, que hoje governa o Paraguai, especula alegremente com a memória dos heróis, porém ostenta ao pé de sua ata de fundação a assinatura de vinte e dois traidores do marechal Solano López, “legionários” a serviço das tropas brasileiras de ocupação. O ditador Alfredo Stroessner, que há vinte anos, converteu o Paraguai num grande campo de concentração, fez sua especialização militar no Brasil, e os generais brasileiros o devolveram a seu país com altas qualificações e calorosos elogios: “É digno de grande futuro...”. Durante seu reinado, Stroessner deslocou os interesses anglo-argentinos em beneficio do Brasil e dos norte-americanos. Desde 1870, o Brasil e a Argentina, que libertaram o Paraguai para comê-lo com duas bocas, se alternam no usufruto dos despojos do país derrotado, porém sofrem, por seu turno, o imperialismo da grande potência do momento. O Paraguai padece, ao mesmo tempo, o imperialismo e o subimperialismo. Antes, o Império britânico constituía o elo maior da cadeia das dependências sucessivas. Atualmente, os Estados Unidos, que não ignoram a importância geopolítica deste país enervado no centro da América do Sul, mantêm em solo paraguaio assessores inumeráveis, cozinham os planos econômicos, reestruturam a universidade como querem, inventam um novo esquema político democrático para o país e retribuem com empréstimos onerosos os bons serviços do regime47. Porém, o Paraguai é também colônia de colônias. Utilizando a 46. Solano Lõpez arde ainda na memória. Quando o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro anunciou, em setembro de 1969, que inauguraria uma vitrina dedicada ao presidente paraguaio, os militares reagiram. O general Mourão Filho, que desencadeou o movimento militar de 1964, declarou à imprensa: “Um vento de loucura varre o país... Solano López é uma figura que deve ser apagada para sempre de nona história, como paradigma do ditador uniformizado sulamericano. Foi um sangtlinário que destruiu o Paraguaio, levando-o a urna guerra impossível”. 47. Pouco antes das eleições de começo de 1968, o general Stroessner visitou os Estados Unidos: “Quando me entrevistei com o presidente Jolinson - declarou à France Press -, lhe manifestei que já doze anos que desempenho funções de primeiro magistrado por mandato das urnas. Johnson 137 reforma agrária como pretexto, o governo de Stroessner derrogou, fazendo-se de distraído, a disposição legal que proibia a venda a estrangeiros de terras em zonas de fronteira seca, e hoje até os territórios fiscais caíram em mão de latifundiários brasileiros do café. A onda invasora atravessa o rio Paraná com a cumplicidade do presidente, associado aos fazendeiros que falam português. Cheguei à movediça fronteira do nordeste do Paraguai com notas que tinham estampado o rosto do vencido marechal Solano López, porém ali descobri que só têm valor as que luzem a efígie do imperador vencedor Pedro. O resultado da Guerra da Tríplice Aliança ganha, transcorrido um século, ardente atualidade. Os guardas brasileiros exigem passaporte aos cidadãos paraguaios para circularem em seu próprio país; são brasileiras as bandeiras e as igrejas. A pirataria de terra abarca também os saltos do Guayrá, a maior fonte potencial de energia de toda América Latina, que hoje se chamam, em português, Sete Quedas, e a zona de Itaipu, onde o Brasil constrói a maior central hidrelétrica do mundo. O subimperialismo, ou imperialismo de segundo grau, se expressa de mil maneiras. Quando o presidente Johnson decidiu submergir em sangue os dominicanos, em 1965, Stroessner enviou soldados paraguaios a São Domingos, para que colaborassem na faina. O batalhão se chamou, piada sinistra, “Marechal Solano López”. Os paraguaios atuaram sob as ordens de um general brasileiro, porque foi o Brasil quem recebeu as honras da traição: o general Panasco Alvim encabeçou as tropas latino-americanas cúmplices da matança. Da mesma maneira, poder-se-iam citar outros exemplos. O Paraguai outorgou ao Brasil uma concessão petrolífera em seu território, mas o negócio da distribuição de combustíveis e da petroquímica está no Brasil, em mãos norte-americanas. A Missão Cultural Brasileira é dona da Faculdade de Filosofia e Pedagogia da universidade paraguaia, porém os norte-americanos influem na universidade do Brasil. O Estado-Maior do exército paraguaio não só recebe assessoria dos técnicos do Pentágono, mas também dos generais brasileiros, que por sua vez estudaram em escolas militares nos EUA. Pela via aberta do contrabando, os produtos industriais do Brasil invadem o mercado paraguaio, porém muitas das fábricas que produzem em São Paulo são, desde a avalancha desnacionalizadora destes últimos anos, multinacionais. Stroessner se considera herdeiro dos López. O Paraguai de um século atrás pode ser impunemente cotejado com o Paraguai de agora, empório do contrabando na bacia do Prata e reino da corrupção institucionalizada? Num ato político onde o partido do governo reivindicava ao mesmo tempo, entre vivas e aplausos, a um e outro Paraguai, um rapazola vendia, bandeja no peito, cigarros de contrabando: a fervorosa audiência pitava nervosamente Kent, MarIboro, Camel e Benson & Hedges. Em Assunção, a escassa classe média bebe uísque Ballantine’s em vez de tomar cachaça paraguaia. Se descobrem os últimos modelos dos mais luxuosos automóveis fabricados nos Estados Unidos ou Europa, trazidos ao país de contrabando ou pagamento prévio de minguados impostos, ao mesmo tempo que se vêem, pelas ruas, carros puxados por bois que levam lentamente frutos ao mercado; a terra é trabalhada com arados de madeira e os táxis são Impala 70. Stroessner diz que o contrabando é “o preço da paz”. A indústria, logicamente, agoniza antes de crescer. O Estado nem sequer cumpre o decreto que manda preferir os produtos das fábricas nacionais nas aquisições públicas. Os únicos triunfos que o governo exibe, orgulhoso, na matéria, são as fábricas de Coca Cola, Crush e Pepsi Cola, instaladas desde fins de 1966 como contribuição norte-americana ao progresso do povo paraguaio. O Estado manifesta que só intervirá diretamente na criação de empresas “quando o setor privado não demonstrar interesse”48, e o Banco Central comunica ao Fundo Monetáme respondeu que isto constituía uma razão a mais para continuar exercendo estas funções no período que vem.” 48. Presidência da Nação, Secretaria Técnica de Planificação, Plan nacional de desarrolio económico 138 rio Internacional que decidiu implantar um regime de mercado livre de moedas e abolir as restrições ao comércio e às transações de divisas; um folheto editado pelo Ministério da Indústria e Comércio adverte os investidores que o país outorga concessões especiais para o capital estrangeiro. Exime-se as empresas estrangeiras do pagamento de impostos e de direitos alfandegários, para criar um clima propício para os investimentos. Um ano depois de se instalar em Assunção, o National City Bank de Nova Iorque recupera integralmente o capital investido. O sistema bancário estrangeiro, dono da poupança interna, proporciona ao Paraguai créditos externos que acentuam sua deformação econômica e hipotecam ainda mais sua soberania. No campo, 1,5% dos proprietários dispõe de 90% das terras exploradas, e se cultiva menos dos 2% da superfície total do país. O plano oficial de colonização no triângulo de Caaguazú oferece aos camponeses famintos mais tumbas do que prosperidade49. A pátria nega a seus filhos o direito ao trabalho e ao pão de cada dia: os paraguaios emigram em massa. A Tríplice Aliança continua sendo um êxito total. Os fornos de fundição de Ibycuí, onde se forjaram os canhões que defenderam a pátria invadida, se erguem num lugar que agora se chama “Mina-cuê” - que em guarani significa “foi mina”. Ali, entre pântanos e mosquitos, junto aos restos de um muro em ruína, jaz ainda a base da chaminé que os invasores estouraram, há um século, com dinamite, e se podem ver pedaços de ferro podre nas instalações desfeitas. Vivem, na zona, uns poucos camponeses em farrapos, que nem sequer sabem qual foi a guerra que destruiu tudo isto. Todavia, eles dizem que em certas noites se escutam, lá, vozes de máquinas e trovões de martelos, estampidos de canhões e alaridos de soldados. OS EMPRÉSTIMOS E AS FERROVIAS NA DEFORMAÇÃO ECONÔMICA DA AMÉRICA LATINA O visconde Chateaubriand, ministro de assuntos estrangeiros da França sob o reinado de Luís XVIII, escrevia com despeito e, presumivelmente, com boa base de informação: No momento da emancipação, as colônias espanholas tornaram-se uma espécie de colônias inglesas50. Citava alguns números. Dizia que entre 1822 e 1826 a Inglaterra tinha proporcionado dez empréstimos às colônias espanholas liberadas, por um valor nominal de cerca de 21 milhões de libras esterlinas, mas, uma vez deduzidos os juros e as comissões dos intermediários, o desembolso real chegado às terras da América apenas alcançava os sete milhões. Ao mesmo tempo, criaram-se em Londres mais de 40 sociedades anônimas para explorar os recursos naturais - minas, agricultura - da América Latina e para instalar empresas de serviços públicos. Os bancos brotavam como cogumelos no solo britânico: num só ano, 1836, foram fundados 48. A aparição das ferrovias inglesas no Panamá, por volta da metade do século, e da primeira estrada de ferro, inaugurada em 1868 por uma empresa britânica na cidade brasileira de Recife, não impediu que o banco inglês continuasse financiando diretamente as tesourarias dos governos51. Os bônus públicos latino-americanos circulavam ativamente, com suas crises e seus auges, no mercado fiy social, Assunção, 1966. 49. Muitos dos camponeses optaram finalmente por voltarem à região minifundista do centro do país ou foram a caminho do novo êxodo para o Brasil, onde seus braços baratos são oferecidos às plantações de erva-mate do Paraná e Mato Grosso ou às plantações de café do Paraná. É desesperadora a situação dos pioneiros que se encontram de frente à seiva, sem a menor orientação técnica e sem nenhuma assistência creditícia, com terras concedidas pelo governo, às quais terão de arrancar frutos suficientes para se alimentarem e poder pagá-las - porque se o camponês não paga o preço estipulado, não recebe o título de propriedade. 50. R. Scalabrini Ortiz, Polifica británica en el Rio de la Plata, Buenos Aires, 1940. 51. J. Fred Rippy, British investments in Latin América (1822-1949), Minneapolis, 1959. 139 nanceiro inglês. Os serviços públicos estavam em mãos britânicas, porém os novos Estados nasciam transbordados pelos gastos militares e deviam fazer frente, além disso, ao déficit dos pagamentos externos. O comércio livre implicava um frenético aumento das importações, sobretudo das importações de luxo, e para que uma minoria pudesse viver na moda os governos contraíam empréstimos, que por sua vez geravam a necessidade de novos empréstimos: os países hipotecavam de antemão seu destino, alienavam a liberdade econômica e a soberania política. O mesmo processo se dava - e continua se dando em nossos dias, embora agora os credores sejam outros, e outros os mecanismos - em toda América Latina, com a exceção, aniquilada, do Paraguai. O financiamento externo era, como a morfina, imprescindível. Buracos eram abertos para tapar buracos. A deterioração dos termos comerciais de intercâmbio não é tampouco um fenômeno exclusivo dos nossos dias: segundo Celso Furtado52 “os preços das exportações brasileiras entre 1821 e 1830 e entre 1841 e 1850 baixaram quase à metade, enquanto os preços das importações estrangeiras permaneciam estáveis: as vulneráveis economias latino-americanas compensavam a queda com empréstimos”. “As finanças destes jovens estados - escreve Schnerb - não estão saneadas... Torna-se necessário recorrer à inflação, que produz a depreciação da moeda, e aos empréstimos onerosos. A história destas repúblicas, de certo modo, é a de suas obrigações econômicas contraídas com o absorvente mundo das finanças européias”53. As bancarrotas, as suspensões de pagamentos e os refinanciamentos desesperados eram, de fato, freqüentes. As libras esterlinas escorriam como água por entre os dedos da mão. Do empréstimo de um milhão de libras em acordo do governo de Buenos Aires, em 1824, com a casa Baring Brothers, a Argentina recebeu nada mais de que 570 mil, porém não em ouro, como rezava o convênio, mas em papéis. O empréstimo consistiu no envio de ordens de pagamento para os comerciantes ingleses radicados em Buenos Aires, e eles não dispunham de ouro para entregá-lo ao país porque sua missão consistia, justamente, em enviar a Londres todo metal precioso que passasse por perto dos olhos. Cobraram-se, pois, letras, porém foi preciso pagar, isto sim, em ouro reluzente: quase a princípio de nosso século, a Argentina cancelou esta dívida, que aumentara, ao longo dos sucessivos refinanciamentos, até 4 milhões de libras54. A província de Buenos Aires ficara hipotecada em sua totalidade todas suas rendas, todas suas terras públicas - em garantia do pagamento. Dizia o ministro da Fazenda, na época que contratou o empréstimo: -Não estamos em circunstâncias de tomar medidas contra o comércio estrangeiro, particularmente o inglês, porque achamo-nos empenhados em grandes dívidas com aquela nação, nos expomos assim a um rompimento que causaria grandes males. A utilização da dívida, como instrumento de chantagem, não é, como se vê, uma invenção norte-americana recente. As operações agiotas encarceravam os países livres. Em meados do século XIX, o serviço da dívida externa absorvia já quase 40% do orçamento do Brasil, e o panorama era semelhante por todas as partes. As ferrovias também eram parte decisiva da jaula de ferro da dependência: estenderam a influência imperialista, já em plena época do capitalismo dos monopólios, até as retaguardas das economias coloniais. Muitos dos empréstimos se destinavam a financiar ferrovias para facilitar o embarque ao exterior dos minerais e alimentos. As vias férreas não constituíam uma rede destinada a unir as diversas regiões interiores entre si, mas conectava os centros de produção com os portos. O desenho coincide ainda com os dedos de uma mão aberta: desta maneira, as ferrovias, tantas vezes saudadas como estandartes do progresso, impediam a formação e o desenvolvimento do 52. Celso Furtado, op. cil. 53. Robert Schncrb, Le XIXe siècíe. L’apogée de l’expansion curopéepe (1815-1914), tomo VI da história geral das civilizações dirigida por Maurice Crouzet, Paris, 1968. 54. R. Scalabrini Ortiz, op. cit. 140 mercado interno. Também o faziam de outras maneiras, sobretudo por meio de uma política de tarifas postas a serviço da hegemonia britânica. Os fretes dos produtos elaborados no interior argentino eram muito mais caros do que, por exemplo, os fretes dos produtos enviados em bruto. As tarifas ferroviárias eram descarregadas como uma maldição que tornava impossível fabricar cigarros nas comarcas do tabaco, fiar ou tecer nos centros laníferos, ou extrair madeiras das zonas florestais55. A ferrovia argentina desenvolveu, é certo, a indústria florestal de Santiago del Estero, porém com tais conseqüências que um autor santiaguenho chega a dizer: “Oxalá Santiago não tivesse nunca tido uma árvore”56. Os dormentes das vias se faziam de madeira e o carvão vegetal servia de combustível; o trabalho madeireiro, criado pela ferrovia, desintegrou os núcleos rurais de população, destruiu a agricultura e a pecuária ao arrasar as pastagens e as matas de abrigo, escravizou na selva várias gerações de santiaguenhos e provocou o despovoamento. O êxodo em massa não cessou, e hoje Santiago del Estero é uma das províncias mais pobres da Argentina. A utilização do petróleo como combustível ferroviário submergiu a região numa profunda crise. Não foram capitais ingleses os que estenderam as primeiras vias na Argentina, Brasil, Chile, Guatemala, México e Uruguai. Tampouco o Paraguai, como vimos, porém as ferrovias construídas pelo Estado paraguaio, com a colaboração técnica européia contratada por ele, passaram a mãos inglesas depois da derrota. Idêntico destino tiveram as vias férreas e os trens dos demais países, sem que se produzisse o desembolso de um só centavo de inversão nova; além disso, o Estado se preocupou em assegurar às empresas, por contrato, um nível de lucros, para evitar-lhes possíveis surpresas desagradáveis. Muitas décadas depois, ao término da Segunda Guerra Mundial, quando as ferrovias não já rendiam dividendos e tinham caídos em relativo desuso, a administração pública as recuperou. Quase todos os Estados compraram aos ingleses os ferros velhos e nacionalizaram, assim, as perdas das empresas. Na época do auge ferroviário, as empresas britânicas tinham obtido, amiúde, consideráveis concessões de terras em cada lado das vias, além das próprias linhas férreas e do direito de construir novos ramais. As terras constituíam um estupendo negócio adicional: o fabuloso presente outorgado em 1911 à Brazil Railway determinou o incêndio de inumeráveis cabanas e a expulsão ou a morte das famílias camponesas assentadas na área da concessão. Este foi o gatilho que disparou a rebelião do Contestado, uma das mais intensas páginas de fúria popular de toda a história do Brasil. PROTECIONISMO E LIVRE-CAMBISMO NOS ESTADOS UNIDOS: O SUCESSO NÃO FOI OBRA DE UMA MÃO INVISÍVEL Em 1865, enquanto a Tríplice Aliança anunciava a próxima destruição do Paraguai, o general Ulysses Grant celebrava, em Appomatox, a rendição do general Robert Lee. A Guerra da Secessão terminava com a vitória dos centros industriais do norte, protecionistas a todo preço, sobre os plantadores livre-cambistas de algodão e tabaco no sul. A guerra que selaria o destino colonial da América Latina nascia ao mesmo tempo em que concluía a guerra que tornou possível a consolidação dos Estados Unidos como potência mundial. Convertido pouco depois em presidente dos Estados Unidos, Grant afirmou: “Durante séculos a Inglaterra confiou na proteção, levando-a até seus extremos e obtendo disso resultados satisfatórios. Não resta dúvida que deve sua força presente a este sistema. Depois de dois 55. Ibid. 56. J.Eduardo Retondo, El bosque y la industriaforestal en Santiago del Estero, San tiago del Estero, 1962. 141 séculos, a Inglaterra achou conveniente adotar o comércio livre, porque pensa que a proteção não pode oferecer mais nada. Muito bem, então, cavalheiros, meu conhecimento de meu país me conduz a crer que dentro de duzentos anos, quando a América tiver obtido da proteção tudo que a proteção pode oferecer, adotará também o livre-comércio”57. Dois séculos e meio antes, o adolescente capitalismo inglês tinha transportado, às colônias do norte da América, seus homens, seus capitais, suas formas de vida e de impulsos e projetos. As treze colônias, válvulas de escape para a população européia excedente, aproveitaram rapidamente o handicap que lhes dava a pobreza de seu solo e seu subsolo, e geraram, desde cedo, uma consciência indústrializadora que a metrópole deixou crescer sem maiores problemas. Em 1631, os recém-chegados colonos de Boston lançaram ao mar uma balandra de trinta toneladas, Blessing of the Bay,construída por eles, e desde então a indústria naval ganhou um assombroso impulso. O carvalho branco, abundante nos bosques, dava boa madeira para as pranchas profundas e as armações interiores dos barcos; de pinho se faziam a coberta, os gurupés e os mastros. Massachusetts outorgava subvenções à produção de cânhamo para as cordas e as sogas, e também estimulava a fabricação local das lonas e velames. Ao norte e ao sul de Boston, prósperos estaleiros cobriram as costas. Os governos das colônias outorgavam subvenções e prêmios às manufaturas de todos os tipos. Promovia-se, com incentivos, o cultivo do linho e a produção da lã, matérias-primas para os tecidos de fio cru que, embora não ficassem muito elegantes, eram resistentes e eram nacionais. Para explorar as jazidas de ferro de Lyn, surgiu o primeiro forno de fundição em 1643; pouco tempo depois, Massachusetts abastecia de ferro a toda região. Como os estímulos à produção têxtil não pareciam suficientes, esta colônia optou pela coação: em 1655, ditou uma lei que ordenava que cada família tivesse, sob ameaça de penas graves, pelo menos um fiador em contínua e intensa atividade. Cada condado de Virgínia era obrigado, na mesma época, a selecionar meninos para instruí-los na manufatura têxtil. Ao mesmo tempo, proibia-se a exportação dos couros, para que se convertessem, dentro das fronteiras, em botas, correias e arreios. “As desvantagens com que tem que lutar a indústria colonial procedem de qualquer parte, menos da política colonial inglesa”, diz Kirkland58. Pelo contrário, as dificuldades de comunicação faziam com que a legislação proibitiva perdesse quase toda sua força a três mil milhas de distância, e favoreciam a tendência ao autoabastecimento. As colônias do norte não enviavam à Inglaterra nem prata, nem ouro nem açúcar, e em troca suas necessidades de consumo provocavam um excesso de importações que era preciso deter de alguma maneira. Não eram intensas as relações comerciais através do mar; era imprescindível desenvolver as manufaturas locais para sobreviver. No século XVIII, a Inglaterra dava ainda uma escassa atenção a suas colônias do norte, o que não impedia que se transferissem para suas fábricas as técnicas metropolitanas mais avançadas, num processo real que desmentia as proibições de papel do pacto colonial. Este não era o caso, por certo, das colônias latino-americanas, que proporcionavam o ar, a água e o sal ao capitalismo ascendente na Europa, e podiam nutrir com abundância o consumo luxuoso de suas classes dominantes importando do ultramar as manufaturas mais finas e mais caras. As únicas atividades expansivas, na América Latina, eram as que se orientavam à exportacão; e assim foi também nos séculos seguintes: os interesses econômicos e políticos da burguesia mineira ou latifundiária não coincidiam nunca com a necessidade de um desenvolvimento econômico para dentro, e os comerciantes não estavam ligados ao Novo Mundo em maior medida do que aos mercados estrangeiros dos metais e de alimentos, que vendiam, e às fontes estrangeiras dos artigos manufaturados, que compravam. Quando declarou sua independência, a população norte-americana eqüivalia, em 57. Citado por André Gunder Frank, Capitalirm and Underdevelaprnent in Latin America, Nova lorque, 1967. 58. Edward C. Kirkland, História económica de Estados Unidos, México, 1941. 142 quantidade, à do Brasil. A metrópole portuguesa, tão subdesenvolvida como a espanhola, exportava seu subdesenvolvimento à colônia. A economia brasileira fora instrumentalizada em proveito da Inglaterra, para abastecer suas necessidades de ouro ao longo do século XVIII. A estrutura de classes da colônia refletia esta função provedora. A classe dominante do Brasil não estava formada, diferentemente dos Estados Unidos, por granjeiros, os fabricantes empreendedores e os comerciantes internos. Os principais intérpretes dos ideais das classes dominantes de ambos os países, Alexander Hamilton e o visconde de Cairu, expressavam claramente a diferença entre uma e outra59. Ambos tinham sido discípulos, na Inglaterra, de Adam Smith. Todavia, enquanto Hamilton se tinha transformado num paladino da industrialização e promovia o estímulo e a proteção do Estado à manufatura nacional, Cairti acreditava na mão invisível que opera na magia do liberalismo: deixai fazer, deixai passar, deixai vender. Enquanto morria o século XVIII, os Estados Unidos contavam com a segunda frota mercante do mundo, integralmente formada com barcos construídos nos estaleiros nacionais, e as fábricas têxteis e siderúrgicas estavam em pleno e pujante crescimento. Pouco tempo depois, nasceu a indústria de maquinarias: as fábricas não necessitam comprar no estrangeiro seus bens de capital. Os fervorosos puritanos do Mayflower tinham lançado, nas campinas de Nova Inglaterra, as bases de uma nação; sobre o litoral de baías profundas, ao longo dos grandes estuários, uma burguesia industrial prosperara sem deter-se. O tráfico comercial com as Antilhas, que incluía a venda de escravos africanos, desempenhou, como vimos em outro capítulo, uma função capital neste sentido, porém a façanha norte-americana não teria explicação se não tivesse sido animada, desde o princípio, pelo mais ardente dos nacionalismos. George Washington aconselhava em sua mensagem de despedida: os Estados Unidos deviam seguir uma rota solitária60. Emerson proclamava em 1837: “Escutamos durante muito tempo as musas refinadas da Europa. Nós marcharemos sobre nossos próprios pés, trabalharemos com nossas próprias mãos, falaremos segundo nossas próprias convicções”61. Os fundos públicos ampliavam as dimensões do mercado interno. O Estado estendia caminhos e vias férreas, construía pontes e canais62. Em meados do século, o Estado de Pensylvania participava na gestão de mais de cento e cinqüenta empresas de economia mista, além de administrar os cem milhões de dólares investidos nas empresas públicas. As operações militares de conquista, que arrebataram ao México mais da metade de sua superfície, também contribuíram em grande medida ao progresso do país. O Estado não participava do desenvolvimento somente através de inversões de capital e dos gastos militares orientados para a expansão; no norte, tinha começado a aplicar, ademais, um zeloso protecionismo alfandegário. Os latifundiários do sul eram, ao contrário, livrecambistas. A produção de algodão se duplicava a cada dez anos, e embora proporcionasse grandes rendas comerciais à nação inteira e alimentasse os teares modernos de Massachusetts, dependia sobretudo dos mercados europeus. A aristocracia sulista estava vinculada, em primeira instância, ao mercado mundial, ao estilo latinoamericano; do trabalho de seus escravos provinha 80% do algodão que usavam as tecelagens européias. Quando ao prote59. Celso Furtado, op. cit. 60. Claude Foffien, L’Amérique anglo-saxone de 1815 à nos~, Paris, 1965. 61. Robert Schnerb, op. cit. 62.”O capital do Estado assume o risco inicial... A ajuda oficial às ferrovias não somente facilita a reunião de capitais, mas, além disso, reduz os custos de construção. Em alguns casos, entre outros para as linhas marginais, os fundos públicos tornaram possível a construção de ferrovias que não poderiam nascer de outra maneira. Em outro número de casos ainda mais importantes, aceleraram a realização de projetos que a utilização de capitais privados teria certamente retardado”. (Harrv H. Pierre, Radroads of New York, a study of government aid, 18262875, Cambridge, Massachusetts, 1953). 143 cionismo industrial o norte somou a abolição da escravatura, a contradição eclodiu com a guerra. O norte e o sul enfrentavam dois mundos opostos, dois tempos diferentes historicamente, duas antagônicas concepções de destino nacional. O século XX ganhou esta guerra do século XIX. Que todo homem livre cante... O velho rei Algodão está morto e enterrado, Clamava um poeta do exército vitorioso63. A partir da derrota do general Lee, as taxas aduaneiras adquiriram um valor sagrado, elevado durante o conflito como um meio para conseguir recursos e ficar de pé, para proteger a indústria vencedora. Em 1890, o Congresso votou a chamada tarifa McKinley, ultraprotecionista, e a Lei Dingley elevou novamente os direitos de alfândega em 1897. Pouco depois, os países desenvolvidos da Europa se viram por sua vez obrigados a estender barreiras aduaneiras ante a irrupção de manufaturas norte-americanas, perigosamente competitivas. A palavra truste foi pronunciada pela primeira vez em 1882; o petróleo, o aço, os alimentos, as ferrovias e o tabaco estavam em mãos de monopólios, que avançavam com botas de sete léguas64. Antes da Guerra de Secessão, o general Grant tinha participado no despojo do México. Depois da Guerra de Secessão, o general Grant foi um presidente com idéias protecionistas. Tudo fazia parte do mesmo processo de afirmação nacional. A indústria do norte conduzia a história e, já dona do poder político, cuidava, no Estado, da boa saúde dos interesses dominantes. A fronteira agrícola voava para o oeste e para o sul, à custa dos índios e dos mexicanos, porém em sua passagem não ia estendendo latifúndios, mas pequenos proprietários de novos espaços abertos. A terra da promissão não só atraía os camponeses europeus; os mestres artesãos dos ofícios mais diversificados e os operários especializados em mecânica, metalurgia e siderurgia também chegaram da Europa para fecundar a intensa industrialização norte-americana. Em fins do século passado, os Estados Unidos já eram a primeira potência industrial do planeta; em trinta anos, desde a guerra civil, as fábricas tinham multiplicado por sete sua capacidade de produção. O volume norte-americano de carvão eqüivalia ao da Inglaterra, e o de aço era duas vezes maior; as vias férreas era nove vezes mais extensas. O centro do universo capitalista começava a mudar de lugar. Como a Inglaterra, os Estados Unidos também exportarão, a partir da Segunda Guerra Mundial, a doutrina do livre-câmbio, o comércio livre e a livre concorrência, porém para o consumo alheio. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nasceram juntos para negar, aos países subdesenvolvidos, o direito de proteger suas indústrias nacionais, e para desalentar neles a ação do Estado. Atribuir-se-ão propriedades curativas infalíveis à iniciativa privada. Todavia, os Estados Unidos não abandonarão nunca uma política econômica que continua sendo, na atualidade, rigorosamente protecionista, e que certamente tem bons ouvidos às vozes da própria história: no norte, nunca confundiram a doença com o remédio. 63. Claude FohIen, op. cii. 64.O sul se converteu numa colônia interna dos capitalistas do norte. Depois da guerra, a propaganda pela construção de fiandeiras nas duas Carolinas, Georgia e Alabama, ganhou o caráter de uma cruzada. Porém, este não era o triunfo de uma causa moral, as novas indústrias não nasciam por puro humanitarismo: o sul oferecia mão-de-obra menos cara, energia mais barata e lucros altíssimos, que às vezes chegavam a 75%. Os capitais do norte vinham para amarrar o sul ao centro de gravidade do sistema. A indústria do tabaco, concentrada na Carolina do Norte, estava sob a dependência direta do truste Duke, mudado para Nova Jérsei, a fim de aproveitar a legislação mais favorável; a Tennessee Coa] and Iron Coal que explorava o ferro e o 144 A ESTRUTURA CONTEMPORÂNEA DA ESPOLIAÇÃO UM TALISMà VAZIO DE PODERES Quando Lênin escreveu, na primavera de 1916, seu livro sobre o imperialismo, o capital norte-americano abarcava menos da quinta parte do total das inversões privadas diretas, de origem estrangeira, na América Latina. Hoje, abarca 3/4 partes. O imperialismo que Lênin conheceu - a rapina dos centros industriais em busca de mercados mundiais para a exportação de suas mercadorias; a febre pela captura de todas as fontes possíveis de matérias-primas; o saque do ferro, do carvão, do petróleo; as ferrovias articulando o domínio das áreas submetidas; os empréstimos vorazes dos monopólios financeiros; as expedições militares e as guerras de conquista - era um imperialismo que regava com sal os lugares onde uma colônia ou semicolônia tivesse ousado levantar uma fábrica própria. A industrialização, privilégio das metrópoles, era, para os países pobres, incompatível com o sistema de domínio imposto pelos países ricos. A partir da Segunda Guerra Mundial se consolida na América Latina o recuo dos interesses europeus, em benefício do arrasador avanço das inversões norte-americanas. E se assiste, desde então, a uma mudança importante no destino das inversões. Passo a passo, ano após ano, vão perdendo importância relativa os capitais aplicados nos serviços públicos e na mineração, enquanto aumenta a proporção das inversões em petróleo e, sobretudo, na indústria manufatureira. Atualmente, de cada três dólares investidos na América Latina, um corresponde à indústria1. Em troca de inversões insignificantes, as filiais das grandes corporações saltam de um só pulo as barreiras aduaneiras latino-americanas, paradoxalmente levantadas contra a concorrência estrangeira, e se apoderam dos processos internos de industrialização, Exportam fábricas ou, freqüentemente, encurralam e devoram as fábricas nacionais já existentes. Contam, para isto, com a ajuda entusiástica da maioria dos governos locais e com a capacidade de extorsão que põem a seu serviço os organismos internacionais de credito. O capital imperialista captura os mercados por dentro, tornando seus os setores chaves da indústria local: conquista ou constrói as fortalezas decisivas, com as quais domina o resto. A OEA descreve assim o processo: “As empresas latino-americanas vão tendo um predomínio sobre as indústrias e tecnologias já estabelecidas e de menor sofisticação, e a inversão privada norte-americana, e provavelmente também a proveniente de outros países industrializados, vai aumentando rapidamente sua participação em certas indústrias dinâmicas que requerem um grau de avanço tecnológico relativamente alto, mais importantes na determinação do curso de desenvolvimento econômico”2. Assim, o dinamismo das fábricas norteamericanas ao sul do rio Bravo se torna muito mais intenso do que o da indústria latino-americana em geral. São eloqüentes os ritmos dos três países maiores: para um índice 100 em 1961, o produto industrial na Argentina passou a ser de carvão de Alabama, passou em 1907 ao controle da U.S. Steel, que desde então dispôs dos preços, eliminando a concorrência inquietante. Em princípios do século, a renda per capita do sul tinha-se reduzido à metade em relação ao nível antes da guerra. (C. Vann Woodward, Origins of lhe New South, 1973-1913, em A history of the south, vários autores, Baton Rouge, 1948). 1. Há quarenta anos, a inversão norte-americana em indústrias de transformação só representava 6% do valor total dos capitais dos Estados Unidos na América Latina. Em 1960, a proporção chegava a 20%, e continuou ascendendo até cerca da terça parte do total. Nações Unidas, CEPAL, El financiamiento externo de América Latina, Nova lorque-Santiago do Chile, 1964, e Estudio económico de América Latina de 1967, 1968 e 1969. 2.Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, Elfinanciamento externo para América Latina, W ashington, 1969. Documento de distribuição limitada, sextas reuniões anuais do CIES. 145 112,5 em 1965; no mesmo período, as vendas das empresas filiais dos Estados Unidos subiram a 166,3. Para o Brasil, as cifras respectivas são de 109,2 e 120; para o México, de 142,2 e 186,83. O interesse das corporações imperialistas por se apropriar do crescimento industrial latino-americano e capitalizá-lo em seu benefício não implica um desinteresse por todas as outras formas tradicionais de exploração. É verdade que a ferrovia da United Fruit na Guatemala, já não era tão rentável, e que a Electric Bond and Share e a International Telephone and Telegraph Corporation realizaram esplêndidos negócios quando foram nacionalizadas no Brasil, com indenização em ouro puro, em troca de suas instalações oxidadas e suas maquinarias de museu. Contudo o abandono dos serviços públicos em troca de atividades mais lucrativas, nada tem a ver com o abandono das matérias-primas. Que destino ocorreria ao Império sem o petróleo e os minerais da América Latina? A despeito do descenso relativo das inversões em minas, a economia norteamericana não pode prescindir, como vimos em outro capítulo, dos abastecimentos vitais e dos vultosos lucros que chegam do sul. De resto, as inversões que convertem as fábricas latino-americanas em meras pecas da engrenagem mundial das corporações gigantes não alteram em absoluto a divisão internacional do trabalho. Não sofre a menor modificação o sistema de vasos comunicantes por onde circula os capitais e as mercadorias entre os países pobres e os países ricos. A América Latina continua exportando seu desemprego e sua miséria: as matérias-primas de que o mercado mundial necessita e de cuja venda depende a economia da região. O intercâmbio desigual funciona como sempre: os salários de fome da América Latina contribuem para financiar os altos salários dos Estados Unidos e da Europa. O Brasil continua, apesar de sua industrialização, dependendo em grande medida das exportações do café, e a Argentina das vendas de carne; o México exporta muito poucas manufaturas. Não faltam políticos e tecnocratas dispostos a demonstrar que a invasão do capital estrangeiro industrializador beneficia as áreas aonde irrompe. A diferença do antigo, este novo imperialismo implicaria uma ação em verdade civilizadora, uma bênção para os países dominados, de modo que pela primeira vez a letra das declarações de amor da potência dominante de turno coincidiria com suas intenções reais. Já as consciências culpadas não necessitariam de álibis, senão não seriam culpadas: o imperialismo atual irradiaria tecnologia e progresso, e até seria de mau gosto utilizar esta velha e odiosa palavra para defini-lo. Cada vez que o imperialismo exalta suas próprias virtudes, convém revistar os bolsos. E comprovar que este novo modelo de imperialismo não torna suas colônias mais prósperas, embora enriqueça seus pólos de desenvolvimento; não alivia as tensões sociais regionais, mas as aguça; paga salários vinte vezes menores do que em Detroit e cobra preços três vezes maiores do que em Nova lorque; se faz dono do mercado interno e dos pontos-chave do aparelho produtivo; se apropria do progresso, decide seu rumo e lhe fixa fronteiras; dispõe do crédito nacional e orienta a seu gosto o comércio exterior; não só desnacionaliza a indústria, mas também os lucros que a indústria produz; impulsiona o desperdício de recursos ao desviar a parte substancial do excedente econômico para fora; não traz capitais para o desenvolvimento, mas os subtrai. A CEPAL indicou que a hemorragia dos lucros das inversões diretas dos Estados Unidos na América Latina foi cinco vezes maior, nestes últimos anos, do que a transfusão de inversões novas. Para que as empresas possam arrebatar os ganhos, os países hipotecam a si mesmos endividando-se com os bancos estrangeiros e com os organismos internacionais de crédito, com o que multiplicam a enxurrada das próximas sangrias. A inversão industrial opera, neste sentido, com as mesmas conseqüências da inversão “tradicional”. No quadro de aço de um capitalismo mundial, integrado em torno das grandes 3. Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos e do Comitê Intera mericano da Aliança para o Progresso. Secretaria Geral, OEA, op. cil. 146 corporações norte-americanas, a industrialização da América Latina se identifica cada vez menos com o progresso e com a libertação nacional. O talismã foi despojado de poderes nas decisivas derrotas do século passado, quando os portos triunfaram sobre os países e a liberdade de comércio arrasou a indústria nacional recém-nascida. O século XX não engendrou uma burguesia industrial forte e criadora que fosse capaz de reempreender a tarefa e levá-la a suas últimas conseqüências. Todas as tentativas ficaram a meio caminho. À burguesia industrial da América Latina ocorreu a mesma coisa que acontece com os anões: chegou à decrepitude sem terem crescido. Nossos burgueses são, hoje em dia, representantes ou funcionários das corporações estrangeiras todo-poderosas. Em honra da verdade, nunca tiveram méritos para merecer outro destino. SÃO OS SENTINELAS QUE ABREM AS PORTAS: A ESTERILIDADE CULPÁVEL DA BURGUESIA NACIONAL A atual estrutura da indústria na Argentina, Brasil e México - os três grandes pólos de desenvolvimento na América Latina - já exibe as deformações características de um desenvolvimento reflexo. Nos demais países, mais débeis, a satelitização da indústria se operou, salvo algumas exceções, sem maiores dificuldades. Não é, por certo, um capitalismo competitivo este que hoje exporta fábricas além de mercadorias e capitais, penetra e monopoliza tudo: esta é a integração industrial consolidada, em escala internacional, pelo capitalismo na idade das grandes corporações multinacionais, monopólios de dimensões infinitas que abarcam as atividades mais diversas nos mais diversos rincões do globo terráqueo4. Os capitalistas norte-americanos se concentram, na América Latina, mais agudamente que nos próprios Estados Unidos; um punhado de empresas controla a imensa maioria das inversões. Para elas, a nação não é uma tarefa a empreender, nem uma bandeira a defender, nem um destino a conquistar.- a nação nada mais é do que um obstáculo a saltar (porque às vezes a soberania incomoda) e uma suculenta fruta a devorar.Para as classes dominantes dentro de cada país, constitui a nação, pelo contrário, urna missão a cumprir? A grande corrida do capital imperialista encontrou a indústria local sem defesas e sem consciência de seu papel histórico. A burguesia se associou à invasão estrangeira sem derramar lágrimas nem sangue; quanto ao Estado, sua influência sobre a economia latino-americana, que vem se debilitando há duas décadas, reduziu-se ao mínimo, graças aos bons ofícios do Fundo Monetário Internacional. As corporações norte-americanas entraram na Europa como conquistadores e se apoderaram do desenvolvimento do velho continente a tal ponto que, conforme se anuncia, a indústria norte-americana ali instalada será a terceira potência industrial do planeta, depois dos Estados Unidos e da União Soviética5. Se a burguesia européia, com toda sua tradição e sua pujança, não pôde limitar essa invasão, era de se esperar que a burguesia latino-americana encabeçasse, a esta altura da história, a impossível aventura de um desenvolvimento capitalista independente? Pelo contrário, na América Latina o processo de desnacionalização foi muito mais fulminante e barato, e teve conseqüências incomparavelmente piores. O crescimento fabril da América Latina fora iluminado, em nosso século, de fora. Não foi gerado por uma política planificada em direção ao desenvolvimento nacional, nem coroou a maturação das forças produtivas, nem resultou da explosão dos conflitos internos, já superados, entre os latifundiários e um artesanato nacional, que morrera pouco depois de nascer. A indústria latino-americana nasceu do próprio ventre do sistema agroexportador, para dar resposta ao agudo desequilíbrio provocado pela queda do comércio exterior.De fato, as duas guerras mundiais e, sobretudo, a profunda depressão que o capitalismo sofreu a partir da explosão da sexta-feira negra de outubro 4. Paul A. Batan e Paul M. Sweezy, El capital monopolista, México, 1971. 5. J.J. Servan-Schreiber, El desafío americano, Santiago do Chile, 1968. 147 de 1929, provocaram uma violenta redução das exportações da região e, consequentemente, fizeram cair, de golpe, a capacidade de importar. Os preços internos dos artigos industriais estrangeiros, subitamente escassos, subiram verticalmente. Não surgiu uma classe industrial livre da dependência tradicional: o grande impulso proveio do capital acumulado em mãos dos latifundiários e dos importadores. Foram os grandes pecuaristas que impuseram o controle de câmbios na Argentina; o presidente da Sociedade Rural, convertido em ministro da Agricultura, declarava em 1933: “O isolamento em que nos colocou um mundo deslocado nos obriga a fabricar no país o que já não podemos adquirir nos países que não nos compram6. Os fazendeiros do café investiram na industrialização de São Paulo boa parte de seus capitais acumulados no comércio exterior: Diferente da industrialização nos países desenvolvidos - diagnostica um documento do governo7 -, o processo da industrialização brasileira não se deu paulatinamente, inserido dentro de um processo de transformação econômica geral. Antes, foi um fenômeno rápido e intenso, que se superpôs à estrutura econômico-social preexistente, sem modificá-la por inteiro, dando origem a profundas diferenças setoriais e regionais que caracterizam a sociedade brasileira”. A nova indústria se entrincheirou atrás das barreiras alfandegárias que os governos levantaram para protegê-la, e cresceu graças às medidas que o Estado adotou para restringir e controlar as importações, fixar taxas especiais de câmbio, evitar impostos, comprar ou financiar excedentes de produção, estender estradas para tornar possível o transporte das matérias-primas e das mercadorias, e criar ou ampliar as fontes de energia. Os governos de Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54), Lázaro Cárdenas (1934-40) e Juan Domingo Perón (1946-55), de cunho nacionalista e ampla proteção popular, expressaram no Brasil, México e Argentina a necessidade de arranque, desenvolvimento ou consolidação, segundo cada caso e cada período, da indústria nacional. Em realidade, o espírito de empresa da burguesia industrial nos países capitalistas desenvolvidos foi, na América Latina, uma característica do Estado, sobretudo nestes períodos de impulso decisivo. O Estado ocupou o lugar de uma classe social, cuja aparição a história reclama sem muito êxito: encarnou a nação e impôs o acesso político e econômico das massas populares aos benefícios da industrialização. Nesta matriz, obra dos caudilhos populistas, não se incubou uma burguesia industrial essencialmente diferenciada do conjunto das classes até então dominantes. Perári deflagrou, por exemplo, o pânico da União Industrial, cujos dirigentes viam, não sem razão, que o fantasma das montoneras provincianas reaparecia na rebelião do proletariado dos subúrbios de Buenos Aires. As forças da coalizão conservadora receberam, antes de Perón derrotá-las nas eleições de fevereiro de 46, um famoso cheque do líder dos industriais; na hora da queda do regime, dez anos depois, os donos das fábricas mais importantes voltaram a confirmar que não eram fundamentais suas contradições com a oligarquia da qual, mal ou bem, faziam parte. Em 1956, a União Industrial, a Sociedade Rural e a Bolsa de Comércio formaram uma frente comum na defesa da liberdade de associação, da livre empresa, da liberdade de comércio e da contratação livre de pessoal8. No Brasil, um importante setor da burguesia fabril estreitou fileiras junto às forças que empurraram Vargas ao suicídio. A experiência mexicana teve, neste sentido, características excepcionais, e por certo prometia muito mais do que finalmente deu ao processo de mudança na América Latina. O ciclo nacionalista de Llizaro Cárderias foi o único que rompeu os laços contra os latifundiários, levando adiante a reforma agrária que agitava o país desde 1910; nos demais países, e não só na Argentina e Brasil, os governos industrializadores deixaram intacta a estrutura lati6. Citado por Alfredo Parera Dennis, Naturaleza de las relaciones entre las clases dominantes y las metrópolis, em Fichas de investigaciones económicas y sociales, Buenos Aires, dezembro de 1964. 7. Ministério de Planejamento e Coordenação Geral, A industrialização brasileira: diagnóstico e perspectivas, Rio de Janeiro, 1969. 8. Dardo Cúneo, Comportamiento y crise de la clase empresaria, Buenos Aires, 1967. 148 fundiária, que continuou estrangulando o desenvolvimento do mercado interno e da produção agropecuária9. No geral, a indústria aterrissou como um avião, sem modificar o aeroporto em suas estruturas básicas: condicionada pela demanda de um mercado interno previamente existente, serviu às suas necessidades de consumo e não chegou a ampliá-lo na profunda e extensa medida que às grandes mudanças de estrutura, se tivessem ocorrido, tornariam possível. Da mesma maneira, o desenvolvimento industrial obrigou a um aumento das importações de maquinarias, peças sobressalentes, combustíveis e produtos intermediários10, porém as exportações, fonte das divisas, não podiam dar resposta a este desafio porque provinham de um campo condenado, por seus donos, ao atraso. Sob o governo de Perón, o Estado argentino chegou a monopolizar a exportação de grãos: em troca, nem sequer arranhou o regime de propriedade da terra, não nacionalizou os grandes frigoríficos norte-americanos e britânicos nem os exportadores de lã11. Foi débil, muito débil, o impulso oficial à indústria pesada, e o Estado não advertiu a tempo que, se não gerasse uma tecnologia própria, sua política nacionalista acabaria de asas cortadas. Já em 1953, Perón, que chegara ao poder enfrentando diretamente o embaixador dos Estados Unidos, recebia com elogios a visita de Milton Eisenhower e pedia a cooperação do capital estrangeiro para impulsionar as indústrias dinâmicas12. A necessidade de associação da indústria nacional com as corporações imperialistas se fazia peremptória, à medida que se iam queimando etapas na substituição de manufaturas importadas e as novas fábricas requeriam mais altos níveis de técnica e de organização. A tendência ia amadurecendo também no seio do modelo industrializador de Getúlio Vargas; pôs-se a descoberto na trágica decisão final do caudilho. Os oligopólios estrangeiros, que concentram a tecnologia mais moderna, tinham se apoderado, não muito secretamente, da indústria nacional de todos os países da América Latina, inclusive do México, por meio da venda de técnicas de fabricação, patentes e equipamentos novos. Wall Street tomara definitivamente o lugar de Lombard Street, e foram norte-americanas as principais empresas que abriram caminho para o usufruto de um superpoder na região. A penetração na área manufatureira se somava a ingerência cada vez maior nos circuitos bancário e comercial: o mercado da América Latina foi-se integrando ao mercado interno das corporações multinacionais. 9. O Chile, a Colômbia e o Uruguai viveram também processos de industrialização substitutiva de importações, nos períodos que aqui se descrevem. O presidente uruguaio José Batlle y Ordofiez (1903-7 e 1911-15) tinha sido, tempos antes, um profeta da revolução burguesa na América Latina. A jornada de trabalho de oito horas foi consagrada por lei no Uruguai antes dos Estados Unidos. A experiência de welfare state de Batlle não se limitou a pôr em prática a legislação social mais avançada de seu tempo, mais também impulsionou fortemente o desenvolvimento cultural e a educação das massas, e nacionalizou os serviços públicos e várias atividades produtivas de considerável importância econômica. Porém, não tocou no poder dos donos da terra, nem nacionalizou os bancos e o comércio exterior. Atualmente, o Uruguai padece as conseqüências destas omissões, talvez inevitáveis, do profeta, e das traições de seus herdeiros. 10. “A passagem à produção interna de um determinado bem apenas ‘substitui’ parte do valor agregado que antes se gerava fora da economia... Na medida em que o consumo deste bem ‘substituído’ se expande rapidamente, a demanda derivada por importações pode ultrapassar em breve prazo a economia de divisas...” Maria Conceição Tavares, O processo de substituição de importação como modelo de desenvolvimento recente na América Latina, CEPAL-ILPES, Rio de Janeiro. 11. Ismael Vifias y Eugenio Gastiazoro, Economia y dependência (1900-1968), Buenos Aires, 1968. 12. O ministro de Assuntos econômicos respondia assim a pergunta do jornalista da revista Visión (27 de novembro, 1953): - «Além da indústria do petróleo, que outras indústrias deseja desenvolver a Argentina com a cooperação do capital estrangeiro? - Para ser mais preciso, em ordem de prioridade citaremos o petróleo... A fabricação de elementos para transporte... Em segundo lugar,a indústria siderúrgica... A química pesada... A fabricação de pneus e eixos... E a construção ino país de motores diesel. (Citado por Alfredo Parera Dermis, qp. cit.) 149 Em 1965, Roberto Campos, czar econômico do governo de Castelo Branco, sentenciava: A era dos líderes carismáticos, cercados de uma aura romântica, está cedendo lugar à tecnocracia13. A embaixada norte-americana participara diretamente no golpe de Estado que derrubou o governo de João Goulart. A queda de Goulart, herdeiro de Vargas no estilo e nas intenções, assinalou a liquidação do populismo e da política de massas. “Somos uma nação vencida, dominada, conquistada e destruída”, me escrevia um amigo, do Rio de Janeiro, poucos meses depois do triunfo da conspiração militar: a desnacionalização do Brasil implicava a necessidade de exercer, com mão de ferro um governo impopular. O desenvolvimento capitalista já não se compaginava com as grandes mobilizações de massas em torno de caudilhos como Vargas. Era preciso proibir as greves, destruir os sindicatos e os partidos, encarcerar, torturar, matar e abater pela violência dos salários operários, para conter assim, à custa da maior pobreza dos pobres, a vertigem da inflação. Uma pesquisa, realizada em 1966 e 1967, revelou que 84% das grandes indústrias do Brasil considerava que o governo de Goulart aplicara uma política econômica prejudicial. Entre eles estavam, sem dúvida, muitos dos grandes capitães da burguesia nacional, nos quais Goulart intentou apoiar-se para conter a sangria imperialista da economia brasileira14. O mesmo processo de repressão e asfixia do povo teve lugar durante o regime do general Juan Carlos Onganía, na Argentina; tinha começado, em realidade, com a derrota peronista de 1955, assim como no Brasil tinha-se desencadeado realmente desde o balaço de Vargas em 1954. A desnacionalização da indústria no México também coincide com um endurecimento da política repressiva do partido que monopoliza o governo. Fernando Henrique Cardoso assinalou15 que a indústria leve ou tradicional, crescida à sombra generosa dos governos populistas, exige uma expansão do consumo de massas: gente que compre camisas ou cigarros. Pelo contrário, a indústria dinâmica - bens intermediários e bens de capital - se dirige a um mercado restrito, em cuja cúpula estão as grandes empresas e o Estado: poucos consumidores, de grande capacidade financeira. A indústria dinâmica, atualmente em mãos estrangeiras, se apoia na existência prévia da indústria nacional, e a subordina. Nos setores tradicionais, de baixa tecnologia, o capital nacional conserva alguma força; quanto menos está vinculado ao modo internacional de produção pela dependência tecnológica ou financeira, mais o capitalista tende a olhar com bons olhos a reforma agrária e a elevação da capacidade de consumo das classes populares através da luta sindical. Os mais amarrados ao exterior, representantes da indústria dinâmica, simplesmente requerem, em troca, o fortalecimento dos laços econômicos entre as ilhas de desenvolvimento dos países dependentes e o sistema econômico mundial, e subordinam as transformações internas a este objetivo prioritário. São estes últimos os que orquestram a voz cantante da burguesia industrial, como revela, entre outras coisas, o resultado das recentes pesquisas feitas na Argentina e Brasil, que servem de matéria-prima para o trabalho de Cardoso. Os grandes empresários se manifestam em termos contundentes contra a reforma agrária; negam, em sua maioria, que o setor fabril tenha interesses divergentes dos setores rurais e consideram que não há nada mais importante, para o desenvolvimento da indústria, do que a coesão de todas as classes produtoras e o fortalecimento do bloco ocidental. Só uns 2% do grandes industriais da Argentina e do Brasil consideram que politicamente é preciso contar, em primeiro lugar, com os trabalhadores. Os pesquisados foram, em sua maioria, empresários nacionalistas em sua maioria, também, amarrados de pés e mãos aos centros estrangeiros de poder pelas múltiplas cordas da dependência. Era de esperar, a esta altura, outro resultado? A burguesia industrial integra a cons13. Octavio Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1968. 14. Luciano Martins, Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1968. 15. Fernando Henrique Cardoso, Ideologías de la burguesia en sociedades dependien tes (Argentina , v Brasil), México, 1971. 150 telação de uma classe dominante que está, por sua vez, dominada de fora. Os principais latifundiários da costa do Peru, hoje expropriados pelo governo de Velasco Alvarado, são também donos de trinta e uma indústrias de transformação e de muitas outras empresas diversas16. Outro tanto ocorre em todos os demais países17. O México não é uma exceção: a burguesia nacional, subordinada aos grandes consórcios norte-americanos, teme muito mais a pressão das massas populares do que a opressão do imperialismo, em cujo seio está se desenvolvendo, sem a independência e a imaginação criadora que se lhe atribuem, e multiplicou eficazmente seus lucros18. Na Argentina, o fundador do Jockey Club, centro de prestígio social dos latifundiários, tinha sido, ao mesmo tempo, o líder dos industriais19,e assim se iniciou, em fins do século passado, uma tradição imortal: os artesãos enriquecidos se casam com filhas de fazendeiros para abrir, pela via conjugal, as portas dos salões mais exclusivos da oligarquia, ou compram terras com os mesmos fins, e não são poucos os pecuaristas que, por seu lado, investiram na indústria, ao menos nos períodos de auge, os excedentes de capital acumulado em suas mãos. Faustino Fano, que fez boa parte de sua fortuna como comerciante e industrial de têxteis, tornou-se presidente da Sociedade Rural durante quatro períodos consecutivos, até sua morte em 1967: “Fano destruiu a falsa antinomia agroindústria” proclamavam as notas necrológicas que os jornais lhe dedicaram. O excedente comercial se converte em vacas. Os irmãos Di Tella, poderosos industriais, venderam aos capitais estrangeiros suas fábricas de automóveis e geladeiras, e agora criam touros para as exposições da Sociedade Rural. Meio século antes, a família Anchorena, dona dos horizontes da província de Buenos Aires, levantara uma das mais importantes fábricas metalúrgicas da cidade. Na Europa e nos Estados Unidos, a burguesia industrial apareceu no cenário histórico de outra maneira, e de outra maneira cresceu e consolidou seu poder. QUAL BANDEIRA TREMULA SOBRE AS MÁQUINAS? A velha se inclinou e mexeu a mão para abanar o fogo. Assim, com as costas torcidas e o pescoço esticado e todo enroscado de rugas parecia uma antiga tartaruga negra. Porém, aquele pobre vestido rasgado não a protegia como uma carapaça, e afinal ela era tão lenta só por culpa dos anos. Às suas costas, também torcida, sua choça de madeira e lata, e mais além outras choças semelhantes do mesmo subúrbio de São Paulo; frente a ela, num caldeirão cor de carvão, fervia a água para o café. Levantou uma latinha até seus lábios; antes de beber, sacudiu a cabeça e fechou os olhos. Disse: - O Brasil é nosso. - No centro da mesma cidade e neste mesmo momento, pensou exatamente o mesmo, porém em outro idioma, o diretor executivo da Union Carbide, enquanto levantava unia taça de cristal para 16. François Bourricaud, Jorge Bravo Bressani, Henri Favre, Jean Piel, La oligar quia en el Perú, Lima, 1969. 0 dado foi tirado do trabalho de Favre. 17. Ricardo Lagos Escobar, La concentración del poder económico. Su ieoría. Realidad chilena (Santiago do Chile, 1961), e Vivian Trías, Reforma agrária en el Uruguai (Montevidéu, 1962), oferecem exemplos irrefutáveis: umas centenas de famílias são donas das fábricas e das terras, dos grandes comércios e dos bancos. 18. Os capitalistas mexicanos são cada vez mais versáteis e ambiciosos. Com independência do negócio que lhes tem servido de ponto de partida para fazer fortuna, dispõem de uma fluida rede de canais que a todos, pelo menos para os mais eminentes, oferece sempre a possibilidade de multiplicar e entrelaçar seus interesses através da amizade, do compadrio, da associação nos negócios, do casamento, o outorgamento de favores mútuos, a participação em certos clubes ou agrupações, as freqüentes reuniões sociais e, desde cedo, a afinidade em suas posições políticas. Alonso Aguillar Monteverde, em El milagro mexicano, de vários autores, México, 1970. 19. Era Carlos Pellegrini. Quando o Jockey Club lhe prestou homenagens editando seus discursos, suprimiu os que apoiavam teses industrialistas. Dardo Cúneo, op. cil. 151 celebrar a conquista de outra fábrica brasileira de plásticos por parte de sua empresa. Um dos dois estava equivocado. Desde 1964, os sucessivos presidentes militares do Brasil falam nos aniversários das empresas do Estado para anunciar sua próxima desnacionalização, a que chamam de recuperação. Os ministros acorrem a celebrar a inauguração de todas as fábricas estrangeiras. A lei 56.570, promulgada em 6 de julho de 1965, reservou ao Estado a exploração petroquímica; no mesmo dia, a lei 56.571 derrogou a anterior e abriu a exploração às inversões privadas. Desta maneira, a Dow Chemical, a Union Carbide, a Phillips Petroleum e o grupo Rockefeller obtiveram, diretamente ou através da associação com o Estado, o filé mignon mais cobiçado: a indústria dos derivados químicos do petróleo, previsível boom da década de 70. O que ocorreu durante as horas transcorridas entre uma lei e outra? Cortinas que tremem, passos nos corredores, desesperadas batidas nas portas, as notas verdes voando pelos ares, agitação no palácio: de Shakespeare a Brecht, muitos queriam ter imaginado isto. Um ministro do governo reconhece: “Forte, no Brasil, além do próprio Estado, só existe o capital estrangeiro, salvo honrosas exceções”20.E o governo faz o possível para evitar esta incômoda concorrência com as corporações norte-americanas e européias. O ingresso, em grandes quantidades, de capital estrangeiro destinado às manufaturas começou, no Brasil, nos anos 50, e recebeu um forte impulso do Plano de Metas (1957-60) posto em prática pelo presidente Juscelino Kubitschek. Aquelas foram horas de euforia do crescimento. Brasília nascia, brotada de uma nave mágica, em meio do deserto, onde os índios não conheciam nem a existência da roda; estendiam-se estradas e criavam-se grandes represas; das fábricas de automóveis surgia um auto novo a cada dois minutos. A indústria acelerava-se a grande ritmo. Abriam-se as portas, de par a par, à inversão estrangeira, aplaudia-se a invasão de dólares, sentia-se vibrar o dinamismo do progresso. As notas circulavam com a tinta ainda fresca; o salto para frente se financiava com inflação e com uma pesada dívida externa que seria descarregada, agonizante herança, sobre os governos seguintes. Outorgou-se um tipo de câmbio especial, que Kubitschek garantiu, para as remessas das divisas às matrizes,das empresas estrangeiras e para a amortização das inversões. O Estado assumia a co-responsabilidade para o pagamento das dívidas contraídas pelas empresas no exterior e outorgava também um dólar barato para a amortização e para os juros destas dívidas: segundo um informe publicado pela CEPAL 21, mais de 80% do total das inversões que chegaram entre 1955 e 1962 provinha de empréstimos obtidos com aval do Estado. Ou seja, mais de quatro quintos das inversões das empresas derivavam do sistema bancário estrangeiro e passavam a engrossar a vultosa dívida externa do Estado brasileiro. Além disso, se outorgavam benefícios especiais para a importação de maquinarias 22 . As empresas nacionais não gozavam destas facilidades dadas à General Motors e à Volkswagen. O resultado desnacionalizador desta política de sedução ante o capital imperialista se manifestou quando se publicaram os dados da paciente investigação realizada pelo 20. Discurso do ministro Hélio Beltrão, no almoço da Associação Comercial do Rio de Janeiro, Correio do Povo, 24 de maio &-1969. 21. CEPAL-BNDE, Quince años de política económica en e/ Brasil, Santiago do Chile, 1965. 22. Um economista muito favorável à inversão estrangeira, Eugênio Gudin, calcula que só neste último item o Brasil doou às empresas norte-americanas e européias nada menos de um bilhão de dólares; Moacir Paixão calculou que os privilégios outorgados à indústria automobilística no período de sua implantação equivaleriam a uma soma igual ao do orçamento nacional. Paulo Schilling assinala (Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966) que, enquanto o Estado brasileiro cedia às grandes corporações internacionais um aluvião de benefícios, e lhes permitia o máximo de lucros com o mínimo de investimentos, ao mesmo tempo negava apoio à Fábrica Nacional de Motores, criada na época de Vargas. Posteriormente, durante o governo de Castelo Branco, esta empresa do Estado foi vendida à Alfa Romeo. 152 Instituto de Ciências Sociais da Universidade sobre os grandes grupos econômicos23.Entre os conglomerados com um capital superior a quatro bilhões de cruzeiros, mais da metade eram estrangeiros e em sua maioria norte-americanos; acima dos dez bilhões de cruzeiros, apareciam doze grupos estrangeiros e só cinco nacionais. “Quanto maior é o grupo econômico, maior é a possibilidade de que seja estrangeiro”, concluiu Maurício Vinhas de Queiroz, na análise da pesquisa. Porém, tanto ou mais eloqüente resultou que, dos 24 grupos nacionais com mais de quatro bilhões de capital, apenas nove não estavam ligados, por ações, com capitais dos Estados Unidos ou da Europa, e ainda assim, em dois deles apareciam entrecruzamentos com diretorias estrangeiras. A pesquisa detectou dez grupos econômicos que exerciam um virtual monopólio em suas respectivas especialidades. Deles, oito eram filiais de grandes corporações norte-americanas. Porém tudo isto parece brinquedo de criança ao lado do que veio depois. Entre 1964 e meados de 1968, quinze fábricas de automotores ou peças para autos foram deglutidas pela Ford, Chrysler, Willys, Simca, Volkswagen ou Alfa Romeo; no setor elétrico e eletrônico, três importantes empresas brasileiras foram parar em mãos japonesas; Wyeth, Bristol, Mead Johnson e Lever devoraram tantos laboratórios, que a produção nacional de medicamentos se reduziu a uma quinta parte do mercado; a Anaconda se lançou sobre os metais não-ferrosos, e a Union Carbide sobre os plásticos, os produtos químicos e a petroquímica; American Can, American Machine and Foundry e outros colegas se apoderaram de seis empresas nacionais de mecânica e metalurgia; a Companhia de Mineração Geral, uma das maiores fábricas metalúrgicas do Brasil, foi comprada a preço de falência por um consórcio do qual participam a BethIehem Steel, o Chase Manhattan Bank e a Standard Oil. Foram sensacionais as conclusões de uma comissão parlamentar formada para investigar o tema, porém o regime militar fechou as portas do Congresso e o público brasileiro nunca conheceu estes dados24. Sob o governo do marechal Castelo Branco tinha-se firmado um acordo de garantia de inversões que oferecia virtual extraterritorialidade às empresas estrangeiras, reduziram-se os impostos de renda e outorgaram-se facilidades extraordinárias para desfrutar do crédito, enquanto se abriam os torniquetes aplicados pelo governo anterior de Goulart à drenagem dos lucros. O regime militar tentava os capitais estrangeiros oferecendo-lhes o país como os proxenetas oferecem uma mulher, e punha o acento onde devia: “O tratamento aos estrangeiros no Brasil é dos mais liberais do mundo... não há restrições de nacionalidade dos acionistas... não existe limite à percentagem de capital registrado, que pode ser remetido como lucro... não há limitações à repatriação de capital, e a reinversão dos lucros será considerada um incremento do capital original...” 25 . A Argentina disputa com o Brasil o papel de praça predileta das inversões imperia23. Maurício Vinhas de Queiroz, Os grupos multibilionários, na Revista do Instituto de Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, janeiro-dezembro de 1965. 24. A comissão chegou à conclusão de que o capital estrangeiro controlava, em 1968, 40% do mercado de capitais no Brasil, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67% dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos, mais de 80% da indústria farmacêutica, cerca de 50% da química, 59% da produção de máquinas e 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento. A metade do capital estrangeiro correspondia a empresas dos Estados Unidos, seguidas em ordem de importância por firmas alemães. Interessa advertir, de passagem, o peso crescente das inversões da Alemanha Federal na América Latina. De cada dois automóveis que se fabrica no Brasil, um provém da fábrica da Volkswagen, que é a mais importante de toda a região. A primeira fábrica de automóveis na América do Sul foi de uma empresa alemã, a Mercedes-Benz Argentina, fundada em 1951. Bayer, Hoechst, BASF e Schering dominam boa parte da indústria química nos países latino-americanos. 25. Suplemento especial do New York Times, 19 de janeiro de 1969. 153 listas, e seu governo militar não ficava atrás na exaltação das vantagens, neste mesmo período: no discurso em que definiu a política econômica argentina, em 1967, o general Juan Carlos Onganía reafirmava que as galinhas outorgavam às raposas a igualdade de oportunidades: “As inversões estrangeiras na Argentina serão consideradas em pé de igualdade com as inversões de origem interna, de acordo com a política tradicional de nosso país, que nunca discriminou o capital estrangeiro” 26 . A Argentina tampouco impõe limitações à entrada do capital forâneo nem a sua gravitação na economia nacional, nem à saída dos lucros, nem à repatriação do capital; os pagamentos de patentes, regalias e assistência técnica se fazem livremente. O governo exime de impostos as empresas e lhes oferece taxas especiais de câmbio, além de muitos outros estímulos e franquias. Entre 1963 e 1968, foram desnacionalizadas 50 importantes empresas argentinas, 29 das quais caíram em mãos norte-americanas, em setores tão diversos como a fundição de aço, a fabricação de automóveis e de peças, a petroquímica, a química, a indústria elétrica, o papel e os cigarros. 27 Em 1962, duas empresas nacionais de capital privado, Siam Di Tella e Industrias Kaiser Argentinas, figuravam entre as cinco empresas industriais maiores da América Latina; em 1967, ambas tinha sido generosamente conquistadas pelo capital imperialista. Entre as mais poderosas empresas do país, que faturam vendas acima de 7 bilhões de pesos anuais cada uma, a metade do valor total das vendas pertence a firmas estrangeiras, um terço a organismos do Estado e apenas um sexto a sociedades privadas de capital argentino. 28 O México congrega quase a terça parte das inversões norte-americanas na indústria de manufaturas da América Latina. Tampouco este país opõe restrições à transferência de capitais nem à repatriação de lucros; as restrições cambiais brilham por sua ausência. A mexicanização obrigatória dos capitais, que impõe uma maioria nacional das ações em algumas indústrias, “foi bem acolhida, em termos gerais, pelos investidores estrangeiros, que reconheceram publicamente diversas vantagens na criação de empresas mistas”, segundo declarava em 1967 o secretário da Indústria e Comércio do governo: “Cabe fazer notar que mesmo empresas de renome internacional adotaram esta forma de associação de companhias que estabeleceram no México, e é também importante destacar que a política de mexicanização da indústria não desalentou a inversão estrangeira no México, mas, depois de que a corrente desta inversão bateu um recorde em 1965, o volume alcançado neste ano foi novamente superado em 1966” 29.Em 1962, das cem empresas mais importantes do México, 56 estavam total ou parcialmente controladas pelo capital estrangeiro, 24 pertenciam ao Estado e 20 ao capital privado mexicano. Estas vinte empresas privadas de capital nacional apenas participam em pouco mais de uma sétima parte do volume total de vendas das cem empresas consideradas 30.Atualmente, as grandes firmas estrangeiras dominam mais da metade dos capitais investidos em computadores, equipamentos de escritório, maquinaria e equipamentos industriais; General Motors, Ford, Chrysler e Volkswagen consolidaram seu poderio sobre a indústria de automóveis e a rede de fábricas auxiliares; a nova indústria química pertence a Du Pont, Monsanto, Imperial Chemical, Allied Chemical, Union Carbide e Cyanamid; os laboratórios, principais estão em mãos da Parke Davis, Merck & Co., Sidney Ross e Squibb; a influência da Celanese é decisiva na fabricação de fibras artificiais; Anderson Clayton e Lieber Brothers dispõem em medida crescente dos azeites comestíveis, e os capitais estrangeiros participam esmaga26. Sergio Nicolau, La inversión extranjera directa en los paises de la ALALC, México, 1968. 27. Rogelio García Lupo, Contra la ocupación extranjera. Buenos Aires, 1968. 28. Citado pelas Nações Unidas, CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1968, Nova Iorque Santiago do Chile, 1969. 29. Reportagem da revista Visión, 3 de janeiro de 1967. 30. José Luis Cecenã, Los monopolios em México, México, 1962. 154 doramente da produção de cimento, cigarros, borracha e derivados, artigos para o lar e alimentos diversos 31. O BOMBARDEIO DO FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL FACILITA O DESEMBARQUE DOS CONQUISTADORES Dois dos ministros do governo que prestaram declarações ante a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a desnacionalização industrial do Brasil reconheceram que as medidas adotadas, sob o governo de Castelo Branco, para permitir o fluxo direto do crédito externo às empresas, deixaram em inferioridade de condições as fabricas de capital nacional. Ambos se referiam à célebre Instrução 289, de princípios de 1965: as empresas estrangeiras obtinham empréstimos fora das fronteiras a 7 ou 8%, com um tipo de câmbio especial que o governo garantia em caso de desvalorização do cruzeiro, enquanto as empresas nacionais deviam pagar cerca de 50% de juros para os créditos que arduamente conseguiam dentro de seu país. O inventor da medida, Roberto Campos, a explicou assim: “Obviamente, o mundo é desigual. Há quem nasce inteligente e há quem nasce burro. Há quem nasce atleta e há quem nasce aleijado. O mundo se compõe de pequenas e grandes empresas. Uns morrem cedo, no primor da vida; outros se arrastam, criminosamente, por uma longa existência inútil. Há uma desigualdade fundamental na natureza humana, na condição das coisas. A isto não escapa o mecanismo de crédito. Postular que as empresas nacionais devam ter o mesmo acesso que as empresas estrangeiras ao crédito externo é simplesmente desconhecer as realidades básicas da economia...” 32.De acordo com os termos deste breve porém vigoroso Manifesto capitalista, a lei da selva é o código que naturalmente rege a vida humana e a injustiça não existe, já que o que conhecemos por injustiça nada mais é do que a expressão cruel da harmonia do universo: os países pobres são pobres porque... são pobres; o destino está escrito nos astros e só nascemos para cumpri-lo: uns, condenados a obedecer; outros, destinados a mandar. Uns oferecendo o pescoço e os outros colocando a corda. O autor foi artífice da política do Fundo Monetário Internacional no Brasil. Como nos demais países da América Latina, a colocação em prática das receitas do Fundo Monetário Internacional serviu para que os conquistadores estrangeiros entrassem pisando terra arrasada. Desde fins da década de 50, a recessão econômica, a instabilidade monetária, a seca de crédito e a derrubada do poder aquisitivo do mercado interno contribuíram, fortemente na tarefa de revirar a indústria nacional e pô-la aos pés das corporações imperialistas. Sob pretexto da mágica estabilização monetária, o Fundo Monetário Internacional, que interessadamente confunde a febre com a doença e a inflação com a crise das estruturas em vigência, impõe na América Latina uma política que aguça os desequilíbrios em vez de aliviá-los. Liberaliza o comércio, proibindo os câmbios múltiplos e os convênios de troca, obriga a contrair até a asfixia os créditos internos, congela os salários e desalenta 31. José Luis Cecenã, México en la órbita imperial, México, 1970, e Alonso Aguilar e Fernando Carmona, México, riqueza y miséria, México, 1968. 32. Depoimento do ministro Roberto Campos, no informe da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as transações efetuadas entre empresas nacionais e estrangeira. Versão datilografada. Câmara dos Deputados, Brasília, 6 de setembro de 1968. Pouco tempo depois, Campos publicou curiosa interpretação das atitudes nacionalistas do governo do Peru. Segundo ele, a expropriação da Standard Oil por parte do governo do general Velasco Alvarado não era mais do que uma “exibição de masculinidade”. O nacionalismo, escreveu, não tem outro objetivo senão satisfazer a primitiva necessidade de ódio do ser humano. Porém, agregou, “o orgulho não gera investimentos, nem aumenta o caudal de capitais..” (No Jornal O Globo, 25 de fevereiro de 1969). 155 a atividade estatal. Agrega ao programa as fortes desvalorizações monetárias, teoricamente destinadas a devolver seu valor real à moeda e a estimular as exportações. Na realidade, as desvalorizações só estimulam a concentração interna de capitais e propiciam a absorção das empresas nacionais por parte dos que chegam de fora com um punhado de dólares nas pastas. Em toda a América Latina, o sistema produz muito menos do que necessita consumir, e a inflação resulta desta impotência estrutural. Porém o FMI não ataca as causas da oferta insuficiente do aparato de produção, mas lança suas cargas de cavalaria contra as conseqüências, arrasando ainda mais a mesquinha capacidade de consumo do mercado interno de consumo: uma demanda excessiva, nestas terras de famintos, teria a culpa da inflação. Suas fórmulas não só fracassaram na estabilização e no desenvolvimento, mas também intensificaram o estrangulamento externo dos países, aumentaram a miséria das grandes massas despojadas, pondo em carne viva as tensões sociais, e precipitaram a desnacionalização econômica e financeira, ao influxo dos sagrados mandamentos da liberdade de comércio, da liberdade de concorrência e da liberdade de movimento dos capitais. Os Estados Unidos, que empregam um vasto sistema protecionista - taxas, cotas, subsídios internos -, jamais mereceram a menor observação do FMI. Em compensação, com a América Latina, foi inflexível: é para isto que existe. Desde que o Chile aceitou a primeira de suas missões em 1954, os conselhos do FMI se estenderam por todas as partes, e a maioria dos governos segue, hoje em dia, suas orientações. A terapêutica piora o doente para melhor impor-lhe a droga dos empréstimos e das inversões. O FMI proporciona empréstimos ou dá a imprescindível luz verde para que outros os proporcionem. Nascido nos Estados Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos Estados Unidos, o Fundo opera, de fato, como um inspetor internacional, sem cujo visto o sistema bancário norte-americano não afrouxa os cordões da bolsa; o Banco Mundial, a Agência para o Desenvolvimento Internacional e outros organismos filantrópicos de alcance universal também condicionam seus créditos à assinatura e cumprimento das Cartas de Intenções dos governos ante o onipotente organismo. Todos os países latino-americanos reunidos não chegam a somar a metade dos votos de que dispõem os Estados Unidos para orientar a política deste supremo fazedor do equilíbrio monetário mundial; o FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda Guerra o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. Nunca foi infiel ao amo 33. A burguesia nacional latino-americano tem, é certo, vocação especuladora, e não limitou suficientemente a avalancha estrangeira sobre a indústria, porém também é certo que as corporações imperialistas utilizaram toda uma gama de métodos de arrasamento. O bombardeio prévio do FMI facilitou a penetração. Assim, se conquistaram empresas mediante um simples telefonema, depois de uma brusca queda nas cotações da bolsa, em troca de um pouco de oxigênio traduzido em ações, ou também executando alguma dívida por abastecimentos, ou pelo uso de patentes, marcas e inovações técnicas. As dívidas, multiplicadas pelas desvalorizações monetárias que obrigam as empresas locais a pagar mais moeda nacional por seus compromissos em dólares, se convertem assim numa cilada mortal. A dependência no fornecimento da tecnologia se paga caro: o know-how das corporações inclui uma grande perícia na arte de devorar o próximo. Um dos últimos moicanos da indústria nacional brasileira declarava, há menos de nove anos, num diário carioca: “A experiência demonstra que o produto da venda de uma empresa nacional muitas vezes nem chega ao Brasil, e fica dando juros no mercado financeiro do país comprador” 34. Os credores cobrarão ficando com as instalações e máquinas dos 33. Samuel Lichetensztejn e Alberto Curiel, El FMI y la crisis económica nacional, Montevidéu, 1967; e Vivian Trías, La crisis del Império. Montevidéu, 1970. 156 devedores. As cifras do Banco Central do Brasil indicam que não menos da quinta parte das novas inversões industriais em 1965, 1966 e 1967 correspondeu, na realidade, à conversão das dívidas não-pagas em inversões. A chantagem financeira e tecnológica se soma à concorrência desleal e livre do forte frente ao fraco. Como as filiais das grandes corporações multinacionais integram uma estrutura mundial, podem dar-se ao luxo de perder dinheiro durante um ano, ou dois, ou o tempo que for necessário. Baixam, pois, os preços, e se sentam, esperando a rendição do acossado. Os bancos colaboram no certo: a empresa nacional não é tão solvente como parecia: se lhe negam víveres. Encurralada, a empresa não tarda em levantar a bandeira branca. O capitalista local se converte em sócio menor ou funcionário de seus vencedores. Ou conquista a mais ambicionada das sortes: cobra o resgate de seus bens em ações da casa-matriz estrangeira e termina seus dias vivendo nababescamente uma vida de rendas. A propósito do dumping de preços, é ilustrativa a história da conquista de uma fábrica brasileira de fitas adesivas, a Adesite, por parte da poderosa Union Carbide. A Scotch, conhecida empresa com sede em Minnesota e tentáculos universais, começou a vender a preço cada vez mais baixos suas próprias fitas adesivas no mercado brasileiro. As vendas da Adesite iam descendo. Os bancos lhe cortaram os créditos. A Scotch continuava baixando seus preços: caíram em 30%, depois em 40%. E entrou, então, a Union Carbide em cena: comprou a fábrica brasileira a preço de desespero. Posteriormente, a Union Carbide e a Scotch se entenderam para repartir o mercado nacional em duas partes: dividiram o Brasil, a metade para cada uma. E, de comum acordo, elevaram os preços das fitas adesivas em 50%. Era a digestão. A lei antitruste, dos velhos tempos de Vargas, tinha sido derrogada anos atrás. A própria Organização dos Estados Americanos reconhece 35 que a abundância de recursos financeiros das filiais norte-americanas, “em momentos de escassa liquidez para as empresas nacionais, propiciou, em certas ocasiões, que algumas destas empresas fossem adquiridas por interesses estrangeiros”. A penúria de recursos financeiros, aguçada pela contração do crédito interno, imposta pelo Fundo Monetário, sufoca as fábricas locais. Porém, o mesmo documento da OEA informa que nada menos s do que 95,7% dos fundos requeridos pelas empresas norte-americanas para seu normal funcionamento e desenvolvimento na América Latina provêm de fontes latino-americanas, em forma de créditos e lucros reinvestidos. Essa proporção é de 80%, no caso das indústrias manufatureiras. OS ESTADOS UNIDOS CUIDAM DE SUA POUPANÇA INTERNA MAS DISPÕEM DA ALHEIA: A INVASÃO DOS BANCOS A canalização dos recursos nacionais em direção às filiais imperialistas se explica em grande parte pela proliferação das sucursais bancárias norte-americanas que brotaram, como cogumelos depois da chuva, durante estes últimos anos, ao longo da América Latina. A ofensiva sobre a poupança local dos satélites está vinculada ao crônico déficit da balança de pagamentos do s Estados Unidos, que obriga a conter as inversões no estrangeiro, e a dramática deterioração do dólar como moeda do mundo. A América Latina proporciona a saliva além da comida, e os Estados Unidos se limitam a pôr a boca. A desnacionalização da indústria se tornou um presente. Segundo o International Banking Survey 36, havia 78 sucursais de bancos norte-americanos ao sul do rio Bravo em 1964, porém em 1967 já eram 133. Tinham 810 milhões de dólares de depósitos em 64, e em 67 já somavam 1.270 milhões. Logo, em 1968 34. Fernando Gasparian, no Correio da Manhã, 19 de maio de 1968. 35. Secretaria-Geral da OEA, op. cit. 36. International Banking Survey, Journal of Commerce, Nova Iorque, 25 de fevereiro de 1968. 157 e 1969, os bancos estrangeiros avançaram com ímpeto: o First National City Bank conta, na atualidade, com nada menos de dez filiais em 17 países da América Latina. A cifra inclui vários bancos nacionais adquiridos pelo City nos últimos tempos. O Chase Manhattan Bank, do grupo Rockefeller, adquiriu em 1962 o Banco Lar Brasileiro, com 34 sucursais no Brasil; em 1964, o Banco Continental, com 42 agencias no Peru; em 1967, o Banco do Comércio, com 120 sucursais na Colômbia e no Panamá, e o Banco Atlântida, com 24 agências em Honduras; em 1968, o Banco Argentino de Comércio. A revolução cubana tinha nacionalizado 20 agências bancárias dos Estados Unidos, porém os bancos recuperaram com sobras aquele duro golpe: só no curso de 1968, mais de 70 novas filiais de bancos norte-americanos foram abertas na América Central, no Caribe e nos países menores da América do Sul. É impossível conhecer o simultâneo aumento das atividades paralelas - subsidiárias, holdings, financeiras, escritórios de representação - em sua magnitude exata, porém se sabe que em igual ou maior proporção cresceram os fundos latino-americanos absorvidos pelos bancos que, embora não operem abertamente como sucursais, são controlados de fora através de decisivos pacotes acionários ou pela abertura de linhas externas de crédito severamente condicionadas. Toda esta invasão bancária serve para desviar a poupança latino-americana para as empresas norte-americanas que operam na região, enquanto as empresas nacionais são estranguladas por falta de crédito. Os departamentos de relações públicas de vários bancos norte-americanos que operam no exterior apregoam, sem constrangimento, que seu propósito mais importante consiste em canalizar a poupança interna dos países onde operam para o uso das corporações multinacionais que são clientes de suas matrizes 37. Façamos a imaginação voar: poderia um banco latino-americano instalar-se em Nova Iorque para captar poupança nacional dos Estados Unidos? A bolha estoura no ar: esta insólita aventura é expressamente proibida. Nenhum banco estrangeiro pode operar, nos Estados Unidos, como receptor de depósitos dos cidadãos norte-americanos. Em troca, os bancos dos Estados Unidos dispõem a seu bel-prazer, através das numerosas filiais, da poupança nacional latino-americana. A América Latina vela pela norte-americanização das finanças, tão ardentemente como os Estados Unidos. Em junho de 1966, o Banco Brasileiro de Descontos consultou seus acionistas para tomar uma resolução vigorosamente nacionalista. Imprimiu a frase Nós confiamos em Deus em todos seus documentos. Orgulhosamente, o banco fez notar que o dólar ostenta In God WeTrust. Os bancos latino-americanos, inclusive os invictos, não infiltrados nem absorvidos pelos capitais estrangeiros, não orientam Os créditos num sentido diferente ao das filiais do City, Chase ou Bank of America: eles também preferem atender à demanda das empresas industriais e comerciais estrangeiras, que contam com garantias sólidas e operam em grandes volumes. O IMPÉRIO QUE IMPORTA CAPITAIS O Programa de Ação Econômica do Governo, elaborado por Roberto Campos 38 , 37. Robert A. Bennett e Karen Almonti, International activities of United States Banks, em The american banker.Nova Iorque, 1969. 38. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, Programa de Ação Econômica do Governo, Rio de Janeiro, novembro de 1964. Dois anos depois, falando na Universidade Mackenzie, de São Paulo, Campos insistia: “Já que as economias em processo de organização não dispõem de recursos para se dinamizarem, pelo simples fato de que se os tivessem não estariam em atraso, é lícito aceitar , o concurso de todos quantos querem correr conosco os riscos da aventura maravilhosa do progresso, para receberem dele uma parte dos frutos” (22 de novembro de 1966). 158 previa que, como resposta a sua política benfeitora, os capitais afluiriam do exterior para impulsionar o desenvolvimento do Brasil e contribuir para sua estabilização econômica e financeira. Anunciaram-se para 1965 novas inversões diretas, de origem estrangeira, de cem milhões de dólares. Chegaram a 70. Para os anos seguintes, assegurava-se, o nível superaria as previsões de 1965, porém as convocatórias foram inúteis. Em 1967, entraram 76 milhões; a evasão por lucros e dividendos, assistência técnica, patentes, royalties ou regalias e uso de marcas superou em mais de quatro vezes a nova invasão. E a estas sangrias tem-se que agregar, ainda, as remessas clandestinas. O Banco Central admite que, fora das vias legais, emigraram do Brasil 120 milhões de dólares em 1967. O que se foi é, como se vê, infinitivamente maior do que entrou. Definitivamente, as novas cifras de inversões diretas nos anos chaves da desnacionalização industrial - 1965, 1966 e 1967 - estiveram abaixo do nível de 1961 39.As inversões na indústria congregam a maior parte dos capitais norte-americanos no Brasil, porém somam menos de 4% do total das inversões dos Estados Unidos nas manufaturas mundiais. As da Argentina chegam apenas a 3%; as do México a 3,5%. A digestão dos maiores parques industriais da América Latina não exigiu grandes sacrifícios de Wall Street. Trazem poucos dólares e levam muitos. “O que caracteriza o capitalismo moderno, no que impera o monopólio, é a exportação de capital”, escrevera Lênin. Em nossos dias, como notaram Baran e Sweezy, o imperialismo importa capitais dos países onde opera. No período 1950-67, as novas inversões norte-americanas na América Latina totalizaram, sem incluir os lucros reinvestidos, US$ 3.921 milhões. No mesmo período, os lucros e dividendos remetidos ao exterior pelas empresas somaram US$ 12.819 milhões. Os ganhos drenados superaram em mais de três vezes o total dos novos capitais incorporados à região 40.Desde então, segundo a CEPAL, novamente cresceu a sangria dos lucros, que nos últimos anos excedem em cinco vezes as inversões novas; Argentina, Brasil e México sofreram os maiores aumentos da evasão. Porém este é um cálculo conservador. Boa parte dos fundos repatriados no conceito de amortização da dívida correspondente, em realidade, aos lucros de inversões, e as cifras também não incluem as remessas ao exterior por pagamentos de patentes, royalties e assistência técnica, nem computam outras transferências invisíveis que costumam esconder por trás dos véus do item “erros e omissões” 41; não têm em conta os lucros que as corporações recebem ao aumentar os preços dos abastecimentos que proporcionam a suas i fliaiseao aumentar também, com igual entusiasmo, seus custos de operação. A imaginação das empresas faz outro tanto com as próprias inversões. De fato, como a vertigem do progresso tecnológico abrevia cada vez mais os prazos de renovação do capital fixo nas economias avançadas, a grande maioria das instalações e equipamentos fabris exportados aos países da América Latina cumpriram anteriormente um ciclo de vida útil em seus lugares de origem. A amortização, pois, já foi feita, em forma total ou parcial. Aos efeitos da inversão no exterior, este detalhe não se leva em conta: o valor atribuído às maquinarias, arbitrariamente elevado, não seria, por certo, nem a sombra do que é, se se 39. “As remessas do Brasil mostram uma alta desde a legislação de 1965”, celebrava o órgão do Departamento de Comércio dos Estados Unidos. “Aumenta o fluxo de juros, lucros, dividendos e regalias; os termos e as condições dos empréstimos estão sujeitos ao compromisso com o Fundo Monetário Internacional.” International Commerce, 24 de abril de 1967. 40. Secretaria-Geral da OEA, op.cit. Já o presidente Kennedy tinha reconhecido que em 1960, “do mundo subdesenvolvido, que tem necessidade de capitais, temos retirado 1.300 milhões de dólares, enquanto só exportamos duzentos milhões em capitais de inversões” (discurso ante o Congresso da AFL-CIO, em Miami, 8 de dezembro de 1961). 41. Os misteriosos erros e omissões somaram, por exemplo, entre 1955 e 1966, mais de um bilhão de dólares na Venezuela, 743 milhões na Argentina, 714 no Brasil, 310 no Uruguai. Nações Unidas-CEPAL, op. cit. 159 consideram os freqüentes casos de desgaste prévio. De resto, a matriz não tem porque aumentar seus gastos para produzir na América Latina os bens que antes vendia de longe. Os governos se encarregam de evitá-lo, adiantando recursos à filial, que chega a instalar-se e cumprir sua missão redentora: a filial tem acesso ao crédito local a partir do momento em que prega um cartaz no terreno onde levantará sua fábrica; conta com privilégios cambiais para suas importações - compras que a empresa costuma fazer a si mesma - e até pode assegurar-se, em alguns países, um tipo de câmbio especial para pagar suas dívidas no exterior, que freqüentemente são dívidas com o ramo financeiro da mesma corporação. Um cálculo realizado pela revista Fichas 42 indica que as divisas consumidas entre 1961 e 1964 pela indústria automobilística na Argentina são três vezes e meia maiores do que o montante necessário para construir 17 centrais termelétricas com uma potência total de mais de dois mil e duzentos megawatts, e equivalem ao valor das importações de maquinarias e equipamentos exigidos durante onze anos pelas indústrias dinâmicas para provocar um incremento anual de 2,8% no produto por habitante. OS TECNOCRATAS EXIGEM A BOLSA OU A VIDA COM MAIS EFICIÊNCIA DO QUE OS MARINES Levando muito mais dólares do que trazem, as empresas contribuem para aguçar a crônica fome de divisas da região; os países “beneficiados” se descapitalizam ao invés de se capitalizarem. Entra em ação, então, o mecanismo de empréstimo. Os organismos internacionais de crédito desempenham uma função muito importante no desmantelamento das fracas cidadelas defensivas da indústria latino-americana de capital nacional, e na consolidação das estruturas neocoloniais. A ajuda funciona como o filantropo do conto, que colocou uma pata de pau em seu porquinho, mas era porque o estava comendo aos pouquinhos. O déficit da balança de pagamentos dos Estados Unidos, provocado pelos gastos militares e pela ajuda externa, crítica espada de Dâmocles sobre a prosperidade norte-americana, possibilita, ao mesmo tempo, esta prosperidade: o império envia ao exterior seus marines para salvar os dólares de seus monopólios quando correm perigo e, mais eficazmente, difunde também seus tecnocratas e seus empréstimos para ampliar os negócios e assegurar as matérias-primas e os mercados. O capitalismo de nossos dias exibe, em seu centro universal de poder, uma identidade evidente dos monopólios privados e do aparato estatal 43. As corporações multinacionais utilizam diretamente o Estado para acumular, multiplicar e concentrar capitais, aprofundar a revolução tecnológica, militarizar a economia e, mediante diversos mecanismos, assegurar o êxito da norte-americanização do mundo capitalista. O Eximbank, Banco de Exportação e Importação, a AID, Agência para o Desenvolvimento Internacional, e outros organismos menores cumprem suas funções neste sentido; também operam assim alguns organismos presumivelmente internacionais, nos quais os Estados Unidos exercem sua incontestável hegemonia: o Fundo Monetário Internacional e seu irmão gêmeo, o Banco de Reconstrução e Desenvolvimento, e o BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento, que se outorgam o direito de decidir a política econômica que hão de seguir os países que solicitam os créditos, lançando-se com sucesso ao assalto de seus bancos centrais e de seus ministérios decisivos, se apoderam de todos os dados secretos da economia e das finanças, redigem e impõem leis nacionais, e proíbem ou autorizam medidas dos governos, cujas orientações desenham com todos os detalhes. A caridade internacional não existe; começa em casa, também para os Estados 42. Fichas de investigación económica y social. Buenos Aires, junho de 1965. 43. V. A. Cheprakov, El capitalismo monopolista de Estado, Moscou, s. d.: Paul A Baran e Paul M. Sweezy, op. cit., e Vivian Trías, op. cit. 160 Unidos. A ajuda externa desempenha, em primeiro lugar, uma função interna: a economia norte-americana se ajuda a si mesma. O próprio Roberto Campos a defendia, nos tempos em que era embaixador do governo nacionalista de Goulart, como um programa de ampliação de mercados nos estrangeiro, destinado à absorção dos excedentes norte-americanos e ao alívio da superprodução na indústria de exportação dos Estados Unidos 44. O Departamento do Comércio dos Estados Unidos celebrava a boa marcha da Aliança para o Progresso, pouco depois de nascida, advertindo que criara novos negócios e fontes de trabalho para empresas privadas de 44 Estados norte-americanos 45. Mais recentemente, em sua mensagem ao Congresso de janeiro de 1968, o presidente Johnson assegurou que mais de 90% da ajuda externa norte-americana de 1969 se aplicaria no financiamento de compras nos Estados Unidos, “e intensifiquei pessoalmente e de forma direta os esforços para incrementar esta porcentagem” 46 . As agências de notícias transmitiram, em outubro de 69, as explosivas declarações do presidente do Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso, Carlos Sanz Santamaria, que expressou em Nova Iorque que a ajuda se tornara um ótimo negocio para a economia dos Estados Unidos, assim como para a tesouraria deste país. Desde que, em fins da década de 50, entrou em crise o desequilíbrio da balança norte-americana de pagamentos, os empréstimos foram condicionados à aquisição dos bens industriais norte-americanos, em geral mais caros do que outros produtos similares em outras partes do mundo. Mais recentemente, se puseram em ação certos mecanismos, como as “1istas negativas”, para evitar que os créditos sirvam à exportação dos artigos que os Estados Unidos podem colocar no mercado mundial, em boas condições competitivas, sem recorrer ao expediente da autofilantropia. As posteriores “listas positivas” tornaram possível, através da ajuda, a venda de certas manufaturas norte-americanas a preços que são entre 30 ou 50% mais altos do que as outras fontes internacionais. A amarração do financiamento -diz a OEA no documento já citado - outorga “um subsídio geral às exportações norte-americanas”. As empresas fabricantes de maquinarias sofrem sérias desvantagens de preços no mercado internacional, segundo confessa o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, “a menos que possam aproveitar o financiamento mais liberal que se pode obter sob os diversos programas de ajuda” 47. Quando Richard Nixon prometeu desamarrar a ajuda, num discurso em fins de 1969, só se referiu à possibilidade de que as compras pudessem ser efetuadas, alternativamente, nos países latino-americanos. Este já era, desde antes, o caso dos empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, outorgados em seu Fundo para Operações Especiais. Porém a experiência mostra que os Estados Unidos, ou as filiais latino-americanas de suas corporações, são sempre os provedores finalmente eleitos nos contratos. Os empréstimos da AID, Eximbank e, em sua maioria, os do BID exigem também que não menos da metade dos embarques se realize em navios de bandeira americana. Os fretes de navios dos Estados Unidos são tão caros, que alguns casos chegam até a duplicar os preços das linhas de navegação mais baratas disponíveis no mundo. Normalmente, são também norte-americanas as empresas que asseguram as mercadorias transportadas, e norte-americanos os bancos através dos quais as operações se concretizam. A Organização dos Estados Americanos fez uma reveladora estimativa da magnitude da ajuda real que a América Latina recebe 48. Uma vez separado o joio do trigo, chega-se à conclusão de que apenas 38% da ajuda nominal pode ser considerada ajuda real. Os empréstimos para a indústria mineira, comunicações, e os créditos compensatórios, só 44. O Estado de São Paulo, 24 de janeiro de 1963. 45. International Commerce, 4 de fevereiro de 1963. 46. W all Street, 31 de janeiro de 1968. 47. International Commerce, 17 de julho de 1967. 48. Secretaria-Geral da OEA, op. cit. 161 constituem ajuda numa quinta parte do total autorizado. No caso do Eximbank, a ajuda vai do sul para o norte: o financiamento outorgado pelo Eximbank, diz a OEA, em lugar de significar ajuda, implica um custo adicional para a região, em virtude dos sobrepreços dos artigos que os Estados Unidos exportam por seu intermédio. A América Latina proporciona a maioria dos recursos ordinários de capital do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Porém os documentos do BID levam, além do selo próprio, o emblema da Aliança para o Progresso, e os Estados Unidos são o único país que conta com poder de veto em seu seio; os votos dos países latino-americanos, proporcionais a seus aportes de capital, não reúnem os dois terços de maioria, necessários para as resoluções importantes. “Se bem que o poder de veto dos Estados Unidos sobre os empréstimos do BID não tem sido usado, a ameaça de utilização do veto para propósitos influiu sobre as decisões”, reconhecia Nelson Rockefeller, em agosto de 1969, em seu célebre informe a Nixon. Na maior parte dos empréstimos que concede, o BID impõe as mesmas condições que os organismos abertamente norte-americanos: a obrigação de utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade sob a bandeira de listras e estrelas, além da menção expressa da Aliança para o Progresso na publicidade. O BID determina a política de tarifas e de impostos dos serviços, que toca com sua varinha de boa fada; decide a quanto deve cobrar-se a água e fixa os impostos para a rede de esgoto e das moradias, após prévia proposta dos consultores norte-americanos designados com sua vênia. Aprova os planos das obras, redige as licitações, administra os fundos e vigia o cumprimento dos mesmos 49. Na tarefa de reestruturar o ensino superior da região, de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural, o BID desempenhou frutífero papel. Seus empréstimos às universidades bloqueiam a possibilidade de modificar, sem seu conhecimento e sua permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, e ao mesmo tempo impõe determinadas reformas docentes, administrativas ou financeiras. O secretário-geral da OEA designa o árbitro em casos de controvérsia 50. Os contratos da Agência para o Desenvolvimento Internacional, AID, não só implicam mercadorias e fretes norte-americanos, mas, além disso, habitualmente proíbem o comércio com Cuba e Vietnã do Norte e obrigam a aceitar a tutela administrativa de seus técnicos. Para compensar o desnível de preços entre os tratores ou os fertilizantes dos Estados Unidos e os que se podem obter, mais baratos, no mercado mundial, impõem a eliminação dos impostos e taxas aduaneiras para os produtos importados com créditos. A ajuda da AID inclui jipes e armas modernas destinadas à polícia, para que a ordem interna dos países possa ser devidamente salvaguardada. Não é em vão que um terço dos créditos da AID se obtém imediatamente depois de sua aprovação, porém os dois terços restantes são condicionados ao visto do Fundo Monetário Internacional, cujas receitas normalmente provocam o incêndio da agitação social. E se por si próprio o FMI não consegue desmontar, peça por peça, como se desmonta um relógio, todos os mecanismos da soberania, a AID costuma também exigir, de passagem, a aprovação de determinadas leis ou decretos. A AID é o veículo principal dos fundos da Aliança para o Progresso. O Comitê Interamericano da Aliança para o Progresso obteve do governo uruguaio - para não citar mais que um exemplo dos labirintos da generosidade - a assinatura de um compromisso pelo qual as receitas e despesas das empresas do Estado, assim como a política oficial em matéria de tarifas, salários e inversões, passaram ao controle direto destes organismos estrangeiros 51. 49. Por exemplo, no Uruguai, o texto do contrato firmado no dia 21 de maio de 1963 entre o BID e o governo departamental de Montevidéu, para a ampliação da rede de esgoto. 50. Por exemplo, na Bolívia, o texto do contrato firmado no dia 19 de abril de 1966 entre o BID e a Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, para melhorar o ensino das ciências agrícolas. 51. Documento publicado pelo diário Ya, Montevidéu, 28 de maio de 1970. 162 Porém, as condições mais prejudiciais raramente figuram nos textos dos contratos e dos compromissos públicos, e se escondem nas secretas disposições complementares. O parlamento uruguaio nunca soube que o governo aceitara, em março de 1968, pôr um limite às exportações de arroz neste ano, para que o país pudesse receber farinha, milho e sorgo, ao amparo da lei de excedentes agrícolas dos Estados Unidos. Muitas adagas brilham sob a capa da assistência aos países pobres. Teodoro Moscoso, que fora administrador geral da Aliança para o Progresso, confessou: “... pode ocorrer que os Estados Unidos necessitem do voto de um determinado país na Organização das Nações Unidas, ou na OEA, e é possível que, então, o governo deste país - seguindo a consagrada tradição da fria diplomacia peça um preço em troca” 52.Em 1962, o delegado do Haiti na Conferência de Punta del Este trocou seu voto por um aeroporto novo, e assim os Estados Unidos obtiveram a maioria necessária para expulsar Cuba da Organização dos Estados Americanos 53.O ex-ditador da Guatemala, Miguel Ydígoras Fuentes, declarou que teve de ameaçar os norte-americanos com a negativa do voto de seu país nas conferências da Aliança para o Progresso, para que eles cumprissem sua promessa de comprar mais açúcar 54.Poderia parecer, à primeira vista, paradoxal que o Brasil tenha sido o país mais favorecido pela Aliança para o Progresso durante o governo nacionalista de João Goulart (1961-64). Porém o paradoxo acaba, mal se conheça a distribuição interna da ajuda recebida: os créditos da Aliança foram semeados como minas explosivas no caminho de Goulart. Carlos Lacerda, governador da Guanabara e, então, líder da extrema direita, obteve sete vezes mais dólares do que todo o nordeste: o Estado da Guanabara, com seus escassos quatro milhões de habitantes, pôde assim inventar formosos jardins para turistas nas bordas da baía mais espetacular do mundo, e os nordestinos continuaram sendo a chaga viva da América Latina. Em junho de 1964, já triunfante o golpe de Estado que instalou Castelo Branco no poder, Thomas Mann, subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos e braço-direito do presidente Johnson, explicou: “Os Estados Unidos distribuíram entre os eficientes governadores de certos estados brasileiros a ajuda que era destinada ao governo de Goulart, pensando financiar assim a democracia: Washington não deu dinheiro algum para a balança de pagamentos ou orçamento federal, porque isso podia beneficiar diretamente o governo central ” 55. A administração norte-americana resolvera negar qualquer tipo de cooperação ao governo de Belaúnde Terry, no Peru, “a menos que desse as desejadas garantias de que continuaria uma política indulgente para com a International Petroleum Company. Belaúde recusou e, como resultado, em fins de 1965 não tinha recebido ainda sua parte na Aliança para o Progresso” 56. Posteriormente, como se sabe, Belaúnde transou. E perdeu o petróleo e o poder: obedecera para sobreviver. Na Bolívia, os empréstimos norte-americanos não proporcionaram um só centavo para que o país pudesse erguer suas próprias fundições de estanho, de modo que o estanho em bruto continuou viajando a Liverpool e daí, já elaborado, a Nova Iorque, em troca, a ajuda fez nascer uma burguesia comercial parasitária, aumentou a burocracia, 52. Panorama, Centro de Estudos e Documentos Sociais, México, novembro-dezembro de 1965. 53. Também se prometeu à ditadura de Duvalier, em sinal de gratidão, uma rodovia em direção ao aeroporto. Irving Pflaum (Arena of decision, latin american crisis, Nova Iorque, 1954) e John Gerassi (The great fear in laffin america, Nova Iorque, 1965) coincidem em que este foi um caso de suborno. Porém, os Estados Unidos não cumpriram suas promessas ao Haiti. Duvalier,Papa-Doc, guardião da morte na mitologia vudu, se sentiu ludibriado. Segundo dizem, o velho bruxo invocou a ajuda do Diabo para vingar-se de Kennedy, e sorriu feliz quando os balaços de Dallas puseram fim à vida do presidente norte-americano. 54. Reportagem de Georgie Anne Geyer, The Miami Herald, 24 de dezembro de 1966. 55. Declaração ante a subcomissão da Câmara dos Representantes. Citado por Nelson Werneck Sodré, História Militar do Brasil, Rio de Janeiro, 1965. 56. Frederick B. Pike, ne modern history of Peru, Nova Iorque, 1968. 163 levantou grandes edifícios e estendeu modernas autopistas e outros elefantes brancos, num país que disputa com o Haiti a mais alta taxa de mortalidade infantil da América Latina. Os créditos dos Estados Unidos ou seus organismos internacionais negavam à Bolívia o direito de aceitar as ofertas da União Soviética, Tchecoslováquia e Polônia para criar uma indústria petroquímica, explorar ou fundir o zinco, chumbo e as jazidas de ferro, e instalar fornos de fundição de estanho e de antimônio. Em compensação, a Bolívia ficou obrigada a importar produtos exclusivamente dos Estados Unidos. Quando, por fim, caiu o governo do Movimento Nacionalista Revolucionário, devorado em sua base pela ajuda norte-americana, o embaixador dos Estados Unidos, Douglas Henderson, começou a assistir pontualmente às reuniões do gabinete do ditador René Barrientos 57. Os empréstimos oferecem indicações tão precisas como as de um termômetro para avaliar o clima geral dos negócios de cada país, e ajudam a despejar as nuvens políticas ou as tormentas revolucionárias do transparente céu dos milionários. “Os Estados Unidos vão concentrar seu programa de ajuda econômica nos países que mostrem a maior inclinação para favorecer o clima de inversões, e retirar a ajuda aos outros países, em que uma performance satisfatória não seja demonstrada”, anunciaram, em 1963, diversos homens de negócios, encabeçados por David Rockefeller 58. O texto da lei de ajuda externa se faz categórico ao dispor a suspensão da assistência a qualquer governo que tenha “nacionalizado, expropriado ou adquirido a propriedade ou o controle da propriedade pertencente a qualquer cidadão dos Estados Unidos ou qualquer corporação, sociedade ou associação”, que pertençam a cidadãos norte-americanos numa proporção não inferior à metade 59. Não é em vão que o Comitê de Comércio da Aliança para o Progresso conta, entre seus membros mais distintos, com os mais altos executivos do Chase Manhatann, do City Bank, Standard Oil, Anaconda e da Grace. A AID abre caminho para os capitalistas norteamericanos de múltiplas maneiras; entre outras, exigindo a aprovação dos acordos de 57. Armando Canelas, Radiografia de Ia Alianza para el Progresso, La Paz, 1963; Mariano Baptista Gumucio e outros, Guerilleros y generales sobre Bolívia, Buenos Aires, 1968; e John Gunther, Inside South America, Nova Iorque, 1967. 58. A filha de David, Peggy Rockefeller, decidiu pouco depois viver numa favela do Rio de Janeiro chamada Jacarezinho. Seu pai, um dos homens mais ricos do mundo, viajou ao Brasil para atender a seus multibiliolinários negócios e foi pessoalmente à humilde casa de família que Peggy tinha escolhido, provou a humilde comida, comprovou com espanto que entrava água na casa quando chovia e que os ratos passavam por debaixo da porta. Ao ir embora, deixou sobre a mesa um cheque de vários zeros. Peggy morou ali durante alguns meses, colaborando com os Peace Corps. Os cheques continuaram chegando. Cada um deles equivalia ao que o dono desta casa podia ganhar em dez anos de trabalho. Quando Peggy finalmente se foi, a casa e a família de Jacarezinho tinham-se transferido. Nunca a favela conhecera opulência. Peggy tinha vindo do céu em linha reta. Era como ganhar todas as loterias juntas. Então, o dono da casa onde Peggy tinha morado passou a ser o mascote do regime. Reportagens na televisão e no rádio, artigos nos jornais e revistas, a enorme publicidade: ele era um exemplo que todos os brasileiros deviam imitar.Tinha saído da miséria graças a sua inquebrantável vontade de trabalho e sua capacidade de Poupança: vejam, vejam, ele não gasta o que ganha em cachaça, agora tem televisão, geladeira, móveis novos, as crianças calçam sapatos. A propaganda esquecia um pequeno detalhe: a visita da fada Peggy.Porque o Brasil tem cem milhões de habitantes e o milagre se deu apenas para um deles. 59. Hickenlooper Amendment, Section 620, Foreign Assistance Act. Não é por acaso que este texto legal se refira explicitamente às medidas adotadas contra os interesses norte-americanos “a primeiro de janeiro de 1962 ou em data posterior”. No dia 16 de fevereiro de 1962, o governador Leonel Brizola tinha expropriado a companhia telefônica do estado brasileiro do Rio Grande do Sul, subsidiária da International Telephone and Telegraph Corporation, e esta decisão endurecera as relações entre Washington e Brasília. A empresa não aceitava a indenização proposta pelo governo. 164 garantia das inversões contra as possíveis perdas por guerras, revoluções, insurreições ou crises monetárias. Em 1966, segundo o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, os investidores privados norte-americanos receberam estas garantias em quinze países da América Latina, por cem projetos que somaram mais de US$ 300 milhões, dentro do Programa de Garantia de Inversões da AID 60. ADELA não é uma canção da Revolução mexicana, mas o nome de um consórcio internacional de inversões. Nasceu por iniciativa do First National City Bank de Nova Iorque, da Standard Oil de Nova Jérsei e da Ford Motor Co. O grupo Mellon se incorporou com entusiasmo e também poderosas empresas européias porque, no dizer do senador Jacob Javits, “a América Latina proporciona uma excelente oportunidade para que os Estados Unidos, ao convidar a Europa para entrar,mostrem que não buscam uma posição de domínio ou exclusividade...” 61 .Pois bem, em seu informe anual de 1968, a ADELA agradeceu muito especialmente ao Banco Interamericano de Desenvolvimento os empréstimos recebidos para impulsionar os negócios do consórcio na América Latina, e no mesmo sentido saudou a obra da Corporação para o Financiamento Internacional, um dos braços do Banco Mundial. Com ambas instituições, a ADELA está em contato contínuo para evitar a duplicação dos esforços e para avaliar as oportunidades de investimento 62 . Muitos exemplos poderiam ser dados de outras santas alianças semelhantes. Na Argentina as cotas latino-americanas aos recursos ordinários do BID serviram para beneficiar, com empréstimos muito convenientes, a empresas como Petrosur S.A.I.C., filial da Electric Bond and Share, com mais de dez milhões destinados à construção de um complexo petroquímico, ou para financiar uma fábrica de peças de automóveis a Armetal S.A., filial de The Budd Co., Filadélfia, USA 63. Os créditos da AID possibilitaram a expansão da fábrica de produtos químicos da Atlântica Riclifield Co., no Brasil, e o Eximbank proporcionou generosos empréstimos à ICOMI, filial da Bethlehem Steel neste mesmo país. Graças às cotas da Aliança para o Progresso e do Banco Mundial, a Phillips Petroleum Co. pôde gerar em 1966, também no Brasil, o maior complexo de fábricas de fertilizantes da América Latina. Tudo se computa como benesses da ajuda, e tudo pesa sobre a dívida externa dos países agraciados pela deusa Fortuna. Quando Fidel Castro se dirigiu ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, nos primeiros tempos da Revolução cubana, para reconstruir as reservas de divisas estrangeiras esgotadas pela ditadura de Batista, ambos organismos lhe responderam que primeiro devia aceitar um programa de estabilização que implicava, como em todas as partes, o desmantelamento do Estado e a paralisia das reformas de estrutura 64. O Banco Mundial e o FMI atuam estreitamente ligados e a serviço de fins comuns; nasceram juntos, em Bretton Woods. Os Estados Unidos contam com a quarta parte dos votos no Banco Mundial; os vinte e dois países da América Latina reúnem menos da décima parte. O Banco Mundial responde aos Estados Unidos como um trovão ao relâmpago. Segundo explica o Banco, a maior parte de seus empréstimos é dedicada à construção de rodovias e outras vias de comunicação e ao desenvolvimento de fontes de energia elétrica, “que são uma condição essencial para o crescimento da empresa privada” 65. Estas obras de infra-estrutura facilitam, de fato, o acesso das matérias-primas aos portos e aos mercados mundiais, e servem ao progresso da indústria, já desnacionalizada, dos países pobres. O Banco Mundial crê que, “em maior medida praticável, a indústria com60. International Commerce, 10 de abril de 1970. 61. Citado por NACLA Newsletter,maio-junho de 1970. 62. ADELA Annual Report, 1968, citado por NACLA, op. cit. 63. Banco Interamericano de Desenvolvimento, Décimo informe anual, 1969, W ashington, 1970. 64. Harry Magdoff, La era del imperialismo, Monthly Review,seleções castelhano, janeiro-fevereiro/ 65. The World Bank, IFC e IDA, Policies and operations, W ashington, 1962. 165 petitiva deveria ser deixada à empresa privada. Isto não significa que o Banco exclua absolutamente os empréstimos às indústrias de propriedade do Estado, porém só assumirá estes financiamentos nos casos em que o capital privado não seja acessível, e se se assegura a satisfação, ao fim dos exames, de que a participação do governo será compatível com a eficiência das operações e não terá um efeito indevidamente restritivo sobre a expansão da iniciativa e empresa privadas”. Condicionam-se os empréstimos à aplicação da receita estabilizadora do FMI e ao pagamento pontual da dívida externa; os empréstimos do Banco são incompatíveis com a adoção de políticas de controle dos lucros das empresas, “tão restritivas que os lucros não podem operar sobre uma base clara, ainda menos impulsionar a expansão futura” 66. Desde 1968,o Banco Mundial desviou grande parte de seus empréstimos na promoção do controle da natalidade, nos planos de educação, nos negócios agrícolas e no turismo. Como todas as demais máquinas caça-níqueis das altas finanças internacionais, o Banco constitui também um eficaz instrumento de extorsão , em benefício de poderes muito concretos. Seus sucessivos presidentes foram, desde 1946, eminentes homens de negócios dos Estados Unidos. Eugene R. Black, que dirigiu o Banco desde 1949 até 1962, ocupou posteriormente as diretorias de numerosas corporações privadas, uma das quais, a Electric Bond and Share, é o mais poderoso monopólio de energia elétrica do planeta 67. Casualmente, o Banco Mundial obrigou a Guatemala, em 1966, a aceitar um acordo honroso com a Electric Bond and Share, como condição prévia para colocar em prática um projeto hidrelétrico, o de Jurún-Marinalá: o acordo honroso consistia no pagamento de uma enorme indenização pelos danos que a empresa pudesse sofrer na bacia que lhe tinha sido gratuitamente outorgada poucos anos atrás, e, além disso, incluía um compromisso do Estado no sentido de não impedir que a Bond and Share continuasse fixando livremente as tarifas da eletricidade no país. Casualmente, também, o Banco Mundial impôs à Colômbia, em 1967, o pagamento de US$ 36 milhões de indenização à Compañia Colombiana de Eletricidad, filial da Bond and Share, por suas envelhecidas maquinarias recém nacionalizadas. O Estado colombiano comprou, assim, o que lhe pertencia, porque a concessão à empresa vencera em 1944. Três presidentes do Banco Mundial integram a constelação de poder dos Rockefeller. John J. McCIoy presidiu o organismo entre 1947 e 1949, e pouco depois passou à diretoria do Chase Manhattan Bank. Sucedeu-o, à frente do Banco Mundial, Eugene R. Black, que tinha feito caminho inverso: vinha da diretoria do Chase. George D. Woods, outro homem de Rockefeller, herdou a presidência da Black em 1963. Casualmente, o Banco Mundial participa de forma direta, com um décimo do capital e substanciais empréstimos, da maior aventura dos Rockefeller no Brasil: a Petroquímica União, o complexo petroquímico mais importante da América do Sul. Mais da metade dos empréstimos que a América Latina recebe provém, com prévia luz verde do FMI, dos organismos privados e oficiais dos Estados Unidos; os bancos internacionais somam também uma porcentagem importante. O FMI e o Banco Mundial exercem pressões cada vez mais intensas para que os países latino-americanos remodelem suas economias e suas finanças em função do pagamento da dívida externa. O cumprimento de compromissos contraídos, chave da boa conduta internacional, se torna cada vez mais difícil e se faz ao mesmo tempo mais imperioso. A região vive o fenômeno que os economistas chamam de explosão da dívida. É o círculo vicioso do estrangulamento: os empréstimos aumentam e as inversões se sucedem e, em conseqüência, crescem os 66. The World Bank, IFC e IDA, op. cit. 67. “Nossos programas de ajuda ao estrangeiro... estimulam o desenvolvimento de novos mercados para as sociedades americanas... e orientam a economia dos beneficiários para um sistema de livre empresa no que as firmas americanas podem prosperar”. Eugene R. Black em Columbia Journal of World Business, vol. I, 1965. 166 pagamentos por amortizações, juros, dividendos e outros serviços; para cumprir com esses pagamentos se recorre a novas injeções de capital estrangeiro, que geram compromissos maiores, e assim sucessivamente. O serviço da dívida devora uma proporção crescente das receitas das exportações, por si impotentes - por obra da inflexível deterioração dos preços - para financiar as importações necessárias; os novos empréstimos são imprescindíveis, como o ar aos pulmões, para que os países possam ser abastecidos. Uma quinta parte das exportações era dedicada, em 1955, ao pagamento de amortizações, juros e lucros de inversões; a proporção continuou crecendo e já está próxima a explodir. Em 1968, os pagamentos representaram 37% da exportações 68. Se se continuar recorrendo ao capital estrangeiro para cobrir a brecha de comércio e para financiar a evasão dos ganhos das inversões imperialistas, em 1980 nada menos do que 80% das divisas ficará em mãos dos credores estrangeiros, e o montante total da dívida chegará a exceder em seis vezes o valor das exportações 69. O Banco Mundial previu que em 1980 os pagamentos de serviços de dívida anulariam por completo o influxo de novo capital estrangeiro para o mundo subdesenvolvido, porém já em 1965 a afluência de novos empréstimos e de novas inversões para a América Latina foi menor do que o capital drenado da região, só por amortizações e juros, para cumprir com os compromissos anteriormente contraídos. A INDUSTRIALIZAÇÃO NÃO ALTERA A ORGANIZAÇÃO DA DESIGUALDADE NO MERCADO MUNDIAL O intercâmbio de mercadorias constitui, junto com as inversões diretas no exterior e os empréstimos, a camisa-de-força da divisão internacional do trabalho. Os países do chamado Terceiro Mundo trocam entre si pouco mais do que a quinta parte de suas exportações, e dirigem as três quartas partes do total de suas vendas exteriores para os centros imperialistas, dos quais são tributários 70. Em sua maioria, os países latino-americanos se identificam, no mercado mundial, com uma só matéria-prima ou com um só alimento 71 . A América Latina dispõe de lã, algodão e fibras naturais em abundância, e conta com uma indústria têxtil já tradicional, mas apenas participa de 0,6% das compras de fios e tecidos da Europa e Estados Unidos. A região foi condenada a vender produtos primários, para dar trabalho às fábricas estrangeiras; acontece que estes produtos “são exportados, em sua grande maioria, por fortes consórcios com vinculações internacionais, que dispões das relações necessárias nos mercados mundiais para colocar seus produtos nas condições mais convenientes” 72, porém nas mais convenientes paraeles, que no geral expressam os 68. Nações Unidas, CEPAL,op. cit. Estudio económico de América Latina, 1969, Nova Iorque-Santiago do Chile, 1970. 69. Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social, La brecha comercial e Ia integración latino-americana, México-Santiago do Chile, 1967. 70. Pierre Jalée, Le pillage du Tiers Monde, Paris, 1966. 71. No triênio 1966-68, o café proporcionou à Colômbia 64% de suas receitas totais para exportações; ao Brasil, 43%; a El Salvador, 48%; a Guatemala, 42% e a Costa Rica 36%. A banana abarcou 61% das divisas do Equador, 54% das do Panamá e 47% das de Honduras. Nicarágua dependeu do algodão em 42%.. A República Dominicana do açúcar, em 56%, Carnes, couros e lã proporcionaram ao Uruguai 83% de suas divisas e à Argentina, 38%. O cobre somou 74% das rendas comerciais do Chile e 26% do Peru; o estanho representou 54% do valor das exportações da Bolívia, e a Venezuela obteve 93% de suas divisas com o petróleo. Nações Unidas, CEPAL,op. cit. Quanto ao México, “depende em mais de 30% de três produtos, em mais de 40% de cinco produtos e em mais de 50% de dez produtos, em sua grande maioria não manufaturados, que têm como principal saída o mercado norte-americano”. Pablo González Casanova, La democracia en México, México, 1965. 72. Marco D.Pollner no volume coletivo de INTAL-BID, Los empresarios y Ia integración de América Latina, Buenos Aires. 1967. 167 interesses dos países compradores: istoé,aospreçosmaisbaixos. Há nos mercados internacionais um virtual monopólio da demanda de matérias-primas e da oferta de produtos manufaturados; ao inverso, os ofertantes de produtos básicos, que são também compradores de bens acabados, operam dispersivamente: alguns, os fortes, aluam congregados em torno da potência dominante, os Estados Unidos, que consome quase tanto como todo o resto do planeta; os outros, os fracos, operam isolados, competindo, oprimidos contra oprimidos, entre si. Não existe nos chamados mercados internacionais o chamado jogo da oferta e da procura, mas sim a ditadura de um sobre outro, sempre em benefício dos países capitalistas desenvolvidos. Os centros de decisão, onde os preços são fixados, se encontram em Washington, Nova Iorque, Londres, Paris, Amsterdam, Hamburgo; nos conselhos de ministros e na bolsa. De pouco ou nada serve que se tenham assinado, com pompa e estrépito, acordos internacionais para proteger os preços do trigo (1949), do açúcar (1953), do estanho (1956), do azeite de oliva (1956), e do café (1962). Basta contemplar a curva descendente do valor relativo deste produtos, para comprovar que os acordos não foram mais do que simbólicas desculpas que os países fortes apresentaram aos países fracos quando os preços de seus produtos alcançaram níveis escandalosamente baixos. Cada vez vale menos o que a América Latina vende e, comparativamente, cada vez é mais caro o que compra. Com o produto de venda de 22 novilhos, o Uruguai podia comprar um trator Ford Major em 1954; hoje, necessita mais do dobro. Um grupo de economistas chilenos que realizou um informe para a central sindical estimou que, se o preço das exportações latino-americanas tivesse crescido desde 1928 no mesmo ritmo que cresceu o preço das importações, a América Latina teria obtido, entre 1958 e 1967, US$ 57 bilhões a mais do que recebeu, neste período, por sua vendas ao exterior 73. Sem remontar tão longe no tempo, e tomando como base os preços de 1950, as Nações Unidas estimam que a América Latina perdeu, por causa da deterioração do intercâmbio, mais de US$ 18 bilhões na década transcorrida entre 1955 e 1964. Posteriormente, a queda continuou. A brecha de comércio - diferença entre as necessidades de importação e receitas que se obtêm das exportações - será cada vez maior se as atuais estruturas do comércio exterior não mudarem: cada ano que passa, cava-se mais profundamente este abismo para a América Latina. Se a região se propusesse a conseguir, nos próximos tempos, um ritmo de desenvolvimento ligeiramente superior ao dos últimos quinze anos, que foi baixíssimo, enfrentaria necessidades de importação que excederiam largamente o previsível crescimento de suas receitas de divisas por exportações. Segundo os cálculos do ILPES 74, a brecha do comércio ascenderia, em 1975, a US$ 4.600 milhões, e em 1890 aos US$ 8.300 milhões. Assim, chapéu na mão, os países latino-americanos baterão nas portas dos emprestadores de dinheiro internacionais. A. Emmanuel sustenta 75 que a maldição dos preços baixos não pesa sobre determinados produtos, mas sim sobre determinados países. Afinal, o carvão, um dos principais produtos de exportação da Inglaterra até pouco tempo, não é menos primário do que a lã ou o cobre, e o açúcar contém mais elaboração do que o uísque escocês ou os vinhos franceses; a Suécia e o Canadá exportam madeira, uma matéria-prima, a preços excelentes. O mercado mundial aprofunda a desigualdade do comércio, segundo Emmanuel, na troca de mais horas de trabalho dos países pobres por menos horas de trabalho dos países ricos: a chave da exploração reside em que existe uma enorme diferença nos níveis de salários de uns e outros países, e que essa diferença não está associada a diferenças da mesma magnitude na produtividade do trabalho. São 73. Central Única de Trabalhadores do Chile, América Latina, un mundo que ganar,Santiago do Chile, 1968. 74. Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social, op. cit. 75. A. Emmanuel, El cambio desigual. Siglo XXI. México. 168 os salários baixos os que, segundo Emmanuel, determinam os preços baixos, e não o contrário: os países pobres exportam sua pobreza, se empobrecendo cada vez mais, ao mesmo tempo que os ricos obtêm o resultado inverso. Segundo as estimativas de Samir Amin 76, se os produtos exportados pelos países subdesenvolvidos em 1966 tivessem sido produzidos pelos paises desenvolvidos com as mesmas técnicas, porém com seus altos níveis salariais, os preços teriam variado a tal ponto que os países subdesenvolvidos teriam recebido US$ 14 bilhões a mais. É certo que os países ricos utilizaram e utilizam barreiras alfandegárias para proteger seus altos salários internos nos itens que não poderiam competir com os mais pobres. Os Estados Unidos empregam o Fundo Monetário, o Banco Mundial e os acordos alfandegários do GATT, para impor na América Latina a doutrina do comércio livre e a livre concorrência, obrigando o abatimento dos câmbios múltiplos, do regime de quotas e licenças de importação e exportação, e de taxas e gravames de alfândega; porém, não seguem de modo algum o exemplo. Do mesmo modo que desalentam fora das fronteiras a atividade do Estado, enquanto que dentro das fronteiras o Estado norte-americano protege os monopólios, mediante um vasto sistema de subsídios e preços privilegiados, os Estados Unidos praticam também um agressivo protecionismo, com tarifas altas e restrições rigorosas, em seu comércio exterior. Os direitos de alfândega se combinam com outros impostos e com quotas e embargos 77. O que ocorreria com a prosperidade dos pecuaristas do Meio Oeste se os Estados Unidos permitissem o acesso a seu mercado interno, sem tarifas nem imaginativas proibições sanitárias, da carne de melhor qualidade e menor preço produzida pela Argentina e Uruguai? O ferro ingressa livremente no mercado norte-americano, mas se for convertido em lingotes paga 16 centavos por tonelada, e a tarifa sobe em proporção direta ao grau de elaboração; isto também ocorre com o cobre e com uma infinidade de produtos: basta secar as bananas, cortar o tabaco, adoçar o cacau, serrar a madeira ou extrair o caroço das tâmaras para que as taxas sejam descarregadas implacavelmente sobre estes produtos 78. Em janeiro de 1969, o governo dos Estados Unidos dispôs a virtual suspensão das compras de tomates do México, que dão trabalho a 170 mil camponeses do Estado de Sinaloa, até que os cultivadores norte-americanos de tomate da Flórida conseguissem que os mexicanos aumentassem o preço para evitar a concorrência. Porém, a maior contradição entre a teoria e a prática do comércio mundial explodiu quando a guerra do café solúvel ganhou, em 1967, a luz do dia. Então se pôs em evidência que só os países ricos têm o direito de explorar em seu beneficio as “vantagens naturais comparativa”- que determinam, em teoria, a divisão internacional do trabalho.O mercado mundial de café solúvel, de assombrosa expansão, está em mãos da Nestlé e da General Foods; calcula-se que não passará muito tempo antes de que estas duas grandes empresas abasteçam mais da metade do café que se consome no mundo. Os Estados Unidos e a Europa compram o café em grãos do Brasil e da África; concentram-no em suas fábricas industriais e o vendem transformado em café solúvel, a todo mundo. O Brasil, que é o maior produtor mundial de café, não tem, todavia, o direito de competir, exportando seu próprio café solúvel, para aproveitar seus custos mais baixos e para dar destino ao excedente de sua produção que antes se destruía, e agora se armazena nos depósitos do Estado. O Brasil só tem o direito de fornecer a matéria-prima às fábricas do exterior. Quando as fábricas brasileiras - apenas 76. Citado por André Gunder Frank, Toward a theory of capitalist underdevelopment, introdução à antologia Underdevelopment. Inédito. 77. L. Delwart (The Future of latin american exports to the United States: 1965 and 1970, Nova Iorque, 1970) publica uma lista muito eloqüente das restrições em vigência à importação de produtos latino-americanos. 78. Harry Magdoff, op. cit. 169 cinco num total de cento e dez no mundo - começaram a oferecer café solúvel no mercado internacional, foram acusadas de concorrência desleal. Os países ricos puseram a boca no mundo, e o Brasil aceitou uma imposição humilhante: aplicou a seu café solúvel um imposto interno tão alto que o colocou fora de combate no mercado norte-americano 79. A Europa não fica atrás na aplicação de barreiras aduaneiras, tributárias e sanitárias contra os produtos latino-americanos. O Mercado Comum descarrega impostos de importação, para defender os altos preços internos de seus produtos agrícolas, e ao mesmo tempo subsidia estes produtos agrícolas para poder exportá-los a preços competitivos: com o que obtém com os impostos financia subsídios. Assim, os países pobres pagam a seus compradores ricos para que lhes façam concorrência. Um quilo de carne de lombo de novilho vale, em Buenos Aires ou em Montevidéu, cinco vezes menos do que quando pende de um gancho num açougue de Hamburgo ou Munique 80. “Os países desenvolvidos querem permitir que lhes vendamos jatos e computadores, porém que nunca estejamos em condições de produzir com vantagens”, se queixava, com razão, um representante do governo chileno numa conferência internacional 81. As inversões imperialistas na área industrial na América Latina não modificaram em absoluto os termos de seu comércio internacional. A região continua estrangulando-se no intercâmbio de seus produtos primários pelos produtos especializados das economias centrais. A expansão das vendas das economias norte-americanas, radicadas ao sul do rio Bravo, se concentra nos mercados locais e não na exportação. Pelo contrário, a proporção correspondente à exportação tende a diminuir: segundo a OEA, as filiais norte-americanas exportam uns 10% de suas vendas totais em 1962, e só 7,5% três anos mais tarde 82.O comércio dos produtos industrializados pela América Latina só cresce dentro da América Latina: em 1955, as manufaturas compreendiam uma décima parte do intercâmbio entre os países da área, e em 1966 a proporção tinha subido a 30% 83. O chefe de uma missão técnica norte-americana no Brasil, John Abbink, antecipara profeticamente, em 1950: “Os Estados Unidos devem estar preparados para guiar a inevitável industrialização dos países não desenvolvidos, se se deseja realmente evitar o golpe de um desenvolvimento econômico intensíssimo fora da égide norte-americana... A industrialização, se não e controlada de alguma maneira, levará a uma substancial redução dos mercados norte-americanos de exportação” 84. De fato, por acaso a industrialização, ainda que seja teleguiada de fora, não substitui com produção nacional as mercadorias que antes cada país devia importar do exterior? Celso Furtado adverte que, na medida em que a América Latina avança na substituição de importações de produtos mais complexos, “a dependência de insumos provenientes das matrizes tende a aumentar”. Entre 1957 e 1964, se duplicaram as vendas das filiais norte-americanas, enquanto suas importações, sem incluir os equipamentos, multiplicaram-se por mais de três. “Essa tendência parecia indicar que a eficácia substitutiva é uma função decrescente da expansão industrial contro79. Revista Fator,Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1968. 80. Carlos Quijano, Las víctimas del sistema, em Marcha, Montevidéu, 23 de outubro de 1970. 81. New York Times, 3 de abril de 1968. 82. Secretaria Geral da OEA, op. cit. Uma ampla sondagem às subsidiárias norte-americanas no México, realizada em 1969 a pedido da National Chamber Foundation, revelou que as matrizes dos Estados Unidos proibiam vender seus produtos no exterior à metade das empresas que responderam o questionário. As filiais não tinham sido instaladas para isto. Miguel S. Wionczek, La inversión extranjera privada en México: problemas y perspectivas, em Comercio exterior,México, outubro de 1970. A relação entre as exportações de manufaturas e o produto industrial não superou 2%, em 1963, na Argentina, Brasil, Peru, Colômbia e Equador; foi de 3,7% no México e de 3,2% no Chile (Aldo Ferrer, no já citado volume coletivo de INTAL-BID). 83. Nações Unidas-CEPAL. op. cit, 84. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 23 de março de 1950. 170 lada por companhias estrangeiras” 85.A dependência não é rompida, mas muda de qualidade: os Estados Unidos vendem, agora, na América Latina, uma proporção maior de produtos mais sofisticados e de alto nível tecnológico. “A longo prazo - opina o Departamento de Comércio -, à medida que cresce a produção industrial mexicana, se criam maiores oportunidades para exportações adicionais dos Estados Unidos...” 86. Argentina, México e Brasil são muito bons compradores de maquinaria industrial, maquinaria elétrica, motores, equipamentos e sobressalentes de origem norte-americana. As filiais das grandes corporações se abastecem em suas casas-matrizes, a preços deliberadamente caros. Referindo-se aos custos de instalação da indústria automobilística estrangeira na Argentina, Viñas e Gastiazoro dizem, neste sentido: “Pagando estas importações a preços muito elevados, enviavam fundos para o exterior. Em muitos casos, estes pagamentos eram tão importantes que as empresas não só davam prejuízos [apesar do preço a que se vendiam os automóveis], como também começaram a falir, esfumando-se rapidamente o valor das ações colocadas no país... O resultado foi que das 22 empresas radicadas ficam atualmente dez, algumas à beira da falência...” 87. Para maior glória do poder mundial das corporações, as subsidiárias dispõem assim das escassas divisas dos países latino-americanos. O esquema de funcionamento da indústria satelitizada, em relação com seus distantes centros de poder, não se distingue muito do tradicional sistema de exploração imperialista dos produtos primários. Antonio García sustenta 88 que a exportação “colombiana” de petróleo cru foi sempre, estritamente, uma transferência física de óleo cru de um campo norte-americano de extração até alguns centros industriais de refinado, comercialização e consumo nos Estados Unidos, e a exportação “hondurenha” ou “guatemalteca” de banana, teve o caráter de uma transferência de alimentos que efetuam algumas companhias norte-americanas de uns campos coloniais de cultivo até algumas áreas norte-americanas de comercialização e consumo. Porém as fábricas “argentinas”, “brasileiras” ou “mexicanas,” para só citar as mais importantes, também integram um espaço econômico que nada tem a ver com sua localização geográfica. Formam, como muitos outros fios, a trama internacional das corporações, cujas matrizes transferem os lucros de um país a outro, faturando as vendas por cima ou por baixo dos preços reais, segundo a direção em que desejam despejar os ganhos 89. As alavancas fundamentais do comércio exterior ficam, assim, em mãos de empresas norte-americanas ou européias que orientam a política comercial dos países, segundo o critério de governos e diretorias alheias à América Latina. Assim como as filiais dos Estados Unidos não exportam cobre à URSS nem à China, nem vendem petróleo a Cuba, tam pouco se abastecem de matérias-primas e maquinarias nas fontes internacionais mais baratas e convenientes. Esta eficiência na coordenação das operações em escala mundial, completamente à margem do “livre jogo das forças de mercado”, não se traduz, é claro, em preços mais baixos para os consumidores nacionais, mas sim em lucros maiores para os acionistas estrangeiros. É eloqüente o caso dos automóveis. Dentro dos países latino-americanos, as empresas dispõem de uma mão-de-obra abundante e muito, muito mesmo, barata, além de uma política oficial em todos os sentidos favorável à expansão das inversões: doações 85. Celso Furtado, Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1968. 86. International Commerce, 24 de abril de 1967. 87. Ismael Viñas e Eugenio Gastiazoro, op. cit. 88. Antonio García, Las constelaciones del poder y el desarrollo latino-americano, em Comércio Exterior, México, novembro de 1969. 89. Certamente, o mecanismo não é novo. 0 frigorífico Anglo deu sempre prejuízo no Uruguai, para cobrar os subsídios estatais e para que rendessem milionários lucros seus seis mil açougues de Londres, onde cada quilo de carne uruguaia é vendida a um preço quatro vezes maior do que o que recebe o Uruguai pela exportação. Guillermo Bernhard, Los monopolios y Ia indústria frigorífica, Montevidéu, 1970. 171 de terrenos, tarifas elétricas privilegiadas, redescontos do Estado para financiar as vendas a prazos, dinheiro facilmente acessível; e, como se fosse pouco, o auxílio chegou, em alguns países, até a eximir as empresas do pagamento dos impostos de renda ou de venda. O controle do mercado é, por outro lado, de antemão facilitado pelo prestígio mágico que, ante os olhos da classe média, irradiam as marcas e os modelos promovidos por gigantescas campanhas mundiais de publicidade. Todavia, todos estes fatores não impedem, mas sim determinam, que os carros produzidos na região sejam muito mais caros do que nos países de origem das mesmas empresas. As dimensões dos mercados latino-americanos são muito menores, é certo; porém também é certo que nestas terras a ânsia de lucros das corporações se excita como em nenhuma outra parte. Um Ford Falcon construído no Chile custa três vezes mais do que nos Estados Unidos 90 ; um Valiant ou um Fiat fabricado na Argentina tem preços de venda que duplicam, com sobras, os dos Estados Unidos ou Itália, 91 eo mesmo acontece com o Volkswagen do Brasil, em relação com o preço na Alemanha 92. A DEUSA TECNOLOGIA NÃO FALA ESPANHOL Wright Patman, o conhecido parlamentar norte-americano, considera que 5% das ações de uma grande corporação pode ser suficiente, em muitos casos, para que seu controle fique com um indivíduo, uma família ou um grupo econômico 93. Se 5% basta para a hegemonia no seio das empresas todo-poderosas dos Estados Unidos, que porcentagem de ações se requer para dominar uma empresa latino-americana? Na realidade, chega inclusive a ser menos: as sociedades mistas, que constituem um dos poucos orgulhos ainda acessíveis à burguesia latino-americana, simplesmente decoram o poder estrangeiro com a participação nacional de capitais que podem ser majoritários, mas nunca decisivos frente à fortaleza de cônjuges de fora. Freqüentemente, é o Estado mesmo quem se associa à empresa imperialista, que deste modo obtém, já convertida em empresa nacional, todas as garantias desejáveis e um clima geral de cooperação e até de carinho. A participação “minoritária” dos capitais estrangeiros se justifica, no geral, em nome das necessárias transferências de técnicas e patentes. A burguesia latino-americana, burguesia de mercadores sem sentido criador, ligada pelo cordão umbilical ao poder da terra, se curva diante dos altares da deusa Tecnologia. Se levarmos em conta, como prova de desnacionalização, as ações em poder estrangeiro, ainda que sejam poucas, e a dependência tecnológica, que raramente é pouca, quantas fábricas poderão ser realmente consideradas nacionais na América Latina? No México, por exemplo, é freqüente que os proprietários estrangeiros da tecnologia exijam uma parte do pacote acionário das empresas além de decisivos controles técnicos e administrativos e da obrigação de vender a produção a determinados intermediários, também estrangeiros, e de importar as maquinarias e outros bens de suas casas matrizes, em troca dos contratos de transmissão de patentes ou de know-how 94.Não só no México. É ilustrativo que os países do chamado Grupo Andino (Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru) tenham elaborado um projeto para um regime comum de tratamento dos capitais estrangeiros na área, que se baseia na recusa dos contratos de transferência de tecnologia que contenham condições 90. Declarações do presidente Salvador Allende, segundo telegrama da AFP de 12 de dezembro de 1970. 91. La Razón, Buenos Aires, 2 de março de 1970. 92. Resultados da indústria automobilística, estudo especial de Conjuntura econômica, fevereiro de 1969. 93. NACLA Newletter, abril-maio de 1969. 94. Miguel S. Wionczek, La transmisión de la tecnología a los países en desarrollo: proyeto de un estudio sobre México, e m Comércio exterior. México, maio de 1968. 172 como estas. O projeto propõe aos países que se neguem a aceitar, também, que as empresas estrangeiras donas das patentes fixem os dos produtos com elas elaborados ou que proíbam sua exportação a determinados países. O primeiro sistema de patentes para proteger a propriedade das invenções foi criado, há quase quatro séculos, por Sir Francis Bacon. “O conhecimento é poder”, gostava de dizer Bacon, e desde então se soube que tinha razões de sobra. A ciência universal pouco tem de universal; está objetivamente confinada aos limites das nações avançadas. A América Latina não aplica em seu próprio benefício os resultados da pesquisa científica, pela simples razão que não tem nenhuma, e em conseqüência se condena a padecer a tecnologia dos poderosos, que castiga e desloca as matérias-primas naturais, porém não é capaz de criar uma tecnologia própria para sustentar e desenvolver seu próprio desenvolvimento. O mero transplante da tecnologia dos países adiantados não só implica a subordinação cultural e, definitivamente, também a subordinação econômica, mas, além disso, depois de quatro séculos e meio de experiência na multiplicação dos oásis de modernismo importado em meio dos desertos de atraso e da ignorância, pode afirmar-se que não resolve nenhum dos problemas do subdesenvolvimento 95. Esta vasta região de analfabetos investe em investigações tecnológicas uma soma duzentas vezes menor do que a que os Estados Unidos destinam a estes fins. Há menos de mil computadores na América Latina e 50 mil nos Estados Unidos; é nos Estados Unidos, claro, que se desenham os modelos eletrônicos e se criam as linguagens de programação que a América Latina importa. O subdesenvolvimento latino-americano não é uma etapa no caminho do desenvolvimento, mas sim uma contrapartida do desenvolvimento alheio; a região progride sem libertar-se da estrutura de seu atraso, e de nada vale, assinala Manuel Sadosky,a vantagem de não participar no progresso com programas e objetivos próprios 96. Os símbolos da prosperidade são os símbolos da dependência. Recebe-se a tecnologia moderna como no passado foram recebidas as ferrovias, a serviço dos interesses estrangeiros que modelam e remodelam o estatuto colonial destes países. “Nos ocorre o que acontece quando um relógio se atrasa e não é consertado - diz Sadosky. - Ainda que seus ponteiros continuem andando para frente, a diferença entre a hora que marca e a hora verdadeira será crescente.” As universidades latino-americanas formam, em pequena escala, matemáticos, engenheiros e programadores que não encontram trabalho, senão no exílio: nos damos ao luxo de proporcionar aos Estados Unidos nossos melhores técnicos e os cientistas mais capazes, que emigram tentados pelos altos salários e as grandes possibilidades abertas, no norte, à pesquisa. Por outro lado, cada vez que uma universidade ou um centro de cultura superior tenta, na América Latina, impulsionar as ciências básicas para lançar as bases de uma tecnologia não copiada dos moldes e dos interesses estrangeiros, um oportuno golpe de Estado destrói a experiência sob o pretexto de que se incuba a subversão 97. Este foi o caso, por exemplo, da Universidade de Brasília, abatida em 1964, e a verdade é que não erram os arcanjos blindados que custodiam a ordem estabelecida; a política cultural autô95. Víctor L. Urquidi em Obstacles to change in Latin America, de Claudio Véliz e outros, Londres, 1967. 96. Manuel Sadosky,América Latina y la computación, Gaceta de la Universidad, Montevidéu, maio de 1970. Sadosky cita, para ilustrar a ilusão desenvolvimentista, o testemunho de um especialista da OEA: “Os países subdesenvolvidos - sustenta George Landau - têm algumas vantagens em relação aos países desenvolvidos, porque quando incorporam algum novo dispositivo ou processo tecnológico escolhem, geralmente, o mais avançado dentro de seu tipo e assim recolhem o beneficio de anos de pesquisa e o fruto de inversões consideráveis que tiveram de fazer os países mais industrializados para alcançar este resultado.” 97. Óscar J. Maggiolo no volume coletivo Hacia una política cultural autónoma para América Latina, Montevidéu, 1969. 173 noma requer e promove, quando é autêntica, profundas mudanças em todas as estruturas vigentes. A alternativa consiste em descansar nas fontes alheias: a cópia simiesca dos avanços que difundem as grandes corporações, em cujas mãos está monopolizada a tecnologia mais moderna para criar novos produtos e para melhorar a qualidade ou reduzir o custo dos produtos existentes. O cérebro eletrônico aplica infalíveis métodos de cálculos para avaliar custos e lucros, e assim a América Latina importa técnicas de produção desenhadas para economizar mão-de-obra, embora lhe sobre a força de trabalho, e os desempregados estão a caminho de constituírem uma esmagadora maioria em vários paises; assim, também, a própria impotência determina que a região dependa, para seu progresso, da vontade dos investidores estrangeiros. Ao controlar as alavancas da tecnologia, as grandes corporações multinacionais manejam também, por óbvias razões, outros pontos-chave da economia latino-americana. Evidentemente, as casas-matrizes nunca proporcionam a suas filiais as inovações mais recentes, e tampouco incitam uma independência que não lhes convenha. Uma pesquisa de Business International, realizada por encomenda do BID, chegou à conclusão de que “é evidente que as subsidiárias das corporações internacionais que operam na região não realizam esforços significativos em matéria de ‘investigação e desenvolvimento’. De fato, a maioria delas carece de um departamento com esta finalidade e em raros casos levam a cabo trabalhos de adaptação da tecnologia, enquanto que outra minoria de empresas - situadas quase invariavelmente na Argentina, Brasil e México - realiza modestas atividades de pesquisas” 98. Raúl Prebisch adverte que “as empresas norte-americanas na Europa instalam laboratórios e realizam investigações que contribuem para fortalecer a capacidade científica e técnica destes países, o que não sucedeu na América Latina”, e denuncia um fato muito grave: “A inversão nacional - diz -, por sua falta de conhecimento especial [know-how] , realiza a maior parte de sua transferência de tecnologia recebendo técnicas que são de domínio público e que se importam como licenças de conhecimento especializado...”99 É altíssimo, em vários sentidos, o custo da dependência tecnológica: também o é em dólares cantantes e sonantes, embora as estimativas não sejam nada fáceis pelos múltiplos escamoteios que as empresas praticam em suas declarações de remessas ao exterior. As cifras oficiais indicam, não obstante, que a drenagem de dólares por assistência técnica se multiplicou por quinze, no México, entre 1950 e 1964, e no mesmo período as novas inversões não chegaram se quer a dobrar. As três quartas partes do capital estrangeiro no México são, hoje, destinadas à indústria manufatureira; em 1950, a proporção era da quarta parte. Esta concentração de recursos na indústria só implica uma modernização reflexa, com tecnologia de segunda-mão, que o país paga como se fosse de primeiríssima. A indústria automobilística drenou do México um bilhão de dólares, de uma ou de outra maneira, porém um funcionário do sindicato dos automóveis nos Estados Unidos percorreu a nova fábrica da General Motors em Toluca, e depois comentou: “Foi pior do que arcaico. Pior, porque foi deliberadamente arcaico, com o obsoleto cuidadosamente planejado... As fábricas mexicanas são equipadas deliberadamente com maquinaria de baixa produtividade” 100. O que dizer da gratidão que a América Latina deve à Coca Cola, à Pepsi 98. Gustavo Lagos e outros, Las inversiones multinacionales en el desarrollo y la integración de América Latina, Bogotá, 1968. 99. Raúl Prebisch, La cooperación internacional en el desarrollo latino-americano, em Desarrollo, Bogotá, janeiro de 1970. (O destaque é meu.) 100. Leo Fenster, em julho de 1969. Citado por André Gunder Frank, Lumpenburguesía: lumpendesarrollo, Montevidéu, 1970. As filiais estrangeiras resultam de todos modos infinitamente mais modernas que as empresas nacionais. Na indústria têxtil, por exemplo, um dos últimos redutos do capital nacional, é baixíssimo o grau de automatização. Segundo a CEPAL, em 1962 e 1963, quatro países da 174 ou à Crush, que cobram caríssimas licenças industriais a seus concessionários para lhes proporcionar uma pasta que se dissolve em água e se mistura com açúcar e gás? A MARGINALIZAÇÃO DOS HOMENS E DAS REGIÕES Grow with Brazil. Grandes anúncios nos jornais de Nova Iorque exortam os empresários norte-americanos a se somarem ao impetuoso crescimento do gigante dos trópicos. A cidade de São Paulo dorme com os olhos abertos; atordoam seus ouvidos as crepitações do desenvolvimento; surgem fábricas e arranha-céus, pontes e estradas, como brotam, de súbito, certas plantas selvagens nas terras dos trópicos. Porém a tradução correta daquele slogan publicitário seria, bem se sabe: “Cresça às custas do Brasil.” O desenvolvimento é um banquete com poucos convidados, embora seus resplendores enganem, e os pratos principais estão reservados às mandíbulas estrangeiras. O Brasil tem já mais de cem milhões de habitantes, e duplicará sua população antes do fim do século, porém as fábricas modernas poupam mão-de-obra e o intacto latifúndio também nega, terra adentro, trabalho. Uma criança em farrapos contempla, com brilho no olhar, o maior túnel do mundo, recém-inaugurado no Rio de Janeiro. A criança em farrapos está orgulhosa de seu país, e com razão, porém ela é analfabeta e rouba para comer. Em toda a América Latina, a irrupção do capital estrangeiro na área fabril, recebida com tanto entusiasmo, colocou ainda mais em evidência as diferenças entre os “modelos clássicos” de industrialização, tal como se lêem na história dos países hoje desenvolvidos, e as características que o processo mostra na América Latina. O sistema vomita homens, porém a indústria se dá ao luxo de sacrificar mão-de-obra numa proporção maior do que na Europa 101. Não existe nenhuma relação coerente entre a mão-de-obra disponível e a tecnologia que se aplica, a não ser a que nasce da conveniência de usar uma das forças de trabalho mais baratas do mundo. Terras ricas, subsolos riquíssimos, homens muito pobres neste reino de abundância e o desamparo: a imensa marginalização dos trabalhadores que o sistema lança à margem da estrada frustra o desenvolvimento do mercado interno e abate o nível dos salários. A perpetuação do vigente regime de propriedade de terra não só aguça o crônico problema da baixa produtividade rural, pelo desperdício de terra e capital nas grandes fazendas improdutivas e pelo desperdício de mão-de-obra na proliferação dos minifúndios, mas, além disso, implica urna drenagem caudalosa e crescente de trabalhadores desempregados em direção às cidades. O subemprego rural torna-se subemprego urbano. Crescem a burocracia e as populações marginais, aonde vão parar, sorvedouro sem fundo, os homens despojados do direito do trabalho. As fábricas não oferecem refúgio à mão-de-obra excedente, porém a existência deste vasto exército de reserva sempre disponível permite pagar salários quinze ou vinte vezes mais baixos do que os que ganham os operários norte-americanos ou alemães. Os salários podem continuar sendo baixos ainda que aumente a produtividade, e a produtividade aumenta às custas da diminuição da mão-de-obra. A industrialização “satelitizada” tem um caráter excludente: as massas multiplicam-se num ritmo vertiginoso, nesta região que ostenta o mais alto índice de crescimento demográfico do planeta, porém o desenvolvimento do capitalismo dependente - uma viagem com mais náufragos do que navegantes - marginaliza muito mais gente do que a que é capaz de integrar. A proporção de trabalhadores da indústria manufatureira dentro do total da população Europa investiram em novos equipamentos para sua indústria têxtil uma soma seis vezes maior do que investiu com o mesmo fim, em 1964, toda a América Latina. 101. As filiais norte-americanas ocupavam na indústria européia, em 1957 – não 73. Central Única de Trabalhadores do Chile, América Latina, un mundo que ganar, Santiago do Chile, 1968. 175 ativa latino-americana diminui em lugar de aumentar: tinha 14,5% de trabalhadores na década de 50; hoje só há 11,5% 102 . No Brasil, segundo um estudo recente, “o número total de novos empregos que deverão ser criados é de um milhão e meio por ano, durante a próxima década” 103. Mas o total de trabalhadores empregados pelas fábricas do Brasil, o país mais industrializado da América Latina, soma, todavia, apenas 2,5 milhões. É multitudinária a invasão dos braços provenientes das zonas mais pobres de cada país; as cidades excitam e golpeiam as expectativas de trabalho de famílias inteiras, atraídas pela esperança de elevar seu nível de vida e conseguir um lugar no grande circo mágico da civilização urbana. Uma escada mecânica é a revelação do Paraíso, porém o deslumbramento não se come: a cidade torna ainda mais pobres os pobres, porque cruelmente exibe miragens de riquezas às quais nunca terão acesso - automóveis, mansões, máquinas poderosas como Deus e como o Diabo - e, em compensação, lhes nega uma ocupação segura e um teto decente, pratos cheios para cada meio-dia. As Nações Unidas 104 calculam que pelo menos a quarta parte da população das cidades latino-americanas habita “assentamentos que escapam às normas modernas de construção urbana”, extenso eufemismo dos técnicos para designar os tugúrios conhecidos como favelas no Rio de Janeiro, callampas em Santiago do Chile, jacales no México, barrios em Caracas e barriadas em Lima, villasmiséria em Buenos Aires e cantegriles em Montevidéu. Nos casebres de lata, barro e madeira que brotam antes de cada amanhecer nos cinturões das cidades, se acumula a população marginal jogada nas cidades pela miséria e pela esperança. Huaico significa, em quéchua, deslizamento de terra, e de huaico chamam os peruanos à avalancha humana desgarrada da serra sobre a capital na costa: quase 70% dos habitantes de Lima provêm das províncias. Em Caracas os chamam de toderos, porque fazem de tudo: os marginalizados vivem de biscates, mordiscando trabalho aos pedacinhos e de quando em quando, ou cumprem tarefas sórdidas ou proibidas; são serventes, pedreiros ou marceneiros eventuais, vendedores de limonada ou de qualquer coisa, ocasionais eletricistas ou bombeiros ou pintores de paredes, mendigos, ladrões, guardadores de carros, braços disponíveis para o que der e vier. Como os marginalizados crescem mais rapidamente do que os “integrados”, as Nações Unidas pressentem, no estudo citado, que daqui a poucos anos “os assentamentos irregulares abrigarão a maioria da população urbana”. Uma maioria de derrotados. Enquanto isto, o sistema opta por esconder o lixo debaixo do tapete. Vai varrendo, a ponta de metralhadora,as favelas dos morros e as villas miseria da capital federal; joga os marginalizados, aos milhares e milhares, longe da vista. Rio de Janeiro e Buenos Aires escamoteiam o espetáculo de miséria que o sistema produz: logo não se verá mais do que a mastigação da prosperidade, porém não seus excrementos, nestas cidades onde se dilapida a riqueza que Brasil e Argentina, inteiros, criam. Dentro de cada país se reproduz o sistema internacional de domínio que cada país padece. A concentração da indústria em determinadas zonas reflete a concentração prévia da demanda nos grandes portos ou zonas exportadoras. Oitenta por cento da indústria brasileira está localizada no triângulo do sudeste - São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte -, enquanto o nordeste famélico tem uma participação cada vez menor no produto industrial nacional; dois terços da indústria argentina estão em Buenos Aires e Rosário; Montevidéu abarca as três quartas partes da indústria uruguaia, o que também ocorre com Santiago e Valparaíso no Chile; Lima e seu porto concentram 60% da indústria peruana 105.O crescen102. Nações Unidas-CEPAL, op. cit. 103. F. S. O’Brien, The brazilian population and laborforce in 1968, documento para discussão interna, Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, Rio de Janeiro, 1969. 104. Nações Unidas-CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1967, Nova Iorque-Santiago do Chile, 1968. 105. Nações Unidas-CEPAL, op. cit. 176 te atraso relativo das grandes áreas do interior, submergidas na pobreza, não se deve a seu isolamento, como sustentam alguns, mas, pelo contrário, é o resultado da exploração, direta ou indireta, que sofrem por parte dos velhos centros coloniais convertidos, hoje, em centros industriais. “Um século e meio de história nacional - proclama um líder sindical argentino 106 - a violação de todos os pactos solidários, a quebra da fé jurada nos hinos e nas constituições, o domínio de Buenos Aires sobre as províncias. Exércitos e alfândegas, leis feitas por poucos e suportadas por muitos, governos que com algumas exceções foram agentes do poder estrangeiro, edificaram esta orgulhosa metrópole que acumula a riqueza e o poder.Porém, se procuramos a explicação desta grandeza e a condenação deste orgulho, acharemos nas ervagens missioneiras, nos povos mortos de Forestal, no desespero dos engenhos tucumanos e nas minas de Jujuy, nos portos abandonados do Paraná, no êxodo de Berisso: todo uma mapa de miséria rodeando um centro de opulência, afirmado no exercício de um domínio interno que já não se pode dissimular nem consentir.” Em seu estudo do desenvolvimento do subdesenvolvimento no Brasil, André Gunder Frank observou que, sendo o Brasil um satélite dos Estados Unidos, dentro do Brasil o nordeste cumpre por sua vez a função de satélite da “metrópole interna” radicada na zona sudeste. A polarização se torna visível através de traços numerosos: não só porque a imensa maioria das inversões privadas e públicas se concentrou em São Paulo, mas também porque esta cidade gigante se apropria, por meio de um intercâmbio comercial desvantajoso, de uma política arbitrária de preços, de escalas privilegiadas de impostos internos e da apropriação em massa de cérebros e mão-de-obra capacitada 107. A industrialização dependente aguça a concentração de renda, do ponto de vista regional e do ponto de vista social. A riqueza que gera não se irradia sobre o país inteiro nem sobre a sociedade inteira, mas consolida os desníveis existentes e inclusive os aprofunda. Nem sequer os próprios operários, os “integrados” cada vez menos numerosos, se beneficiam em medida igual do crescimento industrial; são os estratos mais altos da pirâmide social os que recolhem os frutos, amargos para muitos, dos aumentos da produtividade. Entre 1955 e 1966, no Brasil, a indústria mecânica, a de materiais elétricos, a de comunicações e a indústria automobilística elevaram sua produtividade em cerca de 131%, porém neste mesmo período os salários dos trabalhadores por elas ocupados só cresceram, em valor real, 6% 108. A América Latina oferece braços baratos: em 1961, o salário-hora médio nos Estados Unidos se elevava a dois dólares; na Argentina era de 32 centavos; no Brasil de 28; na Colômbia, 17; no México, 16, e na Guatemala chegava apenas a 10 centavos 109.Desde então, a brecha cresceu. Para ganhar o que um operário francês percebe em uma hora, o brasileiro tem que trabalhar, atualmente, dois dias e meio. Com pouco mais de dez horas de serviço, o trabalhador norte-americano ganha, em equivalência, um mês de trabalho do carioca. E para receber um salário superior ao correspondente a uma jornada de oito horas do operário do Rio de Janeiro, é suficiente que o inglês e o alemão trabalhem menos de 30 minutos 110. O baixo nível dos salários da América Latina só se traduz em preços baixos nos mercados internacionais, onde a região oferece suas matérias primas a cotações exíguas para que se beneficiem os consumidores dos países ricos; nos mercados internos, em compensação, onde a indústria desnacionalizada vende manufaturas, os preços são altos, para que sejam altíssimos os ganhos das corporações imperialistas. 106. Raimundo Ongaro, carta da prisão, De Frente, Buenos Aires, 25 de setembro de 1969. 107. André Gunder Frank, Capitalism and underdevelopment in Latin America, Nova Iorque, 1967. 108. Ministério do Planejamento e Coordenação-Geral op. cit. 109. Z. Romanova, La expansión económica de Estados Unidos en América Latina, Moscou, s. d. 110. Dados de Serge Birn, técnico norte-americano em organização de trabalho, segundo Jornal do Brasil, 5 de janeiro de 1969. 177 Todos os economistas coincidem em reconhecer a importância do crescimento da demanda como catapulta do desenvolvimento industrial. Na América Latina, a indústria, estrangeirizada, não mostra o menor interesse em ampliar, em extensão e profundidade, o mercado de massas que só poderia crescer horizontal e verticalmente se se impulsionasse a colocação em prática de profundas transformações em toda a estrutura econômico-social, o que implicaria a explosão de inconvenientes tormentas políticas. O poder de compra da população assalariada, já aniquilados ou domesticados os sindicatos das cidades mais industrializadas, não cresce em medida suficiente, e também não baixam os preços dos artigos industriais; esta é uma região gigantesca, com um mercado potencial enorme e um mercado real reduzido pela pobreza de sua maioria. Virtualmente, a produção das grandes fábricas de automóveis ou refrigeradores se dirige ao consumo de apenas uns 5% da população latino-americana 111. Apenas um de cada quatro brasileiros pode considerar-se um consumidor real. Quarenta e cinco milhões de brasileiros somam a mesma renda total que 900 mil privilegiados situados no outro extremo da escala social 112. INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA SOB BANDEIRA DE LISTRAS E DE ESTRELAS Há anjos que ainda crêem que todos os países terminam à beira de suas fronteiras. São os que afirmam que os Estados Unidos pouco ou nada têm a ver com integração latino-americana, pela simples razão de que os Estados Unidos não fazem parte da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) nem do Mercado Comum Centro-Americano. Como queria o libertador Simón Bolívar, dizem, esta integração não vai além dos limites que separam o México do seu poderoso vizinho do norte. Os que sustentam este critério seráfico esquecem, interessante amnésia, que uma legião de piratas, mercadores, banqueiros, marines, tecnocratas, boinas verdes, embaixadores e capitães-de-empresa norte-americanos se apoderaram, ao longo de uma história negra, da vida e do destino da maioria dos povos do sul, e que atualmente também a indústria da América Latina jaz no fundo do aparelho digestivo do Império. “Nossa” união faz “sua” força, na medida em que os países, ao não romperem previamente com os moldes do subdesenvolvimento e da dependência, integram suas respectivas servidões. Na documentação oficial da ALALC costuma-se exaltar a função do capital privado no desenvolvimento da integração. Já vimos, nos capítulos anteriores, em que mãos está este capital privado. Em meados de abril de 1969, por exemplo, se reuniu em Assunção a Comissão Consultiva de Assuntos Empresariais. Entre outras coisas, reafirmou “a orientação da economia latino-americana, no sentido de que a integração econômica da Zona tenha de aperfeiçoar-se com base no desenvolvimento da empresa privada fundamentalmente”. E recomendou que os governos estabeleçam uma legislação comum para a formação de “empresas multinacionais, constituídas predominantemente (sic) por capitais e empresários dos países membros”. Todas as fechaduras são entregues ao ladrão: na Conferência de Presidentes de Punta del Este, em abril de 1967, se chegou a propugnar,na declaração final que o próprio presidente Lyndon Johnson encerrou com selo de ouro, a 111. André Gunder Frank, op. cit. 112. Nações Unidas-CEPAL, Estudio sobre Ia distribución del ingresso en América, Nova Iorque-Santiago do Chile, 1967. “Na Argentina teve lugar, nos anos anteriores a 1953, um processo significativo de redistribuição progressiva da renda. Dos três anos, dos que se dispõe de informação mais detalhada, foi precisamente este o ano em que foi menor a desigualdade, enquanto foi muito maior em 1959... No México, no período mais extenso compreendido entre os anos 1940 e 1964... há indicações que permitem supor que a perda não foi só relativa mas também absoluta para 20% das famílias de rendas mais baixas.” 178 criação de um mercado comum das ações, uma espécie de integração das bolsas, para que de qualquer lugar da América Latina se possam comprar empresas radicadas em qualquer ponto da região. E os documentos oficiais vão mais longe: até se recomenda aberta e claramente a desnacionalização das empresas públicas. Em abril de 1969, realizou-se em Montevidéu a primeira reunião setorial da indústria de carne na ALALC: resolveu “solicitar aos governos... que estudem as medidas adequadas para conseguir uma progressiva transferência dos frigoríficos estatais ao setor privado”. Simultaneamente, o governo do Uruguai, com um de seus membros presidindo a reunião, pisou a fundo no acelerador de sua política de sabotagem contra o Frigorífico Nacional, propriedade do Estado, em proveito de frigoríficos privados estrangeiros. O desarmamento alfandegário, que libera gradualmente a circulação de mercadorias dentro da área da ALALC está destinado a reorganizar, em beneficio das grandes corporações multinacionais, a distribuição dos centros de produção e dos mercados da América Latina. Reina a “economia de escala”: na primeira fase, cumprida nestes últimos anos, se aperfeiçoou a estrangeirização das plataformas de lançamento - as cidades industrializadas -, que terão de se projetar sobre o mercado regional em seu conjunto. As empresas do Brasil mais interessadas na integração latino-americana são, precisamente, as empresas estrangeiras 113 e, sobretudo, as mais poderosas. Mais da metade das corporações multinacionais, em sua maioria norte-americanas, que responderam a uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento em toda a América Latina, planificavam ou se propunham a planificar, na segunda metade da década de 60, suas atividades para o mercado ampliado da ALALC, criando ou fortalecendo, para tais fins, seus departamentos regionais 114.Em setembro de 1969, Henry Ford II anunciou, do Rio de Janeiro, que desejava incorporar-se ao processo econômico do Brasil, “porque a situação está muito boa. Nossa participação inicial consistiu na compra da Willys Overland do Brasil”, segundo declarou em entrevista coletiva de imprensa, e afirmou que exportará veículos brasileiros para vários países da América Latina. Caterpillar, “uma firma que tratou sempre o mundo como um só mercado”, diz Business International, não tardou em aproveitar as reduções de tarifas tão logo se foram negociando, e em 1965 já fornecia niveladores e peças sobressalentes de tratores, de sua fábrica de São Paulo, a vários países da América Latina. Com a mesma rapidez, Union Carbide irradiava produtos eletrotécnicos sobre vários países sul-americanos, de sua fábrica do México, fazendo uso das isenções de direitos aduaneiros, impostos e depósitos prévios para os intercâmbios na área da ALALC 115. Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas, condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes. 113. Maurício Vinhas de Queiroz, op. cit. 114. Gustavo Lagos, no volume do BID, vários autores, Las inversiones multinacionales en el desarrollo de América Latina, Bogotá, 1968. 64% das empresas exportava dentro da região, fazendo uso das concessões da ALALC, produtos químicos e petroquímicos, fibras artificiais, materiais eletrônicos, maquinaria industrial e agrícola, equipamentos de escritório, motores, instrumentos de medição, tubos de aço e outros produtos. 115. Business International, LAFTA, Key America’s 200 million Consumers, reportagem de pesquisas, junho 1966. 179 Como vimos em outro capítulo, a divisão internacional do trabalho continua funcionando, para a América Latina, nos mesmos termos de sempre. Só se admitem novidades dentro da região. Na reunião de Punta del Este, os presidentes declararam que “a iniciativa privada estrangeira poderá cumprir uma função importante para assegurar o cumprimento dos objetivos da integração”, e concordaram que o Banco Interamericano de Desenvolvimento aumentasse “os montantes disponíveis para créditos de exportação no comércio intralatino-americano”. A revista Fortune avaliava em 1967 as “sedutoras oportunidades novas” que o mercado comum latino-americano abre aos negócios do norte: “Em mais de uma sala de diretoria, o mercado comum se está tornando um sério elemento para os planos do futuro. A Ford Motor do Brasil, que faz os Galaxies, pensa tecer uma linda rede com a Ford argentina, que faz os Falcons, e alcançar economias de escala produzindo ambos automóveis para maiores mercados. A Kodak, que agora fabrica papel fotográfico no Brasil, gostaria de produzir filmes exportáveis no México e câmaras e projetores na Argentina” 116.E citava outros exemplos de “racionalização da produção” e extensão da área de operações de outras corporações, como a I.T.T., General Electric, Remington Rand, Otis Elevator, W orthington, Firestone, Deere, Westinghouse e American Machine and Foundry. Há nove anos, Raúl Prebisch, vigoroso advogado da ALALC, escrevia: “Outro argumento que escuto com freqüência do México até Buenos Aires, passando por São Paulo e Santiago, é que o mercado comum vai oferecer à indústria estrangeira oportunidades de expansão que hoje em dia não tem em nossos limitados mercados... Existe o temor de que as vantagens do mercado comum seja aproveitadas por esta indústria estrangeira e não pelas indústrias nacionais... Compartilhei deste temor, e dele compartilho, não por mera imaginação, mas porque comprovei na prática a realidade deste fato...” 117. Esta comprovação não o impediu assinar, algum tempo depois, um documento no qual afirma que “ao capital estrangeiro corresponde, sem dúvida, um papel importante no desenvolvimento de nossas economias”, a propósito da integração em marcha 118, propondo a constituição de sociedades mistas, nas quais “o empresário latino-americano participe eficaz e eqüitativamente”. Eqüitativamente? Há que salvaguardar, é certo, a igualdade de oportunidades. Bem dizia Anatole France que a lei, em sua majestosa igualdade, proíbe tanto o pobre quanto o rico de dormirem sob as pontes, mendigarem nas ruas e roubarem pão. Porém ocorre que, neste planeta e neste tempo, uma só empresa, a General Motors, ocupa tantos trabalhadores como todos os que formam a população ativa do Uruguai, e ganha num só ano uma quantidade de dinheiro quatro vezes maior que o montante do produto nacional bruto da Bolívia. As corporações já conhecem, por outras experiências de integração anteriores, as vantagens de atuar como insiders no desenvolvimento capitalista de outras comarcas. Não é em vão que o total das vendas das Filiais norte-americanas disseminadas pelo mundo é seis vezes maior que o valor das exportações dos Estados Unidos 119. Na América Latina, como em outras regiões, não regem as incômodas leis antitrustes dos Estados Unidos. Aqui os países se transformam, com plena impunidade, em pseudônimos das empresas estrangeiras que 116. Fortune, A latin american common market makes common sense for U.S. businessmen too. junho de 1967. 117. Raúl Prebisch, Problemas dela integración económica, em Actualidades económicas financieras. Montevidéu, janeiro de 1962. 118. Presbisch, Sanz Santamaria, Mayobre e Herrera, Proposiciones para Ia creación del Mercado Comum Latinoamericano, documento apresentado ao presidente Frei, 1966. 119. Judd Polk (do U.S. Council of the International Chamber of Commerce) e C.P. Kindleberger (do Massachussetts Institute of Tecnology) oferecem fartos dados e opiniões sobre a norte-americanização da economia capitalista mundial na publicação do Departamento de Estado, The multinational corporation. Office of External Research, Washington. 1969. 180 os dominam. O primeiro acordo de complementação da ALALC foi assinado em agosto de 1962, pela Argentina, Brasil, Chile e Uruguai; porém, na realidade, foi assinado entre a IBM, a IBM e a IBM. O acordo eliminava os direitos de importação para o comércio de maquinarias estatísticas e seus componentes entre os quatro países enquanto aumentava os gravames sobre a importação desta maquinaria de fora da área: a IBM World Trade “sugeriu aos governos que, se eliminassem os direitos para comerciarem entre si, construiria fábricas no Brasil e na Argentina...” 120 Ao segundo acordo, assinado entre os mesmos países, se juntou o México: foram a RCA e a Philips of Eindhoven os que promoveram a isenção para o intercâmbio de equipamentos destinados ao rádio e à televisão. E assim sucessivamente. Na primavera de 1969, o nono acordo consagrou a divisão do mercado latino-americano de equipamentos de geração, transmissão e distribuição de eletricidade, entre a Union Carbide, a General Electric e a Siemens. O Mercado Comum Centro-Americano, por sua vez, esforço de conjunção das economias raquíticas e deformadas de cinco países, serviu apenas para derrubar num sopro os fracos produtores nacionais de tecidos, pinturas, remédios, cosméticos ou bolachas, e para aumentar os ganhos e a órbita de negócios da General Tire and Rubber Co., Procter and Gamble, Grace and Co., Colgate Palmolive, Sterling Products ou National Biscuits 121 .A liberação de direitos aduaneiros ocorreu também igual, na América Central, com a elevação das barreiras contra a competição estrangeira externa (para dizê-lo de alguma maneira), de modo que as empresas estrangeiras internas pudessem vender mais caro e com maiores lucros: “Os subsídios recebidos através da proteção tarifária excedem o valor total agregado pelo processo doméstico de produção”, conclui Roger Hansen 122. As empresas estrangeiras têm, como ninguém, o sentido das proporções. As proporções próprias e as alheias. Que sentido teria instalar no Uruguai, por exemplo, ou na Bolívia, Paraguai ou Equador, com seus mercados minúsculos, uma grande fábrica de automóvel, altos-fornos siderúrgicos ou uma fábrica importante de produtos químicos? São outros os trampolins escolhidos, em função das dimensões dos mercados internos e das potencialidades de seu crescimento. A FUNSA, fábrica uruguaia de pneus, depende em grande medida da Firestone, porém são as filiais da Firestone no Brasil e na Argentina que se expandem com vistas à integração. Freia-se a ascensão da empresa instalada no Uruguai, aplicando o mesmo critério que determina que a Olivetti, empresa italiana invadida pela General Electric, elabore suas máquinas de escrever no Brasil e suas máquinas de calcular na Argentina. “A alocação eficiente de recursos requer um desenvolvimento desigual das diferentes partes de um país ou região”, sustenta Rosenstein-Rodan 123,e a integração latino-americana terá também seus nordestes e seus pólos de desenvolvimento. No balanço dos oito anos de vida do Tratado de Montevidéu que deu origem à ALALC, o delegado uruguaio denunciou “as diferenças de graus de desenvolvimento econômico (entre os diversos países) que tendem a se aguçar”, porque o mero incremento do comércio num intercâmbio de concessões recíprocas só pode aumentar a desigualdade pré-existente entre os pólos de privilégios e as áreas submetidas. O embaixador do Paraguai, por sua vez, se queixou em termos semelhantes: afirmou que os países fracos absurdamente subvencionam o desenvolvimento industrial dos países mais avançados da Zona de Livre Comércio, absorvendo seus altos custos internos através da desoneração alfandegária, e disse que dentro da ALALC a deterioração dos termos de intercâmbio castiga seu país tão duramente 120. Business International. op. cit. 121. E. Lízano F. , El problema de las inversiones extranjeras en Centro América, na Revista del Banco Central de Costa Rica. setembro de 1966. 122. Em Columbia Journal of World Business, citado por NACLA Newsletter,janeiro de 1970. 123. Paul N. Rosenstein-Rodan, Reflections on Regional Development. Citado no BID, vários autores, op. cit. 181 quanto fora dela: “Por cada tonelada de produtos importados da Zona, o Paraguai paga com duas.” A realidade, afirmou o representante do Equador, “é dada por onze países em diferentes graus de desenvolvimento, o que se traduz em maiores ou menores capacidades para aproveitar a área de comércio liberado e conduz a uma polarização de benefícios e prejuízos...” O embaixador da Colômbia extraiu “uma única conclusão: o programa de liberação beneficia numa desproporção protuberante os três grandes países” 124. À medida que a integração progride, os países pequenos irão renunciando a suas receitas aduaneiras - que no Paraguai financiam a metade de seu orçamento nacional - em troca da duvidosa vantagem de receber, por exemplo, de São Paulo, Buenos A ires ou México, automóveis fabricados pelas mesmas empresas que ainda os vendem de Detroit, Wolfsburg ou Milão pela metade do preço 125.Esta é a certeza que alenta por baixo das aflições que o processo de integração provoca em medida crescente. A emergência, com relativo sucesso, do Pacto Andino, que congrega as nações do Pacífico, é um dos resultados visíveis da.hegemonia dos três grandes no quadro ampliado da ALALC: os pequenos intentam se unir à parte. Porém, a despeito de todas as dificuldades, por espinhosas que pareçam, os mercados se estendem à medida que os satélites vão incorporando novos satélites em sua órbita de poder dependente. Sob o regime militar de Castelo Branco, o Brasil assinou um acordo de garantias para as inversões estrangeiras, que descarrega sobre o Estado os riscos e as desvantagens de cada negócio. É muito significativo que o funcionário que aceitara o convênio defendesse suas humilhantes condições perante o Congresso, afirmando que, “num futuro próximo, o Brasil estará investindo capitais na Bolívia, Paraguai ou Chile e então necessitará de acordos deste tipo” 126. No seio dos governos que sucederam o golpe de estado de 1964, se afirmou, de fato, uma tendência que atribui ao Brasil uma função “subimperialista” sobre seus vizinhos. Um elenco militar de importante gravitação postula o país como o grande administrador dos interesses norte-americanos na região, e chama o Brasil para exercer, no sul, uma hegemonia semelhante a que, frente aos Estados Unidos, o próprio Brasil padece. O general Golbery do Couto e Silva invoca, neste sentido, outro “Destino manifesto” 127, este ideólogo do “subimperialismo” escrevia em 1952, referindo-se a este “Destino manifesto”: “Tanto mais, quando ele não roça, no Caribe, com o de nossos irmãos maiores do norte...” O general Golbery do Couto e Silva presidiu, pouco depois, a Dow Chemical do Brasil. A desejada estrutura do subdomínio conta, por certo, com abundantes antecedentes históricos, que vão desde a Guerra do Paraguai, a partir de 1865, até o envio de tropas brasileiras para encabeçar a operação solidária com a invasão dos marines,em São Domingos, exatamente um século depois. Nestes últimos anos, recrudesceu em grande medida a concorrência entre os gerentes dos grandes interesses imperialistas, instalados nos governos do Brasil e da Argentina, em torno do agitado problema da liderança continental. Tudo indica que a Argentina não 124. Sessões extraordinárias do Comitê Executivo Permanente da ALALC, julho e setembro de 1969. Apreciaciones sobre el processo de integración de Ia ALALC, Montividéu, 1969. A integração como um simples processo de redução das barreiras de comércio, adverte o diretor da UNCTA em Nova Iorque, manterá os “enclaves de alto desenvolvimento dentro da depressão geral do continente. Sidney Dell, no volume coletivo The movement toward latin american unity,editado por Ronald Hilton. Nova Iorque-W ashington- Londres, 1969. 125. A indústria automotriz é 100% estrangeira no Brasil e Argentina, e majoritariamente estrangeira no México, ALALC, La industria automotriz en Ia ALALC, Montividéu. 1969. 126. Vivian Trías, Imperialismo y geopolítica en América Latina, Montevidéu, 1967. O Uruguai se comprometeu, por exemplo, a incrementar suas importações de maquinarias do Brasil, em troca de favores, tais como o fornecimento de energia elétrica brasileira à zona norte do país. Atualmente, os departamentos uruguaios de Artigas e Rivera não podem aumentar seu consumo de energia sem a permissão do Brasil. 127. Golbery do Couto e Silva, Aspectos geopolíticos do Brasil, Rio de Janeiro, 1952. 182 está em condições de resistir ao poderoso desafio brasileiro: o Brasil tem o dobro de superfície e uma população quatro vezes maior, é quase três vezes mais ampla a produção de aço, fabrica o dobro de cimento e gera mais do dobro de energia; a taxa de renovação de sua marinha mercante é quinze vezes mais alta. Registrou, além disso, um ritmo de crescimento econômico bastante mais acelerado que o da Argentina, durante as últimas décadas. Não faz muito tempo, a Argentina produzia mais automóveis e caminhões do que o Brasil. No ritmo atual, em 1975, a indústria automobilística brasileira é três vezes maior do que a Argentina. A frota marítima, que em 1966 era igual à Argentina, equivale a de toda a América Latina reunida. O Brasil oferece à inversão estrangeira a magnitude de seu mercado potencial, suas fabulosas riquezas naturais, o grande valor estratégico de seu território, que limita com todos os países sul-americanos menos com o Equador e o Chile, e todas as condições para que as empresas norte-americanas radicadas em seu solo avancem com botas de sete léguas: O Brasil dispõe de braços mais baratos e mais abundantes do que seu rival. Não é por acaso que a terça parte dos produtos elaborados e semi-elaborados que se vendem dentro da ALALC provenha do Brasil. Este é o país que constitui o eixo da libertação ou servidão de toda a América Latina. Quem sabe o senador norte-americano Fulbright não tenha tido consciência completa do alcance de suas palavras quando, em 1956, atribuiu ao Brasil, em declarações públicas, a missão de dirigir o mercado comum da América Latina. “NUNCA SEREMOS AFORTUNADOS, NUNCA!”, PROFETIZOU SIMÓN BOLIVAR Para que o imperialismo norte-americano possa, hoje em dia, integrar para reinar na América Latina, foi necessário que o Império britânico contribuísse para dividir-nos com os mesmos rins. Um arquipélago de países, desconectados entre si, nasceu como conseqüência da frustração de nossa unidade nacional. Quando os povos em armas conquistaram a independência, a América Latina aparecia no cenário histórico enlaçada pelas tradições comuns de suas diversas comarcas, exibia uma unidade territorial sem fissuras e falava dois idiomas fundamentalmente da mesma origem, o espanhol e o português. Porém nos faltava, como assinala Trías, uma das condições essenciais para constituir uma grande nação única: nos faltava a comunidade econômica. Os pólos de prosperidade, que floresciam para dar resposta às necessidades européias de metais e alimentos, não estavam vinculados entre si: as varinhas do leque tinham seu vértice do outro lado do mar. Os homens e os capitais se deslocam no vaivém da sorte do ouro ou do açúcar, da prata ou do anil, e só os portos e as capitais, sanguessugas das regiões produtivas, tinham existência permanente. A América Latina nascia como um só espaço na imaginação e na esperança de Simón Bolívar, José Artigas e José de San Martin, porém estava dividida de antemão pelas deformações básicas do sistema colonial. As oligarquias portuárias consolidaram, através do livre comércio, esta estrutura de fragmentação, que era sua fonte de ganhos: aqueles ilustrados traficantes não podiam incubar a unidade nacional que a burguesia encarnou na Europa e nos Estados Unidos. Os ingleses, herdeiros da Espanha e Portugal desde tempos antes da independência, aperfeiçoaram essa estrutura ao longo do século passado, por meio das intrigas de luvas brancas dos diplomatas, as forças de extorsão dos banqueiros e a capacidade de sedução dos comerciantes. “Para nós, a pátria é a América”, havia proclamado Bolívar: a Gran Colômbia se dividiu em cinco países e o libertador morreu derrotado: “Nunca seremos afortunados, nunca!”, disse ao general Urdaneta. Traídos por Buenos Aires, San Martín se despojou das insígnias de comando e Artigas, que chamava de americanos a seus soldados, marchou para a morte solitária do exílio no Paraguai: o vice-reinado do Rio da Prata tinha-se partido em quatro. 183 Francisco de Morazán, criador da República Federal da América Central, morreu fuzilado 128 , e a cintura da América se fragmentou em cinco pedaços aos quais logo se somaria o Panamá, o canal com categoria de república que Teddy Roosevelt inventou. O resultado está à vista: atualmente, qualquer das corporações multinacionais opera com maior coerência e sentido de unidade do que este conjunto de ilhas que é a América Latina, desgarrada por tantas fronteiras e tantas incomunicações. Qual integração podem realizar,entresi, países que nem sequer se integraram internamente? Cada país padece de profundas fraturas em seu próprio seio, agudas divisões sociais e tensões não resolvidas entre seus vastos desertos marginais e seus oásis urbanos. O drama se reproduz em escala regional. As ferrovias e as estradas, criadas para transportar a produção ao exterior por rotas mais diretas, constituem ainda a prova irrefutável da impotência ou da incapacidade da América Latina para dar vida ao projeto nacional de seus heróis mais lúcidos. O Brasil carece de conexões terrestres permanentes com três de seus vizinhos - Colômbia, Peru e Venezuela - e as cidades do Atlântico não têm comunicação telegráfica direta com as cidades do Pacífico, de tal maneira que os telegramas entre Buenos Aires e Lima ou Rio de Janeiro e Bogotá passam inevitavelmente por Nova Iorque; o mesmo acontece com as linhas telefônicas entre o Caribe e o sul. Os países latino-americanos continuam se identificando cada qual com seu próprio porto, negação de suas raízes e de sua identidade real, a tal ponto que a quase totalidade dos produtos do comércio intra-regional é transportada por mar: os transportes interiores virtualmente não existem. Mas ocorre, neste sentido, que o cartel mundial dos fretes fixa as tarifas e os itinerários segundo seu critério, e a América Latina se limita a padecer as tarifas exorbitantes e as rotas absurdas. Das 118 linhas marítimas regulares que operam na região, unicamente há 16 de bandeiras regionais; os fretes sangram a economia latino-americana em um bilhão de dólares por ano 129.Assim, as mercadorias enviadas de Porto Alegre a Montevidéu chegam mais rápido ao destino se passam antes por Hamburgo, e o mesmo ocorre com a lã uruguaia em viagem aos Estados Unidos; o frete de Buenos A ires a um porto mexicano do golfo diminui em mais da quarta parte se o tráfego se realiza através de Southampton130. O transporte de madeira do México à Venezuela custa mais do dobro do que o transporte de madeira da Finlândia à Venezuela, embora o México esteja, segundo os mapas, muito mais perto. Um envio direto de produtos químicos de Buenos Aires até Tampico, no México, custa muito mais caro do que se fosse realizado por Nova Orleans 131. Destino muito diferente se propuseram e conquistaram, por certo, os Estados Unidos. Sete anos depois de sua independência, as treze colônias já tinham duplicado sua superfície, que se estendeu além dos Aleganios até as margens do Mississippi, e quatro anos mais tarde consagraram sua unidade criando o mercado único. Em 1803, compraram da França, por um preço ridículo, o território de Louisiana, com o que voltaram a multiplicar por dois seu território. Mais tarde, foi a vez de Flórida e, em meados do século, a 128. “Mandou preparar as armas, descobriu-se, mandou apontar, corrigiu a pontaria, deu voz de fogo e caiu; ainda levantou a cabeça sangrenta e disse: estou vivo; uma nova descarga o fez expirar.” Gregorio Bustamente Maceo, Historia militar de El Salvador,San Salvador, 1951 Na praça de Tegucigalpa, a banda toca música ligeira todos os domingos à noite ao pé da estátua de bronze de Morazán. Porém a inscrição está errada: esta não é a estampa eqüestre do campeão da unidade centro-americana. Os hondurenhos que viajaram a Paris, tempos depois do fuzilamento, para contratar um escultor a pedido do governo, gastaram o dinheiro em farras e acabaram comprando uma estátua do Marechal Ney no mercado das pulgas. A tragédia da América Central convertia-se rapidamente em farsa. 129. Nações Unidas-CEPAL, Los fletes marítimos en el comercio exterior de América Latina, Nova Iorque-Santiago do Chile, 1968. 130. Enrique Angulo H. no volume coletivo Integración de América Latina, experiencias y perspectivas, México, 1964. 131. Sidney Dell, Experiencias de la integración económica en América Latina, México, 1966. 184 invasão e a amputação de meio México em nome do “Destino manifesto”. Depois, a compra do Alasca, a usurpação do Havaí, Porto Rico e Filipinas. As colônias se tornaram nação, e a nação se fez império, ao longo do processo de colocar em prática objetivos claramente expressos e perseguidos desde os distantes tempos dos pais fundadores. Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada. O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas. Bolívar tinha afirmado, certeira profecia, que os Estados Unidos pareciam destinados pela providência para alastrar a América de misérias em nome da liberdade. Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos. É muita podridão para lançar ao fundo do mar no caminho da reconstrução da América Latina. Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa. A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens.. 185 POSFÁCIO SETE ANOS DEPOIS 1 Passaram-se sete anos desde a primeira publicação de As Veias Abertas da América Latina. Este livro havia sido escrito para conversar com o pessoal. Um autor não especializado dirigia-se a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que a história oficial, história contada pelos vencedores esconde ou mente. A resposta mais estimulante não veio das páginas de algum suplemento literário de jornal, senão que de alguns episódios reais ocorridos na rua. Por exemplo: a moça que ia lendo o livro para sua companheira de assento e terminou pondo-se de pé e lendo em voz alta para todos os passageiros enquanto o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com o livro envolto nas fraldas do bebê; ou ainda o estudante que durante uma semana percorreu as livrarias da rua Corrientes de Buenos Aires e foi lendo de pedacinho em pedacinho, de livraria em livraria, porque não tinha dinheiro para comprá-lo. Paralelamente, os comentários mais favoráveis que o livro recebeu, não provêm de nenhum crítico literário de prestígio, mas das ditaduras militares que o elogiaram proibindo-o. No meu país, (o Uruguai) por exemplo, As Veias Abertas da América Latina não pode circular, assim como no Chile e na Argentina. As autoridades o denunciaram, na televisão e nos jornais, como um instrumento de corrupção da juventude. “Não deixam ver o que escrevo”, dizia Blas de Otero, “porque escrevo o que vejo”. Creio não haver presunção na alegria de comprovar que, com o passar do tempo, As Veias não tenha se tornado um livro mudo, 2 Sei que pode ter parecido um tanto sacrílego que este manual de divulgação fale de economia política no estilo de um romance de amor ou de piratas. Mas provoca-me engulhos, confesso, ler alguns trabalhos valiosos de certos sociólogos, politicólogos, economistas ou historiadores que escrevem em código. A linguagem hermética nem sempre é o preço inevitável da profundidade Em alguns casos pode estar simplesmente escondendo uma incapacidade de comunicação, elevando-a à categoria de virtude intelectual. Suspeito que o fastio serve, dessa forma, para bendizer a ordem estabelecida: confirma que o conhecimento é um privilégio das elites. Algo parecido costuma ocorrer, diga-se de passagem, com certa literatura militante dirigida a um público conivente. Parece-me conformista, apesar de toda a sua possível retórica revolucionária, uma linguagem que repete mecanicamente, para os mesmos ouvidos, as mesmas frases pré-fabricadas, os mesmos adjetivos, as mesmas fórmulas declamatórias. Talvez essa literatura de paróquia esteja tão longe da revolução como a pornografia está longe do erotismo. 3 Alguém escreve para tratar de responder às perguntas que lhe zumbem na cabeça - 186 moscas tenazes que perturbam o sono; e o que alguém escreve pode adquirir sentido coletivo quando, de alguma maneira, coincide com a necessidade social de resposta. Escrevi As Veias Abertas para difundir idéias alheias e experiências próprias que talvez ajudem um pouquinho, com sua medida realista, a resolver as questões que nos perseguem desde sempre: A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus? Culpa da natureza? Do clima modorrendo? Das raças inferiores? A religião e os costumes? Não será a desgraça um produto da história, feita por homens, e que, portanto, pelos homens pode ser desfeita? A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita escolhe o passado porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus privilégios pela herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e esta coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que não é a sua, como se fosse a única possível. Em As Veias Abertas, o passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva.do nosso tempo. Esse livro é uma busca de chaves da história passada, que contribui para explicar o tempo presente, (que também faz história), a partir da base de que a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la. Não é oferecido, no caso, um catálogo de heróis vestidos para um baile à fantasia, que, ao morrer em batalha, pronunciam longuíssimas frases solenes, mas sim, indaga-se o som e a pegada dos passos de multidão que porventura apresente nosso recente caminhar.As Veias Abertas provem da realidade, mas também de outros livros, melhores que este, que nos têm ajudado a conhecer o que somos, para saber o que podemos ser, e que nos têm permitido averiguar de onde viemos para melhor adivinhar aonde vamos. Esta realidade e estes livros mostram que o subdesenvolvimento latino-americano é uma conseqüência do desenvolvimento alheio, que nós, latino-americanos, somos pobres porque é rico o solo que pisamos e que os lugares privilegiados pela natureza têm sido malditos pela história. Nesse nosso mundo, mundo de centros poderosos e subúrbios submetidos, não há riqueza que não seja, no mínimo, suspeita. 4 Durante o tempo transcorrido desde a primeira edição de As Veias Abertas, a história não deixou de ser, para nós, uma cruel professora. O sistema tem multiplicado a fome e o medo; a riqueza continuou concentrando-se e a pobreza difundindo-se. É o que reconhecem os documentos dos organismos internacionais especializados, cuja linguagem (asséptica) chama de “países em via de desenvolvimento” as nossas comarcas oprimidas e denomina de “redistribuição regressiva da receita” o empobrecimento implacável da classe trabalhadora. A engrenagem internacional continuou funcionando: os países a serviço das mercadorias, os homens a serviço das coisas. Com o passar do tempo, vão se aperfeiçoando os métodos de exportação das crises. O capital monopolista chega a seu mais alto grau de concentração e o domínio internacional dos mercados, os créditos e investimentos, torna possível a sistemática e crescente transferência das contradições: a periferia paga o preço da prosperidade dos centros, sem maiores sobressaltos. O mercado internacional continua sendo uma das chaves mestras desta operação. Aí é exercida a ditadura das corporações multinacionais. Multinacionais, como diz Sweezy, porque operam em muitos países, mas bem nacionais, por certo, no que diz respeito a sua 187 propriedade e controle. A organização mundial da desigualdade não se altera pelo fato de que o Brasil, por exemplo, exporte automóveis Volkswagen para outros países latino-americanos e aos longínquos mercados da África e do Oriente Médio. Afinal de contas, é a empresa alemã quem decidiu que é mais conveniente exportar automóveis para certos mercados, a partir de sua filial brasileira: são brasileiros os baixos custos de produção, os braços baratos e são alemães os altos lucros. Não é por arte de magia, tampouco, que se rompe a camisa de força, quando uma matéria-prima consegue escapar da maldição dos preços baixos. Este foi o caso do petróleo a partir de 1973. O petróleo não é um negócio internacional? São empresas árabes ou latino-americanas a Standard Oil de New Jersey (agora chamada Exxon), a Royal Dutch Shell ou a GuIf ? Quem é que fica com a parte do leão? É extremamente revelador o escândalo que se desatou contra os países produtores de petróleo que ousaram defender seu preço e que foram imediatamente convertidos nos bodes expiatórios da inflação e do desemprego operário na Europa e Estados Unidos Os países desenvolvidos consultaram alguém antes de aumentar o preço de qualquer de seus produtos? Fazia vinte anos que o preço do petróleo caía e caía. Sua vil cotação representou um gigantesco subsídio aos grandes centros industriais do mundo, cujos produtos, por sua vez, ficavam cada vez mais caros. Em relação ao incessante aumento dos preços de produtos norte-americanos e europeus, a nova cotação do petróleo não fez mais que devolvê-lo a seus níveis de 1952. Em 1973, o petróleo cru simplesmente recuperou o poder de compra que tinha há duas décadas. 5 Um dos episódios importantes ocorridos nestes sete anos foi a nacionalização do petróleo na Venezuela. A nacionalização não rompeu a dependência venezuelana no que diz respeito a refino e comercialização, mas abriu um novo espaço de autonomia. Logo após nascer, a empresa estatal Petróleos de Venezuela, já ocupava o primeiro lugar entre as quinhentas maiores empresas da América Latina. Além dos tradicionais, a Petroven começou a exploração de novos mercados e rapidamente obteve cinqüenta novos clientes. Entretanto, sempre que o Estado passa a ser dono da principal riqueza de um país, é bom perguntar quem é o dono do Estado. A nacionalização dos recursos básicos não implica, por si só, a redistribuição da receita em beneficio da maioria, nem põe, necessariamente; em perigo os privilégios da minoria dominante. Na Venezuela continua funcionando, impunemente, a economia do desperdício. Resplandece em seu centro, iluminada pelo gás neon,uma classe multimilionária e esbanjadora. Em 1976, as importações aumentaram em vinte e cinco por cento, fundamentalmente para financiar artigos de superluxo que inundam o mercado venezuelano em cascatas. Fetichismo da mercadoria como símbolo de poder, existência humana reduzida a relações de competição e consumo: em meio ao oceano de subdesenvolvimento, a minoria privilegiada imita o modo de vida e as modas dos membros mais ricos das mais opulentas sociedades do mundo. No estrépito de Caracas, como em Nova York, os bens “naturais” por excelência - o ar,aluz,o silêncio - tornaram-se cada vez mais escassos. “Cuidado”, adverte Juan Pablo Pérez Alfonso, patriarca do nacionalismo venezuelano e profeta da recuperação do petróleo: “Pode-se morrer de indigestão”, diz, “tanto como de fome”1. 6 Terminei de escrever As Veias Abertas nos últimos dias de 1970. Nos últimos dias de 1977, Juan Velasco Alvarado morreu numa sala de cirurgias. Seu 1. Entrevista de Jean-Pierre Clerc em Le Monde, Paris, 8-9 de maio de 1977 188 féretro foi carregado em ombros até o cemitério pela maior multidão jamais vista nas ruas de Lima. O general Velasco Alvarado, nascido em casa humilde nas terras secas do norte do Peru, havia encabeçado um processo de reformas sociais e econômicas. Foi a tentativa de mudança de maior alcance e profundidade da história contemporânea de seu país. A partir do levante de 1968, o governo militar impulsionou uma reforma agrária verdadeira e abriu as comportas para a recuperação dos recursos naturais usurpados pelo capital estrangeiro. Mas quando Velasco Alvarado morreu, já haviam sido celebrados os funerais da revolução. O processo criador teve vida fugaz: terminou afogado pela chantagem dos agiotas e negociantes e pela fragilidade congênita de todo projeto paternalista e sem base popular organizada. Nas vésperas do Natal de 77, enquanto o coração do general Velasco Alvarado pulsava pela última vez no Peru, na Bolívia, outro general, que em nada se assemelhava a ele, dava um soco na escrivaninha. O general Hugo Banzer, ditador da Bolívia, dizia não à anistia dos presos, dos exilados e dos operários arrojados. Quatro mulheres e quatorze meninos, vindos das minas de estanho para La Paz, iniciaram, então, uma greve de fome. - Não é o momento propício - opinaram os entendidos - já lhes diremos quando... Elas sentaram-se no chão. - Não estamos consultando - disseram as mulheres -. Estamos informando. A decisão está tomada. Greve de fome sempre tem lá na mina. É só nascer que já se começa a greve de fome. Por lá também haveremos de morrer. Mais lentamente, mas também haveremos de morrer. O governo reagiu castigando, ameaçando; mas a greve de fome ativou forças contidas por muito tempo. A Bolívia inteira sacudiu-se e mostrou os dentes. Dez dias depois, não eram quatro mulheres e quatorze meninos: mil e quatrocentos trabalhadores e estudantes levantaram-se em greve de fome. A ditadura sentiu que o solo abria-se debaixo dos pés. Foi arrancada a anistia geral. Assim atravessaram o limite de 1977 e 1978 dois países andinos. Mais ao norte, no Caribe, o Panamá esperava a prometida liquidação do estatuto colonial do canal, na reta final de uma espinhosa negociação com o novo governo dos Estados Unidos, e em Cuba o povo estava em festa: a revolução socialista festejava, invicta, seus primeiros dezenove anos de vida. Poucos dias depois, na Nicarágua, a multidão lançou-se, furiosa, às ruas. O ditador Somoza, filho do ditador Somoza, olhava pelo buraco da fechadura. Várias empresas foram incineradas pela cólera popular. Uma delas, chamada Plasmaféresis, tinha se especializado em vampirismo. A empresa Plasmaféresis, arrasada pelo fogo no início de 1978, era propriedade de exilados cubanos e se dedicava a vender sangue nicaragüense para os Estados Unidos. (No negócio do sangue, como em todos os outros, os produtores recebem apenas a gorjeta. A empresa Hemo Caribean, por exemplo, paga aos haitianos três dólares por litro que revende a vinte e cinco no mercado norte-americano. 7 Em agosto de 76, Orlando Letelier publicou um artigo denunciando que o terror da ditadura de Pinochet e a “liberdade econômica” de pequenos grupos privilegiados, são as duas faces de uma mesma moeda 2. Letelier, que havia sido ministro no governo de Salvador Allende, estava exilado nos Estados Unidos. Foi lá que, pouco tempo depois, voou em pedaços 3. Em seu artigo, afirmava que é absurdo falar em livre concorrência 2. The Nation, 28 de agosto. 3. O crime ocorreu em Washington, dia 21 de setembro de 1976. Vários exilados políticos do Uruguai, Chile e Bolívia haviam sido assassinados antes na Argentina. Os mais notórios entre eles, foram o general Carlos Prates, figura chave no esquema militar do governo de Allende, cujo automóvel explodiu numa garagem de Buenos Aires em 24 de setembro de 1974; o general Juan 189 numa economia como a chilena, submetida aos monopólios que jogam com os preços como querem, e que é ridículo mencionar os direitos dos trabalhadores num país onde os sindicatos autênticos estão fora da lei e os salários são fixados por decretos da junta militar. Letelier descrevia o esmero com que se desmontavam as conquistas realizadas pelo povo chileno durante o governo da Unidade Popular. Dos monopólios e oligopólios industriais nacionalizados por Salvador Allende, metade foi devolvida, pela ditadura, a seus antigos proprietários e a outra metade foi posta à venda. A Firestone comprou a fábrica nacional de pneumáticos; Parsons and Whittemore uma grande plantação para extração de polpa de papel... A economia chilena, dizia Letelier, agora está mais concentrada e monopolizada do que na véspera do governo de Allende4.Negócios livres como nunca, gente presa como nunca: Na América Latina, a liberdade empresarial e incompatível com as liberdades públicas. Liberdade de mercado? Desde o princípio de 1975 o preço do leite, no Chile, é livre. O resultado não se fez por esperar. Duas empresas dominam o mercado. O preço do leite aumentou imediatamente (para os consumidores) em quarenta por cento, enquanto o preço para os produtores baixava em vinte e dois por cento. A mortalidade infantil, que havia sido bastante reduzida durante o governo da Unidade Popular, deu um salto dramático a partir de Pinochet. Quando Letelier foi assassinado numa rua de Washington, um quarto da população do Chile, não recebia nenhum salário e sobrevivia graças à caridade alheia ou à própria obstinação e esperteza. Na América Latina, o abismo que se abre entre o bem-estar de poucos e a desgraça de muitos, é infinitamente maior que nos Estados Unidos ou na Europa. São muito mais ferozes, portanto, os métodos necessários para salvaguardar esta distância. O Brasil tem um exército enorme e muito bem equipado, mas destina cinco por cento do orçamento nacional para gastos de educação. No Uruguai, a metade do orçamento é absorvida, atualmente, pelas forças armadas e pela polícia: um quinto da população ativa tem a função de vigiar, perseguir ou castigar os quintos restantes. Um dos fatos mais importantes destes anos da década de 70, foi, sem dúvida, uma tragédia: a insurreição militar que em 11 de setembro de 1973 derrubou o governo democrático de Salvador Allende e mergulhou o Chile num banho de sangue... Pouco antes, em junho, um golpe de Estado no Uruguai, dissolveu o Parlamento, pôs os sindicatos fora da lei e proibiu toda e qualquer atividade política5. Em março de 1976, os generais argentinos voltaram ao poder: o governo da viúva de Juan Domingo Perón, completamente putrefato, desabou sem consolo nem glória. Os três países do sul são agora uma chaga do mundo, uma má notícia ininterrupta. Torturas, seqüestros, assassinatos e exílios converteram-se em fatos cotidianos. Estas ditaduras são tumores a serem extirpados de organismos sãos ou são o pus que revela a infecção do sistema? Creio que sempre existe uma relação íntima entre a intensidade da ameaça e a José Torres, que havia encabeçado um fugaz governo anti-imperialista, na Bolívia e foi crivado de balas no dia 15 de junho de 1976; os legisladores uruguaios Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez Ruiz, seqUestrados, torturados e assassinados, também em Buenos Aires, entre 18 e 21 de março de 1976. 4. A reforma agrária que havia começado sob o governo da Democracia Cristã e que foi aprofundada pelo da Unidade Popular, também foi arrasada. V. Maria Beatriz de Albuquerque W., "A agricultura chilena: modernização capitalista ou regressão às formas tradicionais? Comentários sobre a contra-reforma agrária no Chile". Iberoamericana, vol. VI:2, 1976, Institute of Latin American Studies, Estocolmo. 5. Três meses depois, houvera eleições na Universidade. Eram as únicas eleições que restavam. Os candidatos da ditadura obtiveram dois por cento e meio dos votos universitários. Por isso, em defesa da democracia, a ditadura prendeu meio mundo e entregou a Universidade a esses dois e meio por cento. 190 brutalidade da resposta. Creio que não se pode entender o que ocorre hoje no Brasil e na Bolívia sem se levar em conta a experiência dos regimes de Jango Goulart e Juan José Torres. Antes de cair, estes governos haviam posto em prática uma série de reformas sociais e haviam levado adiante uma política econômica nacionalista, ao longo de um processo (interrompido) em 1964 no Brasil, e em 1971 na Bolívia. Da mesma forma, bem que se poderia dizer que o Chile, a Argentina e o Uruguai estão expiando o pecado da esperança. O ciclo de profundas modificações durante o governo de Allende, as bandeiras de justiça que mobilizaram as massas obreiras argentinas e drapearam alto durante o fugaz governo de Héctor Campora em 1973 e a politização acelerada da juventude uruguaia, foram todos desafios que um sistema impotente e em crise não podia suportar. O violento oxigênio da liberdade foi fulminante para os espectros, e a guarda pretoriana foi convocada para salvar a ordem. O plano de limpeza é um plano de extermínio. 8 As atas do Congresso dos Estados Unidos costumam registrar testemunhos irrefutáveis acerca das intervenções na América Latina. Corroídas pelo ácido da culpa, as consciências realizam sua catarse nos confessionários do Império. Ultimamente, por exemplo, multiplicaram-se os reconhecimentos oficiais que atestam a responsabilidade dos Estados Unidos por diversos desastres. Amplas confissões públicas têm provado, entre outras coisas, que o governo dos Estados Unidos participou diretamente, mediante suborno, espionagem e chantagem, na política chilena. A estratégia do crime foi planejada em Washington. Desde 1970 que Kissinger e os serviços de informação preparavam cuidadosamente a queda de Allende. Milhões de dólares foram distribuídos entre os inimigos do governo legal da Unidade Popular. Assim é que, por exemplo puderam sustentar sua longa greve os proprietários de caminhões, que em 1973 paralisaram boa parte da economia do país. A certeza da impunidade solta as línguas. Quando do golpe de Estado contra Goulart, os Estados Unidos tinham no Brasil sua maior embaixada. Lincoln Gordon, que era o embaixador, reconheceu treze anos mais tarde, que seu governo financiava, tempos atrás, as forças que se opunham às reformas: “Que diabos”, disse Gordon, “isso era mais ou menos um hábito naquele período... A CIA estava acostumada a dispor de fundos políticos” 6. Na mesma entrevista, Gordon explicou que nos dias do golpe, o Pentágono deslocou um enorme porta-aviões e quatro navios-tanque para as costas brasileiras “para o caso de que as forças anti-Goulart viessem a pedir nossa ajuda”. Essa ajuda, disse “não seria apenas moral. Daríamos apoio logístico, abastecimento, munições, petróleo”. Desde que o presidente Jimmy Carter inaugurou a política de direitos humanos, tornou-se habitual que regimes latino-americanos, impostos graças a intervenção norte-americana, formulem inflamadas declarações contra a intervenção norte-americana em seus assuntos internos. O Congresso dos Estados Unidos resolveu, em 1976 e 1977, suspender a ajuda econômica e militar a vários países. No entanto, a maior parte da ajuda externa dos Estados Unidos, não passa pelo filtro do Congresso. Assim, apesar das declarações, resoluções e protestos, o regime do general Pinochet recebeu, durante 1976, 290 milhões de dólares de ajuda direta dos Estados Unidos sem autorização parlamentar. Ao completar seu primeiro ano de vida, a ditadura do general Videla havia recebido quinhentos milhões de dólares de bancos privados norte-americanos e 415 milhões de duas instituições (Banco Mundial e BID), onde os Estados Unidos têm influência decisiva. Os direitos especiais de giro da Argentina no Fundo Monetário Internacional, que eram de 64 milhões de dólares em 1975, subiram a setecentos milhões alguns anos depois. 6. Veja, nº 444, São Paulo, 9 de março de 1977. 191 A preocupação do presidente Carter pela carnificina que estão sofrendo alguns países latino-americanos parece saudável, mas os atuais ditadores não são autodidatas; aprenderam as técnicas da repressão e a arte de governar em cursos do Pentágono, nos Estados Unidos e na zona do Canal do Panamá. Esses cursos prosseguem hoje em dia e, é bom que se saiba, não variaram uma vírgula de seu conteúdo. Os militares latino-americanos que hoje escandalizam os Estados Unidos, foram bons alunos. Fazem alguns anos, o atual presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, que então era Secretário de Defesa, disse - sem tirar nem pôr - o seguinte: “Eles são novos líderes. Não é necessário estender-me acerca do valor de ter em posições de liderança homens que conheceram previamente, e de perto, como nós, americanos, pensamos e fazemos as coisas. Fazer-nos amigos destes homens, não tem preço”7. Aqueles que fizeram o paralítico, poderiam fazer o favor de ofertar-nos a cadeira de rodas? 9 Os bispos da França falam de outro tipo de responsabilidade; mais profunda, menos visível 8: “Nós que pertencemos às nações que se pretendem as mais avançadas do mundo, fazemos parte daqueles que se beneficiam da exploração dos países em vias de desenvolvimento. Não vemos os sofrimentos que isso provoca na carne e no espírito de povos inteiros. Nós contribuímos para reforçar a divisão do mundo atual em que é flagrante a dominação dos pobres pelos ricos, dos débeis pelos poderosos. Acaso sabemos que nosso desperdício de recursos naturais e de matérias-primas não seria possível sem o controle do intercâmbio comercial por parte dos países ocidentais? Não vemos quem se aproveita do tráfico de armas, coisa de que nosso país tem dado tristes exemplos? Acaso compreendemos que a militarização dos regimes de países pobres é uma das conseqüências da dominação econômica e cultural exercida pelos países industrializados, nos quais a vida rege-se pelo afã do lucro e pelos poderes do dinheiro?” Ditadores, torturadores, inquisidores: como bancos ou o correio, o terror tem funcionários, e é aplicado porque é necessário. Não se trata de uma conspiração de perversos. O general Pinochet pode parecer personagem de uma tela negra de Goya, um banquete para psicanalistas ou o herdeiro de uma truculenta tradição das repúblicas das bananas. Mas os traços clínicos ou folclóricos deste ou daquele ditador que servem para condimentar a história, não são a história. Quem é que se atreveria a afirmar que a primeira guerra mundial eclodiu causada pelos complexos do Káiser Guilherme, que tinha um braço mais curto que outro? “Nos paises democráticos não é revelado o caráter de violência que a economia tem; nos países autoritários acontece o mesmo com o caráter econômico da violência”, havia escrito Bertold Brecht, no seu diário de trabalho em fins de 1940. Nos países do sul da América Latina, os centuriões ocuparam o poder em função de uma necessidade do sistema e o terrorismo de Estado se põe a funcionar quando as classes dominantes já não podem realizar seus negócios por outros meios. E m nossos países não existiria tortura se não fosse eficaz; a democracia formal teria continuidade caso se pudesse garantir que não escaparia ao controle dos donos do poder.Em termos difíceis, a democracia transforma-se em crime contra a segurança nacional, ou melhor, contra a segurança dos privilégios internos e os investimento estrangeiros. Nossas máquinas de moer carne humana integram uma engrenagem internacional. A sociedade inteira se militariza, o estado de excessão passa a ser permanente e o aparelho de repressão torna-se hegemônico a partir de um apertar de parafusos lá nos centros do sistema imperialista. Quando a sombra da crise 7. U.S. House of Representatives, Comite on Appropriations, Foreign Operation Appropriations for 1963, Hearing 87th. Congress, 2nd. Session, Part 1. 8. Declaración de Lourdes, octubre de 1976. 192 espreita, faz-se necessário o saque aos países pobres para garantir o pleno emprego, as liberdades públicas e as altas taxas de desenvolvimento dos países ricos. Relações de vítima e carrasco; dialética sinistra: há uma estrutura de humilhações sucessivas que começa nos mercados internacionais e nos centros financeiros e termina na casa de cada cidadão. 10 O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental. Lá existem mais lava-pés que sapateiros: meninos que em troca de uma moeda lavam os pés de clientes descalços, que não têm sapatos para engraxar. Os haitianos vivem, em média, pouco mais de trinta anos. De cada dez haitianos, nove não sabem ler nem escrever.Para o consumo interno são cultivadas as ásperas encostas das montanhas. Para a exportação, cultivam-se os vales férteis: as melhores terras são dedicadas ao café, ao açúcar, ao cacau e a outros produtos requeridos pelo mercado norte-americano. Ninguém joga beisebol no Haiti, mas o Haiti é o principal produtor mundial de bolas de beisebol. No país não faltam oficinas onde crianças trabalham a um dólar por dia armando cassetes e peças eletrônicas. São, é claro, produtos de exportação. Também é claro que os lucros são exportados, uma vez (é claro!) deduzida a parte que corresponde aos administradores do terror. O menor sinal de protesto, no Haiti, resulta em prisão ou morte. Por incrível que pareça, os salários dos trabalhadores haitianos perderam, entre 1971 e 1975, um quarto de seu valor real9. È significativo que nesse período tenha entrado no país um novo fluxo de capital norte-americano. Lembro-me de um editorial de um jornal de Buenos Aires publicado há dois anos. O jornal velho e conservador espumava de ira porque em algum documento internacional a Argentina aparecia como país subdesenvolvido e dependente. Como uma sociedade culta, européia, próspera e branca podia ser medida com o mesmo metro com que se media um país tão pobre e tão negro como o Haiti? Sem dúvida; as diferenças são enormes - ainda que pouco tenham a ver com as arrogantes categorias analíticas da oligarquia de Buenos Aires. Mas, com todas as diferenças e contradições que se queira, a Argentina não está a salvo do círculo vicioso que estrangula a economia latino-americana no seu conjunto e não há esforço de exorcismo intelectual que possa subtraí-la da realidade que compartem - uns mais, outros menos - os demais países da região. Afinal de contas, as matanças do general Videla não são mais civilizadas que as de Papa Doc Duvalier ou de seu herdeiro no trono, ainda que na Argentina a repressão tenha um nível tecnológico mais alto. No essencial, as duas ditaduras funcionam a serviço do mesmo objetivo: proporcionar braços baratos para um mercado internacional que exige produtos baratos. Assim que chegou ao poder, a ditadura de Videla apressou-se em proibir as greves e decretou a liberdade de preços ao mesmo tempo em que encarcerava os salários. Cinco meses depois do golpe de Estado, a nova lei de investimentos estrangeiros pôs em igualdade de condições as empresas nacionais e estrangeiras. Assim, a livre concorrência terminou com a situação de desvantagem injusta em que se encontravam algumas corporações multinacionais frente às empresas locais. A desamparada General Motors, por exemplo, cujo volume mundial de vendas equivale ao produto nacional bruto da Argentina inteira. Agora também ficou livre, com frágeis limitações a remessa de lucros e a repatriação do capital estrangeiro ao exterior. Quando o regime completou seu primeiro ano de vida, o valor real dos salários havia sido reduzido em quarenta por cento. Foi uma façanha realizada pelo terror.“Quinze mil 9. Le nouvelliste, Puerto Príncipe, Haití, 19-20 de março de 1977. Dado citado por Agustin Cueva em "O desenvolvimento do capitalismo na América Latina", Siglo XXI, México, 1977. 193 desaparecidos, dez mil presos, quatro mil mortos, dezenas de milhares de exilados, são a cifra nua deste terror”, denunciou o escritor Rodolfo Walsh numa carta aberta. A carta foi enviada dia 29 de março de 1977 aos três chefes da junta governamental. Neste mesmo dia, Walsh foi seqüestrado e desapareceu. 11 Fontes insuspeitas confirmam que uma parte ínfima dos novos investimentos estrangeiros diretos na América Latina, realmente provém do país de origem. Segundo uma pesquisa publicada pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos 10, apenas doze por cento dos fundos vêm da matriz norte-americana, cerca de vinte e dois por cento correspondem a lucros obtidos na América Latina e os sessenta e seis por cento restantes, saem das fontes de crédito interno e, principalmente, do crédito internacional. A proporção para investimentos europeus e japoneses é semelhante; e é necessário ter em conta que, freqüentemente, esses doze por cento de investimento que vêm das matrizes não passam de transferência de maquinaria já usada ou reflete a taxação arbitrária que as empresas impõem por seu know how, patentes ou marcas. Portanto, as corporações multinacionais não só usurpam o crédito interno dos países onde operam em troca de uma “-injeção” de capital bastante discutível, como também multiplicam-lhes a dívida externa. Em 1975, a dívida externa latino-americana era quase três vezes maior que em 196911. Em 1975, Brasil, México, Chile e Uruguai, destinaram aproximadamente a metade da receita de exportação para o pagamento da amortização de juros da dívida e para o pagamento dos lucros das empresas estrangeiras estabelecidas nesses países. Os serviços da dívida e a remessa de lucros tragaram, naquele ano, cinqüenta e cinco por cento das exportações do Panamá e sessenta por cento das do Peru12. Em 1969, cada habitante da Bolívia devia 137 dólares para o exterior. Em 1977, devia 483. Os habitantes da Bolívia não foram consultados nem viram um só centavo destes empréstimos que deixaram-no com a corda no pescoço. Nos poucos países latino-americanos onde ainda se realizam eleições, o Citíbank não figura como candidato em nenhuma chapa. Nenhum dos generais que exerce a ditadura chama-se Fundo Monetário Internacional. No entanto, qual é a mão que executa e qual é a consciência que ordena? Quem empresta, manda. Para pagar, é necessário exportar mais, e é necessário exportar mais para financiar as importações e para fazer frente à hemorragia de lucros e royalties que as empresas estrangeiras drenam para as duas matrizes. O aumento das exportações, que tem o poder de compra cada vez menor, implica salários de fome. A pobreza em massa, chave do êxito de uma economia voltada para o exterior, impede o crescimento do mercado interno de consumo numa proporção necessária para sustentar um desenvolvimento econômico harmonioso. Nossos países transformam-se em eco e vão perdendo sua própria voz. Dependem de outros, existem enquanto resposta às necessidades de outros. A remodelação da economia em função da demanda externa, devolve-nos ao estrangulamento original: abre as portas ao saque dos monopólios estrangeiro , se obriga a contrair novos e maiores empréstimos do meio bancá10. Ida May Mante, "Sources and Uses of fundd for a sample of majority-owned foreign affiliates of U.S. companies, 1966-11972", U.S. Departament of Commerce, Survey of Corrent Business, julho de 1975. 11. ONU, Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),"O desenvolvi-mento social e econômico e as relações externas da América Latina". São Domingos, República Dominicana, fevereiro de 1977. 12. O dinheiro, que tem asinhas, viaja sem passaporte. Boa parte dos lucros gerados pela exportação de nossos recursos, escapa para os Estados Unidos, para a Suiça, para a Alemanha Federal, ou para outros países, aonde dá um salto circense, para logo voltar às nossas comarcas convertido em empréstimo. 194 rio internacional. O círculo vicioso é perfeito: a dívida externa e o investimento estrangeiro obrigam a multiplicar exportações que eles próprios vão devorando. A tarefa não pode ser levada a cabo com bons modos. Para que os trabalhadores latino-americanos cumpram a sua função de reféns da prosperidade alheia, faz-se necessário que sejam mantidos prisioneiros -tanto do lado de dentro como do lado de fora das barras dos cárceres. 12 A exploração selvagem da mão de obra não é incompatível com a tecnologia intensiva. Nas nossas terras, nunca o foi: as legiões de trabalhadores bolivianos que deixaram seus pulmões nas minas de Oruro na época de Simon Patiño, por exemplo, trabalhava em regime de escravidão assalariada mas com máquinas muito modernas. O barão do estanho soube combinar os mais altos níveis de tecnologia de sua época com mais baixos níveis de salário13. Em nossos dias, a importação da tecnologia das economias mais adiantadas, coincide com o processo de expropriação das empresas industriais de capital local por parte das todo-poderosas corporações multinacionais. 0 movimento de centralização do capital cumpre-se através de uma “queima impiedosa dos níveis empresariais obsoletos que, sem ser por acaso, são justamente os de propriedade nacional”14. A acelerada desnacionalização da indústria latino-americana traz consigo uma crescente dependência tecnológica. A tecnologia - chave de poder decisiva - no mundo capitalista, está monopolizada pelos centros metropolitanos. A tecnologia vem em segunda mão, mas estes centros cobram cópias como se fossem originais. O México, em 1970, pagou o dobro do que em 1968 pela importação de tecnologia. Entre 1965 e 1969, o Brasil duplicou os seus gastos; e foi isto o que também aconteceu com a Argentina, em relação ao mesmo período. O transplante de tecnologia aumenta as já bem nutridas dívidas externas e tem conseqüências devastadoras no mercado de trabalho. Num sistema organizado para a drenagem de lucros no exterior, mão-de-obra da empresa “tradicional”, vai perdendo oportunidades de emprego. Em troca de um duvidoso impulso dinamizador, no resto da economia, as ilhotas da indústria moderna sacrificam braços ao reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção. A existência de um gordo e crescente exército de desempregados facilita, por sua vez, o assassinato do valor real dos salários. 13 Até os documentos da CEPAL, falam agora de uma divisão internacional do trabalho. Dentro de alguns anos, conforme prevê a esperança dos técnicos, a América Latina talvez esteja exportando manufaturados na mesma medida em que exporta hoje matérias-primas e alimento. “As diferenças salariais entre países desenvolvidos e os em via de desenvolvimento - incluindo os da América Latina - podem induzir a uma nova divisão de atividades entre os países, deslocando, em função da competição, indústrias cujo custo de mão-de-obra seja muito importante - dos primeiros para os segundos. Os custos de trabalho da indústria manufatureira, por exemplo, são muito mais baixos no Brasil e no México do que nos Estados Unidos”15. Impulso do progresso ou aventura neocolonialista? O maquinário elétrico e não elétrico já figura entre os principais produtos de exportação do México. No Brasil, cresce a venda de veículos e armamentos para o exterior. Alguns países latino-americanos, vivem uma nova etapa de industrialização, induzida, e orientada em grande medida, pelas necessidades estrangeiras e pelos donos dos meios de produção estrangeiros. Não seria 13. Agustín Cueva, op. cit. cm 9. 14. ldem. 15. Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cit. em 11. 195 este mais um capítulo para acrescentar à nossa longa história de “desenvolvimento voltado para fora”? Nos mercados internacionais, os preços em constante ascensão, geralmente não correspondem aos “produtos manufaturados”, mas sim às mercadorias mais sofisticadas e de maior componente tecnológico, que são exclusividades das economias mais desenvolvidas. Venda o que venda, o principal produto de exportação da América Latina, são seus braços baratos. A nossa história não tem sido uma continua experiência de mutilação e desintegração disfarçada de desenvolvimento? Séculos atrás a conquista arrasou os solos para implantar cultivos de exportação e aniquilou populações indígenas no garimpo das covas e beiras de rio para satisfazer a demanda de prata e ouro de ultramar. A alimentação da população pré-colombiana, que pode sobreviver ao extermínio, piorou com o progresso alheio. Nos nossos dias, o povo do Peru produz farinha de peixe, muito rica em proteínas, para as vacas dos Estados Unidos e da Europa, mas as proteínas brilham pela sua ausência na dieta da maioria dos peruanos. A filial da Volkswagen na Suíça planta uma árvore por automóvel que vende - gentileza ecológica - enquanto no Brasil, ao mesmo tempo, a filial da Volkswagen arrasa centenas de hectares de matas que dedicará à produção intensiva de carne de exportação. 0 povo brasileiro vende cada vez mais carne ao estrangeiro e é rara a vez que pode comer carne. Não faz muito tempo que Darcy Ribeiro, numa conversa, me disse que uma república volkswagen não é diferente, no que é essencial, de uma república bananeira. Por dólar gerado pela exportação de bananas, apenas onze centavos ficam no país produtor16, e desses onze centavos, uma parte insignificante chega aos trabalhadores das plantações. As proporções serão alteradas quando um país latino-americano exporta automóveis? Os navios negreiros já não cruzam mais o oceano. Agora, os traficantes de escravos operam a partir do Ministério do Trabalho. Salários africanos, preços europeus. O que são os golpes de Estado na América Latina senão que sucessivos episódios de uma guerra de rapina? As flamantes ditaduras, de imediato, convidam as empresas estrangeiras para explorar a mão-de-obra local abundante e barata. O crédito é ilimitado, as isenções de impostos e os recursos naturais ficam ao alcance da mão. 14 Os empregados do plano de emergência do governo chileno, recebem salários equivalentes a trinta dólares por mês. Recebem, portanto, dois quilos de pão por dia. O salário mínimo no Uruguai e na Argentina eqüivale, atualmente, ao preço de seis quilos de café. O salário mínimo no Brasil é de sessenta dólares mensais, mas os bóia-frias, trabalhadores rurais ambulantes, cobram entre cinqüenta centavos e um dólar por dia de trabalho nas plantações de café, soja e outros cultivos de exportação. A forragem que as vacas comem no México, contém mais proteínas que o que comem os trabalhadores que delas se ocupam. A carne dessas vacas destina-se a umas poucas e privilegiadas bocas dentro do país e, sobretudo, para o mercado internacional. No amparo de uma generosa política de créditos e facilidades oficiais, floresce no México a agricultura de exportação, enquanto entre 1970 e 1976 baixou a quantidade de proteínas disponíveis por habitantes e nas zonas rurais, somente uma de cada cinco crianças tem peso e estatura normais17. Na Guatemala, o arroz, o milho e o feijão, destinados para o consumo interno estão abandonados à boa vontade de Deus, mas o café, o algodão e outros produtos de exportação, acamparam mais de oitenta e sete por cento de crédito. De cada dez famílias guatemaltecas que trabalham no cultivo e na colheita do café, apenas uma alimenta-se adequadamente segundo os 16. UNCTA D, "The Marketing and Distribution System for Bananas". Dezembro de 1974. 17. "Reflexões sobre a desnutrição no México", Comercio exterior, Banco Nacional de Comercio Exterior,S.A., vol. 28, nº 2. México, fevereiro de 1978. 196 níveis mínimos18. No Brasil, somente cinco por cento dos créditos agrícolas destinam-se para o arroz, feijão e mandioca - que constituem a dieta básica do brasileiro. O resto é canalizado para os produtos de exportação. Quando o preço internacional do açúcar foi derrubado recentemente, não eclodiu, como antes acontecia, uma maré de fome entre os camponeses de Cuba. Em Cuba já não existe mais a desnutrição. A elevação, quase simultânea, dos preços internacionais do café, ao contrário, não aliviou em nada a miséria crônica dos trabalhadores dos cafezais brasileiros. O aumento da cotação do café em 1976, - euforia ocasional provocada pelas geadas que arrasaram as colheitas brasileiras “não se refletiu diretamente nos salários”, foi como reconheceu um alto dirigente do Instituto Brasileiro do Café19. Na realidade, os cultivos de exportação, não são de per si incompatíveis com o bem-estar da população, nem contradizem, por si só, o desenvolvimento econômico “para dentro”. Afinal de contas, em Cuba, as vendas de açúcar para o exterior têm servido de alavanca para a criação de um mundo novo no qual todos têm acesso aos frutos do desenvolvimento e a solidariedade é o eixo das relações humanas. 15 Já se sabe quem são os condenados que pagam as crises de reajuste do sistema. Os preços da maioria dos produtos da América Latina baixam implacavelmente em relação aos preços dos produtos que compra dos países que monopolizam a tecnologia, o comércio, a indústria e o crédito. Para compensar a diferença, e fazer frente às obrigações para com o capital estrangeiro, torna-se necessário cobrir em quantidade o que se perde no preço. Dentro deste esquema, as ditaduras do Cone Sul cortaram pela metade os salários dos operários e converteram cada um dos centavos de produção em campo de trabalho forçado. Os operários também têm que compensar a queda do valor de sua forca de trabalho, que é o produto que eles vendem ao mercado. Os trabalhadores são obrigados a cobrir em quantidade de horas, o que perdem do poder aquisitivo do salário. Assim, são reproduzidas as leis do mercado internacional no micromundo da vida de cada trabalhador latino-americano. Para os trabalhadores que têm “a sorte” de contar com um emprego Fixo, as jornadas de oito horas só existem como letra morta das leis. Trabalha-se com freqüência dez, doze, até quatorze horas, e são muitos os que perderam os domingos. Ao mesmo tempo, multiplicaram-se os acidentes de trabalho: sangue humano ofertado nos altares da produtividade. Três exemplos de Fins de 1977 acontecidos no Uruguai: - Nas pedreiras da rede ferroviária, que produzem pedras e balastro, duplicam-se os rendimentos. No princípio da primavera, quinze operários morrem numa explosão. - Filas de desempregados diante de uma fábrica de fogos de artifício. Vários meninos na produção. Recordes são batidos. Em 20 de dezembro, uma explosão: cinco trabalhadores mortos e dezenas de feridos. - No dia 28 de setembro, às sete da manhã, os operários negam-se a entrar numa fábrica de conservas de peixe porque sentem um forte cheio de gás. São ameaçados: se não entram, perdem o emprego. Eles continuam se negando a entrar. São ameaçados: vamos chamar os soldados. A empresa já havia convocado o exército de outras vezes. Os operários entram. Quatro mortos e vários hospitalizados. Havia um escapamento de gás amoníaco20. 18. Roger Burbach e Patricia Flyn, "Agribusiness Targets; Latin America", NACLA, volume XII, nº 1 Nova York, janeiro-fevereiro de 1978. 19. Idem. 20. Dados de fontes sindicais e jornalísticas, publicados em Uruguay Informations, nºs 21 e 25, Paris. 197 16 Carolina Maria de Jesus nasceu no meio da sujeira e dos urubus. Cresceu, sofreu, trabalhou duro; amou homens, teve filhos. Num livrinho, anotava com letra ruim suas tarefas e seus dias. Um jornalista leu esses livros por acaso e Carolina Maria de Jesus converteu-se numa escritora famosa. Seu livro Quarto de Despejo, diário de cinco anos de vida num sórdido subúrbio da cidade de São Paulo, foi lido em quarenta países etraduzido para treze idiomas. Cinderela do Brasil, produto do consumo mundial, Carolina Maria de Jesus saiu da favela, correu mundo, foi entrevistada e fotografada, premiada pelos críticos, agasalhada pelos cavalheiros e recebida por presidentes. Passaram-se os anos. No início de 1977, numa madrugada de domingo, Carolina Maria de Jesus morreu em meio ao lixo e as urubus. Ninguém lembrava da mulher que escrevera: “A fome é a dinamite do corpo humano”. Ela, que havia vivido de restos, pôde ser, fugazmente, uma eleita. Foi permitido a ela sentar-se à mesa. Depois da sobremesa, rompeu-se o encanto. Enquanto seu sonho transcorria, o Brasil continuava sendo um país onde a cada dia, 100 trabalhadores ficam lesados por acidentes de trabalho e onde quatro de cada dez crianças que nascem, são obrigadas a converterem-se em mendigos, ladrões ou mágicos. Ainda que as estatísticas sorriam, as pessoas estão arruinadas. Em sistemas organizados ao contrário, quando a economia cresce, cresce com ela a injustiça social. No período de maior êxito do “milagre” brasileiro, aumentou a taxa de mortalidade infantil nos subúrbios da cidade mais rica do país. A súbita prosperidade do petróleo no Equador trouxe televisão a cores em vez de escolas e hospitais. As cidades vão inchando até explodirem. Em 1950, a América Latina tinha seis cidades com mais de um milhão de habitantes. Em 1980, terá vinte e cinco21. As vastas legiões de trabalhadores que o campo expulsa, compartilham, nas margens dos grandes centros urbanos, a mesma sorte que o sistema reserva aos jovens cidadãos que “sobram”. Aperfeiçoar-se - velhacaria latino-americana - as formas de sobrevivência dos caça-vidas. “O sistema produtivo vem mostrando uma visível insuficiência para gerar emprego produtivo, que absorva a crescente força de trabalho da região, especialmente, os grandes contingentes de mão-de-obra urbana...”22. Um estudo da Organização Mundial do Trabalho assinalava, faz pouco tempo, que na América Latina existem mais de 110 milhões de pessoas em condições de “grave pobreza”. Delas, setenta milhões podem ser consideradas “indigentes”23. Qual é a porcentagem da população que come menos do necessário? Na linguagem dos técnicos, aqueles que têm “orçamento inferior ao custo da alimentação mínima equilibrada”, são 43% dos colombianos, 42% da população brasileira, 49% da de Honduras, 31% dos mexicanos, 45% dos peruanos, 29% dos chilenos, 35% dos equatorianos24. Como afogar explosões de rebelião das grandes maiorias condenadas? Como prevenir essas possíveis explosões? Como evitar que essas maiorias sejam cada vez mais amplas se o sistema não funciona para elas? Excluindo-se a caridade, sobra a polícia. 21. 22. 23. 24. Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cit. em 11. Idem. OIT, "Emprego, crescimento e necessidades essenciais". Genebra, 1976. Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cil., em 11. 198 17 Nas nossas terras, a indústria do terror paga caro (como qualquer outra) pelo know-how estrangeiro. Compra-se e se aplica, em grande escala, a tecnologia norte-americana da repressão, experimentada nos quatro pontos cardeais do planeta. Mas, seria injusto não reconhecer certa capacidade criativa, neste campo de atividades, das classes dominantes latino-americanas. Nossas burguesias não foram capazes de um desenvolvimento econômico independente e suas tentativas de criação de uma industria nacional tiveram vôo de galinha - vôo curto e baixinho. Ao longo de nosso processo histórico, os donos do poder têm dado, de sobra, provas de sua falta de imaginação política e de sua esterilidade cultural. No entanto, têm sabido montar uma gigantesca máquina do medo e fizeram contribuições de cunho próprio à técnica do extermínio de pessoas e de idéias. Neste sentido, é reveladora a recente experiência dos países do rio da Prata. “Atarefa de desinfeção nos custará muito tempo”, advertiram, logo na entrada, os militares argentinos. As forças armadas foram sucessivamente convocadas pelas classes dominantes do Uruguai e da Argentina para esmagar as forças da mudança, arrancar suas raízes, perpetuar a ordem interna de privilégios e gerar condições econômicas e políticas sedutoras para o capital estrangeiro: terra arrasada, país em ordem, trabalhadores mansos e baratos. Não há nada mais em ordem que um cemitério. A população converte-se, de imediato, em inimigo interno. Qualquer sinal de vida, protesto ou mera dúvida, constitui um perigoso desafio partindo-se do ponto de vista da doutrina militar de segurança nacional. Assim, foram articulados complexos mecanismos de repressão e castigo. Uma profunda racionalidade esconde-se por baixo das aparências. Para operar eficazmente, a repressão tem de parecer arbitrária. Excetuando-se a respiração, toda atividade humana pode constituir delito. No Uruguai, a tortura é aplicada como sistema habitual de interrogatório: qualquer um pode ser sua vítima, e não apenas os suspeitos e os culpáveis por atos de oposição. Desta maneira, difunde-se o pânico da tortura entre todos os cidadãos, como um gás paralisante que invade casa por casa e infiltra-se na alma de cada cidadão. No Chile, a caça deixou um saldo de trinta mil mortos, mas na Argentina não se fuzila: seqüestra-se. As vítimas desaparecem. Os exércitos invisíveis da noite realizam a tarefa. Não há cadáveres, não há responsáveis. Assim, a matança - sempre oficiosa, nunca oficial - realiza-se com a maior impunidade. Assim é irradiada com mais potência a angústia coletiva. Ninguém presta contas, ninguém oferece explicações. Cada crime é uma dolorosa incerteza para os seres próximos à vítima e é também uma advertência para todos os demais. O terrorismo de Estado se propõe a paralisar, pelo medo, a população. No Uruguai, para obter trabalho ou conservá-lo é preciso contar coma boa aprovação dos militares*. Num país onde é tão difícil conseguir emprego fora dos quartéis e repartições congêneres, esta obrigação só serve para empurrar para o êxodo boa parte dos trezentos mil cidadãos fichados como esquerdistas. Isto também é útil para ameaçar o restante dos cidadãos. Os jornais de Montevidéu costumam publicar arrependimentos públicos e declarações de cidadãos que batem no peito à guisa de prevenção: “Nunca fui, não sou, não serei...” Na Argentina já não há necessidade de se proibir nenhum livro por decreto. O novo Código Penal sanciona, como sempre, o escritor e o editor de um livro que for considerado subversivo. Mas, além disto, castiga o impressor, para que ninguém se atreva a imprimir um texto simplesmente duvidoso, castiga o distribuidor e o livreiro, para que ninguém se *. (N.T.) Existe no Uruguai algo que corresponde ao nosso atestado de bons antecedentes. 199 atreva a vendê-lo e, como se fosse pouco, castiga o leitor, para que ninguém se atreva a lê-lo e muito menos guardá-lo. O consumidor de um livro, recebe, assim, o tratamento que a lei reserva para o consumidor de drogas25.No projeto de uma sociedade de surdo-mudos, cada cidadão deve converter-se em seu próprio Torquemada. No Uruguai, deixar de delatar o próximo é delito. Ao entrar na Universidade, os estudantes juram por escrito que denunciarão todo aquele que realize, no ambiente universitário, “qualquer atividade alheia às funções de estudo”. O estudante faz-se coresponsável de qualquer episódio que aconteça em sua presença. No projeto de uma sociedade de sonâmbulos, cada cidadão deve converter-se em seu próprio policial e no dos outros. Apesar disto, o sistema, com toda a razão desconfia. São cem mil os soldados e policiais, mas também são cem mil os informantes. Os espiões trabalham nas ruas, nos cafés, nos ônibus, nas fábricas, nos ginásios, nos escritórios e nas Universidades. Quem se queixar em voz alta de como está tão cara e dura a vida, vai parar na prisão: cometeu um “atentado contra a força moral das Forças Armadas”, coisa que é paga com três a seis anos de prisão. 18 No plebiscito de janeiro de 1978, o voto de sim a favor da ditadura de Pinochet era marcado com uma cruz debaixo da bandeira Chilena. O voto de não, por outro lado, foi marcado debaixo de um retângulo negro. O sistema quer confundir-se com o país. O sistema é o país, diz a propaganda oficial que dia e noite bombardeia os cidadãos. O inimigo do sistema é um traidor da pátria. A capacidade de indignação contra a injustiça e a vontade de mudar constituem provas da deserção. Em muitos países da América Latina, quem não está exilado para lá das fronteiras, vive exilado na própria terra. Porém, ao mesmo tempo que Pinochet celebrava sua vitória, a ditadura chamava de “ausência laboral coletiva” às greves que eclodiam em todo o Chile apesar do terror. A grande maioria de desaparecidos e seqüestrados na Argentina é constituída por operários que desenvolveram alguma atividade sindical. Na inesgotável imaginação popular, são geradas, sem cessar, novas formas de luta: o trabalho-tristeza, o trabalho-bronqueado; a solidariedade encontra novos canais para iludir o medo. Várias greves unânimes sucederam-se na Argentina ao longo de 1977, quando o perigo de perder a vida era tão certo como o risco de perder o trabalho. Não se destrói de uma penada o poder de contestação de uma classe obreira organizada e com longa tradição de luta. Em maio do mesmo ano, quando a ditadura uruguaia fez o balanço de seu programa de esvaziamento de consciência e castração coletiva, viu-se obrigada a reconhecer que “ainda restam no país trinta e sete por cento de cidadãos interessados pela política”26. Nestas terras, o que assistimos não é a infância selvagem do capitalismo, mas a sua cruenta decrepitude. O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É sua conseqüência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do desenvolvimento alheio e continua a eliminá-lo. Impotente pela sua função de servidão internacional, 25. No Uruguai, os inquisidores modernizaram-se. Curiosa mistura de Idade Média e senso capitalista de negócios. Os militares já não queimam livros: agora vendem-nos a indústrias do papel. As indústrias retalham-no, convertem-no em polpa de papel e devolvem-nos ao mercado consumidor. Não é verdade que Marx não esteja ao alcance do público. Não está em forma de livros. Está em forma de guardanapos de papel. 26. Entrevista à imprensa do presidente Aparício Méndez, em 21 de maio de 1977, em Paysandú."Estamos tratando de poupar o país da tragédia da paixão política", disse o presidente. "Os homens de bem não falam de ditaduras, não pensam em ditaduras nem reclamam direitos humanos". 200 moribundo desde que nasceu, o sistema tem pés de barro. Postula a si próprio como destino e gostaria de confundir-se com a eternidade. Toda memória é subversiva porque é diferente. Todo projeto de futuro também. Obrigam zumbi a comer sem sal: o sal, perigoso, poderia despertá-lo. O sistema encontra seu paradigma na imutável sociedade das formigas. Por isto se dá mal com a história dos homens: pelo muito que esta muda. E porque, na história dos homens, cada ato de destruição encontra sua resposta - cedo ou tarde - num ato de criação. EDUARDO GALEANO Calella, Barcelona, abril de 1978. 201 O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola AMÉRICA LATINA NO OLHO DA TORMENTA MUNDIAL Osvaldo Coggiola (USP) A crise econômica mundial, e suas decorrências políticas, põem a América Latina no limiar de uma virada política de muito maior alcance do que aquela que, na virada do século, levou à ascensão dos governos de esquerda. O secretário de Estado de George W. Bush para América Latina (Thomas Shannon) foi confirmado no cargo por Barack Obama. Mais importante do que isso – um sinal claro de continuísmo (não esqueçamos que Shannon foi o “articulador à distância” da tentativa golpista contra Evo Morales) – foi o elogio a Shannon tecido pelo porta-voz da política externa do governo brasileiro. Shannon anunciou que dará uma nova oportunidade de reaproximação com os EUA à Venezuela de Chávez.1 Os próprios Fidel e Raúl Castro teceram elogios à personalidade de Obama. Desenhar-se-ia assim o terreno de uma grande entente política, cuja realização, no entanto, apresenta os mesmos problemas da quadratura do círculo.2 Evo Morales mandou para casa, em finais de 2008, o embaixador dos EUA na Bolívia, o bushiano Philip Goldberg, conspirador golpista 3 internacional profissional, no apagar das luzes da administração do petroleiro texano. A possibilidade dos EUA pressionarem e intervirem abertamente no continente (seu “quintal” histórico) diminuiu e diminui ao ritmo de seu declínio econômico e da crise de sua intervenção militar em outras regiões (Oriente Médio, Ásia Central). Limitados para recorrer aos clássicos golpes militares, os EUA, já com Bush, passaram a usar na América Latina o chamado soft power,4 que inclui a maior vergonha do continente: a ocupação militar do Haiti 1 As declarações de Chávez a respeito da vitória de Obama foram contraditórias. A base para uma “aproximação” dos EUA com Chávez (depois da catástrofe diplomática dos EUA na Venezuela, em 2002) seria uma chantagem econômica. A queda dos preços do petróleo ameaça a sobrevivência dos programas sociais do governo venezuelano. Para aumentar a produção, o governo precisaria das companhias de petróleo estrangeiras. Em face do colapso dos preços e de uma queda na produção doméstica, o governo começou a solicitar ofertas de algumas das maiores companhias de petróleo, entre elas Chevron, Royal Dutch-Shell e Total, acenando com o acesso das mesmas a algumas das suas maiores reservas de petróleo, para escorar a PDVSA. Nos últimos anos, Chávez deu preferência a parcerias com companhias nacionais de petróleo de países como Irã, China e Bielo-Rússia. Mas essas joint ventures não conseguiram reverter o declínio da produção local. O processo ganhou impulso com o início da avaliação dos planos das companhias interessadas para novas áreas na Faixa do Orinoco, com estimados 235 bilhões de barris de petróleo de reserva. Mais de US$ 20 bilhões em investimento poderiam ser necessários para montar os complexos capazes de produzir 1,2 milhão de barris de petróleo por dia. 2 O time de Obama para América Latina não deixa enxergar nenhuma renovação ou “novidade”. Seus membros principais (Dan Restrepo, Robert Gelbard, Jeffrey Davidow, Arturo Valenzuela, Vicki Huddleston), onde abundam sobrenomes “latinos”, são veteranos da administração de Bill Clinton, que já se exerceram nos cargos respectivos. 3 Sem esquecer a ruptura de relações diplomáticas com Israel levada adiante pelos governos de Evo Morales e Chávez durante o massacre em Gaza. 4 Que não se contrapõe ao uso da força, mas prefere o uso de “intermediários”, como no caso do Haiti, ou da agressão militar colombiana contra Equador, que terminou numa vitória diplomática dos agressores (e dos EUA). Disse Modesto Guerrero: “Con el final del conflicto en la Asamblea de la O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola por tropas “latino-americanas”, que realizam na desgraçada ilha do Caribe o serviço policial que os EUA, embrenhados até o pescoço no Iraque e no Afeganistão, estavam impossibilitados de fazer. Barack Obama ordenou a desativação da prisão militar de Guantánamo (Cuba), centro de torturas do exército imperialista, mas nem cogita em devolver o território da base – que há mais de um século inspirou a mais cubana de todas as poesias a José Martí – a Cuba. Nem voltar atrás na reativação dos exercícios militares da IV Frota, encarregada do patrulhamento da costa atlântica de América Latina, et pour cause: a Frota Naval do comando militar dos EUA está de olho na descoberta de imensas reservas de petróleo e gás natural no mar brasileiro, numa faixa que se estende do litoral de Santa Catarina ao do Espírito Santo, situada a 7 mil metros abaixo da superfície do mar, na camada pré-sal. Segundo estimativas, as reservas têm 50 bilhões de barris de petróleo e gás. As descobertas podem colocar o Brasil como detentor da terceira maior reserva do mundo, e, somadas às reservas da Venezuela, da Bolívia e do Equador, fortalecem a posição sul-americana em relação às potências econômicas. Por isso, as garras militares do imperialismo estão afiadas e prontas para o uso. A bancarrota capitalista, porém, também mina as bases econômicas das experiências reformistas ou nacionalistas baseadas em concessões sociais, tornadas possíveis por uma conjuntura econômica internacional favorável, que hoje se volatiliza.5 Isso também afeta os governos “neoliberais”, agências diretas do capital financeiro internacional. A América Latina entra em uma nova etapa de lutas nacionais e de classes. Toda a nossa história política esteve sempre ligada ou determinada pelas convulsões da economia e da política mundiais. A crise em curso irrompe na América Latina depois de uma série de bancarrotas capitalistas, crises políticas e levantamentos sociais, um terreno já preparado para uma forte tensão e instabilidade políticas. O cenário político latino-americano esteve dominado, na última década, por profundas crises políticas e por enormes mobilizações de massas, classistas e antiimperialistas, em especial nos países andinos. E também pelos choques entre os governos nacionalistas “radicais” que surgiram dessas crises, e os EUA. A emergência da Organización de Estados Americanos (OEA) y la reunión del Grupo de Río realizadas en forma simultánea (el) resultado fue una contradicción que le puede costar caro al continente. Uribe fue salvado y con él, la vigencia de la "Doctrina Patriota" del actual grupo dominante en Washington. Lo cualitativamente nuevo es que esta vez esa Doctrina agresiva la aplica un Estado latinoamericano contra otro igual”. O Estado terrorista, que possui o segundo exército do sub-continente (depois do brasileiro), foi posto a salvo pela diplomacia “pacifista” internacional. 5 Simbolicamente, uma das bandeiras históricas da soberania nacional latino-americana entrou em colapso com a crise mundial. O presidente panamenho Martín Torrijos anunciou que o país assumiu um empréstimo de dois bilhões de dólares para financiar a ampliação do Canal de Panamá, mas esta se enfrenta à pior crise do comércio marítimo mundial desde a década de 1930. A empresa Lloyd’s List informou que cinco empresas de transporte marítimo de conteiners reduziram suas rotas devido à recessão econômica mundial. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola esquerda na América Latina é geralmente localizada em um período que se estende de 1998 (eleição de Chávez para a presidência da Venezuela) até 2008 (eleição de Fernando Lugo para a presidência do Paraguai, pondo fim a seis décadas de governo do Partido Colorado), passando pelas eleições de Lula, Michelle Bachelet, Evo Morales, Kirchner, Daniel Ortega, Rafael Correa (e sendo previsível, para o futuro imediato, a vitória eleitoral da FMLN em El Salvador). Essa “onda” de esquerda é também explicada pelo fracasso econômico dos governos neoliberais, seguidores da cartilha do FMI, sendo a bancarrota argentina de finais de 2001 seu exemplo acabado. O processo foi mais complexo, e combinou a crise econômica com a perda de base política dos partidos tradicionais, nacionalistas ou “liberais”. O neoliberalismo, com as privatizações maciças, a pressão pela abertura profunda dos mercados, em especial os do ex “bloco socialista”, a estratégia do "Consenso de Washington", foi a expressão da procura de uma saída para a massa de capital financeiro internacional acumulado desde antes da crise dos anos setenta. Não era uma “ofensiva”, mas uma política de crise, o que explica privatizações absolutamente aventureiras, como as dos serviços de água de Peru e Bolívia, que desencadearam rebeliões populares massivas. Foi o impasse histórico do capital a escala internacional o que deu a base para uma virada política de grande amplidão, com a emergência de processos de autonomia nacional, incluindo (em especial nos países andinos) o papel inédito das massas camponesas e indígenas. Na emergência desses processos confluiu a derrubada dos partidos políticos tradicionais, que foram a garantia da estabilidade capitalista durante décadas, com a crise mundial das relações econômicas capitalistas. A crise política dos governos neoliberais (identificados com a estabilização monetária baseada na âncora cambial, ou na dolarização) remonta a, pelo menos, uma década antes da ascensão da esquerda. Ela já estava presente no “caracazo” venezuelano de 1989, nas puebladas argentinas de início da década de 90, na tentativa golpista do coronel Hugo Chávez em 1992,6 no levantamento camponês-zapatista de 1994 (ano, também, do “efeito tequila”, com a brutal fuga de capitais e desvalorização do peso mexicano), e muitas outras lutas espalhadas pelo continente. As frágeis bases econômicas dos governos neoliberais, que sucederam às ditaduras militares (e que faziam da “democracia” reconquistada sua bandeira de sustentação política) não resistiram à turbulência econômica mundial da década de 1990, e à sua erosão provocada pelo aguçamento da luta de classes em cada país. O processo revolucionário não achou de imediato, como nunca acontece, a expressão política adequada ao movimento histórico que representa, sendo submetido a um choque de tendências, criado pela crise mundial e pela crise das relações internacionais, no Mercosul, 6 Não é demais lembrar que quase toda a esquerda latino-americana, inclusive a que hoje desfila sob os retratos do coronel venezuelano, repudiou a tentativa golpista de Chávez de 1992, e o fez “em defesa das instituições democráticas” da Venezuela - então encabeçadas pelos social-democratas de Carlos Andrés Pérez (ADN) e os democrata cristãos de Rafael Caldera (COPEI) - podres e corruptas até a medula dos ossos. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola no CAN (Comunidade Andina) e na América Central, ou na questão dramática da imigração ilegal entre México e os EUA. Dessa crise surgiu, na América Latina, uma experiência política única em sua história, combinando a emergência de governos nacionalistas militares ou indígenas, com apoio da esquerda, com a instalação de governos de centro-esquerda (ou “progressistas”) integrados pela esquerda histórica, como no caso do governo do PT no Brasil ou o da Frente Ampla no Uruguai. O marco histórico recente da radicalização política na América Latina foi a crise revolucionária desatada na Argentina a partir de dezembro de 2001, que combinou a bancarrota capitalista com uma reação excepcional e organizada das massas populares. Em seu rasto se produziram a vitória eleitoral de Lula e o PT no Brasil, em finais de 2002; as insurreições populares na Bolívia, em 2003 e 2005, a eleição de Evo Morales nesse país; a radicalização do processo venezuelano que, graças à importância petroleiro-energética do país caribenho – sul-americano, ganhou projeção continental e mundial; a continuidade, em fim, da luta guerrilheira na Colômbia. Os primeiros meses do século XXI testemunharam um aprofundamento da luta de classes, de crises políticas de fundo e uma febril intervenção política dos EUA. O levantamento indígena-camponês em Equador que provocou a queda de Mahuad; a longa e combativa greve dos estudantes da UNAM (Universidade Nacional Autônoma) no México; as grandes mobilizações contra Fujimori no Peru; as massivas mobilizações de camponeses sem terra no Brasil e no Paraguai; as greves gerais e as mobilizações dos “piqueteiros” na Argentina; a “guerra da água” em Cochabamba (Bolívia), que rapidamente se converteu em rebelião nacional, estendendo-se até às bases policiais, que se sublevaram em La Paz; a rebelião contra a privatização da eletricidade na Costa Rica, a pueblada contra os “tarifaços” em Honduras; todas essas mobilizações e crises políticas formavam um quadro radicalizado na América Latina. A onda de mobilizações populares não enfrentava ditaduras militares, mas os regimes “democráticos” desenhados pelos EUA e as burguesias locais. Nesses processos surgiram formas de organização avançadas de luta, em especial no Equador, Bolívia e Argentina. Em Equador, sobre a base do levantamento de 21 de janeiro de 2000, se conformou um Parlamento Popular. Na Bolívia, a Coordinadora por el Agua y la Vida centralizou a rebelião de Cochabamba; em setembro de 2000 uma luta nacional camponesa comoveu o país. Na Argentina, greves gerais e o ascendente movimento “piqueteiro” generalizaram a arma dos piquetes e cortes de estrada. O período de maior mobilização política continental se registrou entre 1999 e 2003, ou seja, até a insurreição boliviana que derrubou o governo de Gonzalo Sánchez de Losada, que pretendia vender a preço vil o gás e o petróleo bolivianos a companhias dos EUA. Nesse período houve novas insurreições equatorianas, a derrota do golpe “esquálido” (pró-EUA) na Venezuela; depois, o fracasso do lock out patronal petroleiro nesse país e, sobretudo, o argentinazo de dezembro de 2001. Logo depois grande parte da esquerda, mas de modo algum obedecendo a uma estratégia única, chegou ao governo de seus países, diretamente O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola ou em coalizões, propulsada pela crise política e a bancarrota econômica continentais. As burguesias locais e os próprios EUA tiveram que aceitar a mudança política, a “virada à esquerda”, que antes denunciavam como o início do fim do mundo. As mobilizações precedentes tinham, objetivamente, um caráter revolucionário. Diante da ascensão dessa heterogênea esquerda, o mexicano Jorge Castañeda (ex ministro do “presidente Coca-Cola” do México, Vicente Fox) buscou acalmar os ânimos (assustados) dos porta-vozes e defensores do “capitalismo globalizado”, afirmando que, na realidade, havia duas esquerdas na América Latina: a primeira “com raízes radicais, é hoje moderna e aberta”, a segunda seria “fechada e fortemente populista” (nem é preciso dizer de quem ele estava falando). E concluía recomendando ao governo dos EUA “uma ação mais ousada, uma abordagem de estadista”, que consistiria em “fomentar a esquerda correta”, “distinguir a esquerda sensata da irresponsável, apoiar a primeira e conter a segunda”. Para George Bush, que destravara as negociações sobre a ALCA junto com o presidente Lula, tomando nota de seu papel moderador (assim como de Kirchner) na Venezuela e na Bolívia, isto não era novidade. Mas, depois de um período de enfrentamentos locais e internacionais, os regimes mais “radicais”, o bolivariano e o indigenismo andino, chegaram a (instáveis) compromissos internacionais e com a burguesia local, disciplinando a rebelião popular: Chávez chamou os venezuelanos a “voltar para casa”, depois da derrota do golpe direitista de abril de 2002, evitando a mobilização popular, durante o lock out petroleiro ulterior. O ímpeto popular espetacular nos países andinos foi contido para garantir a estabilidade do Estado. As chancelarias das metrópoles imperiais, e algumas latino-americanas (Brasil e Argentina, principalmente) desenvolveram uma pressão ativa para que os “nacionalistas radicais” contivessem os processos populares. Isto foi também possível porque, a partir de finais de 2002, a retomada do comercio externo e da produção local, junto com o crescimento dos recursos fiscais, graças a um ciclo comercial internacional favorável às matérias primas latino-americanas, serviu ao conjunto dos governos da região (inclusive os neoliberais) para lubrificar os antagonismos sociais. Desde 2003-2004 se produziu, de conjunto, um refluxo na mobilização de massas. Os governos nacionalistas conseguiram administrar e canalizar a pressão popular para neutralizar à oposição de direita, como fez Evo Morales com o bloqueio indígena e camponês de Santa Cruz de la Sierra, em resposta ao levantamento golpista-separatista dos prefeitos da Meia Lua do Oriente boliviano. Até hoje, os regimes nacionalistas propiciam mobilizações para equilibrar as pressões da direita local, quando têm confiança de que podem enquadrálas dentro de certos limites. Abriu-se, desse modo, uma espécie de coexistência, mais ou menos pacífica, mas também mais ou menos instável, entre os imperialismos dos EUA e da Europa e os governos nacionalistas. O governo de Lula tem sido a engrenagem mais importante dessa coexistência. Os O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola EUA, já a partir de Bush (isto é, sem esperar a Obama, que vai dar continuidade a essa política) respaldou o método da domesticação dos movimentos nacionalistas (em vez dos golpes cívico-militares, como num passado ainda bem recente) para brecar as crises revolucionárias do período precedente. A Frente Popular do PT, no Brasil, foi peça decisiva no desenho da política norte-americana na América do Sul, por ter desmobilizado o proletariado brasileiro (contrapesando assim, pelo enorme peso econômico e político do Brasil, e pela projeção simbólica continental da figura do ex metalúrgico, as lutas populares em outras nações), e por ter intervindo ativamente na contenção da radicalização “andina”, o que não lhe poupou certos conflitos derivados dos interesses específicos do Brasil nesses países (especificamente com Bolívia, Equador e Paraguai). A burguesia brasileira e os capitais estrangeiros instalados no Brasil investiram pesadamente nas nações vizinhas, em especial em petróleo, obras públicas e siderurgia, e por isso se viram obrigados a desenhar sua própria política nesses países, em função de seus interesses (multi)nacionais. Quando se afirma que o governo Lula faz uma espécie de “meio de campo” entre os EUA e os regimes “radicais” (Chávez, Evo ou Correa), função que serviria como “escudo protetor” destes últimos diante do colosso do Norte, está se dizendo muito mais do que se pensa. A função de intermediário, no mundo real, nunca é neutra. O termo “meio de campo” designa, assim, o que, em tempos de menor genuflexão ideológica, era vulgarmente chamado de “bombeiro”. Ricardo Sennes, escrevendo para uma revista do establishment imperial, chamou as relações Brasil-Estados Unidos de “um acordo tácito”. A fase de relativo refluxo das lutas populares latino-americanas, a partir de 2004, condicionou a sucessão presidencial no México e a comuna de Oaxaca;7 e a crise e reinício de grandes lutas estudantis e mineiras no Chile (onde, em novembro de 2008, houve uma formidável greve dos 400 mil funcionários públicos) e no Peru, que estenderam o cenário da mobilização. A experiência mexicana marca provavelmente o declínio do PRD (Partido da Revolução Democrática) e do zapatismo mexicanos, que não conseguiram desenvolver a 7 No segundo semestre de 2006, no estado do interior do México, Oaxaca viveu sem governador, sem prefeito, sem Justiça e sem polícia por quase seis meses. Até o final de outubro, 10 mil manifestantes ocuparam prédios públicos e emissoras de rádio, além de acamparem nas principais praças da cidade capital do Estado, no sul do país. A ocupação começou com uma greve de professores em maio e culminou em um levante rebelde. Blindados e centenas de policiais federais foram deslocados para Oaxaca, ocupando o mesmo espaço antes dominado pelos rebeldes. A Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) exigiu a renúncia do governador do Estado, Ulises Ruiz. A cidade amanheceu no 29 de outubro cercada por tropas federais. Mas também por barricadas e trincheiras de pneus, que serviam de proteção para os manifestantes dispostos a resistir. A correlação de forças foi desfavorável aos manifestantes. Durante todo o dia, cerca de 4 mil militares, com tanques e helicópteros, desataram uma violenta repressão sobre os professores, indígenas, desempregados, sindicalistas e estudantes. Os choques deixaram como saldo três mortos, incluindo um jovem de 14 anos, e vários feridos. O desmonte da ocupação, que se mantinha por cinco meses, tinha tido início no dia 27, quando paramilitares ligados ao governo de Ulises Ruiz atiraram contra as barricadas dos manifestantes. Nesse dia, dezenas de pessoas ficaram feridas e um voluntário da rede Indymedia, o norte-americano Brad Will, foi morto. Com o isolamento da “Comuna de Oaxaca” Ruiz, que sumiu por quase seis meses da cidade ocupada, encorajado pela maciça presença policial, promoveu uma autêntica caça às bruxas contra os líderes da insurreição. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola vasta oposição popular a escandalosa fraude eleitoral que levou Calderón ao governo, e de tirar do isolamento o levantamento popular em Oaxaca. No Chile, as lutas estudantis e as greves mineiras foram isoladas pela burocracia da CUT, do partido comunista. No quadro de refluxo, sob as ordens de Álvaro Uribe, os militares colombianos ultrapassaram a fronteira equatoriana e mataram 17 guerrilheiros, entre eles Raúl Reyes, tido como o número dois das FARC, que se empenhou nas libertações de reféns políticos. Os presidentes Rafael Correa e Hugo Chávez enviaram tropas para a fronteira com a Colômbia. Correa caracterizou a operação do exército de Uribe como "a pior agressão que o Equador já sofreu da Colômbia" e solicitou uma reunião de emergência da Organização de Estados Americanos (OEA) e da Comunidade Andina de Nações (CAN) para tratar do assunto. Uribe era o principal aliado de George W. Bush na região, defendendo os acordos de livre-comércio e com laços estreitos com o Pentágono, em operações como o Plano Patriota e Plano Colômbia, embora fossem mais que conhecidas suas ligações com narcotraficantes e grupos paramilitares. Os dados da conjuntura política latino-americana começaram a mudar drasticamente com a crise econômica mundial. Transcorrida mais de uma década, as experiências nacionalistas fracassam na tentativa de estruturar um Estado nacional independente, e de iniciar um processo de industrialização capitalista autônomo, destruindo a supremacia do capital financeiro. Não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma etapa de transição nesse sentido, sob hegemonia do Estado. Em vez disso, criaram uma 8 “boliburguesia” (chamada na Venezuela de “boligarcas”), ou o “capitalismo de amigos” da família Kirchner, através da burocracia governamental (que sangram financeiramente o Estado). Nas nacionalizações realizadas, os capitalistas (externos e internos) receberam fortes compensações, até maiores do valor em Bolsa de Valores de seus capitais. Em nenhum caso revolucionaram a gestão econômica, através do controle ou gestão coletiva da propriedade nacionalizada. As nacionalizações não tocaram os bancos, a gestão capitalista da economia geral. O uso dos recursos fiscais extraordinários para compensar os capitais nacionalizados acabou bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico independente. O capital estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial, retornou sob a forma de capital financeiro, usando as indenizações para a compra da dívida pública. Os projetos de “união latino-americana” agitados pelo nacionalismo tampouco vão muito longe, e até retrocedem. Para Eduardo Gudynas: La Comunidad Andina aparece fracturada por aquellos que apuestan a los tratados de libre comercio (Colombia y Perú) y los que buscan un camino alternativo (Ecuador y Bolivia). EI comercio dentro de la CAN se ha mantenido en la modesta franja del 10% del total de las 8 E não se trata em absoluto de uma burguesia “industrialista”, “produtiva” ou antiimperialista. Informa o correspondente do Financial Times em Caracas que “embora Chávez defina seu credo político como socialismo do século XXI, alguns capitalistas, especialmente os do setor de commodities e aqueles que se beneficiam das distorções econômicas, vêm florescendo – bancos mais especialmente”. Lamentavelmente, não é nenhuma calúnia que familiares de Chávez se tornaram proprietários de grandes fazendas. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola exportaciones (el más bajo en toda América Latina); no logra conformarse una zona de libre comercio efectiva, y hay muchas dudas sobre su capacidad para negociar como un bloque frente a la Unión Europea. En el Mercosur también existen tensiones (la más conocida entre Argentina y Uruguay, y la más reciente entre Brasil y Paraguay) el comercio entre los socios se ha mantenido alrededor del 15% de las exportaciones totales. Parece ser que no se aprobará el Código Aduanero, mientras que las últimas propuestas argentinas de protección comercial fueron rechazadas por los demás socios. EI Mercado Común Centroamericano tiene algunos problemas similares, y está tensionado por el tratado de libre comercio con los Estados Unidos. Como por un lado los cuatros socios de la CAN, y por el otro los cuatro miembros plenos del Mercosur, navegan entre las más diversas tensiones y conflictos, inevitablemente esta problemática se repite dentro de la Unión de Naciones de Suramérica (UNASUR) (que) es la continuación de la Comunidad Sudamericana de Naciones, y supuestamente sería la profundización de aquel proyecto como una "unión". Pero un examen desapasionado deja en evidencia los contrastes, ya que su tratado constitutivo renuncia a varios de los propósitos originales de la Comunidad Sudamericana. Si bien los gobiernos aceptaron usar el título de "Unión de Naciones", postulado por Hugo Chávez, el resultado final es más modesto… Un consejo de defensa sudamericana (algo así como una OTAN regional), dista mucho de las demandas de la sociedad civil por "otra integración"… La mayoría de los gobiernos son progresistas y defienden fuertes discursos integracionistas, pero a la vez mantienen viejas formas de nacionalismo, apelando a modelos de desarrollo convencionales de base extractivista, cayendo en competir en los mercados globales y en disputas fronterizas por el manejo de recursos naturales. Esto se está convirtiendo en un obstáculo muy importante para la integración… No se puede plantear una "unión" entre países; si todos ellos exportan materias primas hacia los mercados globales y en la práctica no tienen políticas productivas comunes. La idea de "América Latina y el Caribe", como espacio de integración, en los últimos años cayó a un segundo plano. La UNASUR, como el más ambicioso programa de integración en la región, carga con la limitación de contribuir al desvanecimiento de la aspiración de una integración que cubra toda América Latina y el Caribe. (GUDYNAS, 2008) Ou seja, o nacionalismo burguês ou pequeno burguês não consegue superar as limitações localistas e a concorrência mútua das burguesias do continente. A proposta de “integração dos exércitos”, por outro lado, é reacionária: por mais nacionalistas que (circunstancialmente) sejam, as castas militares não deixam de ser um corpo alheio a qualquer controle social, e até a qualquer controle real por parte das instituições ditas representativas. Os sucessos econômicos da última década, quando, segundo os próprios experts da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), “América Latina viveu uma grande festa macroeconômica”, foram relativos. Houve altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com superávits. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza (pelo menos estatisticamente) durante os últimos cinco anos.9 O retrocesso da pobreza foi especialmente importante no Brasil, onde os programas sociais “focalizados” permitiram uma diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória 9 Na América Latina, a generalização de iniciativas de ajuda social de caráter setorial e emergencial remonta à década de 1990, quando o impacto da chamada globalização somou-se às conseqüências da “década perdida” (1980), gerando um panorama de desemprego e pobreza social generalizados. Segundo estatísticas oficiais, numa população de 530 milhões de habitantes, América Latina contava com 200 milhões de pobres, e 80 milhões de pessoas padecendo fome. Iniciativas como o Plan Trabajar da Argentina, o Bonosol da Bolívia ou o Bolsa Família do Brasil, foram adotadas por governos do mais diverso signo político. Esses programas são tidos como responsáveis pela estabilidade dos regimes políticos da região. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola pouco alterada da concentração de renda e, ao mesmo tempo, com uma diminuição da renda média, uma diminuição também da remuneração média do trabalho assalariado, e um grande incremento das fontes de renda não vinculadas ao trabalho, nas camadas mais pobres. A política geral do governo Lula não provocou uma inflexão na tendência histórica: a remuneração do trabalho tem um peso na renda nacional de 39,1%; em inícios da década de 1980, ela superava 50%. As condições criadas, de retrocesso relativo da pobreza mais acentuada, se encontraram vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura, muito mais que a mudanças de natureza estrutural na produção e na distribuição de renda. A constituição, finalmente, de uma população cuja sobrevivência depende de programas oficiais de ajuda social, não incorporados à estrutura institucional do país, se configurou como um paliativo de base instável. A principal das reformas distributivas do governo Lula, a reforma agrária, foi frustrada. Entre 2003 e 2007, o governo Lula assentou 163 mil famílias referentes a novos assentamentos: cumpriu somente 30% da meta de 550 mil famílias (meta conservadora criticada pelos movimentos camponeses) que tinha prometido. Não cumpriu também a regulação fundiária de 500 mil posses, pois regularizou só a situação de 113 mil famílias, atingindo 23% da meta. Há também 171 mil famílias referentes à reordenação fundiária, ou seja, a situação de regularização em assentamentos antigos, e a inclusão de cerca de 2 mil famílias referentes a reassentamentos de atingidos por barragens, o que não se trata de reforma agrária. O início “oficial” da crise mundial, em 2008, no entanto, multiplicou as declarações otimistas dos governos. América Latina encararia a crise mundial com mais de 75% do PIB regional com classificações de risco de crédito dentro do "grau de investimento", algo nunca ocorrido no passado. Em 2008, a região apresentava solvência, com 70% de sua dívida coberta por reservas internacionais - patamar bem acima dos índices verificados no Leste Europeu, por exemplo. Durante o período 2003-2007, América Latina recebeu um volume recorde de investimentos estrangeiros, superior a US$ 300 bilhões. Suas multinacionais lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos, inclusive em países desenvolvidos. Um fator muito alardeado foi a redução drástica das dívidas denominadas em dólares. Mas isto ocultou a natureza real do processo econômico, já embutida na valorização monetária propiciada pela “estabilização”. A dívida externa foi “zerada”, a partir do fato de que as reservas internacionais do país superaram o montante da divida externa, pública e privada, o que criou a fantasia da superação da dependência financeira externa. Mas o endividamento assumiu outras características. O endividamento de um país escancarado financeiramente à livre movimentação cambial de empresas estrangeiras e nacionais, não pode ser aferido apenas pela dívida externa formal, em títulos e contratos do governo e de empresas privadas. A dívida real, passível de ser saldada com moeda conversível, deve ser O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola avaliada em conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, a dívida mobiliária federal, por ser hoje viável a troca de títulos da dívida externa por papéis da dívida pública do Tesouro brasileiro, o que, além de muito lucrativo para os credores desses papéis, é prejudicial para as finanças públicas. Um título público brasileiro, que vence em 2045, oferece 7,5% de interesse por cima da inflação, o mesmo título do Japão paga somente 1%; tomar emprestado em Tókio para investir em São Paulo converteu-se no “negócio da China” para os bancos que operam no Brasil. As quedas espetaculares que afetaram o Bovespa, em reação às quedas internacionais, foram e são a manifestação da vulnerabilidade financeira do país. A revalorização do yen, nos últimos meses, encareceu os empréstimos que alavancam os investimentos no Brasil. A demolição dos “mercados emergentes”, Brasil incluído, está em curso. Antes, houve uma expressiva formação de reservas internacionais pelo Brasil, em decorrência dos saldos comerciais obtidos pela alta de preços - puxada pelo crescimento da demanda mundial de commodities - de produtos com forte peso nas exportações, e também pelo fato da taxa básica de juros brasileira – base da remuneração dos títulos públicos - ser muito elevada. Isto fez com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios com os papéis da dívida pública brasileira. Alimentou também a ciranda financeira: tornou-se excelente negócio – para grandes investidores – captar recursos no exterior, a taxas mais baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais elevadas, na dívida pública interna. O governo Lula isentou os fundos institucionais estrangeiros, que aplicassem recursos em títulos públicos, do imposto de renda sobre os rendimentos. Com isso, aumentou a entrada de recursos em moeda forte no país, fazendo com que as reservas crescessem. Mas o custo financeiro é elevadíssimo: a remuneração dos credores dessa dívida é de 12% reais ao ano, uma carga de juros crescente e impagável. A dívida interna em títulos cresceu sem parar, ultrapassando R$ 1,3 trilhão, inviabilizando o orçamento público como fonte de recursos para o Estado e para a realização de investimentos na infra-estrutura e nas políticas sociais. Com a expressiva entrada de dólares no país, e a conseqüente valorização do real, tornou-se bom negócio para as empresas privadas anteciparem os pagamentos de dívidas acumuladas em moeda estrangeira, e o acúmulo de reservas teve um custo elevado para o Estado. O passivo externo do país é maior do que aparece. Com a abertura financeira, assistimos também uma acelerada desnacionalização das empresas. Os lucros e dividendos são crescentemente transferidos ao exterior. Com o barateamento das importações e as exportações menos competitivas, os resultados das contas externas começam a apresentar uma inflexão importante já em 2007, com um déficit - o primeiro desde 2003 - de US$ 1,17 bilhão. O Brasil voltou a apresentar déficit nas transações correntes em 2008, US$ 4 bilhões. Com a crise, as contradições ocultas aparecem. Todas as grandes economias da OCDE estão em recessão, e a Ásia, em desaceleração. As economias latino-americanas começam a se aproximar da inadimplência, em especial no âmbito empresarial. A crise O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola mundial possui mecanismos diretos de transmissão, vinculados à contração da demanda mundial: o comércio externo e as matérias-primas.10 Do ponto de vista comercial, a dependência da região em relação aos EUA e Europa, regiões que estão em recessão, é grande. Mais de 65% das exportações latino-americanas dirigem-se a essas duas regiões,11 com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Alguns países latino-americanos estão mais expostos, o caso do México, cujo comércio é totalmente dependente dos EUA (que consome 85% de suas exportações). E as economias continuam muito dependentes da venda de matérias-primas (que representam mais de 60% das exportações da América Latina), todos os países ver-se-ão afetados negativamente pelas baixas do petróleo, do cobre ou da soja. As contas nacionais paulatinamente irão se ressentir de arrecadações menores. E a situação do mercado mundial consente cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de remessas, aplicações e investimentos diretos estão em queda, enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em 2009 deverão ser dominadas pelos países da OCDE (estima-se que os EUA poderão lançar mais de US$ 2 trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE), deixando pouco (ou nenhum) espaço para os “emergentes”. A dependência financeira da região é a sua grande vulnerabilidade, somada ao escasso desenvolvimento do mercado interno e à crescente fuga de capitais, vinculada aos mecanismos generalizados de “desalavancagem” e de aversão ao risco, que provocam uma fuga em direção aos ativos e países “mais seguros”, um fator de crise ligado ao setor bancário (nos anos 90, considerou-se que a forte internacionalização do sistema financeiro era positiva para fugir das crises: hoje verifica-se exatamente o contrário...) Nos países favorecidos pelas exportações de combustível (gás e petróleo), o nacionalismo usou as nacionalizações, não para transformar os trabalhadores em classe 10 A dependência em relação às exportações primárias não é só um fato, mas também uma escolha. Segundo Gudynas: “(Os países latino-americanos) disfrutaron en el pasado de un excelente escenario económico, con un alto crecimiento económico sustentado por sus elevadas exportaciones. Pero en realidad ese cambio se debía en buena medida a factores externos (alta demanda internacional y elevados precios), y estos gobiernos no aprovecharon esa coyuntura para generar un estilo de desarrollo propio y autónomo. Casi todos los países apostaron por profundizar todavía más la estrategia económica extractivista, donde las estrellas fueron el agronegocio, el petróleo y gas natural, y metales como aluminio o hierro a medio procesar. Incluso Brasil, que se presenta a sí mismo como una economía industrializada, mantiene un perfil exportador donde casi la mitad de los productos que vende son materias primas”. A escolha não se deve a razões ideológicas, mas a interesses de classe. 11 Maurice Lemoine afirma que “os países latino-americanos fortalecem os laços entre si e com o Oriente (e) estão cada vez menos dependentes dos Estados Unidos”, o que significa substituir a análise objetiva pelo wishful thinking. O governo brasileiro, por exemplo, pensa poder “navegar” a crise graças aos recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros exportados em 2008, de 24,5 bilhões produzidos) e biodiesel, que têm por destino principal os EUA. Os governos “progressistas” latinoamericanos vêm batalhando, em diversos fóruns internacionais (OMC especialmente) pela abertura dos mercados dos EUA e da Europa, fortemente protegidos por barreiras tarifárias e não-tarifárias, às exportações primárias da América Latina. A idéia de poder derrotar “o império” com circuitos comerciais alternativos, sem quebrar a espinha dorsal do imperialismo norte-americano (e euro-japonês) é utópica. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola dominante, mas, como no passado, para impedir sua organização independente, e submeter suas organizações à tutela do Estado. Na Venezuela, o governo se empenhou em estatizar o movimento sindical. As nacionalizações parciais serviram como pretexto, em setores sindicais e da esquerda, para abandonar a independência de classe e somar-se ao Estado nacionalista. A greve da Sidor (siderúrgica privada), em maio de 2008, foi a grande oportunidade da classe operária venezuelana para lançar um sindicalismo independente do Estado, o que precipitou a decisão do governo de nacionalizá-la parcialmente (com compensação financeira aos seus proprietários) para neutralizar o movimento operário e domesticar sua organização. A criação de cooperativas ou de “empresas de gestão social” mascara a exploração capitalista e conclui reforçando a taxa média de exploração, pois os salários, métodos de trabalho e direitos sociais são inferiores aos da grande indústria. Coisa semelhante acontece com as “empresas recuperadas” da Argentina, obrigadas a pagar indenizações aos antigos donos, e carentes dos direitos sociais e sindicais da empresa capitalista. Submetidas ao Estado nacionalista-caudilhista, as nacionalizações parciais (e compensadas) e as “ilhas de autogestão” (que devem competir comercialmente com as empresas capitalistas) concluem reforçando o próprio capitalismo e a exploração. A maior parte da esquerda latinoamericana, inclusive a “radical”, esqueceu que as nacionalizações são revolucionárias quando modificam as relações de classe e estruturam o proletariado como classe na execução da transformação social, ou seja, quando são degraus da reorganização da sociedade sobre novas bases, socialistas. A soma de estatizações não constitui, per se, um programa revolucionário ou socialista. A crítica operária e de esquerda a Chávez e Morales existe e é um fator político e ideológico na Venezuela e na Bolívia, mas é mal compreendida no Brasil, onde a propaganda retrógrada da Veja e da Rede Globo apresenta os líderes andinos como uma mistura selvagem e indígena de Lênin, Trotsky e Che Guevara. Certamente, a nacionalização integral das principais alavancas de desenvolvimento, em primeiro lugar os recursos naturais e energéticos, são a pré-condição para qualquer integração latino-americana que não seja um instrumento da competição entre os monopólios do “Primeiro Mundo” (como a falida ALCA, ou o próprio Mercosul). Sem essa condição, os projetos unificadores (como o gasoduto do sul) não saem do papel. As nacionalizações realizadas, parciais, foram condicionadas favoravelmente pelo aumento dos preços do combustível, a possibilidade de distribuir a renda diferencial entre o capital externo e o Estado. Havia (até sobrava) dinheiro para satisfazer todo mundo. Mas não serviram para modernizar a exploração, consumindo o capital investido. Venezuela e Bolívia impulsionaram importantes campanhas de saúde e de educação (que nunca seriam feitas pelas velhas oligarquias desses países), mas não avançaram em sentar as bases econômicas da autonomia nacional, para sustentar a longo prazo os planos populares e os programas sociais. Concluíram dilapidando a renda extraordinária O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola (diferencial) da produção mineira, na crença de que os preços internacionais não cairiam nunca. A nacionalização parcial, na Bolívia, das três principais jazidas petroleiras, não só preservou os “direitos adquiridos” pelos monopólios multinacionais que as detinham,12 também fracassou em manter os investimentos previstos e aumentar a produção. Os estados latino-americanos não têm condições de substituir o capital externo se não procederem, simultaneamente, a estruturar um novo Estado operário e camponês, que mobilize a população explorada. A queda dos preços dos hidrocarbonetos, como conseqüência da crise mundial, faz entrar em crise as nacionalizações parciais, e abre a via para uma nova etapa de concessões aos monopólios multinacionais. O ciclo de grandes arrecadações fiscais está concluindo. As limitadas reformas fiscais, com aumento dos impostos sobre o petróleo e o gás, ofereceram uma vantagem passageira no marco de preços internacionais elevados. A crise mundial ameaça em especial o governo nacionalista de Equador, cujo petróleo financia, não só a economia nacional, mas também a dolarização, até agora mantida. Para mantê-la, Correa começou um recorte de importações, e uma moratória da dívida externa (pela primeira vez um governo de América Latina declarou o caráter ilegítimo e imoral da dívida). Mas um desconhecimento da dívida usurária e ilegítima seria incompatível com a dolarização. No passado, as crises capitalistas mundiais serviram como marco para o surgimento de movimentos e governos nacionalistas (Vargas ou Perón, por exemplo). Hoje, numa etapa de bancarrota generalizada e internacional, a crise revela de cara as limitações desse tipo de governos. E, acuado pela crise, o nacionalismo (inclusive “radical”) evidencia seu lado retrógrado. Os movimentos nacionalistas fazem confusão entre o poder pessoal e o poder das massas, as quais governariam através de seu “líder”, transformado em “intérprete” dos explorados e da nação: “Neste ponto, o nacionalismo antiimperialista (relativamente progressivo) se assemelha ao fascismo. O poder pessoal, no entanto, bloqueia a evolução das massas em direção da consciência de classe, de sua situação e papel na história, e é uma expressão das contradições dos movimentos nacionalistas: representa a tentativa de superar através da arbitragem pessoal as contradições entre as diversas classes sociais que dele fazem parte. Por isso tem um caráter disciplinador, acrescentando à liderança política o monopólio dos meios do Estado. O poder pessoal nacionalista atua em função de sua auto- 12 Na nova Constituição boliviana, o artigo 8º das Disposições Transitórias diz: "En el plazo de un año desde la elección del órgano ejecutivo y del órgano legislativo, las concesiones sobre recursos naturales, electricidad, telecomunicaciones y servicios básicos deberán adecuarse al nuevo ordenamiento jurídico. La migración de las concesiones a un nuevo régimen jurídico en ningún caso supondrá el desconocimiento de derechos adquiridos". Esses “direitos” beneficiam monopólios como Repsol, Total, Petrobras, Shell, Enron (falida nos EUA, esta continua “operando” na Bolívia), Vintage, British Gas, British Petroleum, Canadian Energy y Pluspetrol, que ainda hoje adquirem o gás boliviano pela metade do preço internacional. No setor mineiro, os "direitos adquiridos" são os do consórcio internacional Glencore, do magnata petroleiro suíço israelense Marc Rich, de quem Time disse ser “o empresário mais corrupto do planeta". Desde 2005, Glencore recebeu grandes jazidas, fraudulentamente, do governo de Carlos Mesa. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. perpetuação,13 bonapartista. 14 subordinando os interesses das Osvaldo Coggiola massas às necessidades do poder A armadilha política consiste em que as condições da luta não mais são determinadas pelos interesses objetivos e disposição subjetiva das massas, sendo ditadas pelas exigências de perpetuação no poder da liderança. Os trabalhadores venezuelanos tiveram que suportar, em dezembro 2007, uma derrota em uma batalha que não tinham escolhido, o referendum constitucional convocado por Chávez. Este método anti-classista explica que o PSUV (Partido Socialista Único da Venezuela) chavista tenha sido desde seu início um aborto político, e atualmente um cadáver insepulto”.15 13 Atilio Borón critica a crítica dos EUA à reeleição (de Chávez, Morales, ou de quem seja), em nome do fato de que os EUA apóiam ditadores (como a família real saudita) que se auto-perpetuam indefinidamente no poder. Deixando de lado o fato de que Chávez também se dá muito bem (embora por razões diversas) com as monarquias petroleiras de Oriente Médio, fazer do instituto da reeleição a garantia da luta antiimperialista significa confiscar a independência de classe dos trabalhadores, e a perspectiva de seu próprio poder político. Intelectuais de diversas latitudes, como Toni Negri, ou Tariq Ali (num pitoresco livro chamado Piratas do Caribe) também fazem a apologia (tardia) dos regimes nacionalistas. Pouco ou nada se ouviram essas vozes quando uma conspiração patrocinada pelos EUA quase derrubou Chávez, em 2002, ou quando a embaixadora dos EUA (Donna Hrinak) ameaçava com o bloqueio de Bolívia, caso Evo Morales vencesse as eleições. O adesismo intelectual, como o capital, tem aversão ao risco. Precisamos reconstruir uma intelectualidade de esquerda digna desse nome: o papel de uma intelectualidade revolucionária não é a apologia do presente, mas a sua crítica, com vistas a preparar o futuro. 14 A liderança de esquerda da UNT (União Nacional dos Trabalhadores) da Venezuela, Orlando Chirino, criticou a proposta de emenda constitucional que Chávez submeteu a referendum a 15 de fevereiro: "A casi cuatro años de las próximas elecciones presidenciales, pero con una crisis económica enorme a la vuelta de la esquina, la enmienda no es la prioridad de millones de venezolanos y venezolanas, que desde hace muchos años venimos sufriendo la brutal ofensiva económica de los capitalistas y las multinacionales, expresada en carestía y desabastecimiento artificial de productos de consumo popular. Las prioridades son otras en esta coyuntura, pues ya sentimos los primeros coletazos de la crisis financiera y económica capitalista que se vive a nivel mundial, la cual el gobierno pretende empequeñecer, mientras somos los de abajo, los pobres, los asalariados, los que sufrimos los despidos, la flexibilización laboral creciente, y pronto veremos los efectos de la caída de los precios del petróleo en nuestro país". E acrescentou: "La propuesta de enmienda demuestra cuál era el trasfondo de la reforma propuesta en el año 2007, pues de las distintas modificaciones a la constitución que se planteaban en aquel proyecto, la única que ha sido rescatada para presentarse a través de esta enmienda es la que permite al Presidente postularse a la reelección sin limitaciones, demostrando claramente cuál es la prioridad de la burocracia gobernante y sus aliados burgueses. En esta ocasión, la propuesta se ha ampliado para beneficiar a gobernadores, alcaldes, y legisladores". A 27 de novembro passado foram assassinados Richard Gallardo, Luis Hernández, e Carlos Requena, dirigentes classistas da UNT, que estavam organizando a solidariedade com trabalhadores em luta em Villa de Cura, violentamente reprimidos pela polícia. 15 Do Informe sobre América Latina ao XVII Congresso do Partido Obrero (Argentina). Na mui declaradamente conservadora revista Foreign Affairs, A. J. Herrera e M. A. Latouche, caracterizam o governo de Hugo Chávez como “um novo tipo de organização do poder político [na América Latina] no qual se incorporam os remanentes do velho personalismo com novos mecanismos de organização política que implicam uma comunhão permanente entre o líder e a massa: uma liderança quase onipresente, mas com um profundo caráter popular, na qual o dirigente se confunde com a massa, se comunica com ela e se mostra como alguém igual a ela”. Certamente, Chávez, Morales ou Correa não representam a reedição dos governos nacionalistas burgueses de Perón, Vargas ou Velasco Ibarra. Mas a sociologia política dos autores patina no ar ao não confrontar as diversas situações históricas em que esses governos emergiram. E ignora que Chávez tentou, sucessivamente e sem sucesso, se dotar de uma base orgânica política própria, através do MVR e do PSUV. O mais importante, porém, é que ao se propor como “novo modelo político” essa suposta simbiose político-social igualitária entre o “líder” e a “massa”, joga-se pela borda toda a tradição, que vai do iluminismo até o socialismo operário, segundo a qual o progresso social e a emancipação humana resultam da livre confrontação de idéias, programas e O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola No Brasil, a substituição do método socialista (a liderança baseada em um programa) pelo caudilhista (o “líder” é o próprio programa) só serviu para que Lula ganhasse margem de manobra para se aliar ao capital internacional e se transformar em sócio estratégico dos EUA, e derrotar à esquerda do PT, fortalecendo a base social de Lula, a burocracia sindical. Diante da crise, a burocracia sindical latino-americana carece de independência política, situando-se no esteio das políticas de salvação do capital praticadas pelos governos, inclusive “progressistas”. Não defende um programa próprio, propondo, por exemplo, a nacionalização e o controle operário das empresas falidas. As centrais sindicais sul- americanas pediram aos chefes do Estado da região que exigissem garantia de manutenção de empregos das empresas que vêm recebendo apoio governamental (isto é, dinheiro do contribuinte para salvar os capitalistas falidos) para “enfrentar a crise financeira internacional”: as chamadas “contrapartidas sociais” estão no centro do documento final da Cúpula Sindical da América Latina, realizada recentemente em Salvador (BA). Enquanto isso, na Argentina as multinacionais estão “expatriando” capitais (isto é, levando-os para sua própria “pátria”) com a cumplicidade do governo, e ao mesmo tempo demitem milhares de trabalhadores (na maioria dos casos sem indenização), exatamente as empresas que mais fizeram fortuna com os Kirchner: bancos, montadoras de automóveis, produtoras de alimentos. O matrimônio Kirchner recortou as indenizações trabalhistas, um presente para sua fantasmagórica "burguesia nacional", duas semanas antes da vitória eleitoral de Cristina. Em diversas províncias (Córdoba, Santa Fe, Buenos Aires) há grandes lutas contra as demissões, com greves e ocupações de fábricas. A polícia não consegue reprimir todas as lutas, por isso o dirigente da CGT, Moyano (o braço sindical de Kirchner) oferece seus serviços, apreendidos na “triple A” (bandos fascistas peronistas organizados na década de 1970), organizando, em cada sindicato controlado pela burocracia, bandos de capangas armados que percorrem os locais das lutas, intimidando e atacando trabalhadores em luta: metrô, INDEC (o IBGE argentino), Hospital Francês, Cassino de Buenos Aires, as grandes montadoras e a indústria láctea. Nos países andinos, embora o movimento “bolivariano” tenha sido o de maior repercussão internacional, a peculiaridade do nacionalismo é o indigenismo, o protagonismo das massas rurais deslocadas às cidades, onde ocuparam (política e socialmente) o lugar ocupado no passado pelo proletariado industrial. As ideologias indigenistas compreendem um vasto arco, desde o retorno ao Inkário até a preservação das comunidades rurais originárias a partir de sua base produtiva (a pequena propriedade). Mas foi a pequena burguesia urbana a que impôs à massa indígena seu programa, o chamado “capitalismo andino”, que postula o partidos, ou seja, da participação consciente da sociedade na determinação de seu próprio destino, da consciência de classe traduzida em organização política independente. Contra essa tradição secular se revitaliza, de modo sorrateiro, uma concepção religiosa baseada na “comunhão líder-rebanho” (não por acaso, na Venezuela e alhures, Chávez é por vezes apresentado como a continuação de... Jesus Cristo) enterrada em séculos de luta do movimento democrático e operário. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola entrosamento do passado agrário pré-capitalista com o capitalismo “global”, através da mediação do Estado. Assim, frustraram-se as promessas de uma revolução agrária. Na nova Constituição boliviana se estabelece a preservação dos direitos adquiridos pelos grandes proprietários, ou seja, a supremacia do capital terrateniente da soja no Oriente, e a concentração do grande capital agrário na região andina (o altiplano, ou planalto). Desse modo pactuou-se, em nome da “soberania alimentar” (baseada na produção de subsistência) e da preservação do meio ambiente, com os interesses capitalistas agrários exportadores, e com a produção contaminante pelo uso de agrotóxicos.16 A CGTFB (Confederação Geral de Trabalhadores Fabris da Bolívia) pronunciou-se acerca do referendum que deu a vitória à nova Carta, reconhecendo que na nova Constituição se incluem direitos conquistados pela luta operária na última década: La burguesía fascista, con sus partidos, sus lideres, sus comunicadores, sus curas y pastores, sus embajadores, sus empresarios, sus paramilitares, sus cuerpos de choque, etc., que en su momento intentaron derrocar al gobierno nacionalista, ahora impulsa una campaña por el No, que tiene como objetivo rearticular sus fuerzas y prepara futuras batallas políticas. Los trabajadores no nos dejaremos confundir con la maldita propaganda que se viene destilando por los medios de comunicación social, que exacerba las tendencias más reaccionarias de la sociedad boliviana. Los trabajadores fabriles de Bolivia, consideramos que los fascistas han sido derrotados por la acción organizada de los trabajadores, dentro mismo de los departamentos autocalificados como "autonomistas" y que actualmente muestra cierto fortalecimiento, esto por las constantes retrocesos del gobierno, que es una prueba palpable de los límites históricos del nacionalismo burgués. Este 25 de enero, esta descontado que el pueblo mayoritariamente votara por el SI. Una votación que tiene en la clase campesina su sustento más sólido, porque esta ilusionada que por medio de la Ley se incorporará a la ciudadanía y obtendrá derechos políticos, obtendrá reconocimiento como nacionalidades y pueblos indígenas originarios campesinos como parte integrante de nuestro país…. Por todo eso y más, los trabajadores industriales, enfrentados nuevamente contra los enemigos de la patria, en defensa de los recursos naturales, en defensa de las empresas y del aparato productivo, por la dignidad nacional y por nuestros derechos sociales y laborales, acompañaremos esta coyuntura, pero con firme convicción de que el referendo no va a modificar en nada la situación política boliviana, que no se resolverá con los votos sino en la calle, en la lucha de clases, donde la clase obrera fabril se constituirá en vanguardia de la lucha social.17 16 A nova Constituição (CPE) da Bolívia, proposta pelo governo de Evo Morales, e aprovada com mais de 60% dos votos no referendum de finais de janeiro, resultou da mutilação (através de diversas concessões feitas à direita, separatista ou não, no debate parlamentar e extra-parlamentar) do projeto original do MAS, “debatido nas bases”. Antes que a Constituição fosse votada, governo e oposição negociaram em outubro de 2008 a alteração de dezenas de artigos para viabilizar o referendum. O fato da direita ter chamado a votar “não” obedece a preservar sua capacidade de pressão independente no momento da regulamentação dos artigos aprovados [nos departamentos controlados pela direita, o “não” venceu em Santa Cruz (66%), Beni (69%) e Pando (61%)]. A limitação da propriedade a terra a 5.000 hectares (o que, na Bolívia, é uma superfície enorme) não é aplicável aos atuais proprietários, mas apenas aos futuros. A “família” Hecker possui 288.000 hectares, os Becerra Roca têm 173.000 hectares, e não serão tocados... Para não falar que a Constituição rejeita o direito ao aborto e outras reivindicações progressistas. O chefe da direita boliviana, Jorge Tuto Quiroga, declarou (em La Razón, La Paz, 28 de janeiro de 2009): "Com o texto (da Constituição aprovada) não farei uma celebração, mas posso dormir tranqüilo". Os donos da Bolívia continuam os mesmos. Antes do referendum, em Oruro, organizações camponesas decidiram “rechazar el proyecto de la Constitución Política del Estado modificado en el Parlamento traidor": “A esta oposición emitida por los campesinos se suman los rechazos de la Universidad Pública de El Alto (UPEA), el último Congreso Departamental de los Campesinos de La Paz, y el Movimiento Sin Tierra (MST) en su último Congreso”. 17 Faça-se notar também que, entre outros, “o XV Congreso Ordinario de la Provincia Omasuyos de la Federación Sindical de Trabajadores Campesinos Tupak Katari del Departamento de La Paz determinó rechazar la nueva Constitución Política del Estado (CPE) porque no afecta a los grandes terratenientes”. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola O correspondente brasileiro do Le Monde Diplomatique caracteriza que a nova CPE boliviana revela que “os povos originários estão assumindo um protagonismo crescente na política e obtêm avanços significativos como o respeito a seu sistema judicial. Os horizontes parecem abertos para a constituição de Estados plurinacionais” (na América Latina). A nova Carta aprovada prevê que os indígenas e camponeses bolivianos, que formam a maioria da população, ganhem uma série de direitos e um inédito reconhecimento oficial a valores précoloniais que resistiram. 0s governos, nacional e regionais, serão obrigados a usar em seus documentos e na divulgação de informação pública o espanhol e a língua indígena predominante na região. Além do espanhol, outros 36 idiomas são declarados oficiais. A cédula de identidade, o passaporte e outros documentos conterão, além da cidadania boliviana, "a identidade cultural" - indígena ou camponesa - de quem assim o desejar. Tribunais populares existentes desde antes da invasão dos espanhóis passarão a ter validade jurídica reconhecida. Para além destas concessões aos “valores culturais originais” – que, para serem instrumento de emancipação, exigiriam eliminar socialmente à racista oligarquia boliviana – o sentido profundo das autonomias foi esclarecido pelo intelectual do governo, o vicepresidente Álvaro García Linera, já antes do referendum, quando, em novembro de 2008 chamou os “opositores” (de direita) a participarem da construção de um Estado autonômico a partir de 26 de janeiro de 2009: EI presidente Evo ha convocado a conformar una comisión de gobierno y regiones para transitar Ia ruta de Ia autonomía. Confiamos en una aprobación del nuevo texto constitucional y una vez que se apruebe el articulo 3 de Ias disposiciones transitorias, los departamentos de Tarija, Santa Cruz, Beni, Pando, donde ganó el referendo por autonomías el 2006, accederán de manera directa a Ia autonomía". Chamou a um “diálogo para consolidar Ia autonomía al andar, y no a Ias malas, sino constitucionalmente": "Si va bien Santa Cruz con este transito autonómico, eso va a ser luego seguido por Ios otros departamentos: Tarija, Bani, Pando y luego Cochabamba, La Paz, Oruro, Potosí, Chuquisaca; sus lideres no se están dando cuenta que tienen Ia oportunidad de cumplir un liderazgo nacional a partir de Ia autonomía constitucional… Al ser implementadas Ias autonomías constitucionalmente, existirán 36 competencias exclusivas para ser legisladas departamentalmente, siete compartidas y 16 concurrentes a Ia capacidad deliberativa, fiscalizadora y facultad legislativa del gobierno departamental. Trocando em miúdos, os “departamentos” poderiam realizar, ao menos em grande parte, “constitucionalmente”, o que os levou a deflagrar a movimentação golpista, sendo feita explícita e privilegiada referência a Tarija, Santa Cruz, Beni, Pando, os departamentos dirigidos pela direita onde se situam as principais riquezas petroleiras e de gás, os quais pretendem ficar com a parte do leão da renda nacional dos hidrocarbonetos, descontada, não dos royalties das multinacionais, mas dos impostos federais (nacionais). O que sobrar, descontados esses dois itens, poderá ficar com o governo nacionalista para realizar sua política social (e, não por acaso, continua na Bolívia nacionalista e “andina” a miséria previdenciária e o congelamento salarial de professores e funcionários públicos). A nova CPE nada mais seria do que o marco institucional para essa barganha, baseada na continuidade (mitigada e “controlada”) da hegemonia econômica da oligarquia e do capital financeiro O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola internacional. São os países mais “desenvolvidos” da América Latina os mais afetados pela crise mundial. A “periferia emergente” do capitalismo “global” deve enfrentar, em 2009, pagamentos externos por valor de 8 trilhões de dólares, uma dívida principalmente contraída pelas multinacionais que operam nela, superando em muitos casos as reservas internacionais. Na Argentina, a dívida conjunta, pública e privada, é de US$ 64 bilhões para 2009; em 2008 se registrou uma saída de capitais de 20 bilhões: uma parte da dívida foi contraída para expatriar capitais. Não é verdade que no ciclo econômico 2002-2007 as nações dependentes se transformaram e credoras no mercado mundial: com o aumento da dívida privada externa, se mantiveram como devedores netos; os superávits comerciais foram a garantia financeira do endividamento privado. O capital financeiro internacional apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento dos preços e dos volumes exportados. A crise mundial golpeia à América Latina devido à sua fragilidade financeira e comercial, e à sua fraca estrutura industrial. Os governos da América Latina afirmaram inicialmente que se salvariam da crise devido à “solidez” das reservas dos Bancos Centrais. Mas a queda das Bolsas regionais, a saída de capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses argumentos. Propostas como a dos intelectuais reunidos na "Declaração de Caracas", defendendo o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) e o Banco do Sul, novas instituições econômicas reguladas, e um acordo monetário latino-americano para enfrentar a crise, são crescentemente utópicas. Projetos que não conseguiram avançar durante o período de crescimento econômico, ficam com menos fundamento sólido diante da crise. Mais do que avançar em um projeto coordenado, os diversos países defendem os negócios de seus próprios empresários, como fez Brasil na defesa dos interesses de Odebrecht e Petrobrás nas negociações com Equador, ou na defesa dos plantadores brasileiros de soja no Paraguai (onde são os principais proprietários de terra), incluídos os exercícios militares do exército brasileiro na fronteira e na barragem de Itaipu.18 O terreno da entente política se desenha, e ao mesmo tempo explode, nas propostas de “integração” (americana ou latino-americana). A ALCA era um instrumento de pressão (dos EUA) sobre Europa e sobre as economias em transição para o capitalismo, especialmente a chinesa, lhes opondo América Latina como uma plataforma de exportação dos capitais norte-americanos, mas não dava ao empresariado latino-americano a possibilidade de abrir o mercado norte-americano à sua produção agrícola, eliminando os subsídios aos produtores do Norte. A ALCA foi morrendo em meio à crise mundial de 1997- 18 O conflito Brasil-Paraguai esteve perto das vias de fato, em novembro passado, quando 30 soldados brasileiros em exercício cruzaram a fronteira. O governo de Paraguai acusou o Brasil de "prática e atitude recorrente de confrontação e provocação": "O incidente, que afeta a nossa soberania, soma-se a episódios muito recentes no mesmo sentido, no que parece uma inexplicável, mas sistemática prática e atitude recorrente de confrontação e provocação". O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola 2002 (crise asiática de 1997, crise russa e brasileira de 1999, derrubada da Bolsa de Wall Street em 2000). Depois disso, a integração de América Latina à economia mundial escorouse no aumento de preços das matérias primas e no crescimento do endividamento das burguesias locais (a penetração do capital financeiro na América Latina foi a mais alta da história). Brasil tem agora vencimentos superiores a US$ 200 bilhões em 2009, o que ameaça quebrar o crédito interno. A rodada de Doha, na qual chegara-se a um acordo do Brasil com Europa e os EUA, entrou em crise pela oposição da Índia e da Argentina. Brasil acordara com os EUA exportar etanol sem impostos desde América Central, em troca da autorização de inversões norte-americanas na indústria dos bio-combustíveis no Brasil. Mas a penetração financeira está prestes a provocar uma explosão econômica generalizada na América Latina, em conseqüência da saída de capitais. O túmulo da ALCA foi a Bolívia, quando a luta contra a exportação de gás liquefeito para México e os EUA, através de portos chilenos, se transformou em insurreição nacional, derrubando dois governos. Os projetos capitalistas “latino-americanos”, por sua vez, entraram em crise com velocidade ainda maior. Gasoduto do Sul, Banco do Sul, entrada de Venezuela ao Mercosul, não saem do papel. A moeda comum Brasil-Argentina não passa de um recurso contábil para compensar saldos de pagamentos externos. A autonomia da ALBA proposta por Chávez é desmentida pelos compromissos simultâneos de seus países com outros acordos. O processo capitalista opera em favor da desintegração de América Latina. Brasil reforçou sua aliança financeira com os EUA, em oposição à decisão argentina e chilena de nacionalizar os fundos de pensão privados. Brasil reduziu o consumo e o preço do gás boliviano. UNASUR é um projeto da burguesia brasileira para “integrar” uma indústria militar regional sob seu controle, e para impulsionar gastos em infra-estrutura para suas empresas. Mas pôs o Brasil no limiar da ruptura diplomática com Equador, devido às barbaridades trabalhistas e ambientais da Odebrecht (o BNDES respaldou financeiramente a empresa com empréstimo de US$ 243 milhões, que o Equador foi condenado a quitar). Evo Morales nacionalizou o consorcio petroleiro Chaco, onde atua a empresa argentina Bridas, devido à negativa daquele em aceitar os termos das nacionalizações bolivianas. As bandeiras “integracionistas” são ficção política. Depois do abraço entre Chávez e o assassino colombiano Uribe,19 numa reunião em Santo Domingo, que discutiu o massacre do acampamento das FARC no Equador, acentuou-se a cooperação entre Venezuela e Colômbia, embora a segunda esteja 19 Antes de ser eleito presidente, Uribe governou o departamento de Antioquia entre 1995 e 1998. Foi responsável por organizar uma rede de cooperativas de latifundiários (CONVIVIR) que financia milícias paramilitares fascistas contra camponeses, sindicalistas, jornalistas, intelectuais de esquerda e guerrilheiros. Está no poder desde 2002. Ainda como governador Uribe foi o pai da mais poderosa organização terrorista do continente, a Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), do falecido Carlos Castaño e seu comparsa, o milionário Salvatore Mancuso, hoje encarcerado em um presídio de segurança máxima. Esta organização atuou como um autêntico esquadrão da morte na Colômbia e é apenas um dos tentáculos de uma complexa rede envolvendo paramilitares, empresários, juízes e parlamentares. À cabeça de todo este esquema está Álvaro Uribe. Esses dados estão no Arquivo de Segurança Nacional (NSA) dos EUA. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola prestes a realizar um tratado de livre comércio com os EUA. O nacionalismo burguês fracassa novamente, no marco de uma crise mundial inédita. Com a crise mundial (e com Obama) reclama-se o “fim da guerra fria na América Latina”. O apaziguamento entre os EUA e Cuba, a normalização de Cuba com a UE, serviriam para estabilizar politicamente à América Latina, opondo a integração política de Cuba contra a revolução latino-americana, oferecendo o fim do isolamento de Cuba. O destino de Cuba está, mais do que nunca, inserido no contexto latino-americano, e também na sua própria crise política interna, contextos que o governo de Raul Castro tenta “navegar” propondo uma espécie de “via chinesa”, com um papel central das Forças Armadas (que controlam mais de 60% da economia cubana). O destino de Cuba não depende centralmente de Lula e da diplomacia dos EUA e da UE, mas da luta política em Cuba e da luta de classes mundial. A sucessão de Fidel Castro enfrenta enormes dificuldades: alta dos preços das matérias-primas agrícolas, gravidade dos desastres provocados por três ciclones consecutivos, crise econômica mundial, baixa do crescimento cubano, e forte dependência das importações, fraca produtividade, dualidade monetária e hiper-centralização burocrática. As margens de manobra financeira para implementar as mudanças anunciadas em 2007 com o objetivo de modernizar o aparelho produtivo são limitadas. Em 2008, as importações de alimentos e petróleo representaram US$ 5 bilhões, o que corresponde à metade do atual potencial de exportação de Cuba, incluindo a comercialização de bens e serviços à Venezuela. A descentralização dos circuitos agrícolas, o usufruto das terras concedido a pequenos camponeses, a “substituição de importações” apoiada na agricultura privada e a nova política de salários apontam a reativação de uma “economia de mercado”, que cria as bases para uma restauração capitalista.20 Os trabalhadores passaram a ser pagos de acordo com sua produtividade, com seu salário-base fixado sem consulta às grades salariais nacionais. Diversos sistemas de remuneração começam a coexistir nas empresas. Mas o contexto para desenvolver uma transição ao capitalismo, como a ocorrida em Rússia e na China, mudou internacionalmente. Esses países já entraram em grave crise; o mercado mundial tornou-se estreito demais para admitir um novo competidor (embora pequeno, como Cuba). A libertação das forças produtivas em Cuba (seu trabalho e capacidades manuais e intelectuais) não pode se produzir pelos métodos do capital mundial, mas deve produzir-se, porque as expectativas das novas gerações são mais altas que as das precedentes. O contexto ideológico internacional não mais é o do “fim do comunismo”, como em 1989-1991. Reivindicar o fim do bloqueio norte-americano e o reconhecimento incondicional 20 da autodeterminação nacional cubana (começando pela devolução de Em 1990 só existiam em Cuba sete acordos de associação econômica com o capital estrangeiro por um volume total de 100 milhões de dólares, e esses acordos estavam restritos à área de turismo. Já em 1995, existiam 212 acordos de associação econômica com o capital estrangeiro, com um investimento de 2.100 milhões de dólares, abarcando 34 ramos da economia. O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009. Osvaldo Coggiola Guantánamo e a saída das tropas ianques) pode hoje por Cuba em contato direto com a rebelião social latino-americana, não só com o capital mundial. As FARC colombianas viraram fator de crise política internacional, incluindo a mobilização bélica regional. Chávez apoiou a “troca humanitária” de reféns e o reconhecimento do caráter de força beligerante das FARC, para depois convidá-las a se desarmar e libertar incondicionalmente seus reféns, se reconciliando com Uribe. Surge assim uma pressão para o desarme unilateral das FARC. A experiência de “luta armada” das FARC (que chegaram a controlar quase um terço do território colombiano) está politicamente esgotada, mas isto está sendo usado para dar uma vitória política aos paramilitares colombianos que entraram no governo, com Uribe na cabeça, para apagar seu passado criminoso e se reciclar no “estado de direito”. Na América Central, as guerrilhas abandonaram as armas para se somar à “política institucional” (burguesa) e gerir o Estado capitalista. O balanço político dessa experiência torna-se imprescindível. A luta imediata, na América Latina, é para por fim ao bloqueio contra Cuba, ao Plano Colômbia e à ocupação militar de Haití pelas tropas da Minustah, enviadas pelos governos de Lula, Kirchner, Bachelet e Tabaré Vázquez. A perspectiva, que a crise mundial põe na ordem do dia, é a da unidade socialista da América Latina, baseada no poder político independente e direto dos trabalhadores urbanos e rurais, a única capaz de realizar a “integração” que abriria uma nova perspectiva histórica para os povos de nossa pátria comum. Referências bibliográficas AGUIRRE ROJAS, Carlos A. América Latina en la Encrucijada. México, Contrahistorias, 2006. AGUIRRE ROJAS, Carlos A. Chiapas, Planeta Tierra. México, Contrahistorias, 2006. ALI, Tariq. Piratas do Caribe. O eixo da esperança. 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Em relação as formas de Democracia têm-se a democracia direta (a qual, na verdade é de impossível existência), a democracia representativa (pode ser feita por partidos políticos), e semidireta (com intervenção dos governados em algumas deliberações dos governantes). Ainda, diante do trabalho exposto apresenta-se o histórico a democracia, e os seus significados descritivo e prescritivo. 2. DEMOCRACIA. 2.1. HISTÓRICO DA DEMOCRACIA. À primeira vista, a Grécia parece formar uma unidade geográfica; um exame mais atento, contudo, mostra-nos que a natureza dividiu aquele conjunto num grande número de vales e planícies, separados uns dos outros por baías e cadeias de montanhas. Neste país surgiram inúmeras pequenas comunidades, todas elas animadas de fervoroso patriotismo. Para elas, o Estado não era uma abstração somente compreensível com o auxílio de um mapa, e sim uma realidade palpável. A cidade não era um produto da razão; era, isto sim, um povo, um conjunto de cidadãos, dotados de inabalável consciência social e de zelo pela tradição. O ateniense, em especial, via na participação da vida pública o supremo bem a ser almejado por um homem. A cidadania era o grande objetivo do ateniense, pois, além de lhe assegurar a participação afetiva na vida pública, lhe garantia os direitos subjetivos. Já se disse que a maioria dos ideais Na Grécia, a democracia foi praticada na forma direta; era a chamada democracia clássica, na qual os membros de uma comunidade deliberam diretamente,sem intermediação de representantes. Isto era possível na prática porque a cidade era de reduzidas dimensões e a população diminuta. Acentua Bonavides: “A democracia antiga de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil, que se voltava por inteiro à coisa pública, que deliberava com ardor sobre as questões do Estado, que fazia da sua assembléia um poder concentrado no exercício da plena soberania legislativa, executiva e judicial. Cada cidade que se prezasse da prática do sistema democrático manteria com orgulho um Ágora, uma praça, onde os cidadãos se congregassem todos para o exercício do poder político. A Ágora, na cidade grega, fazia pois o papel do Parlamento nos tempos modernos”. Com efeito, apenas aqueles que integravam um demos (município), dirigido por um demarca, participavam da política. Daí, a expressão democracia, que significa governo do demos. Por outro lado, o grande número de escravos existente em Atanas permitia que o tempo do cidadão dedicado à política fosse quase integral. O segundo estamento compreendia os metecos ou estrangeiros que não participavam da vida pública, embora fossem livres e sua exclusão da política não significasse discriminação social, mesmo porque na própria atualidade o estrangeiro não possui certos privilégios ao cidadão nato( art. 12.da Constituição Federal Brasileira ). Significado Descritivo e Prescritivo. Democracia, de modo paradoxal, pode ser definida como um termo empolado aplicado a alguma coisa inexistente. Essa afirmação é, naturalmente, provocante, e seria mais hábil dizer-se que democracia é uma palavra confusa em relação ao que pretende designar. Se definir democracia significa meramente apresentar o significado da palavra, o problema está imediatamente solucionado, porque tudo o que se requer no caso é um conhecimento da língua grega. Literalmente, democracia significa “poder do povo”, isto é, que o poder pertence ao povo. Mas com isto teremos simplesmente resolvido um problema de terminologia. A democracia não possui somente uma função descritiva ou denotativa, mas também normativa e persuasiva. Conseqüentemente, o problema de definir a democracia tem aspecto duplo, exigindo tanto uma definição descritiva quanto uma prescritiva. Uma não pode existir se a outra e, ao mesmo tempo, uma não pode substituir a outra. Assim, para evitar um passo em falso, devemos ter em mente três pontos: primeiro, que uma distinção firme tem de ser feita entre o deve e o é quanto à democracia; segundo, que esta distinção não deve ser mal-entendida, porque ideais e realidade estão interligados ( sem os seus ideais uma democracia não pode corporificar-se e, reciprocamente, sem uma base de fato a prescrição democrática nega-se a si mesma ); terceiro, que embora complementares, as definições prescritivas e descritivas de democracia não devem ser confundidas, porque o ideal democrático não define a realidade democrática e, vice-versa, uma democracia legítima não é, não pode ser, igual a uma democracia ideal. As formas de Democracia. Democracia Direta: Na democracia direta existe participação direta do povo no exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta importa num sistema de limitação e controle do poder. Em nossas democracias, existem aqueles que governam e os que são governados; há o Estado, de um lado, e os cidadãos, do outro; há os que lidam profissionalmente com a política e aqueles que não se lembram disso, exceto em raros períodos - ao passo que todas essas distinções tinham bem pouco significado nas antigas democracias. Duas perguntas surgem: É a democracia direta preferível? - e em segundo lugar: É ela ainda possível? De um ponto de vista lógico, deveríamos começar com a questão da sua possibilidade, pois se descobrirmos que hoje em dia a democracia direta é impossível, seria insubsistente discutir a sua desejabilidade. Mas os homens não são tão lógicos assim. Freqüentemente, o desejo precede o conhecimento, e conquanto todos tenhamos preferências, poucos entre nós se detêm para indagar se elas são alcançaveis. O motivo da preferência pela democracia direta é uma dessas questões a que a razão responderia de um modo, e que a experiência histérica nos leva a responder de outro. Em termos de princípio, ninguém negará provavelmente que aquele que exerce ele mesmo o poder seria melhor sucedido do que quem delega tal poder a outrem, e que um sistema baseado na participação é ais seguro do que aquele baseado na represetação. Democracia Representativa: O que se deve representar é o homem de classe e de grupo; e como as classes são categorias sociais permanentes, não podendo ser negadas sem que se negue uma nação, é necessário que essas forças estejam representadas nas Cortes. Quando o parlamento representar todas estas forças, então o espelho da sociedade será ele mesmo, e não se dará esse caso vergonhoso prova de que não são representativos os parlamentos modernos - de que, quando surge uma crise agrícola ou industrial, a primeira medida dos partidos que formam o parlamento é procurar uma informação pública, para se inteirar do que se passa lá fora. Democracia Semidireta: Esta democracia é assim denominada porque, ao lado da natureza representativa de seu sistema político, nela se admite a utilização esporádica da intervenção direta dos governados em certas deliberações dos governantes. Esta intervenção compreende, basicamente, os seguintes institutos: plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto popular e recall. Plebiscito: a expressão plebiscito denomina uma consulta prévia que se faz à coletividade, a fim de que esta se manifeste a respeito de sua conveniência ou não. Os governantes consideram oportuna a medida, mas, antes de efetivá-la, consideram necessário que o povo se manifeste antes. O termo plebiscito deriva de plebs, plebe, que tendo origem na Lex Hortensia (séc. IV a . C), que concedeu aos plebeus os direitos de participar do processo político na antiga Roma republicana. Referendo: é o mecanismo da democracia semidireta pelo qual os cidadãos são convocados para se manifestar a respeito da conveniência, ou não, de medida já tomada pelos governantes. Nisto, difere do plebiscito. Dá-se o nome de referendo, também, à manifestação popular sobre a entrada em vigor de leis, já elaboradas pelo Parlamento. Trata-se, então, de ratificação popular a algo que já está feito. Iniciativa Popular: eis o mais significativo instituto da democracia semidireta. É realmente a que mais atende às exigências populares de uma participação efetiva do processo político é a iniciativa das leis pelo próprio povo. Ela obriga o Parlamento a legislar, porque, se um determinado número de cidadãos o exige, um projeto de lei determinado será exposto à Assembléia, que deverá examiná-lo e emitir um parecer. Na iniciativa popular o povo exerce apenas um direito de petição “reforçado”, pelo qual pressiona o parlamento a reparar um projeto de lei sobre determinado assunto, bem como a discuti-lo e votá-lo. No caso, os cidadãos não legislam, mas fazem com se legisle. Veto Popular: do latim vetare, proibir, impedir, o veto popular significa a rejeição, pelo povo, de uma medida governamental. Pode ocorrer no plebiscito ou no referendo. No Brasil, o veto é prerrogativa dos chefes do Poder Executivo, como o Presidente da República, que pode vetar total ou parcialmente, os projetos de lei aprovados pelo Legislativo ( CF, arts. 66 e 84 ), embora com amparo no art. 14, as coletividades que não desejarem ser elevadas a município, possam vetar esta medida. Recall: o termos recall significa revogar, reparar, anular, e é esta, verdadeiramente, sua finalidade, permitir que o eleitorado possa destituir, em manifestação direta, um órgão público que tenha afrontado a confiança do povo e a dignidade do cargo. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que foi apresentado nesse trabalho, concluí que existem três espécies de democracia são elas: direta ou clássica, representativa e semidireta. Cada uma delas buscou alcançar o ideal democrático. Descartada a primeira hipótese, qual seja, a da democracia direta, por irrealizável no mundo moderno, restaria indagar qual a verdadeira essência do ideal democrático. Será a democracia o governo do povo ou, o controle do poder político pelo povo, em oposição a arche (governo)? Todos os Estados modernos se proclamam ardentemente democraticos, da mesma forma que todos os políticos se proclamam honestos. A qualificação de um Estado como democrático não se acha vinculada a nenhuma ideologia. Atualmente, se ouve falar em crise da democracia, quando o que está realmente em crise é uma simples forma histórica da democracia, a liberaldemocracia. Comete seu erro que, em lógica consiste em tomar parte pelo todo. Infelizmente, a liberal- democracia, que nada mais é do que uma espécie entre as inúmeras que buscam alcançar o ideal democrático, transformou-se para muitos, em tabu. Crise da liberal- democracia é crise do próprio ideal democrático. Num mundo em que as realidades palpáveis se fazem cada vez mais candentes, as abstrações do passado vão, paulatina, mas inexoravelmente, perdendo terreno. Belas ficções, transformadas em dogmas da política, começam a perder o encanto original. O súdito, o cidadão, o homem abstrato vão deixando seu lugar para um ser totalmente novo. Então democracia, por assim dizer, é o processo político que autoriza a permanente participação, livre e consciente, direta ou indireta, da comunidade, nas deliberações do governantes. Referências bibliográficas: O que é a Democracia?, Alain Touraine; Teoria Democrática, Giovanni Sartori; Ciência política, Paulo Bonavides. 1 - Sentido etimológico A palavra democracia origina-se do grego:”demos”,que significa povo, e “cratos”, fôrças, poder, e, por extensão , governo.Democracia é, assim, etimologicamente, o governo do povo. 2 - Sentido real Os autores, todavia, completaram essa definição, acrescentando-lhe expressões, que vieram a conceituá-la, com mais precisão, sob o ponto de vista político. Assim, Aristóteles definiu-a como o governo do povo.Abraham Lincoln acrescentou, a esta definição, a expressão para o povo, como sua origem político,todo ele voltado para o povo, como sua origem, instrumento e finalidade, que é. 3 - Definição Definimos, em ponto anterior, a Democracia, como sistema de governo, que pretende dar, a todos os cristãos, iguais possibilidades de participação na gestão da coisa pública, para significar que todos são iguais perante a lei e tem liberdade de agir, dentro da coletividade, desde que não violem o direito de seus semelhantes. 4. BIBLIOGRAFIA - Introdução Sistemática ao Estudo da Sociologia-Lidador Educação Moral e Cívica-Felipe N. Moschini, Otto Costa, Víctor Mussumeci, pg 99,128. Mídia, eleição e democracia, Heloiza Matos (ORG.), pg 53,88. http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm A Ditadura Militar “Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina.” CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE “Dormia A nossa Pátria mãe tão distraída Sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações.” CHICO BUARQUE DE HOLLANDA Recife, 1964. Beira da praia, brisa da noite, mansões dos usineiros. As garrafas de champanha são abertas. Festa. Pessoas bonitas, perfume, olhares de fêmeas, dentes brancos de alegria. As risadas unem o gozo ao deboche. Vida longa para o novo governo! Que nunca mais se falem em greves nem nessa maldita terra para os camponeses! Morte aos inimigos da propriedade! Um pouco longe dali, noite negra e silêncio. De repente, chegam os soldados. Vasculham os casebres. Procuram os inimigos da pátria. As pessoas simples têm medo. Precisam dormir cedo porque amanhã têm de ir para roça cortar cana. Mas o olho continua aberto. Só a boca é que permanece fechada. No quartel, homens armados de fuzil automático arrastam o ancião. Espancado em praça pública. Maxilar quebrado por uma coronhada de rifle. Chutaram-lhe tanto os testículos, que arrebentou a bexiga. Vai urinar sangue por quase um mês, O velho ferido está algemado. Ao seu redor, caminhões do Exército, berros de oficiais, rádio, holofotes, metralhadoras, Por que tanto aparato? Por que tantos homens, tantas armas, tanta força bruta? Por que o velhinho é tão perigoso? Gregório Bezerra nasceu no sertão. Criancinha, viveu a fome e a prepotência dos latifundiários. Foi quase um escravo. Brinquedo de menino era enxada e foice, sonho de um dia comer carne-seca. Nunca viu escola. Só aprendeu a ler e escrever com 24 anos, quando servia o Exército - e nunca mais deixaria o orgulho de ter sido militar. Pouca instrução, mas o conhecimento da vida e a argúcia do homem do povo. Um dia, entrou em contato com aquela gente estranha. Falavam coisas que ele nunca tinha ouvido mas que, extraordinariamente, parecia já saber. Alguns eram até doutores, mas o tratavam como igual. Muitos dos estranhos eram como Gregório, como Severino, como José, como tantos outros: mãos de calo, cara rasgada de sol, trabalho e sofrimento. Ouviu, refletiu e juntou-se a eles. Voltava ao canavial, onde o homem perde a perna, ou o juízo, pela picada de cobra, o golpe errado do facão, o jeito doido de o capataz falar. Mas agora, era ele que tinha o que dizer para contar para os seus irmãos de labuta. Nos campos, nos mocambos miseráveis, nas portas das usinas e das fábricas, Gregório seria a voz da consciência dos que ainda não tinham consciência, a posse dos que nada possuíam. Ele era o homem do povo que descobre sua força e, finalmente, se levanta. Em vez de lamentar suas misérias, ergue-se para combatê-las. Sabia falar a língua dos humildes e fazer as perguntas decisivas; a quem pertence? A quem é dado? O que se deve transformar? Os homens mais poderosos de Pernambuco o temiam. Gregório Bezerra, velho quase analfabeto, ferido e enjaulado em 1964. Líder camponês, ex-deputado federal, inimigo do latifúndio. E se um dia todos aqueles homens e mulheres com as mãos grossas e rosto queimado se transformassem em milhões de Gregórios? Era preciso evitar a qualquer custo. Por isso, Gregório Bezerra tinha sido preso. Naquele momento, os grandes senhores da terra comemoravam sua vitória. O reveillon de 1964 acontecia em 31 de março. Governo Castello Branco (1964 – 1967) Bem que Leonel Brizola propôs ao presidente Jango resistir ao golpe de 1964 com armas na mão, a partir do Rio Grande do Sul. Mas o presidente, muito deprimido, não queria derramamento de sangue. Como milhares de brasileiros, os dois também se exilaram no estrangeiro. Enquanto isso, no Rio de Janeiro - Copacabana e Ipanema -, a classe média se confraternizava com a burguesia. Chuva de papel picado, toalhas nas janelas, buzinaço, banda e chope. Abraços, choro de alegria, alívio pelo fim da desordem. O Brasil estava salvo do comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das pessoas de bem! As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa! Mas nos subúrbios o medo substituía o chope. Ali, a revolução iria procurar os "inimigos do Brasil". E quem seriam esses monstros? Pessoas simples, enrugadas pelo trabalho duro, mas que tinham ousado não se curvar; operários, camponeses, sindicalistas. Nenhum banqueiro, nenhum megaempresário, nenhum tubarão foi sequer chamado para depor numa delegacia, Eram todos homens de bem, pessoas que amavam o próximo... principalmente se o próximo fosse um bom parceiro de negócios. Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas: dirigentes populares, intelectuais, políticos democratas. A UNE foi proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos invadidos à bala. Nas escolas e universidades, professores e alunos progressistas expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e muitos jornalistas postos na cadeia. A ordem era calar a boca de qualquer oposição. Os políticos que não concordaram com o golpe, geralmente do PTB, tiveram seus mandatos cassados. Ou seja, perderam seus direitos políticos por dez anos. O primeiro cassado, inimigo número um do regime, foi Luís Carlos Prestes. O segundo foi o ex-presidente João Goulart. Depois, veio uma lista de milhares de pessoas que foram demitidas de empregos públicos, presas, perseguidas, arruinadas em sua vida particular. Juscelino e Jânio também perderam seus direitos, para que não tentassem nenhuma aventura engraçadinha na política. Só a UDN não teve punidos: coincidência, não? Os comunistas, claro, eram perseguidos como ratos. Muitos foram presos e espancados com brutalidade. O pior é que o xingamento de “comunista” servia para qualquer um que não concordasse com o regime. Seria o suficiente para ser instalado numa cela, Fariam a reforma agrária num cubículo 2 X 2 e socializariam a propriedade do buraco no chão que servia de privada. Para espionar a vida de todos os cidadãos, foi criado em 1964 o SNI (Serviço Nacional de Informações). Havia agentes secretos do SNI em quase todos os cantos: escolas, redações de jornais, sindicatos, universidades, estações de televisão. Microfones, filmes, ouvidos aguçados. Bastava o agente do SNI apontar um suspeito para ele ser preso. Imagine o clima numa sala de aula, por exemplo. Eu mesmo perguntei, certa vez, a um professor de história, “o que ele achava” de algo que os militares haviam decretado. Ele, apavorado, respondeu algo como: “Não acho nada! Eu tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele!” Eram muitos os “desaparecidos” naqueles tempos... O professore correndo o risco de ser detido caso fizesse uma crítica ao governo. Os alunos, falando baixinho, desconfiando de cada pessoa nova, apavorados com os dedos-duros. A ditadura comprometia até as novas amizades! O pior é que o SNI cresceu tanto que quase acabou tendo vida própria, independente do general-presidente, a quem estava ligado. Seu criador, o general Golbery do Couto e Silva, no final da vida, diria amargurado: “Criei um monstro.” O novo governo passou a governar por decreto, o chamado AI (Ato Institucional) O presidente baixava o AI sem consultar ninguém e todos tinham de obedecer. O AI-1 determinava que a eleição para presidente da República seria indireta. Ou seja, com O Congresso Nacional já sem os deputados e senadores incômodos, devidamente cassados, e um único candidato. Adivinha quem ganhou? Pois é, em 15 de abril de 1964 era anunciado o primeiro general-presidente, que iria nos governar o Brasil segundo interesses do grande capital estrangeiro nos próximos anos: Humberto de Alencar Castello Branco. Castello tinha sido um dos figurões da Sorbonne, ou seja, dos intelectuais da ESG. A maioria de seus ministros também era oriunda da ESG, a “Escola Superior de Guerra”, réplica nacional do “War College” norteamericano. Tranqüilos com a vitória, os generais nem se importaram com as eleições diretas para governador em 1965. Esperavam que o povo brasileiro em massa votasse nos candidatos do regime. Estavam errados. Na Guanabara e em Minas Gerais venceram políticos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. (Em São Paulo não houve eleições. Seriam depois.) Mostra clara de que alguns meses depois do golpe ainda tinha muita gente que não apoiava o regime. Pois bem, os militares reagiram. Vinte e poucos dias depois das eleições desastrosas, foi baixado o AI-2, que acabava em definitivo com as eleições diretas para presidente da República. Agora, o presidente seria “eleito” indiretamente, ou seja, só votariam os deputados e senadores. Voto nominal e declarado, ou seja, o deputado era chamado lá na frente para dizer, no microfone, se votava ou não no candidato do regime. Quantos teriam coragem de dizer, na cara dos ditadores, que não aprovavam aquela palhaçada? Muito poucos, inclusive porque os mais ousados eram sumariamente cassados. O AI-2 também acabou com os partidos políticos tradicionais. O PSD, o PTB, a UDN, tudo isso foi proibido de funcionar. Agora, só poderiam existir dois partidos políticos: a Arena e o MDB. A Arena (Aliança Renovadora Nacional) era o partido do governo. Estavam ali todos os políticos de direita que apoiavam descaradamente a ditadura. De onde vinham? Basicamente, da UDN. Mas também um bando de gente do PSD, do PSP de Adhemar de Barros e, por incrível que pareça, muitos da velha guarda integralista. Apoiavam o regime militar em tudo que ele fazia. O MDB (Movimento Democrático Brasileiro) era o partido da oposição consentida. A ditadura, querendo uma imagem de democrática, permitia a existência de um partido levemente contrário. Contanto que ninguém fizesse uma oposição muito forte. O MDB era formado pelos que sobraram das cassações, um pessoal do PTB, alguns do PSD. No começo, a oposição era muito tímida. Nos anos 70, porém o MDB conseguia votações cada vez maiores para deputados e senadores. Então seus políticos - muitos eram novos valores surgidos na década começaram a fazer uma oposição importante ao regime, capitaneados pela figura do deputado paulista Ulisses Guimarães (1916-1992) . Naqueles tempos, brincando é que se diz a verdade, comentávamos que o MDB era o “Partido do Sim” e a ARENA era o “Partido do Sim Senhor!” O AI-3, do começo de 1966, determinava que as eleições para governador também seriam indiretas. Os únicos com direito a voto eram os deputados estaduais, que tinham de ir lá na frente e declarar para todo mundo em quem votavam. Mais intimidação seria impossível, não é mesmo? O circo estava todo armado para que a ARENA governasse todos os setores da vida nacional. A Constituição de 1967 No Brasil, os homens da ditadura faziam questão de criar uma imagem de que o país era um regime “democrático”. Alegavam que existia partido de oposição e eleições para deputado e senador. Vá lá, mas acontece que os políticos mais críticos estavam cassados e o MDB, sob vigilância. Além disso, o Congresso Nacional ficou com os poderes muito cerceados. Um deputado podia fazer pouca coisa além de elogiar as praias douradas do Brasil. No fundo, quem mandava mesmo era o general-presidente e pronto. Dentro dessa preocupação de manter a aparência (só a aparência) de “democrático”, o regime promulgou a Constituição de 1967, que vigorou até 1988, quando finalmente foi aprovada a Constituição atual. Promulgar não é bem a palavra. Porque não existiu sequer uma Assembléia Constituinte. Os militares fizeram um rascunho do texto constitucional e enviaram para o Congresso aprovar. Congresso mutilado pelas cessações, nunca devemos esquecer. O trabalho era pouco mais do que aplaudir. Trabalhos regulados por um relógio que tocava corneta. Deputados obedientes como soldados em marcha. Para começar, eleições indiretas para presidente da República e governadores de Estado, Os prefeitos de capital e cidades consideradas de “segurança nacional” (como Santos, em São Paulo, o maior porto do país, ou Volta Redonda, no Rio de Janeiro, por causa da gigantesca Companhia Siderúrgica Nacional) seriam nomeados pelo governador. Em outras palavras, a Arena governaria o país pela força da lei (e das armas, claro). A Constituição de 1967 aumentava as atribuições do Executivo e a centralização do poder. É por isso que havia Congresso aberto. Pela Constituição, os deputados e senadores não podiam fazer quase nada, a não ser discursos. Veja bem: a lei não permitia nem mesmo que o Congresso pudesse controlar as despesas do Executivo. No país inteiro, governadores e prefeitos também podiam gastar à vontade no que quisessem estradas para valorizar latifúndios, estádios de futebol para enriquecer empreiteiras, teatros para a elite se divertir, prédios públicos enormes para os figurões ficarem sem fazer nada no ar condicionado. Os deputados estaduais e vereadores não tinham poderes para impedir esses gastos. Os governadores perderam a autonomia para gastar. Para qualquer obra importante, tinham de pedir dinheiro ao governo federal, ou seja, ao general-presidente. O mesmo valia para os prefeitos. Por exemplo, vamos imaginar que na cidade X, o Fulano do MDB fosse eleito prefeito. A maior parte do dinheiro dos impostos ficava com o governo federal, em Brasília. O prefeito Fulano quer fazer uma escola municipal para X. Não tem dinheiro. Tem de pedir para o governador, que é da Arena e, certamente, recebe ordens de Brasília para não dar nada. Agora, se o prefeito fosse da Arena, as coisas mudavam de figura. Principalmente porque o prefeito se lembraria de apoiar a eleição de deputados e senadores da Arena. Esqueminha montado e quase sem furos. Dá para entender por que o regime militar não teve medo de manter eleições para o Congresso e permitir a existência do MDB? Era como um jogo de futebol facílimo de ganhar, porque o juiz roubava escancarado para o lado de quem já estava no poder... O pior de tudo é que o regime iria fechar mais ainda. O último ato do governo de Castello foi a LSN (Lei de Segurança Nacional). Reprimir passava a ser sinônimo de “defender a pátria”. A Economia no Governo Castello Branco A primeira atitude do novo governo foi anular as reformas de base. Criaram um Estatuto da Terra, que previa uma tímida reforma agrária. Claro que jamais sairia do papel dos burocratas. O latifúndio estava livre para engolir os camponeses. A lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro, foi anulada. As multinacionais foram ofertadas com todas as facilidades. Os mestres do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foram os ministros Otávio Gouveia de Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento). Para diminuir a inflação, eles aplicaram receitas econômicas monetaristas. Trataram de tirar o dinheiro de circulação. Para começar, cortaram os gastos públicos, ou seja, o governo investiria menos em hospitais e escolas – já se preparava a introdução do ensino pago nas universidades públicas e começava-se com a política de esvaziamento na qualidade do ensino público gratuito de boa qualidade, valorizando mais as instituições privadas. Até antes da Ditadura Militar, estudar em colégios particulares era amesquinhante demonstração de incompetência para acompanhar o elevadíssimo nível que então o ensino público mantinha... Em 1964, tinha sido fundado o Banco Central para controlar todas as operações financeiras do país. Também foi criada uma nova moeda, o cruzeiro-novo. Os salários foram considerados os grandes responsáveis pela crise econômica do país. Claro, os operários deviam estar ganhando fortunas e o país não poderia suportar um soldador ou torneiro mecânico passando férias na Cote d’Azur, fazendo compras na Avenue Montaigne, em Paris. Assim, os aumentos salariais passaram a ser sempre menores do que a inflação. A idéia era fazer com que o aumento de preços, por causa do crescimento dos salários, fosse cada vez menor. Acompanhe o raciocínio dos caras. Por exemplo, se a inflação fosse de 30% naquele ano, a lei obrigava o patrão a conceder um aumento abaixo daquela inflação, de só, digamos, 20%. Claro que esse patrão iria compensar o prejuízo de ter de pagar mais salários aumentando os preços de seus produtos e serviços. (Por isso mesmo, diziam, existia a inflação!) Mas, em quanto? Se o salário aumentava em 20%, o patrão poderia aumentar os preços em, digamos, 21%: teria até um pouquinho mais de lucro do que antes. Mas o aumento geral dos preços (por causa do salário maior em 20%, todos os empresários reagiriam aumentando os preços em 20% e quebrados) seria perto dos vinte e pouco por cento, e não mais os 30% anteriores, No ano seguinte, com inflação de, suponhamos, uns 22%, o patrão poderia dar um aumento de salário de só uns 10%. Aí os preços, para compensar esse aumento salarial, subiriam uns 12%, por exemplo. E assim, num passe de mágica, a inflação teria caído de 30% para 12% ao ano. Claro que tudo isso está simplificado, mas a idéia básica era essa mesma. Agora, não sei se você se tocou: por essa receita, os salários eram comidos pela inflação. Em outras palavras, a ditadura militar reduziu a inflação arrochando os salários dos trabalhadores. Um dos recursos para diminuir salários foi a extinção da estabilidade. Pela lei antiga, depois de dez anos numa empresa, era quase impossível despedir um empregado. Isso acabou. No lugar, foi criado o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), em 1966, que ainda existe mas, com os ventos ainda mais conservadores que andam soprando neste país, tem havido uma tendência a propor a suspensão até deste direito para os trabalhadores. Funciona assim: a cada mês, o patrão deposita nos bancos uma parte do salário do empregado, formando uma espécie de caderneta de poupança (outra invenção do regime militar) chamada de FGTS, Acontece que o FGTS só pode ser sacado em momentos especiais, como na compra de uma casa própria ou, caso mais comum, quando o empregado é despedido. Essa lei facilitou a vida dos empresários. Agora, despedir era tranqüilo. Os empregados, sabendo que podiam perder o emprego a qualquer momento, eram obrigados a aceitar salários mixurucas. Grandes empresas (como as automobilísticas) chegaram a ser acusadas de ter uma armação para, de vez em quando, despedir alguns operários (logo absorvidos por outra fábrica, tudo combinado secretamente). A rotatividade da mão-de-obra (rodando de emprego em emprego) seria um excelente mecanismo para baixar salários. Em princípio, o dinheiro do FGTS serviria para que o recém-criado BNH (Banco Nacional da Habitação) financiasse casas populares. Na prática, o que aconteceu foi que o BNH acabou financiando a construção de condomínios de luxo para milionários. Ou seja, o pobrezinho pagando, indiretamente, a mansão do ricaço. Não devemos esquecer que as greves estavam totalmente proibidas. O peão tinha de engolir quieto a pancada salarial, senão haveria outra paulada mais dolorosa ainda. Para que os empréstimos do governo federal e os impostos devidos a ele fossem pagos decentemente, criou-se a correção monetária. Antes, o sujeito podia esperar um ano para pagar impostos porque então ele pagaria uma quantia desvalorizada pela inflação. Agora, a correção monetária simplesmente aumentava o valor da dívida no mesmo percentual da inflação. Como o governo não queria emitir papel-moeda (estava combatendo a inflação), obviamente os empresários sofreram restrições ao crédito. Juros altos, dificuldade de obter empréstimos, poucos investimentos. A economia crescia pouco. Os ministros sabiam que estavam provocando esta recessão. Achavam que era um dos remédios para baixar a inflação. Realmente, as compras diminuíram. Reduzida a demanda (procura), caíram os preços: outro fator deflacionário. Para agilizar o crescimento da economia, Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, os ministrosgurus do PAEG, criaram muitas facilidades para o investimento estrangeiro. Tinham-se ido os tempos do nacionalismo trabalhista. Bem, e o PAEG deu certo? Para o que ele se propunha, sim, foi bem-sucedido. A inflação caiu. O preço social disso é que representa problema. Os economistas “iluminados” da época falavam pudicamente no “lado perverso” das medidas econômicas. Por que a economia voltou a se recuperar? Há várias explicações. Para começar, os investidores estrangeiros ficaram mais tranqüilos: não havia mais ameaça de nacionalismo, nem de greves e muito menos de socialismo. Além disso, o novo governo tinha eliminado as restrições ao capital estrangeiro. Assim, as multinacionais começaram a investir em peso na construção de novas fábricas. O FMI, feliz com o Brasil militar, também emprestou dinheiro, E nós vimos que ajuda do FMI era uma espécie de garantia para que outros banqueiros confiassem no país. Uma das causas mais importantes da inflação é o descontrole da economia: cada empresário tenta lucrar na marra, simplesmente aumentando os preços. Vira uma corrida histérica de preços e salários aumentando sem parar. Para reverter o quadro, deveria haver um acordo nacional dos empresários entre si e dos empresários com os trabalhadores. Mas Jango, no seu tempo, encontrara dificuldade em montar o acordo. Ocorria o oposto: as lutas de classes se tornavam mais agudas. Obviamente, a ditadura não resolveu as coisas por consenso, promovendo um plano com que toda a sociedade concordasse. As coisas foram impostas na marra. Na marra principalmente sobre os trabalhadores. Ou seja, o consenso foi obtido na base do “Ou você concorda comigo ou entra na porrada!” De qualquer modo, a estabilidade foi conseguida. Quer dizer então que uma ditadura consegue estabilidade? Essa pergunta necessita de outra: de que tipo de estabilidade estamos falando? Quando examinamos as estatísticas econômicas percebemos que a estabilidade teve um preço: o aumento de exploração da força de trabalho. Costa e Silva (1967 – 1969) Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo general-presidente era Arthur da Costa e Silva. Só a Arena tinha votado na eleição indireta. Em vez de levantar o braço, batia continência. O MDB, em protesto (era minoria), havia se retirado do plenário. Com mãos ao alto. Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da companhia dos livros, como gostava o pedante Castello Branco, preferia acompanhar as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que era “gente boa”. Mas se Costa e Silva queria tranqüilidade, tinha escolhido mal o emprego. Melhor seria dar palpites no jockey. Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos, as oposições ao regime voltaram a se articular. Até mesmo Lacerda tinha virado oposição. É que ele tivera esperança de se tornar presidente, mas aqueles a quem bajulara lhe viraram as costas. Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa Frente Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca influência. Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o crescimento, a situação da classe operária vinha piorando. Em 1965, os operários paulistas ganhavam, em média, apenas 89% do que recebiam em 1960, em 1969, apenas 68%. Estava ficando feia a coisa. Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da minissaia, dos homens de cabelo comprido, da pílula anticoncepcional; da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da Revolução Cultural na China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do psicodelismo, das viagens à Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao Tsetung; do cinema de Godard, Pasolini e Antonioni; das idéias e dos livros de Sartre, Marcuse, Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm Reich; dos transplantes de coração, dos computadores e do amor livre, de Bob Dylan, Jim Morrison e Martin Luther King; de "Paz e Amor", Woodstock e Che Guevara. Especialmente, 1968. Trabalhadores e estudantes se levantaram no mundo inteiro. Em Paris, cidadela do tranqüilo capitalismo desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes jogavam pedras na polícia. Nos muros da capital francesa, os grafites anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A imaginação no poder!”, “Amor e revolução andam juntos”. Nos EUA, atacava-se o racismo. Tempos de Martin Luther King e de Malcolm X, grandes líderes negros. Os estudantes norte-americanos também sonhavam com socialismo e milhares deles protestariam contra o absurdo de a máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na América Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na Tcheco-Eslováquia, aconteceu a Primavera de Praga: os comunistas, liderados por Dubcek, tentaram construir o socialismo humanista. Na China Popular, o camarada Mao Tsetung estimulava a Revolução Cultural. A Cuba revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara mostrava o caminho para os jovens latino-americanos: guerrilha, revolução popular, socialismo “Hasta la victoria compañeros!” (Até a vitória companheiros!) No Brasil, a luta era contra uma ditadura militar e um capitalismo troglodita. Desafiando abertamente o regime, os operários fizeram greve em Contagem (Minas Gerais). Pouco depois, pararam os metalúrgicos de Osasco (São Paulo). O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os estudantes se organizassem. O maldito acordo MEC-Usaid previa a colaboração dos técnicos americanos na reformulação do ensino brasileiro. E o que os ianques propunham? Acabar com as discussões políticas na universidade: estudante deveria apenas ser mãode-obra qualificada para atender as multinacionais aqui instaladas. Além disso, o governo queria que o ensino superior fosse pago. Ou seja, faculdade só para minoria de classe média alta para cima. Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento estudantil. Coragem, sonhos libertários, utopia na alma. A juventude queria o poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um governo que esculhambava a universidade pública, contra um regime militar. Apesar de proibidas, suas passeatas nas ruas atraíram cada vez mais participantes, de operários e boys a donas de casa e profissionais liberais. A grande imprensa chamava-os de “infantis”, “toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes, gás lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas de gude (contra a cavalaria da PM), coquetéis molotov e idealismo. Os principais líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir Palmeira e Luís Travassos. Voltando no tempo... Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no tempo. Estamos em 1968, no Rio de Janeiro. Em que é que você está pensando? O que é que você faz no dia-a-dia? Imagine que você é de classe média e está se preparando para o vestibular. Assustador. A faculdade tem vagas reduzidas. Aliás, essa é uma das bandeiras do movimento estudantil: alargar o funil que desemboca na universidade. Que curso você vai seguir? A maioria quer ser engenheiro, médico, advogado. Mas tem gente que quer conhecer o Brasil para transformá-lo: vão estudar sociologia, história, filosofia e até economia. Um amigo seu diz, brincando, que tem um professor de sociologia da USP que um dia ainda vai ser presidente da República. Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há uma povão de gente alienada, que nem dá bola para o que acontece no país. Mas você e seus amigos são conscientizados. O problema é que existe uma floresta de partidos e grupelhos de esquerda: PC do B, AP, Polop, Dissidência na Guanabara e tantos outros (sigla era um troço importante naquela época). Só não vale o PCB, que não é bem visto pela garotada, que o chama de “Partidão”. Parece com um velho sábio que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não aceitar a luta armada contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos temos pôster de Che Guevara e Ho Chi Minh na parede de casa e gostamos de nos imaginar na selva entre os camponeses, com idéias na cabeça e um fuzil na mão. As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos em 1968 e alguns autores são obrigatórios: Leo Huberman, Engels, Lênin, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o famoso manual marxista de Politzer. Quem não leu, ouviu falar. O que é suficiente para participar de um debate, que é o que mais interessa. Para os mais metidos a espertos, cabe citar Marcuse, Althusser, Gramsci e Erich Fromm. No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas escancarado (até 1968 ainda dava para fazer isso). De um lado, os que acham que primeiro devem organizar os trabalhadores para depois partir para luta armada, do outro, os que acham que a luta armada organizará os trabalhadores. Isso mesmo que você está lendo: na cabeça do pessoal, a revolução está ali na esquina. É só pegar. Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as faixas com os dizeres manjados como “Abaixo a ditadura” e o provocativo “Povo armado derruba a ditadura”. Vamos para a passeata? É um problema. Sua mãe tem medo, seu pai (na época, é claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe. Melhor ir escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: freqüentar boate, beber, chegar em casa tarde da noite, viajar com o namorado e, óbvio, ir à passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando que ia “ficar na biblioteca estudando”. Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de ordem contra o regime. Dos edifícios, papel picado e aplausos. O apoio dos escritórios te enche de autoconfiança e você realmente se sente fazendo algo de importante na história do Brasil. Na cabeça, o grande hino da época, Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar não é fazer / quem sabe faz a hora / não espera acontecer”... De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma massa sem indivíduos. É a polícia. Escudo, cassetete de madeira, capacete protegendo o miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá tempo de pixar o muro com o spray “Abaixo a repressão!” Sai fora. O cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de botar a pastilha de Cebion debaixo da língua, lenço molhado no nariz. O pau cantou! Contra a violência cega, a consciência estudantil, contra a brutalidade do Estado, pedradas, xingamentos e alma libertária transbordando. Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue, hematomas pelo corpo, dentes quebrados, Muitos são presos e empurrados para o carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão para a delegacia, para serem fichados, humilhados e levar uns cascudos. Só no final do ano é que a polícia começa a atirar para matar. Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num barzinho no começo da noite, Depois de uns chopes, ou cuba-libre (rum com Coca-Cola), todo mundo ficava animado para contar pela décima vez suas proezas, sempre um pouquinho exageradas, é claro. Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou numa menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era tolerado nem pela esquerda. Ser bicha era quase sinônimo de ser contra-revolucionário. Muitos guerrilheiros machos se remoeriam de culpa pelos anônimos desejos inconfessáveis. Só no final dos anos 70 as mentalidades começaram a mudar.) Pois bem, se você estivesse a fim de alguém, logo trataria de falar alto para aparecer. Essas coisas não mudaram demais desde então, não é mesmo? Um bom caminho era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo, estar por dentro das últimas novidades culturais. No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de Hollywood, bajulando atores e espetáculos, não estava com nada. Pelo menos nos papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor. Antonioni (Blow-up, 1967, e , Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard (A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman, Visconti, Fellini e o nosso Glauber Rocha ( Terra em Transe, 1967, Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de Cannes 1969 como melhor diretor), É claro que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda, Paul Newman, Marcelo Mastroiani, Alain Delon e, claro, Jane Fonda, que depois de posar nua virou militante contra a Guerra do Vietnã. Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de Brecht, Maiakovski, Pablo Neruda, Gorki, Sartre. Mas também valia Franz Kafka, o judeu tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo da sociedade burocrática. O americano Henry Miller descrevia o sexo com uma crueza tão violenta que achavam que era arte. Quem já gostava de misticismo lia Hermann Hesse. Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando sobre coisas intelectuais e políticas o tempo inteiro. Isso só existe em série da Globo. As pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam além da conta, namoravam, iam às compras, estudavam para as provas. Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a pílula da moda. Entretanto, mesmo entre o pessoal de esquerda, havia muito conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e, no máximo, permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que transasse com alguns caras era vista como “galinha”, e certamente ninguém iria querer algo mais “sério” com elas. Como já ensinava Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos têm mais raízes do que os princípios. O fechamento do regime (mais ainda!) A esquerda voltava a crescer no Brasil. Nas ruas, as passeatas contra o regime militar começavam a reunir milhares de pessoas em quase todas as capitais. Diante disso, a direita mais selvagem partiu para suas habituais covardias. Aliás, covardia era a especialidade da organização terrorista de direita CCC (Comando de Caça aos Comunistas). O nome já diz tudo. Consideravam que a esquerda era feita por mamíferos a serem abatidos. Os trogloditas, então, atacaram os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo, Surraram todo mundo, inclusive a atriz Marília Pêra. Depois, metralharam a casa do arcebispo D. Hélder Câmara, em Recife (alguns membros da Igreja Católica estavam deixando de bajular o regime). Em São Paulo, os filhinhosde-papai da Universidade Mackenzie (onde nasceu o CCC) agrediam os estudantes da USP, na rua Maria Antônia, valendo desde pedradas até tiros de revólver. De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João Paulo Burnier elaborou um plano criminoso, o Para-Sar. Uma loucura: os pára-quedistas da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos do regime e jogariam do avião no mar alto, a uns 40 quilômetros da costa. Além disso, havia o projeto de explodir o gasômetro do Rio de Janeiro, começo da avenida Brasil, área industrial e de trânsito engarrafado. Morreriam umas 10 mil pessoas queimadas. Tragédia nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e os executaria sumariamente. Que coisa diabólica, não? Só não se concretizou graças à bravura e ao patriotismo de um militar da aeronáutica: o grande brasileiro capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de ser cancelada. Mas o capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica. A greve operária de Contagem terminou com acordo salarial entre patrões e empregados: Mas em Osasco a coisa foi diferente. Ela tinha sido bem melhor preparada, inclusive com participação de estudantes esquerdistas na organização do movimento. O governo então falou grosso. O sindicato dos metalúrgicos foi invadido e o presidente, José Ibraim, teve de se esconder da polícia. O exército preparou uma operação de guerra e ocupou as instalações industriais. A partir daí, quem fizesse gracinha de greve teria de enfrentar os blindados e fuzis automáticos. Ou seja, as greves acabaram. Contra os meninos e meninas do movimento estudantil, foram lançados homens armados até os dentes. Agora passeata começava a ser dissolvida a bala. No Calabouço, um restaurante carioca freqüentado por estudantes, a polícia militar assassinou um rapaz, Édson Luís. Nem a missa de sétimo dia, na catedral da Candelária, foi respeitada pela polícia, que baixou o sarrafo nas pessoas que saíam do templo. Em resposta, a maior passeata já vista na avenida Rio Branco: a célebre Passeata dos Cem Mil (26/6/1968). Era a multidão, bonita, vigorosa, olhando para a vida, exigindo a mudança. Os militares estavam apavorados. Até onde aquilo tudo iria levar? Concluíram que precisavam endurecer mais ainda o regime. E endureceram. As passeatas de estudantes passaram a ser reprimidas pelas próprias Fonas Armadas e muitos estudantes foram baleados. Agora, em vez do cassetete, vinha o fuzil automático. O congresso secreto da UNE, em Ibiúna (SP) foi dissolvido, com 1240 estudantes presos. O pior estava por vir. Faltava só o pretexto. No Congresso Nacional, o jovem deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso em que recomendava que as mulheres não namorassem os militares envolvidos com as violências do regime. O que seria do país, se os oficiais não namorassem? Ficariam com o fuzil na mão? Os generais exigiram sua punição, mas o Congresso não permitiu. Foi, então, que saiu o Ato Institucional nº 5, o AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Claro que o caso do deputado era só desculpa. Tratava-se, na verdade, de aumentar a repressão e silenciar os opositores. O AI-5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar. Com ele, o general-presidente poderia, sem dar satisfações a ninguém, fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos. de parlamentares (isto é, excluir o político do cargo que ocupava, fosse senador, governador, deputado etc.), demitir juízes, suspender garantias do Poder Judiciário, legislar por decretos, decretar estado de sítio, enfim, ter poderes tão vastos como os dos tiranos. Tem gente que chega a falar do “golpe dentro do golpe”. Se a ditadura já era ruim, agora ela piorava.E muito! A oposição parte para a luta armada O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda hora tem tanque na rua, soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras, ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto parece bem normal. Mas, se você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério cobrindo o país, o estômago fica pesado demais. Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o regime. Depois do AI-5 (dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez. Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma notícia que desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time do Internacional de Porto Alegre, com sua camisa vermelha, poderia ser encarada como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o jornal não podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O jeito foi botar receitas de bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política nacional e, de repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os espertos sacavam logo que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou conveniência, chegavam a mandar cartas para as redações dos jornais, pois as receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de farinha de trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de chá de suco de laranja...” Não há receita que dê certo assim, hehehe. Claro que existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como: “naquele tempo o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham elogios para o governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.” Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha até à cadeia. Estudantes e professores que conversassem sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que você está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria casa... _ O que você acha da situação atual? _ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To fora! " Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de pertencer ao SNI. Veja que coisa, a ditadura tolheu até as novas amizades! O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi o caso, por exemplo, do deputado federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974 porque fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o ditador chileno Pinochet em visita ao Brasil, o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no regime. Não teve CPI nenhuma e ele ainda foi cassado. É isso aí: numa ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão enjaulados, mas a corrupção está livre. Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para muitos jovens, só havia um caminho a seguir: a luta armada. Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a grande arma de libertação dos povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam. Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No Vietnã, os guerrilheiros de Ho Chi (Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo norte-americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e conquistaram a independência do país. Na própria China, a revolução socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa comandada por Mao Tsetung. No Brasil não poderia ser diferente: muitos estudantes, velhos militantes da esquerda e intelectuais começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5 não havia mais espaço para a legalidade. Só a luta armada libertaria o Brasil. Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada. Os comunistas acreditavam que a luta no momento não era nem socialismo nem reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário. Sua estratégia era a de se unir a todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino, no MDB. Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um xingamento horroroso, pois isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos revolucionários...). A juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e meninas, adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que embarcaram na aventura da luta armada. Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido companheiro de guerrilha de Che Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista: meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área rural. Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham a confiança através do trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o camponês jamais viu um médico e, de repente, aquelas pessoas o tratam com cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado, que os camponeses precisam se unir e se armar. E quando chegam os jagunços do fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo de armas de guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que aderem ao movimento, eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois, quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia barracos, molesta as meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por sua vez, nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas, ações rápidas e fulminantes. Depois, a fuga veloz: sua mobilidade e ataques de surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio logístico dos moradores. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava que surgiria outro foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um dia esses focos começariam a se unir para compor um grande exército popular. Tal como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria vitoriosa. Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e pouco pé no chão. Como fazer guerrilha camponesa num país em que a maioria já vivia na cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido dado: em 8 de outubro de 1967, Che Guevara foi assassinado pela CIA, quando organizava um foco guerrilheiro na Bolívia. Não era um aviso de mau agouro? Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi entre 1969 e 1973. Havia um cacho de grupos de luta armada, diferentes nos objetivos e nas estratégias, embora no final todos visassem ao socialismo (já se disse que as esquerdas só se encontram na cadeia...). Uns achavam que primeiro era preciso derrotar a ditadura, outros achavam que já era possível lutar imediatamente pelo socialismo; uns achavam que primeiro era preciso organizar os trabalhadores e depois se lançar na guerrilha, outros achavam que através da luta guerrilheira os trabalhadores iriam se organizando; uns achavam que a guerrilha urbana era a mais importante, outros, que era a rural. Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia geral de como funcionavam as mais importantes: VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro), a ALN (Ação Libertadora Nacional), o PCBR (PCB Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares. Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas. Os simpatizantes, que eventualmente podiam esconder alguém em casa ou contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos. Apesar de sonharem com a revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes geralmente eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava contra a luta armada. Ainda tinha um grupo importante de militares desertores do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo leitor, com 17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na faculdade. A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no campo. Na verdade, a guerrilha ficou sendo urbana mesmo, sem repercussão maior. Houve algumas tentativas de panfletar na porta de fábricas, e um grupo chegou a levar um caminhão cheio de comida para distribuir na favela, anunciando aquela como “a primeira das muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui em diante”. Pura ilusão. A repressão do governo agia com muita eficácia e rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de assaltar bancos para levantar fundos para a luta e seqüestrar embaixadores em troca da libertação de presos políticos. Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os guerrilheiros consideravam-se marxistas, mas quase nada tinham lido a respeito. Ninguém tinha feito uma análise profunda da sociedade brasileira para ter certeza de que aquela era a melhor estratégia a ser seguida. Por exemplo, sonhavam com uma guerrilha camponesa num país enorme que já era urbano e industrial. Queriam buscar seus próprios caminhos políticos, mas no fundo imitavam modelos de outros países, como Cuba e China. Falavam em nome dos trabalhadores, mas jamais tiveram um contato maior com a população. O povo, dominado pela propaganda oficial e pela imprensa censurada, os ignorava ou os tratava como bandidos, seqüestradores, assaltantes de banco, “terroristas”. Viviam tão fora da realidade, que só faltaram dizer que as vitórias do governo, pulverizando a guerrilha, eram “a mostra do desespero da burguesia em sua crise final”. Coitados, eram rapazes e moças que nunca tinham visto um revólver na vida enfrentando um Exército profissional bem equipado e com assessoria dos EUA. Nem dava para começar. A única tentativa que teve alguma consistência foi a Guerrilha do Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou menos entre 1972 e 1974, organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do PCB (que era de linha soviética e contra a luta armada) o PC do B seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha. Pois bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do Sudeste e multinacionais investiram em pecuária extensiva na região do Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de camponeses posseiros (não tinham documentos legais da propriedade da terra, apesar de trabalharem nelas havia muitos anos). Nem quiseram saber, passaram a fazer grilagem das terras (tomar ilegalmente). Quando o camponês não queria abandonar a terra, os capangas da empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a plantação, espancavam os moradores. Como você pode perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os posseiros eram muito fortes. O PC do B quis aproveitar esse potencial de revolta e chegou na região para montar uma base de treinamento. Foram descobertos pelo Exército, que deslocou para região milhares de soldados. Contra uns 60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada, as pessoas só sabiam alguma coisa através de boatos. Mas na região do Araguaia até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu. Muitos militares abusaram do poder e espancaram brutalmente a população para que revelasse os esconderijos dos guerrilheiros. Os prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a morte depois que o corpo virou uma massa de pedaços de carne e sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a guerrilha do Araguaia estava destruída. O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda adolescentes, que tiveram a coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem de classe média, para combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não concorde com os caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em cemitérios clandestinos. E se o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados pelo governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir como deve ser combatida? Repressão e Tortura “Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice fará jorrar sangue demais Nos pantanais, nas cidades, caatingas E nos gerais” CAETANO VELOSO " Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem. Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver escondido na cintura, olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido. Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem presos, não poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E mudam de residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um encontro marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas, debaixo de paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho rápido. De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você vai sentir na pele a face mais negra do regime. A tortura. Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara (um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens castrados. A lista de atrocidades é infindável. Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem eficaz. Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava contar tudo que a tortura acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando, com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado para um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar com a repressão. Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado. O laudo oficial do IML, emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio com a polícia”. Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue. Por isso, amigo leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais sob o jugo das botas da tirania. Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao contrário do que se possa pensar, a tortura não era feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo. Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como também aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos Serviços de Informação das Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou a guerrilha com brutalidade. Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura. Muitos sequer sabiam que ela estava acontecendo. Mas é inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no aparelho repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e autorizavam a continuação da tortura. Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas Forças Armadas e que foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco dos réus. A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma propaganda ideológica massacrante. Numa época em que todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento e progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento econômico do país convenciam a população de que vivíamos numa época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.” Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”, “agentes subversivos”. Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia! O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda ideológica. Na época, a esquerda se perguntava: “O futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De qualquer modo, meu amigo, aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, seus craques são inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas (pela primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela televisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava: “Todos juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques. Queriam que o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia, com JK e Jango). O prefeito de São Paulo, Paulo (que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um automóvel zero quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os torturadores chutavam os presos. Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e 1974. Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo tinha de acreditar que o Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-o ou Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na verdade. Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias esportivas e da máquina de propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o tempo do “milagre econômico”. " Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974) "A plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. . . " PRESIDENTE MÉDICI Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do AI-5. um derrame o matou, em agosto de 1969. O povo não teve tempo de se alegrar; uma Junta Militar, comandada pelo general Lyra Tavares, assumiu o governo até se nomear o novo general-presidente. 0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo (exUDN), não tinha apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para escanteio. No mesmo ano, ocorreu a Emenda Constitucional nº 1, que alguns juristas consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o arbítrio e os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas arbitrárias tipo AI-5 e 477 foram incorporadas à Constituição. Além disso, ela estabeleceu que o presidente podia baixar medidas (decretos-leis) que valeriam imediatamente. 0 Congresso disporia de 60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias para votar a aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o Congresso poderia, por exemplo, estar fechado pelo AI-5, ou com número insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria automaticamente aprovado por decurso de prazo. Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo presidente era o general Emílio Garrastazu Médici. Seu governo teve dois pontos de destaque: o extermínio da guerrilha e o crescimento econômico espetacular (o “milagre”). Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se torturou e assassinou tanto. Nos porões do regime, as pessoas tinham suas vidas postas na marca do pênalti. E assim os órgãos de re-pressão marcaram gols, liquidando guerrilheiros como Marighella (4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca (17/09/71). Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico. A produção crescia e se modernizava num ritmo espetacular. A inflação, dentro dos padrões brasileiros, até que era moderada, lá na casa dos vinte e tantos por cento. Construía-se com euforia. Obras, como a ponte Rio-Niterói, a rodovia Transamazônica, a refinaria de Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972), pareciam mostrar que a prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações na Bolsa de Valores e imaginava se tornar grande capitalista. Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou criaram-se novas, principalmente na produção de aço, petróleo, eletricidade, estradas, mineração e telecomunicações. Os nomes delas você já ouviu falar: Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás, Correios, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Usiminas e tantos outros. Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes trabalhadoras. Pelo contrário, quanto mais o país crescia, tanto mais piorava a vida do povo. Em 1969, por exemplo, o salário mínimo só valia 42% do que representava em 1959, Em 1974, isso desceu para 36%. Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres, A ditadura foi uma espécie de Robin Hood às avessas. Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que não havia nenhuma greve, nem sindicato independente, nem a oposição no Congresso tinha margem de manobra. Era uma ditadura que fazia uma coisa incrível: o país crescia como poucos no mundo e quanto mais riquezas eram produzidas, mais difícil ficava a vida dos trabalhadores. E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao povo miserável que "está tudo bem"... Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía. Nas grandes cidades brasileiras ela crescia, Quanto mais a renda per capita do Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque comiam pouco, não eram vacinadas, não tinham médico, De repente, houve uma epidemia de meningite, Doença que pode matar, É preciso que os pais estejam alerta. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem qualquer notícia a respeito. O povo tinha de ser enganado pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava sob controle, o que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da doença, não davam muita importância para aquela febrezinha do filho, Achavam que era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde, Até que a criança morria, A meningite mataria milhares de meninos e meninas no Brasil, numa das mais terríveis epidemias do século, Só esse caso já mostra o quanto a ditadura era absurda, não é mesmo? O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência: “temos de esperar o bolo crescer para depois distribuir os pedaços”. E até hoje o povão está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o generalpresidente Médici dizia: “A economia vai bem, só o povo é que vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é que ia mal, um trocinho assim, sem importância, uma poeirinha desprezível chamada povo... Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a ditadura, além de modernizar a indústria de base, estimulou a de bens de consumo duráveis. Maravilha das maravilhas: a família de classe média se realizava existencialmente comprando tevê em cores (desde 1972), aparelhagens de som, automóveis, eletrodomésticos. E até a classe operária foi arrastada nesse processo de crença na ascensão social baseada na aquisição do radinho de pilha ou do tênis maneiro, A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos eram compridos e as barras das cabas eram “boca-de-sino”, as obras eram gigantescas, o governo fazia estádios de futebol em tudo quanto era canto, mas as escolas caíam aos pedaços, A rodovia Transamazônica, importante para iniciar a colonização da Amazônia, não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios, aos camponeses e aos garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi realmente funda mental para ligar a economia do Nordeste do país ao Sudeste industrial (RJ e SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente teria sido mais barata se as contas tivessem sido controladas democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem fazendo essa obra encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas obras faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase inúteis, tal como as antigas pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens do governo e firmas de engenharia civil ganharem uma boa grana por fora. Velha história: sem democracia a roubalheira rola solta porque não há imprensa livre, Congresso independente. Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais (estrangeiras). Elas tiveram mais favores do governo do que as empresas nacionais! O que não é de se espantar, pois grande parte dos homens do poder eram profundamente ligados aos grupos estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Analistas como Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen (que o presidente Collor queria para seu ministro), Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros como “notórios entreguistas”, ou seja, responsáveis conscientes pelo favorecimento escancarado do governo aos monopólios estrangeiros, É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total às multinacionais. Afinal, com a internacionalização da economia, ou seja, a ligação econômica direta entre quase todos os países e continentes, elas se tornaram peças fundamentais da economia mundial. Inclusive, porque parecem realmente ser úteis parceiras em alguns setores, já que nenhum país pode ter sozinho tecnologia e capital para produzir tudo. Todavia, é sensato esclarecer alguns pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida externa brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado aos banqueiros internacionais para fazer obras gigantescas a favor das multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que elas mandem para fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui reinvestir? Será interessante o seu poder de levar à falência as empresas nacionais, através de uma concorrência desleal? Será que elas realmente nos transferem tecnologia ou só mandam pacotes prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam dinheiro escondido "por debaixo do pano"? Será que não interferem na nossa vida interna, combatendo governos que não lhes interessam, mesmo se estes forem a favor do povo? Será saudável que produzam aqui remédios e produtos químicos proibidos em seus países de origem? Por que será que um operário da Volkswagen ou da Ford no Brasil faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de tecnologia, que operários dessas empresas na Alemanha ou nos EUA e, no entanto, ganha tão menos? Tantas perguntas... Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento acelerado, inflação moderada, facilidades para o investimento estrangeiro, e também ricos mais ricos e pobres mais pobres e aumento da dívida externa. Você reparou que era um esquema parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O desenvolvimento espetacular das telecomunicações e da indústria de bens de consumo duráveis (automóveis, eletrodomésticos, prédios de luxo e mansões financiados pelo BNH) eram voltados principalmente para a classe média e superior. Milhões de brasileiros estavam meia por fora desse mercado. Claro, portanto, que essa festa não iria durar muito. 0 modelo se esgotava e a crise chegava mais rápido do que o Émerson Fittipaldi. Governo do General Ernesto Geisel ( 1974 – 1979 ) O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num momento difícil da economia do Brasil e do mundo, Para alimentar o crescimento, ele pediu emprestado aos banqueiros estrangeiros e tratou de emitir papel-moeda. A inflação começou a aumentar e a engolir salários. Era o fim do “milagre econômico”. Agora, a insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de votos do MDB. Geisel percebeu que a ditadura estava chegando ao fim de sua vida útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob controle. Com ele, começaria a “distensão lenta e gradual”. O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista mundial. Parecida com a de 1929, mas com efeitos bem menores para os países capitalistas desenvolvidos, que empurraram a crise para cima do Terceiro Mundo. De certa forma, os apertos econômicos dos países subdesenvolvidos, nos anos 90, foram continuação do processo de 1973. Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços do petróleo: Conversa fiada. O aumento foi apenas a recuperação de preços, que vinham caindo muito, desde os anos 50. Para você ter uma idéia, antes do aumento imposto pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o preço do barril de petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral! Claro que o aumento dos preços pegou todo mundo de surpresa, aumentou os custos, cortou os lucros, provocando inflação e desemprego. A crise do petróleo reforçou a crise geral do capitalismo em 1973. Mas com certeza a crise não foi só energética. Afinal, países exportadores de petróleo também entraram em crise! O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de mercadorias, tal como ocorrera em 1929. Depois da Segunda Guerra, os EUA representavam metade da produção econômica mundial. Mas nos anos seguintes a Europa Ocidental recuperou plenamente sua economia. Surgiu também um grande competidor, o Japão. De repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar investindo capital nos mesmos ritmos. As mercadorias começaram a ficar encalhadas e logo vieram as falências, a inflação, a recessão. Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise era mundial. Certo. Mas por que aqui ela era tão devastadora? Porque a política econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não representava nem 25% das nossas importações em 1975. Além disso, não só aumentou nossa produção interna, como seus preços internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a crise foi aumentando, ano após ano. Uma coisa tão braba que o nosso jovem leitor com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise econômica brasileira. O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no pequeno mercado interno, representado pelos ricos e pela classe média. O país estava se transformando na Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia: uma quantidade razoável de pessoas (classe média e superior) com padrão de consumo de país desenvolvido, vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros, ou seja, a parte do Brasil parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria (classe média baixa e classes inferiores) com padrão de vida muito baixo, milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se alcançado um estágio em que não dava para aumentar a produção, por falta de consumidores aqui dentro. A Bélgica da Belíndia era pequena e a Índia da Belíndia era cada vez maior. Como produzir mais automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para comprá-los? Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor: distribuindo renda. Para isso, seria preciso tocar em privilégios, mexer em interesses poderosos. Então, o regime militar não faria nada disso. O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em recessão, isto é, para a economia não regredir, o Estado começou a tomar empréstimos externos para financiar a produção. Supunham que a economia cresceria, que as exportaÇões se tornariam espetaculares e que tudo isso daria condições de pagar a dívida externa. Só que os banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram dinheiro porque sabiam que o Brasil teria de devolver muito mais em forma de juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que nos anos 70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu emprestado! Ou seja, já pagamos tudo, continuamos pagando e ficamos devendo mais ainda! A dívida externa funciona como uma bomba de sucção que chupa os recursos da economia do Brasil. Aliás, o problema da dívida externa é comum em todo o Terceiro Mundo. Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80 foram drenados bilhões de dólares do Terceiro Mundo para o Primeiro. Ou seja, a parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que mandou dinheiro para a parte milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse esquema continua. O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida externa brasileira foi contraída financiando a vinda de multinacionais, construindo obras gigantescas só para favorecer empresas estrangeiras (estradas, hidrelétricas), sem falar construções que o governo nunca terminou, deixando as máquinas e o material serem destruídos pelo tempo. Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele, é fácil. É só fabricar, emitir papelmoeda. Aí, vem a inflação. Para evitar a inundação de dinheiro, o governo criou mercados abertos (opens markets), vendendo títulos, ou seja, papéis expedidos com a garantia do governo, que mais tarde poderiam ser resgatados (o proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por um valor superior. A idéia era "enxugar" o mercado, mas a medida deu a maior força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer dizer, os empresários manobravam para negociar esses títulos com altos lucros. Eis aí um dos grandes problemas da economia brasileira a partir dali: a especulação financeira. Ela é um ganho artificial, já que não envolve nenhum investimento produtivo. No fundo, está transferindo riqueza da sociedade para o bolso de alguns espertinhos. A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os empresários não tinham conversa: buscaram lucrar na marra, botando os preços lá em cima. Ora, é impossível que os empresários, como um todo, possam lucrar na base do simples aumento de preços. Quando alguém aumenta os preços, o outro aumenta também para compensar. Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda com os aumentos gerais de preços. Os empresários aumentam os salários e, em seguida, sobem mais ainda os preços para reparar as perdas com a alfa de preços e salários. Vira um círculo vicioso. Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor. Espiral inflacionária. E o pior é que geralmente os preços crescem mais rápido do que os salários. Portanto, quem mais perde com a inflação são os trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a passo de cágado. O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando Geisel. Família unida é ditadura unida. Sua presidência ocorreu dentro desse panorama de crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao luxo de ter um ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em Brasília, segundo o Jornal do Brasil, consumia, mensalmente, 954 kg de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma tonelada de bifes por mês, como devia ser gordo o ministro do Trabalho! Bem, com certeza os salários dos trabalhadores não eram tão gordos. No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo na bacia de Campos (RJ), em frente à cidade de Macaé. A Petrobrás pôde aumentar sua produção espetacularmente. Mas Geisel tinha também outros planos para resolver o problema energético: como não havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar mais dinheiro ainda. O acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de bilhões de dólares. Para fazer usinas perigosíssimas num país onde 80% do potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina de Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros industriais do país: São Paulo e Rio de Janeiro. Imagine se houvesse um acidente nuclear! Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa. Geisel montou um acordo nuclear com a Alemanha porque acreditava que o Brasil precisava aprender a dominar a tecnologia capaz de produzir, num futuro próximo, a bomba atômica. Na mesma época, a Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976, também sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou tomando uns cogumelos não exatamente nucleares, não é verdade? No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era substituir a gasolina pelo álcool combustível. Os usineiros se alegraram. As plantações de cana-de-açúcar foram ocupando tudo quanto é lugar, expulsando os camponeses moradores, acabando com as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara) e despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do preço mundial de petróleo, o Brasil ficou com uma enorme frota de carros movidos a um combustível caríssimo. Já em 1990, querendo melhores preços, os usineiros '`sumiriam" com o álcool. Na verdade, o álcool se revelou um combustível muito mais caro do que a gasolina (no posto, o álcool é mais barato porque é subsidiado, ou seja, o governo paga uma parte da conta. Mas onde arruma dinheiro para fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em miúdos: quem tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque de quem tem carro a álcool). O que se viu nesses anos todos foi o governo emprestando milhões de dólares aos usineiros do Nordeste, do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois perdoando as dívidas porque não suporta mais a choradeira dos produtores de álcool e açúcar. Enquanto isso, os cortadores de cana continuam passando fome. Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem mais baratos, podendo, em alguns casos, usar energia elétrica? Não foi incompetência. Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas dorsais de nossa indústria é fabricação de automóveis e caminhões. As pressões das multinacionais desse setor forçaram o governo a abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro, tão importantes nos países desenvolvidos, foram relegadas a segundo plano pelo governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos cortados. O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi no governo Médici, sob a batuta do ministro Delfim Netto -, comandado pelo ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e pelo do Planejamento, Reis Velloso, tinha como objetivo começar a substituir as importações de bens de capital (indústria de base). Para isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do setor, mas principalmente as empresas estatais tiveram grande crescimento, especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional Light and Power e levou adiante a construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira com o Paraguai), a Embratel (telefones, satélites de comunicações, televisão etc.), a Petrobrás e as estatais de aço. Tudo isso alimentado por uma dívida externa que aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida e os juros. Aí, a economia sentiria a fona de sucção dos interesses internacionais. “Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo à democracia” Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para deputado federal e estadual e para o Senado, em 1974 e 1978, o MDB teve ótima votação. Um aviso claro para o pessoal da ditadura se mancar. O povo estava dizendo não ao regime. No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns achavam que a ditadura deveria ir afrouxando, acabando de modo lento e controlado. Talvez, para os ditadores saírem discretamente pelos fundos, sem ninguém correr atrás deles. Esses generais moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade democrática eram chamados de castelistas, porque se sentiam continuadores de Castello Branco. Era o caso do próprio Geisel e do presidente seguinte, Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses eram civis -, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por exemplo, tinham sido de linha dura. Começou então um combate nos bastidores, entre os militares castelistas e os linha dura. E os linha dura bem que pegaram pesado. Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de telejornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi chamado para um interrogatório num quartel do Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou, preso e incomunicável. Dias depois, a família recebeu a notícia de que ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria de ser enterrado em um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava arrebentado pela tortura? No ano seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino. A farsa era evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por espancamento. Em homenagem a Herzog, o cardeal de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James Wright e ao rabino Henri Sobel, dirigiu um culto religioso ecumênico (reunindo as religiões) em frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que foi a primeira manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a sociedade civil estava voltando para as ruas para protestar contra o arbítrio. Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas exonerou o comandante do II Exército, responsável pelos acontecimentos. Deixava claro que não admitiria os atos violentos da linha dura. Em 1978, o Poder Judiciário daria ganho de causa à família de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos. Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia. Um trágico exemplo disso foi o massacre da Lapa, quando agentes do Exército invadiram uma casa nesse bairro da capital paulista, em 1976, onde se realizava uma reunião secreta de dirigentes do PC do B. As pessoas nem puderam esboçar reação: foram exterminadas ali mesmo, covardemente. Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso, teve de usar a habilidade para derrubar seus opositores de linha dura. A balança pendeu para o seu lado quando ele, num gesto fulminante, exonerou o general Sílvio Frota (1977), ministro do Exército, tido como de extrema direita e ligado à tortura. A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar. Alguns militares eram favoráveis à distensão política porque realmente estavam imbuídos de convicções democráticas. Outros, não tão liberais, avaliavam que as Forças Armadas estavam começando a se desgastar ao se manter num governo que enfrentava uma crise econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão lenta e gradual. Ou seja, abrir o regime bem devagarzinho e sem perder o comando sobre ele. Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as vitórias eleitorais do MDB. Para isso, mudou as regras das eleições. Seu ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso pela inteligente proibição da transmissão, pela tevê, do balé Bolshoi de Moscou (bailarinos são presa fácil do comunismo?), inventou a tal Lei Falcão (1976), que dizia que a propaganda política na tevê só podia exibir uma foto 3X4 do candidato e seu currículo, lido por um locutor. Nada de um candidato do MDB aparecer na telinha ou no rádio para criticar o governo e fazer propostas novas. O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um presentinho para os brasileiros, o Pacotão de Abril. Lindas surpresas. Para começar, a cada eleição a Arena perdia mais deputados para o MDB. Em breve, o partido do governo não teria os 2/3 do Congresso necessários para mudar alguma coisa da Constituição. Então, o Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser modificada com apenas 50% dos votos dos congressistas mais um. Assim, a Arena (ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB também ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço dos senadores passariam a ser biônicos, ou seja, escolhidos indiretamente pelas Assembléias Legislativas de cada Estado. Em outras palavras, a Arena já tinha garantido quase 1/3 do senado, os outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados do Nordeste, onde a população rural ainda era dominada pelos currais eleitorais, e portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o direito de eleger um número maior de deputados para o Congresso. No sertão nordestino, chuva mesmo, só de deputados da Arena. O Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o dono da bola joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz. Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa vontade de Geisel com a distensão política, Mas antes de ele acabar com o ato arbitrário, usou o AI-5 para cassar diversos opositores. Mais ou menos como o pistoleiro que mata todo mundo e que, depois de acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez. A garantia disso. tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava sendo mantida. Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo responsável: restabeleceu relações com países comunistas como a China, porque isso trazia vantagem comercial e diplomática. Em 1975, na África, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram de ser colônias de Portugal. No poder, partidos de orientação marxista, apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o governo militar ainda seguia a visão da Doutrina de Segurança Nacional que sonhava em transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do Sul e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os governos de esquerda em Angola e Moçambique, inclusive contrariando a vontade do governo racista da África do Sul e dos EUA. Na verdade, os EUA, do presidente Carter, andaram pressionando o governo militar brasileiro por causa da violação de direitos humanos (incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de americanos: apoiaram o golpe de 64, depois mudaram de governo e passaram a criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil – Alemanha, Geisel acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso mostra uma coisa muito importante: apesar de o regime militar brasileiro ter sido apoiado pelos EUA, isso não quer dizer que o Brasil sempre tivesse seguido os americanos. Não foram eles que impuseram o regime aqui. A explicação básica do que acontece no Brasil tem de ser buscada aqui mesmo, nas nossas estruturas, nas nossas contradições internas, Culpar o imperialismo por tudo é cômodo e superficial. No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general Figueiredo. A crise continuava e as pressões populares pelas mudanças, também. Bibliografia: História do Brasil – Luiz Koshiba – Ed. Atual História Crítica do Brasil – Mário Schmidt – Ed. Novos Tempos História do Brasil – Boris Fausto – Ed. Difel GRÁCIA LOPES LIMA EDUCAÇÃO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO NA PERSPECTIVA DA EDUCOMUNICAÇÃO SÃO PAULO 2009 GRÁCIA LOPES LIMA EDUCAÇÃO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO: PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO NA PERSPECTIVA DA EDUCOMUNICAÇÃO Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de concentração: Cultura, Organização e Educação Orientador: Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos SÃO PAULO 2009 371.112 L732e Lima, Grácia Lopes Educação pelos meios de comunicação: produção coletiva de comunicação, na perspectiva da educomunicação / Grácia Lopes Lima; orientação Marcos Ferreira Santos. São Paulo: s.n., 2009. 135 p. ; 2 DVDs Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área de Concentração: Cultura, Organização e Educação) - - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 1. Educação 2. Comunicação 3. Educomunicação I. Santos, Marcos Ferreira, orient. FOLHA DE APROVAÇÃO Grácia Lopes Lima Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de comunicação na perspectiva da Educomunicação Tese apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Educação. Área de concentração: Cultura, Organização e Educação Aprovada em _______________________________ Banca Examinadora Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição:______________________Assinatura____________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição:______________________Assinatura____________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição:______________________Assinatura____________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição:______________________Assinatura____________________________ Prof. Dr. ____________________________________________________________ Instituição:______________________Assinatura____________________________ Para o GENS – Serviços Educacionais eo Projeto Cala-boca já morreu AGRADECIMENTOS Minha mãe, Judith Lopes de Lima, em quem me inspiro, pelo esmero, vigor e capacidade de transformação; meu pai, Air de Lima, por me levar para ver com olhos de menina o centro, os depósitos e os lixos; Donizete Soares, pelas intensas, precisas, constantes e preciosas iniciações, braveza e doçura; Clorinda, Stella D’Alma e Cecília, 1ª série azul-marinho, colegiais da noite do Colégio Pe. Moye, pelas primeiras inquietações profissionais; Plínio Marcos, que me pôs na trilha do bando; Mayra Lima Soares, pela harmonia; Isis Lima Soares, pela presença constante, fonte de inspiração, GENS, pelas possibilidades; Ercília Mendonza, pela passagem; Ludmila, pela permissão da escuta, Rádio Cidadã, pelas descobertas; Luci Martins, pela bela parceria, Edson Fragoaz, pelas pedras jogadas em minhas águas, Mayra, Helen, Michel, Arony, Rodrigo, Fábio e André, Kamila, Rodolfo, Ângelo, do Porrada no ar, pelo desafio, Isis, Thiago e Ariane, Maíra e Gibran, Mônica e Renata, Calhandra, Hiléia e Larissa, Mariana Kz e Gabi, Luana e Melina, Hans, Renato, Lígia, Adriano, Cadu, Liz, Mariana Manfredi Magalhães, Ticiane, Felipe, Jefferson, Tiago, Renata, Bruno, Amanda, Gabriel, Sílvia, Lúcia, Laúcia, Ana, Flávio, Fernanda, Mariana Teófilo, Rodrigo, Vagner, Vanessa, Diego, Lincoln, Fred, Fernando, Henrique, César, Maria Paula, Marcela, Jade, Larissa, Larissa Guimarães, Ingrid, Kevin, Sofia, Lívia; Julyana, Maryana, Mylena, Jacqueline, Joyce, do Cala-boca já morreu, um Projeto de Vida, por isso tão inspirador; Antonio Carlos Escudero e Centro Dehoniano de Comunicação, pelas novas parcerias, Samuel Barreto, pelo envolvimento e disponibilidade; Nanato Santos, Carlão, Luís Carlos, Elaine, Israel, do Ondas Paranóicas, pelo equilíbrio; Neide Cândido Brás, fada madrinha do GENS; Rádios comunitárias 8 de dezembro, Charme e Guadalupe, pela constatação de que uma outra comunicação é possível (e necessária); Mariúza Peloso, pelo respeito e carinho; Patrícia Moldan, Cris Lopérgolo, Sérgio D’Urquiza, pelas buscas conjuntas; Prof. Ismar de Oliveira Soares, pelo aprendizado; Patrícia Horta, pelo apoio; Eliany Salvatierra pela divulgação dos trabalhos do Cala-boca já morreu; Sheila Bovo, pela capacidade de visão para além do convencional; Luana, Pardal, Jaime Rampazzo, Diogo 90, Mariana Moura, Marcelo Berg, pelos trabalhos de intensa criação, recheados de muito benquerer; Márcia Perígolo, pela lucidez; Sérgio Gomes, Ana Luísa Zaniboni, da OBORÉ, pelo companheirismo; Raquel Trajber, pela confiança; Tereza Diorio, Auira, Patrícia Mousinho, Bruno Pinheiro, Massao, Lúcia, Rangel, Clóvis, Maricota, Luli, Henrique Santana, Dudu Rombauer, pelos olhos inquietos que me fazem prestar mais atenção no que faço e digo; Rose Soffner e todos os alunos da Faculdade Sumaré, pela ampliação das propostas; Marcelo Brás, pela disponibilidade; César de Lucca, que me lembrou que respirar é importante; Elly Ferrari e Bianca Dettino pelo abstract; Zi, pela leitura e seleção de programas do anexo; Ma, pela transcrição; Ma Kz e Ma Manfredi pelo carinho expresso na criação dos DVDs anexos; Teresa Melo, pelas grandes e inesquecíveis caminhadas; Sandra Olivieri, Pablo Milanez, Atahualpa Yupanqui, Manuel de Barros e Fifi, minha netinha, por recarregarem minhas energias durante os meses de dezembro e janeiro; Prof. Marcos Ferreira Santos, pelo alargamento do horizonte; a todos os que custearam os meus estudos na Universidade de São Paulo, durante o Mestrado e o Doutorado. a poesia, a magia, a arte... as grandes sabedorias não podem habitar corações medrosos Plínio Marcos RESUMO LOPES LIMA, Grácia. Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de comunicação na perspectiva da Educomunicação. 2009. 135 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Esta tese tem como tema a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação. Argumenta que os processos de criação, vivenciados em pequenos grupos, mais do que os produtos de comunicação que eles geram, podem contribuir para uma educação comprometida com a constituição de sujeitos autônomos. Para tanto, aponta a necessidade de a produção de comunicação ser considerada como direito humano a ser exercido por todas as pessoas, bem como as tecnologias e linguagens midiáticas serem utilizadas como instrumentos que possibilitam aos envolvidos no processo de criação reconhecer-se nas próprias palavras e imagens que produzem. Afirma que do exercício de envolvimento consigo e com o outro nasce a possibilidade de re-significarem suas histórias pessoais e coletivas. A autora fundamenta a tese, orientada pelos estudos de Educomunicação, da Pedagogia Libertária, da Comunicação Comunitária e dos Estudos do Imaginário. Utiliza a pesquisa-ação como metodologia, valendo-se das atividades de Educomunicação, desenvolvidas ao longo de mais de uma década, pelo GENS – Serviços Educacionais e pelo Projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer! Por esses motivos, conclui que a Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação pode ser considerada como Educação pelos Meios de Comunicação. Palavras-chave: Educação, Comunicação, Educomunicação ABSTRACT LOPES LIMA, Grácia. Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de comunicação na perspectiva da Educomunicação. 2009. 135 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. This thesis researches the collective production of communication, in the perspective of Educommunication. The research argues that the creation processes, shared in small groups, more than the communication products generated, contribute to a committed education with the constitution of the social person autonomy. The procedure points out the necessity of communication human right exercised by all the people, with technologies and mediatics language used as creation instruments, in order to recognize its own produced words and images. This work affirms that the involvement with yourself and the others resignificates the personal and collective histories. The thesis is guided in the studies of: Educommunication, “Pedagogia Libertária”, Community Communication and Studies of the Imaginary. The methodology used follows the action-research that works the activities of Educommunication developed along more than one decade, by GENS – Serviços Educacionais and Projeto Cala-boca já morreu - porque nós também temos o que dizer! The research conclusion is that the Collective Production of communication, in the perspective of Educommunicaion is considered as Education by the Means of Communication. Key words: Education, Communication, Educommunication. SUMÁRIO 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS 16 2 REFERENCIAL TEÓRICO NA PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO – UMA VERTENTE DA EDUCOMUNICAÇÃO 30 2.1 Conceitos de educação 40 2.2 Conceito de comunicação 51 2.3 Conceito de educomunicação 59 3 CALA-BOCA JÁ MORREU – UMA METODOLOGIA PARA PRODUÇÕES COLETIVAS DE COMUNICAÇÃO, NA PERSPECTIVA DA EDUCOMUNICAÇÃO 60 3.1 Desdobramentos da ação educativa do GENS 65 3. 2 Caminhos da metodologia cala-boca já morreu 67 3. 3 Detalhamento da metodologia cala-boca já morreu 77 3. 4 Movimentos da metodologia cala-boca já morreu 83 4 O LADO DE DENTRO DO PROCESSO COLETIVO DE PRODUÇÃO DE COMUNICAÇÃO 95 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 121 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 128 7 ANEXOS DVD 1 - CAMINHOS DA METODOLOGIA CALA-BOCA JÁ MORREU Saúde Mental • “O alçapão indígena”, criação da Oficina Ondas Paranóicas, São Paulo/SP. • Entrevistas realizadas por participantes da Oficina de rádio Ondas Paranóicas, durante o Desfile do Cordão Bibitantan, São Paulo/SP. Pedagogia do idoso • Trecho de um dos Programas de rádio “Embalos de domingo à tarde”, criado por alunos participantes da UNATI – Universidade Aberta à Terceira Idade, da FITO/FEAO – Osasco/SP. • Capas, editoriais e alguns artigos da Revista Engrama criados pela professora e alunos participantes da Disciplina Multimeios, na UNATI – Universidade Aberta à terceira Idade, da FITO/FEAO – Osasco/SP. Formação inicial de professores • Programa de rádio criado durante as aulas de Língua Portuguesa 1, por alunas do Curso de Pedagogia da Faculdade Sumaré/SP • Vídeo-documentário “Eu, autor”, criado por professores e estudantes do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP sobre o processo de realização do TCC – Trabalho de Conclusão de Curso. • PPD – Projeto Pedagógico-didático da Disciplina Língua Portuguesa 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP. • PPD – Projeto Pedagógico-didático da Disciplina Tecnologia Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP. • Fotonovela “Calçada do amor”, criada por alunos, durante as aulas de Tecnologia Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP. • Fotonovela “Tome uma atitude”, criada por alunos, durante as aulas de Tecnologia Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP. Cultura Produção de vídeo • “Paraty”, criação de moradores do Município de Paraty, durante o I Festival Internacional de Cinema de Paraty/RJ. • “1 minuto Paraty”, criação de adolescentes moradores do Município de Paraty, durante o II Festival Internacional de Cinema de Paraty/RJ. Produção radiofônica com comunidades tradicionais • “Plantio” – música criada por moradores de comunidades da Estação Ecológica Juréia-Itatins - EEJI (SP) e seu entorno, para o Projeto Viola Peregrina, realizado pela MONGUE – Proteção ao sistema costeiro – SP/ Peruíbe. Educação Ambiental • Programa de rádio, criado por professoras participantes do Programa de Educomunicação de Atibaia/SP. • Programa de rádio, criado por Facilitadores Nacionais e Internacionais, participantes da II Conferência Nacional InfantoJuvenil pelo Meio Ambiente, realizada pelo Ministério da Educação e Ministério do Meio Ambiente. Educação não-formal • Vídeo-documentário, sobre o Projeto Rádio-Escola de Vargem Grande Paulista/SP, criação do GENS – Serviços Educacionais. • “La hormiguita”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “X-burguer”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “Através dos sapatos conheçam pessoas”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “O beijo do vampiro”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “Vídeo sobre a praça”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “Os bichos”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • “Nóis é fera!”, programa de rádio criado por crianças, durante o Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • Transcrição do programa “Nóis é fera!”, • Cédula para escolha do nome da emissora de rádio, de escolas participantes do Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • Contagem de votos para nome da emissora de rádio, de escolas participantes do Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. • Grade de programação de emissoras de rádio, de escolas participantes do Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. O lado de dentro da produção coletiva de Educomunicação • “Processo” - vídeo-documentário, criação do GENS – Serviços Educacionais, sobre o processo de criação de um programa de rádio, por um grupo de crianças e uma assistente de educação, participantes do Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP. DVD 2: FONTES INSPIRADORAS • “Programa de rádio Porrada no ar” Trechos relacionados à Cultura e ao Meio Ambiente • “Projeto Cala-boca já morreu” • • • • Programa de rádio Trecho do Bloco “Criança Ecologia” “As aventuras da Julinha” Jornal Edições 1, 2, 3 e 5 Programas de televisão Programa nº 1 Programa nº 4 Vídeo “A babá e as crianças” “Delícias Nham-nham” Foto-clipe “O meio”, música de Luiz Tatit 16 Considerações iniciais Esta tese é um dos desdobramentos de um processo vivenciado pelo GENS – Serviços Educacionais, desde 1995, quando criamos o “Cala-boca já morreu”, com um grupo de crianças de 7 a 12 anos de idade que, por livre iniciativa, aceitou nosso convite para participar de um programa de rádio, que, mal sabíamos, daria início a uma história singular. Depois de realizarmos com elas mais de 100 programas de duas horas, apresentados “ao vivo” na Rádio Cidadã, uma emissora comunitária da cidade de São Paulo, em 1996, passamos a desenvolver com o mesmo grupo a produção de jornal impresso, momento em que a proposta se ampliou, passando a constituir-se num projeto, dali para frente denominado “Projeto Cala-boca já morreu - porque nós também temos o que dizer!” As duas ações, em menos de um ano, evidenciavam que crianças envolvidas com comunicação aguçavam com uma rapidez impressionante a capacidade de ouvir, ver e se concentrar no que juntas produziam. A cada preparação de programa para o rádio, de matéria nova para o jornal, mais e mais vontade mostravam por conhecer assuntos ligados à vida cotidiana, à natureza, às tecnologias, ao relacionamento entre as pessoas e o funcionamento das coisas do mundo. Por esses motivos, em 1997, data de nascimento do Canal Comunitário da Cidade de São Paulo, recebemos, mais do que um novo convite, uma provocação para também desenvolver com o mesmo grupo uma terceira atividade, desta vez, ligada à linguagem audiovisual. Aceitamos a proposta, e, adotando os mesmos procedimentos metodológicos das duas experiências anteriores, realizamos quatro 17 programas de quinze minutos, inteiramente feitos pelas crianças, que foram ao ar pela televisão. Os resultados qualitativos observados no grupo cada vez mais surpreendiam: percepção mais aguçada os levava a maior elaboração do pensamento. Mais espontaneidade, menos medo de expor o próprio corpo, maior disponibilidade para conviver com a diversidade. Fortalecimento da auto-imagem e, conseqüentemente, maior capacidade de se colocar diante de diferentes tipos de pessoas, independente da idade, nível cultural ou posição social ocupada por elas. Em pouquíssimo tempo, os meninos e meninas do Projeto mostravam que o domínio de equipamentos tecnológicos e da linguagem dos meios de comunicação poderiam ser instrumentos preciosos para a formação de indivíduos esclarecidos, altivos e autônomos. Em suma: evidenciava-se que mais do que produzir comunicação, estávamos, em três diferentes espaços de comunicação comunitária, vivenciando um tipo especial de experiência, que àquela altura contava com a efetiva adesão das crianças – fator mais marcante da proposta. Elas não participavam das atividades porque seus pais queriam, suas professoras indicavam ou porque poderiam ficar famosas através das tantas entrevistas que passavam a conceder para a grande imprensa, inclusive internacional. Elas continuavam conosco porque gostavam das inúmeras oportunidades que se abriam e, principalmente, porque tudo que acontecia era fruto de intensa vivência de processos coletivos de criação. Mas não só os pequenos se encantavam, se animavam e se fortaleciam com a proposta. Nós também nesse processo íamos solidificando sonhos e convicções. Aos poucos, materializava-se naquela proposta a possibilidade real de um tipo de educação pelos meios de comunicação que, efetivamente, poderia contribuir para a formação de gente autora de sua própria história. Esses movimentos vivos do processo nos permitiram estruturar uma metodologia, a partir de então denominada Metodologia Cala-boca já morreu, que não tardaria a ser partilhada e vivenciada em outros espaços, como um estilo próprio de conceber e realizar práticas que aproximavam os campos da Educação e Comunicação, 18 apontadas como pilares de um novo campo de intervenção chamado Educomunicação. No ano 2000, os desdobramentos dessa iniciativa do GENS começaram. Fomos contratados pela Prefeitura de Vargem Grande Paulista para nesse município desenvolver o Projeto Rádio-Escola. No ano seguinte, fomos convidados a compor a equipe idealizadora do Projeto educom.rádio, do NCE – Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde durante dois anos assumimos a função de coordenadora educomunicacional, responsável pela seleção e formação da equipe multidisciplinar condutora do projeto, bem como pela idealização das atividades de rádio desenvolvidas pelos participantes do curso de formação. O município paulista de Sorocaba, no mesmo ano, nos contrata, através da Secretaria Municipal de Educação, para implantar os Projetos Rádio e Vídeo-Escola em toda rede municipal de ensino. Aí, como forma de partilhar as produções coletivas de comunicação, na perspectiva da Educomunicação das unidades escolares com a sociedade sorocabana, durante três anos, realizamos Mostras de Rádio e Vídeo-Escola, abertas também a pesquisadores do campo da Educomunicação. Em 2002, apresentamos pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, a dissertação de Mestrado Educomunicação, Psicopedagogia e Prática radiofônica – estudo de caso do Programa de rádio Cala-boca já morreu, que muito colaborou para o aprofundamento teórico de nossos trabalhos. Na seqüência, em 2004, as nossas atividades voltadas para a produção coletiva de imagem começam a despertar interesse de outras instâncias, que não só as educacionais. Vislumbrando, especialmente nos processos de produção de vídeos desenvolvidos pelo GENS a possibilidade de formação de um “novo olhar”, fomos convidados, para desenvolver oficinas de vídeo durante os eventos de Cinema Nacional, realizados em Paraty, Rio de Janeiro. Durante três anos consecutivos, moradores da cidade, puderam, então, assistir suas próprias produções audiovisuais na mesma tela de cinema em que grandes diretores exibiam seus filmes. A partir de 2005, o Projeto Cala-boca já morreu, que após dez anos de existência, continuava com muitos de seus pequenos fundadores, passa a ser uma organização 19 não-governamental. Desde então, a convite do Ministério da Educação e Ministério do Meio Ambiente, passamos a realizar um trabalho de assessoria em Educomunicação para o Programa Juventude e Meio Ambiente e as três Conferências Nacionais Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente. Doravante em parceria, as duas instituições – GENS e o Projeto Cala-boca já morreu – anualmente, oferecem cursos de formação em Educomunicação. Essas experiências de mais de uma década voltadas para a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, com diferentes públicos – crianças, adolescentes, jovens e adultos, em espaços de educação formal e nãoformal – têm levantado várias questões inquietantes, não só em quem produz e se reconhece como autor nas mensagens midiáticas que cria, como em quem acompanha o processo e percebe aí a possibilidade de as produções serem uma forma de conhecer/compreender as culturas de diferentes grupos sociais e envolverse com uma outra proposta que se vale das tecnologias e das linguagens dos meios de comunicação como instrumentos de educação. À tarefa de realizar algumas reflexões sobre essas práticas é que nos dispomos nesta pesquisa. Tema da pesquisa Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, concebida como Educação pelos Meios de Comunicação. Problema Considerando que 20 - “vivemos num mundo não meramente físico, onde a linguagem, a arte, o mito e a religião são fios que tecem o emaranhado da experiência humana” (CASSIRER,1994:48); - os meios de comunicação, estando concentrados nas mãos de apenas alguns grupos, veiculam mensagens que levam os olhos e os ouvidos dos receptores para lugares distantes daqueles que habitam; - educação resulta de um trabalho conjunto de toda a sociedade e, que, portanto, os meios de comunicação não definem, mas exercem fortes poderes sobre o que as pessoas pensam sobre si mesmas, sobre a percepção que têm da vida e da morte, assim como da organização da sociedade; - produzir comunicação é direito humano de todas as pessoas, independente de idade, gênero, origem ou condição social; - a comunicação comunitária aproxima as pessoas e pode contribuir para que elas se fortaleçam individual e coletivamente; - pela ação sobre si mesmo e sobre o mundo, o ser humano é capaz de tomar consciência de si e, então, resignificar a vida; - “algo mais se insinua no horizonte das ações comunicativas quando realizamos algo à nossa volta com o compromisso social de conviver mais dignamente” (FERREIRA SANTOS, 2004a: 72). Considerando, enfim, que todo ser humano é produtor de cultura, concebida como “criação, apropriação, transmissão, interpretação dos bens simbólicos e suas relações” (FERREIRA SANTOS, 2004a: 61), o processo de produção coletiva de comunicação, na perspectiva da educomunicação, não seria uma maneira de envolver as pessoas em processos que possibilitem a elas se re-conhecerem como sujeitos que, de fato, são da sua própria existência? 21 Justificativa A educação formal, em certa medida, já se deu conta de que as questões relacionadas com a comunicação social também devem fazer parte de seu âmbito de interesse. Afinal, vão ficando nítidas as marcas de uma convivência intensa da comunidade escolar com vários sistemas de produção e distribuição de informação. Mais que nunca fica evidente quanto os meios de comunicação, especialmente os audiovisuais se integram, cada vez mais cedo, ao processo de formação das pessoas “as novas gerações são leitoras da comunicação audiovisual ainda no estado intra-uterino. A mãe, quando está grávida, senta em frente à televisão, se emociona, passa para o feto aquelas impressões. Tudo vira história (...) as novas gerações são formadas nisso desde que abrem os olhos para o mundo. Já estão compreendendo aquilo que a televisão está mostrando, que o cinema está exibindo. Trazem isso para dentro da sala de aula, esse conhecimento, essa leitura. São todos pós-graduados em linguagem áudio-visual, quando entram analfabetos na escola (...) (FRANCO, 1996:109) Ocorre que estamos, pelos meios de comunicação mais populares, como rádio e TV, convivendo com sons e imagens que mostram realidades bem diferentes e distantes da nossa. As grandes empresas de comunicação retratam o mundo, indiferentes às culturas locais. Direcionam mensagens que distraem aqueles que os recepcionam, admirados, entorpecidos até, para se tornarem presas fáceis de um discurso que oferece uma “imagem de uma única cultura e de uma única história, ocultando a divisão social interna” (CHAUÍ, 1995: 296). Essa política de comunicação social precisa ser compreendida. A lógica usada pelos que, à revelia da lei, se julgam proprietários dos sistemas de meios de comunicação, a rigor, concessões públicas, necessita ser conhecida pelos seus usuários. 22 Igualmente, tem ampliado os estudos que aprofundam teoricamente as contribuições das práticas que aproximam Comunicação e Educação. Nesse sentido, vários países de todo mundo, dentre os quais o Brasil, já desenvolveram, há várias décadas, programas de leitura crítica dos meios, com a intenção de fortalecer a capacidade analítica, especialmente, de jovens receptores. A par desses projetos de recepção crítica, destacam-se também vários programas educacionais que objetivam tornar os meios de comunicação ferramentas, instrumentos, através dos quais as pessoas, especialmente estudantes, possam se apropriar para comunicar seus próprios universos simbólicos. Tais projetos propõem-se a incluir novas tecnologias e diferentes linguagens no âmbito da escola, incorporando-as ao dia-a-dia da sala de aula. Consideram a produção como uma possibilidade de a comunidade escolar passar a olhar e ouvir a si própria e, coletivamente, se envolver com a cultura local. Colocando professores e estudantes em situação de diálogo constante a partir da necessidade de um fazer coletivo, de uma prática marcada pela diversidade de sentimento, idéias e modos de ser, essas ações colaboram ainda para a construção da intersubjetividade. Este encontro intersubjetivo é amparado pelas intercomunicações extradiscursivas, ou seja, com outros elementos além da discursividade das palavras. (FERREIRA SANTOS, 2003a:71) Por fim, a tal consciência crítica, tão esperada quanto ao caráter ideológico dos meios de comunicação acabaria, assim, por essas práticas, sendo uma decorrência natural do processo, exatamente porque, ao produzirem e se apropriarem de todas as etapas de produção de comunicação, os sujeitos passam a dominar o funcionamento do sistema de meios. Provavelmente, por essa razão, verão o mundo da tecnologia e das mídias com recursos preciosos para o fortalecimento de indivíduos e grupos. 23 Ismar de Oliveira Soares, na perspectiva da Educomunicação, identifica e define essa produção de meios como práticas educomunicativas que buscam convergências de ações, sincronizadas em torno de um grande objetivo: ampliar o coeficiente comunicativo das ações humanas. Para tanto, supõem uma teoria da ação comunicativa que privilegie o conceito de comunicação dialógica, uma ética de responsabilidade social para os produtores culturais; uma recepção ativa por parte das audiências; uma política de uso dos recursos da informação de acordo com os interesses dos pólos envolvidos no processo de comunicação (produtores, instituições mediadoras e consumidores da informação), o que culmina com a ampliação dos espaços de expressão (SOARES, 2001a:2) Assim concebidos, os processos de produção coletiva adentram o universo imaginário, objeto da Antropologia Toda reflexão sobre um meio qualquer de expressão deve se colocar a questão fundamental da relação específica existente entre o referente externo e a mensagem produzida por esse meio. Trata-se de representação do real (...) (DUBOIS, 2003:27) Isto significa dizer que a produção coletiva de comunicação, resultante de processos criativos de determinados grupos humanos, moradores de um determinado lugar, num determinado tempo, são um modo de as pessoas tornarem presente algo que está ausente – uma representação, pois pensar a questão da representação é pensar nas significações que os humanos atribuem à realidade (CHAUÍ, 1995:294) 24 Uma vez externadas e partilhadas, as produções coletivas de comunicação não só atualizam o que já é passado, como possibilitam àqueles que as recepcionam, o reconhecimento do universo cultural de seu entorno. Nesse sentido, tais produções envolvem as pessoas numa educação de sensibilidade (...) valendo-se das Artes (plásticas, musicais, literárias, videográficas e fílmicas) em que as imagens e os símbolos, articulados em narrativas, articulam por sua vez, o patrimônio histórico-cultural do humano. (FERREIRA SANTOS, 2003a:53) Encontrando-se a si mesmos e em um processo de aprendizagem contínua de diálogo com o outro, crianças, adolescentes e adultos tornam-se mais autoconfiantes, mais solidários, e, portanto, mais comprometidos consigo e com a história do seu tempo. Por fim, por serem voltadas especialmente para pessoas leigas, tais práticas contribuem para o movimento de democratização dos meios de comunicação. Quanto mais circularem produtos de comunicação que expressem diferentes pontos de vista, maiores são as possibilidades de entendimento dos fatos e, consequentemente, de as pessoas definirem por si mesmas o que melhor lhes convém. Objetivo Evidenciar a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação como sinônimo de Educação pelos Meios de Comunicação. 25 Hipóteses A Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, ou Educação pelos Meios de Comunicação a) possibilita o encontro com o repertório cultural cotidiano de seus realizadores; b) desenvolvida a partir dos princípios propostos pela “Metodologia Cala-boca já morreu” possibilita uma relação mais solidária entre as pessoas; c) pode contribuir para uma educação efetivamente comprometida com o fortalecimento do indivíduo e dos grupos; Metodologia da pesquisa Adotamos a linha de pesquisa-ação, uma metodologia de pesquisa social que se associa a uma forma de ação social coletiva orientada para a resolução de problemas ou de objetivos de transformação, baseada nos princípios defendidos por Michel Thiollent (2000). A escolha dessa metodologia obedeceu critérios muito claros: era preciso encontrar um autor e um procedimento científico que combinasse com o que na prática já vinha acontecendo, com a reflexão e o tipo de preocupações que já vinham norteando, desde o início, as atividades do GENS – Serviços Educacionais. Não se tratava, pois, de enquadrar as propostas numa metodologia. Antes, era necessário encontrar afinidade entre a metodologia a ser adotada e as propostas que já existiam, considerando que os procedimentos anteriores não se modificariam somente porque se tornariam objeto de investigação de um trabalho acadêmico. Assim, a adequação entre a linha da pesquisa-ação e as nossas atividades, assentou-se em quatro aspectos formulados por Thiollent. Em primeiro lugar, porque 26 nesta pesquisa predomina uma busca de compreensão e de interação entre a pesquisadora e os membros das atividades investigadas. Ou seja, nos trabalhos de produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, realizados pelo GENS e também pelo Projeto Cala-boca já morreu, a pesquisadora, também coordenadora responsável pelos projetos de ambas as instituições, se mantém em diálogo permanente com os diferentes públicos (crianças, adolescentes, jovens e adultos) envolvidos nas atividades mencionadas. Em todas as ações – objeto desta pesquisa, predomina o esforço da pesquisadora em contribuir para a expressão criativa para registro e veiculação da história dos grupos. Os procedimentos colocam em evidência não somente a participação ativa da pesquisadora, como igualmente dos integrantes dos projetos – que interagem entre si – e interagem com a coordenadora – desde o diagnóstico das situações que vivenciam até as etapas subseqüentes, incluindo a de considerações sobre as ações que juntos realizam. Tal como define Thiollent o papel do pesquisador nesse tipo de pesquisa é o de desempenhar papel ativo na reflexão sobre problemas encontrados pelos grupos, no acompanhamento das propostas que eles definem como melhores para resolução do que detectam e querem resolver, bem como participa da avaliação de todo processo de investigação equacionado na pesquisa. O segundo motivo refere-se ao fato de a pesquisa-ação ser adequada como instrumento de investigação para grupos, instituições e coletividades de pequeno ou médio porte. As ações aqui estudadas caracterizam-se por serem realizadas com grupos reduzidos de pessoas, mesmo nos casos em que se trata de Programas de Educomunicação para redes de ensino municipais ou Conferências Nacionais, como se verá. Partimos do pressuposto que a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação pode aproximar as pessoas, para que juntas definam o que desejam tornar público sobre o grupo do qual fazem parte. Pensamos que a convivência em grupos reduzidos facilita a conversa. Buscamos, pela nossa atuação como coordenadora desses projetos, uma forma de organização das pessoas, que possibilite discutirem problemas, sonhos e projetos de/para suas comunidades. Esperamos, enfim, ao reunir as pessoas em pequenos grupos, possibilitar que cada um dos participantes, gradativamente, se aproprie de si mesmo, para que juntos decidam o rumo de suas próprias vidas. 27 Em terceiro lugar, este estudo se calca na ação e reflexão de atividades do GENS e do Cala-boca já morreu – todas de base empírica. Nas palavras de Thiollent, trata-se de uma pesquisa voltada para a descrição de situações concretas e para a intervenção ou ação orientada em função de resolução de questões efetivamente detectadas nas coletividades consideradas. Nesse sentido, a pesquisa-ação se mostra como a metodologia mais adequada para a realização deste projeto de pesquisa porque não nos parece haver “dedução do geral ao particular” nem “indução do particular ao geral”. Fica evidente que os participantes e a pesquisadora-coordenadora vêm-se envolvidos numa proposta que apresenta movimentos em que se alternam constatações verificadas e já testadas que se repetem no presente, com outras que são reconhecidas no presente e reconhecidas como possíveis de serem repetidas em situações posteriores. Na pesquisa-ação o conjunto de exigências científicas não obedece ao padrão convencional de observação, marcado pela separação entre pesquisador (observador) e grupos pesquisados (observados), não havendo possibilidade de substituição do primeiro, tampouco interesse em quantificar informação. Predomina a dialogicidade, isto é, entre o pesquisador e as pessoas implicadas na pesquisa prevalece a “intercomunicação”, e o que se intenta é avaliar conjuntamente o que for sendo realizado, ao longo da história do grupo. Por fim, a afinidade entre nossa proposta e a metodologia de pesquisa-ação se resume em considerar que a ação de pequenos grupos deve permitir ampliar a experiência, mas produzir conhecimento para além de seus realizadores, como forma de avançar o debate sobre questões de relevância para toda a sociedade. Os estudos de caso Produções coletivas de comunicação, na perspectiva da Educomunicação realizadas pelo Projeto “Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!”; Oficinas de rádio Ondas Paranóicas; Revista Engrama; Programa de rádio Embalos 28 de domingo à tarde, SP; Programas de Educomunicação dos municípios de Vargem Grande Paulista Sorocaba, Sorocaba, Piedade, Alumínio e Atibaia, SP; Programas de rádio do Projeto educom.rádio, São Paulo, SP; Oficinas de vídeo realizadas durante a Mostra Nacional de Cinema de Paraty, Rio de Janeiro; Oficina de rádio O que aprendi com meus pais, Peruíbe, SP; Produções de rádio do Programa Juventude e Meio Ambiente, MEC e MMA; Produções de rádio das três Conferências Nacionais Infanto-Juvenil Pelo Meio Ambiente, MEC e MMA; Produções de rádio e fotonovela dos alunos de Pedagogia da Faculdade Sumaré, São Paulo, SP. Plano de trabalho No primeiro capítulo, num esforço inadiável de traduzir com as nossas próprias palavras as bases teóricas de que nos servimos nas produções coletivas de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, apresentamos as concepções de Educação, de Comunicação e de Educomunicação, que embasam a ação direta de mais de uma década do GENS e do Projeto Cala-boca já morreu, valendo-nos, para tanto de alguns princípios da Pedagogia Libertária e da Comunicação Comunitária. No segundo, reiteramos nosso compromisso anunciado no capítulo anterior, apresentando a Metodologia Cala-boca já morreu para a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, sistematizada ao longo da trajetória profissional empreendida pelas duas instituições que lhe deram origem e que atualmente vem sendo utilizada em diversas áreas do conhecimento, em diferentes localidades brasileiras. No terceiro e último, apresentamos uma descrição subjetiva de um lugar de criação coletiva de um programa de rádio, vivenciado por um grupo de crianças do Ensino Fundamental e uma assistente de educação, como forma de ilustrar o que enfaticamente destacamos nos capítulos precedentes: que nas produções coletivas de comunicação às quais nos referimos, os processos são sempre mais importantes que os produtos, porque são eles – os processos – que colocam em evidência que entre as duas palavras – Educação e Comunicação, a que indica o rumo da 29 Educomunicação, do nosso ponto de vista é a Educação. A Comunicação, por conseqüência, é o instrumento através do qual ela se materializa e torna visíveis as suas intenções. Daí considerarmos Educomunicação como sinônimo de Educação pelos Meios de Comunicação. Para tanto, realizamos uma descrição subjetiva de um vídeo que documentou o momento de criação de um programa de rádio, sob inspiração dos Estudos do Imaginário (BACHELARD, 1997; DURAND, 2001; FERREIRA SANTOS, 2004ª; e RICOER, 1989). 30 Referencial teórico na produção coletiva de comunicação – uma vertente da Educomunicação O documento que serve de referência para a continuidade dos estudos sobre Educomunicação data de 1999. Trata-se de uma pesquisa de dois anos, empreendida pelo NCE – Núcleo de Educação e Comunicação da Escola de Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo, em parceria com pesquisadores da UNIFACS, Bahia, que buscava identificar os trabalhos relacionados com a inter-relação Comunicação e Educação e seus respectivos realizadores no âmbito da América Latina. Dessa investigação interessa-nos destacar dois pontos. O primeiro diz respeito ao reconhecimento da existência de quatro áreas de intervenção, assim entendidas1: “Educação para a comunicação: (estudos de recepção), e os programas de formação dos receptores autônomos e críticos dos meios (“Mídia Education” ou “Media Literacy”); Mediação tecnológica na educação: procedimentos e reflexões a respeito da presença e dos múltiplos usos das tecnologias da informação na educação; Gestão comunicativa: planejamento, execução e avaliação de planos, programas e projetos de intervenção social no espaço da interrelação Comunicação/Cultura/Educação; 1 Trecho correspondente à 3ª hipótese da pesquisa. As anteriores referiam-se, respectivamente, à formação e desenvolvimento de um novo campo de intervenção social denominado Educomunicação e à de que sua estruturação dá-se de modo “processual, mediático, transdisciplinar e interdiscursivo”. 31 Reflexão epistemológica: estudos acadêmicos sobre a natureza do fenômeno cultural emergente, constituído pela inter-relação Comunicação/Educação” (SOARES, 1999: 27) O segundo ponto traduz a relação entre as áreas de atuação e a proporção de pessoas com elas envolvidas2 “50% deles dedicavam-se à área dos estudos epistemológicos, isto é, desenvolviam algum tipo de pesquisa teórica no campo da interrelação em estudo; 47,16% voltavam-se para projetos de educação para a comunicação, quer através de algum projeto específico quer da prática curricular normal; 30% dedicavam-se ao uso das tecnologias na especialmente ao uso do computador na sala de aula; 19% desenvolviam atividades entendidas comunicação no espaço educativo; como educação, gestão 4% correspondiam às atividades de comunicação especialmente ligadas a linguagens artísticas; da cultural, 3% a atividades identificadas como uso da comunicação em ações voltadas para a cidadania, melhoria da qualidade de vida e diversidade humana.” (SOARES, 1999: 59- 60) Tais números indicam que quase a totalidade dos afeitos ao tema, na época, ocupava-se em entender as relações entre Educação e Educação de forma teórica; na seqüência, constata-se a predominância de uso do computador em ambiente 2 Esses dados resultam da aplicação de questionários e entrevistas junto a 178 colaboradores de 14 países, sendo 67,61% brasileiros e 32,29% latino-americanos e espanhóis (SOARES, 1999:67). 32 estritamente escolar, restando apenas 7% de ações para a categoria genericamente denominada comunicação. Dez anos passados, uma rápida consulta à internet3, recurso de valor incontestável para pesquisas na atualidade, torna evidentes: a popularização do termo Educomunicação e a inversão do observado nos anos de 1990, em particular no Brasil. Numa velocidade surpreendente, disseminam-se os mais diversos tipos de execução de projetos e diminuem, na mesma proporção, as investigações teóricas, especialmente por parte de instituições acadêmicas que muito contribuiriam para o aprofundamento epistemológico do fenômeno emergente, não tivessem elas também se voltado para a prática, a exemplo da sociedade civil. Eis o motivo que justifica este capítulo. Particularmente interessa-nos aqui realizar um esforço inadiável de aclaramento das concepções de Educação, de Comunicação e, por conseqüência, de Educomunicação, que embasam uma área (ou vertente) específica desse campo: a Produção coletiva de comunicação, doravante por nós também chamada de Educação pelos Meios de Comunicação. Em outras palavras, a partir da reflexão sobre a nossa ação direta buscamos tornar explícitas questões como estas: de quê conceito de educação e de comunicação nos valemos para a produção coletiva de comunicação na perspectiva da Educomunicação? Por que chamamos o que fazemos de Educomunicação? “(...) teoria e prática são algo indicotomizável, a reflexão sobre a ação ressalta a teoria, sem a qual a ação (ou a prática) não é verdadeira.” (FREIRE, 1992:40) Servem de inspiração inicial para as nossas reflexões o pensamento e a ação do filósofo brasileiro, Paulo Freire e do comunicador argentino-uruguaio, Mário Kaplún, especialmente as relativas às décadas de 1970 e 1980, quando ambos 3 Em 23 de dezembro de 2008, quando digitada a palavra Educomunicação no Google, maior site de busca da internet, foram encontradas 46 páginas na web, correspondendo a 97 600 citações; 37 páginas em português, o equivalente a 94700 menções ao termo, e 41 páginas no Brasil, totalizando 52.800 citações. 33 desenvolviam, cada um a seu modo, estudos e práticas, respectivamente voltadas para uma educação de cunho libertador para as camadas populares e para a formação de receptores mais críticos e participativos. Não é nossa intenção discorrer sobre a trajetória de nenhum desses dois grandes pensadores. Queremos apenas destacar, a partir do que pontuamos na ação deles, o que julgamos importante para este estudo: a necessidade de toda e qualquer ação dirigida para além de nós mesmos ser acompanhada, até mesmo por questão de respeito por aqueles a quem é dirigida, de num discurso sobre o próprio fazer, circunscrito no locus de quem a ação se destina. “Mas o que é ser teórico? E porque leu e aprendeu alguma teoria, isso não quer dizer teórico. Isso é ser copiador, e ser papagaio, papagaio teórico. Eu prefiro fazer a teoria ancorada naquilo que deve ser, na prática. E a minha prática, obviamente toda prática fica ancorada numa certa teoria, e onde começa a gente não sabe. Quer dizer, quando é que eu começo a teorizar? Talvez no útero, ou na hora de nascer, talvez a gente comece a teorizar, e toda prática é resultado de uma teorização. Mas essa teorização não pode ser feita sem uma prática. E a coisa vai nessa relação, portanto, saber de que tipo de teoria a gente está propondo e de onde vem essa teoria. É muito importante que se fale de onde vem essa teoria.” (D’AMBRÓSIO, 1996: 1024 ) A esse esforço (ou essa obrigação) de traduzir com as nossas próprias palavras de onde vem a teoria de que nos servimos nas produções coletivas de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, assumindo a responsabilidade pelo que isto significa, nos dispomos neste capítulo. Ressaltamos que, ao apontar algumas pequenas passagens que relacionam Comunicação e Educação nos caminhos percorridos por Freire e Kaplún, por 4 Trecho da fala de Ubiratan D’Ambrósio no Seminário de Educação Libertária, realizado em 1994, na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, quando ele diz que convém cada participante fazer a sua apresentação, pois a trajetória da pessoa revela a teoria com a qual ela se identifica e, por isso, sustenta na sua prática. 34 extensão, queremos manifestar nossa admiração por todos os que, como eles, não se movem pelo altruísmo, muito menos por oportunismo ditado por um modismo de época, mas que generosamente, dedicam suas vidas para a realização de um sonho: o de que sejamos um povo que opta pela autonomia e pela solidariedade. Freire e Kaplún assumem explicitamente um compromisso guiado pela vontade de construção de uma América Latina que se recusa à “domesticação ou invasão cultural” (FREIRE, 2000a). Por esse motivo, não poderiam ficar alheios aos efeitos da comunicação sobre a vida dos latinoamericanos e a respeito desse tema se posicionaram. Ambos concebiam-na como um fenômeno social de estreita relação com a cultura, atribuindo a esta o sinônimo de ação humana sobre as coisas da natureza. Tanto um quanto o outro demonstram saber que a comunicação, desde a sua origem, se constituiu pela estreita ligação com a noção de “integração da sociedade” (MATELLART, 1999), do ponto de vista econômico; que se relacionou inicialmente com a expansão das “redes materiais”, dentre as quais as ferroviárias – consideradas as grandes propulsoras do progresso, estendendo-se com o tempo às “redes espirituais”, ligadas às finanças5, e, por fim à “gestão de multidões”6, ou seja, à necessidade de controle social das “massas” concentradas nas emergentes áreas urbanas. Tinham conhecimento de que da metade do século XIX até a segunda guerra mundial, solidificou-se uma lógica de que o progresso só poderia atingir a periferia por meio da irradiação pelos valores de um centro (MATELLART, 1999:19), e que 5 É de Claude Saint-Simon (1760-1825) a metáfora que compara a administração das cidades, nascidas do fluxo de mercadorias e de mão de obra, decorrente da Revolução Industrial, com a de um “sistema vivo”. Tal qual o sangue circula no organismo, as sociedades-indústria exigiriam operações (vias de comunicação) que assegurassem a “circulação” do dinheiro e acelerassem o progresso. Para manter uma “vida unitária”, através de um “sistema” de crédito eficiente, foi preciso criar as tais redes artificiais (as de comunicação-transporte ou “redes materiais” e as de finanças ou “redes espirituais”), que desempenhariam uma função organizadora desses novos espaços. (MATELLLART, obra citada, p.16) 6 De acordo ainda com Mattelart (p.20), porque a “invasão” da população (chamada de “massa”) nas cidades criou novos comportamentos, colocando em perigo toda a sociedade, foi preciso criar mecanismos de fiscalização e controle. A partir de 1827, pois, por contribuição de teorias geopolíticas o “espaço territorial” passa a ser considerado a força definidora das relações sociais mantidas com o Estado, dando origem ao termo “homem médio” (resultante de dados estatísticos), dali para a frente, servindo de referência para determinar possíveis “patologias” ou desequilíbrios sociais. 35 essa teoria difusionista ou desenvolvimentista, propagada pelos Estados Unidos, era a mesma que se instalou nos países do cone sul, calcada na idéia de que as tecnologias serviam para a resolução de desequilíbrios sociais. Paulo Freire, em meados dos anos de 19607, quando exilado no Chile, já denunciara as consequências desse pensamento no momento em que naquele país se realizava um processo de desenvolvimento de uma possível sociedade agrária (FREIRE, 1992). Para fazer entender, tanto os males advindos da importação (ou da permissão à invasão) dessas idéias, quanto para revelar a não neutralidade da ação de quem as aplica, é que ele propôs uma reflexão sobre o termo extensionista, assim chamado o trabalho dos agrônomos junto aos camponeses chilenos: “(...) a ação extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que se realize, a necessidade que sentem aqueles que a fazem, de ir até a outra parte do mundo, considerada inferior, para, à sua maneira, normalizá-la. Para fazê-la mais ou menos semelhante a seu mundo. Daí que, em seu ‘campo associativo’, o termo extensão se encontre em relação significativa com transmissão, entrega, doação, messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação, etc. E todos estes termos envolvem ações que, transformando o homem em quase ‘coisa’, o negam como um ser de transformação do mundo. Além de negar, como veremos, a formação e a constituição do conhecimento autênticos. Além de negar a ação e a reflexão verdadeiras àqueles que são objetos de tais ações8.” (FREIRE, 1992: 22). 7 A Revolução Cubana, de 1959, de inspiração martiniana (José Martí) e marxista, tornara-se paradigma para vários movimentos rurais e urbanos de países como Paraguai, Argentina, Brasil, Chile, Peru e Equador dominados por ditaduras militares, que disseminavam a miséria, a violência e o cerceamento de liberdade. 8 O autor, nesse momento do texto, vale-se dos conhecimentos linguísticos do genebrino Charles Bally, discípulo de Saussure (defensor da idéia de que os significados dos termos são circunscritos num determinada estrutura), sobre “campo associativos”. De acordo com esse conceito haveria uma rede de associações, baseada em relações muito diversas entre os conceitos como semelhança, contigüidade e subordinação. 36 De outra parte, com os mesmos propósitos freireanos de contribuir para a conscientização dos povos latinoamericanos, Kaplún também passou a denunciar as características da Comunicação Social ou “indústria da comunicação”, como propõe Bordenave (1982), sob influência de uma teoria funcionalista, mecanicista, formulada na década de 1940 pelos estadunidenses Lasswell e Shannon (COHN, 1978), num momento crucial em que os Estados Unidos buscava de todas as formas a manutenção e fortalecimento do sistema capitalista. Coloca em prática cursos de “Leitura Crítica” (BORTOLIERO,1996), junto às camadas pobres da população de países como Peru, Uruguai, Venezuela e Argentina, como meio de esclarecer-lhes que os empresários da comunicação (detentores dos meios de transmissão e controladores dos conteúdos das mensagens), seguem uma fórmula semelhante à lógica matemática9 para atingir uma única grande meta: motivar a compra de produtos e serviços, de uma maneira rápida e massiva. Mario Kaplún não tardaria muito, contudo, à conclusão de que o tom denuncista dessa proposta não mudaria os hábitos de consumo dos meios por parte da população pobre. Em vez de alertar sobre os efeitos nocivos dessa comunicação, passou, então, a desenvolver com os pequenos agricultores, organizados em sindicatos e cooperativas, uma prática de uso dos meios de comunicação com finalidade educativa, deslocando-os do papel de receptores para o de também produtores de comunicação.10 Mais uma vez é preciso ressaltar que o novo encaminhamento da sua proposta resultou da revisão crítica de seus pressupostos e reafirmou as convicções ideológicas de seu proponente. O Cassete Fórum se configurou, assim, como um método, ou se