Educomunicação: dimensão social e política

Transcrição

Educomunicação: dimensão social e política
Seleção de textos [encontrados na internet] citados na elaboração de
“Educomunicação: dimensão social e política”
Entrevista com Ricardo de Paiva e Souza, sociólogo e coordenador de programa da ONG Save the Children *
Educomunicação e a reinvenção da empresa do século XXI, de Paulo Monteiro *
GALEANO. E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1980.
Consulte, entre tantos outros, os artigos de Osvaldo Coggiola, especialmente América Latina no olho da tormenta mundial *
Leia aqui o significado, o histórico e as formas de democracia *
Sobre a Ditadura Militar no Brasil *
Educação pelos Meios de Comunicação, de Grácia Lopes Lima *
A delinquência acadêmica, de Maurício Tragtemberg *
Mário Kaplún: De medio y fines em comunicación *
Como a comunicação e a educação podem andar de mãos dadas1
Entrevista com Ricardo de Paiva e Souza. Por Flávia Gomes.2
Flávia Gomes – Você acha importante o uso de meios de comunicação na escola?
RICARDO SOUZA – Acho importante a utilização daquilo que a gente chama de comunicação
ou das estratégias de comunicação. Obrigatoriamente, não precisam ser os meios de
comunicação tradicionais – televisão, jornal, rádio. Se eles entram, isso pode agregar valor ao
ensino, mas as estratégias de comunicação, para mim, são mais importantes que os próprios
meios.
FG - Então você acha que essas são as formas de inserir a comunicação na escola?
RS – Não se pode pensar em transmissão de conhecimento sem comunicação. Escola é o
espaço de transmissão de conhecimento, mas hoje em dia ela é tida quase como um castigo e
a comunicação, como a arte, o esporte, pode e deve ser pensada como estratégia interessante
para você desenvolver metodologias pedagógicas mais atraentes, mais lúdicas e, por
conseqüência, uma maior aceitação dos alunos.
FG – Você acha que isso acontece?
RS – Claro que não. Infelizmente, a gente tem um modelo de ensino/aprendizagem terrível,
que parou no tempo e que faz com que a nossa escola se torne um ambiente extremamente
desagradável, no qual a gente vai por pura obrigação e não por prazer e, por conseqüência, a
gente aprende muito menos do que aprenderia se fosse buscar algo com vontade e alegria. O
modelo de escola brasileiro, que é o que domina o mundo, com raríssimas exceções, é
1
Publicado originalmente na revista “Vendo a Escola, revendo a Educação”, produzida pela Bem Tv –
Educação e Comunicação, em 2006.
2
Ricardo de Paiva e Souza - sociólogo e coordenador de programa da ONG Save the Children. Flávia
Gomes - integrante do grupo “Olho Vivo”, assessorado pela Bem Tv – Educação e Comunicação.
Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br
extremamente falho. Nem sei se existe um modelo oficial fora do Brasil que seja diferente. O
que você tem são exemplos de algumas escolas que têm práticas diferenciadas.
FG – Quais?
RS – Existem várias, só na cidade do Rio você tem a Escola Parque, o Ceat [Centro Educacional
Anísio Teixeira], tem o São Vicente que, embora seja uma escola de religiosos, tenta inserir
práticas mais inovadoras. O que acontece é que eles não conseguem fugir do modelo
tradicional de aula, de avaliação, de relação professor/aluno e chegar num modelo legal de
horizontalidade, de participação. Continuamos com aquele modelo tradicional de repasse de
conteúdos muito mais do que de incentivo a críticas e à criatividade. O aluno é visto como
um ser inferior, que está ali para ser dirigido e não para ser facilitado nas suas descobertas.
Essa história de você mudar o verbo “ensinar” para “aprender conjuntamente”, o verbo
“ajudar” para “garantir a participação”, do “ensinar” para “facilitar” já daria um salto
fantástico na educação. Há pessoas que brigam por isso e, engraçado, elas às vezes estão na
universidade defendendo fortemente isso e, quando se formam professores, reproduzem o
velho modelo tradicional de educação. Paulo Freire é estudado em todas as escolas de
educação do país, é um brasileiro reconhecido mundialmente e eu lhe pergunto que escola
realmente aplica os métodos de Paulo Freire.
FG – Por que, apesar de haver uma formação nesse sentido, na prática isso não acontece?
RS – Existe uma reação muito forte a essas mudanças que seriam uma grande revolução. O
MEC [Ministério da Educação] não entende isso e, portanto, dificilmente ele cobra isso das
escolas públicas. E, no Brasil, o ensino básico de qualidade é entendido como estando nas
escolas privadas e não nas públicas. Você tem grandes escolas públicas, mas são exceções, um
Pedro II aqui, um Colégio de Aplicação em Recife e que são tradicionalmente escolas de acesso
da classe média. As escolas particulares respondem a uma sociedade que não está antenada
para o fato de elas serem um comércio. A coisa mais fácil do mundo é você ver numa reunião
de pais e mestres um pai ou uma mãe levantar o dedo pra dizer que acha que a filha ou o
Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br
filho está com muita liberdade porque chega em casa com pouco dever, quando, na verdade,
devia dar graças a Deus porque o filho saiu do período de trabalho na escola para chegar em
casa e ter um período de diversão, de convivência com os familiares. Quanto mais dura for a
escola, melhor os pais vão achar que é. O parâmetro de qualidade do ensino hoje, no nosso
país, é o percentual de aprovação no vestibular, o que é um grande equívoco. Diga-se de
passagem, a maioria dos que passam no vestibular não sabe porque entrou naquele curso. Eu
sou um exemplo disso. Iniciei sete cursos. Se tivesse sido preparado para a universidade, teria
terminado meu primeiro curso, porque ele me serviria, como o curso de sociologia está
servindo hoje. Entrei na faculdade em 80 e colei grau em abril de 97. Terminei o curso e
emendei num mestrado. Esse sim me deu uma visão, uma qualificação para o meu trabalho.
Mas quantos têm acesso a um mestrado? Muito poucos.
FG – A cobrança é muito mais na classe média.
RS – A escola, na verdade, embora esteja totalmente dirigida para o vestibular, não está
dirigida para preparar para a universidade. A maioria das pessoas que entram numa
universidade não sabe o que vai encontrar pela frente. Enfim, o grande problema está muito
na pressão que a sociedade coloca nesse modelo escolar que a gente tem. E aí o ensino
público, que poderia ser o que fizesse essa revolução, é um ensino totalmente relegado ao
décimo quinto plano. Os nossos dirigentes não entendem isso como sendo a grande base para
qualquer mudança estrutural, política, ideológica.
FG – Nos outros países que você tem contato é diferente?
RS – Na maioria dos países não, mas pelo menos há um investimento forte no ensino público,
com uma qualidade relativamente boa. Se você chega nos países ditos desenvolvidos vai ver
que nem sempre a universidade, mas o ensino médio é de acesso gratuito para todas as
camadas. Até nos Estados Unidos, que não são exemplo de educação para canto nenhum. Por
conseqüência, todos vão ter acesso à Universidade ou a um ensino técnico com uma certa
qualidade. Quando você vai para a Europa essa situação melhora um pouco. Aquele que quiser
Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br
terá acesso a boas universidades, a partir de um ensino público. Na Inglaterra, você tem
escolas de internato para onde você vai e fica a semana inteira ou o ano inteiro. A família
quase que delega para a escola toda a obrigação com a educação dos filhos. Normalmente são
ensinos autoritários e conservadores, mas pelo menos eles têm uma qualidade que vai lhe
preparar para uma universidade.
FG: E nos países da América Latina?
RS: Na Argentina, por exemplo, você consegue ter a educação do seu filho, com qualidade,
toda em escolas públicas, e se você for ver o número de analfabetos, o IDH saiu agora, se eu
não me engano a Argentina está em 34º, nós somos 73º.
FG: E comparando o sistema público de ensino com o particular, existe alguma diferença
significativa da forma de usar a comunicação?
RS: De uma maneira geral o ensino particular lhe garante maior acesso ao conhecimento,
aquilo que o MEC entende como padrão de ensino/aprendizagem. Garante uma menor
dificuldade de ingresso aos cursos de nível superior, e mais ainda, aos cursos das escolas
públicas de ensino superior, que, ao contrário do ensino fundamental e do ensino médio, têm
mais qualidade. Agora, ainda é na rede pública que você consegue encontrar projetos
inovadores. No Rio de Janeiro você tem projetos do uso de vídeo em sala de aula na rede
pública que você não vai encontrar na rede privada. Infelizmente, isso não se reflete na rede
de ensino como um todo, não se espalha para as disciplinas verticais, é transversal.
FG: O que você acha desse novo termo “educomunicação”?
RS: A maior parte das pessoas que trabalha com comunicação e educação não gosta disso,
acha que é na verdade uma invenção da academia para justificar uma nova área de estudo.
Particularmente, não gosto muito dessas especializações, para mim qualquer um pode
trabalhar com educação e comunicação. O importante é que quando você fala de educação e
de comunicação você esta falando da área social e então você tem que ter um leque de
Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br
conhecimento extremamente abrangente. Não se faz projeto social sem um conhecimento
legal de Economia, História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Pedagogia, Comunicação e,
dependendo para onde você vá, de Administração. Esse conhecimento multidisciplinar, para
mim, é muito mais agradável do que você estar criando novas disciplinas e quando você cria a
disciplina “educomunicação” é porque está querendo garantir reserva de mercado para esses
profissionais.
FG: Você que trabalha com movimento social acha que ele tem influenciado na política
pública? Na mudança?
RS: Alguma influência, sim, mas mudança ainda é cedo para a gente dizer. Acho que, por
exemplo, a criação no Brasil de uma Secretária Especial de Direitos Humanos já foi uma
influência dos movimentos sociais. O resultado disso, os impactos, as mudanças, é que a gente
ainda está por vir. Outro exemplo é o referendo do desarmamento.
FG: E em relação à escola, à qualidade de ensino?
RS: O movimento social comete erros. Enquanto a gente não estiver dentro das escolas
tentando fazer as mudanças dentro dela, enquanto estivermos trabalhando paralelamente,
vai ser muito difícil criar impactos nessa escola. Isso é uma coisa que não se entendia muito
bem há algum tempo, mas que hoje em dia a gente vê que é a função da ONG.
Rua General Osório/49–São Domingos– Niterói – 3604-1500 – www.bemtv.org.br
Artigos ABERJE
EDUCOMUNICAÇÃO E A REINVENÇÃO DA EMPRESA DO SÉCULO XXI
Paulo Monteiro
Em busca do sentido perdido
"Eu conheço um planeta onde há um sujeito vermelho, quase roxo.
Nunca cheirou uma flor. Nunca olhou uma estrela. Nunca amou
ninguém. Nunca fez outra coisa senão somas. E o dia todo repete
como tu "Eu sou um homem sério! Eu sou um homem sério!", e
isso o faz inchar-se de orgulho. Mas ele não é um homem, é um
cogumelo."
Esse não é simplesmente um parágrafo de uma das obras
literárias mais importantes da historia - O Pequeno Príncipe - mas
uma profecia que se confirma e se materializa cada vez mais na
atualidade. Esse planeta poderia muito bem se chamar Terra, e
esse sujeito quase roxo, José, João, Márcia, Roberta, cada um dos
milhões de seres que dedicamos tanto tempo a somar, a incharnos de orgulho fazendo "coisas sérias", esquecendo de olhar uma
estrela, de amar alguém...
Nos dias atuais enfrentamos uma trágica realidade: a falta de
sentido nas coisas que fazemos, a prisão de ter que repetir ações
mecânicas, sem usufruir o prazer de transcender em cada uma
delas. Essa falta de sentido é também herança de uma
mentalidade positivista, que baniu da existência humana qualquer
sentido metafísico, espiritual, universal, para concentrar-se
somente nos números, no empírico, na experiência "científica",
numa aventura que levaria o homem a "conquistar" seu universo.
Tal pretensão, fortalecida a partir do racionalismo, dominou quase
todas as esferas das sociedades ocidentais, numa busca obsessiva
por controlar, dominar, manipular toda a existência por meio da
razão e da "técnica", mentalidade que prevaleceu também no
mundo empresarial. Com o inicio da revolução industrial e a
concentração na produção, a lógica predominante era a visão
racional-econômica, que concebia a organização como um mero
ente produtivo cuja missão essencial era obter os melhores
resultados com os menores custos.
Esse enfoque faz tudo girar em torno dos resultados, para o bem
da "empresa", que passa a ser uma abstração quase sagrada, à
qual todos devem acomodar-se e servir. Nesse âmbito autosuficiente e cientificamente "eficiente", o ser humano é visto como
parte de uma engrenagem que deve gerar sempre a melhor
produção possível; ele existe e tem sentido somente na medida
em que é um instrumento para melhorar os "resultados" da
empresa.
Seria bom se esta descrição fosse simplesmente uma referência a
um período histórico que já passou. Mas, em pleno século XXI,
esse cenário ainda resiste a desaparecer de nossa história. Muitas
empresas insistem em herdar o pensamento racional-econômico,
centralizando-se nos resultados e submetendo as pessoas a essa
obsessão que termina por transformar-se em um fim absoluto. Mas
o paradoxal dessa mentalidade é que o campo "sagrado" dos
resultados, que é o grande objetivo de toda empresa, termina
sendo prejudicado precisamente por essa atitude que submete as
pessoas às metas de produção e de lucro.
Tal paradoxo ocorre porque o ser humano é um ser em busca de
sentido, de transcendência; quer dar significado a todas as coisas
que faz, sobretudo ao seu trabalho que, como parte de sua
humanidade, é virtude, vocação, e por isso mesmo nunca deveria
ser um fardo. A mentalidade economicista na empresa aliena o
homem, fazendo-o escravo de uma produção que não possui,
precisamente por pertencer aos "donos", aos "proprietários" da
organização. Sem encontrar sentido no trabalho que exerce, o ser
humano perde toda e qualquer motivação e seu agir profissional
passa a ser necessidade de sobrevivência, conduta que termina
por limitar os resultados de seu desempenho a níveis mínimos.
O renascer do humanismo nas empresas
Felizmente, em meio a essa visão pragmática e utilitarista, que
ainda prevalece, do que deve ser a empresa, observamos um
fenômeno de humanização cada vez maior no âmbito corporativo.
São cada vez mais os autores que se dedicam ao tema da pessoa
como fator central e vital para o desenvolvimento da empresa.
Peter Druker, Stephen Covey, Fredy Kofman, Peter Senge, Daniel
Goleman, são só alguns exemplos de pensadores de sucesso que
levantaram a bandeira do ser humano como valor principal da
organização.
O surgimento da Responsabilidade Social Empresarial como uma
forma global de ver e gerir a organização, é outra manifestação
desse boom humanista que estamos observando no âmbito
corporativo. A empresa passa a ser muito mais que um mero ente
produtor, convertendo-se em entidade co-responsável pela
construção de uma sociedade melhor, missão que abrange
clientes, meio ambiente, colaboradores e funcionários, acionistas,
enfim, todas as realidades e ambientes que interagem com a
organização.
Esse novo impulso humanístico concebe a empresa como um
espaço significativo no qual cada pessoa passa a ser um elemento
chave para a realização do projeto e da missão da organização. A
identidade corporativa se funde com os valores e aspirações de
cada funcionário, que se torna sócio, realizador do
empreendimento comum que a organização põe em marcha.
Nessa visão, o âmbito dos resultados deixa de ser um fim em si
mesmo, para tornar-se fruto de uma motivação que se materializa
no trabalho. É precisamente este sentido recuperado no ambiente
profissional que, levando ao compromisso e à atitude, tem como
conseqüência natural a conquista dos melhores resultados.
A empresa como um totus significativo
A organização que se atreve a ser autenticamente humana
funciona, em palavras de Peter Senge, como uma comunidade
consciente, um organismo vivo onde tudo comunica, porque tudo
é significativo, tudo é parte de seu projeto comum e missão global.
É nesse sentido que a empresa, em seu exercício de consciência,
promove uma mudança de paradigma quanto à comunicação. Se a
mentalidade cartesiana e racionalista vê a comunicação
empresarial como produção de uma coleção de mídias, de boletins
informativos e jornais murais - tarefa vista como específica do
"departamento de comunicação"-, a concepção humanista define
a organização como uma entidade viva e dinâmica que se
comunica constantemente, em cada uma de suas ações e
realidades. A arquitetura dos edifícios e salas, as cores, o material
corporativo e promocional, a gestão, as ações e conversas dos
funcionários - que passam a ser os "publicitários vivos" da marca são elementos comunicadores da essência da empresa.
Esse universo comunicacional forma o que alguns autores
chamam de ecossistema comunicativo, um cosmos organizacional
no qual as diversas partes interagem num processo sinérgico e
construtivo que tem uma orientação comum. Nesse ecossistema,
o conjunto é mais que a soma das partes, e o organismo - mais
que uma coleção de elementos independentes - se desenvolve
como um sistema de relações ricas e significativas. Nesse
contexto do "tudo comunica" qualquer divisão ou fragmentação da
comunicação em ações isoladas e pontuais que não estejam
encarnadas na identidade e na vida da empresa, passa a ser uma
ação pobre e reducionista. A própria divisão entre "interna" e
"externa", usada para a comunicação empresarial, perde sentido
nessa concepção integradora e global de uma comunidade
consciente na qual tudo comunica.
O universo desse totus significativo implica, por outro lado, uma
comunicação que é muito mais que uma mera transmissão
unilateral ou vertical de dados e informações. A palavra
"comunicar" vem do latim "communicare" que tem um sentido de
"movimentar juntos" e tem a mesma raiz da palavra latina
"communio", que significa comunhão. A comunicação verdadeira e
autêntica deve estar, portanto, necessariamente comprometida
com o ser humano e com seu enriquecimento. "Comunicar", visto
por este ângulo, é levar a pessoa ao âmbito do sentido, num
universo comum no qual se compartilham realidades
significativas.
A Educomunicação empresarial: formando ecossistemas
comunicativos
Essa conexão entre o "comunicar" e o sentido leva ao produtivo
encontro entre a comunicação e a educação, num propósito
comum de enriquecer e aperfeiçoar o ser humano e seus âmbitos
sociais. O ato comunicativo deve pressupor um compromisso
ético, "educativo", com a pessoa, e por outro lado, o exercício da
educação deve ser um encontro, uma experiência de communio,
de verdadeira comunicação, para que se cumpra realmente a
meta educacional.
O campo da "Comunicação e Educação" se apresenta, nesse
sentido, como um novo âmbito do saber, uma nova linha de
investigação e ação que muitos pensadores e profissionais
começam a desenvolver como um verdadeiro propulsor de
espaços significativos e conscientes. É nesse contexto que começa
a ser usado o conceito de Educomunicação - termo utilizado de
uma maneira mais "oficial" pelos participantes do Fórum Mídia e
Educação, realizado em São Paulo, em 1999 - e que se refere a
uma área de atuação que aspira criar espaços comunicacionais
que buscam a formação de um sujeito crítico, participativo,
inserido ativamente na dinâmica do próprio meio social ao qual
pertence.
A Educomunicação aplicada ao mundo empresarial surge como o
meio mais adequado para fazer das organizações ecossistemas
comunicativos, âmbitos de participação e de aprendizagem que
permitam às pessoas que os compõem, a possibilidade de autorealização como seres chamados a uma vida significativa. Trata-se,
portanto, de uma ação ética de comunicação, dirigida às pessoas
e aos segmentos sociais envolvidos com a organização, e que
busca desenvolvê-la como um ambiente de aprendizagem e
crescimento, no qual cada indivíduo passa a ser um agente ativo e
responsável de um projeto comum. Essa aplicação se dá por meio
da promoção de uma linguagem verdadeira, que descobre a
"beleza" do real, do existente (a "beleza" do mundo, da empresa e
seus valores, da pessoa humana e de cada sujeito com suas
capacidades etc.), e ao mesmo tempo constrói mundos
significativos, realidades sociais que são a materialização de uma
nova história, de um momento organizacional mais humano, de
excelência, que leva as pessoas e a organização a serem o melhor
que podem ser.
Alguns dos principais campos de ação da
Educomunicação empresarial são:
A (re)afirmação ou (re)construção de uma identidade corporativa
sólida: não se pode pensar em formar um espaço significativo sem
uma clareza do que é a organização, qual a sua essência e
identidade, quais seus valores e colunas, qual sua missão e visão.
Esses elementos de identidade devem ser "re-lidos e re-definidos"
com a participação dos membros da empresa, para que sejam
parte de suas vidas e, portanto, tenham sentido.
Formação e educação dirigida às pessoas da empresa, que
englobem temas básicos para o desenvolvimento humano e social,
tais como: inteligência emocional, liderança, comunicação, ética,
entre outros. Esses temas devem ser oferecidos de maneira
participativa, implicando os funcionários com a vida diária da
organização, a partir de aplicações práticas das reflexões feitas e
dos temas dialogados.
Busca da integração entre pessoas e empresa através de
unidades educativas, meios de comunicação e tecnologia da
informação, processos e práticas organizacionais que levem a tal
alinhamento.
Educação e capacitação que busquem formar os funcionários
como pensadores e arquitetos dos meios de comunicação e das
tecnologias da informação, a partir de um melhor conhecimento e
leitura de tais instrumentos.
A intervenção educomunicacional dirigida à empresa, que
contempla tais campos de ação, deve seguir certos passos ou
fases, como: a investigação e o diagnóstico da realidade, a
definição dos procedimentos e elaboração da ação a ser
implementada, a execução do plano de ação, o seguimento e
monitoramento constantes, a avaliação final e as conclusões para
futuras ações.
A intervenção deve cuidar também que as iniciativas de gestão
sejam coerentes e caminhem na mesma linha do que se propõe,
pois do contrário poderia surgir uma "esquizofrenia organizacional"
provocada pelo desencontro entre o projeto desenhado e aplicado,
e a realidade prática, cotidiana, da empresa.
O campo da Educomunicação traz também a figura de um novo
profissional, o Educomunicador, que deve ser - também no caso
específico dos programas aplicados à empresa - o coordenador da
ação proposta, trabalhando em conjunto com profissionais de
outras áreas e buscando um enfoque pluridisciplinar, condição
necessária para que se dê a gestão do conhecimento. Esse
profissional pode ser um consultor externo que trabalhe em
conjunto com uma equipe da empresa durante a intervenção
proposta, ou um funcionário da própria organização capacitado
para realizar tal ação em conjunto com outros colegas.
A oportunidade histórica de reinventar a empresa atual
Não há duvidas que o século XXI é o momento histórico de
resgatar o sentido do trabalho humano, de unir âmbitos que por
muito tempo estiveram separados pela "ruptura" positivista: o
campo espiritual e ético da realização pessoal, e o campo
pragmático dos "resultados", do crescimento econômico e da
"eficiência" organizacional.
Nessa "re-união" desses dois âmbitos, uma comunicação
empresarial comprometida com a educação das pessoas e com a
aprendizagem da organização, é o elemento chave para resgatar
esse sentido, esquecido pela obsessão economicista e racionalista
que prevaleceu por tanto tempo na história das organizações.
É nesse contexto que a Educomunicação empresarial surge como
um campo estratégico, que deve ser investigado e aprofundado
como um caminho de excelência para fazer do âmbito profissional
um universo significativo. Essa é a via ideal para recuperar a
alegria perdida nos números e nas "metas", nos processos e
sistemas "eficientes" que por tanto tempo ofuscaram o homem no
contexto da cultura organizacional. Esse é o melhor meio para
livrar-nos de um pragmatismo às vezes exagerado e frio, que nos
torna seres "vermelhos quase roxos" que "só sabem somar",
"homens sérios" que "nunca viram uma estrela ou cheiraram uma
flor", que "nunca amaram alguém", verdadeiros "cogumelos
ambulantes", nostálgicos de uma humanidade que intuímos
carecer.
Essa é a oportunidade histórica de desenvolver esse novo tipo de
comunicação, que nos ajude a converter-nos em homens éticos e
responsáveis, seres humanos que encontram sentido no que
fazem, e que se descobrem como construtores de uma sociedade
melhor. Esse necessário passo é o impulso vital que converterá a
empresa em um ambiente participativo e criativo que, na medida
em que seja autenticamente humano, experimentará também o
doce sabor do desenvolvimento e da rentabilidade, frutos de um
projeto vivido e realizado com consciência e motivação.
Eis aqui um momento que deve ser aproveitado por todos os
profissionais envolvidos com a empresa e com a comunicação e
que sonham com uma era mais humana e verdadeira na trajetória
das organizações. Se desperdiçarmos esta oportunidade, só nos
restará esperar a volta do Pequeno Príncipe em seu cometa
ambulante para dar-nos consultoria empresarial.
http://www.aberje.com.br/novo/acoes_artigos_mais.asp?id=190
AS VEIAS ABERTAS DA
AMÉRICA LATINA
EDUARDO GALEANO
DIGITALIZADO E REVISADO PELO:
W W W.INVENTATI.ORG/SABOTA G E M
1
Galeano, Eduardo
As Veias Abertas da América LAtina: tradução de
Galeano de Freitas, Rio de Janeiro, Paz e Terra,
(estudos latino-americano, v.12)
Do original em espanhol: Las venas abiertas da
America Latina
Este livro não possui direitos autorais pode e deve ser reproduzido para fins não
comerciais no todo ou em parte, além de ser liberada sua distribuição, preservando o nome do autor.
2
3
4
CENTO E VINTE MILHÕES DE CRIANÇAS NO CENTRO DA TORMENTA
Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países
especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa comarca
do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce: especializou-se em perder
desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se abalançaram pelo mar
e fincaram os dentes em sua garganta. Passaram os séculos, e a América Latina aperfeiçoou suas funções. Este já não é o reino das maravilhas, onde a realidade derrotava a
fábula e a imaginação era humilhada pelos troféus das conquistas, as jazidas de ouro e as
montanhas de prata. Mas a região continua trabalhando como um serviçal. Continua
existindo a serviço de necessidades alheias, como fonte e reserva de petróleo e ferro, cobre
e carne, frutas e café, matérias-primas e alimentos, destinados aos países ricos que ganham, consumindo-os, muito mais do que a América Latina ganha produzindo-os. São
muito mais altos os impostos que cobram os compradores do que os preços que recebem
os vendedores; e no final das contas, como declarou em julho de 1968 Covey T. Oliver,
coordenador da Aliança para o Progresso, “falar de preços justos, atualmente, é um conceito medieval. Estamos em plena época da livre comercialização...” Quanto mais liberdade
se outorga aos negócios, mais cárceres se torna necessário construir para aqueles que
sofrem com os negócios. Nossos sistemas de inquisidores e carrascos não só funcionam
para o mercado externo dominante; proporcionam também caudalosos mananciais de
lucros que fluem dos empréstimos e inversões estrangeiras nos mercados internos dominados. “Ouve-se falar de concessões feitas pela América Latina ao capital estrangeiro, mas
não de concessões feitas pelos Estados Unidos ao capital de outros países... É que nós não
fazemos concessões”, advertia, lá por 1913, o presidente norte-ameiricano Woodrow Wilson, Ele estava certo: “Um país - dizia - é possuído e dominado pelo capital que nele se
tenha investido.” E tinha razão. Na caminhada, até perdemos o direito de chamarmo-nos
americanos, ainda que os haitianos e os cubanos já aparecessem na História como povos
novos, um século antes de os peregrinos do Mayflower se estabelecerem nas costas de
Plymouth. Agora, a América é, para o mundo, nada mais do que os Estados Unidos: nós
habitamos, no máximo, numa sub-América, numa América de segunda classe, de nebulosa identificação.
É a América Latina, a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos
dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal
tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder.Tudo: a terra,
seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a
estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por
sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. A cada um dá-se uma função,
sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e a
cadeia das dependências sucessivas torna-se infinita, tendo muito mais de dois elos, e por
certo também incluindo, dentro da América Latina, a opressão dos países pequenos por
seus vizinhos maiores e, dentro das fronteiras de cada país, a exploração que as grandes
cidades e os portos exercem sobre suas fontes internas de víveres e mão-de-obra. (Há
quatro séculos, já existiam dezesseis das vinte cidades latino-americanas mais populosas
da atualidade.)
Para os que concebem a História como uma disputa, o atraso e a miséria da América
Latina são o resultado de seu fracasso. Perdemos; outros ganharam. Mas acontece que
aqueles que ganharam, ganharam graças ao que nós perdemos: a história do subdesenvolvimento da América Latina integra, como já se disse, a história do desenvolvimento do
capitalismo mundial. Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza gerou
5
sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os impérios e seus agentes nativos.
Na alquimia colonial e neo-colonial, o ouro se transforma em sucata e os alimentos se convertem em
veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta do cimo dos esplendores dos
metais preciosos no fundo buraco dos filões vazios, e a ruína foi o destino do pampa
chileno do salitre e da selva amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as
matas argentinas de quebrachos ou alguns povoados petrolíferos de Maracaibo têm dolorosas razões para crer na mortalidade das fortunas que a natureza outorga e o imperialismo
usurpa. A chuva que irriga os centros do poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do
mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes - dominantes para dentro,
dominadas de fora - é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga.
A brecha se amplia. Em meados do século passado, o nível de vida dos países ricos
do mundo excedia em 50% o nível dos países pobres. O desenvolvimento desenvolve a
desigualdade: Richard Nixon anunciou, em abril de 1969, em seu discurso perante a OEA,
que no fim do século XX a renda percapita nos Estados Unidos será quinze vezes mais alta
do que esta mesma renda na América Latina. A força do conjunto do sistema imperialista
descansa na necessária desigualdade das partes que o formam, e esta desigualdade assume magnitudes cada vez mais dramáticas. Os países opressores tornam-se cada vez mais ricos em
termos absolutos, porém muito mais em termos relativos, pelo dinamismo da disparidade
crescente. O capitalismo central pode dar-se ao luxo de criar e acreditar em seus próprios
mitos de opulência, mas os mitos não são comíveis, e os países pobres que constituem o
vasto capitalismo periférico o sabem muito bem. A renda média de um cidadão
norte-americano é sete vezes maior que a de um latino-americano, e aumenta num ritmo
dez vezes mais intenso. E as médias enganam, pelos insondáveis abismos que se abrem,
ao sul do rio Bravo, entre os muitos pobres e os poucos ricos da região. No topo, com efeito,
seis milhões de latino-americanos açambarcam, segundo as Nações Unidas, a mesma
renda que 140 milhões de pessoas situadas na base de pirâmide social. Há 60 milhões de
camponeses, cuja fortuna ascende a 25 centavos de dólares por dia; no outro extremo, os
proxenetas da desgraça dão-se ao luxo de acumular cinco milhões de dólares em suas
contas privadas na Suíça ou nos Estados Unidos, e malbaratam na ostentação e luxo estéril
- ofensa e desafio - e em inversões improdutivas, que constituem nada menos do que a
metade da inversão total, os capitais que América Latina poderia destinar à reposição,
ampliação e criação de fontes de produção e de trabalho. Incorporadas desde sempre à
constelação do poder imperialista, nossas classes dominantes não têm o menor interesse
em averiguar se o patriotismo poderia ser mais rentável do que a traição ou se a mendicância é a única forma possível de política internacional. Hipoteca-se a soberania porque “não
há outro caminho”; os álibis da oligarquia confundem interessadamente a impotência de
uma classe social com o presumível vazio de destino de cada nação.
Josué de Castro declara: “Eu, que recebi um prêmio internacional da paz, penso que,
infelizmente, não há outra solução que a violência para América Latina.” Cento e vinte
milhões de crianças se agitam no centro desta tormenta. A população da América Latina
cresce como nenhuma outra; em meio século triplicou com sobras. Em cada minuto morre
uma criança de doença ou de fome, mas no ano 2000 haverá 650 milhões de
latino-americanos, e a metade terá menos de 15 anos de idade: uma bomba de tempo. Entre
os 280 milhões de latino-americanos há, atualmente, cinqüenta milhões de desempregados ou subempregados e cerca de cem milhões de analfabetos; a metade dos
latino-americanos vive apinhada em moradias insalubres. Os três maiores mercados da
América Latina - Argentina, Brasil e México - não chegam a igualar, somados, a capacidade
de consumo da França ou da Alemanha Ocidental, mesmo que a população reunida de
nossos três grandes exceda de muito a de qualquer país europeu. A América Latina produz,
hoje em dia, em relação a sua população, menos alimentos do que antes da última guerra
6
mundial, e suas exportações per capita diminuíram três vezes, a preços constantes, desde
a véspera da crise de 1929. O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos
estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao Diabo por um
preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os
demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e
tensões, suas fortes contradições. Até a industrialização dependente e tardia, que comodamente coexiste com o latifúndio e as estruturas da desigualdade, contribui para semear o
desemprego ao invés de tentar resolvê-lo; estende-se a pobreza e concentra-se a riqueza,
que conta com imensas legiões de braços cruzados, que se multiplicam sem descanso.
Novas fábricas se instalam nos pólos privilegiados de desenvolvimento - São Paulo, Buenos
Aires, a cidade do México -, porém reduz-se cada vez mais o número da mão-de-obra
exigido. O sistema não previu esta pequena chateação: o que sobra é gente. E gente se
reproduz. Faz-se o amor com entusiasmo e sem precauções. Cada vez mais, fica gente à
beira do caminho, sem trabalho no campo, onde o latifúndio reina com suas gigantescas
terras ociosas, e sem trabalho na cidade, onde reinam as máquinas: o sistema vomita
homens. As missões norte-americanas esterilizam maciçamente mulheres e semeiam
pílulas, diafragmas, DIUs, preservativos e almanaques marcados, mas colhem crianças;
obstinadamente, as crianças latino-americanas continuam nascendo, reivindicando seu
direito natural de obter um lugar ao sol, nestas terras esplêndidas, que poderiam dar a
todos o que a quase todos negam.
Em princípios de novembro de 1968, Richard Nixon comprovou em voz alta que a
Aliança para o Progresso havia cumprido sete anos de vida e, entretanto, agravaram-se a
desnutrição e a escassez de alimentos na América Latina. Poucos meses antes, em abril,
George W. Ball escrevia em Life: “Pelo menos durante as próximas décadas, o descontentamento das nações pobres não significará uma ameaça de destruição do mundo. Por
mais vergonhoso que seja, o mundo tem vivido, durante gerações, dois terços pobres e um
terço rico. Por mais injusto que seja, é limitado o poder dos países pobres”. Ball encabeçara
a delegação dos Estados Unidos na Primeira Conferência de Comércio e Desenvolvimento
em Genebra, e votara contra nove dos doze princípios gerais aprovados pela conferência,
com o objetivo de aliviar as desvantagens dos países subdesenvolvidos no comércio internacional.
São secretas as matanças da miséria na América Latina; em cada ano explodem,
silenciosamente, sem qualquer estrépito, três bombas de Hiroxima sobre estes povos, que
têm o costume de sofrer com os dentes cerrados. Esta violência sistemática e real continua
aumentando: seus crimes não se difundem na imprensa marrom, mas sim nas estatísticas da FA O. Ball diz que a impunidade é ainda possível, porque os pobres não podem
desencadear uma guerra mundial, porém o Império se preocupa: incapaz de multiplicar
os pães, faz o possível para suprimir os comensais. “Combata a pobreza, mate um mendigo!”, rabiscou um mestre do humor-negro num muro da cidade de La Paz. O que propõem
os herdeiros de Malthus senão matar a todos os próximos mendigos, antes que nasçam?
Robert McNamara, o presidente do Banco Mundial, que tinha sido presidente da Ford e
secretário da Defesa, afirma que a explosão demográfica constitui o maior obstáculo para
o progresso da América Latina e anuncia que o Banco Mundial dá prioridade, em seus
empréstimos, aos países que realizam planos para o controle da natalidade. McNamara
comprova, com pesar, que os cérebros dos pobres pensam cerca de 25% a menos, e os
tecnocratas do Banco Mundial (que já nasceram) fazem zumbir os computadores e geram
complicadíssimas teses sobre as vantagens de não nascer. “Se um país em desenvolvimento, que tem uma renda média percapita de 150 a 200 dólares anuais, consegue reduzir
sua fertilidade em 50% num período de 25 anos, ao cabo de 30 anos sua renda per capita
será superior pelo menos em 40% ao nível que teria alcançado mantendo sua fertilidade,
7
e duas vezes mais elevada ao fim de 60 anos”, assegura um dos documentos do organismo. Tornou-se célebre a frase de Lyndon Johnson: “Cinco dólares investidos contra o
crescimento da população são mais eficazes do que cem dólares investidos no desenvolvimento econômico.” Dwight Eisenhower prognosticou que, se os habitantes da Terra continuassem multiplicando-se no mesmo ritmo, não só se intensificaria o perigo de uma
revolução, mas também se produziria “uma degradação do nível de vida de todos os
povos, o nosso inclusive”.
Os Estados Unidos não sofrem, dentro de suas fronteiras, o problema da explosão
demográfica, mas se preocupam, como ninguém, em difundir e impor, nos quatros pontos
cardiais, a planificação familiar. Não somente o governo; também Rockefeller e a Fundação Ford sofrem pesadelos com milhões de crianças que avançam, como lagostas,
partindo dos horizontes do Terceiro Mundo. Platão e Aristóteles haviam-se ocupado do
tema antes de Malthus e McNamara; contudo, em nossos tempos, toda esta ofensiva
universal cumpre uma função bem definida: propõe-se justificar a desigual distribuição de
renda entre os países e entre as classes sociais, convencer aos pobres que a pobreza é o
resultado dos filhos que não se evitam e pôr um dique ao avanço da fúria das massas em
movimento e em rebelião. Os dispositivos intra-uterinos competem com as bombas e as
metralhadoras, no Sudeste asiático, no esforço para deter o crescimento da população do
Vietnã. Na América Latina é mais higiênico e eficaz matar os guerrilheiros nos úteros do que nas
serras ou nas ruas. Diversas missões norte-americanas esterilizaram milhares de mulheres
na Amazônia, apesar de ser esta a zona habitável mais deserta do planeta. Na maior parte
dos países latino-americanos não sobra gente: ao contrário, falta. O Brasil tem 38 vezes
menos habitantes por quilometro quadrado do que a Bélgica; Paraguai, 49 vezes menos do
que a Inglaterra; Peru, 32 vezes menos do que o Japão. Haiti e El Salvador, formigueiros
humanos da América Latina, têm uma densidade populacional menor do que a Itália. Os
pretextos invocados ofendem a inteligência; as intenções reais inflamam a indignação.
Afinal, não menos da metade dos territórios da Bolívia, Brasil, Chile, Equador,Paraguai e
Venezuela está habitada por ninguém. Nenhuma população latino-americana cresce menos
do que a do Uruguai, país de velhos; entretanto nenhuma outra nação tem sido tão
castigada, por uma crise que parece arrastá-la aos últimos círculos dos infernos. O Uruguai
está vazio e seus campos férteis poderiam dar de comer a uma população infinitamente
maior do que a que hoje sofre, sobre seu solo, tantas penúrias.
Há mais de um século, um chanceler da Guatemala tinha sentenciado profeticamente: “Seria curioso que do seio dos Estados Unidos, de onde nos vem o mal, nascesse
também o remédio.” Morta e enterrada a Aliança para o Progresso, o Império propõe
agora, com mais pânico do que generosidade, resolver os problemas da América Latina,
eliminando de antemão os latino-americanos. Em Washington, já há motivos para suspeitar que os povos pobres não preferem ser pobres. Mas não se pode querer o fim sem querer
os meios: aqueles que negam a libertação da América Latina, negam também nosso único
renascimento possível, e de passagem absolvem as estruturas vigentes. Os jovens
multiplicam-se, levantam-se, escutam: o que lhes oferece a voz do sistema? O sistema fala
uma linguagem surrealista: propõe evitar os nascimentos nestas terras vazias; diz que
faltam capitais em países onde estes sobram, mas são desperdiçados; chama de ajuda a
ortopedia deformante dos empréstimos e à drenagem de riquezas que os investimentos
estrangeiros provocam; convoca os latifundiários a realizarem a reforma agrária, e a oligarquia para pôr em prática a justiça social. A luta de classes não existe - decreta-se -, mais que
por culpa dos agentes forâneos que a fomentam; em troca existem as classes sociais, e se
chama a opressão de umas por outras de estilo ocidental de vida. As expedições criminosas dos marines têm por objetivo restabelecer a ordem e a paz social, e as ditaduras fiéis a
W ashington fundam nos cárceres o estado de direito, proíbem as greves e aniquilam os
8
sindicatos para proteger a liberdade de trabalho.
Tudo nos é proibido, a não ser cruzarmos os braços? A pobreza não está escrita nos
astros; o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. As classes
dominantes põem as barbas de molho, e ao mesmo tempo anunciam o inferno para todos.
De certo modo, a direita tem razão quando se identifica com a tranqüilidade e a ordem; é
a ordem, de fato, da cotidiana humilhação das maiorias, mas ordem em última análise; a
tranqüilidade de que a injustiça continue sendo injusta e a fome faminta. Se o futuro se
transforma numa caixa de surpresas, o conservador grita, com toda razão: “Traíram-me.”
E os ideólogos da impotência, os escravos, que olham a si mesmos com os olhos do dono,
não demoram a escutar seus clamores. A águia de bronze do Maine, derrubada no dia da
vitória da revolução cubana, jaz agora abandonada, com as asas quebradas sob o portal do
bairro velho de La Habana. A partir de Cuba, outros países iniciaram, por vias distintas e
com meios distintos, a experiência da mudança: a perpetuação da ordem atual das coisas
é a perpetuação do crime. Recuperar os bens que sempre foram usurpados, eqüivale a recuperar o
destino.
Os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas, ao longo da torturada
história latino-americana, emergem nas novas experiências, assim como os tempos presentes, pressentidos e engendrados pelas contradições do passado. A história é um profeta
com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi, anuncia o que será. Por isso, neste livro,
que quer oferecer uma história da pilhagem e ao mesmo tempo contar como funcionam os
mecanismos atuais de espoliação, aparecem os conquistadores nas caraveIas e, próximo,
os tecnocratas nos jatos; Hernán Cortês e os fuzileiros navais; os corregedores do reino e as
missões do Fundo Monetário Internacional; os dividendos dos traficantes de escravos e os
lucros da General Motors. Também os heróis derrotados e as revoluções de nossos dias, as
infâmias e as esperanças mortas e ressuscitadas: os sacrifícios fecundos. Quando Alexander
von Humboldt investigou os costumes dos antigos habitantes indígenas do planalto de
Bogotá, soube que os índios chamavam de quihica as vítimas das cerimônias rituais. Quihica
significava porta., a morte de cada eleito abria um novo ciclo de cento e oitenta e cinco luas.
9
PRIMEIRA PARTE: A POBREZA DO HOMEM COMO RESULTADO DA RIQUEZA DA TERRA
FEBRE DE OURO, FEBRE DE PRATA
O SIGNO DA CRUZ NOS CABOS DAS ESPADAS
Quando Cristóvão Colombo se lançou à travessia dos grandes espaços vazios a oeste
da Ecúmene, havia aceitado o desafio das lendas. Tempestades terríveis balançariam suas
naus, como se fossem cascas de nozes, e as arremessariam nas bocas dos monstros; a
grande serpente dos mares tenebrosos, faminta de carne humana, estaria à espreita. Só
faltavam mil anos para que os fogos purificadores do Juízo Final arrasassem o mundo,
como acreditavam os homens do século XV; o mundo era o mar Mediterrâneo com suas
costas ambíguas: Europa, África, Ásia. Os navegantes portugueses asseguravam que os
ventos do oeste traziam cadáveres estranhos e às vezes arrastavam troncos curiosamente
talhados, mas ninguém suspeitava que o mundo seria, logo, assombrosamente acrescido
por uma vasta terra nova.
A América não só carecia de nome. Os noruegueses não sabiam que a haviam
descoberto há muito tempo, e o próprio Colombo morreu, depois de suas viagens, ainda
convencido de que tinha chegado à Ásia pela rota do oeste. Em 1492, quando a bota
espanhola pisou pela primeira vez as areias das Bahamas, o almirante acreditou que estas
ilhas eram uma ponta da fabulosa ilha de Cipango: Japão. Colombo levava consigo um
exemplar do livro de Marco Polo, coberto de anotações às margens das páginas. Os habitantes de Cipango, dizia Marco Polo, “possuem ouro em enorme abundância, e as minas
onde o encontram não se esgotam jamais... Também há nessa ilha pérolas do mais puro
oriente em grande quantidade. São rosadas, redondas e de grande tamanho e superam
em valor as pérolas brancas.” A riqueza de Cipango tinha chegado aos ouvidos do Gran
Khan Kublai, tinha despertado em seu peito o desejo de conquistá-la: ele tinha fracassado.
Das fulgurantes páginas de Marco Polo esvoaçavam todos os bens da criação; havia quase
treze mil ilhas no mar da Índia com montanhas de ouro e pérolas, e doze tipos de especiarias em quantidades imensas, além da abundância da pimenta branca e preta.
A pimenta, o gengibre, o cravo, a noz-moscada e a canela eram tão cobiçados como
o sal para conservar a carne no inverno, sem que se apodrecesse ou perdesse o sabor. Os
Reis Católicos de Espanha decidiram financiar a aventura do acesso direto às fontes, para
se libertarem da onerosa cadeia de intermediários e revendedores que açambarcavam o
comércio das especiarias e plantas tropicais, as musselinas e as armas brancas, provenientes de misteriosas regiões do oriente. O desejo de metais preciosos, meio de pagamento
para o tráfico comercial, impulsionou também a travessia dos mares malditos. A Europa
inteira necessitava de prata: os filões da Boémia, Saxônia e Tirol já estavam quase exaustos.
A Espanha vivia o tempo da reconquista. 1492 não foi só o ano do descobrimento da
América, o novo mundo nascido do equívoco de conseqüências grandiosas. Foi também o
ano da recuperação de Granada. Fernando de Aragão e Isabel de Castela, superando com
o casamento a perda de seus domínios, tomaram em começos de 1492 o último reduto dos
árabes em solo espanhol. Custara quase oito séculos recobrar o que se havia perdido em
sete anos,1 e a guerra de reconquista esgotara o tesouro real. Mas, esta era uma guerra
santa, a guerra cristã contra o Islã, e não é por acaso, além disso, que neste mesmo ano de
10
1492 cento e cinquenta mil judeus declarados foram expulsos do país. A Espanha adquiria
realidade como nação; levantando espadas cujas empunhaduras desenhavam o sinal da
cruz. A rainha Isabel fez-se madrinha da Santa Inquisição. A façanha do descobrimento da
América não podia explicar-se sem a tradição militar de guerra de cruzadas que imperava
na Castela medieval, e a Igreja não se fez de rogada para dar caráter sagrado à conquista de
terras incógnitas do outro lado do mar. O papa Alexandre VI, que era espanhol, converteu
a rainha Isabel em dona e senhora do Novo Mundo. A expansão do reino de Castela
ampliava o reino de Deus sobre a Terra.
Três anos depois do descobrimento, Cristóvão Colombo dirigiu pessoalmente a campanha militar contra os indígenas da Ilha Dominicana. Um punhado de cavaleiros, duzentos infantes e alguns cães especialmente adestrados para o ataque dizimaram os índios.
Mais de quinhentos, enviados à Espanha, foram vendidos como escravos em Sevilha e
morreram miseravelmente.2 Entretanto alguns teólogos protestaram e a escravização dos
índios foi formalmente proibida ao nascer do século XVI. Na realidade, não foi proibida,
mas abençoada: antes de cada entrada militar, os capitães de conquista deviam ler para os
índios, sem intérprete mas diante de um escrivão público, um extenso e retórico
Requerimiento que os exortava a se converterem à santa fé católica: “Senão o fizerdes, ou
nisto puserdes maliciosamente dilação, certifico-vos que com a ajuda de Deus eu entrarei
poderosamente contra vós e vos farei guerra por todas as partes e maneira que puder, evos
sujeitarei ao jugo e obediência da Igreja e de Sua Majestade e tomarei vossas mulheres e
filhos e vos farei escravos, e como tais vos venderei, e disporei de vós como Sua Majestade
mandar, e tomarei vossos bens e vos farei todos os males e danos que puder...”3
A América era o vasto império do diabo, de redenção impossível ou duvidosa, mas a
fanática missão contra a heresia dos nativos confundia-se com a febre que provocava, nas
hostes da conquista, o brilho dos tesouros do Novo Mundo. Bernal Díaz del Castillo, fiel
companheiro de Fernão Cortez na conquista do México, escreve que chegaram à América
“para servir a Deus e a Sua Majestade e também por haver riquezas”.
Colombo ficou deslumbrado, quando atingiu a ilhota de San Salvador, pela colorida
transparência do Caribe, a paisagem verde, a doçura e a limpeza do ar, os pássaros esplêndidos e os mancebos “de boa estatura, gente mui formosa” e “bastante mansa” que ali
habitava. Presenteou aos indígenas “uns botões vermelhos e umas contas de vidro que se
punham no pescoço, e outras muitas coisas de pouco valor com que fizeram muito prazer
e ficaram tão nossos que era uma maravilha”. Mostrou-lhes as espadas. Eles não as
conheciam, seguravam-nas pelo fio, cortavam-se. Enquanto isto, conta o almirante em
seu diário de navegação, “eu estava atento e trabalhava para saber se havia ouro, e tendo
visto que alguns deles traziam um pedacinho pendente do buraco que tinham no nariz,
por sinais pude entender que indo ao Sul ou contornando a ilha pelo Sul, que estava ali um
Rei que tinha grandes vasos disto, e tinha muitíssimo”. Porque “do ouro se faz tesouro, e
com ele quem o tem faz o que quiser no mundo e chega a levar as almas ao Paraíso”. Em
sua terceira viagem, Colombo continuava acreditando que estava no mar da China, quando entrou nas costas da Venezuela: isto não o impediu de saber que dali se estendia uma
terra infinita, que era o próprio paraíso terrestre. Também Américo Vespúcio, explorador
do litoral do Brasil, enquanto nascia o século XVI, relataria a Lorenzo de Médici: “As árvores
são de tanta beleza e tanta suavidade que nos sentíamos estar no Paraíso terrestre...”4
Com pesar escrevia Colombo aos reis, da Jamaica, em 1503: “Quando eu descobri as índias
1. J. H. Elliot, La España imperial, Barcelona, 1965.
2. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en América, antes y después de Colónn, Buenos Aires,
1948.
3. Daniel Vidart, Ideologia y realidad de América, Montevidéu, 1968.
11
disse que eram o maior senhorio rico que há no mundo.Eu disse do ouro, pérolas, pedras
preciosas, especiarias...”
Uma única bolsa de pimenta valia, na Idade Média, mais do que a vida de um
homem, mas o ouro e a prata eram as chaves que o Renascimento empregava para abrir
as portas do paraíso no céu e as portas do mercantilismo capitalista na terra. A epopéia dos
espanhóis e portugueses na América combinou a propagação da fé cristã com a usurpação
e o saqueio das riquezas nativas. O poder europeu estendia-se para abarcar o mundo. As
terras virgens, densas de selvas e perigos, inflamavam a cobiça dos capitães, dos cavaleiros
fidalgos e dos soldados em trapos, lançados à conquista dos espetaculares despojos de
guerra: acreditavam na glória, “o sol dos mortos”, e na chave para alcançá-la, que Cortez
assim definia: “Aos ousados ajuda a Fortuna”. O próprio Cortez havia hipotecado todos
seus bens pessoais para equipar a expedição ao México. Salvo raras exceções - Colombo,
Dávila, Magalhães - as expedições de conquista não eram custeadas pelo Estado, mas
pelos próprios conquistadores ou por empresários que financiavam a aventura5.
Nasceu o mito do Eldorado, o monarca do ouro: de ouro eram as ruas e as casas das
cidades de seus reinos. Um século depois de Colombo, Sir Walter Raleigh subiria o Orinoco,
em busca do Eldorado, e seria derrotado pelas cataratas. A ilusão da “serra que emanava
prata” tornou-se realidade em 1545, com o descobrimento de Potosí, mas antes morreram, vencidos pela fome e pela doença ou varados a flechadas pelos indígenas, muitos dos
expedicionários que tentaram, infrutiferamente, alcançar o manancial da prata, subindo o
rio Paraná.
Havia, sim, ouro e prata em grandes quantidades, acumulados no planalto do México e no altiplano andino. Fernão Cortez revelou para a Espanha, em 1519, a fabulosa
magnitude do tesouro asteca de Montezuma, e quinze anos depois chegou a Sevilha o
gigantesco resgate, um aposento cheio de ouro e prata, que Francisco Pizarro mandou
pagar ao inca Atahualpa antes de estrangulá-lo. Anos antes, com o ouro arrancado das
Antilhas, a Coroa pagara o serviço dos marinheiros que acompanharam Colombo em sua
primeira viagem6. Finalmente, a população das ilhas do Caribe deixou de pagar tributos,
porque desapareceu: os indígenas foram completamente exterminados nas lavagens de
ouro, na terrível tarefa de revolver as areias auríferas com a metade do corpo mergulhada
na água, ou lavrando os campos até a extenuação, com as costas dobradas sobre os pesados instrumentos de aragem trazidos da Espanha. Muitos indígenas da Ilha Dominicana
antecipavam-se ao destino imposto por seus novos opressores brancos: matavam seus
filhos e se suicidavam em massa. O historiador Fernández de Oviedo interpretava assim,
em meados do século XVI, o holocausto dos antilhanos: “Muitos deles, por passatempo,
mataram-se com veneno para não trabalhar, e outros se enforcaram com as próprias
mãos”7.
4. Luís Nicolau D'Olwer, Cronistas de las culturas precolombinas, México, 1963. O advogado
Antonio de León Pinelo dedicou dois tomos inteiros para demonstrar que o Éden estava na
América. Em El Paraíso en el Nuevo Mundo (Madri, 1656), incluiu um mapa da América do Sul
no qual se pode ver, no centro, o jardim de Êden regado pelo Amazonas, o rio da Prata, o Orinoco
e o Magdalena. O fruto proibido era a banana. O mapa indicava o lugar exato de onde partira a
Arca de Noé, quando do Dilúvio Universal.
5. J. M. Ots Capdequí, El Estado español en las índias, México, 1941.
6. Earl J. Hamilton, American treasure and the price revolution in Spain (1501- - 1650),
Massachusetts, 1934.
7. Gonzalo Fernández de Oviedo, Historia general y natural de las Índias, Madri; 1959. A interpretação fez escola. Assombra-me ler, no último livro do técnico francês Renê Dumont, Cuba, estil socialiste?, Paris, 197O: "Os índios não foram totalmente exterminados. Seus gens subsistem
nos cromossomas cubanos. Eles sentiam uma tal aversão pela tensão que exige o trabalho
contínuo, que alguns se suicidaram antes de aceitar o trabalho forçado..."
12
OS DEUSES RETORNAM COM AS ARMAS SECRETAS
De passagem por Tenerife, durante sua primeira viagem, Colombo havia presenciado uma formidável erupção vulcânica. Foi como um presságio de tudo o que aconteceria
depois nas imensas terras novas, interrompendo, assombrosamente, a rota ocidental rumo
à Ásia. A América estava ali, se mostrava por suas costas infinitas; a conquista estendeu-se,
como uma maré furiosa, em ondas sucessivas. Os governadores sucediam os almirantes e
as tripulações convertiam-se em hostes invasoras. As bulas do Papa tinham feito apostólica concessão da África à coroa de Portugal, e à coroa de Castela outorgaram as terras
“desconhecidas como as até aqui descobertas por vossos enviados e as que se hão de
descobrir no futuro...”: a América fora doada à rainha Isabel. Em 1508, uma nova bula
concedeu à coroa espanhola, perpetuamente, todos os dízimos arrecadados na América: o
cobiçado patronato universal sobre a Igreja do Novo Mundo incluía o direito de premiação
real de todos os benefícios eclesiásticos8.
O Tratado de Tordesilhas, de 1494, permitiu a Portugal ocupar, territórios americanos
além da linha divisória traçada pelo Papa, e em 1530 Martim Afonso de Sousa fundou as
primeiras povoações portuguesas no Brasil, expulsando os franceses intrusos. Já então os
espanhóis, atravessando selvas infernais e desertos infinitos, tinham avançado muito no
processo de exploração e conquista. Em 1513, o Pacífico sul resplandecia ante os olhos de
Vasco Nunes de Balboa; no outono de 1522, retornavam à Espanha os dezoito sobreviventes da expedição de Fernão de Magalhães, que tinha unido pela primeira vez ambos os
oceanos e verificado que o mundo era redondo ao dar-lhe uma volta completa: três anos
antes, haviam partido da ilha de Cuba, em direção ao México, as dez naves de Fernão
Cortez, e em 1523 Pedro de Alvarado lançou-se à conquista da América Central; Francisco
Pizarro, um criador de porcos e analfabeto, entrou triunfalmente em Cuzco, em 1533,
apoderando-se do coração do império dos incas; em 1540, Pedro de Valdívia atravessava o
deserto de Atacama e fundava Santiago do Chile. Os conquistadores penetravam o Chaco
e descobriam o Novo Mundo do Peru à nascente do rio mais caudaloso do planeta.
Havia de tudo entre os indígenas da América: astrônomos e canibais, engenheiros e
selvagens da Idade da Pedra. Mas nenhuma das culturas nativas conhecia o ferro nem o
arado, nem o vidro e a pólvora, nem empregava a roda, a não ser em pequenos carrinhos.
A civilização que se abateu sobre estas terras, vinda do além-mar, vivia a explosão criadora
do Renascimento: a América aparecia como uma invenção a mais, incorporada, junto com
a pólvora, imprensa, papel e bússola, ao efervescente nascimento da Idade Moderna. O
desnível do desenvolvimento de ambos os mundos explica a relativa facilidade com que
sucumbiram as civilizações nativas. Fernão Cortez desembarcou em Veracruz acompanhado por não mais de 100 marinheiros e 508 soldados; trazia 16 cavalos, 32 bestas, 10 canhões
de bronze e alguns arcabuzes, mosquetões e pistolas. Bastou-lhe isto. E entretanto a
capital dos astecas, Tenochtitlán, era cinco vezes maior do que Madri e tinha o dobro da
população de Sevilha, a maior das cidades espanholas. Francisco Pizarro, por seu lado,
entrou em Cajamarca com 180 soldados, 37 cavalos, e encontrou um exército de 100 mil
índios.
Os indígenas foram derrotados também pelo assombro. O imperador Montezuma
recebeu, em seu palácio, as primeiras notícias: um grande “monte” andava mexendo-se
pelo mar. Outros mensageiros chegaram depois: “...muito espanto lhe causou ao ouvir,
como dispara um canhão, como ressoa seu estrépido, como derruba as pessoas; e
8. Guillermo Vázquez Franco, La conquista justificada, Montevidéu, 1968, e J. H. Elliot, op. cil.
13
atordoam-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma, bola de pedra sai de suas entranhas: vai
chovendo fogo...” Os estrangeiros traziam “veados” nos quais montavam e “ficavam da
altura dos tetos”. Por todas ás partes tinham o corpo envolto, “somente as caras aparecem.
São brancas, como se fossem de cal. Têm cabelo amarelo, embora alguns os tenham
pretos. Sua barba é grande...9” Montezuma acreditou que era o deus Quetzalcóatl que
voltava. Oito presságios haviam anunciado, pouco antes, o retorno. Os caçadores lhe
tinham trazido uma ave que tinha na cabeça um diadema redondo com a forma de um
espelho, que refletia o céu e o sol em direção do poente. Neste espelho Montezuma viu
marchar sobre o México os esquadrões dos guerreiros. O deus Quetzalcóatl tinha vindo
pelo leste e pelo leste tinha-se ido: era branco e barbudo. Também branco e barbudo era
Viracocha, o deus bissexual dos incas. E o leste era o berço dos antepassados heróicos dos
maias10.
Os deuses vingativos que agora regressavam para saldar contas com seus povos
traziam armaduras e camisas de malhas, escudos brilhantes que devolviam os dardos e
as pedras; suas armas disparavam raios mortíferos e escureciam a atmosfera com fumaças irrespiráveis. Os conquistadores praticavam também, com refinamento e sabedoria, a
técnica da traição e da intriga. Souberam aliar-se com os tlaxcaltecas contra Montezuma e
explorar, com proveito, a divisão do império incaico entre Huáscar e Atahualpa, os irmãos
inimigos. Uma vez abatidas, pelo crime, as chefias indígenas, souberam ganhar cúmplices
entre as castas dominantes intermediárias, sacerdotes, funcionários, militares. Além disso, também usaram outras armas ou, se se prefere, outros fatores trabalharam objetivamente para a vitória. Os cavalos e as bactérias, por exemplo.
Os cavalos tinham sido, como os camelos, originários da América11, mas haviam-se
extinguido nestas terras. Introduzidos na Europa por cavaleiros árabes, tinham, naquelas comarcas, uma imensa utilidade militar e econômica. Quando reapareceram na América, através da conquista, contribuíram para dar forças mágicas aos invasores ante os olhos
atônitos dos indígenas. Atahualpa viu chegar os primeiros soldados espanhóis, montados
em briosos cavalos ornamentados com casquetes e penachos, que corriam provocando
ruídos e poeira com seus cascos velozes: tomado pelo pânico, o inca caiu de costas.12 O
cacique Tecum, à frente dos herdeiros dos maias, decapitou o cavalo de Pedro Alvarado,
convencido de que formava parte do conquistador: Alvarado levantou-se e o matou13.
Poucos cavalos, cobertos com arreios de guerra, dispersavam as massas indígenas e semeavam o terror e a morte. “Os padres e os missionários divulgaram, ante a fantasia vernácula”,
durante o processo colonizador, “que os cavalos eram de origem sagrada, já que Santiago,
o Padroeiro da Espanha, montava um potro branco, que tinha ganho valiosas batalhas
contra os mouros e os judeus, com a ajuda da Divina Providência”14.
As bactérias e os vírus foram os aliados mais eficazes. Os europeus traziam consigo,
como pragas bíblicas, a varíola e o tétano, várias doenças pulmonares, intestinais e vené9. Segundo os informantes indígenas de frei Bernardino de Sahagún, no Códice Florentino,
Miguel León-Portilla, Visión de Ias vencidos, México, 1967.
10. Estas assombrosas coincidências estimularam a hipótese de que os deuses das re-ligiões
indígenas tivessem sido na realidade europeus chegados a estas terras muito antes de Colombo.
Rafael Pineda Yáñez, La isla y Colón, Buenos Aires, 1955.
11. Jacquetta Hawkes, Prehistoria, em História de la Humanidad, da Unesco, Bue-nos Aires,
1966.
12. Huamán Poma, El primer nueva crónica y buen gobierno, em Miguel León- Portilla, El reverso
de la conquista. Relaciones aztecas, mayas e incas, México, 1964.
13. Títulos de la Casa lzquiín Nehaib, Señora dei Território de Otziyá, em Miguel León-Portilla, op.
cit.
14. Gustavo Adolfo Otero, Vida social en el coloniaje, La Paz, 1958.
14
reas, o tracoma, o tifo, a lepra, a febre amarela, as cáries que apodreciam as bocas. A varíola
foi a primeira a aparecer. Não seria um castigo sobrenatural aquela epidemia desconhecida e repugnante que aumentava a febre e descompunha as carnes? “Já se foram a mexer
em Tlaxcala. Então se difundiu a epidemia: tosse, grãos ardentes, que queimam”, diz uma
testemunha indígena, e outro: “Muitos morreram com a pegajosa, compacta, dura doença
de grãos”15. Os índios morriam como moscas; seus organismos não opunham defesas
contra doenças novas. E os que sobreviviam ficavam debilitados e inúteis. O antropólogo
brasileiro Darcy Ribeiro calcula16 que mais da metade da população aborígene da América,
Austrália e ilhas oceânicas morreu logo no primeiro contato com os homens brancos.
“COMO PORCOS FAMINTOS, ANSEIAM PELO OURO”
Com tiros de arcabuz, golpes de espada e sopros de peste, avançavam os implacáveis e escassos conquistadores da América. É o que contam as vozes dos vencidos. Depois
da matança de Cholula, Montezuma envia novos emissários ao encontro de Fernão Cortez,
que avança rumo ao vale do México. Os enviados presenteam os espanhóis com colares de
ouro e bandeiras de penas de quetzal. Os espanhóis “deleitavam-se. Como se fossem
macacos levantavam o ouro, como que se encantassem, gestos de prazer, como que se lhes
renovasse e iluminasse o coração. Como que certo é que isso desejam com muita sede. Se
lhes incha o corpo por isto. Como uns porcos famintos que anseiam pelo ouro”, diz o texto
náhuatl, preservado no Códice Florentino. Mais adiante, quando Cortez chega Tenochtitlán,
a esplêndida capital asteca de 300 mil habitantes, os espanhóis entram na casa do tesouro,
“e logo fizeram uma grande bola de ouro, e puseram fogo, incendiaram, atearam fogo a
tudo que restava, por mais valioso que fosse: com o que tudo ardeu. E em relação ao ouro,
os espanhóis o reduziram a barras ...“
Houve guerra, e finalmente Cortez, que havia perdido Tenochtitlán, a reconquistou
em 1521. “E já não tínhamos escudos, já não tínhamos bordunas, e nada tínhamos de que
comer, já nada comíamos.” A cidade, devastada, incendiada e coberta de cadáveres, caiu.
“Com os escudos foi seu resguardo, mas nem com escudos pôde ser sustentada sua
solidão.” Fernão Cortez havia-se horrorizado ante os sacrifícios dos indígenas de Veracruz,
que queimavam entranhas dos meninos para oferecer a fumaça aos deuses; todavia, não
houve limites para sua própria crueldade na cidade reconquistada. “E toda a noite choveu
sobre nós.” Mas a força e o tormento não foram suficientes: os tesouros arrebatados não
Preenchiam nunca as exigências da imaginação, e durante muitos anos escavaram os
espanhóis o fundo do lago do México em busca do ouro e dos objetos preciosos que os
índios teriam escondido.
Pedro de Alvarado e seus homens atiraram-se sobre a Guatemala e “eram tantos os
índios que mataram, que se fez um rio de sangue, que vem a ser o Olimtepeque”, e
tàmbém “o dia tornou-se vermelho pelo excesso de sangue que houve naquele dia”.
Antes da batalha decisiva, “e visto que os índios atormentados disseram aos espanhóis
que não os atormentassem mais, que ali havia muito ouro, prata, diamantes e esmeraldas
que tinham os capitães Nehaib Ixquín, Nehaib feito águia e leão. E logo deram aos espanhóis e ficaram com eles ...”17
Antes de Francisco Pizarro degolar o inca Atahualpa e lhe cortar a cabeça, arrancou-lhe
um resgate em “pilhas de ouro e de prata que pesavam mais de vinte mil marcos de prata
15. Autores anônimos de Tlatelolco e informantes de Sahagún, em Miguel León- Portilla, op. Cit.
16. Darcy Ribeiro, As Américas e a civilizarão, tomo I: A civilizarão ocidental e nós. Os povostestemunhas, Buenos Aires, 1969, Rio, 1973.
17. Miguel León-Portilla, op. cit.
15
fina, um milhão e trezentos e vinte e seis mil escudos de ouro finíssimo...” Depois lançou-se sobre Cuzco. Seus soldados acreditavam entrar na cidade dos césares, tão deslumbrante era a capital do império incaico, mas não demoraram em saquear o Templo do Sol:
“Forcejando, lutando entre si, cada qual procurando levar a parte do leão do tesouro, os
soldados, com camisa de malha, pisoteavam jóias e imagens, martelavam os utensílios de
ouro para reduzi-los a um formato mais fácil e manejável... Atiravam-nos ao crisol, para
convertê-lo em barras, todo o tesouro do templo: as placas que cobriam as paredes, as
assombrosas árvores esculpidas, pássaros e outros objetos de jardim.”18
Hoje em dia, no zócalo, a imensa praça nua do centro da capital do México, a catedral
católica se levanta sobre as ruínas do templo mais importante de Tenochtitlán, e o palácio
do governo está situado sobre a residência de Cuauhtémoc, o chefe asteca martirizado e
morto por Cortez. Tenochtitlán foi arrasada. Cuzco, no Peru, teve sorte semelhante, mas os
conquistadores não puderam destruir de todo seus muros gigantescos, e hoje pode-se ver,
ao pé dos edifícios coloniais, o testemunho de pedra da colossal arquitetura incaica.
ESPLENDORES DE POTOSÍ: O CICLO DA PRATA
Dizem que até as ferraduras dos cavalos eram de prata, no auge da cidade de
Potosi19. De prata eram os altares das igrejas e as asas dos querubins nas procissões: em
1658, para a celebração do Corpus Christi, as ruas da cidade foram desempedradas, da
matriz até a igreja de Recoletos, e totalmente cobertas com barras de prata. Em Potosí a
prata levantou templos e palácios, mosteiros e cassinos, foi motivo de tragédia e de festa,
derramou sangue e vinho, incendiou a cobiça e gerou desperdício e aventura. A espada e
a cruz marchavam juntas na conquista e na espoliação colonial. Para arrancar a prata da
América, encontravam-se em Potosí os capitães e ascetas, toureiros e apóstolos, soldados
e frades. Convertidas em bolas e lingotes, as vísceras da rica montanha alimentaram
substancialmente o desenvolvimento da Europa. “Vale um Peru” era o elogio máximo às
pessoas ou as coisas, quando Pizarro tornou-se dono de Cuzco; mas a partir do novo
descobrimento, Dom Quixiote de la Mancha adverte Sancho com outras palavras: “Vale
um Potosí”. Veia jugular do vice-reinado, manancial da prata da América, Potosí contava
com 120 mil habitantes, segundo o censo de 1573. Só 28 anos havia transcorrido desde que
a cidade brotara entre os páramos andinos, e já tinha, como por mágica, a mesma população que Londres e mais habitantes do que Sevilha, Madri, Roma ou Paris. Por volta de
1650, um novo censo dava a Potosí 160 mil habitantes. Era uma das maiores e mais ricas
cidades do mundo, dez vezes mais habitada do que Boston, no tempo em que Nova Iorque
não tinha ainda esse nome.
A história de Potosí não nasceu com os espanhóis. Tempos antes da conquista, o inca
Huayna Cápaj ouvira falar, através de seus “vassalos” de Sumaj Orcko, da formosa montanha, e por fim pôde vê-la quando se fez levar, doente, às termas de Tarapaya. Das
palhoças do povoado de Cantumarca, os olhos do inca contemplaram pela primeira vez
aquele cone perfeito que se levantava, orgulhoso, por entre os cumes das serras. Ficou
estupefato. As infinitas tonalidades avermelhadas, e a forma esbelta e o tamanho gigan18. Ibid.
19. Para a reconstrução do apogeu de Potosí, o autor consultou os seguintes teste-munhos do
passado: Pedro Vicente Cañete y Dominguez, Potosí colonial; guía histórica, geográfica, política,
civil y legal del gobierno e intendencia de Ia provicia de Potosi, La Paz, 1939; Luis Capoche,
Relación general de Ia Villa Imperial de Potosi, Madri, 1959; e Nicolás de Martínez Arzanz y Vela,
História de Ia Vilia Imperial de Potosí, Buenos Aires, 1943. Além disso, as Crónicas potosinas,'de
Vi-cente G. Quesada, Paris, 1890, e La ciudad única, de Jaime Molins, Potosí, 1961.
16
tesco do monte continuaram sendo motivo de admiração e assombro. Mas o inca suspeitava que suas entranhas abrigavam pedras preciosas e ricos metais, e os quis para novos
adornos ao Templo do Sol em Cuzco. O ouro e a prata que os incas arrancavam das minas
de Colque Porco e Andacaba não saíam dos limites do reino: não serviam para comerciar,
mas para adorar os deuses. Mal os indígenas cravaram suas machadinhas nos filões de
prata do monte, uma voz cavernosa os derrubou. Era uma voz forte como um trovão, que
saía das profundezas daquelas brechas e dizia, em quéchua: “Não é para vocês. Deus
reserva estas riquezas para os que vêm de longe.” Os índios fugiram apavorados e o inca
abandonou o monte. Antes, mudou-lhe o nome. O monte passou a chamar-se Potojsi, que
significa: “Estronda, arrebenta, faz explosão.”
“Os que vêm de longe” não demoraram muito a aparecer. Os capitães da conquista
abriam caminho. Huayna Cápaj já tinha morrido quando chegaram. Em 1545, o índio
Huallpa perseguia os rastros de uma lhama fugitiva e se viu obrigado a passar a noite no
monte. Para não morrer de frio, fez fogo. A fogueira iluminou um filamento branco e
brilhante. Era prata pura. Desencadeou-se a avalancha espanhola.
Fluiu a riqueza. O imperador Carlos V deu imediatos sinais de gratidão, outorgando
a Potosí o título de Vila Imperial e um escudo com esta inscrição: “Sou o rico Potosí, do
mundo sou o tesouro, sou o rei das montanhas e sou a inveja dos reis.” Apenas onze anos
depois do achado de Huallpa, a recém-nascida Vila Imperial celebrava a coroação de
Felipe II com festejos que duraram 24 dias e custaram oito milhões de pesos. Choviam
caçadores de tesouro sobre a inóspita paragem. A montanha, a quase cinco mil metros de
altura, era o mais poderoso dos ímãs, mas a seus pés a vida era dura, inclemente: passava-se
frio como se fosse um imposto, e num abrir e fechar de olhos uma sociedade rica e
desordenada brotou, em Potosí, junto com a prata. Auge e turbulência do metal, Potosí
passou a ser “o nervo principal do reino”, como definiu o vice-rei Furtado de Mendonça.
No começo do século XVII, a cidade já contava com 36 igrejas esplendidamente ornamentadas, 36 casas de jogo e 14 escolas de danças. Os salões, os teatros e os tablados para as
festas ostentavam riquíssimos tapetes, cortinas, brasões e obras de ourivesaria; dos balcões
pendiam damascos coloridos e trançados de ouro e prata. As sedas e os tecidos vinham de
Granada, Flandres e Calábria; os chapéus de Paris e Londres; os diamantes do Ceilão, as
pedras preciosas da Índia, as pérolas do Panamá; as meias de Nápoles; os cristais de
Veneza; os tapetes da Pérsia; os perfumes da Arábia, e a porcelana da China. As damas
rebrilhavam com jóias, de diamantes, rubis e pérolas; os cavalheiros ostentavam tecidos
bordados na Holanda. Ás touradas seguiam-se os jogos de argolinha e nunca faltavam os
duelos no estilo medieval, rixas de amor e de orgulho, com elmos de ferro incrustados de
esmeraldas e vistosas plumagens, arreios e estribos de filigrana de ouro, espadas de Toledo
e cavalos chilenos paramentados com todo o luxo.
Em 1579, queixava-se o ouvidor Matienzo: “Nunca faltam - dizia - novidades,
safadezas e atrevimentos.” Por esta época já havia em Potosí 800 jogadores profissionais e
120 prostitutas célebres, a cujos resplandecentes salões acorriam os mineiros ricos. Em
1608, Potosí festejava as festas do Santíssimo Sacramento com seis dias de comédias e
seis noites de festas de máscaras, oito dias de touradas e três de saraus, dois de torneios e
outras festas.
A ESPANHA TINHA A VACA, MAS OUTROS TOMAVAM O LEITE
Entre 1545 e 1558 descobriram-se as férteis minas de prata de Potosí, na atual
Bolívia, e as de Zacatecas e Guanajuato no México; o processo de amálgama com mercúrio, que tornou possível a exploração da prata de lei inferior, começou a ser aplicado neste
17
mesmo período. O rush da prata eclipsou rapidamente a mineração do ouro. Em meados
do século XVII, a prata englobava mais de 99% das exportações da América hispânica20.
A América era, nesta época, uma boca de mina centrada, sobretudo, em Potosí.
Alguns escritores bolivianos, inflamados de excessivo entusiasmo, afirmam que em três
séculos a Espanha recebeu tanto metal de Potosí que dava para fazer uma ponte de prata
desde o cume da montanha até a porta do palácio real do outro lado do oceano. A imagem
é, sem dúvida, obra da fantasia, mas de qualquer maneira se refere a uma realidade que,
de fato, parece inventada: o fluxo da prata alcançou dimensões gigantescas. A vultosa
exportação clandestina de prata americana, que se evadia por contrabando rumo às Filipinas, à China e à própria Espanha, não figura nos cálculos de Earl J. Hamilton21 que, a partir
dos dados obtidos na Casa de Contratação de Sevilha, oferece, de todos os modos, em sua
conhecida obra sobre o terna, cifras assombrosas. Entre 1503 e 1660, chegaram ao porto de
San Lúcar de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata. A prata
transportada para a Espanha em pouco mais de um século e meio, excedia três vezes o
total das reservas européias. E é preciso levar em conta que estas cifras oficiais são sempre
minimizadas.
Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e pode-se até mesmo dizer que o tornaram possível. Nem sequer os efeitos da
conquista dos tesouros persas, que Alexandre Magno despejou sobre o mundo helênico,
poderiam comparar-se com a magnitude desta formidável contribuição da América para
o progresso alheio. Não ao da Espanha, certamente, ainda que à Espanha pertencessem as
fontes de prata americana. Como se dizia no século XVII, “a Espanha é como a boca que
recebe os alimentos, mastiga-os, tritura-os, para enviá-los logo aos demais órgãos, e não
retém deles por sua parte, mais do que um gosto fugidio ou as partículas que por acaso se
agarram aos dentes”22. Os espanhóis tinham a vaca, mas eram outros os que bebiam o
leite. Os credores do reino, em sua maioria estrangeiros, esvaziavam sistematicamente a
Arca Verde da Casa de Contratação de Sevilha, destinada a guardar sob três chaves, e em
três mãos distintas, o tesouro que vinha da América.
A Coroa estava hipotecada. Cedia por adiantado quase todos os carregamentos de
prata aos banqueiros alemães, genoveses, flamengos e espanhóis23.Também os impostos
arrecadados dentro da Espanha tinham, em grande parte, esta sorte: em 1543, uns 65% do
total das rendas reais eram destinadas ao pagamento das anuidades dos títulos de dívida.
Só uma mínima parte da prata americana se incorporava à economia espanhola; embora
fosse formalmente registrada em Sevilha, parava em mãos dos Függer, poderosos banqueiros que adiantaram ao Papa os fundos para terminar a catedral de São Pedro, e de
outros grandes usurários da época, no estilo dos Welser, os Shetz ou os Grimaldi. A prata
destinava-se também ao pagamento de exportações de mercadorias não espanholas com
destino ao Novo Mundo.
Aquele império rico tinha uma metrópole pobre, embora nela houvesse a grande
ilusão de prosperidade: a Coroa abria, em todos os lugares, frentes de guerra, enquanto a
aristocracia consagrava-se ao desperdício; se multiplicavam, em solo espanhol, os padres
e os guerreiros, os nobres e os mendigos, no mesmo ritmo frenético em que aumentavam
os preços e as taxas de juro. A indústria morria ao nascer naquele reino de vastos latifúndios estéreis, e a enferma economia espanhola não podia resistir ao brusco impacto da alta
da demanda de alimentos e mercadorias, inevitável conseqüência da expansão colonial.
O grande aumento dos gastos públicos e a asfixiante pressão das necessidades de
20. Earl J. Hamilton, op. cit.
21. Ibid.
22. Citado por Gustavo Adolfo Otero, op. cit.
23. J. H. Elliot, op.. cit., e Earl J. Hamilton, op. cit.
18
consumo nas possessões de ultramar intensificavam o déficit comercial e deflagravam, a
galope, a inflação. Colbert escrevia: “Quanto mais comércio com os espanhóis tem um
Estado, mais prata tem.” Havia uma intensa luta européia pela conquista do mercado
espanhol que oferecia, além disso, o mercado e a prata da América. Um memorial francês
do fim do século XVII nos permite saber que a Espanha só dominava, por esta época, 5%
do comércio com “suas” possessões coloniais, apesar do ilusionismo jurídico do monopólio: cerca de uma terça parte do total estava em mãos holandesas e flamengas, uma quarta
parte pertencia aos franceses, os geneveses controlavam mais de 20%, os ingleses 10% e os
alemães um pouco menos24 . A América era um negócio europeu.
Carlos V, herdeiro dos Césares no Sacro Império por eleição comprada, só tinha
passado na Espanha 16 dos 40 anos de seu reinado. Aquele monarca de queixo proeminente e olhar de idiota, que subira ao trono sem conhecer uma só palavra do idioma
castelhano, governava rodeado por um séquito de flamengos vorazes aos quais dava
salvo-condutos para tirar da Espanha mulas e cavalos carregados de ouro e jóias, e também recompensando-o com a outorga de dioceses e arquidioceses, títulos burocráticos e a
primeira licença para levar escravos negros às colônias americanas. Lançando-se à perseguição do demônio por toda a Europa, Carlos V extenuava o tesouro da América em suas
guerras religiosas. A dinastia dos Habsburgos não se extinguiu com sua morte; a Espanha
teria de padecer os reinados dos austríacos durante quase dois séculos. O grande guia da
Contra-Reforma foi seu filho, Felipe II. Do seu gigantesco palácio-mosteiro do Escorial, nas
encostas de Guadarrama, Felipe II pôs em funcionamento, em escala universal, a terrível
maquinaria da Inquisição, e lançou seus exércitos sobre os centros de heresia. O calvinismo
tomava conta da Holanda, Inglaterra e França, e os turcos encarnavam o perigo de retorno
da religião de Alá. O salvacionismo custava caro: os poucos objetos de ouro e prata, maravilhas da arte americana, que não chegavam já fundidos do México ou Peru, eram rapidamente arrancadas da Casa de Contratação de Sevilha e lançados às bocas dos fornos.
Ardiam também os hereges ou os suspeitos de heresia, torrados pelas chamas purificadoras da Inquisição; Torquemada incendiava os livros e o rabo do diabo mostrava-se em
todos os recantos. A guerra contra o protestantismo era, além disso, a guerra contra o
capitalismo ascendente na Europa. “A perpetuação da cruzada - diz Elliot, em sua obra já
citada - entranhava a perpetuação da arcaica organização social de uma nação de cruzados.” Os metais da América, delírio e ruína da Espanha, proporcionavam meios para lutar
contra as forças nascentes da economia moderna. Carlos V já tinha arrasado a burguesia
castelhana na guerra dos comuneros, que se convertera numa revolução social contra a
nobreza, suas propriedades e seus privilégios. O levante foi derrotado a partir da traição da
cidade de Burgos, que seria a capital do general Francisco Franco quatro séculos mais
tarde. Extintos os últimos fogos rebeldes, Carlos V regressou à Espanha, acompanhado de
quatro mil soldados alemães. Simultaneamente, foi também afogada em sangue a
radicalíssima insurreição dos tecedores, fiadores e artesãos, que haviam tomado o poder
na cidade de Valência e o estenderam por toda a comarca.
A defesa da fé católica era uma máscara para a luta contra a História. A expulsão dos
judeus havia privado a Espanha, no tempo dos Reis Católicos, de muitos artesão hábeis e
de capitais imprescindíveis. Isto é mais importante que a expulsão dos árabes, em 1609,
embora mais de 275 mil mouros fossem empurrados para a fronteira, tendo desastrosos
efeitos sobre a economia valenciana e arruinando os férteis campos do sul do Ebro, em
Aragón. Anteriormente, Felipe II tinha escorraçado, por motivos religiosos, milhares de
artesãos flamengos convictos ou suspeitos de protestantismo. A Inglaterra os acolheu em
24. Roland Mousnier, Los siglos XVI y XVII, volume IV da Historia general de las civilizaciones,
de Maurice Crouzet, Barcelona, 1967.
19
seu solo, e ali deram um importante impulso às manufaturas britânicas.
Como se vê, as enormes distâncias e as difíceis comunicações não eram os principais
obstáculos que se opunham ao progresso industrial da Espanha. Os capitalistas espanhóis
se convertiam em usurários, através da compra dos títulos da dívida da Coroa, e não
investiam seus capitais no desenvolvimento industrial. O excedente econômico escorria
por leitos improdutivos: os velhos ricos, senhores de ancinho e foice, donos da terra e dos
títulos de nobreza, levantavam palácios e acumulavam jóias; os novos ricos, especuladores
e mercadores, compravam terra e títulos de nobreza. Nem uns nem outros pagavam
impostos na prática, nem podiam ser presos por dívidas. Quem se dedicasse a uma
atividade industrial perdia automaticamente sua carta de fidalguia25.
Sucessivos tratados comerciais, assinados a partir das derrotas militares dos espanhóis na Europa, outorgaram concessões que estimulavam o tráfego marítimo entre o
porto de Cádis - onde se despejavam os metais da América - e os portos franceses, ingleses, holandeses e hanseáticos. A cada ano, quase oitocentas e mil naus descarregavam na
Espanha os produtos industrializados por outros países. Levavam a prata da América e a
lã espanhola, que ia para os teares estrangeiros de onde seria devolvida já tecida pela
indústria européia em expansão. Os monopolistas de Cádis limitavam-se a remarcar os
produtos industriais que expediam ao Novo Mundo: se as manufaturas espanholas não
podiam sequer atender ao mercado interno, como iam satisfazer às necessidades das
colônias?
Os tecidos de Lille e Arraz, os panos holandeses, os tapetes de Bruxelas e os brocados
de Florença, os cristais de Veneza, as armas de Milão e os vinhos e linhos da França26
inundavam o mercado espanhol, às custas da produção local, para satisfazer a ânsia de
ostentação e as exigências de consumo dos ricos parasitas, cada vez mais numerosos e
poderosos num país cada vez mais pobre. A indústria não se desenvolvia, e os Habsburgos
fizeram todo o possível para acelerar sua extinção. Em meados do século XVI, chegou se ao
cúmulo de autorizar a importação de tecidos estrangeiros, ao mesmo tempo em que se
proibia toda a exportação de tecidos castelhanos, a não ser para América27: Ao contrário,
como notou Ramos, muito diferentes eram as diretrizes de Henry VIII ou Elizabeth I na
Inglaterra: proibiam nesta ascendente nação a saída do ouro e da prata, monopolizavam
as letras de câmbio, impediam a extração de lã e expulsavam dos portos britânicos os
mercadores da Liga Hanseática do Mar do Norte. Enquanto isto, as repúblicas italianas
protegiam seu comércio exterior e sua indústria, mediante taxas, privilégios e proibições
rigorosas: os artesãos que desejassem sair do país eram ameaçados com a pena de morte.
A ruína abarcava tudo. Dos 16 mil teares que restaram em Sevilha em 1558, depois
de Carlos V, só sobraram 400 quando morreu Felipe II, quarenta anos depois. Os sete
milhões de ovelhas do rebanho andaluz reduziam-se a dois milhões. Cervantes retratou
em Dom Quixote de la Mancha - por muito tempo proibido na América - a sociedade da
época. Um decreto de meados do século XVI impossibilitava a importação de livros estrangeiros e impedia os estudantes de cursarem escolas fora da Espanha; os estudantes de
Salamanca reduziram-se à metade em poucas décadas; havia nove mil conventos e o clero
se multiplicava quase tão intensamente quanto a nobreza de capa e espada; 160 mil
estrangeiros açambarcaram o comércio exterior, e os esbanjamentos da aristocracia condenavam a Espanha à impotência econômica. Por volta de 1630, pouco mais de uma centena
e meia de duques, marqueses, condes e viscondes recolhiam cinco milhões de ducados de
renda anual, que alimentavam copiosamente o brilho de seus títulos ostentosos. O duque
de Medinaceli tinha setecentos criados, e eram trezentos os servidores do grão-duque de
25. J. Vicens Vives, História social y económica de España y América, Barcelona, 1957.
26. Jorge Abelardo Ramos, Historia de la nación latinoamericana, Buenos Aires, 1968.
27. J. H. Elliot, op. cit.
20
Osuna, que, para zombar do czar da Rússia, os vestia com capotes de peles28. 0 século XVII
foi a época da desonra, da fome e das epidemias. Era infinita a quantidade de mendigos
espanhóis, mas isso não impedia que também os mendigos estrangeiros afluíssem de
todos as regiões da Europa. Por volta de 1700, a Espanha já contava com 625 mil fidalgos,
senhores da guerra, embora o país se esvaziasse: sua população tinha-se reduzido à metade em pouco mais de dois séculos, e era equivalente da Inglaterra, que no mesmo período
a tinha duplicado. 1700 assinala o fim do regime dos Habsburgos. A bancarrota era total.
Desemprego crônico, grandes latifúndios, moeda caótica, indústria arruinada, guerras
perdidas e tesouros vazios, a autoridade central desconhecia nas províncias: a Espanha
que defrontou Felipe V estava “pouco menos defunta que seu amo morto”29.
Os Borbóns deram à nação uma aparência mais moderna, mas em fins do século
XVII o clero espanhol tinha nada menos que 200 mil membros e o resto da população
improdutiva não detinha seu massacrante desenvolvimento, às expensas do subdesenvolvimento do país. Por esta época, havia ainda na Espanha mais de dez mil povoados e
cidades sujeitos à jurisdição senhorial da nobreza e, portanto, fora do controle direto do rei.
Os latifúndios e a instituição da primogenitura continuavam intactos. Continuava de pé o
obscurantismo e o fatalismo. Não havia sido superada a época de Felipe IV: no seu tempo,
uma junta de teólogos reuniu-se para examinar o projeto de construção de um canal entre
o Manzanares e o rio Tajo, e terminou declarando que se Deus quisesse que os rios fossem
navegáveis, Ele mesmo os teria feito assim.
A DISTRIBUIÇÃO DE FUNÇÕES ENTRE O CAVALO E O CAVALEIRO
Escreveu Karl Marx, no primeiro tomo de O Capital: “O descobrimento das jazidas
de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas
minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a
conversão do continente africano em local de caça de escravos negros: são todos feitos que
assinalam os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam
outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original” (p. 638).
O saqueio, interno e externo, foi o meio mais importante para a acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade Média, possibilitou o surgimento de uma nova etapa
histórica na evolução econômica mundial. À medida que se estendia a economia monetária, o intercâmbio desigual ia abarcando cada vez mais segmentos sociais e regiões do
planeta. Ernest Mandel somou o valor do ouro e da prata arrancados da América até 1660,
o espólio da Indonésia pela Companhia Holandesa das Índias Orientais desde 1650 até
1780, os lucros do capital francês no tráfico de escravos durante o século XVII, os ganhos
obtidos pelo trabalho escravo nas Antilhas britânicas e o saque inglês da Índia durante
meio século: o resultado supera o valor do capital investido em todas as indústrias européias até 180030. Mandel observa que esta gigantesca massa de capitais criou um ambiente favorável aos investimentos na Europa, estimulou o “espírito de empresa” e financiou
diretamente o estabelecimento de manufaturas, dando um grande impulso à revolução
28. A espécie não se extinguiu. Abro uma revista de Madri, de fins de 1969, e leio: morreu dona
Teresa Bertrán de Lis y Pidal Gorouski y Chico de Guzmán, duquesa de Albuquerque marquesa
dos Alcañices y dos Balbases, e a chora o viúvo duque de Albuquerque, dom Beltrán Alonso
Osorio y Díez de Rivera Martos y Figueroa, marquês de Alcañices, dos Balbeses, de Cadreita, de
Cuéllar, de Cullera, de Montaos, conde de Fuensaldaña, de Grajal, de Huelma, de Ledesma, de la
Torre, de Villanueva de Cañedo, de Villahumbrosa, três vezes Grande da Espanha.
29. John Lynch, Adminisiración colonial española, Buenos Aires, 1962.
30. Ernest Mandel, Tratado de economia marxista, México, 1969.
21
industrial. Mas, ao mesmo tempo, a formidável concentração internacional da riqueza em beneficio
da Europa impediu, nas regiões saqueadas, o salto para a acumulação de capital industrial. “A
dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas
deste processo de concentração internacional, mas que também, posteriormente, tiveram
de compensar o atraso industrial, ou seja, realizar a acumulação original de capital industrial, num mundo inundado pelos artigos manufaturados por uma indústria já madura, a
ocidental.31”
As colônias americanas foram descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do
processo da expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o
mundo inteiro. Nem a Espanha nem Portugal receberam os benefícios do envolvente,
avanço do mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias as que, em grande
parte, proporcionaram o ouro e a prata, que nutriram esta expansão. Como vimos, se bem
que os metais preciosos da América iluminassem a enganosa fortuna de uma nobreza
espanhola, que vivia sua Idade Média tardiamente e na contramão da, história, simultaneamente selaram a ruína da Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas
da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno, valendo-se, em grande parte, da
expropriação dos povos primitivos da América. À rapinagem dos tesouros acumulados
sucedeu a exploração sistemática, nos socavãos e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e escravos negros, arrancados da África pelos traficantes.
A Europa necessitava de ouro e prata. Os meios de pagamentos em circulação se
multiplicavam sem cessar e era preciso alimentar os movimentos do capitalismo na hora
do parto: os burgueses se apoderavam das cidades e fundavam bancos, produziam e
trocavam mercadorias, conquistavam novos mercados. Ouro, prata, açúcar: a economia
colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de
metais preciosos foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que
o valor das importações, compostas por escravos, sal e artigos de luxo. Os recursos fluíam
para que os acumulassem as nações européias emergentes do outro lado do mar. Esta era
a missão fundamental que trouxeram os pioneiros, embora, além disso, aplicassem o
Evangelho quase tão freqüentemente como o chicote, aos índios agonizantes. A estrutura
econômica das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em conseqüência, centralizada em torno do setor exportador, que concentrava renda e poder.
Ao longo do processo, desde a etapa dos metais à provisão de alimentos, cada região
se identificou com o que produzia, e produzia o que dela se esperava na Europa: cada
produto, carregado nos porões dos navios que sulcavam o oceano, converteu-se numa vocação e num
destino. A divisão internacional do trabalho, tal como foi surgindo junto com o capitalismo,
parecia-se mais com a distribuição de funções entre o cavaleiro e o cavalo, com diz Paul
Baran32. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado
interno do capitalismo que emergia.
Celso Furtado adverte33 que os senhores feudais europeus obtinham um excedente
econômico da população por eles dominada, e o utilizavam, de uma forma ou de outra,
em suas próprias regiões, enquanto o objetivo principal dos espanhóis, que recebiam do rei
minas, terras e indígenas na América, consistia em subtrair um excedente para transferi-lo
para a Europa. Esta observação contribuiu para esclarecer a meta final que teve, desde sua
implantação, a economia colonial americana; embora formalmente mostrasse alguns as31. Ernest Mandel, La teoria marxista de Ia acumulación primitiva y la industrialización del Tercer
Mundo, revista Amaru, nº 6, Lima, abril/junho de 1968.
32. Paul Baran, Economía del crescimento, México, 1959.
33. Celso Furtado, La economia latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución
cubana, Santiago do Chile, 1969, México, 1969.
22
pectos feudais, atuava a serviço do capitalismo nascente em outras comarcas. No fim das
contas, tampouco em nosso tempo a existência dos centros ricos do capitalismo pode
explicar-se sem a existência das periferias pobres e submetidas: uns e outras integram o
mesmo sistema.
Mas nem todo o excedente evadia-se para a Europa. A economia colonial estava
regida pelos mercadores, os donos das minas e, os grandes proprietários de terras, que
repartiam entre si o usufruto da mão-de-obra indígena e negra, sob o olhar ciumento e
onipotente da Coroa e seu principal sócio, a Igreja. O poder estava concentrado em poucas
mãos, que enviavam à Europa metais e alimentos, e da Europa recebiam os artigos de
luxo, a cujo desfrute consagravam suas fortunas crescentes. As classes dominantes não
tinham o menor interesse em diversificar as economias internas, nem de elevar os níveis
técnicos e culturais da população: era outra sua função, dentro da engrenagem internacional para a qual atuavam; e a imensa miséria popular, tão lucrativa do ponto de vista dos
interesses reinantes, impedia o desenvolvimento de um mercado interno de consumo.
Uma economista francesa34 sustenta que a pior herança colonial da América Latina,
que explicou seu considerável atraso atual, é a falta de capitais. Entretanto, toda a informação histórica mostra que a economia colonial produziu, no passado, uma enorme riqueza para as classes associadas, dentro da região, ao sistema colonialista de domínio. A
enorme mão-de-obra disponível, que era gratuita ou praticamente gratuita, e a grande
demanda européia por produtos americanos tornaram possível, diz Sergio Bagú 35, “uma
precoce e vultosa acumulação de capitais nas colônias ibéricas. O núcleo de beneficiários,
longe de ir-se ampliando, foi-se reduzindo em proporção à massa da população, como se
depreende do fato de que o número de europeus e criollos desempregados aumentasse
sem cessar.” O capital que sobrava na América, uma vez deduzida a parte do leão que se dirigia ao
processo de acumulação primitiva do capitalismo europeu, não gerava, nestas terras, um processo
análogo ao da Europa, para lançar as bases do desenvolvimento industrial, mas se desviava para a
construção de grandes palácios e templos ostentosos, à compra de jóias, roupas e móveis de luxo, à
manutenção de numerosos serviçais e ao desperdício em festas. Em boa medida, este excedente
também ficava imobilizado na compra de novas terras ou continuava girando nas atividades
especulativas e comerciais.
No ocaso da era colonial, encontrará Humboldt no México “uma enorme massa de
capitais amontoados em mãos de proprietários de minas, ou dos negociantes que se
haviam retirado do comércio”; não menos da metade da propriedade de base e do capital
total do México pertencia, segundo seu testemunho, à Igreja, que além disso controlava
boa parte das terras restantes mediante hipotecas36. Os mineiros mexicanos investiam
seus excedentes na compra de grandes latifúndios, e nos empréstimos em hipoteca, como
os grandes exportadores de Veracruz e Acapulco; a hierarquia clerical estendia seus bens
na mesma direção. Grandes resistências palacianas brotavam na capital, e os suntuosos
templos nasciam como cogumelos depois da chuva: a servidão indígena alimentava o luxo
dourado dos poderosos.
No Peru, em meados do século XVII, grandes capitais procedentes dos encomenderos,
mineiros, inquisidores e funcionários da administração imperial voltavam-se ao comércio.
As fortunas nascidas na Venezuela do cultivo do cacau, iniciado em fins do século XVI,
investiam-se “em novas plantações e outros cultivos comerciais, assim como em minas,
bens de base urbanos, escravos e gado”37.
34. J. Beaujeau-Garnier, L'économie de l'Amérique Latine, Paris, 1949.
35. Sergio Bagú, Economia de la sociedad colonial. Ensaio de história comparada de América
Latina, Buenos Aires, 1949.
36. Alexander von Humboldt, Ensayo sobre el Reino de la Nueva España, Wéxico, 1944.
37. Sergio Bagú, op. cit.
23
RUÍNAS DE POTOSÍ - O CICLO DA PRATA
Analisando a natureza das relações “metrópole-satélite”, ao longo da história da
América Latina, como uma cadeia de subordinações sucessivas, André Gunder Frank
destacou, em seus trabalhos38, que as regiões mais marcadas pelo subdesenvolvimento e
pela pobreza são aquelas que no passado tiveram laços mais estreitos com a metrópole e
desfrutaram de períodos de auge. São as regiões que foram as maiores produtoras de bens
exportados para a Europa ou, posteriormente, para os Estados Unidos, e as fontes mais
caudalosas de capital; regiões abandonadas pela metrópole, quando por uma razão qualquer os negócios decaíram. Potosí oferece um exemplo mais claro desta queda no vazio.
As minas de prata de Guanajuato e Zacatecas, no México, viveram seu auge muito
posteriormente. Nos séculos XVI e XVII, o rico monte de Potosí foi o centro da vida colonial
americana: em seu redor giravam, de um modo ou de outro, a economia chilena, que lhe
proporcionava trigo, carne seca, peles e vinhos; a pecuária e o artesanato de Córdoba e
Tucumán, que abasteciam de animais de tração e tecidos; as minas de mercúrio de
Huancavélica e a região de Arica, por onde se embarcava a prata para Lima, principal
centro administrativo da época. O século XVIII marca o princípio do fim para a economia
da prata, que teve seu centro em Potosí; todavia, na época da independência, a população
do território que hoje compreende a Bolívia era superior à que habitava o que hoje é a
Argentina. Um século e meio depois, a população boliviana é quase seis vezes menor do
que a população argentina.
Aquela sociedade potosina, enferma de ostentação e desperdício, só deixou na Bolívia a vaga memória de seus esplendores, as ruínas de seus templos e palácios, e oito
milhões de cadáveres de índios. Qualquer diamante incrustado no escudo de um cavalheiro rico valia mais do que um índio podia ganhar em toda sua vida de mitayo, mas o
cavalheiro fugiu com os diamantes. A Bolívia, hoje um dos países mais pobres do mundo,
poderia vangloriar-se - se isso não fosse pateticanjente inútil - de ter alimentado a riqueza
dos países mais ricos. Em nossos dias, Potosí é uma pobre cidade da pobre Bolívia: “A
cidade que mais deu ao mundo e a que menos tem”, como me disse uma velha senhora
potosina, envolta num quilométrico xale de lã de alpaca, quando conversamos à frente do
pátio andaluz de sua casa de dois séculos. Esta cidade condenada à nostalgia, atormentada pela miséria e pelo frio, é ainda uma ferida aberta do sistema colonial na América: uma
acusação ainda viva.
Vive-se dos escombros. Em 1640, o padre Álvaro Alonso Barba publicou em Madri,
na imprensa do reino, seu excelente tratado sobre a arte dos metais. O estanho, escreveu
Barba, “é veneno”39. Mencionou montanhas onde “há muito estanho, embora isso seja do
conhecimento de poucos, que por não acharem a prata que todos buscam, deixam-no ali”.
Em Potosí, se explora agora o estanho que os espanhóis deixaram de lado como lixo.
Vendem-se as paredes das casas velhas como estanho de bom teor. Das bocas dos cinco
mil socavãos que os espanhóis abriram na rica montanha, tem jorrado a riqueza ao longo
dos séculos. A montanha tem mudado de cor à medida que os tiros de dinamite a esvaziam e lhe baixam o nível do cume. Os montões de pedra, acumulados em torno dos
infinitos buracos, têm todas as cores: são rosados, lilás, púrpura, ocres, cinza, dourados e
pardos. Uma colcha de retalhos. Os llamperos rompem a rocha e as palliris indígenas, de
38. André Gunder Frank, Capitalism and Underdevelopment, in Latin Americ, Nova lorque,
1967.
39. Álvaro Alonso-Barba, Arte de los metales, Potosí, 1967.
24
mão sábia para pesar e separar, picotam, como passarinhos, os restos minerais em busca
do estanho. Nos velhos socavãos que ainda não estão inundados os mineiros entram, a
lâmpada numa mão, os corpos encolhidos, para arrancar o que podem. Prata não tem,
nem uma centelha; os espanhós rasparam os veios até com ancinhos. Os pallacos cavam
com picareta e pá pequenos túneis para extrair filões dos despojos. “A montanha é rica
entretanto - dizia-me sem assombro um desempregado que arranhava a terra com as
mãos. - Deus tem de existir, imagine: o minério cresce como se fosse planta, igualzinho.”
Frente à montanha rica de Potosí, levanta-se um testemunho da devastação. É um pico
chamado Huakajchi, que em quéchua significa “montanha que chorou.” De suas encostas
brotam muitos mananciais de água pura, “os olhos d’água” dão de beber aos mineiros.
No seu auge, na metade do século XVII, a cidade tinha congregado muitos pintores
e artesãos, espanhóis ou nativos, mestres europeus e nacionais ou santeiros indígenas que
deixaram sua marca na arte colonial americana. Melchor Pérez de Holguín, o Greco da
América, deixou uma vasta obra religiosa que ao mesmo tempo mostra o talento de seu
criador e o abismo pagão destas terras: é difícil esquecer, por exemplo, a esplêndida
Virgem Maria que, com os braços abertos, dá de mamar com um peito ao Menino Jesus e
com o outro a São José. Os ourives, os cinzeladores de prataria e os entalhadores, os
artesãos do metal, da madeira fina, do gesso e dos marfins nobres, alimentaram as numerosas igrejas e mosteiros de Potosí com talhas de imaginação colonial e altares de infinitas
filigranas, faiscantes de prata, e púlpitos e retábulos valiosíssimos. As frentes barrocas dos
templos, trabalhadas em pedras, resistiram ao embate dos séculos, mas o mesmo não
ocorreu com os quadros, em muitos casos mortalmente atacados pela umidade, nem com
as figuras e objetos de pouco peso. Os turistas e os párocos esvaziaram as igrejas de tudo
que puderam levar: desde os cálices e sinos até as talhas de São Francisco e Cristo em
mogno ou carvalho.
Estas igrejas descuidadas, já fechadas em sua maioria, estão caindo aos pedaços,
arrasadas pelos anos. É uma pena, porque ainda constituem, embora tenham sido
saqueadas, formidáveis tesouros de uma arte colonial que funde e ilumina todos os estilos,
valiosíssima no gênio e na heresia: o “signo escalonado” de Tiahuanacu, em lugar da cruz
de Cristo, e a cruz junto ao sagrado sol e sagrada lua, as virgens e os santos nus, as uvas e
as espigas incrustadas nas colunas, até os capitéis, junto com a kantuta, a flor imperial dos
incas; as sereias, Baco e a festa da vida, alternando com o ascetismo romântico, os rostos
morenos de algumas divindidades e as cariátides de traços indígenas. Há igrejas que
foram reacondicionadas para prestar, já vazia de fiéis, outros serviços. A igreja de Santo
Ambrósio converteu-se em Cine Omiste; em fevereiro de 1970, sob os baixos-relevos barrocos da frente se anunciava a próxima estréia: “O mundo está louco, louco, louco.” O
templo da Companhia de Jesus converteu-se também em cinema, depois em depósito de
mercadorias da empresa Grace e por fim em armazém de víveres para a caridade pública.
Mas outras poucas igrejas estão ainda, mais ou menos, em atividade: há pelo menos um
século e meio que Os vizinhos de Potosí queimam círios à falta de dinheiro. A de São
Francisco, por exemplo. Dizem que a cruz desta igreja cresce alguns centímetros por ano,
e que também cresce a barba do Senhor de Vera Cruz, um imponente Cristo de prata e
seda que apareceu em potosí, trazido por não se sabe quem, há quatro séculos. Os padres
não negam que em cada tempo determinado lhe fazem a barba, e atribuem, até por
escrito, todos os milagres: “conjurações sucessivas de secas e pestes, guerras em defesa da
cidade acossada”.
Entretanto, nada pode o Senhor da Vera Cruz contra a decadência de Potosí. O
esgotamento da prata tinha sido interpretada como um castigo divino pelas atrocidades e
pecados dos mineiros. Ficaram para trás as missas espetaculares; assim como os banquetes e as touradas, os bailes e os fogos de artifício, os luxuosos cultos religiosos, no fim das
25
contas, tinham sido também um subproduto do trabalho escravo dos índios. Os mineiros
faziam, na época de esplendor, fabulosas doações às igrejas e aos mosteiros, e celebravam
suntuosos ofícios fúnebres. Chaves de prata pura para as portas do céu: o mercador Álvaro
Bejarano tinha ordenado, em seu testamento, que “todos os padres e sacerdotes de
Potosí” acompanhassem seu cadáver. O curandeirismo e a bruxaria se misturavam com a
religião autorizada, no delírio de fervores e pânicos da sociedade colonial. A extrema-unção
com campainha e pálio podia, como a comunhão, curar o agonizante, embora fosse muito
mais eficiente um vultoso testamento para a construção de um templo ou de um altar de
prata. Combatia-se a febre com os envangelhos: as orações em alguns conventos refrescavam o corpo; em outros, davam calor.“O Credo era fresco como o tamarindo doce e a Ave
Maria era cândida como a flor de laranja ou o cabelo do milho.”40
Na Rua Chuquisaca pode-se admirar a fachada, roída pelos séculos, dos condes de
Carma e Cayara, mas o palácio é agora o consultório de um cirurgião-dentista; a heráldica
do mestre-de-campo Dom Antônio López de Quiroga, à Rua Lanza, agora adorna uma
escolinha; o escudo do marquês Otavi, com seus leões grimpantes, reluz no pórtico do
Banco Nacional. “Em que lugares viverão agora? Longe devem ter ido...” A velha potosina,
presa a sua cidade, me conta que primeiro se foram os ricos, e depois também se foram os
pobres: Potosí tem agora três vezes menos habitantes do que tinha quatro séculos atrás.
Contemplo a montanha de um terraço da Rua Uyuni, uma estreitíssima e serpenteante
ruazinha colonial, onde as casas têm grandes balcões de madeira tão próximos uns dos
outros, que os vizinhos podem beijar-se ou dar socos, sem necessidade de descer à rua.
Sobrevivem aqui, como em toda a cidade, os velhos candeeiros de luz mortiça, sob os
quais, no dizer de Jaime Molins, “se resolveram as rixas de amor e escorreram, como
duendes, cavaleiros disfarçados, damas elegantes e jogadores profissionais”. A cidade
tem agora luz elétrica, mas não se nota muito. Nas praças escuras, a luz dos velhos faróis,
funcionam rifas durante as noites: vi rifar um pedaço de torta no meio de uma multidão.
Junto com Potosí, decaiu Sucre. Esta cidade do vale, de clima agradável, que antes
tinha-se chamado Charcas, La Plata e Chuquisaca, sucessivamente, desfrutou boa parte
da riqueza gerada pelas veias da montanha rica de Potosí. Gonzalo Pizarro, irmão de
Francisco, instalara ali sua corte, faustosa como a de um rei; igrejas e casarões, parques e
quintas de recreio brotavam continuamente junto com os juristas, místicos e poetas retóricos
que foram dando à cidade, de século em século, sua marca. “Silêncio, é Sucre. Silêncio, só
silêncio. Mas antes...” Antes, foi a capital cultural de dois vice-reinados, a sede da principal
arquidiocese da América e do mais poderoso tribunal de justiça da colônia, a cidade mais
brilhante e culta do Sul. Dona Cecilia Contreras de Torres e dona Maria de las Mercedes
Torralba de Gramajo, senhoras de Ubina e Colquechaca, davam banquetes de Camacho:
competiam no esbanjamento das fabulosas rendas que produziam suas minas de Potosí,
e quando terminavam as suntuosas festas, jogavam pelos balcões vasilhas de prata e até
objetos de ouro, para que os transeuntes de sorte os apanhassem.
Sucre conta ainda com uma Torre Eiffel e com seus próprios Arcos do Triunfo; dizem
que com as jóias de sua Virgem poder-seia pagar toda a gigantesca dívida externa da
Bolívia. Mas os famosos sinos das igrejas, que 1809 cantaram com júbilo a emancipação da
América, hoje oferecem um som fúnebre. O sino rouco de São Francisco, que tantas vezes
anunciara sublevações e motins, hoje dobra pela mortal imobilidade de Sucre. Pouco
importa que continue sendo a capital legal da Bolívia, e que em Sucre se situe ainda a
Suprema Corte de Justiça. Pelas ruas passeiam rábulas, doentes e de pele amarelada,
sobreviventes testemunhas da decadência: doutores do tipo que usa pince-nez, com cinta
preta e tudo. Dos grandes palácios vazios, os ilustres patriarcas de Sucre mandam seus
40. Gustavo Adolfo Otero, op. cit.
26
servidores venderem empadas na estação ferroviária. Houve quem soube comprar, em
outras horas afortunadas, até um título de príncipe.
Em Potosí e Sucre só ficaram vivos os fantasmas da riqueza morta. Em Huanchaca,
outra tragédia boliviana, os capitais anglo-chilenos esgotaram, durante o século passado,
filões de prata de mais de dois metros de largura, de altíssimo teor; agora só restam as
ruínas cheias de poeira. Huanchaca continua nos mapas, como se existisse ainda,
identificada como um centro mineiro ainda vivo, com seu ancinho e pá cruzados. Tiveram
melhor sorte as minas mexicanas de Guanajuato e Zacatecas? Com bases nos dados que
proporciona Alexander von Humboldt, em seu já citado Ensaio sobre o Reino da Nova Espanha,
estimou-se em cinco bilhões de dólares atuais a magnitude do excedente econômico levado do México
entre 1760 e 1809, apenas meio século, através das exportações de prata e ouro41”
Nesta época não havia minas mais importantes na América. O grande sábio alemão
comparou a mina de Valenciana, em Guanajuato, com a Himmels Furst da Saxônia, que
era a mais rica da Europa: a Valenciana produzia 36 vezes mais prata, no curso do século,
e deixava a seus acionistas lucros 33 vezes maiores. O conde de Santiago de la Laguna
vibrava de emoção ao descrever, em 1732, o distrito mineiro de Zacatecas e “os preciosos
tesouros que ocultam seus profundos seios”, nas montanhas “honradas com mais de
quatro mil bocas, para melhor servir com o fruto de suas entranhas a ambas Majestades”,
Deus e o Rei, e “para que todos acorram para beber e participar do grande, do rico, do culto,
do urbano, do nobre”, porque era “fonte de sabedoria, polícia, armas e nobreza...”42. O
padre Marmolejo descreveria mais tarde a cidade de Guanajuato, atravessada por pontes,
com jardins que tanto se pareciam com os de Semíramis na Babilônia e os templos
faustosos, o teatro, a praça de touros, as arenas de rixa de galos e as cúpulas levantadas
contra as verdes ladeiras das montanhas. Mas este era “o país da desigualdade” e
Humboldt pôde escrever sobre o México: “Em nenhuma parte a desigualdade é mais
espantosa... a arquitetura dos edifícios públicos e privados, a finura do enxoval das mulheres, o ar da sociedade; tudo anuncia um extremo esmero que se contrapõe extraordinariamente à nudez, ignorância e rusticidade do populacho.” As novas veias de prata engoliam homens e mulas nas ondulações das cordilheiras; os índios, “que viviam só para sair de
dia”, sofriam fome endêmica, e as pestes matavam como moscas. Num único ano, 1784,
uma onda de doenças provocadas pela falta de alimentos, gerada por uma geada arrasadora, tinha ceifado mais de oito mil vidas em Guanajuato.
Os capitais não se acumulavam, eram desperdiçados. Dizia-se: “Pai mercador,filho
cavaleiro, neto mendigo.” Numa representação dirigida ao governo, em 1843, Lucas Alamán
formulou uma sombria advertência, enquanto insistia na necessidade de defender a indústria nacional, mediante um sistema de proibições e fortes gravames contra a concorrência estrangeira: “É preciso recorrer ao fomento da indústria, como única fonte de prosperidade universal - dizia. - De nada serviria a Puebla a riqueza de Zacatecas, se não fosse
para o consumo de suas manufaturas, e se estas decaíssem outra vez, como já ocorreu,
arruinar-se-ia este departamento florescente, sem que se possa salvar da miséria a riqueza
41. Fernando Carmoga, prólogo a Diego López Rosado, Historia y pensamiento económico de
México, México, 1968.
42. D. Joseph Ribera Bernárdez, Conde Santiago de la Laguna, Descripción breve de la muy nobre
y leal ciudad de Zacatecas, em Gabriel Salinas de la Torre, Testimonios de Zacatecas, México, 1946.
Além desta obra e do ensaio de Humboldt, o autor consultou: Luis Cháves Orozco, Revolución
industrial - Revolución politica, Biblioteca del Obrero y Campesino, México, s.d; Lucio Marmolejo,
Efemérides guanajuatenses, o datos para formar la historia de la ciudad de Guanajualo, Guanajuato,
1883; José Maria Luis Mora, México y sus revoluciones, México, 1965; e para os dados da
atualidade, La economia del Estado de Zacatecas e La economia del Estado de Guanajuato, da
série de pesquisas do Sistema Bancos de Comércio, México, 1968.
27
daquelas minas.” A profecia se realizou. Atualmente, Zacatecas e Guanajuato nem sequer
são as cidades mais importantes de suas próprias comarcas. Ambas definham rodeadas
pelos esqueletos dos acampamentos da prosperidade mineira. Zacatecas, alta e árida, vive
da agricultura e exporta mão-de-obra para outros estados; são baixíssimos os teores atuais
de seus minérios de ouro e prata, em relação aos bons tempos passados. Das cinqüenta
minas que o distrito de Guanajuato mantinha em exploração sobram apenas agora duas.
A população da belíssima cidade não cresce, mas afluem os turistas para contemplar o
esplendor dos velhos tempos, passear pelas vielas de nomes românticos, ricas de lendas,
e se horrorizar com as múmias que os sais da terra conservaram intatas. A metade das
famílias do estado de Guanajuato, com uma média de cinco membros, vive atualmente
em palhoças de uma única peça.
O DERRAMAMENTO DE SANGUE E LÁGRIMAS: ENTRETANTO, O PAPA DECIDIRA QUE OS ÍNDIOS
TINHAM ALMA
Em 1581, Felipe II afirmara, perante o tribunal de Guadalajara, que um terço dos
indígenas da América já tinha sido aniquilado, e aqueles que ainda viviam eram obrigados
a pagar tributos pelos mortos. O monarca disse, além disso, que os índios eram comprados
e vendidos. Que dormiam na intempérie. Que as mães matavam seus filhos para salvá-los
do tormento nas minas.43 Mas a hipocrisia da Coroa tinha menos limites que o Império: a
Coroa recebia uma quinta parte do valor dos metais que seus súditos arrancavam por toda
a extensão do Novo Mundo hispânico, além de outros impostos; o mesmo acontecia, no
século XVII, com a Coroa portuguesa em terras do Brasil. A prata e o ouro da América
penetraram como um ácido corrosivo, no dizer de Engels, por todos os poros da sociedade
feudal moribunda na Europa; a serviço do nascente mercantilismo capitalista os empresários mineiros converteram os índios e escravos negros em numerosíssimo “proletariado
externo” da economia européia. A escravidão greco-romana ressuscitava de fato, num
mundo distinto; ao infortúnio dos índios dos impérios aniquilados na América hispânica é
preciso somar o terrível destino dos negros arrebatados às aldeias africanas para trabalhar
no Brasil e nas Antilhas. A economia colonial latino-americana dispôs da maior concentração de
força de trabalho até então conhecida, para possibilitar a maior concentração de riqueza que jamais
possuiu qualquer civilização na história mundial.
A violenta maré de cobiça, horror e bravura não se abateu sobre estas comarcas,
senão ao preço do genocídio nativo: as mais bem fundadas e recentes investigações atribuem ao México pré-colombiano uma população que oscila entre os 30 e 37,5 milhões de
habitantes. Calcula-se uma quantidade idêntica de índios na região andina, a América
Central contava com 10 ou 13 milhões de habitantes. Os índios das Américas somavam entre
70 e 90 milhões de pessoas, quando os conquistadores estrangeiros apareceram no horizonte; um
século e meio depois tinham-se reduzido, no total, a apenas 3,5 milhões44 . Segundo o marquês
de Barinas, entre Lima e Paita, onde viveram mais de dois milhões de índios, não sobraram mais do que quatro mil famílias indígenas, em 1685. 0 arcebispo Liñán y Cisneros
negava o aniquilamento dos índios: “É que se escondem - dizia - para não pagar tributos,
abusando da liberdade de que gozam e que não tinham na época dos incas.”45
O metal brotava sem cessar dos filões americanos, e da corte espanhola chegavam,
também sem cessar, ordenações que outorgavam uma proteção de papel e uma “dignidade de tinta” aos indígenas, cujo trabalho extenuante sustentava o reino. A ficção da
43. John Collier, The Indians of America, Nova Iorque, 1947.
44. Segundo Darcy Ribeiro, op. cit., com dados de Henry F. Dobyns, Paul Thompson e outros.
45. Emilio Romero, Historia económica del Peru, Buenos Aires, 1949.
28
legalidade amparava o índio; a exploração da realidade sangrava-o. Da escravidão à
encomienda de serviços, e desta à tributos e ao regime de salários, as variantes da condição
jurídica da mão-de-obra indígena só alteraram superficialmente sua situação real. A Coroa
considerava tão necessária a exploração desumana da força de trabalho aborígene, que em
1601 Felipe III ditou regras proibindo o trabalho forçado nas minas e, simultaneamente,
enviou instruções secretas ordenando continuá-lo “em caso de aquela medida fizer fraquejar
a produção”46. Do mesmo modo, entre 1616 e 1619, o visitador e governador Juan de
Solórzano fez uma investigação sobre as condições de trabalho nas minas de mercúrio de
Huancavélica: “ ... o veneno penetrava na medula, debilitando todos os membros e provocando um tremor constante, morrendo os operários, em geral, no espaço de quatro anos”,
informou ao Conselho das índias e ao monarca. Mas em 1631, Felipe IV ordenou que se
continuasse com o mesmo sistema, e seu sucessor, Carlos II, renovou o decreto tempos
depois. Estas minas de mercúrio eram diretamente exploradas pela Coroa, ao contrário
das minas de prata, que estavam em mãos de empresários privados.
Em trezentos anos, a rica montanha de Potosí queimou, segundo Josiah Conder,oito
milhões de vidas. Os índios eram arrancados das comunidades agrícolas e empurrados,
junto com suas mulheres e seus filhos, rumo às minas. De cada dez que iam aos altos
páramos gelados, sete nunca regressavam. Luís Capoche, dono de minas e de engenhos,
escreveu que “os caminhos estavam tão cobertos que parecia que se mudava o reino”. Nas
comunidades, os indígenas viram “voltar muitas mulheres aflitas, sem maridos, e muitos
filhos órfãos sem seus Pais”, sabiam que na mina esperavam “mil mortes e desastres”. Os
espanhóis percorriam centenas de milhas em busca de mão-de-obra. Muitos dos índios
morriam pelo caminho, antes de chegar a Potosí. Mas eram as terríveis condições de
trabalho na mina que mais gente matavam. O frei dominicano Domingo de Santo Tomás
denunciava ao Conselho das índias, em 1550, logo do aparecimento da mina, que Potosí
era uma “boca do inferno” que anualmente tragava índios aos milhares e milhares e que
os rapazes mineiros tratavam os naturais “como a animais sem dono”. E frei Rodrigo de
Loaysa diria depois: “Estes pobres índios são como as sardinhas no mar. Assim como os
outros peixes perseguem as sardinhas para delas fazerem presa e devorá-las, assim todos
nestas terras perseguem os miseráveis índios...”47 Os caciques das comunidades tinham a
obrigação de substituir os mitayos que iam morrendo por novos homens de 18 a 50 anos de
idade. O curral de apartar, onde se adjudicavam os índios aos donos das minas e engenhos, um gigantesco campo de paredes de pedra, serve agora para que os operários
joguem futebol; o cárcere dos mitayos, um disforme montão de ruínas, pode ainda ser
contemplado na entrada de Potosi.
Na Recompilação de Leis das índias, não faltam decretos daquela época estabelecendo a igualdade de direitos entre os índios e os espanhóis para explorar as minas e
proibindo expressamente que se violassem os direitos dos nativos. A história formal letras mortas que em nossos tempos recolhem as letras mortas dos tempos passados - não
teria de que se queixar, mas enquanto se debatia em papeladas infinitas a legislação do
trabalho indígena e marcava à tinta o talento dos juristas espanhóis, na América a lei “se
acatava mas não se cumpria”. Nos feitos, “o pobre do índio é uma moeda -no dizer de Luis
Capoche - com a qual se encontra tudo que é necessário, como ouro e prata, e muito
melhor”. Numerosos indivíduos reivindicavam ante os tribunais sua condição de mestiços
para que não fossem mandados aos socavões, nem vendidos e revendidos nos mercados.
Em fins do século XVIII, Concolorcorvo, em cujas veias corriam sangue indígena,
renegava assim os seus: “Não negamos que as minas consumam um número considerá46. Enrique Finot, Nueva Historia de Bolivia, Buenos Aires, 1946.
47. Obras citadas.
29
vel de índios, porém isto não procede do trabalho quem têm nessas minas de prata e
mercúrio, mas da libertinagem em que vivem.” O testemunho de Capoche, que tinha
muitos índios a seu serviço, é ilustrativo, neste sentido. As temperaturas glaciais do campo
aberto alternavam-se com os calores infernais do fundo da montanha. Os índios entravam
nas profundidades, e ordinariamente eram retirados mortos ou com cabeças e pernas
quebradas, e nos engenhos todo o dia se machucam.” Os mitayos retiravam o minério com
a ponta de uma barra e o carregavam nas costas, por escadas, à luz de uma vela. Fora do
socavão, moviam enormes eixos de madeira nos engenhos ou fundiam a prata no fogo,
depois de moê-la e lavá-la.
A mita era uma máquina de triturar índios. O emprego do mercúrio para a extração
de prata por amálgama envenenava tanto ou mais do que os gases tóxicos do ventre da
terra. Fazia cair o cabelo, os dentes e provocava tremores incontroláveis. Os “azogados” se
arrastavam pedindo esmolas pelas ruas. Seis mil e quinhentas fogueiras ardiam na noite
sobre as ladeiras da montanha, e nelas se trabalhava a prata, valendo-se do vento que o
“glorioso Santo Agostinho” mandava do céu. Por causa da fumaça dos fornos não havia
pastos nem plantações num raio de seis léguas ao redor de Potosí, e as emanações não
eram menos implacáveis com os corpos dos homens.
Não faltavam as justificativas ideológicas. A sangria do Novo Mundo convertia-se
num ato de caridade ou uma razão de fé. Junto com a culpa nasceu um sistema de álibis
para as consciências culpáveis. Transformava-se os índios em bestas de carga, porque
resistiam a um peso maior do que o que suportava o débil lombo da lhama, e de passagem
comprovava-se que, na realidade, os índios eram bestas de carga. O vice-rei do México
considerava que não havia melhor remédio que o trabalho nas minas para curar “a maldade natural” dos indígenas. Juan Ginés de Sepúlveda, o humanista, sustentava que os
índios mereciam o trato que recebiam porque seus pecados e idolatrias constituíam uma
ofensa a Deus. O conde de Buffon afirmava que não se registrava nos índios, animais
frígidos e débeis, “nenhuma atividade da alma”. O abade De Paw inventava uma América
onde os índios degenerados eram como cachorros que não sabiam latir, vacas incomestíveis
e camelos impotentes. A América de Voltaire, habitada por índios preguiçosos e estúpidos,
tinha porcos com umbigos nas costas e leões carecas e covardes. Bacon, De Maistre,
Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer como semelhantes os “homens
degradados” no Novo Mundo. Hegel falou da impotência física e espiritual da América e
disse que os índios tinham perecido ao sopro da Europa48.
No século XVII, o padre Gregório Garcia sustentava que os índios eram de ascendência judaica, porque, como os judeus, “são preguiçosos, não crêem nos milagres de Jesus
Cristo e não são gratos aos espanhóis por todo o bem que lhes fizeram”. Pelo menos, este
sacerdote não negava que os índios descendiam de Adão e Eva: eram numerosos os
teólogos e pensadores que não se convenceram com a Bula do Papa Paulo III, emitida em
1537, que tinha declarado os índios como “verdadeiros homens”. O padre Bartolomeu de
Las Casas agitava a corte espanhola com suas inflamadas denúncias contra a crueldade
dos conquistadores da América: em 1557, um membro do conselho real respondeu-lhe
que os índios estavam nos últimos degraus da escala da humanidade para serem capazes
de receber a fé49. Las Casas dedicou sua fervorosa vida à defesa do índio, frente aos
desmandos dos mineiros e encomenderos. Dizia que os índios preferiam ir ao inferno para
não se encontrarem com os cristãos.
Aos conquistadores e colonizadores eram “encomendados” indígenas para que os
48. Antonello Gerbi, La disputa del Nuevo Mundo, México, 1960, e Daniel Vidart, op. cit.
49. Lewis Hanke, Estudios sobre fray Bartolomé de Las Casas y sobre la lucha por la Justicia en
la conquista española de América, Caracas, 1968.
30
catequizassem. Mas como os índios deviam ao encomendero serviços pessoais e tributos
econômicos, não sobrava muito tempo para introduzi-los na senda cristã da salvação. Em
recompensa de seus serviços, Fernão Cortez recebeu 23 mil vassalos; repartiam-se os
índios ao mesmo tempo que se outorgavam as terras, mediante favores reais ou por
despojo direto. Desde 1536, os índios eram outorgados em “encomenda”, junto com sua
descendência, pelo prazo de duas vidas: a do encomendero e a do herdeiro imediato; a partir
de 1629, o regime estendeu-se por três vidas, e em 1704 por quatro vidas50. No século
XVIII, os índios, os sobreviventes, já asseguravam a vida cômoda de muitas gerações
futuras.
Como os deuses vencidos persistiam em suas memórias, não faltavam santos álibis
para o usufruto de sua mão-de-obra por parte dos vencedores: os índios eram pagãos, não
mereciam outra vida. Tempos passados? Quatrocentos e vinte anos depois da Bula do
Papa Paulo 111, em setembro de 1957, a Corte Suprema de Justiça do Paraguai emitiu
uma circular comunicando a todos os juizes do país que “os índios são tão seres humanos
como os outros habitantes da república...” E o Centro de Estudos Antropológicos da
Universidade Católica de Assunção realizou posteriormente uma pesquisa & opinião pública na capital e no interior: de cada dez paraguaios, Oito crêem que “os índios são como
animais”. Em Caaguazú, no Alto Paraná e no Chaco, os índios são caçados como feras,
vendidos a preços baratos e explorados em regime de virtual escravidão. Todavia, quase
todos os paraguaios têm sangue indígena, e o Paraguai não se cansa de compor canções,
poemas e discursos em homenagem à “alma guarani”.
A NOSTALGIA COMBATENTE DE TÚPAC AMARU
Quando os espanhóis irromperam na América, o império teocrático dos incas estava
em seu apogeu, estendendo seu poder sobre o que hoje chamamos de Peru, Bolívia e
Equador, abarcando parte da Colômbia e do Chile e chegando até o norte argentino e à
selva brasileira; a confederação dos astecas tinha conquistado um alto nível de eficácia no
vale do México; em Yucatán e na América Central a esplêndida civilização dos maias
persistia em todos os povos herdeiros, organizados para o trabalho e a guerra.
Estas sociedades deixaram numerosos testemunhos de sua grandeza, apesar de
todo o enorme tempo da devastação: monumentos religiosos levantados com maior sabedoria do que as pirâmides egípcias, eficazes criações técnicas para a luta contra a natureza,
objetos de arte que denunciam um talento invicto. No museu de Lima podem ver-se
centenas de crânios que foram objeto de puncturas e curas com placas de ouro e prata por
parte dos cirurgiões incas. Os maias foram grandes astrônomos, tinham medido o tempo
e o espaço com precisão assombrosa e descoberto o valor da cifra zero antes de qualquer
outro povo na História. Os aquedutos e as ilhas artificiais criadas pelos astecas deslumbraram Fernão Cortez, embora não fossem de ouro.
A conquista rompeu as bases daquelas civilizações. Piores conseqüências do que o
sangue e o fogo da guerra teve a implantação de uma economia mineira. As minas
exigiam grandes deslocamentos da população e desarticulavam as unidades agrícolas
comunitárias; não só extinguiam incontáveis vidas através do trabalho forçado, como
abatiam indiretamente o sistema coletivo de cultivos. Os índios eram conduzidos aos
socavãos, submetidos à servidão dos encomenderos e obrigados a entregarem por nada as
terras que obrigatoriamente deixavam ou descuidavam. Na costa do Pacífico, Os espanhóis destruíram ou deixaram extinguir enormes cultivos de milho, mandioca, feijão,
50. J. M. Ots Capdequí, op. cit.
31
amendoim, batata doce; o deserto devorou rapidamente grandes extensões de terra que
tinham sido trabalhadas pela rede incaica de irrigação. Quatro séculos e meio depois da
conquista, só restam pedras e capim bravo em lugar da maioria dos caminhos que unia o
império. Embora as gigantescas obras públicas dos incas fossem, em sua maior parte,
arrasadas pelo tempo ou pela mão dos usurpadores, sobram ainda, desenhadas na
cordilheira dos Andes, os intermináveis terraços que permitiam e ainda permitem cultivar
as ladeiras das montanhas. Um técnico norte americano51 calculava, em 1936, que se
neste ano se construíssem, com métodos modernos, os terraços incas, custariam uns 30
mil dólares por acre. Tanto os terraços como os aquedutos de irrigação foram possíveis,
naquele império que não conhecia a roda, o cavalo nem o ferro, graças à prodigiosa organização e à perfeição técnica conseguida através de sábia divisão de trabalho, mas também
graças à força religiosa que regia a relação do homem com a terra - que era sagrada e
estava, portanto, sempre arada.
Também foram assombrosas as respostas astecas ao desafio da natureza. Em nossos
dias, os turistas conhecem por “jardins flutuantes” as poucas ilhas sobreviventes no lago
ressecado onde agora se levanta, sobre as ruínas indígenas, a capital do México. Essas ilhas
tinham sido criadas pelos astecas para responder ao problema da falta de terras no lugar
eleito para a criação de Tenochtitlán. Os índios transportaram grandes massas de barro das
margens e apresaram as novas ilhas de limo entre delgadas paredes de bambu, até que as
raízes das plantas lhes dessem firmeza. Por entre os novos espaços de terra deslizavam os
canais de água. Sobre estas ilhas inusitadamente férteis, cresceu a poderosa capital dos
astecas, com suas amplas avenidas, seus palácios de austera beleza e pirâmides escalonadas: brotada magicamente da lagoa, Tenochtitlán estava condenada a desaparecer ante
os embates da conquista estrangeira. Quatro séculos demoraria o México para alcançar
uma população tão numerosa quanto a que existia naqueles tempos.
Os indígenas eram, como diz Darcy Ribeiro, o combustível do sistema produtivo
colonial. “É quase certo - escreve Sergio Bagú - que às minas espanholas foram lançados
centenas de índios escultores, arquitetos, engenheiros e astrônomos, confundidos entre a
multidão escrava, para realizar um tosco e esgotador trabalho de extração. Para a economia colonial, a habilidade técnica destes indivíduos não interessava. Eles só eram contados como trabalhadores não qualificados.” Mas não se perderam todos os sinais daquelas
culturas destruídas. A esperança de renascimento da dignidade perdida incendiaria numerosas sublevações indígenas. Em 1781, Túpac Amaru sitiou Cuzco.
Este cacique mestiço, descendente direto dos imperadores incas, encabeçou o movimento messiânico e revolucionário de maior envergadura. A grande rebelião estourou na
província de Tinta. Montado no seu cavalo branco, Túpac Amaru entrou na praça de
Tugasuca e, ao som de tambores e pututus, anunciou que havia condenado à forca o
corregedor real Antonio Juan de Arriaga, e dispôs a proibição da mita de Potosí. A província
de Tinta estava ficando despovoada por causa do serviço obrigatório nos socavãos de prata
da montanha. Poucos dias depois, Túpac Amaru expediu um novo comunicado pelo qual
decretava a liberdade dos escravos. Aboliu todos os impostos e o repartimiento de mão-de-obra
indígena em todas suas formas. Os indígenas se juntavam, aos milhares, às forças do “pai
de todos os pobres e de todos os miseráveis e desvalidos”. À frente de seus guerrilheiros,
o caudilho lançou-se sobre Cuzco. Marchava pregando seu credo: todos os que morressem
sob suas ordens nesta guerra ressuscitariam para desfrutar as felicidades e riquezas de que
tinham sido despojados pelos invasores. Sucederam-se vitórias e derrotas; no fim, traído
e capturado por um de seus chefes, Túpac Amaru foi entregue, amarrado com correntes,
51. Um membro do Serviço Norte-Americano de Conservação de Solos, segundo John Collier,
op. cit.
32
aos espanhóis. Em seu calabouço, entrou o visitador Areche para exigir-lhe, em troca de
promessas, os nomes dos cúmplices da rebelião. Túpac Amaru respondeu-lhe com desprezo: “Aqui não há mais cúmplice que tu e eu; tu por opressor, e eu por libertador,
merecemos a morte”52.
Túpac foi submetido a suplícios, junto com sua esposa, seus filhos e seus principais
partidários, na praça do Wacaypata, em Cuzco. Cortaram-lhe a língua. Amarraram seus
braços e pernas em quatro cavalos, para esquartejá-lo, mas o corpo não se partiu. Decapitaram-no ao pé da forca. Enviaram sua cabeça para Tinta. Um de seus braços foi para
Tungasuca e o outro para Carabaya. Mandaram uma perna para Santa Rosa e a outra para
Livitaca. Queimaram-lhe o tronco e jogaram as cinzas no rio Watanay.Recomendou-se que
fosse extinta toda sua descendência, até o quarto grau.
Em 1802 outro cacique descendente dos incas, Astorpilco, recebeu a visita de
Humboldt. Foi em Cajamarca, no local exato onde seu antepassado, Atahualpa, tinha
visto pela primeira vez o conquistador Pizarro. O filho do cacique acompanhou o sábio
alemão no passeio às ruínas do povoado e aos escombros do antigo palácio incaico, e
enquanto caminhavam falava-lhe dos fabulosos tesouros escondidos sob o pó e as cinzas.
“Não sentis às vezes o desejo de cavar em busca dos tesouros para satisfazer vossas
necessidades?”, perguntou-lhe Humboldt. E o jovem respondeu: “Tal desejo não acontece
comigo. Meu pai diz que seria pecaminoso. Se tivéssemos os ramos dourados com todos os
frutos de ouro, os vizinhos brancos nos odiariam e nos fariam mal”53. O cacique cultivava
um pequeno campo de trigo. Mas isso não lhe bastava para por-se a salvo da cobiça alheia.
Os usurpadores, ávidos de ouro e prata e também de braços escravos para trabalhar nas
minas, não demoraram em lançar-se sobre as terras quando os cultivos ofereceram lucros
tentadores. A espoliação continuou durante todo o tempo, e em 1969, quando se anunciou
a reforma agrária no Peru, os jornais anunciavam, freqüentemente, que os índios das
comunidades destruídas da serra invadiam, de quando em vez, desfraldando suas bandeiras, as terras que lhes tinham sido roubadas, a de seus antepassados, e eram repelidos
a bala pelo exército. Foi preciso esperar quase dois séculos desde Túpac Amaru para que o
general nacionalista Juan Velasco Alvarado recolhesse e aplicasse aquela frase do cacique,
de ressonâncias imortais: “Camponês! O patrão já não comerá mais tua pobreza!”
Outros heróis que o tempo se ocupou de resgatar da derrota foram os mexicanos
Hidalgo e Morelos. Miguel Hidalgo, que tinha sido até os 50 anos um pacífico cura rural,
um belo dia sacudiu os sinos da igreja chamando os índios para lutar pela libertação:
“Quereis empenhar-vos no esforço de recuperar, dos odiados espanhóis, as terras roubadas a vossos antepassados há trezentos anos?” Levantou o estandarte da virgem índia de
Guadalupe, e em menos de seis semanas 80 mil homens o seguiam, armados com facões,
lanças, fundas, arcos e flechas. O padre revolucionário pôs fim aos tributos e repartiu as
terras de Guadalajara; decretou a liberdade dos escravos; lançou suas forças sobre a cidade
do México. Porém foi finalmente executado, ao cabo de uma, derrota militar e, segundo
dizem, deixou ao morrer um testemunho de apaixonado arrependimento54. A revolução
não demorou a encontrar um novo chefe, o sacerdote José Maria Morelos: “Devem ter-se
como inimigos todos os ricos, nobres e altos funcionários...” Seu movimento - insurgência
indígena e revolução social - chegou a dominar uma grande extensão do território do
México, até que Morelos foi também derrotado e fuzilado. A independência do México,
seis anos depois, “acabou sendo um negócio perfeitamente hispânico, entre europeus e
52. Daniel Valcárcel, La rebelión de Túpac Amaru, México, 1947.
53. Alexander von Humboldt, Ansichten der Natur, citado em Adolf Meyer-Abich e outros,
Alejandro de Humboldt (1769-1969), Bad Godesberg, 1969.
54. Tulio Halperin Donghi, Historia contemporánea de América Latina, Madri, 1969.
33
pessoas nascidas na América.... uma luta política dentro da mesma classe reinante”55.O
encomendado foi convertido em peão e o encomendero em fazendeiro56.
A SEMANA SANTA DOS ÍNDIOS TERMINA SEM RESSURREIÇÃO
No começo do século, os donos dos pongos, índios dedicados ao serviço doméstico,
ainda os ofereciam em aluguel através dos jornais de La Paz. Até a revolução de 1952, que
devolveu aos índios bolivianos o esquecido direito à dignidade, os pongos comiam as
sobras da comida do cachorro, com quem dormiam lado a, lado, e se curvavam para dirigir
a palavra a qualquer pessoa de pele branca. Os indígenas foram bestas de carga para levar
nas costas as bagagens dos conquistadores: as cavalgaduras eram escassas. Até hoje,
podem ver-se, por todo altiplano, carregadores aimarás e quéchuas levando fardos até
com os dentes em troca de um pão duro. A neumoconiosis foi a primeira doença profissional
da América; atualmente, quando os mineiros bolivianos completam 35 anos de idade,
seus pulmões já se negam a continuar trabalhando: o implacável pó de sílica impregna a
pele do mineiro, racha-lhe o rosto e as mãos, aniquila-lhe os sentidos do olfato e sabor,e
conquista-lhe os pulmões, os endurece e os mata.
Os turistas adoram fotografar os indígenas do altiplano vestidos com suas roupas
típicas. Mas ignoram que a atual vestimenta indígena foi imposta por Carlos III em fins do
século XVIII. Os trajes femininos que os espanhóis obrigaram às índias a usarem eram
calcados nos vestidos regionais das camponesas da Extremadura, Andaluzia e país basco,
e o mesmo ocorre com os penteados das indígenas, repartidos no meio, impostos pelo
vice-rei Toledo. Não acontece o mesmo, em troca, com o consumo de coca, que não nasceu
com os espanhóis; já existia nos tempos dos incas. A coca se distribuía, entretanto, com
moderação; o governo incaico tinha o monopólio e só permitia seu uso com fins rituais ou
para o duro trabalho nas minas. Os espanhóis estimularam intensamente o consumo de
coca. Era um negócio esplêndido. No século XVI, gastava-se tanto, em Potosí, em roupa
européia para os opressores como em coca para os índios oprimidos. Quatrocentos mercadores espanhóis viviam, em Cuzco, do tráfico de coca; nas minas de Potosí, entravam
anualmente cem mil cestos, com um milhão de quilos de folha de coca. A Igreja cobrava
impostos sobre a droga. O inca Garcilaso de la Vega nos diz, em seus “comentários reais”,
que a maior parte da renda do bispo, dos cônegos e demais ministros da igreja de Cuzco
provinha dos dízimos sobre a coca, e que o transporte e a venda deste produto enriqueciam
a muitos espanhóis. Com as escassas moedas que obtinham em troca de seu trabalho, os
índios compravam folhas de coca em lugar de comida; mastigando-as, podiam suportar
melhor, ao preço de abreviar a própria vida, as tarefas mortais que lhes eram impostas.
Além da coca, os indígenas consumiam aguardente, e seus proprietários se queixavam da
propagação, dos “vícios maléficos”. A esta altura do século XX, os índios de Potosí continuam mascando coca para matar a fome e matar-se e continuam queimando as tripas com
álcool puro. São as estéreis vinganças dos condenados. Nas minas bolivianas, os operários
ainda chamam de mita a seu salário, como nos velhos tempos.
Desterrados em sua própria terra, condenados ao êxodo eterno, os indígenas da
América Latina foram empurrados para as zonas mais pobres, as montanhas áridas ou o
fundo dos desertos, à medida que se estendia a fronteira da civilização dominante. Os
índios padeceram e padecem - síntese do drama de toda a América Latina - a maldição de sua
própria riqueza. Quando se descobriram os bancos de areia cheios de ouro do rio Bluefields,
55. Ernest Gruening, Mexico and its heritage, Nova Iorque, 1928.
56. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968.
34
na Nicarágua, os índios carcas foram rapidamente lançados longe de suas terras nas
ribeiras, e esta é também a história dos índios de todos os vales férteis e subsolos ricos do
rio Bravo para o sul. As matanças dos indígenas começaram com Colombo e nunca cessaram. No Uruguai e na Patagônia argentina, os índios foram exterminados, no século
passado, por tropas que os buscaram e os encurralaram nos bosques ou no deserto, com o
objetivo de que não atrapalhassem o avanço organizado dos latifúndios de gado57. Os
índios yaquis, do estado mexicano de Sonora, foram mergulhados num banho de sangue
para que suas terras, ricas em recursos minerais e férteis para a agricultura, pudessem ser
vendidas sem inconvenientes a diversos capitalistas norte-americanos. Os sobreviventes
eram deportados para as plantações de Yucatán. Assim, a península de Yucatán
converteu-se não só em cemitério dos indígenas maias, que haviam sido seus donos, mas
também em tumba dos índios yaquis, que chegavam de longe: em princípios do século, os
cinqüenta reis do sisal dispunham de mais de cem mil escravos indígenas em suas plantações. Apesar de sua excepcional fortaleza física, raça de gigantes formosos, dois terços
dos yaquis morreram durante o primeiro ano de trabalho escravo58. Em nossos dias, a fibra
de sisal só pode competir com seus substitutos sintéticos graças ao nível de vida humamente
baixo dos operários. As coisas mudaram, é certo, porém não tanto como se crê, pelo menos
para os indígenas de Yucatán: “As condições de vida destes trabalhadores assemelha-se
muito com as do trabalho escravo”, diz o professor Arturo Bonilia Sárichez59 . Nas encostas
andinas próximas a Bogotá, o peão indígena é obrigado a cumprir jornadas gratuitas de
trabalho para que o fazendeiro lhe permita cultivar, nas noites de lua clara, sua própria
parcela: “Os antepassados deste índio cultivavam livremente, sem contrair dívidas, o rico
solo do platô, que não pertencia a ninguém. Ele trabalha grátis para assegurar o direito de
cultivar a pobre montanha!”60
Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das
selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desapareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e
doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo,
para os indígenas, o contato com a morte. As disposições legais que desde 1537 protegem
os índios do Brasil voltaram-se contra eles. De acordo com o texto de todas as constituições
56. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968.
57. Os últimos charruas, que por volta de 1832 sobreviviam saqueando novilhos nas campinas
selvagens do norte do Uruguai, sofreram a traição do presidente Fructuoso Rivera. Afastados da
mata cerrada que lhes dava proteção, desmontados e desarmados por falsas promessas de amizade, foram abatidos numa paragem chamada a Boca do Tigre: "Os clarins tocaram o degolar conta o escritor Eduardo Acevedo Díaz (jornal La Época, 19 de agosto de 1890) - A horda se
revolveu desesperadamente, caindo um após outro seus varões bravos, como touros feridos na
nuca." Vários caciques morreram. Os poucos índios que puderam romper o cerco de fogo se
vingaram pouco depois. Perseguidos pelo irmão de Rivera, armaram-lhe uma cilada e crivaram-no
de lanças junto com seus solda-dos. O cacique Sepe "mandou cobrir com alguns nervos do
cadáver o extremo da ponte de sua lança."
Na Patagônia argentina, em fim do século, os soldados recebiam seu soldo contra a apresentação
de cada par de testículos. O romance de David Viñas Los dueños de la tierra (Buenos Aires, 1959)
se abre com a caça aos índios: "Porque matar era como violar alguém. Algo bom. E até agradava:
tinha que correr, se podia gritar, se suava e depos sentia fome... Os disparos iam-se espaçando.
Seguramente tinha ficado algum corpo enforquilhado num desses ninhos. Um corpo de índio
deixado para trás, com uma mancha enegrecida entre as coxas..."
58. John Kenneth Turner, México bárbaro, México, 1967.
59. Arturo Bonilla Sárichez, Un problema que se agrava: la subocupación rural, em Neolatifundismo
y explotación, de Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co., vários autores, México, 1968.
60. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963.
35
brasileiras, são “os primitivos e naturais senhores” das terras que ocupam. Ocorre que
quanto mais ricas são estas terras virgens mais grave é a ameaça que pende sobre suas
vidas; a generosidade da natureza os condena à espoliação e ao crime. A caça de índios foi
deflagrada, nos últimos anos, com furiosa crueldade; a maior seiva do mundo, gigantesco
espaço tropical aberto à lenda e à aventura, converteu-se, simultaneamente, no cenário de
um novo “sonho americano”. Em ritmo de conquista, homens e empresas dos Estados
Unidos lançaram-se sobre a Amazônia como se fosse um novo Far West. Esta invasão
norte-americana incendiou como nunca a cobiça dos aventureiros brasileiros. Os índios
morrem sem deixar rastros e as terras são vendidas em dólares aos novos interessados. O
ouro e outros minerais vultosos, a madeira e a borracha, riquezas cujo valor comercial os
nativos ignoram, aparecem vinculadas aos resultados de cada uma das escassas investigações que foram realizadas. Sabe-se que os indígenas foram metralhados dos helicópteros
e teco-tecos, que se lhes inoculou o vírus da varíola, que se lançou dinamite sobre suas
aldeias e se lhes presenteou açúcar misturado com estricnina e sal com arsênico. O próprio
diretor do extinto Serviço de Proteção aos índios, designado pelo presidente Castelo Branco para sanear a administração, foi acusado, com provas, de cometer quarenta e dois tipos
diferentes de crimes contra os índios. O escândalo explodiu em 1968.
A sociedade indígena de nossos dias não existe no vazio, fora do marco geral da
economia latino-americana. É verdade que há tribos brasileiras ainda encerradas na selva,
comunidades do altiplano isoladas por completo do mundo, redutos de barbárie na fronteira da Venezuela, mas no geral os índios estão incorporados no sistema de produção e no
mercado de consumo, embora de forma indireta. Participam, como vítimas, de uma
ordem econômica e social onde desempenham o duro papel dos mais explorados entre os
explorados. Compram e vendem boa parte das escassas coisas que consomem e produzem, em mãos de intermediários poderosos e vorazes que cobram muito e pagam pouco;
são diaristas nas plantações, a mão-de-obra mais barata, e soldados nas montanhas;
gastam seus dias trabalhando para o mercado mundial ou lutando por seus vencedores.
Em países como a Guatemala, por exemplo, constituem o eixo da vida econômica nacional: ano após ano, ciclicamente, abandonam suas terras sagradas, terras altas, para fornecerem 200 mil braços às colheitas do café, algodão e açúcar nas terras baixas. Os empreiteiros
os transportam em caminhões, como gado, e nem sempre a necessidade decide: às vezes
decide a cachaça. Os empreiteiros pagam uma orquestra de marimba e fazem correr o
álcool forte: quando o índio acorda da bebedeira, já o acompanham as dívidas: Pagará
trabalhando em terras quentes que não conhece, de onde regressará ao fim de alguns
meses, talvez com alguns centavos no bolso, talvez com tuberculose ou impaludismo. O
exército colabora eficazmente na tarefa de convencer os renitentes61. A expropriação dos
indígenas - usurpação de suas terras e de sua força de trabalho - foi e é simétrica ao
desprezo racial, que por sua vez se alimenta da objetiva degradação das civilizações indígenas arrasadas pela conquista. Os efeitos da conquista e todo o longo tempo de humilhação
posterior despedaçaram a identidade cultural e social que os indígenas tinham alcançado.
Todavia, essa identidade fragmentada é a única que persiste na Guatemala62.Persiste na
61. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967.
62. Os maias quichés acreditavam num só deus, praticavam o jejum, a penitência, a abstinência
e a confissão; acreditavam no dilúvio e no fim do mundo: o Cristianismo não lhes trouxe grandes
novidades. A decomposição religiosa começou com a colônia. A religião católica só assimilou
alguns aspectos mágicos e totêmicos da religião maia, na vã tentativa de submeter a fé indígena
à ideologia dos conquistadores. O esmagamento cultural abriu caminho para o sincretismo e
assim se recolhem, por exemplo, na atualidade, testemunhos da inovação com resPeito àquela
evolução alcançada: "Dom Vulcão necessita de carne humana bem tostadinha." Carlos Guzmán
Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación historico-social, México, 1970.
36
tragédia. Na semana santa, as procissões dos herdeiros dos maias dão lugar a terríveis
exibições de masoquismo coletivo. Arrastam pesadas cruzes, participam da flagelação de
Jesus passo a passo durante a interminável ascensão do Gólgota; com gemidos de dor,
convertem Sua morte e Seu enterro no culto da própria morte e do próprio enterro, a
aniquilação da formosa vida remota. A semana santa dos índios guatemaltecos termina
sem Ressurreição.
VILA RICA DE OURO PRETO: A POTOSÍ DE OURO
A febre de ouro, que continua impondo a morte e a escravidão aos indígenas da
Amazônia, não é nova no Brasil; muito menos seus estragos.
Durante dois séculos a partir do descobrimento, o solo do Brasil tinha negado os
metais, tenazmente, a seus proprietários portugueses. A exploração da madeira, o
pau-brasil, cobriu o primeiro período de colonização das costas, e logo se organizaram
grandes plantações de açúcar no Nordeste. Porém, ao contrário da América espanhola, o
Brasil parecia vazio de ouro e prata. Os portugueses não tinham encontrado aqui civilizações indígenas de alto nível de desenvolvimento e organização, senão tribos selvagens e
dispersas. Os aborígenes desconheciam os metais, foram os portugueses que tiveram de
descobrir, por sua própria conta, os locais onde se depositavam os aluviões de ouro no vasto
território que se ia abrindo, através da derrota e do extermínio dos indígenas, à passagem
da conquista.
Os bandeirantes63 da região de São Paulo atravessaram a vasta zona entre a Serra da
Mantiqueira e a cabeceira do rio São Francisco, e notaram que os leitos e os bancos de
vários rios e riachos que por ali corriam continham traços de ouro aluvional em pequenas
quantidades visíveis. A ação milenar das chuvas tinha roído os filões de ouro das rochas e
os havia depositado nos rios, no fundo dos vales e nas depressões das montanhas. Sob as
camadas de areia, terra ou argila, o pedregoso subsolo oferecia pepitas de ouro, fácil de
extrair do cascalho de quartzo; os métodos de extração tornaram-se mais complicados na
medida em que se foram esgotando os depósitos mais superficiais. A região de Minas
Gerais entrou assim, impetuosamente, na história: a maior quantidade de ouro então
descoberta no mundo foi extraída no menor espaço de tempo.
“Aqui o ouro era mato”, diz, agora, o mendigo, e seu olhar passeia pelas torres das
igrejas. “Tinha ouro nas calçadas, crescia como pasto.” Agora ele tem 75 anos e se considera uma tradição de Mariana (Ribeirão do Carmo), a pequena cidade mineira próxima a
Ouro Preto, que se conserva, como Ouro Preto, paralisada no tempo. “A morte é certa, a
hora incerta. Cada um tem seu tempo marcado”, me diz o mendigo. Cospe sobre a escada
de pedra e sacode a cabeça: “Não sabiam onde pôr o dinheiro e por isso faziam uma igreja
ao lado da outra.”
Em outros tempos, esta comarca era a mais importante do Brasil. Agora... “Agora
não - me diz o velho.- Agora isto não tem vida nenhuma. Aqui não tem jovens. Os jovens
se vão.” Caminha descalço, a meu lado, em passos lentos sob o tíbio sol da tarde: “Vê? aí,
na frente da igreja, estão o sol e a lua. Isso significa que os escravos trabalhavam dia e noite.
Este templo foi feito pelos negros; aquele, pelos brancos. E aquela é a casa do monsenhor
Alípio, que morreu aos 99 anos justos.”
Ao longo do século XVIII, a produção brasileira do cobiçado minério superou o volume total do ouro que a Espanha tinha extraído de suas colônias durante os dois séculos
63. As bandeiras paulistas eram bandos errantes de organização paramilitar e de força variável.
Suas expedições selva adentro desempenharam um papel importante na colonização do interior
do Brasil.
37
anteriores64. Choviam os aventureiros e os caçadores de fortuna. O Brasil tinha 300 mil
habitantes em 1700; um século depois, no final dos anos do ouro, a população tinha-se
multiplicado onze vezes. Não menos de 300 mil portugueses emigraram para o Brasil
durante o século XVIII, “um contingente maior de população... do que a Espanha levou a
todas suas colônias da América”65. Estima-se em uns dez milhões o total de negros escravos introduzidos desde a África, a partir da conquista do Brasil até a abolição da escravatura: apesar de não se dispor de cifras exatas para o século XVIII, deve ter-se em conta que
o ciclo do ouro absorveu mão-de-obra escrava em proporções enormes.
Salvador da Bahia foi a capital brasileira do próspero cicio do açúcar no Nordeste,
mas a “idade do ouro” de Minas Gerais transladou para o sul o eixo econômico e político
do país e converteu o Rio de Janeiro, porto da região, em nova capital do Brasil a partir de
1763. No centro dinâmico da florescente economia mineira, brotaram as cidades, acampamentos nascidos do boom e bruscamente ampliados na vertigem da riqueza fácil, “santuários para criminosos, vagabundos e malfeitores” - segundo as educadas palavras de uma
autoridade colonial da época. A Vila Rica de Ouro Preto tinha conquistado categoria de
cidade em 1711; nascida da avalanche de mineiros, era a quintessência da civilização do
ouro. Simão Ferreira Machado a descrevia, 23 anos depois, e dizia que o poder dos comerciantes de Ouro Preto excedia incomparavelmente ao dos mais florescentes mercadores de Lisboa. “Para aqui, como para um porto, se dirigem e são recolhidas na casa real da
moeda as grandiosas somas de ouro de todas as minas. Aqui vivem os homens mais bem
educados, tanto os leigos como os clérigos. Este é o assento de toda a nobreza e força dos
militares. Esta é, em virtude de sua posição natural, a cabeça da América íntegra; e pelo
poder de suas riquezas, a pérola preciosa do Brasil.” Outro escritor da época, Francisco
Tavares de Brito, definia Ouro Preto em 1732 como “a Potosí de ouro” 66.
Com freqüência chegavam a Lisboa queixas e protestos pela vida pecaminosa em
Ouro Preto, Sabará, São João d’El Rei, Ribeirão do Carmo e todo o turbulento distrito
mineiro. As fortunas se faziam e se desfaziam num abrir e fechar de olhos. O padre Antonil
denunciava que sobravam mineiros dispostos a pagar uma fortuna por um negro que
tocasse bem trombeta e o dobro por uma prostituta mulata, “para entregar-se com ela a
contínuos e escandalosos pecados”, porém os homens de batina não se portavam melhor:
da correspondência oficial da época podem extrair-se numerosos testemunhos contra os
“maus clérigos” que infestavam a região. Se lhes acusava de fazer uso de sua imunidade
para retirar ouro de contrabando dentro de pequenas efígies dos santos de madeira. Em
1705, afirmava-se que não havia em Minas Gerais nem um só cura disposto a interessar-se
na fé cristã do povo, e seis anos depois a Coroa chegou a proibir o estabelecimento de
qualquer ordem religiosa no distrito mineiro.
Proliferavam, de todos os modos, as formosas igrejas construídas e decoradas no
original estilo barroco característico da região. Minas Gerais atraía os melhores artesãos da
época. Exteriormente, os templos pareciam sóbrios, despojados; porém o interior, símbolo
da alma divina, resplandecia no ouro puro dos altares, nos retábulos, nos pilares e nos
baixo-relevos dos painéis; não se poupavam os metais preciosos, para que as igrejas pudessem alcançar “também as riquezas Céu”, como aconselhava o frei Miguel de São
Francisco, em 1710. Os serviços religiosos tinham preços altíssimos, porém tudo era fantasticamente caro nas minas. Como havia ocorrido em Potosí, Ouro Preto se lançava ao
esbanjamento de sua riqueza súbita. As procissões e os espetáculos davam lugar à exibição
de vestidos e adornos de luxo asiático. Em 1733, uma festividade religiosa durou mais de
uma semana. Não só se faziam procissões a pé, a cavalo e em triunfais carros de nácar,
64. Celso Furtado, op. cit. 65.
65. Celso Furtado, Formación económica del Brasil, México, 1959.
66. C. R. Boxer, The Golden Age of Brazil (1695-1750), Califórnia, 1969.
38
sedas e ouro, com trajes de fantasia e alegorias deslumbrantes, mas também torneios de
montaria, touradas e danças nas ruas ao som de flautas, gaitas e violas 67.
Os mineiros desprezavam o cultivo da terra e a região sofreu epidemias de fome em
plena prosperidade, por volta de 1700 e 1713; os milionários tiveram que comer gatos,
cães, ratos, formigas, gaviões. Os escravos esgotavam suas forças e seus dias na lavagern
de ouro. “Ali trabalham - escrevia Luís Gomes Ferreira -,68 ali comem, e muitas vezes têm
que dormir ali; e como quando trabalham se banham em suor, com dois pés sobre a terra
fria, sobre pedras ou na água, quando descansam ou comem, seus poros se fecham e se
congelam de tal forma que se tornam vulneráveis a muitas doenças perigosas, como as
mui severas pleurisias, apoplexia, convulsões, paralisia, pneumonia e muitas outras.” A
doença era uma bênção do céu que aproximava a morte. Os capitães-do-mato de Minas
Gerais cobravam recompensas em ouro em troca das cabeças cortadas dos escravos que se
evadiam.
Os escravos se chamavam “peças da índia” quando eram medidos, pesados e embarcados em Luanda; os que sobreviviam à travessia do oceano se convertiam, já no Brasil,
em “mãos e pés” do amo branco. Angola exportava escravos bantus e presas de elefante
em troca de roupa, bebidas e armas de fogo; porém os mineiros de ouro Preto preferiam os
negros que vinham da pequena praia do Whydah, na costa da Guiné, porque eram mais
vigorosos, duravam. um pouco mais e tinham poderes mágicos para descobrir ouro. Cada
mineiro necessitava, ademais, de pelo menos uma amante negra de Whydah para que a
sorte o acompanhasse nas explorações69. A explosão do ouro não somente incrementou a
importação de escravos, mas, além disso, absorveu boa parte da mão-de-obra negra de
outras regiões do Brasil, que ficaram sem braços. Um decreto real de 1711 proibiu a venda
dos escravos ocupados em tarefas agrícolas com destino ao serviço das minas, com a
exceção dos que mostraram “perversidade de caráter”. Era insaciável a fome de escravos
em Ouro Preto. Os negros morriam rapidamente; só em casos excepcionais chegavam a
suportar sete anos contínuos de trabalho. Isto sim: antes de cruzarem o Atlântico, os
portugueses batizavam todos. E no Brasil tinham a obrigação de assistir à missa, embora
lhes estivesse proibido de entrar na capela maior ou sentar nos bancos.
Em meados do século XVIII, muitos dos mineiros já se tinham mudado para a Serra
do Frio em busca de diamantes. As pedras cristais que os caçadores de ouro tinham jogado
de lado enquanto exploravam os leitos do rio eram diamantes, segundo se soube. Minas
Gerais oferecia ouro e diamantes em casamento, em proporções semelhantes. 0 florescente acampamento de Tijuco converteu-se no centro do distrito diamantino, e nele, à semelhança de Ouro Preto, os ricos vestiam a última moda européia e encomendavam roupas
do outro lado do mar, como as armas e os móveis mais luxuosos: horas de delírio e
desperdício. Uma escrava mulata, Francisca da Silva, conquistou sua liberdade ao
converter-se em amante do milionário João Fernandes de Oliveira, virtual soberano de
Tijuco, e ela que era feia e já tinha dois filhos, tornou-se a Chica que manda70.Como nunca
tinha visto o mar e queria tê-lo próximo, seu cavalheiro lhe construiu um grande lago
artificial no qual pôs um barco com tripulação e tudo. Sobre as fraldas da serra de São
67. Augusto de Lima Júnior, Vila Rica de Ouro Preto. Síntese histórica e descritiva,
Belo Horizonte, 1957.
68. C. R. Boxer, op. cit.
69. C. R. Boxer, op. cil. Em Cuba se atribuíam propriedades medicinais às escravas, Segundo o
testemunho de Esteban Montejo, "tinha um tipo de doença que atingia os brancos. Era uma
doença nas veias e nas partes masculinas. Passava para as negras. O que a sofria deitava com uma
negra e a passava. Assim se curava logo." Miguel Barnet, Biografta de unt cimarrón, Buenos
Aires, 1968.
70. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, Rio de.Janeiro, 1956.
39
Francisco levantou para ela um castelo, com um jardim de plantas exóticas e cascatas
artificiais; em sua honra dava opíparos banquetes regados pelos melhores vinhos, bailes
noturnos de nunca acabar e funções de teatro e concertos. Ainda em 1818, Tijuco festejou
o grande casamento do príncipe da corte portuguesa. Dez anos antes, John Mawe, um
inglês que visitou Ouro Preto, assombrou-se com sua pobreza: encontrou casas vazias e
sem valor, com letreiros que as colocavam infrutuosamente à venda, e comeu comida
imunda e escassa71.Tempos atrás tinha explodido a rebelião, que coincidiu com a crise na
comarca do ouro. Joaquim José da Silva Xavier, o Tíradentes, tinha sido enforcado e
despedaçado, e outros lutadores pela independência tinham partido de Ouro Preto rumo
ao cárcere ou ao exílio.
CONTRIBUIÇÃO DO OURO DO BRASIL AO PROGRESSO DA INGLATERRA
O ouro começou a correr no exato momento em que Portugal assinava o Tratado de
Methuen, em 1703, com a Inglaterra. Esta foi, a coroação de uma enorme série de privilégios conseguida pelos comerciantes britânicos em Portugal. Em troca de algumas vantagens para seus vinhos no mercado inglês, Portugal abria seu próprio mercado, e o de sua
colônias, às manufaturas britânicas. Dado o desnível de desenvolvimento industrial já
então existente, a medida implicava uma condenação à ruína para as manufaturas locais.
Não era com vinho que se pagavam os tecidos ingleses, mas com ouro, com o ouro do
Brasil, e neste processo ficariam paralíticos os teares de Portugal. Portugal não se limitou
a matar o embrião de sua própria indústria, mas também, de passagem, aniquilou os
germes de qualquer tipo de desenvolvimento manufatureiro no Brasil. O reino proibiu o
funcionamento de refinarias de açúcar em 1715; em 1729, declarou como crime a abertura
de novas vias de comunicação na região mineira; em 1785, determinou o incêndio aos
teares e fiadores brasileiros.
Inglaterra e Holanda, campeãs de contrabando de ouro, que juntaram grandes fortunas no tráfico ilegal da carne negra, açambarcam por meios ilícitos, segundo se calcula,
mais da metade do metal que correspondia ao imposto do “quinto real” que deveria
receber, do Brasil, a coroa portuguesa. Porém a Inglaterra não recorria somente ao comércio proibido para canalizar o ouro brasileiro em direção a Londres. As vias legais também
lhe pertenciam. O auge do ouro, que implicou o fluxo contínuo de grandes contingentes de
população portuguesa para Minas Gerais, estimulou agudamente a demanda colonial de
produtos industriais e proporcionou, ao mesmo tempo, meios para pagá-los. Da mesma
maneira que a prata de Potosí repicava no solo espanhol, o ouro de Minas Gerais só
passava de trânsito por Portugal. A metrópole converteu-se em simples intermediária. Em
1755, o marquês de Pombal, primeiro ministro português, intentou a ressurreição de uma
política protecionista, mas já era tarde: denunciou que os ingleses haviam conquistado
Portugal sem os inconvenientes de uma conquista, que abasteciam a duas terças partes de
suas necessidades e que os agentes britânicos eram donos da totalidade do comércio
português. Portugal não produzia praticamente nada, e tão fictícia era a riqueza do ouro
que até os escravos negros que trabalhavam nas minas da colônia eram vestidos pelos
ingleses.72
Celso Furtado fez notar73 que a Inglaterra, que seguiu uma política clarividente em
matéria de desenvolvimento industrial, utilizou o ouro do Brasil para pagar importações
71. Augusto de Lima Júnior, op. cit.
72. Allan K. Manchester, British Preeminence in Brazil: its Rise and Fall, Chape Hill, Carolina do
Norte, 1933.
73. Celso Furtado, op. cit.
40
essenciais de outros países e pôde concentrar inversões no setor manufatureíro. Rápidas e
eficazes inovações tecnológicas puderam ser aplicadas graças a esta gentileza histórica de
Portugal. O centro financeiro se transladou de Amsterdã para Londres. Segundo as fontes
britânicas, a entrada de ouro brasileiro alcançava 50 mil libras por semana em alguns períodos. Sem
esta tremenda acumulação de reservas metálicas, a Inglaterra não teria podido enfrentar,posteriormente, Napoleão.
Nada ficou, no solo brasileiro, do impulso dinâmico do ouro, salvo os templos e as
obras de arte. Em fins do século XVIII, embora ainda não se tivessem esgotado os diamantes, o país estava prostrado. A renda percapita dos três milhões de brasileiros não superava
os 50 dólares anuais no atual poder aquisitivo, segundo os cálculos de Furtado, e este era
o nível mais baixo de todo o período colonial. Minas Gerais caiu verticalmente numa
grande onda de decadência e ruína. Incrivelmente, um brasileiro agradece o favor e sustenta que o capital que saiu de Minas “serviu para a imensa rede bancária que propiciou o
comércio entre nações e tornou possível levantar o nível de vida dos povos capazes de
progresso”74. Condenados inflexivelmente à pobreza em função do progresso alheio, os
povos mineiros “incapazes” ficaram isolados e tiveram que se resignar a arrancar seus
alimentos das pobres terras já despojadas de metais e pedras preciosas. A agricultura de
subsistência ocupou o lugar da economia mineira75. Em nossos dias, os campos de Minas
Gerais são, como os do Nordeste, reinos do latifúndio e dos “coronéis de fazenda”, teimosos bastiões do atraso. A venda de trabalhadores mineiros às fazendas de outros estados é
quase tão freqüente quanto o tráfico que os escravos nordestinos padecem. Franklin de
Oliveira percorreu Minas Gerais há pouco tempo. Encontrou casas de pau a pique, povoados sem água nem luz, prostitutas com idade média de treze anos na estrada do Vale do
Jequitinhonha, loucos e famélicos à beira do caminho. Conta-o em seu recente livro A
tragédia da renovação brasileira. Henri Gorceix disse, com razão, que Minas Gerais tinha um
coração de ouro num peito de ferro,76 porém a exploração de seu fabuloso quadrilátero
ferrífero corre por conta, atualmente, da Hanna Mining Co. e a Bethlehem Steel, associadas no projeto: as jazidas foram entregues em 1964, ao fim de uma sinistra história. O
ferro, em mãos estrangeiras, não deixará mais do que o ouro deixou.
Só a explosão de talento ficou como recordação da vertigem do ouro, para não
mencionar os buracos das escavações e as pequenas cidades abandonadas. Portugal não
pôde, tampouco, resgatar outra força criadora que não fosse a revolução estética. O convento de Mafra, orgulho de Dom João V, levantou Portugal da decadência artística: em
seus carrilhões de 37 sinos, seus vasos e seus candelabros de ouro maciço, cintila ainda o
ouro de Minas Gerais. As igrejas de Minas foram bastante saqueadas e são raros os objetos
sacros, de tamanho portátil, que nelas perduram, mas ficarão para sempre, alçadas sobre
as ruínas coloniais, as monumentais obras barrocas, os frontispícios e os púlpitos, os
retábulos, as tribunas, as figuras humanas, que desenhou, talhou e esculpiu Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o filho genial de uma negra escrava e um artesão famoso.
Já agonizava o século XVIII quando Aleijadinho começou a modelar em pedra um conjunto de grandes figuras sagradas, ao pé do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, em
Congonhas do Campo. A euforia do ouro era coisa do passado: a obra se chama Osprofetas,
mas já não havia nenhuma glória por profetizar.Toda a pompa e alegria tinham-se desvanecido e não sobrava espaço para nenhuma esperança. O dramático testemunho final,
grandioso como um enterro para aquela fugaz civilização do ouro nascida para morrer,foi
74. Augusto de Lima Júnior, op. cit. O autor sente uma grande alegria pela "expansão do imperialismo colonizador, que os ignorantes de hoje, movidos por seus mestres moscovitas, qualificam
de crime".
75. Roberto C. Simonsen, História Econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962.
76. Eponina Ruas, Ouro Preto. Sua história, seus templos e monumentos, Rio de Janeiro, 1950.
41
deixado aos séculos seguintes pelo artista mais talentoso de toda a história do Brasil. O
Aleijadinho, desfigurado e mutilado pela lepra, realizou sua obra-prima amarrando o
cinzel e o martelo em suas mãos sem dedos e arrastando-se de joelhos, cada madrugada,
rumo a sua oficina.
A lenda assegura que na igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, de
Minas Gerais, os mineiros mortos celebram ainda missa nas frias noites de chuva. Quando
o sacerdote se volta, levantando as mãos do altar-mor, se vêem os ossos do rosto.
O REI AÇÚCAR E OUTROS MONARCAS AGRÍCOLAS
AS PLANTAÇÕES, OS LATIFÚNDIOS E O DESTINO
A busca do ouro e da prata foi, sem dúvida, o motor central da conquista. Porém, em
sua segunda viagem, Cristóvão Colombo trouxe as primeiras raízes de cana-de-açúcar,das
ilhas Canárias, e as plantou nas terras que hoje ocupa a República Dominicana. Uma vez
semeadas, brotaram com rapidez, para o grande regozijo do almirante1. O açúcar, que se
cultivava em pequena escala na Sicília e nas ilhas Madeira e Cabo Verde e se comprava, a
preços altos, no Oriente, era um artigo cobiçado pelos europeus, que até nos enxovais das
rainhas chegou a figurar como dote. Vendia-se nas farmácias, era pesado por grãos2.
Durante pouco menos de três séculos a partir do descobrimento da América, não houve,
para o comércio da Europa, produto agrícola mais importante que o açúcar cultivado
nestas terras. Ergueram-se os canaviais no litoral úmido e quente do Nordeste do Brasil;
posteriormente, também as ilhas do Caribe - Barbados, Jamaica, Haiti, Guadalupe, Cuba,
Dominicana, Porto Rico -, Veracruz e a costa peruana foram sucessivos cenários propícios
para a exploração, em grande escala, do “ouro branco”. Imensas legiões de escravos
vieram da África para proporcionar, ao rei açúcar, a força de trabalho numerosa e gratuita
que exigia: combustível humano para queimar. As terras foram devastadas por esta planta
egoísta, que invadiu o Novo Mundo arrasando as matas, desgastando a fertilidade natural
e exigindo o húmus acumulado pelos solos. O longo ciclo do açúcar deu origem, na América Latina, a prosperidades tão mortais como as que engendraram, em Potosí, Ouro Preto,
Zacatecas e Guanajuato, os furores da prata e do ouro; ao mesmo tempo, impulsionou
com força decisiva, direta ou indiretamente, o desenvolvimento industrial da Holanda,
França, Inglaterra e Estados Unidos.
A plantação nascida da demanda de açúcar no ultramar era uma empresa movida
pela ânsia de lucro de seu proprietário e posta ao serviço do mercado que a Europa ia
articulando internacionalmente. Por sua estrutura interna, entretanto, levando em conta
que em boa parte se bastava a si mesma, alguns de seus traços predominantes eram
feudais. Utilizava, por outro lado, mão-de-obra escrava. Três idades históricas distintas mercantilismo, feudalismo, escravidão - combinavam-se assim numa só idade econômica
e social, porém era o mercado internacional que estava no centro da constelação de poder,
integrado desde cedo pelo sistema de plantações.
Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e financiada, em
muitos casos, do exterior, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos
gargalos da garrafa que estrangulam o desenvolvimento econômico da América Latina e
1. Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, La Habana, 1963.
2. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960.
42
um dos fatores primordiais da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas.
O latifúndio atual, mecanizado em medida suficiente para multiplicar os excedentes de
mão-de-obra, dispõe de abundantes reservas de braços baratos. Já não depende da importação de escravos africanos nem da encomenda indígena. Ao latifúndio basta o pagamento
de diárias irrisórias, a retribuição de serviços em espécies ou o trabalho gratuito em troca do
usufruto de um pedacinho de terra; nutre-se da proliferação de minifúndios, resultado de
sua própria expansão, e da contínua migração interna de legiões de trabalhadores que se
deslocam, empurrados pela fome, ao ritmo de safras sucessivas.
A estrutura combinada da plantação funcionava, e assim funciona também o latifúndio, como um coador armado para a evasão de riquezas naturais. Ao integrar-se no
mercado mundial, cada área conheceu um ciclo dinâmico; logo, pela competição de outros
produtos substitutivos, pelo esgotamento da terra ou pela aparição de outras zonas com
melhores condições, sobreveio a decadência. A cultura da pobreza, a economia de subsistência e a letargia são os preços que cobra, no transcurso dos anos, o impulso produtivo
original. O Nordeste era a zona mais rica do Brasil e hoje é a mais pobre; em Barbados e
Haiti, residem formigueiros humanos condenados à miséria; o açúcar converteu-se na
chave-mestra do domínio de Cuba pelos Estados Unidos, ao preço da monocultura e do
empobrecimento implacável do solo. Não só o açúcar. Esta é também a história do cacau,
que iluminou a fortuna da oligarquia de Caracas; do algodão do Maranhão, de súbito
esplendor e súbita queda; das plantações de seringueira na Amazônia, convertidas em
cemitérios para os operários nordestinos recrutados em troca de moedinhas; das fazendas
de sisal, em Yucatán, onde os índios yaquis foram enviados ao extermínio. É também a
história do café, que avança deixando desertos, e das plantações de frutas no Brasil,
Colômbia, Equador e nos desditosos países centro-americanos. Com melhor ou pior sorte,
cada produto tem-se convertido num destino, muitas vezes fugaz, para os países, regiões
e homens. O mesmo itinerário seguiram, certamente, as zonas produtoras de riquezas
minerais. Quanto mais cobiçado pelo mercado mundial, maior é a desgraça que um produto traz
consigo ao povo latino-americano que, com seu sacrifício, o cria. A zona menos castigada por esta
lei de ferro, o rio da Prata, que lançava couros e depois carne nas correntes do mercado
internacional, não pôde, todavia, escapar à jaula do subdesenvolvimento.
O ASSASSINATO DA TERRA NO NORDESTE DO BRASIL
As colônias espanholas proporcionavam, em primeiro lugar, metais. Muito cedo
descobriram-se, nelas, os tesouros e os veios. O açúcar, relegado a um segundo plano, foi
cultivado em São Domingos, depois em Veracruz, mais tarde na costa peruana e em Cuba.
Entretanto, até meados do século XVII, o Brasil foi o maior produtor mundial de açúcar.
Simultaneamente, a colônia portuguesa da América era o principal mercado de escravos:
a mão-de-obra indígena, muito escassa, extinguia-se rapidamente nos trabalhos forçados,
e o açúcar exigia grandes contingentes de mão-de-obra para limpar e preparar os terrenos,
plantar, colher e transportar a cana e, por fim, moê-la e purgá-la. A sociedade colonial
brasileira, subproduto do açúcar, floresceu na Bahia e Pernambuco, até que o descobrimento
do ouro transferiu seu núcleo central para Minas Gerais.
As terras foram cedidas, pela Coroa portuguesa, em usufruto, aos primeiros grandes
senhores de terra do Brasil. A façanha da conquista tinha de correr paralelamente à
organização da produção. Somente doze “capitães” receberam, por carta de doação, todo
o imenso território colonial virgem,3 para explorá-lo a serviço do monarca. Todavia, foram
3. Sergio Bagú, Economia de la sociedad colonial. Ensayo de história comparada de
ca Latina, Buenos Aires, 1949.
Améri-
43
capitais holandeses os que financiaram, em maior medida, o negócio, que foi, em resumo,
mais flamengo do que português. As empresas holandesas não só participaram na instalação dos engenhos e na importação dos escravos; além disso, recolhiam o açúcar bruto em
Lisboa, refinavam-no, ganhando lucros que chegavam à terça parte do valor do produto4,
e o vendiam na Europa. Em 1630, a Dutch West India Company invadiu e conquistou a
costa nordeste do Brasil, para assumir diretamente o controle do produto. Era preciso
multiplicar os lucros, e a empresa ofereceu aos ingleses da ilha de Barbados todas as
facilidades para iniciar a cultura em grande escala nas Antilhas. Trouxe ao Brasil colonos
do Caribe, para que aqui, em seus novos domínios adquirissem os necessários conhecimentos técnicos e a capacidade de organização. Quando os holandeses foram por fim
expulsos do Nordeste brasileiro, em 1654, já tinham estabelecido as bases para que Barbados
se lançasse numa competição furiosa e ruinosa. Haviam levado negros e raízes de cana,
levantado engenhos e tinham todos os implementos. As exportações brasileiras caíram
bruscamente para a metade, e os preços baixaram 50% no fim do século XVII. As Antilhas
estavam mais perto do mercado europeu, Barbados tinha terras ainda virgens e produzia
com melhor nível técnico. As terras brasileiras estavam cansadas. A formidável magnitude
das rebeliões dos escravos no Brasil e a aparição do ouro no Sul, que arrebatava mão-de-obra
às plantações, precipitaram também a crise do nordeste açucareiro. Foi uma crise definitiva. Prolonga-se, arrastando-se penosamente de século em século, até nossos dias.
O açúcar arrasou o Nordeste. A faixa úmida do litoral, bem regada por chuvas, tinha
um solo de grande fertilidade, muito rico em húmus e sais minerais, coberto por matas
tropicais da Bahia até o Ceará. Esta região de matas tropicais converteu-se, como diz Josué
de Castro, em região de savanas5. Naturalmente nascida para produzir alimentos, passou
a ser uma região de fome. Onde tudo germinava com exuberante vigor, o latifúndio
açucareiro, destrutivo e avassalador,deixou rochas estéreis, solos lavados, terras erodidas.
Fizeram-se, a princípio, plantações de laranjas e mangas, que foram abandonadas e se
reduziram a pequenas hortas que rodeavam a casa do dono do engenho, exclusivamente
reservadas para a família do plantador branco6. Os incêndios que abriam terras aos canaviais devastaram a floresta e com ela a fauna; desapareceram os cervos, os javalis, as
toupeiras, os coelhos, as pacas e os tatus. O tapete vegetal, a flora e a fauna foram
sacrificadas, nos altares da monocultura, à cana-de-açúcar. A produção extensiva esgotou
rapidamente os solos.
Em fins do século XVI, o Brasil tinha não menos de 120 engenhos, que somavam um
capital próximo a dois milhões de libras, mas seus donos, que possuíam as melhores
terras, não cultivavam alimentos. Importavam-nos, como importavam uma vasta gama
de artigos de luxo, que chegavam, do ultramar, junto com os escravos e bolsas de sal. A
abundância e a prosperidade eram, como de costume, simétricas à miséria da maioria da
população, que vivia em estado crônico de subnutrição. A criação de gado foi relegada aos
desertos do interior, longe da faixa úmida da costa: o sertão que, com duas cabeças de gado
por quilômetro quadrado, proporcionava (e ainda proporciona) a carne dura e sem sabor,
sempre escassa.
Daqueles tempos coloniais nasce o costume, ainda vigente, de comer terra. A falta
de ferro provoca anemia; o instinto leva as crianças nordestinas a compensar com terra os
sais minerais que não encontram em sua comida habitual, que se reduz a farinha de
mandioca, feijão e, raramente, charque. Antigamente, castigava-se este “vício africano”
pondo-se mordaças nas bocas das crianças ou pendurando-as dentro de cestas a grande
4. Celso Furtado, Formación económica del Brasil, Buenos Aires-México, 1959.
5. Josué de Castro, Geografia da Fome, São Paulo, 1963.
6. Ibid.
44
distância do solo7.
O Nordeste brasileiro é, na atualidade, uma das regiões mais subdesenvolvidas do hemisfério
ocidental8. Gigantesco campo de concentração para trinta milhões de pessoas, padece hoje a herança
da monocultura do açúcar. De suas terras nasceu o negócio mais lucrativo da economia agrícola
colonial na América Latina. Atualmente, menos da quinta parte da zona úmida de
Pernambuco está dedicada à cultura da cana-de-açúcar, e o resto não se usa para nada9:os
donos dos grandes engenhos centrais, que são os maiores plantadores de cana, dão-se a
este luxo do desperdício, mantendo improdutivos seus vastos latifúndios. Não é nas zonas
áridas e semi-áridas do interior nordestino onde as pessoas comem pior, como equivocadamente se crê. O sertão, deserto de pedra e arbustos ralos, vegetação escassa, padece fomes
periódicas: o sol inclemente da seca abate-se sobre a terra e a reduz a uma paisagem lunar;
obriga aos homens o êxodo e semeia cruzes às margens dos caminhos. Porém é no litoral
úmido onde se padece a fome endêmica. Ali onde mais opulenta é a opulência, mais
miserável se forma, terra de contradições, a miséria; a região eleita pela natureza para
produzir todos os alimentos, nega-os todos: a faixa costeira ainda conhecida, ironia do
vocabulário, como zona da mata, em homenagem ao passado remoto e aos míseros vestígios da floresta sobrevivente aos séculos do açúcar. O latifúndio açucareiro, estrutura do
desperdício, continua obrigado a trazer alimentos de outras zonas, sobretudo da região
Centro-Sul do Brasil, a preços crescentes. O custo de vida no Recife é o mais alto do Brasil,
muito acima do índice do Rio de Janeiro. O feijão custa mais caro no Nordeste do que em
Ipanema. Meio quilo de farinha de mandioca eqüivale ao salário diário de um trabalhador
adulto numa plantação de açúcar por sua jornada de sol a sol: se o operário protesta, o
capataz manda buscar o carpinteiro para que tire as medidas do corpo, para saber o quanto
de madeira será necessário para o caixão. Aos proprietários ou seus administradores continua em vigência, em vastas zonas, o “direito à primeira noite” de cada moça. A terça
parte da população de Recife sobrevive marginalizada em palhoças de chão batido; num
bairro, Casa Amarela, mais da metade das crianças que nascem morrem antes de chegar
ao primeiro ano10. A prostituição infantil, meninas de dez ou doze anos vendidas por seus
pais, é freqüente nas cidades do Nordeste. A jornada de trabalho em algumas plantações
se paga a preços mais baixos do que a diária mais baixa da índia. Um informe da FA O,
Organização das Nações Unidas, assegurava em 1957 que na localidade de Vitória de
Santo Antão, perto de Recife, a deficiência de proteínas “provoca nas crianças uma perda
de peso 40% mais grave do que se observa geralmente na África”. Em numerosas plantações subsistem ainda as prisões privadas, “mas os responsáveis pelos assassinatos por
subnutrição - diz René Dumont - não são presos nelas, porque são os que têm a chave”11.
Pernambuco produz agora menos da metade do açúcar que produz o Estado de São
Paulo, e com rendimentos muito menores por hectare; todavia, Pernambuco vive do
açúcar, e dele vivem seus habitantes densamente concentrados na região úmida, enquanto o Estado de São Paulo contém o centro industrial mais poderoso da América Latina. No
7. Ibid. Um viajante inglês, Henry Koster, atribuía o costume de comer terra ao contato dos
meninos brancos com os negrinhos, "que se contagiam com este vicio africano".
8. O Nordeste padece, por várias vias, uma sorte de colonialisino interno em beneficio do Sul
industrializado. Dentro do Nordeste, por sua vez, a região do sertão está subordinada à zona
açucareira, e a abastece; os latifúndios açucareiros dependem das usinas industrializadoras do
produto. A velha instituição do senhor de engenho está em crise; os moinhos centrais devoraram as plantações.
9. Segundo as investigações do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, de Pernambuco,
citadas por Kit Sims Taylor em El nordeste brasileño: azúcar y plus-valia, Monthly Review, nº 63,
Santiago do Chile, 1969.
1O. Franklin de Oliveira, Revolución y contrarrevolucién en el Brasil, Buenos Aires, 1965
11. René Dumont, Tierras vivas. Problemas de la reforma agraria en el mundo, México, 1963.
45
Nordeste nem mesmo o progresso é progressista, porque até o progresso está em mãos de
poucos proprietários. O alimento das minorias converte-se em fome das maiorias. A partir
de 1870, a indústria açucareira modernizou-se consideravelmente com a criação dos grandes moinhos centrais, e então “a absorção das terras pelos latifúndios progrediu de modo
alarmante, acentuando a miséria alimentícia desta zona”12. Na década de 1950, a industrialização em auge incrementou o consumo de açúcar no Brasil. A produção nordestina
teve um grande impulso, porém sem o aumento de produtividade por hectare.
Incorporam-se novas terras, de qualidade inferior, aos canaviais, e o açúcar novamente
devorou as poucas áreas dedicadas à produção de alimentos. Convertido em assalariado,
o camponês que antes cultivava sua pequena parcela não melhorou com a nova situação,
pois não ganha o suficiente para comprar os alimentos que antes produzia13. Como de
costume, a expansão expandiu a fome.
EM MARCHA LENTA NAS ILHAS DO CARIBE
As Antilhas eram as Sugar Lands, as ilhas do açúcar: sucessivamente incorporadas
ao mercado mundial como produtoras de açúcar, ao açúcar Ficaram condenadas, até
nossos dias, Barbados as ilhas de Sotavento, Trinidad Tobago, Guadalupe, Porto Rico e
República Dominicana. Prisioneiras da monocultura da cana nos latifúndios de vastas
terras exaustas, as ilhas sofrem o desemprego e a pobreza: o açúcar é cultivado em grande
escala e em grande escala irradia suas maldições. Também Cuba continua dependendo,
em medida determinante, de suas vendas de açúcar, mas a partir da reforma agrária de
1959, iniciou-se um intenso processo de diversificação da economia da ilha, o que colocou
um ponto final no desemprego: os cubanos não trabalham apenas cinco meses no ano,
durante as safras, mas sim doze, ao longo da interrompida e decerto difícil construção de
uma nova sociedade.
“Pensareis talvez, senhores - dizia Karl Marx em 1848 -, que a produção de café e
açúcar é o destino natural das índias Ocidentais. Há dois séculos, a natureza, que pouco
tem a ver com o comércio, não tinha plantado ali nem a árvore do café nem a cana-deaçúcar.”14 A divisão internacional do trabalho não se foi estruturando por obra e graça do
Espírito Santo, senão por obra dos homens ou, mais precisamente, por causa do desenvolvimento internacional do capitalismo.
Na realidade, Barbados foi a primeira ilha do Caribe onde se cultivou o açúcar para a
exportação em grandes quantidades, desde 1641, embora anteriormente os espanhóis
tenham plantado cana na Ilha Dominicana e em Cuba. Foram os holandeses, como vimos,
que introduziram as plantações na minúscula ilha britânica; em 1666, já havia em Barbados
800 plantações de açúcar e mais de 800 mil escravos. Vertical e horizontalmente ocupada
pelo latifúndio nascente, Barbados não teve melhor sorte do que o Nordeste do Brasil.
Antes, a ilha desfrutava da policultura; produzia, em pequenas propriedades, algodão e
tabaco, laranjas, vacas e porcos. Os canaviais devoraram as culturas agrícolas e devastaram
as densas matas em nome do efêmero apogeu. Rapidamente, a ilha descobriu que seus
solos haviam-se esgotado, que não tinha como alimentar sua população e que estava
produzindo açúcar a preços fora de concorrência15.
O açúcar propagou-se a outras ilhas, em direção ao arquipélago de Sotavento, rumo
à Jamaica e, em terras continentais, às Guianas. No começo do século XVIII, os escravos
12. Josué de Castro, op. cit.
13. Celso Furtado, Dialética do desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1964.
14. Karl Marx, Discurso sobre el libre cambio, em Miseria de la filosofla, Moscou, s.d.
15. Vincent T. Harlow, A History of Barbados, Oxford, 1926.
46
eram, na Jamaica, dez vezes mais numerosos do que os colonos brancos. Também seu solo
cansou-se em pouco tempo. Na segunda metade do século, o melhor açúcar do mundo
brotava do solo esponjoso das planuras da costa do Haiti, um colônia francesa que nessa
época se chamava Saint Domingue. Ao norte e a oeste, Haiti converteu-se em sorvedouro
de escravos: o açúcar exigia cada vez mais braços. Em 1786, chegaram à colônia 27 mil
escravos, e no ano seguinte 40 mil. No outono de 1791, explodiu a revolução. Num só mês,
setembro, duzentas plantações de cana foram tomadas pelas chamas; os incêndios e os
combates sucederam-se sem trégua à medida que os escravos insurretos iam empurrando
os exércitos franceses até o oceano. Os barcos zarparam carregando cada vez mais franceses e cada vez menos açúcar. A guerra derramou rios de sangue e devastou as plantações.
Foi longa. O país, em cinzas, ficou paralisado; em fins do século a produção caiu verticalmente. “Em novembro de 1803 quase toda a colônia antigamente florescente, era um
grande cemitério de cinzas e escombros”, diz Lepkowski16. A revolução haitiana tinha
coincidido, e não só no tempo, com a revolução francesa, e Haiti sofreu também, na
própria carne, o bloqueio contra a França da coalizão internacional: a Inglaterra dominava
os mares. Porém logo sofreu, à medida que sua independência ia-se fazendo inevitável, o
bloqueio da França. Cedendo à pressão francesa, o Congresso dos Estados Unidos proibiu
o comércio com Haiti, em 1806. Logo em 1825, a França reconheceu a independência de
sua antiga colônia, mas em troca de uma gigantesca indenização em dinheiro. Em 1802,
pouco depois de Toussaint-Louverture caudilho dos exércitos escravos ser preso, o general
Leclerc escreveu a seu cunhado Napoleão: “Eis minha opinião sobre o país: há que suprimir todos os negros das montanhas, homens e mulheres, conservando-se somente as
crianças menores de doze anos, exterminar a metade dos negros nas planícies e não deixar
na colônia nem um só negro que use jarreteiras”17. O trópico vingou-se de Leclerc, pois
morreu “agarrado pelo vômito negro” apesar das esconjurações mágicas de Paulina
Bonapart18 sem poder cumprir seu plano, porém a indenização em dinheiro tornou-se
uma pedra esmagadora sobre as cosas dos haitianos independentes que haviam sobrevivido aos banhos de sangue das sucessivas expedições militares enviadas contra eles. O
país nasceu em ruínas e não se recuperou jamais: hoje é o mais pobre da América Latina.
A crise do Haiti provocou o auge açucareiro de Cuba, que rapidamente converteu-se
na primeira supridora do mundo. Também a produção cubana de café, outro artigo de
intensa demanda no ultramar, recebeu seu impulso da queda de produção haitiana,
porém, o açúcar ganhou a corrida da monocultura: em 1862 Cuba viu-se obrigada a importar café do estrangeiro. Um membro direto da “sacarocracia” cubana chegou a escrever
sobre as “profundas vantagens que se podem tirar da desgraça alheia”19. À rebelião haitiana sucederam os preços mais fabulosos da história do açúcar no mercado europeu, e em
1806 Cuba já tinha duplicado, ao mesmo tempo, os engenhos e a produtividade.
CASTELOS DE AÇÚCAR SOBRE OS SOLOS QUEIMADOS DE CUBA
Os ingleses haviam-se apoderado fugazmente de Havana em 1762. Nesta época, as
pequenas plantações de tabaco e a pecuária eram as bases da economia rural da ilha;
Havana, praça forte militar, mostrava um considerável desenvolvimento nos artesanatos,
16. Tadeusz Lepkowski, Haiti, tomo I, La Habana, 1968.
17. Ibid.
18. Há um romance esplêndido de Alejo Carpetier, O reino deste mundo, sobre este alucinante
período da vida do Haiti. Contém uma recriação perfeita das andanças de Paulina e seu marido
pelo Caribe.
19. Manuel Moreno Fraginals, El ingenio, Havana, 1964.
47
contava com uma importante fundição que fabricava canhões e dispunha do primeiro
estaleiro da América Latina, para construir navios mercantes e navios de guerra em grande
escala. Bastaram onze meses para que os ocupantes britânicos introduzissem uma quantidade de escravos que normalmente teria entrado em quinze anos; a partir desta época, a
economia cubana foi moldada pelas necessidades estrangeiras de açúcar: os escravos
produziam a cobiçada mercadoria com destino ao mercado mundial, e sua suculenta
mais-valia seria desde então desfrutada pela oligarquia local e pelos interesses imperialistas.
Moreno Fraginals descreve, com dados eloqüentes, o auge violento do açúcar nos
anos seguintes à ocupação britânica. O monopólio comercial espanhol explodira, de fato,
em pedaços; havia-se desfeito, além disso, os freios à entrada de escravos. O engenho
absorvia tudo, homens e terras. Os operários do estaleiro e da fundição e os inumeráveis
pequenos artesãos, cuja colaboração tornara-se fundamental para o desenvolvimento das
indústrias, rumavam para o engenho; os pequenos camponeses que cultivavam tabaco
nas terras baixas e planas ou frutas nos pomares, vítimas do bestial arrasamento das terras
pelos canaviais, incorporaram-se também à produção do açúcar. A plantação extensiva ia
reduzindo a fertilidade dos solos; multiplicavam-se nos campos cubanos as torres dos
engenhos e cada engenho requeria cada vez mais terras. O fogo devorava as plantações de
fumo e bosques, e arrasava as pastagens. Em 1792, o charque, que poucos anos antes era
um artigo cubano de exportação, chegava em grandes quantidades do estrangeiro, e Cuba
continuará importando-o sempre20 . Enfraqueciam o estaleiro e a fundição, caía verticalmente a produção do tabaco; a jornada de trabalho dos escravos do açúcar estendia-se a
vinte horas. Sobre as terras fumegantes consolidava-se o poder da “sacarocracia”. Em fins
do século XVIII, a euforia da cotação internacional nas nuvens, a especulação voava: os
preços da terra se multiplicavam por vinte em Güines; em Havana, o juro real do dinheiro
era oito vezes mais alto do que o legal; em toda Cuba a tarifa dos batismos, dos enterros e
das missas subia em proporção à desatada carestia dos negros e dos bois.
Os cronistas de outros tempos diziam que se podia percorrer Cuba, em toda extensão, à sombra de palmeiras gigantescas e das matas frondosas, nas quais abundavam a
caioba e o cedro, o ébano e dagames. Pode-se contudo admirar as madeiras preciosas de
Cuba nas mesas e nas janelas de El Escorial ou nas portas do palácio real de Madri, mas a
invasão da cana fez arder, em Cuba, com vários incêndios sucessivos, as melhores matas
virgens que antes cobriam o solo. Nos mesmos anos que arrasava sua própria floresta,
Cuba convertia-se na principal compradora de madeira dos Estados Unidos. A cultura
extensiva da cana, cultura de rapina, não só implicou a morte da mata mas também, a
longo prazo, “a morte da fabulosa fertilidade da ilha”21. As matas eram entregues às
20. Já se tinham irrompidos os salgadouros no rio da Prata. A Argentina e o Uruguai, que por esta
época não existiam separadamente nem se chamavam assim, haviam adaptado suas economias
à exportação em grande escala de carne seca e salgada, couros, banhas e sebos. O Brasil e Cuba,
os dois grandes centros escravistas do século XIX, foram excelentes mercados para o charque,
um alimento muito barato, de fácil transporte e não menos fácil armazenamento, pois não se
descompunha no calor do trópico. Os cubanos ainda chamam de "montevidéu" ao charque,
porém o Uruguai deixou de vendê-lo em 1965, somando-se assim ao bloqueio disposto pela OEA
contra Cuba. Desta maneira o Uruguai perdeu, estupidamente, o último mercado que restava para
este produto. Tinha sido Cuba, em fins do século XVIII, o primeiro mercado que se abriu à carne
uruguaia, embarcada em finas mantas secas. José Pedro Barrári e Benjamín Nahum, Historia
rural do Uruguai moderno (1851-1885), Montevidéu, 1967.
21. Manuel Moreno Fraginais, op. cit. Até pouco tempo atrás, navegavam pelo rio Sagua os
palanqueros. "Levam uma longa vara com uma ponta de ferro. Com ela vão ferindo o leito do rio
até que cravam uma madeira... Assim, dia a dia, extraem do fundo do rio os restos das árvores que
o açúcar cortara. Vivem dos cadáveres do bosque."
48
chamas, e a erosão não demorava a correr seus solos indefesos; milhares de riachos secaram. Atualmente, o rendimento por hectares das plantações açucareiras de Cuba é inferior
em mais de três vezes ao do Havaí22. A irrigação e a fertilização da terra constituem as
tarefas prioritárias para a Revolução Cubana. Estão se multiplicando as bombas hidráulicas, grandes e pequenas, enquanto se canalizam os campos e se disseminam, sobre as
castigadas terras, os adubos.
A “sacarocracia” iluminou sua enganosa fortuna enquanto selava a dependência de
Cuba, uma feitoria distinta cuja economia ficou doente de diabetes. Entre os que devastaram as terras mais férteis por meios brutais, havia personagens de refinada cultura européia, que sabiam reconhecer um Brueghel autêntico e podiam comprá-lo; de suas freqüentes viagens a Paris traziam vasos etruscos e ânforas gregas, gobelins franceses e
biombos Ming, paisagens e retratos dos mais cotados artistas britânicos. Surpreendeu-me
descobrir, na cozinha de uma mansão de Havana, uma gigantesca caixa forte, com uma
combinação secreta, que uma condessa usava para guardar sua louça. Até 1959, não se
construíam fábricas, mas castelos de açúcar: o açúcar punha e depunha ditadores, proporcionava ou negava trabalho aos operários, decidia o ritmo das danças dos milhões e as
terríveis crises.
A cidade de Trinidad é, hoje, um cadáver resplandescente. Em meados do século
XIX, havia em Trinidad mais de quarenta engenhos, que produziam 700 mil arrobas de
açúcar. Os camponeses pobres que cultivavam tabaco foram deslocados pela violência, e a
zona, que também tinha sido de pecuária, e que antes exportava carne, comia carne
trazida de fora. Brotaram palácios coloniais, com seus portais de sombra cúmplice, seus
aposentos de altos tetos, candelabros com chuvas de cristais, tapetes persas, um silêncio
de tecido espesso e no ar as ondas do minueto, os espelhos nos salões para devolver a
imagem dos cavalheiros de peruca e sapatos com fivela. Aí está, agora, o testemunho dos
grandes esqueletos de mármore ou pedra, a soberba dos sinos mudos, as caleches invadidas pelo capim. Chamam agora Trinidad de “a cidade dos teve”, porque seus sobreviventes
brancos sempre falam de algum antepassado branco que teve o poder e a glória. Porém veio
a crise de 1857, caíram os preços do açúcar e a cidade caiu com eles, para não se levantar
nunca mais23.
Um século depois, quando os guerrilheiros da Sierra Maestra conquistaram o poder,
Cuba continuava com seu destino amarrado à cotação do açúcar.“O povo que confia a sua
subsistência a um só produto, se suicida”, havia profetizado o herói nacional, José Martí.
Em 1920, com o açúcar a 22 centavos a libra, Cuba bateu o recorde mundial de exportações
por habitante, superando inclusive a Inglaterra, e teve a maior renda per capita da América Latina. Porém, neste mesmo ano, em dezembro, o preço do açúcar caiu a quatro
centavos, e em 1921 desfechou-se o furacão da crise: numerosas centrais açucareiras
faliram, e foram adquiridas por interesses norte-americanos, e todos os bancos cubanos ou
espanhóis, incluindo o próprio Banco Nacional. Só sobreviveram as sucursais dos bancos
dos Estados Unidos24. Uma economia tão dependente e vulnerável como a de Cuba não
podia escapar, posteriormente, ao impacto feroz da crise de 1929 nos Estados Unidos: o
preço do açúcar chegou a baixar a menos de um centavo de dólar em 1932, e em três anos
as exportações reduziram-se, em valor, à quarta parte. O índice de desemprego de Cuba
22. Celso Furtado, La economia Latinoamericana desde la conquista ibérica hasta la Revolución
Cubana, Santiago do Chile, 1969, México, 1969.
23. Moreno FraginaIs observou, agudamente, que os nomes dos engenhos nascidos no século
XIX refletiam as altas eas baixas da curva açucareira: Esperanca, Atrevido, Casualidade; Aspirante,
Conquista, Confiança, O Bom Sucesso; Pressa, Angústia, Desengano. Havia quatro engenhos
chamados, premonitoriamente, Desengano.
24. Renê Dumont, Cuba (intento de crítica constructiva), Barcelona, 1965.
49
nesse tempo “dificilmente se igualou a qualquer país”25. O desastre de 1921 fora provocado pela queda do preço do açúcar no mercado dos Estados Unidos, e dos Estados Unidos
não demorou a chegar um crédito de 50 milhões de dólares: nas ancas do crédito, chegou
também o general Crowder; sob pretexto de controlar a utilização dos fundos, Crowder
governaria, de fato, o país. Graças a seus bons ofícios, a ditadura Machado chega ao poder
em 1924; com Cuba, paralisada pela greve geral, a grande depressão dos anos trinta leva
adiante este regime de sangue e fogo.
O que ocorria com os preços, repetia-se com os volumes das exportações. Desde
1948, Cuba recuperou sua quota para cobrir a terça parte do mercado norte-americano de
açúcar, a preços inferiores aos que recebiam os produtores dos Estados Unidos, porém
mais altos e mais estáveis do que os do mercado internacional. Já anteriormente os Estados Unidos haviam retirado as taxações das importações de açúcar cubano em troca de
privilégios similares, concedidos à entrada de artigos norte-americanos em Cuba. Todos
estes favores consolidaram a dependência. “O povo que compra manda, o povo que
vende serve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade; o povo que quer
morrer vende a um só povo, e o que quer salvar-se vende a mais de um”, havia dito Martí
e repetiu Che Guevara na conferência da OEA, em Punta del Este, em 1961. A produção
era arbitrariamente limitada pelas necessidades de Washington. O nível de 1925, uns
cincos milhões de toneladas, continuava sendo a média dos anos cinqüenta: o ditador
Fulgencio Batista assaltou o poder, em 1952, montado na maior safra até então conhecida,
mais de sete milhões de toneladas, com a missão de apertar as cravelhas, e no ano
seguinte, obediente à demanda do norte, a produção caiu para quatro26.
A REVOLUÇÃO ANTE A ESTRUTURA DA IMPOTÊNCIA
A proximidade geográfica e o surgimento do açúcar de beterraba, aparecido durante
as guerras napoleônicas, nos campos da França e Alemanha, converteram os Estados
Unidos em principal cliente das Antilhas. Já em 1850, os Estados Unidos dominavam a
terça parte do comércio de Cuba, vendiam e compravam mais do que Espanha, embora a
ilha fosse uma colônia espanhola, e a bandeira das listras e estrelas ondulava nos mastros
da metade dos navios que ali chegavam. Um viajante espanhol encontrou por volta de
1859, no interior, em remotas aldeias cubanas, máquinas de costurar fabricadas nos Estados Unidos27. As principais ruas de Havana foram calçadas com blocos de granito de
Boston.
Quando despontava o século XX, se lia no Louisiana Planter: Pouco a pouco, a ilha de
Cuba vai passando para mãos de cidadãos norte-americanos, o que é o meio mais simples
e seguro de conseguir a anexação aos Estados Unidos.” No Senado norte-americano, se
falava já de uma nova estrela na bandeira; derrotada a Espanha, o general Leonard Wood
governava a ilha. Ao mesmo tempo, passavam às mãos norte-americanas as Filipinas e
Porto Rico28. “Outorgaram-nos pela guerra - dizia o presidente Mckinley incluindo Cuba -,
25. Celso Furtado, La economia latinoamericana..., op. cit.
26. O diretor do programa de açúcar no Ministério de Agricultura dos Estados Unidos declarou
tempos depois da Revolução: "Desde que Cuba saiu de cena, nós não contamos com a proteção
deste país, o maior exportador mundial, já que dispunha sempre de reservas para atender, quando
era preciso, nosso mercado." Enrique Ruiz García, América Latina: anatomia de una revolución,
Madri, 1966.
27. Leland H. Jenks, Nuestra colonia de Cuba, Buenos Aires, 1960.
28. Porto Rico, outra feitoria açucareira, caiu prisioneiro. Do ponto de vista norte-americano, os
porto-riquenhos não são suficientemente bons para viverem numa pátria própria, mas em
50
e com a ajuda de Deus e em nome do progresso da humanidade e da civilização, é nosso
dever responder a esta grande confiança.” Em 1902, Tomás Estrada Palma teve de renunciar à cidadania norte-americana que havia adotado no exílio: as tropas norte-americanas
de ocupação o converteram no primeiro presidente de Cuba. Em 1960, o embaixador
norte-americano em Cuba, Earl Smith, declara diante de uma subcomissão do Senado:
“Até a chegada de Castro ao poder, os Estados Unidos tinham em Cuba uma influência de
tal maneira irresistível que o embaixador norte-americano era a segunda personalidade do
país, e às vezes ainda mais importante do que o presidente cubano.”
Quando caiu Batista, Cuba vendia quase todo seu açúcar nos Estados Unidos. Cinco
anos antes, um jovem advogado havia profetizado corretamente, ante aqueles que o
julgavam pelo assalto ao quartel Moncada, que a história o absolveria: havia dito em sua
vibrante defesa: “Cuba continua sendo uma feitoria de matéria-prima. Exporta-se açúcar
para importar caramelos...”29 Cuba comprava nos Estados Unidos não só automóveis e
máquinas, produtos químicos, papel e roupa, mas também arroz e feijão, alhos e cebolas,
banha, carne e algodão. Vinham sorvetes de Miami, pães de Atlanta e até jantares de luxo
de Paris. O país do açúcar importava cerca da metade das frutas e verduras que consumia,
embora só a terça parte de sua população ativa tivesse trabalho permanente, e a metade
das terras das centrais açucareiras fossem extensões baldias onde as empresas não produziam nada30. Treze engenhos norte-americanos dispunham de mais de 47% da área
açucareira total e ganhavam por volta de 180 milhões de dólares em cada safra. A riqueza
do subsolo - níquel, ferro, cobre, manganês, cromo, tungstênio - formava parte das reservas estratégicas dos Estados Unidos, cujas empresas apenas exploravam os minerais de
acordo com as variáveis exigências do exército e da indústria do norte. Havia em Cuba, em
1958, mais prostitutas registradas do que operários mineiros31. Um milhão e meio de
cubanos sofria o desemprego total ou parcial, segundo as investigações de Seuret y Pino
que cita Nuñez Jiménez.
A economia do país movia-se ao ritmo das safras. O poder de compra das exportações cubanas entre 1952 e 1956 não superava o nível de 30 anos atrás32, embora as necessidades de divisas fossem muito maiores. Nos anos 30, quando a crise consolidou a dependência da economia cubana em lugar de contribuir para rompê-la, havia-se chegado ao
compensação são bons para morrerem na frente do Vietnã, em nome de uma pátria que não é
deles. Num cálculo proporcional à população, o "Estado livre associado" de Porto Rico tem mais
soldados que lutaram no sudeste asiático do que os restantes dos Estados Unidos. Aos portoriquenhos que resistem ao serviço militar obrigatório no Vietnã se agregam outras humilhações
herdadas da invasão de 1898, além de cinco anos de prisão nos cárceres de Atlanta, e esta
humilhações são benzidas por lei (por lei do Congresso dos Esta-dos Unidos). Porto Rico conta
com uma representação simbólica no Congresso norte-americano, sem voto e praticamente sem
voz. Em troca deste direito, um estatuto colonial: Porto Rico tinha, até a ocupação norteamericana, uma moeda própria e mantinha um comércio próspero com os principais mercados.
Hoje, a moeda é dólar e as taxas alfandegárias são fixadas em Washington, que decide tudo sobre
o comércio exterior e interno da ilha. O mesmo ocorre com as relações exteriores, com os
transportes, com as comunicações, com os salários e com as condições de trabalho. É a Suprema
Corte dos Estados Unidos a que julga os porto-riquenhos; o exército local integra o exército do
norte. A indústria e o comércio estão em mãos dos interesses privados norte-americanos. A
desnacionalização quis se fazer absoluta pela via da emigração: a miséria empurrou a mais de um
milhão de porto-riquenhos a buscarem melhor sorte em Nova Iorque, ao preço da perda de sua
identidade nacional. Ali, formam um subproletariado que se aglomera nos bairros mais sórdidos.
29. Fidel Castro, La Revolución cubana (discursos), Buenos Aires, 1959.
30. A. Nuñez Jiménez, Geografia de Cuba, Havana, 1959.
31. René Dumont, op. cit.
32. Dudley Scees, Andrés Bianchi, Richard Jolly e Max Nolff, Cuba, the Economic and Social
Revolution, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1964.
51
cúmulo de desmontar fábricas recém instaladas para vendê-las a outros países. Quando a
Revolução triunfou, no primeiro dia de 1959, o desenvolvimento industrial de Cuba era
muito pobre e lento, mais da metade da produção estava concentrada em Havana e as
poucas fábricas com tecnologia moderna eram teledirigidas dos Estados Unidos. Um
economista cubano, Regino Boti, co-autor das teses econômicas dos guerrilheiros da serra,
cita o exemplo de uma filial da Nestlé que produzia leite concentrado em Bayamo: “Em
caso de acidente, o técnico telefonava a Connecticut e observava que em seu setor alguma
coisa não funcionava. Recebia em seguida instruções sobre as medidas a tomar e as
executava mecanicamente... Se a operação falhasse, quatro horas mais tarde chegava um
avião transportando uma equipe de especialistas de alta qualificação que consertavam
tudo. Depois da nacionalização, já não se podia telefonar para pedir socorro e os raros
técnicos que poderiam reparar os defeitos secundários haviam partido”33. O testemunho
ilustra cabalmente as dificuldades que a Revolução encontrou desde que se lançou à
aventura de converter a colônia em pátria.
Cuba tinha as pernas cortadas pelo estatuto da dependência e não foi fácil andar por
conta própria. A metade das crianças cubanas não ia à escola em 1958, porém a ignorância
era, como denunciara Fidel Castro tantas vezes, muito mais vasta e muito mais grave do
que o analfabetismo. A grande campanha de 1961 mobilizou um exército de jovens voluntários para ensinar ler e escrever a todos os cubanos e os resultados assombraram o mundo: Cuba ostenta atualmente, segundo o Escritório Internacional de Educação da UNESCO,
a menor porcentagem de analfabetos é a maior porcentagem de população escolar, primária e secundária, da América Latina. Todavia, a herança maldita da ignorância não se
supera da noite para o dia - nem em 20 anos. A falta de quadros técnicos eficazes, a
incompetência da administração e da desorganização do aparato produtivo, o burocrático
temor à imaginação criadora e à liberdade de decisão, continuam interpondo obstáculos ao
desenvolvimento do socialismo. Mas apesar de todo o sistema de impotências, forjado
pelos quatro séculos e meio de história da opressão, Cuba está renascendo, com um
incessante entusiasmo: mede suas forças, alegria e desmesura, ante os obstáculos.
O AÇÚCAR ERA O PUNHAL E O IMPÉRIO O ASSASSINO
“Edificar sobre o açúcar é melhor do que edificar sobre a areia?”, perguntava-se
Jean-Paul Sartre em 1960, em Cuba.
No cais do porto de Guayabal, que exporta açúcar a granel, voam os alcatrazes sobre
um galpão gigantesco. Entro e contemplo, atônito, uma pirâmide dourada de açúcar.À
medida que as comportas se abrem, por baixo, para que as canaletas conduzam o carregamento, sem ensacar, até os navios, a rachadura do teto vai deixando cair novos jorros de
ouro, açúcar recém-transportado dos moinhos dos engenhos. A luz do sol filtra-se e lhes
arranca faíscas. Vale uns quatro milhões de dólares esta montanha macia que apalpo, e
meu olhar não dá para enquadrá-la inteira. Penso que aqui se resume todo o drama e
euforia da safra de 1970 que quis, mas não pôde, apesar do esforço sobre-humano, alcançar as dez milhões de toneladas. E uma história muito mais longa resvala, com o açúcar,
ante o olhar.Penso no reino da Francisco Sugar Co., a empresa de Allen Dulles, onde passei
uma semana escutando as histórias do passado e assistindo ao nascimento do futuro:
Josefina, filha de Claridad Rodríguez, que estuda numa sala onde seu pai foi preso e
torturado antes de morrer; Antonio Bastidas, o negro de setenta anos que uma madrugada deste ano pendurou-se com ambos os punhos na alavanca da sirena porque o engenho
33. K. S. Karol, Les guérrilleros au pouvoir, L'itinéraire politique de la révolution cubaine. Paris,
1970.
52
tinha ultrapassado a meta e gritava: “Caralho! Cumprimos, caralho!”, e não houve quem
tirasse a alavanca das mãos crispadas enquanto a sirena, que havia despertado o povoado,
estava despertando toda Cuba; histórias de expulsões, de subornos, de assassinatos, a
fome e os estranhos ofícios que o desemprego obrigava: caçador de grilos nas semeaduras,
por exemplo. Penso que a desgraça tinha o ventre inchado, agora se sabe. Não morreram
em vão os que morreram: Amancio Rodríguez, por exemplo, alvejado a tiros pelos
fura-greves numa assembléia, que havia rechaçado furioso um cheque em branco da
empresa e quando seus companheiros foram enterrá-lo descobriram que não tinha cuecas
nem meias para levar ao caixão; ou por exemplo Pedro Plaza, que aos vinte anos foi detido
e conduziu o caminhão dos soldados às minas que ele mesmo tinha semeado e voou com
o caminhão e os soldados. E tantos outros nesta localidade e nas demais: “Aqui as famílias
amam os mártires - disse-me um velho canavieiro -, mas depois de mortos. Antes eram
puras queixas.” Penso não ser casual que Fidel Castro recrutasse as três quartas partes de
seus guerrilheiros entre os camponeses, homens do açúcar, nem que a província do Oriente fosse, ao mesmo tempo, a maior fonte de açúcar e sublevações de toda a história de
Cuba. Explico-me o rancor acumulado: depois da grande safra de 1961, a Revolução optou
por vingar-se do açúcar. O açúcar era a memória viva da humilhação. Era também, o
açúcar, um destino? Converteu-se depois em penitência? Pode ser agora a alavanca, a
catapulta do desenvolvimento econômico? Sob a influência de uma justa impaciência, a
Revolução abateu numerosos canaviais e quis diversificar, num abrir e fechar de olhos, a
produção agrícola: não caiu no tradicional erro de dividir os latifúndios em minufúndios
improdutivos, porém cada fazenda socializada partiu de cara para culturas excessivamente variadas. Era preciso realizar importações em grande escala para industrializar o país,
aumentar a produtividade agrícola e satisfazer muitas necessidades de consumo que a
Revolução, ao redistribuir a riqueza, acrescentou enormemente. Sem as enormes grandes
safras de açúcar, de onde obter as divisas necessárias para essas importações? O desenvolvimento da mineração, sobretudo do níquel, exige grande inversões, que estão sendo
realizadas, e a produção pesqueira multiplicou-se por oito, graças ao crescimento da frota,
o que também exigiu inversões gigantes; os grandes planos de produção de cítricos estão
em execução, porém os anos que separam a semeadura da colheita exigem paciência. A
Revolução descobriu, então, que havia confundido o punhal com o assassino. O açúcar,
que tinha sido o fator de subdesenvolvimento, converteu-se num instrumento do desenvolvimento. Não houve mais remédio que utilizar os frutos da monocultura e a dependência, nascidos da incorporação de Cuba ao mercado mundial, para quebrar o espinhaço da
monocultura e da dependência.
Porque as rendas que o açúcar proporcionava já não são utilizadas para consolidar
uma estrutura da submissão34. As importações de maquinarias e de instalações industriais
cresceram em 40% desde 1958 excedente que o açúcar gera é mobilizado para desenvolver
as indústrias básicas e para que não fiquem ociosas as terras, nem os trabalhadores condenados ao desemprego. Quando caiu a ditadura de Batista, havia em Cuba cinco mil
tratores e 300 mil automóveis. Hoje há 50 mil tratores, embora boa parte seja desperdiçada
pelas graves deficiências de organização; daquela frota de automóveis, em sua maioria
34. O preço estável do açúcar, garantido pelos países socialistas, desempenhou um papel decisivo
neste sentido. Também a ruptura do bloqueio disposto pelos Estados Unidos, que se desfez
através do tráfico comercial com os países da Europa Ocidental. Um terço das exportações
cubanas proporciona dólares, ou seja, divisas conversíveis, para o país; o resto se aplica à troca
com a União Soviética e a zona do rublo. Este sistema de comércio implica também certas
dificuldades: as turbinas soviéticas para as centrais termelétricas são de excelente qualidade,
como todos os equipamentos pesados que a URSS produz, mas não acontece o mesmo com os
artigos de consumo da indústria leve ou média.
53
modelos de luxo, não sobram senão alguns exemplares dignos do museu da sucata. A
indústria de cimento e as usinas de eletricidade ganharam um assombroso impulso; as
grandes fábricas de fertilizantes criadas pela Revolução possibilitaram que hoje se utilizem
cinco vezes mais adubos do que 1958,35 e avançaram com botas de sete léguas as áreas de
irrigação. Novos caminhos, abertos por toda Cuba, quebraram a incomunicabilidade de
muitas regiões que pareciam condenadas ao isolamento eterno. Para aumentar a magra
produção de leite do gado zebu, trouxeram para Cuba touros da raça Holstein, com os
quais, mediante a inseminação artificial, fizeram nascer 800 mil vacas de cruza.
Grandes progressos foram realizados na mecanização do corte e levantamento da
cana, em boa medida com base em investigações cubanas, embora ainda sejam insuficientes. Um novo sistema de trabalho se organiza, com dificuldades, para ocupar o lugar do
velho sistema desorganizado pelas mudanças que a Revolução traz consigo. Os macheteros
profissionais, presidiários do açúcar, são em Cuba uma espécie extinta: também para eles
a Revolução implicou a liberdade de eleger outras profissões menos pesadas e, para seus
filhos, a possibilidade de estudar, através de bolsas, nas cidades. A redenção dos trabalhadores da cana provocou, em conseqüência - preço inevitável - severos transtornos para a
economia da ilha. Em 197O, Cuba teve de utilizar o triplo de trabalhadores para a safra, em
sua maioria voluntários, soldados ou trabalhadores de outros setores, ficando prejudicadas
as demais atividades do campo e da cidade: as colheitas de outros produtos, o ritmo de
trabalho nas fábricas. E é preciso levar em conta que, neste sentido, em uma sociedade
socialista, ao contrário da sociedade capitalista, os trabalhadores já não atuam tangidos
pelo medo ao desemprego nem pela cobiça. Outros motores - a solidariedade, a responsabilidade coletiva, a tomada de consciência dos deveres e direitos que colocam os homens
além do egoísmo - devem ser colocados em funcionamento. E não se muda a consciência
de um povo inteiro num instante. Quando a Revolução conquistou o poder, segundo Fidel
Castro, a maioria dos cubanos não era sequer antimperialista.
Os cubanos foram-se radicalizando junto com sua Revolução, na medida em que se
sucediam os desafios e as respostas, os golpes e os contragolpes entre Havana e Washington, e na medida em que a Revolução ia convertendo em fatos concretos suas promessas
de justiça social. Construíram-se 170 novos hospitais e outras tantas policlínicas, e a assistência médica tomou-se gratuita; multiplicou-se por três a quantidade de estudantes
matriculados em todos os níveis, e também a educação se fez gratuita; as bolsas de
estudos beneficiaram mais de 300 mil crianças e jovens, e multiplicaram-se os internatos
e creches infantis. Grande parte da população não paga aluguel e já são gratuitos os
serviços de água, luz, telefone, funerais e espetáculos esportivos. Os gastos em serviços
sociais cresce, em cinco vezes em poucos anos. Porém, agora que todos têm educação e
sapatos, as necessidades vão-se multiplicando geometricamente e a produção só pode
crescer aritmeticamente. A pressão do consumo, que é agora consumo de todos e não de
uns poucos, também obriga Cuba a um aumento rápido das exportações, e o açúcar
continua sendo a maior fonte de recursos.
Na verdade, a Revolução está vivendo tempos duros, difíceis, de transição e sacrifício. Os próprios cubanos acabaram de confirmar que o socialismo se constrói com os dentes
cerrados e que a Revolução não é nenhum passeio. Afinal, o futuro não seria desta terra, se
chegasse como um presente. Há escassez, é certo, de diversos produtos: em 1970, faltam
frutas e geladeiras, roupa; as filas, muito freqüentes, não só resultam da desorganização
da distribuição. A causa essencial da escassez é a nova abundância de consumidores: agora
o país pertence a todos. Trata-se, portanto, de uma escassez de sinal invertido a que
35. Informe de Cuba à XI Conferência Regional da FA O.Versão de Prensa Latina, 13 de outubro
de 1970.
54
padecem os demais países latino-americanos.
No mesmo sentido, operam os gastos com a defesa. A Revolução é obrigada a dormir
com os olhos abertos, e isto também custa, em termos econômicos, muito caro. Esta
Revolução acossada, que teve de suportar invasões e sabotagens sem trégua, não cai
porque - estranha ditadura! - defende-a o povo em armas. Os expropriadores expropriados não se conformam. Em abril de 1961, a brigada que desembarcou em Playa Girón não
estava formada somente pelos velhos militares e policiais de Batista, mas também pelos
donos de mais de 370 mil hectares de terra, quase dez mil imóveis, setenta fábricas, dez
centrais açucareiras, três bancos, cinco minas e doze cabarés. O ditador da Guatemala,
Miguel Ydígoras, cedeu campos de treinamento aos expedicionários em troca de promessas que os norte-americanos formularam, segundo ele mesmo confessou mais tarde:
dinheiro sonante e cantante, que nunca lhe pagaram, e um aumento da quota guatemalteca
de açúcar no mercado dos Estados Unidos.
Em 1965, outro país açucareiro, a República Dominicana, sofreu a invasão de uns
40 mil marines dispostos a permanecerem “indefinidamente neste país, em vista da
confusão reinante”, segundo declarou seu comandante, o general-Bruce Palmer. A queda
vertical dos preços do açúcar foi um dos fatores que fizeram explodir a indignação popular;
o povo levantou-se contra a ditadura militar e as tropas norte-americanas não demoraram
em restabelecer a ordem. Deixaram quatro mil mortos nos combates que os patriotas
sustentaram, corpo a corpo, entre rio Ozama e o Caribe, num bairro encurralado na cidade
de Santo Domingo36. A Organização dos Estados Americanos - que tem a memória da
mula, pois não esquece nunca onde come - benzeu a invasão e a estimulou com novas
forças. Era preciso matar o germe de outra Cuba.
GRAÇAS AO SACRIFÍCIO DOS ESCRAVOS NO CARIBE, NASCERAM A MÁQUINA DE JAMES WATT E OS
CANHÕES DE WASHINGTON
Che Guevara dizia que o subdesenvolvimento é um anão de cabeça enorme e
barriga inchada: suas pernas débeis e seus braços curtos não se harmonizam com o resto
do corpo. Havana resplandecia, zuniam os cadilaques por suas avenidas de luxo; no maior
cabaré do mundo, ao ritmo de Lecuona, ondulavam as vedetes mais lindas; enquanto isso,
no campo cubano, só um entre dez operários agrícolas bebia leite, apenas 4% consumia
carne e, segundo o Conselho Nacional de Economia, as três quartas partes dos trabalhadores rurais ganhavam salários que eram três ou quatro vezes inferiores ao custo de vida.
Porém, açúcar não só produziu anãos. Também produziu gigantes, ou pelo menos
contribuiu intensamente para o desenvolvimento de gigantes. O açúcar do trópico
latino-americano deu um grande impulso à acumulação de capitais para o desenvolvimento industrial da Inglaterra, França, Holanda e, também, dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que
36. Ellsworth Bunker, presidente da National Sugar Refining Co., foi o enviado especial de
Lyndon Johnson à ilha Dominicana depois da intervenção militar. Os interesses da National
Sugar neste pequeno país foram salvaguardados sob o olhar atento de Bunker: as tropas de
ocupação se retiraram para deixar no poder, ao fim de eleições muito democráticas, Joaquim
Balaguer, que fora o braço-direito de Trujillo ao longo da sua feroz ditadura. A população de São
Domingos havia lutado nas ruas e nos terraços com pedaços de pau, machetes e fuzis, contra os
tanques, basucas e helicópteros das forças estrangeiras, reivindicando a volta ao poder do presidente constitucionalmente eleito, Juan Bosch, derrubado por um golpe militar. A História,
burladora, joga com profecias. No dia em que Juan Bosch assumiu sua breve presidência, ao fim
de trinta anos de tirania de Trujillo, Lyndon Johnson, na época vice-presidente dos Estados
Unidos, levou a São Domingos o presente oficial de seu governo: uma ambulância.
55
mutilou a economia do Nordeste do Brasil e das ilhas do Caribe e selou a ruína histórica da África. O
comércio triangular Europa, África e América teve por viga mestra o tráfico de escravos com destino às
plantações de açúcar.“A história de um grão de açúcar é toda uma lição de economia, de
política e também de moral,” dizia Augusto Cochin.
As tribos da África Ocidental viviam lutando entre si, para aumentar, com prisioneiros de guerra, suas reservas de escravos. Pertenciam aos domínios coloniais de Portugal,
porém os portugueses não tinham naves nem artigos industriais para oferecer na época do
auge do tráfico de negros, e se converteram em meros intermediários entre capitães
negreiros e os régulos africanos. A Inglaterra foi, enquanto lhe era conveniente, a grande
campeã da compra e venda de carne humana. Os holandeses tinham, contudo, maior
tradição no negócio, porque Carlos V lhes havia presenteado o monopólio de transportes
de negros para a América, tempos antes de a Inglaterra obter o direito de introduzir
escravos em colônias alheias. Em relação à França, Luís XIV,oRei Sol, compartia com o rei
da Espanha a metade dos lucros da Companhia da Guiné, formada em 1701 para o tráfico
rumo à América, e seu ministro Colbert, artífice da industrialização francesa, tinha motivos
para afirmar que o comércio de negros “era recomendável para o progresso da marinha
mercante nacional”37.
Adam Smith dizia que o descobrimento da América tinha “elevado o sistema
mercantil a um grau de esplendor e glória, que de outro modo não seria alcançado jamais”.
Segundo Sergio Bagú, o mais formidável motor de acumulação do capital mercantil europeu foi a escravatura americana; por sua vez, esse capital tornou-se a “pedra fundamental
sobre a qual se construiu o gigantesco capital industrial dos tempos contemporâneos”38.A
ressurreição da escravatura greco-romana no Novo Mundo teve propriedades milagrosas:
multiplicou as naves, as fábricas, as ferrovias e os bancos de países que não estavam na
origem nem, com exceção dos Estados Unidos, no destino dos escravos que cruzavam o
Atlântico. Entre os albores do século XVI e a agonia do século XIX, vários milhões de
africanos, não se sabe quantos, atravessaram o oceano; sabe-se, sim, que foram muito
mais que os imigrantes brancos, provenientes da Europa, embora, está claro, muito menos
sobreviveram. Do Potomac ao rio da Prata, os escravos edificaram a casa de seus amos,
abriram as matas, cortaram e moeram cana-de-açúcar, plantaram algodão, cultivaram o
cacau, colheram o café e o tabaco, afogaram se nos socavãos mineiros. A quantas Hiroximas
eqüivaleram seus extermínios sucessivos? Como dizia um plantador inglês de Jamaica , “os negros, é mais fácil comprá-los do que criá-los”. Caio Prado Júnior calcula que até o
princípio do século XIX havia chegado ao Brasil entre cinco a seis milhões de africanos; por
esta época, Cuba já era um mercado de escravos tão grande como o havia sido, antes, todo
o hemisfério ocidental39.
Por volta de 1562, o capitão John Hawkins tinha arrancado 300 negros de contrabando da Guiné portuguesa. A rainha Elizabete ficou furiosa: “Esta aventura - sentenciou
- clama vingança do céu.” Porém, Hawkins contou-lhe que no Caribe havia obtido, em
troca dos escravos, um carregamento de açúcar e peles, pérolas e gengibre. A rainha
perdoou o pirata e converteu-se em sócia comercial dele. Um século depois, o duque de
York marcava a ferro quente suas iniciais, DY, sobre a nádega esquerda ou o peito dos três
mil negros que sua empresa conduzia anualmente para “as ilhas do açúcar”. A Real
Companhia Africana, entre cujos acionistas figurava o rei Carlos II, dava 300% de dividendos, apesar de que, dos 70 mil escravos que embarcaram entre 1680 e 1688, só 46 mil
sobrevivessem à travessia. Durante a viagem, numerosos africanos morriam vítimas de
37. L. Capitan e Henri Lorin, El trabajo en America, antes y después de Cólon, Buenos Aires,
1948.
38. Sergio Bagú, op. cit.
39. Daniel P. Mannix e M. Cowley, Historia de la trata de negros, Madri, 1962.
56
epidemias ou desnutrição, ou se suicidavam negando-se a comer, enforcando-se com suas
correntes ou lançando-se pela borda ao oceano eriçado por barbatanas de tubarões. Lenta,
porém firmemente, a Inglaterra ia quebrando a hegemonia holandesa no tráfico negreiro.
A South Sea Company foi a principal usufrutuária do “direito de asiento” concedido aos
ingleses pela Espanha, e nela estavam envolvidos os mais proeminentes personagens da
política e das finanças britânicas: o negócio, brilhante como nenhum outro, enlouqueceu a
bolsa de valores de Londres e deflagrou uma especulação legendária.
O transporte de escravos elevou Bristol, sede dos estaleiros, à categoria de segunda
cidade da Inglaterra, e converteu Liverpool no maior porto do mundo. Partiam os navios
com seus porões carregados de armas, tecidos e rum abençoados, quinquilharias e vidros
de cores, que seriam o meio de pagamento em troca da mercadoria humana da África. Os
ingleses impunham seu reinado sobre os mares. Em fins do século XVIII, África e o Caribe
davam trabalho a 180 mil operários têxteis em Manchester; de Sheffield vinham os punhais e de Birmingham, 150 mil mosquetões por ano40. Os caciques africanos recebiam as
mercadorias da indústria britânica e entregavam os carregamentos de escravos aos capitães negreiros. Dispunham, assim, de novas armas e abundante aguardente para empreender as próximas caçadas nas aldeias. Também proporcionavam marfins, ceras e azeite
de palmeira. Muitos dos escravos provinham da selva e nunca tinham visto o mar; confundiam os rugidos do oceano com os de alguns monstros submergidos que os esperavam
para devorá-los ou, segundo o testemunho de um traficante da época, acreditavam, e de
certo modo não se equivocavam, que “iam ser levados como carneiros ao matadouro,
sendo sua carne muito apreciada pelos europeus.”41 De muito pouco serviam os chicotes
de sete pontas para conter o desespero suicida dos africanos.
Os “fardos” que sobreviviam à fome, às doenças e ao amontoamento da travessia,
eram recebidos em farrapos, pura pele e ossos, na praça pública, depois de desfilarem
pelas ruas coloniais ao som das gaitas. Os que chegavam ao Caribe demasiado exaustos
podia-se engordá-los nos depósitos antes de exibi-los aos olhos dos compradores; os enfermos deixava-se morrer nos cais. Os escravos eram vendidos em troca de dinheiro em
espécie ou promissórias de três anos de prazo. Os barcos zarpavam de regresso a Liverpool
levando diversos produtos tropicais: em princípios do século XVIII, as três quartas partes
do algodão fiado pela indústria têxtil inglesa provinham das Antilhas, embora logo Georgia
e Louisiania se tornassem as principais fontes de abastecimento; em meados do século,
havia 120 refinarias de açúcar na Inglaterra.
Um inglês podia viver, naquela época, com seis libras por ano; os mercadores de
escravos de Liverpool somavam lucros anuais de mais de 1.100 mil libras, contando exclusivamente o dinheiro obtido no Caribe e sem agregar os benefícios do comércio adicional.
Dez grandes empresas controlavam um novo sistema de molhes; cada vez se construíam
mais navios, maiores e de maior calado. Os ourives ofereciam “brincos e colares de prata
para negros e cachorros”, as damas elegantes mostravam-se em público acompanhadas
de um macaco vestido de colete bordado e um menino escravo, com turbante e bombachas
de seda. Um economista escreveu por esta época: o comércio de escravos é “o princípio
básico e fundamental de todo o resto; como o principal impulso da máquina que põe em
movimento cada roda da engrenagem”. Os bancos se propagam em Liverpool e Manchester,
Bristol, Londres e Glasgow; a empresa de seguros Lloyd’s acumulava lucros segurando
escravos, navios e plantações. Desde muito cedo, os anúncios da London Gazette indicavam
que os escravos fugidos deviam ser devolvidos ao Lloyd’s. Com fundos do comércio negro
construiu-se a grande ferrovia inglesa do oeste e nasceram indústrias, como as fábricas de
louças de Gales. O capital acumulado no comércio triangular - manufaturas, escravos, açúcar 40. Eric Williams, Capitalism and slavery, Chapel Hill, Carolina do Norte, 1944.
41. Daniel P. Mannix e M. Cowley, op. cit.
57
tornou possível a invenção da máquina a vapor: James Watt foi subvencionado por mercadores
que haviam feito assim suas fortunas. Eric Williams afirma-o em sua documentada obra
sobre o tema.
Em princípios do século XIX, a Grã Bretanha converteu-se na principal
impulsionadora da campanha antiescravista. A indústria inglesa já necessitava de mercados internacionais com maior poder aquisitivo, o que obrigava a propagação do regime de
salários. Ademais, ao estabelecer-se o salário nas colônias inglesas do Caribe, o açúcar
brasileiro, produzido com mão-de-obra escrava, recuperava vantagens por seus baixos
custos comparativos42. A Armada britânica lançava-se ao assalto dos navios negreiros, mas
o tráfico continuava crescendo para abastecer Cuba e Brasil. Antes que os botes ingleses
chegassem aos navios piratas, os escravos eram lançados ao mar: dentro só se encontrava
o odor, as caldeiras quentes e um capitão que morria de rir. A repressão ao tráfico elevou os
preços e aumentou os lucros enormemente. Em meados do século, os traficantes entregavam um fuzil velho por cada escravo vigoroso arrancado da África, para logo vendê-lo por
mais de 600 dólares em Cuba.
As pequenas ilhas do Caribe foram infinitamente mais importantes, para Inglaterra,
do que suas colônias do norte. Em Barbados, Jamaica e Montserrat proibia-se o fabrico de
uma agulha ou uma ferradura por conta própria. Muito diferente era a situação da Nova
Inglaterra, e isto facilitou seu desenvolvimento econômico e, também, sua independência
política.
O tráfico de negros na Nova Inglaterra deu origem a grande parte do capital que
facilitou a Revolução industrial nos Estados Unidos da América. Em meados do século
XVIII, os barcos negreiros do norte levavam de Boston, Newport ou Providence barris
cheios de rum até a África; na África trocavam-nos por escravos; vendiam os escravos no
Caribe e dali traziam melaço a Massachusetts, onde se destilava e convertia, para completar o cicio, em rum. O melhor rum das Antilhas, o W est Indian Rum, não se fabricava nas
Antilhas. Com capitais obtidos deste tráfico de escravos, os irmãos Brown, de Providence, instalaram
o forno de fundição que produziu os canhões de George Washington na guerra da independência43.
As plantações açucareiras do Caribe, condenadas à monocultura de cana, não só podem
ser consideradas como o centro dinâmico do desenvolvimento das “treze colônias”, pelo
alento que o tráfico de escravos presenteou à indústria naval e às destilarias da Nova
Inglaterra. Também constituíram o grande mercado para o desenvolvimento das exportações de víveres, madeiras e implementos diversos com destino aos engenhos, com o que
deram viabilidade econômica à economia de granjas e precocemente manufatureira do
Atlântico Norte. Em grande escala, os navios fabricados por estaleiros dos colonos do norte
levavam ao Caribe peixes frescos e defumados, aveia e grãos, feijões, farinha, manteiga,
queijo, cebolas, cavalos e bois, velas e sabões, tecidos, travas de pinho, carvalho e cedro
para caixas de açúcar (Cuba contou com a primeira serra a vapor que chegou à América
hispânica, porém não tinha madeira que cortar), duelas, arcos, aros, argolas e cravos.
Assim, ia-se esvaindo o sangue por todos estes processos. Desenvolviam-se os países desenvolvidos de nossos dias; subdesenvolviam-se os subdesenvolvidos.
O ARCO-ÍRIS É A ROTA DO RETORNO À GUINÉ
Em 1518, o advogado Alonso Zuazo escrevia a Carlos V, da Dominicana: “É vão o
42. A primeira lei que proibiu expressamente a escravidão no Brasil não era brasileira. Era, e não
por casualidade, inglesa. O Parlamento britânico votou-a em 8 de agosto de 1845. Osny Duarte
Pereira, Quem faz as leis no Brasil?, Rio de Janeiro, 1963.
43. Daniel P. Mannix e M. Cowley, op. cit.
58
temor de que os negros possam sublevar-se; viuvas há nas ilhas de Portugal mui sossegadas com 800 escravos; tudo está em como são governados. Eu achei ao vir alguns negros
ladinos, outro fugidos para a montanha; açoitei uns, cortei as orelhas de outros; e já não
ocorre mais queixas.” Quatro anos depois, explodiu a primeira sublevação de escravos na
América: os escravos de Diego Colombo, filho do descobridor, foram os primeiros a se
levantarem e terminaram pendurados em forcas nos caminhos dos engenhos44.
Sucederam-se outras rebeliões em São Domingos e logo em todas as ilhas açucareiras do
Caribe. Uns dois séculos depois do sobressalto de Diego Colombo, em outro extremo da
mesma ilha, os escravos quilombolas fugiam para as regiões mais elevadas do Haiti e nas
montanhas reconstruíam a vida africana: as culturas, de alimentos, a adoração aos deuses,
os costumes. O arco-íris marca ainda, na atualidade, a rota de retorno à Guiné para o povo
de Haiti. Numa nave de vela branca... Na Guiana holandesa, através do rio Courantine,
sobrevivem há três séculos as comunidades djukas, descendentes de escravos que haviam
fugido pelas matas do Suriname. Nestas aldeias existem “santuários similares aos da
Guine, e cumprem-se danças e cerimônias que poderiam ser celebradas em Gana. Utiliza-se
a linguagem dos tambores, muito parecida com a dos tambores de Ashanti”45.
A primeira grande rebelião de escravos da Guiana ocorreu cem anos depois da fuga
dos djukas: os holandeses recuperaram as plantações e queimaram a fogo lento os líderes
dos escravos. Porém, tempos antes do êxodo dos djukas, os escravos quilombolas do Brasil
haviam organizado o reino negro de Palmares, no nordeste do Brasil, e vitoriosamente
resistiram, durante todo o século XVII, ao assédios das dezenas de expedições militares
que se lançaram para abatê-lo, uma atrás da outra, os holandeses e portugueses. As
investidas de milhares de soldados nada podiam contra as táticas guerrilheiras que tornaram invencível, até 1693, o vasto refúgio. O reino independente dos Palmares - convocatória
à rebelião, bandeira da liberdade - havia-se organizado como um Estado “à semelhança de
muitos que existiam na África no século VII”46. Estendia-se desde as vizinhanças do Cabo
de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a zona norte do rio São Francisco, em Alagoas:
equivalia à terça parte do território de Portugal e estava rodeado por espesso cerco de
selvas selvagens. O chefe máximo era eleito entre mais hábeis e sagazes: reinava o homem “de maior prestígio e felicidade na guerra ou no mando”47. Em plena época das
plantações açucareiras onipotentes, Palmares era o único lugar do Brasil onde se desenvolvia a policultura. Guiados pela experiência adquirida por eles mesmos ou por seus
antepassados nas savanas e nas selvas tropicais da África, os negros cultivavam o milho, a
batata, os feijões, a mandioca, as bananas e outros alimentos. Não é em vão que a destruição dos cultivos fosse o objetivo principal das tropas coloniais lançadas para recuperar os
homens que, depois da travessia do mar com correntes nos pés, haviam desertado das
plantações.
A abundância de alimentos de Palmares contrastava com as penúrias que, em plena
prosperidade, padeciam as zonas açucareiras do litoral. Os escravos que haviam conquistado a liberdade a defendiam com habilidade e coragem porque compartiam seus frutos:
a propriedade da terra era comunitária e não circulava o dinheiro no estado negro. “Não
figura na história universal nenhuma rebelião de escravos tão prolongada quanto a de
Palmares. A de Espartaco, que comoveu o sistema escravista mais importante da Antigüidade, durou 18 meses48. Para a batalha final, a Coroa portuguesa mobilizou o maior
44. Fernando Ortiz, op. cit.
45. Philip Reno, El drama de la Guyana británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por el
socialismo, Monthly Review, nº 17/18, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1965.
46. Edison Carneiro, O quilombo de Palmares, Rio de Janeiro, 1966.
47. Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, Rio de Janeiro, 1932.
48. Décio de Freitas, A guerra dos escravos, inédito.
59
exército conhecido até muito depois da independência do Brasil. Nada menos de dez mil
pessoas defenderam a última fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados,
lançados pelos precipícios ou vendidos aos mercadores do Rio ou de Buenos Aires. Dois
anos depois, o chefe Zumbi, a quem os escravos consideravam imortal, não pôde escapar
à traição. Encurralaram-no na selva e cortaram-lhe a cabeça. Porém as rebeliões continuaram. Não passaria muito tempo para que o capitão Bartolorneu Bueno do Prado
regressasse do rio das Mortes com seus troféus da vitória contra uma nova sublevação de
escravos. Trazia três mil e novecentos pares de orelhas nos alforjes dos cavalos.
Também em Cuba teriam lugar as sublevações. Alguns escravos suicidavam-se em
grupo; enganavam ao amo “com sua greve eterna e sua inacabável cisma pelo outro
mundo”, diz Fernando Ortiz. Acreditavam que assim ressuscitavam, carne e espírito, na
África. Os amos multilavam os cadáveres, para que ressuscitassem castrados, manetas ou
decapitados; deste modo conseguiram que muitos renunciassem à idéia de se matar.Lá
por 1870, segundo recente versão de um escravo que na juventude tinha fugido para as
montanhas de Las Villas, os negros já não se suicidavam em Cuba. Mediante um cinturão
mágico, “iam embora voando, voavam para o céu e escapavam para sua terra”, ou se
perdiam na serra porque “qualquer um se cansava de viver. Os que se acostumavam
tinham o espírito frouxo. A vida no morro era mais saudável”49.
Os deuses africanos continuavam vivos entre os escravos da América, como vivas
continuavam, alimentadas pela nostalgia, as lendas e os mitos das pátrias perdidas. Parece evidente que os negros expressavam assim, em suas cerimônias, em suas danças, em
seus conjuros, a necessidade de afirmação de uma identidade cultural que o cristianismo
negava. Mas também deve ter influído o fato de a Igreja estar materialmente associada ao
sistema de exploração que sofriam. No começo do século XVIII, enquanto nas ilhas inglesas os escravos acusados de crimes morriam esmagados entre os tambores dos trapiches
de açúcar, e nas colônias francesas eram queimados vivos ou submetidos ao suplício da
roda, o jesuíta Antonil formulava doces recomendações aos donos de engenhos no Brasil,
para evitar semelhantes excessos: “Aos administradores não se lhes deve consentir de
nenhuma maneira dar pontapés principalmente na barriga das mulheres que andam
grávidas nem pauladas nos escravos, porque na cólera não se medem os golpes e podem
ferir a cabeça de um escravo eficiente, que vale muito dinheiro, e perdê-lo”50. Em Cuba, os
capatazes descarregavam seus chicotes de couro ou cânhamo sobre as costas das escravas
grávidas que houvessem cometido qualquer falta, porém não sem antes deitá-las de boca
para baixo, com o ventre num pequeno buraco, para não estropiar a “peça”; os sacerdotes,
que recebiam como dizimo 5% da produção de açúcar, davam sua cristã absolvição: o
capataz castigava como Jesus Cristo aos pecadores. O missionário apostólico Juan Perpinã
y Pibernat publicava seus sermões aos negros. “Pobrezinhos! Não vos assusteis por muito
que sejam as penalidades que tenhais que sofrer como escravos. Escravo pode ser o vosso
corpo: porém tendes a alma para voar um dia à feliz mansão dos escolhidos”51.
O deus dos párias não é sempre o mesmo deus do sistema que os faz párias. Embora
a religião católica abarque, pela informação oficial, 94% da população do Brasil, na realidade a população negra conserva vivas suas tradições africanas e perpetuamente viva sua fé
49. Esteban Monteio tinha mais de um século de idade quando contou sua história a Miguel
Barnet (Biografia de um cimarrón, Buenos Aires, 1968, México, 1971).
50. Roberto C. Simonsen, História econômica do Brasil (1500-1820), São Paulo, 1962.
51. Manuel Moreno Fraginals, op. cit. Uma quinta-feira santa, o conde de casa Bayona decidiu
humilhar-se ante seus escravos. Inflamado de fervor cristão, Iavou os pés de doze negros e os
sentou para comer, com ele, em sua mesa. Foi a última ceia propriamente dita. No dia seguinte,
os escravos se sublevaram, e tocaram fogo no engenho. Suas cabeças foram cravadas sobre doze
lanças, no centro do pátio.
60
religiosa, freqüentemente camuflada por trás das figuras sagradas do cristianismo.52 Os
cultos de raiz africana encontram ampla projeção entre os oprimidos - qualquer que seja a
cor de sua pele. A mesma coisa ocorre nas Antilhas. As divindades do vodu do Haiti, do
bembé de Cuba e da umbamda e da quimbanda do Brasil são mais ou menos as mesmas,
apesar da maior ou menor transfiguração que sofreram, ao se nacionalizarem em terras da
América, os ritos e os deuses originais. No Caribe e na Bahia, entoam-se cânticos cerimoniais em nagô, yorubá, congo e outras línguas africanas. Nos subúrbios das grandes cidades do sul do Brasil, em compensação, predomina a língua portuguesa, porém nasceram
da costa do oeste africano as divindades do bem e do mal que atravessaram os séculos
para se transformarem nos fantasmas vingadores dos marginais, a pobre gente humilhada que clama nas favelas do Rio de Janeiro:
Força baiana,
força africana,
força divina,
vem cá.
Vem ajudá
A VENDA DE CAMPONESES
Em 1888, aboliu-se a escravidão no Brasil. Porém não se aboliu o latifúndio e neste
mesmo ano uma testemunha escrevia do Ceará: “O mercado de gado humano esteve
aberto enquanto durou a fome, pois compradores nunca faltaram. Raro era o vapor que
não conduzisse grande número de cearenses”53. Meio milhão de nordestinos emigraram
para a Amazônia, magnetizados pelas miragens da borracha, até o fim do século; desde
então, o êxodo continuou, ao impulso de periódicas secas que assolaram o sertão e das
sucessivas marés da expansão dos latifúndios açucareiros dá Zona da Mata. Em 1900, 40
mil vítimas da seca abandonaram o Ceará. Tomavam o caminho habitual por esta época:
a rota do norte rumo à selva. Depois, o itinerário mudou. Em nossos dias, os nordestinos
emigram rumo ao Centro e ao Sul do Brasil. A seca de 1970 lançou multidões famintas
sobre as cidades do Nordeste. Saquearam trens e lojas; aos berros imploravam chuva a São
José. Os flagelados lançaram-se na estrada. Um telegrama de abril de 1970 informa: “A
polícia do Estado de Pernambuco deteve no último domingo, no município de Belém do
São Francisco, 210 camponeses que iam ser vendidos aos proprietários rurais do Estado de
Minas Gerais a 18 dólares por cabeça54. Os camponeses eram provenientes da Paraíba e
Rio Grande do Norte, dos estados mais castigados pela seca. Em junho, os teletipos transmitem as declarações do chefe da Polícia Federal: seus serviços não dispõem ainda de
meios eficazes para pôr fim ao tráfico de escravos e, embora nos últimos meses tenham
sido iniciados dez processos de investigação, continua a venda de trabalhadores do Nordeste aos proprietários ricos de outras zonas do pais.
52. Eduardo Galeano, Los dioses e los diablos en las favelas de Rio, em Amaru, nº 10, Lima, junho
de 1969.
53. Rodolfo Teófilo, História da Seca do Ceará (1877-1880), Rio de Janeiro, 1922.
54. France Presse, 21 de abril de 1970. Em 1938, a peregrinação de um vaqueiro pelos calcinados
caminhos do sertão tinha dado origem a um dos melhores romances da história literária do
Brasil. O açoite da seca sobre os latifúndios de gado do interior, subordinados aos engenhos de
açúcar do litoral, não cessou e tampouco variou suas conseqüências. O mundo de Vidas Secas
continua intacto: o papagaio imitava o latido do cachorro, porque seus donos já quase não faziam
uso da voz humana. (Graciliano Ramos, Vidas secas, Havana, 1964)
61
O boom da borracha e o auge do café implicaram grandes levas de trabalhadores
nordestinos. Mas também o governo faz uso deste caudal de mão-de-obra barata, formidável exército de reserva para as grandes obras públicas. Do Nordeste vieram, transportados como gado, os homens nus que da noite para o dia levantaram a cidade de Brasília no
centro do deserto. Esta cidade, a mais moderna do mundo, está hoje cercada por um vasto
cinturão de miséria: terminado o trabalho, os candangos foram expulsos para as cidadessatélites e, sempre prontos para qualquer serviço, vivem dos desperdícios da
resplandescente capital.
O trabalho escravo dos nordestinos está abrindo, agora, a grande estrada
transamazônica, que cortará o Brasil em dois, penetrando a selva até a fronteira com a
Bolívia. O plano implica também um projeto de colonização agrária para ampliar “as
fronteiras da civilização”: cada camponês recebe dez hectares de superfície, se sobrevive às
febres da floresta tropical. No Nordeste há seis milhões de camponeses sem terras, enquanto que quinze mil pessoas são donas da metade da superfície total. A reforma agrária
não se realiza nas regiões já ocupadas, onde continua sendo sagrado o direito de propriedade dos latifundiários, mas em plena selva. Isto significa que os flagelados do Nordeste
abrirão caminho para a expansão do latifúndio sobre novas áreas. Sem capital, sem meios
de trabalho, que significam dez hectares a dois ou três mil quilômetros de distância dos
centros de consumo? Muito diferentes são, deduz-se, os propósitos reais do governo:
proporcionar mão-de-obra aos latifundiários norte-americanos, que compraram ou usurparam a metade das terras ao norte do rio Negro, e também à United States Steel Co., que
recebeu do governo as enormes jazidas de ferro e manganês da Amazônia.55
O CICLO DA BORRACHA: CARUSO INAUGURA UM TEATRO MONUMENTAL NO MEIO DA SELVA
Alguns autores calculam que pelo menos meio milhão de nordestinos sucumbiram
às epidemias, ao impaludismo, à tuberculose ou ao beribéri na época do auge da goma.
“Este sinistro ossário foi o preço da indústria da borracha.”56. Sem nenhuma reserva de
vitaminas, os camponeses das terras secas realizavam a longa viagem para a selva úmida.
Ali os aguardava, nos pantanosos seringais, a febre. Iam amontados nos porões dos barcos,
em tais condições que muitos sucumbiam antes de chegar; antecipavam, assim, o próximo destino. Outros nem sequer conseguiam embarcar. Em 1878, dos oitocentos mil habitantes do Ceará, 120 mil marchavam rumo ao rio Amazonas, porém menos da metade
pôde chegar; os restantes foram caindo, abatidos pela fome ou pela doença, nos caminhos
do sertão ou nos subúrbios de Fortaleza57. Um anos antes, havia começado uma das sete
maiores secas de quantas açoitaram o Nordeste durante o século passado.
Não só a febre; também aguardava, na selva, um regime de trabalho bastante parecido com a escravidão. O trabalho pagava-se em espécies - carne seca, farinha de mandioca, rapadura, aguardente - até que o seringueiro saldasse suas dívidas, milagre que raras
vezes ocorria. Havia um acordo entre os empresários para não dar trabalho aos operários
que tivessem dívidas pendentes; os guardas rurais, postados nas margens dos rios, disparavam contra os fugitivos. As dívidas somavam-se às dívidas. À dívida original, pelo transporte do trabalhador do Nordeste, se agregava a dívida pelos instrumentos de trabalhos,
55. Paulo Schilling, Un nuevo genocidio, em Marcha nº 1501, Montevidéu, 10 dejulho de 1970.
Em outubro de 1970, os bispos do Pará denunciaram ante o presidente do Brasil a exploração
brutal dos trabalhadores nordestinos por parte das empresas que estão construindo a rodovia
Transamazônica. O governo a denomina "obra do século".
56. Aurélio Pinheiro, A margem do Amazonas, São Paulo, 1937.
57. Rodolfo Teófilo, op. cit.
62
facão, faca, baldes, e como o trabalhador comia, e sobretudo bebia, quanto maior era a
antigüidade do operário maior se fazia a dívida por ele acumulada. Analfabetos, os nordestinos sofriam sem defesas os passes de prestidigitação da contabilidade dos administradores.
Priestly observou, por volta de 1770, que a borracha servia para apagar os traços do
lápis sobre o papel. Setenta anos depois, Charles Goodyear descobriu, ao mesmo tempo
que o inglês Hancock, o processo de vulcanização da borracha, que lhe dava flexibilidade e
o tornava inalterável às mudanças de temperatura. Já em 1850, revestiam-se de borracha
as rodas dos veículos. No fim do século, surgiu a indústria do automóvel nos Estados
Unidos e na Europa, e com ela nasceu o consumo de pneumáticos em grandes quantidades. A demanda mundial de borracha cresceu verticalmente. A seringueira proporcionava
ao Brasil, em 1890, uma décima parte de suas rendas por exportações; vinte anos depois,
a proporção subia a 40%, com as vendas quase alcançando o nível do café, apesar de o café
estar, por volta de 1910, no zênite de sua prosperidade. A maior parte da produção de
borracha provinha então do território do Acre, que o Brasil havia arrancado à Bolívia ao
cabo de fulminante campanha militar58.
Conquistado o Acre, o Brasil dispunha da quase totalidade das reservas mundiais de
borracha; a cotação internacional estava nos picos e os bons tempos pareciam infinitos;
mas os seringueiros não os desfrutavam, embora fossem eles que saíam a cada madrugada de suas choças, com vários recipientes amarrados às costas, e se enganchavam nas
árvores, as Hevea brasiliensis gigantescas, para sangrá-las. Faziam várias incisões, no tronco
e nos ramos grossos próximos à copa; da ferida brotava o látex, suco leitoso e pegajoso que
enchia os jarros em algumas horas. À noite, cozinhavam os discos planos da goma, que se
acumulariam na administração da propriedade. O cheiro ácido e repelente da borracha
impregnava a cidade de Manaus, capital mundial do comércio do produto. Em 1849,
Manaus tinha cinco mil habitantes; em pouco mais de meio século cresceu em setenta
mil. Os magnatas da borracha edificaram ali suas mansões de arquitetura extravagante e
decoração suntuosa, com madeiras preciosas do Oriente, azulejos de Portugal, colunas de
mármore de Carrara e móveis de ebanistas franceses. Os novos ricos da selva mandavam
trazer os alimentos mais caros do Rio de Janeiro; as melhores modistas da Europa cortavam seus trajes e vestidos; enviavam seus filhos para estudar em colégios ingleses. O
Teatro Amazonas, monumento barroco de bastante mau gosto, é o símbolo maior da
vertigem daquelas fortunas do princípio do século. O tenor Caruso cantou para os habitantes de Manaus na noite de inauguração, por uma soma fabulosa, depois de subir o rio
através da selva. Pavlova, que devia dançar, não pôde passar da cidade de Belém, porém
enviou suas desculpas.
Em 1913, de um só golpe, o desastre abateu-se sobre a borracha brasileira. O preço
mundial, que havia alcançado os doze xelins três anos antes, reduziu-se à quarta parte. Em
1900, o Oriente só havia exportado quatro toneladas de borracha; em 1914, as plantações
do Ceilão e da Malásia jogaram mais de setenta mil toneladas no mercado mundial, e
cinco anos mais tarde suas exportações já estavam arranhando as quatrocentos mil toneladas. Em 1919, o Brasil, que havia desfrutado o virtual monopólio da borracha, só abastecia a
oitava parte do consumo mundial. Meio século depois, o Brasil compra no estrangeiro mais da
metade da borracha de que necessita.
O que aconteceu? Lá por 1873, Henry Wickham, um inglês que possuía matas de
caucho no rio Tapajós e era conhecido por suas manias de botânico, tinha enviado desenhos e folhas da seringueira ao diretor do jardim de Kew, em Londres. Recebeu a ordem de
58. A Bolívia foi mutilada em quase duzentos mil quilômetros quadrados. Em 1902, recebeu uma
indenização de dois milhões de libras esterlinas e uma linha férrea que abriria o acesso aos rios
Madeira e Amazonas.
63
obter boa quantidade de sementes, as pepitas que a Hevea brasiliensis abrigava em seus
frutos amarelos. Tinha de tirá-las de contrabando, porque o Brasil castigava severamente
a evasão de sementes, e não era fácil: as autoridades revistavam, com muito cuidado, os
barcos. Então, como por encanto, um navio da Inman Line internou-se dois mil quilômetros além do habitual rumo ao interior do Brasil. No regresso, Henry Wickham estava entre
seus tripulantes. Tinha escolhido as melhores sementes, depois de pôr os frutos a secar
numa aldeia indígena, e as trazia dentro de um camarote fechado, enroladas em folhas de
banana e suspensas por cordas no ar para que os ratos a bordo não as alcançassem. Todo o
resto do barco ia vazio. Em Belém do Pará, frente à desembocadura do rio, Wickham
convidou as autoridades para um grande banquete. O inglês tinha fama de maníaco;
sabia-se em toda a Amazônica que colecionava orquídeas. Explicou que levava, por encomenda do rei da Inglaterra, uma série de mudas de orquídeas raras para o jardim de Kew.
Como eram plantas delicadíssimas, explicou, as tinha num gabinete hermeticamente
fechado, numa temperatura especial: se o abria, arruinavam-se as flores. Assim, as sementes chegaram, intactas, ao porto de Liverpool. Quarenta anos mais tarde, os ingleses
invadiam o mercado mundial com a borracha malaia. As plantações asiáticas, racionalmente organizadas a partir dos brotos verdes de Kew, desbancaram sem dificuldade a
produção extrativa do Brasil.
A prosperidade amazônica virou fumaça. A selva voltou a fechar-se sobre si mesma.
Os caçadores de fortunas emigraram para outras bandas; o luxuoso acampamento
desintegrou-se. Ficaram, sim, sobrevivendo como podiam, os trabalhadores, que tinha
sido trazidos de muito longe para serem postos a serviço da aventura alheia. Alheia,
inclusive, para o próprio Brasil, que não tinha feito outra coisa senão responder aos cantos
de sereia da demanda mundial de matéria-prima, mas sem participar na menor parcela
do verdadeiro negócio da borracha: o financiamento, a comercialização, a industrialização
e a distribuição. E a sereia ficou muda. Até que, durante a Segunda Guerra Mundial, a
borracha da Amazônica recobrou um novo impulso transitório. Os japoneses tinham ocupado a Malásia e as potências aliadas necessitavam desesperadamente abastecer-se de
borracha. Também a selva peruana foi sacudida, naqueles anos 40, pelas urgências da
borracha59. No Brasil, a chamada “batalha da borracha” mobilizou novamente os camponeses do Nordeste. Segundo denúncia formulada no Congresso, ao fim da batalha, foram
cinqüenta mil os mortos que, derrotados pelas pestes e fome, ficaram apodrecendo entre
os seringais.
OS PLANTADORES DE CACAU ACENDIAM CHARUTOS COM NOTAS DE QUINHENTOS MIL RÉIS
A Venezuela identificou-se com o cacau, planta originária da América, durante muito tempo. “Os venezuelanos, tínhamos sido feitos para vender cacau e distribuir, em nosso
solo, quinquilharias do exterior”, diz Rangel60. Os oligarcas do cacau, mais os agiotas e os
comerciantes, integravam “uma Santíssima Trindade do atraso”. Junto com o cacau,
formando parte de seu cortejo, coexistiam a pecuária nas planícies, o anil e o açúcar,o
59. No começo do século, as montanhas com matas de borracha também tinham oferecido ao
Peru as promessas de um novo Eldorado. Francisco García Calderón escrevia em El Peru contemporâneo, por volta de 1908, que a borracha era a grande riqueza do futuro. Em seu romance La
casa verde (Barcelona 1966), Mario Vargas Llosa reconstrói a atmosfera febril de Iquitos e na
selva, onde os aventureiros despojavam os índios e se despojavam entre si. A natureza se vingava:
dispunha da lepra e outras armas.
60. Domingo Alberto Rangel, El processo del capitalismo contemporâneo en Venezuela, Caracas,
1968.
64
tabaco e também algumas minas; porém Gran Cacao foi o nome com que o povo batizou,
acertadamente, a oligarquia escravagista de Caracas. À custa do trabalho dos negros, esta
oligarquia enriqueceu-se abastecendo de cacau a oligarquia mineira do México e a metrópole espanhola. Em 1873, inaugurou-se na Venezuela uma idade do café; o café exigia,
como o cacau, terras de vertentes ou vales cálidos. Apesar da irrupção do intruso, o cacau
continuou, de todos os modos, sua expansão, invadindo os solos úmidos de Carúpano. A
Venezuela continuou sendo agrícola, condenada ao calvário das quedas cíclicas dos preços
do café e do cacau; ambos produtos sortiam os capitais que tornavam possível a vida
parasitária, o puro desperdício de seus donos, seus mercadores e seus usureiros. Até que,
em 1922, o país converteu-se de súbito num manancial de petróleo. A partir de então, o
petróleo dominou a vida do país. O ouro negro vinha dar razão, com quatro séculos de
atraso, às fantasias dos conquistadores espanhóis: procurando sem sorte o rei que se
banhava em ouro, eles chegaram à loucura de confundir uma aldeazinha de Maracaibo
com Veneza e a fétida costa de Pariá com o paraíso terrestre61.
Nas últimas décadas do século XIX, iniciou-se a glutonaria dos europeus e dos
norte-americanos ao chocolate. O progresso da indústria deu um grande impulso às plantações de cacau do Brasil e estimulou a produção das velhas plantações da Venezuela e do
Equador. No Brasil, o cacau fez seu ingresso impetuoso no cenário econômico ao mesmo
tempo que a borracha e, como a borracha, deu trabalho aos camponeses do Nordeste. A
cidade de Salvador, na Bahia de Todos os Santos, tinha sido uma das mais importantes
cidades da América, como capital do Brasil e do açúcar, e ressuscitou então como capital do
cacau. Ao sul da Bahia, desde o Recôncavo até o Estado do Espírito Santo, entre as terras
baixas do litoral e a cadeia montanhosa da costa, os latifúndios continuam proporcionando,
em nossos dias, a matéria-prima de boa parte do chocolate que se consome no mundo.
Como a cana-de-açúcar, o cacau trouxe consigo a monocultura e a queimada das matas, a
ditadura das cotações internacionais e a penúria sem trégua dos trabalhadores. Os proprietários das plantações, que vivem nas praias do Rio de Janeiro e são mais comerciantes do
que agricultores, proíbem que se destine uma só polegada de terra a outras culturas. Seus
administradores costumam pagar salários em espécie - charque, farinha, feijões; quando
pagam em dinheiro, o camponês recebe por um dia inteiro de trabalho uma diária que
eqüivale a uma garrafa de cerveja e deve trabalhar um dia e meio para poder comprar uma
lata de leite em pó.
O Brasil desfrutou por um bom tempo dos favores do mercado internacional. Não
obstante, encontrou na África sérios competidores. Por volta da década de 20, Gana já
havia conquistado o primeiro lugar: os ingleses desenvolveram a plantação de cacau em
grande escala, com métodos modernos, neste país que por esta época era colônia e se
chamava Costa do Ouro. O Brasil caiu para o segundo lugar, e anos mais tarde para o
terceiro, como provedor mundial de cacau. Porém, houve mais de um período em que
nada fazia crer que um destino medíocre aguardasse as terras férteis do sul da Bahia.
Intocados durante toda a época colonial, os solos multiplicavam os frutos: os peões partiam as cascas a golpe de facão, juntavam os grãos, carregavam-nos nos carros para que os
burros os levassem até os escoadouros, e era preciso cortar cada vez mais matas, abrir
novos clarões, conquistar novas terras ao fio do machado e a tiros de fuzil. Nada sabiam os
peões dos preços nem dos mercados. Nem sequer sabiam quem governava o Brasil: até
pouco tempo ainda se encontravam trabalhadores nas fazendas convencidos de que Dom
Pedro II, o imperador, continuava no trono. Os senhores do cacau esfregavam as mãos:
eles sim sabiam, ou acreditavam saber. O consumo de cacau aumentava e com ele aumentavam a cotação e os lucros. O porto de Ilhéus, por onde se embarcava quase todo o
cacau, chamava-se “a Rainha do Sul”, e embora definhe hoje, ali ficaram os sólidos
61. Domingo Alberto Rangel, Capital y desarollo, tomo I, La Venezuela agraria, Caracas, 1968.
65
palacetes que os fazendeiros mobiliaram com faustuoso e péssimo gosto. Jorge Amado
escreveu vários romances sobre o tema. Assim recria uma etapa de alta de preços: “Ilhéus
e a zona do cacau nadaram em ouro, banharam em champanha, dormiram com francesas
vindas do Rio de Janeiro. No Trianon, o cabaré mais chique da cidade, o coronel Maneca
Dantas acendia charutos com notas de mil réis, repetindo o gesto de todos os fazendeiros
ricos do país nas altas anteriores do café, da borracha, do algodão e do açúcar”62. Com a alta
de preços, a produção aumentava; depois os preços baixavam. A instabilidade se fez cada
vez mais estrepitosa e as terras foram mudando de dono. Começou o tempo dos “milionários mendigos”: os pioneiros das plantações cediam seu sítio aos exportadores, que se
apoderavam, executando dívidas, das terras.
Em apenas três anos, entre 1959 e 1961, para dar apenas um exemplo, o preço
internacional do cacau em amêndoa reduziu-se numa terça parte. Posteriormente, a tendência à alta dos preços não foi capaz de abrir, por certo, as portas da esperança; a Cepal
prevê vida curta para a curva de ascenso63. Os grandes consumidores de cacau - Estados
Unidos, Inglaterra, Alemanha Federal, Holanda, França - estimulam a competição entre o
cacau africano e o que Brasil e Equador produzem, para comer chocolate mais barato.
Provocam, assim, dispondo como dispõem dos preços, períodos de depressão que lançam
nas estradas os trabalhadores que o cacau expulsa. Os desempregados procuram árvores
para sob elas dormir e bananas verdes para enganar a fome: não comem, certamente, os
finos chocolates europeus que o Brasil, terceiro produtor mundial de cacau, importa incrivelmente da França e da Suíça. Os chocolates valem cada vez mais; o cacau, em termos
relativos, cada vez menos. Entre 1950 e 1960, as vendas de cacau do Equador aumentaram
mais de 30% em volume, mas somente uns 15% em valor. Os 15% restantes foram um
presente do Equador aos países ricos, que no mesmo período lhe enviaram, a preços
crescentes, seus produtos industrializados. A economia equatoriana depende das vendas
de bananas, café e cacau, três alimentos duramente submetidos ao naufrágio dos preços.
Segundo dados oficiais, de cada dez equatorianos, sete padecem de desnutrição básica e
o país sofre um dos índices de mortalidade mais altos do mundo.
BRAÇOS BARATOS PARA O ALGODÃO
O Brasil ocupa o quarto lugar no mundo como produtor de algodão; o México, o
quinto. Em conjunto, da América Latina provêm mais da quinta parte do algodão que a
indústria têxtil consome no planeta inteiro. No fim do século XVIII, o algodão havia-se
convertido na matéria-prima mais importante dos viveiros industriais da Europa; a Inglaterra multiplicou por cinco, em trinta anos, suas compras desta fibra natural. O fuso que
62. O título de "coronel" é outorgado no Brasil, com suma facilidade, aos latifundiários tradicionais e, por extensão, a todas as pessoas importantes. O parágrafo foi tirado do romance de Jorge
Amado, São Jorge dos Ilhéus (Montevidéu, 1966). Enquanto isto, "nem os meninos tocavam
nos frutos do cacau. Sentiam medo daqueles cocos amarelos, de caroços doces, que os mantinham presos a esta vida de frutos de jaca e carne seca". Porque no fundo, "o cacau era o grande
senhor a quem até o coronel temia" (Jorge Amado, Cacao, Buenos Aires, 1935). Em outro
romance, Gabriela, Cravo e Canela, um personagem fala de Ilhéus em 1925, levantando o dedo,
categórico: "Não existe na atualidade, no norte do país, uma cidade de progresso mais rápido."
Atualmente, Ilhéus não é nem a sombra do que foi.
63. Referindo-se aos aumentos de preços do cacau, e do café, a Comissão Econômica para a
América Latina (CEPAL) das Nações Unidas diz que "têm um caráter relativamente transitório",
que obedecem "em grande parte a contratempos ocasionais nas colheitas". CEPAL, Estudio
económico de América Latina, 1969, tomo II: La economia de América Latina en 1969, Santiago
do Chile, 1970.
66
Arkwright inventou, ao mesmo tempo que Watt patenteava sua máquina de vapor,ea
posterior criação do tear mecânico de Cartwright impulsionaram com decisivo vigor a
fabricação de tecidos e proporcionaram ao algodão, planta nativa da América, mercados
ávidos no ultramar. O porto de São Luiz do Maranhão, que dormira uma longa sesta
tropical apenas interrompida por raros navios durante o ano, foi bruscamente despertado
pela euforia do algodão: os escravos negros afluíram às plantações do Norte do Brasil, e
entre 150 e 200 navios partiam cada ano de São Luiz carregando um milhão de libras de
matéria-prima têxtil. Enquanto nascia o século XIX, a crise da economia mineira proporcionava ao algodão mão-de-obra escrava em abundância; esgotados o ouro e os diamantes
do Sul, o Brasil parecia ressuscitar no Norte. O porto floresceu, produziu poetas em medida suficiente para que o chamassem de Atenas do Brasil64 mas a fome chegou, com a
prosperidade, à região do Maranhão, onde ninguém cuidava de cultivar alimentos. Em
alguns períodos, só houve arroz para comer65. Esta história terminou como havia começado: o colapso chegou de súbito. A produção do algodão em grande escala nas plantações do sul dos Estados Unidos, com terras de melhor qualidade e meios mecânicos para
descaroçar e enfardar o produto, abateu os preços à terça parte e o Brasil ficou fora da
concorrência. Uma nova etapa de prosperidade abriu-se com a guerra da Secessão, que
interrompeu os fornecimentos norte-americanos, porém durou pouco. Já no século XX,
entre 1934 e 1939, a produção brasileira de algodão incrementou-se num ritmo impressionante: de 126 mil toneladas passou a mais de 320 mil. Então sobreveio um novo desastre:
os Estados Unidos jogaram seus excedentes no mercado mundial e o preço caiu.
Os excedentes agrícolas norte-americanos são, como se sabe, o resultado dos fortes
subsídios que o Estado outorga aos produtores: a preços de dumping e como parte dos
programas de ajuda exterior, os excedentes se espalham pelo mundo. Assim, o algodão foi
o principal produto de exportação do Paraguai até que a concorrência ruinosa do algodão
norte-americano o deslocou dos mercados e a produção paraguaia reduziu-se, desde 1952,
à metade. Assim o Uruguai perdeu o mercado canadense para seu arroz. Assim o trigo da
Argentina, um país que tinha sido o celeiro do planeta, perdeu sua importância nos
mercados internacionais. O dumping norte-americano do algodão não impediu que uma
empresa norteamericana, a Anderson Clayton and Co., detenha o império deste produto
na América Latina, nem impediu que, através dela, os Estados Unidos comprem algodão
mexicano para revendê-lo a outros países.
O algodão latino-americano continua vivo no comércio mundial, aos trancos e barrancos, graças a seus baixíssimos custos de produção. Inclusive as cifras oficiais, máscaras
da realidade, delatam o miserável nível da retribuição do trabalho. Nas plantações do
Brasil, os salários de fome se alternam com o trabalho servil; nas da Guatemala os proprietários orgulham-se de pagar salários de dezenove quetçais por mês (o quetçal eqüivale
nominalmente ao dólar) e, como se fosse muito, eles mesmos advertem que a maior parte
se liquida em espécies ao preço por eles fixado66; no México, os diaristas que deambulam
de safra em safra cobrando um dólar e meio por jornada não só padecem o subemprego,
mas também, e como conseqüência, a subnutrição, e muito pior é a situação dos trabalhadores do algodão da Nicarágua; os salvadorenhos que fornecem algodão aos industriais
têxteis do Japão consomem menos calorias e proteínas que os famintos hindus. Para a
economia do Peru, o algodão é a segunda fonte agrícola de divisas. José Carlos Mariátegui
observou que o capitalismo estrangeiro, em sua perene busca de terras, braços e mercados,
tendia a apoderar-se das culturas de exportação do Peru, através da execução de hipotecas
64. Roberto C. Simonsen, op. cit.
65. Caio Prado Júnior,Formação do Brasil contemporâneo, São Paulo, 1942.
66. Comité Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, Guatemala. Tenencia de la tierra y
desarrollo socioeconómico del setor agrícola, Washington, 1965.
67
dos fazendeiros endividados67. Quando o governo nacionalista do general Velasco Alvarado
chegou ao poder em 1968, estava em exploração menos da sexta parte das terras do país
aptas para a exploração intensiva, a renda per capita da população era quinze vezes menor
que a dos Estados Unidos e o consumo de calorias aparecia entre os mais baixos do
mundo, porém a produção de algodão continuava, como a do açúcar, regida por critérios
alheios ao Peru, como havia denunciado Mariátegui. As melhores terras, as campinas da
costa, estavam em mãos de empresas norte-americanas ou latifundiários que só eram
nacionais num sentido geográfico, como a burguesia de Lima. Cinco grandes empresas entre elas duas norte-americanas: a Anderson Clayton e a Grace - tinham em suas mãos a
exportação do algodão e do açúcar e contavam também com seus próprios “complexos
agro-industriais” de produção. As plantações de açúcar e algodão da costa, supostos focos
de prosperidade e progresso por oposição aos latifúndios da serra, pagavam aos peões
salários de fome até que a reforma agrária de 1969 as expropriou e as entregou, em
cooperativas, aos trabalhadores. Segundo o Comité Interamericano de Desenvolvimento
agrícola, a renda de cada membro das famílias de assalariados da costa só chegava aos
cinco dólares mensais68.
A Anderson Clayton and Co. conserva trinta filiais na América Latina, e não apenas
se ocupa em vender algodão mas, além disso, monopólio horizontal, dispõe de uma rede
que abarca o financiamento e a industrialização da fibra e de seus derivados, e produz
também alimentos em grande escala. No México, por exemplo, embora não possua terras,
exerce de todos os modos seu domínio sobre a produção de algodão; em suas mãos estão,
de fato, os oitocentos mil mexicanos que o colhem. A empresa compra a preço muito baixo
a excelente fibra de algodão mexicano, porque previamente concede créditos aos produtores com a obrigação de que vendam as colheitas ao preço com que ela abra o mercado. Aos
adiantamentos em dinheiro se soma o fornecimento de fertilizantes, sementes, inseticidas; a empresa se reserva o direito de supervisionar os trabalhos de fertilização, semeadura e colheita. Fixa a tarifa que lhe apetece para descaroçar o algodão. Usa as sementes em
suas fábricas de azeite, graxa e margarinas. Nos últimos anos, a Clayton, “não contente em
dominar todo o comércio de algodão, irrompeu até na produção de doces e chocolates,
comprando recentemente a empresa Luxus”69.
Atualmente, a Anderson Clayton é a principal firma exportadora de café do Brasil.
Em 1950, interessou-se pelo negócio. Três anos depois, já tinha destronado a Américan
Coffee Corporation. No Brasil é, além disso, a primeira produtora de alimentos, e figura
entre as trinta e cinco empresas mais poderosas do país.
BRAÇOS BARATOS PARA O CAFÉ
Há quem garanta que o café é quase tão importante como o petróleo no mercado
internacional. Em princípios da década de 50, a América Latina abastecia as quatro quintas
partes do café que se consumia no mundo; a concorrência do café robusta, da África, de
pior qualidade mas de preço mais baixo, reduziu a participação latino-americana nos anos
seguintes. Apesar disso, a sexta parte das divisas que a região obtém no exterior provém,
atualmente, do café. As flutuações dos preços afetam quinze países do sul do rio Bravo. O
Brasil é o maior produtor do mundo; do café ainda obtém o grosso de suas receitas por
exportações. El Salvador, Guatemala, Costa Rica e Haiti, em grande medida, dependem
67. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana, 1970.
68. Comité Interamericano de Desenvolvimento Agrícola, Peru. Tenencia de la tierra e desarrollo
socioeconómico del sector agrícola. Washington, 1965.
69. Alonso Aguilar M. e Fernando Carmona, México: riqueza y miseria, México, 1968.
68
do café, que além disso fornece dois terços das divisas da Colômbia.
O café trouxe consigo a inflação ao Brasil: , entre 1824 e 1854, o preço de um homem
se multiplicou por dois. Nem o algodão do Norte nem o açúcar do Nordeste, já esgotados
os ciclos da prosperidade, podiam pagar aqueles caros escravos. O Brasil deslocou-se rumo
ao Sul. Além da mão-de-obra escrava, o café utilizou o braço dos imigrantes europeus, que
entregavam aos proprietários a metade de suas colheitas, num regime de meeiro que
ainda hoje predomina no interior do Brasil. Os turistas que atualmente atravessam as
matas da Tijuca para nadar nas águas da barra ignoram que ali, nas montanhas que
rodeiam o Rio de Janeiro, houve grandes cafezais há mais de um século. Pelos flancos da
serra, as plantações continuaram, rumo ao Estado de São Paulo, sua desenfreada caça do
húmus de novas terras virgens. Já agonizava o século quando os cafeicultores, convertidos
na nova elite social do Brasil, apontaram o lápis e fizeram as contas: eram mais baratos os
salários de subsistência do que a compra e a manutenção dos escassos escravos. Aboliu-se
a escravidão em 1888, e ficaram assim inauguradas as formas combinadas de servidão
feudal e trabalho assalariado que persistem em nossos dias. Legiões de trabalhadores
“livres” acompanhariam, desde então, a peregrinação do café. O vale do rio Paraíba converteu-se na zona mais rica do país, porém foi rapidamente aniquilado por esta planta que,
cultivada num sistema destrutivo, ia deixando às suas costas matas arrasadas, reservas
naturais esgotadas e decadência geral. A erosão arruinava, sem piedade, as terras antes
intactas e, de saque em saque, ia baixando, seus rendimentos, debilitando as plantas e
tornando-as vulneráveis as pragas. O latifúndio do café invadiu a vasta meseta púrpura do
oeste de São Paulo, com métodos de exploração menos bestais, converteu-a em “mar de
café”, e continuou avançando para oeste. Chegou às ribeiras do Paraná; à frente das
savanas de Mato Grosso, desviou-se rumo ao sul para deslocar-se, nestes últimos anos, de
novo rumo ao oeste, já por cima das fronteiras do Paraguai.
Atualmente, São Paulo é o estado mais desenvolvido do Brasil porque contém o
centro industrial do país, porém em suas plantações de café ainda abundam “moradores
vassalos” que pagam com seu trabalho e o de seus filhos o aluguel da terra. Nos anos
prósperos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, a voracidade dos cafeicultores
determinou a virtual abolição do sistema que permitia aos trabalhadores das plantações
cultivar alimentos por conta própria. Só podem fazê-lo, agora, em troca de uma renda que
pagam trabalhando sem cobrar. Além disso, o latifundiário conta com colonos contratados,
aos quais permite realizar culturas temporárias, porém em troca de que iniciem novos
cafezais em seu benefício. Quatro anos depois, quando os grãos amarelos colorem as
plantas, a terra multiplica seu valor e então chega, para o colono, o tempo de mudança.
Na Guatemala, as plantações de café pagam ainda menos do que as de algodão. Na
vertente do sul, os proprietários dizem retribuir com quinze dólares mensais o trabalho dos
milhares de indígenas que baixam cada ano do altiplano até o sul, para vender seus braços
nas colheitas. As fazendas contam com polícia privada; ali, como se diz corretamente, “um
homem é mais barato do que uma mula” e o aparato de repressão encarrega-se para que
continue sendo. Na região de Alta Verapaz a situação é ainda pior. Ali não há caminhões
nem carretas, porque os fazendeiros não precisam deles: sai mais barato transportar o café
no lombo do índio.
Para a economia de El Salvador, pequeno país em mãos de um punhado de famílias
oligárquicas, o café tem uma importância fundamental: a monocultura obriga a comprar
no exterior feijões - única fonte de proteína para a alimentação popular –milho hortaliça e
outros alimentos que tradicionalmente o país produzia. A quarta parte dos salvadorenhos
morre vítima de avitaminose. Em relação ao Haiti, tem a taxa de mortalidade mais alta da
América Latina; mais da metade de sua população infantil padece de anemia. O salário
legal pertence, no Haiti, aos domínios da ficção; nas plantações de café, o salário real oscila
69
entre sete e quinze centavos de dólar por dia.
Na Colômbia, território de vertentes, o café desfruta a hegemonia. Segundo informe
publicado pela revista Time de 1962, os trabalhadores só recebem cinco por cento, através
dos salários, do preço total que o café obtém em sua viagem desde a planta para os lábios
do consumidor norte-americano70. Ao contrário do Brasil, o café da Colômbia não é produzido, em sua maior parte, nos latifúndios, mas em minifúndios que tendem a pulverizar-se
cada vez mais. Entre 1955 e 1960, apareceram cem mil plantações novas, em sua maioria
com extensões ínfimas, de menos de um hectare. Pequenos e muito pequenos agricultores produzem três quartas partes do café que a Colômbia exporta; 96% das plantações são
minifúndios71. Juan Valdés sorri nos anúncios, porém a atomização da terra abate o nível
de vida dos agricultores, de renda cada vez menor, e facilita as manobras da Federação
Nacional de Cafeicultores, que representa os interesses dos grandes proprietários e que
virtualmente monopolizam a comercialização do produto. As parcelas de menos de um
hectare geram uma renda de fome: cento e trinta dólares, como média, por ano72.
A COTAÇÃO DO CAFÉ JOGA NO FOGO AS COLHEITAS E MARCA O RITMO DOS CASAMENTOS
O que é isto? O eletroencefalograma de um louco? Em 1889, o café valia dois centavos e seis anos depois tinha subido a nove; três anos mais tarde tinha baixado a quatro
centavos e cinco anos depois a dois. Este foi um período ilustrativo73. Os gráficos do café,
como os de todos os produtos tropicais, se assemelha sempre com os quadros clínicos de
epilepsia, porém a linha sempre cai verticalmente quando registra o valor de troca do café,
frente às maquinarias e os produtos industrializados. Carlos Lleras Restrepo, presidente da
Colômbia, queixava-se em 1967: neste ano, seu país teve de pagar 57 sacas de café para
comprar um jipe, e em 1957 bastavam 17 sacas. Ao mesmo tempo, o secretário de agricultura de São Paulo, Herbert Levi, fazia cálculos mais dramáticos: para comprar um trator
em 1967, o Brasil necessitava de 350 sacas de café, porém 14 anos antes 70 sacas teriam
sido suficientes. O presidente Getúlio Vargas arrebentou o coração com um tiro, em 1954,
e a cotação do café não foi alheia à tragédia: “Veio a crise da produção do café - escreveu
Vargas em seu esplêndido testamento - e valorizou-se nosso principal produto. Pensamos
defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre nossa economia, a ponto de
ver-nos obrigados a ceder.” Vargas quis que seu sangue fosse o preço do resgate do povo
brasileiro.
Se a colheita do café de 1964 tivesse sido vendida, no mercado norte-americano, a
preços de 1955, o Brasil teria recebido 200 milhões de dólares a mais. A baixa de um só
centavo na cotação do café implica uma perda de 65 milhões de dólares usurpados pelo
país consumidor, Estados Unidos, ao Brasil, país produtor.Porém, em beneficio de quem?
Do cidadão que bebe café? Em julho de 1968, o preço do café brasileiro nos Estados Unidos
tinha baixado 30% em relação a janeiro de 1964. Todavia, o consumidor norte-americano
não pagava mais barato seu café, senão 13% mais caro. Os intermediários ficaram, pois,
entre 1964 e 68, com este 13% e com aquele 30%: ganharam nas duas pontas. No mesmo
70. Mario Arrubla, Estudios sobre el subdesarrollo colombiano, Medellín, 1969. O preço se
descompõe assim: 40% para os intermediários, exportadores e importadores; 10% para os impostos de ambos governos; 10% para os transportadores; 5% para a propaganda do Escritório PanAmericano do Café, em Washington; 30% para os donos das plantações e 5% para os salários
operários.
71. Banco Cafetero, La industria cafetera en Colombia, Bogotá, 1962.
72. Panorama económico latino-américano, nº 87, Havana, setembro de 1963.
73. Pierre Monbeig, Pionniers et planteurs de São Paulo, Paris, 1952.
70
espaço de tempo, os preços recebidos pelos produtores brasileiros, por cada saca de café
reduziram-se à metade74. Quem são os intermediários? Seis empresas norte-americanas
dispõem de mais da terça parte do café que entra nos Estados Unidos: são as firmas
dominantes em ambos os extremos da operação75. Assim como a United Fruit exerce o
monopólio da venda de bananas da América Central, Colômbia e Equador, e ao mesmo
tempo monopoliza a importação e distribuição de bananas nos Estados Unidos, são empresas norte-americanas as que manejam o negócio do café, e o Brasil só participa como
fornecedor e como vítima. É o Estado brasileiro quem suporta o ônus dos estoques, quando
a superprodução obriga acumular reservas.
Acaso não existe, todavia, um Acordo Internacional de Café para equilibrar os preços
no mercado? O Centro Mundial de Informação do Café publicou em Washington, em 1970,
um amplo documento destinado a convencer os legisladores para que os Estados Unidos
prorrogassem, em setembro, a vigência da lei complementar correspondente à vigência do
convênio. O informe assegura que o convênio beneficiou em primeiro lugar os Estados
Unidos, consumidores de mais da metade do café que se vende no mundo. A compra do
grão continua sendo uma gangorra. No mercado norte-americano, o irrisório aumento do
preço do café (em benefícios, como vimos, dos intermediários) foi muito menor do que a
alta generalizada do custo de vida e do nível interno dos salários; o valor das exportações
dos Estados Unidos elevou-se, entre 1960 e 1969, uma sexta parte, e no mesmo período o
valor das importações de café, ao invés de aumentar, diminuiu. Além disso, é preciso levar
em conta que os países latino-americanos aplicam as deterioradas divisas que obtêm com
a venda do café, na compra destes produtos encarecidos norte-americanos.
O café beneficia muito mais a quem o consome do que a quem o produz. Nos
Estados Unidos e na Europa, gera rendas e empregos e mobiliza grandes capitais; na
América Latina paga salários de fome e acentua a deformação econômica dos países
postos a seu serviço. Nos Estados Unidos o café proporciona trabalho a mais de 600 mil pessoas:
os norte-americanos que distribuem e vendem café latino-americano ganham salários infinitamente
mais altos do que os brasileiros, colombianos, guatemaltecos, salvadorenhos ou haitianos que semeiam e colhem o grão nas plantações. Por outro lado, a Cepal nos informa, por incrível que pareça, que
o café despeja mais riqueza nas arcas estatais dos países europeus, do que a riqueza que deixa em
mãos dos países produtores. De fato, “em 1960 e 196 1, as cargas fiscais totais impostas pelos
países da Comunidade Européia ao café ascenderam a cerca de 700 milhões de dólares,
enquanto as rendas dos países abastecedores (em termos de valor FOB das exportações)
só chegaram a 600 milhões de dólares”76. Os países ricos, pregadores do comércio livre,
aplicam o mais rígido protecionismo contra os países pobres: convertem tudo em que
tocam em ouro para si e em lata para os demais - incluindo a própria produção dos países
subdesenvolvidos. O mercado internacional do café copia de tal maneira o modelo de um
funil, que o Brasil aceitou recentemente impor altos impostos a suas exportações de café
solúvel para proteger - protecionismo ao contrário - os interesses dos fabricantes
norte-americanos do mesmo artigo. O café instantâneo produzido pelo Brasil é mais
barato e de melhor qualidade do que a florescente indústria dos Estados Unidos, porém no
regime da livre concorrência, está visto, uns são mais livres do que outros.
Neste reino do absurdo organizado, as catástrofes naturais convertem-se em bênçãos do céu para os países produtores. As agressões da natureza levantam os preços e
74. Dados do Banco Central, Instituto Brasileiro de Café e FA O,Revista Fator, nº 2, Rio de Janeiro,
novembro-dezembro de 1968.
75. Segundo a investigação realizada pela Federal Trade Comission, Cid Silveira, Café, um drama
na economia nacional, Rio de Janeiro, 1962.
76. CEPAL, El comercio internacional y el desarrollo de América Latina, México-Buenos Aires,
1964.
71
permitem mobilizar as reservas acumuladas. As ferozes geadas que assolaram a colheita
de 1969 no Brasil condenaram à ruína numerosos produtores sobretudo os mais débeis,
porém subiram a cotação internacional do café e aliviaram consideravelmente o estoque
de sessenta milhões de sacas - equivalentes a dois terços da dívida externa do Brasil -, que
o Estado tinha acumulado para defender os preços. O café armazenado, que estava
deteriorando-se e perdia progressivamente seu valor, podia ter acabado na fogueira. Não
seria a primeira vez. Em conseqüência da crise de 1929, que derrubou os preços e contraiu
o consumo, o Brasil queimou 78 milhões de sacas de café: assim ardeu em chamas o
esforço de 200 mil pessoas durante cinco safras77.Aquela foi uma típica crise de uma economia
colonial: veio de fora. A brusca queda dos lucros dos plantadores e dos exportadores de café
nos anos 30 provocou, além do incêndio do café, um incêndio da moeda. Este é o mecanismo usual na América Latina para “socializar as perdas” do setor exportador: compensa-se
em moeda nacional, através das desvalorizações, o que se perde em divisas.
Porém, o auge dos preços não tem melhores conseqüências. Deflagra grandes semeaduras, um crescimento da produção, uma multiplicação da área destinada ao cultivo do
produto afortunado. O estímulo funciona como um bumerangue, porque a abundância
derruba os preços e provoca o desastre. Isto foi o que ocorreu em 1958, na Colômbia,
quando se colheu o café semeado com tanto entusiasmo quatro anos antes, e ciclos semelhantes se repetiram ao longo da história deste país. A Colômbia depende do café e sua
cotação exterior a tal ponto que, “em Antióquia, a curva dos casamentos responde agilmente à curva dos preços do café. É típico de uma estrutura dependente: até o momento
propício para uma declaração de amor em uma colina antioquenha se decide na bolsa de
Nova lorque”78.
DEZ ANOS QUE SANGRARAM A COLÔMBIA
Lá pelos anos 40, o prestigioso economista colombiano Luis Eduardo Nieto Arteta
escreveu uma apologia do café. O café tinha conseguido o que nunca conseguiram, nos
ciclos anteriores econômicos do país, as minas nem o tabaco, nem o anil nem a quina: dar
nascimento a uma ordem madura e progressista. As fábricas têxteis e outras indústrias
leves nasceram, não por acaso, nos departamentos produtores de café: Antióquia, Caldas,
Valle del Cauca, Cundinamarca. Uma democracia de pequenos produtores agrícolas, dedicados ao café, converteria os colombianos em “homens moderados e sóbrios”. “O pressuposto mais vigoroso - dizia -, para a normalidade no funcionamento da vida política
colombiana foi a consecução de uma peculiar estabilidade econômica. O café a produziu,
e com ela o sossego e o comedimento.”79
Pouco tempo depois, explodiu a violência. Na realidade, os elogios ao café não
interromperam, como por arte de magia, a longa história de revoltas e repressões sanguinárias na Colombia. Desta vez, durante dez anos, entre 1948 e 1957, a guerra camponesa
abarcou os minifúndios e os latifúndios, os desertos e os campos semeados, os vales e as
selvas e os páramos andinos, empurrou comunidades inteiras ao êxodo, gerou guerrilhas
revolucionárias e bandos de criminosos; converteu o país inteiro num cemitério: estima-se
que deixou um saldo de 180 mil mortos.80 O banho de sangue coincidiu com um período de
euforia econômica para a classe dominante: é lícito confundir prosperidade de uma classe com o
77. Roberto Simonsen, op. cit.
78. Mario Arrubla, op. cit.
79. Luis Eduardo Nieto Arteta, Ensayos sobre economia colombiana, Medellín, 1969.
80. Germán Guzmán Campos, Orlando Fals Borda e Eduardo Umaña Luna, La violencia en
Colombia. Estudio de un processo social. Bogotá, 1963-64.
72
bem-estar do país?
A violência começou como um enfrentamento entre liberais e conservadores, mas a
dinâmica do ódio de classes foi acentuando cada vez mais seu caráter de luta social. Jorge
Eliécer Gaitán, o caudilho liberal a quem a oligarquia de seu próprio partido, entre despicativa
e temerosa, chamava de “El Lobo” ou “El Badulaque”, tinha ganho um formidável prestígio popular e ameaçava a ordem estabelecida; quando o assassinaram a tiros,
desencadeou-se o furacão. Primeiro foi a maré humana incontida nas ruas da capital, o
espontâneo bogotazo, e em seguida a violência derivou para o campo, onde, há tempos, os
bandos organizados pelos conservadores já vinham semeando o terror. O ódio longamente
mastigado pelos camponeses explodiu e, enquanto o governo enviava policiais e soldados
para cortar testículos, abrir ventres de mulheres grávidas ou jogar crianças ao ar para
espetá-las na ponta da baioneta, sob a palavra de ordem de “não deixar nem semente”, os
doutores do Partido Liberal recolhiam-se em suas casas sem alterar seus bons modos nem
o tom cavalheiresco de seus manifestos ou, no pior dos casos, viajavam para o exílio.
Foram os camponeses que forneceram os mortos. A guerra alcançou extremos de incrível
crueldade, impulsionada por um desejo de vingança que crescia com a própria guerra.
Surgiram novos estilos da morte: no “corte gravata”, a língua ficava pendendo por um
buraco no pescoço. Sucediam-se as violações, os incêndios, os saques; os homens eram
esquartejados ou queimados vivos, escalpelados ou cortados lentamente em pedaços; os
rios ficavam tingidos de vermelho; os bandoleiros outorgavam a permissão de viver, em
troca de tributos em dinheiro ou carregamentos de café, e as forças repressivas expulsavam e perseguiam inúmeras famílias que corriam para as montanhas em busca de refúgio; nas matas pariam as mulheres. Os primeiros chefes guerrilheiros, animados pela
necessidade de revanche, mas sem horizontes políticos claros, lançavam-se à destruição
pela destruição, o desafogo a sangue e fogo sem outros objetivos. Os nomes dos protagonistas da violência (Tenente Gorila, Malasombra, El Cóndor,Pielroja,ElVampiro, Avenegra,
El Terror del Llano) não sugerem uma epopéia da revolução. Porém o tom de rebelião
social imprimia-se até nas cantigas que cantavam os bandos:
Eu sou puro camponês,
e não comecei a peleja,
mas se procuram barulho
dançam com a mais feia.
E em definitivo, o terror indiscriminado aparecia, também, misturado com as reivindicações de justiça, na Revolução Mexicana de Emiliano Zapata e Pancho Villa. Na Colômbia, a raiva explodia de qualquer maneira, mas não é casual que daquela época de violência nascessem as guerrilhas políticas posteriores que, levantando bandeiras da revolução
social, chegaram a ocupar e controlar extensas zonas do país. Os camponeses, assediados
pela repressão, emigraram para as montanhas e ali organizaram “repúblicas independentes”. As chamadas “repúblicas independentes” continuaram oferecendo refúgio aos perseguidos depois de que os conservadores e liberais assinaram, em Madri, o pacto de paz.
Os dirigentes de ambos os partidos, num clima de brindes e pombas, resolveram alternar-se sucessivamente no poder, no altar da concórdia nacional, e começaram, já de
comum acordo, a faina de “limpeza” contra os focos de perturbação do sistema. Numa
única operação, para abater os rebeldes de Marquetalia, dispararam um milhão e meio de
projéteis, lançaram vinte mil bombas e mobilizaram, por terra e por ar, 16 mil soldados81.
Em plena violência, havia um oficial que dizia: “Não me tragam estórias. Tragam-me
orelhas”. O sadismo da repressão e a ferocidade da guerra poderiam explicar-se por razões
81. Germán Guzmán., La violencia en Colombia (parte descriptiva), Bogotá, 1968.
73
clínicas? Foram o resultado da maldade natural de seus protagonistas? Um homem que
cortou as mãos de um sacerdote, pôs fogo em seu corpo e logo o despedaçou e o lançou
num esgoto, gritava, quando a guerra já tinha acabado: “Eu não sou culpado. Eu não sou
culpado. Deixem-me só”. Tinha perdido a razão, porém de certo modo a tinha: o horror da
violência não fez mais do que pôr em evidência o horror do sistema. Porque o café não
trouxe consigo a felicidade e a harmonia, como havia profetizado Nieto Arteta. É verdade,
que, graças ao café, ativou-se a navegação do Magdalena, nasceram linhas férreas e estradas e se acumularam capitais que deram origem a certas indústrias, mas a ordem oligárquica
interna e dependência econômica ante os centros estrangeiros de poder não só não foram
afetados pelo processo ascendente do café, como, pelo contrário, tornaram-se
infinitivamente mais angustiantes para os colombianos. Quando a década da violência
chegava a seu fim, as Nações Unidas publicavam os resultados de sua pesquisa sobre a
nutrição na Colômbia. Desde então a situação não melhorou em nada: 88% das crianças
escolares de Bogotá sofria de avitaminose, 78% padecia arriboflavinose e mais da metade
tinha um peso abaixo do normal; entre os operários, a avitaminose castigava 71% e entre
os camponeses do vale de Tensa, 78%82. A pesquisa mostrou “uma marcada insuficiência
de alimentos protetores - leite e seus derivados, ovos, carne, pescado, e algumas frutas e
hortaliças -, que fornecem conjuntamente proteínas, vitaminas e sais”. Não só à luz do
fogo das balas se revela uma tragédia social. As estatísticas indicam que a Colômbia
ostenta um índice de homicídios sete vezes maior do que o dos Estados Unidos, mas
também indicam que a quarta parte dos colombianos em idade ativa carecem de trabalho
fixo. Duzentos e cinqüenta mil pessoas emergem cada ano no mercado de trabalho; a
indústria não gera novos empregos e no campo a estrutura de latifúndios e minifúndios
tampouco necessita de mais braços: pelo contrário, expulsa sem cessar novos desempregados para os subúrbios das cidades. Há na Colômbia mais de um milhão de crianças sem
escola. Isto não impede que o sistema se dê ao luxo de manter 41 universidades diferentes, públicas ou privadas, cada uma com suas diversas faculdades e departamentos, para
educação dos filhos da elite e da minoritária classe média83.
A VARINHA MAGICA DO MERCADO MUNDIAL DESPERTA A AMÉRICA CENTRAL
As terras da faixa centro-americana chegaram à metade do século passado sem que
se lhes infligisse maiores danos. Além dos alimentos destinados ao consumo, a América
Central produzia cochinilhas e anil, com poucos capitais, escassa mão-de-obra e preocupações mínimas. A cochinilha, inseto que nascia e crescia sem problemas sobre a espinhosa
superfície dos cactos, desfrutava, como o anil, de uma continuada demanda na indústria
têxtil européia. Ambos colorantes naturais morreram de morte sintética quando, por volta
de 1850, os químicos alemães inventaram as anilinas e outras tintas mais baratas para
tingir os tecidos. Trinta anos depois desta vitória dos laboratórios sobre a natureza, chegou
a vez do café. A América Central transformou-se. De suas plantações recém-nascidas
vinham, por volta de 1880, pouco menos da sexta parte da produção mundial de café. Foi
através deste produto que a região ficou definitivamente incorporada ao mercado internacional. Aos compradores ingleses sucederam-se os alemães e norte-americanos; os consu82. Nações Unidas, Análisis y proyecciones del desarrollo económico, III, em El desarrollo
económico de Colombia, Nova Iorque, 1957.
83. O professor Germán Rama descobriu que algumas destas veneráveis casas acadêmicas tém
em suas bibliotecas, como acervo mais importante, a coleção encadernada de Seleções Reader's
Digest. Germán W. Rama, Educación y movilidad social en Colombia, Eco, nº 116 Bogotá,
dezembro de 1969.
74
midores estrangeiros deram vida a uma burguesia nativa do café, que irrompeu no poder
político, através da revolução liberal de Justo Rufino Barrios, no começo da década de
1870. A especialização agrícola, ditada de fora, despertou o furor da apropriação de terras
e de homens; o latifúndio atual nasceu, na América Central, sob as bandeiras da liberdade
de trabalho.
Assim passaram a mãos privadas grandes extensões de terras baldias, que eram de
ninguém ou da Igreja ou do Estado, e aconteceu o frenético saque às comunidades indígenas. Os camponeses que se negavam a vender suas terras eram incorporados, à força, ao
exército; as plantações converteram-se em cemitérios de índios; ressuscitaram as ordenações coloniais, o recrutamento forçado de mão-de-obra e das leis contra a vadiagem. Os
trabalhadores fugitivos eram perseguidos a tiros; os governos liberais modernizavam as
relações de trabalho instituindo os salários, mas os assalariados se convertiam em propriedade dos novos empresários do café. Em nenhum momento, é claro, ao longo de todo o
século transcorrido desde então, os períodos de altos preços se fizeram notar sobre o nível
dos salários, que continuam sendo retribuições de fome, sem que as melhores cotações do
café se traduzissem em aumentos. Este foi um dos fatores que impediram o desenvolvimento do mercado interno do consumo nos países centro-americanos84. Como em todas
as partes, o cultivo do café desalentou, em sua expansão sem freios, a agricultura de
alimentos destinados ao mercado interno. Também estes países foram condenados a
padecer uma crônica escassez de arroz, feijões, trigo, tabaco e carne. Apenas sobreviveu
uma miserável agricultura de subsistência, nas terras altas e quebradas onde o latifúndio
encurralou os indígenas ao apropriar-se das terras baixas de maior fertilidade. Nas montanhas, cultivando em minúsculas parcelas o milho e os feijões imprescindíveis para sobreviverem, habitam, durante uma parte do ano, os indígenas que oferecem seus braços, na
colheita, às plantações. Estas são as reservas de mão-de-obra do mercado mundial. Em
um século, a situação não mudou: o latifúndio e o minifúndio constituem, juntos, a
unidade de um sistema que se apoia sobre a cruel exploração da mão-de-obra nativa. Em
geral, e muito especialmente na Guatemala, esta estrutura de apropriação da força de
trabalho aparece identificada com todo o sistema de preconceito racial: os índios padecem
o colonialismo interno dos brancos e dos mestiços, ideologicamente bendito pela cultura
dominante, do mesmo modo que os países centro-americanos sofrem o colonialismo
externo85.
Desde o princípio do século, apareceram também, em Honduras, Guatemala e Costa
Rica, os “enclaves” bananeiros. Para transportar o café aos portos, já tinham construído
algumas linhas ferroviárias, financiadas pelo capital nacional. As empresas norteamericanas se apropriaram destas ferrovias e criaram outras, exclusivamente para levar a
produção das suas plantações, ao mesmo tempo que implantavam o monopólio dos
serviços de luz elétrica, correios, telégrafos, telefones e - serviço público não menos importante - também o monopólio da política: em Honduras, “uma mula custa mais do que um
deputado” e em toda a América Central, os embaixadores dos Estados Unidos presidem
mais do que os presidentes. A United Fruit Co. deglutiu seus competidores na produção e
venda de bananas, transformou-se na principal latifundiária da América Central e suas
filiais açambarcaram o transporte ferroviário e marítimo; fez-se dona dos portos, e dispõe
de alfândega e policia próprias. O dólar converteu-se, de fato, na moeda nacional centro-americana.
84. Edelberto Torres-Rivas, Procesos y estructuras de una sociedad dependiente (Centroamérica),
Santiago do Chile, 1959.
85. Carlos Guzmán Böckler e Jean-Loup Herbert, Guatemala: una interpretación histórico-social,
México, 1970.
75
OS FLIBUSTEIROS NA ABORDAGEM
Na concepção geopolítica do imperialismo, a América Central não é mais do que um
apêndice natural dos Estados Unidos. Nem sequer Abraham Lincoin, que também pensou
em anexar seus territórios, pôde escapar aos ditados do “destino manifesto” da grande
potência sobre suas áreas contíguas86.
Em meados do século passado, o flibusteiro William Walker, que operava em nome
dos banqueiros Morgan e Garrison, invadiu a América Central à frente de uma quadrilha
de assassinos, que se autodenominavam “a falange americana dos imortais”. Com o apoio
oficioso do governo dos Estados Unidos, Walker roubou, matou, incendiou e se proclamou
presidente, em expedições sucessivas, da Nicarágua, El Salvador e Honduras. Reimplantou
a escravidão nos territórios que sofreram sua devastadora ocupação, continuando, assim,
a obra filantrópica de seu país nos Estados do México que tinham sido ocupados, pouco
antes.
Em seu regresso aos Estados Unidos, foi recebido como um herói nacional. Desde
então sucederam-se as invasões, as intervenções, os bombardeios, os empréstimos obrigatórios e os tratados firmados ao pé do canhão. Em 1912, o presidente William H. Taft
afirmava: “Não está longe o dia em que três bandeiras de listras e estrelas marcarão em
três lugares eqüidistantes a extensão de nosso território: uma no Pólo Norte, outra no canal
do Panamá e a terceira no Pólo Sul. Todo o hemisfério será nosso, de fato, como, em
virtude de nossa superioridade racial, já é nosso moralmente”87.Taft dizia que o reto
caminho da justiça na política externa dos Estados Unidos “não exclui de modo algum
uma ativa intervenção para assegurar a nossas mercadorias e a nossos capitalistas facilidades para as inversões lucrativas”. Nesta mesma época, o ex-presidente Teddy Roosevelt
recordava em voz alta a brilhante amputação de terra à Colômbia: - “I took the Canal”-,
dizia o novo Prêmio Nobel da Paz, enquanto contava como tinha inventado o Panamá88.A
Colômbia recebera, pouco depois, uma indenização de US$ 25 milhões: era o preço de um
país nascido para que os Estados Unidos dispusessem de uma via de comunicação entre
ambos os oceanos.
As empresas apoderavam-se de terras, alfândegas, tesouros e governos; os marines
desembarcavam por todas as partes para “proteger a vida e os interesses dos cidadãos
norte-americanos”, álibi exato que utilizariam, em 1965, para apagar com água benta as
marcas do crime da República Dominicana. A bandeira envolvia outras mercadorias. O
comandante SmedIey D. Butler, que encabeçou muitas das expedições, resumia assim
sua própria atividade, em 1935, já aposentado: “Passei 33 anos e 4 meses no serviço ativo,
como membro da mais ágil força militar deste país: o Corpo de Infantaria da Marinha.
Servi em todas as hierarquias, desde segundo tenente até general-de-divisão. E durante
todo este período, passei a maior parte do tempo em funções de pistoleiro de primeira
classe para os Grandes Negócios, para Wall Street e para os banqueiros. Em uma palavra,
fui um pistoleiro do capitalismo... Assim, por exemplo, em 1914 ajudei a fazer com que o
México, e em especial Tampico, se tornassem uma presa fácil para os interesses petrolíferos norte-americanos. Ajudei a fazer com que o Haiti e Cuba fossem lugares decentes para
a cobrança de juros por parte do National City Bank... Em 1909-1912 ajudei a purificar a
Nicarágua para a casa bancária internacional Brown Brothers. Em 1916, levei a luz à
República Dominicana, em nome dos interesses açucareiros norte-americanos. Em 1903,
86. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, tomo III, Los pueblos transplantados. Civilizacion
y desarrollo, Buenos Aires, 1970.
87. Gregorio Selser, Diplomacia, garrote y dólares en América Latina, Buenos Aires, 1962.
88. Claude Julien, L'Empire Americain, Paris, 1968.
76
ajudei a ‘pacificar’ Honduras em benefício das companhias frutíferas norte-americanas”89.
Nos primeiros anos do século, o filósofo William James tinha ditado uma sentença pouco
conhecida: “O país vomitou de uma vez e para sempre a Declaração de Independência...”
Para dar apenas um exemplo, os Estados Unidos ocuparam o Haiti durante vinte anos, e
ali, nesse país negro que tinha sido o cenário da primeira revolta vitoriosa dos escravos,
introduziram a segregação racial e o regime de trabalhos forçados, mataram mil e quinhentos operários em uma de suas operações de repressão (segundo a investigação do
Senado norte-americano em 1922) e, quando o governo local se negou a converter o Banco
Nacional numa sucursal do National City Bank de Nova Iorque, suspenderam o pagamento do presidente e de seus ministros, para que mudassem de opinião90.
Histórias semelhantes se repetiam nas demais ilhas do Caribe e em toda a América
Central, o espaço geopolítico do Mare Nostrum do Império, ao ritmo alternado do big stick
ou da “diplomacia do dólar”.
O Corão menciona a bananeira entre as árvores do paraíso, mas a bananização da
Guatemala, Honduras, Costa Rica, Panamá, Colômbia e Equador permite suspeitar que se
trata de uma árvore do inferno. Na Colômbia, a United Fruit tinha-se tornado dona do
maior latifúndio do país, quando explodiu, em 1928, uma grande greve na costa atlântica.
Os trabalhadores nas plantações de bananas foram aniquilados a bala, em frente a uma
estação ferroviária. Um decreto oficial fora ditado: “Os homens da força pública ficam
livres para castigar pelas armas...” e depois não houve necessidade de baixar nenhum
decreto para apagar a matança da memória oficial do país91. Miguel Ángel Asturias narrou
o processo da conquista e o saque da América Central. O Papa Verde era Minor Keith, rei
sem coroa da região inteira, pai da United Fruit, devorador de países: “Temos portos,
ferrovias, terras, edifícios, mananciais - enumerava o presidente -; corre o dólar, fala-se o
inglês e se hasteia nossa bandeira...”. Chicago não podia senão sentir orgulho deste filho
que marchou com um par de pistolas e regressava para reclamar seu posto entre os
imperadores da carne, reis das ferro vias, reis do cobre, reis do chiclete”92. Em o paralelo 42,
John dos Passos traçou a rutilante biografia de Keith, biografia da empresa: “Na Europa e
Estados Unidos as pessoas começaram a comer bananas, assim que tombaram as selvas
através da América Central para semear bananas e construir ferrovias para transportá-las,
e cada ano mais vapores da Great White Fleet iam para o norte repletos de bananas; essa
é a história do império norte-americano no Caribe e do canal de Panamá e do futuro canal
de Nicarágua e os marines e os encouraçados e as baionetas...”
As terras ficavam tão exaustas quanto os trabalhadores; às terras roubavam o húmus
e aos trabalhadores os pulmões, porém, sempre havia novas terras para explorar e mais
trabalhadores para exterminar. Os ditadores, próceres de opereta, velavam, pelo bem
89. Publicado em Common Sense, novembro de 1935. V. Leo Huberman, Man's Worldly Goods.
The Story of the Wealth of Nations, Nova Jorque, 1936.
90. William Krehm, Democracia y tiranía en el Caribe, Buenos Aires, 1959.
91. Este é o tema do romance de Alvaro Cepeda Samudio, La casa grande (Buenos Aires, 1967),
e também integra um dos capítulos de Cem anos de solidão de Garcia Marquez: "Certamente foi
um sonho", insistiam os oficiais.
92. O ciclo compreende os romances Viento fuerte, El papa verde e Los ojos de los enterrados,
trilogia publicada em Buenos Aires na década de 50. Em Vientofuerte, um dos personagens,
mister Pyle, diz profeticamente: "Se em lugar de comprarmos novas plantações, nós comprássemos, dos produtores particulares, suas frutas, ganharemos muito no futuro." Isto é o que
atualmente ocorre na Guatemala: a United Fruit exerce seu monopólio bananeiro através dos
mecanismos de comercialização, mais eficazes do que a produção direta, e também menos
perigoso. Cabe notar que a produção de banana caiu verticalmente na década de setenta, a partir
do momento em que a United Fruit decidiu vender e/ou arrendar suas plantações na Guatemala,
ameaçadas pelos fervores da agitação social.
77
estar da United Fruit com o punhal entre os dentes. Depois, a produção de bananas foi
decaindo e a onipotência da empresa de frutas sofreu várias crises; mas a América Central
continua sendo, em nossos dias, um santuário do lucro para os aventureiros, embora o
café, o algodão e o açúcar tenham derrubado os bananais de seu pedestal de privilégio.
Todavia as bananas ainda são a principal fonte de divisas para Honduras e Panamá e, na
América do Sul, foi até pouco tempo a do Equador.Por volta de 1930, a América Central
exportava 38 milhões anuais de cachos e a United Fruit pagava a Honduras um centavo de
imposto para cada cacho. Não havia e não há maneira de controlar o pagamento de miniimpostos (que depois subiu um pouquinho), porque a United Fruit exporta e importa o
que desejar à margem das alfândegas estatais. A balança comercial e o balanço de pagamentos do país são obras de ficção, a cargo de técnicos de pródiga imaginação.
A CRISE DOS ANOS 30: “É UM CRIME MAIOR MATAR UMA FORMIGA DO QUE MATAR UM HOMEM”
O café dependia do mercado norte-americano, de sua capacidade de consumo e de
seus preços: as bananas eram um negócio norte-americano e para norte-americanos. Veio,
de repente, a crise de 1929. O crack da Bolsa de Nova Iorque, que fez rachar os cimentos do
capitalismo mundial, caiu no Caribe como um gigantesco bloco de pedra numa poça
d’água. Baixaram verticalmente os preços do café e das bananas, e não menos verticalmente desceu o volume de vendas. As expulsões de camponeses recrudesceram com
urna violência febril, o desemprego propagou-se no campo e nas cidades, levantou-se
uma maré de greves; desapareceram bruscamente os créditos, as inversões e os gastos
públicos, os salários dos funcionários do Estado reduziram-se a quase a metade em
Honduras, Guatemala e Nicarágua93. As botas dos ditadores não demoraram a esmagar as
tampas das marmitas; abria-se a época da política de boa vizinhança em Washington,
porém era preciso conter a sangue, e fogo a agitação social que, por todas as partes, fervia.
Por volta dos anos 20 - uns mais, outros menos -, permaneceram no poder Jorge Ubico na
Guatemala, Maximiliano Hernández Martínez em El Salvador,Tiburcio Carías em Honduras
e Anastasio Somoza na Nicarágua.
A epopéia de Augusto César Sandino comovia o mundo. A longa luta do chefe
guerrilheiro da Nicarágua derivara para a reivindicação da terra e levantava a ira camponesa. Durante sete anos, seu pequeno exército em farrapos combateu, ao mesmo tempo,
contra os doze mil invasores norte-americanos e contra os membros da guarda nacional.
As granadas eram feitas de latas de sardinhas cheias de pedras, os fuzis Springfield eram
arrebatados do inimigo e não faltavam facões; a haste da bandeira era uma vara verde e
em vez de botas os camponeses usavam, para se moverem nas montanhas emaranhadas,
uma tira de couro chamada caite. Com música de Adelita, os guerrilheiros cantavam94:
En Nicarágua, señores,
le pega el ratón al gato.
Nem o poder de fogo da Infantaria da Marinha nem as bombas que os aviões
despejavam foram suficientes para esmagar os rebeldes de Las Segovias. Tampouco as
calúnias que espalhavam pelo mundo inteiro as agências informativas Associated Press e
United Press, cujos correspondentes na Nicarágua eram dois norte-americanos que tinham em suas mãos a alfândega do país95. Em 1932, Sandino pressentia: “Eu não viverei
93. Edelberto Torres-Rivas, op. cit.
94. Gregorio Selser, Sandino, general de hombres libres, Buenos Aires, 1959.
95. Carleton Beals, América ante América, Santiago do Chile, 1940.
78
muito tempo.” Um ano depois, sob o influxo da política norte-americana da boa vizinhança, celebrava-se a paz. O chefe guerrilheiro foi convidado pelo presidente para uma reunião decisiva em Manágua. No caminho caiu morto numa emboscada. O assassino,
Anastasio Somoza, sugeriu depois que a execução tinha sido ordenada pelo embaixador
norte-americano Arthur Bliss Lane. Somoza, nessa época chefe militar, não demorou
muito para instalar-se no poder. Governou Nicarágua durante um quarto de século e
depois seus filhos receberam, de herança, o cargo. Antes de pôr no peito a faixa presidencial, Somoza, tinha-se condecorado a si mesmo com a Cruz del Valor, a Medalha de
Distinción e a Medalha Presidencial al Mérito. Já no poder, organizou várias matanças e
grandes celebrações, para as quais fantasiava seus soldados de romanos, com sandálias e
capacetes; converteu-se no maior produtor de café do país, com 46 fazendas, e dedicou-se
à cria de gado em outras 51 fazendas. Nunca lhe faltou tempo, contudo, para semear
também o terror. Durante sua longa gestão de governo, não passou, verdade seja dita,
maiores necessidades, e recordava com certa tristeza os anos juvenis, quando tinha de
falsificar moedas de ouro para se divertir.
Também em El Salvador explodiram as tensões como conseqüência da crise. Quase
a metade dos trabalhadores nos bananais de Honduras eram salvadorenhos e muitos
foram obrigados a retornar a seu país, onde não havia trabalho para ninguém. Na região de
Izalco, produziu-se um grande levantamento camponês em 1932, que se propagou rapidamente por todo ocidente do país. O ditador Martínez enviou soldados, com equipamentos modernos, para combater “os bolcheviques”. Os índios lutaram com facões contra as
metralhadoras e o episódio encerrou-se com dez mil mortos.
Martínez, um bruxo vegetariano e teósofo, sustentava que “é maior o crime de
matar uma formiga do que um homem, porque o homem ao morrer reencarna, enquanto
a formiga morre definitivamente”96.
Se dizia protegido por “legiões invisíveis” que o informavam de todas as conspirações e que mantinha comunicação telepática com o presidente dos Estados Unidos. Um
relógio de pêndulo, sobre o prato, indicava se a comida estava envenenada; sobre um
mapa indicava-lhe os lugares onde se escondiam os tesouros de piratas ou os inimigos
políticos. Costumava enviar cartões de condolências aos pais de suas vítimas e no pátio de
seu palácio pastavam cervos. Governou até 1944.
As matanças se sucediam por todas as partes. Em 1933, Jorge Ubíco fuzilou, na
Guatemala, uma centena de dirigentes sindicais, estudantis e políticos, ao mesmo tempo
que reimplantava as leis contra “a vadiagem” dos índios. Cada índio devia levar uma
caderneta onde constavam seus dias de trabalho; se não fossem considerados suficientes,
pagava a dívida no cárcere ou arqueando as costas sobre a terra, gratuitamente, durante
dois anos e meio. Na insalubre costa do Pacífico, os trabalhadores que labutavam mergulhados até os joelhos no barro cobravam trinta centavos por dia, e a United Fruit demonstrava que Ubico a tinha obrigado a rebaixar os salários. Em 1944, pouco antes da
queda do ditador,as Seleções Reader’s Digest publicou um artigo de ardentes elogios: este
profeta do Fundo Monetário Internacional evitara a inflação, baixando os salários de um
dólar para vinte cinco centavos diários, para a construção de uma rodovia militar de
emergência, e de um dólar para cinqüenta centavos para os trabalhadores da base aérea
na capital. Nesta época, Ubico outorgou aos senhores do café e às empresas de banana a
permissão para matar: “Estarão isentos de responsabilidade criminal os proprietários de
fazendas...” O decreto levava o número 2.795 e foi restabelecido em 1967, durante o
democrático e representativo governo de Méndez Montenegro.
Como todos os tiranos do Caribe, Ubico se acreditava um Napoleão. Vivia rodeado de
96. William Krehrn, op. cit. Krehm viveu longos anos na América Central como correspondente
da revista norte-americana Time.
79
bustos e quadros do Imperador, que tinha, segundo ele, seu mesmo perfil. Acreditava na
disciplina militar: militarizou os funcionários de correio, as crianças das escolas e a orquestra sinfônica. Os integrantes da orquestra tocavam de uniforme, a troco de nove dólares
mensais, as peças que Ubico escolhia e com a técnica e os instrumentos por ele dispostos.
Considerava que os hospitais eram para efeminados, de modo que os pacientes recebiam
assistência no chão dos corredores, se tinham o azar de serem pobres, além de doentes.
QUEM DEFLAGROU A VIOLÊNCIA NA GUATEMALA?
Em 1944, Ubico caiu de seu pedestal, varrido pelos ventos de uma revolução de
tendência liberal, encabeçada por alguns jovens oficiais e universitários da classe média.
Juan José Arévalo, eleito presidente, pôs em marcha um vigoroso plano de educação e
ditou um novo Código de Trabalho para proteger os trabalhadores do campo e das cidades.
Nasceram vários sindicatos; a United Fruit Co., dona de vastas terras, ferrovia e porto,
virtualmente isenta de impostos e livre de controles, deixou de ser onipotente em suas
propriedades. Em 1951, em seu discurso de despedida, Arévalo revelou que teve de
superar 32 conspirações financiadas pela empresa. O governo de Jacobo Arbenz continuou
e aprofundou o ciclo de reformas. As rodovias e o novo porto de San José romperam o
monopólio da empresa de frutas sobre os transportes e a exportação, Com capital nacional,
e sem estender a mão a nenhum banco estrangeiro, puseram-se em marcha diversos
projetos de desenvolvimento que conduziram à conquista da independência. Em junho
de 1952, aprovou-se a reforma agrária, que chegou a beneficiar mais de cem mil famílias,
embora só afetasse terras improdutivas e pagasse indenização, em bonos, aos proprietários expropriados. A United Fruit cultivava apenas oito por cento de suas terras, estendidas
entre ambos os oceanos.
A reforma agrária propunha-se “a desenvolver a economia capitalista camponesa e
a economia capitalista da agricultura em geral”, mas uma furiosa campanha de propaganda internacional foi desencadeada contra a Guatemala: “A cortina de ferro desceu sobre a
Guatemala”, vociferavam as rádios, os jornais e os próceres da OEA97. O coronel Castillo
Armas, graduado em Fort Leavenworth, Kansas, lançou sobre seu próprio país tropas
treinadas e equipadas, para este objetivo, nos Estados Unidos. O bombardeio dos F-47,
com aviadores norte-americanos, apoiou a invasão. “Tivemos que nos desfazer de um
governo comunista que tinha assumido o poder”, diria, nove anos mais tarde, Dwight
Eisenhower98. As declarações do embaixador norte-americano em Honduras, ante uma
subcomissão do Senado dos Estados Unidos, revelaram no dia 27 de julho de 1961 que a
operação “libertadora” de 1954 fora realizada por uma equipe, da qual faziam parte, além
dele mesmo, os embaixadores na Guatemala, Costa Rica e Nicarágua. Allen Dulles, que
naquela época era o homem número um da CIA, havia-lhe enviado um telegrama de
felicitações pelo trabalho feito. Anteriormente, o bom Allen tinha integrado a direção da
United Fruit Co. Sua cadeira foi ocupada, um ano depois da invasão, por outro dirigente da
CIA, o general Walter Bedell Smith. Foster Dulles, irmão de Allen, havia-se inflamado de
impaciência na conferência da OEA que deu visto à expedição militar na Guatemala.
Casualmente, em seus escritórios de advogado, tinham sido redigidos, em tempos do
ditador Ubico, os rascunhos dos contratos da United Fruit.
A queda de Arbenz marcou a fogo a história posterior do país. As mesmas forças que
97. Eduardo Galeano, Guatemala, país ocupado, México, 1967.
98. Discurso na American Booksellers Association, Washington, 10 de junho de 1963. Citado
por David Wise e Tomas Ross, El gobierno invisible, Buenos Aires, 1966.
80
bombardearam a cidade de Guatemala, Puerto Barrios e o porto de San José, no entardecer
de 18 de junho de 1954, estão hoje no poder. Várias ditaduras ferozes sucederam-se à
intervenção estrangeira, incluindo o período de Julio César Méndez Montenegro (1966-1970),
que proporcionou à ditadura a aparência de um regime democrático. Méndez Montenegro
havia prometido uma reforma agrária, porém limitou-se a assinar a autorização para que
os fazendeiros portassem armas, e as usassem. A reforma agrária de Arbenz foi destruída
quando Castillo Armas cumpriu sua missão, devolvendo as terras à United Fruit e aos
outros fazendeiros expropriados.
1967 foi o pior dos anos do ciclo da violência iniciado em 1954. Um sacerdote católico
norte-americano expulso da Guatemala, o padre Thomas Melville, informava ao National
Catholic Reporter em janeiro de 1968: em pouco mais de um ano, os grupos terroristas da
direita assassinaram mais de dois mil e oitocentos intelectuais, estudantes, dirigentes
sindicais e camponeses que “intentaram combater as doenças da sociedade guatemalteca”.
O cálculo do padre Melville foi feito com base em informações da imprensa, porém sobre
a maioria dos cadáveres nunca se informou nada: eram pobres índios sem nome nem
origem conhecidas, que o exército incluía, algumas vezes, só como números, nos comunicados das vitórias contra a subversão. A repressão indiscriminada fazia parte da campanha
militar de “cerco e aniquilamento” contra os movimentos guerrilheiros. De acordo com o
novo código em vigência, os membros dos corpos de segurança não tinham responsabilidade penal por homicídios, e os comunicados policiais ou militares eram considerados
plena prova em juízo. Os fazendeiros e os administradores foram legalmente equipados à
qualidade de autoridades locais, com direito a portar armas e formar corpos repressivos.
Não vibraram os teletipos do mundo com os “furos” da sistemática carnificina, não chegaram à Guatemala os jornalistas ávidos de noticias, não se escutaram vozes de condenação.
O mundo virava as costas, porém a Guatemala sofria uma longa noite de São Bartolomeu.
A aldeia Cajón del Rio ficou sem homens e os da aldeia Tituque tiveram as tripas revolvidas a punhal; os de Piedra Parada foram escalpelados vivos e os de Agua Blanca da Ipala,
baleados nas pernas e depois queimados vivos; no centro da praça de San Jorge cravaram
num mastro a cabeça de um camponês rebelde. Em Cerro Gordo, encheram de alfinetes as
pupilas de Jaime Velázquez; o corpo de Ricardo Miranda foi encontrado com trinta e oito
perfurações e a cabeça de Haroldo Silva, sem o corpo, na beira de uma estrada para San
Salvador; em Los Mixcos cortaram a língua de Ernestro Chinchilia; na fonte do Ojo de
Agua, os irmãos Oliva Aldana foram mortos a tiros com as mãos amarradas nas costas e os
olhos vendados; o crânio de José Guzmán converteu-se em quebra-cabeças de peças
minúsculas lançadas pelo caminho; dos poços de San Lucas Sacatepequez emergiam
mortos, invés de água; os homens amanheciam sem mãos nem pés na fazenda Miraflores.
Às ameaças sucediam-se as execuções, ou a morte chegava, sem aviso, pela nuca; nas
cidades indicavam-se com cruzes negras as portas dos sentenciados.
Eram metralhados ao sair e lançavam-se os cadáveres pelos barrancos.
Depois, não cessou a violência. Ao longo do tempo do desprezo e da cólera inaugurado em 1954, a violência tem sido e continua sendo uma transpiração natural da
Guatemala. Continuaram aparecendo, embora em menor medida, os cadáveres nos rios
ou na beira dos caminhos, os restos irreconhecíveis, desfigurados pela tortura, que jamais
serão identificados. Também continuaram, e em maior medida, as matanças mais secretas: os cotidianos genocídios da miséria. Outro sacerdote expulso, o padre Blase Bonpane,
denunciava no W ashington Post, em 1968, esta sociedade doente: “Das setenta mil pessoas
que cada ano morrem na Guatemala, trinta mil são crianças. A taxa de mortalidade
infantil na Guatemala é 40 vezes mais alta do que a dos Estados Unidos.”
81
A PRIMEIRA REFORMA AGRÁRIA DA AMÉRICA LATINA: UM SÉCULO E MEIO DE DERROTAS PARA JOSÉ
ARTIGAS
Ao ataque de lança ou golpes de facão, foram os expropriados os que realmente
combateram, quando despontava o século XIX, contra o poder espanhol nos campos da
América Latina. A independência não os recompensou: traiu as esperanças dos que tinham derramado seu sangue. Quando a paz chegou, com ela se reabriu uma época de
cotidianas desditas. Os donos da terra e os grandes mercadores aumentaram suas fortunas, enquanto se ampliava a pobreza das massas populares oprimidas. Ao mesmo tempo,
e ao ritmo das intrigas dos novos donos da América Latina, os quatro vice-reinados do
império espanhol se quebraram em pedaços e múltiplos países nasceram como cacos da
unidade nacional pulverizada. A idéia de “nação” que o patriciado latino-americano engendrou parecia-se demasiado à imagem de um porto ativo, habitado pela clientela mercantil
e financeira do império britânico, com latifúndios e socavãos à retaguarda. A legião de
parasitas que recebera os comunicados da guerra de independência dançando o minueto
nos salões das cidades, brindava pela liberdade de comércio em taças de cristais britânicos.
Puseram na moda as mais altissonantes palavras de ordem da burguesia européia: nossos
países punham-se ao serviço dos industriais ingleses e dos pensadores franceses. Porém,
qual “burguesia nacional” era a nossa, formada pelos donos de terras, os grandes traficantes, comerciantes e especuladores, os políticos de fraque e doutores sem raízes? A América
Latina logo teve suas constituições burguesas, muito envernizadas de liberalismo, mas não
teve, em compensação, uma burguesia criadora, no estilo europeu ou norte-americano,
que se propusesse à missão histórica do desenvolvimento de um capitalismo nacional
pujante. As burguesias destas terras nasceram como simples instrumentos do capitalismo
internacional, prósperas peças da engrenagem mundial que sangrava as colônias e semicolônias. Os burgueses de vitrina, agiotas e comerciantes, que açambarcaram o poder
político, não tinham o menor interesse em impulsionar a ascensão das manufaturas
locais, já mortas ao nascer quando o livre-cambismo abriu as portas à avalanche de mercadorias britânicas. Seus sócios, os donos das terras, não estavam, por sua vez, interessados
em resolver “a questão agrária”, senão na medida de suas próprias conveniências. O
latifúndio consolidou-se sobre o saque, ao longo do século XIX. A reforma agrária foi, na
região, uma bandeira precoce.
Frustração econômica, frustração social, frustração nacional: uma história de traições
sucedeu à independência. A América Latina, desgarrada por suas novas fronteiras, continuou condenada à monocultura e à dependência. Em 1824, Simón Bolívar ditou o Decreto
de Trujillo para proteger os índios do Peru e reordenar ali o sistema de propriedade agrária:
suas disposições legais não feriram em absoluto os privilégios da oligarquia peruana, que
permaneceram intactos apesar dos bons propósitos do Libertador, e os índios continuaram
tão explorados como sempre. No México, Hidalgo e Morelos foram derrotados tempos
antes e transcorreria um século antes que rebrotassem os frutos de sua prédica pela
emancipação dos humildes e a reconquista das terras usurpadas.
No sul, José Artigas encarnou a revolução agrária. Este caudilho, com tanta sanha
caluniado e tão desfigurado pela história oficial, encabeçou as massas populares dos territórios que hoje ocupam Uruguai e as províncias argentinas de Santa Fé, Corrientes, Entre
Ríos, Misiones e Córdoba, no cicio heróico de 1811 a 1820. Artigas quis lançar as bases
econômicas, sociais e políticas de uma Pátria Grande nos limites do antigo vice-reinado do
Rio da Prata, e foi o mais importante e lúcido dos chefes federais que combateram o
centralismo aniquilador do porto de Buenos Aires. Lutou contra os espanhóis e portugueses e finalmente suas forças foram trituradas pelo jogo de tenazes do Rio de Janeiro e
Buenos Aires, instrumentos do império britânico, e pela oligarquia que, fiel ao seu estilo,
82
traiu-o, tão logo sentiu-se traída, por sua vez, pelo programa de reivindicações sociais do
caudilho.
Seguiam Artigas, lança na mão, os patriotas. Em sua maioria eram “paisanos”
pobres, gaúchos rústicos, índios que recuperavam na luta o sentido da dignidade, escravos
que ganhavam a liberdade incorporando-se ao exército da independência. A revolução dos
cavaleiros pastores incendiava a pradaria. A traição de Buenos Aires, que deixou em mãos
do poder espanhol e tropas portuguesas, em 1811 , o território que hoje ocupa o Uruguai,
provocou o êxodo maciço da população rumo ao norte. O povo em armas fez-se um povo
em marcha; homens e mulheres, velhos e crianças, numa caravana de peregrinos sem
fim. No norte, sobre o rio Uruguai, acampou Artigas, com as tropas de cavalo e carretas e
no norte estabeleceria, pouco tempo depois, seu governo. Em 1815, Artigas controlava
vastas comarcas de seu acampamento de Purifícación, em Paysandú. “Que lhes parece
que vi?!” - narrava um viajante inglês99 – “O Excelentíssimo Senhor Protetor da metade do
Novo Mundo estava sentado numa cabeça de boi, junto a um fogão aceso no solo lodoso de
seu rancho, comendo carne da churrasqueira e bebendo gim num chifre de vaca! Rodeava-o
uma dúzia de oficiais andrajosos...” De todas as partes chegavam, a galope, soldados,
ajudantes e exploradores. Passeando com as mãos nas costas, Artigas ditava os decretos
revolucionários de seu governo popular. Dois secretários - não existia papel carbono tomavam notas. Assim nasceu a primeira reforma agrária da América Latina, que se
aplicaria durante um ano na Província Oriental, hoje Uruguai, e que seria feita em pedacinhos por uma nova invasão portuguesa, quando a oligarquia abriu as portas de Montevidéu ao general Lecor e o saudou como a um libertador, conduzindo-o sob pálio a um solene
Te-déum, honra ao invasor, diante dos altares da catedral. Anteriormente, Artigas também
havia promulgado um regulamento alfandegário que cobrava forte imposto da importação de mercadorias estrangeiras competitivas com as manufaturas e artesanatos da terra,
de considerável desenvolvimento em algumas regiões hoje argentinas compreendidas
nos domínios do caudilho, ao mesmo tempo que liberava a importação dos bens de
produção necessários ao desenvolvimento econômico e adjudicava um gravame insignificante aos artigos americanos, como a erva-mate e o tabaco do Paraguai100. Os coveiros da
revolução também enterrariam o regulamento alfandegário.
O código agrário de 1815 - terra livre, homens livres - foi “a mais avançada e gloriosa
constituição”101 de quantas chegariam a conhecer os uruguaios. As idéias de Campomanes
e Jovellanos, no ciclo reformista de Carlos III, influíram sem dúvida sobre o regulamento
de Artigas, porém este surgiu, definitivamente, como urna resposta revolucionária à necessidade nacional de recuperação econômica e de justiça social. Decretava-se a expropriação e a repartição das terras dos “maus europeus e piores americanos” emigrados por
causa da revolução e não indultados por ela. Tomava-se a terra dos inimigos sem qualquer
indenização, e aos inimigos pertencia - dado importante - a imensa maioria dos latifúndios. Os filhos não pagavam pela culpa dos pais: o regulamento lhes oferecia o mesmo que
aos patriotas pobres. As terras eram distribuídas de acordo com o princípio de que “os mais
infelizes seriam os mais privilegiados”. Os índios tinham, na concepção de Artigas, “o
principal direito”. O sentido essencial desta reforma agrária consistia em assentar sobre a
terra os pobres do campo, convertendo em cidadão o gaúcho acostumado à vida errante da
guerra, e às tarefas clandestinas e contrabando, em tempos de paz. Os governos posterio99. J.P. e G.P. Robertson, La Argentina en la época de la Revolución. Cartas sobre el Paraguay,
Buenos Aires, 1920.
100. Washington Reyes Abadie, Óscar H. Bruschera e Tabaré Melogno, El ciclo artiguista, tomo
IV, Montevidéu, 1968.
101. Nelson de la Torre, Julio C. Rodríguez e Lucia Sala de Touron, Artigas, tierra y revolución,
Montevidéu, 1967.
83
res da bacia do Prata liquidaram a sangue e fogo o gaúcho, incorporando o à força ao
trabalho de peão nas grandes fazendas, mas Artigas quis torná-lo proprietário: “Os gaúchos insurretos começavam a gostar do trabalho honrado, levantavam ranchos e currais,
plantavam suas primeiras semeaduras”102.
A intervenção estrangeira acabou com tudo. A oligarquia levantou a cabeça e vingou-se.
A legislação desconheceu, posteriormente, a validade das doações de terras realizadas por
Artigas. Desde 1820 até fins do século foram desalojados, a sangue e fogo, os patriotas
pobres que tinham sido beneficiados pela reforma agrária. Não conservariam “outra terra
senão a de suas tumbas”. Derrotado, Artigas tinha marchado para o Paraguai, para morrer
só ao fim de um longo exílio de austeridade e de silêncio. Os títulos de propriedade por ele
expedidos não valiam nada: o fiscal do governo, Bernardo Bustamante, afirmava, por
exemplo, que se advertia à primeira vista “a desprezibilidade que caracteriza os indigitados
documentos”. Enquanto isso, seu governo se apressava para celebrar, já restaurada a
“ordem”, a primeira constituição de um Uruguai independente, desgarrado da Pátria
Grande por cuja consolidação Artigas tinha, em vão, lutado.
O regulamento de 1815 continha disposições especiais para evitar a acumulação de
terras em poucas mãos. Em nossos dias, o campo uruguaio oferece o espetáculo de um
deserto: quinhentas famílias monopolizam a metade da terra total e, constelação do poder, controlam também as três quartas partes do capital investido na indústria e no sistema bancário103. Os projetos de reforma agrária acumulam-se, uns sobre os outros, no
cemitério parlamentar, enquanto o campo se despovoa: os desempregados se somam aos
desempregados e há cada vez menos pessoas dedicadas às tarefas agropecuárias, segundo o dramático registro dos sucessivos recenseamentos. O país vive da lã e da carne,
porém em suas pradarias pastam, em nossos dias, menos ovelhas e menos vacas que no
princípio do século. O atraso dos métodos de produção reflete-se nos baixos rendimentos
da pecuária - entregue à paixão dos touros e carneiros na primavera, às chuvas periódicas
e à fertilidade natural do solo - e também das culturas agrícolas. A produção de carne por
animal não chega nem à metade da que obtém a França ou a Alemanha, e a mesma coisa
ocorre com o leite em comparação à Nova Zelândia, Dinamarca e Holanda; cada ovelha
rende um quilo menos de lã do que na Austrália. Os rendimentos do trigo por hectare são
três vezes menores do que os da França e, no milho, os rendimentos dos Estados Unidos
superam em sete vezes os do Uruguai104. Os grandes proprietários, que aplicam seus
lucros no exterior, passam seus verões em Punta del Este; nem no inverno, de acordo com
sua própria tradição, residem em seus latifúndios, os quais visitam, de vez em quando, de
teco-teco: há um século, quando se fundou a Associação Rural, dois terços de seus membros tinham já seu domicílio na capital. A produção extensiva, obra da natureza e dos
peões famintos, não dá maiores dores de cabeça. E certamente oferece lucros. As rendas e
os lucros dos capitalistas pecuários somam não menos de US$ 75 milhões por ano, atualmente105. Os rendimentos produtivos são baixos, mas os lucros são altos por causa dos
102. Nelson de la Torre, Julio C. Rodríguez e Lucia Sala de Touron, op. cit. Dos mesmos autores,
Evolución económica de la Banda Oriental, Montevidéu 1967, e Estructura económica de la
Colónia, Montevidéu, 1968.
103. Vivian Trías, Reforma agraria en el Uruguay, Montevidéu, 1962. Este livro constitui todo um
prontuário, família por família, da oligarquia uruguaia.
104. Eduardo Galeano, Uruguay: Promise and Betrayal em Latin America: Reform or Revolution?,
ed. por J.Petras e M. Zeitlin, Nova Iorque, 1968.
105. Instituto de Economia, El proceso económico del Uruguay. Contribuición al estudio de su
evolución y perspectivas, Montevidéu, 1969. Na época de auge da indústria nacional, fortemente
subsidiada e protegida pelo Estado, boa parte dos ganhos do campo derivou para as fábricas
nascentes. Quando a indústria entrou em seu agônico ciclo de crise, os excedentes de capital da
pecuária se voltaram para outra direções. As mais inúteis e luxuosas mansões de Punta del Este
84
baixíssimos custos. Uma paisagem sem homens: os maiores latifúndios ocupam, e não
durante todo o ano, apenas duas pessoas por cada mil hectares. Nas aldeias, à margem
das estâncias, acumulam-se, miseráveis, as reservas sempre disponíveis de mão-de-obra.
O gaúcho dos postais folclóricos, tema de quadros e poemas, tem pouco a ver com o peão
que trabalha, na realidade, terras grandes e estranhas. As alpargatas ocupam o lugar das
botas de couro; um cinturão comum, ou às vezes um simples barbante, substitui os largos
cinturões com adornos de ouro e prata. Aqueles que produzem a carne perderam o direito
de comê-la: os criollos raras vezes têm acesso ao churrasco criollo, a carne suculenta e
tenra, dourada nas brasas. Embora as estatísticas internacionais sorriam, exibindo rendas
médias enganosas, a verdade é que o “ensopado”, guisado de macarrões e tripas de
capão, constitui a dieta básica, carente de proteínas, dos camponeses no Uruguai106.
ARTEMIO CRUZ E A SEGUNDA MORTE DE EMILIANO ZAPATA
Exatamente um século depois do regulamento de terras de Artigas, Emiliano Zapata
pôs em prática, em sua comarca revolucionaria do sul do México, uma profunda reforma
agrária.
Cinco anos antes, o ditador Porfirio Díaz havia celebrado, com grandes festas, o
primeiro centenário do grito de Dolores: os cavalheiros de fraque, México oficial, olimpicamente ignoravam o México cuja miséria alimentava seus esplendores. Na república dos
parias, as rendas dos trabalhadores não haviam aumentado num só centavo desde o
histórico levante do cura Miguel Hidalgo. Em 1910, pouco mais de 800 latifundiários,
muitos deles estrangeiros, possuíam quase todo o território nacional. Eram playboys de
cidade, que viviam na capital ou na Europa e raramente visitavam as casas grandes de
seus latifúndios, onde dormiam protegidos por altas muralhas de perra escura, sustentadas por robustos contrafortes107. Do outro lado das muralhas, os peões se amontoavam em
quartinhos de adobe. Doze milhões de pessoas dependiam, numa população total de 15
milhões, de salários rurais; as diárias se pagavam quase por inteiro nos pequenos armazéns das fazendas, traduzidas, a preços altíssimos, em feijões, farinha e cachaça. A cadeia,
o quartel e a sacristia tinham a seu cargo a luta contra os defeitos naturais dos índios, os
quais, no dizer de um membro de uma família ilustre da época, nasciam “frouxos, bêbados e ladrões”. A escravidão, amarrado o trabalhador por dívidas que se herdavam ou por
contrato legal, era o sistema real de trabalho nas plantações de sisal de Yucatán, nas de
tabaco do Valle Nacional, nos bosques de madeira e frutas de Chiapas e Tabasco e nas
plantações de seringueira, café, cana-de-açúcar, tabaco e frutas de Veracruz, Oaxaca e
Morelos. John Keneth Turner, escritor norte-americano, denunciou, num esplêndido tesbrotaram da desgraça nacional; a especulação financeira deflagrou, depois, a febre dos pescadores
de água turva da inflação. Porém, sobretudo, os capitais fugiram: os capitais e os lucros que, anos
após anos, o país produz. Entre 1962 e 1966, segundo dados oficiais, 250 milhões de dólares
voaram do Uruguai rumo aos seguros bancos da Suíça e Estados Unidos. Também os homens, os
homens jovens, baixaram do campo à cidade, há vinte anos, para oferecer seus braços à indústria
em desenvolvimento, e hoje marcham, por terra ou por mar, rumo ao exterior. Mas, é claro, seu
destino é diferente. Os capitais são recebidos com os braços abertos; aos peregrinos lhes aguarda
um destino difícil, O desraizamento e a intempérie, a aventura incerta. O Uruguai de 1971,
estreirecido por uma crise feroz, não é o oásis de paz e progresso que atraía os imigrantes
europeus, mas um país turbulento que condena ao êxodo seus próprios habitantes. Produz
violência e exporta homens tão naturalmente como produz e exporta carne e lã.
106. German Wettstein e Juan Rudolf, La sociedad rural, Nuestra Tierra, nº 16, Montevidéu,
1969.
107. Jesús Silva Herzog, Breve historia de la revolución mexicana, México-Buenos Aires, 1960.
85
temunho de sua visita, que “os Estados Unidos converteram virtualmente Porfirio Díaz
num vassalo político e, em conseqüência, transformou o México em uma colônia escrava”108. Os capitais norte-americanos obtinham, direta ou indiretamente, suculentos lucros
de sua associação com a ditadura. “A norte-americanização do México, da qual tanto se
vangloria Wall Street - dizia Turner - está se executando como se fosse uma vingança.”
Em 1845, os Estados Unidos tinham anexado os territórios mexicanos de Texas e
Califórnia, onde restabeleceram a escravidão em nome da civilização. Na guerra, o México
também perdeu os atuais estados norte-americanos de Colorado, Arizona, Novo México,
Nevada, Utah. Mais da metade do país. O território usurpado eqüivalia à extensão atual
da Argentina. “Coitado do México! - diz-se desde então - Tão longe de Deus e tão perto dos
Estados Unidos.” O resto de seu território mutilado sofreu depois a invasão das inversões
norte-americanas no cobre, no petróleo, na borracha, no açúcar, no banco e nos transportes.
O American Cordage Trust, filial da Standard Oil, não estava em absoluto alheio ao extermínio dos índios maias e yaquis na plantações de sisal de Yucatán, campos de concentração onde os homens e as crianças eram comprados e vendidos como mulas, porque esta
era a empresa que comprava mais da metade do sisal produzido e convinha-lhe dispor de
fibras a preço barato. Outras vezes, a exploração da mão-de-obra escrava era direta, como
descobriu Turner. Um administrador norte-americano lhe contou que pagava os lotes de
peões empregados a cinqüenta pesos por cabeça, “e os conservávamos enquanto durem...
Em menos de três meses enterramos mais da metade”109.
Em 1910, chegou a hora do desquite. México levantou-se em armas contra Porfirio
Díaz. Um caudilho do campo encabeçou desde então a insurreição no sul: Emiliano Zapata,
o mais puro dos líderes da revolução, o mais leal à causa dos pobres, o mais fervoroso em
sua vontade de redenção social.
As últimas décadas do século XIX tinham sido tempos de espoliação feroz para as
comunidades agrárias de todo o México; os povoados e as aldeias de Morelos sofreram a
febril caçada de terras, águas e braços que as plantações de cana-de-açúcar devoravam em
sua expansão. As fazendas açucareiras dominavam a vida do Estado e sua prosperidade
gerara engenhos modernos, grandes destilarias e ramais ferroviários para transportar o
produto. Na comunidade de Anenecuilco, onde vivia Zapata e à qual pertencia de corpo e
alma, os camponeses indígenas reivindicavam sete séculos de trabalho contínuo sobre o
solo: estavam ali desde antes da chegada de Fernão Cortez. Os que se queixavam em voz
alta marchavam para os campos de trabalhos forçados em Yucatán. Como em todo o
Estado de Morelos, cujas terras boas estavam em mãos de 17 proprietários, os trabalhadores viviam muito pior do que os cavalos de pólo que os latifundiários mimavam em seus
estábulos de luxo. Uma lei de 1909 determinou que novas terras fossem arrebatadas a
seus legítimos donos e pôs fogo às já ardentes contradições sociais. Emiliano Zapata, o
cavaleiro de poucas palavras, famoso porque era o melhor domador do estado e unanimemente respeitado por sua honestidade e sua coragem, fez-se guerrilheiro. “Grudados no
rabo do cavalo do chefe Zapata”, os homens do sul formaram rapidamente um exército
libertador110.
Caiu Díaz, e Francisco Madero, nas ancas da Revolução, chegou ao poder. As pro108. John Kenneth Turner, México bárbaro, publicado nos Estados Unidos em 1911, México,
1967.
109. John Kenneth Turner, op. cit. O México era o país preferido pelos investimentos norteamericanos: reunia em fins do século pouco menos da terça parte dos capitais dos Estados
Unidos investidos no estrangeiro. No estado de Chihuahua e outras regiões do norte, William
Randolph Hearst, o célebre Citizen Kane do filme de Orson Welles, possuía mais de três milhões
de hectares. Fernando Carmona, El drama de América Latina. El Caso de México, México, 1964.
110. John Womack Jr., Zapata y la revolución mexicana, México, 1969.
86
messas de reforma agrária não demoraram em dissolver-se numa névoa institucionalista.
No dia de seu casamento, Zapata teve que interromper a festa: o governo tinha enviado as
tropas do general Victoriano Huerta para esmagá-lo. O herói convertera-se em “bandido”,
segundo os doutores da cidade. Em novembro de 1911, Zapata proclamou seu Plano de
Ayala, ao mesmo tempo que anunciava: “Estou disposto a lutar contra tudo e contra
todos.” O plano advertia que a “imensa maioria das gentes e cidadãos mexicanos não são
mais donos senão do terreno que pisam” e propugnava pela nacionalização total dos bens
dos inimigos da Revolução, a devolução a seus legítimos proprietários das terras usurpadas pela avalanche latifundiária e a expropriação da terça parte das terras dos fazendeiros restantes. O plano de Ayala converteu-se num ímã irresistível que atraía milhares e
milhares de camponeses às fileiras do caudilho reformista. Zapata denunciava “a infame
pretensão” de reduzir tudo a uma simples troca de pessoas no governo: a Revolução não
era feita para isso.
Cerca de dez anos durou a luta. Contra Díaz, contra Madero, logo contra Huerta, o
assassino, e mais tarde contra Venustiano Carranza. O longo tempo da guerra foi também
um período de intervenções norte-americanas contínuas: os marines tiveram a seu cargo
dois desembarques e vários bombardeios, os agentes diplomáticos urdiram conjuras políticas diversas e o embaixador Henry Lane Wilson organizou com êxito o crime do presidente Madero e seu vice. As mudanças sucessivas no poder não alteravam, em todo o caso, a
fúria das agressões contra Zapata e suas forças, porque elas eram a expressão não mascarada da luta de classes no fundo da revolução nacional: era o perigo real. Os governos e os
jornais bradavam contra “as hordas vandálicas” do general de Morelos. Poderosos exércitos foram enviados, um atrás do outro, contra Zapata.
Os incêndios, as matanças, a devastação dos povoados, foram, vez por outra, inúteis.
Homens, mulheres e crianças morriam fuzilados ou enforcados como “espias zapatistas”
e às carnificinas seguiam os anúncios de vitória: a limpeza foi um êxito. Porém, pouco
tempo depois voltavam a se acender as fogueiras nos moveis acampamentos revolucionários das montanhas do sul. Em várias oportunidades, as forças de Zapata contra-atacavam
com êxito até os subúrbios da capital. Depois da queda do regime de Huerta, Emiliano
Zapata e Pancho Villa, o “Átila do Sul” e o “Centauro do Norte”, entraram na cidade do
México como vencedores e fugazmente compartilharam o poder. Em fins de 1914, abriu-se
um breve ciclo de paz que permitiu a Zapata pôr em prática, em Morelos, uma reforma
agrária ainda mais radical do que a anunciada no Plano de AyaIa. O fundador do Partido
Socialista e alguns militantes anarcosindicalistas influíram muito neste processo:
radicalizaram a ideologia do líder do movimento, sem ferir suas raízes tradicionais, e lhe
proporcionaram uma imprescindível capacidade de organização.
A reforma agrária propunha-se a “destruir pela raiz e para sempre o injusto monopólio da terra para realizar um estado social que garanta plenamente o direito natural que
todo homem tem sobre a extensão de terra necessária a sua própria subsistência e à de sua
família”. Restituíam-se as torras, as comunidades e indivíduos despojados a partir da lei
de desamortização de 1856, fixavam-se limites máximos aos terrenos segundo o clima e a
qualidade natural, e declaravam-se propriedade nacional as fazendas dos inimigos da
Revolução. Esta última disposição política tinha, como na reforma agrária de Artigas, um
claro sentido econômico: os inimigos eram os latifundiários. Formaram-se escolas de técnicos, fábricas de ferramentas e um banco de crédito rural; nacionalizaram-se os engenhos
e as destilarias, que se converteram em serviços públicos. Um sistema de democracias
locais colocava nas mãos do povo as fontes do poder e a sustentação econômica. Nasciam
e difundiam-se escolas zapatistas, organizavam-se juntas populares para a defesa e a
promoção dos princípios revolucionários, uma democracia autêntica tomava forma. Os
municípios eram unidades nucleares do governo e o povo elegia as autoridades, seus
87
tribunais e sua polícia. Os chefes militares deviam submeter-se à vontade das populações
civis organizadas. Não era a vontade dos burocratas e generais que impunha os sistemas
de produção e de vida. A Revolução enlaçava-se com a tradição e operava “de conformidade com o costume e usos de cada povoado..., ou seja, que se determinado povoado
pretende um sistema comunal assim será feito, e se outro povoado deseja o fracionamento
da terra para reconhecer sua pequena propriedade, assim se fará”111.
Na primavera de 1915, todos os campos de Morelos já estavam sendo cultivados,
principalmente com milho e outros alimentos. A cidade do México padecia, enquanto isto,
por falta de alimentos, a iminente ameaça de fome. Venustiano Carranza havia conquistado a presidência e ditou, por sua vez, uma reforma agrária, porém seus chefes não demoraram em apoderar-se desse benefício; em 1916, se lançaram sobre Cuernavaca, capital de
Morelos, e as demais comarcas zapatistas. As culturas, que voltaram a dar frutos, os
minerais, as peles e algumas maquinarias, foram um espólio excelente para os oficiais,
que avançavam queimado tudo por onde passavam e proclamando, ao mesmo tempo,
“uma obra de reconstrução e progresso”.
Em 1919, um estratagema e uma traição terminaram com a vida de Emiliano Zapata.
Mil homens emboscados descarregaram os fuzis sobre seu corpo. Morreu com a mesma
idade de Che Guevara. Sobreviveu-lhe a lenda: o cavalo alazão que galopava só, rumo ao
sul, pelas montanhas. Porém não só a lenda. Morelos inteira se dispôs a “consumar a obra
do reformador, vingar o sangue do mártir e seguir o exemplo de herói”, e o país inteiro lhe
fez eco. Passou o tempo, e com a presidência de Lázaro Cárdenas (1934-1940), as tradições
zapatistas recobravam vida e vigor através da colocação em prática, por todo o México, da
reforma agrária. Expropriaram-se, sobretudo sob seu período do governo, 67 milhões de
hectares em poder de empresas estrangeiras ou nacionais e os camponeses receberam,
além da terra, créditos, educação e meios de organização para o trabalho. A economia e a
população do país tinham começado seu acelerado ascenso; multiplicou-se a produção
agrícola, enquanto o país inteiro modernizava-se e industrializava-se. Cresceram as cidades e ampliou-se, em extensão e em profundidade, o mercado de consumo.
Porém, o nacionalismo mexicano não derivou para o socialismo e, em conseqüência,
como ocorreu em outros países que tampouco deram o salto decisivo, não realizou cabalmente seus objetivos de independência econômica e justiça social. Um milhão de mortos
tinha tributado seu sangue, nos longos anos de revolução e guerra, “a um Huitzilopoxtli
mais cruel, duro e insaciável do que aquele adorado por nossos antepassados: o desenvolvimento capitalista do México, nas condições impostas pela subordinação ao imperialismo”112. Diversos estudiosos investigaram os sinais de deteriorização das velhas bandeiras.
Edmundo Flores afirma, numa publicação oficial113, que, “atualmente, 60% da população
total do México tem uma renda menor de 120 dólares por ano e passa fome”. Oito milhões
de mexicanos não consomem outra coisa além de feijão, tortas de milho e pimenta114".O
sistema não revela suas profundas contradições somente quando caem quinhentos estudantes mortos na matança de Tlatelolco. Recolhendo cifras oficiais, Alonso Aguiar chega à
conclusão de que há no México uns dois milhões de camponeses sem terra, três milhões
de crianças que não recebem educação, cerca de onze milhões de analfabetos e cinco
milhões de pessoas descalças115. A propriedade coletiva dos ejidatarios pulveriza-se conti111. John Wornack Jr., op. cit.
112. Fernando Carmona, op. cit.
113. Ednundo Flores, Adonde va la economia de México? cm Comércio exterior, vol. XX, nº 1,
México, janeiro de 1970.
114. Ana María Flores, La magnitud del hambre en México, México, 1961.
115. Alonso Aguilar M. e Fernando Carmona, op. cit. Veja-se também, dos mesmos autores e
Guillermo Motaño e Jorge Carrión, El milagro mexicano, México, 1970.
88
nuamente, e com a multiplicação de minifúndios, que se auto-fragmentam, surgiu um
latifundismo de novo cunho e uma nova burguesia agrícola dedicada à agricultura comercial em grande escala. Os donos de terra e os intermediários nacionais que conquistaram
uma posição dominante, driblando o texto e o espírito das leis, são por sua vez dominados,
e num livro recente são incluídos nos termos “and company” da empresa Anderson
Clayton116. No mesmo livro, o filho de Lázaro Cárdenas diz que “os latifúndios simulados
constituíram-se nas terras de melhor qualidade, nas mais produtivas”.
O romancista Carlos Fuentes reconstruiu, a partir da agonia, a vida de uma capitão
do exército de Carranza que vai abrindo caminho, a tiros e com astúcia, tanto na guerra
como na paz117. Homem de origem muito humilde, Artemio Cruz vai deixando para trás,
com a passagem dos anos, o idealismo e o heroísmo da juventude: usurpa terras, funda e
multiplica empresas, faz-se deputado, sobe em sua brilhante carreira rumo aos cumes
sociais, acumulando fortuna, poder e prestígio, com base nos negócios, subornos, especulação, grandes golpes de audácia e repressão a sangue e fogo da indiada. O processo do
personagem parece o processo do partido que, grande impotência da Revolução mexicana, virtualmente monopoliza a vida política do país em nossos dias. Ambos caíram para
cima.
O LATIFÚNDIO MULTIPLICA AS BOCAS MAS NÃO MULTIPLICA OS PÃES
A produção agropecuária por habitante da América Latina é, hoje, menor do que na
véspera da Segunda Guerra Mundial. Transcorreram 30 longos anos; no mundo, a produção de alimentos cresceu, neste período, na mesma proporção em que, em nossas terras,
diminuiu. A estrutura do atraso do campo latino-americano opera também como uma
estrutura de desperdício: desperdício da força de trabalho, da terra disponível, dos capitais, do produto e, sobretudo, desperdício das fugidias oportunidades históricas de desenvolvimento. O latifúndio e seu parente pobre, o minifúndio, constituem, em quase todos
os países latino-americanos, o gargalo da garrafa que estrangula o crescimento agropecuário
e o desenvolvimento de toda a economia. O regime de propriedade imprime sua marca no
regime de produção: 1,5% dos proprietários agrícolas latino-americanos possui a metade
do total das terras cultiváveis, e a América Latina gasta, anualmente, mais de US$ 500
milhões para comprar, no estrangeiro, alimentos que poderia produzir sem dificuldade
alguma em suas imensas e férteis terras. Apenas 5% da superfície total é cultivada: a
proporção mais baixa do mundo e, em conseqüência, o maior desperdício118.Nas escassas terras
cultivadas, os rendimentos são, além de tudo, muito baixos. Em numerosas regiões, há
muito mais arados de madeira que tratores. Não se empregam, com raras exceções, as
técnicas modernas, cuja difusão não só implicaria a mecanização dos trabalhos agrícolas,
mas também o auxílio e o estímulo aos solos, através dos adubos, herbicidas, sementes
selecionadas, pesticidas e irrigação artificial119. O latifúndio integra, às vezes, como um Rei
Sol, uma constelação de poder que, para usar a feliz expressão de Maza Zavala120, multiplica os famintos mas não os pães. Em vez de absorver mão-de-obra, o latifúndio a expulsa: em quarenta anos, a proporção de trabalhadores do campo caiu, na América Latina, de
116. Rodolfo Stavenhagen, Fernando Paz Sánchez, Cuauhtémoc Cárdenas e Arturo Bonilla,
Neolatifundismo y explotación. De Emiliano Zapata a Anderson Clayton & Co., México, 1968.
117. Carlos Fuentes, La muerte de Artemio Cruz, México, 1962.
118. FA O, Anuario de la producción, vol. 19, 1965.
119. Alberto Baltra Cortés, Problemas y subdesarrollo económico latinoamericano, Buenos Aires,
1966.
120. D.F. Maza Zavala, Explosión demográfica y crescimiento económico, Caracas, 1970.
89
63 a 40%. Não faltam tecnocratas dispostos a afirmar, aplicando mecanicamente receitas
feitas, que isto é um índice de progresso: a urbanização acelerada, a migração maciça da
população camponesa. Os desempregados, que o sistema vomita sem parar, afluem, de
fato, para as cidades e ampliam seus subúrbios. Porém as fábricas, que também segregam
desempregados à medida que se modernizam, não oferecem refúgio a esta mão-de-obra
excedente e não especializada. Os escassos progressos tecnológicos do campo aguçam o
problema. Incrementaram-se os lucros dos donos de terra, quando incorporam meios
mais modernos na exploração de suas propriedades, porém mais braços ficam sem atividade e se torna maior a brecha que separa ricos e pobres. A introdução de equipamentos
motorizados, por exemplo, elimina mais empregos rurais do que os cria. Os latino-americanos
que produzem, em jornadas de sol a sol, os alimentos, sofrem normalmente de desnutrição: suas
rendas são miseráveis, a renda que o campo gera gasta-se nas cidades ou emigra para o exterior.As
melhores técnicas, que aumentam os magros rendimentos do solo mas deixam intacto o
regime de propriedade vigente, não são, decerto, embora contribuam para o progresso
geral, uma bênção para os camponeses. Não crescem seus salários nem sua participação
nas colheitas. O campo irradia pobreza para muitos e riqueza para muito poucos. Os aviões
particulares sobrevoam desertos miseráveis, multiplica-se o luxo estéril nos grandes balneários e a Europa ferve de turistas latino-americanos cheios de dinheiro, que descuidam
do cultivo de suas terras mas não se descuidam, é claro, do cultivo de seus “espíritos”.
Paul Bairoch atribui a debilidade principal da economia do Terceiro Mundo ao fato
de sua produtividade agrícola média só alcançar a metade do nível obtido, nas vésperas da
Revolução Industrial, pelos países hoje desenvolvidos121. Com efeito, a indústria, para
expandir-se harmoniosamente, requereria um aumento muito maior da produção de
alimentos e de matérias-primas agropecuarias. Alimentos, porque as cidades crescem e
comem; matérias-primas, para as fábricas e para a exportação, de maneira a diminuir as
importações agrícolas e aumentar as vendas no exterior, gerando as divisas que o desenvolvimento requer.Por outra parte, o sistema de latifúndios e minifúndios implica o
raquitismo do mercado interno e, sem sua expansão, a indústria nascente perde terreno.
Os salários de fome no campo e o exército de reserva cada vez mais numeroso de desempregados conspiram neste sentido: os emigrantes rurais, que vivem a bater nas portas das
cidades, empurram para baixo o nível geral de salário dos operários.
Desde que a finada Aliança para o Progresso proclamou, aos quatro ventos, a necessidade da reforma agrária, a oligarquia e a tecnocracia não cessaram de elaborar projetos.
Dezenas de projetos, gordos, magros, largos, estreitos, dormem nas prateleiras dos parlamentos de todos os países latino-americanos. A reforma agraria já não é um tema maldito:
os políticos aprenderam que a melhor maneira de não fazê-la consiste em invocá-la continuamente. Os processos simultâneos de concentração e pulverização da propriedade da
terra continuam, olímpicos, seu curso na maioria dos países. Não obstante, as exceções
começam a abrir caminho.
Porque o campo não é somente um viveiro de pobreza: é, também, um viveiro de
rebeliões, embora as tensões sociais agudas se ocultem freqüentemente, mascaradas pela
resignação aparente das massas. O Nordeste do Brasil, por exemplo, impressiona à primeira vista como um bastião do fatalismo, cujos habitantes aceitam morrer de fome tão
passivamente como aceitam a chegada da noite ao fim do dia. Porém não está longe o
tempo, afinal, da explosão mística dos nordestinos que combateram junto a seu messias,
apóstolos extravagantes, levantando a cruz e os fuzis contra o exército, para trazer para
esta terra o reino dos céus, nem as furiosas marés de violência dos cangaceiros: os fanáticos
e os bandoleiros, utopia e vingança, deram razão ao protesto social, apesar de cego, dos
121. Paul Bairoch, Diagnostic de l'évolution économique du Tiers Monde. 1900-1966, Paris,
1967.
90
camponeses desesperados 122 . As ligas camponesas recuperariam mais tarde,
aprofundando-as, estas tradições de luta.
O regime militar que tomou o poder no Brasil em 1964 não demorou em anunciar
sua reforma agrária. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária foi, como notou Paulo
Schilling, um caso único no mundo: ao invés de distribuir terras para os camponeses,
dedicou-se a expulsá-los, para restituir aos latifundiários as extensões espontaneamente
invadidas ou expropriadas por governos anteriores. Em 1966 e 1967, antes do maior rigor
da censura à imprensa, os jornais costumavam denunciar os saques, incêndios e perseguições que as tropas da polícia levavam a cabo por ordem do atarefado Instituto (IBRA).
Outra reforma agrária digna de uma antologia é a que se promulgou no Equador em
1964. O governo só distribuiu terras improdutivas, facilitando, ao mesmo tempo, a concentração das terras de melhor qualidade em mãos dos grandes latifundiários. A metade das
terras distribuídas pela reforma agrária da Venezuela, a partir de 196O, eram de propriedade pública; as grandes plantações comerciais não foram tocadas e os latifundiários expropriados receberam indenizações tão altas que obtiveram esplêndidos lucros e compraram
novas terras em outras zonas.
O ditador argentino Juan Carlos Organía esteve a ponto de antecipar em dois anos
sua queda, quando em 1968 tentou aplicar um novo regime de impostos à propriedade
rural. O projeto intentava tributar as improdutivas planuras peladas mais severamente do
que as terras produtivas. A oligarquia do boi pôs a boca no trombone, mobilizou suas
próprias armas no Estado Maior, e Organía teve que esquecer suas heréticas intenções. A
Argentina dispõe, como o Uruguai, de pradarias naturalmente férteis que, sob o influxo de
um clima benigno, lhe tem permitido desfrutar de uma prosperidade relativa na América
Latina. Porém, a erosão vai corroendo sem piedade as imensas planuras abandonadas que
não são destinadas à cultura nem ao pastoreio, e o mesmo ocorre com grande parte dos
milhões de hectares dedicados à exploração extensiva do gado. Como no Uruguai, embora
em menor grau, essa exploração extensiva está no fundo da crise que sacudiu a economia
argentina nos anos 60. Os latifundiários argentinos não mostraram maior interesse por
introduzir inovações técnicas em seus campos. A produtividade é baixa porque convém
que seja assim; a lei do lucro pode mais do que todas as leis. A extensão das propriedades,
através da compra de novos campos, é mais lucrativa e menos arriscada do que a colocação
em prática dos meios que a tecnologia moderna proporciona para a produção intensiva123.
Em 193 1, a Sociedade Rural opunha o cavalo ao trator: “Agricultores pecuaristas! proclamavam seus dirigentes - Trabalhar com cavalos nas tarefas agrícolas é proteger seus
próprios interesses e os do país.” Vinte anos depois, insistia em suas publicações: “É mais
fácil - disse um conhecido militar - que o pasto chegue ao estômago de um cavalo do que
a gasolina ao tanque de um pesado caminhão”124. Segundo os dados da CEPAL, a Argentina tem, em proporção aos hectares de superfície arável, 16 vezes menos tratores do que
a França e 19 vezes menos tratores do que o Reino Unido. O país consome, também em
proporção, 140 vezes menos fertilizantes do que a Alemanha Ocidental125. Os rendimen122. Rui Facó, Cangaceiros e fanáticos, Rio de Janeiro, 1965.
123. O prado artificial representa, sob o prisma do capitalista pecuarista, um translado de capital
para uma inversão mais volumosa, mais perigosa e simultaneamente menos rentável do que a
inversão tradicional na pecuária extensiva. Assim, o interesse privado do produtor entra em
contradição com o interesse da sociedade em conjunto: a qualidade do gado e seus rendimentos
só podem ser incrementados, a partir de certo ponto, através do aumento do poder nutritivo do
solo. O país precisa de que as vacas produzam mais carne e as ovelhas mais lã, porém os donos
da terra ganham mais do que o suficiente, ao nível dos rendimentos atuais. As conclusões do
Instituto de Economia da Universidade do Uruguai (op. cit.) são, neste sentido, também aplicáveis à Argentina.
124. Dardo Cúneo, Comportamiento y crisis de la clase empresaria, Buenos Aires, 1967.
91
tos do trigo, milho e algodão da agricultura argentina são muito mais baixos do que os
rendimentos destas culturas nos países desenvolvidos.
Juan Domingo Perón desafiou os interesses da oligarquia de terras da Argentina,
quando impôs o estatuto do peão e o cumprimento do salário-mínimo rural. Em 1914, a
Sociedade Rural afirmava: “Na fixação dos salários é primordial determinar o padrão de
vida do peão comum. São às vezes tão limitadas suas necessidades materiais que um
resíduo tem destinos socialmente pouco interessantes.” A Sociedade Rural continua falando dos peões como se fossem animais, e a profunda meditação a propósito das curtas
necessidades de consumo dos trabalhadores oferece, involuntariamente, uma boa chave
para compreender as limitações do desenvolvimento industrial argentino: o mercado
interno não se estende nem se aprofunda na medida suficiente. A política de desenvolvimento econômico que impulsionou o próprio Perón não rompeu nunca a estrutura de
subdesenvolvimento agropecuário. Em junho de 1952, num discurso que pronunciou do
Teatro Colón, Perón desmentiu que tivesse o propósito de realizar uma reforma agraria, e
a Sociedade Rural comentou oficialmente: “Foi uma boa dissertação.”
Na Bolívia, graças à reforma agrária de 1952, melhorou visivelmente a alimentação
em vastas zonas rurais do altiplano, tanto que até se comprovaram mudanças de estatura
dos camponeses. Todavia, o conjunto da população boliviana consome ainda apenas uns
60% das proteínas e a quinta parte do cálcio necessário na dieta mínima; nas áreas rurais,
o déficit é ainda mais agudo que estas médias. Não se pode dizer de modo algum que a
reforma agrária fracassou, mas a divisão das terras altas não bastaram para impedir que a
Bolívia gaste, em nossos dias, a quinta parte de suas divisas para importar alimentos do
estrangeiro.
A reforma agrária que o governo militar do Peru pôs em prática, em 1969, mostrou
ser, desde o início, uma séria experiência de mudança em profundidade. E a respeito da
expropriação de alguns latifúndios chilenos por parte do governo de Eduardo Frei, é justo
reconhecer que abriu o leito à reforma agrária radical tentada por Allende.
AS TREZE COLÔNIAS DO NORTE E A IMPORTÂNCIA DE NÃO NASCER IMPORTANTE
A apropriação privada da terra sempre se antecipou, na América Latina, ao seu
cultivo útil. Os traços mais retrógrados do sistema de posse, atualmente vigente, não
provêm da crise, mas nasceram durante os períodos de maior prosperidade; ao contrário,
os períodos de depressão econômica apaziguaram a voracidade dos latifundiários pela
conquista de novas extensões. No Brasil, por exemplo, a decadência do açúcar e o virtual
desaparecimento do ouro e diamante tornaram possível, entre 1820 e 1850, uma legislação que assegurava a propriedade da terra a quem a ocupasse e a fizesse produzir. Em
1850, a ascensão do café como novo “produto rei” determinou a sanção da Lei de Terras,
cozinhada segundo o paladar dos políticos e dos militares do regime oligárquico, para
negar a propriedade para os que nela trabalhassem, na medida em que iam-se abrindo,
até o sul e o oeste, os gigantescos espaços inteiros do país. Esta lei “foi reforçada e ratificada,
desde então, por uma copiosíssima legislação, que estabelecia a compra como única forma
de acesso à terra e criava um sistema cartorial de registro que tornava quase impraticável
que um lavrador pudesse legalizar sua posse...126
A legislação norte-americana da mesma época propôs-se ao objetivo oposto, para
125. CEPAL, Estudio económico de América Latina, Santiago do Chile, 1964 o 1966, e El uso de
fertilizantes en América Latina, Santiago do Chile, 1966.
126. Darcy Ribeiro, Las Américas y la civilización, Tomo II, Los pueblos nuevos, Buenos Aires,
1969.
92
lotes de 65 hectares. Cada beneficiário comprometia-se a cultivar sua parcela por um
período não menor do que cinco anos127. O domínio público colonizou-se com uma rapidez
assombrosa: a população aumentava e se propagava como uma enorme mancha de óleo
sobre o mapa. A terra acessível, fértil e quase gratuita, atraía os camponeses europeus
como um ímã irresistível: cruzavam o oceano e também os Apalaches rumo às pradarias
abertas. Foram os granjeiros livres, assim, os que ocuparam os novos territórios do centro
e do oeste. Enquanto o país crescia em superfície e em população, criavam-se fontes de
trabalho agrícola para evitar o desemprego e ao mesmo tempo gerava-se um mercado
interno com grande poder aquisitivo, a enorme massa dos granjeiros proprietários, para
sustentar o desenvolvimento industrial.
Em compensação, os trabalhadores rurais que há mais de um século mobilizavam
com ímpeto a fronteira interior do Brasil, não foram nem são famílias de camponeses
livres em busca de uma nesga de terra própria - como observa Darcy Ribeiro - mas,
trabalhadores braçais, contratados para servir aos latifundiários, que previamente tomaram posse dos grandes espaços vazios. Os desertos interiores nunca foram acessíveis à
população rural. Em proveito alheio, os trabalhadores foram abrindo o país, a golpes de
facão, através das selvas. A colonização foi uma simples extensão da área latifundiária.
Entre 1950 e 1960, 65 latifúndios brasileiros absorveram a quarta parte das novas terras
incorporadas à agricultura128.
Estes dois sistemas opostos de colonização interior mostram uma das diferenças
mais importantes entre os modelos de desenvolvimento dos Estados Unidos e da América
Latina. Por que o norte é mais rico e o sul mais pobre? O rio Bravo marca muito mais do que
uma fronteira geográfica. O profundo desequilíbrio de nossos dias, que parece confirmar a
profecia de Hegel sobre a inevitável guerra entre uma e outra América, nasceu da expansão imperialista dos Estados Unidos ou tem raízes mais antigas? Na realidade, no norte e
no sul tinham-se gerado, já na matriz colonial, sociedades muito pouco parecidas e a
serviço de fins que não eram os mesmos129. Os peregrinos do Mayflower não atravessaram
o mar para conquistar tesouros legendários nem para arrasar civilizações indígenas
inexistentes no norte, mas para se estabelecer com suas famílias e reproduzir, no Novo
Mundo, o sistema de vida e de trabalho que praticavam na Europa. Não eram mercenários, mas pioneiros; não vinham para conquistar, mas para colonizar: fundaram “colônias de
povoamento”. É certo que o processo posterior desenvolveu, ao sul da baía de Delaware,
uma economia de plantações escravistas semelhante a que surgiu na América Latina, mas
com a diferença que nos Estados Unidos o centro de gravidade esteve, desde o começo,
radicado nas granjas e oficinas da Nova Inglaterra, de onde sairiam os exércitos vencedores da Guerra de Secessão no século XIX. Os colonos da Nova Inglaterra, núcleo original da
civilização norte-americana, não atuaram nunca como agentes coloniais da acumulação
capitalista européia; desde o princípio, viveram ao serviço de seu próprio desenvolvimento
e do desenvolvimento de sua terra nova. As treze colônias do norte serviram de desembocadura ao exército de camponeses e artesãos europeus que o desenvolvimento metropolitano ia lançando fora do mercado de trabalho. Trabalhadores livres formaram a base daquela
nova sociedade deste lado do mar.
Espanha e Portugal contaram, em compensação, com grande abundância de
mão-de-obra servil na América Latina. À escravização dos indígenas sucedeu o transplante
em massa dos escravos africanos. Ao longo dos séculos, houve sempre uma legião enorme
de camponeses desempregados disponíveis para serem transferidos aos centros de produção: as zonas florescentes coexistiram com as decadentes, ao ritmo dos auges e quedas
das exportações de metais preciosos ou açúcar, e as zonas em decadência supriam de
127. Edward C. Kirkland, Historia económica de Estados Unidos, México, 1941.
128. Celso Furtado, Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1969.
129. Lewis Hanke e outros autores Do the Americas have a common history? (Nova Iorque,
1964) soltam em vão a imaginação na ânsia de encontrar identidades entre os processos históricos do norte e do sul.
93
mão-de-obra as zonas florescentes. Esta estrutura persiste até hoje, e ainda implica um
baixo nível de salários, pela pressão que os desempregados exercem sobre o mercado de
trabalho, e frustra o crescimento do mercado interno de consumo. Mas além disso, ao
contrário dos puritanos do norte, as classes dominantes da sociedade colonial latino-americana não se orientaram jamais para o desenvolvimento econômico interno.
Seus ganhos vinham de fora; estavam mais vinculados ao mercado estrangeiro do que à
própria comarca. Donos de terras, mineiros e mercadores tinham nascido para cumprir
esta função: abastecer a Europa de ouro, prata e alimentos. Os caminhos transportavam
cargas num só sentido: rumo ao porto e aos mercados de ultramar. Esta é também a chave
que explica a expansão dos Estados Unidos como unidade nacional e o fracionamento da
América Latina: nossos centros de produção não estavam conectados entre si, porém
formavam um leque com o vértice muito longe.
As treze colônias do norte tiveram, pode-se bem dizer, a dita da desgraça. Sua experiência
histórica mostrou a tremenda importância de não nascer importante. Porque no norte da América
não tinha ouro nem prata, nem civilizações indígenas com densas concentrações de população já
organizada para o trabalho, nem solos tropicais de fertilidade fabulosa na faixa costeira que os
peregrinos ingleses colonizaram. A natureza tinha-se mostrado avara, e também a história:
faltavam metais, e mão-de-obra escrava para arrancar metais do ventre da terra. Foi uma
sorte, No resto, desde Maryland até Nova Escócia, passando pela Nova Inglaterra, as
colônias do norte produziam, em virtude do clima e pelas características dos solos, exatamente o mesmo que a agricultura britânica, ou seja, não ofereciam à metrópole, como
adverte Bagú130, uma produção complementar.Muito diferente era a situação das Antilhas
e das colônias ibéricas de terra firme. Das terras tropicais brotavam o açúcar, o algodão, o
anil, a terebintina; uma pequena ilha do Caribe era mais importante para a Inglaterra, do
ponto de vista econômico, do que as treze colônias matrizes dos Estados Unidos.
Estas circunstâncias explicam a ascensão e a consolidação dos Estados Unidos, como
um sistema economicamente autônomo, que não drenava para fora a riqueza gerada em
seu seio. Eram muito frouxos os laços que atavam a colônia à metrópole; em Barbados ou
Jamaica, em compensação, só se reinvestiam os capitais indispensáveis para repor os
escravos na medida em que se iam gastando. Não foram fatores raciais, como se vê, os que
decidiram o desenvolvimento de uns e o subdesenvolvimento de outros: as ilhas britânicas das Antilhas não tinham nada de espanholas nem portuguesas. A verdade é que a
insignificância econômica das trezes colônias permitiu a precoce diversificação de suas
manufaturas. A industrialização norte-americana contou, desde antes da independência,
com estímulos e proteções oficiais. A Inglaterra mostrava-se tolerante, ao mesmo tempo
que proibia estritamente que suas ilhas antilhanas fabricassem até mesmo um alfinete.
AS FONTES SUBTERRÂNEAS DO PODER
A ECONOMIA NORTE-AMERICANA PRECISA DOS MINERAIS DA AMÉRICA LATINA COMO OS PULMÕES
NECESSITAM DE AR
Os astronautas já tinham imprimido as primeiras marcas humanas sobre a superfície da lua, quando, em julho de 1969, o pai da façanha, Werner von Braun, anunciava à
imprensa que os Estados Unidos se propunham a instalar uma longínqua estação no
espaço, com propósitos bem mais próximos: “Desta maravilhosa plataforma de observa130. Sergio Bagú, op. cit.
94
ção - declarou - poderemos examinar todas as riquezas da Terra: os poços de petróleo
desconhecidos, as minas de cobre e de zinco...”
O petróleo continua a ser o principal combustível de nosso tempo, e os
norte-americanos importam a sétima parte do petróleo que consomem. Para matar
vietnamitas, precisam de balas, e balas precisam de cobre: os Estados Unidos compram
fora de suas fronteiras a quinta parte do cobre que gastam. A falta de zinco se torna cada
vez mais angustiosa: cerca da metade vem do exterior. Não se pode fabricar aviões sem
alumínio, e não se pode fabricar alumínio sem bauxita: os Estados Unidos quase não têm
bauxita. Seus grandes centros siderúrgicos - Pittsburgh, Cleveland Detroit - não encontram
ferro suficiente nas jazidas de Minnesota, que estão a caminho de se esgotarem, nem têm
o manganês de que necessita. Para produzir motores do retropropulsão, não contam com
níquel nem com cromo em seu subsolo. Para fabricar aços especiais, é preciso ter tungstênio:
importam a quarta parte.
Esta dependência crescente, em relação aos fornecimentos externos, determina
uma identificação também crescente dos interesses capitalistas norte-americanos na
América Latina com a segurança nacional dos Estados Unidos. A estabilidade interior da
primeira potência do mundo está intimamente ligada às inversões norte-americanas ao
sul do rio Bravo. Cerca da metade destas inversões é dedicada à extração de petróleo e à
exploração de riquezas minerais, “indispensáveis para a economia dos Estados Unidos,
tanto na paz como na guerra”1. O presidente do Conselho Internacional da Câmara de
Comércio do país do norte o define assim: “Historicamente, uma das razões principais de
os Estados Unidos para investirem no exterior é o desenvolvimento de recursos naturais,
particularmente minerais e, mais especialmente, o petróleo. É perfeitamente óbvio que os
incentivos deste tipo de inversões devam ser incrementadas. Nossas necessidades de
matérias-primas estão em constante aumento, na medida em que a população se expande e o nível de vida sobe. Ao mesmo tempo, nossos recursos domésticos se esgotam...”2 Os laboratórios científicos do governo, das universidades e das grandes corporações
envergonham a imaginação com o ritmo febril de suas invenções e descobertas, mas a
nova tecnologia não encontrou a maneira de prescindir dos materiais básicos que a natureza, e só ela, proporciona.
Vão-se debilitando, ao mesmo tempo, as respostas que o subsolo nacional é capaz de
dar ao desafio do crescimento industrial dos Estados Unidos3.
O SUBSOLO TAMBÉM PRODUZ GOLPES DE ESTADO, REVOLUÇÕES, ESTÓRIAS DE ESPIONAGEM E
AVENTURAS NA SELVA AMAZÔNICA
No Brasil, as esplêndidas jazidas de ferro do vale do Paraopeba derrubaram dois
presidentes - Jânio Quadros e João Goulart - antes que o marechal Castelo Branco, que
tomou o poder em 1964, os cedesse a Hanna Mining Co. Outro amigo anterior do embaixador dos Estados Unidos, o presidente Eurico Gaspar Dutra (1946-51), tinha concedido à
Bethlehem Steel, alguns anos antes, as quarenta milhões de toneladas de manganês do
Estado de Amapá, uma das maiores jazidas do mundo, em troca de 1,4% para o Estado
sobre as rendas de exportação; desde então, a Bethlehem está transferindo as montanhas
1. Edwin Lieuwcn, The United States and the Challenge to Security in Latin America, Ohio,
1966.
2. Philip Courtney, num trabalho apresentado ante o II Congresso Internacional de Poupança e
Inversão, Bruxelas, 1959.
3. Harry Magdoff, La era del imperialismo, em Monthly Review, seleções em castelhano, Santiago do Chile, janeiro-fevereiro de 1969, e Claude Julien, L'Empire Américain, Paris, 1969.
95
para os Estados Unidos com tal entusiasmo que se teme que daqui a quinze anos o Brasil
fique sem manganês para abastecer sua própria siderurgia. De resto, de cada cem dólares
que a Bethlehem investe na extração de minerais, oitenta e oito correspondem a uma
gentileza do governo brasileiro: as isenções fiscais em nome do “desenvolvimento regional”. A experiência do ouro perdido de Minas Gerais - “ouro branco, ouro negro, ouro
podre”, escreveu o poeta Manuel Bandeira - não serviu, como se vê, para nada: o Brasil
continua despojando-se gratuitamente de suas fontes naturais de desenvolvimento4. Por
sua parte, o ditador Renê Barrientos apoderou-se da Bolívia em 1964 e, entre uma e ou tra
matança de mineiros, outorgou à firma Philips Brothers a concessão da mina Matilde, que
contém chumbo, prata e grandes jazidas de zinco com um teor doze vezes mais alto do que
as minas norte-americanas. A empresa foi autorizada a levar o zinco em bruto, para
elaborá-lo em suas refinarias estrangeiras, pagando ao Estado nada menos de 1,5% do
valor de venda do mineral5. No Peru, em 1968, perdeu-se misteriosamente a página
número 11 do convênio que o presidente Belaúnde Terry tinha firmado aos pés de uma
filial da Standard Oil; o general Velasco Alvarado derrubou o presidente, tomou as rédeas
do país e nacionalizou os poços e a refinaria da empresa. Na Venezuela, no grande lago de
petróleo da Standard Oil e da Gulf, tem lugar a maior missão militar norte-americana da
America Latina. Os freqüentes golpes de estado da Argentina explodem antes e depois de
cada licitação petrolífera. O cobre não está de modo algum alheio à desproporcionada
ajuda militar que o Chile recebia do Pentágono até o triunfo eleitoral das forças de esquerda encabeçadas por Salvador Allende; as reservas norte-americanas de cobre tinham caído
em mais de 60% entre 1965 e 1969. Em 1964, em seu gabinete de Havana, Che Guevara
me mostrou que a Cuba de Batista não era só de açúcar: as grandes jazidas cubanas de
níquel e manganês explicavam melhor, em seu juízo, a fúria cega do império contra a
revolução. Desde aquela conversa ção, as reservas de níquel dos Estados Unidos se reduziram a um terço: a empresa norte-americana Nicro-Nickel fora nacionalizada e o presidente Johnson ameaçara os metalúrgicos franceses com o embargo de seus envios aos
Estados Unidos, se comprassem o minério de Cuba.
Os minérios tiveram muito que ver com a queda do governo do socialista Cheddi
Jagan, que em fins de 1964 obtivera novamente a maioria dos votos no que então era a
Guiana inglesa. O país que hoje se chama Guiana é o quarto produtor mundial de bauxita
e figura no terceiro lugar entre os produtores latino-americanos de manganês. A CIA
desempenhou um papel decisivo na derrota de Jagan. Arnold Zander, o dirigente máximo
da greve que serviu de provocação e pretexto para negar com armadilhas a vitória eleitoral
de Jagan, admitiu publicamente, tempos depois, que seu sindicato tinha recebido uma
chuva de dólares de uma das fundações da Agência Central de Inteligência dos Estados
Unidos6. O novo regime, muito ocidental e muito cristão, garantiu que não correriam
perigo os interesses da Aluminium Company of America na Guiana: a empresa poderia
continuar levando, sem sobressaltos, a bauxita, e vendê-la a si mesma ao mesmo preço de
1938, embora desde então houvesse se multiplicado o preço do alumínio7. O negócio já
4. O governo do México advertiu a tempo, em compensação, que o país, um dos principais
exportadores de enxofre, estava se esvaziando. A Texas Gulf Sulphur Co. e a Pan American
Sulphur tinham assegurado que as reservas com que ainda contavam suas concessões eram seis
vezes mais abundantes do que eram na realidade, e o governo resolveu, em 1965, limitar as
vendas ao exterior.
5. Sergio Almaraz Paz, Réquiem para una república, La Paz, 1969.
6. Claude Julien, op. cit.
7. Arthur Davies, presidente da Aluminium Co. durante muito tempo, morreu em 1962 e deixou
trezentos milhões de dólares de herança às fundações de caridade, com a expressa condição de
que não gastassem os fundos fora do território dos Estados Unidos. Nem sequer por esta via
pôde a Guiana resgatar ainda que fosse uma parte da riqueza que a empresa lhe arrebatou. (Philip
96
não corria perigo. A bauxita de Arkansas vale o dobro da bauxita da Guiana. Os Estados
Unidos dispõem de muito pouca bauxita em seu território; utilizando matéria-prima alheia
e muito barata, produzem, em compensação, quase a metade do alumínio que se elabora
no mundo.
Para abastecer-se da maior parte dos minerais estratégicos que se consideram de
valor crítico para seu potencial de guerra, os Estados Unidos dependem das fontes externas. “O motor de retroprosulsão, a turbina de gás e os reatores nucleares têm hoje uma
enorme influência sobre a demanda de materiais que só podem ser obtidos no exterior”,
diz Magdoff neste sentido8. A imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescindíveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente
vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia
brasileira. Na década de 60, numerosas empresas norte-americanas, conduzidas pela mão
de aventureiros e contrabandistas profissionais, se lançaram num rush febril sobre esta
selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força
Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipamentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de
ondas de luz de intensidade variável, electromagnetrômetros, para radiografar o subsolo
rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os informes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas
secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas, interessadas no
assunto, graças aos bons serviços do Geological Survey do governo dos Estados Unidos9.
Na imensa região, comprovou-se a existência de ouro, prata, diamantes, gipsita, hematita,
magnetita, tantálio, toro, urânio, quartzo, cobre, manganês, chumbo, sulfatos, potássios,
bauxita, zinco, circônio, cromo e mercúrio. O céu da selva virgem de Mato Grosso até as
planuras do sul de Goiás é tão aberto que, segundo o delírio da revista Time, em sua última
edição latino-americana de 1967, pode-se ver ao mesmo tempo o sol brilhante e alguns
relâmpagos de tormentas diferentes. O governo tinha oferecido isenções de impostos e
outras vantagens para colonizar os espaços virgens deste universo mágico e selvagem.
Segundo o Time, os capitalistas estrangeiros tinham comprado antes de 1967, a sete
centavos o acre, uma superfície maior do que a que somam os territórios de Connecticut,
Rhode Island, Delaware, Massachusetts e New Hampshire. “Devemos manter as portas
abertas à inversão estrangeira - dizia o diretor da SUDAM, agência governamental para o
desenvolvimento da Amazonia -, porque necessitamos mais do que podemos obter.”Para
justificar o levantamento aerofotogramétrico por parte da aviação norte-americana, o governo tinha declarado, antes, que carecia de recursos. Na América Latina é o normal:
sempre entregam os recursos ao imperialismo em nome da falta de recursos.
O Congresso brasileiro pôde realizar uma investigação que culminou com um volumoso informe sobre o tema10. Nele se enumeram os casos de venda de terras em vinte
milhões de hectares, estendidas de maneira tão curiosa que, segundo a comissão de
inquérito, “formam um cordão para isolar a Amazônia do resto do Brasil”. A “exploração
clandestina de minerais muito valiosos” figura no informe como um dos principais motivos da avidez norte-americana para abrir uma nova fronteira dentro do Brasil. O testemuReno, Aluminium Profus and Caribbean People, Monthly Review, Nova Iorque, outubro de 1963,
e do mesmo autor, El drama de Ia Guyana Británica. Un pueblo desde la esclavitud a la lucha por
el socialismo, Monthly Review, seleções em castelhano, Buenos Aires, janeiro-fevereiro de 1965.
8. Harry Magdoff, op. cit.
9. Hermano Alves, A Aerofotogrametria em Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8 de junho de
1967.
10. Informe da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a venda de terras brasileiras a pessoas
físicas ou jurídicas estrangeiras, Brasília, 3 de junho de 1968.
97
nho do gabinete do Ministério do Exército, recolhido no relatório, assinalou “o interesse do
próprio governo norte-americano em manter, sob seu controle, uma vasta extensão de
terras para sua utilização ulterior, seja para a exploração de minerais, particularmente os
radiativos, seja como base de uma colonização dirigida”. O Conselho de Segurança Nacional afirma: “Causa suspeita o fato de que as áreas ocupadas, ou em vias de ocupação, por
elementos estrangeiros, coincidam com regiões que estão sendo submetidas a campanhas
de esterilização de mulheres brasileiras por estrangeiros”. De fato, segundo o Correio da
Manhã, “mais de vinte missões estrangeiras, principalmente as da Igreja protestante dos
Estados Unidos, estão ocupando a Amazônia, localizando-se nos pontos mais ricos em
minerais radiativos, ouro e diamantes... Empregam em grande escala a esterilização mediante o método DIU (Dispositivo Intra Uterino) e ensinam inglês aos índios catequizados...
Suas áreas estão cercadas por elementos armados e ninguém pode penetrar nelas”11. Não
é demais advertir que a Amazônia é a zona de maior extensão entre todos os desertos do
planeta habitáveis pelo Homem. O controle de natalidade pôs-se em prática neste grandioso
espaço vazio, para evitar a competição demográfica dos muito escassos brasileiros que, em
remotos rincões da selva ou das planícies imensas, vivem e se reproduzem.
Por sua parte, o general Riograndino Kruel afirmou, diante da comissão de inquérito
do Congresso, que “o volume de contrabando de materiais que contém tório e urânio
alcança a cifra astronômica de um milhão de toneladas”. Algum tempo antes, em setembro de 1966, Kruel, chefe da polícia federal, denunciara “a impertinente e sistemática
interferência” de um cônsul dos Estados Unidos no processo aberto contra quatro cidadãos
norte-americanos acusados de contrabando de minerais atômicos brasileiros. A seu juízo,
se houvesse sido encontrado com eles quarenta toneladas de material radiativo era suficiente para condená-los. Pouco depois, três dos contrabandistas fugiram misteriosamente
do Brasil. O contrabando não era um fenômeno novo, embora tivesse intensificado muito.
O Brasil perde a cada ano mais de cem milhões de dólares, segundo certas estimativas,
somente pela evasão clandestina de diamantes em bruto12. Mas, na realidade, o contrabando só se faz necessário em medida relativa. As concessões legais arrancam ao Brasil,
comodamente, suas mais fabulosas riquezas naturais. Para citar mais um exemplo, a
maior jazida de nióbio do mundo, que está em Araxá, pertence à filial da Niobium
Corporation, de Nova Iorque. Do nióbio provêm vários metais que se utilizam, por sua
grande resistência às temperaturas altas, para a construção de reatores nucleares, foguetes e naves espaciais, satélites ou simples jatos. A empresa também extrai, de passagem,
junto com o niobio, boas quantidades de tântalo, tório, urânio, pirocloro e terras raras de
alto teor mineral.
UM QUÍMICO ALEMÃO DERROTOU OS VENCEDORES DA GUERRA DO PACIFICO
A história do salitre, seu auge e sua queda, ilustra muito bem a duração ilusória das
prosperidades latino-americanas no mercado mundial: é sempre efêmero o sopro de glórias e o
peso das catástrofes é sempre perdurável.
Em meados do século passado, as negras profecias de Malthus pairavam sobre o
Velho Mundo. A população européia crescia vertiginosamente e era imprescindível outorgar nova vida aos solos cansados, para que a produção de alimentos pudesse aumentar
em proporção semelhante. O guano revelou suas propriedades fertilizantes nos laboratórios britânicos; desde 1840, começou sua exportação em grande escala a partir da costa
peruana. Os alcatrazes e gaivotas, alimentados pelos fabulosos cardumes das correntes
11. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 30 de junho de 1968.
12. Paulo R. Schilling, Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966.
98
que lambem as margens, iam acumulando nas ilhas e ilhotas, desde tempos imemoriais,
grandes montanhas de excrementos ricos em nitrogênio, amoníaco, fosfatos e sais alcalinos: o guano conservava-se puro nas costas sem chuva do Peru13. Pouco depois do lançamento internacional do guano, a química agrícola descobriu que as propriedades nutritivas
do salitre eram maiores ainda, e em 1850 já se intensificara seu emprego como adubo nos
campos europeus. As terras do velho continente, dedicadas ao cultivo do trigo, empobrecidas pela erosão, recebiam avidamente os carregamentos de nitrato de soda provenientes
das salitreiras peruanas de Tarapacá e, depois, da província boliviana de Antofagasta14.
Graças ao salitre e ao guano, que jaziam nas costas do Pacífico, “quase ao alcance dos
barcos que vinham buscá-los”15, o fantasma da fome se afastou da Europa.
A oligarquia de Lima, soberba e presunçosa como nenhuma outra, continua
enriquecendo-se a mancheias e acumulando símbolos de seu poder nos palácios e nos
mausoléus de mármore de Carrara, que a capital ergue em meio dos desertos de areia.
Antigamente, as grandes famílias limenhas floresceram à custa da prata de Potosí, e agora
passavam a viver da merda dos pássaros e da seiva branca e brilhante das salitreiras:
meios mais grosseiros para os mesmos fins elegantes. O Peru acreditava ser independente, porém a Inglaterra ocupara o lugar da Espanha. “O país se sentiu rico - escrevia
Mariátegui. O Estado usou sem medida seu crédito. Viveu no desperdício, hipotecando
seu futuro às finanças inglesas.” Em 1868, segundo Romero, os gastos e as dívidas do
Estado já eram muito maiores do que o valor das vendas ao exterior. Os depósitos de
guano serviam de garantia aos empréstimos britânicos, e a Europa jogava com os preços;
a rapina dos exportadores fazia estragos: o que a natureza tinha acumulado nas ilhas ao
longo de milênios se desperdiçava em poucos anos. Enquanto isto, nos pampas salitreiros,
conta Bermúdez, os operários sobreviviam em choças “miseráveis, um pouco mais altas
do que o homem, feitas com pedras, cacos de caliças e barro, de um só quarto”.
A exploração do salitre rapidamente se estendeu até a província boliviana de
Antofagasta, embora o negócio não fosse boliviano mas peruano e, mais do que peruano,
chileno. Quando o governo da Bolívia pretendeu aplicar um imposto às salitreiras que
operavam em seu solo, os batalhões do exército do Chile invadiram a província para nunca
mais abandoná-la. Até aquela época, o deserto servira de zona de amortecimento para os
conflitos latentes entre Chile, Peru e Bolívia. O salitre desencadeou a luta. A guerra do
Pacífico explodiu em 1879 e durou até 1883. As forças armadas chilenas, que já em 1879
tinham ocupado também os portos peruanos da região do salitre - Patillos, Iquique, Pisagua,
Junín - entraram por fim vitoriosas em Lima, e no dia seguinte a fortaleza de Callao se
rendeu. A derrota provocou a mutilação e a sangria do Peru. A economia nacional perdeu
seus dois principais recursos, paralisaram-se as forças produtivas, caiu a moeda, fechou-se
o crédito exterior16. O colapso não trouxe consigo, advertia Mariátegui, uma liquidação do
13. Ernst Samhaber, Sudamérica, biografia de un continente, Buenos Aires, 1946. As aves
guaneiras são as mais valiosas do mundo, escrevia Robert Cushman Murphy muito depois do
auge, "por seu rendimento em dólares por cada digestão". Estão por cima, dizia, do rouxinol de
Shakespeare que cantava no balcão de Julieta, por cima da pomba que voou sobre a Arca de Noé
e, desde logo, das tristes andorinhas de Bécquer. (Emílio Romero, Historia económica del Peru,
Buenos Aires, 1949.)
14. Óscar Bermúdez, Historia del salitre desde sus orígenes hasta la Guerra del Pacífico, Santiago
do Chile, 1963.
15. José Carlos Mariátegui, Siete ensayos de interpretación de Ia realidad peruana, Montevidéu,
1970.
16. O Peru perdeu a província salitreira de Tarapacá e algumas importantes ilhas guaneiras, porém
conservou as jazidas de guano da costa norte. O guano continuava sendo o fertilizante principal
da agricultura peruana, até que a partir de 1960 o auge da farinha de pescado aniquilou os
alcatrazes e gaivotas. As empresas pesqueiras, em sua maioria norte-americanas, arrasaram
99
passado: a estrutura da economia colonial permaneceu invicta, ainda que lhe faltassem
suas fontes de sustentação. A Bolívia, por seu lado, não se deu conta do que tinha perdido
com a guerra: a mina de cobre mais importante do mundo atual, Chuquicamata, se
encontra precisamente na província, agora chilena, de Antofagasta. Porém, e os triunfadores?
O salitre e o iodo representavam 5% das rendas do Estado chileno em 1880; dez
anos depois, mais da metade das receitas fiscais provinha da exportação dos nitratos dos
territórios conquistados. No mesmo período as inversões inglesas no Chile triplicaram; a
região do salitre converteu-se numa feitoria britânica17. Os ingleses se apoderaram do
salitre utilizando procedimentos nada custosos. O governo do Peru tinha expropriado as
salitreiras em 1875 e pago com bônus; a guerra abateu o valor destes documentos, cinco
anos mais tarde, à décima parte. Alguns aventureiros audazes, como John Thomas North
e seu sócio Robert Harvey, aproveitaram-se da conjuntura. Enquanto chilenos, peruanos e
bolivianos trocavam tiros no campo de batalha, os ingleses se dedicavam a ficarem com os
bônus, graças aos créditos que o Banco de Valparaíso e outros bancos chilenos lhes proporcionavam sem dificuldade alguma. O governo chileno recompensou imediatamente o
sacrifício de North, Harvey, Inglis, James, Busch, Robertson e outros laboriosos homens de
empresa: em 1881 dispôs a devolução das salitreiras a seus legítimos donos, quando a
metade dos bônus tinha passado às mãos bruxas dos especuladores britânicos. Não tinha
saído um só penny da Inglaterra para financiar este despojo.
Ao iniciar a década do 90, o Chile destinava a Inglaterra três quartas partes de suas
exportações, e da Inglaterra recebia quase a metade de suas importações; sua dependência comercial era ainda maior do que a que então padecia a Índia. A guerra outorgara ao
Chile o monopólio mundial dos nitratos naturais, porém o rei do salitre era John Thomas
North. Uma de suas empresas, a Liverpool Nitrate Company, pagava dividendos de quarenta por cento. Este personagem tinha desembarcado no porto de Valparaíso, em 1886,
com apenas dez libras esterlinas no bolso de seu velho traje cheio de pó; trinta anos depois,
os príncipes e os duques, os políticos mais proeminentes e os grandes industriais se
sentavam à mesa de sua mansão em Londres. North tinha inventado para si um título de
coronel e se afiliado, como correspondia a um cavalheiro de seu quilate, ao Partido Conservador e à Loja Maçônica de Kent. Lord Dorchester, Lord Randolph Churchill e o Marquês de
Stockpole assistiam suas festas extravagantes, nas quais North dançava disfarçado de
Henrique VIII18. Enquanto isto, em seu distante reinado do salitre, os operários chilenos
não conheciam o descanso dos domingos, trabalhavam até 16 horas por dia e cobravam
seus salários com fichas que perdiam cerca da metade de seu valor nos barracões das
empresas.
Entre 1886 e 1890, sob a presidência de José Manuel Balmaceda, o Estado chileno
realizou, diz Ramírez Necochea, “os planos de progresso mais ambiciosos de toda sua
história”. Balmaceda impulsionou o desenvolvimento de algumas indústrias, executou
importantes obras públicas, renovou a educação, tomou medidas para romper o monopólio da empresa britânica de ferrovias em Tarapacá e teve da Alemanha o primeiro e único
empréstimo que o Chile não recebeu da Inglaterra em todo o século passado. Em 1888,
anunciou que era necessário a formação de empresas chilenas, e se negou a vender aos
rapidamente os bancos de anchovetas próximos da costa, para alimentar com farinha peruana os
cervos e as aves dos Estados Unidos e Europa, e os pássaros guaneiros saíam a perseguir os
pescadores, cada vez mais distantes, mar afora. Sem resistência para o regresso, caíam no mar.
Outros não iam embora, e assim se podiam ver, em 1962 e em 1963, os bandos de alcatrazes
buscando comida pela avenida principal de Lima: quando já não podiam levantar vôo ficavam
mortos nas ruas.
17. Hernán Ramírez Necochea, Historia del imperialismo en Chile, Santiago do Chile, 1960.
18. Hernán Ramírez Necochea, Balmaceda y la contra-revolución de 1891, Santiago do Chile,
1968.
100
ingleses as terras salitreiras de propriedade do Estado. Três anos mais tarde explodiu a
guerra civil. North e seus colegas financiaram folgadamente os rebeldes19 e os barcos
britânicos de guerra bloquearam a costa do Chile, enquanto em Londres a imprensa bradava contra Balmaceda, “ditador da pior espécie”, “carniceiro”. Derrotado, Balmaceda se
suicidou. O embaixador inglês informou ao Foreign Ofice: “A comunidade britânica não
faz segredos de sua satisfação pela queda de Balmaceda, cujo triunfo, se crê, teria implicado sérios prejuízos aos interesses comerciais britânicos.” De imediato diminuíram as inversões estatais em estradas, ferrovias, colonização, educação e obras públicas, e as empresas
britânicas estendiam seus domínios.
Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, dois terços da receita nacional do Chile
provinham da exportação de nitratos, porém o pampa salitreiro era mais amplo e indiferente do que nunca. A prosperidade não serviu para desenvolver e diversificar o país, mas
acentuou, ao contrário, suas deformações estruturais. O Chile funcionava como um apêndice da economia britânica: o mais importante provedor de adubos do mercado europeu
não tinha direito à vida própria. E então um químico alemão, em seu laboratório, derrotou
os generais que tinham triunfado, anos atrás, nos campos de batalha. O aperfeiçoamento
do processo Haber-Bosch, para produzir nitratos fixando o nitrogénio do ar, deslocou o
salitre definitivamente e provocou a estrepitosa queda da economia chilena. A crise do
salitre foi a crise do Chile, profunda ferida, porque o Chile vivia do salitre e para o salitre e o salitre estava em mãos alheias.
No ressecado deserto do Tamarugal, onde os reflexos da terra chegam a queimar os
olhos, fui testemunha do arrasamento de Tarapacá. Aqui tinha 120 usinas salitreiras na
época do auge, e agora só resta uma em funcionamento. No pampa, não há umidade nem
cupins, de modo que não só se venderam as máquinas como sucata, mas também as
tábuas de pinho-de-riga das melhores casas, as pranchas de zinco e até as travas e cravos
intactos. Surgiram operários especializados em desarmar povoados: eram os únicos que
conseguiam trabalho nestas imensidades arrasadas ou abandonadas. Vi os escombros e os
buracos, os povoados-fantasmas, as vias mortas da Nitrate Railways, os fios já mudos dos
telégrafos, os esqueletos das usinas salitreiras despedaçadas pelo bombardeio dos anos, as
cruzes dos cemitérios que o vento frio golpeia às noites, os montes esbranquecidos que os
detritos da caliça iam erguendo junto às escavações. “Aqui corria dinheiro e todos acreditavam que não acabaria nunca”, me contaram os habitantes sobreviventes. Eles idealizaram
o passado, que parece um paraíso em oposição ao presente, e até dos domingos - que em
1889 ainda não existiam para os trabalhadores e que foram conquistados na marra pela
luta sindical - se recordam com todos os fulgores: “Cada domingo no pampa salitreiro - me
contava um velho ancião muito velho - era para nós uma festa nacional, um novo 18 de
setembro cada semana.” Iquique, o maior porto do salitre, “porto de primeira” segundo
seu dístico oficial, tinha sido o cenário de mais de uma matança de operários, porem em
seu teatro municipal, em estilo belle époque, chegavam os melhores cantores da opera
européia.
19. O congresso encabeçava a oposição ao presidente e era notária a debilidade que muitos de
seus membros sentiam pelas libras esterlinas. O suborno de chilenos era, segundo os ingleses,
"um costume do país". Assim o definiu em 1897 Robert Harvey, o sócio de North, durante a causa
que alguns pequenos acionistas tentaram contra ele e outros diretores de The Nitrate Railways
Co. Explicando o desembolso de cem mil libras com fins de suborno, disse Harvey: "A administração pública no Chile, como você sabe, é muito corrompida... Não digo que seja necessário
cortejar juízes, porém creio que muitos membros do Senado, escassos de recursos, tiraram algum
benefício de parte desde dinheiro em troca de seus votos; e que serviu para impedir que o governo
se negasse em absoluto a ouvir nossos protestos e reclamações..." (Hernán Ramirez Necochea,
op. cit.)
101
DENTES DE COBRE SOBRE O CHILE
O cobre não demorou muito a ocupar o lugar do salitre como viga-mestra da economia chilena, ao tempo em que a hegemonia britânica abria passagem ao domínio dos
Estados Unidos. Em vésperas da crise de 29, as inversões norte-americanas no Chile
ascendiam já a mais de US$ 400 milhões, quase todos destinados à exploração e ao
transporte do cobre. Até a vitória eleitoral das forças da Unidade Popular em 1970, as
maiores jazidas do metal vermelho continuavam em mãos da Anaconda Copper Mining
Co. e da Kennecott Copper Co., duas empresas intimamente vinculadas entre si como
partes de um mesmo consórcio mundial. Em meio século, ambas remeteram US5 4
milhões do Chile para suas matrizes, caudaloso sangue esvaído por diversas rubricas, e
realizaram como contrapartida, segundo suas próprias cifras aumentadas, uma inversão
total de 800 milhões, quase toda proveniente de lucros arrancados ao país20. A hegemonia
foi aumentando à medida que a produção crescia, até superar os US$ 100 milhões por ano
nos últimos tempos. Os donos do cobre eram os donos do Chile. Na segunda-feira 21 de
dezembro de 70, Salvador Allende, já presidente, falou da sacada do palácio do governo
para uma multidão fervorosa; anunciou que acabara de assinar o projeto de reforma
constitucional que tornava possível a nacionalização da grande mineração. Em 1969, disse,
a Anaconda conseguira no Chile lucros de US$ 79 milhões, que eqüivaliam a 80% de suas
receitas em todo o mundo: e no entanto, continuou, a Anaconda tem no Chile menos da
sexta parte de suas inversões no exterior. A guerra bacteriológica da direita, planificada
campanha de propaganda, destinada a semear o terror para evitar a nacionalização do
cobre e as demais reformas de estrutura anunciadas pela esquerda, tinha sido tão intensa
como nas eleições anteriores. Os jornais exibiam pesados tanques soviéticos rondando o
palácio presidencial de La Moneda; sobre as paredes de Santiago os guerrilheiros barbudos
apareciam arrastando jovens inocentes rumo à morte; escutava-se a campainha de cada
casa, uma senhora explicava: “Você tem quatro crianças? Dois irão para União Soviética e
dois para Cuba.” Tudo foi inútil: o cobre “se põe ponchos e esporas”, volta a ser chileno.
Os Estados Unidos, por sua parte, com as pernas presas na armadilha das guerras no
Sudeste Asiático não ocultaram o mal-estar oficial ante a marcha dos acontecimentos no
sul da cordilheira dos Andes. Porém o Chile não está ao alcance de uma súbita expedição
de marines, e afinal de contas, Allende era presidente com todos os requisitos da democracia representativa que o país do norte formalmente prega. O imperialismo atravessa as
primeiras etapas de um novo ciclo crítico, cujos signos se tornaram claros na economia; sua
função de polícia mundial se faz cada vez mais cara e mais difícil. E a guerra de preços? A
produção chilena é vendida em diversos mercados e pode abrir amplos mercados novos
entre os países socialistas; os Estados Unidos carecem de meios para bloquear, em escala
universal, as vendas do cobre que os chilenos se dispuseram a recuperar. Muito diferente
era, por certo, a situação do açúcar cubano doze anos atrás, destinado inteiramente ao
mercado norte-americano e por inteiro dependendo dos preços norte-americanos. Quando Eduardo Frei ganhou as eleições de 64, a cotização do cobre subiu de imediato com
visível alívio; quando Allende ganhou as de 70, o preço, que já vinha baixando, declinou
ainda mais. Porém o cobre, habitualmente submetido às mais agudas flutuações de preços, gozara de preços consideravelmente altos nos últimos anos; como a demanda excede
à oferta, a escassez impede que o nível caia muito abaixo. Apesar de o alumínio ter
20. As mesmas empresas industrializam o mineral chileno em suas fábricas distantes. Anaconda
American Brass, Anaconda Wire and Cable e Kennecott Wire and Cable figuram entre as principais fábricas de bronze e arame do mundo inteiro. José Cademartori, La economia chilena,
Santiago do Chile, 1968.
102
ocupado, em grande medida, seu lugar como condutor de eletricidade, o alumínio também requer cobre, e como não se encontraram sucedâneos mais baratos e eficazes para
deslocá-lo da indústria do aço nem da química, o metal vermelho continua sendo a
matéria-prima principal das fábricas de pólvora, latão e arame21.
Ao longo das escarpas da cordilheira, o Chile possui as maiores reservas de cobre do
mundo, a terça parte do total até hoje conhecido. O cobre aparece, em geral, associado a
outros metais como ouro, prata ou molibidênio. Isto é um fator adicional para estimular
sua exploração. De resto, os operários chilenos são baratos para as empresas: com seus
baixíssimos custos no Chile, a Anaconda e Kennecott financiam com sobras seus altos
custos nos Estados Unidos, do mesmo modo que o cobre chileno paga, pela via dos “gastos
no exterior”, mais de US5 10 milhões por ano para a manutenção dos escritórios em Nova
Iorque. O salário médio das minas chilenas alcançava, em 1964, a oitava parte do salário
básico nas refinarias da Kennecott nos Estados Unidos, apesar de que a produtividade de
uns e outros estivessem ao mesmo nível22. Não eram iguais, em compensação, nem o são,
as condições de vida. Em geral, os mineiros chilenos vivem em quartos estreitos e sórdidos,
separados de suas famílias, que moram em casebres miseráveis nos subúrbios; separados
também, é claro, do pessoal estrangeiro, que nas minas vivem num universo à parte,
minúsculos estados dentro do Estado, onde se fala inglês e até se editam jornais para seu
uso exclusivo. A produtividade operária foi aumentando, no Chile, à medida que as empresas mecanizaram seus meios de exploração. Desde 1945, a produção de cobre aumentou em 50%, porém a quantidade de trabalhadores ocupados nas minas reduziu-se numa
terça parte.
A nacionalização porá fim a um estado de coisas que se tornara insuportável para o
país, e evitará que se repita, com o cobre, a experiência de saque e queda no vazio que
sofreu o Chile no ciclo do salitre. Porque os impostos que as empresas pagam ao Estado
não compensam de modo algum o esgotamento inflexível dos recursos minerais que a
natureza concedeu, mas que não renovará. De resto, os impostos diminuíram, em termos
relativos, desde 1955, quando se estabeleceu o sistema de tributação decrescente de acordo com os aumentos da produção, e desde a “chilenização” do cobre disposta pelo governo
de Frei. Em 1965, Frei converteu o Estado em sócio da Kennecott e permitiu às empresas
pouco menos que triplicar seus lucros através de um regime tributário muito favorável
para elas. Os gravames se aplicaram, no novo regime, sobre um preço médio de 29 centavos de dólar por libra, embora o preço se elevasse, empurrado pela grande demanda
mundial, até os setenta centavos. O Chile perdeu, pela diferença de impostos entre o
preço fictício e o real, uma enorme quantidade de dólares, como o reconheceu o próprio
Radomiro Tomic, candidato escolhido pela Democracia-Cristã para suceder Frei no período
seguinte. Em 1969, o governo Frei pactuou com a Anaconda um acordo para comprar-lhe
51 % das ações em quotas semestrais, em condições tais que deflagaram um novo escândalo político e deram maior impulso ao crescimento das forças de esquerda. O presidente
da Anaconda dissera previamente ao presidente do Chile, segundo a versão divulgada
pela imprensa: “Excelência: os capitalistas não conservam os bens por motivos sentimentais, mas por razões econômicas. comum que uma família guarde um guarda-roupa porque pertenceu ao avô; porém as empresas não têm avós. A Anaconda pode vender todos
seus bens. Só depende do preço que lhe paguem.”
A maré nacionalista cresce por todas as partes e nem sequer o bom-humor pode
limitá-la: o mal menor da “nacionalização Pactuada” teve vida escassa. A estrutura do
mercado internacional do cobre está se desarmando perigosamente, e os quatro maiores
21. R. l. Grant-Suttie, Sucedáneos del cobre, em Finanzas y Desarrollo, revista do FMI e do BIRD,
junho de 1969.
22. Mario Vera e Elmo Catalán, La encrucijada del cobre, Santiago do Chile, 1965
103
produtores - Chile, Zâmbia, Congo e Peru - estão se reunindo, há algum tempo, para
aplicar uma política comum em defesa dos preços. Em fins de 1969, a filial peruana da
American Smelting and Refining Co. aceitou assinar um contrato que lhe permitia conservar a riquíssima mina de Cuajone, que lhe fora concedida muitos anos atrás. Mas os
termos deste contrato, a despeito de algumas “cláusulas tradicionais”, de certo modo
refletem a debilidade e o desespero do truste ante uma situação internacional mais desfavorável do que nunca para seus interesses. Em condições normais, a American Smelting não
teria aceito a liquidação de muitos dos privilégios que convertiam cada mina estrangeira
num todo-poderoso enclave, alheio às necessidades de desenvolvimento da economia
peruana; nas novas condições, impostas pelo nacionalismo em ascensão, a empresa se
apressou a expressar em voz alta sua satisfação pelos termos do acordo. Embora subsistam
profundas divergências de interpretação em torno do texto do convênio, o governo afirma
que o recém-estabelecido monopólio da comercialização de minerais compreende também o cobre de Cuajone. Além disso, o Estado reserva o refino para suas usinas em projeto,
que terão prioridade para receber o cobre bruto; a empresa fica obrigada a contratar técnicos peruanos e a compartilhar com o Estado suas inovações tecnológicas, além de
comprometer-se a cumprir um plano de exploração, que estabelece prazos definidos para
as inversões e para a produção. Por não cumprir as condições fixadas nas novas leis
minerais, a Anaconda e a Smelting perderam já suas jazidas de monte Verde e Michiquillay,
duas vastas reservas que tinham permanecido intocadas durante meio século.
OS MINEIROS DO ESTANHO, POR BAIXO E POR CIMA DA TERRA
Há pouco menos de um século, um homem meio morto de fome pelejava contra as
rochas em meio às desolações do altiplano da Bolívia. A dinamite explodiu. Quando ele se
aproximou para recolher os pedaços de pedra triturados pela explosão, ficou deslumbrado.
Tinha, nas mãos, pedaços fulgurantes do veio de estanho mais rico do mundo. Ao amanhecer do dia seguinte, montou a cavalo rumo a Huanuni. A análise das amostras confirmou o valor do achado. O estanho podia marchar diretamente do filão ao porto, sem sofrer
nenhum processo de concentração. Aquele homem se converteu no rei do estanho, e
quando morreu, a revista Fortune afirmou que era um dos dez multimilionários mais
multimilionários do planeta. Chamava-se Simón Patiño. Da Europa, durante muitos anos
fez e desfez presidentes e ministros da Bolívia, planificou a fome de seus operários,
organizou as matanças, ramificou e estendeu sua fortuna pessoal: a Bolívia era um país
que existia para ele, a seu serviço.
A partir das heróicas jornadas revolucionárias de abril de 1952, a Bolívia nacionalizou
o estanho. Porém, já então, aquelas riquíssimas minas tinham-se tornado pobres. A serra
Juan del Valle, onde Patiño descobrira seu fabuloso filão, a lei do estanho tinha-se reduzido
120 vezes. Das 156 mil toneladas de rocha que saem mensalmente pelas bocas-de-minas
só se recuperam 400. As perfurações já somam, em quilômetros, uma distância duas vezes
maior do que a que separa a mina da cidade de La Paz: a serra é, por dentro, um formigueiro esburacado por infinitas galerias, passadiços, túneis e chaminés. Está a caminho de se
converter numa casca vazia. Cada ano perde um pouco mais de altura, e a derrubada vai
carcomendo a crostra: parece, de longe, um dente cariado.
Antenor Patiño não só cobrou uma indenização considerável pelas minas já quase
exaustas que seu pai tinha espremido, mas manteve, além disso, o controle do preço e do
destino do estanho expropriado. De suas mansões na Europa, não parava de rir. “Mister
Patiño é o afável rei do estanho boliviano”, continuariam dizendo as crônicas sociais muitos anos depois da nacionalização23. Porque a nacionalização, conquista fundamental da
104
revolução de 1952, não modificara o papel da Bolívia na divisão internacional do trabalho.
A Bolívia continuou exportando o mineral em bruto, e quase todo estanho se refina ainda
nos fornos de Liverpool da empresa Williams, Harvey and Co., que pertence a Patiño. A
nacionalização das fontes de produção de qualquer matéria-prima não é, como ensina a
dolorosa experiência, suficiente. Um país pode continuar tão condenado à impotência
como sempre, embora se seja normalmente dono do subsolo. A Bolívia produziu, ao longo
de sua história, minerais em bruto e discursos refinados. Abundam a retórica e a miséria;
os escritores cafonas e os doutores encasacados se dedicaram sempre a absolver os culpados de qualquer culpa. De cada dez bolivianos, seis não sabem, ainda, ler; a metade das
crianças não vai à escola. Até 1971, a Bolívia deveria ter em funcionamento sua própria
fundição nacional de estanho, levantada em Oruro ao fim de uma infinita história de
traições, sabotagens, intrigas e sangue derramado24. Este país que não pôde, até agora,
produzir seus próprios lingotes, se dá ao luxo, em compensação, de contar com oito diferentes faculdades de Direito que fabricam vampiros de índios em quantidades industriais.
Contam que, um século atrás, o ditador Mariano Melgarejo obrigou o embaixador da
Inglaterra a beber um barril inteiro de chocolate, em castigo por ter desprezado um copo de
chicha. O embaixador foi exibido num burro, montado ao contrário, pela principal rua de La
Paz. E foi devolvido a Londres. Dizem que então a rainha Vitória, enfurecida, pediu um
mapa da América do Sul, riscou uma cruz sobre a Bolívia e sentenciou: “Bolívia não
existe.” Para o mundo, com efeito, a Bolívia não existia nem existiu depois: o saque da
prata e, posteriormente, o despojo do estanho não foram mais do que o exercício de um
23. O New Yorque Times, de 13 de agosto de 1969, o definia nestes termos, ao descrever em
êxtase as férias do duque e duquesa de Windsor no suntuoso castelo do século XVI que Patiño
possui nos arredores de Lisboa. "Gostamos de dar aos empregados um pouco de calma e paz",
confessava a senhora, enquanto explicava a Charlotte Curtis seu programa do dia.
Depois, é o tempo das férias de montanha na Suíça: os fotógrafos se abalançam sobre os condes
e os artistas da moda em Saint-Moritz; as revistas os exibem. Uma milionária de cinqüenta anos
acaba de perder seu segundo marido, vice-presidente da Ford, e sorri diante dos flashes: anuncia
seu próximo casamento com um rapazola que a toma pelo braço e a olha com olhos assustados.
Ao lado, outro casal do grande mundo. Ele é um homem de baixa estatura e traços de índio, olhos
duros, nariz achatado, pôrnulos salientes. Antenor Patiño continua parecendo boliviano. Em
outra revista, Antenor aparece disfarçado de príncipe oriental, com turbante e tudo, entre vários
príncipes autênticos que se reuniram no palácio do barão Alexis de Rédé: a princesa Margarida da
Dinamarca, o príncipe Henrique, Maria Pia de Saboya e seu primo Miguel de Borbón-Parma, o
príncipe Lobckowitz e outros trabalhadores.
24. Quando o general Alfredo Ovando anunciou, em julho de 1966, que se chegara a um acordo
com a empresa alemã Klochner para instalar os fornos estatais, disse que teriam um novo
destino "estas pobres minas que somente serviram, até agora, para abrir socavãos nos pulmões
de nossos irmãos mineiros". Estes homens que dão suas vidas pelo mineral, escrevia Sergio
Almaraz (El poder y la caída. El estaño en Ia historia de Bolívia, La Paz-Cochabamba, 1967), "não
o possuem. Nunca o possuíram; nem antes nem depois de 1952. Porque o que acontece é que o
estanho nada vale, quanto ao aproveitamento imediato, senão sob o brilhante aspecto de um
lingote. O mineral, pó pesado de aspecto terroso, certamente não serve para nada que não seja
para despejá-lo na boca do forno."
Almaraz contou a história de um industrial, Mariano Peró, que guerreou uma guerra solitária,
ao longo de mais de trinta anos, para que o estanho boliviano fosse refinado em Oruro e não em
Liverpool. Em 1946, poucos dias depois da queda do presidente nacionalista Gualberto Villaroel,
Perá entrou no Palácio Quemado. Ia recolher os lingotes de estanho. Eram os primeiros lingotes
produzidos em sua fundição de Oruro, e já não tinha sentido que aquele par de símbolos, que
encarnavam a nação, continuassem adornando o escritório do presidente da república. Villaroel
fora enforcado num poste da Plaza Murillo e o poder da rosca oligárquica foi restaurado a partir
de sua queda. Mariano Peró recolheu os lingotes e foi-se embora com eles. Estavam manchados
de sangue já seco.
105
direito natural dos países ricos. Afinal, a embalagem de lata identifica os Estados Unidos
tanto como o emblema da águia ou a torta de maça. Porém a embalagem de lata não é
somente um símbolo pop dos Estados Unidos: é também um símbolo, embora não se saiba, da
silicose nas minas de Siglo XX ou Huanuni: os mineiros bolivianos morrem com os pulmões
apodrecidos, para que o mundo possa consumir estanho barato. A lata contém estanho, e o estanho
não vale nada: meia dúzia de homens fixa seu preço mundial. O que significa, para os consumidores de conservas ou manipuladores da bolsa, a dura vida do mineiro na Bolívia? Os
norte-americanos compram a maior parte do estanho que se refina no planeta: segundo os
dados da FA O, o cidadão médio dos Estados Unidos consome cinco vezes mais carne e
leite e vinte e cinco vezes mais ovos do que o habitante da Bolívia. E os mineiros estão
muito abaixo da baixa média nacional. No cemitério de Catavi, onde os cegos rezam pelos
mortos em troca de uma moeda, dói encontrar, entre as lápides escuras dos adultos, uma
inumerável quantidade de cruzes brancas sobre tumbas pequenas. De cada duas crianças
nascidas nas minas, uma morre pouco tempo depois de abrir os olhos. A outra, a que
sobrevive, será seguramente mineiro quando crescer. E antes de chegar aos 35 anos, já não
terá pulmões.
O cemitério geme. Por baixo das tumbas foram cavados infinitos túneis, socavões de
boca estreita, onde cabem apenas os homens que se introduzem, como tatus, em busca do
mineral. Novas jazidas de estanho acumularam-se nos desmontes ao longo dos anos;
toneladas de resíduos sobre resíduos transformaram-se em gigantescos montes cinzentos
que somaram, assim, estanho ao estanho da paisagem. Quando cai a chuva, que se lança
com violência das nuvens próximas, os desempregados se agacham ao longo das ruas de
terra de Llallagua, onde os homens se embebedam desesperadamente nas chicherías: vão
recolhendo e medindo o peso do estanho que a chuva arrasta consigo. Aqui, o estanho é
um deus de lata que reina sobre os homens e as coisas, e está presente em todas partes.
Não só há estanho no ventre do velho morro de Patiño. Há estanho, delatado pelo brilho
negro da cassiterita, até nas paredes de adobe dos acampamentos. Também tem estanho
a lama amarelenta que avança arrastando os desperdícios da mina e o têm as águas que
fluem, envenenadas, da montanha; encontra-se estanho na terra e na rocha, na superfície
e no subsolo, nas areias e nas Pedras do leito do rio Seco, nas terras áridas e pedregosas, a
quase quatro mil metros de altura, onde não cresce o capim e onde tudo, até as pessoas,
tem a escura cor do estanho. Os homens sofrem resignadamente o jejum e não conhecem
a festa do mundo. Vivem nos acampamentos, amontoados em casa de uma só peça de
chão de terra; o vento cortante penetrando pelas frestas. Um informe universitário sobre a
mina de Colquiri revela que, de cada dez varões jovens pesquisados, seis dormem na
mesma cama com suas irmãs: “Muitos pais se sentem incomodados, quando seus filhos
os observam durante o ato sexual”. Não há banheiros; as latrinas são pequenos cubículos
públicos tampados de imundície e moscas. As pessoas usam os quintais, terrenos abertos,
onde ao menos circula o ar, apesar da sujeira e dos excrementos dos porcos que refuçam
felizes. Também é coletivo o serviço de água: há que esperar o momento em que a água
chega e apressar-se, fazer a fila, recolher a água da pia pública em latas de gasolina ou
baldes. A comida é escassa e feia. Consiste em batatas, macarrões, arroz, farinha, milho
moído e, às vezes, um pouco de carne dura.
Estávamos muito no fundo do morro Juan del Valle. O silvo penetrante da sirene,
que chamava os trabalhadores da primeira ponta, tinha ressoado no acampamento várias
horas antes. Percorrendo galerias, tínhamos passado do calor tropical ao frio polar e novamente ao calor, sem sair, durante horas, de uma mesma atmosfera envenenada. Aspirando aquele ar espesso - umidade, gases, pó, fumaça -, podia-se compreender porque os
mineiros perdem, em poucos anos, os sentidos do olfato e do sabor.Todos mastigavam,
enquanto trabalhavam, folhas de coca com cinza, e isto também fazia parte da obra de
106
aniquilação, porque a coca, como se sabe, ao adormecer a fome e mascarar a fadiga, vai
apagando o sistema de alarma com que conta o organismo para continuar vivo. Porém o
pior era o pó. Os cascos das vigas irradiam uma ondulação de círculos de luz que salpicavam a gruta negra e deixavam ver, em sua passagem, cortinas de branco pó denso: o
implacável pó de sílica. O mortal alento da terra vai envolvendo pouco a pouco. Em um
ano já se sentem os primeiros sintomas, e em dez anos se ingressa no cemitério. Dentro da
mina se usam perfuradoras suecas, último modelo, porém os sistemas de ventilação e as
condições de trabalho não melhoraram com o tempo. Na superfície, os trabalhadores
independentes usam a picareta e pesadas marretas de doze libras para lutar contra a
rocha, exatamente igual a cem anos atrás, e peneiras, crivadores e foles para concentrar o
mineral no terreno da mina. Ganham centavos e trabalham como bestas. Todavia, muitos
deles têm, pelo menos, a vantagem do ar livre. Dentro da mina, em compensação, os
operários são presos, condenados, sem apelação, à morte por asfixia.
Já tinha cessado o estrépito das brocas e os operários davam uma pausa enquanto
aguardávamos a explosão de mais de vinte cargas de dinamite. A mina também oferece
mortes rápidas e sonoras: basta errar na contagem das denotações, ou que uma mecha
demore mais do que o devido em se queimar. Basta também que uma pedra, um tojo, se
desprenda sobre o crânio.
Ou basta o inferno das metralhadoras: a noite de São João de 1967 foi a última conta
de um longo rosário de matanças. Na madrugada os soldados tomaram posição nas
colinas, joelhos na terra, e lançaram um furacão de balas sobre os acampamentos iluminados pelas fogueiras da festa25. Porém a morte lenta e silenciosa constitui a especialidade
da mina. O vômito de sangue, a tosse, a sensação de um peso de chumbo sobre as costas
e uma aguda opressão no peito são os sinais que a anunciam. Depois da análise médica
vem as peregrinações burocráticas de nunca se acabar. Dão um prazo de três meses para
desalojar a casa.
Já tinha cessado o estrépito das brocas e logo a explosão alcançaria aquele escorregadio veio cor de café e forma de víbora. Então pudemos falar. O volume da coca inchava a
bochecha de cada operário e pelas comissuras dos lábios corriam os fios verdosos. Um
mineiro passou, apressado, espalhando barro por entre os trilhos da galeria. “Este é um
novato - me disseram. - Viu? Com sua calça do exército e seu boné amarelo se vê tão
jovem. Entrou agorinha e como trabalha. Ainda é um sobressalente. Ainda não sente.”
Os tecnocratas e os burocratas não morrem de silicose, mas vivem dela. O gerente-geral
da Comibol, Corporação Mineira Boliviana, ganha cem vezes mais do que um operário. De
um barranco que cai em prumo sobre o leito do rio, no limite de Llallagua, pode-se ver o
25. "Quando me assento, bêbado estou. Três, quatro, vejo as pessoas. Não posso comer só. Uma
huahua sou, pois. Uma criança." Saturnino Condori, velho pedreiro do acampamento mineiro de
Siglo XX, está deitado há quatro anos numa cama do hospital de Catavi. É uma das vítimas da
matança da noite de São João, em 1967. Nem sequer tinha festejado nada. Por trabalhar no
sábado, dia 24, lhe tinham prometido pagar o triplo, e assim decidiu não mergulhar, ao contrário
de todos os outros, no delírio da chichicha e da farra. Deitou-se cedo. Esta noite sonhou com um
cavaleiro que lhe jogava espinhas no corpo: "Espinhas grandes me iam chuchando." Acordou
várias vezes, porque a chuva de balas se desencadeou sobre o acampamento desde as cinco horas
da manhã."Meu corpo se desfez, se descompôs, o calor me pegou e eu assustado, e eu assustado.
Minha mulher me diz: se manda, foge. Porém eu, o que tinha feito? Não fui a parte alguma. Se
manda, se manda, me disse. Tiroteios tinha de noite, que será isso, que será, pap-pap-pap-pappap. E assim mesmo acordando e dormindo assim aos poucos, e nem assim mesmo me escapei,
a minha mulher me disse: pois se manda, pois se manda, foge. O que vão me fazer, digo, eu sou
pedreiro particular, que me vão fazer". Acordou com isso das balas às oito da manhã. Ergueu-se
sobre o catre. A bala atravessou o teto, atravessou o chapéu da mulher e se enfiou no corpo dele
e lhe arrebentou a coluna vertebral.
107
pampa de María Barzola. Chama-se assim em homenagem à militante operária que faz
trinta anos caiu, à frente de uma manifestação, com a bandeira da Bolívia costurada no
corpo pelas rajadas das metralhadoras. E além do pampa de Maria Barzola pode-se ver o
melhor campo de golfe de toda a Bolívia: é o que usam engenheiros e principais funcionários de Catavi. O ditador Renê Barrientos reduziu à metade os salários de fome dos
mineiros, em 1964 , e ao mesmo tempo aumentou as retribuições dos técnicos e burocratas
proeminentes. Os soldos do pessoal superior são secretos. Secretos e em dólares. Há um
todo-poderoso grupo assessor,formado por técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da Aliança para o Progresso e do banco estrangeiro credor, cujos conselhos orientam o setor mineral nacionalizado da Bolívia, de tal maneira que, a esta altura, a Comibol,
convertida num Estado dentro do Estado, constitui uma propaganda viva contra a
nacionalização de qualquer coisa. O poder da velha rosca oligárquica foi substituído pelo
poder dos numerossíssimos membros da “nova classe” que dedicou seus melhores esforços para sabotar, por dentro, a mineração estatal. Os engenheiros não só torpedearam
todos os projetos e planos destinados à criação de uma fundição nacional, mas, além disso,
contribuíram para que as minas do Estado ficassem fechadas nos limites das velhas
jazidas de Patiño, Aramayo e Hochschild, em acelerado processo de esgotamento de
reservas. Entre fins de 1964 e abril de 1969, o general Barrientos rompeu a barreira do som
na entrega dos recursos do subsolo boliviano ao capital imperialista, com a cumplicidade
aberta dos técnicos e dos gerentes. Sérgio Almaraz contou, num de seus livros26, a história
da concessão da exploração de estanho à International Mining Processing Co. Com um
capital declarado de apenas cinco mil dólares, a empresa de tão pomposo nome obteve
um contrato que lhe permitirá ganhar mais de 900 milhões.
DENTES DE FERRO SOBRE O BRASIL
Para os Estados Unidos sai mais barato o ferro que recebem do Brasil ou da Venezuela
do que o ferro que extraem de seu próprio subsolo. Porém, esta não é a chave do desespero
americano para apoderar-se da jazidas de ferro no exterior: a captura das minas fora de
fronteiras constitui, mais do que um negócio, um imperativo de segurança nacional. O
subsolo norte-americano está ficando, como vimos, exausto. Sem ferro não se pode fazer
aço e 80% da produção industrial dos Estados Unidos contém, de uma forma ou de outra,
aço. Quando em 1969 se reduziram os abastecimentos do Canadá, isto se refletiu de
imediato num aumento das importações de ferro da América Latina.
A serra Bolívar, na Venezuela, é tão rica que a terra que lhe arranca a US Steel Co. é
descarregada diretamente nos porões dos navios rumo aos Estados Unidos, e já exibe em
seus flancos, as profundas feridas que lhe vão infligindo os bulldozers: a empresa calcula
que contém cerca de oito bilhões de dólares em ferro. Em um só ano, 1960, a US Steel e a
Bethlehem Steel repartiram lucros de mais de 30% de seus capitais investidos no ferro da
Venezuela, e o volume destes lucros foi igual à soma de todos os impostos pagos ao Estado
venezuelano nos dez anos transcorridos desde 195027. Como ambas as empresas vendem
o ferro com destino a suas próprias usinas siderúrgicas nos Estados Unidos, não têm o
menor interesse em defender os preços; ao contrário, convém que a matéria-prima seja a
mais barata possível. A cotação internacional do ferro, que caíra em linha vertical entre
1958 e 1964, estabilizou-se relativamente nos anos posteriores e permanece estancada;
enquanto isto, o preço do aço não parou de subir.O aço se produz nos centros ricos do mundo,
e o ferro nos subúrbios pobres; o aço paga salários de “aristocracia operária,- e o ferro diárias de mera
26. Sergio Almaraz Paz, op. cit.
27. Salvador de la Plaza, no volume coletivo Perfiles de la economia venezolana, Caracas, 1964.
108
subsistência.
Graças à informação que recolheu e divulgou, lá pelo ano de 1910, o Congresso
Internacional de Geologia, reunido em Estocolmo, os homens de negócios dos Estados
Unidos puderam pela primeira vez avaliar as dimensões dos tesouros escondidos sob o
solo de uma série de países, um dos quais, talvez o mais tentador, era o Brasil. Muitos anos
depois, em 1948, a embaixada dos Estados Unidos criou um cargo novo no Brasil, o adido
mineral, que de entrada teve pelo menos tanto trabalho como o adido militar ou cultural.
Tanto, que rapidamente foram designados dois adidos minerais em vez de um28.Pouco
depois, a Bethlehem Steel recebia do governo de Dutra dois esplêndidos filões de manganês
do Amapá.
Em 1952, o acordo militar assinado com os Estados Unidos proibiu o Brasil de vender
as matérias-primas de valor estratégico -como o ferro - aos países socialistas. Esta foi uma
das causas da trágica queda do presidente Getúlio Vargas, que desobedeceu esta imposição vendendo ferro à Polônia e Tchecoslováquia, em 1953 e 1954, a preços muito mais altos
do que os que pagavam os Estados Unidos. Em 1957, a Hanna Mining Co. comprou, por
US$ 6 milhões, a maioria das ações de uma empresa britânica, a Saint John Mining Co.,
que se dedicava à exploração do ouro de Minas Gerais desde os longínquos tempos do
Império. A Saint John operava no vale de Paraopeba, onde há a maior concentração de
ferro do mundo inteiro, avaliada em US$ 200 bilhões. A empresa inglesa não estava
legalmente habilitada para explorar esta riqueza fabulosa, nem estaria a Hanna, de acordo
com disposições claras constitucionais e legais que Osni Duarte Pereira enumera em sua
obra sobre o tema. Porém este foi, segundo se soube logo, o negócio do século.
George Humphrey, diretor-presidente da Hanna, era então membro proeminente
do governo dos Estados Unidos, como secretário do Tesouro e como diretor do Eximbank,
o banco oficial para o financiamento das operações de comércio exterior. A Saint John
tinha solicitado um empréstimo ao Eximbank: não teve sorte até que a Hanna se apoderou da empresa. Desencadearam-se, a partir e então, as mais furiosas pressões sobre os
sucessivos governos do Brasil. Os diretores, advogados ou assessores da Hanna – Lucas
Lopes, José Luiz Bulhões Pedreira, Roberto Campos, Mário da Silva Pinto, Octávio Gouveia
de Bulhões - eram também membros, ao nível mais alto, do governo do Brasil, e continuaram ocupando cargos de ministros, embaixadores ou diretores de serviços nos ciclos
seguintes. A Hanna não tinha escolhido mal seu estado-maior. O bombardeio se fez cada
vez mais intenso, para que se reconhecesse à Hanna o direito de explorar o ferro que
pertencia, a rigor, ao Estado. No dia 21 de agosto de 1961, o presidente Jânio Quadros
assinou uma resolução que anulava as ilegais autorizações dadas de favor à Hanna e
restituía as jazidas de ferro de Minas Gerais à reserva nacional. Quatro dias depois, os
ministros militares obrigaram Jânio Quadros. a renunciar: “Forças terríveis se levantaram
contra mim...” dizia o texto da renúncia.
O levante popular encabeçado por Leonel Brizola em Porto Alegre frustrou o golpe
dos militares e colocou no poder o vice-presidente João Goulart. Quando em julho de 1962
um ministro quis pôr em prática o decreto fatal contra a Hanna - que tinha sido mutilado
no Diário Oficial -, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, enviou a Goulart um
telegrama protestando com viva indignação pelo atentado que o governo ameaçava cometer contra os interesses de uma empresa norte-americana. O Poder Judiciário ratificou a
validade da resolução de Quadros, porém Goulart vacilava. Enquanto isto, o Brasil dava os
primeiros passos para estabelecer um entreposto de minerais no Adriático, com o intuito
de abastecer de ferro vários países europeus, socialistas e capitalistas: a venda direta de
ferro implicava um desafio insuportável para as grandes empresas que manejam os pre28. Osny Duarte Pereira, Ferro e independência. Um desafio à dignidade nacional, Rio de Janeiro,
1967.
109
ços em escala mundial. O entreposto nunca se tornou realidade, porém outras medidas
nacionalistas - como a restrição à drenagem dos lucros das empresas estrangeiras - foram
colocadas em prática e proporcionaram estopins à explosiva situação política. A espada de
Dârnocles da resolução de Quadros permanecia em suspenso sobre a cabeça da Hanna.
Por fim, o golpe de estado explodiu, no último dia de março de 1964, em Minas Gerais, que
casualmente era o cenário das jazidas de ferro em disputa. “Para a Hanna - escreveu a
revista Fortune - , a revolta que derrubou Goulart na primavera passada chegou como um
desses resgates de último minuto pelo Primeiro da Cavalaria”29.
Homens da Hanna passaram a ocupar a vice-presidência do Brasil e três dos ministérios. No mesmo dia da insurreição militar, o Washington Star publicou um editorial
profético: “Eis aqui uma situação - anunciara - na qual um bom e eficiente golpe de estado,
no velho estilo, dos líderes militares conservadores bem pode servir aos melhores interesses de todas as Américas”30. Goulart ainda não tinha renunciado, nem tinha abandonado
o país, quando Lyndon Johnson não pode conter-se e enviou seu célebre telegrama de
bons votos ao presidente do Congresso brasileiro, que assumira provisoriamente a presidência do país: “O povo norte-americano observou com ansiedade as dificuldades políticas e econômicas pelas quais atravessou sua grande nação, e admirou a resoluta vontade
da comunidade brasileira para solucionar estas dificuldades dentro de um quadro de
democracia constitucional e sem luta civil”31. Pouco mais de um mês tinha transcorrido,
quando o embaixador Lincoln Gordon, que percorria, eufórico, os quartéis, pronunciou um
discurso na Escola Superior de Guerra, afirmando que o triunfo da conspiração de Castelo
Branco “poderia ser incluído junto à proposta do Plano Marshall, o bloqueio de Berlim, a
derrota da agressão comunista na Coréia e a solução da crise de mudança da história
mundial de meados do século XX”32. Um dos membros militares da embaixada dos
Estados Unidos oferecera ajuda material aos conspiradores, pouco antes da denotação do
golpe33, e o próprio Gordon lhes tinha sugerido que os Estados Unidos reconheceria um
governo autônomo, se fosse capaz de sustentar-se dois dias em São Paulo34. Não vale a
pena gastar testemunhos sobre a importância que teve, no desenvolvimento e desenlace
dos acontecimentos, a ajuda econômica americana, da qual, de resto, nos ocuparemos
mais adiante, ou da assistência dos Estados Unidos no plano militar ou sindical 35.
Depois que se cansaram de lançar na fogueira ou no fundo da Baía de Guanabara os
livros de autores tais como Dostoievski, Tolstoi ou Gorki, e após terem condenado ao exílio,
à prisão ou à morte uma quantidade incontável de brasileiros, o recém-instalado regime
militar de Castelo Branco pôs mãos à obra: entregou o ferro e todo o resto. A Hanna recebeu
seu decreto no 24 de dezembro de 1964. Este presente de Natal não só lhe outorgava todas
as seguranças para explorar em paz as jazidas de Paraopeba, mas, além disso, apoiava os
planos da empresa para ampliar um porto próprio a 66 quilômetros do Rio de Janeiro, e
para construir uma ferrovia destinada ao transporte de ferro. Em outubro de 1965, a
29. Immovable Mountains, em Fortune, abril de 1965.
30. Citado por Mário Pedrosa, A opção brasileira, Rio de Janeiro, 1965.
31. De Lyndon Johnson a Ranieri Mazzili, 2 de abril de 1964, versão da Associated Press.
32. Segundo informou o jornal Estado de S. Paulo, 4 de maio de 1964.
33. José Stacchini, Mobilização de audácia, São Paulo, 1965.
34. Philip Siekman, When executives turned revolutionaries, em Fortune, julho de 1964.
35. Vejam-se as declarações do Comitê de Assuntos Exteriores da Câmara de Representantes dos
Estados Unidos, citadas por Harry Magdoff, op. cit., e o revelador artigo de Eugene Methvin em
Seleções Reader's Digest, em espanhol, de dezembro de 1966; segundo Methvin, graças aos bons
serviços do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Sindicalismo Livre, com sede em
W ashington, os golpistas brasileiros puderam coordenar por telegrama seus movimentos de
tropas, e o novo regime militar recompensou o IADSL designando quatro de seus graduados
"para que fizessem uma limpeza nos sindicatos dominados pelos vermelhos..."
110
Hanna formou um consórcio com a Bethlehem Steel para explorar em comum o ferro
concedido. Este tipo de alianças, freqüentes no Brasil, não podem ser formalizadas nos
Estados Unidos, porque ali as leis as proíbem36. O incansável Lincoln Gordon tinha posto
fim à tarefa, todos já estavam felizes e o conto tinha acabado, e passou a presidir uma
universidade em Baltimore. Em abril de 1966, Johnson designou seu substituto, John
Tuthill, ao fim de vários meses de vacilação, e explicou que tinha demorado porque para o
Brasil necessitava de um bom economista.
A US Steel não ficou atrás. Por que iam deixá-la sem convite para o jantar? Antes de
que se passasse muito tempo, se associou com a empresa estatal, a Companhia Vale do
Rio Doce, que em certa medida se converteu, assim, em seu pseudônimo oficial. Por esta
via, a US Steel obteve, resignando-se a nada mais do que 49% das ações, a concessão das
jazidas de ferro da serra dos Carajás, na Amazônia. Sua magnitude é, segundo afirmam os
técnicos, comparável à coroa de ferro da Hanna-Bethlehem em Minas Gerais. Como de
costume, o governo aduziu que o Brasil não dispunha de capitais para realizar a exploração
por conta própria.
O PETRÓLEO, AS MALDIÇÕES E AS FAÇANHAS
O petróleo é, com o gás natural, o principal combustível dos países que põem em
marcha o mundo contemporâneo, uma matéria-prima de crescente importância para a
indústria química e o material estratégico primordial para as atividades militares. Nenhum outro ímã atrai tanto como o “ouro negro” os capitais estrangeiros, nem existe outra
fonte tão fabulosa de lucros; o petróleo é a riqueza mais monopolizada em todo o sistema
capitalista. Não há empresários que desfrutem do poder político que exercem, em escala
universal, as grandes corporações petrolíferas. A Standard Oil e a Shell levantam e destróem
reis e presidentes, financiam conspirações palacianas e golpes de estado, dispõem de
inúmeros generais, ministros e James Bonds, em todas as comarcas e em todos os idiomas
decidem o curso da guerra e da paz. A Standard Oil de Nova Jérsei é a maior empresa
industrial do mundo capitalista; fora dos Estados Unidos não existe nenhuma empresa
industrial mais poderosa do que a Royal Dutch Shell. As filiais vendem o petróleo cru às
subsidiárias, que o refinam e vendem os combustíveis às sucursais para sua distribuição: o
sangue não sai, em todo circuito, fora do aparelho circulatório interno do cartel, que além
disso possui os oleodutos e grande parte da frota de petróleo nos sete mares. Manipulamse os preços, em escala mundial, para reduzir os impostos a pagar e aumentar os lucros a
cobrar: o petróleo cru aumenta sempre menos do que o refinado.
Com o petróleo ocorre, como ocorre com o café ou com a carne, que os países ricos ganham muito
mais por se darem ao trabalho de consumi-lo, do que os países pobres em produzi-lo. A diferença é de
dez por um: dos onze dólares que custam os derivados de um barril de petróleo, os países exportadores
da matéria-prima mais importante do mundo recebem apenas um dólar,resultado da soma de
impostos e custos de extração, enquanto que os países da área desenvolvida, onde têm
sua sede as casas-matrizes das corporações petrolíferas, ficam com dez dólares, resultado
da soma de seus próprios impostos e taxas, oito vezes maiores do que os impostos dos
países produtores e dos custos e dos lucros de transporte, refino, processamento e distribuição que as grandes empresas monopolizam37.
O petróleo que brota dos Estados Unidos desfruta de um preço alto, e são relativamente altos os salários dos operários do petróleo norte-americano, porém a cotação do óleo
36. Osny Duarte Pereira, op. cit.
37. Segundo os dados publicados pela Organizagão dos Países Exportadores de Petróleo. Francisco Mieres, El petróleo y la problemática estructural venezolana, Caracas, 1969.
111
da Venezuela e do Oriente Médio foi caindo, desde 1957, e durante toda a década de 60.
Cada barril de petróleo venezuelano, por exemplo, valia, em média, US$ 2.65 em 1957, e
enquanto escrevo este capítulo, o preço é de US$ 1.85. O governo de Rafael Caldera
anuncia que fixará unilateralmente um preço muito maior, porém o novo preço só retornará a níveis superiores ao de 1957 muito mais tarde. Os Estados Unidos são, ao mesmo
tempo, os principais produtores e os principais importadores de petróleo no mundo. Na
época em que a maior parte do petróleo cru que vendiam as corporações provinha do
subsolo norte-americano, o preço se mantinha alto; durante a Segunda Guerra Mundial,
os Estados Unidos se converteram em importadores, e o cartel começou a aplicar uma
nova política de preços: a cotação baixou sistematicamente. Curiosa inversão das “leis do
mercado”: o preço do petróleo cai, embora a demanda mundial não deixe de aumentar,à medida
que se multiplicam as fábricas, os automóveis e as usinas geradoras de energia. E outro
paradoxo: embora o preço do petróleo baixe, sobe em todos os lugares o preço dos combustíveis que os
consumidores pagam. Há uma desproporção descomunal entre os preços do cru e dos
derivados. Toda esta cadeia de absurdos é perfeitamente racional; não é necessário recorrer às forças sobrenaturais para encontrar uma explicação. Porque o negócio do petróleo no
mundo capitalista está, como vimos, em mãos de um cartel todo-poderoso. O cartel
nasceu em 1928, num castelo do norte da Escócia rodeado pela bruma, quando a Standard
Oil de Nova Jérsei, a Shell e a Anglo-lranian, hoje chamada British Petroleum, se puseram
de acordo para dividirem o planeta. A Standard de Nova Iorque e a da Califórnia, a Gulf e
a Texaco se incorporaram posteriormente ao núcleo dirigente do cartel38. A Standard Oil,
fundada por Rockefeller, em 1870, tinha-se partido em trinta e cinco diferentes empresas
em 1911, pela aplicação da Lei Sherman contra os trustes; a irmã maior da numerosa
família Standard é, em nossos dias, a empresa de Nova Jérsei. Suas vendas de petróleo,
somadas às vendas da Standard de Nova Iorque e à da Califórnia, abarcam a metade das
vendas totais do cartel em nossos dias. As empresas petrolíferas do grupo Rockefeller são
de tal magnitude que somam nada menos que a terça parte do total de lucros que as
empresas norte-americanas de todos os tipos, em seu conjunto, arrancam do mundo
inteiro. A Jérsei, típica corporação multinacional, obtém seus maiores ganhos fora de
fronteiras; a América Latina lhe presenteia mais lucros do que os Estados Unidos e Canadá
somados: ao sul do rio Bravo, sua taxa de lucros é quatro vezes mais alta39.As filiais da
Venezuela produziram, em 1957, mais da metade dos lucros colhidos pela Standard Oil de Nova
Jérsei em todos os lugares; nesse mesmo ano, as filiais venezuelanas proporcionaram à Shell a metade
de seus lucros no mundo inteiro40.
Estas corporações multinacionais não pertencem às múltiplas nações onde operam:
são multinacionais, mas simplesmente, na medida em que dos quatro pontos cardeais
arrastam grandes rios de petróleo, e dólares para os centros de poder do sistema capitalista. Não precisam exportar capitais, certamente, para financiar a expansão de seus negócios; os ganhos usurpados aos países pobres não só derivam em linha reta para as poucas
cidades onde moram seus maiores cortadores de cupãos, mas, além disso, são reinvestidos parcialmente para robustecer e estender a rede internacional de operações. A estrutura do cartel implica o domínio de numerosos países e a penetração em seus numerosos
governos; o petróleo encharca presidente e ditadores, e acentua as deformações estruturais das sociedades que põe a seu serviço. São as empresas que decidem, com um lápis
sobre o mapa do mundo, quais serão as zonas de exploração e quais as de reserva, e são
elas que fixam os preços que cobrarão os produtores e pagarão os consumidores. A riqueza
38. Informe do Senado dos Estados Unidos; Actas secretas del cartel del petróleo, Buenos Aires,
1961 e Harvey O'Connor, El imperio del petróteo, Havana, 1961.
39. Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, El capital monopolista, México, 1971.
40. Francisco Mieres, op. cit.
112
natural da Venezuela e outros países latino-americanos com petróleo no subsolo, objetos
do assalto e saque organizados, converteu-se em principal instrumento de sua servidão
política e sua degradação social. Esta é uma longa história de façanhas e de maldições,
infâmias e desafios.
Cuba proporcionava, por vias complementares, suculentos ganhos à Standard Oil de
Nova Jérsei. A Jérsei comprava o petróleo cru da Creole Petroleum, sua filial na Venezuela,
e o refinava e o distribuía na ilha, tudo a preços que melhor lhe convinha para cada uma
das etapas. Em outubro de 1959, em plena efervescência revolucionária, o Departamento
de Estado enviou uma nota oficial a Havana, na qual expressava sua preocupação pelo
futuro das inversões norte-americanas em Cuba: já tinham começado os bombardeios dos
aviões “piratas” procedentes do norte, e as relações estavam tensas. Em janeiro de 1960,
Eisenhower anunciou a redução da cota cubana de açúcar, e em fevereiro Fidel Castro
assinou um acordo comercial com a União Soviética para trocar açúcar por petróleo e
outros produtos a bom preço para Cuba. A Jérsei, a Shell e a Texaco se negaram a refinar o
petróleo soviético: em julho, o governo cubano interveio e nacionalizou, sem indenização
alguma. Encabeçadas pela Standard Oil de Nova Jérsei, as empresas começaram o bloqueio. Ao boicote de pessoal qualificado se somou o boicote de peças de reposição essenciais para as maquinarias e o boicote dos fretes. O conflito era uma prova de soberania41,e
Cuba venceu altivamente. Deixou de ser, ao mesmo tempo, uma estrela na constelação da
bandeira dos Estados Unidos e uma peça na engrenagem mundial da Standard Oil.
O México sofreu, vinte anos antes, um embargo internacional decretado pela
Standard Oil de Nova Jérsei e pela Royal Dutch Shell. Entre 1939 e 1942, o cartel dispôs o
bloqueio das exportações mexicanas de petróleo e dos abastecimentos necessários para
seus poços e refinarias. O presidente Lázaro Cárdenas nacionalizara as empresas. Nelson
Rockefeller, que em 1930 tinha-se formado economista, escrevendo tese sobre as virtudes
de sua Standard Oil, viajou para o México para negociar um acordo, porém Cárdenas não
voltou atrás. A Standard e a Shell, que dividiram o território mexicano, atribuindo-se a
primeira o norte e a segunda o sul, não só se negavam a aceitar as resoluções da Suprema
Corte na aplicação das leis trabalhistas mexicanas, mas além disso arrasaram as jazidas da
famosa Faja de Oro a uma velocidade vertiginosa, e obrigavam os mexicanos a pagar,por
seu próprio petróleo, preços mais altos do que aqueles que cobravam nos Estados Unidos
e Europa por este mesmo petróleo42. Em poucos meses, a febre exportadora esgotara
brutalmente muitos poços que poderiam continuar produzindo durante trinta ou quarenta anos. “Tiraram do México - escreve O’Connor - seus depósitos mais ricos e só lhe
deixaram uma coleção de refinarias antiquadas, campos exaustos, a pobreza da cidade de
Tampico e recordações amargas.” Em menos de vinte anos, a produção tinha-se reduzido
a uma quinta parte. O México ficou com uma indústria decrépita, orientada para a demanda externa, e com 14 mil operários; os técnicos se foram, e até desapareceram os
meios de transporte. Cárdenas converteu a recuperação do petróleo em grande causa
nacional, e salvou a crise à força de imaginação e coragem. Pemex, Petróleos Mexicanos, a
empresa criada em 1938, encarregada de toda a produção e mercado, é hoje a maior
empresa não-estrangeira de toda a América Latina. À custa dos lucros que a Pemex.
produziu, o governo mexicano pagou vultosas indenizações às empresas, entre 1947 e
41. Michael Tanzer, The political economy of international oil and the undendeveloped countries
Boston, 1969.
42. Harvey O'Connor, La crisis mundial del petróleo Buenos Aires, 1963. Este fenómeno continua sendo usual em vários países. Na Colômbia, por exemplo, onde o petróleo é exportado
livremente e sem pagar impostos, a refinaria estatal compra das companhias estrangeiras o
petróleo colombiano com um sobrepreço de 37% sobre o preço internacional, e tem que pagar em
dólares (Raúl Alameda Ospina em revista Esquina, Bogotá, janeiro de 1963).
113
1962, a despeito de que, como bem diz Jesús Silva Herzog, “o México não é devedor destas
companhias piratas, mas credor legítimo”43. Em 1949, a Standard Oil interpôs seu veto a
um empréstimo que os Estados Unidos iam conceder à Pemex, e muitos anos depois, já
fechadas as feridas por obra das generosas indenizações, a Pemex viveu uma experiência
semelhante ante o Banco Interamericano de Desenvolvimento.
O Uruguai foi o país que criou a primeira refinaria estatal na América Latina. A
ANCAP,Administração Nacional de Combustíveis, Álcool e Portland, nasceu em 1931, e o
refino e a venda de petróleo cru figuravam entre suas funções principais. Era a resposta,
nacional a uma longa história de abusos do truste no rio da Prata. Paralelamente, o Estado
assinou a compra de petróleo barato na União Soviética. O cartel financiou de imediato
uma furiosa campanha de desprestígio contra a empresa industrial do Estado uruguaio e
começou sua tarefa de extorsão e ameaça. Afirmava-se que o Uruguai não encontraria
quem lhe vendesse maquinarias e que ficaria sem petróleo cru, que o Estado era um
péssimo administrador, e que não poderia encarregar-se de tão complicado negócio. O
golpe palaciano de 1933 emitia certo cheiro de petróleo: a ditadura de Gabriel Terra anulou
o direito da ANCAP de monopolizar a importação de combustíveis, e em janeiro de 1938
assinou convênios secretos com o cartel, ominosos acordos que foram ignorados pelo público
até um quarto de século depois e que ainda estão em vigência.
De acordo com seus termos, o país é obrigado a comprar 40% do petróleo cru sem
licitação e aonde indicarem a Standard Oil, a Shell, a Atlantic e a Texaco, nos preços que o
cartel fixar. Além disso, o Estado, que conserva o monopólio do refino, paga todos os gastos
das empresas, incluindo a propaganda, os salários privilegiados e os luxuosos móveis de
seus escritórios44.“Esso é progresso”, canta a televisão, e o bombardeio dos anúncios não
custa à Standard Oil nem um só centavo. O advogado do Banco da República tem também a seu cargo as relações públicas da Standard Oil: o Estado lhe paga os dois salários.
Por volta de 1939, a refinaria da ANCAP levantava suas torres chamejantes: a empresa tinha sido mutilada gravemente, mal acabava de nascer, como vimos, porém constituída ainda um exemplo de desafio vitorioso ante as pressões do cartel. O chefe do
Conselho Nacional de Petróleo do Brasil, general Horta Barbosa, viajou para Montevidéu e
se entusiasmou com a experiência: a refinaria uruguaia tinha pago quase a totalidade de
seus gastos de instalação durante o primeiro ano de trabalho. Graças aos esforços do
general Barbosa, somados ao fervor de outros militares nacionalistas, a Petrobrás, a empresa estatal brasileira, pôde iniciar suas operações em 1953 ao grito de “Opetróleo é nosso!”
Atualmente, a Petrobrás é a maior empresa do Brasil45. Explora, extrai e refina o petróleo
brasileiro. Porém a Petrobrás também foi mutilada. O cartel lhe arrebata ainda partes de
duas grandes fontes de ganhos: em primeiro lugar, a distribuição da gasolina, lubrificantes,
querosene e diversos fluidos, um estupendo negócio que a Esso, Shell e a Atlantic manejam por telefone sem maiores dificuldades e com tão bom resultado que este é, depois da
indústria automobilística, o item mais forte da inversão americana no Brasil; em segundo
lugar, a indústria petroquímica, generoso manancial de lucros, que foi desnacionalizada,
faz poucos anos, pelo governo do marechal Castelo Branco. Recentemente, o cartel desencadeou uma estrepitosa campanha destinada a despojar a Petrobrás do monopólio do
refino. Os defensores da Petrobrás recordam que a iniciativa privada, que antes tinha
campo livre, não se ocupara do petróleo brasileiro antes de 195346 e procuram devolver à
43. Jesus Silva Herzog, Historia de la expropiación de las empresas petroleras, México, 1964.
44. Vivian Trías, Imperialismo y petróleo en el Uruguay, Montevidéu, 1963. Veja-se também o
discurso do deputado Enrique Erro no diário de sessões da Câmara de Representantes, nº 1211,
tomo 577, 7 de setembro de 1966.
45. A Petrobrás figura no primeiro lugar da lista das quinhentas maiores empresas, publitada por
Conjuntura Económica, vol. 24, nº 9, Rio de Janeiro, 1970.
114
frágil memória do público um episódio bem ilustrativo da boa-vontade dos monopólios.
Em novembro de 1960, de fato, a Petrobrás encomendou a dois técnicos brasileiros uma
revisão geral das jazidas sedimentares do país. Como resultado de seus informes, o pequeno Estado nordestino de Sergipe pagou à vanguarda na produção de petróleo. Pouco
antes, em agosto, o técnico norte-americano Walter Link, que fora o principal geólogo da
Standard Oil de Nova Jérsei, recebera do Estado brasileiro meio milhão de dólares por uma
montanha de mapas e um extenso informe que tachava de “inexpressiva” a espessura
sedimentar de Sergipe: até então tinha sido considerada de grau B, e Link a rebaixou para
grau C. Depois se soube que era de grau A47. Segundo O’Connor, Link tinha trabalhado
todo o tempo como agente da Standard, de antemão resolvido a não encontrar petróleo
para que o Brasil continuasse dependendo das importações da filial de Rockefeller na
Venezuela.
Também na Argentina as empresas estrangeiras e seus múltiplos ecos nativos sustentam sempre que o subsolo contém escasso petróleo, ainda que as investigações dos
técnicos da YPF,Yacimientos PetrolíferosFiscales, tenham indicado com toda certeza que em
cerca da metade do território nacional exista petróleo, e que também há petróleo abundante na vasta plataforma submarina da costa atlântica. Cada vez que está em voga falar
da pobreza do subsolo argentino, o governo firma uma nova concessão em beneficio de
algum dos membros do cartel. A empresa estatal, YPF, tem sido vítima de uma contínua
e sistemática sabotagem, desde suas origens até esta data. A Argentina foi, não faz muitos
anos, um dos últimos cenários históricos da luta interimperialista entre Inglaterra, no
desesperado ocaso, e os ascendentes Estados Unidos. Os acordos do cartel não impediram
a Shell e a Standard disputarem o petróleo deste país por meios às vezes violentos: há
uma série de eloqüentes coincidências nos golpes de estado que se sucederam ao longo
dos últimos quarenta anos. O Congresso argentino se dispunha a votar a lei de nacionalização do petróleo, em 6 de setembro de 1930, quando o caudilho nacionalista Hipólito
Yrigoyen foi derrubado da presidência do país pela quartelada de José Félix Uriburu. O
governo de Ramón Castillo caiu em junho de 1943, quando resistia a assinar um convênio
que promovia a extração de petróleo por capitais norte-americanos. Em setembro de 1955,
Juan Domingo Perón marchou para o exílio quando o Congresso estava para aprovar a
concessão à California Oil Co. Arturo Frondizi desendaceou várias e agudas crises militares,
nas três armas, ao anunciar o chamado de licitação que oferecia todo o subsolo do país às
empresas interessadas em extrair petróleo: em agosto de 1959 a licitação foi declarada
extinta. Ressuscitou em seguida e em outubro de 1960 ficou sem efeito. Frondizi realizou
várias concessões em benefício das empresas norte-americanas do cartel, e os interesses
britânicos - decisivos na Marinha e no setor “colorado” do exército - não foram alheios a
sua queda em março de 1962. Arturo Illia anulou as concessões e foi derrubado em 1966;
no ano seguinte, Juan Carlos Onganía promulgou a lei dos hidrocarbonetos, favorecendo
os interesses norte-americanos.
O petróleo não provocou somente golpes de estado na América Latina. Também
desencadeou uma guerra, a do Chaco (1932/35), entre os dois povos mais pobres da
América do Sul “Guerra dos soldados nus”, chamou Renê Zavaleta a feroz matança
reciproca da Bolívia e Paraguai48. Em 30 de maio de 1934, o senador por Louisiana, Huey
Long, sacudiu os Estados Unidos com um violento discurso no qual denunciava que a
Standard Oil de Nova Jérsei tinha provocado o conflito e que financiava o exército boli46. Declarações do engenheiro Márcio Leite Cesariano, no Correio da Manhã, 28 de janeiro de
1967.
47. O Correio da Manhã publicou um amplo extrato do documento em sua edição de 19 de
fevereiro de 1967.
48. René Zavaleta Mercado, Bolivia. El desarrollo de la conciencia nacional, Montevidéu, 1967.
115
viano para apoderar-se, por seu intermédio, do Chaco paraguaio, necessário para estender
um oleoduto da Bolívia até o rio, e, além disso, pressumivelmente rico em petróleo: “Estes
criminosos foram lá e alugaram seus assassinos” – afirmou49. Os paraguaios marchavam
para o matadouro, por sua vez, empurrados pela Shell: à medida que avançavam para o
norte, os soldados descobriam perfurações da Standard no cenário da discórdia. Era uma
disputa entre duas empresas, inimigas e ao mesmo tempo sócias dentro do cartel, porém
não eram elas que derramavam o sangue. Finalmente, o Paraguai ganhou a guerra porém
perdeu a paz. Spruille Braden, notório personagem da Standard Oil, presidiu a comissão
de negociações que preservou para a Bolívia, e para Rockefeller, vários milhares de quilômetros quadrados que os paraguaios reivindicavam.
Próximos ao último território daquelas batalhas estão os poços de petróleo e as
vastas jazidas de gás natural que a Gulf Oil Co., a empresa da família Mellon, perdeu na
Bolívia em outubro de 1969. “Acabou para os bolivianos o tempo do desprezo” - clamou o
general Alfredo Ovando ao anunciar, da sacada do palácio Quemado, a nacionalização.
Quinze dias antes, quando ainda não tinha tomado o poder, Ovando jurou que nacionalizaria a Gulf, ante um grupo de intelectuais nacionalistas; tinha redigido o decreto, tinha
assinado e guardado, sem data, num envelope. E cinco, meses antes, no Cañadón del
Arque, o helicóptero do general Renê Barrientos tinha-se chocado contra os fios de telégrafo e ido à pique. A imaginação não teria sido capaz de inventar uma morte tão perfeita. O
helicóptero era um presente pessoal da Gulf Oil Co.; o telégrafo pertence, como se sabe, ao
Estado. Junto com Barrientos arderam pastas cheias de dinheiro que ele levava para
distribuir, nota por nota, entre os camponeses, e algumas metralhadoras que logo pegaram fogo e começaram a regar uma chuva de balas em torno do helicóptero incendiado, de
tal modo que ninguém pôde chegar perto para resgatar o ditador enquanto se queimava
vivo.
Além de decretar a nacionalização, Ovando derrogou o Código do Petróleo, chamado
Código Davenport em homenagem ao advogado que o redigira em inglês. Para a elaboração
do Código, a Bolívia tinha obtido, em 1956, um empréstimo dos Estados Unidos; em
compensação, o Eximbank, o sistema bancário privado de Nova Iorque e o Banco Mundial
responderam sempre negativamente às solicitações de crédito para o desenvolvimento do
YPFB, a empresa petrolífera do Estado. O governo norte-americano fazia sempre sua a
causa das corporações petrolíferas privadas50. Em função do código, a Gulf recebeu, então,
por um prazo de quarenta anos, a concessão dos campos mais ricos em petróleo de todo o
país. O código fixava uma ridícula participação do Estado nos lucros da empresa: por
muitos anos, apenas onze por cento. O Estado era sócio nos gastos do concessionário, mas
não tinha nenhum controle sobre esses gastos, e chegou-se a uma situação extrema em
matéria de oferendas: todos os riscos eram para a YPFB, e nenhum para a Gulf. Na Carta
de Intenções assinada pela Gulf em fins de 1966, durante a ditadura de Barrientos,
estabeleceu-se, de fato, que, nas operações conjuntas com a YPFB, a Gulf receberia o total
de seus capitais investidos na exploração de uma área, se não encontrasse petróleo. Se o
49. O Senador Long não poupou adjetivos à Standard Oil: chamou-a de criminosa, malfeilora,
facínora, assassina doméstica, assassina estrangeira, conspiradora internacional, antro de salteadores e ladroes rapaces, conjunto de vândalos e ladrões. Reproduzido na revista Guarania,
Buenos Aires, novembro de 1934.
50. Os exemplos abundam na História, recente ou remota. Irving Florman, embaixador dos EUA
na Bolívia, informava a Donald Dawson, da Casa Branca, em 28 de dezembro de 1950: "Desde que
aqui cheguei, trabalhei diligentemente no projeto de abrir amplamente a indústria petrolífera da
Bolívia à penetração da empresa privada norte-americana, e ajudar o nosso programa de defesa
nacional em vasta escala." E também: "Sabia que a você interessaria escutar que a indústria
petrolífera da Bolívia e esta terra inteira estão agora bem abertas à livre iniciativa norte-americana.
A Bolívia é, portanto, o primeiro país do mundo que fez uma desnacionalização, ou uma nacio-
116
petróleo aparecesse, os gastos seria recuperados através da exploração posterior, porém já
de entrada figurariam no passivo da empresa estatal. E a Gulf fixaria esses gastos a seu
critério51. Nesta mesma Carta de Intenções, a Gulf se atribuiu também, com toda tranqüilidade, a propriedade das jazidas de gás, que nunca lhes foram concedidas. O subsolo da
Bolívia contém muito mais gás do que petróleo. O general Barrientos distraiu-se: foi o
suficiente. Um simples passe de mãos para decidir o destino da principal reserva de
energia da Bolívia. Porém, a prática não tinha acabado.
Um ano antes de que o general Alfredo Ovando expropriasse a Gulf na Bolívia, outro
general nacionalista, Juan Velasco Alvarado, estatizara as jazidas e a refinaria da International
Petroleum Co., filial da Standard Oil de Nova Jérsei, no Peru. Velasco tinha o poder à frente
de uma junta militar e na crista da onda de um grande escândalo político: o governo de
Fernando Belaúnde Terry tinha perdido a página final do convênio de Talara, subscrito entre
o Estado e a IPC. Esta página misteriosamente evaporada, a página onze, continha a
garantia do preço mínimo que a empresa norte-americana devia pagar pelo petróleo cru
nacional em sua refinaria. O escândalo não terminava ali. Ao mesmo tempo, revelou-se
que a subsidiária da Standard fraudara o Peru em mais de um milhão de dólares, ao longo
de meio século, através dos impostos e incentivos e de outras variadas formas de fraude e
corrupção. O diretor da 1PC tinha-se encontrado com o presidente Belaúnde em sessenta
oportunidades, antes de se chegar ao acordo que provocou o levante militar; durante dois
anos, enquanto as negociações avançavam, se rompiam e começavam de novo, o Departamento de Estado suspendera todo tipo de ajuda ao Peru52. Virtualmente não restou
tempo para reativar a ajuda, porque a claudicação selou a sorte do presidente acossado.
Quando a empresa de Rockfeller apresentou seu protesto ante a Corte Judicial peruana, o
povo jogou moedinhas nos rostos de seus advogados.
A América Latina é uma caixa de surpresas; não se esgotará nunca a capacidade de
assombro desta região torturada do mundo. Nos Andes, o nacionalismo militar ressurgiu
com ímpeto, como um rio subterrâneo longamente escondido. Os mesmos generais que
hoje estão levando adiante, num processo contraditório e certo, uma política de reforma e
de afirmação patriótica, aniquilaram pouco antes os guerrilheiros. Muitas das bandeiras do
caídos foram recolhidas, assim, por seus próprios vencedores. Os militares peruanos regaram com napalm algumas zonas guerrilheiras, em 1965, e fora a International Petrolcum
Co., filial da Standard Oil de Nova Jérsei, quem lhes tinha fornecido a gasolina e o know-how
para que elaborassem as bombas na base aérea de Las Palmas, perto de Lima53. A empresa
não podia pressentir o que a esperava.
O LAGO DE MARACAIBO NO BUCHO DOS GRANDES ABUTRES DE METAL
Embora sua participação no mercado mundial tenha-se reduzido à metade na última década, a Venezuela continua sendo o maior exportador de petróleo. Da Venezuela
provém quase a metade dos ganhos que os capitais norte-americanos subtraem a toda
América Latina. Este é um dos países mais ricos do planeta e, também, um dos mais
pobres e mais violentos. Ostenta a renda per capita mais alta da América Latina, e possui
51. Marcelo Quiroga Santa Cruz, interpelação de 11 e 12 de outubro de 1966 na Câmara de
Deputados, Revista jurídica, edição extraordinária, Cochabamba, 1967.
52. Quando o escândalo explodiu, a embaixada dos Estados Unidos não guardou um prudente
silêncio. Um de seus funcionários chegou a afirmar que não existia nenhum original do contrato
de Talara. (Richard N. Goodwin, El conflicto com la IPC: Carta de Perú, reproduzido de The New
Yorker por Comercio exterior, México, julho de 1969.)
53. Georgie Anne Geyer, Seized US oil firm made napalm, no New York Post, 7 de abril de 1969.
117
-a rede de rodovias mais completa e ultramoderna; em proporção à quantidade de habitantes, nenhuma outra nação do mundo bebe tanto uísque escocês. As reservas de petróleo, gás e ferro que seu subsolo oferece à exploração imediata poderiam multiplicar por dez
a riqueza de cada um dos venezuelanos; em suas vastas terras virgens poderia caber,
inteira, a população da Alemanha ou Inglaterra. As sondas extraíram, em meio século,
uma renda petroleira tão fabulosa que duplica os recursos do Plano Marshall para a reconstrução da Europa; desde que o primeiro poço de petróleo arrebentou em torrentes, a
população se multiplicou por três e o orçamento nacional por cem, mas a maioria da
população, que disputa as sobras de uma minoria fastuosa, continua tão pobre como na
época em que o país dependia do cacau e do café54. Caracas, a capital, cresceu sete vezes
em trinta anos; a cidade patriarcal de frescos pátios, praça maior e catedral silenciosa se
eriçou de arranha-céus na mesma medida em que brotaram as torres de petróleo no lago
de Maracaibo. Agora, é um pesadelo de ar condicionado, supersônica e estrepitosa, um
centro da cultura do petróleo que bem poderia figurar como genuína capital do Estado do
Texas. Caracas mastiga chiclete e ama os produtos sintéticos e os alimentos enlatados; não
caminha nunca, só se mobiliza em automóvel, e envenenou com os gases dos motores o
limpo ar do vale; Caracas custa a dormir, porque não pode apagar a ansiedade de gastar,
comprar, consumir, obter, usar, apoderar-se de tudo. Nas ladeiras dos morros, mais de
meio milhão de desvalidos contempla, de suas choças armadas de lixo, o desperdício
alheio. Relampagueiam as centenas de milhares de automóveis último modelo pelas
avenidas da cidade dourada: na civilização do consumo, nem todos consomem tudo. E a
metade das crianças e dos jovens da Venezuela ficam, segundo os censos, fora das salas de
aula.
Três milhões e meio de barris de petróleo produz a Venezuela por dia para colocar em
movimento a maquinaria industrial do mundo capitalista; porém, as diversas filiais da
Standard Oil, a Sheil, a Gulf e a Texaco não exploram as quatro quintas partes de suas
concessões, que continuam sendo reservas virgens, e mais da metade do valor das exportações não volta nunca ao país. Os folhetos de propaganda da Creole (Standard Oil)
exaltam a filantropia da corporação na Venezuela, nos mesmos termos que proclamava,
suas virtudes, em meados do século XVIII, a Real Companhia Guipuzcoana; os lucros
arrancados desta grande vaca leiteira só são comparáveis, em proporção de capital investido, com as que no passado obtinham os mercadores de escravos ou os corsários. Nenhum
país produziu tanto para o capitalismo mundial em tão pouco tempo: a Venezuela drenou
uma riqueza que, segundo Ranqel, excede à que os espanhóis usurparam a Potosí ou os
ingleses da Índia. A primeira Convenção Nacional de Economistas revelou que os ganhos
reais das empresas petrolíferas na Venezuela ascenderam, em 1961, a 38%, e em 1962 a
48%, embora as taxas de lucro que as empresas denunciavam em seus balanços eram de
15 e 17% respectivamente. A diferença corre por conta da mágica da contabilidade e das
transferências ocultas. Na complicada relojoaria do negocio petrolífero é muito difícil calcular o volume dos lucros que se ocultam por trás da baixa artificial da cotação do petróleo
54. Para a redaição deste capítulo, o autor utilizou, além das obras já citadas de Harvey O'Connor
e Francisco Mieres, os seguintes livros: Orlando Araujo, Operación Puerto Rico sobre Venezuela,
Caracas, 1967; Frederico Brito, Venezuela siglo XX, Havana, 1967; M. A. Falcon Urbano, Desarrollo
e industrialización de Venezuela, Caracas, 1969; Elena Hochman, Hector Mujica e outros, Venezuela
1º, Caracas, 1963; William Krehm, Democracia y tirania en el Caribe, Buenos Aires, 1959; os
ensaios de D.F. Maza Zavala, Salvador de la Plaza, Pedro Esteban Mejía e Leonardo Ortega no
volume citado na nota 27; Rodolfo Quintero, La cultura del petróleo, Caracas, 1968; Domingo
Alberto Rangel, El proceso del capitalismo contemporáneo en Venezuela, Caracas, 1968; Arturo
Usiar Pietri, Tiene un porvenir la juventud venezolana?, em Cuadernos Americanos, México,
março-abril de 1968; e Nações Unidas-Cepal, Estudio económico de America Latina, 1969, Nova
Iorque - Santiago do Chile.
118
cru, que do poço à bomba de gasolina circula sempre pelas mesmas veias, e por trás da alta
artificial dos gastos de produção, onde se computam salários de fábula e inflacionados
custos de propaganda. O certo é que, segundo cifras oficiais, na última década, a Venezuela
não registrou o ingresso de novas inversões do exterior, mas, pelo contrário, uma sistemática desinversão. A Venezuela sofre a sangria de mais de setecentos milhões de dólares
anuais, convictos e confessos como “rendas do capital estrangeiro”. As únicas inversões
novas provêm dos lucros que o próprio país proporciona. Enquanto isto, os custos de
extração do petróleo vão baixando em linha vertical, porque cada vez as empresas ocupam
menos mão-de-obra. Só entre 1959 e 1962 se reduziu em mais de dez mil a quantidade de
operários: ficaram pouco mais de trinta mil em atividade, e em fins de 1970 o petróleo
ocupava nada mais do que 23 mil operários. A produção, em compensação, cresceu muito
nesta última década.
Como conseqüência da desocupação crescente, aguçou-se a crise dos acampamentos petrolíferos do lago de Maracaibo. O lago é um bosque de torres. Dentro das armações
de ferros cruzados, o implacável movimento de cabeça dos bate-estacas gera, há meio
século, toda a opulência e toda a miséria da Venezuela. Junto aos bate-estacas ardem as
mechas, queimando impunemente o gás natural que o país se dá ao luxo de presentear a
atmosfera. Encontram-se bate-estacas até nos fundos das casas e nas esquinas das ruas
das cidades que brotaram aos jorros, como o petróleo, nas costas do lago: ali o petróleo
tinge de negro as ruas e as roupas, os alimentos e as paredes, e até as profissionais do amor
usam apelidos petrolíferos, tais como “A Tubeira” ou “A Quatro Válvulas”, “A Guindaste”
ou “A Rebocadora”. Os preços das roupas ou da comida são, aqui, mais altos do que em
Caracas. Estas aldeias modernas, tristes de nascimento, porém ao mesmo tempo aceleradas pela alegria do dinheiro fácil, descobriram já que não têm destino. Quando morrem os
poços, a sobrevivência se converte em milagre: ficam os esqueletos das casas, as águas
oleosas de veneno matando peixes e lambendo as zonas abandonadas. A desgraça atinge
também as cidades que vivem da exploração dos poços em atividade, pelas demissões em
massa e a mecanização crescente. “Por aqui o petróleo nos passou por cima - diziam os
povoadores de Lagunillas em 1966 -: para nós, se não viessem estas máquinas, teria sido
melhor.” Cabimas, que durante meio século foi a maior fonte de petróleo da Venezuela, e
que tanta prosperidade deu a Caracas e às empresas, não tem nem sequer vasos sanitários. Conta apenas com umas duas avenidas asfaltadas.
A euforia corria solta muitos anos atrás. Por volta de 1917, o petróleo coexistia já, na
Venezucla, com os latifúndios tradicionais, os imensos campos despovoados e de terras
ociosas, onde os fazendeiros vigiavam o rendimento de sua força de trabalho açoitando os
peões e os enterrando vivos até a cintura. Em fins de 1922, estourou o poço de La Rosa, que
jorrava cem mil barris por dia, e se desatou a borrasca do petróleo. Brotavam as sondas e
os guindastes no lago de Maracaibo, subitamente invadido pelos aparatos estranhos e os
homens com capacetes de cortiça; os camponeses afluíam e se instalavam sobre os solos
ferventes, entre tábuas e latas de óleo, para oferecer seus braços ao petróleo. Os sotaques
de Ok1ahoma e Texas ressoavam pela primeira vez nas planícies e na selva, até nas mais
escondidas comarcas. Setenta e três empresas surgiram de repente. O rei do carnaval de
concessões era o ditador Juan Vicente Gómez, um pecuarista dos Andes que ocupou seus
27 anos de governo (1908-35) fazendo filhos e negócios. Enquanto as torrentes negras
nasciam aos borbotões, Gómez extraía ações de seus bolsos cheios, e com elas recompensava seus amigos, parentes e cortesãos, o médico que lhe custodiava a próstata e os
generais que lhe custodiavam as costas, os poetas que cantavam sua glória e o arcebispo
que lhe outorgava permissão especial para comer carne na sexta-feira santa. As grandes
potências cobriam o peito de Gómez com lustrosas condecorações: era preciso alimentar os
automóveis que invadiam os caminhos do mundo. Os afilhados do ditador vendiam as
119
concessões à Shell, à Standard Oil ou à Gulf; o tráfico de influências e de subornos impulsionou a especulação e a fome de subsolos. As comunidades indígenas foram despojadas
de suas terras e muitas famílias de agricultores perderam, por bem ou por mal, suas
propriedades. A lei do petróleo de 1922 foi redigida pelos representantes de três firmas dos
Estados Unidos. Os campos de petróleo estavam cercados e tinham polícia própria.
Proibia-se a entrada de quem não tivesse ficha de inscrição nas empresas; estava vedado
até o trânsito pelas estradas que conduziam o petróleo aos portos. Quando Gómez morreu,
em 1935, os operários petroleiros cortaram as cercas de arame farpado que rodeavam os
acampamentos, e se declararam em greve. Os anos seguintes foram explosivos, perigosos.
Em 1948, com a queda do governo de Rómulo Gallegos, fechou-se o ciclo reformista
inaugurado três anos antes, e os militares vitoriosos rapidamente reduziram a participação
do Estado sobre o petróleo extraído pelas Filiais do cartel. A baixa de impostos se traduziu,
em 1954, em mais de US$300 milhões de lucros adicionais para a Standard Oil. Em 1953,
um homem de negócios dos Estados Unidos declarou, em Caracas: “Aqui, as pessoas têm
a liberdade de fazer com o dinheiro o que quiserem; para mim, esta liberdade vale mais do
que todas as liberdades políticas e civis juntas”55. Quando o ditador Marcos Pérez Jiménez
foi derrubado em 1958, a VenezueIa era um vasto poço petrolífero rodeado de cárceres e
câmaras de torturas, que importava tudo dos Estados Unidos: os automóveis e as geladeiras, o leite condensado, os ovos, as alfaces, as leis e os decretos. A maior das empresas de
Rockfeller, a Creole, declarou em 1957 lucros que chegavam quase a metade de suas
inversões totais. A junta revolucionária de governo elevou o imposto de renda das empresas maiores de 25 a 45%. Em represália, o cartel dispôs a imediata queda do preço do
petróleo venezuelano e começou, então, a despedir em massa os operários. O preço caiu
tanto que, apesar do aumento dos impostos e do maior volume de petróleo exportado, em
1958 o Estado arrecadou US$60 milhões menos do que no ano anterior.
Os governos seguintes não nacionalizaram a indústria petrolífera, tampouco outorgaram, em 1970, novas concessões às empresas estrangeiras para a extração do ouro
negro. Enquanto isto, o cartel acelerou a produção de suas jazidas do Oriente Médio e
Canadá; na Venezuela cessou virtualmente a prospeção de novos poços, e a exportação
está paralisada. A política de negar novas concessões perdeu sentido na medida em que a
Corporação Venezuelana do Petróleo, o organismo estatal, não assumiu a responsabilidade vacante. A Corporação se limitou, em compensação, a perfurar uns poucos poços aqui
e ali, confirmando que sua função não é outra senão a que lhe havia adjudicado o presidente Rômulo Betancourt: “Não alcançar uma dimensão de grande empresa, mas servir
de intermediário para as negociações na nova fórmula de concessões.” A nova fórmula
não se pôs em prática, embora tenha sido anunciada várias vezes. Em 1970, sob o governo
democrata-cristão de Rafael Caldera, assegurou-se que estavam muito adiantadas as
gestões para a assinatura de “contratos de serviço” pelos quais as empresas explorariam e
bombeariam um quarto de milhão de hectares em sociedade com o Estado. Outra forma
do imperialismo mascarado, o sistema das empresas mistas, tinha-se aplicado anteriormente para entregar em grande medida a indústria petroquímica - a borracha sintética, o polietileno, o amoníaco, a uréia - à Union Carbide e a uma subsidiária da Standard Oil.
Enquanto isto, o forte impulso industrializador, que ganhara corpo e força desde há
duas décadas, já mostra visíveis sintomas de esgotamento, e vive uma impotência muito
conhecida na América Latina: o mercado interno, limitado pela pobreza das maiorias
populares, não é capaz de sustentar o desenvolvimento manufatureiro além de certos
limites. A reforma agrária, por outro lado, inaugurada no governo da Ação Democrática,
ficou a menos da metade do caminho que se propunha, nas promessas de seus criadores,
55. Time, edição para América Latina, 11 de setembro de 1953.
120
a percorrer.
Salvador Garmendia, o romancista que reinventou o inferno pré-fabricado de toda
esta cultura de conquista, a cultura do petróleo, me escrevia numa carta, em meados de
69: “Você viu um bate estaca, o aparelho que extrai o petróleo cru? Tem a forma de um
grande pássaro cuja cabeça pontiaguda sobe e desce pesadamente, dia e noite, sem parar
um segundo: é o único abutre que não come merda. O que acontecerá quando ouvirmos o
ruído característico do sorvedor ao acabar o líquido? A abertura grotesca já começa a ser
ouvida no lago de Maracaibo, onde da noite para o dia brotaram povoados fabulosos com
cinemas, supermercados, dancings, formigueiros de putas e jogos, onde o dinheiro não
tinha valor. Há pouco fiz um passeio por aí e senti um embrulho no estômago. O cheiro de
morto e de sucata é mais forte do que o do óleo. Os povoados estão semidesertos, carcomidos, todos ulcerados pela ruína, as ruas enlodadas, as lojas em escombros. Uma antiga
prancha das empresas se submerge todo dia, armada com serras, para cortar pedaços de
tubos abandonados e vendê-los como ferro velho. O povo começa a falar das companhias
como quem evoca uma fábula dourada. Vive-se de um passado mítico e funambulesco de
fortunas perdidas num golpe de dados e bebedeiras de sete dias. Entretanto, os bate-estacas
continuam cabeceando e a chuva de dólares cai em Miraflores, palácio do governo, para
transformar-se em autopistas e demais monstros de cimento armado. 70% do país vive
marginado de tudo. Nas cidades prospera uma atoleimada classe média com altos salários, que se entope de objetos inservíveis, vive aturdida pela publicidade e professa a imbecilidade e o mau-gosto de forma gritante. Há pouco o governo anunciou com grande
estrépito que tinha exterminado o analfabetismo. Resultado: na passada festa eleitoral, o
censo de inscritos lançou um milhão de analfabetos entre os 18 e os 50 anos de idade.”
121
SEGUNDA PARTE: O DESENVOLVIMENTO E UMA VIAGEM COM MAIS NÁUFRAGOS DO QUE
NAVEGANTES
HISTÓRIA DA MORTE PREMATURA
AS NAUS BRITÂNICAS SAUDAVAM A INDEPENDÊNCIA DO MEIO DO RIO
Em 1823, George Canning, cérebro do Império britânico, celebrava seus triunfos
universais. O encarregado de negócios da França teve que suportar a humilhação deste
brinde: “Vossa seja a glória do triunfo, seguida pelo desastre e pela ruína; nosso seja o
tráfico sem glória da indústria e a prosperidade sempre crescente... A idade da cavalaria
passou; e a sucedeu uma era de economistas e calculistas.” Londres vivia o princípio de
uma longa festa; Napoleão tinha sido definitivamente derrotado alguns anos atrás, e a era
da Pax Britannica se abria sobre o mundo. Na América Latina, a independência soldara
perpetuamente o poder dos donos da terra e dos comerciantes enriquecidos, nos portos, à
custa da antecipada ruína dos países nascentes. As antigas colônias espanholas, e o Brasil
também, eram mercados ávidos para os tecidos ingleses e as libras esterlinas a tanto por
cento. Canning não errara ao escrever, em 1824: “A coisa está feita. A América espanhola é
livre; e se nós não desgovernarmos tristemente nossos assuntos, é inglesa”1.
A máquina a vapor, o tear mecânico e o aperfeiçoamento da máquina de tecer
amadureceram a Revolução Industrial na Inglaterra. Multiplicavam-se as fábricas e os
bancos; os motores de combustão interna modernizaram a navegação marítima e os grandes barcos navegavam rumo aos quatro pontos cardeais, universalizando a expansão
industrial inglesa. A economia britânica pagava com tecidos de algodão os couros do rio da
Prata, o guano e o nitrato do Peru, o cobre do Chile, o açúcar de Cuba, o café do Brasil. As
exportações industriais, os fretes, os seguros, os juros dos empréstimos e os dividendos
das inversões alimentariam ao longo do século XIX, a pujante prosperidade da Inglaterra.
Na realidade, antes das guerras de independência os ingleses já controlavam boa parte do
comércio legal entre a Espanha e suas colônias, e tinham lançado às costas da América
Latina um caudaloso e persistente fluxo de mercadorias de contrabando. O tráfico de
escravos oferecia um biombo eficaz para o comércio clandestino, embora no final também
as alfândegas registrassem, em toda América Latina, uma esmagadora maioria de produtos que não provinham da Espanha. O monopólio espanhol não existia, nos fatos, nunca:
“ ... a colônia já estava perdida para a metrópole muito antes de 1810, e a Revolução não
representou senão um reconhecimento político de semelhante estado de coisas”2.
As tropas britânicas conquistaram Trinidad, no Caribe, ao preço de uma só baixa,
porém o comandante da expedição, Sir Ralph Abercromby, estava convencido de que não
seriam fáceis outras conquistas militares na América hispânica. Pouco depois, fracassaram
as invasões inglesas no rio da Prata. A derrota deu força à opinião de Abercromby sobre a
ineficácia das expedições armadas e a vez histórica dos diplomatas, dos mercadores e dos
banqueiros: uma nova ordem liberal nas colônias espanholas ofereceria à Grã Bretanha a
oportunidade de abarcar as nove décimas partes do comércio da América espanhola3.A
1. Wilham W. Kaufmann, La política británicay la independência de la América Latina (18041828), Caracas, 1963.
2. Manfred Kossok, El virreinato del Río de la Plata. Su estrucutra económico-social, Buenos
Aires, 1959.
122
febre da independência fervia em terras hispano-americanas. A partir de 1810, Londres
aplicou uma política ziguezagueante e dúplice, cujas flutuações obedeceram à necessidade de favorecer o comércio inglês, impedir que a América Latina pudesse cair em mãos
norte-americanas ou francesas e prevenir uma possível infecção de jacobinismo dos novos
países que nasciam para a liberdade.
Quando se constituiu ajunta revolucionária em Buenos Aires, em 25 de maio de
1810, uma salva de canhões dos navios britânicos a saudou a partir do rio. O capitão do
barco Mutine pronunciou, em nome de Sua Majestade, um inflamado discurso: o júbilo
invadia os corações britânicos. Buenos Aires demorou apenas três dias para eliminar certas
proibições que dificultavam o comércio com estrangeiros: doze dias depois, reduziu de 50%
para 7,5% os impostos que oneravam as vendas ao exterior de couros e de sebo. Decorreram seis semanas desde o 25 de maio quando se tornou sem efeito a proibição de
exportar o ouro e a prata em moedas, de modo que pudessem fluir a Londres sem inconvenientes. Em setembro de 1811, um triunvirato substituiu ajunta como autoridade
governante: foram novamente reduzidos, e em alguns casos abolidos, os impostos de
exportação e importação. A partir de 1813, quando a Assembléia se declarou autoridade
soberana, os comerciantes estrangeiros ficaram isentos da obrigação de vender suas mercadorias através dos comerciantes nativos: “O comércio se fez, em verdade, livre”4. Já em
1812, alguns comerciantes britânicos comunicavam ao Foreign Office: “Conseguimos...
substituir com êxito os tecidos alemães e franceses.” Tinham substituído, também, a
produção dos tecedores argentinos, estrangulados pelo porto livre-cambista, e o mesmo
processo se registrou, com variantes, em outras regiões da América Latina.
De Yorkshire e Lancashire, dos Cheviots e Gales, brotavam sem cessar artigos de
algodão e lã, de ferro e de couro, de madeira e porcelana. Os teares de Manchester,as
ferrarias de Sheffield, as olarias de Worcester e Staffordshire inundaram os mercados
latino-americanos. O comércio livre enriquecia os portos que viviam da exportação e aumentava em
muito o nível de esbanjamento das oligarquias, ansiosas por desfrutar de todo o luxo que o mundo
oferecia, porém arruinava as incipientes manufaturas locais e frustrava a expansão do mercado
interno. As indústrias domésticas, precárias e de muito baixo nível técnico, surgiram no
mundo colonial, a despeito das proibições da metrópole e conheceram um auge, nas
vésperas da independência, como conseqüência do afrouxamento dos laços opressores da
Espanha e das dificuldades de abastecimento que a guerra européia provocou. Nos primeiros anos do século XIX, as oficinas estavam ressuscitando, depois dos mortíferos
efeitos da disposição que o rei adotara, em 1778, para autorizar o comércio livre entre os
portos da Espanha e América. Uma avalanche de mercadorias estrangeiras esmagou as
manufaturas têxteis e a produção colonial de cerâmica e objetos de metal, e os artesãos
não contaram com muitos anos para se recuperar do golpe: a independência abriu totalmente as portas à livre concorrência da indústria já desenvolvida na Europa. Os vaivéns
posteriores nas políticas aduaneiras dos governos da independência gerariam sucessivas mortes e
nascimentos das manufaturas “criollas”, sem a possibilidade de um desenvolvimento sustentado no
tempo.
AS DIMENSOES DO INFANTICÍDIO INDUSTRIAL
Quando nascia o século XIX, Alexander von Humboldt calculou o valor da produção
manufatureira do México em sete ou oito milhões de pesos, dos quais a maior parte
correspondia a trabalhos têxteis. As oficinas especializadas elaboravam panos, tecidos de
3. H. S. Ferns, Gran Bretaña y Argentina en el siglo XIX, Buenos Aires, 1966.
4. Ibid.
123
algodão e lenços; mais de duzentos teares ocupavam mil e duzentos tecedores de algodão5. No Peru, os toscos produtos da colônia não chegaram nunca à perfeição dos tecidos
indígenas muito anteriores à chegada de Pizarro, “mas sua importância econômica foi, em
compensação, muito grande”6. A indústria repousava sobre o trabalho forçado dos índios,
encarcerados nas oficinas antes de clarear o dia até muito tarde da noite. A independência
aniquilou o precário desenvolvimento alcançado. Em Ayacucho, Cacamorsa, Tarma, os
trabalhos eram de uma magnitude considerável. O povoado inteiro de Pacaicasa, hoje
morto, “formava um só e vasto estabelecimento de teares com mais de mil operários”, diz
Romero em sua obra; Paucarcolla, que abastecia de cobertores de lã uma região muito
vasta, está desaparecendo “e atualmente não existe ali nem uma só fábrica”7. No Chile,
uma das mais distantes possessões espanholas, o isolamento favoreceu o desenvolvimento de uma atividade industrial incipiente desde os albores da vida colonial. Tinha fiações,
teares, curtumes; as fábricas chilenas forneciam cordas para todos os navios do Mar do Sul;
fabricavam-se artigos de metal, desde alambiques e canhões até jóias, vasilhas finas e
relógios; construíam-se embarcações e veículos8.Também no Brasil as oficinas têxteis e
metalúrgicas, que vinham ensaiando desde o século XVIII seus modestos primeiros passos, foram arrasadas pelas importações estrangeiras. Essas atividades manufatureiras
tinham conseguido prosperar em medida considerável, apesar dos obstáculos impostos
pelo pacto colonial com Lisboa; porém, desde 1807, a monarquia portuguesa, estabelecida
no Rio de Janeiro, já não era mais do que um joguete em mãos britânicas, e o poder de
Londres tinha outra força. “Até a abertura dos portos, as deficiências do comércio português operava como barreira protetora de uma pequena indústria local - diz Caio Prado Júnior
-; pobre indústria artesã, é verdade, porém assim mesmo suficiente para satisfazer a uma
parte do consumo interno. Esta pequena indústria não poderá sobreviver à livre concorrência estrangeira, mesmo nos mais insignificantes produtos”9.
A Bolívia era o centro têxtil mais importante do vice-reinado rio-platense. Em
Cochabamba tinha oitenta mil pessoas dedicadas à fabricação de lenços de algodão, panos
e toalhas, segundo o testemunho do intendente Francisco de Viedma. Em Oruro e La Paz
também surgiram oficinas que, junto com as de Cochabamba, ofereciam mantas, ponchos
e baetas muito resistentes para a população, às tropas de linha do exército e às guarnições
de fronteira. De Mojos, Chiquitos e Guarayos provinham finíssimos tecidos de linho e de
algodão, chapéus de palha, vicunha ou carneiro e charutos de folha. “Todas estas indústrias desapareceram ante a concorrência de artigos similares estrangeiros comprovava, sem
maior tristeza, um volume dedicado à Bolívia no primeiro centenário de sua independência10.
O litoral da Argentina era a região mais atrasada e menos povoada do país, antes
de que a independência transferisse para Buenos Aires, em prejuízo das provinciais mediterrâneas, o centro de gravidade da vida econômica e política. Em princípios do século XIX,
só a décima parte da população argentina residia em Buenos Aires, Santa Fé e Entre
Rios11. Com ritmo lento e por meios rudimentares, tinha-se desenvolvido uma indústria
nativa nas regiões do centro e do norte, enquanto que no litoral não existia, segundo dizia
em 1795 o procurador Larramendi, “nenhuma arte nem manufatura. Em Tucumán e
5. Alexander von Humboldt, Ensayo sobre el reino de la Nueva España, México, 1949.
6. Emilio Romero, Historia económica del Perú, Buenos Aires, 1949.
7. Ibid.
8. Hernán Ramírez Necochea, Antecedentes económicos de la independencia de Chile, Santiago
do Chile, 1959.
9. Caio Prado Júnior, Historia económica del Brasil, Buenos Aires, 1960.
10. The University Society, Bolivia en el primer centenario de su independéncia, La Paz, 1925.
11. Luis C. Alen Lascano, Imperialismo y comercio libre, Buenos Aires, 1963.
124
Santiago del Estero, que atualmente são poços de subdesenvolvimento, floresciam as
oficinas têxteis, que fabricavam ponchos de três tipos diferentes, as fábricas de carroças de
boa madeira, a produção de charutos e cigarros, couros e solas. De Catamarca nasciam
lenços de todos os tipos, panos finos, baetas de algodão preto para serem usadas pelos
clérigos; Córdoba fabricava mais de mil ponchos, vinte mil cobertores e quarenta mil varas
de baeta por ano, sapatos e artigos de couro, laços e chicotes, tapetes e cordas. Os curtumes
e manufaturas de couro mais importantes estavam em Corrientes. Eram famosos os finos
arreios de Salta. Mendoza produzia entre dois e três milhões de litros de vinho por ano, em
nada inferiores aos de Andaluzia, e San Juan destilava 350 mil litros anuais de aguardente.
Mendoza e San Juan formavam “a garganta do comércio” entre o Atlântico e o Pacífico da
América do Sul12.
Os agentes comerciais de Manchester, Glasgow e Liverpool percorreram a Argentina
e copiaram os modelos dos ponchos santiaguenhos e cordobeses e dos artigos de couro de
Corrientes, além dos estribos de pau para se conformarem “ao uso do país”. Os ponchos
argentinos valiam sete pesos; os de Yorkshire, três. A indústria têxtil mais desenvolvida do
mundo triunfava a galope sobre os teares nativos, e outro tanto ocorria na produção de
botas, esporas, rédeas, freios e até cravos. A miséria assolou as províncias interiores argentinas, que logo levantaram lanças contra a ditadura do porto de Buenos Aires. Os principais mercadores (Escalada, Belgrano, Pueyrredón, Vieytes, Las Heras, Cervifio) tomaram
o poder arrebatado à Espanha13, e o comércio lhes dava a possibilidade de comprar sedas
e facas inglesas, panos finos de Louviers, caixinhas de Flandres, sabres suíços, genebra
holandesa, salames de Westfália e charutos de Hamburgo. Em troca, a Argentina exportava couros, sebo, ossos, carne salgada, e os pecuaristas da província de Buenos Aires estendiam seus mercados graças ao comércio livre. O cônsul inglês no Prata, Woodbine Parish,
descrevia em 1837 um robusto gaúcho dos pampas: “Tomem-se todas as peças de sua
roupa, examine-se o que o rodeia e, excetuando-se o que seja de couro, que coisa haverá
que não seja inglesa? Se sua mulher tem uma saia, há dez possibilidades contra uma que
seja manufatura de Manchester. O caldeirão ou panela em que cozinha, a peça de louça
ordinária em que come, sua faca, suas esporas, o freio, o poncho que o cobre, todos são
levados da Inglaterra”14. A Argentina recebia da Inglaterra até as pedras das calçadas.
Aproximadamente pela mesma época, James Watsori Webb, embaixador dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, relatava: “Em todas as fazendas do Brasil, os senhores e
seus escravos se vestem com manufaturas do trabalho livre, nove décimos delas são
inglesas. A Inglaterra proporciona todo capital necessário para melhorias internas do Brasil
e fabrica todos os utensílios de uso corrente, da enxada para cima, e quase todos artigos de
luxo ou de uso prático, do alfinete ao vestido mais caro. A cerâmica inglesa, os artigos
ingleses de vidro, ferro e madeira são tão correntes como os panos de lã e os tecidos de
algodão. A Grã-Bretanha fornece ao Brasil seus barcos a vapor e a vela, faz o calçamento e
endireita as ruas, ilumina com gás as cidades, constrói as vias férreas, explora as minas, é
seu banqueiro, levanta as linhas telegráficas, transporta o correio, constrói móveis, motores, vagões...”15. A euforia da livre importação enlouquecia os mercadores dos portos:
naqueles anos, o Brasil recebia também ataúdes, já forrados e prontos para o alojamento
de defuntos, selas para montar, candelabros de cristal, caçarolas e patins para gelo, de uso
bem improvável nas ardentes costas do trópico; também carteiras, embora não existisse
12. Pedro Santos Martínez, Las industrias durante el virreinato (1776-1810), Buenos Aires,
1969.
13. Ricardo Levene, introdução; a Documentos para la historia argentina, 1919, e m Obras completas,
Buenos Aires, 1962.
14. Woodbine Parish, Buenos Aires y las provincias del Rio de la Plata, Buenos Aires, 1958.
15. Paulo Schilling, Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966.
125
ainda no Brasil papel-moeda, e também uma quantidade inexplicável de instrumentos
de matemática16. O Tratado de Comércio e Navegação, firmado em 1810, onerava a importação dos produtos ingleses com uma tarifa menor do que a que se aplicava aos produtos
portugueses, e seu texto tinha sido tão atropeladamente traduzido do idioma inglês que a
palavra policy, por exemplo, passou a significar, em português,polícia em lugar de política17.
Os ingleses gozavam no Brasil de justiça especial, que os subtraía à jurisdição nacional: o
Brasil era um “membro não oficial do império econômico da Grã-Bretanha”18.
Em meados do século, um viajante sueco chegou a Valparaíso e foi testemunha do
desperdício e da ostentação que a liberdade de comércio estimulava no Chile: “A única
forma de elevar-se é submeter-se - escreveu - aos ditames das revistas de moda de Paris,
à casaca negra e a todos os acessórios que correspondem... A senhora compra um elegante
chapéu, que a faz sentir-se consumadamente parisiense, enquanto o marido se coloca um
duro e alto gravatão e se sente no pináculo da cultura européia”19. Três ou quatro casas
inglesas tinham-se apoderado do mercado do cobre chileno e manejavam os preços segundo os interesses das fundições de Swansea, Liverpool e Cardiff. O cônsul-geral da
Inglaterra informava a seu governo, em 1838, sobre o prodigioso incremento das vendas
de cobre, que se exportava “principalmente, senão por completo, em barcos britânicos”20.
Os comerciantes ingleses monopolizavam o comércio em Santiago e Valparaíso, e o Chile
era o segundo mercado latino-americano, em ordem de importância, para os produtos
britânicos.
Os grandes portos da América Latina, escalas de trânsito das riquezas extraídas do
solo e do subsolo com destino aos distantes centros de domínio, se consolidavam como
instrumentos de conquista e dominação contra os países a que pertenciam, e eram os
vertedores por onde se dilapidava a renda nacional. Os portos e as capitais queriam se
parecer com Paris ou Londres, mas à retaguarda havia o deserto.
PROTECIONISMO E LIVRE-CAMBISMO NA AMÉRICA LATINA: O BREVE VÔO DE LUCAS ALAMÁN
A expansão dos mercados latino-americanos acelerava a acumulação de capitais nos
viveiros da indústria britânica. Já fazia tempo que o Atlântico tinha-se convertido no eixo
do comércio mundial, e os ingleses sabiam aproveitar a localização de sua ilha, cheia de
portos, a meio caminho do Báltico e do Mediterrâneo, apontando as costas de nossa
América. A Inglaterra organizava um sistema universal e se convertia na prodigiosa fábrica
abastecedora do planeta: do mundo inteiro provinham as matérias-primas e sobre o mundo inteiro se derramavam as mercadorias elaboradas. O Império contava com o maior
porto e o mais poderoso aparato financeiro de seu tempo, tinha o mais alto nível de
especialização comercial, dispunha do monopólio mundial dos seguros e dos fretes e
dominava o mercado internacional do ouro. Friederich List, pai da união aduaneira alemã,
advertira que o livre comércio era o principal produto de exportação da Grã-Bretanha21.
Nada enfurecia os ingleses como o protecionismo aduaneiro e às vezes o faziam saber
numa linguagem de sangue e fogo, como na Guerra do ópio contra a China. Porém a livre
16. Alan K. M anchester,British preeminence in Brazil: its rise and decline, Chape & Hill, Carolina do
Norte, 1933.
17.Celso Furtado, Formación económica del Brasil, México-Buenos Aires, 1959.
18. J.F. Normano, Evoluffio económica do Brasil, Sáo Paulo, 1934.
19. Gustavo Beyhaut, Raíces contemporáneas de Améfica Latina, Buenos Aires, 1964.
20. Hernán Rarnírez Necochea, Historía del imperialismo en Chile, Santiago do Chile, 1960.
21. Este economista alemão, nascido em 1789, propagou nos Estados Unidos e em sua própria
pátria a doutrina do protecionismo aduaneiro e do fomento industrial. Suicidou-se em 1846,
porém suas idéias se impuseram nos dois países.
126
concorrência nos mercados se converteu numa verdade revelada para a Inglaterra, sóa
partir do momento em que esteve segura de que era a mais forte, e depois de ter desenvolvido sua
própria indústria têxtil ao abrigo da legislação protecionista mais severa da Europa. Nos difíceis
começos, quando a indústria britânica ainda corria com desvantagem, o cidadão inglês surpreendido
exportando lã crua, sem elaborar, era condenado a perder a mão direita e, se reincidia, o enforcavam;
era proibido enterrar um cadáver sem que antes o pároco do lugar certificasse que o sudário provinha
de uma fábrica nacional22.
“Todos os fenômenos destruidores suscitados pela livre concorrência no interior de
um país - advertiu Marx - se reproduzem em proporções mais gigantescas no mercado
mundial”23. O ingresso da América Latina na órbita britânica, da qual só sairia para
incorporar-se à órbita norte-americana, se deu no quadro deste panorama geral, e nele se
consolidou a dependência dos independentes países novos. A livre circulação de mercadorias e a livre circulação do dinheiro para os pagamentos e transferências de capitais tiveram conseqüências dramáticas.
No México, Vicente Guerrero chegou ao poder, em 1829, “nos ombros do desespero
artesão, insulado pelo grande demagogo Lorenzo de Zavala, que lançou sobre as tendas
repletas de mercadorias inglesas do Parián um turba faminta e desesperada”24. Guerrero
durou pouco no poder, e caiu em meio à indiferença dos trabalhadores porque não quis ou
não pôde limitar a importação de mercadorias européias, por cuja abundância - diz Chávez
Orozco – “gemiam no desemprego as massas artesãs das cidades que antes da independência, sobretudo nos períodos bélicos da Europa, viviam com certa folga”. A indústria
mexicana carecia de capitais, mão-de-obra suficiente e técnicas modernas: não tinha uma
organização adequada, nem vias de comunicação e meios de transportes para chegar aos
mercados e às fontes de abastecimento. “A única coisa que provavelmente sobrou - diz
Alonso Aguilar - foram interferências, restrições e travas de toda ordem” 25. A despeito
disso, como observara Humboldt, a indústria despertara nos momentos de estancamento
do comércio exterior, quando se interrompiam ou se dificultavam as comunicações marítimas, e começara a fabricar aço e a fazer uso do ferro e do mercúrio. O liberalismo que a
independência trouxe consigo agregava pérolas à coroa britânica e paralisava as manufaturas têxteis e metalúrgicas do México, Puebia e Guadalajara.
Lucas Alamán, um político conservador de grande capacidade, advertiu a tempo
que as idéias de Adam Smith continham veneno para a economia nacional e propiciou,
como ministro, a criação de um banco estatal, o Banco de Avio, com o intuito de impulsionar a industrialização. Um imposto sobre os tecidos estrangeiros de algodão proporcionaria ao país os recursos para comprar no exterior as maquinarias e os meios técnicos de que
o México necessitava para abastecer-se com tecidos de algodão de fabricação própria. O
país dispunha de matéria-prima, contava com energia hidráulica mais barata do que o
carvão e podia formar bons operários rapidamente. O Banco nasceu em 1830, e pouco
depois chegaram, das melhores fábricas européias, as maquinarias mais modernas para
fiar e tecer algodão; além disso, o Estado contratou peritos estrangeiros na técnica têxtil.
Em 1844, as grandes fábricas de Puebia produziram um milhão e quatrocentos mil cortes
22. Cláudio Vóliz, La mesa de ires patas, em Desarrollo económico, vol. 3 n 1 e 2, Santiago
do
Chile, setembro de 1963.
23. “Nada há de estranho no fato de que os livre-cambistas sejam incapazes de compreender
como um país pode enriquecer-se a custa de outro, pois estes mesmos senhores tampouco
querem compreender como no interior de um país uma classe pode enriquecer-se a custa de
outra”.Karl Marx, Discurso sobre el libre cambio, em Miseria de Ia filosofia, Moscou, s. d.
24. Luis Cháves Orozeo, La industria de transformación mexicana (1822-1867), em Banco Nacional
del Comercio Exterior, ColecciÔn de documentos para Ia historia dei comercio exterior de México, México, 1962.
25. Alonso Aguilar Monteverde, Dialéctica de la economia mexicana, México, 1968.
127
de manta grossa. A nova capacidade industrial do país desbordava a demanda interna; o
mercado de consumo do “reino da desigualdade”, formado em sua grande maioria por
índios famintos, não podia sustentar a continuidade daquele desenvolvimento fabril vertiginoso. Contra esta muralha chocava-se o esforço por romper a estrutura herdada da
colônia. A tal ponto se modernizara, todavia, a indústria, que as fábricas têxteis
norte-americanas contavam em média com menos fusos do que as fábricas mexicanas por
volta de 184026. Dez anos depois, a proporção invertera-se com sobras. A instabilidade
política, as pressões dos comerciantes ingleses e franceses e seus poderosos sócios internos, e as mesquinhas dimensões do mercado interno, de antemão estrangulado pela
economia mineira e latifundiária, derrubaram por terra a experiência exitosa. Antes de
1850, já se tinha suspendido o progresso da indústria têxtil mexicana. Os criadores do
Banco de Avio ampliaram seu raio de ação e, quando se extinguiu, os créditos abarcavam
também os teares de lã, as fábricas de tapetes e a produção de ferro e de papel. Esteban de
Antuflano sustentava, inclusive, a necessidade de que o México criasse o quanto antes
uma indústria nacional de maquinarias, para se defender do egoísmo europeu. O maior
mérito do ciclo industrializador de Alamán e Antuflano reside em que ambos restabeleceram a identidade entre independência política e a independência econômica, e no fato de
preconizarem, como único caminho de defesa, contra os povos poderosos e agressivos, um
enérgico impulso à economia industrial27. O próprio Alamán tornou-se industrial, criou a
maior fábrica têxtil mexicana daquele tempo (chamava-se Cocolapan, ainda existe) e
organizou os industriais como grupo de pressão diante dos sucessivos governos
livre-cambistas28. Porém Alamán, conservador e católico, não chegou a colocar a questão
agrária, porque ele mesmo se sentia ideologicamente ligado à velha ordem, e não advertiu
que o desenvolvimento industrial estava de antemão condenado a ficar no ar, sem bases
de sustentação, naquele país de latifúndios infinitos e miséria generalizada.
AS LANÇAS MONTONERAS E O ÓDIO QUE SOBREVIVEU A JUAN MANUEL DE ROSAS
Protecionismo contra livre-cambismo, o país contra o porto: esta foi a luta que se deu
no pano-de-fundo das guerras civis argentinas durante o século passado. Buenos Aires,
que no século XVIII não foi mais do que uma grande aldeia de quatrocentas casas se
apoderou da nação inteira a partir da revolução de maio e da independência. Era o porto
único, e por ele deviam passar todos os produtos que entravam e saíam do país. As
deformações que a hegemonia portenha impôs à nação se vêem claramente em nossos
dias: a capital abarca, com seus subúrbios, mais da terça parte da população argentina
26. Jan Bazant, Estudio sobre la productividad de la industria algodonero mexicana en
1843-1845 (Lucas A lamán y la Revolución industrial en México), cm Banco de Comércio Exterior, op.
cit.
27. Luis Chávez Orozco, op. cil.
28. No tomo III, da citada coleção dos documentos do Banco Nacional de Comércio Exterior, se
transcrevem várias alegações protecionistas publicadas em el Siglo XIX em fins de 1850: “Passada a conquista da civilização espanhola, com seus três séculos de dominação militar, entrou o
México numa nova era que também se pode chamar de conquista, porém científica e mercantil.
Sua potência é os navios mercantes; sua predicação é a absoluta liberdade econômica; sua norma
poderosíssima com os povos menos adiantados é a lei da reciprocidade... leva, a Europa - nos
disse - quantas manufaturas possais / excepto, todavia, as que nós proibimos / e em recompensa
permiti que tragamos quantas manufaturas pudermos, ainda que seja arruinando vossas artes.
Adotemos a doutrina que eles / são nossos senhores do outro lado do oceano e do rio Bravo / e dão
e não toma e nosso erário crescerá um pouco, se quiser.... porém não será fomentando o trabalho
do povo mexicano, e sim o dos povos inglês e francês, suíço e da América do Norte.”
128
total, e exerce sobre as províncias diversas formas de proxenetismo. Naquela época, detinha o monopólio da renda aduaneira, dos bancos e da emissão da moeda, e prosperava
vertiginosamente à custa das províncias interiores. A quase totalidade da receita de Buenos
Aires provinha da alfândega nacional, que o porto usurpava em proveito próprio, e mais da
metade se destinava aos gastos de guerra contra as províncias, que deste modo pagavam
para serem aniquiladas29.
Da Sala de Comércio de Buenos Aires, fundada em 1810, os ingleses esticavam seus
telescópios para vigiar o trânsito dos navios, e abasteciam os portenhos com panos finos,
flores artificiais, caixinhas, guarda-chuvas, botões e chocolates, enquanto a inundação dos
ponchos e estribos de fabricação estandardizada fazia estragos pelo país adentro. Para
medir a importância que o mercado mundial atribuía então aos couros rio-pratenses, é
preciso transladar-se a uma época na que os plásticos e os revestimentos sintéticos não
existiam nem sequer como suspeita na imaginação dos químicos. Nenhum cenário mais
propício do que a fértil planície do litoral para produção pecuária em grande escala. Em
1816, se descobriu um novo sistema que permitia conservar indefinidamente os couros
por meio de um tratamento de arsênico; prosperavam e se multiplicavam, também, os
salgadores de carne. O Brasil, as Antilhas e a África abriam seus mercados à importação de
charque, e à medida que a carne salgada, cortada em mantas secas, ia ganhando consumidores estrangeiros, os consumidores argentinos notavam a mudança. Criaram-se impostos para o consumo interno de carne, enquanto se desoneravam as exportações; em
poucos anos, o preço dos novilhos se multiplicou por três e as estâncias valorizaram suas
terras. Os gaúchos estavam acostumados a caçar livremente novilhos a céu aberto, no
pampa sem arames farpados, para comer o lombo e tirar o resto, com a única obrigação de
entregar o couro ao dono do campo. As coisas mudaram. A reorganização da produção
implicava a submissão do gaúcho nômade a uma nova dependência servil: um decreto de
1815 estabeleceu que todo homem de campo que não tivesse propriedades seria considerado servente, com a obrigação de portar uma papeleta visada por seu patrão cada três
meses. Ou era servente ou era vagabundo, e aos vagabundos se alistava, à força, nos
batalhões de fronteira30. O criollo bravio, que servira de carne de canhão nos exércitos
patriotas, se convertia em pária, peão miserável ou milico de fortim. Ou se rebelava, lança
na mão, alçando-se no redemoinho das montoneras31.O gaúcho arisco, destituído de tudo,
29. Miron Burgin, Aspectos económicos de¡ federalismo argentino, Buenos Aires,1960.
30. Juan Álvarez, Las guerras civiles argentinas, Buenos Aires, 1912.
31. A montonera “nasce no descampado como os redemoinhos.Arremete, brama e torce como os
redemoinhos, e se detém, repentina, e morre como eles.” (Dardo de Ia Vega Díaz, La Rioja heroica,
Mendoza, 1955.)
José Hernández, que foi soldado da causa federal, cantou no Martín Fierro, o mais popular dos
livros argentinos, as desditas do gaúcho desterrado de sua querência e perseguido pela autoridade:
Vive a águia em seu ninho
tigre vive na selva,
raposa na cova alheia,
só o gaúcho vive errante
aonde a sorte o leva.
Porque:
Para ele são os calabouços,
para ele as duras prisões
em sua boca não há razões
ainda que razão lhe sobre
que são sinos de madeira
as razões dos pobres.
129
menos da glória e da coragem, nutriu as cargas de cavalaria que às vezes desafiavam os
exércitos de linha, bem armados, de Buenos Aires. O surgimento da estância capitalista,
no pampa úmido do litoral, punha todo país a serviço das exportações de couro e carne e
marchava de mãos dadas com a ditadura livro cambista de Buenos Aires. O uruguaio José
Artigas fora, até a derrota e o exílio, o mais lúcido dos caudilhos que encabeçaram o
combate das massas criollas contra os mercadores e fazendeiros atados ao mercado mundial; muitos anos depois também Felipe Varela foi capaz de deflagar uma grande rebelião
no norte argentino porque, como dizia sua proclamação, “ser provinciano é ser mendigo
sem pátria, sem liberdade, sem direitos”. Sua sublevação encontrou ressonância em todo
o interior mediterrâneo. Foi o último montonero; morreu, tuberculoso e na miséria, em
187032. O defensor da “União Americana”, projeto de ressurreição da Pátria Grande
despedaçada, é ainda um bandoleiro, como o era Artigas, para a história argentina que se
ensina nas escolas.
Felipe Varela nascera num povoado perdido entre as serras de Catamarca e fora um
doloroso testemunho da pobreza de sua província arruinada pelo porto soberbo e distante.
Em fins de 1824, quando Varela tinha três anos de idade, Catamarca não pôde pagar os
gastos dos delegados que enviou ao Congresso Constituinte que se reuniu em Buenos
Aires, e na mesma situação estavam Misiones, Santiago del Estero e outras províncias. O
deputado catamarquenho Manuel Antonio Acevedo denunciava “a mudança ominosa”
que a competição dos produtos estrangeiros tinha provocado: “Catamarca olhou há algum
tempo, e olha hoje, sem poder remediar, sua agricultura, com produtos inferiores a suas
expensas; sua indústria, sem um consumo capaz de alertar aos que a fomentam e exercem, e seu comércio quase ao abandono”33.O representante da província de Corrientes,
brigadeiro-general Pedro Ferré, resumia assim, em 1830, as conseqüências possíveis do
protecionismo pelo qual propugnava: “Sim, sem dúvida um pequeno número de homens
de fortuna padecerão, porque se privarão de tomar em sua mesa deliciosos vinhos e licores
estrangeiros... As classes menos acomodadas não acharão muita diferença entre os vinhos
e licores que atualmente bebem, mas sim no preço, e diminuirão o consumo, o que não
creio ser muito prejudicial. Não usarão nossos camponeses ponchos ingleses; não levarão
bolas e laços feitos na Inglaterra; não vestiremos roupa feita no estrangeiro, e demais itens
que podemos proporcionar; porém, em compensação, começará a ser menos desgraçada
a condição de povoados inteiros de argentinos, e não nos perseguirá a idéia da espantosa
miséria a que hoje estão condenados”34.
Dando um importante passo para a reconstrução da unidade nacional perdida pela
guerra, o governo de Juan Manuel Rosas ditou em 1835 uma lei alfandegária de marca
acentuadamente protecionista. A lei proibia a importação de manufaturas de ferro e de
estanho, selas de cavalo, ponchos, cintos, faixas de lã ou algodão, colchões, produtos de
granja, rodas de carruagem, velas de sebo e pentes, e cobrava altos impostos sobre a
introdução de carros, sapatos, cordões, roupas, montarias, frutas secas e bebidas alcoólicas.
Jorge Abelardo Ramos observa (Revolución y contrarrevolución en Argentina, Buenos Aires, 1965)
que os sobrenomes verdadeiros que aparecem no Martín Fierro, são os de Anchorena e Gaínza,
nomes representativos da oligarquia que exterminou a criollaje em armas, e em nossos dias se
fundiram na família proprietária do jornal La Prensa.
Ricardo Giliraldes mostrou em Don Segundo Sombra (Buenos Aires, 1939) a outra cara de Martín
Fierro: o gaúcho domesticado, amarrado à diária, adulador do amo, de bom uso para o folclore
nostálgico e piedoso.
32. Rodolfo Ortega Pefia e Eduardo Luis Duhalde, Félipe, Varela contra el Império Británico, Buenos
Aires, 1966. Em 1870, também caía banhado de sangue pela invasão estrangeira o Paraguai,
único Estado latino-americano que não tinha entrado na prisão imperialista.
33. Miron Burgin, op. cit. 34. Juan Alvarez, op. cit.
34. Juan Álvarez, op. cit.
130
Não se cobrava imposto à carne transportada em barcos de bandeira argentina, e se
impulsionava a selaria nacional e o cultivo do tabaco. Os efeitos se fizeram notar sem
demora. Até a batalha de Caseros, que derrubou Rosas em 1852, navegavam pelos rios as
escunas e os barcos construídos nos estaleiros de Corrientes e Santa Fé; havia em Buenos
Aires mais de cem fábricas prósperas e todos os viajantes coincidiam em assinalar a
excelência dos tecidos e sapatos elaborados em Córdoba e Tucumán, os cigarros e os
artesanatos de Salta, os vinhos e aguardentes de Mendoza e San Juan. A marcenaria
tucumana exportava para o Chile, Bolívia e Peru35. Dez anos depois da aprovação da lei, os
barcos de guerra da Inglaterra e França romperam a tiros de canhão as cadeias estendidas
através do Paraná, para abrir a navegação dos rios interiores argentinos que Rosas mantinha fechados a cal e pedra. À invasão sucedeu o bloqueio. Dez memoriais dos centros
industriais de Yorkshire, Liverpool, Manchester, Leeds, Halifax e Bradford, assinados por
mil e quinhentos banqueiros, comerciais e industriais, conclamavam o governo inglês a
tomar medidas contra as restrições impostas ao comércio no Prata. O bloqueio pôs em
evidência, a despeito do progresso iluminado pela lei alfandegária, as limitações da indústria nacional, que não estava capacitada para satisfazer à demanda interna. Em realidade,
desde 1841 o protecionismo vinha esvanecendo, ao invés de acentuar-se; Rosas expressava como ninguém os interesses dos fazendeiros charqueadores da província de Buenos
Aires, e não existia - nem existe - uma burguesia industrial capaz de impulsionar o desenvolvimento de um capitalismo nacional autêntico e pujante: a grande estância ocupava o
centro da vida econômica do país, e nenhuma política industrial podia ser empreendida
com independência e vigor sem abater a onipotência do latifúndio exportador. Rosas
permaneceu sempre, no fundo, fiel à sua classe. O homem mais a cavalo de toda a
província36, violeiro e bailarino, grande domador, que se orientava, nas noites de tormenta
e sem estrelas, mastigando umas ervas de pasto para identificar o rumo, era um grande
estancieiro e produtor de carne seca e couros, e os fazendeiros converteram-no em chefe.
Sua lenda negra, urdida para difamá-lo, não pôde ocultar o caráter nacional e popular de
muitas de suas medidas de governo37, mas a contradição de classes explica a ausência de
uma política industrial dinâmica e sustentada, além da cirurgia aduaneira, no governo do
caudilho dos pecuaristas. Esta ausência não pôde ser atribuída à instabilidade e às penúrias implícitas nas guerras nacionais e no bloqueio estrangeiro, porque, afinal, fora no meio
do torvelinho de uma revolução acossada que José Artigas tinha articulado, vinte anos
antes, suas normas industrialistas e integradoras, com uma reforma agrária em profundidade. Vivian Trías comparou, num fecundo livro38, o protecionismo de Rosas com o ciclo de
medidas que Artigas irradiou a partir da Banda Oriental, entre 1813 e 1815, para conquistar a verdadeira independência da área do vice-reinado rio-platense. Rosas não proibiu os
estrangeiros de exercerem o comércio no mercado interno, nem devolveu ao país as
rendas da alfândega que Buenos Aires continuou usurpando, nem acabou com a ditadura
do porto único. Em compensação, a nacionalização do comércio interior e a quebra do
monopólio portuário e aduaneiro de Buenos Aires foram capítulos fundamentais, como a
questão agrária, da política artiguista. Artigas quis a livre navegação dos rios interiores,
porém Rosas nunca abriu às províncias esta chave de acesso ao comércio de ultramar.
35. Jorge Abelardo Ramos, op. cit.
36. José Luis Busaniche, Rosas visto por sus contemporáneos, Buenos Aires, 1955.
37. José Rivera Indarte realizou, em suas célebres Tablas de sangre, um inventário dos crimes de
Rosas, para estremecer a sensibilidade européia. Segundo o Atlas de Londres, a casa bancária
inglesa de Samuel Lafone pagou ao escritor um penny por morto. Rosas tinha proibido a exportação de ouro e prata, duro golpe para o Império, e tinha disso)vido o Banco Nacional, que era um
instrumento do comércio britânico. John F. Cady, La intervención extranjera en el Rio de Ia Pla
ta, Buenos Aires, 1943.
38. Vivian Trías, Juan Manuel de Rosas, Montevidéu, 1970.
131
Rosas também permaneceu fiel, no fundo, a sua província privilegiada. A despeito de
todas estas limitações, o nacionalismo e o populismo do “gaúcho de olhos azuis” continuam gerando ódio nas classes dominantes argentinas. Rosas continua sendo “réu de lesapátria”, de acordo com uma lei de 1857 ainda vigente, e o país se nega ainda a abrir uma
sepultura nacional para seus ossos enterrados na Europa. Sua imagem oficial a imagem
de um assassino.
Superada a heresia de Rosas, a oligarquia se reencontrou com seu destino. Em 1858,
o presidente da comissão diretora da exposição rural declarava inaugurada a mostra com
estas palavras: “Nós, na infância ainda, contentamo-nos com a humilde idéia de enviar
para aqueles bazares europeus nossos produtos e matérias-primas, para que nos devolvam transformados por meio dos poderosos agentes de que dispõem. Matérias-primas é
o que a Europa pede, para transformá-las em ricos artefatos”39.
O ilustre Domingo Faustino Sarmiento e outros escritores liberais viram na montonera
camponesa nada mais do que o símbolo da barbárie, do atraso e da ignorância, do anacronismo das campanhas pastorais frente à civilização que a cidade encarnava: o poncho e o
chiripá contra a casaca; a lança e o punhal contra a tropa de linha; o analfabetismo contra
a escola40. Em 1861, Sarmiento escrevia a Mitre: “Não trate de economizar sangue de
gaúchos, é a única coisa que têm de humano. Este é adubo que é preciso fazer útil ao país”.
Tanto desprezo e tanto ódio revelavam uma negação da própria pátria, que tinha, é claro,
também uma expressão de política econômica: “Não somos nem industriais nem
navegantes - afirmava Sarmiento -, e a Europa nos proverá por longos séculos de seus
artefatos em troca de nossas matérias-primas”41. O presidente Bartolomeu Mitre levou
adiante, a partir de 1862, uma guerra de extermínio contra as províncias e seus últimos
caudilhos. Sarmiento foi designado diretor da guerra e as tropas marcharam ao norte para
matar gaúchos, “animais bípedes de tão perversa condição”. Em La Riaja, “El Chacho”
Pefialoza, general das planícies, que estendia sua influência sobre Mendoza e San Juan,
era um dos últimos redutos da rebelião contra o porto e Buenos Aires considerou que tinha
chegado o momento de terminar com ele. Cortaram-lhe a cabeça e a cravaram, em exibição, no centro da Plaza de Olta. A ferrovia e as estradas culminaram a ruína de La Rioja,
que tinha começado com a revolução de 1810: o livre-cambismo tinha provocado a crise de
seus artesanatos e tinha acentuado a crônica pobreza da região. No século XX, os camponeses riojanos fogem de suas aldeias nas montanhas ou nas planícies, e baixam para
Buenos Aires a fim de oferecerem seus braços: só chegam, como os camponeses humildes
de outras províncias, até as portas da cidade. Nos subúrbios encontram lugar junto a outros
700 mil habitantes das villasmiserias e se arranjam, bem ou mal, com as migalhas que lhes
lança o banquete da grande capital. Nota você mudanças nos que se foram e voltam de
visita?, perguntaram os sociólogos aos 150 sobreviventes de uma aldeia riojana, há poucos
anos. Com inveja advertiam, os que ficaram, que Buenos Aires melhorara o traje, os modos
e a maneira de falar dos emigrados. Alguns os achavam, inclusive, “mais brancos”42.
39. Discurso de Gervasio A. de Posadas. Citado por Dardo Cúneo, Comportamiento y crisis de la clase
operária, Buenos Aires, 1967. En 1876, o ministro da Fazenda dirá no Congresso: “... Não devemos pôr um direito exagerado que torne impossível a introdução do calçado, de uma maneira
que enquanto quatro remendões aqui florescem, mil fabricantes de calçado estrangeiro não
podem vender um só par de sapatos.”
40. Armando Raúl Bazári, Las bases sociales de Ia montonera, em Revista de história americana y
argentina, n9 7 e 8, Mendoza, 1962-63.
41. Domingo Faustino Sarmiento, Facundo, Buenos Aires, 1952.
42. Mario Margulis, Migración y marginalidad en la sociedad argentina, Buenos Aires, 1968.
132
A GUERRA DA TRÍPLICE ALIANÇA CONTRA O PARAGUAI ANIQUILOU A ÚNICA EXPERIÉNCIA, COM
ÊXITO, DE DESENVOLVIMENTO INDEPENDENTE
O homem viajava a meu lado, silencioso. Seu perfil, nariz afilado, altos pôrnulos, se
recortava contra a forte luz do meio-dia. Iamos a Assunção, partindo da fronteira do sul,
num ônibus para vinte pessoas que continha, não sei como, cinqüenta. Ao fim de algumas
horas, fizemos uma parada. Sentamo-nos num pátio aberto, a sombra de uma árvore de
folhas carnosas. A nossos olhos, se abria o brilho cegante da vasta, despovoada, intacta
terra vermelha: de horizonte a horizonte, nada perturba a transparência do ar no Paraguai.
Fumamos. Meu companheiro, camponês guarani, articulou algumas palavras tristes em
castelhano: “Os paraguaios somos pobres e poucos”, me disse. Explicou-me que havia
baixado a Encarnación para procurar trabalho, mas não tinha encontrado. Mal pudera
juntar alguns pesos para a passagem de volta. Anos atrás, quando moço, tentara a sorte
em Buenos Aires e no sul do Brasil. Agora vinha a colheita de algodão e muitos trabalhadores braçais paraguaios rumavam, como todos os anos, à Argentina. “Porém eu já tenho
sessenta e três anos. Meu coração já não suporta mais este tipo de coisa”.
Somam meio milhão os paraguaios que abandonaram a pátria, definitivamente,
nos últimos vinte anos. A miséria empurra os habitantes do país que era, há um século, o mais
avançado da América do Sul. O Paraguai tem agora uma população que apenas duplica a
que tinha, naquela época, e é, com a Bolívia, um dos dois países sul-americanos mais
pobres e atrasados. Os paraguaios sofrem a herança de uma guerra de extermínio que se
incorporou à história da América Latina como seu capítulo mais infame. Chamou-se a
Guerra da Tríplice Aliança. Brasil, Argentina e Uruguai tiveram a seu cargo o genocídio.
Não deixaram pedra sobre pedra nem habitantes varões entre os escombros. Embora a
Inglaterra não tenha participado diretamente na horrorosa façanha, foram seus mercadores, seus banqueiros e seus industriais que se beneficiaram com o crime do Paraguai. A
invasão foi financiada, do começo ao fim, pelo Banco de Londres, a casa Baring Brothers e banco
Rothschild, em empréstimos com juros leoninos que hipotecaram o destino dos países vencedores43.
Até sua destruição, o Paraguai se erguia como uma exceção na América Latina: a
única nação que o capital estrangeiro não tinha deformado. O longo governo de mão-de-ferro
do ditador Gaspar Rodríguez de Francia (1814-1840) incubaram, na matriz do isolamento,
um desenvolvimento econômico autônomo e sustentado. O Estado, onipotente,
paternalista, ocupava o lugar de uma burguesia nacional que não existia, na tarefa de
organizar a nação e orientar seus recursos e seu destino. Francia tinha-se apoiado nas
massas camponesas para esmagar a oligarquia paraguaia e conquistado a paz interior
estendendo um rigoroso cordão sanitário frente aos restantes países do antigo vice-reinado
do rio da Prata. As expropriações, os desterros, as prisões, as perseguições e as multas não
serviram de instrumentos para a consolidação do domínio interno dos fazendeiros e comerciantes senão que, pelo contrário, foram utilizados para sua destruição. Não existiam,
nem existiriam mais tarde, as liberdades políticas e o direito de oposição, porém naquela
etapa histórica só os nostálgicos dos privilégios perdidos sofriam a falta de democracia.
43. Para escrever este capitulo, o autor consultou as seguintes obras: Juan Bautista Alberdi,
Historia de la guerra del Paraguai (Buenos Aires, 1962); Pelham Horton Box, Los orígenes de la Guerra
de la Triple Alianza, (Buenos Aires-Assungáo, 1958); Efraím Cardozo, El Império del Brasil y el Rio
de la Plata (Buenos Aires, 1961); Júlio Cesar Chayes, El presidente López (Buenos Aires, 1955);
Carlos Pereyra, Francisco Solano López e la guerra del Paraguay (Buenos Aires, 1945); Juan F. Pérez
Acosta, Carlos A niónio López, obrero máximo. Labor administrativa y constructiva (Assunrio, 1948);
José Maria Rosa, La guerra del Paraguay e ¡as monioneras argentinas (Buenos Aires, 1965); Bartolomeu
Mitre e Juan Carlos Gómez, Cartas polémicas sobre la guerra del Paraguay,com prólogo de J. Natalicio
Gonzalez (Buenos Aires, 1940). Também um trabalho inédito de Vivian Trías sobre o tema.
133
Não havia grandes fortunas privadas quando Francia morreu, e o Paraguai era o único país
da América Latina que não tinha mendigos, famintos nem ladrões44. Os viajantes da
época encontravam ali um oásis de tranqüilidade, em meio das demais comarcas convulsionadas pelas guerras contínuas. O agente norte-americano Hopkins informava em 1845
a seu governo que no Paraguai “não tem menino que não saiba ler e escrever...”. Era
também o único país que não vivia com o olhar cravado no outro lado do mar. O comércio
exterior não constituía o eixo da vida nacional; a doutrina liberal, expressão ideológica da
articulação mundial dos mercados, carecia de respostas para os desafios que o Paraguai,
obrigado a crescer para dentro por seu isolamento mediterrâneo, estava se colocando
desde os princípios do século. O extermínio da oligarquia possibilitou a concentração das
alavancas econômicas fundamentais nas mãos do Estado, para levar em frente esta política autárquica de desenvolvimento dentro de suas fronteiras.
Os governos posteriores de Carlos Antonio López e de seu filho Francisco Solano
continuaram e vitalizaram a tarefa. A economia estava em pleno crescimento. Quando os
invasores apareceram no horizonte, em 1865, o Paraguai contava com uma linha telegráfica, uma ferrovia e uma boa quantidade de fábricas de materiais de construção, tecidos,
lenços, ponchos, papel e tinta, louça e pólvora. Duzentos técnicos estrangeiros, muito bem
pagos pelo Estado, prestavam sua colaboração decisiva. Desde 1850, a fundição de Ibycui
fabricava canhões, morteiros e balas de todos os calibres; no arsenal de Assunção eram
produzidos canhões de bronze, obuses e balas. A siderurgia nacional, como todas as demais atividades econômicas essenciais, estava em mãos do Estado. O país contava com
urna frota mercante nacional, e tinham sido construídos no estaleiro de Assunção vários
dos navios que ostentavam o pavilhão paraguaio ao longo do Paraná ou através do Atlântico e do Mediterrâneo. O Estado virtualmente monopolizava o comércio exterior: a
erva-mate e o tabaco abasteciam o consumo do sul do continente; as madeiras valiosas
eram exportadas para a Europa. A balança comercial mostrava um grande superávit. O
Paraguai tinha uma moeda forte e estável, e dispunha de suficiente riqueza para realizar
enormes inversões públicas sem recorrer ao capital estrangeiro. O país não devia nem um
centavo ao exterior e, além disso, estava em condições de manter o melhor exército da
América do Sul, contratar técnicos ingleses que se punham a serviço do país em lugar de
pôr o país a seu serviço, e enviar à Europa alguns jovens universitários paraguaios para
aperfeiçoarem seus estudos. O excedente econômico gerado pela produção agrícola não se
desperdiçava no luxo estéril de uma oligarquia inexistente, nem ia parar nos bolsos dos
intermediários, nem nas mãos bruxas dos agiotas, nem no item de lucros que o Império
britânico nutria com os serviços de fretes e seguros. A esponja imperialista não absorvia a
riqueza que o país produzia. Noventa e oito por cento do território paraguaio era de propriedade pública: o Estado cedia aos camponeses a exploração das parcelas em troca da
obrigação de povoá-las e explorá-las de forma permanente e sem direito de vendê-las.
Tinha, além disso, 64 fazendas da pátria, diretamente administradas pelo Estado. As obras
44. Francia integra, como um dos exemplares mais horrosos, o bestiário da história oficial. As
deformações óticas impostas pelo liberalismo não são um privilégio das classes dominantes na
América Latina; muitos intelectuais de esquerda, que costumam olhar com lentes alheias a
história de nossos países, também compartilham certos mitos da direita, suas canonizações e
suas excomunhões. O Canto general, de Pablo Neruda (Buenos Aires, 1955), esplêndida homenagem poética aos povos latino-americanos, exibe claramente este deslocamento. Neruda ignora
Artigas e Carlos Antonio e Francisco Solano López; em compensação, se identifica com Sarmiento.
A Francia qualifica de “rei leproso, rodeado/pelas extensões das plantações de erva-mate”, que
“fechou o Paraguai como um ninho/de sua majestade” e “amaffou/tortura e barrou as fronteiras”.
Com Rosas não é mais amável: clama contra os “punhais, gargalhadas de mazorca/sobre o
martírio” de uma “Argentina roubada a lançadas/no vapor da alba, castigada/até sangrar e enlouquecer, vazia,/cavalgada por rudes capatazes”.
134
de regadio, represas e canais, e as novas pontes e estradas contribuíam em grau importante para a elevação da produtividade agrícola. Resgatou-se a tradição indígena das colheitas
anuais, que tinha sido abandonada pelos conquistadores. O alento vivo das tradições
jesuítas facilitava, sem dúvida, todo este processo criador45.
O Estado praticava um zeloso protecionismo, muito reforçado em 1864, sobre a
indústria nacional e mercado interno; os rios interiores não estavam abertos às naves
britânicas que bombardeavam com manufaturas de Manchester e Liverpool todo resto da
América Latina. O comércio inglês não dissimulava sua inquietação, não só porque aquele último
foco de resistência nacional no coração do continente era invulnerável, mas também, e sobretudo, pela
força do exemplo que a experiência paraguaia irradiava perigosamente para os vizinhos. O país mais
progressista da América Latina construía seu futuro sem inversões estrangeiras, sem empréstimos do
banco inglês e sem as bênçãos do livre comércio.
Porém, à medida que o Paraguai ia avançando neste processo, sua necessidade de
romper a reclusão se tornava mais aguda. O desenvolvimento industrial requeria contatos
mais intensos com o mercado internacional e com as fontes de técnica avançada. O
Paraguai estava objetivamente bloqueado entre Argentina e Brasil, e ambos países podiam negar o oxigênio a seus pulmões, fechandolhe, como o fizeram Rivadavia e Rosas, as
bocas dos rios, ou fixando impostos arbitrários ao trânsito de suas mercadorias. Para seus
vizinhos, por outra parte, era uma condição imprescindível, para os fins de consolidação do
estado oligárquico, acabar com o escândalo daquele país odioso que se bastava a si mesmo
e não queria ajoelhar-se ante os mercadores britânicos.
O ministro inglês em Buenos Aires, Edward Thornton, participou consideravelmente nos preparativos da guerra. Às vésperas da explosão, tomava parte, como assessor do
governo, nas reuniões do gabinete argentino, sentando-se ao lado do presidente Bartolomeu
Mitre. Diante de seu atento olhar se urdiu a trama de provocações e de enganos que
culminou com o acordo argentino-brasileiro e selou a sorte do Paraguai. Venâncio Flores
invadiu o Uruguai, nas ancas da intervenção dos dois grandes vizinhos, e estabeleceu em
Montevidéu, depois da matança de Paysandú, seu governo adjunto ao Rio de Janeiro e
Buenos Aires. A Tríplice Aliança estava em funcionamento. O presidente paraguaio Solano
45. Os fanáticos padres da Companhia de Jesus, “guarda negra do Papa”, tinham assumido a
defesa da ordem medieval ante as novas forças que irrompiam no cenário histórico europeu.
Porém, na América hispânica, as missões dos jesuítas desenvolveram-se, sob um signo progressista. Vinham para purificar, mediante o exemplo da abnegação e do ascetismo, uma Igreja
católica entregue ao ócio e ao gozo desenfreado dos bens que a conquista tinha posto à disposição do clero. Foram as missões do Paraguai as que alcançaram o maior nível; em pouco mais de
um século e meio (1603-1768), definiram a capacidade e os fins de seus criadores. Os jesuítas
atraíram, mediante a linguagem da música, os índios guaranis, que tinham buscado amparo na
selva ou que nela tinham permanecido sem se incorporarem ao processo civilizatório dos encomenderos
e donos de terra. Cento e cinqúenta mil índios guaranis puderam, assim, reencontrar sua organização comunitária primitiva e ressuscitar suas próprias técnicas nos oficios e nas artes. Nas
missões não existia o latifúndio; a terra era cultivada em parte para a satisfação das necessidades
individuais e em parte para desenvolver obras de interesse geral e adquirir os instrumentos de
trabalho necessário, que eram de propriedade coletiva. A vida dos índios estava sabiamente
organizada; nas oficinas e nas escolas, se tornavam músicos e artesãos, agricultores, tecedores,
atores, pintores, construtores. Não se conhecia o dinheiro; estava proibida a entrada de comerciantes, que deviam negociar a partir dos hotéis instalados a certa distância. A Coroa sucumbiu finalmente às pressões dos encomenderos criollos, e os jesuítas foram expulsos da América. Os
latifundiários e os escravistas se lançaram à caça dos índios. Os cadáveres pendiam das árvores
nas missões; povoados inteiros foram vendidos nos mercados de escravos do Brasil. Muitos
índios voltaram a encontrar refúgio na selva. As bibliotecas dos jesuítas foram parar nos fornos,
como combustível, ou foram utilizadas para fazer cartuchos de pólvora. (Jorge Abelardo Ramos,
Historia de Ia nación latino-americana, Buenos Áires, 1968.)
135
López ameaçou com a guerra, se assaltassem o Uruguai: sabia que assim se estava fechando a tenaz de ferro em torno da garganta de seu país encurralado pela geografia e pelos
inimigos. O historiador liberal Efrafin, Cardozo não acha inconveniente em estabelecer,
todavia, que López se colocou frente ao Brasil simplesmente porque estava ofendido: o
imperador lhe tinha negado a mão de uma de suas filhas. O conflito estava colocado.
Porém era obra de Mercúrio, não de Cupido.
A imprensa de Buenos Aires chamava o presidente paraguaio López de “Átila da
América”: - É preciso matá-lo como um réptil, clamavam os editoriais. Em setembro de
1864, Thornton enviou a Londres um extenso informe confidencial, datado de Assunção.
Descrevia o Paraguai como Dante ao Inferno, porém colocava acento onde correspondia:
Os direitos de importação de quase todos os artigos são de 20 a 25% ad valorem; mas como
este valor se calcula sobre o preço corrente dos artigos, o direito que se paga alcança
freqüentemente 40 a 45% do preço da fatura. Os direitos de exportação são de 10 a 20%
sobre o valor... Em abril de 1865, o Standard, jornal inglês de Buenos Aires, já celebrava a
declaração de guerra da Argentina contra o Paraguai, cujo presidente “infringiu todos os
usos das nações civilizadas”, e anunciava que a espada do presidente argentino Mitre
“levará em sua vitoriosa carreira, além do peso de glórias passadas, o impulso irresistível
da opinião pública numa causa justa”. O tratado com o Brasil e Uruguai foi assinado em 19
de maio de 1865; seus termos draconianos foram publicados um ano mais tarde, no diário
britânico The Times, que o obteve dos banqueiros credores da Argentina e Brasil. Os futuros
vencedores repartiam-se antecipadamente, no tratado, os despojos do vencido. A Argentina se assegurava todo o território de Misiones e o imenso Chaco; o Brasil devorava uma
extensão imensa rumo a oeste de suas fronteiras. Ao Uruguai, governado por um títere de
ambas as potências, não tocava nada. Mitre anunciou que tomaria Assunção em três
meses. Porém a guerra durou cinco anos. Foi uma carnificina, executada todo ao longo dos
fortins que defendiam, de lado a lado, o rio Paraguai. O “oprobioso tirano” Francisco
Solano López encarnou heroicamente a vontade nacional de sobreviver; o povo paraguaio,
que não sofria guerra desde meio século antes, se imolou a seu lado. Homens, mulheres,
meninos e velhos; todos se bateram como leões. Os prisioneiros feridos se arrancavam as
ataduras para que não os obrigassem a lutar contra seus irmãos. Em 1870, López, à frente
de um exército de espectros, anciões e meninos que punham barbas postiças para impressionar de longe, se internou na selva. As tropas invasoras assaltaram os escombros de
Assunção com o punhal entre os dentes. Quando finalmente o presidente paraguaio foi
assassinado a bala e a lança na espessura do morro Corá, chegou a dizer: “Morro com
minha pátria!” e era verdade. O Paraguai morria com ele. Antes, López tinha mandado
fuzilar seu irmão e um bispo, que com ele marchavam naquela caravana da morte. Os
invasores vinham para redimir o povo paraguaio: exterminaram-no. O Paraguai tinha, no
começo da guerra, pouco menos população do que a Argentina. Só 250 mil paraguaios,
menos da sexta parte, sobreviviam em 1870. Era o triunfo da civilização. Os vencedores,
arruinados pelo altíssimo custo do crime, ficavam em mãos dos banqueiros ingleses que
tinha financiado a aventura, O império escravista de Pedro II, cujas tropas se nutriam de
escravos e presos, ganhou territórios, mais de 60 mil quilômetros quadrados, e também
mão-de-obra, porque muitos prisioneiros paraguaios marcharam para trabalhar nos cafezais paulistas com a marca de ferro da escravidão. A Argentina do presidente Mitre, que
esmagara seus próprios caudilhos federais, ficou com 94 mil quilômetros quadrados de
terra paraguaia e outros frutos do butim, segundo o próprio Mitre tinha anunciou, quando
escreveu: “Os prisioneiros e demais artigos de guerra nós os dividiremos da forma
convencionada”. O Uruguai, onde os herdeiros de Artigas foram mortos ou derrotados e a
oligarquia mandava, participou da guerra como sócio menor e sem recompensas. Alguns
dos soldados uruguaios enviados à campanha do Paraguai tinham subido aos navios com
136
as mãos atadas. Os três países sofreram uma bancarrota financeira que aguçou sua dependência frente a Inglaterra. A matança do Paraguai os marcou para sempre46.
O Brasil cumpriu a função que o Império britânico lhe havia assinalado desde os
tempos em que os ingleses transferiram o trono português para o Rio de Janeiro. A princípio do século XIX, tinham sido claras as instruções de Canning ao embaixador Lord
Strangford: Fazer do Brasil um empório para as manufaturas britânicas destinadas ao
consumo de toda a América do Sul. Pouco antes de lançar-se à guerra, o presidente da
Argentina tinha inaugurado uma nova linha férrea britânica em seu país, e pronunciado
um inflamado discurso: “Qual a força que impulsiona este progresso? Senhores: é o capital
inglês!” Do Paraguai derrotado não só desapareceu a população; também as tarifas aduaneiras, os
fornos de fundição, os rios fechados ao livre-comércio, a independência econômica e vastas zonas de
seu território. Os vencedores implantaram, dentro das fronteiras reduzidas pelo despojo, o
livre-cambismo e o latifúndio. Tudo foi saqueado e tudo foi vendido: as terras e os bosques,
as minas, as plantações de erva-mate, os edifícios das escolas. Sucessivos governos títeres
seriam instalados, em Assunção, pelas forças estrangeiras de ocupação. Nem bem terminou a guerra, sobre as ruínas ainda fumegantes do Paraguai caiu o primeiro empréstimo
estrangeiro de sua história. Era britânico, logicamente. Seu valor nominal chegava a um
milhão de libras esterlinas, porém ao Paraguai chegou apenas menos da metade; nos anos
seguintes, os refinanciamentos elevaram a dívida a mais de três milhões. A guerra do ópio
tinha terminado, em 1842, quando se firmou em Nanking o tratado de livre-comércio que
assegurou aos comerciantes britânicos o direito de introduzir livremente a droga no território chinês. Também a liberdade de comércio foi garantida pelo Paraguai depois da derrota.
Abandonaram-se os cultivos de algodão, e Manchester arruinou a produção têxtil; a indústria nacional não ressuscitou nunca mais.
O partido Colorado, que hoje governa o Paraguai, especula alegremente com a memória dos heróis, porém ostenta ao pé de sua ata de fundação a assinatura de vinte e dois
traidores do marechal Solano López, “legionários” a serviço das tropas brasileiras de ocupação. O ditador Alfredo Stroessner, que há vinte anos, converteu o Paraguai num grande
campo de concentração, fez sua especialização militar no Brasil, e os generais brasileiros o
devolveram a seu país com altas qualificações e calorosos elogios: “É digno de grande
futuro...”. Durante seu reinado, Stroessner deslocou os interesses anglo-argentinos em
beneficio do Brasil e dos norte-americanos. Desde 1870, o Brasil e a Argentina, que libertaram o Paraguai para comê-lo com duas bocas, se alternam no usufruto dos despojos do
país derrotado, porém sofrem, por seu turno, o imperialismo da grande potência do momento. O Paraguai padece, ao mesmo tempo, o imperialismo e o subimperialismo. Antes,
o Império britânico constituía o elo maior da cadeia das dependências sucessivas. Atualmente, os Estados Unidos, que não ignoram a importância geopolítica deste país enervado
no centro da América do Sul, mantêm em solo paraguaio assessores inumeráveis, cozinham os planos econômicos, reestruturam a universidade como querem, inventam um
novo esquema político democrático para o país e retribuem com empréstimos onerosos os
bons serviços do regime47. Porém, o Paraguai é também colônia de colônias. Utilizando a
46. Solano Lõpez arde ainda na memória. Quando o Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro
anunciou, em setembro de 1969, que inauguraria uma vitrina dedicada ao presidente paraguaio,
os militares reagiram. O general Mourão Filho, que desencadeou o movimento militar de 1964,
declarou à imprensa: “Um vento de loucura varre o país... Solano López é uma figura que deve ser
apagada para sempre de nona história, como paradigma do ditador uniformizado sulamericano.
Foi um sangtlinário que destruiu o Paraguaio, levando-o a urna guerra impossível”.
47. Pouco antes das eleições de começo de 1968, o general Stroessner visitou os Estados Unidos:
“Quando me entrevistei com o presidente Jolinson - declarou à France Press -, lhe manifestei que
já doze anos que desempenho funções de primeiro magistrado por mandato das urnas. Johnson
137
reforma agrária como pretexto, o governo de Stroessner derrogou, fazendo-se de distraído,
a disposição legal que proibia a venda a estrangeiros de terras em zonas de fronteira seca,
e hoje até os territórios fiscais caíram em mão de latifundiários brasileiros do café. A onda
invasora atravessa o rio Paraná com a cumplicidade do presidente, associado aos fazendeiros que falam português. Cheguei à movediça fronteira do nordeste do Paraguai com notas
que tinham estampado o rosto do vencido marechal Solano López, porém ali descobri que
só têm valor as que luzem a efígie do imperador vencedor Pedro. O resultado da Guerra da
Tríplice Aliança ganha, transcorrido um século, ardente atualidade. Os guardas brasileiros
exigem passaporte aos cidadãos paraguaios para circularem em seu próprio país; são
brasileiras as bandeiras e as igrejas. A pirataria de terra abarca também os saltos do Guayrá,
a maior fonte potencial de energia de toda América Latina, que hoje se chamam, em
português, Sete Quedas, e a zona de Itaipu, onde o Brasil constrói a maior central hidrelétrica
do mundo.
O subimperialismo, ou imperialismo de segundo grau, se expressa de mil maneiras.
Quando o presidente Johnson decidiu submergir em sangue os dominicanos, em 1965,
Stroessner enviou soldados paraguaios a São Domingos, para que colaborassem na faina.
O batalhão se chamou, piada sinistra, “Marechal Solano López”. Os paraguaios atuaram
sob as ordens de um general brasileiro, porque foi o Brasil quem recebeu as honras da
traição: o general Panasco Alvim encabeçou as tropas latino-americanas cúmplices da
matança. Da mesma maneira, poder-se-iam citar outros exemplos. O Paraguai outorgou
ao Brasil uma concessão petrolífera em seu território, mas o negócio da distribuição de
combustíveis e da petroquímica está no Brasil, em mãos norte-americanas. A Missão
Cultural Brasileira é dona da Faculdade de Filosofia e Pedagogia da universidade paraguaia,
porém os norte-americanos influem na universidade do Brasil. O Estado-Maior do exército paraguaio não só recebe assessoria dos técnicos do Pentágono, mas também dos generais brasileiros, que por sua vez estudaram em escolas militares nos EUA. Pela via aberta
do contrabando, os produtos industriais do Brasil invadem o mercado paraguaio, porém
muitas das fábricas que produzem em São Paulo são, desde a avalancha desnacionalizadora destes últimos anos, multinacionais.
Stroessner se considera herdeiro dos López. O Paraguai de um século atrás pode ser
impunemente cotejado com o Paraguai de agora, empório do contrabando na bacia do
Prata e reino da corrupção institucionalizada? Num ato político onde o partido do governo
reivindicava ao mesmo tempo, entre vivas e aplausos, a um e outro Paraguai, um rapazola
vendia, bandeja no peito, cigarros de contrabando: a fervorosa audiência pitava nervosamente Kent, MarIboro, Camel e Benson & Hedges. Em Assunção, a escassa classe média
bebe uísque Ballantine’s em vez de tomar cachaça paraguaia. Se descobrem os últimos
modelos dos mais luxuosos automóveis fabricados nos Estados Unidos ou Europa, trazidos ao país de contrabando ou pagamento prévio de minguados impostos, ao mesmo
tempo que se vêem, pelas ruas, carros puxados por bois que levam lentamente frutos ao
mercado; a terra é trabalhada com arados de madeira e os táxis são Impala 70. Stroessner
diz que o contrabando é “o preço da paz”. A indústria, logicamente, agoniza antes de
crescer. O Estado nem sequer cumpre o decreto que manda preferir os produtos das
fábricas nacionais nas aquisições públicas. Os únicos triunfos que o governo exibe, orgulhoso, na matéria, são as fábricas de Coca Cola, Crush e Pepsi Cola, instaladas desde fins de
1966 como contribuição norte-americana ao progresso do povo paraguaio.
O Estado manifesta que só intervirá diretamente na criação de empresas “quando o
setor privado não demonstrar interesse”48, e o Banco Central comunica ao Fundo Monetáme respondeu que isto constituía uma razão a mais para continuar exercendo estas funções no
período que vem.”
48. Presidência da Nação, Secretaria Técnica de Planificação, Plan nacional de desarrolio económico
138
rio Internacional que decidiu implantar um regime de mercado livre de moedas e abolir as
restrições ao comércio e às transações de divisas; um folheto editado pelo Ministério da
Indústria e Comércio adverte os investidores que o país outorga concessões especiais para
o capital estrangeiro. Exime-se as empresas estrangeiras do pagamento de impostos e de
direitos alfandegários, para criar um clima propício para os investimentos. Um ano depois
de se instalar em Assunção, o National City Bank de Nova Iorque recupera integralmente
o capital investido. O sistema bancário estrangeiro, dono da poupança interna, proporciona ao Paraguai créditos externos que acentuam sua deformação econômica e hipotecam
ainda mais sua soberania. No campo, 1,5% dos proprietários dispõe de 90% das terras
exploradas, e se cultiva menos dos 2% da superfície total do país. O plano oficial de
colonização no triângulo de Caaguazú oferece aos camponeses famintos mais tumbas do
que prosperidade49. A pátria nega a seus filhos o direito ao trabalho e ao pão de cada dia:
os paraguaios emigram em massa.
A Tríplice Aliança continua sendo um êxito total.
Os fornos de fundição de Ibycuí, onde se forjaram os canhões que defenderam a
pátria invadida, se erguem num lugar que agora se chama “Mina-cuê” - que em guarani
significa “foi mina”. Ali, entre pântanos e mosquitos, junto aos restos de um muro em
ruína, jaz ainda a base da chaminé que os invasores estouraram, há um século, com
dinamite, e se podem ver pedaços de ferro podre nas instalações desfeitas. Vivem, na
zona, uns poucos camponeses em farrapos, que nem sequer sabem qual foi a guerra que
destruiu tudo isto. Todavia, eles dizem que em certas noites se escutam, lá, vozes de
máquinas e trovões de martelos, estampidos de canhões e alaridos de soldados.
OS EMPRÉSTIMOS E AS FERROVIAS NA DEFORMAÇÃO ECONÔMICA DA AMÉRICA LATINA
O visconde Chateaubriand, ministro de assuntos estrangeiros da França sob o reinado de Luís XVIII, escrevia com despeito e, presumivelmente, com boa base de informação:
No momento da emancipação, as colônias espanholas tornaram-se uma espécie de colônias inglesas50. Citava alguns números. Dizia que entre 1822 e 1826 a Inglaterra tinha
proporcionado dez empréstimos às colônias espanholas liberadas, por um valor nominal
de cerca de 21 milhões de libras esterlinas, mas, uma vez deduzidos os juros e as comissões
dos intermediários, o desembolso real chegado às terras da América apenas alcançava os
sete milhões. Ao mesmo tempo, criaram-se em Londres mais de 40 sociedades anônimas
para explorar os recursos naturais - minas, agricultura - da América Latina e para instalar
empresas de serviços públicos. Os bancos brotavam como cogumelos no solo britânico:
num só ano, 1836, foram fundados 48. A aparição das ferrovias inglesas no Panamá, por
volta da metade do século, e da primeira estrada de ferro, inaugurada em 1868 por uma
empresa britânica na cidade brasileira de Recife, não impediu que o banco inglês continuasse financiando diretamente as tesourarias dos governos51. Os bônus públicos
latino-americanos circulavam ativamente, com suas crises e seus auges, no mercado fiy social, Assunção, 1966.
49. Muitos dos camponeses optaram finalmente por voltarem à região minifundista do centro
do país ou foram a caminho do novo êxodo para o Brasil, onde seus braços baratos são oferecidos
às plantações de erva-mate do Paraná e Mato Grosso ou às plantações de café do Paraná. É
desesperadora a situação dos pioneiros que se encontram de frente à seiva, sem a menor orientação técnica e sem nenhuma assistência creditícia, com terras concedidas pelo governo, às quais
terão de arrancar frutos suficientes para se alimentarem e poder pagá-las - porque se o camponês
não paga o preço estipulado, não recebe o título de propriedade.
50. R. Scalabrini Ortiz, Polifica británica en el Rio de la Plata, Buenos Aires, 1940.
51. J. Fred Rippy, British investments in Latin América (1822-1949), Minneapolis, 1959.
139
nanceiro inglês. Os serviços públicos estavam em mãos britânicas, porém os novos Estados
nasciam transbordados pelos gastos militares e deviam fazer frente, além disso, ao déficit
dos pagamentos externos. O comércio livre implicava um frenético aumento das importações, sobretudo das importações de luxo, e para que uma minoria pudesse viver na moda
os governos contraíam empréstimos, que por sua vez geravam a necessidade de novos
empréstimos: os países hipotecavam de antemão seu destino, alienavam a liberdade
econômica e a soberania política. O mesmo processo se dava - e continua se dando em
nossos dias, embora agora os credores sejam outros, e outros os mecanismos - em toda
América Latina, com a exceção, aniquilada, do Paraguai. O financiamento externo era,
como a morfina, imprescindível. Buracos eram abertos para tapar buracos. A deterioração
dos termos comerciais de intercâmbio não é tampouco um fenômeno exclusivo dos nossos
dias: segundo Celso Furtado52 “os preços das exportações brasileiras entre 1821 e 1830 e
entre 1841 e 1850 baixaram quase à metade, enquanto os preços das importações estrangeiras permaneciam estáveis: as vulneráveis economias latino-americanas compensavam
a queda com empréstimos”.
“As finanças destes jovens estados - escreve Schnerb - não estão saneadas... Torna-se
necessário recorrer à inflação, que produz a depreciação da moeda, e aos empréstimos
onerosos. A história destas repúblicas, de certo modo, é a de suas obrigações econômicas
contraídas com o absorvente mundo das finanças européias”53. As bancarrotas, as suspensões de pagamentos e os refinanciamentos desesperados eram, de fato, freqüentes. As
libras esterlinas escorriam como água por entre os dedos da mão. Do empréstimo de um
milhão de libras em acordo do governo de Buenos Aires, em 1824, com a casa Baring
Brothers, a Argentina recebeu nada mais de que 570 mil, porém não em ouro, como rezava
o convênio, mas em papéis. O empréstimo consistiu no envio de ordens de pagamento
para os comerciantes ingleses radicados em Buenos Aires, e eles não dispunham de ouro
para entregá-lo ao país porque sua missão consistia, justamente, em enviar a Londres todo
metal precioso que passasse por perto dos olhos. Cobraram-se, pois, letras, porém foi
preciso pagar, isto sim, em ouro reluzente: quase a princípio de nosso século, a Argentina
cancelou esta dívida, que aumentara, ao longo dos sucessivos refinanciamentos, até 4
milhões de libras54. A província de Buenos Aires ficara hipotecada em sua totalidade todas suas rendas, todas suas terras públicas - em garantia do pagamento. Dizia o ministro
da Fazenda, na época que contratou o empréstimo: -Não estamos em circunstâncias de
tomar medidas contra o comércio estrangeiro, particularmente o inglês, porque achamo-nos
empenhados em grandes dívidas com aquela nação, nos expomos assim a um rompimento que causaria grandes males. A utilização da dívida, como instrumento de chantagem, não é, como se vê, uma invenção norte-americana recente.
As operações agiotas encarceravam os países livres. Em meados do século XIX, o
serviço da dívida externa absorvia já quase 40% do orçamento do Brasil, e o panorama era
semelhante por todas as partes. As ferrovias também eram parte decisiva da jaula de ferro
da dependência: estenderam a influência imperialista, já em plena época do capitalismo
dos monopólios, até as retaguardas das economias coloniais. Muitos dos empréstimos se
destinavam a financiar ferrovias para facilitar o embarque ao exterior dos minerais e
alimentos. As vias férreas não constituíam uma rede destinada a unir as diversas regiões
interiores entre si, mas conectava os centros de produção com os portos. O desenho
coincide ainda com os dedos de uma mão aberta: desta maneira, as ferrovias, tantas vezes
saudadas como estandartes do progresso, impediam a formação e o desenvolvimento do
52. Celso Furtado, op. cil.
53. Robert Schncrb, Le XIXe siècíe. L’apogée de l’expansion curopéepe (1815-1914), tomo VI da história
geral das civilizações dirigida por Maurice Crouzet, Paris, 1968.
54. R. Scalabrini Ortiz, op. cit.
140
mercado interno. Também o faziam de outras maneiras, sobretudo por meio de uma
política de tarifas postas a serviço da hegemonia britânica. Os fretes dos produtos elaborados no interior argentino eram muito mais caros do que, por exemplo, os fretes dos
produtos enviados em bruto. As tarifas ferroviárias eram descarregadas como uma maldição que tornava impossível fabricar cigarros nas comarcas do tabaco, fiar ou tecer nos
centros laníferos, ou extrair madeiras das zonas florestais55. A ferrovia argentina desenvolveu, é certo, a indústria florestal de Santiago del Estero, porém com tais conseqüências que
um autor santiaguenho chega a dizer: “Oxalá Santiago não tivesse nunca tido uma árvore”56. Os dormentes das vias se faziam de madeira e o carvão vegetal servia de combustível; o trabalho madeireiro, criado pela ferrovia, desintegrou os núcleos rurais de população,
destruiu a agricultura e a pecuária ao arrasar as pastagens e as matas de abrigo, escravizou
na selva várias gerações de santiaguenhos e provocou o despovoamento. O êxodo em
massa não cessou, e hoje Santiago del Estero é uma das províncias mais pobres da Argentina. A utilização do petróleo como combustível ferroviário submergiu a região numa
profunda crise.
Não foram capitais ingleses os que estenderam as primeiras vias na Argentina,
Brasil, Chile, Guatemala, México e Uruguai. Tampouco o Paraguai, como vimos, porém as
ferrovias construídas pelo Estado paraguaio, com a colaboração técnica européia contratada por ele, passaram a mãos inglesas depois da derrota. Idêntico destino tiveram as vias
férreas e os trens dos demais países, sem que se produzisse o desembolso de um só
centavo de inversão nova; além disso, o Estado se preocupou em assegurar às empresas,
por contrato, um nível de lucros, para evitar-lhes possíveis surpresas desagradáveis.
Muitas décadas depois, ao término da Segunda Guerra Mundial, quando as ferrovias não já rendiam dividendos e tinham caídos em relativo desuso, a administração pública
as recuperou. Quase todos os Estados compraram aos ingleses os ferros velhos e nacionalizaram, assim, as perdas das empresas.
Na época do auge ferroviário, as empresas britânicas tinham obtido, amiúde, consideráveis concessões de terras em cada lado das vias, além das próprias linhas férreas e do
direito de construir novos ramais. As terras constituíam um estupendo negócio adicional:
o fabuloso presente outorgado em 1911 à Brazil Railway determinou o incêndio de inumeráveis cabanas e a expulsão ou a morte das famílias camponesas assentadas na área da
concessão. Este foi o gatilho que disparou a rebelião do Contestado, uma das mais intensas
páginas de fúria popular de toda a história do Brasil.
PROTECIONISMO E LIVRE-CAMBISMO NOS ESTADOS UNIDOS: O SUCESSO NÃO FOI OBRA DE UMA
MÃO INVISÍVEL
Em 1865, enquanto a Tríplice Aliança anunciava a próxima destruição do Paraguai,
o general Ulysses Grant celebrava, em Appomatox, a rendição do general Robert Lee. A
Guerra da Secessão terminava com a vitória dos centros industriais do norte, protecionistas a todo preço, sobre os plantadores livre-cambistas de algodão e tabaco no sul. A
guerra que selaria o destino colonial da América Latina nascia ao mesmo tempo em que concluía a
guerra que tornou possível a consolidação dos Estados Unidos como potência mundial. Convertido
pouco depois em presidente dos Estados Unidos, Grant afirmou: “Durante séculos a
Inglaterra confiou na proteção, levando-a até seus extremos e obtendo disso resultados
satisfatórios. Não resta dúvida que deve sua força presente a este sistema. Depois de dois
55. Ibid.
56. J.Eduardo Retondo, El bosque y la industriaforestal en Santiago del Estero, San tiago del Estero,
1962.
141
séculos, a Inglaterra achou conveniente adotar o comércio livre, porque pensa que a proteção não pode oferecer mais nada. Muito bem, então, cavalheiros, meu conhecimento de
meu país me conduz a crer que dentro de duzentos anos, quando a América tiver obtido da
proteção tudo que a proteção pode oferecer, adotará também o livre-comércio”57.
Dois séculos e meio antes, o adolescente capitalismo inglês tinha transportado, às
colônias do norte da América, seus homens, seus capitais, suas formas de vida e de
impulsos e projetos. As treze colônias, válvulas de escape para a população européia
excedente, aproveitaram rapidamente o handicap que lhes dava a pobreza de seu solo e
seu subsolo, e geraram, desde cedo, uma consciência indústrializadora que a metrópole deixou
crescer sem maiores problemas. Em 1631, os recém-chegados colonos de Boston lançaram ao
mar uma balandra de trinta toneladas, Blessing of the Bay,construída por eles, e desde então
a indústria naval ganhou um assombroso impulso. O carvalho branco, abundante nos
bosques, dava boa madeira para as pranchas profundas e as armações interiores dos
barcos; de pinho se faziam a coberta, os gurupés e os mastros. Massachusetts outorgava
subvenções à produção de cânhamo para as cordas e as sogas, e também estimulava a
fabricação local das lonas e velames. Ao norte e ao sul de Boston, prósperos estaleiros
cobriram as costas. Os governos das colônias outorgavam subvenções e prêmios às manufaturas de todos os tipos. Promovia-se, com incentivos, o cultivo do linho e a produção da
lã, matérias-primas para os tecidos de fio cru que, embora não ficassem muito elegantes,
eram resistentes e eram nacionais. Para explorar as jazidas de ferro de Lyn, surgiu o
primeiro forno de fundição em 1643; pouco tempo depois, Massachusetts abastecia de
ferro a toda região. Como os estímulos à produção têxtil não pareciam suficientes, esta
colônia optou pela coação: em 1655, ditou uma lei que ordenava que cada família tivesse,
sob ameaça de penas graves, pelo menos um fiador em contínua e intensa atividade. Cada
condado de Virgínia era obrigado, na mesma época, a selecionar meninos para instruí-los
na manufatura têxtil. Ao mesmo tempo, proibia-se a exportação dos couros, para que se
convertessem, dentro das fronteiras, em botas, correias e arreios.
“As desvantagens com que tem que lutar a indústria colonial procedem de qualquer
parte, menos da política colonial inglesa”, diz Kirkland58. Pelo contrário, as dificuldades de
comunicação faziam com que a legislação proibitiva perdesse quase toda sua força a três
mil milhas de distância, e favoreciam a tendência ao autoabastecimento. As colônias do
norte não enviavam à Inglaterra nem prata, nem ouro nem açúcar, e em troca suas
necessidades de consumo provocavam um excesso de importações que era preciso deter
de alguma maneira. Não eram intensas as relações comerciais através do mar; era imprescindível desenvolver as manufaturas locais para sobreviver. No século XVIII, a Inglaterra
dava ainda uma escassa atenção a suas colônias do norte, o que não impedia que se
transferissem para suas fábricas as técnicas metropolitanas mais avançadas, num processo real que desmentia as proibições de papel do pacto colonial. Este não era o caso, por certo,
das colônias latino-americanas, que proporcionavam o ar, a água e o sal ao capitalismo ascendente
na Europa, e podiam nutrir com abundância o consumo luxuoso de suas classes dominantes
importando do ultramar as manufaturas mais finas e mais caras. As únicas atividades expansivas,
na América Latina, eram as que se orientavam à exportacão; e assim foi também nos séculos
seguintes: os interesses econômicos e políticos da burguesia mineira ou latifundiária não coincidiam
nunca com a necessidade de um desenvolvimento econômico para dentro, e os comerciantes não
estavam ligados ao Novo Mundo em maior medida do que aos mercados estrangeiros dos metais e de
alimentos, que vendiam, e às fontes estrangeiras dos artigos manufaturados, que compravam.
Quando declarou sua independência, a população norte-americana eqüivalia, em
57. Citado por André Gunder Frank, Capitalirm and Underdevelaprnent in Latin America, Nova
lorque, 1967.
58. Edward C. Kirkland, História económica de Estados Unidos, México, 1941.
142
quantidade, à do Brasil. A metrópole portuguesa, tão subdesenvolvida como a espanhola,
exportava seu subdesenvolvimento à colônia. A economia brasileira fora instrumentalizada
em proveito da Inglaterra, para abastecer suas necessidades de ouro ao longo do século
XVIII. A estrutura de classes da colônia refletia esta função provedora. A classe dominante
do Brasil não estava formada, diferentemente dos Estados Unidos, por granjeiros, os
fabricantes empreendedores e os comerciantes internos. Os principais intérpretes dos
ideais das classes dominantes de ambos os países, Alexander Hamilton e o visconde de
Cairu, expressavam claramente a diferença entre uma e outra59. Ambos tinham sido
discípulos, na Inglaterra, de Adam Smith. Todavia, enquanto Hamilton se tinha transformado num paladino da industrialização e promovia o estímulo e a proteção do Estado à
manufatura nacional, Cairti acreditava na mão invisível que opera na magia do liberalismo: deixai fazer, deixai passar, deixai vender.
Enquanto morria o século XVIII, os Estados Unidos contavam com a segunda frota
mercante do mundo, integralmente formada com barcos construídos nos estaleiros nacionais, e as fábricas têxteis e siderúrgicas estavam em pleno e pujante crescimento. Pouco
tempo depois, nasceu a indústria de maquinarias: as fábricas não necessitam comprar no
estrangeiro seus bens de capital. Os fervorosos puritanos do Mayflower tinham lançado, nas
campinas de Nova Inglaterra, as bases de uma nação; sobre o litoral de baías profundas, ao
longo dos grandes estuários, uma burguesia industrial prosperara sem deter-se. O tráfico
comercial com as Antilhas, que incluía a venda de escravos africanos, desempenhou,
como vimos em outro capítulo, uma função capital neste sentido, porém a façanha
norte-americana não teria explicação se não tivesse sido animada, desde o princípio, pelo
mais ardente dos nacionalismos. George Washington aconselhava em sua mensagem de
despedida: os Estados Unidos deviam seguir uma rota solitária60. Emerson proclamava
em 1837: “Escutamos durante muito tempo as musas refinadas da Europa. Nós marcharemos sobre nossos próprios pés, trabalharemos com nossas próprias mãos, falaremos
segundo nossas próprias convicções”61.
Os fundos públicos ampliavam as dimensões do mercado interno. O Estado estendia caminhos e vias férreas, construía pontes e canais62. Em meados do século, o Estado de
Pensylvania participava na gestão de mais de cento e cinqüenta empresas de economia
mista, além de administrar os cem milhões de dólares investidos nas empresas públicas.
As operações militares de conquista, que arrebataram ao México mais da metade de sua
superfície, também contribuíram em grande medida ao progresso do país. O Estado não
participava do desenvolvimento somente através de inversões de capital e dos gastos
militares orientados para a expansão; no norte, tinha começado a aplicar, ademais, um
zeloso protecionismo alfandegário. Os latifundiários do sul eram, ao contrário, livrecambistas.
A produção de algodão se duplicava a cada dez anos, e embora proporcionasse grandes
rendas comerciais à nação inteira e alimentasse os teares modernos de Massachusetts,
dependia sobretudo dos mercados europeus. A aristocracia sulista estava vinculada, em
primeira instância, ao mercado mundial, ao estilo latinoamericano; do trabalho de seus
escravos provinha 80% do algodão que usavam as tecelagens européias. Quando ao prote59. Celso Furtado, op. cit.
60. Claude Foffien, L’Amérique anglo-saxone de 1815 à nos~, Paris, 1965.
61. Robert Schnerb, op. cit.
62.”O capital do Estado assume o risco inicial... A ajuda oficial às ferrovias não somente facilita
a reunião de capitais, mas, além disso, reduz os custos de construção. Em alguns casos, entre
outros para as linhas marginais, os fundos públicos tornaram possível a construção de ferrovias
que não poderiam nascer de outra maneira. Em outro número de casos ainda mais importantes,
aceleraram a realização de projetos que a utilização de capitais privados teria certamente retardado”. (Harrv H. Pierre, Radroads of New York, a study of government aid, 18262875, Cambridge,
Massachusetts, 1953).
143
cionismo industrial o norte somou a abolição da escravatura, a contradição eclodiu com a
guerra. O norte e o sul enfrentavam dois mundos opostos, dois tempos diferentes historicamente, duas antagônicas concepções de destino nacional. O século XX ganhou esta guerra
do século XIX.
Que todo homem livre cante...
O velho rei Algodão está morto e enterrado,
Clamava um poeta do exército vitorioso63. A partir da derrota do general Lee, as taxas
aduaneiras adquiriram um valor sagrado, elevado durante o conflito como um meio para
conseguir recursos e ficar de pé, para proteger a indústria vencedora. Em 1890, o Congresso
votou a chamada tarifa McKinley, ultraprotecionista, e a Lei Dingley elevou novamente os
direitos de alfândega em 1897. Pouco depois, os países desenvolvidos da Europa se viram
por sua vez obrigados a estender barreiras aduaneiras ante a irrupção de manufaturas
norte-americanas, perigosamente competitivas. A palavra truste foi pronunciada pela
primeira vez em 1882; o petróleo, o aço, os alimentos, as ferrovias e o tabaco estavam em
mãos de monopólios, que avançavam com botas de sete léguas64.
Antes da Guerra de Secessão, o general Grant tinha participado no despojo do
México. Depois da Guerra de Secessão, o general Grant foi um presidente com idéias
protecionistas. Tudo fazia parte do mesmo processo de afirmação nacional. A indústria do
norte conduzia a história e, já dona do poder político, cuidava, no Estado, da boa saúde dos
interesses dominantes. A fronteira agrícola voava para o oeste e para o sul, à custa dos
índios e dos mexicanos, porém em sua passagem não ia estendendo latifúndios, mas
pequenos proprietários de novos espaços abertos. A terra da promissão não só atraía os
camponeses europeus; os mestres artesãos dos ofícios mais diversificados e os operários
especializados em mecânica, metalurgia e siderurgia também chegaram da Europa para
fecundar a intensa industrialização norte-americana. Em fins do século passado, os Estados Unidos já eram a primeira potência industrial do planeta; em trinta anos, desde a
guerra civil, as fábricas tinham multiplicado por sete sua capacidade de produção. O
volume norte-americano de carvão eqüivalia ao da Inglaterra, e o de aço era duas vezes
maior; as vias férreas era nove vezes mais extensas. O centro do universo capitalista
começava a mudar de lugar.
Como a Inglaterra, os Estados Unidos também exportarão, a partir da Segunda
Guerra Mundial, a doutrina do livre-câmbio, o comércio livre e a livre concorrência, porém
para o consumo alheio. O Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial nasceram
juntos para negar, aos países subdesenvolvidos, o direito de proteger suas indústrias nacionais, e para desalentar neles a ação do Estado. Atribuir-se-ão propriedades curativas
infalíveis à iniciativa privada. Todavia, os Estados Unidos não abandonarão nunca uma
política econômica que continua sendo, na atualidade, rigorosamente protecionista, e que
certamente tem bons ouvidos às vozes da própria história: no norte, nunca confundiram a
doença com o remédio.
63. Claude FohIen, op. cii.
64.O sul se converteu numa colônia interna dos capitalistas do norte. Depois da guerra, a
propaganda pela construção de fiandeiras nas duas Carolinas, Georgia e Alabama, ganhou o
caráter de uma cruzada. Porém, este não era o triunfo de uma causa moral, as novas indústrias
não nasciam por puro humanitarismo: o sul oferecia mão-de-obra menos cara, energia mais
barata e lucros altíssimos, que às vezes chegavam a 75%. Os capitais do norte vinham para
amarrar o sul ao centro de gravidade do sistema. A indústria do tabaco, concentrada na Carolina
do Norte, estava sob a dependência direta do truste Duke, mudado para Nova Jérsei, a fim de
aproveitar a legislação mais favorável; a Tennessee Coa] and Iron Coal que explorava o ferro e o
144
A ESTRUTURA CONTEMPORÂNEA DA ESPOLIAÇÃO
UM TALISMÃ VAZIO DE PODERES
Quando Lênin escreveu, na primavera de 1916, seu livro sobre o imperialismo, o
capital norte-americano abarcava menos da quinta parte do total das inversões privadas
diretas, de origem estrangeira, na América Latina. Hoje, abarca 3/4 partes. O imperialismo
que Lênin conheceu - a rapina dos centros industriais em busca de mercados mundiais
para a exportação de suas mercadorias; a febre pela captura de todas as fontes possíveis de
matérias-primas; o saque do ferro, do carvão, do petróleo; as ferrovias articulando o domínio das áreas submetidas; os empréstimos vorazes dos monopólios financeiros; as expedições militares e as guerras de conquista - era um imperialismo que regava com sal os
lugares onde uma colônia ou semicolônia tivesse ousado levantar uma fábrica própria. A
industrialização, privilégio das metrópoles, era, para os países pobres, incompatível com o
sistema de domínio imposto pelos países ricos. A partir da Segunda Guerra Mundial se
consolida na América Latina o recuo dos interesses europeus, em benefício do arrasador
avanço das inversões norte-americanas. E se assiste, desde então, a uma mudança importante no destino das inversões. Passo a passo, ano após ano, vão perdendo importância
relativa os capitais aplicados nos serviços públicos e na mineração, enquanto aumenta a
proporção das inversões em petróleo e, sobretudo, na indústria manufatureira. Atualmente, de cada três dólares investidos na América Latina, um corresponde à indústria1.
Em troca de inversões insignificantes, as filiais das grandes corporações saltam de
um só pulo as barreiras aduaneiras latino-americanas, paradoxalmente levantadas contra
a concorrência estrangeira, e se apoderam dos processos internos de industrialização,
Exportam fábricas ou, freqüentemente, encurralam e devoram as fábricas nacionais já
existentes. Contam, para isto, com a ajuda entusiástica da maioria dos governos locais e
com a capacidade de extorsão que põem a seu serviço os organismos internacionais de
credito. O capital imperialista captura os mercados por dentro, tornando seus os setores
chaves da indústria local: conquista ou constrói as fortalezas decisivas, com as quais domina o resto. A OEA descreve assim o processo: “As empresas latino-americanas vão tendo
um predomínio sobre as indústrias e tecnologias já estabelecidas e de menor sofisticação,
e a inversão privada norte-americana, e provavelmente também a proveniente de outros
países industrializados, vai aumentando rapidamente sua participação em certas indústrias dinâmicas que requerem um grau de avanço tecnológico relativamente alto, mais
importantes na determinação do curso de desenvolvimento econômico”2. Assim, o dinamismo das fábricas norteamericanas ao sul do rio Bravo se torna muito mais intenso do
que o da indústria latino-americana em geral. São eloqüentes os ritmos dos três países
maiores: para um índice 100 em 1961, o produto industrial na Argentina passou a ser de
carvão de Alabama, passou em 1907 ao controle da U.S. Steel, que desde então dispôs dos preços,
eliminando a concorrência inquietante. Em princípios do século, a renda per capita do sul tinha-se
reduzido à metade em relação ao nível antes da guerra. (C. Vann Woodward, Origins of lhe New
South, 1973-1913, em A history of the south, vários autores, Baton Rouge, 1948).
1. Há quarenta anos, a inversão norte-americana em indústrias de transformação só representava
6% do valor total dos capitais dos Estados Unidos na América Latina. Em 1960, a proporção
chegava a 20%, e continuou ascendendo até cerca da terça parte do total. Nações Unidas, CEPAL,
El financiamiento externo de América Latina, Nova lorque-Santiago do Chile, 1964, e Estudio económico
de América Latina de 1967, 1968 e 1969.
2.Secretaria-Geral da Organização dos Estados Americanos, Elfinanciamento externo para América
Latina, W ashington, 1969. Documento de distribuição limitada, sextas reuniões anuais do CIES.
145
112,5 em 1965; no mesmo período, as vendas das empresas filiais dos Estados Unidos
subiram a 166,3. Para o Brasil, as cifras respectivas são de 109,2 e 120; para o México, de
142,2 e 186,83.
O interesse das corporações imperialistas por se apropriar do crescimento industrial
latino-americano e capitalizá-lo em seu benefício não implica um desinteresse por todas
as outras formas tradicionais de exploração. É verdade que a ferrovia da United Fruit na
Guatemala, já não era tão rentável, e que a Electric Bond and Share e a International
Telephone and Telegraph Corporation realizaram esplêndidos negócios quando foram nacionalizadas no Brasil, com indenização em ouro puro, em troca de suas instalações oxidadas e suas maquinarias de museu. Contudo o abandono dos serviços públicos em troca de
atividades mais lucrativas, nada tem a ver com o abandono das matérias-primas. Que
destino ocorreria ao Império sem o petróleo e os minerais da América Latina? A despeito
do descenso relativo das inversões em minas, a economia norteamericana não pode prescindir, como vimos em outro capítulo, dos abastecimentos vitais e dos vultosos lucros que
chegam do sul. De resto, as inversões que convertem as fábricas latino-americanas em meras pecas
da engrenagem mundial das corporações gigantes não alteram em absoluto a divisão internacional
do trabalho. Não sofre a menor modificação o sistema de vasos comunicantes por onde circula os
capitais e as mercadorias entre os países pobres e os países ricos. A América Latina continua exportando seu desemprego e sua miséria: as matérias-primas de que o mercado mundial necessita e de cuja
venda depende a economia da região. O intercâmbio desigual funciona como sempre: os salários de
fome da América Latina contribuem para financiar os altos salários dos Estados Unidos e da
Europa. O Brasil continua, apesar de sua industrialização, dependendo em grande medida
das exportações do café, e a Argentina das vendas de carne; o México exporta muito
poucas manufaturas.
Não faltam políticos e tecnocratas dispostos a demonstrar que a invasão do capital
estrangeiro industrializador beneficia as áreas aonde irrompe. A diferença do antigo, este
novo imperialismo implicaria uma ação em verdade civilizadora, uma bênção para os
países dominados, de modo que pela primeira vez a letra das declarações de amor da
potência dominante de turno coincidiria com suas intenções reais. Já as consciências
culpadas não necessitariam de álibis, senão não seriam culpadas: o imperialismo atual
irradiaria tecnologia e progresso, e até seria de mau gosto utilizar esta velha e odiosa
palavra para defini-lo. Cada vez que o imperialismo exalta suas próprias virtudes, convém
revistar os bolsos. E comprovar que este novo modelo de imperialismo não torna suas
colônias mais prósperas, embora enriqueça seus pólos de desenvolvimento; não alivia as
tensões sociais regionais, mas as aguça; paga salários vinte vezes menores do que em
Detroit e cobra preços três vezes maiores do que em Nova lorque; se faz dono do mercado
interno e dos pontos-chave do aparelho produtivo; se apropria do progresso, decide seu
rumo e lhe fixa fronteiras; dispõe do crédito nacional e orienta a seu gosto o comércio
exterior; não só desnacionaliza a indústria, mas também os lucros que a indústria produz;
impulsiona o desperdício de recursos ao desviar a parte substancial do excedente econômico para fora; não traz capitais para o desenvolvimento, mas os subtrai. A CEPAL indicou
que a hemorragia dos lucros das inversões diretas dos Estados Unidos na América Latina
foi cinco vezes maior, nestes últimos anos, do que a transfusão de inversões novas. Para
que as empresas possam arrebatar os ganhos, os países hipotecam a si mesmos
endividando-se com os bancos estrangeiros e com os organismos internacionais de crédito,
com o que multiplicam a enxurrada das próximas sangrias. A inversão industrial opera,
neste sentido, com as mesmas conseqüências da inversão “tradicional”.
No quadro de aço de um capitalismo mundial, integrado em torno das grandes
3. Dados do Departamento de Comércio dos Estados Unidos e do Comitê Intera
mericano da Aliança para o Progresso. Secretaria Geral, OEA, op. cil.
146
corporações norte-americanas, a industrialização da América Latina se identifica cada vez
menos com o progresso e com a libertação nacional. O talismã foi despojado de poderes nas
decisivas derrotas do século passado, quando os portos triunfaram sobre os países e a liberdade de
comércio arrasou a indústria nacional recém-nascida. O século XX não engendrou uma burguesia
industrial forte e criadora que fosse capaz de reempreender a tarefa e levá-la a suas últimas conseqüências. Todas as tentativas ficaram a meio caminho. À burguesia industrial da América Latina
ocorreu a mesma coisa que acontece com os anões: chegou à decrepitude sem terem crescido. Nossos
burgueses são, hoje em dia, representantes ou funcionários das corporações estrangeiras
todo-poderosas. Em honra da verdade, nunca tiveram méritos para merecer outro destino.
SÃO OS SENTINELAS QUE ABREM AS PORTAS: A ESTERILIDADE CULPÁVEL DA BURGUESIA NACIONAL
A atual estrutura da indústria na Argentina, Brasil e México - os três grandes pólos
de desenvolvimento na América Latina - já exibe as deformações características de um
desenvolvimento reflexo. Nos demais países, mais débeis, a satelitização da indústria se
operou, salvo algumas exceções, sem maiores dificuldades. Não é, por certo, um capitalismo competitivo este que hoje exporta fábricas além de mercadorias e capitais, penetra e
monopoliza tudo: esta é a integração industrial consolidada, em escala internacional, pelo
capitalismo na idade das grandes corporações multinacionais, monopólios de dimensões
infinitas que abarcam as atividades mais diversas nos mais diversos rincões do globo
terráqueo4. Os capitalistas norte-americanos se concentram, na América Latina, mais agudamente que nos próprios Estados Unidos; um punhado de empresas controla a imensa
maioria das inversões. Para elas, a nação não é uma tarefa a empreender, nem uma bandeira a
defender, nem um destino a conquistar.- a nação nada mais é do que um obstáculo a saltar (porque
às vezes a soberania incomoda) e uma suculenta fruta a devorar.Para as classes dominantes
dentro de cada país, constitui a nação, pelo contrário, urna missão a cumprir? A grande
corrida do capital imperialista encontrou a indústria local sem defesas e sem consciência
de seu papel histórico. A burguesia se associou à invasão estrangeira sem derramar lágrimas nem
sangue; quanto ao Estado, sua influência sobre a economia latino-americana, que vem se
debilitando há duas décadas, reduziu-se ao mínimo, graças aos bons ofícios do Fundo
Monetário Internacional. As corporações norte-americanas entraram na Europa como conquistadores e se apoderaram do desenvolvimento do velho continente a tal ponto que,
conforme se anuncia, a indústria norte-americana ali instalada será a terceira potência
industrial do planeta, depois dos Estados Unidos e da União Soviética5. Se a burguesia
européia, com toda sua tradição e sua pujança, não pôde limitar essa invasão, era de se
esperar que a burguesia latino-americana encabeçasse, a esta altura da história, a impossível aventura de um desenvolvimento capitalista independente? Pelo contrário, na América Latina o processo de desnacionalização foi muito mais fulminante e barato, e teve
conseqüências incomparavelmente piores.
O crescimento fabril da América Latina fora iluminado, em nosso século, de fora. Não foi
gerado por uma política planificada em direção ao desenvolvimento nacional, nem coroou a maturação
das forças produtivas, nem resultou da explosão dos conflitos internos, já superados, entre os latifundiários e um artesanato nacional, que morrera pouco depois de nascer. A indústria latino-americana
nasceu do próprio ventre do sistema agroexportador, para dar resposta ao agudo desequilíbrio provocado pela queda do comércio exterior.De fato, as duas guerras mundiais e, sobretudo, a profunda depressão que o capitalismo sofreu a partir da explosão da sexta-feira negra de outubro
4. Paul A. Batan e Paul M. Sweezy, El capital monopolista, México, 1971.
5. J.J. Servan-Schreiber, El desafío americano, Santiago do Chile, 1968.
147
de 1929, provocaram uma violenta redução das exportações da região e, consequentemente,
fizeram cair, de golpe, a capacidade de importar. Os preços internos dos artigos industriais
estrangeiros, subitamente escassos, subiram verticalmente. Não surgiu uma classe industrial livre da dependência tradicional: o grande impulso proveio do capital acumulado em
mãos dos latifundiários e dos importadores. Foram os grandes pecuaristas que impuseram o controle de câmbios na Argentina; o presidente da Sociedade Rural, convertido em
ministro da Agricultura, declarava em 1933: “O isolamento em que nos colocou um mundo deslocado nos obriga a fabricar no país o que já não podemos adquirir nos países que
não nos compram6. Os fazendeiros do café investiram na industrialização de São Paulo
boa parte de seus capitais acumulados no comércio exterior: Diferente da industrialização
nos países desenvolvidos - diagnostica um documento do governo7 -, o processo da industrialização brasileira não se deu paulatinamente, inserido dentro de um processo de transformação econômica geral. Antes, foi um fenômeno rápido e intenso, que se superpôs à
estrutura econômico-social preexistente, sem modificá-la por inteiro, dando origem a
profundas diferenças setoriais e regionais que caracterizam a sociedade brasileira”.
A nova indústria se entrincheirou atrás das barreiras alfandegárias que os governos
levantaram para protegê-la, e cresceu graças às medidas que o Estado adotou para restringir e controlar as importações, fixar taxas especiais de câmbio, evitar impostos, comprar ou
financiar excedentes de produção, estender estradas para tornar possível o transporte das
matérias-primas e das mercadorias, e criar ou ampliar as fontes de energia. Os governos
de Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54), Lázaro Cárdenas (1934-40) e Juan Domingo Perón
(1946-55), de cunho nacionalista e ampla proteção popular, expressaram no Brasil, México e Argentina a necessidade de arranque, desenvolvimento ou consolidação, segundo
cada caso e cada período, da indústria nacional. Em realidade, o espírito de empresa da
burguesia industrial nos países capitalistas desenvolvidos foi, na América Latina, uma
característica do Estado, sobretudo nestes períodos de impulso decisivo. O Estado ocupou o
lugar de uma classe social, cuja aparição a história reclama sem muito êxito: encarnou a nação e
impôs o acesso político e econômico das massas populares aos benefícios da industrialização. Nesta matriz, obra dos caudilhos populistas, não se incubou uma burguesia industrial
essencialmente diferenciada do conjunto das classes até então dominantes. Perári deflagrou,
por exemplo, o pânico da União Industrial, cujos dirigentes viam, não sem razão, que o
fantasma das montoneras provincianas reaparecia na rebelião do proletariado dos subúrbios de Buenos Aires. As forças da coalizão conservadora receberam, antes de Perón derrotá-las
nas eleições de fevereiro de 46, um famoso cheque do líder dos industriais; na hora da
queda do regime, dez anos depois, os donos das fábricas mais importantes voltaram a
confirmar que não eram fundamentais suas contradições com a oligarquia da qual, mal ou
bem, faziam parte. Em 1956, a União Industrial, a Sociedade Rural e a Bolsa de Comércio
formaram uma frente comum na defesa da liberdade de associação, da livre empresa, da
liberdade de comércio e da contratação livre de pessoal8. No Brasil, um importante setor
da burguesia fabril estreitou fileiras junto às forças que empurraram Vargas ao suicídio. A
experiência mexicana teve, neste sentido, características excepcionais, e por certo prometia muito mais do que finalmente deu ao processo de mudança na América Latina. O ciclo
nacionalista de Llizaro Cárderias foi o único que rompeu os laços contra os latifundiários,
levando adiante a reforma agrária que agitava o país desde 1910; nos demais países, e não
só na Argentina e Brasil, os governos industrializadores deixaram intacta a estrutura lati6. Citado por Alfredo Parera Dennis, Naturaleza de las relaciones entre las clases dominantes y las
metrópolis, em Fichas de investigaciones económicas y sociales, Buenos Aires, dezembro de 1964.
7. Ministério de Planejamento e Coordenação Geral, A industrialização brasileira: diagnóstico e perspectivas, Rio de Janeiro, 1969.
8. Dardo Cúneo, Comportamiento y crise de la clase empresaria, Buenos Aires, 1967.
148
fundiária, que continuou estrangulando o desenvolvimento do mercado interno e da
produção agropecuária9.
No geral, a indústria aterrissou como um avião, sem modificar o aeroporto em suas
estruturas básicas: condicionada pela demanda de um mercado interno previamente
existente, serviu às suas necessidades de consumo e não chegou a ampliá-lo na profunda
e extensa medida que às grandes mudanças de estrutura, se tivessem ocorrido, tornariam
possível. Da mesma maneira, o desenvolvimento industrial obrigou a um aumento das
importações de maquinarias, peças sobressalentes, combustíveis e produtos intermediários10, porém as exportações, fonte das divisas, não podiam dar resposta a este desafio
porque provinham de um campo condenado, por seus donos, ao atraso. Sob o governo de
Perón, o Estado argentino chegou a monopolizar a exportação de grãos: em troca, nem
sequer arranhou o regime de propriedade da terra, não nacionalizou os grandes frigoríficos
norte-americanos e britânicos nem os exportadores de lã11. Foi débil, muito débil, o impulso oficial à indústria pesada, e o Estado não advertiu a tempo que, se não gerasse uma
tecnologia própria, sua política nacionalista acabaria de asas cortadas. Já em 1953, Perón,
que chegara ao poder enfrentando diretamente o embaixador dos Estados Unidos, recebia
com elogios a visita de Milton Eisenhower e pedia a cooperação do capital estrangeiro para
impulsionar as indústrias dinâmicas12. A necessidade de associação da indústria nacional
com as corporações imperialistas se fazia peremptória, à medida que se iam queimando
etapas na substituição de manufaturas importadas e as novas fábricas requeriam mais
altos níveis de técnica e de organização. A tendência ia amadurecendo também no seio do
modelo industrializador de Getúlio Vargas; pôs-se a descoberto na trágica decisão final do
caudilho. Os oligopólios estrangeiros, que concentram a tecnologia mais moderna, tinham
se apoderado, não muito secretamente, da indústria nacional de todos os países da América Latina, inclusive do México, por meio da venda de técnicas de fabricação, patentes e
equipamentos novos. Wall Street tomara definitivamente o lugar de Lombard Street, e
foram norte-americanas as principais empresas que abriram caminho para o usufruto de
um superpoder na região. A penetração na área manufatureira se somava a ingerência
cada vez maior nos circuitos bancário e comercial: o mercado da América Latina foi-se
integrando ao mercado interno das corporações multinacionais.
9. O Chile, a Colômbia e o Uruguai viveram também processos de industrialização substitutiva de
importações, nos períodos que aqui se descrevem. O presidente uruguaio José Batlle y Ordofiez
(1903-7 e 1911-15) tinha sido, tempos antes, um profeta da revolução burguesa na América
Latina. A jornada de trabalho de oito horas foi consagrada por lei no Uruguai antes dos Estados
Unidos. A experiência de welfare state de Batlle não se limitou a pôr em prática a legislação social
mais avançada de seu tempo, mais também impulsionou fortemente o desenvolvimento cultural
e a educação das massas, e nacionalizou os serviços públicos e várias atividades produtivas de
considerável importância econômica. Porém, não tocou no poder dos donos da terra, nem
nacionalizou os bancos e o comércio exterior. Atualmente, o Uruguai padece as conseqüências
destas omissões, talvez inevitáveis, do profeta, e das traições de seus herdeiros.
10. “A passagem à produção interna de um determinado bem apenas ‘substitui’ parte do valor
agregado que antes se gerava fora da economia... Na medida em que o consumo deste bem
‘substituído’ se expande rapidamente, a demanda derivada por importações pode ultrapassar em
breve prazo a economia de divisas...” Maria Conceição Tavares, O processo de substituição de importação como modelo de desenvolvimento recente na América Latina, CEPAL-ILPES, Rio de Janeiro.
11. Ismael Vifias y Eugenio Gastiazoro, Economia y dependência (1900-1968), Buenos Aires, 1968.
12. O ministro de Assuntos econômicos respondia assim a pergunta do jornalista da revista
Visión (27 de novembro, 1953): - «Além da indústria do petróleo, que outras indústrias deseja
desenvolver a Argentina com a cooperação do capital estrangeiro?
- Para ser mais preciso, em ordem de prioridade citaremos o petróleo... A fabricação de elementos
para transporte... Em segundo lugar,a indústria siderúrgica... A química pesada... A fabricação de pneus
e eixos... E a construção ino país de motores diesel. (Citado por Alfredo Parera Dermis, qp. cit.)
149
Em 1965, Roberto Campos, czar econômico do governo de Castelo Branco, sentenciava: A era dos líderes carismáticos, cercados de uma aura romântica, está cedendo lugar à
tecnocracia13. A embaixada norte-americana participara diretamente no golpe de Estado
que derrubou o governo de João Goulart. A queda de Goulart, herdeiro de Vargas no estilo
e nas intenções, assinalou a liquidação do populismo e da política de massas. “Somos uma
nação vencida, dominada, conquistada e destruída”, me escrevia um amigo, do Rio de
Janeiro, poucos meses depois do triunfo da conspiração militar: a desnacionalização do
Brasil implicava a necessidade de exercer, com mão de ferro um governo impopular. O
desenvolvimento capitalista já não se compaginava com as grandes mobilizações de massas em torno de caudilhos como Vargas. Era preciso proibir as greves, destruir os sindicatos
e os partidos, encarcerar, torturar, matar e abater pela violência dos salários operários, para
conter assim, à custa da maior pobreza dos pobres, a vertigem da inflação. Uma pesquisa,
realizada em 1966 e 1967, revelou que 84% das grandes indústrias do Brasil considerava
que o governo de Goulart aplicara uma política econômica prejudicial. Entre eles estavam,
sem dúvida, muitos dos grandes capitães da burguesia nacional, nos quais Goulart intentou apoiar-se para conter a sangria imperialista da economia brasileira14. O mesmo processo de repressão e asfixia do povo teve lugar durante o regime do general Juan Carlos
Onganía, na Argentina; tinha começado, em realidade, com a derrota peronista de 1955,
assim como no Brasil tinha-se desencadeado realmente desde o balaço de Vargas em
1954. A desnacionalização da indústria no México também coincide com um endurecimento da política repressiva do partido que monopoliza o governo.
Fernando Henrique Cardoso assinalou15 que a indústria leve ou tradicional, crescida
à sombra generosa dos governos populistas, exige uma expansão do consumo de massas:
gente que compre camisas ou cigarros. Pelo contrário, a indústria dinâmica - bens intermediários e bens de capital - se dirige a um mercado restrito, em cuja cúpula estão as grandes
empresas e o Estado: poucos consumidores, de grande capacidade financeira. A indústria
dinâmica, atualmente em mãos estrangeiras, se apoia na existência prévia da indústria nacional, e
a subordina. Nos setores tradicionais, de baixa tecnologia, o capital nacional conserva alguma força; quanto menos está vinculado ao modo internacional de produção pela dependência tecnológica ou financeira, mais o capitalista tende a olhar com bons olhos a reforma
agrária e a elevação da capacidade de consumo das classes populares através da luta
sindical. Os mais amarrados ao exterior, representantes da indústria dinâmica, simplesmente requerem, em troca, o fortalecimento dos laços econômicos entre as ilhas de desenvolvimento dos países dependentes e o sistema econômico mundial, e subordinam as
transformações internas a este objetivo prioritário. São estes últimos os que orquestram a
voz cantante da burguesia industrial, como revela, entre outras coisas, o resultado das
recentes pesquisas feitas na Argentina e Brasil, que servem de matéria-prima para o
trabalho de Cardoso. Os grandes empresários se manifestam em termos contundentes contra a
reforma agrária; negam, em sua maioria, que o setor fabril tenha interesses divergentes dos setores
rurais e consideram que não há nada mais importante, para o desenvolvimento da indústria, do que
a coesão de todas as classes produtoras e o fortalecimento do bloco ocidental. Só uns 2% do grandes
industriais da Argentina e do Brasil consideram que politicamente é preciso contar, em
primeiro lugar, com os trabalhadores. Os pesquisados foram, em sua maioria, empresários
nacionalistas em sua maioria, também, amarrados de pés e mãos aos centros estrangeiros
de poder pelas múltiplas cordas da dependência.
Era de esperar, a esta altura, outro resultado? A burguesia industrial integra a cons13. Octavio Ianni, O colapso do populismo no Brasil, Rio de Janeiro, 1968.
14. Luciano Martins, Industrialização, burguesia nacional e desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1968.
15. Fernando Henrique Cardoso, Ideologías de la burguesia en sociedades dependien tes (Argentina , v
Brasil), México, 1971.
150
telação de uma classe dominante que está, por sua vez, dominada de fora. Os principais
latifundiários da costa do Peru, hoje expropriados pelo governo de Velasco Alvarado, são
também donos de trinta e uma indústrias de transformação e de muitas outras empresas
diversas16. Outro tanto ocorre em todos os demais países17. O México não é uma exceção:
a burguesia nacional, subordinada aos grandes consórcios norte-americanos, teme muito
mais a pressão das massas populares do que a opressão do imperialismo, em cujo seio está
se desenvolvendo, sem a independência e a imaginação criadora que se lhe atribuem, e
multiplicou eficazmente seus lucros18. Na Argentina, o fundador do Jockey Club, centro de
prestígio social dos latifundiários, tinha sido, ao mesmo tempo, o líder dos industriais19,e
assim se iniciou, em fins do século passado, uma tradição imortal: os artesãos enriquecidos se
casam com filhas de fazendeiros para abrir, pela via conjugal, as portas dos salões mais exclusivos da
oligarquia, ou compram terras com os mesmos fins, e não são poucos os pecuaristas que, por seu lado,
investiram na indústria, ao menos nos períodos de auge, os excedentes de capital acumulado em suas
mãos. Faustino Fano, que fez boa parte de sua fortuna como comerciante e industrial de
têxteis, tornou-se presidente da Sociedade Rural durante quatro períodos consecutivos,
até sua morte em 1967: “Fano destruiu a falsa antinomia agroindústria” proclamavam as
notas necrológicas que os jornais lhe dedicaram. O excedente comercial se converte em
vacas. Os irmãos Di Tella, poderosos industriais, venderam aos capitais estrangeiros suas
fábricas de automóveis e geladeiras, e agora criam touros para as exposições da Sociedade
Rural. Meio século antes, a família Anchorena, dona dos horizontes da província de Buenos
Aires, levantara uma das mais importantes fábricas metalúrgicas da cidade.
Na Europa e nos Estados Unidos, a burguesia industrial apareceu no cenário histórico de outra maneira, e de outra maneira cresceu e consolidou seu poder.
QUAL BANDEIRA TREMULA SOBRE AS MÁQUINAS?
A velha se inclinou e mexeu a mão para abanar o fogo. Assim, com as costas torcidas
e o pescoço esticado e todo enroscado de rugas parecia uma antiga tartaruga negra. Porém,
aquele pobre vestido rasgado não a protegia como uma carapaça, e afinal ela era tão lenta
só por culpa dos anos. Às suas costas, também torcida, sua choça de madeira e lata, e mais
além outras choças semelhantes do mesmo subúrbio de São Paulo; frente a ela, num
caldeirão cor de carvão, fervia a água para o café. Levantou uma latinha até seus lábios;
antes de beber, sacudiu a cabeça e fechou os olhos. Disse: - O Brasil é nosso. - No centro da
mesma cidade e neste mesmo momento, pensou exatamente o mesmo, porém em outro
idioma, o diretor executivo da Union Carbide, enquanto levantava unia taça de cristal para
16. François Bourricaud, Jorge Bravo Bressani, Henri Favre, Jean Piel, La oligar quia en el Perú,
Lima, 1969. 0 dado foi tirado do trabalho de Favre.
17. Ricardo Lagos Escobar, La concentración del poder económico. Su ieoría. Realidad chilena (Santiago
do Chile, 1961), e Vivian Trías, Reforma agrária en el Uruguai (Montevidéu, 1962), oferecem
exemplos irrefutáveis: umas centenas de famílias são donas das fábricas e das terras, dos grandes
comércios e dos bancos.
18. Os capitalistas mexicanos são cada vez mais versáteis e ambiciosos. Com independência do
negócio que lhes tem servido de ponto de partida para fazer fortuna, dispõem de uma fluida rede
de canais que a todos, pelo menos para os mais eminentes, oferece sempre a possibilidade de
multiplicar e entrelaçar seus interesses através da amizade, do compadrio, da associação nos
negócios, do casamento, o outorgamento de favores mútuos, a participação em certos clubes ou
agrupações, as freqüentes reuniões sociais e, desde cedo, a afinidade em suas posições políticas.
Alonso Aguillar Monteverde, em El milagro mexicano, de vários autores, México, 1970.
19. Era Carlos Pellegrini. Quando o Jockey Club lhe prestou homenagens editando seus discursos, suprimiu os que apoiavam teses industrialistas. Dardo Cúneo, op. cil.
151
celebrar a conquista de outra fábrica brasileira de plásticos por parte de sua empresa. Um
dos dois estava equivocado.
Desde 1964, os sucessivos presidentes militares do Brasil falam nos aniversários das
empresas do Estado para anunciar sua próxima desnacionalização, a que chamam de
recuperação. Os ministros acorrem a celebrar a inauguração de todas as fábricas estrangeiras. A lei 56.570, promulgada em 6 de julho de 1965, reservou ao Estado a exploração petroquímica;
no mesmo dia, a lei 56.571 derrogou a anterior e abriu a exploração às inversões privadas. Desta
maneira, a Dow Chemical, a Union Carbide, a Phillips Petroleum e o grupo Rockefeller
obtiveram, diretamente ou através da associação com o Estado, o filé mignon mais cobiçado: a indústria dos derivados químicos do petróleo, previsível boom da década de 70. O que
ocorreu durante as horas transcorridas entre uma lei e outra? Cortinas que tremem, passos
nos corredores, desesperadas batidas nas portas, as notas verdes voando pelos ares, agitação no palácio: de Shakespeare a Brecht, muitos queriam ter imaginado isto. Um ministro
do governo reconhece: “Forte, no Brasil, além do próprio Estado, só existe o capital estrangeiro,
salvo honrosas exceções”20.E o governo faz o possível para evitar esta incômoda concorrência
com as corporações norte-americanas e européias.
O ingresso, em grandes quantidades, de capital estrangeiro destinado às manufaturas começou, no Brasil, nos anos 50, e recebeu um forte impulso do Plano de Metas
(1957-60) posto em prática pelo presidente Juscelino Kubitschek. Aquelas foram horas de
euforia do crescimento. Brasília nascia, brotada de uma nave mágica, em meio do deserto,
onde os índios não conheciam nem a existência da roda; estendiam-se estradas e criavam-se
grandes represas; das fábricas de automóveis surgia um auto novo a cada dois minutos. A
indústria acelerava-se a grande ritmo. Abriam-se as portas, de par a par, à inversão estrangeira, aplaudia-se a invasão de dólares, sentia-se vibrar o dinamismo do progresso. As
notas circulavam com a tinta ainda fresca; o salto para frente se financiava com inflação e
com uma pesada dívida externa que seria descarregada, agonizante herança, sobre os
governos seguintes. Outorgou-se um tipo de câmbio especial, que Kubitschek garantiu,
para as remessas das divisas às matrizes,das empresas estrangeiras e para a amortização
das inversões. O Estado assumia a co-responsabilidade para o pagamento das dívidas
contraídas pelas empresas no exterior e outorgava também um dólar barato para a amortização e para os juros destas dívidas: segundo um informe publicado pela CEPAL 21, mais
de 80% do total das inversões que chegaram entre 1955 e 1962 provinha de empréstimos
obtidos com aval do Estado. Ou seja, mais de quatro quintos das inversões das empresas
derivavam do sistema bancário estrangeiro e passavam a engrossar a vultosa dívida externa do Estado brasileiro. Além disso, se outorgavam benefícios especiais para a importação
de maquinarias 22 . As empresas nacionais não gozavam destas facilidades dadas à General Motors e à Volkswagen.
O resultado desnacionalizador desta política de sedução ante o capital imperialista
se manifestou quando se publicaram os dados da paciente investigação realizada pelo
20. Discurso do ministro Hélio Beltrão, no almoço da Associação Comercial do Rio de Janeiro,
Correio do Povo, 24 de maio &-1969.
21. CEPAL-BNDE, Quince años de política económica en e/ Brasil, Santiago do Chile, 1965.
22. Um economista muito favorável à inversão estrangeira, Eugênio Gudin, calcula que só neste
último item o Brasil doou às empresas norte-americanas e européias nada menos de um bilhão
de dólares; Moacir Paixão calculou que os privilégios outorgados à indústria automobilística no
período de sua implantação equivaleriam a uma soma igual ao do orçamento nacional. Paulo
Schilling assinala (Brasil para extranjeros, Montevidéu, 1966) que, enquanto o Estado brasileiro
cedia às grandes corporações internacionais um aluvião de benefícios, e lhes permitia o máximo
de lucros com o mínimo de investimentos, ao mesmo tempo negava apoio à Fábrica Nacional de
Motores, criada na época de Vargas. Posteriormente, durante o governo de Castelo Branco, esta
empresa do Estado foi vendida à Alfa Romeo.
152
Instituto de Ciências Sociais da Universidade sobre os grandes grupos econômicos23.Entre
os conglomerados com um capital superior a quatro bilhões de cruzeiros, mais da metade
eram estrangeiros e em sua maioria norte-americanos; acima dos dez bilhões de cruzeiros,
apareciam doze grupos estrangeiros e só cinco nacionais. “Quanto maior é o grupo econômico, maior é a possibilidade de que seja estrangeiro”, concluiu Maurício Vinhas de Queiroz,
na análise da pesquisa. Porém, tanto ou mais eloqüente resultou que, dos 24 grupos
nacionais com mais de quatro bilhões de capital, apenas nove não estavam ligados, por
ações, com capitais dos Estados Unidos ou da Europa, e ainda assim, em dois deles
apareciam entrecruzamentos com diretorias estrangeiras. A pesquisa detectou dez grupos
econômicos que exerciam um virtual monopólio em suas respectivas especialidades. Deles, oito eram filiais de grandes corporações norte-americanas.
Porém tudo isto parece brinquedo de criança ao lado do que veio depois. Entre 1964
e meados de 1968, quinze fábricas de automotores ou peças para autos foram deglutidas
pela Ford, Chrysler, Willys, Simca, Volkswagen ou Alfa Romeo; no setor elétrico e eletrônico, três importantes empresas brasileiras foram parar em mãos japonesas; Wyeth, Bristol,
Mead Johnson e Lever devoraram tantos laboratórios, que a produção nacional de medicamentos se reduziu a uma quinta parte do mercado; a Anaconda se lançou sobre os metais
não-ferrosos, e a Union Carbide sobre os plásticos, os produtos químicos e a petroquímica;
American Can, American Machine and Foundry e outros colegas se apoderaram de seis
empresas nacionais de mecânica e metalurgia; a Companhia de Mineração Geral, uma
das maiores fábricas metalúrgicas do Brasil, foi comprada a preço de falência por um
consórcio do qual participam a BethIehem Steel, o Chase Manhattan Bank e a Standard
Oil. Foram sensacionais as conclusões de uma comissão parlamentar formada para investigar o tema, porém o regime militar fechou as portas do Congresso e o público brasileiro
nunca conheceu estes dados24.
Sob o governo do marechal Castelo Branco tinha-se firmado um acordo de garantia
de inversões que oferecia virtual extraterritorialidade às empresas estrangeiras,
reduziram-se os impostos de renda e outorgaram-se facilidades extraordinárias para desfrutar do crédito, enquanto se abriam os torniquetes aplicados pelo governo anterior de
Goulart à drenagem dos lucros. O regime militar tentava os capitais estrangeiros
oferecendo-lhes o país como os proxenetas oferecem uma mulher, e punha o acento onde
devia: “O tratamento aos estrangeiros no Brasil é dos mais liberais do mundo... não há
restrições de nacionalidade dos acionistas... não existe limite à percentagem de capital
registrado, que pode ser remetido como lucro... não há limitações à repatriação de capital,
e a reinversão dos lucros será considerada um incremento do capital original...” 25 .
A Argentina disputa com o Brasil o papel de praça predileta das inversões imperia23. Maurício Vinhas de Queiroz, Os grupos multibilionários, na Revista do Instituto de Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, janeiro-dezembro de 1965.
24. A comissão chegou à conclusão de que o capital estrangeiro controlava, em 1968, 40% do
mercado de capitais no Brasil, 62% de seu comércio exterior, 82% do transporte marítimo, 67%
dos transportes aéreos externos, 100% da produção de veículos a motor, 100% dos pneumáticos,
mais de 80% da indústria farmacêutica, cerca de 50% da química, 59% da produção de máquinas
e 62% das fábricas de autopeças, 48% do alumínio e 90% do cimento. A metade do capital
estrangeiro correspondia a empresas dos Estados Unidos, seguidas em ordem de importância
por firmas alemães. Interessa advertir, de passagem, o peso crescente das inversões da Alemanha
Federal na América Latina. De cada dois automóveis que se fabrica no Brasil, um provém da
fábrica da Volkswagen, que é a mais importante de toda a região. A primeira fábrica de automóveis na América do Sul foi de uma empresa alemã, a Mercedes-Benz Argentina, fundada em 1951.
Bayer, Hoechst, BASF e Schering dominam boa parte da indústria química nos países
latino-americanos.
25. Suplemento especial do New York Times, 19 de janeiro de 1969.
153
listas, e seu governo militar não ficava atrás na exaltação das vantagens, neste mesmo
período: no discurso em que definiu a política econômica argentina, em 1967, o general
Juan Carlos Onganía reafirmava que as galinhas outorgavam às raposas a igualdade de
oportunidades: “As inversões estrangeiras na Argentina serão consideradas em pé de
igualdade com as inversões de origem interna, de acordo com a política tradicional de
nosso país, que nunca discriminou o capital estrangeiro” 26 . A Argentina tampouco impõe
limitações à entrada do capital forâneo nem a sua gravitação na economia nacional, nem
à saída dos lucros, nem à repatriação do capital; os pagamentos de patentes, regalias e
assistência técnica se fazem livremente. O governo exime de impostos as empresas e lhes
oferece taxas especiais de câmbio, além de muitos outros estímulos e franquias. Entre
1963 e 1968, foram desnacionalizadas 50 importantes empresas argentinas, 29 das quais
caíram em mãos norte-americanas, em setores tão diversos como a fundição de aço, a
fabricação de automóveis e de peças, a petroquímica, a química, a indústria elétrica, o
papel e os cigarros. 27 Em 1962, duas empresas nacionais de capital privado, Siam Di Tella
e Industrias Kaiser Argentinas, figuravam entre as cinco empresas industriais maiores da
América Latina; em 1967, ambas tinha sido generosamente conquistadas pelo capital
imperialista. Entre as mais poderosas empresas do país, que faturam vendas acima de 7
bilhões de pesos anuais cada uma, a metade do valor total das vendas pertence a firmas
estrangeiras, um terço a organismos do Estado e apenas um sexto a sociedades privadas
de capital argentino. 28
O México congrega quase a terça parte das inversões norte-americanas na indústria de manufaturas da América Latina. Tampouco este país opõe restrições à transferência
de capitais nem à repatriação de lucros; as restrições cambiais brilham por sua ausência. A
mexicanização obrigatória dos capitais, que impõe uma maioria nacional das ações em
algumas indústrias, “foi bem acolhida, em termos gerais, pelos investidores estrangeiros,
que reconheceram publicamente diversas vantagens na criação de empresas mistas”,
segundo declarava em 1967 o secretário da Indústria e Comércio do governo: “Cabe fazer
notar que mesmo empresas de renome internacional adotaram esta forma de associação
de companhias que estabeleceram no México, e é também importante destacar que a
política de mexicanização da indústria não desalentou a inversão estrangeira no México,
mas, depois de que a corrente desta inversão bateu um recorde em 1965, o volume
alcançado neste ano foi novamente superado em 1966” 29.Em 1962, das cem empresas
mais importantes do México, 56 estavam total ou parcialmente controladas pelo capital
estrangeiro, 24 pertenciam ao Estado e 20 ao capital privado mexicano. Estas vinte empresas privadas de capital nacional apenas participam em pouco mais de uma sétima parte
do volume total de vendas das cem empresas consideradas 30.Atualmente, as grandes
firmas estrangeiras dominam mais da metade dos capitais investidos em computadores,
equipamentos de escritório, maquinaria e equipamentos industriais; General Motors, Ford,
Chrysler e Volkswagen consolidaram seu poderio sobre a indústria de automóveis e a rede
de fábricas auxiliares; a nova indústria química pertence a Du Pont, Monsanto, Imperial
Chemical, Allied Chemical, Union Carbide e Cyanamid; os laboratórios, principais estão
em mãos da Parke Davis, Merck & Co., Sidney Ross e Squibb; a influência da Celanese é
decisiva na fabricação de fibras artificiais; Anderson Clayton e Lieber Brothers dispõem em
medida crescente dos azeites comestíveis, e os capitais estrangeiros participam esmaga26. Sergio Nicolau, La inversión extranjera directa en los paises de la ALALC, México, 1968.
27. Rogelio García Lupo, Contra la ocupación extranjera. Buenos Aires, 1968.
28. Citado pelas Nações Unidas, CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1968, Nova Iorque Santiago do Chile, 1969.
29. Reportagem da revista Visión, 3 de janeiro de 1967.
30. José Luis Cecenã, Los monopolios em México, México, 1962.
154
doramente da produção de cimento, cigarros, borracha e derivados, artigos para o lar e
alimentos diversos 31.
O BOMBARDEIO DO FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL FACILITA O DESEMBARQUE DOS CONQUISTADORES
Dois dos ministros do governo que prestaram declarações ante a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a desnacionalização industrial do Brasil reconheceram que as
medidas adotadas, sob o governo de Castelo Branco, para permitir o fluxo direto do crédito
externo às empresas, deixaram em inferioridade de condições as fabricas de capital nacional. Ambos se referiam à célebre Instrução 289, de princípios de 1965: as empresas
estrangeiras obtinham empréstimos fora das fronteiras a 7 ou 8%, com um tipo de câmbio
especial que o governo garantia em caso de desvalorização do cruzeiro, enquanto as empresas nacionais deviam pagar cerca de 50% de juros para os créditos que arduamente
conseguiam dentro de seu país. O inventor da medida, Roberto Campos, a explicou assim:
“Obviamente, o mundo é desigual. Há quem nasce inteligente e há quem nasce burro. Há
quem nasce atleta e há quem nasce aleijado. O mundo se compõe de pequenas e grandes
empresas. Uns morrem cedo, no primor da vida; outros se arrastam, criminosamente, por
uma longa existência inútil. Há uma desigualdade fundamental na natureza humana, na
condição das coisas. A isto não escapa o mecanismo de crédito. Postular que as empresas
nacionais devam ter o mesmo acesso que as empresas estrangeiras ao crédito externo é
simplesmente desconhecer as realidades básicas da economia...” 32.De acordo com os
termos deste breve porém vigoroso Manifesto capitalista, a lei da selva é o código que
naturalmente rege a vida humana e a injustiça não existe, já que o que conhecemos por
injustiça nada mais é do que a expressão cruel da harmonia do universo: os países pobres
são pobres porque... são pobres; o destino está escrito nos astros e só nascemos para
cumpri-lo: uns, condenados a obedecer; outros, destinados a mandar. Uns oferecendo o
pescoço e os outros colocando a corda. O autor foi artífice da política do Fundo Monetário
Internacional no Brasil.
Como nos demais países da América Latina, a colocação em prática das receitas do
Fundo Monetário Internacional serviu para que os conquistadores estrangeiros entrassem
pisando terra arrasada. Desde fins da década de 50, a recessão econômica, a instabilidade
monetária, a seca de crédito e a derrubada do poder aquisitivo do mercado interno contribuíram, fortemente na tarefa de revirar a indústria nacional e pô-la aos pés das corporações
imperialistas. Sob pretexto da mágica estabilização monetária, o Fundo Monetário Internacional, que interessadamente confunde a febre com a doença e a inflação com a crise das
estruturas em vigência, impõe na América Latina uma política que aguça os desequilíbrios
em vez de aliviá-los. Liberaliza o comércio, proibindo os câmbios múltiplos e os convênios
de troca, obriga a contrair até a asfixia os créditos internos, congela os salários e desalenta
31. José Luis Cecenã, México en la órbita imperial, México, 1970, e Alonso Aguilar e Fernando
Carmona, México, riqueza y miséria, México, 1968.
32. Depoimento do ministro Roberto Campos, no informe da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as transações efetuadas entre empresas nacionais e estrangeira. Versão datilografada.
Câmara dos Deputados, Brasília, 6 de setembro de 1968.
Pouco tempo depois, Campos publicou curiosa interpretação das atitudes nacionalistas do
governo do Peru. Segundo ele, a expropriação da Standard Oil por parte do governo do general
Velasco Alvarado não era mais do que uma “exibição de masculinidade”. O nacionalismo, escreveu, não tem outro objetivo senão satisfazer a primitiva necessidade de ódio do ser humano.
Porém, agregou, “o orgulho não gera investimentos, nem aumenta o caudal de capitais..” (No
Jornal O Globo, 25 de fevereiro de 1969).
155
a atividade estatal. Agrega ao programa as fortes desvalorizações monetárias, teoricamente destinadas a devolver seu valor real à moeda e a estimular as exportações. Na realidade,
as desvalorizações só estimulam a concentração interna de capitais e propiciam a absorção
das empresas nacionais por parte dos que chegam de fora com um punhado de dólares
nas pastas.
Em toda a América Latina, o sistema produz muito menos do que necessita consumir, e a inflação resulta desta impotência estrutural. Porém o FMI não ataca as causas da
oferta insuficiente do aparato de produção, mas lança suas cargas de cavalaria contra as
conseqüências, arrasando ainda mais a mesquinha capacidade de consumo do mercado
interno de consumo: uma demanda excessiva, nestas terras de famintos, teria a culpa da inflação.
Suas fórmulas não só fracassaram na estabilização e no desenvolvimento, mas também
intensificaram o estrangulamento externo dos países, aumentaram a miséria das grandes
massas despojadas, pondo em carne viva as tensões sociais, e precipitaram a
desnacionalização econômica e financeira, ao influxo dos sagrados mandamentos da liberdade de comércio, da liberdade de concorrência e da liberdade de movimento dos capitais.
Os Estados Unidos, que empregam um vasto sistema protecionista - taxas, cotas, subsídios internos -, jamais mereceram a menor observação do FMI. Em compensação, com a
América Latina, foi inflexível: é para isto que existe. Desde que o Chile aceitou a primeira
de suas missões em 1954, os conselhos do FMI se estenderam por todas as partes, e a
maioria dos governos segue, hoje em dia, suas orientações. A terapêutica piora o doente para
melhor impor-lhe a droga dos empréstimos e das inversões. O FMI proporciona empréstimos ou
dá a imprescindível luz verde para que outros os proporcionem. Nascido nos Estados
Unidos, com sede nos Estados Unidos e a serviço dos Estados Unidos, o Fundo opera, de
fato, como um inspetor internacional, sem cujo visto o sistema bancário norte-americano
não afrouxa os cordões da bolsa; o Banco Mundial, a Agência para o Desenvolvimento
Internacional e outros organismos filantrópicos de alcance universal também condicionam
seus créditos à assinatura e cumprimento das Cartas de Intenções dos governos ante o
onipotente organismo. Todos os países latino-americanos reunidos não chegam a somar a
metade dos votos de que dispõem os Estados Unidos para orientar a política deste supremo fazedor do equilíbrio monetário mundial; o FMI foi criado para institucionalizar o
predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro, quando em fins da Segunda
Guerra o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. Nunca foi infiel ao
amo 33.
A burguesia nacional latino-americano tem, é certo, vocação especuladora, e não
limitou suficientemente a avalancha estrangeira sobre a indústria, porém também é certo
que as corporações imperialistas utilizaram toda uma gama de métodos de arrasamento.
O bombardeio prévio do FMI facilitou a penetração. Assim, se conquistaram empresas
mediante um simples telefonema, depois de uma brusca queda nas cotações da bolsa, em
troca de um pouco de oxigênio traduzido em ações, ou também executando alguma
dívida por abastecimentos, ou pelo uso de patentes, marcas e inovações técnicas. As
dívidas, multiplicadas pelas desvalorizações monetárias que obrigam as empresas locais a
pagar mais moeda nacional por seus compromissos em dólares, se convertem assim
numa cilada mortal. A dependência no fornecimento da tecnologia se paga caro: o
know-how das corporações inclui uma grande perícia na arte de devorar o próximo. Um
dos últimos moicanos da indústria nacional brasileira declarava, há menos de nove anos,
num diário carioca: “A experiência demonstra que o produto da venda de uma empresa
nacional muitas vezes nem chega ao Brasil, e fica dando juros no mercado financeiro do
país comprador” 34. Os credores cobrarão ficando com as instalações e máquinas dos
33. Samuel Lichetensztejn e Alberto Curiel, El FMI y la crisis económica nacional, Montevidéu,
1967; e Vivian Trías, La crisis del Império. Montevidéu, 1970.
156
devedores. As cifras do Banco Central do Brasil indicam que não menos da quinta parte
das novas inversões industriais em 1965, 1966 e 1967 correspondeu, na realidade, à conversão das dívidas não-pagas em inversões.
A chantagem financeira e tecnológica se soma à concorrência desleal e livre do forte
frente ao fraco. Como as filiais das grandes corporações multinacionais integram uma
estrutura mundial, podem dar-se ao luxo de perder dinheiro durante um ano, ou dois, ou o tempo
que for necessário. Baixam, pois, os preços, e se sentam, esperando a rendição do acossado. Os bancos
colaboram no certo: a empresa nacional não é tão solvente como parecia: se lhe negam víveres.
Encurralada, a empresa não tarda em levantar a bandeira branca. O capitalista local se converte em
sócio menor ou funcionário de seus vencedores. Ou conquista a mais ambicionada das sortes: cobra
o resgate de seus bens em ações da casa-matriz estrangeira e termina seus dias vivendo nababescamente
uma vida de rendas. A propósito do dumping de preços, é ilustrativa a história da conquista
de uma fábrica brasileira de fitas adesivas, a Adesite, por parte da poderosa Union Carbide.
A Scotch, conhecida empresa com sede em Minnesota e tentáculos universais, começou a
vender a preço cada vez mais baixos suas próprias fitas adesivas no mercado brasileiro. As
vendas da Adesite iam descendo. Os bancos lhe cortaram os créditos. A Scotch continuava
baixando seus preços: caíram em 30%, depois em 40%. E entrou, então, a Union Carbide
em cena: comprou a fábrica brasileira a preço de desespero. Posteriormente, a Union
Carbide e a Scotch se entenderam para repartir o mercado nacional em duas partes:
dividiram o Brasil, a metade para cada uma. E, de comum acordo, elevaram os preços das
fitas adesivas em 50%. Era a digestão. A lei antitruste, dos velhos tempos de Vargas, tinha
sido derrogada anos atrás.
A própria Organização dos Estados Americanos reconhece 35 que a abundância de
recursos financeiros das filiais norte-americanas, “em momentos de escassa liquidez para
as empresas nacionais, propiciou, em certas ocasiões, que algumas destas empresas fossem adquiridas por interesses estrangeiros”. A penúria de recursos financeiros, aguçada
pela contração do crédito interno, imposta pelo Fundo Monetário, sufoca as fábricas locais.
Porém, o mesmo documento da OEA informa que nada menos s do que 95,7% dos fundos
requeridos pelas empresas norte-americanas para seu normal funcionamento e desenvolvimento na América Latina provêm de fontes latino-americanas, em forma de créditos e
lucros reinvestidos. Essa proporção é de 80%, no caso das indústrias manufatureiras.
OS ESTADOS UNIDOS CUIDAM DE SUA POUPANÇA INTERNA MAS DISPÕEM DA ALHEIA: A INVASÃO
DOS BANCOS
A canalização dos recursos nacionais em direção às filiais imperialistas se explica em
grande parte pela proliferação das sucursais bancárias norte-americanas que brotaram,
como cogumelos depois da chuva, durante estes últimos anos, ao longo da América Latina. A ofensiva sobre a poupança local dos satélites está vinculada ao crônico déficit da
balança de pagamentos do s Estados Unidos, que obriga a conter as inversões no estrangeiro, e a dramática deterioração do dólar como moeda do mundo. A América Latina proporciona a saliva além da comida, e os Estados Unidos se limitam a pôr a boca. A desnacionalização da
indústria se tornou um presente.
Segundo o International Banking Survey 36, havia 78 sucursais de bancos
norte-americanos ao sul do rio Bravo em 1964, porém em 1967 já eram 133. Tinham 810
milhões de dólares de depósitos em 64, e em 67 já somavam 1.270 milhões. Logo, em 1968
34. Fernando Gasparian, no Correio da Manhã, 19 de maio de 1968.
35. Secretaria-Geral da OEA, op. cit.
36. International Banking Survey, Journal of Commerce, Nova Iorque, 25 de fevereiro de 1968.
157
e 1969, os bancos estrangeiros avançaram com ímpeto: o First National City Bank conta, na
atualidade, com nada menos de dez filiais em 17 países da América Latina. A cifra inclui
vários bancos nacionais adquiridos pelo City nos últimos tempos. O Chase Manhattan
Bank, do grupo Rockefeller, adquiriu em 1962 o Banco Lar Brasileiro, com 34 sucursais no
Brasil; em 1964, o Banco Continental, com 42 agencias no Peru; em 1967, o Banco do
Comércio, com 120 sucursais na Colômbia e no Panamá, e o Banco Atlântida, com 24
agências em Honduras; em 1968, o Banco Argentino de Comércio. A revolução cubana
tinha nacionalizado 20 agências bancárias dos Estados Unidos, porém os bancos recuperaram com sobras aquele duro golpe: só no curso de 1968, mais de 70 novas filiais de bancos
norte-americanos foram abertas na América Central, no Caribe e nos países menores da
América do Sul.
É impossível conhecer o simultâneo aumento das atividades paralelas - subsidiárias,
holdings, financeiras, escritórios de representação - em sua magnitude exata, porém se
sabe que em igual ou maior proporção cresceram os fundos latino-americanos absorvidos
pelos bancos que, embora não operem abertamente como sucursais, são controlados de
fora através de decisivos pacotes acionários ou pela abertura de linhas externas de crédito
severamente condicionadas.
Toda esta invasão bancária serve para desviar a poupança latino-americana para as
empresas norte-americanas que operam na região, enquanto as empresas nacionais são
estranguladas por falta de crédito. Os departamentos de relações públicas de vários bancos norte-americanos que operam no exterior apregoam, sem constrangimento, que seu
propósito mais importante consiste em canalizar a poupança interna dos países onde
operam para o uso das corporações multinacionais que são clientes de suas matrizes 37.
Façamos a imaginação voar: poderia um banco latino-americano instalar-se em Nova
Iorque para captar poupança nacional dos Estados Unidos? A bolha estoura no ar: esta
insólita aventura é expressamente proibida. Nenhum banco estrangeiro pode operar, nos
Estados Unidos, como receptor de depósitos dos cidadãos norte-americanos. Em troca, os
bancos dos Estados Unidos dispõem a seu bel-prazer, através das numerosas filiais, da
poupança nacional latino-americana. A América Latina vela pela norte-americanização
das finanças, tão ardentemente como os Estados Unidos. Em junho de 1966, o Banco
Brasileiro de Descontos consultou seus acionistas para tomar uma resolução vigorosamente
nacionalista. Imprimiu a frase Nós confiamos em Deus em todos seus documentos. Orgulhosamente, o banco fez notar que o dólar ostenta In God WeTrust.
Os bancos latino-americanos, inclusive os invictos, não infiltrados nem absorvidos
pelos capitais estrangeiros, não orientam Os créditos num sentido diferente ao das filiais
do City, Chase ou Bank of America: eles também preferem atender à demanda das empresas industriais e comerciais estrangeiras, que contam com garantias sólidas e operam
em grandes volumes.
O IMPÉRIO QUE IMPORTA CAPITAIS
O Programa de Ação Econômica do Governo, elaborado por Roberto Campos
38
,
37. Robert A. Bennett e Karen Almonti, International activities of United States Banks, em The
american banker.Nova Iorque, 1969.
38. Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, Programa de Ação Econômica do Governo, Rio de Janeiro, novembro de 1964. Dois anos depois, falando na Universidade Mackenzie, de
São Paulo, Campos insistia: “Já que as economias em processo de organização não dispõem de
recursos para se dinamizarem, pelo simples fato de que se os tivessem não estariam em atraso,
é lícito aceitar , o concurso de todos quantos querem correr conosco os riscos da aventura
maravilhosa do progresso, para receberem dele uma parte dos frutos” (22 de novembro de 1966).
158
previa que, como resposta a sua política benfeitora, os capitais afluiriam do exterior para
impulsionar o desenvolvimento do Brasil e contribuir para sua estabilização econômica e
financeira. Anunciaram-se para 1965 novas inversões diretas, de origem estrangeira, de
cem milhões de dólares. Chegaram a 70. Para os anos seguintes, assegurava-se, o nível
superaria as previsões de 1965, porém as convocatórias foram inúteis. Em 1967, entraram
76 milhões; a evasão por lucros e dividendos, assistência técnica, patentes, royalties ou
regalias e uso de marcas superou em mais de quatro vezes a nova invasão. E a estas
sangrias tem-se que agregar, ainda, as remessas clandestinas. O Banco Central admite
que, fora das vias legais, emigraram do Brasil 120 milhões de dólares em 1967.
O que se foi é, como se vê, infinitivamente maior do que entrou. Definitivamente, as
novas cifras de inversões diretas nos anos chaves da desnacionalização industrial - 1965,
1966 e 1967 - estiveram abaixo do nível de 1961 39.As inversões na indústria congregam a
maior parte dos capitais norte-americanos no Brasil, porém somam menos de 4% do total
das inversões dos Estados Unidos nas manufaturas mundiais. As da Argentina chegam
apenas a 3%; as do México a 3,5%. A digestão dos maiores parques industriais da América
Latina não exigiu grandes sacrifícios de Wall Street. Trazem poucos dólares e levam muitos.
“O que caracteriza o capitalismo moderno, no que impera o monopólio, é a exportação de capital”, escrevera Lênin. Em nossos dias, como notaram Baran e Sweezy, o imperialismo importa capitais dos países onde opera. No período 1950-67, as novas inversões
norte-americanas na América Latina totalizaram, sem incluir os lucros reinvestidos, US$
3.921 milhões. No mesmo período, os lucros e dividendos remetidos ao exterior pelas
empresas somaram US$ 12.819 milhões. Os ganhos drenados superaram em mais de três
vezes o total dos novos capitais incorporados à região 40.Desde então, segundo a CEPAL,
novamente cresceu a sangria dos lucros, que nos últimos anos excedem em cinco vezes as
inversões novas; Argentina, Brasil e México sofreram os maiores aumentos da evasão. Porém este é um cálculo conservador. Boa parte dos fundos repatriados no conceito de
amortização da dívida correspondente, em realidade, aos lucros de inversões, e as cifras
também não incluem as remessas ao exterior por pagamentos de patentes, royalties e
assistência técnica, nem computam outras transferências invisíveis que costumam esconder por trás dos véus do item “erros e omissões” 41; não têm em conta os lucros que as
corporações recebem ao aumentar os preços dos abastecimentos que proporcionam a suas i
fliaiseao
aumentar também, com igual entusiasmo, seus custos de operação.
A imaginação das empresas faz outro tanto com as próprias inversões. De fato, como
a vertigem do progresso tecnológico abrevia cada vez mais os prazos de renovação do
capital fixo nas economias avançadas, a grande maioria das instalações e equipamentos
fabris exportados aos países da América Latina cumpriram anteriormente um ciclo de vida
útil em seus lugares de origem. A amortização, pois, já foi feita, em forma total ou parcial.
Aos efeitos da inversão no exterior, este detalhe não se leva em conta: o valor atribuído às
maquinarias, arbitrariamente elevado, não seria, por certo, nem a sombra do que é, se se
39. “As remessas do Brasil mostram uma alta desde a legislação de 1965”, celebrava o órgão do
Departamento de Comércio dos Estados Unidos. “Aumenta o fluxo de juros, lucros, dividendos
e regalias; os termos e as condições dos empréstimos estão sujeitos ao compromisso com o
Fundo Monetário Internacional.” International Commerce, 24 de abril de 1967.
40. Secretaria-Geral da OEA, op.cit. Já o presidente Kennedy tinha reconhecido que em 1960, “do
mundo subdesenvolvido, que tem necessidade de capitais, temos retirado 1.300 milhões de
dólares, enquanto só exportamos duzentos milhões em capitais de inversões” (discurso ante o
Congresso da AFL-CIO, em Miami, 8 de dezembro de 1961).
41. Os misteriosos erros e omissões somaram, por exemplo, entre 1955 e 1966, mais de um bilhão
de dólares na Venezuela, 743 milhões na Argentina, 714 no Brasil, 310 no Uruguai. Nações
Unidas-CEPAL, op. cit.
159
consideram os freqüentes casos de desgaste prévio. De resto, a matriz não tem porque
aumentar seus gastos para produzir na América Latina os bens que antes vendia de longe.
Os governos se encarregam de evitá-lo, adiantando recursos à filial, que chega a instalar-se
e cumprir sua missão redentora: a filial tem acesso ao crédito local a partir do momento em
que prega um cartaz no terreno onde levantará sua fábrica; conta com privilégios cambiais
para suas importações - compras que a empresa costuma fazer a si mesma - e até pode
assegurar-se, em alguns países, um tipo de câmbio especial para pagar suas dívidas no
exterior, que freqüentemente são dívidas com o ramo financeiro da mesma corporação.
Um cálculo realizado pela revista Fichas 42 indica que as divisas consumidas entre 1961 e
1964 pela indústria automobilística na Argentina são três vezes e meia maiores do que o
montante necessário para construir 17 centrais termelétricas com uma potência total de
mais de dois mil e duzentos megawatts, e equivalem ao valor das importações de maquinarias e equipamentos exigidos durante onze anos pelas indústrias dinâmicas para provocar um incremento anual de 2,8% no produto por habitante.
OS TECNOCRATAS EXIGEM A BOLSA OU A VIDA COM MAIS EFICIÊNCIA DO QUE OS MARINES
Levando muito mais dólares do que trazem, as empresas contribuem para aguçar a
crônica fome de divisas da região; os países “beneficiados” se descapitalizam ao invés de
se capitalizarem. Entra em ação, então, o mecanismo de empréstimo. Os organismos
internacionais de crédito desempenham uma função muito importante no
desmantelamento das fracas cidadelas defensivas da indústria latino-americana de capital nacional, e na consolidação das estruturas neocoloniais. A ajuda funciona como o
filantropo do conto, que colocou uma pata de pau em seu porquinho, mas era porque o
estava comendo aos pouquinhos. O déficit da balança de pagamentos dos Estados Unidos, provocado pelos gastos militares e pela ajuda externa, crítica espada de Dâmocles
sobre a prosperidade norte-americana, possibilita, ao mesmo tempo, esta prosperidade: o império envia ao exterior seus marines para salvar os dólares de seus monopólios quando
correm perigo e, mais eficazmente, difunde também seus tecnocratas e seus empréstimos
para ampliar os negócios e assegurar as matérias-primas e os mercados.
O capitalismo de nossos dias exibe, em seu centro universal de poder, uma identidade evidente dos monopólios privados e do aparato estatal 43. As corporações multinacionais
utilizam diretamente o Estado para acumular, multiplicar e concentrar capitais, aprofundar
a revolução tecnológica, militarizar a economia e, mediante diversos mecanismos, assegurar o êxito da norte-americanização do mundo capitalista. O Eximbank, Banco de Exportação e Importação, a AID, Agência para o Desenvolvimento Internacional, e outros organismos menores cumprem suas funções neste sentido; também operam assim alguns organismos presumivelmente internacionais, nos quais os Estados Unidos exercem sua incontestável hegemonia: o Fundo Monetário Internacional e seu irmão gêmeo, o Banco de
Reconstrução e Desenvolvimento, e o BID, Banco Interamericano de Desenvolvimento,
que se outorgam o direito de decidir a política econômica que hão de seguir os países que
solicitam os créditos, lançando-se com sucesso ao assalto de seus bancos centrais e de seus
ministérios decisivos, se apoderam de todos os dados secretos da economia e das finanças,
redigem e impõem leis nacionais, e proíbem ou autorizam medidas dos governos, cujas
orientações desenham com todos os detalhes.
A caridade internacional não existe; começa em casa, também para os Estados
42. Fichas de investigación económica y social. Buenos Aires, junho de 1965.
43. V. A. Cheprakov, El capitalismo monopolista de Estado, Moscou, s. d.: Paul A Baran e Paul M.
Sweezy, op. cit., e Vivian Trías, op. cit.
160
Unidos. A ajuda externa desempenha, em primeiro lugar, uma função interna: a economia norte-americana se ajuda a si mesma. O próprio Roberto Campos a defendia, nos
tempos em que era embaixador do governo nacionalista de Goulart, como um programa
de ampliação de mercados nos estrangeiro, destinado à absorção dos excedentes
norte-americanos e ao alívio da superprodução na indústria de exportação dos Estados
Unidos 44. O Departamento do Comércio dos Estados Unidos celebrava a boa marcha da
Aliança para o Progresso, pouco depois de nascida, advertindo que criara novos negócios e
fontes de trabalho para empresas privadas de 44 Estados norte-americanos 45. Mais recentemente, em sua mensagem ao Congresso de janeiro de 1968, o presidente Johnson
assegurou que mais de 90% da ajuda externa norte-americana de 1969 se aplicaria no
financiamento de compras nos Estados Unidos, “e intensifiquei pessoalmente e de forma
direta os esforços para incrementar esta porcentagem” 46 . As agências de notícias transmitiram, em outubro de 69, as explosivas declarações do presidente do Comitê Interamericano
da Aliança para o Progresso, Carlos Sanz Santamaria, que expressou em Nova Iorque que
a ajuda se tornara um ótimo negocio para a economia dos Estados Unidos, assim como
para a tesouraria deste país. Desde que, em fins da década de 50, entrou em crise o
desequilíbrio da balança norte-americana de pagamentos, os empréstimos foram condicionados à aquisição dos bens industriais norte-americanos, em geral mais caros do que
outros produtos similares em outras partes do mundo. Mais recentemente, se puseram
em ação certos mecanismos, como as “1istas negativas”, para evitar que os créditos sirvam
à exportação dos artigos que os Estados Unidos podem colocar no mercado mundial, em
boas condições competitivas, sem recorrer ao expediente da autofilantropia. As posteriores “listas positivas” tornaram possível, através da ajuda, a venda de certas manufaturas
norte-americanas a preços que são entre 30 ou 50% mais altos do que as outras fontes
internacionais. A amarração do financiamento -diz a OEA no documento já citado - outorga
“um subsídio geral às exportações norte-americanas”. As empresas fabricantes de maquinarias sofrem sérias desvantagens de preços no mercado internacional, segundo confessa
o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, “a menos que possam aproveitar o
financiamento mais liberal que se pode obter sob os diversos programas de ajuda” 47.
Quando Richard Nixon prometeu desamarrar a ajuda, num discurso em fins de 1969, só se
referiu à possibilidade de que as compras pudessem ser efetuadas, alternativamente, nos
países latino-americanos. Este já era, desde antes, o caso dos empréstimos do Banco
Interamericano de Desenvolvimento, outorgados em seu Fundo para Operações Especiais. Porém a experiência mostra que os Estados Unidos, ou as filiais latino-americanas de
suas corporações, são sempre os provedores finalmente eleitos nos contratos. Os empréstimos da AID, Eximbank e, em sua maioria, os do BID exigem também que não menos da
metade dos embarques se realize em navios de bandeira americana. Os fretes de navios
dos Estados Unidos são tão caros, que alguns casos chegam até a duplicar os preços das
linhas de navegação mais baratas disponíveis no mundo. Normalmente, são também
norte-americanas as empresas que asseguram as mercadorias transportadas, e
norte-americanos os bancos através dos quais as operações se concretizam.
A Organização dos Estados Americanos fez uma reveladora estimativa da magnitude da ajuda real que a América Latina recebe 48. Uma vez separado o joio do trigo, chega-se
à conclusão de que apenas 38% da ajuda nominal pode ser considerada ajuda real. Os
empréstimos para a indústria mineira, comunicações, e os créditos compensatórios, só
44. O Estado de São Paulo, 24 de janeiro de 1963.
45. International Commerce, 4 de fevereiro de 1963.
46. W all Street, 31 de janeiro de 1968.
47. International Commerce, 17 de julho de 1967.
48. Secretaria-Geral da OEA, op. cit.
161
constituem ajuda numa quinta parte do total autorizado. No caso do Eximbank, a ajuda
vai do sul para o norte: o financiamento outorgado pelo Eximbank, diz a OEA, em lugar de
significar ajuda, implica um custo adicional para a região, em virtude dos sobrepreços dos
artigos que os Estados Unidos exportam por seu intermédio.
A América Latina proporciona a maioria dos recursos ordinários de capital do Banco
Interamericano de Desenvolvimento. Porém os documentos do BID levam, além do selo
próprio, o emblema da Aliança para o Progresso, e os Estados Unidos são o único país que
conta com poder de veto em seu seio; os votos dos países latino-americanos, proporcionais
a seus aportes de capital, não reúnem os dois terços de maioria, necessários para as
resoluções importantes. “Se bem que o poder de veto dos Estados Unidos sobre os empréstimos do BID não tem sido usado, a ameaça de utilização do veto para propósitos
influiu sobre as decisões”, reconhecia Nelson Rockefeller, em agosto de 1969, em seu
célebre informe a Nixon. Na maior parte dos empréstimos que concede, o BID impõe as
mesmas condições que os organismos abertamente norte-americanos: a obrigação de
utilizar os fundos em mercadorias dos Estados Unidos e transportar pelo menos a metade
sob a bandeira de listras e estrelas, além da menção expressa da Aliança para o Progresso
na publicidade. O BID determina a política de tarifas e de impostos dos serviços, que toca
com sua varinha de boa fada; decide a quanto deve cobrar-se a água e fixa os impostos
para a rede de esgoto e das moradias, após prévia proposta dos consultores norte-americanos
designados com sua vênia. Aprova os planos das obras, redige as licitações, administra os
fundos e vigia o cumprimento dos mesmos 49. Na tarefa de reestruturar o ensino superior
da região, de acordo com as pautas do neocolonialismo cultural, o BID desempenhou
frutífero papel. Seus empréstimos às universidades bloqueiam a possibilidade de modificar, sem seu conhecimento e sua permissão, as leis orgânicas ou os estatutos, e ao mesmo
tempo impõe determinadas reformas docentes, administrativas ou financeiras. O
secretário-geral da OEA designa o árbitro em casos de controvérsia 50.
Os contratos da Agência para o Desenvolvimento Internacional, AID, não só implicam mercadorias e fretes norte-americanos, mas, além disso, habitualmente proíbem o
comércio com Cuba e Vietnã do Norte e obrigam a aceitar a tutela administrativa de seus
técnicos. Para compensar o desnível de preços entre os tratores ou os fertilizantes dos
Estados Unidos e os que se podem obter, mais baratos, no mercado mundial, impõem a
eliminação dos impostos e taxas aduaneiras para os produtos importados com créditos. A
ajuda da AID inclui jipes e armas modernas destinadas à polícia, para que a ordem interna
dos países possa ser devidamente salvaguardada. Não é em vão que um terço dos créditos
da AID se obtém imediatamente depois de sua aprovação, porém os dois terços restantes
são condicionados ao visto do Fundo Monetário Internacional, cujas receitas normalmente
provocam o incêndio da agitação social. E se por si próprio o FMI não consegue desmontar,
peça por peça, como se desmonta um relógio, todos os mecanismos da soberania, a AID
costuma também exigir, de passagem, a aprovação de determinadas leis ou decretos. A
AID é o veículo principal dos fundos da Aliança para o Progresso. O Comitê Interamericano
da Aliança para o Progresso obteve do governo uruguaio - para não citar mais que um
exemplo dos labirintos da generosidade - a assinatura de um compromisso pelo qual as
receitas e despesas das empresas do Estado, assim como a política oficial em matéria de
tarifas, salários e inversões, passaram ao controle direto destes organismos estrangeiros 51.
49. Por exemplo, no Uruguai, o texto do contrato firmado no dia 21 de maio de 1963 entre o BID
e o governo departamental de Montevidéu, para a ampliação da rede de esgoto.
50. Por exemplo, na Bolívia, o texto do contrato firmado no dia 19 de abril de 1966 entre o BID
e a Universidad Mayor de San Simón, em Cochabamba, para melhorar o ensino das ciências
agrícolas.
51. Documento publicado pelo diário Ya, Montevidéu, 28 de maio de 1970.
162
Porém, as condições mais prejudiciais raramente figuram nos textos dos contratos e dos
compromissos públicos, e se escondem nas secretas disposições complementares. O parlamento uruguaio nunca soube que o governo aceitara, em março de 1968, pôr um limite
às exportações de arroz neste ano, para que o país pudesse receber farinha, milho e sorgo,
ao amparo da lei de excedentes agrícolas dos Estados Unidos.
Muitas adagas brilham sob a capa da assistência aos países pobres. Teodoro Moscoso,
que fora administrador geral da Aliança para o Progresso, confessou: “... pode ocorrer que
os Estados Unidos necessitem do voto de um determinado país na Organização das
Nações Unidas, ou na OEA, e é possível que, então, o governo deste país - seguindo a
consagrada tradição da fria diplomacia peça um preço em troca” 52.Em 1962, o delegado
do Haiti na Conferência de Punta del Este trocou seu voto por um aeroporto novo, e assim
os Estados Unidos obtiveram a maioria necessária para expulsar Cuba da Organização dos
Estados Americanos 53.O ex-ditador da Guatemala, Miguel Ydígoras Fuentes, declarou
que teve de ameaçar os norte-americanos com a negativa do voto de seu país nas conferências da Aliança para o Progresso, para que eles cumprissem sua promessa de comprar
mais açúcar 54.Poderia parecer, à primeira vista, paradoxal que o Brasil tenha sido o país
mais favorecido pela Aliança para o Progresso durante o governo nacionalista de João
Goulart (1961-64). Porém o paradoxo acaba, mal se conheça a distribuição interna da
ajuda recebida: os créditos da Aliança foram semeados como minas explosivas no caminho de Goulart. Carlos Lacerda, governador da Guanabara e, então, líder da extrema
direita, obteve sete vezes mais dólares do que todo o nordeste: o Estado da Guanabara,
com seus escassos quatro milhões de habitantes, pôde assim inventar formosos jardins
para turistas nas bordas da baía mais espetacular do mundo, e os nordestinos continuaram sendo a chaga viva da América Latina. Em junho de 1964, já triunfante o golpe de
Estado que instalou Castelo Branco no poder, Thomas Mann, subsecretário de Estado para
Assuntos Interamericanos e braço-direito do presidente Johnson, explicou: “Os Estados
Unidos distribuíram entre os eficientes governadores de certos estados brasileiros a ajuda
que era destinada ao governo de Goulart, pensando financiar assim a democracia: Washington não deu dinheiro algum para a balança de pagamentos ou orçamento federal,
porque isso podia beneficiar diretamente o governo central ” 55. A administração
norte-americana resolvera negar qualquer tipo de cooperação ao governo de Belaúnde
Terry, no Peru, “a menos que desse as desejadas garantias de que continuaria uma política
indulgente para com a International Petroleum Company. Belaúde recusou e, como resultado, em fins de 1965 não tinha recebido ainda sua parte na Aliança para o Progresso” 56.
Posteriormente, como se sabe, Belaúnde transou. E perdeu o petróleo e o poder: obedecera para sobreviver. Na Bolívia, os empréstimos norte-americanos não proporcionaram um
só centavo para que o país pudesse erguer suas próprias fundições de estanho, de modo
que o estanho em bruto continuou viajando a Liverpool e daí, já elaborado, a Nova Iorque,
em troca, a ajuda fez nascer uma burguesia comercial parasitária, aumentou a burocracia,
52. Panorama, Centro de Estudos e Documentos Sociais, México, novembro-dezembro de 1965.
53. Também se prometeu à ditadura de Duvalier, em sinal de gratidão, uma rodovia em direção ao
aeroporto. Irving Pflaum (Arena of decision, latin american crisis, Nova Iorque, 1954) e John Gerassi
(The great fear in laffin america, Nova Iorque, 1965) coincidem em que este foi um caso de suborno.
Porém, os Estados Unidos não cumpriram suas promessas ao Haiti. Duvalier,Papa-Doc, guardião
da morte na mitologia vudu, se sentiu ludibriado. Segundo dizem, o velho bruxo invocou a ajuda
do Diabo para vingar-se de Kennedy, e sorriu feliz quando os balaços de Dallas puseram fim à vida
do presidente norte-americano.
54. Reportagem de Georgie Anne Geyer, The Miami Herald, 24 de dezembro de 1966.
55. Declaração ante a subcomissão da Câmara dos Representantes. Citado por Nelson Werneck
Sodré, História Militar do Brasil, Rio de Janeiro, 1965.
56. Frederick B. Pike, ne modern history of Peru, Nova Iorque, 1968.
163
levantou grandes edifícios e estendeu modernas autopistas e outros elefantes brancos,
num país que disputa com o Haiti a mais alta taxa de mortalidade infantil da América
Latina. Os créditos dos Estados Unidos ou seus organismos internacionais negavam à
Bolívia o direito de aceitar as ofertas da União Soviética, Tchecoslováquia e Polônia para
criar uma indústria petroquímica, explorar ou fundir o zinco, chumbo e as jazidas de ferro,
e instalar fornos de fundição de estanho e de antimônio. Em compensação, a Bolívia ficou
obrigada a importar produtos exclusivamente dos Estados Unidos. Quando, por fim, caiu
o governo do Movimento Nacionalista Revolucionário, devorado em sua base pela ajuda
norte-americana, o embaixador dos Estados Unidos, Douglas Henderson, começou a assistir pontualmente às reuniões do gabinete do ditador René Barrientos 57.
Os empréstimos oferecem indicações tão precisas como as de um termômetro para
avaliar o clima geral dos negócios de cada país, e ajudam a despejar as nuvens políticas ou as
tormentas revolucionárias do transparente céu dos milionários. “Os Estados Unidos vão
concentrar seu programa de ajuda econômica nos países que mostrem a maior inclinação
para favorecer o clima de inversões, e retirar a ajuda aos outros países, em que uma
performance satisfatória não seja demonstrada”, anunciaram, em 1963, diversos homens
de negócios, encabeçados por David Rockefeller 58. O texto da lei de ajuda externa se faz
categórico ao dispor a suspensão da assistência a qualquer governo que tenha “nacionalizado, expropriado ou adquirido a propriedade ou o controle da propriedade pertencente a
qualquer cidadão dos Estados Unidos ou qualquer corporação, sociedade ou associação”,
que pertençam a cidadãos norte-americanos numa proporção não inferior à metade 59.
Não é em vão que o Comitê de Comércio da Aliança para o Progresso conta, entre seus
membros mais distintos, com os mais altos executivos do Chase Manhatann, do City
Bank, Standard Oil, Anaconda e da Grace. A AID abre caminho para os capitalistas norteamericanos de múltiplas maneiras; entre outras, exigindo a aprovação dos acordos de
57. Armando Canelas, Radiografia de Ia Alianza para el Progresso, La Paz, 1963; Mariano Baptista
Gumucio e outros, Guerilleros y generales sobre Bolívia, Buenos Aires, 1968; e John Gunther, Inside
South America, Nova Iorque, 1967.
58. A filha de David, Peggy Rockefeller, decidiu pouco depois viver numa favela do Rio de Janeiro
chamada Jacarezinho. Seu pai, um dos homens mais ricos do mundo, viajou ao Brasil para
atender a seus multibiliolinários negócios e foi pessoalmente à humilde casa de família que
Peggy tinha escolhido, provou a humilde comida, comprovou com espanto que entrava água na
casa quando chovia e que os ratos passavam por debaixo da porta. Ao ir embora, deixou sobre a
mesa um cheque de vários zeros. Peggy morou ali durante alguns meses, colaborando com os
Peace Corps. Os cheques continuaram chegando. Cada um deles equivalia ao que o dono desta
casa podia ganhar em dez anos de trabalho. Quando Peggy finalmente se foi, a casa e a família de
Jacarezinho tinham-se transferido. Nunca a favela conhecera opulência. Peggy tinha vindo do
céu em linha reta. Era como ganhar todas as loterias juntas. Então, o dono da casa onde Peggy
tinha morado passou a ser o mascote do regime. Reportagens na televisão e no rádio, artigos nos
jornais e revistas, a enorme publicidade: ele era um exemplo que todos os brasileiros deviam
imitar.Tinha saído da miséria graças a sua inquebrantável vontade de trabalho e sua capacidade
de Poupança: vejam, vejam, ele não gasta o que ganha em cachaça, agora tem televisão, geladeira,
móveis novos, as crianças calçam sapatos. A propaganda esquecia um pequeno detalhe: a visita
da fada Peggy.Porque o Brasil tem cem milhões de habitantes e o milagre se deu apenas para um
deles.
59. Hickenlooper Amendment, Section 620, Foreign Assistance Act. Não é por acaso que este
texto legal se refira explicitamente às medidas adotadas contra os interesses norte-americanos
“a primeiro de janeiro de 1962 ou em data posterior”. No dia 16 de fevereiro de 1962, o governador Leonel Brizola tinha expropriado a companhia telefônica do estado brasileiro do Rio Grande
do Sul, subsidiária da International Telephone and Telegraph Corporation, e esta decisão endurecera as relações entre Washington e Brasília. A empresa não aceitava a indenização proposta pelo
governo.
164
garantia das inversões contra as possíveis perdas por guerras, revoluções, insurreições ou
crises monetárias. Em 1966, segundo o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, os
investidores privados norte-americanos receberam estas garantias em quinze países da
América Latina, por cem projetos que somaram mais de US$ 300 milhões, dentro do
Programa de Garantia de Inversões da AID 60.
ADELA não é uma canção da Revolução mexicana, mas o nome de um consórcio
internacional de inversões. Nasceu por iniciativa do First National City Bank de Nova
Iorque, da Standard Oil de Nova Jérsei e da Ford Motor Co. O grupo Mellon se incorporou
com entusiasmo e também poderosas empresas européias porque, no dizer do senador
Jacob Javits, “a América Latina proporciona uma excelente oportunidade para que os
Estados Unidos, ao convidar a Europa para entrar,mostrem que não buscam uma posição
de domínio ou exclusividade...” 61 .Pois bem, em seu informe anual de 1968, a ADELA
agradeceu muito especialmente ao Banco Interamericano de Desenvolvimento os empréstimos recebidos para impulsionar os negócios do consórcio na América Latina, e no mesmo sentido saudou
a obra da Corporação para o Financiamento Internacional, um dos braços do Banco Mundial. Com ambas instituições, a ADELA está em contato contínuo para evitar a duplicação
dos esforços e para avaliar as oportunidades de investimento 62 . Muitos exemplos poderiam ser dados de outras santas alianças semelhantes. Na Argentina as cotas
latino-americanas aos recursos ordinários do BID serviram para beneficiar, com empréstimos muito convenientes, a empresas como Petrosur S.A.I.C., filial da Electric Bond and
Share, com mais de dez milhões destinados à construção de um complexo petroquímico,
ou para financiar uma fábrica de peças de automóveis a Armetal S.A., filial de The Budd
Co., Filadélfia, USA 63. Os créditos da AID possibilitaram a expansão da fábrica de produtos
químicos da Atlântica Riclifield Co., no Brasil, e o Eximbank proporcionou generosos empréstimos à ICOMI, filial da Bethlehem Steel neste mesmo país. Graças às cotas da
Aliança para o Progresso e do Banco Mundial, a Phillips Petroleum Co. pôde gerar em
1966, também no Brasil, o maior complexo de fábricas de fertilizantes da América Latina.
Tudo se computa como benesses da ajuda, e tudo pesa sobre a dívida externa dos países
agraciados pela deusa Fortuna.
Quando Fidel Castro se dirigiu ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, nos primeiros tempos da Revolução cubana, para reconstruir as reservas de divisas
estrangeiras esgotadas pela ditadura de Batista, ambos organismos lhe responderam que
primeiro devia aceitar um programa de estabilização que implicava, como em todas as
partes, o desmantelamento do Estado e a paralisia das reformas de estrutura 64. O Banco
Mundial e o FMI atuam estreitamente ligados e a serviço de fins comuns; nasceram
juntos, em Bretton Woods. Os Estados Unidos contam com a quarta parte dos votos no
Banco Mundial; os vinte e dois países da América Latina reúnem menos da décima parte.
O Banco Mundial responde aos Estados Unidos como um trovão ao relâmpago.
Segundo explica o Banco, a maior parte de seus empréstimos é dedicada à construção de rodovias e outras vias de comunicação e ao desenvolvimento de fontes de energia
elétrica, “que são uma condição essencial para o crescimento da empresa privada” 65.
Estas obras de infra-estrutura facilitam, de fato, o acesso das matérias-primas aos portos e
aos mercados mundiais, e servem ao progresso da indústria, já desnacionalizada, dos
países pobres. O Banco Mundial crê que, “em maior medida praticável, a indústria com60. International Commerce, 10 de abril de 1970.
61. Citado por NACLA Newsletter,maio-junho de 1970.
62. ADELA Annual Report, 1968, citado por NACLA, op. cit.
63. Banco Interamericano de Desenvolvimento, Décimo informe anual, 1969, W ashington, 1970.
64. Harry Magdoff, La era del imperialismo, Monthly Review,seleções castelhano, janeiro-fevereiro/
65. The World Bank, IFC e IDA, Policies and operations, W ashington, 1962.
165
petitiva deveria ser deixada à empresa privada. Isto não significa que o Banco exclua
absolutamente os empréstimos às indústrias de propriedade do Estado, porém só assumirá estes financiamentos nos casos em que o capital privado não seja acessível, e se se
assegura a satisfação, ao fim dos exames, de que a participação do governo será compatível com a eficiência das operações e não terá um efeito indevidamente restritivo sobre a
expansão da iniciativa e empresa privadas”. Condicionam-se os empréstimos à aplicação
da receita estabilizadora do FMI e ao pagamento pontual da dívida externa; os empréstimos do Banco são incompatíveis com a adoção de políticas de controle dos lucros das
empresas, “tão restritivas que os lucros não podem operar sobre uma base clara, ainda
menos impulsionar a expansão futura” 66. Desde 1968,o Banco Mundial desviou grande
parte de seus empréstimos na promoção do controle da natalidade, nos planos de educação, nos negócios agrícolas e no turismo.
Como todas as demais máquinas caça-níqueis das altas finanças internacionais, o Banco
constitui também um eficaz instrumento de extorsão , em benefício de poderes muito concretos.
Seus sucessivos presidentes foram, desde 1946, eminentes homens de negócios dos Estados Unidos. Eugene R. Black, que dirigiu o Banco desde 1949 até 1962, ocupou posteriormente as diretorias de numerosas corporações privadas, uma das quais, a Electric Bond
and Share, é o mais poderoso monopólio de energia elétrica do planeta 67. Casualmente, o
Banco Mundial obrigou a Guatemala, em 1966, a aceitar um acordo honroso com a Electric
Bond and Share, como condição prévia para colocar em prática um projeto hidrelétrico, o
de Jurún-Marinalá: o acordo honroso consistia no pagamento de uma enorme indenização
pelos danos que a empresa pudesse sofrer na bacia que lhe tinha sido gratuitamente
outorgada poucos anos atrás, e, além disso, incluía um compromisso do Estado no sentido
de não impedir que a Bond and Share continuasse fixando livremente as tarifas da eletricidade no país. Casualmente, também, o Banco Mundial impôs à Colômbia, em 1967, o
pagamento de US$ 36 milhões de indenização à Compañia Colombiana de Eletricidad,
filial da Bond and Share, por suas envelhecidas maquinarias recém nacionalizadas. O
Estado colombiano comprou, assim, o que lhe pertencia, porque a concessão à empresa
vencera em 1944. Três presidentes do Banco Mundial integram a constelação de poder dos
Rockefeller. John J. McCIoy presidiu o organismo entre 1947 e 1949, e pouco depois passou
à diretoria do Chase Manhattan Bank. Sucedeu-o, à frente do Banco Mundial, Eugene R.
Black, que tinha feito caminho inverso: vinha da diretoria do Chase. George D. Woods,
outro homem de Rockefeller, herdou a presidência da Black em 1963. Casualmente, o
Banco Mundial participa de forma direta, com um décimo do capital e substanciais empréstimos, da maior aventura dos Rockefeller no Brasil: a Petroquímica União, o complexo
petroquímico mais importante da América do Sul.
Mais da metade dos empréstimos que a América Latina recebe provém, com prévia
luz verde do FMI, dos organismos privados e oficiais dos Estados Unidos; os bancos internacionais somam também uma porcentagem importante. O FMI e o Banco Mundial
exercem pressões cada vez mais intensas para que os países latino-americanos remodelem suas economias e suas finanças em função do pagamento da dívida externa. O
cumprimento de compromissos contraídos, chave da boa conduta internacional, se torna
cada vez mais difícil e se faz ao mesmo tempo mais imperioso. A região vive o fenômeno
que os economistas chamam de explosão da dívida. É o círculo vicioso do estrangulamento:
os empréstimos aumentam e as inversões se sucedem e, em conseqüência, crescem os
66. The World Bank, IFC e IDA, op. cit.
67. “Nossos programas de ajuda ao estrangeiro... estimulam o desenvolvimento de novos mercados para as sociedades americanas... e orientam a economia dos beneficiários para um sistema de
livre empresa no que as firmas americanas podem prosperar”. Eugene R. Black em Columbia
Journal of World Business, vol. I, 1965.
166
pagamentos por amortizações, juros, dividendos e outros serviços; para cumprir com esses
pagamentos se recorre a novas injeções de capital estrangeiro, que geram compromissos
maiores, e assim sucessivamente. O serviço da dívida devora uma proporção crescente
das receitas das exportações, por si impotentes - por obra da inflexível deterioração dos
preços - para financiar as importações necessárias; os novos empréstimos são imprescindíveis, como o ar aos pulmões, para que os países possam ser abastecidos. Uma quinta
parte das exportações era dedicada, em 1955, ao pagamento de amortizações, juros e
lucros de inversões; a proporção continuou crecendo e já está próxima a explodir. Em 1968,
os pagamentos representaram 37% da exportações 68. Se se continuar recorrendo ao capital estrangeiro para cobrir a brecha de comércio e para financiar a evasão dos ganhos das
inversões imperialistas, em 1980 nada menos do que 80% das divisas ficará em mãos dos
credores estrangeiros, e o montante total da dívida chegará a exceder em seis vezes o valor
das exportações 69. O Banco Mundial previu que em 1980 os pagamentos de serviços de
dívida anulariam por completo o influxo de novo capital estrangeiro para o mundo subdesenvolvido, porém já em 1965 a afluência de novos empréstimos e de novas inversões
para a América Latina foi menor do que o capital drenado da região, só por amortizações e
juros, para cumprir com os compromissos anteriormente contraídos.
A INDUSTRIALIZAÇÃO NÃO ALTERA A ORGANIZAÇÃO DA DESIGUALDADE NO MERCADO MUNDIAL
O intercâmbio de mercadorias constitui, junto com as inversões diretas no exterior e
os empréstimos, a camisa-de-força da divisão internacional do trabalho. Os países do
chamado Terceiro Mundo trocam entre si pouco mais do que a quinta parte de suas
exportações, e dirigem as três quartas partes do total de suas vendas exteriores para os
centros imperialistas, dos quais são tributários 70. Em sua maioria, os países latino-americanos
se identificam, no mercado mundial, com uma só matéria-prima ou com um só alimento
71
. A América Latina dispõe de lã, algodão e fibras naturais em abundância, e conta com
uma indústria têxtil já tradicional, mas apenas participa de 0,6% das compras de fios e
tecidos da Europa e Estados Unidos. A região foi condenada a vender produtos primários,
para dar trabalho às fábricas estrangeiras; acontece que estes produtos “são exportados,
em sua grande maioria, por fortes consórcios com vinculações internacionais, que dispões
das relações necessárias nos mercados mundiais para colocar seus produtos nas condições
mais convenientes” 72, porém nas mais convenientes paraeles, que no geral expressam os
68. Nações Unidas, CEPAL,op. cit. Estudio económico de América Latina, 1969, Nova Iorque-Santiago
do Chile, 1970.
69. Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social, La brecha comercial e Ia
integración latino-americana, México-Santiago do Chile, 1967.
70. Pierre Jalée, Le pillage du Tiers Monde, Paris, 1966.
71. No triênio 1966-68, o café proporcionou à Colômbia 64% de suas receitas totais para exportações; ao Brasil, 43%; a El Salvador, 48%; a Guatemala, 42% e a Costa Rica 36%. A banana abarcou
61% das divisas do Equador, 54% das do Panamá e 47% das de Honduras. Nicarágua dependeu do
algodão em 42%.. A República Dominicana do açúcar, em 56%, Carnes, couros e lã proporcionaram ao Uruguai 83% de suas divisas e à Argentina, 38%. O cobre somou 74% das rendas comerciais do Chile e 26% do Peru; o estanho representou 54% do valor das exportações da Bolívia, e a
Venezuela obteve 93% de suas divisas com o petróleo. Nações Unidas, CEPAL,op. cit.
Quanto ao México, “depende em mais de 30% de três produtos, em mais de 40% de cinco
produtos e em mais de 50% de dez produtos, em sua grande maioria não manufaturados, que têm
como principal saída o mercado norte-americano”. Pablo González Casanova, La democracia en
México, México, 1965.
72. Marco D.Pollner no volume coletivo de INTAL-BID, Los empresarios y Ia integración de América
Latina, Buenos Aires. 1967.
167
interesses dos países compradores: istoé,aospreçosmaisbaixos. Há nos mercados internacionais um virtual monopólio da demanda de matérias-primas e da oferta de produtos
manufaturados; ao inverso, os ofertantes de produtos básicos, que são também compradores de bens acabados, operam dispersivamente: alguns, os fortes, aluam congregados
em torno da potência dominante, os Estados Unidos, que consome quase tanto como todo
o resto do planeta; os outros, os fracos, operam isolados, competindo, oprimidos contra
oprimidos, entre si. Não existe nos chamados mercados internacionais o chamado jogo da
oferta e da procura, mas sim a ditadura de um sobre outro, sempre em benefício dos
países capitalistas desenvolvidos. Os centros de decisão, onde os preços são fixados, se
encontram em Washington, Nova Iorque, Londres, Paris, Amsterdam, Hamburgo; nos
conselhos de ministros e na bolsa. De pouco ou nada serve que se tenham assinado, com
pompa e estrépito, acordos internacionais para proteger os preços do trigo (1949), do
açúcar (1953), do estanho (1956), do azeite de oliva (1956), e do café (1962). Basta
contemplar a curva descendente do valor relativo deste produtos, para comprovar que os
acordos não foram mais do que simbólicas desculpas que os países fortes apresentaram
aos países fracos quando os preços de seus produtos alcançaram níveis escandalosamente
baixos. Cada vez vale menos o que a América Latina vende e, comparativamente, cada vez
é mais caro o que compra.
Com o produto de venda de 22 novilhos, o Uruguai podia comprar um trator Ford
Major em 1954; hoje, necessita mais do dobro. Um grupo de economistas chilenos que
realizou um informe para a central sindical estimou que, se o preço das exportações
latino-americanas tivesse crescido desde 1928 no mesmo ritmo que cresceu o preço das
importações, a América Latina teria obtido, entre 1958 e 1967, US$ 57 bilhões a mais do
que recebeu, neste período, por sua vendas ao exterior 73. Sem remontar tão longe no
tempo, e tomando como base os preços de 1950, as Nações Unidas estimam que a América Latina perdeu, por causa da deterioração do intercâmbio, mais de US$ 18 bilhões na
década transcorrida entre 1955 e 1964. Posteriormente, a queda continuou. A brecha de
comércio - diferença entre as necessidades de importação e receitas que se obtêm das
exportações - será cada vez maior se as atuais estruturas do comércio exterior não mudarem: cada ano que passa, cava-se mais profundamente este abismo para a América Latina. Se a região se propusesse a conseguir, nos próximos tempos, um ritmo de desenvolvimento ligeiramente superior ao dos últimos quinze anos, que foi baixíssimo, enfrentaria
necessidades de importação que excederiam largamente o previsível crescimento de suas
receitas de divisas por exportações. Segundo os cálculos do ILPES 74, a brecha do comércio
ascenderia, em 1975, a US$ 4.600 milhões, e em 1890 aos US$ 8.300 milhões. Assim,
chapéu na mão, os países latino-americanos baterão nas portas dos emprestadores de
dinheiro internacionais.
A. Emmanuel sustenta 75 que a maldição dos preços baixos não pesa sobre determinados
produtos, mas sim sobre determinados países. Afinal, o carvão, um dos principais produtos de
exportação da Inglaterra até pouco tempo, não é menos primário do que a lã ou o cobre, e
o açúcar contém mais elaboração do que o uísque escocês ou os vinhos franceses; a Suécia
e o Canadá exportam madeira, uma matéria-prima, a preços excelentes. O mercado
mundial aprofunda a desigualdade do comércio, segundo Emmanuel, na troca de mais
horas de trabalho dos países pobres por menos horas de trabalho dos países ricos: a chave da exploração reside em que existe uma enorme diferença nos níveis de salários de uns e outros países, e que essa
diferença não está associada a diferenças da mesma magnitude na produtividade do trabalho. São
73. Central Única de Trabalhadores do Chile, América Latina, un mundo que ganar,Santiago do
Chile, 1968.
74. Instituto Latino-americano de Planificação Econômica e Social, op. cit.
75. A. Emmanuel, El cambio desigual. Siglo XXI. México.
168
os salários baixos os que, segundo Emmanuel, determinam os preços baixos, e não o
contrário: os países pobres exportam sua pobreza, se empobrecendo cada vez mais, ao
mesmo tempo que os ricos obtêm o resultado inverso. Segundo as estimativas de Samir
Amin 76, se os produtos exportados pelos países subdesenvolvidos em 1966 tivessem sido
produzidos pelos paises desenvolvidos com as mesmas técnicas, porém com seus altos
níveis salariais, os preços teriam variado a tal ponto que os países subdesenvolvidos teriam
recebido US$ 14 bilhões a mais.
É certo que os países ricos utilizaram e utilizam barreiras alfandegárias para proteger
seus altos salários internos nos itens que não poderiam competir com os mais pobres. Os
Estados Unidos empregam o Fundo Monetário, o Banco Mundial e os acordos alfandegários do GATT, para impor na América Latina a doutrina do comércio livre e a livre concorrência, obrigando o abatimento dos câmbios múltiplos, do regime de quotas e licenças de
importação e exportação, e de taxas e gravames de alfândega; porém, não seguem de
modo algum o exemplo. Do mesmo modo que desalentam fora das fronteiras a atividade
do Estado, enquanto que dentro das fronteiras o Estado norte-americano protege os monopólios, mediante um vasto sistema de subsídios e preços privilegiados, os Estados
Unidos praticam também um agressivo protecionismo, com tarifas altas e restrições rigorosas, em seu comércio exterior. Os direitos de alfândega se combinam com outros impostos e com quotas e embargos 77. O que ocorreria com a prosperidade dos pecuaristas do
Meio Oeste se os Estados Unidos permitissem o acesso a seu mercado interno, sem tarifas
nem imaginativas proibições sanitárias, da carne de melhor qualidade e menor preço
produzida pela Argentina e Uruguai? O ferro ingressa livremente no mercado
norte-americano, mas se for convertido em lingotes paga 16 centavos por tonelada, e a
tarifa sobe em proporção direta ao grau de elaboração; isto também ocorre com o cobre e
com uma infinidade de produtos: basta secar as bananas, cortar o tabaco, adoçar o cacau,
serrar a madeira ou extrair o caroço das tâmaras para que as taxas sejam descarregadas
implacavelmente sobre estes produtos 78. Em janeiro de 1969, o governo dos Estados
Unidos dispôs a virtual suspensão das compras de tomates do México, que dão trabalho a
170 mil camponeses do Estado de Sinaloa, até que os cultivadores norte-americanos de
tomate da Flórida conseguissem que os mexicanos aumentassem o preço para evitar a
concorrência.
Porém, a maior contradição entre a teoria e a prática do comércio mundial explodiu
quando a guerra do café solúvel ganhou, em 1967, a luz do dia. Então se pôs em evidência que
só os países ricos têm o direito de explorar em seu beneficio as “vantagens naturais comparativa”- que
determinam, em teoria, a divisão internacional do trabalho.O mercado mundial de café solúvel,
de assombrosa expansão, está em mãos da Nestlé e da General Foods; calcula-se que não
passará muito tempo antes de que estas duas grandes empresas abasteçam mais da
metade do café que se consome no mundo. Os Estados Unidos e a Europa compram o café
em grãos do Brasil e da África; concentram-no em suas fábricas industriais e o vendem
transformado em café solúvel, a todo mundo. O Brasil, que é o maior produtor mundial de
café, não tem, todavia, o direito de competir, exportando seu próprio café solúvel, para
aproveitar seus custos mais baixos e para dar destino ao excedente de sua produção que
antes se destruía, e agora se armazena nos depósitos do Estado. O Brasil só tem o direito
de fornecer a matéria-prima às fábricas do exterior. Quando as fábricas brasileiras - apenas
76. Citado por André Gunder Frank, Toward a theory of capitalist underdevelopment, introdução à
antologia Underdevelopment. Inédito.
77. L. Delwart (The Future of latin american exports to the United States: 1965 and 1970, Nova Iorque,
1970) publica uma lista muito eloqüente das restrições em vigência à importação de produtos
latino-americanos.
78. Harry Magdoff, op. cit.
169
cinco num total de cento e dez no mundo - começaram a oferecer café solúvel no mercado
internacional, foram acusadas de concorrência desleal. Os países ricos puseram a boca no
mundo, e o Brasil aceitou uma imposição humilhante: aplicou a seu café solúvel um
imposto interno tão alto que o colocou fora de combate no mercado norte-americano 79.
A Europa não fica atrás na aplicação de barreiras aduaneiras, tributárias e sanitárias
contra os produtos latino-americanos. O Mercado Comum descarrega impostos de importação, para defender os altos preços internos de seus produtos agrícolas, e ao mesmo
tempo subsidia estes produtos agrícolas para poder exportá-los a preços competitivos: com
o que obtém com os impostos financia subsídios. Assim, os países pobres pagam a seus compradores
ricos para que lhes façam concorrência. Um quilo de carne de lombo de novilho vale, em
Buenos Aires ou em Montevidéu, cinco vezes menos do que quando pende de um gancho
num açougue de Hamburgo ou Munique 80. “Os países desenvolvidos querem permitir
que lhes vendamos jatos e computadores, porém que nunca estejamos em condições de
produzir com vantagens”, se queixava, com razão, um representante do governo chileno
numa conferência internacional 81.
As inversões imperialistas na área industrial na América Latina não modificaram em
absoluto os termos de seu comércio internacional. A região continua estrangulando-se no
intercâmbio de seus produtos primários pelos produtos especializados das economias centrais. A
expansão das vendas das economias norte-americanas, radicadas ao sul do rio Bravo, se
concentra nos mercados locais e não na exportação. Pelo contrário, a proporção correspondente à exportação tende a diminuir: segundo a OEA, as filiais norte-americanas exportam
uns 10% de suas vendas totais em 1962, e só 7,5% três anos mais tarde 82.O comércio dos
produtos industrializados pela América Latina só cresce dentro da América Latina: em
1955, as manufaturas compreendiam uma décima parte do intercâmbio entre os países
da área, e em 1966 a proporção tinha subido a 30% 83.
O chefe de uma missão técnica norte-americana no Brasil, John Abbink, antecipara
profeticamente, em 1950: “Os Estados Unidos devem estar preparados para guiar a inevitável industrialização dos países não desenvolvidos, se se deseja realmente evitar o golpe
de um desenvolvimento econômico intensíssimo fora da égide norte-americana... A industrialização, se não e controlada de alguma maneira, levará a uma substancial redução
dos mercados norte-americanos de exportação” 84. De fato, por acaso a industrialização,
ainda que seja teleguiada de fora, não substitui com produção nacional as mercadorias que
antes cada país devia importar do exterior? Celso Furtado adverte que, na medida em que
a América Latina avança na substituição de importações de produtos mais complexos, “a
dependência de insumos provenientes das matrizes tende a aumentar”. Entre 1957 e
1964, se duplicaram as vendas das filiais norte-americanas, enquanto suas importações,
sem incluir os equipamentos, multiplicaram-se por mais de três. “Essa tendência parecia
indicar que a eficácia substitutiva é uma função decrescente da expansão industrial contro79. Revista Fator,Rio de Janeiro, novembro-dezembro de 1968.
80. Carlos Quijano, Las víctimas del sistema, em Marcha, Montevidéu, 23 de outubro de 1970.
81. New York Times, 3 de abril de 1968.
82. Secretaria Geral da OEA, op. cit. Uma ampla sondagem às subsidiárias norte-americanas no
México, realizada em 1969 a pedido da National Chamber Foundation, revelou que as matrizes dos
Estados Unidos proibiam vender seus produtos no exterior à metade das empresas que responderam o
questionário. As filiais não tinham sido instaladas para isto. Miguel S. Wionczek, La inversión
extranjera privada en México: problemas y perspectivas, em Comercio exterior,México, outubro de 1970.
A relação entre as exportações de manufaturas e o produto industrial não superou 2%, em
1963, na Argentina, Brasil, Peru, Colômbia e Equador; foi de 3,7% no México e de 3,2% no Chile
(Aldo Ferrer, no já citado volume coletivo de INTAL-BID).
83. Nações Unidas-CEPAL. op. cit,
84. Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 23 de março de 1950.
170
lada por companhias estrangeiras” 85.A dependência não é rompida, mas muda de qualidade:
os Estados Unidos vendem, agora, na América Latina, uma proporção maior de produtos
mais sofisticados e de alto nível tecnológico. “A longo prazo - opina o Departamento de
Comércio -, à medida que cresce a produção industrial mexicana, se criam maiores oportunidades para exportações adicionais dos Estados Unidos...” 86. Argentina, México e Brasil
são muito bons compradores de maquinaria industrial, maquinaria elétrica, motores, equipamentos e sobressalentes de origem norte-americana. As filiais das grandes corporações
se abastecem em suas casas-matrizes, a preços deliberadamente caros. Referindo-se aos
custos de instalação da indústria automobilística estrangeira na Argentina, Viñas e
Gastiazoro dizem, neste sentido: “Pagando estas importações a preços muito elevados,
enviavam fundos para o exterior. Em muitos casos, estes pagamentos eram tão importantes que as empresas não só davam prejuízos [apesar do preço a que se vendiam os
automóveis], como também começaram a falir, esfumando-se rapidamente o valor das
ações colocadas no país... O resultado foi que das 22 empresas radicadas ficam atualmente
dez, algumas à beira da falência...” 87.
Para maior glória do poder mundial das corporações, as subsidiárias dispõem assim
das escassas divisas dos países latino-americanos. O esquema de funcionamento da indústria satelitizada, em relação com seus distantes centros de poder, não se distingue
muito do tradicional sistema de exploração imperialista dos produtos primários. Antonio
García sustenta 88 que a exportação “colombiana” de petróleo cru foi sempre, estritamente, uma transferência física de óleo cru de um campo norte-americano de extração até
alguns centros industriais de refinado, comercialização e consumo nos Estados Unidos, e
a exportação “hondurenha” ou “guatemalteca” de banana, teve o caráter de uma transferência de alimentos que efetuam algumas companhias norte-americanas de uns campos
coloniais de cultivo até algumas áreas norte-americanas de comercialização e consumo.
Porém as fábricas “argentinas”, “brasileiras” ou “mexicanas,” para só citar as mais importantes, também integram um espaço econômico que nada tem a ver com sua localização geográfica.
Formam, como muitos outros fios, a trama internacional das corporações, cujas matrizes
transferem os lucros de um país a outro, faturando as vendas por cima ou por baixo dos
preços reais, segundo a direção em que desejam despejar os ganhos 89. As alavancas
fundamentais do comércio exterior ficam, assim, em mãos de empresas norte-americanas
ou européias que orientam a política comercial dos países, segundo o critério de governos
e diretorias alheias à América Latina. Assim como as filiais dos Estados Unidos não exportam cobre à URSS nem à China, nem vendem petróleo a Cuba, tam pouco se abastecem
de matérias-primas e maquinarias nas fontes internacionais mais baratas e convenientes.
Esta eficiência na coordenação das operações em escala mundial, completamente à
margem do “livre jogo das forças de mercado”, não se traduz, é claro, em preços mais
baixos para os consumidores nacionais, mas sim em lucros maiores para os acionistas
estrangeiros. É eloqüente o caso dos automóveis. Dentro dos países latino-americanos, as
empresas dispõem de uma mão-de-obra abundante e muito, muito mesmo, barata, além
de uma política oficial em todos os sentidos favorável à expansão das inversões: doações
85. Celso Furtado, Um projeto para o Brasil, Rio de Janeiro, 1968.
86. International Commerce, 24 de abril de 1967.
87. Ismael Viñas e Eugenio Gastiazoro, op. cit.
88. Antonio García, Las constelaciones del poder y el desarrollo latino-americano, em Comércio Exterior,
México, novembro de 1969.
89. Certamente, o mecanismo não é novo. 0 frigorífico Anglo deu sempre prejuízo no Uruguai,
para cobrar os subsídios estatais e para que rendessem milionários lucros seus seis mil açougues
de Londres, onde cada quilo de carne uruguaia é vendida a um preço quatro vezes maior do que o
que recebe o Uruguai pela exportação. Guillermo Bernhard, Los monopolios y Ia indústria frigorífica,
Montevidéu, 1970.
171
de terrenos, tarifas elétricas privilegiadas, redescontos do Estado para financiar as vendas
a prazos, dinheiro facilmente acessível; e, como se fosse pouco, o auxílio chegou, em
alguns países, até a eximir as empresas do pagamento dos impostos de renda ou de
venda. O controle do mercado é, por outro lado, de antemão facilitado pelo prestígio
mágico que, ante os olhos da classe média, irradiam as marcas e os modelos promovidos
por gigantescas campanhas mundiais de publicidade. Todavia, todos estes fatores não
impedem, mas sim determinam, que os carros produzidos na região sejam muito mais
caros do que nos países de origem das mesmas empresas. As dimensões dos mercados
latino-americanos são muito menores, é certo; porém também é certo que nestas terras a ânsia
de lucros das corporações se excita como em nenhuma outra parte. Um Ford Falcon construído no
Chile custa três vezes mais do que nos Estados Unidos 90 ; um Valiant ou um Fiat fabricado na
Argentina tem preços de venda que duplicam, com sobras, os dos Estados Unidos ou Itália, 91 eo
mesmo acontece com o Volkswagen do Brasil, em relação com o preço na Alemanha 92.
A DEUSA TECNOLOGIA NÃO FALA ESPANHOL
Wright Patman, o conhecido parlamentar norte-americano, considera que 5% das
ações de uma grande corporação pode ser suficiente, em muitos casos, para que seu
controle fique com um indivíduo, uma família ou um grupo econômico 93. Se 5% basta
para a hegemonia no seio das empresas todo-poderosas dos Estados Unidos, que porcentagem de ações se requer para dominar uma empresa latino-americana? Na realidade,
chega inclusive a ser menos: as sociedades mistas, que constituem um dos poucos orgulhos
ainda acessíveis à burguesia latino-americana, simplesmente decoram o poder estrangeiro com a participação nacional de capitais que podem ser majoritários, mas nunca decisivos frente à fortaleza de cônjuges de fora. Freqüentemente, é o Estado mesmo quem se
associa à empresa imperialista, que deste modo obtém, já convertida em empresa nacional, todas as garantias desejáveis e um clima geral de cooperação e até de carinho. A
participação “minoritária” dos capitais estrangeiros se justifica, no geral, em nome das
necessárias transferências de técnicas e patentes. A burguesia latino-americana, burguesia de mercadores sem sentido criador, ligada pelo cordão umbilical ao poder da terra, se
curva diante dos altares da deusa Tecnologia. Se levarmos em conta, como prova de
desnacionalização, as ações em poder estrangeiro, ainda que sejam poucas, e a dependência tecnológica,
que raramente é pouca, quantas fábricas poderão ser realmente consideradas nacionais na América
Latina? No México, por exemplo, é freqüente que os proprietários estrangeiros da tecnologia
exijam uma parte do pacote acionário das empresas além de decisivos controles técnicos e administrativos e da obrigação de vender a produção a determinados intermediários, também estrangeiros, e de
importar as maquinarias e outros bens de suas casas matrizes, em troca dos contratos de transmissão de patentes ou de know-how 94.Não só no México. É ilustrativo que os países do
chamado Grupo Andino (Bolívia, Colômbia, Chile, Equador e Peru) tenham elaborado um
projeto para um regime comum de tratamento dos capitais estrangeiros na área, que se
baseia na recusa dos contratos de transferência de tecnologia que contenham condições
90. Declarações do presidente Salvador Allende, segundo telegrama da AFP de 12 de dezembro de
1970.
91. La Razón, Buenos Aires, 2 de março de 1970.
92. Resultados da indústria automobilística, estudo especial de Conjuntura econômica, fevereiro de
1969.
93. NACLA Newletter, abril-maio de 1969.
94. Miguel S. Wionczek, La transmisión de la tecnología a los países en desarrollo: proyeto de un estudio
sobre México, e m Comércio exterior. México, maio de 1968.
172
como estas. O projeto propõe aos países que se neguem a aceitar, também, que as empresas estrangeiras donas das patentes fixem os dos produtos com elas elaborados ou que proíbam
sua exportação a determinados países.
O primeiro sistema de patentes para proteger a propriedade das invenções foi criado, há quase quatro séculos, por Sir Francis Bacon. “O conhecimento é poder”, gostava de
dizer Bacon, e desde então se soube que tinha razões de sobra. A ciência universal pouco
tem de universal; está objetivamente confinada aos limites das nações avançadas. A
América Latina não aplica em seu próprio benefício os resultados da pesquisa científica,
pela simples razão que não tem nenhuma, e em conseqüência se condena a padecer a tecnologia dos
poderosos, que castiga e desloca as matérias-primas naturais, porém não é capaz de criar uma
tecnologia própria para sustentar e desenvolver seu próprio desenvolvimento. O mero transplante
da tecnologia dos países adiantados não só implica a subordinação cultural e, definitivamente, também a subordinação econômica, mas, além disso, depois de quatro séculos e
meio de experiência na multiplicação dos oásis de modernismo importado em meio dos
desertos de atraso e da ignorância, pode afirmar-se que não resolve nenhum dos problemas do subdesenvolvimento 95. Esta vasta região de analfabetos investe em investigações
tecnológicas uma soma duzentas vezes menor do que a que os Estados Unidos destinam
a estes fins. Há menos de mil computadores na América Latina e 50 mil nos Estados
Unidos; é nos Estados Unidos, claro, que se desenham os modelos eletrônicos e se criam
as linguagens de programação que a América Latina importa. O subdesenvolvimento
latino-americano não é uma etapa no caminho do desenvolvimento, mas sim uma
contrapartida do desenvolvimento alheio; a região progride sem libertar-se da estrutura de
seu atraso, e de nada vale, assinala Manuel Sadosky,a vantagem de não participar no
progresso com programas e objetivos próprios 96. Os símbolos da prosperidade são os
símbolos da dependência. Recebe-se a tecnologia moderna como no passado foram recebidas as ferrovias, a serviço dos interesses estrangeiros que modelam e remodelam o
estatuto colonial destes países. “Nos ocorre o que acontece quando um relógio se atrasa e
não é consertado - diz Sadosky. - Ainda que seus ponteiros continuem andando para
frente, a diferença entre a hora que marca e a hora verdadeira será crescente.”
As universidades latino-americanas formam, em pequena escala, matemáticos,
engenheiros e programadores que não encontram trabalho, senão no exílio: nos damos ao
luxo de proporcionar aos Estados Unidos nossos melhores técnicos e os cientistas mais
capazes, que emigram tentados pelos altos salários e as grandes possibilidades abertas, no
norte, à pesquisa. Por outro lado, cada vez que uma universidade ou um centro de cultura
superior tenta, na América Latina, impulsionar as ciências básicas para lançar as bases de
uma tecnologia não copiada dos moldes e dos interesses estrangeiros, um oportuno golpe
de Estado destrói a experiência sob o pretexto de que se incuba a subversão 97. Este foi o
caso, por exemplo, da Universidade de Brasília, abatida em 1964, e a verdade é que não
erram os arcanjos blindados que custodiam a ordem estabelecida; a política cultural autô95. Víctor L. Urquidi em Obstacles to change in Latin America, de Claudio Véliz e outros, Londres,
1967.
96. Manuel Sadosky,América Latina y la computación, Gaceta de la Universidad, Montevidéu, maio de
1970. Sadosky cita, para ilustrar a ilusão desenvolvimentista, o testemunho de um especialista da
OEA: “Os países subdesenvolvidos - sustenta George Landau - têm algumas vantagens em
relação aos países desenvolvidos, porque quando incorporam algum novo dispositivo ou processo tecnológico escolhem, geralmente, o mais avançado dentro de seu tipo e assim recolhem o
beneficio de anos de pesquisa e o fruto de inversões consideráveis que tiveram de fazer os países
mais industrializados para alcançar este resultado.”
97. Óscar J. Maggiolo no volume coletivo Hacia una política cultural autónoma para América Latina,
Montevidéu, 1969.
173
noma requer e promove, quando é autêntica, profundas mudanças em todas as estruturas
vigentes.
A alternativa consiste em descansar nas fontes alheias: a cópia simiesca dos avanços
que difundem as grandes corporações, em cujas mãos está monopolizada a tecnologia
mais moderna para criar novos produtos e para melhorar a qualidade ou reduzir o custo
dos produtos existentes. O cérebro eletrônico aplica infalíveis métodos de cálculos para
avaliar custos e lucros, e assim a América Latina importa técnicas de produção desenhadas
para economizar mão-de-obra, embora lhe sobre a força de trabalho, e os desempregados
estão a caminho de constituírem uma esmagadora maioria em vários paises; assim, também, a própria impotência determina que a região dependa, para seu progresso, da vontade dos investidores estrangeiros. Ao controlar as alavancas da tecnologia, as grandes
corporações multinacionais manejam também, por óbvias razões, outros pontos-chave da
economia latino-americana. Evidentemente, as casas-matrizes nunca proporcionam a
suas filiais as inovações mais recentes, e tampouco incitam uma independência que não
lhes convenha. Uma pesquisa de Business International, realizada por encomenda do BID,
chegou à conclusão de que “é evidente que as subsidiárias das corporações internacionais
que operam na região não realizam esforços significativos em matéria de ‘investigação e
desenvolvimento’. De fato, a maioria delas carece de um departamento com esta finalidade e em raros casos levam a cabo trabalhos de adaptação da tecnologia, enquanto que
outra minoria de empresas - situadas quase invariavelmente na Argentina, Brasil e México - realiza modestas atividades de pesquisas” 98. Raúl Prebisch adverte que “as empresas
norte-americanas na Europa instalam laboratórios e realizam investigações que contribuem para fortalecer a capacidade científica e técnica destes países, o que não sucedeu na
América Latina”, e denuncia um fato muito grave: “A inversão nacional - diz -, por sua falta
de conhecimento especial [know-how] , realiza a maior parte de sua transferência de
tecnologia recebendo técnicas que são de domínio público e que se importam como licenças de
conhecimento especializado...”99
É altíssimo, em vários sentidos, o custo da dependência tecnológica: também o é em
dólares cantantes e sonantes, embora as estimativas não sejam nada fáceis pelos múltiplos escamoteios que as empresas praticam em suas declarações de remessas ao exterior.
As cifras oficiais indicam, não obstante, que a drenagem de dólares por assistência técnica
se multiplicou por quinze, no México, entre 1950 e 1964, e no mesmo período as novas
inversões não chegaram se quer a dobrar. As três quartas partes do capital estrangeiro no
México são, hoje, destinadas à indústria manufatureira; em 1950, a proporção era da
quarta parte. Esta concentração de recursos na indústria só implica uma modernização
reflexa, com tecnologia de segunda-mão, que o país paga como se fosse de primeiríssima.
A indústria automobilística drenou do México um bilhão de dólares, de uma ou de outra
maneira, porém um funcionário do sindicato dos automóveis nos Estados Unidos percorreu a nova fábrica da General Motors em Toluca, e depois comentou: “Foi pior do que
arcaico. Pior, porque foi deliberadamente arcaico, com o obsoleto cuidadosamente planejado... As fábricas mexicanas são equipadas deliberadamente com maquinaria de baixa
produtividade” 100. O que dizer da gratidão que a América Latina deve à Coca Cola, à Pepsi
98. Gustavo Lagos e outros, Las inversiones multinacionales en el desarrollo y la integración de América
Latina, Bogotá, 1968.
99. Raúl Prebisch, La cooperación internacional en el desarrollo latino-americano, em Desarrollo, Bogotá, janeiro de 1970. (O destaque é meu.)
100. Leo Fenster, em julho de 1969. Citado por André Gunder Frank, Lumpenburguesía:
lumpendesarrollo, Montevidéu, 1970.
As filiais estrangeiras resultam de todos modos infinitamente mais modernas que as
empresas nacionais. Na indústria têxtil, por exemplo, um dos últimos redutos do capital nacional, é baixíssimo o grau de automatização. Segundo a CEPAL, em 1962 e 1963, quatro países da
174
ou à Crush, que cobram caríssimas licenças industriais a seus concessionários para lhes
proporcionar uma pasta que se dissolve em água e se mistura com açúcar e gás?
A MARGINALIZAÇÃO DOS HOMENS E DAS REGIÕES
Grow with Brazil. Grandes anúncios nos jornais de Nova Iorque exortam os empresários norte-americanos a se somarem ao impetuoso crescimento do gigante dos trópicos. A
cidade de São Paulo dorme com os olhos abertos; atordoam seus ouvidos as crepitações do
desenvolvimento; surgem fábricas e arranha-céus, pontes e estradas, como brotam, de
súbito, certas plantas selvagens nas terras dos trópicos. Porém a tradução correta daquele
slogan publicitário seria, bem se sabe: “Cresça às custas do Brasil.” O desenvolvimento é um
banquete com poucos convidados, embora seus resplendores enganem, e os pratos principais estão reservados às mandíbulas estrangeiras. O Brasil tem já mais de cem milhões
de habitantes, e duplicará sua população antes do fim do século, porém as fábricas modernas poupam mão-de-obra e o intacto latifúndio também nega, terra adentro, trabalho.
Uma criança em farrapos contempla, com brilho no olhar, o maior túnel do mundo,
recém-inaugurado no Rio de Janeiro. A criança em farrapos está orgulhosa de seu país, e
com razão, porém ela é analfabeta e rouba para comer.
Em toda a América Latina, a irrupção do capital estrangeiro na área fabril, recebida
com tanto entusiasmo, colocou ainda mais em evidência as diferenças entre os “modelos
clássicos” de industrialização, tal como se lêem na história dos países hoje desenvolvidos,
e as características que o processo mostra na América Latina. O sistema vomita homens,
porém a indústria se dá ao luxo de sacrificar mão-de-obra numa proporção maior do que
na Europa 101.
Não existe nenhuma relação coerente entre a mão-de-obra disponível e a tecnologia
que se aplica, a não ser a que nasce da conveniência de usar uma das forças de trabalho
mais baratas do mundo. Terras ricas, subsolos riquíssimos, homens muito pobres neste
reino de abundância e o desamparo: a imensa marginalização dos trabalhadores que o
sistema lança à margem da estrada frustra o desenvolvimento do mercado interno e abate
o nível dos salários. A perpetuação do vigente regime de propriedade de terra não só aguça
o crônico problema da baixa produtividade rural, pelo desperdício de terra e capital nas
grandes fazendas improdutivas e pelo desperdício de mão-de-obra na proliferação dos
minifúndios, mas, além disso, implica urna drenagem caudalosa e crescente de trabalhadores desempregados em direção às cidades. O subemprego rural torna-se subemprego
urbano. Crescem a burocracia e as populações marginais, aonde vão parar, sorvedouro sem
fundo, os homens despojados do direito do trabalho. As fábricas não oferecem refúgio à
mão-de-obra excedente, porém a existência deste vasto exército de reserva sempre disponível permite pagar salários quinze ou vinte vezes mais baixos do que os que ganham os
operários norte-americanos ou alemães. Os salários podem continuar sendo baixos ainda
que aumente a produtividade, e a produtividade aumenta às custas da diminuição da
mão-de-obra. A industrialização “satelitizada” tem um caráter excludente: as massas
multiplicam-se num ritmo vertiginoso, nesta região que ostenta o mais alto índice de crescimento
demográfico do planeta, porém o desenvolvimento do capitalismo dependente - uma viagem com
mais náufragos do que navegantes - marginaliza muito mais gente do que a que é capaz de integrar.
A proporção de trabalhadores da indústria manufatureira dentro do total da população
Europa investiram em novos equipamentos para sua indústria têxtil uma soma seis vezes maior
do que investiu com o mesmo fim, em 1964, toda a América Latina.
101. As filiais norte-americanas ocupavam na indústria européia, em 1957 – não 73. Central
Única de Trabalhadores do Chile, América Latina, un mundo que ganar, Santiago do Chile, 1968.
175
ativa latino-americana diminui em lugar de aumentar: tinha 14,5% de trabalhadores na
década de 50; hoje só há 11,5% 102 . No Brasil, segundo um estudo recente, “o número total
de novos empregos que deverão ser criados é de um milhão e meio por ano, durante a
próxima década” 103. Mas o total de trabalhadores empregados pelas fábricas do Brasil, o
país mais industrializado da América Latina, soma, todavia, apenas 2,5 milhões.
É multitudinária a invasão dos braços provenientes das zonas mais pobres de cada
país; as cidades excitam e golpeiam as expectativas de trabalho de famílias inteiras,
atraídas pela esperança de elevar seu nível de vida e conseguir um lugar no grande circo
mágico da civilização urbana. Uma escada mecânica é a revelação do Paraíso, porém o
deslumbramento não se come: a cidade torna ainda mais pobres os pobres, porque cruelmente exibe miragens de riquezas às quais nunca terão acesso - automóveis, mansões,
máquinas poderosas como Deus e como o Diabo - e, em compensação, lhes nega uma
ocupação segura e um teto decente, pratos cheios para cada meio-dia. As Nações Unidas
104
calculam que pelo menos a quarta parte da população das cidades latino-americanas
habita “assentamentos que escapam às normas modernas de construção urbana”, extenso eufemismo dos técnicos para designar os tugúrios conhecidos como favelas no Rio de
Janeiro, callampas em Santiago do Chile, jacales no México, barrios em Caracas e barriadas
em Lima, villasmiséria em Buenos Aires e cantegriles em Montevidéu. Nos casebres de lata,
barro e madeira que brotam antes de cada amanhecer nos cinturões das cidades, se
acumula a população marginal jogada nas cidades pela miséria e pela esperança. Huaico
significa, em quéchua, deslizamento de terra, e de huaico chamam os peruanos à avalancha humana desgarrada da serra sobre a capital na costa: quase 70% dos habitantes de
Lima provêm das províncias. Em Caracas os chamam de toderos, porque fazem de tudo: os
marginalizados vivem de biscates, mordiscando trabalho aos pedacinhos e de quando em
quando, ou cumprem tarefas sórdidas ou proibidas; são serventes, pedreiros ou marceneiros eventuais, vendedores de limonada ou de qualquer coisa, ocasionais eletricistas ou
bombeiros ou pintores de paredes, mendigos, ladrões, guardadores de carros, braços disponíveis para o que der e vier. Como os marginalizados crescem mais rapidamente do que
os “integrados”, as Nações Unidas pressentem, no estudo citado, que daqui a poucos anos
“os assentamentos irregulares abrigarão a maioria da população urbana”. Uma maioria de
derrotados. Enquanto isto, o sistema opta por esconder o lixo debaixo do tapete. Vai varrendo, a ponta de metralhadora,as favelas dos morros e as villas miseria da capital federal;
joga os marginalizados, aos milhares e milhares, longe da vista. Rio de Janeiro e Buenos
Aires escamoteiam o espetáculo de miséria que o sistema produz: logo não se verá mais do
que a mastigação da prosperidade, porém não seus excrementos, nestas cidades onde se
dilapida a riqueza que Brasil e Argentina, inteiros, criam.
Dentro de cada país se reproduz o sistema internacional de domínio que cada país padece. A
concentração da indústria em determinadas zonas reflete a concentração prévia da demanda nos grandes portos ou zonas exportadoras. Oitenta por cento da indústria brasileira
está localizada no triângulo do sudeste - São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte -,
enquanto o nordeste famélico tem uma participação cada vez menor no produto industrial
nacional; dois terços da indústria argentina estão em Buenos Aires e Rosário; Montevidéu
abarca as três quartas partes da indústria uruguaia, o que também ocorre com Santiago e
Valparaíso no Chile; Lima e seu porto concentram 60% da indústria peruana 105.O crescen102. Nações Unidas-CEPAL, op. cit.
103. F. S. O’Brien, The brazilian population and laborforce in 1968, documento para discussão
interna, Ministério do Planejamento e Coordenação Geral, Rio de Janeiro, 1969.
104. Nações Unidas-CEPAL, Estudio económico de América Latina, 1967, Nova Iorque-Santiago
do Chile, 1968.
105. Nações Unidas-CEPAL, op. cit.
176
te atraso relativo das grandes áreas do interior, submergidas na pobreza, não se deve a seu
isolamento, como sustentam alguns, mas, pelo contrário, é o resultado da exploração,
direta ou indireta, que sofrem por parte dos velhos centros coloniais convertidos, hoje, em
centros industriais. “Um século e meio de história nacional - proclama um líder sindical
argentino 106 - a violação de todos os pactos solidários, a quebra da fé jurada nos hinos e nas
constituições, o domínio de Buenos Aires sobre as províncias. Exércitos e alfândegas, leis
feitas por poucos e suportadas por muitos, governos que com algumas exceções foram
agentes do poder estrangeiro, edificaram esta orgulhosa metrópole que acumula a riqueza
e o poder.Porém, se procuramos a explicação desta grandeza e a condenação deste orgulho, acharemos nas ervagens missioneiras, nos povos mortos de Forestal, no desespero
dos engenhos tucumanos e nas minas de Jujuy, nos portos abandonados do Paraná, no
êxodo de Berisso: todo uma mapa de miséria rodeando um centro de opulência, afirmado
no exercício de um domínio interno que já não se pode dissimular nem consentir.” Em seu
estudo do desenvolvimento do subdesenvolvimento no Brasil, André Gunder Frank observou que, sendo o Brasil um satélite dos Estados Unidos, dentro do Brasil o nordeste
cumpre por sua vez a função de satélite da “metrópole interna” radicada na zona sudeste.
A polarização se torna visível através de traços numerosos: não só porque a imensa maioria
das inversões privadas e públicas se concentrou em São Paulo, mas também porque esta
cidade gigante se apropria, por meio de um intercâmbio comercial desvantajoso, de uma
política arbitrária de preços, de escalas privilegiadas de impostos internos e da apropriação
em massa de cérebros e mão-de-obra capacitada 107.
A industrialização dependente aguça a concentração de renda, do ponto de vista
regional e do ponto de vista social. A riqueza que gera não se irradia sobre o país inteiro nem sobre
a sociedade inteira, mas consolida os desníveis existentes e inclusive os aprofunda. Nem sequer os
próprios operários, os “integrados” cada vez menos numerosos, se beneficiam em medida
igual do crescimento industrial; são os estratos mais altos da pirâmide social os que recolhem os frutos, amargos para muitos, dos aumentos da produtividade. Entre 1955 e 1966,
no Brasil, a indústria mecânica, a de materiais elétricos, a de comunicações e a indústria
automobilística elevaram sua produtividade em cerca de 131%, porém neste mesmo
período os salários dos trabalhadores por elas ocupados só cresceram, em valor real, 6% 108.
A América Latina oferece braços baratos: em 1961, o salário-hora médio nos Estados Unidos se elevava a dois dólares; na Argentina era de 32 centavos; no Brasil de 28; na Colômbia, 17; no México, 16, e na Guatemala chegava apenas a 10 centavos 109.Desde então, a
brecha cresceu. Para ganhar o que um operário francês percebe em uma hora, o brasileiro tem que
trabalhar, atualmente, dois dias e meio. Com pouco mais de dez horas de serviço, o trabalhador
norte-americano ganha, em equivalência, um mês de trabalho do carioca. E para receber um salário
superior ao correspondente a uma jornada de oito horas do operário do Rio de Janeiro, é suficiente que
o inglês e o alemão trabalhem menos de 30 minutos 110. O baixo nível dos salários da América
Latina só se traduz em preços baixos nos mercados internacionais, onde a região oferece
suas matérias primas a cotações exíguas para que se beneficiem os consumidores dos
países ricos; nos mercados internos, em compensação, onde a indústria desnacionalizada
vende manufaturas, os preços são altos, para que sejam altíssimos os ganhos das corporações
imperialistas.
106. Raimundo Ongaro, carta da prisão, De Frente, Buenos Aires, 25 de setembro de 1969.
107. André Gunder Frank, Capitalism and underdevelopment in Latin America, Nova Iorque,
1967.
108. Ministério do Planejamento e Coordenação-Geral op. cit.
109. Z. Romanova, La expansión económica de Estados Unidos en América Latina, Moscou, s. d.
110. Dados de Serge Birn, técnico norte-americano em organização de trabalho, segundo Jornal
do Brasil, 5 de janeiro de 1969.
177
Todos os economistas coincidem em reconhecer a importância do crescimento da
demanda como catapulta do desenvolvimento industrial. Na América Latina, a indústria,
estrangeirizada, não mostra o menor interesse em ampliar, em extensão e profundidade,
o mercado de massas que só poderia crescer horizontal e verticalmente se se impulsionasse a colocação em prática de profundas transformações em toda a estrutura
econômico-social, o que implicaria a explosão de inconvenientes tormentas políticas. O
poder de compra da população assalariada, já aniquilados ou domesticados os sindicatos
das cidades mais industrializadas, não cresce em medida suficiente, e também não baixam os preços dos artigos industriais; esta é uma região gigantesca, com um mercado
potencial enorme e um mercado real reduzido pela pobreza de sua maioria. Virtualmente,
a produção das grandes fábricas de automóveis ou refrigeradores se dirige ao consumo de apenas uns
5% da população latino-americana 111. Apenas um de cada quatro brasileiros pode
considerar-se um consumidor real. Quarenta e cinco milhões de brasileiros somam a
mesma renda total que 900 mil privilegiados situados no outro extremo da escala social 112.
INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA SOB BANDEIRA DE LISTRAS E DE ESTRELAS
Há anjos que ainda crêem que todos os países terminam à beira de suas fronteiras.
São os que afirmam que os Estados Unidos pouco ou nada têm a ver com integração
latino-americana, pela simples razão de que os Estados Unidos não fazem parte da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) nem do Mercado Comum
Centro-Americano. Como queria o libertador Simón Bolívar, dizem, esta integração não vai
além dos limites que separam o México do seu poderoso vizinho do norte. Os que sustentam este critério seráfico esquecem, interessante amnésia, que uma legião de piratas,
mercadores, banqueiros, marines, tecnocratas, boinas verdes, embaixadores e
capitães-de-empresa norte-americanos se apoderaram, ao longo de uma história negra,
da vida e do destino da maioria dos povos do sul, e que atualmente também a indústria da
América Latina jaz no fundo do aparelho digestivo do Império. “Nossa” união faz “sua”
força, na medida em que os países, ao não romperem previamente com os moldes do
subdesenvolvimento e da dependência, integram suas respectivas servidões.
Na documentação oficial da ALALC costuma-se exaltar a função do capital privado
no desenvolvimento da integração. Já vimos, nos capítulos anteriores, em que mãos está
este capital privado. Em meados de abril de 1969, por exemplo, se reuniu em Assunção a
Comissão Consultiva de Assuntos Empresariais. Entre outras coisas, reafirmou “a orientação da economia latino-americana, no sentido de que a integração econômica da Zona
tenha de aperfeiçoar-se com base no desenvolvimento da empresa privada fundamentalmente”. E recomendou que os governos estabeleçam uma legislação comum para a formação de “empresas multinacionais, constituídas predominantemente (sic) por capitais
e empresários dos países membros”. Todas as fechaduras são entregues ao ladrão: na
Conferência de Presidentes de Punta del Este, em abril de 1967, se chegou a propugnar,na
declaração final que o próprio presidente Lyndon Johnson encerrou com selo de ouro, a
111. André Gunder Frank, op. cit.
112. Nações Unidas-CEPAL, Estudio sobre Ia distribución del ingresso en América, Nova
Iorque-Santiago do Chile, 1967. “Na Argentina teve lugar, nos anos anteriores a 1953, um
processo significativo de redistribuição progressiva da renda. Dos três anos, dos que se dispõe de
informação mais detalhada, foi precisamente este o ano em que foi menor a desigualdade,
enquanto foi muito maior em 1959... No México, no período mais extenso compreendido entre os
anos 1940 e 1964... há indicações que permitem supor que a perda não foi só relativa mas também
absoluta para 20% das famílias de rendas mais baixas.”
178
criação de um mercado comum das ações, uma espécie de integração das bolsas, para que
de qualquer lugar da América Latina se possam comprar empresas radicadas em qualquer
ponto da região. E os documentos oficiais vão mais longe: até se recomenda aberta e
claramente a desnacionalização das empresas públicas. Em abril de 1969, realizou-se em
Montevidéu a primeira reunião setorial da indústria de carne na ALALC: resolveu “solicitar
aos governos... que estudem as medidas adequadas para conseguir uma progressiva transferência dos frigoríficos estatais ao setor privado”. Simultaneamente, o governo do Uruguai, com um de seus membros presidindo a reunião, pisou a fundo no acelerador de sua
política de sabotagem contra o Frigorífico Nacional, propriedade do Estado, em proveito de
frigoríficos privados estrangeiros.
O desarmamento alfandegário, que libera gradualmente a circulação de mercadorias dentro
da área da ALALC está destinado a reorganizar, em beneficio das grandes corporações multinacionais,
a distribuição dos centros de produção e dos mercados da América Latina. Reina a “economia de
escala”: na primeira fase, cumprida nestes últimos anos, se aperfeiçoou a estrangeirização
das plataformas de lançamento - as cidades industrializadas -, que terão de se projetar
sobre o mercado regional em seu conjunto. As empresas do Brasil mais interessadas na
integração latino-americana são, precisamente, as empresas estrangeiras 113 e, sobretudo,
as mais poderosas. Mais da metade das corporações multinacionais, em sua maioria
norte-americanas, que responderam a uma pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento em toda a América Latina, planificavam ou se propunham a planificar, na
segunda metade da década de 60, suas atividades para o mercado ampliado da ALALC,
criando ou fortalecendo, para tais fins, seus departamentos regionais 114.Em setembro de
1969, Henry Ford II anunciou, do Rio de Janeiro, que desejava incorporar-se ao processo
econômico do Brasil, “porque a situação está muito boa. Nossa participação inicial consistiu na compra da Willys Overland do Brasil”, segundo declarou em entrevista coletiva de
imprensa, e afirmou que exportará veículos brasileiros para vários países da América
Latina. Caterpillar, “uma firma que tratou sempre o mundo como um só mercado”, diz
Business International, não tardou em aproveitar as reduções de tarifas tão logo se foram
negociando, e em 1965 já fornecia niveladores e peças sobressalentes de tratores, de sua
fábrica de São Paulo, a vários países da América Latina. Com a mesma rapidez, Union
Carbide irradiava produtos eletrotécnicos sobre vários países sul-americanos, de sua fábrica do México, fazendo uso das isenções de direitos aduaneiros, impostos e depósitos
prévios para os intercâmbios na área da ALALC 115.
Empobrecidos, sem comunicação, descapitalizados e com gravíssimos problemas de
estrutura dentro de cada fronteira, os países latino-americanos abatem progressivamente
suas barreiras econômicas, financeiras e fiscais para que os monopólios, que ainda estrangulam
cada país separadamente, possam ampliar seus movimentos e consolidar uma nova divisão do
trabalho, em escala regional, mediante a especialização de suas atividades por países e por ramos, a
fixação de dimensões ótimas para suas filiais, a redução dos custos, a eliminação dos
competidores alheios à área e à estabilização dos mercados. As filiais das corporações
multinacionais só podem apontar à conquista do mercado latino-americano, em determinadas, condições que não afetem a política mundial traçada por suas casas-matrizes.
113. Maurício Vinhas de Queiroz, op. cit.
114. Gustavo Lagos, no volume do BID, vários autores, Las inversiones multinacionales en el
desarrollo de América Latina, Bogotá, 1968. 64% das empresas exportava dentro da região, fazendo
uso das concessões da ALALC, produtos químicos e petroquímicos, fibras artificiais, materiais
eletrônicos, maquinaria industrial e agrícola, equipamentos de escritório, motores, instrumentos de
medição, tubos de aço e outros produtos.
115. Business International, LAFTA, Key America’s 200 million Consumers, reportagem de
pesquisas, junho 1966.
179
Como vimos em outro capítulo, a divisão internacional do trabalho continua funcionando,
para a América Latina, nos mesmos termos de sempre. Só se admitem novidades dentro
da região. Na reunião de Punta del Este, os presidentes declararam que “a iniciativa
privada estrangeira poderá cumprir uma função importante para assegurar o cumprimento dos objetivos da integração”, e concordaram que o Banco Interamericano de Desenvolvimento aumentasse “os montantes disponíveis para créditos de exportação no comércio
intralatino-americano”.
A revista Fortune avaliava em 1967 as “sedutoras oportunidades novas” que o mercado comum latino-americano abre aos negócios do norte: “Em mais de uma sala de
diretoria, o mercado comum se está tornando um sério elemento para os planos do futuro.
A Ford Motor do Brasil, que faz os Galaxies, pensa tecer uma linda rede com a Ford
argentina, que faz os Falcons, e alcançar economias de escala produzindo ambos automóveis para maiores mercados. A Kodak, que agora fabrica papel fotográfico no Brasil, gostaria de produzir filmes exportáveis no México e câmaras e projetores na Argentina” 116.E
citava outros exemplos de “racionalização da produção” e extensão da área de operações
de outras corporações, como a I.T.T., General Electric, Remington Rand, Otis Elevator,
W orthington, Firestone, Deere, Westinghouse e American Machine and Foundry. Há nove
anos, Raúl Prebisch, vigoroso advogado da ALALC, escrevia: “Outro argumento que escuto
com freqüência do México até Buenos Aires, passando por São Paulo e Santiago, é que o
mercado comum vai oferecer à indústria estrangeira oportunidades de expansão que hoje
em dia não tem em nossos limitados mercados... Existe o temor de que as vantagens do
mercado comum seja aproveitadas por esta indústria estrangeira e não pelas indústrias
nacionais... Compartilhei deste temor, e dele compartilho, não por mera imaginação, mas
porque comprovei na prática a realidade deste fato...” 117. Esta comprovação não o impediu assinar, algum tempo depois, um documento no qual afirma que “ao capital estrangeiro corresponde, sem dúvida, um papel importante no desenvolvimento de nossas economias”, a propósito da integração em marcha 118, propondo a constituição de sociedades
mistas, nas quais “o empresário latino-americano participe eficaz e eqüitativamente”.
Eqüitativamente? Há que salvaguardar, é certo, a igualdade de oportunidades. Bem dizia
Anatole France que a lei, em sua majestosa igualdade, proíbe tanto o pobre quanto o rico
de dormirem sob as pontes, mendigarem nas ruas e roubarem pão. Porém ocorre que, neste
planeta e neste tempo, uma só empresa, a General Motors, ocupa tantos trabalhadores como todos os
que formam a população ativa do Uruguai, e ganha num só ano uma quantidade de dinheiro
quatro vezes maior que o montante do produto nacional bruto da Bolívia.
As corporações já conhecem, por outras experiências de integração anteriores, as
vantagens de atuar como insiders no desenvolvimento capitalista de outras comarcas. Não
é em vão que o total das vendas das Filiais norte-americanas disseminadas pelo mundo é
seis vezes maior que o valor das exportações dos Estados Unidos 119. Na América Latina,
como em outras regiões, não regem as incômodas leis antitrustes dos Estados Unidos. Aqui
os países se transformam, com plena impunidade, em pseudônimos das empresas estrangeiras que
116. Fortune, A latin american common market makes common sense for U.S. businessmen too. junho
de 1967.
117. Raúl Prebisch, Problemas dela integración económica, em Actualidades económicas financieras.
Montevidéu, janeiro de 1962.
118. Presbisch, Sanz Santamaria, Mayobre e Herrera, Proposiciones para Ia creación del Mercado
Comum Latinoamericano, documento apresentado ao presidente Frei, 1966.
119. Judd Polk (do U.S. Council of the International Chamber of Commerce) e C.P. Kindleberger
(do Massachussetts Institute of Tecnology) oferecem fartos dados e opiniões sobre a
norte-americanização da economia capitalista mundial na publicação do Departamento de Estado, The multinational corporation. Office of External Research, Washington. 1969.
180
os dominam. O primeiro acordo de complementação da ALALC foi assinado em agosto de 1962, pela
Argentina, Brasil, Chile e Uruguai; porém, na realidade, foi assinado entre a IBM, a IBM e a IBM.
O acordo eliminava os direitos de importação para o comércio de maquinarias estatísticas
e seus componentes entre os quatro países enquanto aumentava os gravames sobre a
importação desta maquinaria de fora da área: a IBM World Trade “sugeriu aos governos
que, se eliminassem os direitos para comerciarem entre si, construiria fábricas no Brasil e
na Argentina...” 120 Ao segundo acordo, assinado entre os mesmos países, se juntou o
México: foram a RCA e a Philips of Eindhoven os que promoveram a isenção para o
intercâmbio de equipamentos destinados ao rádio e à televisão. E assim sucessivamente.
Na primavera de 1969, o nono acordo consagrou a divisão do mercado latino-americano de
equipamentos de geração, transmissão e distribuição de eletricidade, entre a Union Carbide,
a General Electric e a Siemens.
O Mercado Comum Centro-Americano, por sua vez, esforço de conjunção das economias raquíticas e deformadas de cinco países, serviu apenas para derrubar num sopro os
fracos produtores nacionais de tecidos, pinturas, remédios, cosméticos ou bolachas, e para
aumentar os ganhos e a órbita de negócios da General Tire and Rubber Co., Procter and
Gamble, Grace and Co., Colgate Palmolive, Sterling Products ou National Biscuits 121 .A
liberação de direitos aduaneiros ocorreu também igual, na América Central, com a elevação das barreiras contra a competição estrangeira externa (para dizê-lo de alguma maneira), de modo que as empresas estrangeiras internas pudessem vender mais caro e com
maiores lucros: “Os subsídios recebidos através da proteção tarifária excedem o valor total
agregado pelo processo doméstico de produção”, conclui Roger Hansen 122.
As empresas estrangeiras têm, como ninguém, o sentido das proporções. As proporções próprias e as alheias. Que sentido teria instalar no Uruguai, por exemplo, ou na
Bolívia, Paraguai ou Equador, com seus mercados minúsculos, uma grande fábrica de
automóvel, altos-fornos siderúrgicos ou uma fábrica importante de produtos químicos?
São outros os trampolins escolhidos, em função das dimensões dos mercados internos e
das potencialidades de seu crescimento. A FUNSA, fábrica uruguaia de pneus, depende
em grande medida da Firestone, porém são as filiais da Firestone no Brasil e na Argentina
que se expandem com vistas à integração. Freia-se a ascensão da empresa instalada no
Uruguai, aplicando o mesmo critério que determina que a Olivetti, empresa italiana invadida pela General Electric, elabore suas máquinas de escrever no Brasil e suas máquinas
de calcular na Argentina. “A alocação eficiente de recursos requer um desenvolvimento
desigual das diferentes partes de um país ou região”, sustenta Rosenstein-Rodan 123,e a
integração latino-americana terá também seus nordestes e seus pólos de desenvolvimento. No balanço dos oito anos de vida do Tratado de Montevidéu que deu origem à ALALC, o delegado
uruguaio denunciou “as diferenças de graus de desenvolvimento econômico (entre os
diversos países) que tendem a se aguçar”, porque o mero incremento do comércio num
intercâmbio de concessões recíprocas só pode aumentar a desigualdade pré-existente
entre os pólos de privilégios e as áreas submetidas. O embaixador do Paraguai, por sua vez,
se queixou em termos semelhantes: afirmou que os países fracos absurdamente subvencionam o desenvolvimento industrial dos países mais avançados da Zona de Livre Comércio, absorvendo seus altos custos internos através da desoneração alfandegária, e disse que
dentro da ALALC a deterioração dos termos de intercâmbio castiga seu país tão duramente
120. Business International. op. cit.
121. E. Lízano F.
, El problema de las inversiones extranjeras en Centro América, na Revista del Banco
Central de Costa Rica. setembro de 1966.
122. Em Columbia Journal of World Business, citado por NACLA Newsletter,janeiro de 1970.
123. Paul N. Rosenstein-Rodan, Reflections on Regional Development. Citado no BID, vários autores,
op. cit.
181
quanto fora dela: “Por cada tonelada de produtos importados da Zona, o Paraguai paga
com duas.” A realidade, afirmou o representante do Equador, “é dada por onze países em
diferentes graus de desenvolvimento, o que se traduz em maiores ou menores capacidades para aproveitar a área de comércio liberado e conduz a uma polarização de benefícios
e prejuízos...” O embaixador da Colômbia extraiu “uma única conclusão: o programa de
liberação beneficia numa desproporção protuberante os três grandes países” 124.
À medida que a integração progride, os países pequenos irão renunciando a suas receitas
aduaneiras - que no Paraguai financiam a metade de seu orçamento nacional - em troca da
duvidosa vantagem de receber, por exemplo, de São Paulo, Buenos A ires ou México, automóveis
fabricados pelas mesmas empresas que ainda os vendem de Detroit, Wolfsburg ou Milão pela metade
do preço 125.Esta é a certeza que alenta por baixo das aflições que o processo de integração
provoca em medida crescente. A emergência, com relativo sucesso, do Pacto Andino, que
congrega as nações do Pacífico, é um dos resultados visíveis da.hegemonia dos três grandes no quadro ampliado da ALALC: os pequenos intentam se unir à parte.
Porém, a despeito de todas as dificuldades, por espinhosas que pareçam, os mercados se estendem à medida que os satélites vão incorporando novos satélites em sua órbita
de poder dependente. Sob o regime militar de Castelo Branco, o Brasil assinou um acordo
de garantias para as inversões estrangeiras, que descarrega sobre o Estado os riscos e as
desvantagens de cada negócio. É muito significativo que o funcionário que aceitara o
convênio defendesse suas humilhantes condições perante o Congresso, afirmando que,
“num futuro próximo, o Brasil estará investindo capitais na Bolívia, Paraguai ou Chile e
então necessitará de acordos deste tipo” 126. No seio dos governos que sucederam o golpe
de estado de 1964, se afirmou, de fato, uma tendência que atribui ao Brasil uma função
“subimperialista” sobre seus vizinhos. Um elenco militar de importante gravitação postula o país como o grande administrador dos interesses norte-americanos na região, e chama
o Brasil para exercer, no sul, uma hegemonia semelhante a que, frente aos Estados Unidos, o próprio Brasil padece. O general Golbery do Couto e Silva invoca, neste sentido,
outro “Destino manifesto” 127, este ideólogo do “subimperialismo” escrevia em 1952,
referindo-se a este “Destino manifesto”: “Tanto mais, quando ele não roça, no Caribe, com
o de nossos irmãos maiores do norte...” O general Golbery do Couto e Silva presidiu, pouco
depois, a Dow Chemical do Brasil. A desejada estrutura do subdomínio conta, por certo,
com abundantes antecedentes históricos, que vão desde a Guerra do Paraguai, a partir de
1865, até o envio de tropas brasileiras para encabeçar a operação solidária com a invasão
dos marines,em São Domingos, exatamente um século depois.
Nestes últimos anos, recrudesceu em grande medida a concorrência entre os gerentes dos grandes interesses imperialistas, instalados nos governos do Brasil e da Argentina,
em torno do agitado problema da liderança continental. Tudo indica que a Argentina não
124. Sessões extraordinárias do Comitê Executivo Permanente da ALALC, julho e setembro de
1969. Apreciaciones sobre el processo de integración de Ia ALALC, Montividéu, 1969.
A integração como um simples processo de redução das barreiras de comércio, adverte o
diretor da UNCTA em Nova Iorque, manterá os “enclaves de alto desenvolvimento dentro da
depressão geral do continente. Sidney Dell, no volume coletivo The movement toward latin american
unity,editado por Ronald Hilton. Nova Iorque-W ashington- Londres, 1969.
125. A indústria automotriz é 100% estrangeira no Brasil e Argentina, e majoritariamente estrangeira no México, ALALC, La industria automotriz en Ia ALALC, Montividéu. 1969.
126. Vivian Trías, Imperialismo y geopolítica en América Latina, Montevidéu, 1967. O Uruguai se
comprometeu, por exemplo, a incrementar suas importações de maquinarias do Brasil, em troca
de favores, tais como o fornecimento de energia elétrica brasileira à zona norte do país. Atualmente, os departamentos uruguaios de Artigas e Rivera não podem aumentar seu consumo de
energia sem a permissão do Brasil.
127. Golbery do Couto e Silva, Aspectos geopolíticos do Brasil, Rio de Janeiro, 1952.
182
está em condições de resistir ao poderoso desafio brasileiro: o Brasil tem o dobro de
superfície e uma população quatro vezes maior, é quase três vezes mais ampla a produção
de aço, fabrica o dobro de cimento e gera mais do dobro de energia; a taxa de renovação de
sua marinha mercante é quinze vezes mais alta. Registrou, além disso, um ritmo de
crescimento econômico bastante mais acelerado que o da Argentina, durante as últimas
décadas. Não faz muito tempo, a Argentina produzia mais automóveis e caminhões do
que o Brasil. No ritmo atual, em 1975, a indústria automobilística brasileira é três vezes
maior do que a Argentina. A frota marítima, que em 1966 era igual à Argentina, equivale
a de toda a América Latina reunida. O Brasil oferece à inversão estrangeira a magnitude de
seu mercado potencial, suas fabulosas riquezas naturais, o grande valor estratégico de seu
território, que limita com todos os países sul-americanos menos com o Equador e o Chile,
e todas as condições para que as empresas norte-americanas radicadas em seu solo avancem com botas de sete léguas: O Brasil dispõe de braços mais baratos e mais abundantes
do que seu rival. Não é por acaso que a terça parte dos produtos elaborados e semi-elaborados
que se vendem dentro da ALALC provenha do Brasil. Este é o país que constitui o eixo da
libertação ou servidão de toda a América Latina. Quem sabe o senador norte-americano
Fulbright não tenha tido consciência completa do alcance de suas palavras quando, em
1956, atribuiu ao Brasil, em declarações públicas, a missão de dirigir o mercado comum da
América Latina.
“NUNCA SEREMOS AFORTUNADOS, NUNCA!”, PROFETIZOU SIMÓN BOLIVAR
Para que o imperialismo norte-americano possa, hoje em dia, integrar para reinar na
América Latina, foi necessário que o Império britânico contribuísse para dividir-nos com os
mesmos rins. Um arquipélago de países, desconectados entre si, nasceu como conseqüência da frustração de nossa unidade nacional. Quando os povos em armas conquistaram a
independência, a América Latina aparecia no cenário histórico enlaçada pelas tradições
comuns de suas diversas comarcas, exibia uma unidade territorial sem fissuras e falava
dois idiomas fundamentalmente da mesma origem, o espanhol e o português. Porém nos
faltava, como assinala Trías, uma das condições essenciais para constituir uma grande
nação única: nos faltava a comunidade econômica.
Os pólos de prosperidade, que floresciam para dar resposta às necessidades européias de metais e alimentos, não estavam vinculados entre si: as varinhas do leque tinham
seu vértice do outro lado do mar. Os homens e os capitais se deslocam no vaivém da sorte
do ouro ou do açúcar, da prata ou do anil, e só os portos e as capitais, sanguessugas das
regiões produtivas, tinham existência permanente. A América Latina nascia como um só
espaço na imaginação e na esperança de Simón Bolívar, José Artigas e José de San Martin, porém
estava dividida de antemão pelas deformações básicas do sistema colonial. As oligarquias portuárias consolidaram, através do livre comércio, esta estrutura de fragmentação, que era sua
fonte de ganhos: aqueles ilustrados traficantes não podiam incubar a unidade nacional
que a burguesia encarnou na Europa e nos Estados Unidos. Os ingleses, herdeiros da
Espanha e Portugal desde tempos antes da independência, aperfeiçoaram essa estrutura
ao longo do século passado, por meio das intrigas de luvas brancas dos diplomatas, as
forças de extorsão dos banqueiros e a capacidade de sedução dos comerciantes. “Para nós,
a pátria é a América”, havia proclamado Bolívar: a Gran Colômbia se dividiu em cinco
países e o libertador morreu derrotado: “Nunca seremos afortunados, nunca!”, disse ao
general Urdaneta. Traídos por Buenos Aires, San Martín se despojou das insígnias de
comando e Artigas, que chamava de americanos a seus soldados, marchou para a morte
solitária do exílio no Paraguai: o vice-reinado do Rio da Prata tinha-se partido em quatro.
183
Francisco de Morazán, criador da República Federal da América Central, morreu fuzilado
128
, e a cintura da América se fragmentou em cinco pedaços aos quais logo se somaria o
Panamá, o canal com categoria de república que Teddy Roosevelt inventou.
O resultado está à vista: atualmente, qualquer das corporações multinacionais opera com
maior coerência e sentido de unidade do que este conjunto de ilhas que é a América Latina, desgarrada por tantas fronteiras e tantas incomunicações. Qual integração podem realizar,entresi,
países que nem sequer se integraram internamente? Cada país padece de profundas
fraturas em seu próprio seio, agudas divisões sociais e tensões não resolvidas entre seus
vastos desertos marginais e seus oásis urbanos. O drama se reproduz em escala regional.
As ferrovias e as estradas, criadas para transportar a produção ao exterior por rotas mais
diretas, constituem ainda a prova irrefutável da impotência ou da incapacidade da América Latina para dar vida ao projeto nacional de seus heróis mais lúcidos. O Brasil carece de
conexões terrestres permanentes com três de seus vizinhos - Colômbia, Peru e Venezuela
- e as cidades do Atlântico não têm comunicação telegráfica direta com as cidades do
Pacífico, de tal maneira que os telegramas entre Buenos Aires e Lima ou Rio de Janeiro e
Bogotá passam inevitavelmente por Nova Iorque; o mesmo acontece com as linhas telefônicas entre o Caribe e o sul. Os países latino-americanos continuam se identificando cada
qual com seu próprio porto, negação de suas raízes e de sua identidade real, a tal ponto que
a quase totalidade dos produtos do comércio intra-regional é transportada por mar: os
transportes interiores virtualmente não existem. Mas ocorre, neste sentido, que o cartel
mundial dos fretes fixa as tarifas e os itinerários segundo seu critério, e a América Latina se
limita a padecer as tarifas exorbitantes e as rotas absurdas. Das 118 linhas marítimas
regulares que operam na região, unicamente há 16 de bandeiras regionais; os fretes sangram a economia latino-americana em um bilhão de dólares por ano 129.Assim, as mercadorias enviadas de Porto Alegre a Montevidéu chegam mais rápido ao destino se passam antes por
Hamburgo, e o mesmo ocorre com a lã uruguaia em viagem aos Estados Unidos; o frete de Buenos
A ires a um porto mexicano do golfo diminui em mais da quarta parte se o tráfego se realiza através
de Southampton130. O transporte de madeira do México à Venezuela custa mais do dobro do que o
transporte de madeira da Finlândia à Venezuela, embora o México esteja, segundo os mapas, muito
mais perto. Um envio direto de produtos químicos de Buenos Aires até Tampico, no México, custa
muito mais caro do que se fosse realizado por Nova Orleans 131.
Destino muito diferente se propuseram e conquistaram, por certo, os Estados Unidos. Sete anos depois de sua independência, as treze colônias já tinham duplicado sua
superfície, que se estendeu além dos Aleganios até as margens do Mississippi, e quatro
anos mais tarde consagraram sua unidade criando o mercado único. Em 1803, compraram
da França, por um preço ridículo, o território de Louisiana, com o que voltaram a multiplicar por dois seu território. Mais tarde, foi a vez de Flórida e, em meados do século, a
128. “Mandou preparar as armas, descobriu-se, mandou apontar, corrigiu a pontaria, deu voz de
fogo e caiu; ainda levantou a cabeça sangrenta e disse: estou vivo; uma nova descarga o fez
expirar.” Gregorio Bustamente Maceo, Historia militar de El Salvador,San Salvador, 1951
Na praça de Tegucigalpa, a banda toca música ligeira todos os domingos à noite ao pé da
estátua de bronze de Morazán. Porém a inscrição está errada: esta não é a estampa eqüestre do
campeão da unidade centro-americana. Os hondurenhos que viajaram a Paris, tempos depois do
fuzilamento, para contratar um escultor a pedido do governo, gastaram o dinheiro em farras e
acabaram comprando uma estátua do Marechal Ney no mercado das pulgas. A tragédia da
América Central convertia-se rapidamente em farsa.
129. Nações Unidas-CEPAL, Los fletes marítimos en el comercio exterior de América Latina, Nova
Iorque-Santiago do Chile, 1968.
130. Enrique Angulo H. no volume coletivo Integración de América Latina, experiencias y perspectivas,
México, 1964.
131. Sidney Dell, Experiencias de la integración económica en América Latina, México, 1966.
184
invasão e a amputação de meio México em nome do “Destino manifesto”. Depois, a
compra do Alasca, a usurpação do Havaí, Porto Rico e Filipinas. As colônias se tornaram
nação, e a nação se fez império, ao longo do processo de colocar em prática objetivos
claramente expressos e perseguidos desde os distantes tempos dos pais fundadores. Enquanto o norte da América crescia, desenvolvendo-se para dentro de suas fronteiras em
expansão, o sul, desenvolvido para fora, explodia em pedaços como uma granada.
O atual processo de integração não nos faz reencontrar nossa origem nem nos aproxima de nossas metas. Bolívar tinha afirmado, certeira profecia, que os Estados Unidos
pareciam destinados pela providência para alastrar a América de misérias em nome da
liberdade. Não há de ser a General Motors ou a IBM que terá a gentileza de levantar, no
nosso lugar, as velhas bandeiras de unidade e emancipação caídas na luta, nem hão de ser
os traidores contemporâneos os que realizarão, hoje, a redenção dos heróis ontem traídos.
É muita podridão para lançar ao fundo do mar no caminho da reconstrução da América
Latina. Os despojados, os humilhados, os miseráveis têm, eles sim, em suas mãos a tarefa.
A causa nacional latino-americana é, antes de tudo, uma causa social: para que a América
Latina possa renascer, terá de começar por derrubar seus donos, país por país. Abrem-se
tempos de rebelião e mudança. Há aqueles que crêem que o destino descansa nos joelhos
dos deuses, mas a verdade é que trabalha, como um desafio candente, sobre as consciências dos homens..
185
POSFÁCIO
SETE ANOS DEPOIS
1
Passaram-se sete anos desde a primeira publicação de As Veias Abertas da América
Latina.
Este livro havia sido escrito para conversar com o pessoal. Um autor não especializado dirigia-se a um público não especializado, com a intenção de divulgar certos fatos que
a história oficial, história contada pelos vencedores esconde ou mente.
A resposta mais estimulante não veio das páginas de algum suplemento literário de
jornal, senão que de alguns episódios reais ocorridos na rua. Por exemplo: a moça que ia
lendo o livro para sua companheira de assento e terminou pondo-se de pé e lendo em voz
alta para todos os passageiros enquanto o ônibus atravessava as ruas de Bogotá; ou a
mulher que fugiu de Santiago do Chile, nos dias da matança, com o livro envolto nas
fraldas do bebê; ou ainda o estudante que durante uma semana percorreu as livrarias da
rua Corrientes de Buenos Aires e foi lendo de pedacinho em pedacinho, de livraria em
livraria, porque não tinha dinheiro para comprá-lo.
Paralelamente, os comentários mais favoráveis que o livro recebeu, não provêm de
nenhum crítico literário de prestígio, mas das ditaduras militares que o elogiaram
proibindo-o. No meu país, (o Uruguai) por exemplo, As Veias Abertas da América Latina não
pode circular, assim como no Chile e na Argentina. As autoridades o denunciaram, na
televisão e nos jornais, como um instrumento de corrupção da juventude. “Não deixam
ver o que escrevo”, dizia Blas de Otero, “porque escrevo o que vejo”.
Creio não haver presunção na alegria de comprovar que, com o passar do tempo, As
Veias não tenha se tornado um livro mudo,
2
Sei que pode ter parecido um tanto sacrílego que este manual de divulgação fale de
economia política no estilo de um romance de amor ou de piratas. Mas provoca-me
engulhos, confesso, ler alguns trabalhos valiosos de certos sociólogos, politicólogos, economistas ou historiadores que escrevem em código. A linguagem hermética nem sempre é
o preço inevitável da profundidade Em alguns casos pode estar simplesmente escondendo uma incapacidade de comunicação, elevando-a à categoria de virtude intelectual.
Suspeito que o fastio serve, dessa forma, para bendizer a ordem estabelecida: confirma
que o conhecimento é um privilégio das elites.
Algo parecido costuma ocorrer, diga-se de passagem, com certa literatura militante
dirigida a um público conivente. Parece-me conformista, apesar de toda a sua possível
retórica revolucionária, uma linguagem que repete mecanicamente, para os mesmos ouvidos, as mesmas frases pré-fabricadas, os mesmos adjetivos, as mesmas fórmulas
declamatórias. Talvez essa literatura de paróquia esteja tão longe da revolução como a
pornografia está longe do erotismo.
3
Alguém escreve para tratar de responder às perguntas que lhe zumbem na cabeça -
186
moscas tenazes que perturbam o sono; e o que alguém escreve pode adquirir sentido
coletivo quando, de alguma maneira, coincide com a necessidade social de resposta.
Escrevi As Veias Abertas para difundir idéias alheias e experiências próprias que talvez
ajudem um pouquinho, com sua medida realista, a resolver as questões que nos perseguem desde sempre: A América Latina é uma região do mundo condenada à humilhação
e à pobreza? Condenada por quem? Culpa de Deus? Culpa da natureza? Do clima
modorrendo? Das raças inferiores? A religião e os costumes? Não será a desgraça um
produto da história, feita por homens, e que, portanto, pelos homens pode ser desfeita?
A veneração do passado sempre me pareceu reacionária. A direita escolhe o passado
porque prefere os mortos: mundo quieto, tempo quieto. Os poderosos, que legitimam seus
privilégios pela herança, cultivam a nostalgia. Estuda-se história como se visita um museu; e esta coleção de múmias é uma fraude. Mentem-nos o passado como nos mentem
o presente: mascaram a realidade. Obriga-se o oprimido a fazer sua, uma memória fabricada
pelo opressor: estranha, dissecada, estéril. Assim, ele se resignará a viver uma vida que
não é a sua, como se fosse a única possível.
Em As Veias Abertas, o passado sempre aparece convocado pelo presente, como memória viva.do nosso tempo. Esse livro é uma busca de chaves da história passada, que
contribui para explicar o tempo presente, (que também faz história), a partir da base de
que a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la. Não é oferecido, no caso, um catálogo de heróis vestidos para um baile à fantasia, que, ao morrer em
batalha, pronunciam longuíssimas frases solenes, mas sim, indaga-se o som e a pegada
dos passos de multidão que porventura apresente nosso recente caminhar.As Veias Abertas
provem da realidade, mas também de outros livros, melhores que este, que nos têm
ajudado a conhecer o que somos, para saber o que podemos ser, e que nos têm permitido
averiguar de onde viemos para melhor adivinhar aonde vamos. Esta realidade e estes
livros mostram que o subdesenvolvimento latino-americano é uma conseqüência do desenvolvimento alheio, que nós, latino-americanos, somos pobres porque é rico o solo que
pisamos e que os lugares privilegiados pela natureza têm sido malditos pela história.
Nesse nosso mundo, mundo de centros poderosos e subúrbios submetidos, não há riqueza
que não seja, no mínimo, suspeita.
4
Durante o tempo transcorrido desde a primeira edição de As Veias Abertas, a história
não deixou de ser, para nós, uma cruel professora.
O sistema tem multiplicado a fome e o medo; a riqueza continuou concentrando-se
e a pobreza difundindo-se. É o que reconhecem os documentos dos organismos internacionais especializados, cuja linguagem (asséptica) chama de “países em via de desenvolvimento” as nossas comarcas oprimidas e denomina de “redistribuição regressiva da receita” o empobrecimento implacável da classe trabalhadora.
A engrenagem internacional continuou funcionando: os países a serviço das mercadorias, os homens a serviço das coisas.
Com o passar do tempo, vão se aperfeiçoando os métodos de exportação das crises.
O capital monopolista chega a seu mais alto grau de concentração e o domínio internacional dos mercados, os créditos e investimentos, torna possível a sistemática e crescente
transferência das contradições: a periferia paga o preço da prosperidade dos centros, sem
maiores sobressaltos.
O mercado internacional continua sendo uma das chaves mestras desta operação.
Aí é exercida a ditadura das corporações multinacionais. Multinacionais, como diz Sweezy,
porque operam em muitos países, mas bem nacionais, por certo, no que diz respeito a sua
187
propriedade e controle. A organização mundial da desigualdade não se altera pelo fato de
que o Brasil, por exemplo, exporte automóveis Volkswagen para outros países
latino-americanos e aos longínquos mercados da África e do Oriente Médio. Afinal de
contas, é a empresa alemã quem decidiu que é mais conveniente exportar automóveis
para certos mercados, a partir de sua filial brasileira: são brasileiros os baixos custos de
produção, os braços baratos e são alemães os altos lucros.
Não é por arte de magia, tampouco, que se rompe a camisa de força, quando uma
matéria-prima consegue escapar da maldição dos preços baixos. Este foi o caso do petróleo
a partir de 1973. O petróleo não é um negócio internacional? São empresas árabes ou
latino-americanas a Standard Oil de New Jersey (agora chamada Exxon), a Royal Dutch
Shell ou a GuIf ? Quem é que fica com a parte do leão? É extremamente revelador o
escândalo que se desatou contra os países produtores de petróleo que ousaram defender
seu preço e que foram imediatamente convertidos nos bodes expiatórios da inflação e do
desemprego operário na Europa e Estados Unidos Os países desenvolvidos consultaram
alguém antes de aumentar o preço de qualquer de seus produtos? Fazia vinte anos que o
preço do petróleo caía e caía. Sua vil cotação representou um gigantesco subsídio aos
grandes centros industriais do mundo, cujos produtos, por sua vez, ficavam cada vez mais
caros. Em relação ao incessante aumento dos preços de produtos norte-americanos e
europeus, a nova cotação do petróleo não fez mais que devolvê-lo a seus níveis de 1952.
Em 1973, o petróleo cru simplesmente recuperou o poder de compra que tinha há duas
décadas.
5
Um dos episódios importantes ocorridos nestes sete anos foi a nacionalização do
petróleo na Venezuela. A nacionalização não rompeu a dependência venezuelana no que
diz respeito a refino e comercialização, mas abriu um novo espaço de autonomia. Logo
após nascer, a empresa estatal Petróleos de Venezuela, já ocupava o primeiro lugar entre
as quinhentas maiores empresas da América Latina. Além dos tradicionais, a Petroven
começou a exploração de novos mercados e rapidamente obteve cinqüenta novos clientes.
Entretanto, sempre que o Estado passa a ser dono da principal riqueza de um país,
é bom perguntar quem é o dono do Estado. A nacionalização dos recursos básicos não
implica, por si só, a redistribuição da receita em beneficio da maioria, nem põe, necessariamente; em perigo os privilégios da minoria dominante. Na Venezuela continua funcionando, impunemente, a economia do desperdício. Resplandece em seu centro, iluminada pelo gás neon,uma classe multimilionária e esbanjadora. Em 1976, as importações
aumentaram em vinte e cinco por cento, fundamentalmente para financiar artigos de
superluxo que inundam o mercado venezuelano em cascatas. Fetichismo da mercadoria
como símbolo de poder, existência humana reduzida a relações de competição e consumo: em meio ao oceano de subdesenvolvimento, a minoria privilegiada imita o modo de
vida e as modas dos membros mais ricos das mais opulentas sociedades do mundo. No
estrépito de Caracas, como em Nova York, os bens “naturais” por excelência - o ar,aluz,o
silêncio - tornaram-se cada vez mais escassos. “Cuidado”, adverte Juan Pablo Pérez Alfonso, patriarca do nacionalismo venezuelano e profeta da recuperação do petróleo: “Pode-se
morrer de indigestão”, diz, “tanto como de fome”1.
6
Terminei de escrever As Veias Abertas nos últimos dias de 1970.
Nos últimos dias de 1977, Juan Velasco Alvarado morreu numa sala de cirurgias. Seu
1. Entrevista de Jean-Pierre Clerc em Le Monde, Paris, 8-9 de maio de 1977
188
féretro foi carregado em ombros até o cemitério pela maior multidão jamais vista nas ruas
de Lima. O general Velasco Alvarado, nascido em casa humilde nas terras secas do norte
do Peru, havia encabeçado um processo de reformas sociais e econômicas. Foi a tentativa
de mudança de maior alcance e profundidade da história contemporânea de seu país. A
partir do levante de 1968, o governo militar impulsionou uma reforma agrária verdadeira
e abriu as comportas para a recuperação dos recursos naturais usurpados pelo capital
estrangeiro. Mas quando Velasco Alvarado morreu, já haviam sido celebrados os funerais
da revolução. O processo criador teve vida fugaz: terminou afogado pela chantagem dos
agiotas e negociantes e pela fragilidade congênita de todo projeto paternalista e sem base
popular organizada.
Nas vésperas do Natal de 77, enquanto o coração do general Velasco Alvarado
pulsava pela última vez no Peru, na Bolívia, outro general, que em nada se assemelhava
a ele, dava um soco na escrivaninha. O general Hugo Banzer, ditador da Bolívia, dizia não
à anistia dos presos, dos exilados e dos operários arrojados. Quatro mulheres e quatorze
meninos, vindos das minas de estanho para La Paz, iniciaram, então, uma greve de fome.
- Não é o momento propício - opinaram os entendidos - já lhes diremos quando...
Elas sentaram-se no chão.
- Não estamos consultando - disseram as mulheres -. Estamos informando. A decisão está tomada. Greve de fome sempre tem lá na mina. É só nascer que já se começa a
greve de fome. Por lá também haveremos de morrer. Mais lentamente, mas também
haveremos de morrer.
O governo reagiu castigando, ameaçando; mas a greve de fome ativou forças contidas por muito tempo. A Bolívia inteira sacudiu-se e mostrou os dentes. Dez dias depois,
não eram quatro mulheres e quatorze meninos: mil e quatrocentos trabalhadores e estudantes levantaram-se em greve de fome. A ditadura sentiu que o solo abria-se debaixo dos
pés. Foi arrancada a anistia geral.
Assim atravessaram o limite de 1977 e 1978 dois países andinos. Mais ao norte, no
Caribe, o Panamá esperava a prometida liquidação do estatuto colonial do canal, na reta
final de uma espinhosa negociação com o novo governo dos Estados Unidos, e em Cuba o
povo estava em festa: a revolução socialista festejava, invicta, seus primeiros dezenove
anos de vida. Poucos dias depois, na Nicarágua, a multidão lançou-se, furiosa, às ruas. O
ditador Somoza, filho do ditador Somoza, olhava pelo buraco da fechadura. Várias empresas foram incineradas pela cólera popular. Uma delas, chamada Plasmaféresis, tinha se
especializado em vampirismo. A empresa Plasmaféresis, arrasada pelo fogo no início de
1978, era propriedade de exilados cubanos e se dedicava a vender sangue nicaragüense
para os Estados Unidos. (No negócio do sangue, como em todos os outros, os produtores
recebem apenas a gorjeta. A empresa Hemo Caribean, por exemplo, paga aos haitianos
três dólares por litro que revende a vinte e cinco no mercado norte-americano.
7
Em agosto de 76, Orlando Letelier publicou um artigo denunciando que o terror da
ditadura de Pinochet e a “liberdade econômica” de pequenos grupos privilegiados, são as
duas faces de uma mesma moeda 2. Letelier, que havia sido ministro no governo de
Salvador Allende, estava exilado nos Estados Unidos. Foi lá que, pouco tempo depois,
voou em pedaços 3. Em seu artigo, afirmava que é absurdo falar em livre concorrência
2. The Nation, 28 de agosto.
3. O crime ocorreu em Washington, dia 21 de setembro de 1976. Vários exilados políticos do
Uruguai, Chile e Bolívia haviam sido assassinados antes na Argentina. Os mais notórios entre
eles, foram o general Carlos Prates, figura chave no esquema militar do governo de Allende, cujo
automóvel explodiu numa garagem de Buenos Aires em 24 de setembro de 1974; o general Juan
189
numa economia como a chilena, submetida aos monopólios que jogam com os preços
como querem, e que é ridículo mencionar os direitos dos trabalhadores num país onde os
sindicatos autênticos estão fora da lei e os salários são fixados por decretos da junta militar.
Letelier descrevia o esmero com que se desmontavam as conquistas realizadas pelo povo
chileno durante o governo da Unidade Popular. Dos monopólios e oligopólios industriais
nacionalizados por Salvador Allende, metade foi devolvida, pela ditadura, a seus antigos
proprietários e a outra metade foi posta à venda. A Firestone comprou a fábrica nacional
de pneumáticos; Parsons and Whittemore uma grande plantação para extração de polpa
de papel... A economia chilena, dizia Letelier, agora está mais concentrada e monopolizada
do que na véspera do governo de Allende4.Negócios livres como nunca, gente presa como nunca:
Na América Latina, a liberdade empresarial e incompatível com as liberdades públicas. Liberdade
de mercado? Desde o princípio de 1975 o preço do leite, no Chile, é livre. O resultado não
se fez por esperar. Duas empresas dominam o mercado. O preço do leite aumentou
imediatamente (para os consumidores) em quarenta por cento, enquanto o preço para os
produtores baixava em vinte e dois por cento.
A mortalidade infantil, que havia sido bastante reduzida durante o governo da
Unidade Popular, deu um salto dramático a partir de Pinochet. Quando Letelier foi assassinado numa rua de Washington, um quarto da população do Chile, não recebia nenhum
salário e sobrevivia graças à caridade alheia ou à própria obstinação e esperteza.
Na América Latina, o abismo que se abre entre o bem-estar de poucos e a desgraça
de muitos, é infinitamente maior que nos Estados Unidos ou na Europa. São muito mais
ferozes, portanto, os métodos necessários para salvaguardar esta distância. O Brasil tem
um exército enorme e muito bem equipado, mas destina cinco por cento do orçamento
nacional para gastos de educação. No Uruguai, a metade do orçamento é absorvida,
atualmente, pelas forças armadas e pela polícia: um quinto da população ativa tem a
função de vigiar, perseguir ou castigar os quintos restantes.
Um dos fatos mais importantes destes anos da década de 70, foi, sem dúvida, uma
tragédia: a insurreição militar que em 11 de setembro de 1973 derrubou o governo democrático de Salvador Allende e mergulhou o Chile num banho de sangue...
Pouco antes, em junho, um golpe de Estado no Uruguai, dissolveu o Parlamento,
pôs os sindicatos fora da lei e proibiu toda e qualquer atividade política5.
Em março de 1976, os generais argentinos voltaram ao poder: o governo da viúva de
Juan Domingo Perón, completamente putrefato, desabou sem consolo nem glória.
Os três países do sul são agora uma chaga do mundo, uma má notícia ininterrupta.
Torturas, seqüestros, assassinatos e exílios converteram-se em fatos cotidianos. Estas ditaduras são tumores a serem extirpados de organismos sãos ou são o pus que revela a
infecção do sistema?
Creio que sempre existe uma relação íntima entre a intensidade da ameaça e a
José Torres, que havia encabeçado um fugaz governo anti-imperialista, na Bolívia e foi crivado de
balas no dia 15 de junho de 1976; os legisladores uruguaios Zelmar Michelini e Héctor Gutiérrez
Ruiz, seqUestrados, torturados e assassinados, também em Buenos Aires, entre 18 e 21 de março
de 1976.
4. A reforma agrária que havia começado sob o governo da Democracia Cristã e que foi aprofundada
pelo da Unidade Popular, também foi arrasada. V. Maria Beatriz de Albuquerque W., "A agricultura
chilena: modernização capitalista ou regressão às formas tradicionais? Comentários sobre a
contra-reforma agrária no Chile". Iberoamericana, vol. VI:2, 1976, Institute of Latin American
Studies, Estocolmo.
5. Três meses depois, houvera eleições na Universidade. Eram as únicas eleições que restavam. Os
candidatos da ditadura obtiveram dois por cento e meio dos votos universitários. Por isso, em
defesa da democracia, a ditadura prendeu meio mundo e entregou a Universidade a esses dois e
meio por cento.
190
brutalidade da resposta. Creio que não se pode entender o que ocorre hoje no Brasil e na
Bolívia sem se levar em conta a experiência dos regimes de Jango Goulart e Juan José
Torres. Antes de cair, estes governos haviam posto em prática uma série de reformas
sociais e haviam levado adiante uma política econômica nacionalista, ao longo de um
processo (interrompido) em 1964 no Brasil, e em 1971 na Bolívia. Da mesma forma, bem que
se poderia dizer que o Chile, a Argentina e o Uruguai estão expiando o pecado da esperança. O ciclo
de profundas modificações durante o governo de Allende, as bandeiras de justiça que
mobilizaram as massas obreiras argentinas e drapearam alto durante o fugaz governo de
Héctor Campora em 1973 e a politização acelerada da juventude uruguaia, foram todos
desafios que um sistema impotente e em crise não podia suportar. O violento oxigênio da
liberdade foi fulminante para os espectros, e a guarda pretoriana foi convocada para salvar
a ordem. O plano de limpeza é um plano de extermínio.
8
As atas do Congresso dos Estados Unidos costumam registrar testemunhos irrefutáveis
acerca das intervenções na América Latina. Corroídas pelo ácido da culpa, as consciências
realizam sua catarse nos confessionários do Império. Ultimamente, por exemplo,
multiplicaram-se os reconhecimentos oficiais que atestam a responsabilidade dos Estados
Unidos por diversos desastres. Amplas confissões públicas têm provado, entre outras
coisas, que o governo dos Estados Unidos participou diretamente, mediante suborno,
espionagem e chantagem, na política chilena.
A estratégia do crime foi planejada em Washington. Desde 1970 que Kissinger e os
serviços de informação preparavam cuidadosamente a queda de Allende. Milhões de
dólares foram distribuídos entre os inimigos do governo legal da Unidade Popular. Assim
é que, por exemplo puderam sustentar sua longa greve os proprietários de caminhões, que
em 1973 paralisaram boa parte da economia do país. A certeza da impunidade solta as
línguas. Quando do golpe de Estado contra Goulart, os Estados Unidos tinham no Brasil
sua maior embaixada. Lincoln Gordon, que era o embaixador, reconheceu treze anos mais
tarde, que seu governo financiava, tempos atrás, as forças que se opunham às reformas:
“Que diabos”, disse Gordon, “isso era mais ou menos um hábito naquele período... A CIA
estava acostumada a dispor de fundos políticos” 6. Na mesma entrevista, Gordon explicou
que nos dias do golpe, o Pentágono deslocou um enorme porta-aviões e quatro
navios-tanque para as costas brasileiras “para o caso de que as forças anti-Goulart viessem
a pedir nossa ajuda”. Essa ajuda, disse “não seria apenas moral. Daríamos apoio logístico,
abastecimento, munições, petróleo”.
Desde que o presidente Jimmy Carter inaugurou a política de direitos humanos,
tornou-se habitual que regimes latino-americanos, impostos graças a intervenção
norte-americana, formulem inflamadas declarações contra a intervenção norte-americana
em seus assuntos internos.
O Congresso dos Estados Unidos resolveu, em 1976 e 1977, suspender a ajuda
econômica e militar a vários países. No entanto, a maior parte da ajuda externa dos
Estados Unidos, não passa pelo filtro do Congresso. Assim, apesar das declarações, resoluções e protestos, o regime do general Pinochet recebeu, durante 1976, 290 milhões de
dólares de ajuda direta dos Estados Unidos sem autorização parlamentar. Ao completar
seu primeiro ano de vida, a ditadura do general Videla havia recebido quinhentos milhões
de dólares de bancos privados norte-americanos e 415 milhões de duas instituições (Banco Mundial e BID), onde os Estados Unidos têm influência decisiva. Os direitos especiais
de giro da Argentina no Fundo Monetário Internacional, que eram de 64 milhões de
dólares em 1975, subiram a setecentos milhões alguns anos depois.
6. Veja, nº 444, São Paulo, 9 de março de 1977.
191
A preocupação do presidente Carter pela carnificina que estão sofrendo alguns países latino-americanos parece saudável, mas os atuais ditadores não são autodidatas; aprenderam as técnicas da repressão e a arte de governar em cursos do Pentágono, nos Estados
Unidos e na zona do Canal do Panamá. Esses cursos prosseguem hoje em dia e, é bom que
se saiba, não variaram uma vírgula de seu conteúdo. Os militares latino-americanos que
hoje escandalizam os Estados Unidos, foram bons alunos. Fazem alguns anos, o atual
presidente do Banco Mundial, Robert McNamara, que então era Secretário de Defesa,
disse - sem tirar nem pôr - o seguinte: “Eles são novos líderes. Não é necessário estender-me
acerca do valor de ter em posições de liderança homens que conheceram previamente, e
de perto, como nós, americanos, pensamos e fazemos as coisas. Fazer-nos amigos destes
homens, não tem preço”7.
Aqueles que fizeram o paralítico, poderiam fazer o favor de ofertar-nos a cadeira de
rodas?
9
Os bispos da França falam de outro tipo de responsabilidade; mais profunda, menos
visível 8: “Nós que pertencemos às nações que se pretendem as mais avançadas do mundo, fazemos parte daqueles que se beneficiam da exploração dos países em vias de desenvolvimento. Não vemos os sofrimentos que isso provoca na carne e no espírito de povos
inteiros. Nós contribuímos para reforçar a divisão do mundo atual em que é flagrante a
dominação dos pobres pelos ricos, dos débeis pelos poderosos. Acaso sabemos que nosso
desperdício de recursos naturais e de matérias-primas não seria possível sem o controle do
intercâmbio comercial por parte dos países ocidentais? Não vemos quem se aproveita do
tráfico de armas, coisa de que nosso país tem dado tristes exemplos? Acaso compreendemos que a militarização dos regimes de países pobres é uma das conseqüências da dominação econômica e cultural exercida pelos países industrializados, nos quais a vida rege-se
pelo afã do lucro e pelos poderes do dinheiro?”
Ditadores, torturadores, inquisidores: como bancos ou o correio, o terror tem funcionários, e é
aplicado porque é necessário. Não se trata de uma conspiração de perversos. O general Pinochet
pode parecer personagem de uma tela negra de Goya, um banquete para psicanalistas ou
o herdeiro de uma truculenta tradição das repúblicas das bananas. Mas os traços clínicos
ou folclóricos deste ou daquele ditador que servem para condimentar a história, não são a
história. Quem é que se atreveria a afirmar que a primeira guerra mundial eclodiu causada
pelos complexos do Káiser Guilherme, que tinha um braço mais curto que outro? “Nos
paises democráticos não é revelado o caráter de violência que a economia tem; nos países
autoritários acontece o mesmo com o caráter econômico da violência”, havia escrito Bertold
Brecht, no seu diário de trabalho em fins de 1940.
Nos países do sul da América Latina, os centuriões ocuparam o poder em função de
uma necessidade do sistema e o terrorismo de Estado se põe a funcionar quando as classes
dominantes já não podem realizar seus negócios por outros meios. E m nossos países não
existiria tortura se não fosse eficaz; a democracia formal teria continuidade caso se pudesse garantir
que não escaparia ao controle dos donos do poder.Em termos difíceis, a democracia transforma-se
em crime contra a segurança nacional, ou melhor, contra a segurança dos privilégios
internos e os investimento estrangeiros. Nossas máquinas de moer carne humana integram uma engrenagem internacional. A sociedade inteira se militariza, o estado de excessão
passa a ser permanente e o aparelho de repressão torna-se hegemônico a partir de um
apertar de parafusos lá nos centros do sistema imperialista. Quando a sombra da crise
7. U.S. House of Representatives, Comite on Appropriations, Foreign Operation Appropriations
for 1963, Hearing 87th. Congress, 2nd. Session, Part 1.
8. Declaración de Lourdes, octubre de 1976.
192
espreita, faz-se necessário o saque aos países pobres para garantir o pleno emprego, as
liberdades públicas e as altas taxas de desenvolvimento dos países ricos. Relações de vítima
e carrasco; dialética sinistra: há uma estrutura de humilhações sucessivas que começa nos mercados
internacionais e nos centros financeiros e termina na casa de cada cidadão.
10
O Haiti é o país mais pobre do hemisfério ocidental. Lá existem mais lava-pés
que sapateiros: meninos que em troca de uma moeda lavam os pés de clientes descalços,
que não têm sapatos para engraxar. Os haitianos vivem, em média, pouco mais de trinta
anos. De cada dez haitianos, nove não sabem ler nem escrever.Para o consumo interno são
cultivadas as ásperas encostas das montanhas.
Para a exportação, cultivam-se os vales férteis: as melhores terras são dedicadas ao
café, ao açúcar, ao cacau e a outros produtos requeridos pelo mercado norte-americano.
Ninguém joga beisebol no Haiti, mas o Haiti é o principal produtor mundial de bolas de
beisebol. No país não faltam oficinas onde crianças trabalham a um dólar por dia armando
cassetes e peças eletrônicas. São, é claro, produtos de exportação. Também é claro que os
lucros são exportados, uma vez (é claro!) deduzida a parte que corresponde aos administradores do terror. O menor sinal de protesto, no Haiti, resulta em prisão ou morte. Por
incrível que pareça, os salários dos trabalhadores haitianos perderam, entre 1971 e 1975,
um quarto de seu valor real9. È significativo que nesse período tenha entrado no país um
novo fluxo de capital norte-americano.
Lembro-me de um editorial de um jornal de Buenos Aires publicado há dois anos. O
jornal velho e conservador espumava de ira porque em algum documento internacional a
Argentina aparecia como país subdesenvolvido e dependente. Como uma sociedade culta, européia, próspera e branca podia ser medida com o mesmo metro com que se media
um país tão pobre e tão negro como o Haiti?
Sem dúvida; as diferenças são enormes - ainda que pouco tenham a ver com as
arrogantes categorias analíticas da oligarquia de Buenos Aires. Mas, com todas as diferenças e contradições que se queira, a Argentina não está a salvo do círculo vicioso que
estrangula a economia latino-americana no seu conjunto e não há esforço de exorcismo
intelectual que possa subtraí-la da realidade que compartem - uns mais, outros menos - os
demais países da região.
Afinal de contas, as matanças do general Videla não são mais civilizadas que as de
Papa Doc Duvalier ou de seu herdeiro no trono, ainda que na Argentina a repressão tenha
um nível tecnológico mais alto. No essencial, as duas ditaduras funcionam a serviço do
mesmo objetivo: proporcionar braços baratos para um mercado internacional que exige produtos
baratos.
Assim que chegou ao poder, a ditadura de Videla apressou-se em proibir as greves e
decretou a liberdade de preços ao mesmo tempo em que encarcerava os salários. Cinco
meses depois do golpe de Estado, a nova lei de investimentos estrangeiros pôs em igualdade de condições as empresas nacionais e estrangeiras. Assim, a livre concorrência terminou com a situação de desvantagem injusta em que se encontravam algumas corporações
multinacionais frente às empresas locais. A desamparada General Motors, por exemplo,
cujo volume mundial de vendas equivale ao produto nacional bruto da Argentina inteira.
Agora também ficou livre, com frágeis limitações a remessa de lucros e a repatriação do
capital estrangeiro ao exterior.
Quando o regime completou seu primeiro ano de vida, o valor real dos salários havia
sido reduzido em quarenta por cento. Foi uma façanha realizada pelo terror.“Quinze mil
9. Le nouvelliste, Puerto Príncipe, Haití, 19-20 de março de 1977. Dado citado por Agustin Cueva
em "O desenvolvimento do capitalismo na América Latina", Siglo XXI, México, 1977.
193
desaparecidos, dez mil presos, quatro mil mortos, dezenas de milhares de exilados, são a
cifra nua deste terror”, denunciou o escritor Rodolfo Walsh numa carta aberta. A carta foi
enviada dia 29 de março de 1977 aos três chefes da junta governamental. Neste mesmo
dia, Walsh foi seqüestrado e desapareceu.
11
Fontes insuspeitas confirmam que uma parte ínfima dos novos investimentos
estrangeiros diretos na América Latina, realmente provém do país de origem. Segundo
uma pesquisa publicada pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos 10, apenas
doze por cento dos fundos vêm da matriz norte-americana, cerca de vinte e dois por cento
correspondem a lucros obtidos na América Latina e os sessenta e seis por cento restantes,
saem das fontes de crédito interno e, principalmente, do crédito internacional. A proporção para investimentos europeus e japoneses é semelhante; e é necessário ter em
conta que, freqüentemente, esses doze por cento de investimento que vêm das matrizes
não passam de transferência de maquinaria já usada ou reflete a taxação arbitrária que as
empresas impõem por seu know how, patentes ou marcas. Portanto, as corporações
multinacionais não só usurpam o crédito interno dos países onde operam em troca de uma “-injeção”
de capital bastante discutível, como também multiplicam-lhes a dívida externa.
Em 1975, a dívida externa latino-americana era quase três vezes maior que em
196911. Em 1975, Brasil, México, Chile e Uruguai, destinaram aproximadamente a metade
da receita de exportação para o pagamento da amortização de juros da dívida e para o
pagamento dos lucros das empresas estrangeiras estabelecidas nesses países. Os serviços
da dívida e a remessa de lucros tragaram, naquele ano, cinqüenta e cinco por cento das
exportações do Panamá e sessenta por cento das do Peru12. Em 1969, cada habitante da
Bolívia devia 137 dólares para o exterior. Em 1977, devia 483. Os habitantes da Bolívia não
foram consultados nem viram um só centavo destes empréstimos que deixaram-no com
a corda no pescoço.
Nos poucos países latino-americanos onde ainda se realizam eleições, o Citíbank não
figura como candidato em nenhuma chapa. Nenhum dos generais que exerce a ditadura
chama-se Fundo Monetário Internacional. No entanto, qual é a mão que executa e qual é
a consciência que ordena? Quem empresta, manda. Para pagar, é necessário exportar
mais, e é necessário exportar mais para financiar as importações e para fazer frente à
hemorragia de lucros e royalties que as empresas estrangeiras drenam para as duas matrizes. O aumento das exportações, que tem o poder de compra cada vez menor, implica
salários de fome. A pobreza em massa, chave do êxito de uma economia voltada para o
exterior, impede o crescimento do mercado interno de consumo numa proporção necessária para sustentar um desenvolvimento econômico harmonioso. Nossos países
transformam-se em eco e vão perdendo sua própria voz. Dependem de outros, existem
enquanto resposta às necessidades de outros. A remodelação da economia em função da
demanda externa, devolve-nos ao estrangulamento original: abre as portas ao saque dos
monopólios estrangeiro , se obriga a contrair novos e maiores empréstimos do meio bancá10. Ida May Mante, "Sources and Uses of fundd for a sample of majority-owned foreign affiliates
of U.S. companies, 1966-11972", U.S. Departament of Commerce, Survey of Corrent Business,
julho de 1975.
11. ONU, Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL),"O desenvolvi-mento social e
econômico e as relações externas da América Latina". São Domingos, República Dominicana,
fevereiro de 1977.
12. O dinheiro, que tem asinhas, viaja sem passaporte. Boa parte dos lucros gerados pela exportação de nossos recursos, escapa para os Estados Unidos, para a Suiça, para a Alemanha Federal,
ou para outros países, aonde dá um salto circense, para logo voltar às nossas comarcas convertido
em empréstimo.
194
rio internacional. O círculo vicioso é perfeito: a dívida externa e o investimento estrangeiro obrigam
a multiplicar exportações que eles próprios vão devorando. A tarefa não pode ser levada a cabo com
bons modos. Para que os trabalhadores latino-americanos cumpram a sua função de reféns da
prosperidade alheia, faz-se necessário que sejam mantidos prisioneiros -tanto do lado de dentro como
do lado de fora das barras dos cárceres.
12
A exploração selvagem da mão de obra não é incompatível com a tecnologia
intensiva. Nas nossas terras, nunca o foi: as legiões de trabalhadores bolivianos que deixaram seus pulmões nas minas de Oruro na época de Simon Patiño, por exemplo, trabalhava em regime de escravidão assalariada mas com máquinas muito modernas. O barão do
estanho soube combinar os mais altos níveis de tecnologia de sua época com mais baixos
níveis de salário13.
Em nossos dias, a importação da tecnologia das economias mais adiantadas, coincide com o processo de expropriação das empresas industriais de capital local por parte das
todo-poderosas corporações multinacionais. 0 movimento de centralização do capital
cumpre-se através de uma “queima impiedosa dos níveis empresariais obsoletos que,
sem ser por acaso, são justamente os de propriedade nacional”14. A acelerada
desnacionalização da indústria latino-americana traz consigo uma crescente dependência
tecnológica. A tecnologia - chave de poder decisiva - no mundo capitalista, está monopolizada pelos centros metropolitanos. A tecnologia vem em segunda mão, mas estes centros cobram cópias como se fossem originais. O México, em 1970, pagou o dobro do que em
1968 pela importação de tecnologia. Entre 1965 e 1969, o Brasil duplicou os seus gastos; e
foi isto o que também aconteceu com a Argentina, em relação ao mesmo período.
O transplante de tecnologia aumenta as já bem nutridas dívidas externas e tem
conseqüências devastadoras no mercado de trabalho. Num sistema organizado para a
drenagem de lucros no exterior, mão-de-obra da empresa “tradicional”, vai perdendo
oportunidades de emprego. Em troca de um duvidoso impulso dinamizador, no resto da
economia, as ilhotas da indústria moderna sacrificam braços ao reduzir o tempo de trabalho necessário para a produção. A existência de um gordo e crescente exército de desempregados facilita, por sua vez, o assassinato do valor real dos salários.
13
Até os documentos da CEPAL, falam agora de uma divisão internacional do
trabalho. Dentro de alguns anos, conforme prevê a esperança dos técnicos, a América
Latina talvez esteja exportando manufaturados na mesma medida em que exporta hoje
matérias-primas e alimento. “As diferenças salariais entre países desenvolvidos e os em
via de desenvolvimento - incluindo os da América Latina - podem induzir a uma nova
divisão de atividades entre os países, deslocando, em função da competição, indústrias cujo custo de mão-de-obra seja muito importante - dos primeiros para os segundos. Os
custos de trabalho da indústria manufatureira, por exemplo, são muito mais baixos no
Brasil e no México do que nos Estados Unidos”15.
Impulso do progresso ou aventura neocolonialista? O maquinário elétrico e não
elétrico já figura entre os principais produtos de exportação do México. No Brasil, cresce a
venda de veículos e armamentos para o exterior. Alguns países latino-americanos, vivem
uma nova etapa de industrialização, induzida, e orientada em grande medida, pelas
necessidades estrangeiras e pelos donos dos meios de produção estrangeiros. Não seria
13. Agustín Cueva, op. cit. cm 9.
14. ldem.
15. Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cit. em 11.
195
este mais um capítulo para acrescentar à nossa longa história de “desenvolvimento voltado para fora”? Nos mercados internacionais, os preços em constante ascensão, geralmente
não correspondem aos “produtos manufaturados”, mas sim às mercadorias mais sofisticadas e de maior componente tecnológico, que são exclusividades das economias mais
desenvolvidas. Venda o que venda, o principal produto de exportação da América Latina, são seus
braços baratos.
A nossa história não tem sido uma continua experiência de mutilação e desintegração disfarçada de desenvolvimento? Séculos atrás a conquista arrasou os solos para implantar cultivos de exportação e aniquilou populações indígenas no garimpo das covas e
beiras de rio para satisfazer a demanda de prata e ouro de ultramar. A alimentação da
população pré-colombiana, que pode sobreviver ao extermínio, piorou com o progresso
alheio. Nos nossos dias, o povo do Peru produz farinha de peixe, muito rica em proteínas,
para as vacas dos Estados Unidos e da Europa, mas as proteínas brilham pela sua ausência
na dieta da maioria dos peruanos. A filial da Volkswagen na Suíça planta uma árvore por
automóvel que vende - gentileza ecológica - enquanto no Brasil, ao mesmo tempo, a filial
da Volkswagen arrasa centenas de hectares de matas que dedicará à produção intensiva
de carne de exportação. 0 povo brasileiro vende cada vez mais carne ao estrangeiro e é rara
a vez que pode comer carne. Não faz muito tempo que Darcy Ribeiro, numa conversa, me
disse que uma república volkswagen não é diferente, no que é essencial, de uma república
bananeira. Por dólar gerado pela exportação de bananas, apenas onze centavos ficam no
país produtor16, e desses onze centavos, uma parte insignificante chega aos trabalhadores
das plantações. As proporções serão alteradas quando um país latino-americano exporta
automóveis?
Os navios negreiros já não cruzam mais o oceano. Agora, os traficantes de escravos operam a
partir do Ministério do Trabalho. Salários africanos, preços europeus. O que são os golpes de
Estado na América Latina senão que sucessivos episódios de uma guerra de rapina? As
flamantes ditaduras, de imediato, convidam as empresas estrangeiras para explorar a
mão-de-obra local abundante e barata. O crédito é ilimitado, as isenções de impostos e os
recursos naturais ficam ao alcance da mão.
14
Os empregados do plano de emergência do governo chileno, recebem salários
equivalentes a trinta dólares por mês. Recebem, portanto, dois quilos de pão por dia. O
salário mínimo no Uruguai e na Argentina eqüivale, atualmente, ao preço de seis quilos de
café. O salário mínimo no Brasil é de sessenta dólares mensais, mas os bóia-frias, trabalhadores rurais ambulantes, cobram entre cinqüenta centavos e um dólar por dia de trabalho
nas plantações de café, soja e outros cultivos de exportação. A forragem que as vacas
comem no México, contém mais proteínas que o que comem os trabalhadores que delas se
ocupam. A carne dessas vacas destina-se a umas poucas e privilegiadas bocas dentro do
país e, sobretudo, para o mercado internacional. No amparo de uma generosa política de
créditos e facilidades oficiais, floresce no México a agricultura de exportação, enquanto
entre 1970 e 1976 baixou a quantidade de proteínas disponíveis por habitantes e nas zonas
rurais, somente uma de cada cinco crianças tem peso e estatura normais17. Na Guatemala,
o arroz, o milho e o feijão, destinados para o consumo interno estão abandonados à boa
vontade de Deus, mas o café, o algodão e outros produtos de exportação, acamparam mais
de oitenta e sete por cento de crédito. De cada dez famílias guatemaltecas que trabalham
no cultivo e na colheita do café, apenas uma alimenta-se adequadamente segundo os
16. UNCTA D, "The Marketing and Distribution System for Bananas". Dezembro de 1974.
17. "Reflexões sobre a desnutrição no México", Comercio exterior, Banco Nacional de Comercio
Exterior,S.A., vol. 28, nº 2. México, fevereiro de 1978.
196
níveis mínimos18. No Brasil, somente cinco por cento dos créditos agrícolas destinam-se
para o arroz, feijão e mandioca - que constituem a dieta básica do brasileiro. O resto é
canalizado para os produtos de exportação.
Quando o preço internacional do açúcar foi derrubado recentemente, não eclodiu,
como antes acontecia, uma maré de fome entre os camponeses de Cuba. Em Cuba já não
existe mais a desnutrição. A elevação, quase simultânea, dos preços internacionais do
café, ao contrário, não aliviou em nada a miséria crônica dos trabalhadores dos cafezais
brasileiros. O aumento da cotação do café em 1976, - euforia ocasional provocada pelas
geadas que arrasaram as colheitas brasileiras “não se refletiu diretamente nos salários”, foi
como reconheceu um alto dirigente do Instituto Brasileiro do Café19.
Na realidade, os cultivos de exportação, não são de per si incompatíveis com o
bem-estar da população, nem contradizem, por si só, o desenvolvimento econômico “para
dentro”. Afinal de contas, em Cuba, as vendas de açúcar para o exterior têm servido de
alavanca para a criação de um mundo novo no qual todos têm acesso aos frutos do
desenvolvimento e a solidariedade é o eixo das relações humanas.
15
Já se sabe quem são os condenados que pagam as crises de reajuste do sistema.
Os preços da maioria dos produtos da América Latina baixam implacavelmente em relação aos preços dos produtos que compra dos países que monopolizam a tecnologia, o
comércio, a indústria e o crédito. Para compensar a diferença, e fazer frente às obrigações
para com o capital estrangeiro, torna-se necessário cobrir em quantidade o que se perde no preço.
Dentro deste esquema, as ditaduras do Cone Sul cortaram pela metade os salários dos
operários e converteram cada um dos centavos de produção em campo de trabalho forçado. Os operários também têm que compensar a queda do valor de sua forca de trabalho, que é o
produto que eles vendem ao mercado. Os trabalhadores são obrigados a cobrir em quantidade de
horas, o que perdem do poder aquisitivo do salário. Assim, são reproduzidas as leis do mercado
internacional no micromundo da vida de cada trabalhador latino-americano. Para os trabalhadores que têm “a sorte” de contar com um emprego Fixo, as jornadas de oito horas só
existem como letra morta das leis. Trabalha-se com freqüência dez, doze, até quatorze
horas, e são muitos os que perderam os domingos.
Ao mesmo tempo, multiplicaram-se os acidentes de trabalho: sangue humano
ofertado nos altares da produtividade. Três exemplos de Fins de 1977 acontecidos no
Uruguai:
- Nas pedreiras da rede ferroviária, que produzem pedras e balastro, duplicam-se os
rendimentos. No princípio da primavera, quinze operários morrem numa explosão.
- Filas de desempregados diante de uma fábrica de fogos de artifício. Vários meninos na produção. Recordes são batidos. Em 20 de dezembro, uma explosão: cinco trabalhadores mortos e dezenas de feridos.
- No dia 28 de setembro, às sete da manhã, os operários negam-se a entrar numa
fábrica de conservas de peixe porque sentem um forte cheio de gás. São ameaçados: se
não entram, perdem o emprego. Eles continuam se negando a entrar. São ameaçados:
vamos chamar os soldados. A empresa já havia convocado o exército de outras vezes. Os
operários entram. Quatro mortos e vários hospitalizados. Havia um escapamento de gás
amoníaco20.
18. Roger Burbach e Patricia Flyn, "Agribusiness Targets; Latin America", NACLA, volume XII, nº
1 Nova York, janeiro-fevereiro de 1978.
19. Idem.
20. Dados de fontes sindicais e jornalísticas, publicados em Uruguay Informations, nºs 21 e 25,
Paris.
197
16
Carolina Maria de Jesus nasceu no meio da sujeira e dos urubus.
Cresceu, sofreu, trabalhou duro; amou homens, teve filhos. Num livrinho, anotava
com letra ruim suas tarefas e seus dias.
Um jornalista leu esses livros por acaso e Carolina Maria de Jesus converteu-se
numa escritora famosa. Seu livro Quarto de Despejo, diário de cinco anos de vida num
sórdido subúrbio da cidade de São Paulo, foi lido em quarenta países etraduzido para treze
idiomas.
Cinderela do Brasil, produto do consumo mundial, Carolina Maria de Jesus saiu da
favela, correu mundo, foi entrevistada e fotografada, premiada pelos críticos, agasalhada
pelos cavalheiros e recebida por presidentes.
Passaram-se os anos. No início de 1977, numa madrugada de domingo, Carolina
Maria de Jesus morreu em meio ao lixo e as urubus. Ninguém lembrava da mulher que
escrevera: “A fome é a dinamite do corpo humano”.
Ela, que havia vivido de restos, pôde ser, fugazmente, uma eleita. Foi permitido a ela
sentar-se à mesa. Depois da sobremesa, rompeu-se o encanto. Enquanto seu sonho transcorria, o Brasil continuava sendo um país onde a cada dia, 100 trabalhadores ficam lesados
por acidentes de trabalho e onde quatro de cada dez crianças que nascem, são obrigadas a
converterem-se em mendigos, ladrões ou mágicos.
Ainda que as estatísticas sorriam, as pessoas estão arruinadas. Em sistemas organizados ao contrário, quando a economia cresce, cresce com ela a injustiça social. No período
de maior êxito do “milagre” brasileiro, aumentou a taxa de mortalidade infantil nos
subúrbios da cidade mais rica do país. A súbita prosperidade do petróleo no Equador
trouxe televisão a cores em vez de escolas e hospitais.
As cidades vão inchando até explodirem. Em 1950, a América Latina tinha seis
cidades com mais de um milhão de habitantes. Em 1980, terá vinte e cinco21. As vastas
legiões de trabalhadores que o campo expulsa, compartilham, nas margens dos grandes
centros urbanos, a mesma sorte que o sistema reserva aos jovens cidadãos que “sobram”.
Aperfeiçoar-se - velhacaria latino-americana - as formas de sobrevivência dos caça-vidas.
“O sistema produtivo vem mostrando uma visível insuficiência para gerar emprego produtivo, que absorva a crescente força de trabalho da região, especialmente, os grandes
contingentes de mão-de-obra urbana...”22.
Um estudo da Organização Mundial do Trabalho assinalava, faz pouco tempo, que
na América Latina existem mais de 110 milhões de pessoas em condições de “grave
pobreza”. Delas, setenta milhões podem ser consideradas “indigentes”23. Qual é a porcentagem da população que come menos do necessário? Na linguagem dos técnicos, aqueles
que têm “orçamento inferior ao custo da alimentação mínima equilibrada”, são 43% dos
colombianos, 42% da população brasileira, 49% da de Honduras, 31% dos mexicanos, 45%
dos peruanos, 29% dos chilenos, 35% dos equatorianos24.
Como afogar explosões de rebelião das grandes maiorias condenadas? Como prevenir essas possíveis explosões? Como evitar que essas maiorias sejam cada vez mais amplas
se o sistema não funciona para elas? Excluindo-se a caridade, sobra a polícia.
21.
22.
23.
24.
Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cit. em 11.
Idem.
OIT, "Emprego, crescimento e necessidades essenciais". Genebra, 1976.
Organização das Nações Unidas, CEPAL, op. cil., em 11.
198
17
Nas nossas terras, a indústria do terror paga caro (como qualquer outra) pelo
know-how estrangeiro. Compra-se e se aplica, em grande escala, a tecnologia
norte-americana da repressão, experimentada nos quatro pontos cardeais do planeta.
Mas, seria injusto não reconhecer certa capacidade criativa, neste campo de atividades,
das classes dominantes latino-americanas.
Nossas burguesias não foram capazes de um desenvolvimento econômico independente e suas tentativas de criação de uma industria nacional tiveram vôo de galinha - vôo
curto e baixinho. Ao longo de nosso processo histórico, os donos do poder têm dado, de
sobra, provas de sua falta de imaginação política e de sua esterilidade cultural. No entanto,
têm sabido montar uma gigantesca máquina do medo e fizeram contribuições de cunho
próprio à técnica do extermínio de pessoas e de idéias. Neste sentido, é reveladora a
recente experiência dos países do rio da Prata.
“Atarefa de desinfeção nos custará muito tempo”, advertiram, logo na entrada, os
militares argentinos. As forças armadas foram sucessivamente convocadas pelas classes
dominantes do Uruguai e da Argentina para esmagar as forças da mudança, arrancar suas
raízes, perpetuar a ordem interna de privilégios e gerar condições econômicas e políticas
sedutoras para o capital estrangeiro: terra arrasada, país em ordem, trabalhadores mansos
e baratos. Não há nada mais em ordem que um cemitério. A população converte-se, de
imediato, em inimigo interno. Qualquer sinal de vida, protesto ou mera dúvida, constitui
um perigoso desafio partindo-se do ponto de vista da doutrina militar de segurança nacional.
Assim, foram articulados complexos mecanismos de repressão e castigo.
Uma profunda racionalidade esconde-se por baixo das aparências. Para operar eficazmente, a repressão tem de parecer arbitrária. Excetuando-se a respiração, toda atividade humana pode constituir delito. No Uruguai, a tortura é aplicada como sistema habitual de interrogatório:
qualquer um pode ser sua vítima, e não apenas os suspeitos e os culpáveis por atos de oposição. Desta
maneira, difunde-se o pânico da tortura entre todos os cidadãos, como um gás paralisante que invade
casa por casa e infiltra-se na alma de cada cidadão.
No Chile, a caça deixou um saldo de trinta mil mortos, mas na Argentina não se
fuzila: seqüestra-se. As vítimas desaparecem. Os exércitos invisíveis da noite realizam a
tarefa. Não há cadáveres, não há responsáveis. Assim, a matança - sempre oficiosa, nunca
oficial - realiza-se com a maior impunidade. Assim é irradiada com mais potência a angústia coletiva. Ninguém presta contas, ninguém oferece explicações. Cada crime é uma
dolorosa incerteza para os seres próximos à vítima e é também uma advertência para
todos os demais. O terrorismo de Estado se propõe a paralisar, pelo medo, a população.
No Uruguai, para obter trabalho ou conservá-lo é preciso contar coma boa aprovação
dos militares*. Num país onde é tão difícil conseguir emprego fora dos quartéis e repartições congêneres, esta obrigação só serve para empurrar para o êxodo boa parte dos trezentos mil cidadãos fichados como esquerdistas. Isto também é útil para ameaçar o restante
dos cidadãos. Os jornais de Montevidéu costumam publicar arrependimentos públicos e
declarações de cidadãos que batem no peito à guisa de prevenção: “Nunca fui, não sou,
não serei...”
Na Argentina já não há necessidade de se proibir nenhum livro por decreto. O novo
Código Penal sanciona, como sempre, o escritor e o editor de um livro que for considerado
subversivo. Mas, além disto, castiga o impressor, para que ninguém se atreva a imprimir
um texto simplesmente duvidoso, castiga o distribuidor e o livreiro, para que ninguém se
*. (N.T.) Existe no Uruguai algo que corresponde ao nosso atestado de bons antecedentes.
199
atreva a vendê-lo e, como se fosse pouco, castiga o leitor, para que ninguém se atreva a
lê-lo e muito menos guardá-lo. O consumidor de um livro, recebe, assim, o tratamento que
a lei reserva para o consumidor de drogas25.No projeto de uma sociedade de surdo-mudos, cada
cidadão deve converter-se em seu próprio Torquemada.
No Uruguai, deixar de delatar o próximo é delito. Ao entrar na Universidade, os
estudantes juram por escrito que denunciarão todo aquele que realize, no ambiente universitário, “qualquer atividade alheia às funções de estudo”. O estudante faz-se coresponsável de qualquer episódio que aconteça em sua presença. No projeto de uma
sociedade de sonâmbulos, cada cidadão deve converter-se em seu próprio policial e no dos
outros. Apesar disto, o sistema, com toda a razão desconfia. São cem mil os soldados e
policiais, mas também são cem mil os informantes. Os espiões trabalham nas ruas, nos
cafés, nos ônibus, nas fábricas, nos ginásios, nos escritórios e nas Universidades. Quem se
queixar em voz alta de como está tão cara e dura a vida, vai parar na prisão: cometeu um
“atentado contra a força moral das Forças Armadas”, coisa que é paga com três a seis anos
de prisão.
18
No plebiscito de janeiro de 1978, o voto de sim a favor da ditadura de Pinochet
era marcado com uma cruz debaixo da bandeira Chilena. O voto de não, por outro lado, foi
marcado debaixo de um retângulo negro.
O sistema quer confundir-se com o país. O sistema é o país, diz a propaganda oficial
que dia e noite bombardeia os cidadãos. O inimigo do sistema é um traidor da pátria. A
capacidade de indignação contra a injustiça e a vontade de mudar constituem provas da
deserção. Em muitos países da América Latina, quem não está exilado para lá das fronteiras, vive exilado na própria terra.
Porém, ao mesmo tempo que Pinochet celebrava sua vitória, a ditadura chamava de
“ausência laboral coletiva” às greves que eclodiam em todo o Chile apesar do terror. A
grande maioria de desaparecidos e seqüestrados na Argentina é constituída por operários
que desenvolveram alguma atividade sindical. Na inesgotável imaginação popular, são
geradas, sem cessar, novas formas de luta: o trabalho-tristeza, o trabalho-bronqueado; a
solidariedade encontra novos canais para iludir o medo. Várias greves unânimes sucederam-se na Argentina ao longo de 1977, quando o perigo de perder a vida era tão certo como
o risco de perder o trabalho. Não se destrói de uma penada o poder de contestação de uma
classe obreira organizada e com longa tradição de luta. Em maio do mesmo ano, quando a
ditadura uruguaia fez o balanço de seu programa de esvaziamento de consciência e castração coletiva, viu-se obrigada a reconhecer que “ainda restam no país trinta e sete por cento
de cidadãos interessados pela política”26.
Nestas terras, o que assistimos não é a infância selvagem do capitalismo, mas a sua
cruenta decrepitude. O subdesenvolvimento não é uma etapa do desenvolvimento. É sua
conseqüência. O subdesenvolvimento da América Latina provém do desenvolvimento
alheio e continua a eliminá-lo. Impotente pela sua função de servidão internacional,
25. No Uruguai, os inquisidores modernizaram-se. Curiosa mistura de Idade Média e senso
capitalista de negócios. Os militares já não queimam livros: agora vendem-nos a indústrias do
papel. As indústrias retalham-no, convertem-no em polpa de papel e devolvem-nos ao mercado
consumidor. Não é verdade que Marx não esteja ao alcance do público. Não está em forma de
livros. Está em forma de guardanapos de papel.
26. Entrevista à imprensa do presidente Aparício Méndez, em 21 de maio de 1977, em
Paysandú."Estamos tratando de poupar o país da tragédia da paixão política", disse o presidente.
"Os homens de bem não falam de ditaduras, não pensam em ditaduras nem reclamam direitos
humanos".
200
moribundo desde que nasceu, o sistema tem pés de barro. Postula a si próprio como
destino e gostaria de confundir-se com a eternidade. Toda memória é subversiva porque é
diferente. Todo projeto de futuro também. Obrigam zumbi a comer sem sal: o sal, perigoso,
poderia despertá-lo. O sistema encontra seu paradigma na imutável sociedade das formigas. Por isto se dá mal com a história dos homens: pelo muito que esta muda. E porque, na
história dos homens, cada ato de destruição encontra sua resposta - cedo ou tarde - num
ato de criação.
EDUARDO GALEANO
Calella, Barcelona,
abril de 1978.
201
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
AMÉRICA LATINA NO OLHO DA TORMENTA MUNDIAL
Osvaldo Coggiola (USP)
A crise econômica mundial, e suas decorrências políticas, põem a América Latina no
limiar de uma virada política de muito maior alcance do que aquela que, na virada do século,
levou à ascensão dos governos de esquerda. O secretário de Estado de George W. Bush para
América Latina (Thomas Shannon) foi confirmado no cargo por Barack Obama. Mais
importante do que isso – um sinal claro de continuísmo (não esqueçamos que Shannon foi o
“articulador à distância” da tentativa golpista contra Evo Morales) – foi o elogio a Shannon
tecido pelo porta-voz da política externa do governo brasileiro. Shannon anunciou que dará
uma nova oportunidade de reaproximação com os EUA à Venezuela de Chávez.1 Os próprios
Fidel e Raúl Castro teceram elogios à personalidade de Obama. Desenhar-se-ia assim o
terreno de uma grande entente política, cuja realização, no entanto, apresenta os mesmos
problemas da quadratura do círculo.2 Evo Morales mandou para casa, em finais de 2008, o
embaixador
dos
EUA
na
Bolívia,
o
bushiano
Philip
Goldberg,
conspirador
golpista
3
internacional profissional, no apagar das luzes da administração do petroleiro texano.
A possibilidade dos EUA pressionarem e intervirem abertamente no continente (seu
“quintal” histórico) diminuiu e diminui ao ritmo de seu declínio econômico e da crise de sua
intervenção militar em outras regiões (Oriente Médio, Ásia Central). Limitados para recorrer
aos clássicos golpes militares, os EUA, já com Bush, passaram a usar na América Latina o
chamado soft power,4 que inclui a maior vergonha do continente: a ocupação militar do Haiti
1
As declarações de Chávez a respeito da vitória de Obama foram contraditórias. A base para
uma “aproximação” dos EUA com Chávez (depois da catástrofe diplomática dos EUA na Venezuela, em
2002) seria uma chantagem econômica. A queda dos preços do petróleo ameaça a sobrevivência dos
programas sociais do governo venezuelano. Para aumentar a produção, o governo precisaria das
companhias de petróleo estrangeiras. Em face do colapso dos preços e de uma queda na produção
doméstica, o governo começou a solicitar ofertas de algumas das maiores companhias de petróleo, entre
elas Chevron, Royal Dutch-Shell e Total, acenando com o acesso das mesmas a algumas das suas
maiores reservas de petróleo, para escorar a PDVSA. Nos últimos anos, Chávez deu preferência a
parcerias com companhias nacionais de petróleo de países como Irã, China e Bielo-Rússia. Mas essas
joint ventures não conseguiram reverter o declínio da produção local. O processo ganhou impulso com o
início da avaliação dos planos das companhias interessadas para novas áreas na Faixa do Orinoco, com
estimados 235 bilhões de barris de petróleo de reserva. Mais de US$ 20 bilhões em investimento
poderiam ser necessários para montar os complexos capazes de produzir 1,2 milhão de barris de
petróleo por dia.
2
O time de Obama para América Latina não deixa enxergar nenhuma renovação ou
“novidade”. Seus membros principais (Dan Restrepo, Robert Gelbard, Jeffrey Davidow, Arturo
Valenzuela, Vicki Huddleston), onde abundam sobrenomes “latinos”, são veteranos da administração de
Bill Clinton, que já se exerceram nos cargos respectivos.
3
Sem esquecer a ruptura de relações diplomáticas com Israel levada adiante pelos governos
de Evo Morales e Chávez durante o massacre em Gaza.
4
Que não se contrapõe ao uso da força, mas prefere o uso de “intermediários”, como no caso
do Haiti, ou da agressão militar colombiana contra Equador, que terminou numa vitória diplomática dos
agressores (e dos EUA). Disse Modesto Guerrero: “Con el final del conflicto en la Asamblea de la
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
por tropas “latino-americanas”, que realizam na desgraçada ilha do Caribe o serviço policial
que os EUA, embrenhados até o
pescoço
no Iraque e no Afeganistão, estavam
impossibilitados de fazer.
Barack Obama ordenou a desativação da prisão militar de Guantánamo (Cuba),
centro de torturas do exército imperialista, mas nem cogita em devolver o território da base
– que há mais de um século inspirou a mais cubana de todas as poesias a José Martí – a
Cuba. Nem voltar atrás na reativação dos exercícios militares da IV Frota, encarregada do
patrulhamento da costa atlântica de América Latina, et pour cause: a Frota Naval do
comando militar dos EUA está de olho na descoberta de imensas reservas de petróleo e gás
natural no mar brasileiro, numa faixa que se estende do litoral de Santa Catarina ao do
Espírito Santo, situada a 7 mil metros abaixo da superfície do mar, na camada pré-sal.
Segundo estimativas, as reservas têm 50 bilhões de barris de petróleo e gás. As descobertas
podem colocar o Brasil como detentor da terceira maior reserva do mundo, e, somadas às
reservas da Venezuela, da Bolívia e do Equador, fortalecem a posição sul-americana em
relação às potências econômicas. Por isso, as garras militares do imperialismo estão afiadas
e prontas para o uso.
A bancarrota capitalista, porém, também mina as bases econômicas das experiências
reformistas ou nacionalistas baseadas em concessões sociais, tornadas possíveis por uma
conjuntura econômica internacional favorável, que hoje se volatiliza.5 Isso também afeta os
governos “neoliberais”, agências diretas do capital financeiro internacional. A América Latina
entra em uma nova etapa de lutas nacionais e de classes. Toda a nossa história política
esteve sempre ligada ou determinada pelas convulsões da economia e da política mundiais.
A crise em curso irrompe na América Latina depois de uma série de bancarrotas capitalistas,
crises políticas e levantamentos sociais, um terreno já preparado para uma forte tensão e
instabilidade políticas.
O cenário político latino-americano esteve dominado, na última década, por
profundas
crises
políticas
e
por
enormes
mobilizações
de
massas,
classistas
e
antiimperialistas, em especial nos países andinos. E também pelos choques entre os
governos nacionalistas “radicais” que surgiram dessas crises, e os EUA. A emergência da
Organización de Estados Americanos (OEA) y la reunión del Grupo de Río realizadas en forma simultánea
(el) resultado fue una contradicción que le puede costar caro al continente. Uribe fue salvado y con él, la
vigencia de la "Doctrina Patriota" del actual grupo dominante en Washington. Lo cualitativamente nuevo
es que esta vez esa Doctrina agresiva la aplica un Estado latinoamericano contra otro igual”. O Estado
terrorista, que possui o segundo exército do sub-continente (depois do brasileiro), foi posto a salvo pela
diplomacia “pacifista” internacional.
5
Simbolicamente, uma das bandeiras históricas da soberania nacional latino-americana entrou
em colapso com a crise mundial. O presidente panamenho Martín Torrijos anunciou que o país assumiu
um empréstimo de dois bilhões de dólares para financiar a ampliação do Canal de Panamá, mas esta se
enfrenta à pior crise do comércio marítimo mundial desde a década de 1930. A empresa Lloyd’s List
informou que cinco empresas de transporte marítimo de conteiners reduziram suas rotas devido à
recessão econômica mundial.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
esquerda na América Latina é geralmente localizada em um período que se estende de 1998
(eleição de Chávez para a presidência da Venezuela) até 2008 (eleição de Fernando Lugo
para a presidência do Paraguai, pondo fim a seis décadas de governo do Partido Colorado),
passando pelas eleições de Lula, Michelle Bachelet, Evo Morales, Kirchner, Daniel Ortega,
Rafael Correa (e sendo previsível, para o futuro imediato, a vitória eleitoral da FMLN em El
Salvador). Essa “onda” de esquerda é também explicada pelo fracasso econômico dos
governos neoliberais, seguidores da cartilha do FMI, sendo a bancarrota argentina de finais
de 2001 seu exemplo acabado.
O processo foi mais complexo, e combinou a crise econômica com a perda de base
política dos partidos tradicionais, nacionalistas ou “liberais”. O neoliberalismo, com as
privatizações maciças, a pressão pela abertura profunda dos mercados, em especial os do ex
“bloco socialista”, a estratégia do "Consenso de Washington", foi a expressão da procura de
uma saída para a massa de capital financeiro internacional acumulado desde antes da crise
dos anos setenta. Não era uma “ofensiva”, mas uma política de crise, o que explica
privatizações absolutamente aventureiras, como as dos serviços de água de Peru e Bolívia,
que desencadearam rebeliões populares massivas. Foi o impasse histórico do capital a escala
internacional o que deu a base para uma virada política de grande amplidão, com a
emergência de processos de autonomia nacional, incluindo (em especial nos países andinos)
o papel inédito das massas camponesas e indígenas. Na emergência desses processos
confluiu a derrubada dos partidos políticos tradicionais, que foram a garantia da estabilidade
capitalista durante décadas, com a crise mundial das relações econômicas capitalistas.
A crise política dos governos neoliberais (identificados com a estabilização monetária
baseada na âncora cambial, ou na dolarização) remonta a, pelo menos, uma década antes
da ascensão da esquerda. Ela já estava presente no “caracazo” venezuelano de 1989, nas
puebladas argentinas de início da década de 90, na tentativa golpista do coronel Hugo
Chávez em 1992,6 no levantamento camponês-zapatista de 1994 (ano, também, do “efeito
tequila”, com a brutal fuga de capitais e desvalorização do peso mexicano), e muitas outras
lutas espalhadas pelo continente. As frágeis bases econômicas dos governos neoliberais, que
sucederam às ditaduras militares (e que faziam da “democracia” reconquistada sua bandeira
de sustentação política) não resistiram à turbulência econômica mundial da década de 1990,
e à sua erosão provocada pelo aguçamento da luta de classes em cada país.
O processo revolucionário não achou de imediato, como nunca acontece, a expressão
política adequada ao movimento histórico que representa, sendo submetido a um choque de
tendências, criado pela crise mundial e pela crise das relações internacionais, no Mercosul,
6
Não é demais lembrar que quase toda a esquerda latino-americana, inclusive a que hoje
desfila sob os retratos do coronel venezuelano, repudiou a tentativa golpista de Chávez de 1992, e o fez
“em defesa das instituições democráticas” da Venezuela - então encabeçadas pelos social-democratas de
Carlos Andrés Pérez (ADN) e os democrata cristãos de Rafael Caldera (COPEI) - podres e corruptas até a
medula dos ossos.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
no CAN (Comunidade Andina) e na América Central, ou na questão dramática da imigração
ilegal entre México e os EUA. Dessa crise surgiu, na América Latina, uma experiência política
única em sua história, combinando a emergência de governos nacionalistas militares ou
indígenas, com apoio da esquerda, com a instalação de governos de centro-esquerda (ou
“progressistas”) integrados pela esquerda histórica, como no caso do governo do PT no Brasil
ou o da Frente Ampla no Uruguai. O marco histórico recente da radicalização política na
América Latina foi a crise revolucionária desatada na Argentina a partir de dezembro de
2001, que combinou a bancarrota capitalista com uma reação excepcional e organizada das
massas populares. Em seu rasto se produziram a vitória eleitoral de Lula e o PT no Brasil, em
finais de 2002; as insurreições populares na Bolívia, em 2003 e 2005, a eleição de Evo
Morales nesse país; a radicalização do processo venezuelano que, graças à importância
petroleiro-energética do país caribenho – sul-americano, ganhou projeção continental e
mundial; a continuidade, em fim, da luta guerrilheira na Colômbia.
Os primeiros meses do século XXI testemunharam um aprofundamento da luta de
classes, de crises políticas de fundo e uma febril intervenção política dos EUA. O
levantamento indígena-camponês em Equador que provocou a queda de Mahuad; a longa e
combativa greve dos estudantes da UNAM (Universidade Nacional Autônoma) no México; as
grandes mobilizações contra Fujimori no Peru; as massivas mobilizações de camponeses sem
terra no Brasil e no Paraguai; as greves gerais e as mobilizações dos “piqueteiros” na
Argentina; a “guerra da água” em Cochabamba (Bolívia), que rapidamente se converteu em
rebelião nacional, estendendo-se até às bases policiais, que se sublevaram em La Paz; a
rebelião contra a privatização da eletricidade na Costa Rica, a pueblada contra os “tarifaços”
em Honduras; todas essas mobilizações e crises políticas formavam um quadro radicalizado
na América Latina. A onda de mobilizações populares não enfrentava ditaduras militares,
mas os regimes “democráticos” desenhados pelos EUA e as burguesias locais. Nesses
processos surgiram formas de organização avançadas de luta, em especial no Equador,
Bolívia e Argentina. Em Equador, sobre a base do levantamento de 21 de janeiro de 2000, se
conformou um Parlamento Popular. Na Bolívia, a Coordinadora por el Agua y la Vida
centralizou a rebelião de Cochabamba; em setembro de 2000 uma luta nacional camponesa
comoveu o país. Na Argentina, greves gerais e o ascendente movimento “piqueteiro”
generalizaram a arma dos piquetes e cortes de estrada.
O período de maior mobilização política continental se registrou entre 1999 e 2003,
ou seja, até a insurreição boliviana que derrubou o governo de Gonzalo Sánchez de Losada,
que pretendia vender a preço vil o gás e o petróleo bolivianos a companhias dos EUA. Nesse
período houve novas insurreições equatorianas, a derrota do golpe “esquálido” (pró-EUA) na
Venezuela; depois, o fracasso do lock out patronal petroleiro nesse país e, sobretudo, o
argentinazo de dezembro de 2001. Logo depois grande parte da esquerda, mas de modo
algum obedecendo a uma estratégia única, chegou ao governo de seus países, diretamente
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
ou em coalizões, propulsada pela crise política e a bancarrota econômica continentais. As
burguesias locais e os próprios EUA tiveram que aceitar a mudança política, a “virada à
esquerda”, que antes denunciavam como o início do fim do mundo.
As mobilizações precedentes tinham, objetivamente, um caráter revolucionário.
Diante da ascensão dessa heterogênea esquerda, o mexicano Jorge Castañeda (ex ministro
do “presidente Coca-Cola” do México, Vicente Fox) buscou acalmar os ânimos (assustados)
dos porta-vozes e defensores do “capitalismo globalizado”, afirmando que, na realidade,
havia duas esquerdas na América Latina: a primeira “com raízes radicais, é hoje moderna e
aberta”, a segunda seria “fechada e fortemente populista” (nem é preciso dizer de quem ele
estava falando). E concluía recomendando ao governo dos EUA “uma ação mais ousada, uma
abordagem de estadista”, que consistiria em “fomentar a esquerda correta”, “distinguir a
esquerda sensata da irresponsável, apoiar a primeira e conter a segunda”. Para George
Bush, que destravara as negociações sobre a ALCA junto com o presidente Lula, tomando
nota de seu papel moderador (assim como de Kirchner) na Venezuela e na Bolívia, isto não
era novidade.
Mas, depois de um período de enfrentamentos locais e internacionais, os regimes
mais “radicais”, o bolivariano e o indigenismo andino, chegaram a (instáveis) compromissos
internacionais e com a burguesia local, disciplinando a rebelião popular: Chávez chamou os
venezuelanos a “voltar para casa”, depois da derrota do golpe direitista de abril de 2002,
evitando a mobilização popular, durante o lock out petroleiro ulterior. O ímpeto popular
espetacular nos países andinos foi contido para garantir a estabilidade do Estado. As
chancelarias das metrópoles imperiais, e algumas latino-americanas (Brasil e Argentina,
principalmente) desenvolveram uma pressão ativa para que os “nacionalistas radicais”
contivessem os processos populares.
Isto foi também possível porque, a partir de finais de 2002, a retomada do comercio
externo e da produção local, junto com o crescimento dos recursos fiscais, graças a um ciclo
comercial internacional favorável às matérias primas latino-americanas, serviu ao conjunto
dos governos da região (inclusive os neoliberais) para lubrificar os antagonismos sociais.
Desde 2003-2004 se produziu, de conjunto, um refluxo na mobilização de massas. Os
governos nacionalistas conseguiram administrar e canalizar a pressão popular para
neutralizar à oposição de direita, como fez Evo Morales com o bloqueio indígena e camponês
de Santa Cruz de la Sierra, em resposta ao levantamento golpista-separatista dos prefeitos
da Meia Lua do Oriente boliviano. Até hoje, os regimes nacionalistas propiciam mobilizações
para equilibrar as pressões da direita local, quando têm confiança de que podem enquadrálas dentro de certos limites. Abriu-se, desse modo, uma espécie de coexistência, mais ou
menos pacífica, mas também mais ou menos instável, entre os imperialismos dos EUA e da
Europa e os governos nacionalistas.
O governo de Lula tem sido a engrenagem mais importante dessa coexistência. Os
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
EUA, já a partir de Bush (isto é, sem esperar a Obama, que vai dar continuidade a essa
política) respaldou o método da domesticação dos movimentos nacionalistas (em vez dos
golpes cívico-militares, como num passado ainda bem recente) para brecar as crises
revolucionárias do período precedente. A Frente Popular do PT, no Brasil, foi peça decisiva no
desenho da política norte-americana na América do Sul, por ter desmobilizado o proletariado
brasileiro (contrapesando assim, pelo enorme peso econômico e político do Brasil, e pela
projeção simbólica continental da figura do ex metalúrgico, as lutas populares em outras
nações), e por ter intervindo ativamente na contenção da radicalização “andina”, o que não
lhe poupou certos conflitos derivados dos interesses específicos do Brasil nesses países
(especificamente com Bolívia, Equador e Paraguai). A burguesia brasileira e os capitais
estrangeiros instalados no Brasil investiram pesadamente nas nações vizinhas, em especial
em petróleo, obras públicas e siderurgia, e por isso se viram obrigados a desenhar sua
própria política nesses países, em função de seus interesses (multi)nacionais.
Quando se afirma que o governo Lula faz uma espécie de “meio de campo” entre os
EUA e os regimes “radicais” (Chávez, Evo ou Correa), função que serviria como “escudo
protetor” destes últimos diante do colosso do Norte, está se dizendo muito mais do que se
pensa. A função de intermediário, no mundo real, nunca é neutra. O termo “meio de campo”
designa, assim, o que, em tempos de menor genuflexão ideológica, era vulgarmente
chamado de “bombeiro”. Ricardo Sennes, escrevendo para uma revista do establishment
imperial, chamou as relações Brasil-Estados Unidos de “um acordo tácito”.
A fase de relativo refluxo das lutas populares latino-americanas, a partir de 2004,
condicionou a sucessão presidencial no México e a comuna de Oaxaca;7 e a crise e reinício de
grandes lutas estudantis e mineiras no Chile (onde, em novembro de 2008, houve uma
formidável greve dos 400 mil funcionários públicos) e no Peru, que estenderam o cenário da
mobilização. A experiência mexicana marca provavelmente o declínio do PRD (Partido da
Revolução Democrática) e do zapatismo mexicanos, que não conseguiram desenvolver a
7
No segundo semestre de 2006, no estado do interior do México, Oaxaca viveu sem
governador, sem prefeito, sem Justiça e sem polícia por quase seis meses. Até o final de outubro, 10 mil
manifestantes ocuparam prédios públicos e emissoras de rádio, além de acamparem nas principais
praças da cidade capital do Estado, no sul do país. A ocupação começou com uma greve de professores
em maio e culminou em um levante rebelde. Blindados e centenas de policiais federais foram deslocados
para Oaxaca, ocupando o mesmo espaço antes dominado pelos rebeldes. A Assembléia Popular dos
Povos de Oaxaca (APPO) exigiu a renúncia do governador do Estado, Ulises Ruiz. A cidade amanheceu
no 29 de outubro cercada por tropas federais. Mas também por barricadas e trincheiras de pneus, que
serviam de proteção para os manifestantes dispostos a resistir. A correlação de forças foi desfavorável
aos manifestantes. Durante todo o dia, cerca de 4 mil militares, com tanques e helicópteros, desataram
uma violenta repressão sobre os professores, indígenas, desempregados, sindicalistas e estudantes. Os
choques deixaram como saldo três mortos, incluindo um jovem de 14 anos, e vários feridos. O desmonte
da ocupação, que se mantinha por cinco meses, tinha tido início no dia 27, quando paramilitares ligados
ao governo de Ulises Ruiz atiraram contra as barricadas dos manifestantes. Nesse dia, dezenas de
pessoas ficaram feridas e um voluntário da rede Indymedia, o norte-americano Brad Will, foi morto.
Com o isolamento da “Comuna de Oaxaca” Ruiz, que sumiu por quase seis meses da cidade ocupada,
encorajado pela maciça presença policial, promoveu uma autêntica caça às bruxas contra os líderes da
insurreição.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
vasta oposição popular a escandalosa fraude eleitoral que levou Calderón ao governo, e de
tirar do isolamento o levantamento popular em Oaxaca. No Chile, as lutas estudantis e as
greves mineiras foram isoladas pela burocracia da CUT, do partido comunista. No quadro de
refluxo, sob as ordens de Álvaro Uribe, os militares colombianos ultrapassaram a fronteira
equatoriana e mataram 17 guerrilheiros, entre eles Raúl Reyes, tido como o número dois das
FARC, que se empenhou nas libertações de reféns políticos. Os presidentes Rafael Correa e
Hugo Chávez enviaram tropas para a fronteira com a Colômbia. Correa caracterizou a
operação do exército de Uribe como "a pior agressão que o Equador já sofreu da Colômbia" e
solicitou uma reunião de emergência da Organização de Estados Americanos (OEA) e da
Comunidade Andina de Nações (CAN) para tratar do assunto. Uribe era o principal aliado de
George W. Bush na região, defendendo os acordos de livre-comércio e com laços estreitos
com o Pentágono, em operações como o Plano Patriota e Plano Colômbia, embora fossem
mais que conhecidas suas ligações com narcotraficantes e grupos paramilitares.
Os dados da conjuntura política latino-americana começaram a mudar drasticamente
com a crise econômica mundial. Transcorrida mais de uma década, as experiências
nacionalistas fracassam na tentativa de estruturar um Estado nacional independente, e de
iniciar um processo de industrialização capitalista autônomo, destruindo a supremacia do
capital financeiro. Não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma etapa de
transição
nesse
sentido,
sob
hegemonia
do
Estado.
Em
vez
disso,
criaram
uma
8
“boliburguesia” (chamada na Venezuela de “boligarcas”), ou o “capitalismo de amigos” da
família Kirchner, através da burocracia governamental (que sangram financeiramente o
Estado). Nas nacionalizações realizadas, os capitalistas (externos e internos) receberam
fortes compensações, até maiores do valor em Bolsa de Valores de seus capitais. Em
nenhum caso revolucionaram a gestão econômica, através do controle ou gestão coletiva da
propriedade nacionalizada. As nacionalizações não tocaram os bancos, a gestão capitalista da
economia geral. O uso dos recursos fiscais extraordinários para compensar os capitais
nacionalizados acabou bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico
independente. O capital estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial, retornou sob a forma
de capital financeiro, usando as indenizações para a compra da dívida pública.
Os projetos de “união latino-americana” agitados pelo nacionalismo tampouco vão
muito longe, e até retrocedem. Para Eduardo Gudynas:
La Comunidad Andina aparece fracturada por aquellos que apuestan a los tratados de libre
comercio (Colombia y Perú) y los que buscan un camino alternativo (Ecuador y Bolivia). EI
comercio dentro de la CAN se ha mantenido en la modesta franja del 10% del total de las
8
E não se trata em absoluto de uma burguesia “industrialista”, “produtiva” ou antiimperialista.
Informa o correspondente do Financial Times em Caracas que “embora Chávez defina seu credo político
como socialismo do século XXI, alguns capitalistas, especialmente os do setor de commodities e aqueles
que se beneficiam das distorções econômicas, vêm florescendo – bancos mais especialmente”.
Lamentavelmente, não é nenhuma calúnia que familiares de Chávez se tornaram proprietários de
grandes fazendas.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
exportaciones (el más bajo en toda América Latina); no logra conformarse una zona de libre
comercio efectiva, y hay muchas dudas sobre su capacidad para negociar como un bloque
frente a la Unión Europea. En el Mercosur también existen tensiones (la más conocida entre
Argentina y Uruguay, y la más reciente entre Brasil y Paraguay) el comercio entre los socios se
ha mantenido alrededor del 15% de las exportaciones totales. Parece ser que no se aprobará el
Código Aduanero, mientras que las últimas propuestas argentinas de protección comercial
fueron rechazadas por los demás socios. EI Mercado Común Centroamericano tiene algunos
problemas similares, y está tensionado por el tratado de libre comercio con los Estados Unidos.
Como por un lado los cuatros socios de la CAN, y por el otro los cuatro miembros plenos del
Mercosur, navegan entre las más diversas tensiones y conflictos, inevitablemente esta
problemática se repite dentro de la Unión de Naciones de Suramérica (UNASUR) (que) es la
continuación de la Comunidad Sudamericana de Naciones, y supuestamente sería la
profundización de aquel proyecto como una "unión". Pero un examen desapasionado deja en
evidencia los contrastes, ya que su tratado constitutivo renuncia a varios de los propósitos
originales de la Comunidad Sudamericana. Si bien los gobiernos aceptaron usar el título de
"Unión de Naciones", postulado por Hugo Chávez, el resultado final es más modesto… Un
consejo de defensa sudamericana (algo así como una OTAN regional), dista mucho de las
demandas de la sociedad civil por "otra integración"… La mayoría de los gobiernos son
progresistas y defienden fuertes discursos integracionistas, pero a la vez mantienen viejas
formas de nacionalismo, apelando a modelos de desarrollo convencionales de base
extractivista, cayendo en competir en los mercados globales y en disputas fronterizas por el
manejo de recursos naturales. Esto se está convirtiendo en un obstáculo muy importante para
la integración… No se puede plantear una "unión" entre países; si todos ellos exportan materias
primas hacia los mercados globales y en la práctica no tienen políticas productivas comunes. La
idea de "América Latina y el Caribe", como espacio de integración, en los últimos años cayó a
un segundo plano. La UNASUR, como el más ambicioso programa de integración en la región,
carga con la limitación de contribuir al desvanecimiento de la aspiración de una integración que
cubra toda América Latina y el Caribe. (GUDYNAS, 2008)
Ou seja, o nacionalismo burguês ou pequeno burguês não consegue superar as
limitações localistas e a concorrência mútua das burguesias do continente. A proposta de
“integração dos exércitos”, por outro lado, é reacionária: por mais nacionalistas que
(circunstancialmente) sejam, as castas militares não deixam de ser um corpo alheio a
qualquer controle social, e até a qualquer controle real por parte das instituições ditas
representativas.
Os sucessos econômicos da última década, quando, segundo os próprios experts da
OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), “América Latina viveu
uma grande festa macroeconômica”, foram relativos. Houve altas taxas de crescimento,
inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com
superávits. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza (pelo
menos estatisticamente) durante os últimos cinco anos.9 O retrocesso da pobreza foi
especialmente importante no Brasil, onde os programas sociais “focalizados” permitiram uma
diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória
9
Na América Latina, a generalização de iniciativas de ajuda social de caráter setorial e
emergencial remonta à década de 1990, quando o impacto da chamada globalização somou-se às
conseqüências da “década perdida” (1980), gerando um panorama de desemprego e pobreza social
generalizados. Segundo estatísticas oficiais, numa população de 530 milhões de habitantes, América
Latina contava com 200 milhões de pobres, e 80 milhões de pessoas padecendo fome. Iniciativas como
o Plan Trabajar da Argentina, o Bonosol da Bolívia ou o Bolsa Família do Brasil, foram adotadas por
governos do mais diverso signo político. Esses programas são tidos como responsáveis pela estabilidade
dos regimes políticos da região.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
pouco alterada da concentração de renda e, ao mesmo tempo, com uma diminuição da renda
média, uma diminuição também da remuneração média do trabalho assalariado, e um
grande incremento das fontes de renda não vinculadas ao trabalho, nas camadas mais
pobres. A política geral do governo Lula não provocou uma inflexão na tendência histórica: a
remuneração do trabalho tem um peso na renda nacional de 39,1%; em inícios da década de
1980, ela superava 50%. As condições criadas, de retrocesso relativo da pobreza mais
acentuada, se encontraram vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura, muito mais
que a mudanças de natureza estrutural na produção e na distribuição de renda. A
constituição, finalmente, de uma população cuja sobrevivência depende de programas
oficiais de ajuda social, não incorporados à estrutura institucional do país, se configurou
como um paliativo de base instável.
A principal das reformas distributivas do governo Lula, a reforma agrária, foi
frustrada. Entre 2003 e 2007, o governo Lula assentou 163 mil famílias referentes a novos
assentamentos: cumpriu somente 30% da meta de 550 mil famílias (meta conservadora
criticada pelos movimentos camponeses) que tinha prometido. Não cumpriu também a
regulação fundiária de 500 mil posses, pois regularizou só a situação de 113 mil famílias,
atingindo 23% da meta. Há também 171 mil famílias referentes à reordenação fundiária, ou
seja, a situação de regularização em assentamentos antigos, e a inclusão de cerca de 2 mil
famílias referentes a reassentamentos de atingidos por barragens, o que não se trata de
reforma agrária.
O início “oficial” da crise mundial, em 2008, no entanto, multiplicou as declarações
otimistas dos governos. América Latina encararia a crise mundial com mais de 75% do PIB
regional com classificações de risco de crédito dentro do "grau de investimento", algo nunca
ocorrido no passado. Em 2008, a região apresentava solvência, com 70% de sua dívida
coberta por reservas internacionais - patamar bem acima dos índices verificados no Leste
Europeu, por exemplo. Durante o período 2003-2007, América Latina recebeu um volume
recorde de investimentos estrangeiros, superior a US$ 300 bilhões. Suas multinacionais
lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos, inclusive em países
desenvolvidos.
Um fator muito alardeado foi a redução drástica das dívidas denominadas em
dólares. Mas isto ocultou a natureza real do processo econômico, já embutida na valorização
monetária propiciada pela “estabilização”. A dívida externa foi “zerada”, a partir do fato de
que as reservas internacionais do país superaram o montante da divida externa, pública e
privada, o que criou a fantasia da superação da dependência financeira externa. Mas o
endividamento assumiu outras características. O endividamento de um país escancarado
financeiramente à livre movimentação cambial de empresas estrangeiras e nacionais, não
pode ser aferido apenas pela dívida externa formal, em títulos e contratos do governo e de
empresas privadas. A dívida real, passível de ser saldada com moeda conversível, deve ser
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
avaliada em conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, a dívida
mobiliária federal, por ser hoje viável a troca de títulos da dívida externa por papéis da
dívida pública do Tesouro brasileiro, o que, além de muito lucrativo para os credores desses
papéis, é prejudicial para as finanças públicas. Um título público brasileiro, que vence em
2045, oferece 7,5% de interesse por cima da inflação, o mesmo título do Japão paga
somente 1%; tomar emprestado em Tókio para investir em São Paulo converteu-se no
“negócio da China” para os bancos que operam no Brasil. As quedas espetaculares que
afetaram o Bovespa, em reação às quedas internacionais, foram e são a manifestação da
vulnerabilidade financeira do país. A revalorização do yen, nos últimos meses, encareceu os
empréstimos que alavancam os investimentos no Brasil. A demolição dos “mercados
emergentes”, Brasil incluído, está em curso.
Antes, houve uma expressiva formação de reservas internacionais pelo Brasil, em
decorrência dos saldos comerciais obtidos pela alta de preços - puxada pelo crescimento da
demanda mundial de commodities - de produtos com forte peso nas exportações, e também
pelo fato da taxa básica de juros brasileira – base da remuneração dos títulos públicos - ser
muito elevada. Isto fez com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios
com os papéis da dívida pública brasileira. Alimentou também a ciranda financeira: tornou-se
excelente negócio – para grandes investidores – captar recursos no exterior, a taxas mais
baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais elevadas, na dívida pública interna. O governo
Lula isentou os fundos institucionais estrangeiros, que aplicassem recursos em títulos
públicos, do imposto de renda sobre os rendimentos. Com isso, aumentou a entrada de
recursos em moeda forte no país, fazendo com que as reservas crescessem. Mas o custo
financeiro é elevadíssimo: a remuneração dos credores dessa dívida é de 12% reais ao ano,
uma carga de juros crescente e impagável. A dívida interna em títulos cresceu sem parar,
ultrapassando R$ 1,3 trilhão, inviabilizando o orçamento público como fonte de recursos para
o Estado e para a realização de investimentos na infra-estrutura e nas políticas sociais.
Com a expressiva entrada de dólares no país, e a conseqüente valorização do real,
tornou-se bom negócio para as empresas privadas anteciparem os pagamentos de dívidas
acumuladas em moeda estrangeira, e o acúmulo de reservas teve um custo elevado para o
Estado. O passivo externo do país é maior do que aparece. Com a abertura financeira,
assistimos também uma acelerada desnacionalização das empresas. Os lucros e dividendos
são crescentemente transferidos ao exterior. Com o barateamento das importações e as
exportações menos competitivas, os resultados das contas externas começam a apresentar
uma inflexão importante já em 2007, com um déficit - o primeiro desde 2003 - de US$ 1,17
bilhão. O Brasil voltou a apresentar déficit nas transações correntes em 2008, US$ 4 bilhões.
Com a crise, as contradições ocultas aparecem. Todas as grandes economias da
OCDE estão em recessão, e a Ásia, em desaceleração. As economias latino-americanas
começam a se aproximar da inadimplência, em especial no âmbito empresarial. A crise
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
mundial possui mecanismos diretos de transmissão, vinculados à contração da demanda
mundial: o comércio externo e as matérias-primas.10 Do ponto de vista comercial, a
dependência da região em relação aos EUA e Europa, regiões que estão em recessão, é
grande. Mais de 65% das exportações latino-americanas dirigem-se a essas duas regiões,11
com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Alguns países latino-americanos
estão mais expostos, o caso do México, cujo comércio é totalmente dependente dos EUA
(que consome 85% de suas exportações). E as economias continuam muito dependentes da
venda de matérias-primas (que representam mais de 60% das exportações da América
Latina), todos os países ver-se-ão afetados negativamente pelas baixas do petróleo, do
cobre ou da soja.
As contas nacionais paulatinamente irão se ressentir de arrecadações menores. E a
situação do mercado mundial consente cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo
de endividamento. Os fluxos de remessas, aplicações e investimentos diretos estão em
queda, enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em 2009 deverão ser
dominadas pelos países da OCDE (estima-se que os EUA poderão lançar mais de US$ 2
trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE), deixando pouco (ou nenhum)
espaço para os “emergentes”. A dependência financeira da região é a sua grande
vulnerabilidade, somada ao escasso desenvolvimento do mercado interno e à crescente fuga
de capitais, vinculada aos mecanismos generalizados de “desalavancagem” e de aversão ao
risco, que provocam uma fuga em direção aos ativos e países “mais seguros”, um fator de
crise ligado ao setor bancário (nos anos 90, considerou-se que a forte internacionalização do
sistema financeiro era positiva para fugir das crises: hoje verifica-se exatamente o
contrário...)
Nos países favorecidos pelas exportações de combustível (gás e petróleo), o
nacionalismo usou as nacionalizações, não para transformar os trabalhadores em classe
10
A dependência em relação às exportações primárias não é só um fato, mas também uma
escolha. Segundo Gudynas: “(Os países latino-americanos) disfrutaron en el pasado de un excelente
escenario económico, con un alto crecimiento económico sustentado por sus elevadas exportaciones.
Pero en realidad ese cambio se debía en buena medida a factores externos (alta demanda internacional
y elevados precios), y estos gobiernos no aprovecharon esa coyuntura para generar un estilo de
desarrollo propio y autónomo. Casi todos los países apostaron por profundizar todavía más la estrategia
económica extractivista, donde las estrellas fueron el agronegocio, el petróleo y gas natural, y metales
como aluminio o hierro a medio procesar. Incluso Brasil, que se presenta a sí mismo como una economía
industrializada, mantiene un perfil exportador donde casi la mitad de los productos que vende son
materias primas”. A escolha não se deve a razões ideológicas, mas a interesses de classe.
11
Maurice Lemoine afirma que “os países latino-americanos fortalecem os laços entre si e com
o Oriente (e) estão cada vez menos dependentes dos Estados Unidos”, o que significa substituir a
análise objetiva pelo wishful thinking. O governo brasileiro, por exemplo, pensa poder “navegar” a crise
graças aos recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros exportados em 2008, de 24,5 bilhões
produzidos) e biodiesel, que têm por destino principal os EUA. Os governos “progressistas” latinoamericanos vêm batalhando, em diversos fóruns internacionais (OMC especialmente) pela abertura dos
mercados dos EUA e da Europa, fortemente protegidos por barreiras tarifárias e não-tarifárias, às
exportações primárias da América Latina. A idéia de poder derrotar “o império” com circuitos comerciais
alternativos, sem quebrar a espinha dorsal do imperialismo norte-americano (e euro-japonês) é utópica.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
dominante, mas, como no passado, para impedir sua organização independente, e submeter
suas organizações à tutela do Estado. Na Venezuela, o governo se empenhou em estatizar o
movimento sindical. As nacionalizações parciais serviram como pretexto, em setores
sindicais e da esquerda, para abandonar a independência de classe e somar-se ao Estado
nacionalista. A greve da Sidor (siderúrgica privada), em maio de 2008, foi a grande
oportunidade da classe operária venezuelana para lançar um sindicalismo independente do
Estado, o que precipitou a decisão do governo de nacionalizá-la parcialmente (com
compensação financeira aos seus proprietários) para neutralizar o movimento operário e
domesticar sua organização.
A criação de cooperativas ou de “empresas de gestão social” mascara a exploração
capitalista e conclui reforçando a taxa média de exploração, pois os salários, métodos de
trabalho e direitos sociais são inferiores aos da grande indústria. Coisa semelhante acontece
com as “empresas recuperadas” da Argentina, obrigadas a pagar indenizações aos antigos
donos, e carentes dos direitos sociais e sindicais da empresa capitalista. Submetidas ao
Estado nacionalista-caudilhista, as nacionalizações parciais (e compensadas) e as “ilhas de
autogestão” (que devem competir comercialmente com as empresas capitalistas) concluem
reforçando o próprio capitalismo e a exploração. A maior parte da esquerda latinoamericana, inclusive a “radical”, esqueceu que as nacionalizações são revolucionárias quando
modificam as relações de classe e estruturam o proletariado como classe na execução da
transformação social, ou seja, quando são degraus da reorganização da sociedade sobre
novas bases, socialistas. A soma de estatizações não constitui, per se, um programa
revolucionário ou socialista. A crítica operária e de esquerda a Chávez e Morales existe e é
um fator político e ideológico na Venezuela e na Bolívia, mas é mal compreendida no Brasil,
onde a propaganda retrógrada da Veja e da Rede Globo apresenta os líderes andinos como
uma mistura selvagem e indígena de Lênin, Trotsky e Che Guevara.
Certamente, a nacionalização integral das principais alavancas de desenvolvimento,
em primeiro lugar os recursos naturais e energéticos, são a pré-condição para qualquer
integração latino-americana que não seja um instrumento da competição entre os
monopólios do “Primeiro Mundo” (como a falida ALCA, ou o próprio Mercosul). Sem essa
condição, os projetos unificadores (como o gasoduto do sul) não saem do papel. As
nacionalizações realizadas, parciais, foram condicionadas favoravelmente pelo aumento dos
preços do combustível, a possibilidade de distribuir a renda diferencial entre o capital externo
e o Estado. Havia (até sobrava) dinheiro para satisfazer todo mundo. Mas não serviram para
modernizar a exploração, consumindo o capital investido.
Venezuela e Bolívia impulsionaram importantes campanhas de saúde e de educação
(que nunca seriam feitas pelas velhas oligarquias desses países), mas não avançaram em
sentar as bases econômicas da autonomia nacional, para sustentar a longo prazo os planos
populares
e
os
programas
sociais.
Concluíram
dilapidando
a
renda
extraordinária
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
(diferencial) da produção mineira, na crença de que os preços internacionais não cairiam
nunca. A nacionalização parcial, na Bolívia, das três principais jazidas petroleiras, não só
preservou os “direitos adquiridos” pelos monopólios multinacionais que as detinham,12
também fracassou em manter os investimentos previstos e aumentar a produção. Os
estados latino-americanos não têm condições de substituir o capital externo se não
procederem, simultaneamente, a estruturar um novo Estado operário e camponês, que
mobilize
a
população
explorada.
A
queda
dos
preços
dos
hidrocarbonetos,
como
conseqüência da crise mundial, faz entrar em crise as nacionalizações parciais, e abre a via
para uma nova etapa de concessões aos monopólios multinacionais.
O ciclo de grandes arrecadações fiscais está concluindo. As limitadas reformas
fiscais, com aumento dos impostos sobre o petróleo e o gás, ofereceram uma vantagem
passageira no marco de preços internacionais elevados. A crise mundial ameaça em especial
o governo nacionalista de Equador, cujo petróleo financia, não só a economia nacional, mas
também a dolarização, até agora mantida. Para mantê-la, Correa começou um recorte de
importações, e uma moratória da dívida externa (pela primeira vez um governo de América
Latina declarou o caráter ilegítimo e imoral da dívida). Mas um desconhecimento da dívida
usurária e ilegítima seria incompatível com a dolarização. No passado, as crises capitalistas
mundiais serviram como marco para o surgimento de movimentos e governos nacionalistas
(Vargas ou Perón, por exemplo). Hoje, numa etapa de bancarrota generalizada e
internacional, a crise revela de cara as limitações desse tipo de governos.
E, acuado pela crise, o nacionalismo (inclusive “radical”) evidencia seu lado
retrógrado. Os movimentos nacionalistas fazem confusão entre o poder pessoal e o poder
das massas, as quais governariam através de seu “líder”, transformado em “intérprete” dos
explorados e da nação: “Neste ponto, o nacionalismo antiimperialista (relativamente
progressivo) se assemelha ao fascismo. O poder pessoal, no entanto, bloqueia a evolução
das massas em direção da consciência de classe, de sua situação e papel na história, e é
uma expressão das contradições dos movimentos nacionalistas: representa a tentativa de
superar através da arbitragem pessoal as contradições entre as diversas classes sociais que
dele fazem parte. Por isso tem um caráter disciplinador, acrescentando à liderança política o
monopólio dos meios do Estado. O poder pessoal nacionalista atua em função de sua auto-
12
Na nova Constituição boliviana, o artigo 8º das Disposições Transitórias diz: "En el plazo de
un año desde la elección del órgano ejecutivo y del órgano legislativo, las concesiones sobre recursos
naturales, electricidad, telecomunicaciones y servicios básicos deberán adecuarse al nuevo ordenamiento
jurídico. La migración de las concesiones a un nuevo régimen jurídico en ningún caso supondrá el
desconocimiento de derechos adquiridos". Esses “direitos” beneficiam monopólios como Repsol, Total,
Petrobras, Shell, Enron (falida nos EUA, esta continua “operando” na Bolívia), Vintage, British Gas,
British Petroleum, Canadian Energy y Pluspetrol, que ainda hoje adquirem o gás boliviano pela metade
do preço internacional. No setor mineiro, os "direitos adquiridos" são os do consórcio internacional
Glencore, do magnata petroleiro suíço israelense Marc Rich, de quem Time disse ser “o empresário mais
corrupto do planeta". Desde 2005, Glencore recebeu grandes jazidas, fraudulentamente, do governo de
Carlos Mesa.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
perpetuação,13
bonapartista.
14
subordinando
os
interesses
das
Osvaldo Coggiola
massas
às
necessidades
do
poder
A armadilha política consiste em que as condições da luta não mais são
determinadas pelos interesses objetivos e disposição subjetiva das massas, sendo ditadas
pelas exigências de perpetuação no poder da liderança. Os trabalhadores venezuelanos
tiveram que suportar, em dezembro 2007, uma derrota em uma batalha que não tinham
escolhido, o referendum constitucional convocado por Chávez. Este método anti-classista
explica que o PSUV (Partido Socialista Único da Venezuela) chavista tenha sido desde seu
início um aborto político, e atualmente um cadáver insepulto”.15
13
Atilio Borón critica a crítica dos EUA à reeleição (de Chávez, Morales, ou de quem seja), em
nome do fato de que os EUA apóiam ditadores (como a família real saudita) que se auto-perpetuam
indefinidamente no poder. Deixando de lado o fato de que Chávez também se dá muito bem (embora
por razões diversas) com as monarquias petroleiras de Oriente Médio, fazer do instituto da reeleição a
garantia da luta antiimperialista significa confiscar a independência de classe dos trabalhadores, e a
perspectiva de seu próprio poder político. Intelectuais de diversas latitudes, como Toni Negri, ou Tariq
Ali (num pitoresco livro chamado Piratas do Caribe) também fazem a apologia (tardia) dos regimes
nacionalistas. Pouco ou nada se ouviram essas vozes quando uma conspiração patrocinada pelos EUA
quase derrubou Chávez, em 2002, ou quando a embaixadora dos EUA (Donna Hrinak) ameaçava com o
bloqueio de Bolívia, caso Evo Morales vencesse as eleições. O adesismo intelectual, como o capital, tem
aversão ao risco. Precisamos reconstruir uma intelectualidade de esquerda digna desse nome: o papel
de uma intelectualidade revolucionária não é a apologia do presente, mas a sua crítica, com vistas a
preparar o futuro.
14
A liderança de esquerda da UNT (União Nacional dos Trabalhadores) da Venezuela, Orlando
Chirino, criticou a proposta de emenda constitucional que Chávez submeteu a referendum a 15 de
fevereiro: "A casi cuatro años de las próximas elecciones presidenciales, pero con una crisis económica
enorme a la vuelta de la esquina, la enmienda no es la prioridad de millones de venezolanos y
venezolanas, que desde hace muchos años venimos sufriendo la brutal ofensiva económica de los
capitalistas y las multinacionales, expresada en carestía y desabastecimiento artificial de productos de
consumo popular. Las prioridades son otras en esta coyuntura, pues ya sentimos los primeros coletazos
de la crisis financiera y económica capitalista que se vive a nivel mundial, la cual el gobierno pretende
empequeñecer, mientras somos los de abajo, los pobres, los asalariados, los que sufrimos los despidos,
la flexibilización laboral creciente, y pronto veremos los efectos de la caída de los precios del petróleo en
nuestro país". E acrescentou: "La propuesta de enmienda demuestra cuál era el trasfondo de la reforma
propuesta en el año 2007, pues de las distintas modificaciones a la constitución que se planteaban en
aquel proyecto, la única que ha sido rescatada para presentarse a través de esta enmienda es la que
permite al Presidente postularse a la reelección sin limitaciones, demostrando claramente cuál es la
prioridad de la burocracia gobernante y sus aliados burgueses. En esta ocasión, la propuesta se ha
ampliado para beneficiar a gobernadores, alcaldes, y legisladores". A 27 de novembro passado foram
assassinados Richard Gallardo, Luis Hernández, e Carlos Requena, dirigentes classistas da UNT, que
estavam organizando a solidariedade com trabalhadores em luta em Villa de Cura, violentamente
reprimidos pela polícia.
15
Do Informe sobre América Latina ao XVII Congresso do Partido Obrero (Argentina). Na mui
declaradamente conservadora revista Foreign Affairs, A. J. Herrera e M. A. Latouche, caracterizam o
governo de Hugo Chávez como “um novo tipo de organização do poder político [na América Latina] no
qual se incorporam os remanentes do velho personalismo com novos mecanismos de organização
política que implicam uma comunhão permanente entre o líder e a massa: uma liderança quase
onipresente, mas com um profundo caráter popular, na qual o dirigente se confunde com a massa, se
comunica com ela e se mostra como alguém igual a ela”. Certamente, Chávez, Morales ou Correa não
representam a reedição dos governos nacionalistas burgueses de Perón, Vargas ou Velasco Ibarra. Mas a
sociologia política dos autores patina no ar ao não confrontar as diversas situações históricas em que
esses governos emergiram. E ignora que Chávez tentou, sucessivamente e sem sucesso, se dotar de
uma base orgânica política própria, através do MVR e do PSUV. O mais importante, porém, é que ao se
propor como “novo modelo político” essa suposta simbiose político-social igualitária entre o “líder” e a
“massa”, joga-se pela borda toda a tradição, que vai do iluminismo até o socialismo operário, segundo a
qual o progresso social e a emancipação humana resultam da livre confrontação de idéias, programas e
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
No Brasil, a substituição do método socialista (a liderança baseada em um programa)
pelo caudilhista (o “líder” é o próprio programa) só serviu para que Lula ganhasse margem
de manobra para se aliar ao capital internacional e se transformar em sócio estratégico dos
EUA, e derrotar à esquerda do PT, fortalecendo a base social de Lula, a burocracia sindical.
Diante da crise, a burocracia sindical latino-americana carece de independência política,
situando-se no esteio das políticas de salvação do capital praticadas pelos governos,
inclusive “progressistas”. Não defende um programa próprio, propondo, por exemplo, a
nacionalização e o controle operário das empresas falidas.
As centrais sindicais sul-
americanas pediram aos chefes do Estado da região que exigissem garantia de manutenção
de empregos das empresas que vêm recebendo apoio governamental (isto é, dinheiro do
contribuinte
para
salvar
os
capitalistas
falidos)
para
“enfrentar
a
crise
financeira
internacional”: as chamadas “contrapartidas sociais” estão no centro do documento final da
Cúpula Sindical da América Latina, realizada recentemente em Salvador (BA).
Enquanto isso, na Argentina as multinacionais estão “expatriando” capitais (isto é,
levando-os para sua própria “pátria”) com a cumplicidade do governo, e ao mesmo tempo
demitem milhares de trabalhadores (na maioria dos casos sem indenização), exatamente as
empresas que mais fizeram fortuna com os Kirchner: bancos, montadoras de automóveis,
produtoras de alimentos. O matrimônio Kirchner recortou as indenizações trabalhistas, um
presente para sua fantasmagórica "burguesia nacional", duas semanas antes da vitória
eleitoral de Cristina. Em diversas províncias (Córdoba, Santa Fe, Buenos Aires) há grandes
lutas contra as demissões, com greves e ocupações de fábricas. A polícia não consegue
reprimir todas as lutas, por isso o dirigente da CGT, Moyano (o braço sindical de Kirchner)
oferece seus serviços, apreendidos na “triple A” (bandos fascistas peronistas organizados na
década de 1970), organizando, em cada sindicato controlado pela burocracia, bandos de
capangas armados que percorrem os locais das lutas, intimidando e atacando trabalhadores
em luta: metrô, INDEC (o IBGE argentino), Hospital Francês, Cassino de Buenos Aires, as
grandes montadoras e a indústria láctea.
Nos países andinos, embora o movimento “bolivariano” tenha sido o de maior
repercussão internacional, a peculiaridade do nacionalismo é o indigenismo, o protagonismo
das massas rurais deslocadas às cidades, onde ocuparam (política e socialmente) o lugar
ocupado no passado pelo proletariado industrial. As ideologias indigenistas compreendem um
vasto arco, desde o retorno ao Inkário até a preservação das comunidades rurais originárias
a partir de sua base produtiva (a pequena propriedade). Mas foi a pequena burguesia urbana
a que impôs à massa indígena seu programa, o chamado “capitalismo andino”, que postula o
partidos, ou seja, da participação consciente da sociedade na determinação de seu próprio destino, da
consciência de classe traduzida em organização política independente. Contra essa tradição secular se
revitaliza, de modo sorrateiro, uma concepção religiosa baseada na “comunhão líder-rebanho” (não por
acaso, na Venezuela e alhures, Chávez é por vezes apresentado como a continuação de... Jesus Cristo)
enterrada em séculos de luta do movimento democrático e operário.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
entrosamento do passado agrário pré-capitalista com o capitalismo “global”, através da
mediação do Estado. Assim, frustraram-se as promessas de uma revolução agrária. Na nova
Constituição boliviana se estabelece a preservação dos direitos adquiridos pelos grandes
proprietários, ou seja, a supremacia do capital terrateniente da soja no Oriente, e a
concentração do grande capital agrário na região andina (o altiplano, ou planalto). Desse
modo pactuou-se, em nome da “soberania alimentar” (baseada na produção de subsistência)
e da preservação do meio ambiente, com os interesses capitalistas agrários exportadores, e
com a produção contaminante pelo uso de agrotóxicos.16
A CGTFB (Confederação Geral de Trabalhadores Fabris da Bolívia) pronunciou-se
acerca do referendum que deu a vitória à nova Carta, reconhecendo que na nova
Constituição se incluem direitos conquistados pela luta operária na última década:
La burguesía fascista, con sus partidos, sus lideres, sus comunicadores, sus curas y pastores,
sus embajadores, sus empresarios, sus paramilitares, sus cuerpos de choque, etc., que en su
momento intentaron derrocar al gobierno nacionalista, ahora impulsa una campaña por el No,
que tiene como objetivo rearticular sus fuerzas y prepara futuras batallas políticas. Los
trabajadores no nos dejaremos confundir con la maldita propaganda que se viene destilando
por los medios de comunicación social, que exacerba las tendencias más reaccionarias de la
sociedad boliviana. Los trabajadores fabriles de Bolivia, consideramos que los fascistas han sido
derrotados por la acción organizada de los trabajadores, dentro mismo de los departamentos
autocalificados como "autonomistas" y que actualmente muestra cierto fortalecimiento, esto por
las constantes retrocesos del gobierno, que es una prueba palpable de los límites históricos del
nacionalismo burgués. Este 25 de enero, esta descontado que el pueblo mayoritariamente
votara por el SI. Una votación que tiene en la clase campesina su sustento más sólido, porque
esta ilusionada que por medio de la Ley se incorporará a la ciudadanía y obtendrá derechos
políticos, obtendrá reconocimiento como nacionalidades y pueblos indígenas originarios
campesinos como parte integrante de nuestro país…. Por todo eso y más, los trabajadores
industriales, enfrentados nuevamente contra los enemigos de la patria, en defensa de los
recursos naturales, en defensa de las empresas y del aparato productivo, por la dignidad
nacional y por nuestros derechos sociales y laborales, acompañaremos esta coyuntura, pero
con firme convicción de que el referendo no va a modificar en nada la situación política
boliviana, que no se resolverá con los votos sino en la calle, en la lucha de clases, donde la
clase obrera fabril se constituirá en vanguardia de la lucha social.17
16
A nova Constituição (CPE) da Bolívia, proposta pelo governo de Evo Morales, e aprovada
com mais de 60% dos votos no referendum de finais de janeiro, resultou da mutilação (através de
diversas concessões feitas à direita, separatista ou não, no debate parlamentar e extra-parlamentar) do
projeto original do MAS, “debatido nas bases”. Antes que a Constituição fosse votada, governo e
oposição negociaram em outubro de 2008 a alteração de dezenas de artigos para viabilizar o
referendum. O fato da direita ter chamado a votar “não” obedece a preservar sua capacidade de pressão
independente no momento da regulamentação dos artigos aprovados [nos departamentos controlados
pela direita, o “não” venceu em Santa Cruz (66%), Beni (69%) e Pando (61%)]. A limitação da
propriedade a terra a 5.000 hectares (o que, na Bolívia, é uma superfície enorme) não é aplicável aos
atuais proprietários, mas apenas aos futuros. A “família” Hecker possui 288.000 hectares, os Becerra
Roca têm 173.000 hectares, e não serão tocados... Para não falar que a Constituição rejeita o direito ao
aborto e outras reivindicações progressistas. O chefe da direita boliviana, Jorge Tuto Quiroga, declarou
(em La Razón, La Paz, 28 de janeiro de 2009): "Com o texto (da Constituição aprovada) não farei uma
celebração, mas posso dormir tranqüilo". Os donos da Bolívia continuam os mesmos. Antes do
referendum, em Oruro, organizações camponesas decidiram “rechazar el proyecto de la Constitución
Política del Estado modificado en el Parlamento traidor": “A esta oposición emitida por los campesinos se
suman los rechazos de la Universidad Pública de El Alto (UPEA), el último Congreso Departamental de
los Campesinos de La Paz, y el Movimiento Sin Tierra (MST) en su último Congreso”.
17
Faça-se notar também que, entre outros, “o XV Congreso Ordinario de la Provincia
Omasuyos de la Federación Sindical de Trabajadores Campesinos Tupak Katari del Departamento de La
Paz determinó rechazar la nueva Constitución Política del Estado (CPE) porque no afecta a los grandes
terratenientes”.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
O correspondente brasileiro do Le Monde Diplomatique caracteriza que a nova CPE
boliviana revela que “os povos originários estão assumindo um protagonismo crescente na
política e obtêm avanços significativos como o respeito a seu sistema judicial. Os horizontes
parecem abertos para a constituição de Estados plurinacionais” (na América Latina). A nova
Carta aprovada prevê que os indígenas e camponeses bolivianos, que formam a maioria da
população, ganhem uma série de direitos e um inédito reconhecimento oficial a valores précoloniais que resistiram. 0s governos, nacional e regionais, serão obrigados a usar em seus
documentos e na divulgação de informação pública o espanhol e a língua indígena
predominante na região. Além do espanhol, outros 36 idiomas são declarados oficiais. A
cédula de identidade, o passaporte e outros documentos conterão, além da cidadania
boliviana, "a identidade cultural" - indígena ou camponesa - de quem assim o desejar.
Tribunais populares existentes desde antes da invasão dos espanhóis passarão a ter validade
jurídica reconhecida.
Para além destas concessões aos “valores culturais originais” – que, para serem
instrumento de emancipação, exigiriam eliminar socialmente à racista oligarquia boliviana –
o sentido profundo das autonomias foi esclarecido pelo intelectual do governo, o vicepresidente Álvaro García Linera, já antes do referendum, quando, em novembro de 2008
chamou os “opositores” (de direita) a participarem da construção de um Estado autonômico
a partir de 26 de janeiro de 2009:
EI presidente Evo ha convocado a conformar una comisión de gobierno y regiones para
transitar Ia ruta de Ia autonomía. Confiamos en una aprobación del nuevo texto constitucional
y una vez que se apruebe el articulo 3 de Ias disposiciones transitorias, los departamentos de
Tarija, Santa Cruz, Beni, Pando, donde ganó el referendo por autonomías el 2006, accederán de
manera directa a Ia autonomía". Chamou a um “diálogo para consolidar Ia autonomía al andar,
y no a Ias malas, sino constitucionalmente": "Si va bien Santa Cruz con este transito
autonómico, eso va a ser luego seguido por Ios otros departamentos: Tarija, Bani, Pando y
luego Cochabamba, La Paz, Oruro, Potosí, Chuquisaca; sus lideres no se están dando cuenta
que tienen Ia oportunidad de cumplir un liderazgo nacional a partir de Ia autonomía
constitucional… Al ser implementadas Ias autonomías constitucionalmente, existirán 36
competencias exclusivas para ser legisladas departamentalmente, siete compartidas y 16
concurrentes a Ia capacidad deliberativa, fiscalizadora y facultad legislativa del gobierno
departamental.
Trocando em miúdos, os “departamentos” poderiam realizar, ao menos em grande
parte, “constitucionalmente”, o que os levou a deflagrar a movimentação golpista, sendo
feita explícita e privilegiada referência a Tarija, Santa Cruz, Beni, Pando, os departamentos
dirigidos pela direita onde se situam as principais riquezas petroleiras e de gás, os quais
pretendem ficar com a parte do leão da renda nacional dos hidrocarbonetos, descontada, não
dos royalties das multinacionais, mas dos impostos federais (nacionais). O que sobrar,
descontados esses dois itens, poderá ficar com o governo nacionalista para realizar sua
política social (e, não por acaso, continua na Bolívia nacionalista e “andina” a miséria
previdenciária e o congelamento salarial de professores e funcionários públicos). A nova CPE
nada mais seria do que o marco institucional para essa barganha, baseada na continuidade
(mitigada e “controlada”) da hegemonia econômica da oligarquia e do capital financeiro
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
internacional.
São os países mais “desenvolvidos” da América Latina os mais afetados pela crise
mundial. A “periferia emergente” do capitalismo “global” deve enfrentar, em 2009,
pagamentos externos por valor de 8 trilhões de dólares, uma dívida principalmente contraída
pelas
multinacionais
que
operam
nela,
superando
em
muitos
casos
as
reservas
internacionais. Na Argentina, a dívida conjunta, pública e privada, é de US$ 64 bilhões para
2009; em 2008 se registrou uma saída de capitais de 20 bilhões: uma parte da dívida foi
contraída para expatriar capitais. Não é verdade que no ciclo econômico 2002-2007 as
nações dependentes se transformaram e credoras no mercado mundial: com o aumento da
dívida privada externa, se mantiveram como devedores netos; os superávits comerciais
foram a garantia financeira do endividamento privado. O capital financeiro internacional
apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento dos preços e dos volumes
exportados. A crise mundial golpeia à América Latina devido à sua fragilidade financeira e
comercial, e à sua fraca estrutura industrial.
Os governos da América Latina afirmaram inicialmente que se salvariam da crise
devido à “solidez” das reservas dos Bancos Centrais. Mas a queda das Bolsas regionais, a
saída de capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses argumentos.
Propostas como a dos intelectuais reunidos na "Declaração de Caracas", defendendo o
fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) e o Banco do Sul, novas
instituições econômicas reguladas, e um acordo monetário latino-americano para enfrentar a
crise, são crescentemente utópicas. Projetos que não conseguiram avançar durante o
período de crescimento econômico, ficam com menos fundamento sólido diante da crise.
Mais do que avançar em um projeto coordenado, os diversos países defendem os negócios
de seus próprios empresários, como fez Brasil na defesa dos interesses de Odebrecht e
Petrobrás nas negociações com Equador, ou na defesa dos plantadores brasileiros de soja no
Paraguai (onde são os principais proprietários de terra), incluídos os exercícios militares do
exército brasileiro na fronteira e na barragem de Itaipu.18
O terreno da entente política se desenha, e ao mesmo tempo explode, nas propostas
de “integração” (americana ou latino-americana). A ALCA era um instrumento de pressão
(dos EUA) sobre Europa e sobre as economias em transição para o capitalismo,
especialmente a chinesa, lhes opondo América Latina como uma plataforma de exportação
dos capitais norte-americanos, mas não dava ao empresariado latino-americano a
possibilidade de abrir o mercado norte-americano à sua produção agrícola, eliminando os
subsídios aos produtores do Norte. A ALCA foi morrendo em meio à crise mundial de 1997-
18
O conflito Brasil-Paraguai esteve perto das vias de fato, em novembro passado, quando 30
soldados brasileiros em exercício cruzaram a fronteira. O governo de Paraguai acusou o Brasil de
"prática e atitude recorrente de confrontação e provocação": "O incidente, que afeta a nossa soberania,
soma-se a episódios muito recentes no mesmo sentido, no que parece uma inexplicável, mas
sistemática prática e atitude recorrente de confrontação e provocação".
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
2002 (crise asiática de 1997, crise russa e brasileira de 1999, derrubada da Bolsa de Wall
Street em 2000). Depois disso, a integração de América Latina à economia mundial escorouse no aumento de preços das matérias primas e no crescimento do endividamento das
burguesias locais (a penetração do capital financeiro na América Latina foi a mais alta da
história). Brasil tem agora vencimentos superiores a US$ 200 bilhões em 2009, o que
ameaça quebrar o crédito interno. A rodada de Doha, na qual chegara-se a um acordo do
Brasil com Europa e os EUA, entrou em crise pela oposição da Índia e da Argentina. Brasil
acordara com os EUA exportar etanol sem impostos desde América Central, em troca da
autorização de inversões norte-americanas na indústria dos bio-combustíveis no Brasil. Mas
a penetração financeira está prestes a provocar uma explosão econômica generalizada na
América Latina, em conseqüência da saída de capitais. O túmulo da ALCA foi a Bolívia,
quando a luta contra a exportação de gás liquefeito para México e os EUA, através de portos
chilenos, se transformou em insurreição nacional, derrubando dois governos.
Os projetos capitalistas “latino-americanos”, por sua vez, entraram em crise com
velocidade ainda maior. Gasoduto do Sul, Banco do Sul, entrada de Venezuela ao Mercosul,
não saem do papel. A moeda comum Brasil-Argentina não passa de um recurso contábil para
compensar saldos de pagamentos externos. A autonomia da ALBA proposta por Chávez é
desmentida pelos compromissos simultâneos de seus países com outros acordos. O processo
capitalista opera em favor da desintegração de América Latina. Brasil reforçou sua aliança
financeira com os EUA, em oposição à decisão argentina e chilena de nacionalizar os fundos
de pensão privados. Brasil reduziu o consumo e o preço do gás boliviano. UNASUR é um
projeto da burguesia brasileira para “integrar” uma indústria militar regional sob seu
controle, e para impulsionar gastos em infra-estrutura para suas empresas. Mas pôs o Brasil
no limiar da ruptura diplomática com Equador, devido às barbaridades trabalhistas e
ambientais da Odebrecht (o BNDES respaldou financeiramente a empresa com empréstimo
de US$ 243 milhões, que o Equador foi condenado a quitar). Evo Morales nacionalizou o
consorcio petroleiro Chaco, onde atua a empresa argentina Bridas, devido à negativa
daquele em aceitar os termos das nacionalizações bolivianas. As bandeiras “integracionistas”
são ficção política. Depois do abraço entre Chávez e o assassino colombiano Uribe,19 numa
reunião em Santo Domingo, que discutiu o massacre do acampamento das FARC no
Equador, acentuou-se a cooperação entre Venezuela e Colômbia, embora a segunda esteja
19
Antes de ser eleito presidente, Uribe governou o departamento de Antioquia entre 1995 e
1998. Foi responsável por organizar uma rede de cooperativas de latifundiários (CONVIVIR) que financia
milícias paramilitares fascistas contra camponeses, sindicalistas, jornalistas, intelectuais de esquerda e
guerrilheiros. Está no poder desde 2002. Ainda como governador Uribe foi o pai da mais poderosa
organização terrorista do continente, a Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), do falecido Carlos
Castaño e seu comparsa, o milionário Salvatore Mancuso, hoje encarcerado em um presídio de
segurança máxima. Esta organização atuou como um autêntico esquadrão da morte na Colômbia e é
apenas um dos tentáculos de uma complexa rede envolvendo paramilitares, empresários, juízes e
parlamentares. À cabeça de todo este esquema está Álvaro Uribe. Esses dados estão no Arquivo de
Segurança Nacional (NSA) dos EUA.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
prestes a realizar um tratado de livre comércio com os EUA. O nacionalismo burguês fracassa
novamente, no marco de uma crise mundial inédita.
Com a crise mundial (e com Obama) reclama-se o “fim da guerra fria na América
Latina”. O apaziguamento entre os EUA e Cuba, a normalização de Cuba com a UE, serviriam
para estabilizar politicamente à América Latina, opondo a integração política de Cuba contra
a revolução latino-americana, oferecendo o fim do isolamento de Cuba. O destino de Cuba
está, mais do que nunca, inserido no contexto latino-americano, e também na sua própria
crise política interna, contextos que o governo de Raul Castro tenta “navegar” propondo uma
espécie de “via chinesa”, com um papel central das Forças Armadas (que controlam mais de
60% da economia cubana). O destino de Cuba não depende centralmente de Lula e da
diplomacia dos EUA e da UE, mas da luta política em Cuba e da luta de classes mundial.
A sucessão de Fidel Castro enfrenta enormes dificuldades: alta dos preços das
matérias-primas
agrícolas,
gravidade
dos
desastres
provocados
por
três
ciclones
consecutivos, crise econômica mundial, baixa do crescimento cubano, e forte dependência
das importações, fraca produtividade, dualidade monetária e hiper-centralização burocrática.
As margens de manobra financeira para implementar as mudanças anunciadas em 2007 com
o objetivo de modernizar o aparelho produtivo são limitadas. Em 2008, as importações de
alimentos e petróleo representaram US$ 5 bilhões, o que corresponde à metade do atual
potencial de exportação de Cuba, incluindo a comercialização de bens e serviços à
Venezuela. A descentralização dos circuitos agrícolas, o usufruto das terras concedido a
pequenos camponeses, a “substituição de importações” apoiada na agricultura privada e a
nova política de salários apontam a reativação de uma “economia de mercado”, que cria as
bases para uma restauração capitalista.20 Os trabalhadores passaram a ser pagos de acordo
com sua produtividade, com seu salário-base fixado sem consulta às grades salariais
nacionais. Diversos sistemas de remuneração começam a coexistir nas empresas.
Mas o contexto para desenvolver uma transição ao capitalismo, como a ocorrida em
Rússia e na China, mudou internacionalmente. Esses países já entraram em grave crise; o
mercado mundial tornou-se estreito demais para admitir um novo competidor (embora
pequeno, como Cuba). A libertação das forças produtivas em Cuba (seu trabalho e
capacidades manuais e intelectuais) não pode se produzir pelos métodos do capital mundial,
mas deve produzir-se, porque as expectativas das novas gerações são mais altas que as das
precedentes. O contexto ideológico internacional não mais é o do “fim do comunismo”, como
em 1989-1991. Reivindicar o fim do bloqueio norte-americano e o reconhecimento
incondicional
20
da
autodeterminação
nacional
cubana
(começando
pela
devolução
de
Em 1990 só existiam em Cuba sete acordos de associação econômica com o capital
estrangeiro por um volume total de 100 milhões de dólares, e esses acordos estavam restritos à área de
turismo. Já em 1995, existiam 212 acordos de associação econômica com o capital estrangeiro, com um
investimento de 2.100 milhões de dólares, abarcando 34 ramos da economia.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
Guantánamo e a saída das tropas ianques) pode hoje por Cuba em contato direto com a
rebelião social latino-americana, não só com o capital mundial.
As FARC colombianas viraram fator de crise política internacional, incluindo a
mobilização
bélica
regional.
Chávez
apoiou
a
“troca
humanitária”
de
reféns
e
o
reconhecimento do caráter de força beligerante das FARC, para depois convidá-las a se
desarmar e libertar incondicionalmente seus reféns, se reconciliando com Uribe. Surge assim
uma pressão para o desarme unilateral das FARC. A experiência de “luta armada” das FARC
(que chegaram a controlar quase um terço do território colombiano) está politicamente
esgotada, mas isto está sendo usado para dar uma vitória política aos paramilitares
colombianos que entraram no governo, com Uribe na cabeça, para apagar seu passado
criminoso e se reciclar no “estado de direito”. Na América Central, as guerrilhas
abandonaram as armas para se somar à “política institucional” (burguesa) e gerir o Estado
capitalista. O balanço político dessa experiência torna-se imprescindível.
A luta imediata, na América Latina, é para por fim ao bloqueio contra Cuba, ao Plano
Colômbia e à ocupação militar de Haití pelas tropas da Minustah, enviadas pelos governos de
Lula, Kirchner, Bachelet e Tabaré Vázquez. A perspectiva, que a crise mundial põe na ordem
do dia, é a da unidade socialista da América Latina, baseada no poder político independente
e direto dos trabalhadores urbanos e rurais, a única capaz de realizar a “integração” que
abriria uma nova perspectiva histórica para os povos de nossa pátria comum.
Referências bibliográficas
AGUIRRE ROJAS, Carlos A. América Latina en la Encrucijada. México, Contrahistorias, 2006.
AGUIRRE ROJAS, Carlos A. Chiapas, Planeta Tierra. México, Contrahistorias, 2006.
ALI, Tariq. Piratas do Caribe. O eixo da esperança. Rio de Janeiro, Record, 2008.
ALTAMIRA, Jorge. La oligarquia refunda a Bolivia. Prensa Obrera nº 1036, Buenos Aires, maio 2008.
ALTAMIRA, Jorge. Otra capitulación de las burguesías nacionales de América Latina. En Defensa del
Marxismo nº 35, Buenos Aires, março de 2008.
ALTAMIRA, Jorge. Unidos y dominados. En Defensa del Marxismo nº 35, Buenos Aires, março de 2008.
AMOROSO BOTELHO, João C. A instabilidade democrática na América Latina do século XXI. Mediações,
Londrina, vol. 10 nº 2, dezembro 2005.
Associated Press. Cuba Lends Private Farmers Unused Land, abril 2008.
BANKO, Catalina. Redefinición del papel del estado en América Latina. Cadernos Prolam/USP ano 2 vol.
1, São Paulo, janeiro-dezembro 2002
BARAHONA, Diana. Obama and Latin America: what he really promises. Upside Down World, 3 de
dezembro de 2008.
BOEKER, Paul H. (org.). Transformações na América Latina. Privatização, investimento estrangeiro e
crescimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
BORON, Atilio. Reelecciones buenas y malas. Alai Amlatina, Buenos Aires, 27 de janeiro de 2009.
BOSCHI, Renato e GAITÁN, Flavio. Intervencionismo estatal e políticas de desenvolvimento na América
Latina. Caderno CRH vol. 21 nº 53, Salvador, maio-agosto 2008.
BURBACH, Roger. Orquestando um golpe cívico em Bolivia. América Latina en Movimiento, 18 de
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
novembro de 2008.
BUSTAMANTE, Ana M. La supranacionalidad y la descentralización infranacional en la Comunidad Andina.
Cadernos Prolam/USP ano 5 vol. 2, São Paulo, julho-dezembro 2006.
CAETANO, Gerardo. Mercosul: quo vadis? DEP n° 5, Brasília, janeiro-março 2007.
CAIRO, Heriberto. América Latina no século XXI: geopolítica crítica dos Estados e dos movimentos
sociais. Caderno CRH vol. 21 nº 53, Salvador, maio-agosto 2008.
CALDERÓN, Fernando. Bolívia: mudança política e nova ordem sociocultural. Política Externa vol. 16 nº
2, São Paulo, setembro-novembro 2007.
CARDOSO, Eliana. O Brasil e a crise. Valor Econômico, São Paulo, 13 de novembro de 2008.
CARLSEN, Laura. Barack Obama e a América Latina. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, setembro
2008.
CARUSO, Marilea Leal. Bolívia Jakaskiwa. Florianópolis, Inti, 2008.
CASTAÑEDA, Jorge. Amanecer en América Latina. Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8 nº 4, México,
2008.
CASTAÑEDA, Jorge. Latin America´s deafening silence. Newsweek, Nova York, 12 de janeiro de 2009.
CASTAÑEDA, Jorge. Latin America’s turn to the left. Foreign Affairs vol. 85, n° 3, Nova York, maio-junho
2006.
CÉSAR, Julio. FARC-EP: a imagem da guerrilha. Mediações, Londrina, vol. 10 nº 2, dezembro 2005.
CHACON, Vamireh. O Mercosul. A integração econômica da América Latina. São Paulo, Scipione, 1998.
COGGIOLA, Osvaldo (org.). América Latina e a Globalização. São Paulo, Prolam/FFLCH/USP, 2004.
_____. Crise econômica e movimentos sociopolíticos na América latina. Cadernos Andes nº 21, Brasília,
novembro 2005.
_____. Programas sociais focalizados no Brasil: uma abordagem crítica. In: www.gtehc.pro.br.
_____. Rojo Amanecer. Lucha de clases en América Latina en el siglo XXI. Buenos Aires, Razón y
Revolución, 2006.
CUÉLLAR ARRIAZA, Mario. El Fraude: la Capitalización. Santa Cruz de la Sierra, Imprenta Universitaria,
2007.
DE LA TORRE, Augusto. A crise global e a América Latina. Valor Econômico, São Paulo, 18 de novembro
de 2008.
DEARE, Craig. La militarización en América Latina y el papel de Estados Unidos. Foreign Affairs
Latinoamérica vol. 8 nº 3, México, 2008.
DELGADILLO, Javier e TORRES, Felipe. México, más liberalismo, menos territorio. Cadernos Prolam/USP
ano 5 vol. 1, São Paulo, janeiro- junho 2006.
DUARTE VILLA, Rafael. Limites do ativismo venezuelano para a América do Sul. Política Externa vol. 16
nº 2, São Paulo, setembro-novembro 2007.
EDWARDS, Sebastián. Crisis y Reforma en América Latina. Buenos Aires, Emecé, 1997.
EGUIZÁBAL, Cristina. La política centroamericana de Estados Unidos. Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8
nº 4, México, 2008.
FFRENCH-DAVIS, Ricardo e GRIFFTH-JONES, Stephany. Las Nuevas Corrientes Financieras hacia América
Latina. México, Fondo de Cultura Económica, 1995.
FUENTES, Claudio. Fronteras calientes. Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8 nº 3, México, 2008.
GANDÁSEGUI, Marco A. Obama, crisis y América Latina. Alai Amlatina, 9 de dezembro de 2008.
_____. Panamá: La ampliación del Canal enfrenta “colapso”. Alai Amlatina, 29 de janeiro de 2009.
GARCIA, Enrique. A integração da infra-estrutura na América do Sul. DEP n° 5, Brasília, janeiro-março
2007.
GAUDICHAUD, Frank. Le Volcan Latino-Américain. Paris, Textuel, 2008.
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
Gobierno llama a opositores a construir Estado autonómico desde el 26 de enero. Agencia Boliviana de
Información, La Paz, 29 de novembro de 2008.
GÓMEZ, José M (org.). América Latina y el (Des)Orden Global Neoliberal. Buenos Aires, Clacso, 2004.
Grupo São Paulo. Petróleo e Matriz Energética Mundial. São Paulo, 13 de janeiro de 2009.
GUDYNAS, Eduardo. Crisis económica y crítica al desarrollo extractivista. Alai Amlatina, Montevideo, 14
de janeiro de 2009.
_____. Urgencias y demandas de la integración regional en América Latina y el Caribe. Alai Amlatina, 12
de dezembro de 2008.
GUERRERO, Alejandro. No hay reforma, menos revolución agraria. Prensa Obrera nº 1066, Buenos Aires,
4 de dezembro de 2008.
HABEL, Janette. Cuba: em busca de um novo modelo. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, janeiro
2009.
HERNÁNDEZ, Rafael. ¿Tendrá Estados Unidos una política latinoamericana y caribeña que incluya a
Cuba? Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8 nº 4, México, 2008.
HERRERA, Antonio J. e LATOUCHE, Miguel A. Hugo Chávez: personalismo revolucionario en formato
democrático. Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8 nº 3, México, 2008.
HYLTON, Forrest. Colombie: les Heures Sombres. Paris, IMHO, 2008.
INSULZA, José Miguel. A OEA e a solução da crise Colômbia-Equador. Política Externa vol. 17 nº 3, São
Paulo, janeiro-fevereiro 2009.
ITURBE, Alejandro. Chávez e o “socialismo do século XXI”. Comunicação & Política vol. 25 nº 3, Rio de
Janeiro, setembro-dezembro 2007.
KAHHAT, Farid. ¿Guerra fría en los Andes? Foreign Affairs Latinoamérica vol. 8 nº 3, México, 2008.
KINZER, Stephen. Life under the Ortegas. The New York Review, 12 de junho de 2008.
LAPIERRE, Georges. La Commune d´Oaxaca. Paris, Rue des Cascades, 2008.
LEMOINE, Maurice. América Latina solta as amarras. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo,
novembro 2008.
LEMOINE, Maurice. Colômbia x Venezuela: a grande manipulação. Le Monde Diplomatique Brasil, São
Paulo, julho 2008.
LOPESA, José R. Processos sociais de exclusão e políticas públicas de enfrentamento da pobreza.
Caderno CRH vol. 21 nº 53, Salvador, maio-agosto 2008.
LOWENTHAL, Abraham F. Como mejorar la cooperación con las Américas. Foreign Affairs Latinoamérica
vol. 8 nº 4, México, 2008.
MACHADO, Eliel. Na contramão do neoliberalismo: sem-terra e piqueteiros. Mediações, Londrina, vol. 10
nº 2, dezembro 2005.
MAIRA, Luis. El próximo gobierno estadounidense y la “América Latina del Sur”. Foreign Affairs
Latinoamérica vol. 8 nº 4, México, 2008.
MANDER, Benedict. Distorções na economia venezuelana permitem ascensão de “boligarcas”. Folha de
S. Paulo/ Financial Times, 7 de dezembro de 2008.
Manifiesto por Ecuador y por la Constitución de un Red Mundial contra la Deuda Ilegítima, 28 de
novembro de 2008.
MANRIQUE, Luis E. Cuba, segunda parte. Política Exterior vol. XXII nº 123, Madri, maio-junho 2008.
MARES, David R. Los temas tradicionales y la agenda latinoamericana. Foreign Affairs Latinoamérica vol.
8 nº 3, México, 2008.
MARGOLIS, Mac. For America´s new Kennedy, a détente with the Castros. Newsweek, Nova York, 8 de
dezembro de 2008.
MARTINS CORTADA, Antonio. Fluxos de comércio intra-regionais na América do Sul. Cadernos
Prolam/USP ano 6 vol. 2, São Paulo, julho-dezembro 2007.
MONTAÑO, Jorge. México y Estados Unidos: una relación en busca de rumbo. Foreign Affairs
O Olho da História, Salvador (BA), julho de 2009.
Osvaldo Coggiola
Latinoamérica vol. 8 nº 4, México, 2008.
NOGUEIRA BATISTA, Paulo. O Consenso de Washington. São Paulo, Consulta Popular, 1994.
NUNES, Ivanil. Integração ferroviária sul-americana: porque não anda esse trem? Cadernos Prolam/USP
ano 6 vol. 2, São Paulo, julho-dezembro 2007.
ORZUA DE LA SERNA, Moncerrat. Reforma, Restauración o Revolución. Sucre, Dialécticos, 2006.
OVIEDO, Luis. Una Historia del Movimiento Piquetero. Buenos Aires, Rumbos, 2001.
Partido Obrero. América Latina y la Bancarrota Capitalista Mundial. Buenos Aires, janeiro de 2009.
PAULANI, Leda. Brasil Delivery. São Paulo, Boitempo, 2008.
PEREZ LLANA, Carlos. Argentina: o balanço da gestão Kirchner. Política Externa vol. 16 nº 2, São Paulo,
setembro-novembro 2007.
PIMENTEL, Spensy. Novos protagonismos. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, dezembro 2008.
PRECIADO, Jaime. América Latina no sistema-mundo. Caderno CRH vol. 21 nº 53, Salvador, maioagosto 2008.
RAMIREZ, Rafael. Plena soberania petrolífera. DEP n° 5, Brasília, janeiro-março 2007.
RATH, Christian. Sobre la situación latinoamericana. Boletín Internacional nº 29, Buenos Aires, outubro
2008.
RIESCO, Manuel. Séisme sur les retraites en Argentine et au Chili. Le Monde Diplomatique, Paris,
dezembro 2008.
RODRIGUEZ-LARRETA, Aureliano. Suramérica, ante el populismo y la dispersión. Política Exterior vol.
XXII nº 123, Madri, maio-junho 2008.
ROMERO, Simón. Chávez quer volta de petroleiras. O Estado de S. Paulo / The New York Times, 16 de
janeiro de 2009.
ROSSI, Clovis. Equador expõe divisão sul-americana. Folha de S. Paulo, 29 de novembro de 2008.
RUBI, Arnaud. Venezuela: analyse sans tabou des résultats électoraux du 23 novembre 2008. In: www.
investigaction.org, 7 de dezembro de 2008.
SALAMA, Pierre. Argentine, Brésil, Mexique, face à la crise internationale. In: www.investigaction.org.
SANTISO, Javier. América Latina em 2009: acabou a festa. Valor Econômico, São Paulo, 13 de janeiro de
2009.
SENNES, Ricardo. Las relaciones Brasil-Estados Unidos: un acuerdo tácito. Foreign Affairs Latinoamérica
vol. 8 nº 4, México, 2008.
SHIFTER, Michael e JOYCE, Daniel. Bolivia, Ecuador y Venezuela, refundación andina. Política Exterior
vol. XXII nº 123, Madri, maio-junho 2008.
SILVA BARROS, Pedro. Chávez e petróleo: uma análise da nova política econômica venezuelana.
Cadernos Prolam/USP ano 5 vol. 2, São Paulo, julho-dezembro 2006.
The US-Mexican border. The Economist, Londres, 4 de outubro de 2008.
TICKNER, Arlene. Colombia y Estados Unidos: una relación “especial”. Foreign Affairs Latinoamérica vol.
8 nº 4, México, 2008.
UMBELINO, Ariovaldo. Lula dá adeus à reforma agrária. Brasil de Fato, São Paulo, 8 de janeiro de 2009.
VIGNA, Anne. As guerras mexicanas. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, novembro 2008.
WEISBROT, Mark. Obama should make a clean break with the past in Latin America. América Latina en
Movimiento, 3 de dezembro de 2008.
WILKINSON, Stephen. Do período especial à ascensão de Raúl. Le Monde Diplomatique Brasil, São
Paulo, julho 2008.
ZELADA, Federico (org.). Análisis y Alternativas del Nuevo Proyecto de Constitución del Estado. La Paz,
Universidad Pública de El Alto, 2008.
http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/1801/Democracia%20Acesso%20em%2020/11/2009
Democracia
Por Fernanda Albino Valliatti
RESUMO
A democracia apresenta diversos aspectos que podem ser abordados. É um tema de alta complexidade e periculosidade,
envolvendo vários ramos da ciência política, bem como do direito.
Em relação as formas de Democracia têm-se a democracia direta (a qual, na verdade é de impossível existência), a democracia
representativa (pode ser feita por partidos políticos), e semidireta (com intervenção dos governados em algumas deliberações
dos governantes).
Ainda, diante do trabalho exposto apresenta-se o histórico a democracia, e os seus significados descritivo e prescritivo.
2. DEMOCRACIA.
2.1. HISTÓRICO DA DEMOCRACIA.
À primeira vista, a Grécia parece formar uma unidade geográfica; um exame mais atento, contudo, mostra-nos que a natureza
dividiu aquele conjunto num grande número de vales e planícies, separados uns dos outros por baías e cadeias de montanhas.
Neste país surgiram inúmeras pequenas comunidades, todas elas animadas de fervoroso patriotismo. Para elas, o Estado não
era uma abstração somente compreensível com o auxílio de um mapa, e sim uma realidade palpável. A cidade não era um
produto da razão; era, isto sim, um povo, um conjunto de cidadãos, dotados de inabalável consciência social e de zelo pela
tradição.
O ateniense, em especial, via na participação da vida pública o supremo bem a ser almejado por um homem. A cidadania era o
grande objetivo do ateniense, pois, além de lhe assegurar a participação afetiva na vida pública, lhe garantia os direitos
subjetivos. Já se disse que a maioria dos ideais
Na Grécia, a democracia foi praticada na forma direta; era a chamada democracia clássica, na qual os membros de uma
comunidade deliberam diretamente,sem intermediação de representantes. Isto era possível na prática porque a cidade era de
reduzidas dimensões e a população diminuta. Acentua Bonavides:
“A democracia antiga de uma cidade, de um povo que desconhecia a vida civil, que se voltava por inteiro à coisa pública, que
deliberava com ardor sobre as questões do Estado, que fazia da sua assembléia um poder concentrado no exercício da plena
soberania legislativa, executiva e judicial. Cada cidade que se prezasse da prática do sistema democrático manteria com
orgulho um Ágora, uma praça, onde os cidadãos se congregassem todos para o exercício do poder político. A Ágora, na cidade
grega, fazia pois o papel do Parlamento nos tempos modernos”.
Com efeito, apenas aqueles que integravam um demos (município), dirigido por um demarca, participavam da política. Daí, a
expressão democracia, que significa governo do demos. Por outro lado, o grande número de escravos existente em Atanas
permitia que o tempo do cidadão dedicado à política fosse quase integral.
O segundo estamento compreendia os metecos ou estrangeiros que não participavam da vida pública, embora fossem livres e
sua exclusão da política não significasse discriminação social, mesmo porque na própria atualidade o estrangeiro não possui
certos privilégios ao cidadão nato( art. 12.da Constituição Federal Brasileira ).
Significado Descritivo e Prescritivo.
Democracia, de modo paradoxal, pode ser definida como um termo empolado aplicado a alguma coisa inexistente. Essa
afirmação é, naturalmente, provocante, e seria mais hábil dizer-se que democracia é uma palavra confusa em relação ao que
pretende designar.
Se definir democracia significa meramente apresentar o significado da palavra, o problema está imediatamente solucionado,
porque tudo o que se requer no caso é um conhecimento da língua grega. Literalmente, democracia significa “poder do povo”,
isto é, que o poder pertence ao povo. Mas com isto teremos simplesmente resolvido um problema de terminologia. A
democracia não possui somente uma função descritiva ou denotativa, mas também normativa e persuasiva. Conseqüentemente,
o problema de definir a democracia tem aspecto duplo, exigindo tanto uma definição descritiva quanto uma prescritiva. Uma
não pode existir se a outra e, ao mesmo tempo, uma não pode substituir a outra. Assim, para evitar um passo em falso,
devemos ter em mente três pontos: primeiro, que uma distinção firme tem de ser feita entre o deve e o é quanto à democracia;
segundo, que esta distinção não deve ser mal-entendida, porque ideais e realidade estão interligados ( sem os seus ideais uma
democracia não pode corporificar-se e, reciprocamente, sem uma base de fato a prescrição democrática nega-se a si mesma );
terceiro, que embora complementares, as definições prescritivas e descritivas de democracia não devem ser confundidas,
porque o ideal democrático não define a realidade democrática e, vice-versa, uma democracia legítima não é, não pode ser,
igual a uma democracia ideal.
As formas de Democracia.
Democracia Direta:
Na democracia direta existe participação direta do povo no exercício direto do poder, ao passo que a democracia indireta
importa num sistema de limitação e controle do poder. Em nossas democracias, existem aqueles que governam e os que são
governados; há o Estado, de um lado, e os cidadãos, do outro; há os que lidam profissionalmente com a política e aqueles que
não se lembram disso, exceto em raros períodos - ao passo que todas essas distinções tinham bem pouco significado nas
antigas democracias.
Duas perguntas surgem: É a democracia direta preferível? - e em segundo lugar: É ela ainda possível? De um ponto de vista
lógico, deveríamos começar com a questão da sua possibilidade, pois se descobrirmos que hoje em dia a democracia direta é
impossível, seria insubsistente discutir a sua desejabilidade. Mas os homens não são tão lógicos assim. Freqüentemente, o
desejo precede o conhecimento, e conquanto todos tenhamos preferências, poucos entre nós se detêm para indagar se elas são
alcançaveis.
O motivo da preferência pela democracia direta é uma dessas questões a que a razão responderia de um modo, e que a
experiência histérica nos leva a responder de outro. Em termos de princípio, ninguém negará provavelmente que aquele que
exerce ele mesmo o poder seria melhor sucedido do que quem delega tal poder a outrem, e que um sistema baseado na
participação é ais seguro do que aquele baseado na represetação.
Democracia Representativa:
O que se deve representar é o homem de classe e de grupo; e como as classes são categorias sociais permanentes, não podendo
ser negadas sem que se negue uma nação, é necessário que essas forças estejam representadas nas Cortes. Quando o
parlamento representar todas estas forças, então o espelho da sociedade será ele mesmo, e não se dará esse caso vergonhoso prova de que não são representativos os parlamentos modernos - de que, quando surge uma crise agrícola ou industrial, a
primeira medida dos partidos que formam o parlamento é procurar uma informação pública, para se inteirar do que se passa lá
fora.
Democracia Semidireta:
Esta democracia é assim denominada porque, ao lado da natureza representativa de seu sistema político, nela se admite a
utilização esporádica da intervenção direta dos governados em certas deliberações dos governantes. Esta intervenção
compreende, basicamente, os seguintes institutos: plebiscito, referendo, iniciativa popular, veto popular e recall.
Plebiscito: a expressão plebiscito denomina uma consulta prévia que se faz à coletividade, a fim de que esta se manifeste a
respeito de sua conveniência ou não. Os governantes consideram oportuna a medida, mas, antes de efetivá-la, consideram
necessário que o povo se manifeste antes. O termo plebiscito deriva de plebs, plebe, que tendo origem na Lex Hortensia (séc.
IV a . C), que concedeu aos plebeus os direitos de participar do processo político na antiga Roma republicana.
Referendo: é o mecanismo da democracia semidireta pelo qual os cidadãos são convocados para se manifestar a respeito da
conveniência, ou não, de medida já tomada pelos governantes. Nisto, difere do plebiscito. Dá-se o nome de referendo, também,
à manifestação popular sobre a entrada em vigor de leis, já elaboradas pelo Parlamento. Trata-se, então, de ratificação popular
a algo que já está feito.
Iniciativa Popular: eis o mais significativo instituto da democracia semidireta. É realmente a que mais atende às exigências
populares de uma participação efetiva do processo político é a iniciativa das leis pelo próprio povo. Ela obriga o Parlamento a
legislar, porque, se um determinado número de cidadãos o exige, um projeto de lei determinado será exposto à Assembléia, que
deverá examiná-lo e emitir um parecer. Na iniciativa popular o povo exerce apenas um direito de petição “reforçado”, pelo
qual pressiona o parlamento a reparar um projeto de lei sobre determinado assunto, bem como a discuti-lo e votá-lo. No caso,
os cidadãos não legislam, mas fazem com se legisle.
Veto Popular: do latim vetare, proibir, impedir, o veto popular significa a rejeição, pelo povo, de uma medida governamental.
Pode ocorrer no plebiscito ou no referendo. No Brasil, o veto é prerrogativa dos chefes do Poder Executivo, como o Presidente
da República, que pode vetar total ou parcialmente, os projetos de lei aprovados pelo Legislativo ( CF, arts. 66 e 84 ), embora
com amparo no art. 14, as coletividades que não desejarem ser elevadas a município, possam vetar esta medida. Recall: o
termos recall significa revogar, reparar, anular, e é esta, verdadeiramente, sua finalidade, permitir que o eleitorado possa
destituir, em manifestação direta, um órgão público que tenha afrontado a confiança do povo e a dignidade do cargo.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do que foi apresentado nesse trabalho, concluí que existem três espécies de democracia são elas: direta ou clássica,
representativa e semidireta. Cada uma delas buscou alcançar o ideal democrático. Descartada a primeira hipótese, qual seja, a
da democracia direta, por irrealizável no mundo moderno, restaria indagar qual a verdadeira essência do ideal democrático.
Será a democracia o governo do povo ou, o controle do poder político pelo povo, em oposição a arche (governo)?
Todos os Estados modernos se proclamam ardentemente democraticos, da mesma forma que todos os políticos se proclamam
honestos. A qualificação de um Estado como democrático não se acha vinculada a nenhuma ideologia. Atualmente, se ouve
falar em crise da democracia, quando o que está realmente em crise é uma simples forma histórica da democracia, a liberaldemocracia. Comete seu erro que, em lógica consiste em tomar parte pelo todo.
Infelizmente, a liberal- democracia, que nada mais é do que uma espécie entre as inúmeras que buscam alcançar o ideal
democrático, transformou-se para muitos, em tabu. Crise da liberal- democracia é crise do próprio ideal democrático.
Num mundo em que as realidades palpáveis se fazem cada vez mais candentes, as abstrações do passado vão, paulatina, mas
inexoravelmente, perdendo terreno. Belas ficções, transformadas em dogmas da política, começam a perder o encanto original.
O súdito, o cidadão, o homem abstrato vão deixando seu lugar para um ser totalmente novo. Então democracia, por assim
dizer, é o processo político que autoriza a permanente participação, livre e consciente, direta ou indireta, da comunidade, nas
deliberações do governantes.
Referências bibliográficas: O que é a Democracia?, Alain Touraine; Teoria Democrática, Giovanni Sartori; Ciência política,
Paulo Bonavides.
1 - Sentido etimológico
A palavra democracia origina-se do grego:”demos”,que significa povo, e “cratos”, fôrças, poder, e, por extensão ,
governo.Democracia é, assim, etimologicamente, o governo do povo.
2 - Sentido real
Os autores, todavia, completaram essa definição, acrescentando-lhe expressões, que vieram a conceituá-la, com mais precisão,
sob o ponto de vista político.
Assim, Aristóteles definiu-a como o governo do povo.Abraham Lincoln acrescentou, a esta definição, a expressão para o povo,
como sua origem político,todo ele voltado para o povo, como sua origem, instrumento e finalidade, que é.
3 - Definição
Definimos, em ponto anterior, a Democracia, como sistema de governo, que pretende dar, a todos os cristãos, iguais
possibilidades de participação na gestão da coisa pública, para significar que todos são iguais perante a lei e tem liberdade de
agir, dentro da coletividade, desde que não violem o direito de seus semelhantes.
4. BIBLIOGRAFIA - Introdução Sistemática ao Estudo da Sociologia-Lidador
Educação Moral e Cívica-Felipe N. Moschini, Otto Costa, Víctor Mussumeci, pg 99,128.
Mídia, eleição e democracia, Heloiza Matos (ORG.), pg 53,88.
http://www.culturabrasil.pro.br/ditadura.htm
A Ditadura Militar
“Este é tempo de divisas, tempo de gente cortada... É tempo de meio silêncio, de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso na esquina.”
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
“Dormia
A nossa Pátria mãe tão distraída Sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações.”
CHICO BUARQUE DE HOLLANDA
Recife, 1964. Beira da praia, brisa da noite, mansões dos usineiros. As garrafas de champanha são
abertas. Festa. Pessoas bonitas, perfume, olhares de fêmeas, dentes brancos de alegria. As risadas unem o gozo
ao deboche. Vida longa para o novo governo! Que nunca mais se falem em greves nem nessa maldita terra para
os camponeses! Morte aos inimigos da propriedade!
Um pouco longe dali, noite negra e silêncio. De repente, chegam os soldados. Vasculham os casebres.
Procuram os inimigos da pátria. As pessoas simples têm medo. Precisam dormir cedo porque amanhã têm de ir
para roça cortar cana. Mas o olho continua aberto. Só a boca é que permanece fechada.
No quartel, homens armados de fuzil automático arrastam o ancião. Espancado em praça pública. Maxilar
quebrado por uma coronhada de rifle. Chutaram-lhe tanto os testículos, que arrebentou a bexiga. Vai urinar
sangue por quase um mês, O velho ferido está algemado. Ao seu redor, caminhões do Exército, berros de oficiais,
rádio, holofotes, metralhadoras,
Por que tanto aparato? Por que tantos homens, tantas armas, tanta força bruta? Por que o velhinho é tão
perigoso?
Gregório Bezerra nasceu no sertão. Criancinha, viveu a fome e
a prepotência dos latifundiários. Foi quase um escravo. Brinquedo de menino era enxada e foice, sonho de um dia
comer carne-seca. Nunca viu escola. Só aprendeu a ler e escrever com 24 anos, quando servia o Exército - e
nunca mais deixaria o orgulho de ter sido militar. Pouca instrução, mas o conhecimento da vida e a argúcia do
homem do povo.
Um dia, entrou em contato com aquela gente estranha. Falavam coisas que ele nunca tinha ouvido mas
que, extraordinariamente, parecia já saber. Alguns eram até doutores, mas o tratavam como igual. Muitos dos
estranhos eram como Gregório, como Severino, como José, como tantos outros: mãos de calo, cara rasgada de
sol, trabalho e sofrimento.
Ouviu, refletiu e juntou-se a eles.
Voltava ao canavial, onde o homem perde a perna, ou o juízo, pela picada de cobra, o golpe errado do
facão, o jeito doido de o capataz falar. Mas agora, era ele que tinha o que dizer para contar para os seus irmãos
de labuta. Nos campos, nos mocambos miseráveis, nas portas das usinas e das fábricas, Gregório seria a voz da
consciência dos que ainda não tinham consciência, a posse dos que nada possuíam. Ele era o homem do povo
que descobre sua força e, finalmente, se levanta. Em vez de lamentar suas misérias, ergue-se para combatê-las.
Sabia falar a língua dos humildes e fazer as perguntas decisivas; a quem pertence? A quem é dado? O
que se deve transformar? Os homens mais poderosos de Pernambuco o temiam. Gregório Bezerra, velho quase
analfabeto, ferido e enjaulado em 1964. Líder camponês, ex-deputado federal, inimigo do latifúndio. E se um dia
todos aqueles homens e mulheres com as mãos grossas e rosto queimado se transformassem em milhões de
Gregórios? Era preciso evitar a qualquer custo.
Por isso, Gregório Bezerra tinha sido preso. Naquele momento, os grandes senhores da terra
comemoravam sua vitória. O reveillon de 1964 acontecia em 31 de março.
Governo Castello Branco (1964 – 1967)
Bem que Leonel Brizola propôs ao presidente Jango resistir ao golpe de 1964 com armas na mão, a partir
do Rio Grande do Sul. Mas o presidente, muito deprimido, não queria derramamento de sangue. Como milhares
de brasileiros, os dois também se exilaram no estrangeiro.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro - Copacabana e Ipanema -, a classe média se confraternizava com a
burguesia. Chuva de papel picado, toalhas nas janelas, buzinaço, banda e chope. Abraços, choro de alegria, alívio
pelo fim da desordem. O Brasil estava salvo do comunismo! Os crioulos não invadiriam mais as casas das
pessoas de bem! As empregadinhas voltariam a ficar de cabeça baixa!
Mas nos subúrbios o medo substituía o chope. Ali, a revolução iria procurar os "inimigos do Brasil". E
quem seriam esses monstros? Pessoas simples, enrugadas pelo trabalho duro, mas que tinham ousado não se
curvar; operários, camponeses, sindicalistas.
Nenhum banqueiro, nenhum megaempresário, nenhum tubarão foi sequer chamado para depor numa
delegacia, Eram todos homens de bem, pessoas que amavam o próximo... principalmente se o próximo fosse um
bom parceiro de negócios.
Os soldados armados de fuzis prendiam milhares de pessoas: dirigentes populares, intelectuais, políticos
democratas. A UNE foi proibida e seu prédio, incendiado. A CGT, fechada. Sindicatos invadidos à bala. Nas
escolas e universidades, professores e alunos progressistas expulsos. Os jornais foram ocupados por censores e
muitos jornalistas postos na cadeia. A ordem era calar a boca de qualquer oposição.
Os políticos que não concordaram com o golpe, geralmente do PTB, tiveram seus mandatos cassados.
Ou seja, perderam seus direitos políticos por dez anos. O primeiro cassado, inimigo número um do regime, foi Luís
Carlos Prestes. O segundo foi o ex-presidente João Goulart. Depois, veio uma lista de milhares de pessoas que
foram demitidas de empregos públicos, presas, perseguidas, arruinadas em sua vida particular. Juscelino e Jânio
também perderam seus direitos, para que não tentassem nenhuma aventura engraçadinha na política. Só a UDN
não teve punidos: coincidência, não?
Os comunistas, claro, eram perseguidos como ratos. Muitos foram presos e espancados com brutalidade. O pior é
que o xingamento de “comunista” servia para qualquer um que não concordasse com o regime. Seria o suficiente
para ser instalado numa cela, Fariam a reforma agrária num cubículo 2 X 2 e socializariam a propriedade do
buraco no chão que servia de privada.
Para espionar a vida de todos os cidadãos, foi criado em 1964 o SNI (Serviço Nacional de Informações).
Havia agentes secretos do SNI em quase todos os cantos: escolas, redações de jornais, sindicatos, universidades,
estações de televisão. Microfones, filmes, ouvidos aguçados. Bastava o agente do SNI apontar um suspeito para
ele ser preso. Imagine o clima numa sala de aula, por exemplo. Eu mesmo perguntei, certa vez, a um professor de
história, “o que ele achava” de algo que os militares haviam decretado. Ele, apavorado, respondeu algo como:
“Não acho nada! Eu tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele!” Eram muitos os “desaparecidos”
naqueles tempos... O professore correndo o risco de ser detido caso fizesse uma crítica ao governo. Os alunos,
falando baixinho, desconfiando de cada pessoa nova, apavorados com os dedos-duros. A ditadura comprometia
até as novas amizades! O pior é que o SNI cresceu tanto que quase acabou tendo vida própria, independente do
general-presidente, a quem estava ligado. Seu criador, o general Golbery do Couto e Silva, no final da vida, diria
amargurado: “Criei um monstro.”
O novo governo passou a governar por decreto, o chamado AI (Ato Institucional) O presidente baixava o
AI sem consultar ninguém e todos tinham de obedecer. O AI-1 determinava que a eleição para presidente da
República seria indireta. Ou seja, com O Congresso Nacional já sem os deputados e senadores incômodos,
devidamente cassados, e um único candidato. Adivinha quem ganhou? Pois é, em 15 de abril de 1964 era
anunciado o primeiro general-presidente, que iria nos governar o Brasil segundo interesses do grande capital
estrangeiro nos próximos anos: Humberto de Alencar Castello Branco.
Castello tinha sido um dos figurões da Sorbonne, ou seja, dos intelectuais da ESG. A maioria de seus
ministros também era oriunda da ESG, a “Escola Superior de Guerra”, réplica nacional do “War College” norteamericano. Tranqüilos com a vitória, os generais nem se importaram com as eleições diretas para governador em
1965. Esperavam que o povo brasileiro em massa votasse nos candidatos do regime. Estavam errados. Na
Guanabara e em Minas Gerais venceram políticos ligados ao ex-presidente Juscelino Kubitschek. (Em São Paulo
não houve eleições. Seriam depois.) Mostra clara de que alguns meses depois do golpe ainda tinha muita gente
que não apoiava o regime. Pois bem, os militares reagiram. Vinte e poucos dias depois das eleições desastrosas,
foi baixado o AI-2, que acabava em definitivo com as eleições diretas para presidente da República. Agora, o
presidente seria “eleito” indiretamente, ou seja, só votariam os deputados e senadores. Voto nominal e declarado,
ou seja, o deputado era chamado lá na frente para dizer, no microfone, se votava ou não no candidato do regime.
Quantos teriam coragem de dizer, na cara dos ditadores, que não aprovavam aquela palhaçada? Muito poucos,
inclusive porque os mais ousados eram sumariamente cassados.
O AI-2 também acabou com os partidos políticos tradicionais. O PSD, o PTB, a UDN, tudo isso foi proibido
de funcionar. Agora, só poderiam existir dois partidos políticos: a Arena e o MDB.
A Arena (Aliança Renovadora Nacional) era o partido do governo. Estavam ali todos os políticos de
direita que apoiavam descaradamente a ditadura. De onde vinham? Basicamente, da UDN. Mas também um
bando de gente do PSD, do PSP de Adhemar de Barros e, por incrível que pareça, muitos da velha guarda
integralista. Apoiavam o regime militar em tudo que ele fazia.
O MDB (Movimento Democrático Brasileiro) era o partido da oposição consentida. A ditadura, querendo
uma imagem de democrática, permitia a existência de um partido levemente contrário. Contanto que ninguém
fizesse uma oposição muito forte. O MDB era formado pelos que sobraram das cassações, um pessoal do PTB,
alguns do PSD. No começo, a oposição era muito tímida. Nos anos 70, porém o MDB conseguia votações cada
vez maiores para deputados e senadores. Então seus políticos - muitos eram novos valores surgidos na década começaram a fazer uma oposição importante ao regime, capitaneados pela figura do deputado paulista Ulisses
Guimarães (1916-1992) . Naqueles tempos, brincando é que se diz a verdade, comentávamos que o MDB era o
“Partido do Sim” e a ARENA era o “Partido do Sim Senhor!”
O AI-3, do começo de 1966, determinava que as eleições para governador também seriam indiretas. Os
únicos com direito a voto eram os deputados estaduais, que tinham de ir lá na frente e declarar para todo mundo
em quem votavam. Mais intimidação seria impossível, não é mesmo? O circo estava todo armado para que a
ARENA governasse todos os setores da vida nacional.
A Constituição de 1967
No Brasil, os homens da ditadura faziam questão de criar uma imagem de que o país era um regime
“democrático”. Alegavam que existia partido de oposição e eleições para deputado e senador. Vá lá, mas acontece
que os políticos mais críticos estavam cassados e o MDB, sob vigilância. Além disso, o Congresso Nacional ficou
com os poderes muito cerceados. Um deputado podia fazer pouca coisa além de elogiar as praias douradas do
Brasil. No fundo, quem mandava mesmo era o general-presidente e pronto. Dentro dessa preocupação de manter
a aparência (só a aparência) de “democrático”, o regime promulgou a Constituição de 1967, que vigorou até
1988, quando finalmente foi aprovada a Constituição atual. Promulgar não é bem a palavra. Porque não existiu
sequer uma Assembléia Constituinte. Os militares fizeram um rascunho do texto constitucional e enviaram para o
Congresso aprovar. Congresso mutilado pelas cessações, nunca devemos esquecer. O trabalho era pouco mais
do que aplaudir. Trabalhos regulados por um relógio que tocava corneta. Deputados obedientes como soldados
em marcha.
Para começar, eleições indiretas para presidente da República e governadores de Estado, Os prefeitos de
capital e cidades consideradas de “segurança nacional” (como Santos, em São Paulo, o maior porto do país, ou
Volta Redonda, no Rio de Janeiro, por causa da gigantesca Companhia Siderúrgica Nacional) seriam nomeados
pelo governador. Em outras palavras, a Arena governaria o país pela força da lei (e das armas, claro).
A Constituição de 1967 aumentava as atribuições do Executivo e a centralização do poder. É por isso que
havia Congresso aberto. Pela Constituição, os deputados e senadores não podiam fazer quase nada, a não ser
discursos. Veja bem: a lei não permitia nem mesmo que o Congresso pudesse controlar as despesas do
Executivo. No país inteiro, governadores e prefeitos também podiam gastar à vontade no que quisessem estradas para valorizar latifúndios, estádios de futebol para enriquecer empreiteiras, teatros para a elite se divertir,
prédios públicos enormes para os figurões ficarem sem fazer nada no ar condicionado. Os deputados estaduais e
vereadores não tinham poderes para impedir esses gastos.
Os governadores perderam a autonomia para gastar. Para qualquer obra importante, tinham de pedir
dinheiro ao governo federal, ou seja, ao general-presidente. O mesmo valia para os prefeitos. Por exemplo, vamos
imaginar que na cidade X, o Fulano do MDB fosse eleito prefeito. A maior parte do dinheiro dos impostos ficava
com o governo federal, em Brasília. O prefeito Fulano quer fazer uma escola municipal para X. Não tem dinheiro.
Tem de pedir para o governador, que é da Arena e, certamente, recebe ordens de Brasília para não dar nada.
Agora, se o prefeito fosse da Arena, as coisas mudavam de figura. Principalmente porque o prefeito se lembraria
de apoiar a eleição de deputados e senadores da Arena. Esqueminha montado e quase sem furos. Dá para
entender por que o regime militar não teve medo de manter eleições para o Congresso e permitir a existência do
MDB? Era como um jogo de futebol facílimo de ganhar, porque o juiz roubava escancarado para o lado de quem já
estava no poder...
O pior de tudo é que o regime iria fechar mais ainda. O último ato do governo de Castello foi a LSN (Lei de
Segurança Nacional). Reprimir passava a ser sinônimo de “defender a pátria”.
A Economia no Governo Castello Branco
A primeira atitude do novo governo foi anular as reformas de base. Criaram um Estatuto da Terra, que
previa uma tímida reforma agrária. Claro que jamais sairia do papel dos burocratas. O latifúndio estava livre para
engolir os camponeses.
A lei de 1962, que controlava remessas de lucros para o estrangeiro, foi anulada. As multinacionais foram
ofertadas com todas as facilidades.
Os mestres do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo) foram os ministros Otávio Gouveia de
Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento).
Para diminuir a inflação, eles aplicaram receitas econômicas monetaristas. Trataram de tirar o dinheiro de
circulação. Para começar, cortaram os gastos públicos, ou seja, o governo investiria menos em hospitais e escolas
– já se preparava a introdução do ensino pago nas universidades públicas e começava-se com a política de
esvaziamento na qualidade do ensino público gratuito de boa qualidade, valorizando mais as instituições privadas.
Até antes da Ditadura Militar, estudar em colégios particulares era amesquinhante demonstração de
incompetência para acompanhar o elevadíssimo nível que então o ensino público mantinha... Em 1964, tinha sido
fundado o Banco Central para controlar todas as operações financeiras do país. Também foi criada uma nova
moeda, o cruzeiro-novo.
Os salários foram considerados os grandes responsáveis pela crise econômica do país. Claro, os
operários deviam estar ganhando fortunas e o país não poderia suportar um soldador ou torneiro mecânico
passando férias na Cote d’Azur, fazendo compras na Avenue Montaigne, em Paris. Assim, os aumentos salariais
passaram a ser sempre menores do que a inflação. A idéia era fazer com que o aumento de preços, por causa do
crescimento dos salários, fosse cada vez menor.
Acompanhe o raciocínio dos caras. Por exemplo, se a inflação fosse de 30% naquele ano, a lei obrigava o
patrão a conceder um aumento abaixo daquela inflação, de só, digamos, 20%. Claro que esse patrão iria
compensar o prejuízo de ter de pagar mais salários aumentando os preços de seus produtos e serviços. (Por isso
mesmo, diziam, existia a inflação!) Mas, em quanto? Se o salário aumentava em 20%, o patrão poderia aumentar
os preços em, digamos, 21%: teria até um pouquinho mais de lucro do que antes. Mas o aumento geral dos
preços (por causa do salário maior em 20%, todos os empresários reagiriam aumentando os preços em 20% e
quebrados) seria perto dos vinte e pouco por cento, e não mais os 30% anteriores, No ano seguinte, com inflação
de, suponhamos, uns 22%, o patrão poderia dar um aumento de salário de só uns 10%. Aí os preços, para
compensar esse aumento salarial, subiriam uns 12%, por exemplo. E assim, num passe de mágica, a inflação teria
caído de 30% para 12% ao ano. Claro que tudo isso está simplificado, mas a idéia básica era essa mesma. Agora,
não sei se você se tocou: por essa receita, os salários eram comidos pela inflação. Em outras palavras, a ditadura
militar reduziu a inflação arrochando os salários dos trabalhadores.
Um dos recursos para diminuir salários foi a extinção da estabilidade. Pela lei antiga, depois de dez anos
numa empresa, era quase impossível despedir um empregado. Isso acabou. No lugar, foi criado o FGTS (Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço), em 1966, que ainda existe mas, com os ventos ainda mais conservadores
que andam soprando neste país, tem havido uma tendência a propor a suspensão até deste direito para os
trabalhadores. Funciona assim: a cada mês, o patrão deposita nos bancos uma parte do salário do empregado,
formando uma espécie de caderneta de poupança (outra invenção do regime militar) chamada de FGTS, Acontece
que o FGTS só pode ser sacado em momentos especiais, como na compra de uma casa própria ou, caso mais
comum, quando o empregado é despedido. Essa lei facilitou a vida dos empresários. Agora, despedir era
tranqüilo. Os empregados, sabendo que podiam perder o emprego a qualquer momento, eram obrigados a aceitar
salários mixurucas.
Grandes empresas (como as automobilísticas) chegaram a ser acusadas de ter uma armação para, de vez
em quando, despedir alguns operários (logo absorvidos por outra fábrica, tudo combinado secretamente). A
rotatividade da mão-de-obra (rodando de emprego em emprego) seria um excelente mecanismo para baixar
salários.
Em princípio, o dinheiro do FGTS serviria para que o recém-criado BNH (Banco Nacional da Habitação)
financiasse casas populares. Na prática, o que aconteceu foi que o BNH acabou financiando a construção de
condomínios de luxo para milionários. Ou seja, o pobrezinho pagando, indiretamente, a mansão do ricaço.
Não devemos esquecer que as greves estavam totalmente proibidas. O peão tinha de engolir quieto a
pancada salarial, senão haveria outra paulada mais dolorosa ainda. Para que os empréstimos do governo federal
e os impostos devidos a ele fossem pagos decentemente, criou-se a correção monetária. Antes, o sujeito podia
esperar um ano para pagar impostos porque então ele pagaria uma quantia desvalorizada pela inflação. Agora, a
correção monetária simplesmente aumentava o valor da dívida no mesmo percentual da inflação.
Como o governo não queria emitir papel-moeda (estava combatendo a inflação), obviamente os
empresários sofreram restrições ao crédito. Juros altos, dificuldade de obter empréstimos, poucos investimentos. A
economia crescia pouco. Os ministros sabiam que estavam provocando esta recessão. Achavam que era um dos
remédios para baixar a inflação. Realmente, as compras diminuíram. Reduzida a demanda (procura), caíram os
preços: outro fator deflacionário.
Para agilizar o crescimento da economia, Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões, os ministrosgurus do PAEG, criaram muitas facilidades para o investimento estrangeiro. Tinham-se ido os tempos do
nacionalismo trabalhista.
Bem, e o PAEG deu certo? Para o que ele se propunha, sim, foi bem-sucedido. A inflação caiu. O preço
social disso é que representa problema. Os economistas “iluminados” da época falavam pudicamente no “lado
perverso” das medidas econômicas.
Por que a economia voltou a se recuperar? Há várias explicações. Para começar, os investidores
estrangeiros ficaram mais tranqüilos: não havia mais ameaça de nacionalismo, nem de greves e muito menos de
socialismo. Além disso, o novo governo tinha eliminado as restrições ao capital estrangeiro. Assim, as
multinacionais começaram a investir em peso na construção de novas fábricas. O FMI, feliz com o Brasil militar,
também emprestou dinheiro, E nós vimos que ajuda do FMI era uma espécie de garantia para que outros
banqueiros confiassem no país.
Uma das causas mais importantes da inflação é o descontrole da economia: cada empresário tenta lucrar
na marra, simplesmente aumentando os preços. Vira uma corrida histérica de preços e salários aumentando sem
parar. Para reverter o quadro, deveria haver um acordo nacional dos empresários entre si e dos empresários com
os trabalhadores. Mas Jango, no seu tempo, encontrara dificuldade em montar o acordo. Ocorria o oposto: as
lutas de classes se tornavam mais agudas.
Obviamente, a ditadura não resolveu as coisas por consenso, promovendo um plano com que toda a
sociedade concordasse. As coisas foram impostas na marra. Na marra principalmente sobre os trabalhadores. Ou
seja, o consenso foi obtido na base do “Ou você concorda comigo ou entra na porrada!” De qualquer modo, a
estabilidade foi conseguida.
Quer dizer então que uma ditadura consegue estabilidade? Essa pergunta necessita de outra: de que tipo
de estabilidade estamos falando? Quando examinamos as estatísticas econômicas percebemos que a
estabilidade teve um preço: o aumento de exploração da força de trabalho.
Costa e Silva (1967 – 1969)
Os militares tinham indicado e o Congresso balançou a cabeça: o novo general-presidente era Arthur da
Costa e Silva. Só a Arena tinha votado na eleição indireta. Em vez de levantar o braço, batia continência. O MDB,
em protesto (era minoria), havia se retirado do plenário. Com mãos ao alto.
Costa e Silva era tido como um homem de hábitos simples. Em vez da companhia dos livros, como
gostava o pedante Castello Branco, preferia acompanhar as corridas de cavalos. Pessoalmente, diziam que era
“gente boa”. Mas se Costa e Silva queria tranqüilidade, tinha escolhido mal o emprego. Melhor seria dar palpites
no jockey.
Depois do impacto de 64, com aquela onda de prisões e fechamentos, as oposições ao regime voltaram a
se articular. Até mesmo Lacerda tinha virado oposição. É que ele tivera esperança de se tornar presidente, mas
aqueles a quem bajulara lhe viraram as costas. Magoado, procurou unir Juscelino e Jango, exilados, numa Frente
Ampla. Pouco resultado daria. Longe do país, tinham pouca influência.
Apesar do PAEG de Castello diminuir a inflação e retomar o crescimento, a situação da classe operária
vinha piorando. Em 1965, os operários paulistas ganhavam, em média, apenas 89% do que recebiam em 1960,
em 1969, apenas 68%. Estava ficando feia a coisa.
Os anos 60 formaram a grande década revolucionária. Os anos da minissaia, dos homens de cabelo
comprido, da pílula anticoncepcional; da guerra do Vietnã, dos hippies, do feminismo; da Revolução Cultural na
China, da Primavera de Praga, dos Beatles, dos Rolling Stones, de Jimi Hendrix e Janis Joplin, do LSD, do
psicodelismo, das viagens à Lua; de Kennedy, Krutchev e Mao Tsetung; do cinema de Godard, Pasolini e
Antonioni; das idéias e dos livros de Sartre, Marcuse, Althusser, Hermann Hesse, Erich Fromm e Wilhelm Reich;
dos transplantes de coração, dos computadores e do amor livre, de Bob Dylan, Jim Morrison e Martin Luther King;
de "Paz e Amor", Woodstock e Che Guevara.
Especialmente, 1968. Trabalhadores e estudantes se levantaram no mundo inteiro. Em Paris, cidadela do
tranqüilo capitalismo desenvolvido, os operários fizeram greve geral e os estudantes jogavam pedras na polícia.
Nos muros da capital francesa, os grafites anunciavam o novo mundo: “É proibido proibir”, “A imaginação no
poder!”, “Amor e revolução andam juntos”. Nos EUA, atacava-se o racismo. Tempos de Martin Luther King e de
Malcolm X, grandes líderes negros. Os estudantes norte-americanos também sonhavam com socialismo e
milhares deles protestariam contra o absurdo de a máquina de guerra ianque agredir o povo do Vietnã. Na
América Latina, sonhava-se com guerrilhas libertadoras. Na Tcheco-Eslováquia, aconteceu a Primavera de Praga:
os comunistas, liderados por Dubcek, tentaram construir o socialismo humanista. Na China Popular, o camarada
Mao Tsetung estimulava a Revolução Cultural. A Cuba revolucionária de Fidel Castro e Che Guevara mostrava o
caminho para os jovens latino-americanos: guerrilha, revolução popular, socialismo “Hasta la victoria
compañeros!” (Até a vitória companheiros!) No Brasil, a luta era contra uma ditadura militar e um capitalismo
troglodita. Desafiando abertamente o regime, os operários fizeram greve em Contagem (Minas Gerais). Pouco
depois, pararam os metalúrgicos de Osasco (São Paulo).
O governo militar, através da Lei Suplicy, quis impedir que os estudantes se organizassem. O maldito
acordo MEC-Usaid previa a colaboração dos técnicos americanos na reformulação do ensino brasileiro. E o que
os ianques propunham? Acabar com as discussões políticas na universidade: estudante deveria apenas ser mãode-obra qualificada para atender as multinacionais aqui instaladas. Além disso, o governo queria que o ensino
superior fosse pago. Ou seja, faculdade só para minoria de classe média alta para cima.
Mas a UNE estava lá para lutar contra. Época gloriosa do movimento estudantil. Coragem, sonhos
libertários, utopia na alma. A juventude queria o poder no mundo! Os estudantes iam para a rua contra um governo
que esculhambava a universidade pública, contra um regime militar. Apesar de proibidas, suas passeatas nas ruas
atraíram cada vez mais participantes, de operários e boys a donas de casa e profissionais liberais. A grande
imprensa chamava-os de “infantis”, “toxicômanos”, “desequilibrados”. A polícia atacava. Cassetetes, gás
lacrimogêneo, caminhões brucutu. Eles respondiam com pedras, bolas de gude (contra a cavalaria da PM),
coquetéis molotov e idealismo. Os principais líderes estudantis estavam no Rio de Janeiro: Vladimir Palmeira e
Luís Travassos.
Voltando no tempo...
Imagine que você, com sua idade atual, acaba de voltar no tempo. Estamos em 1968, no Rio de Janeiro.
Em que é que você está pensando? O que é que você faz no dia-a-dia?
Imagine que você é de classe média e está se preparando para o vestibular. Assustador. A faculdade tem
vagas reduzidas. Aliás, essa é uma das bandeiras do movimento estudantil: alargar o funil que desemboca na
universidade. Que curso você vai seguir? A maioria quer ser engenheiro, médico, advogado. Mas tem gente que
quer conhecer o Brasil para transformá-lo: vão estudar sociologia, história, filosofia e até economia. Um amigo seu
diz, brincando, que tem um professor de sociologia da USP que um dia ainda vai ser presidente da República.
Na faculdade, quem não é de esquerda está por fora. Claro que há uma povão de gente alienada, que
nem dá bola para o que acontece no país. Mas você e seus amigos são conscientizados. O problema é que existe
uma floresta de partidos e grupelhos de esquerda: PC do B, AP, Polop, Dissidência na Guanabara e tantos outros
(sigla era um troço importante naquela época). Só não vale o PCB, que não é bem visto pela garotada, que o
chama de “Partidão”. Parece com um velho sábio que não dá mais no couro. Na verdade, o fato de o PCB não
aceitar a luta armada contra o regime tira o charme dele. Afinal, todos temos pôster de Che Guevara e Ho Chi
Minh na parede de casa e gostamos de nos imaginar na selva entre os camponeses, com idéias na cabeça e um
fuzil na mão.
As pessoas lêem o suficiente para não se sentirem alienadas. Estamos em 1968 e alguns autores são
obrigatórios: Leo Huberman, Engels, Lênin, Nélson Werneck Sodré, Caio Prado Jr, Moniz Bandeira e o famoso
manual marxista de Politzer. Quem não leu, ouviu falar. O que é suficiente para participar de um debate, que é o
que mais interessa. Para os mais metidos a espertos, cabe citar Marcuse, Althusser, Gramsci e Erich Fromm.
No corredor da faculdade, vocês discutem política. Baixinho, mas escancarado (até 1968 ainda dava para
fazer isso). De um lado, os que acham que primeiro devem organizar os trabalhadores para depois partir para luta
armada, do outro, os que acham que a luta armada organizará os trabalhadores. Isso mesmo que você está lendo:
na cabeça do pessoal, a revolução está ali na esquina. É só pegar.
Hoje tem passeata convocada pela UNE. Na faculdade, pintamos as faixas com os dizeres manjados
como “Abaixo a ditadura” e o provocativo “Povo armado derruba a ditadura”. Vamos para a passeata? É um
problema. Sua mãe tem medo, seu pai (na época, é claro, lembre-se de que estamos em 68) apoiou o golpe.
Melhor ir escondido. Se você é mulher pior, porque tudo é proibido: freqüentar boate, beber, chegar em casa tarde
da noite, viajar com o namorado e, óbvio, ir à passeata. Portanto, mais uma que vai escondida alegando que ia
“ficar na biblioteca estudando”.
Lá está você com o pessoal, no centro da cidade. Gritando palavras de ordem contra o regime. Dos
edifícios, papel picado e aplausos. O apoio dos escritórios te enche de autoconfiança e você realmente se sente
fazendo algo de importante na história do Brasil. Na cabeça, o grande hino da época, Pra não dizer que não falei
das flores, de Geraldo Vandré: “Vem, vamos embora / que esperar não é fazer / quem sabe faz a hora / não
espera acontecer”...
De repente, chegam os homens. Marcham juntos, compactos, uma massa sem indivíduos. É a polícia.
Escudo, cassetete de madeira, capacete protegendo o miolo mole. Corre que eles estão vindo! Dá tempo de pixar
o muro com o spray “Abaixo a repressão!” Sai fora. O cheiro de gás lacrimogêneo incomoda. Hora de botar a
pastilha de Cebion debaixo da língua, lenço molhado no nariz. O pau cantou! Contra a violência cega, a
consciência estudantil, contra a brutalidade do Estado, pedradas, xingamentos e alma libertária transbordando.
Não há graça nenhuma. Tem gente que sai com o rosto ensopado de sangue, hematomas pelo corpo,
dentes quebrados, Muitos são presos e empurrados para o carro coração de mãe. Haja claustrofobia. Seguirão
para a delegacia, para serem fichados, humilhados e levar uns cascudos. Só no final do ano é que a polícia
começa a atirar para matar.
Se você não apanhou muito nem foi preso, dá para chegar num barzinho no começo da noite, Depois de
uns chopes, ou cuba-libre (rum com Coca-Cola), todo mundo ficava animado para contar pela décima vez suas
proezas, sempre um pouquinho exageradas, é claro. Você pode estar interessado(a) numa pessoa, num cara ou
numa menina. (Mas não há duplo sentido: o homossexualismo não era tolerado nem pela esquerda. Ser bicha era
quase sinônimo de ser contra-revolucionário. Muitos guerrilheiros machos se remoeriam de culpa pelos anônimos
desejos inconfessáveis. Só no final dos anos 70 as mentalidades começaram a mudar.) Pois bem, se você
estivesse a fim de alguém, logo trataria de falar alto para aparecer. Essas coisas não mudaram demais desde
então, não é mesmo? Um bom caminho era se mostrar intrépido no combate aos policiais e, ao mesmo tempo,
estar por dentro das últimas novidades culturais.
No cinema, contavam muito os filmes intelectualizados. O esquema de Hollywood, bajulando atores e
espetáculos, não estava com nada. Pelo menos nos papos-cabeça. O negócio era filme de diretor-autor. Antonioni
(Blow-up, 1967, e , Zabriesky Point, 1969), Jean-Luc Godard (A Chinesa, 1967), Pasolini, Bergman, Visconti,
Fellini e o nosso Glauber Rocha ( Terra em Transe, 1967, Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, prêmio de
Cannes 1969 como melhor diretor), É claro que também se via muita coisa comercial... Aí as estrelas eram Marlon
Brando, Richard Burton, Marilyn Monroe, Sophia Loren, Jane Fonda, Paul Newman, Marcelo Mastroiani, Alain
Delon e, claro, Jane Fonda, que depois de posar nua virou militante contra a Guerra do Vietnã.
Em literatura, a turma gostava de coisas engajadas como obras de Brecht, Maiakovski, Pablo Neruda,
Gorki, Sartre. Mas também valia Franz Kafka, o judeu tcheco que escrevia em alemão sobre o absurdo da
sociedade burocrática. O americano Henry Miller descrevia o sexo com uma crueza tão violenta que achavam que
era arte. Quem já gostava de misticismo lia Hermann Hesse.
Claro que ninguém era um chato de ir a um bar e ficar conversando sobre coisas intelectuais e políticas o
tempo inteiro. Isso só existe em série da Globo. As pessoas também dançavam, iam a festas, bebiam além da
conta, namoravam, iam às compras, estudavam para as provas.
Toda menina moderninha falava de amor livre. Anticoncepcional era a pílula da moda. Entretanto, mesmo
entre o pessoal de esquerda, havia muito conservadorismo. A maioria das moças casaria virgem mesmo e, no
máximo, permitiriam algumas carícias avançadas. Mulher que transasse com alguns caras era vista como
“galinha”, e certamente ninguém iria querer algo mais “sério” com elas. Como já
ensinava Maquiavel no Renascimento italiano, os preconceitos têm mais raízes do que os princípios.
O fechamento do regime (mais ainda!)
A esquerda voltava a crescer no Brasil. Nas ruas, as passeatas contra o regime militar começavam a
reunir milhares de pessoas em quase todas as capitais. Diante disso, a direita mais selvagem partiu para suas
habituais covardias. Aliás, covardia era a especialidade da organização terrorista de direita CCC (Comando de
Caça aos Comunistas). O nome já diz tudo. Consideravam que a esquerda era feita por mamíferos a serem
abatidos. Os trogloditas, então, atacaram os atores da peça Roda Viva, de Chico Buarque, em São Paulo,
Surraram todo mundo, inclusive a atriz Marília Pêra. Depois, metralharam a casa do arcebispo D. Hélder Câmara,
em Recife (alguns membros da Igreja Católica estavam deixando de bajular o regime). Em São Paulo, os filhinhosde-papai da Universidade Mackenzie (onde nasceu o CCC) agrediam os estudantes da USP, na rua Maria Antônia,
valendo desde pedradas até tiros de revólver.
De acordo com o jornalista Zuenir Ventura, o fanático brigadeiro João Paulo Burnier elaborou um plano
criminoso, o Para-Sar. Uma loucura: os pára-quedistas da aeronáutica, secretamente, pegariam os inimigos do
regime e jogariam do avião no mar alto, a uns 40 quilômetros da costa. Além disso, havia o projeto de explodir o
gasômetro do Rio de Janeiro, começo da avenida Brasil, área industrial e de trânsito engarrafado. Morreriam umas
10 mil pessoas queimadas. Tragédia nacional. Burnier botaria a culpa nos comunistas e, com a população
querendo o linchamento dos responsáveis, prenderia os esquerdistas e os executaria sumariamente. Que coisa
diabólica, não? Só não se concretizou graças à bravura e ao patriotismo de um militar da aeronáutica: o grande
brasileiro capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, o Sérgio Macaco. A operação teve de ser cancelada. Mas o
capitão Sérgio foi afastado da Aeronáutica.
A greve operária de Contagem terminou com acordo salarial entre patrões e empregados: Mas em Osasco
a coisa foi diferente. Ela tinha sido bem melhor preparada, inclusive com participação de estudantes esquerdistas
na organização do movimento. O governo então falou grosso. O sindicato dos metalúrgicos foi invadido e o
presidente, José Ibraim, teve de se esconder da polícia. O exército preparou uma operação de guerra e ocupou as
instalações industriais. A partir daí, quem fizesse gracinha de greve teria de enfrentar os blindados e fuzis
automáticos. Ou seja, as greves acabaram.
Contra os meninos e meninas do movimento estudantil, foram lançados homens armados até os dentes.
Agora passeata começava a ser dissolvida a bala. No Calabouço, um restaurante carioca freqüentado por
estudantes, a polícia militar assassinou um rapaz, Édson Luís. Nem a missa de sétimo dia, na catedral da
Candelária, foi
respeitada pela polícia, que baixou o sarrafo nas pessoas que saíam do templo. Em resposta, a maior passeata já
vista na avenida Rio Branco: a célebre Passeata dos Cem Mil (26/6/1968). Era a multidão, bonita, vigorosa,
olhando para a vida, exigindo a mudança.
Os militares estavam apavorados. Até onde aquilo tudo iria levar? Concluíram que precisavam endurecer
mais ainda o regime. E endureceram. As passeatas de estudantes passaram a ser reprimidas pelas próprias
Fonas Armadas e muitos estudantes foram baleados. Agora, em vez do cassetete, vinha o fuzil automático. O
congresso secreto da UNE, em Ibiúna (SP) foi dissolvido, com 1240 estudantes presos.
O pior estava por vir. Faltava só o pretexto.
No Congresso Nacional, o jovem deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, fez um discurso em que
recomendava que as mulheres não namorassem os militares envolvidos com as violências do regime. O que seria
do país, se os oficiais não namorassem? Ficariam com o fuzil na mão? Os generais exigiram sua punição, mas o
Congresso não permitiu.
Foi, então, que saiu o Ato Institucional nº 5, o AI-5, numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968. Claro
que o caso do deputado era só desculpa. Tratava-se, na verdade, de aumentar a repressão e silenciar os
opositores.
O AI-5 foi o principal instrumento de arbítrio da ditadura militar. Com ele, o general-presidente poderia, sem dar
satisfações a ninguém, fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos. de parlamentares (isto é, excluir o político
do cargo que ocupava, fosse senador, governador, deputado etc.), demitir juízes, suspender garantias do Poder
Judiciário, legislar por decretos, decretar estado de sítio, enfim, ter poderes tão vastos como os dos tiranos.
Tem gente que chega a falar do “golpe dentro do golpe”. Se a ditadura já era ruim, agora ela piorava.E
muito!
A oposição parte para a luta armada
O que significa viver sob uma ditadura militar? É exagerado achar que a toda hora tem tanque na rua,
soldados desfilando dentro das faculdades. Aparentemente não muda muita coisa, porque você vai às compras,
ao dentista, à praia e ao cinema, namora e casa, vê televisão. A não ser o fato de que seu vizinho é oficial do
Exército e você sabe que por isso ele manda aqui no prédio (e isso pode ser até bom para a vizinhança), o resto
parece bem normal. Mas, se você tiver um pingo de consciência, desconfia que as coisas não vão bem. Existe um
cheirinho de esquisitice: as pessoas falam baixo, há uma nuvem de mistério cobrindo o país, o estômago fica
pesado demais.
Depois de 1964 ainda dava para fazer umas passeatazinhas e desafiar o regime. Depois do AI-5
(dezembro de 1968) o regime tinha fechado de vez. Passeata era dissolvida a tiros de fuzil. Em cada redação de
jornal havia um imbecil da polícia federal para fazer a censura, Não poderia sair nenhuma notícia que
desagradasse ao governo. Uma simples reportagem esportiva sobre o time do Internacional de Porto Alegre, com
sua camisa vermelha, poderia ser encarada como “propaganda da Internacional Comunista”. Além da censura, o
jornal não podia dizer que tinha sofrido a censura (isso, claro, também era censurado). O jeito foi botar receitas de
bolo nos vazios deixados pelas partes retiradas pela polícia. As pessoas estavam lendo uma página sobre política
nacional e, de repente, vinha aquela absurda receita para fazer uma torta de abacaxi. Os espertos sacavam logo
que era um protesto. Os mais ingênuos (por conivência ou conveniência, chegavam a mandar cartas para as
redações dos jornais, pois as receitas, por vezes, eram irracionais: “cinco quilos de açúcar, 100 g de farinha de
trigo, dois quilos de sal, vinte tabletes de fermento, uma colher de chá de suco de laranja...” Não há receita que dê
certo assim, hehehe. Claro que existem ainda hoje ingênuos ainda mais imbecis, que declaram coisas como:
“naquele tempo o governo era muito melhor do que hoje. Bastava abrir os jornais, eles só tinham elogios para o
governo. Aliás, também tinham receitas de bolo muito boas.”
Ninguém podia falar mal do governo. Reclamação na fila do ônibus era uma linha até à cadeia. Estudantes
e professores que conversassem sobre política poderiam ser expulsos da escola ou da faculdade, devido ao
decreto-lei nº 477 (1969), Imagine o clima dentro da sala de aula. Se o professor contasse aos alunos o que você
está lendo neste livro, corria o sério risco de não poder voltar mais à sala de aula. Ou mesmo para a sua própria
casa...
_ O que você acha da situação atual?
_ Eu não acho nada! Tinha um amigo que achava muito e hoje ninguém acha ele! To fora!
"
Qualquer aluno novo que tentasse se enturmar era logo suspeito de pertencer ao SNI. Veja que coisa, a
ditadura tolheu até as novas amizades!
O político que fizesse oposição aguda seria logo cassado pelo AI-5. Foi o caso, por exemplo, do deputado
federal Francisco Pinto (MDB), punido em 1974 porque fez no Congresso um discurso chamando de “ditador” o
ditador chileno Pinochet em visita ao Brasil, o deputado Lysâneas Maciel (MDB) solicitou a criação de uma CPI
(Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar denúncias de corrupção no regime. Não teve CPI nenhuma e ele
ainda foi cassado. É isso aí: numa ditadura, a sociedade não pode fiscalizar o governo. Os cidadãos estão
enjaulados, mas a corrupção está livre.
Com tantas dificuldades, como continuar fazendo oposição ao regime? Para muitos jovens, só havia um
caminho a seguir: a luta armada.
Falar em guerrilha nos anos 60 arrepiava muita gente. Ela parecia ser a grande arma de libertação dos
povos do Terceiro Mundo. Exemplos não faltavam. Em Cuba, Fidel Castro e Che Guevara abriram o caminho: No
Vietnã, os guerrilheiros de Ho Chi (Minh derrotavam a maior máquina de guerra do planeta, a do imperialismo
norte-americano. Na Argélia, os guerrilheiros dobraram as tropas francesas e conquistaram a independência do
país. Na própria China, a revolução socialista foi vitoriosa depois de anos de guerrilha camponesa comandada por
Mao Tsetung. No Brasil não poderia ser diferente: muitos estudantes, velhos militantes da esquerda e intelectuais
começaram a organizar grupos guerrilheiros. Para eles, depois do AI-5 não havia mais espaço para a legalidade.
Só a luta armada libertaria o Brasil.
Ao contrário do que você possa pensar, o PCB foi contra a luta armada. Os comunistas acreditavam que a
luta no momento não era nem socialismo nem reformas básicas, mas pelo fim do regime autoritário. Sua
estratégia era a de se unir a todos os grupos democráticos contra o regime. Atuaria, clandestino, no MDB.
Muita gente da esquerda considerou esse programa covarde, reformista (um xingamento horroroso, pois
isso equivaleria a não ser um revolucionário. Mas naquele momento os comunistas eram qualquer coisa, menos
revolucionários...). A juventude queria a mudança logo, a todo preço. E foram esses jovens, garotões e meninas,
adolescentes ainda, estudantes e sonhadoras, que embarcaram na aventura da luta armada.
Um dos grandes gurus era o francês Regis Debray, que tinha sido companheiro de guerrilha de Che
Guevara. Foi ele que lançou a teoria foquista: meia dúzia de combatentes criariam um foco guerrilheiro numa área
rural. Primeira etapa, o treinamento militar. Depois, contato com a população. Ganham a confiança através do
trabalho, da honestidade, de solidariedade. Imagine o efeito disso: o camponês jamais viu um médico e, de
repente, aquelas pessoas o tratam com cuidado, curam seus filhos. Nesse processo, os guerrilheiros vão
transmitindo suas idéias, mostrando que o latifúndio deveria ser confiscado, que os camponeses precisam se unir
e se armar. E quando chegam os jagunços do fazendeiro, os guerrilheiros estão prontos para responder com fogo
de armas de guerra, Pronto, está deflagrada a luta. Agora, junto com os camponeses que aderem ao movimento,
eles se lançam para o mato. O Exército chega logo depois, quase sempre truculento: tortura moradores, incendeia
barracos, molesta as meninas. O povo vê com clareza quem está do lado dele. Os guerrilheiros, por sua vez,
nunca enfrentam o Exército de frente. As táticas incluem emboscadas, ações rápidas e fulminantes. Depois, a
fuga veloz: sua mobilidade e ataques de surpresa são armas letais. Conhecem a região, contam com o apoio
logístico dos moradores. Quase invencíveis. Mas este é um foco. A teoria foquista imaginava que surgiria outro
foco ali, e mais outro adiante, e outro, e outro. Até que um dia esses focos começariam a se unir para compor um
grande exército popular. Tal como ensinou Mao Tsetung, o campo cercaria a cidade. E a revolução seria vitoriosa.
Simples, não? É, simples demais para dar certo: havia muitos sonhos e pouco pé no chão. Como fazer
guerrilha camponesa num país em que a maioria já vivia na cidade? Bem que o sinal de alerta já havia sido dado:
em 8 de outubro de 1967, Che Guevara foi assassinado pela CIA, quando organizava um foco guerrilheiro na
Bolívia. Não era um aviso de mau agouro?
Desde 1968 já existiam ações guerrilheiras. Mas o grosso mesmo foi entre 1969 e 1973. Havia um cacho
de grupos de luta armada, diferentes nos objetivos e nas estratégias, embora no final todos visassem ao
socialismo (já se disse que as esquerdas só se encontram na cadeia...). Uns achavam que primeiro era preciso
derrotar a ditadura, outros achavam que já era possível lutar imediatamente pelo socialismo; uns achavam que
primeiro era preciso organizar os trabalhadores e depois se lançar na guerrilha, outros achavam que através da
luta guerrilheira os trabalhadores iriam se organizando; uns achavam que a guerrilha urbana era a mais
importante, outros, que era a rural.
Não vamos estudar as minúcias das organizações. Basta dar uma idéia geral de como funcionavam as
mais importantes: VPR (Vanguarda Popular Revolucionária), o MR-8 (Movimento Revolucionário Oito de Outubro),
a ALN (Ação Libertadora Nacional), o PCBR (PCB Revolucionário), o PC do B, a VAR-Palmares.
Quem eram esses guerrilheiros? Não eram muitos, apenas algumas centenas. Os simpatizantes, que
eventualmente podiam esconder alguém em casa ou contribuir com dinheiro, não iam além de uns mil e poucos.
Apesar de sonharem com a revolução proletária, havia poucos operários ou camponeses. Os líderes geralmente
eram antigos comunistas, rompidos com o Partidão porque o PCB estava contra a luta armada. Ainda tinha um
grupo importante de militares desertores do Exército. Muitos guerrilheiros eram como talvez você seja, amigo
leitor, com 17 ou 18 anos de idade, estudantes secundaristas ou acabando de entrar na faculdade.
A maioria dos guerrilheiros foi presa antes de começar a luta armada no campo. Na verdade, a guerrilha
ficou sendo urbana mesmo, sem repercussão maior. Houve algumas tentativas de panfletar na porta de fábricas, e
um grupo chegou a levar um caminhão cheio de comida para distribuir na favela, anunciando aquela como “a
primeira das muitas expropriações revolucionárias que o povo fará daqui em diante”. Pura ilusão. A repressão do
governo agia com muita eficácia e rapidamente os grupos foram desmantelados. No final, tinham de assaltar
bancos para levantar fundos para a luta e seqüestrar embaixadores em troca da libertação de presos políticos.
Desde o início a guerrilha já tinha muitos erros. Para começar, os guerrilheiros consideravam-se marxistas,
mas quase nada tinham lido a respeito. Ninguém tinha feito uma análise profunda da sociedade brasileira para ter
certeza de que aquela era a melhor estratégia a ser seguida. Por exemplo, sonhavam com uma guerrilha
camponesa num país enorme que já era urbano e industrial. Queriam buscar seus próprios caminhos políticos,
mas no fundo imitavam modelos de outros países, como Cuba e China. Falavam em nome dos trabalhadores, mas
jamais tiveram um contato maior com a população. O povo, dominado pela propaganda oficial e pela imprensa
censurada, os ignorava ou os tratava como bandidos, seqüestradores, assaltantes de banco, “terroristas”. Viviam
tão fora da realidade, que só faltaram dizer que as vitórias do governo, pulverizando a guerrilha, eram “a mostra do
desespero da burguesia em sua crise final”. Coitados, eram rapazes e moças que nunca tinham visto um revólver
na vida enfrentando um Exército profissional bem equipado e com assessoria dos EUA. Nem dava para começar.
A única tentativa que teve alguma consistência foi a Guerrilha do Araguaia. Ela se desenvolveu mais ou
menos entre 1972 e 1974, organizada pelo PC do B. Lembremos que, na época, ao contrário do PCB (que era de
linha soviética e contra a luta armada) o PC do B seguia o socialismo chinês (o maoísmo) e apoiava a guerrilha.
Pois bem, no começo dos anos 70, grandes empresas do Sudeste e multinacionais investiram em pecuária
extensiva na região do Tocantins-Araguaia. Quando chegaram lá, já havia pequenas roças na mão de
camponeses posseiros (não tinham documentos legais da propriedade da terra, apesar de trabalharem nelas
havia muitos anos). Nem quiseram saber, passaram a fazer grilagem das terras (tomar ilegalmente). Quando o
camponês não queria abandonar a terra, os capangas da empresa iam lá, ateavam fogo no barraco, destruíam a
plantação, espancavam os moradores. Como você pode perceber, as lutas de classes entre os grileiros e os
posseiros eram muito fortes. O PC do B quis aproveitar esse potencial de revolta e chegou na região para montar
uma base de treinamento. Foram descobertos pelo Exército, que deslocou para região milhares de soldados.
Contra uns 60 guerrilheiros. Numa região isolada do país, imprensa censurada, as pessoas só sabiam alguma
coisa através de boatos. Mas na região do Araguaia até hoje as pessoas humildes se recordam do que aconteceu.
Muitos militares abusaram do poder e espancaram brutalmente a população para que revelasse os esconderijos
dos guerrilheiros. Os prisioneiros eram torturados de forma bárbara e muitos encontraram a morte depois que o
corpo virou uma massa de pedaços de carne e sangue. Os guerrilheiros mortos foram enterrados em cemitérios
clandestinos e até hoje as famílias procuram seus corpos. Em 1974, a guerrilha do Araguaia estava destruída.
O que dizer sobre essa loucura toda? Foram rapazes e moças, muitos ainda adolescentes, que tiveram a
coragem de abandonar o conforto do lar, a segurança de uma vida encaminhada, a tranqüilidade da vida de jovem
de classe média, para combater um regime opressor com armas na mão. Pessoas que dão a vida pelo ideal de
libertação de seu povo não podem ser consideradas criminosas. Mesmo que a gente não concorde com os
caminhos trilhados. Eles mataram? Certamente. Mas nunca torturaram. Nem enterraram suas vítimas em
cemitérios clandestinos. E se o tivessem feito, nada disso justificaria a tortura e o assassinato executados pelo
governo. Além disso, seria mesmo inadmissível pegar em armas contra um regime antidemocrático que
esmagava o povo brasileiro? Que moral uma ditadura tem para definir como deve ser combatida?
Repressão e Tortura
“Ou então cada paisano e cada capataz Com sua burrice fará jorrar sangue demais Nos pantanais, nas
cidades, caatingas
E nos gerais”
CAETANO VELOSO
"
Como é que a ditadura conseguiu dizimar a guerrilha? A repressão foi selvagem.
Imagine que você fosse um guerrilheiro naquela época. Documento falso, revólver escondido na cintura,
olhar assustado para qualquer pessoa da rua. Distante da família, dos amigos, de qualquer conhecido.
Clandestino. Codinome, ou seja, nome inventado, nem os companheiros sabiam sua identidade. Se fossem
presos, não poderiam te revelar. Vocês se escondem num apartamento discreto no subúrbio. E mudam de
residência quase todo o mês. Esse esconderijo é chamado de “aparelho”. Um dia, você tem um ponto, ou seja, um
encontro marcado com outro guerrilheiro. Ele não aparece. Provavelmente, caiu (foi preso). Em algumas horas,
debaixo de paulada, pode ser que ele abra. Os meganhas logo vão chegar. É preciso desativar o aparelho rápido.
De repente, chega a polícia. Tiroteio. Mortes. Se você escapar com vida, vai direto para o porão. Agora sim, você
vai sentir na pele a face mais negra do regime. A tortura.
Não houve guerrilheiro preso que não fosse barbaramente torturado. Ficar pendurado no pau-de-arara
(um cavalete em que o sujeito fica preso pela barra que passa na dobra do joelho, com pés e mãos amarrados
juntos) é um dos piores suplícios. Além disso, pontapés, queimaduras de cigarros, choques elétricos, alicates
arrancando os mamilos, banhos de ácido, testículos amassados com alicate, arame em brasa introduzido pela
uretra, dente arrancado a pontapés, olhos vazados com socos. Mulheres estupradas na frente dos filhos, homens
castrados. A lista de atrocidades é infindável.
Os torturadores são animais sádicos. Mas além da maldade pura e simples, havia a necessidade
estratégica: a tortura extraía confissões em pouco tempo, dando oportunidade de prender outras pessoas, que
também seriam torturadas, revelando mais coisas e assim por diante. Infelizmente, a tortura revelou-se bem
eficaz.
Houve muita gente, entretanto, que nada falou. Veja bem, amigo leitor, bastava contar tudo que a tortura
acabaria. Essa era a diabólica proposta. Imagine-se no lugar do preso, apanhando feito um cão, nu, sangrando,
com a cabeça enfiada num balde cheio de fezes e vômito dos outros. Algumas frases e você seria mandado para
um hospital. No entanto, muitos não falaram. Bravamente, recusaram-se a colaborar com a repressão.
Morto sob tortura tinha o caixão lacrado para ninguém ver o cadáver arrebentado. O laudo oficial do IML,
emitido por médicos venais comprometidos com a ditadura dizia friamente que a morte tinha ocorrido “em tiroteio
com a polícia”.
Uma geração que pagou um alto preço por seus sonhos: pagou com o próprio sangue. Por isso, amigo
leitor, se hoje eu posso escrever essas linhas, se hoje você pode dizer o que pensa, saiba que entre os
responsáveis por nossa liberdade estão aqueles que deram sua vida para que um dia o país não estivesse mais
sob o jugo das botas da tirania.
Mas, afinal, quem eram os torturadores? Onde as pessoas eram torturadas? Ao contrário do que se possa
pensar, a tortura não era feita em algum lugar escondido, uma casa de subúrbio ou uma fazenda afastada de tudo.
Não, infelizmente as pessoas eram torturadas em lugares públicos, na frente de muitas testemunhas. Como Mário
Alves, dirigente do PCBR, torturado até a morte nas dependências do Primeiro Batalhão de Polícia do Exército, na
rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Reparou no local? Um quartel do Exército! Como também
aconteceu em delegacias, em bases da Marinha. Através da Operação Bandeirantes (OBAN), do DOI-CODI, dos
Serviços de Informação das Forças Armadas (CENIMAR, CISA, CIEX), do DOPS e do SNI, o governo exterminou
a guerrilha com brutalidade.
Claro que a maioria dos militares não teve nenhum envolvimento com a tortura. Muitos sequer sabiam que
ela estava acontecendo. Mas é inegável que os torturadores ocupavam importantes posições no aparelho
repressivo do Estado: eram policiais civis, PMs, agentes da polícia federal, delegados, oficiais e sargentos da
Marinha, do Exército, da Aeronáutica, médicos que avaliavam a saúde da vítima e autorizavam a continuação da
tortura.
Muito triste é saber que alguns desses monstros permanecem na polícia, nas Forças Armadas e que
foram anistiados pelo general Figueiredo em 1979. Neste país, jamais um torturador sentou no banco dos réus.
A ditadura não se manteve só com violência física. Ela soube se valer de uma propaganda ideológica
massacrante. Numa época em que todas as críticas ao governo eram censuradas, os jornais, a tevê, os rádios e
revistas transmitiam a idéia de que o Brasil tinha encontrado um caminho maravilhoso de desenvolvimento e
progresso. Reportagens sobre grandes obras do governo e o crescimento econômico do país convenciam a
população de que vivíamos numa época incrível. Nas ruas, as pessoas cantavam: “Ninguém segura esse país.”
Os guerrilheiros eram apresentados como “terroristas”, “inimigos da pátria”, “agentes subversivos”.
Qualquer crítica era vista como “coisa de comunista”, de “baderneiro”. Houve até quem chegasse ao cúmulo de
acusar os comunistas de responsáveis pela difusão das drogas e da pornografia!
O futebol, como não poderia deixar de ser, foi utilizado como arma de propaganda ideológica. Na época, a
esquerda se perguntava: “O futebol aliena os trabalhadores, é o ópio do povo?” E houve até quem torcesse para
que o Brasil perdesse a Copa: como se o trabalhador brasileiro precisasse de uma derrota no jogo de futebol para
realmente se sentir oprimido! Ou seja, quem estava supervalorizando o futebol: o povão ou a esquerda? De
qualquer modo, meu amigo, aquela seleção brasileira de 1970 foi simplesmente o maior time de futebol que já
existiu. Pelé, Tostão, Jairzinho, Gérson, Rivelino, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, seus craques são
inesquecíveis. O tricampeonato conquistado na Copa do México encheu o país de euforia. Nas casas (pela
primeira vez a Copa foi transmitida ao vivo pela televisão) e ruas o povo explodia de alegria e cantava: “Todos
juntos, vamos / Pra frente Brasil..” Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos
ao lado dos craques. Queriam que o país tivesse a impressão de que só tínhamos ganho a Copa graças à
ditadura militar (embora as vitórias de 1958 e 1962 tivessem sido no tempo da democracia, com JK e Jango). O
prefeito de São Paulo, Paulo (que não era São) Maluf, resolveu dar para cada jogador um automóvel zero
quilômetro de presente. O presidente Médici, vestido com a camisa rubronegra do Flamengo, era aplaudido de pé
por parte da torcida no Maracanã. Triste país, o general chutava a bola, os torturadores chutavam os presos.
Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve
um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em
1972 e 1974.
Nas escolas vivia-se um clima de ufanismo (exaltação da pátria). Todo mundo tinha de acreditar que o
Brasil estava se tornando um país maravilhoso. Nos vidros dos carros, os adesivos diziam: “Brasil - Ame-o ou
Deixe-o!” É como se os perseguidos políticos foragidos tivessem se exilado por antipatriotismo. Um pontapé na
verdade.
Claro que essa euforia toda no começo dos anos 70 não vinha só das vitórias esportivas e da máquina de
propaganda do governo. Em realidade, o país vivia a excitação de um crescimento econômico espetacular. Era o
tempo do “milagre econômico”.
"
Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974)
"A plenitude do regime democrático é uma aspiração nacional. . . "
PRESIDENTE MÉDICI
Costa e Silva não teve muito tempo para se alegrar com os efeitos do AI-5. um derrame o matou, em
agosto de 1969. O povo não teve tempo de se alegrar; uma Junta Militar, comandada pelo general Lyra Tavares,
assumiu o governo até se nomear o novo general-presidente. 0 vice de Costa e Silva, o civil Pedro Aleixo (exUDN), não tinha apoiado totalmente o AI5 e por isso fora jogado para escanteio. No mesmo ano, ocorreu a
Emenda Constitucional nº 1, que alguns juristas consideram quase como uma nova Constituição. Ela legalizou o
arbítrio e os poderes totalitários da ditadura. Todas aquelas medidas arbitrárias tipo AI-5 e 477 foram incorporadas
à Constituição. Além disso, ela estabeleceu que o presidente podia baixar medidas (decretos-leis) que valeriam
imediatamente. 0 Congresso disporia de 60 dias para examinar o decreto. O Congresso tinha 60 dias para votar a
aprovação. Se depois desse prazo não tivesse havido votação (o Congresso poderia, por exemplo, estar fechado
pelo AI-5, ou com número insuficiente de membros comparecendo às sessões), ele seria automaticamente
aprovado por decurso de prazo.
Dias depois, era indicado o novo chefe supremo do país. O novo presidente era o general Emílio Garrastazu
Médici. Seu governo teve dois pontos de destaque: o extermínio da guerrilha e o crescimento econômico
espetacular (o “milagre”).
Nenhuma época do regime militar foi tão repressora e brutal, Nunca se torturou e assassinou tanto. Nos
porões do regime, as pessoas tinham suas vidas postas na marca do pênalti. E assim os órgãos de re-pressão
marcaram gols, liquidando guerrilheiros como Marighella (4/11/69), Mário Alves (16/11/70) e Lamarca (17/09/71).
Na economia, o ministro Delfim Netto comandou o milagre econômico. A produção crescia e se
modernizava num ritmo espetacular. A inflação, dentro dos padrões brasileiros, até que era moderada, lá na casa
dos vinte e tantos por cento. Construía-se com euforia. Obras, como a ponte Rio-Niterói, a rodovia
Transamazônica, a refinaria de Paulínia e a instalação da tevê em cores (1972), pareciam mostrar que a
prosperidade seria eterna. A classe média comprava ações na Bolsa de Valores e imaginava se tornar grande
capitalista.
Para acelerar o crescimento, ampliaram-se as empresas estatais ou criaram-se novas, principalmente na
produção de aço, petróleo, eletricidade, estradas, mineração e telecomunicações. Os nomes delas você já ouviu
falar: Petrobrás, Eletrobrás, Telebrás, Correios, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Usiminas e
tantos outros.
Crescimento e modernização que não beneficiavam as classes trabalhadoras. Pelo contrário, quanto mais
o país crescia, tanto mais piorava a vida do povo. Em 1969, por exemplo, o salário mínimo só valia 42% do que
representava em 1959, Em 1974, isso desceu para 36%.
Os ricos foram ficando cada vez mais ricos e os pobres, cada vez mais pobres, A ditadura foi uma espécie
de Robin Hood às avessas.
Essa distribuição de renda ao contrário era facilitada pelo fato de que não havia nenhuma greve, nem
sindicato independente, nem a oposição no Congresso tinha margem de manobra. Era uma ditadura que fazia
uma coisa incrível: o país crescia como poucos no mundo e quanto mais riquezas eram produzidas, mais difícil
ficava a vida dos trabalhadores.
E a Rede Globo, principal aliada da Ditadura, sempre lembrando ao povo miserável que "está tudo bem"...
Até nos países mais pobres da África, a mortalidade infantil diminuía. Nas grandes cidades brasileiras ela
crescia, Quanto mais a renda per capita do Brasil aumentava, mais as crianças pobres morriam porque comiam
pouco, não eram vacinadas, não tinham médico, De repente, houve uma epidemia de meningite, Doença que
pode matar, É preciso que os pais estejam alerta. O que fez a ditadura? Proibiu que os jornais divulgassem
qualquer notícia a respeito. O povo tinha de ser enganado pela imagem de que no Brasil a saúde pública estava
sob controle, o que veio em seguida era previsível: os pais, sem saber do surto da doença, não davam muita
importância para aquela febrezinha do filho, Achavam que era só uma gripe, Não levavam para o posto de saúde,
Até que a criança morria, A meningite mataria milhares de meninos e meninas no Brasil, numa das mais terríveis
epidemias do século, Só esse caso já mostra o quanto a ditadura era absurda, não é mesmo?
O ministro Delfim Netto dizia que era para o povo ter paciência: “temos de esperar o bolo crescer para
depois distribuir os pedaços”. E até hoje o povão está esperando sua fatia. Pois é, na cara-de-pau, o generalpresidente Médici dizia: “A economia vai bem, só o povo é que vai mal.” Viu? Uma coisinha à toa é que ia mal, um
trocinho assim, sem importância, uma poeirinha desprezível chamada povo...
Grande parte da classe média até que gostava daquilo tudo. Afinal, a ditadura, além de modernizar a
indústria de base, estimulou a de bens de consumo duráveis. Maravilha das maravilhas: a família de classe média
se realizava existencialmente comprando tevê em cores (desde 1972), aparelhagens de som, automóveis,
eletrodomésticos. E até a classe operária foi arrastada nesse processo de crença na ascensão social baseada na
aquisição do radinho de pilha ou do tênis maneiro,
A megalomania planejava as obras estatais, Assim como os cabelos eram compridos e as barras das
cabas eram “boca-de-sino”, as obras eram gigantescas, o governo fazia estádios de futebol em tudo quanto era
canto, mas as escolas caíam aos pedaços, A rodovia Transamazônica, importante para iniciar a colonização da
Amazônia, não incluiu nenhum projeto de proteção ao meio-ambiente, aos índios, aos camponeses e aos
garimpeiros. A ponte Rio-Niterói (1974) foi realmente funda mental para ligar a economia do Nordeste do país ao
Sudeste industrial (RJ e SP), mas ela custou uma fortuna. Certamente teria sido mais barata se as contas
tivessem sido controladas democraticamente. Muita empresa construtora se deu bem fazendo essa obra
encomendada pelo governo, Aliás, em quase todas essas obras faraônicas (ou seja, enormes, caras e quase
inúteis, tal como as antigas pirâmides dos faraós do Egito) houve esquemas para homens do governo e firmas de
engenharia civil ganharem uma boa grana por fora. Velha história: sem democracia a roubalheira rola solta porque
não há imprensa livre, Congresso independente.
Um tratamento especial foi dado às empresas multinacionais (estrangeiras). Elas tiveram mais favores do
governo do que as empresas nacionais! O que não é de se espantar, pois grande parte dos homens do poder
eram profundamente ligados aos grupos estrangeiros e não hesitaram em usar sua influência. Analistas como
Ricardo Bueno e Moniz Bandeira chegaram a considerar os ministros Delfim Netto, Mário Henrique Simonsen (que
o presidente Collor queria para seu ministro), Golbery do Couto e Silva, Roberto Campos e outros como “notórios
entreguistas”, ou seja, responsáveis conscientes pelo favorecimento escancarado do governo aos monopólios
estrangeiros,
É claro que hoje em dia não se pode ter mais aquela visão de ódio total às multinacionais. Afinal, com a
internacionalização da economia, ou seja, a ligação econômica direta entre quase todos os países e continentes,
elas se tornaram peças fundamentais da economia mundial. Inclusive, porque parecem realmente ser úteis
parceiras em alguns setores, já que nenhum país pode ter sozinho tecnologia e capital para produzir tudo.
Todavia, é sensato esclarecer alguns pontos: por que elas são as responsáveis por grande parte da dívida externa
brasileira? Será benéfico o governo pedir dinheiro emprestado aos banqueiros internacionais para fazer obras
gigantescas a favor das multinacionais? Ou simplesmente para financiá-las? Será correto que elas mandem para
fora lucros de bilhões de dólares, em vez de aqui reinvestir? Será interessante o seu poder de levar à falência as
empresas nacionais, através de uma concorrência desleal? Será que elas realmente nos transferem tecnologia ou
só mandam pacotes prontos feitos nos seus laboratórios? Será que elas não mandam dinheiro escondido "por
debaixo do pano"? Será que não interferem na nossa vida interna, combatendo governos que não lhes
interessam, mesmo se estes forem a favor do povo? Será saudável que produzam aqui remédios e produtos
químicos proibidos em seus países de origem? Por que será que um operário da Volkswagen ou da Ford no Brasil
faz o mesmo serviço, nos mesmos ritmos e níveis de tecnologia, que operários dessas empresas na Alemanha ou
nos EUA e, no entanto, ganha tão menos? Tantas perguntas...
Bem, aí estava o “milagre econômico”: modernização, crescimento acelerado, inflação moderada,
facilidades para o investimento estrangeiro, e também ricos mais ricos e pobres mais pobres e aumento da dívida
externa. Você reparou que era um esquema parecido com o que já havia no tempo de Juscelino Kubitschek? O
desenvolvimento espetacular das telecomunicações e da indústria de bens de consumo duráveis (automóveis,
eletrodomésticos, prédios de luxo e mansões financiados pelo BNH) eram voltados principalmente para a classe
média e superior. Milhões de brasileiros estavam meia por fora desse mercado. Claro, portanto, que essa festa
não iria durar muito. 0 modelo se esgotava e a crise chegava mais rápido do que o Émerson Fittipaldi.
Governo do General Ernesto Geisel ( 1974 – 1979 )
O novo general-presidente, Ernesto Geisel, assumiu o governo num momento difícil da economia do
Brasil e do mundo, Para alimentar o crescimento, ele pediu emprestado aos banqueiros estrangeiros e tratou de
emitir papel-moeda. A inflação começou a aumentar e a engolir salários. Era o fim do “milagre econômico”. Agora,
a insatisfação crescia. Isso ficava claro com o aumento de votos do MDB. Geisel percebeu que a ditadura estava
chegando ao fim de sua vida útil. O jeito era acabar com o regime mas manter as coisas sob controle. Com ele,
começaria a “distensão lenta e gradual”.
O ano de 1973 assinalou o inicio de um choque na economia capitalista mundial. Parecida com a de 1929,
mas com efeitos bem menores para os países capitalistas desenvolvidos, que empurraram a crise para cima do
Terceiro Mundo. De certa forma, os apertos econômicos dos países subdesenvolvidos, nos anos 90, foram
continuação do processo de 1973.
Tentaram botar a culpa nos árabes, porque eles aumentaram os preços do petróleo: Conversa fiada. O
aumento foi apenas a recuperação de preços, que vinham caindo muito, desde os anos 50. Para você ter uma
idéia, antes do aumento imposto pela OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1973, o
preço do barril de petróleo no mercado mundial era inferior ao do barril de água mineral! Claro que o aumento dos
preços pegou todo mundo de surpresa, aumentou os custos, cortou os lucros, provocando inflação e desemprego.
A crise do petróleo reforçou a crise geral do capitalismo em 1973. Mas com certeza a crise não foi só energética.
Afinal, países exportadores de petróleo também entraram em crise!
O que aconteceu foi uma crise clássica de superprodução de mercadorias, tal como ocorrera em 1929.
Depois da Segunda Guerra, os EUA representavam metade da produção econômica mundial. Mas nos anos
seguintes a Europa Ocidental recuperou plenamente sua economia. Surgiu também um grande competidor, o
Japão. De repente, o mercado mundial ficou apertado, não havia como continuar investindo capital nos mesmos
ritmos. As mercadorias começaram a ficar encalhadas e logo vieram as falências, a inflação, a recessão.
Aqui no Brasil, o governo botava a culpa nos outros. Dizia que a crise era mundial. Certo. Mas por que
aqui ela era tão devastadora? Porque a política econômica da ditadura nos tornava indefesos. O petróleo não
representava nem 25% das nossas importações em 1975. Além disso, não só aumentou nossa produção interna,
como seus preços internacionais cairiam nos anos 80. No entanto, a crise foi aumentando, ano após ano. Uma
coisa tão braba que o nosso jovem leitor com certeza viveu a maior parte de sua vida sob o signo da crise
econômica brasileira.
O que acontece é que o modelo econômico da ditadura era baseado no pequeno mercado interno,
representado pelos ricos e pela classe média. O país estava se transformando na Belíndia, uma mistura da
Bélgica com a Índia: uma quantidade razoável de pessoas (classe média e superior) com padrão de consumo de
país desenvolvido, vivendo numa área com grandes centros industriais e financeiros, ou seja, a parte do Brasil
parecida com a Bélgica, e a gigantesca maioria (classe média baixa e classes inferiores) com padrão de vida
muito baixo, milhões vivendo tão miseravelmente como na Índia. Tinha-se alcançado um estágio em que não dava
para aumentar a produção, por falta de consumidores aqui dentro. A Bélgica da Belíndia era pequena e a Índia da
Belíndia era cada vez maior. Como produzir mais automóveis se a maioria dos brasileiros não tinha dinheiro para
comprá-los?
Ficava claro que só havia um jeito de ampliar o mercado consumidor: distribuindo renda. Para isso, seria
preciso tocar em privilégios, mexer em interesses poderosos. Então, o regime militar não faria nada disso.
O governo preferiu outro caminho. Para a economia não entrar em recessão, isto é, para a economia não
regredir, o Estado começou a tomar empréstimos externos para financiar a produção. Supunham que a economia
cresceria, que as exportaÇões se tornariam espetaculares e que tudo isso daria condições de pagar a dívida
externa. Só que os banqueiros internacionais não são trouxas. Emprestaram dinheiro porque sabiam que o Brasil
teria de devolver muito mais em forma de juros. Se fizer mos as contas direitinho no papel, vamos concluir que nos
anos 70 e 80, o Brasil pagou, só de juros, muito mais do que pediu emprestado! Ou seja, já pagamos tudo,
continuamos pagando e ficamos devendo mais ainda! A dívida externa funciona como uma bomba de sucção que
chupa os recursos da economia do Brasil. Aliás, o problema da dívida externa é comum em todo o Terceiro
Mundo. Segundo os dados insuspeitos do Banco Mundial, na década de 80 foram drenados bilhões de dólares do
Terceiro Mundo para o Primeiro. Ou seja, a parte pobre, esfarrapada e faminta do planeta é que mandou dinheiro
para a parte milionária! Nos anos 90, é óbvio, esse esquema continua.
O mais triste é quando a gente constata que grande parte da dívida externa brasileira foi contraída
financiando a vinda de multinacionais, construindo obras gigantescas só para favorecer empresas estrangeiras
(estradas, hidrelétricas), sem falar construções que o governo nunca terminou, deixando as máquinas e o material
serem destruídos pelo tempo.
Pois é, apertado, o governo precisava de mais dinheiro ainda. Para ele, é fácil. É só fabricar, emitir papelmoeda. Aí, vem a inflação. Para evitar a inundação de dinheiro, o governo criou mercados abertos (opens
markets), vendendo títulos, ou seja, papéis expedidos com a garantia do governo, que mais tarde poderiam ser
resgatados (o proprietário devolveria para o governo em troca de dinheiro) por um valor superior. A idéia era
"enxugar" o mercado, mas a medida deu a maior força para tudo quanto é tipo de especulação financeira, quer
dizer, os empresários manobravam para negociar esses títulos com altos lucros. Eis aí um dos grandes problemas
da economia brasileira a partir dali: a especulação financeira. Ela é um ganho artificial, já que não envolve nenhum
investimento produtivo. No fundo, está transferindo riqueza da sociedade para o bolso de alguns espertinhos.
A crise se manifestava com a queda da proporção dos lucros. Os empresários não tinham conversa:
buscaram lucrar na marra, botando os preços lá em cima. Ora, é impossível que os empresários, como um todo,
possam lucrar na base do simples aumento de preços. Quando alguém aumenta os preços, o outro aumenta
também para compensar. Os trabalhadores querem salário maior só para compensar a perda com os aumentos
gerais de preços. Os empresários aumentam os salários e, em seguida, sobem mais ainda os preços para reparar
as perdas com a alfa de preços e salários. Vira um círculo vicioso. Resultado: o dinheiro vai perdendo o valor.
Espiral inflacionária. E o pior é que geralmente os preços crescem mais rápido do que os salários. Portanto, quem
mais perde com a inflação são os trabalhadores. Pois a inflação veio a jato, mas os salários andam a passo de
cágado.
O general Ernesto Geisel era irmão do arquipoderoso general Orlando Geisel. Família unida é ditadura
unida. Sua presidência ocorreu dentro desse panorama de crise econômica. Mesmo assim; Geisel se deu ao luxo
de ter um ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, cuja mansão em Brasília, segundo o Jornal do Brasil, consumia,
mensalmente, 954 kg de carne e 432 kg de manteiga, Que coisa: uma tonelada de bifes por mês, como devia ser
gordo o ministro do Trabalho! Bem, com certeza os salários dos trabalhadores não eram tão gordos.
No meio da crise de energia, o Brasil teve a sorte de descobrir petróleo na bacia de Campos (RJ), em
frente à cidade de Macaé. A Petrobrás pôde aumentar sua produção espetacularmente. Mas Geisel tinha também
outros planos para resolver o problema energético: como não havia dinheiro no Brasil, a solução foi gastar mais
dinheiro ainda. O acordo nuclear Brasil-Alemanha custou uma fortuna de bilhões de dólares. Para fazer usinas
perigosíssimas num país onde 80% do potencial hidrelétrico ainda não foi aproveitado. Incrível, não? A usina de
Angra dos Reis (RJ) fica exatamente entre os dois maiores centros industriais do país: São Paulo e Rio de
Janeiro. Imagine se houvesse um acidente nuclear!
Na verdade, a velha Doutrina de Segurança Nacional continuava ativa. Geisel montou um acordo nuclear
com a Alemanha porque acreditava que o Brasil precisava aprender a dominar a tecnologia capaz de produzir,
num futuro próximo, a bomba atômica. Na mesma época, a Argentina, que vivia uma ditadura militar desde 1976,
também sonhava com cogumelos nucleares. Guerra: coisa de gente que andou tomando uns cogumelos não
exatamente nucleares, não é verdade?
No mesmo ano (1975), teve início o Projeto Pró-álcool. A idéia era substituir a gasolina pelo álcool
combustível. Os usineiros se alegraram. As plantações de cana-de-açúcar foram ocupando tudo quanto é lugar,
expulsando os camponeses moradores, acabando com as plantações de alimentos (tornando a comida mais cara)
e despejando o poluente vinhoto nos rios. Nos anos 80, com a queda do preço mundial de petróleo, o Brasil ficou
com uma enorme frota de carros movidos a um combustível caríssimo. Já em 1990, querendo melhores preços, os
usineiros '`sumiriam" com o álcool. Na verdade, o álcool se revelou um combustível muito mais caro do que a
gasolina (no posto, o álcool é mais barato porque é subsidiado, ou seja, o governo paga uma parte da conta. Mas
onde arruma dinheiro para fazer essa caridade? Cobrando mais alto pela gasolina. Trocando em miúdos: quem
tem carro a gasolina está ajudando a encher o tanque de quem tem carro a álcool). O que se viu nesses anos
todos foi o governo emprestando milhões de dólares aos usineiros do Nordeste, do Rio de Janeiro e de São Paulo
e depois perdoando as dívidas porque não suporta mais a choradeira dos produtores de álcool e açúcar. Enquanto
isso, os cortadores de cana continuam passando fome.
Ora, por que não estimularam o transporte ferroviário e o fluvial, bem mais baratos, podendo, em alguns
casos, usar energia elétrica? Não foi incompetência. Na verdade, desde Juscelino que uma das espinhas dorsais
de nossa indústria é fabricação de automóveis e caminhões. As pressões das multinacionais desse setor forçaram
o governo a abandonar outras opões de transporte. As estradas de ferro, tão importantes nos países
desenvolvidos, foram relegadas a segundo plano pelo governo e as estatais deste setor tiveram seus recursos
cortados.
O II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento) - o I PND foi no governo Médici, sob a batuta do
ministro Delfim Netto -, comandado pelo ministro da Fazenda, Mário Henrique Simonsen, e pelo do Planejamento,
Reis Velloso, tinha como objetivo começar a substituir as importações de bens de capital (indústria de base). Para
isso, o BNDE concedeu créditos generosos a empresas privadas do setor, mas principalmente as empresas
estatais tiveram grande crescimento, especialmente a Eletrobrás (que comprou a multinacional Light and Power e
levou adiante a construção da maior usina hidrelétrica do mundo, Itaipu, na fronteira com o Paraguai), a Embratel
(telefones, satélites de comunicações, televisão etc.), a Petrobrás e as estatais de aço. Tudo isso alimentado por
uma dívida externa que aumentava sem parar. Em breve, os banqueiros viriam cobrar a dívida e os juros. Aí, a
economia sentiria a fona de sucção dos interesses internacionais.
“Distensão ‘lenta, gradual e segura’ rumo à democracia”
Os resultados dos problemas econômicos foi que nas eleições para deputado federal e estadual e para o
Senado, em 1974 e 1978, o MDB teve ótima votação. Um aviso claro para o pessoal da ditadura se mancar. O
povo estava dizendo não ao regime.
No Alto Comando Militar, as divisões políticas se acentuaram. Uns achavam que a ditadura deveria ir
afrouxando, acabando de modo lento e controlado. Talvez, para os ditadores saírem discretamente pelos fundos,
sem ninguém correr atrás deles. Esses generais moderados e favoráveis ao gradual retorno à normalidade
democrática eram chamados de castelistas, porque se sentiam continuadores de Castello Branco. Era o caso do
próprio Geisel e do presidente seguinte, Figueiredo. Outros militares defendiam a “linha dura” - alguns desses
eram civis -, e queriam apertar mais ainda. Costa e Silva e Médici, por exemplo, tinham sido de linha dura.
Começou então um combate nos bastidores, entre os militares castelistas e os linha dura. E os linha dura bem que
pegaram pesado.
Em outubro de 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de telejornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi
chamado para um interrogatório num quartel do Exército, sede do DOI-CODI. Lá ficou, preso e incomunicável.
Dias depois, a família recebeu a notícia de que ele havia “se suicidado”. Com um detalhe: teria de ser enterrado
em um caixão lacrado, para que ninguém pudesse ver o estado do cadáver. Suicídio mesmo ou o corpo estava
arrebentado pela tortura? No ano seguinte, o operário Manoel Fiel Filho sofreu o mesmo destino. A farsa era
evidente: é óbvio que ambos tinham sido mortos por espancamento. Em homenagem a Herzog, o cardeal de São
Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, junto ao pastor James Wright e ao rabino Henri Sobel, dirigiu um culto religioso
ecumênico (reunindo as religiões) em frente à catedral da Sé. Havia milhares de pessoas nesta que foi a primeira
manifestação de massa desde 1968. Mostra clara de que a sociedade civil estava voltando para as ruas para
protestar contra o arbítrio.
Indiretamente, Geisel reconheceu o crime. Não prendeu ninguém, mas exonerou o comandante do II
Exército, responsável pelos acontecimentos. Deixava claro que não admitiria os atos violentos da linha dura. Em
1978, o Poder Judiciário daria ganho de causa à família de Herzog, botando a culpa na União. Sinal dos tempos.
Claro que a esquerda não podia dar bobeira. A ditadura ainda existia. Um trágico exemplo disso foi o
massacre da Lapa, quando agentes do Exército invadiram uma casa nesse bairro da capital paulista, em 1976,
onde se realizava uma reunião secreta de dirigentes do PC do B. As pessoas nem puderam esboçar reação: foram
exterminadas ali mesmo, covardemente.
Apesar disso, Geisel apostava na distensão lenta e gradual. Para isso, teve de usar a habilidade para
derrubar seus opositores de linha dura. A balança pendeu para o seu lado quando ele, num gesto fulminante,
exonerou o general Sílvio Frota (1977), ministro do Exército, tido como de extrema direita e ligado à tortura.
A partir daí, a dureza do regime começou a diminuir bem devagar. Alguns militares eram favoráveis à
distensão política porque realmente estavam imbuídos de convicções democráticas. Outros, não tão liberais,
avaliavam que as Forças Armadas estavam começando a se desgastar ao se manter num governo que enfrentava
uma crise econômica violenta. Geisel, portanto, tinha um plano claro: distensão lenta e gradual. Ou seja, abrir o
regime bem devagarzinho e sem perder o comando sobre ele.
Dentro deste espírito de distensão controlada, Geisel buscou evitar as vitórias eleitorais do MDB. Para
isso, mudou as regras das eleições. Seu ministro da Justiça, Armando Falcão, famoso pela inteligente proibição da
transmissão, pela tevê, do balé Bolshoi de Moscou (bailarinos são presa fácil do comunismo?), inventou a tal Lei
Falcão (1976), que dizia que a propaganda política na tevê só podia exibir uma foto 3X4 do candidato e seu
currículo, lido por um locutor. Nada de um candidato do MDB aparecer na telinha ou no rádio para criticar o
governo e fazer propostas novas.
O natal de 1977 foi antecipado: Geisel fechou o Congresso e deu um presentinho para os brasileiros, o
Pacotão de Abril. Lindas surpresas. Para começar, a cada eleição a Arena perdia mais deputados para o MDB. Em
breve, o partido do governo não teria os 2/3 do Congresso necessários para mudar alguma coisa da Constituição.
Então, o Pacotão determinava que a Constituição agora poderia ser modificada com apenas 50% dos votos dos
congressistas mais um. Assim, a Arena (ainda maioria) garantia seu poder constitucional. No senado, o MDB
também ameaçava. Resultado: o Pacotão determinou que um terço dos senadores passariam a ser biônicos, ou
seja, escolhidos indiretamente pelas Assembléias Legislativas de cada Estado. Em outras palavras, a Arena já
tinha garantido quase 1/3 do senado, os outros 2/3 seriam disputados com o MDB nas eleições normais, o
Pacotão também alterou o quociente eleitoral, de modo que os estados do Nordeste, onde a população rural ainda
era dominada pelos currais eleitorais, e portanto votava com a Arena, tivessem assegurado o direito de eleger um
número maior de deputados para o Congresso. No sertão nordestino, chuva mesmo, só de deputados da Arena. O
Pacotão fazia das eleições um jogo de futebol em que o dono da bola joga de um lado e, ao mesmo tempo, é juiz.
Em 1978 foi decretado o fim do AI-5, o que mostrava alguma boa vontade de Geisel com a distensão
política, Mas antes de ele acabar com o ato arbitrário, usou o AI-5 para cassar diversos opositores. Mais ou menos
como o pistoleiro que mata todo mundo e que, depois de acabarem as balas, resolve se arrepender do que fez. A
garantia disso. tudo era a Lei de Segurança Nacional (LSN) que continuava sendo mantida.
Em política exterior, o Brasil baseou-se no chamado pragmatismo responsável: restabeleceu relações com
países comunistas como a China, porque isso trazia vantagem comercial e diplomática. Em 1975, na África,
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde deixaram de ser colônias de Portugal. No poder, partidos de
orientação marxista, apoiados por Cuba e URSS. Acontecia que o governo militar ainda seguia a visão da Doutrina
de Segurança Nacional que sonhava em transformar o Brasil na grande potência que dominaria a América do Sul
e o Sul da África. Por isso, o Brasil não teve conversa e apoiou os governos de esquerda em Angola e
Moçambique, inclusive contrariando a vontade do governo racista da África do Sul e dos EUA. Na verdade, os
EUA, do presidente Carter, andaram pressionando o governo militar brasileiro por causa da violação de direitos
humanos (incluindo tortura e execução de presos políticos). Coisa de americanos: apoiaram o golpe de 64, depois
mudaram de governo e passaram a criticar. Diante disso, e de olho no acordo nuclear Brasil – Alemanha, Geisel
acabou rompendo um acordo militar Brasil-EUA. Isso mostra uma coisa muito importante: apesar de o regime
militar brasileiro ter sido apoiado pelos EUA, isso não quer dizer que o Brasil sempre tivesse seguido os
americanos. Não foram eles que impuseram o regime aqui. A explicação básica do que acontece no Brasil tem de
ser buscada aqui mesmo, nas nossas estruturas, nas nossas contradições internas, Culpar o imperialismo por
tudo é cômodo e superficial.
No final do seu governo, Geisel passou o bastão para o general Figueiredo. A crise continuava e as
pressões populares pelas mudanças, também.
Bibliografia:
História do Brasil – Luiz Koshiba – Ed. Atual
História Crítica do Brasil – Mário Schmidt – Ed. Novos Tempos
História do Brasil – Boris Fausto – Ed. Difel
GRÁCIA LOPES LIMA
EDUCAÇÃO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO:
PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO NA
PERSPECTIVA DA EDUCOMUNICAÇÃO
SÃO PAULO
2009
GRÁCIA LOPES LIMA
EDUCAÇÃO PELOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO:
PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO NA
PERSPECTIVA DA EDUCOMUNICAÇÃO
Tese apresentada à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Educação.
Área de concentração: Cultura, Organização e
Educação
Orientador: Prof. Dr. Marcos Ferreira Santos
SÃO PAULO
2009
371.112
L732e
Lima, Grácia Lopes
Educação pelos meios de comunicação: produção coletiva de
comunicação, na perspectiva da educomunicação / Grácia Lopes Lima;
orientação Marcos Ferreira Santos. São Paulo: s.n., 2009.
135 p. ; 2 DVDs
Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área
de Concentração: Cultura, Organização e Educação) - - Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo.
1. Educação 2. Comunicação 3. Educomunicação I. Santos, Marcos
Ferreira, orient.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Grácia Lopes Lima
Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de comunicação na
perspectiva da Educomunicação
Tese apresentada à Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Doutor em Educação.
Área de concentração: Cultura, Organização e
Educação
Aprovada em _______________________________
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura____________________________
Prof. Dr. ____________________________________________________________
Instituição:______________________Assinatura____________________________
Para o GENS – Serviços Educacionais
eo
Projeto Cala-boca já morreu
AGRADECIMENTOS
Minha mãe, Judith Lopes de Lima, em quem me inspiro, pelo esmero, vigor e
capacidade de transformação; meu pai, Air de Lima, por me levar para ver com
olhos de menina o centro, os depósitos e os lixos; Donizete Soares, pelas intensas,
precisas, constantes e preciosas iniciações, braveza e doçura; Clorinda, Stella
D’Alma e Cecília, 1ª série azul-marinho, colegiais da noite do Colégio Pe. Moye,
pelas primeiras inquietações profissionais; Plínio Marcos, que me pôs na trilha do
bando; Mayra Lima Soares, pela harmonia; Isis Lima Soares, pela presença
constante, fonte de inspiração, GENS, pelas possibilidades; Ercília Mendonza, pela
passagem; Ludmila, pela permissão da escuta, Rádio Cidadã, pelas descobertas;
Luci Martins, pela bela parceria, Edson Fragoaz, pelas pedras jogadas em minhas
águas, Mayra, Helen, Michel, Arony, Rodrigo, Fábio e André, Kamila, Rodolfo,
Ângelo, do Porrada no ar, pelo desafio, Isis, Thiago e Ariane, Maíra e Gibran,
Mônica e Renata, Calhandra, Hiléia e Larissa, Mariana Kz e Gabi, Luana e Melina,
Hans, Renato, Lígia, Adriano, Cadu, Liz, Mariana Manfredi Magalhães, Ticiane,
Felipe, Jefferson, Tiago, Renata, Bruno, Amanda, Gabriel, Sílvia, Lúcia, Laúcia, Ana,
Flávio, Fernanda, Mariana Teófilo, Rodrigo, Vagner, Vanessa, Diego, Lincoln, Fred,
Fernando, Henrique, César, Maria Paula, Marcela, Jade, Larissa, Larissa
Guimarães, Ingrid, Kevin, Sofia, Lívia; Julyana, Maryana, Mylena, Jacqueline, Joyce,
do Cala-boca já morreu, um Projeto de Vida, por isso tão inspirador; Antonio Carlos
Escudero e Centro Dehoniano de Comunicação, pelas novas parcerias, Samuel
Barreto, pelo envolvimento e disponibilidade; Nanato Santos, Carlão, Luís Carlos,
Elaine, Israel, do Ondas Paranóicas, pelo equilíbrio; Neide Cândido Brás, fada
madrinha do GENS; Rádios comunitárias 8 de dezembro, Charme e Guadalupe,
pela constatação de que uma outra comunicação é possível (e necessária); Mariúza
Peloso, pelo respeito e carinho; Patrícia Moldan, Cris Lopérgolo, Sérgio D’Urquiza,
pelas buscas conjuntas; Prof. Ismar de Oliveira Soares, pelo aprendizado; Patrícia
Horta, pelo apoio; Eliany Salvatierra pela divulgação dos trabalhos do Cala-boca já
morreu; Sheila Bovo, pela capacidade de visão para além do convencional; Luana,
Pardal, Jaime Rampazzo, Diogo 90, Mariana Moura, Marcelo Berg, pelos trabalhos
de intensa criação, recheados de muito benquerer; Márcia Perígolo, pela lucidez;
Sérgio Gomes, Ana Luísa Zaniboni, da OBORÉ, pelo companheirismo; Raquel
Trajber, pela confiança; Tereza Diorio, Auira, Patrícia Mousinho, Bruno Pinheiro,
Massao, Lúcia, Rangel, Clóvis, Maricota, Luli, Henrique Santana, Dudu Rombauer,
pelos olhos inquietos que me fazem prestar mais atenção no que faço e digo; Rose
Soffner e todos os alunos da Faculdade Sumaré, pela ampliação das propostas;
Marcelo Brás, pela disponibilidade; César de Lucca, que me lembrou que respirar é
importante; Elly Ferrari e Bianca Dettino pelo abstract; Zi, pela leitura e seleção de
programas do anexo; Ma, pela transcrição; Ma Kz e Ma Manfredi pelo carinho
expresso na criação dos DVDs anexos; Teresa Melo, pelas grandes e inesquecíveis
caminhadas; Sandra Olivieri, Pablo Milanez, Atahualpa Yupanqui, Manuel de Barros
e Fifi, minha netinha, por recarregarem minhas energias durante os meses de
dezembro e janeiro; Prof. Marcos Ferreira Santos, pelo alargamento do horizonte; a
todos os que custearam os meus estudos na Universidade de São Paulo, durante o
Mestrado e o Doutorado.
a poesia, a magia, a arte...
as grandes sabedorias
não podem habitar corações medrosos
Plínio Marcos
RESUMO
LOPES LIMA, Grácia. Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de
comunicação na perspectiva da Educomunicação. 2009. 135 f. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Esta tese tem como tema a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da
Educomunicação.
Argumenta que os processos de criação, vivenciados em pequenos
grupos, mais do que os produtos de comunicação que eles geram, podem contribuir para
uma educação comprometida com a constituição de sujeitos autônomos. Para tanto, aponta
a necessidade de a produção de comunicação ser considerada como direito humano a ser
exercido por todas as pessoas, bem como as tecnologias e linguagens midiáticas serem
utilizadas como instrumentos que possibilitam aos envolvidos no processo de criação
reconhecer-se nas próprias palavras e imagens que produzem. Afirma que do exercício de
envolvimento consigo e com o outro nasce a possibilidade de re-significarem suas histórias
pessoais e coletivas. A autora fundamenta a tese, orientada pelos estudos de
Educomunicação, da Pedagogia Libertária, da Comunicação Comunitária e dos Estudos do
Imaginário. Utiliza a pesquisa-ação como metodologia, valendo-se das atividades de
Educomunicação, desenvolvidas ao longo de mais de uma década, pelo GENS – Serviços
Educacionais e pelo Projeto Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!
Por esses motivos, conclui que a Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da
Educomunicação pode ser considerada como Educação pelos Meios de Comunicação.
Palavras-chave: Educação, Comunicação, Educomunicação
ABSTRACT
LOPES LIMA, Grácia. Educação pelos Meios de Comunicação: produção coletiva de
comunicação na perspectiva da Educomunicação. 2009. 135 f. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
This thesis researches the collective production of communication, in the perspective of
Educommunication. The research argues that the creation processes, shared in small
groups, more than the communication products generated, contribute to a committed
education with the constitution of the social person autonomy. The procedure points out the
necessity of communication human right exercised by all the people, with technologies and
mediatics language used as creation instruments, in order to recognize its own produced
words and images. This work affirms that the involvement with yourself and the others resignificates the personal and collective histories. The thesis is guided in the studies of:
Educommunication, “Pedagogia Libertária”, Community Communication and Studies of the
Imaginary. The methodology used follows the action-research that works the activities of
Educommunication developed along more than one decade, by GENS – Serviços
Educacionais and Projeto Cala-boca já morreu - porque nós também temos o que dizer! The
research conclusion is that the Collective Production of communication, in the perspective of
Educommunicaion is considered as Education by the Means of Communication.
Key words: Education, Communication, Educommunication.
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
16
2 REFERENCIAL TEÓRICO NA PRODUÇÃO COLETIVA DE COMUNICAÇÃO
– UMA VERTENTE DA EDUCOMUNICAÇÃO
30
2.1 Conceitos de educação
40
2.2 Conceito de comunicação
51
2.3 Conceito de educomunicação
59
3 CALA-BOCA JÁ MORREU – UMA METODOLOGIA PARA PRODUÇÕES
COLETIVAS DE COMUNICAÇÃO, NA PERSPECTIVA DA
EDUCOMUNICAÇÃO
60
3.1 Desdobramentos da ação educativa do GENS
65
3. 2 Caminhos da metodologia cala-boca já morreu
67
3. 3 Detalhamento da metodologia cala-boca já morreu
77
3. 4 Movimentos da metodologia cala-boca já morreu
83
4 O LADO DE DENTRO DO PROCESSO COLETIVO DE PRODUÇÃO DE
COMUNICAÇÃO
95
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
121
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
128
7 ANEXOS
DVD 1 - CAMINHOS DA METODOLOGIA CALA-BOCA JÁ MORREU
Saúde Mental
•
“O alçapão indígena”, criação da Oficina Ondas Paranóicas,
São Paulo/SP.
• Entrevistas realizadas por participantes da Oficina de rádio
Ondas Paranóicas, durante o Desfile do Cordão Bibitantan, São
Paulo/SP.
Pedagogia do idoso
•
Trecho de um dos Programas de rádio “Embalos de domingo à
tarde”, criado por alunos participantes da UNATI – Universidade
Aberta à Terceira Idade, da FITO/FEAO – Osasco/SP.
•
Capas, editoriais e alguns artigos da Revista Engrama criados
pela professora e alunos participantes da Disciplina Multimeios,
na UNATI – Universidade Aberta à terceira Idade, da
FITO/FEAO – Osasco/SP.
Formação inicial de professores
• Programa de rádio criado durante as aulas de Língua
Portuguesa 1, por alunas do Curso de Pedagogia da Faculdade
Sumaré/SP
• Vídeo-documentário “Eu, autor”, criado por professores e
estudantes do Curso de Pedagogia, da Faculdade Sumaré/SP
sobre o processo de realização do TCC – Trabalho de
Conclusão de Curso.
• PPD – Projeto Pedagógico-didático da Disciplina Língua
Portuguesa 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade
Sumaré/SP.
• PPD – Projeto Pedagógico-didático da Disciplina Tecnologia
Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da Faculdade
Sumaré/SP.
• Fotonovela “Calçada do amor”, criada por alunos, durante as
aulas de Tecnologia Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da
Faculdade Sumaré/SP.
• Fotonovela “Tome uma atitude”, criada por alunos, durante as
aulas de Tecnologia Educacional 1, do Curso de Pedagogia, da
Faculdade Sumaré/SP.
Cultura
Produção de vídeo
• “Paraty”, criação de moradores do Município de Paraty, durante
o I Festival Internacional de Cinema de Paraty/RJ.
• “1 minuto Paraty”, criação de adolescentes moradores do
Município de Paraty, durante o II Festival Internacional de
Cinema de Paraty/RJ.
Produção radiofônica com comunidades tradicionais
• “Plantio” – música criada por moradores de comunidades da
Estação Ecológica Juréia-Itatins - EEJI (SP) e seu entorno, para
o Projeto Viola Peregrina, realizado pela MONGUE – Proteção
ao sistema costeiro – SP/ Peruíbe.
Educação Ambiental
• Programa de rádio, criado por professoras participantes do
Programa de Educomunicação de Atibaia/SP.
• Programa de rádio, criado por Facilitadores Nacionais e
Internacionais, participantes da II Conferência Nacional InfantoJuvenil pelo Meio Ambiente, realizada pelo Ministério da
Educação e Ministério do Meio Ambiente.
Educação não-formal
• Vídeo-documentário, sobre o Projeto Rádio-Escola de Vargem
Grande Paulista/SP, criação do GENS – Serviços Educacionais.
• “La hormiguita”, vídeo criado por crianças, durante o Programa
de Educomunicação de Sorocaba/SP.
• “X-burguer”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de
Educomunicação de Sorocaba/SP.
• “Através dos sapatos conheçam pessoas”, vídeo criado por
crianças, durante o Programa de Educomunicação de
Sorocaba/SP.
• “O beijo do vampiro”, vídeo criado por crianças, durante o
Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP.
• “Vídeo sobre a praça”, vídeo criado por crianças, durante o
Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP.
• “Os bichos”, vídeo criado por crianças, durante o Programa de
Educomunicação de Sorocaba/SP.
• “Nóis é fera!”, programa de rádio criado por crianças, durante o
Programa de Educomunicação de Sorocaba/SP.
• Transcrição do programa “Nóis é fera!”,
• Cédula para escolha do nome da emissora de rádio, de escolas
participantes do Programa de Educomunicação de
Sorocaba/SP.
• Contagem de votos para nome da emissora de rádio, de escolas
participantes do Programa de Educomunicação de
Sorocaba/SP.
• Grade de programação de emissoras de rádio, de escolas
participantes do Programa de Educomunicação de
Sorocaba/SP.
O lado de dentro da produção coletiva de Educomunicação
•
“Processo” - vídeo-documentário, criação do GENS –
Serviços Educacionais, sobre o processo de criação de
um programa de rádio, por um grupo de crianças e uma
assistente de educação, participantes do Programa de
Educomunicação de Sorocaba/SP.
DVD 2: FONTES INSPIRADORAS
•
“Programa de rádio Porrada no ar”
Trechos relacionados à Cultura e ao Meio Ambiente
•
“Projeto Cala-boca já morreu”
•
•
•
•
Programa de rádio
Trecho do Bloco “Criança Ecologia”
“As aventuras da Julinha”
Jornal
Edições 1, 2, 3 e 5
Programas de televisão
Programa nº 1
Programa nº 4
Vídeo
“A babá e as crianças”
“Delícias Nham-nham”
Foto-clipe “O meio”, música de Luiz Tatit
16
Considerações iniciais
Esta tese é um dos desdobramentos de um processo vivenciado pelo GENS –
Serviços Educacionais, desde 1995, quando criamos o “Cala-boca já morreu”, com
um grupo de crianças de 7 a 12 anos de idade que, por livre iniciativa, aceitou nosso
convite para participar de um programa de rádio, que, mal sabíamos, daria início a
uma história singular.
Depois de realizarmos com elas mais de 100 programas de duas horas,
apresentados “ao vivo” na Rádio Cidadã, uma emissora comunitária da cidade de
São Paulo, em 1996, passamos a desenvolver com o mesmo grupo a produção de
jornal impresso, momento em que a proposta se ampliou, passando a constituir-se
num projeto, dali para frente denominado “Projeto Cala-boca já morreu - porque nós
também temos o que dizer!”
As duas ações, em menos de um ano, evidenciavam que crianças envolvidas com
comunicação aguçavam com uma rapidez impressionante a capacidade de ouvir,
ver e se concentrar no que juntas produziam. A cada preparação de programa para
o rádio, de matéria nova para o jornal, mais e mais vontade mostravam por conhecer
assuntos ligados à vida cotidiana, à natureza, às tecnologias, ao relacionamento
entre as pessoas e o funcionamento das coisas do mundo.
Por esses motivos, em 1997, data de nascimento do Canal Comunitário da Cidade
de São Paulo, recebemos, mais do que um novo convite, uma provocação para
também desenvolver com o mesmo grupo uma terceira atividade, desta vez, ligada à
linguagem
audiovisual.
Aceitamos
a
proposta,
e,
adotando
os
mesmos
procedimentos metodológicos das duas experiências anteriores, realizamos quatro
17
programas de quinze minutos, inteiramente feitos pelas crianças, que foram ao ar
pela televisão.
Os resultados qualitativos observados no grupo cada vez mais surpreendiam:
percepção mais aguçada os levava a maior elaboração do pensamento. Mais
espontaneidade, menos medo de expor o próprio corpo, maior disponibilidade para
conviver com a diversidade. Fortalecimento da auto-imagem e, conseqüentemente,
maior capacidade de se colocar diante de diferentes tipos de pessoas, independente
da idade, nível cultural ou posição social ocupada por elas.
Em pouquíssimo tempo, os meninos e meninas do Projeto mostravam que o domínio
de equipamentos tecnológicos e da linguagem dos meios de comunicação poderiam
ser instrumentos preciosos para a formação de indivíduos esclarecidos, altivos e
autônomos.
Em suma: evidenciava-se que mais do que produzir comunicação, estávamos, em
três diferentes espaços de comunicação comunitária, vivenciando um tipo especial
de experiência, que àquela altura contava com a efetiva adesão das crianças – fator
mais marcante da proposta. Elas não participavam das atividades porque seus pais
queriam, suas professoras indicavam ou porque poderiam ficar famosas através das
tantas entrevistas que passavam a conceder para a grande imprensa, inclusive
internacional.
Elas
continuavam
conosco
porque
gostavam
das
inúmeras
oportunidades que se abriam e, principalmente, porque tudo que acontecia era fruto
de intensa vivência de processos coletivos de criação.
Mas não só os pequenos se encantavam, se animavam e se fortaleciam com a
proposta. Nós também nesse processo íamos solidificando sonhos e convicções.
Aos poucos, materializava-se naquela proposta a possibilidade real de um tipo de
educação pelos meios de comunicação que, efetivamente, poderia contribuir para a
formação de gente autora de sua própria história.
Esses movimentos vivos do processo nos permitiram estruturar uma metodologia, a
partir de então denominada Metodologia Cala-boca já morreu, que não tardaria a ser
partilhada e vivenciada em outros espaços, como um estilo próprio de conceber e
realizar práticas que aproximavam os campos da Educação e Comunicação,
18
apontadas
como
pilares
de
um
novo
campo
de
intervenção
chamado
Educomunicação.
No ano 2000, os desdobramentos dessa iniciativa do GENS começaram. Fomos
contratados pela Prefeitura de Vargem Grande Paulista para nesse município
desenvolver o Projeto Rádio-Escola. No ano seguinte, fomos convidados a compor a
equipe idealizadora do Projeto educom.rádio, do NCE – Núcleo de Comunicação e
Educação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, onde
durante dois anos assumimos a função de coordenadora educomunicacional,
responsável pela seleção e formação da equipe multidisciplinar condutora do
projeto, bem como pela idealização das atividades de rádio desenvolvidas pelos
participantes do curso de formação. O município paulista de Sorocaba, no mesmo
ano, nos contrata, através da Secretaria Municipal de Educação, para implantar os
Projetos Rádio e Vídeo-Escola em toda rede municipal de ensino. Aí, como forma de
partilhar
as
produções
coletivas
de
comunicação,
na
perspectiva
da
Educomunicação das unidades escolares com a sociedade sorocabana, durante três
anos, realizamos Mostras de Rádio e Vídeo-Escola,
abertas também a
pesquisadores do campo da Educomunicação.
Em 2002, apresentamos pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de
São Paulo, a dissertação de Mestrado Educomunicação, Psicopedagogia e Prática
radiofônica – estudo de caso do Programa de rádio Cala-boca já morreu, que muito
colaborou para o aprofundamento teórico de nossos trabalhos.
Na seqüência, em 2004, as nossas atividades voltadas para a produção coletiva de
imagem começam a despertar interesse de outras instâncias, que não só as
educacionais. Vislumbrando, especialmente nos processos de produção de vídeos
desenvolvidos pelo GENS a possibilidade de formação de um “novo olhar”, fomos
convidados, para desenvolver oficinas de vídeo durante os eventos de Cinema
Nacional, realizados em Paraty, Rio de Janeiro. Durante três anos consecutivos,
moradores da cidade, puderam, então, assistir suas próprias produções audiovisuais
na mesma tela de cinema em que grandes diretores exibiam seus filmes.
A partir de 2005, o Projeto Cala-boca já morreu, que após dez anos de existência,
continuava com muitos de seus pequenos fundadores, passa a ser uma organização
19
não-governamental. Desde então, a convite do Ministério da Educação e Ministério
do Meio Ambiente, passamos a realizar um trabalho de assessoria em
Educomunicação para o Programa Juventude e Meio Ambiente e as três
Conferências Nacionais Infanto-Juvenil pelo Meio Ambiente.
Doravante em parceria, as duas instituições – GENS e o Projeto Cala-boca já
morreu – anualmente, oferecem cursos de formação em Educomunicação.
Essas experiências de mais de uma década voltadas para a produção coletiva de
comunicação, na perspectiva da Educomunicação, com diferentes públicos –
crianças, adolescentes, jovens e adultos, em espaços de educação formal e nãoformal – têm levantado várias questões inquietantes, não só em quem produz e se
reconhece como autor nas mensagens midiáticas que cria, como em quem
acompanha o processo e percebe aí a possibilidade de as produções serem uma
forma de conhecer/compreender as culturas de diferentes grupos sociais e envolverse com uma outra proposta que se vale das tecnologias e das linguagens dos meios
de comunicação como instrumentos de educação.
À tarefa de realizar algumas reflexões sobre essas práticas é que nos dispomos
nesta pesquisa.
Tema da pesquisa
Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, concebida
como Educação pelos Meios de Comunicação.
Problema
Considerando que
20
- “vivemos num mundo não meramente físico, onde a linguagem, a arte, o
mito e a religião são fios que tecem o emaranhado da experiência humana”
(CASSIRER,1994:48);
- os meios de comunicação, estando concentrados nas mãos de apenas
alguns grupos, veiculam mensagens que levam os olhos e os ouvidos dos
receptores para lugares distantes daqueles que habitam;
- educação resulta de um trabalho conjunto de toda a sociedade e, que,
portanto, os meios de comunicação não definem, mas exercem fortes poderes sobre
o que as pessoas pensam sobre si mesmas, sobre a percepção que têm da vida e
da morte, assim como da organização da sociedade;
- produzir comunicação é direito humano de todas as pessoas, independente
de idade, gênero, origem ou condição social;
- a comunicação comunitária aproxima as pessoas e pode contribuir para que
elas se fortaleçam individual e coletivamente;
- pela ação sobre si mesmo e sobre o mundo, o ser humano é capaz de tomar
consciência de si e, então, resignificar a vida;
- “algo mais se insinua no horizonte das ações comunicativas quando
realizamos algo à nossa volta com o compromisso social de conviver mais
dignamente” (FERREIRA SANTOS, 2004a: 72).
Considerando, enfim, que todo ser humano é produtor de cultura, concebida como
“criação, apropriação, transmissão, interpretação dos bens simbólicos e suas
relações” (FERREIRA SANTOS, 2004a: 61), o processo de produção coletiva de
comunicação, na perspectiva da educomunicação, não seria uma maneira de
envolver as pessoas em processos que possibilitem a elas se re-conhecerem como
sujeitos que, de fato, são da sua própria existência?
21
Justificativa
A educação formal, em certa medida, já se deu conta de que as questões
relacionadas com a comunicação social também devem fazer parte de seu âmbito
de interesse. Afinal, vão ficando nítidas as marcas de uma convivência intensa da
comunidade escolar com vários sistemas de produção e distribuição de informação.
Mais que nunca fica evidente quanto os meios de comunicação, especialmente os
audiovisuais se integram, cada vez mais cedo, ao processo de formação das
pessoas
“as novas gerações são leitoras da comunicação audiovisual ainda
no estado intra-uterino. A mãe, quando está grávida, senta em frente
à televisão, se emociona, passa para o feto aquelas impressões.
Tudo vira história (...) as novas gerações são formadas nisso desde
que abrem os olhos para o mundo. Já estão compreendendo aquilo
que a televisão está mostrando, que o cinema está exibindo. Trazem
isso para dentro da sala de aula, esse conhecimento, essa leitura.
São todos pós-graduados em linguagem áudio-visual, quando entram
analfabetos na escola (...)
(FRANCO, 1996:109)
Ocorre que estamos, pelos meios de comunicação mais populares, como rádio e TV,
convivendo com sons e imagens que mostram realidades bem diferentes e distantes
da nossa. As grandes empresas de comunicação retratam o mundo, indiferentes às
culturas locais. Direcionam mensagens que distraem aqueles que os recepcionam,
admirados, entorpecidos até, para se tornarem presas fáceis de um discurso que
oferece uma “imagem de uma única cultura e de uma única história, ocultando a
divisão social interna” (CHAUÍ, 1995: 296).
Essa política de comunicação social precisa ser compreendida. A lógica usada pelos
que, à revelia da lei, se julgam proprietários dos sistemas de meios de comunicação,
a rigor, concessões públicas, necessita ser conhecida pelos seus usuários.
22
Igualmente, tem ampliado os estudos que aprofundam teoricamente as contribuições
das práticas que aproximam Comunicação e Educação. Nesse sentido, vários
países de todo mundo, dentre os quais o Brasil, já desenvolveram, há várias
décadas, programas de leitura crítica dos meios, com a intenção de fortalecer a
capacidade analítica, especialmente, de jovens receptores.
A par desses projetos de recepção crítica, destacam-se também vários programas
educacionais que objetivam tornar os meios de comunicação ferramentas,
instrumentos, através dos quais as pessoas, especialmente estudantes, possam se
apropriar para comunicar seus próprios universos simbólicos.
Tais projetos propõem-se a incluir novas tecnologias e diferentes linguagens no
âmbito da escola, incorporando-as ao dia-a-dia da sala de aula. Consideram a
produção como uma possibilidade de a comunidade escolar passar a olhar e ouvir a
si própria e, coletivamente, se envolver com a cultura local.
Colocando professores e estudantes em situação de diálogo constante a partir da
necessidade de um fazer coletivo, de uma prática marcada pela diversidade de
sentimento, idéias e modos de ser, essas ações colaboram ainda para a construção
da intersubjetividade.
Este encontro intersubjetivo é amparado pelas intercomunicações
extradiscursivas,
ou
seja,
com
outros
elementos
além
da
discursividade das palavras.
(FERREIRA SANTOS, 2003a:71)
Por fim, a tal consciência crítica, tão esperada quanto ao caráter ideológico dos
meios de comunicação acabaria, assim, por essas práticas, sendo uma decorrência
natural do processo, exatamente porque, ao produzirem e se apropriarem de todas
as etapas de produção de comunicação, os sujeitos passam a dominar o
funcionamento do sistema de meios. Provavelmente, por essa razão, verão o mundo
da tecnologia e das mídias com recursos preciosos para o fortalecimento de
indivíduos e grupos.
23
Ismar de Oliveira Soares, na perspectiva da Educomunicação, identifica e define
essa produção de meios como
práticas educomunicativas que buscam convergências de ações,
sincronizadas em torno de um grande objetivo: ampliar o coeficiente
comunicativo das ações humanas. Para tanto, supõem uma teoria da
ação comunicativa que privilegie o conceito de comunicação
dialógica, uma ética de responsabilidade social para os produtores
culturais; uma recepção ativa por parte das audiências; uma política
de uso dos recursos da informação de acordo com os interesses dos
pólos
envolvidos
no
processo
de
comunicação
(produtores,
instituições mediadoras e consumidores da informação), o que
culmina com a ampliação dos espaços de expressão (SOARES,
2001a:2)
Assim concebidos, os processos de produção coletiva adentram o universo
imaginário, objeto da Antropologia
Toda reflexão sobre um meio qualquer de expressão deve se colocar
a questão fundamental da relação específica existente entre o
referente externo e a mensagem produzida por esse meio. Trata-se
de representação do real (...)
(DUBOIS, 2003:27)
Isto significa dizer que a produção coletiva de comunicação, resultante de processos
criativos de determinados grupos humanos, moradores de um determinado lugar,
num determinado tempo, são
um modo de as pessoas tornarem presente algo que está ausente –
uma representação, pois pensar a questão da representação é
pensar nas significações que os humanos atribuem à realidade
(CHAUÍ, 1995:294)
24
Uma vez externadas e partilhadas, as produções coletivas de comunicação não só
atualizam o que já é passado, como possibilitam àqueles que as recepcionam, o reconhecimento do universo cultural de seu entorno. Nesse sentido, tais produções
envolvem as pessoas numa educação de sensibilidade
(...) valendo-se das Artes (plásticas, musicais, literárias, videográficas
e fílmicas) em que as imagens e os símbolos, articulados em
narrativas, articulam por sua vez, o patrimônio histórico-cultural do
humano.
(FERREIRA SANTOS, 2003a:53)
Encontrando-se a si mesmos e em um processo de aprendizagem contínua de
diálogo
com
o
outro,
crianças,
adolescentes
e
adultos
tornam-se
mais
autoconfiantes, mais solidários, e, portanto, mais comprometidos consigo e com a
história do seu tempo.
Por fim, por serem voltadas especialmente para pessoas leigas, tais práticas
contribuem para o movimento de democratização dos meios de comunicação.
Quanto mais circularem produtos de comunicação que expressem diferentes pontos
de
vista,
maiores
são
as
possibilidades
de
entendimento dos
fatos
e,
consequentemente, de as pessoas definirem por si mesmas o que melhor lhes
convém.
Objetivo
Evidenciar a produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação
como sinônimo de Educação pelos Meios de Comunicação.
25
Hipóteses
A Produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, ou
Educação pelos Meios de Comunicação
a) possibilita o encontro com o repertório cultural cotidiano de seus
realizadores;
b) desenvolvida a partir dos princípios propostos pela “Metodologia Cala-boca
já morreu” possibilita uma relação mais solidária entre as pessoas;
c) pode contribuir para uma educação efetivamente comprometida com o
fortalecimento do indivíduo e dos grupos;
Metodologia da pesquisa
Adotamos a linha de pesquisa-ação, uma metodologia de pesquisa social que se
associa a uma forma de ação social coletiva orientada para a resolução de
problemas ou de objetivos de transformação, baseada nos princípios defendidos por
Michel Thiollent (2000).
A escolha dessa metodologia obedeceu critérios muito claros: era preciso encontrar
um autor e um procedimento científico que combinasse com o que na prática já
vinha acontecendo, com a reflexão e o tipo de preocupações que já vinham
norteando, desde o início, as atividades do GENS – Serviços Educacionais. Não se
tratava, pois, de enquadrar as propostas numa metodologia. Antes, era necessário
encontrar afinidade entre a metodologia a ser adotada e as propostas que já
existiam, considerando que os procedimentos anteriores não se modificariam
somente porque se tornariam objeto de investigação de um trabalho acadêmico.
Assim, a adequação entre a linha da pesquisa-ação e as nossas atividades,
assentou-se em quatro aspectos formulados por Thiollent. Em primeiro lugar, porque
26
nesta pesquisa predomina uma busca de compreensão e de interação entre a
pesquisadora e os membros das atividades investigadas. Ou seja, nos trabalhos de
produção coletiva de comunicação, na perspectiva da Educomunicação, realizados
pelo GENS e também pelo Projeto Cala-boca já morreu, a pesquisadora, também
coordenadora responsável pelos projetos de ambas as instituições, se mantém em
diálogo permanente com os diferentes públicos (crianças, adolescentes, jovens e
adultos) envolvidos nas atividades mencionadas. Em todas as ações – objeto desta
pesquisa, predomina o esforço da pesquisadora em contribuir para a expressão
criativa para registro e veiculação da história dos grupos. Os procedimentos colocam
em evidência não somente a participação ativa da pesquisadora, como igualmente
dos integrantes dos projetos – que interagem entre si – e interagem com a
coordenadora – desde o diagnóstico das situações que vivenciam até as etapas
subseqüentes, incluindo a de considerações sobre as ações que juntos realizam. Tal
como define Thiollent o papel do pesquisador nesse tipo de pesquisa é o de
desempenhar papel ativo na reflexão sobre problemas encontrados pelos grupos, no
acompanhamento das propostas que eles definem como melhores para resolução
do que detectam e querem resolver, bem como participa da avaliação de todo
processo de investigação equacionado na pesquisa.
O segundo motivo refere-se ao fato de a pesquisa-ação ser adequada como
instrumento de investigação para grupos, instituições e coletividades de pequeno ou
médio porte. As ações aqui estudadas caracterizam-se por serem realizadas com
grupos reduzidos de pessoas, mesmo nos casos em que se trata de Programas de
Educomunicação para redes de ensino municipais ou Conferências Nacionais, como
se verá.
Partimos do pressuposto que a produção coletiva de comunicação, na perspectiva
da Educomunicação pode aproximar as pessoas, para que juntas definam o que
desejam tornar público sobre o grupo do qual fazem parte. Pensamos que a
convivência em grupos reduzidos facilita a conversa. Buscamos, pela nossa atuação
como coordenadora desses projetos, uma forma de organização das pessoas, que
possibilite discutirem problemas, sonhos e projetos de/para suas comunidades.
Esperamos, enfim, ao reunir as pessoas em pequenos grupos, possibilitar que cada
um dos participantes, gradativamente, se aproprie de si mesmo, para que juntos
decidam o rumo de suas próprias vidas.
27
Em terceiro lugar, este estudo se calca na ação e reflexão de atividades do GENS e
do Cala-boca já morreu – todas de base empírica. Nas palavras de Thiollent, trata-se
de uma pesquisa voltada para a descrição de situações concretas e para a
intervenção ou ação orientada em função de resolução de questões efetivamente
detectadas nas coletividades consideradas.
Nesse sentido, a pesquisa-ação se mostra como a metodologia mais adequada para
a realização deste projeto de pesquisa porque não nos parece haver “dedução do
geral ao particular” nem “indução do particular ao geral”. Fica evidente que os
participantes e a pesquisadora-coordenadora vêm-se envolvidos numa proposta que
apresenta movimentos em que se alternam constatações verificadas e já testadas
que se repetem no presente, com outras que são reconhecidas no presente e
reconhecidas como possíveis de serem repetidas em situações posteriores.
Na pesquisa-ação o conjunto de exigências científicas não obedece ao padrão
convencional
de
observação,
marcado
pela
separação
entre
pesquisador
(observador) e grupos pesquisados (observados), não havendo possibilidade de
substituição do primeiro, tampouco interesse em quantificar informação. Predomina
a dialogicidade, isto é, entre o pesquisador e as pessoas implicadas na pesquisa
prevalece a “intercomunicação”, e o que se intenta é avaliar conjuntamente o que for
sendo realizado, ao longo da história do grupo.
Por fim, a afinidade entre nossa proposta e a metodologia de pesquisa-ação se
resume em considerar que a ação de pequenos grupos deve permitir ampliar a
experiência, mas produzir conhecimento para além de seus realizadores, como
forma de avançar o debate sobre questões de relevância para toda a sociedade.
Os estudos de caso
Produções coletivas de comunicação, na perspectiva da Educomunicação realizadas
pelo Projeto “Cala-boca já morreu – porque nós também temos o que dizer!”;
Oficinas de rádio Ondas Paranóicas; Revista Engrama; Programa de rádio Embalos
28
de domingo à tarde, SP; Programas de Educomunicação dos municípios de Vargem
Grande Paulista Sorocaba, Sorocaba, Piedade, Alumínio e Atibaia, SP; Programas
de rádio do Projeto educom.rádio, São Paulo, SP; Oficinas de vídeo realizadas
durante a Mostra Nacional de Cinema de Paraty, Rio de Janeiro; Oficina de rádio O
que aprendi com meus pais, Peruíbe, SP; Produções de rádio do Programa
Juventude e Meio Ambiente, MEC e MMA; Produções de rádio das três
Conferências Nacionais Infanto-Juvenil Pelo Meio Ambiente, MEC e MMA;
Produções de rádio e fotonovela dos alunos de Pedagogia da Faculdade Sumaré,
São Paulo, SP.
Plano de trabalho
No primeiro capítulo, num esforço inadiável de traduzir com as nossas próprias
palavras as bases teóricas de que nos servimos nas produções coletivas de
comunicação, na perspectiva da Educomunicação, apresentamos as concepções de
Educação, de Comunicação e de Educomunicação, que embasam a ação direta de
mais de uma década do GENS e do Projeto Cala-boca já morreu, valendo-nos, para
tanto de alguns princípios da Pedagogia Libertária e da Comunicação Comunitária.
No segundo, reiteramos nosso compromisso anunciado no capítulo anterior,
apresentando a Metodologia Cala-boca já morreu para a produção coletiva de
comunicação, na perspectiva da Educomunicação, sistematizada ao longo da
trajetória profissional empreendida pelas duas instituições que lhe deram origem e
que atualmente vem sendo utilizada em diversas áreas do conhecimento, em
diferentes localidades brasileiras.
No terceiro e último, apresentamos uma descrição subjetiva de um lugar de criação
coletiva de um programa de rádio, vivenciado por um grupo de crianças do Ensino
Fundamental e uma assistente de educação, como forma de ilustrar o que
enfaticamente destacamos nos capítulos precedentes: que nas produções coletivas
de comunicação às quais nos referimos, os processos são sempre mais importantes
que os produtos, porque são eles – os processos – que colocam em evidência que
entre as duas palavras – Educação e Comunicação, a que indica o rumo da
29
Educomunicação, do nosso ponto de vista é a Educação. A Comunicação, por
conseqüência, é o instrumento através do qual ela se materializa e torna visíveis as
suas intenções. Daí considerarmos Educomunicação como sinônimo de Educação
pelos Meios de Comunicação. Para tanto, realizamos uma descrição subjetiva de um
vídeo que documentou o momento de criação de um programa de rádio, sob
inspiração dos Estudos do Imaginário (BACHELARD, 1997; DURAND, 2001;
FERREIRA SANTOS, 2004ª; e RICOER, 1989).
30
Referencial teórico na produção coletiva de
comunicação – uma vertente da
Educomunicação
O documento que serve de referência para a continuidade dos estudos sobre
Educomunicação data de 1999. Trata-se de uma pesquisa de dois anos,
empreendida pelo NCE – Núcleo de Educação e Comunicação da Escola de
Comunicação e Artes, da Universidade de São Paulo, em parceria com
pesquisadores da UNIFACS, Bahia, que buscava identificar os trabalhos
relacionados com a inter-relação Comunicação e Educação e seus respectivos
realizadores no âmbito da América Latina.
Dessa investigação interessa-nos destacar dois pontos. O primeiro diz respeito ao
reconhecimento da existência de quatro áreas de intervenção, assim entendidas1:
“Educação para a comunicação: (estudos de recepção), e os
programas de formação dos receptores autônomos e críticos dos
meios (“Mídia Education” ou “Media Literacy”);
Mediação tecnológica na educação: procedimentos e reflexões a
respeito da presença e dos múltiplos usos das tecnologias da
informação na educação;
Gestão comunicativa: planejamento, execução e avaliação de
planos, programas e projetos de intervenção social no espaço da interrelação Comunicação/Cultura/Educação;
1
Trecho correspondente à 3ª hipótese da pesquisa. As anteriores referiam-se, respectivamente, à
formação e desenvolvimento de um novo campo de intervenção social denominado Educomunicação
e à de que sua estruturação dá-se de modo “processual, mediático, transdisciplinar e interdiscursivo”.
31
Reflexão epistemológica: estudos acadêmicos sobre a natureza do
fenômeno cultural emergente, constituído pela inter-relação
Comunicação/Educação”
(SOARES, 1999: 27)
O segundo ponto traduz a relação entre as áreas de atuação e a proporção de
pessoas com elas envolvidas2
“50% deles dedicavam-se à área dos estudos epistemológicos, isto
é, desenvolviam algum tipo de pesquisa teórica no campo da interrelação em estudo;
47,16% voltavam-se para projetos de educação para a
comunicação, quer através de algum projeto específico quer da
prática curricular normal;
30% dedicavam-se ao uso das tecnologias na
especialmente ao uso do computador na sala de aula;
19% desenvolviam atividades entendidas
comunicação no espaço educativo;
como
educação,
gestão
4% correspondiam às atividades de comunicação
especialmente ligadas a linguagens artísticas;
da
cultural,
3% a atividades identificadas como uso da comunicação em ações
voltadas para a cidadania, melhoria da qualidade de vida e diversidade
humana.”
(SOARES, 1999: 59- 60)
Tais números indicam que quase a totalidade dos afeitos ao tema, na época,
ocupava-se em entender as relações entre Educação e Educação de forma teórica;
na seqüência, constata-se a predominância de uso do computador em ambiente
2
Esses dados resultam da aplicação de questionários e entrevistas junto a 178 colaboradores de 14
países, sendo 67,61% brasileiros e 32,29% latino-americanos e espanhóis (SOARES, 1999:67).
32
estritamente escolar, restando apenas 7% de ações para a categoria genericamente
denominada comunicação.
Dez anos passados, uma rápida consulta à internet3, recurso de valor incontestável
para pesquisas na atualidade, torna evidentes: a popularização do termo
Educomunicação e a inversão do observado nos anos de 1990, em particular no
Brasil.
Numa velocidade surpreendente, disseminam-se os mais diversos tipos de
execução de projetos e diminuem, na mesma proporção, as investigações teóricas,
especialmente por parte de instituições acadêmicas que muito contribuiriam para o
aprofundamento epistemológico do fenômeno emergente, não tivessem elas
também se voltado para a prática, a exemplo da sociedade civil.
Eis o motivo que justifica este capítulo. Particularmente interessa-nos aqui realizar
um esforço inadiável de aclaramento das concepções de Educação, de
Comunicação e, por conseqüência, de Educomunicação, que embasam uma área
(ou vertente) específica desse campo: a Produção coletiva de comunicação,
doravante por nós também chamada de Educação pelos Meios de Comunicação.
Em outras palavras, a partir da reflexão sobre a nossa ação direta buscamos tornar
explícitas questões como estas: de quê conceito de educação e de comunicação
nos valemos para a produção coletiva de comunicação na perspectiva da
Educomunicação? Por que chamamos o que fazemos de Educomunicação?
“(...) teoria e prática são algo indicotomizável, a reflexão sobre a
ação ressalta a teoria, sem a qual a ação (ou a prática) não é
verdadeira.” (FREIRE, 1992:40)
Servem de inspiração inicial para as nossas reflexões o pensamento e a ação do
filósofo brasileiro, Paulo Freire e do comunicador argentino-uruguaio, Mário Kaplún,
especialmente as relativas às décadas de 1970 e 1980, quando ambos
3
Em 23 de dezembro de 2008, quando digitada a palavra Educomunicação no Google, maior site de
busca da internet, foram encontradas 46 páginas na web, correspondendo a 97 600 citações; 37
páginas em português, o equivalente a 94700 menções ao termo, e 41 páginas no Brasil, totalizando
52.800 citações.
33
desenvolviam, cada um a seu modo, estudos e práticas, respectivamente voltadas
para uma educação de cunho libertador para as camadas populares e para a
formação de receptores mais críticos e participativos.
Não é nossa intenção discorrer sobre a trajetória de nenhum desses dois grandes
pensadores. Queremos apenas destacar, a partir do que pontuamos na ação deles,
o que julgamos importante para este estudo: a necessidade de toda e qualquer ação
dirigida para além de nós mesmos ser acompanhada, até mesmo por questão de
respeito por aqueles a quem é dirigida, de num discurso sobre o próprio fazer,
circunscrito no locus de quem a ação se destina.
“Mas o que é ser teórico? E porque leu e aprendeu alguma teoria,
isso não quer dizer teórico. Isso é ser copiador, e ser papagaio,
papagaio teórico. Eu prefiro fazer a teoria ancorada naquilo que deve
ser, na prática. E a minha prática, obviamente toda prática fica
ancorada numa certa teoria, e onde começa a gente não sabe. Quer
dizer, quando é que eu começo a teorizar? Talvez no útero, ou na
hora de nascer, talvez a gente comece a teorizar, e toda prática é
resultado de uma teorização. Mas essa teorização não pode ser feita
sem uma prática. E a coisa vai nessa relação, portanto, saber de que
tipo de teoria a gente está propondo e de onde vem essa teoria. É
muito importante que se fale de onde vem essa teoria.”
(D’AMBRÓSIO, 1996: 1024 )
A esse esforço (ou essa obrigação) de traduzir com as nossas próprias palavras de
onde vem a teoria de que nos servimos nas produções coletivas de comunicação, na
perspectiva da Educomunicação, assumindo a responsabilidade pelo que isto
significa, nos dispomos neste capítulo.
Ressaltamos que, ao apontar algumas pequenas passagens que relacionam
Comunicação e Educação nos caminhos percorridos por Freire e Kaplún, por
4
Trecho da fala de Ubiratan D’Ambrósio no Seminário de Educação Libertária, realizado em 1994, na
cidade de Florianópolis, Santa Catarina, quando ele diz que convém cada participante fazer a sua
apresentação, pois a trajetória da pessoa revela a teoria com a qual ela se identifica e, por isso,
sustenta na sua prática.
34
extensão, queremos manifestar nossa admiração por todos os que, como eles, não
se movem pelo altruísmo, muito menos por oportunismo ditado por um modismo de
época, mas que generosamente, dedicam suas vidas para a realização de um
sonho: o de que sejamos um povo que opta pela autonomia e pela solidariedade.
Freire e Kaplún assumem explicitamente um compromisso guiado pela vontade de
construção de uma América Latina que se recusa à “domesticação ou invasão
cultural” (FREIRE, 2000a). Por esse motivo, não poderiam ficar alheios aos efeitos
da comunicação sobre a vida dos latinoamericanos e a respeito desse tema se
posicionaram. Ambos concebiam-na como um fenômeno social de estreita relação
com a cultura, atribuindo a esta o sinônimo de ação humana sobre as coisas da
natureza.
Tanto um quanto o outro demonstram saber que a comunicação, desde a sua
origem, se constituiu pela estreita ligação com a noção de “integração da sociedade”
(MATELLART, 1999), do ponto de vista econômico; que se relacionou inicialmente
com a expansão das “redes materiais”, dentre as quais as ferroviárias –
consideradas as grandes propulsoras do progresso, estendendo-se com o tempo às
“redes espirituais”, ligadas às finanças5, e, por fim à “gestão de multidões”6, ou seja,
à necessidade de controle social das “massas” concentradas nas emergentes áreas
urbanas.
Tinham conhecimento de que da metade do século XIX até a segunda guerra
mundial, solidificou-se uma lógica de que o progresso só poderia atingir a periferia
por meio da irradiação pelos valores de um centro (MATELLART, 1999:19), e que
5
É de Claude Saint-Simon (1760-1825) a metáfora que compara a administração das cidades,
nascidas do fluxo de mercadorias e de mão de obra, decorrente da Revolução Industrial, com a de
um “sistema vivo”. Tal qual o sangue circula no organismo, as sociedades-indústria exigiriam
operações (vias de comunicação) que assegurassem a “circulação” do dinheiro e acelerassem o
progresso. Para manter uma “vida unitária”, através de um “sistema” de crédito eficiente, foi preciso
criar as tais redes artificiais (as de comunicação-transporte ou “redes materiais” e as de finanças ou
“redes espirituais”), que desempenhariam uma função organizadora desses novos espaços.
(MATELLLART, obra citada, p.16)
6
De acordo ainda com Mattelart (p.20), porque a “invasão” da população (chamada de “massa”) nas
cidades criou novos comportamentos, colocando em perigo toda a sociedade, foi preciso criar
mecanismos de fiscalização e controle. A partir de 1827, pois, por contribuição de teorias geopolíticas o “espaço territorial” passa a ser considerado a força definidora das relações sociais
mantidas com o Estado, dando origem ao termo “homem médio” (resultante de dados estatísticos),
dali para a frente, servindo de referência para determinar possíveis “patologias” ou desequilíbrios
sociais.
35
essa teoria difusionista ou desenvolvimentista, propagada pelos Estados Unidos, era
a mesma que se instalou nos países do cone sul, calcada na idéia de que as
tecnologias serviam para a resolução de desequilíbrios sociais.
Paulo Freire, em meados dos anos de 19607, quando exilado no Chile, já denunciara
as consequências desse pensamento no momento em que naquele país se
realizava um processo de desenvolvimento de uma possível sociedade agrária
(FREIRE, 1992). Para fazer entender, tanto os males advindos da importação (ou
da permissão à invasão) dessas idéias, quanto para revelar a não neutralidade da
ação de quem as aplica, é que ele propôs uma reflexão sobre o termo extensionista,
assim chamado o trabalho dos agrônomos junto aos camponeses chilenos:
“(...) a ação extensionista envolve, qualquer que seja o setor em que
se realize, a necessidade que sentem aqueles que a fazem, de ir até
a outra parte do mundo, considerada inferior, para, à sua maneira,
normalizá-la. Para fazê-la mais ou menos semelhante a seu mundo.
Daí que, em seu ‘campo associativo’, o termo extensão se encontre
em relação significativa com transmissão, entrega, doação,
messianismo, mecanicismo, invasão cultural, manipulação, etc. E
todos estes termos envolvem ações que, transformando o homem
em quase ‘coisa’, o negam como um ser de transformação do
mundo. Além de negar, como veremos, a formação e a constituição
do conhecimento autênticos. Além de negar a ação e a reflexão
verdadeiras àqueles que são objetos de tais ações8.”
(FREIRE, 1992: 22).
7
A Revolução Cubana, de 1959, de inspiração martiniana (José Martí) e marxista, tornara-se
paradigma para vários movimentos rurais e urbanos de países como Paraguai, Argentina, Brasil,
Chile, Peru e Equador dominados por ditaduras militares, que disseminavam a miséria, a violência e o
cerceamento de liberdade.
8
O autor, nesse momento do texto, vale-se dos conhecimentos linguísticos do genebrino Charles
Bally, discípulo de Saussure (defensor da idéia de que os significados dos termos são circunscritos
num determinada estrutura), sobre “campo associativos”. De acordo com esse conceito haveria uma
rede de associações, baseada em relações muito diversas entre os conceitos como semelhança,
contigüidade e subordinação.
36
De outra parte, com os mesmos propósitos freireanos de contribuir para a
conscientização dos povos latinoamericanos, Kaplún também passou a denunciar as
características da Comunicação Social ou “indústria da comunicação”, como propõe
Bordenave (1982), sob influência de uma teoria funcionalista, mecanicista, formulada
na década de 1940 pelos estadunidenses Lasswell e Shannon (COHN, 1978), num
momento crucial em que os Estados Unidos buscava de todas as formas a
manutenção e fortalecimento do sistema capitalista.
Coloca em prática cursos de “Leitura Crítica” (BORTOLIERO,1996), junto às
camadas pobres da população de países como Peru, Uruguai, Venezuela e
Argentina, como meio de esclarecer-lhes que os empresários da comunicação
(detentores dos meios de transmissão e controladores dos conteúdos das
mensagens), seguem uma fórmula semelhante à lógica matemática9 para atingir
uma única grande meta: motivar a compra de produtos e serviços, de uma maneira
rápida e massiva.
Mario Kaplún não tardaria muito, contudo, à conclusão de que o tom denuncista
dessa proposta não mudaria os hábitos de consumo dos meios por parte da
população pobre. Em vez de alertar sobre os efeitos nocivos dessa comunicação,
passou, então, a desenvolver com os pequenos agricultores, organizados em
sindicatos e cooperativas, uma prática de uso dos meios de comunicação com
finalidade educativa, deslocando-os do papel de receptores para o de também
produtores de comunicação.10
Mais uma vez é preciso ressaltar que o novo encaminhamento da sua proposta
resultou da revisão crítica de seus pressupostos e reafirmou as convicções
ideológicas de seu proponente. O Cassete Fórum se configurou, assim, como um
método, ou se