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REVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Revista ALB 50_finalizada.pmd 1 29/02/2012, 19:52 Revista ALB 50_finalizada.pmd 2 29/02/2012, 19:52 R E V I S TA DA AC A D E M I A DE LETRAS DA BAHIA Setembro de 2011, n. 50 Revista ALB 50_finalizada.pmd 3 ISSN 1518-1766 29/02/2012, 19:52 Copyright © by Academia de Letras da Bahia, 2011 ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Avenida Joana Angélica, 198, Nazaré 40.050-000 – Salvador, Bahia, Brasil Telefax (71) 3321-4308 www.academiadeletrasdabahia.org.br [email protected] Revista Anual de Literatura, Artes e Ideias CONSELHO EDITORIAL Myriam Fraga (Diretora) Aleilton Fonseca Evelina Hoisel Ruy Espinheira Filho Ficha Catalográfica Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 50, set. 2011 Salvador: Academia de Letras da Bahia, 2011. 464 p. Anual INSN 1518-1766 1. Literatura brasileira -- Periódicos – CDU 860.0(05) IMPRESSO NO BRASIL Revista ALB 50_finalizada.pmd 4 29/02/2012, 19:52 Sumário ARTIGOS E ENSAIOS 11 A poesia de Castro Alves: uma construção biográfica? EVELINA HOISEL 25 A Selva – 80 anos depois (1930-2010) WALDIR FREITAS OLIVEIRA 41 O conto e a novela de Xavier Marques ARAMIS RIBEIRO COSTA 57 O biógrafo das criaturas de Jorge Amado LUIS HENRIQUE DIAS TAVARES 63 A influência francesa na Arquitetura e Urbanismo brasileiros PAULO ORMINDO DE AZEVEDO 71 Presença do humanismo militante na poesia de Jacinta Passos FLORISVALDO MATTOS 87 Afrânio Coutinho, centenário: um testemunho de leitura ADEÍTALO MANOEL PINHO 97 A expressão do indizível: Rosa, Meyer-Clason, Wittgenstein ANTONIO BRASILEIRO Revista ALB 50_finalizada.pmd 5 29/02/2012, 19:52 105 Descrença na palavra CARLOS RIBEIRO 119 Mato virgem: um príncipe austríaco em visita a Ilhéus, em 1860 CELINA SCHEINOWITZ 125 Destino, ação e sabedoria na literatura oral do sertão ANTONIO SÁ DA SILVA 141 Dos estreitos limites do internato, fui salvo pelo mar: O Padre Luiz Gonzaga Cabral e Jorge Amado MANOEL DE NOVAES CABRAL 157 Subjetividades traçadas pela linguagem em dialogia: nas relações institucionais e na vida cotidiana ROSA HELENA BLANCO MACHADO 181 Em favor da criação da Academia de Ciências da Bahia ROBERTO FIGUEIRA SANTOS POESIA 191 Condição RUY ESPINHEIRA FILHO 197 Cinco poemas autobiográficos FERNANDO DA ROCHA PERES 201 Romance da volta de Ulisses MYRIAM FRAGA 204 Poemas CYRO DE MATTOS 208 Poemas GLAUCIA LEMOS Revista ALB 50_finalizada.pmd 6 29/02/2012, 19:52 214 Poemas MARIA LÚCIA MARTINS 219 Três bailarinas ALEXANDRE BONAFIM 223 Poemas inéditos MARÍA PUGLIESE FICÇÃO 233 Durango Kid HÉLIO PÓLVORA 243 Sinhá Quequé Lemina UBIRATAN CASTRO DE ARAÚJO 251 As hienas MYRIAM FRAGA 257 Ópera em Viena CONSUELO NOVAIS SAMPAIO DISCURSOS 269 Discurso de posse na Academia de Letras da Bahia PAULO COSTA LIMA 299 Saudação a Paulo Costa Lima EDIVALDO M. BOAVENTURA 309 Discurso de posse JOÃO FALCÃO 327 Saudação ao ingresso de João Falcão na ALB JOACI GÓES Revista ALB 50_finalizada.pmd 7 29/02/2012, 19:52 337 Travessias literárias. Discurso de posse RITA OLIVIERI-GODET 347 Saudação a Rita Olivieri-Godet ALEILTON FONSECA 357 Discurso de posse MARIA BELTRÃO 369 Saudação a Maria Beltrão EDIVALDO M. BOAVENTURA 387 Homenagem a Samuel Celestino GERALDO MACHADO 399 Cláudio Veiga – vida, obra e Academia EDIVALDO M. BOAVENTURA 411 Cláudio Veiga, professor de Francês DENISE LAVALÉE 417 O desempenho da Academia de Letras da Bahia de 2007 a 2011 EDIVALDO M. BOAVENTURA DIVERSOS 435 Efemérides 2010 443 Quadro social da ALB 453 Endereços dos acadêmicos Revista ALB 50_finalizada.pmd 8 29/02/2012, 19:52 Artigos e Ensaios Revista ALB 50_finalizada.pmd 9 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 10 Revista ALB 50_finalizada.pmd 10 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A poesia de Castro Alves: uma construção biográfica? Evelina Hoisel Por que denominamos este ensaio de “A poesia de Castro Alves: uma construção biográfica?” e não “A poesia de Castro Alves: uma confissão biográfica?” Não seria confissão biográfica um título mais apropriado para se falar da lírica de um poeta romântico? Do ponto de vista interpretativo, qual a diferença entre confissão e construção? A poesia de um poeta romântico pressupõe um tom confessional, uma correspondência entre o vivido e o expresso literariamente. Em primeira instância, para esse tipo de poesia, confissão parece ser a palavra mais propícia. Foi considerando a literatura como expressão de um eu, confissão de um eu, que a crítica do final do século 19 elaborou seus protocolos de leitura. Apoiando-se no princípio de causalidade, na transparência entre o vivido e o expresso literariamente, a biografia do escritor foi sempre uma peça importante no jogo analítico: por ser a origem da obra, a explicação do texto estaria na vida do autor. O poeta romântico parece confirmar essa relação a partir de um projeto de personalização que acentua a unidade entre poesia e pessoa empírica, ao fazer da lírica de confissão um diário de situações particulares do poeta-autor. 11 Revista ALB 50_finalizada.pmd 11 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A palavra construção, por sua vez, parece mais propícia para refletirmos sobre a modernidade, sobre a lírica dissonante e sobre a despersonalização do poeta, rompendo com a unidade entre poesia e pessoa empírica. Os poetas da modernidade, desde Mallarmé, Baudelaire, Rimbaud, Valéry, Poe, afirmam a vontade da forma sobre a vontade da expressão, efetivando aquilo que Hugo Friederich (1978, p. 40) denomina de poesia como “construção arquitetônica”. Assim, voltamos à nossa pergunta inicial: construção biográfica não seria mais apropriada para definir a lírica moderna do que a lírica de um poeta romântico dos mais exacerbados, como é Castro Alves? Construção biográfica, entretanto, situa o sujeito que interpreta, caracteriza uma postura analítica, estabelece o lugar daquele que olha e recorta o tecido textual a partir de determinados instrumentos interpretativos do seu tempo. Mas estes instrumentos não estão dissociados do objeto de investigação. Aquilo que o intérprete lê, ele encontra no texto; é ele que fornece os elementos direcionadores da sua própria decodificação. Desse modo, se falamos de construção biográfica em relação à poesia de Castro Alves é porque o projeto de uma lírica confessional, como vigorava na segunda metade do século 19, não é totalmente cumprido pelo poeta; desloca-se. Mesmo em um escritor romântico, podemos perceber o jogo entre confissão e construção, o que nos autoriza a falar da lírica de Castro Alves como uma construção biográfica ou autobiográfica. Outra questão que se impõe aqui diz respeito à necessidade de se elucidar o conceito de biografia, vez que não estamos usando esta terminologia em seu sentido tradicional, através do qual se constituiu um determinado gênero historiográfico e literário. No contexto desta abordagem, recorremos às nossas reflexões que configuram a biografia como traço característico da escrita literária. (HOISEL, 2006). Nessa perspectiva, não a consideramos apenas como uma tipologia, que adota determinados 12 Revista ALB 50_finalizada.pmd 12 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 procedimentos de estruturação, submetendo-se a critérios de veracidade e de autenticidade, de acordo com a concepção em vigor nos estudos literários do final do século 19 e primeira metade do século 20. Aqui, a escrita biográfica é resultante das marcas de um sujeito que se inscrevem naquilo que ele produz. Os pressupostos desta categoria estão na concepção moderna da linguagem como cenário no qual forças antagônicas imprimem suas marcas e podem ser apreendidas, lidas, na inscrição dos seus traços. Definir biografia implica ainda em reconfigurar a noção de drama. Se biografia não é uma tipologia historiográfica, drama não se estabelece apenas como uma das formas literárias, podendo ser compreendido como uma categoria mais ampla que atravessa a constituição da própria linguagem, onde forças atuam e acionam a produção dos signos, lugar de encenações do sujeito. (HOISEL, 2006). A modernidade acentua esta dramatização que se realiza através da linguagem, independentemente de um período histórico. Ela está na escrita de Sófocles, de Camões, de Shakespeare, de Fernando Pessoa. Entretanto, é em Pessoa, como poeta da modernidade, que os limites da linguagem transbordam, delineando o perfil de um sujeito que se dispersa e se pluraliza. Descentra-se, no descentramento dos signos que enformam o seu texto. O escritor deixa seus rastros (as marcas que traçam o seu estilo) no significante-texto. A escrita literária é, então, por excelência, vida grafada dramaticamente no palco da linguagem. Experimentação agônica, e até trágica, dos limites do sujeito e da linguagem, a escrita literária se apropria dos referenciais, reencenando-os no ato da produção, fazendo-os aparecer na opacidade do desempenho linguístico de cada palavra. A escrita representa, portanto, um pacto biográfico, ou autobiográfico, independente de explicitar os vínculos que afirmam a identidade entre autor-narrador-personagem, como quer Philippe Lejeune, em seu consagrado livro O pacto autobiográfico (2008). O pacto autobiográfico, segundo Lejeune, é a afirmação 13 Revista ALB 50_finalizada.pmd 13 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 no texto dessa identidade, enviando, em última instância, ao nome do autor na capa. Em contraposição ao pacto autobiográfico, Lejeune define o “pacto romanesco” a partir de dois aspectos: a prática patente da não identidade: autor e personagem não possuem o mesmo nome; o testemunho da ficcionalidade; em geral, é o subtítulo “romance” que preenche esta função. Ampliando os limites desse pacto autobiográfico e procurando recuperá-lo pela sua fecundidade enquanto expressão terminológica, podemos afirmar que ele sustenta a produção da escrita literária e da leitura poética, e prescinde de qualquer identidade aparente – como a do nome próprio – entre autor, narrador e personagem. Essa identidade se estabelece a partir de um vínculo subjacente à produção dos signos que articulam a escrita e autenticam uma relação inseparável entre o sujeito e a linguagem, o sujeito e a palavra: ou seja, o sujeito tornado signo. Nesse sentido, os elementos factuais são apenas indícios capazes de convidar o leitor a desentranhar o significado de uma das vertentes da escrita, pois não há sentido fora dos signos, não há referente que, para ser representado, não passe pelo crivo da linguagem e não seja incorporado pela textura sígnica, onde se assinalam uma ideologia, uma ética, uma estética, um drama e uma biografia. O factual, a história vivida na linearidade dos acontecimentos, é apenas um fragmento de uma história mais ampla, não aparente. E esta história não é recuperada pela biografia, enquanto gênero historiográfico, configurado dentro da tradição literária herdeira das concepções do século 19; na ânsia de apreensão do acontecido, ela registra uma parcela da história do sujeito: o nível do acontecido. A escrita biográfica concebida na contemporaneidade situa-se no nível das possibilidades não acontecidas da história de um sujeito. Nos textos de Castro Alves, o projeto de uma poesia como construção biográfica – vida grafada – é percebido desde “O livro e a América” (ALVES, 1960, p.76-78), que traça um itinerário histórico para a poesia, explicitando a sua função de eternizar um povo: 14 Revista ALB 50_finalizada.pmd 14 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n’alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar. [...] Bravo! a quem salva o futuro Fecundando a multidão!... Num poema amortalhada Nunca morre uma nação. (p.78) Destacam-se, neste fragmento, algumas palavras significativas dessa concepção da literatura como vida que pulsa – ainda que aparentemente inerte – no espaço em branco do livro. Palavras como semeia, germe, fecundando dizem desse movimento que se efetiva na escrita enquanto vida grafada, isto é, vida que se eterniza. Castro Alves tinha consciência do poder que têm os signos de enlaçar a vida, perenizar o sujeito, consagrá-lo na sua aventura existencial, registar e reconstituir a história individual e coletiva. Talvez por isso, ao intuir a proximidade da morte, ele recorreu à literatura, fecundando cada palavra, inseminando de vida o gráfico da escrita para eternizar-se e eternizar sua nação. A repercussão desse projeto na obra de Castro Alves é bastante ampla, pois, em “O livro e a América” já se anuncia o movimento pendular que caracteriza a literatura: partindo da máxima subjetivação, os signos que traduzem valores morais, históricos, sociais, artísticos de um sujeito – o poeta enquanto produtor de signos – define-se também o percurso de um sujeito, independente de uma época ou de um espaço geográfico específicos. Nesse sentido, os versos “Fecundando a multidão!... / Num poema amortalhada / Nunca morre uma nação” têm uma conotação ampla, pois não definem a poesia apenas do ponto de vista de uma paidéia civilizacional; traduzem a capacidade que têm os signos 15 Revista ALB 50_finalizada.pmd 15 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 poéticos de acolher a vida nas suas diversas nuances, com os seus conflitos e os seus valores, individuais e coletivos. Na lírica de Castro Alves, a biografia do sujeito poético elaborase em uma situação dialógica, em que o eu lírico assume diversas faces: é D. Juan, Tasso, Romeu, do ponto de vista da lírica amorosa; torna-se nômade, forasteiro, é Ahasverus, do ponto de vista da construção do sujeito poético como ser desfiliado e errante. A imagem do poeta romântico ocupa diversos espaços – como o lugar da intimidade amorosa que o enrosca “num laço de fita” (p.84-85), ou como o lugar que ocupa na praça pública, onde o povo se torna força propulsora da atividade criadora, pelo desejo obsessivo que tem o eu lírico de fazer sua inserção no social e no histórico. O espaço dialógico que o eu lírico atravessa, dramatizando sua história, mobiliza diferentes cenários, distintas épocas, múltiplas máscaras: autografar-se é também grafar o outro. Assim, pela biografia do outro, o sujeito poético pode também autografar-se. Castro Alves apropria-se constantemente de personagens literários, míticos, históricos, e, através desse processo de apropriação, pretende situar-se no plano da intemporalidade e da universalidade, fazendo transbordar os limites temporais de sua escrita. Ao traçar o perfil do poeta – um dos fios da tessitura de sua lírica, encontrado em textos como “Ahasverus e o gênio” (p.86-87), “Mocidade e morte”(p.88-90), “Poesia e mendicidade”(129-132), “A Luís”(159-160) – Castro Alves reafirma arquétipos que são atualizados pelo processo intertextual (portanto dialógico) tão constante em sua obra. Através da recorrência a figuras míticas, históricas e literárias, estabelece uma linhagem à qual se filia. Nesse movimento, constrói sua genealogia, sua estirpe, registrando seus parentes e contraparentes. Ainda no que se refere a este processo de construção mediatizada pela cena dialógica em que o eu lírico constitui a sua identidade através do outro, recorremos à lírica amorosa do poeta onde podemos flagrar uma pluralidade de exemplos desse movimento 16 Revista ALB 50_finalizada.pmd 16 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 migratório. O diálogo entre particularidade e universalidade se acentua à medida que a história do eu já está pré-escrita na história do outro, que se atualiza no presente lírico, superpondo-se, assim, temporalidades diversas e personagens distintas. Na lírica amorosa de Castro Alves, tanto o amante quanto a amada submetem-se a esse processo de construção. O poema “Boa-noite” (p.122-123), por exemplo, apropria-se da cena amorosa de Romeu e Julieta, de W. Shakespeare, e o objeto do desejo erótico vai sendo gradativamente substituído, através da superposição de nomes: Maria-Julieta-Consuelo. Esta técnica de representação é interessante porque fornece diversos indícios autobiográficos. Inicialmente, revela uma concepção de sujeito fragmentado, múltiplo, capaz de assumir diversas máscaras. E cada uma dessas máscaras contorna o perfil de um personagem que busca afirmar uma identidade. Esta, todavia, só pode ser demarcada transitoriamente, no universo da linguagem: é nela que o personagem se reconhece na sua pluralidade. Por outro lado, este processo explicita que, na demarcação dessa identidade, o desvio pelo espaço da subjetividade do outro é imprescindível para o sujeito reconhecer-se. O outro é o espelho no qual eu/nós nos reconhecemos; não na sua superfície lisa, mas na sua configuração labiríntica e imponderável. Na tensão dialógica que aqui se recupera (a do poema “Boa noite”), encontrase um traço importante da biografia desse eu lírico que remete explicitamente para uma característica da biografia do poeta Castro Alves: a sua condição de leitor. Leitor voraz, minucioso, atento, que faz questão de enxertar no texto que cria os resíduos de sua atividade leitora. Onde estão as leituras de Castro Alves? Que livros leu? Em que línguas leu? As diversas epígrafes, personagens, temas, imagens, sonoridades, ritmos de outros textos – literários ou não literários – estão na poesia de Castro Alves e fornecem dados efetivamente importantes do ponto de vista de sua biografia ficcional e existencial. É desses aparentes rastros de sua atividade leitora que 17 Revista ALB 50_finalizada.pmd 17 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 podemos erigir o perfil de Castro Alves como leitor voraz, pois, o que são as epígrafes, os nomes de personagens e temas literários presentes na sua escrita, senão vestígios, ruínas dessas diversas leituras inglesas, francesas, espanholas etc? A literatura como biografia se faz através de indícios e de ruínas. São elas que fecundam, que fazem germinar outros signos, dando origem a outros textos. O processo de constituição do eu pela mediação do outro, através de personagens já inscritas na tradição literária, mítica, histórica etc. acentua os signos da supremacia de um eu que muitas vezes são encontrados na poesia de Castro Alves: seu projeto de consagração histórica, através do qual queria habitar o panteão dos gênios, consagrar-se, glorificarse. Tais marcas são frequentes na poesia desse poeta baiano e revelam biograficamente o escritor romântico que os enuncia. O projeto de autoconsagração histórica passa pelo veio da intertextualidade, do distanciamento histórico, identificando-se simbolicamente a um personagem já consagrado pela tradição. É este traço que lhe dá universalidade e acena também para a possibilidade do leitor autografar-se através dos seus textos. Essa possibilidade provém do fato de que, como define a psicanálise ou a antropologia, a estrutura do inconsciente, assim como a estrutura dos mitos, pode ser vista como um significante vazio a ser interminavelmente atualizado por novos significados de caráter individual e universal. Cada leitor pode situar-se no espaço literário e vivenciar, na diferença, a experiência do outro. E esta vivência na diferença é também uma vivência suplementar, porque confere sentido à vida factualmente vivida, estabelecendo-se ainda como oportunidade de decifração e conhecimento de si. Nesse sentido, pode-se pensar a função vivificante da literatura enquanto biografia. Ela funda um porvir, projeto arduamente perseguido por Castro Alves, do ponto de vista individual e coletivo. É a regeneração, a revitalização, a ressurreição que fundamentam e sustentam a escrita mobilizando os signos poéticos. Castro Alves conhecia essa função da literatura que, 18 Revista ALB 50_finalizada.pmd 18 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 nos seus textos, aparece constituindo uma utopia individual e coletiva. O seu projeto libertário afirma essa oportunidade de salvação, regeneração, ressurreição, que se realiza através da poesia. E, mais uma vez, podemos entender sua pulsão desmedida, erótica, que se manifesta através do ato criador. Ao morrer, aos vinte e quatro anos, Castro Alves deixou um conjunto de textos que nem todos os escritores que tiveram um transcurso de vida maior conseguiram elaborar. Pois ele conhecia essa função fabuladora da literatura de capturar a vida, entrelaçada intemporalmente na constelação de seus textos, criando parentes e contraparentes, recriando uma estirpe de poetas com os quais pode também satisfazer sua pulsão dialógica, entabular conversa com o outro. As epígrafes que aparecem em seus poemas, as citações literárias, míticas, bíblicas que se disseminam e inseminam seus poemas revelam esse desejo de vivificação e de construção de uma genealogia, criando uma família, uma nação de poetas, ofertando à humanidade, a cada ser, em cada época, a mim, a nós, uma possibilidade de sermos nômades, forasteiros, errantes, voluptuosos, moribundos, amorosos, libertários, utópicos, românticos e universais. Ao refletirmos sobre o projeto biográfico da poesia de Castro Alves, elegemos um dos seus poemas antológicos, “Mocidade e morte” (p.88-90), no sentido de observar como os traços dispersos nos diversos textos nele se aglomeram, recuperando-se através da sua leitura, os múltiplos e variados elementos que configuram essa poética biográfica. A escolha desse poema é proposital, pois ele sintetiza de maneira exemplar o conflito existencial vivido e experienciado, de maneira trágica, no corpo físico do poeta. Esse texto, por si só, afirma uma via crucis que os dados factuais do poeta baiano apenas confirmam, explicitando em que nível efetivo essa realidade foi experimentada. Mas, de alguma forma, a sua leitura prescinde desses dados factuais, construindo-se de maneira autônoma como uma realidade linguística que fala e que se ilumina pelo movimento dos seus signos. 19 Revista ALB 50_finalizada.pmd 19 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 “Mocidade e morte” constrói-se apelando para um processo de dramatização do sujeito lírico, instalando uma pluralidade de vozes conflituosas, acionadas por forças antagônicas: vida (= mocidade) versus morte. No embate das palavras que compõem o texto, circulam vozes que definem a condição poético-existencial do sujeito. A voz da utopia, do desejo, do sonho, da volúpia, do amor, da glória é enunciada principalmente nas três primeiras estrofes e se contrapõe à voz do sofrimento, da dor, da despedida, da morte que percorre as demais estrofes. Todas as estrofes são intercaladas por um refrão e cada refrão representa uma espécie de chamamento – sarcástico, zombateiro – que anuncia cruamente a condição trágica do eu lírico, sua dilaceração diante da presença da morte. A perspectiva dialógica é percebida desde o título e expõe um dos temas da poética de Castro Alves, espraiando-se através de cada estrofe e de cada refrão, provocando uma cisão no eu lírico. O caráter dramático do poema resulta da perda da unicidade desse sujeito, perpassado por vozes distintas, projetando o perfil de um ser dilacerado pela experiência de seus próprios limites, e debatendo-se entre forças opostas: vida e morte, principio do prazer e principio de realidade. O desejo erótico, vital, inscrito na primeira estrofe, sustentado pelos signos de utopia libertária do poeta romântico: Oh! eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minh’alma adejar pelo infinito, Qual branca vela n’amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... – Àrabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. (p.88) transforma-se, na última estrofe, em uma cena de despedida 20 Revista ALB 50_finalizada.pmd 20 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 e de aceitação da morte, compassadamente anunciada pela voz funesta que ecoa desde o primeiro refrão: Adeus, pálida amante dos meus sonhos! Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos! Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga Os prantos do meu pai nos teus cabelos. Fôra louco esperar! Fria rajada Sinto que do viver me extingue a lampa... Resta-me agora por futuro – a terra, Por glória – nada por amor – a campa. (p.90) Assinalamos, desde logo, que o percurso desse eu através dos signos termina constituindo-se em monólogo mediante o qual o eu demarca um território existencial. A perspectiva da morte atravessa dramaticamente o texto: inicialmente é um aviso funesto (primeiro refrão): “Mas uma voz responde-me sombria: / Terás o sono sob a lájea fria” (p.88); depois é uma voz sarcástica e amedrontadora (segundo refrão): “E a mesma voz repete-me terrível,/Com gargalhar sarcástico: impossível!” (p. 88); posteriormente, introduzem-se os signos da realidade funerária: “E a mesma voz repete funerária: – / Teu Panteon – a pedra mortuária” (p.89). Contudo, paradoxalmente, o que alicerça a construção do poema “Mocidade e morte” é a vida. A voz lírica – que é também trágica – utiliza-se de diversos recursos cênicos para dramatizar a morte, apelando para uma concretude imagística capaz de dar visibilidade à morte prevista e acentuando o pathos: pedra mortuária, lousa, sepulcro, cipreste. Todos esses elementos são indícios de uma realidade profundamente pressentida e sentida pelo eu lírico. A experiência de uma via crucis acentua-se quando não apenas o eu se submete a uma experiência dos limites, mas tempo e espaço também registram a premência da hora fatídica, criando-se uma tensão que diz de uma agônica realidade vivenciada pelo eu. 21 Revista ALB 50_finalizada.pmd 21 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito Um mal terrível me devora a vida: Triste Ahasverus, que no fim da estrada, Só tem por braços uma cruz erguida. Sou o cipreste, quìnda mesmo flórido, Sombra de morte no ramal encerra! Vivo – que vaga sobre o chão da morte, Morto – entre os vivos a vagar na terra. (p.89) “Mocidade e morte” revela um encenador bastante habilidoso no que se refere à montagem dos elementos deste cenário de despedida e morte, que sabe criar tensão, suscitar compaixão, acentuar o pathos por meio de cada imagem que cria. O título do poema aponta para esse aspecto. A palavra mocidade introduz o traço gerador da dicção exacerbada desse sujeito que declara: “Eu sinto em mim o borbulhar do gênio”(p.88), declaração que tem, entre outras coisas, um efeito retórico. O projeto utópico desse sujeito desmorona pela premência da morte como uma realidade antevista e materializada através da contundência das imagens utilizadas. Entretanto, a presentificação cênica do espaço-tempo da morte é uma maneira do eu lírico demarcar programaticamente para si a sacralização, a glória, que se apresentam como um fio importante da tessitura da poética biográfica de Castro Alves. A representação dessa realidade que, em se tratando de um poeta romântico, foi vivenciada agonicamente em seu corpo físico, efetua-se no sentido de encontrar um território distinto daquele que a voz espectral da morte lhe anuncia, pois já vimos como para Castro Alves a poesia é um espaço de salvação e de utopia: isto é, de vida e de glória. Utopia não como algo irrealizável ou a se realizar apenas em um tempo prospectivo, mas no sentido em que se edifica a arquitetura poética: o aparecimento de uma nova ordem no universo linguístico; uma utopia que se torna realidade 22 Revista ALB 50_finalizada.pmd 22 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 em cada constelação de signos que aparece e pode ser experienciada no aqui e agora de cada leitura, e de cada leitor. É este conhecimento, intuído ou claramente reconhecido pelos poetas, que impulsiona a construção de uma nova realidade no universo da linguagem. Como excelente romântico, mas também como poeta maior, universal e intemporal, Castro Alves sabe que a literatura é um espaço que está aquém e além da morte, é onde o sujeito desterritorializado pode territorializar-se, eternizando-se. Pois literatura é isso: vida grafada na intemporalidade da história individual e coletiva. É por isso que, em “O fantasma e a canção” (p.95-96), poema que registra o périplo do Rei Lear na sua tragédia existencial, o sujeito lírico convoca o Rei deposto e clama: – Entra, pois! Sombra exilada, Entra! O verso – é uma pousada Aos reis que perdidos vão. A estrofe – é púrpura extrema, Último trono – é o poema! Último asilo – a Canção!... (p.97) Como biografia, a literatura constrói-se sobre as ruínas da vida vivida e com os indícios das potencialidades não acontecidas na história do sujeito. A vida que poderia ter sido e não foi deixa seus rastros na linguagem poética, compondo uma história que não seria apreendida na sua multiplicidade se não estivesse enlaçada nos signos poéticos. “Adejar pelo infinito, / Qual branca vela na amplidão dos mares” (p.88), como quer Castro Alves, realiza-se na medida em que um projeto utópico concretiza-se na encarnação da palavra: vivificar-se, perenizar-se nas palavras, é esta a função da poesia que se faz de palavras. E “o que é para ser, são as palavras”, como afirma João Guimarães Rosa, outro viajante do infinito. 23 Revista ALB 50_finalizada.pmd 23 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 REFERÊNCIAS ALVES, Castro. Obra Completa. (Org. Eugênio Gomes) Rio de Janeiro: Aguilar, 1960. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1978. HOISEL, Evelina. Grande sertão: veredas – uma escritura biográfica. Salvador: Assembleia Legislativa do Estado da Bahia/ Academia de Letras da Bahia, 2006. LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico – De Rousseau à internet. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. Evelina Hoisel é ensaísta, pesquisadora do CNPq, Professora Titular de Teoria da Literatura na Universidade Federal da Bahia; tem diversos artigos e livros publicados. Coorganizou, com Cássia Lopes, o livro de ensaios Poesia e memória: a poética de Myriam Fraga (Salvador: EDUFBA, 2011).Desde 2005 ocupa a Cadeira nº 34 da ALB. 24 Revista ALB 50_finalizada.pmd 24 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A Selva - 80 anos depois (1930-2010) Waldir Freitas Oliveira 80 anos depois de sua publicação, em maio de 1930, editado no Porto, em Portugal, A Selva, romance escrito por Ferreira de Castro, entre 9 de abril e 29 de novembro de 1929, continua a ser uma das mais conhecidas obras literárias do mundo, traduzida que foi para mais de uma dezena de línguas estrangeiras. Persiste, contudo, a dificuldade de classificá-lo em qualquer categoria de obra de ficção. A incapacidade dos esquemas até hoje construídos com tal finalidade, torna-se evidente, uma vez mantido o desejo de colocar-se à disposição dos interessados, escaninhos encabeçados por denominações definidas, nos quais possamos encaixar trabalhos como este, pouco fáceis de receber tarjetas de identificação; situação que parece demonstrar, para desgosto de muitos, não haver necessidade de assim proceder-se, insistindo em agir como estando a rotular mercadorias oferecidas a consumidores privilegiados – no caso, os leitores. A Selva é, sem dúvida, um romance atípico, escrito por um autor singular, vivendo um tempo estranho, do qual participou somente por estar vivo, em um certo lugar, numa determinada época, e desejar tornar-se escritor; havendo-o redigido quinze 25 Revista ALB 50_finalizada.pmd 25 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 anos depois do seu regresso a Portugal, onde chegou, com apenas dezesseis anos, a 28 de outubro de 1914, de regresso do Brasil, vindo do seringal Paraíso, situado às margens do rio Madeira, no Amazonas, onde vivera cerca de quatro anos. Não foi A Selva, seu primeiro romance – outros menores em qualidade, foram por ele publicados, entre 1921 e 1928, sendo este último ano, o da edição de Emigrantes, obra assinalada pela crítica literária, como o do início definitivo de sua carreira de escritor, tendo sido, por sinal, logo a seguir, em 1930, traduzido para o espanhol e publicado em Madrid. Quanto a A Selva, esforçam-se alguns historiadores da literatura portuguesa para definir a categoria onde possa ele ser incluído – romance social (como se todos os romances não o fossem!); romance neo-realista (o chamado neo-realismo somente iria surgir em Portugal, nos inícios da década dos anos 40); romance documentário (estranha denominação, desde que ficção e realidade são posições que se opõem, jamais podendo, a nosso ver, ser reunidas a fim de caracterizar um trabalho literário). Passou, no entanto, A Selva, em tempos mais próximos, em razão do surgimento de um mais apurado senso de análise e observação, a ser considerado um exemplo de romance de tensão crítica, categoria criada por Alfredo Bosi, que o considerou possuidor de uma essência distinta da dos romances de tensão mínima, dos romances de tensão interiorizada e dos romances de tensão transfigurada, série de termos categóricos criados por esse professor da Universidade de São Paulo, com referência expressa a quem tomou por empréstimo, sua idealização, distintos, vale frisar, dos criados por Lucien Goldman que propusera a existência de três tipos de romance – “o romance do idealismo abstrato, caracterizado pela atividade do herói e por sua consciência demasiado estreita em relação à complexidade do mundo”; “o romance psicológico, orientado para a análise da vida interior, caracterizado pela passividade do herói e sua consciência demasiado vasta para contentar-se com que o mundo da convenção lhe pode propiciar”, 26 Revista ALB 50_finalizada.pmd 26 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 e, finalmente, “o romance educativo, optando por uma auto-limitação que, embora constitua uma renúncia à pesquisa problemática, não é, entretanto, uma aceitação do mundo convencional , nem um abandono da escala implícita de valores” – havendo os termos constantes desse seu esquema sido criados, como vimos, tomando ele por base as categorias apresentadas em Pour une Sociologie du Roman, por Lucien Goldman (Paris, Gallimard, 1964).1 Seriam romances de tensão crítica, segundo Alfredo Bosi, aqueles nos quais “o herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da natureza e do meio social”, formulando ou não “seu mal-estar permanente”, baseando-se “em ideologias explícitas”.2 O que pode parecer ter sido o caso de Alberto, personagem principal de A Selva, cujo “mal-estar”, como lhe foi atribuído pelo autor, fora o resultado da imensa pressão sobre ele exercida por uma floresta, tão poderosa que se tornava capaz de anular o homem e transformá-lo em algo parecido a um simples animal, com seus atos comandados mais pelos instintos que pela razão. E se as palavras finais do romance, pronunciadas por Tiago, vale frisar, o único personagem negro do romance, que decidiu atear fogo ao barracão onde se encontrava o dono do seringal, Juca Tristão, sem lhe haver deixado qualquer possibilidade de dali escapar, por lhe haver trancado a porta por fora, revelam, sem dúvida, no contexto do romance, o amor pela liberdade e a repulsa à escravidão: – “Eu sei o que é ser escravo. (...) Branco não sabe o que é liberdade, como negro velho. Eu é que sei!” Acrescentando – “Já não há escravatura! Negro é livre! O homem é livre!” tais palavras não possuem, a nosso ver, vigor suficiente para caracterizar uma ideologia; e supomos terem sido colocadas no texto, para dar aos seus leitores, a impressão, na idealização do autor, de un grand final para o seu romance – a de um imenso incêndio provocado por um negro que se mantivera, contudo, até aquele momento, praticamente ausente do desenvolvimento da estória – visando de obter, através desses elementos de construção, a própria absolvição por sua incômoda condescendência 27 Revista ALB 50_finalizada.pmd 27 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 para com o erro e a injustiça cometidos pelos brancos na Amazônia; desde que seria impossível para os leitores, absolver Alberto, seu principal personagem, dúbio em suas ideias, praticamente perdido entre suas antigas convicções monárquicas e as novas ideias pregadas pelos republicanos portugueses; desses mostrando-se descrente, ao ponto de considerá-los como “retóricos perniciosos” que “ludibriavam” a população mais humilde, acenando-lhe com a promessa “duma fraternidade e dum bem-estar que não lhes davam nem lhes podiam dar”; havendo chegado a declarar, em certo momento, desejar perguntar-lhes “se era com aquela humanidade primária que eles pretendiam restaurar o mundo”; mostrando-se, desse modo, em nossa opinião, protegido por “sua epiderme de civilizado”, integrado, plenamente, ao esquema que permitia aos colonizadores, ali manter sua dominação sobre a terra e os homens por eles conduzidos para os seringais, onde deveriam permanecer praticamente reduzidos à condição de escravos.3 Não pomos em dúvida, contudo, o fato relevante de o exato conhecimento que tiveram os brasileiros do que se passara na Amazônia, durante o ciclo da borracha, lhes haver sido revelado por Ferreira de Castro, nesse seu romance, conforme afirmou Humberto de Campos, ao comentar “A Selva”, no artigo intitulado “Um romance amazônico”; destacando a circunstância, reconhecida por Ferreira de Castro, de naquela floresta, não ser, em verdade, o exotismo que deveria interessar à literatura, mas sim – “o homem, e, particularmente, o seringueiro e a sua tragédia”.4 Este caráter de denúncia, fraca em sua análise, forte, contudo, no realismo da sua narrativa, teria sido, pois, o mérito maior de A Selva: – a exposição ao público, com todos os detalhes, do drama vivido pelos seringueiros chegados do Ceará e do Maranhão, atraídos pela falsa esperança de poderem, na Amazônia, livrar-se da pobreza, enriquecer e regressar, um dia, ostentando, quando do seu retorno, essa riqueza, frente aos de sua terra natal; vendo28 Revista ALB 50_finalizada.pmd 28 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 se, no entanto, frustrados, ao se sentirem forçados a conviver com o cruel desengano que a todos envolvia na selva que “dominava tudo”; à qual, “o homem, simples viandante no flanco do enigma, entregava a sua vida.” 5 Tornam-se, contudo, valiosos, em termos literários, muitos trechos do romance, entre eles, o da descrição feita da floresta, em cujo seio mostrou-se Ferreira de Castro capaz de escutar, de modo estranho, paradoxal e poético: “um silêncio sinfônico, feito de milhões de gorjeios longínquos, que se casavam ao murmúrio extremamente suave da folhagem, tão suave que dir-se-ia estar a selva em êxtase”.6 Silêncio este, singularmente rumoroso, sobre o qual voltaria a falar, afirmando que iria afinal tornar-se música, surgindo mais audível – “agora mais latente, mais vivo e alvoroçante”; enquanto na mata, somente a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios e igarapés, quebrava, ao lado das clareiras, o panorama uniforme de uma paisagem caracterizada, de modo enigmático e igualmente paradoxal, tanto por sua uniformidade como por sua variedade; posições opostas, que ali, no entanto, se completavam, proporcionando à floresta, nessa sua uniformidade, uma soberba visão de “variedade assombrosa, que a si própria impunha uma única expressão, atropelando-se, engalfinhando-se em raiva surda e evidente”.6 E a descrição que fez, a seguir, dessa mata, é, sem dúvida, uma das mais belas dentre as que, algum dia, foram escritas, a personalizar a floresta e a dar-lhe uma vida mágica, dela havendo dito que: “... de bárbara grandiosidade, dava uma só forte impressão de beleza: a inicial, a que nunca mais se esquecia e nunca mais se voltava a sentir. Solo de constantes parturejamentos, úmido, fantástico na teima de criar, a sua cabeleira, contemplada por fora, sugeria vida liberta num mundo virgem, ainda não tocado pelos conceitos humanos: mas vista por dentro, escravizava e 29 Revista ALB 50_finalizada.pmd 29 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 fazia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar de expressão, revelando as suas pesadas atitudes”.7 Não se poderá, no entanto, esquecer que, antes dele, alguém descreveu, com igual vigor e com o mesmo ar de insatisfação declarada, as circunstâncias envolvendo a realidade trágica da vida dos seringueiros na mata amazônica. Como Ferreira de Castro, português de nascimento, esse autor foi um estrangeiro em relação ao Brasil – o colombiano José Eustacio Rivera, autor da novela La Vorágine, publicada em 1924, cuja ação se desenvolve nas florestas do seu país de origem8 ; havendo quem a considere a mais bela novela da literatura latino-americana; dela não havendo, contudo, Ferreira de Castro, de modo provável, chegado a tomar conhecimento. Algo importante estabelece a diferença entre La Vorágine e A Selva. Em A Selva, o seu autor viveu, realmente, as situações do seu principal personagem, Alberto. Ferreira de Castro foi, de fato, um seringueiro; enquanto José Eustasio Rivera foi tão somente um viajante que colheu, tanto quanto lhe foi possível, informações a respeito das penosas circunstâncias que envolviam a vida dos seringueiros nas matas colombianas, quando as percorreu, na região de Guaínia, província situada nas proximidades do alto curso do rio Negro, afluente brasileiro do Amazonas, integrando a Comissão do Governo colombiano encarregada dos trabalhos de demarcação das fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela. Não chegaria La Vorágine, contudo, a alcançar os mesmos índices de aprovação com os quais os críticos literários da época, anos depois, iriam aceitar A Selva, publicada em 1930. Podendo isto ser comprovado pela pronta aparição, a partir da sua primeira edição, das sucessivas de A Selva, em línguas estrangeiras, numa sequência que se iniciou com a da sua tradução para o alemão, em 1933, para o inglês, com edições nos Estados Unidos, no Canadá e na Inglaterra, e para o italiano, em 1934; e para o francês, em 1938; a essas edições havendo se seguido outras, em espanhol, 30 Revista ALB 50_finalizada.pmd 30 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 romeno, checo, croata, holandês, sueco, norueguês, búlgaro e eslovaco, tornando-se o romance de Ferreira de Castro uma das obras mais traduzidas em todo o mundo.9 Voltemos, contudo, a falar de La Vorágine, tanto como a respeito do seu autor, que somente viveu 40 anos, nascido que foi em 1888, em San Marco (hoje denominada Rivera, em sua homenagem), havendo falecido em New York, em 1928, para tentar estabelecer laços que aproximem essas duas obras pioneiras no trato de temas relacionados com a árdua e ingrata tarefa de extração da borracha nas matas tropicais do Brasil e da Colômbia, em princípios do século passado. La Vorágine foi editada cinco vezes, entre 1924 e 1928 – a primeira vez, em novembro de 1924, na Colômbia, pela Editorial Cromos, a segunda e a terceira, em 1925 e 1926, ainda na Colômbia, pela Editorial Minerva; havendo a sua quarta edição sido, em verdade, uma reimpressão da terceira, desde que em pouco dela difere. Havendo, a seguir, surgido, em 1928 as edições de New York, pucblicadas pela Editorial Andes, identificadas como sendo a quinta e a sexta, e, a seguir, a sétima, a oitava e a nona, em 1929; todas elas, contudo, a partir da sexta, devendo ser consideradas reimpressões da quinta, a que foi revista e corrigida pelo próprio autor. 10 La Vorágine continuou, no entanto, a ser traduzida, após a morte de José Eustasio Rivera, em 1928, em vários países do mundo, alcançando o número de suas edições em países estrangeiros, quase o mesmo número das de A Selva, havendo surgido em alemão e francês, em 1934; em inglês e russo, em 1935; e, nas décadas dos anos 40 e 50, em búlgaro, checo, esloveno, holandês, romeno, italiano e chinês; e, finalmente, em português, no Brasil, em 1982. 11 Da edição de que nos valemos para a releitura do romance, publicada em 2006, sendo esta, provavelmente, a mais recente, consta, organizada por Montserrat Ordoñez, uma coletânea de textos expondo um considerável acervo de informações, tanto 31 Revista ALB 50_finalizada.pmd 31 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 sobre José Eustasio Rivera como acerca do seu romance; da qual destacamos a secção apresentada sob o título Historia de la crítica de ´La Vorágine’”, cuja leitura se torna extremamente útil para conduzir-nos à compreensão da novela. Nele, a conclusão dos seus autores indica que “como pocas obras, La vorágine se presta a estudios interdisciplinares, a reflexiones sobre cultura e história, a estudios sobre la fragmentación, la incoherencia, el engaño y el sujeto descentrado, a las nuevas lecturas de contradicciones, anmbivalencias y ambiguedades, dentro de una perspectiva de valoración de la historia y de los relatos envolventes, y dentro de una persspectiva de la lectura como proceso de construcción de la obra.” 12 E convém registrar que ao redigir o texto “Ciclo nortista”, secção constante do capítulo “O regionalismo na ficção” em A Literatura no Brasil, obra monumental publicada sob a direção de Afrânio Coutinho, no Rio de Janeiro, pela José Olympio Editora/ e pela Universidade Federal Fluminense, em 1986, Peregrino Junior, autor, por sinal, de Pussanga, um dos mais belos livros de contos já escritos sobre a Amazônia, afirmou que José Eustasio Rivera, em La vorágine, “traz-nos da paisagem e da vida amazônica um quadro belo e poderoso: aquela floresta agressiva, áspera, esmagadora: aquelas águas, numerosas e traiçoeiras; aqueles homens bárbaros e tristes, perdidos na selva sádica y virgen... Ele também denuncia, como Ferreira de Castro, as torpezas e os crimes que a floresta esconde. O seu livro é um libelo, é protesto, é denúncia e grito de revolta contra o abandono do homem – aquele pária jogado à mercê dos aventureiros, exploradores e frios tiranos sem entranhas, criminosos e rapaces, que exploram os seringais da Amazônia.” 13 32 Revista ALB 50_finalizada.pmd 32 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Diferem, porém, de modo sensível, os dois romances, quanto ao modo como são considerados pelos seus autores, os indígenas habitantes da floresta; e se tanto em um como no outro, os índios aparecem como seres inferiores, quando são colocados em confronto com os civilizadores, em La Vorágine, José Eustasio Rivera ergue a sua voz para defendê-los; o que não acontece em A Selva, onde os parintintins – a única tribo mencionada em seu romance, por Ferreira de Castro, nos são mostrados como sendo o terror dos seringueiros, apontados como possuidores de uma enorme crueldade, capazes de realizar festas macabras, durante as quais dançam em torno de varas, no topo das quais se acham espetadas as cabeças decapitadas de seringueiros por eles atacados, tidos, portanto, pelo autor, como uma ameaça constante para esses seringueiros, que se mostram com a disposição de exterminá-los à bala. Torna-se, então, evidente, não haver, por parte de Ferreira de Castro, qualquer tipo de preocupação com os povos indígenas habitantes da floresta ou de reflexão sobre eles. Eles, simplesmente, dificultam o trabalho dos colonizadores; e Alberto, o personagem, sente dificuldade de aceitar a ideia de terem sido eles, antes da chegada dos brancos, os donos das terras da Amazônia; isso, apesar de Firmino, o seringueiro veterano que o acompanhou durante a sua descoberta da floresta, lhe haver dito que “os homens civilizados tomaram conta da terra deles” e que, por isso, em ato de vingança, eles os atacavam “deitam fogo à barraca e arrasam a mandioca e o canavial”. Havendo também lhe dito que, por causa deles, os seringueiros tinham de “andar sempre com um olho à frente e outro atrás”.14 Não parecendo, pois, haver Ferreira de Castro tido conhecimento do que, antes de sua chegada ao Brasil, se passara no vale do Putumayo, ao tempo do domínio daquelas terras pela Peruvian Rubber Company de propriedade do peruano Julio Araña, nem das denúncias feitas, com o relato das torturas aplicadas aos índios huitoto, antigos habitantes das matas ali existentes, que foram 33 Revista ALB 50_finalizada.pmd 33 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 por ele escravizados, pelo juiz peruano Carlos A. Valcácer, pelo cônsul da Inglaterra, Sir Roger Casement, e pelo norteamericano Walter Ernest Hardenburgh, este em seu livro The Putumayo – The Devil´s Paradise (1913); sendo tal assunto, convém frisar, do conhecimento de José Eustasio Rivera, que, a certa altura do seu romance, se referiu ao fato de haver chegado ao seringal onde se encontrava, sem que se pudesse explicar como, uma página do periódico La Felpa, que circulava em Iquitos, editado pelo jornalista Saldaña Roca, do qual constava.a descrição desses maus-tratos; havendo constado do texto do seu romance, a informação de encontrar-se essa página de jornal em péssimo estado de conservação, tantas vezes já fora ela lida, circunstância que teria forçado os seringueiros, para que continuasse a circular pelos seringais, a remendá-la com a seiva úmida do caucho, e ocultá-la, a seguir, a fim de que não viesse a ser descoberta pelos donos dos seringais, no oco de um bambu que poderia vir a ser confundido com o cabo da machadinha usada para golpear os troncos das seringueiras.15 La Vorágine supera, a nosso ver, A Selva, como obra literária. O romance de Ferreira de Castro é, contudo, brasileiro, em seu cenário, apesar de haver sido escrito por um português; pelo que, dentro dos quadros que limitam a nossa literatura, cabe evidenciarlhe os méritos e reconhecer-lhe a importância; e somente referirnos ao romance de José Eustasio Rivera, como complementação, ou contraponto, no conjunto composto pelas obras que vieram a for mar o que se convencionou denominar “romances amazônicos” ou “romances da borracha”. Voltemos, então, a comentar A Selva, realçando, mais que tudo, o seu caráter de documentário; em seu texto havendo sido descrito, com enorme precisão de detalhes, o cotidiano do seringueiro abandonado às garras famintas da selva que irá devorá-lo. É inegável essa sua feição; podendo o romance bem servir de base para a reconstituição da vida na floresta dos que ali chegaram 34 Revista ALB 50_finalizada.pmd 34 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 como “brabos”, vindos, principalmente, do Ceará, em vã tentativa de construir um futuro melhor para eles próprios. Vejamos, então, em primeiro lugar, destacando o cuidado tido pelo autor, ao dar a sua informação, a discriminação, por ele feita, do material constante da “lista do aviamento” – ou seja, a relação do equipamento que cada seringueiro recebia à sua chegada, devendo, peça por peça, ser paga, com o resultado do seu trabalho, ao dono do seringal – “o boião para defumar, a bacia para o latex, o galão, o machadinho, as tigelinhas de folha, todos os utensílios que a extração da borracha exigia” – e mais, “um quilo de pirarucu e uns litros de farinha, pois nos primeiros dias nunca um brabo sabe como se caça a paca e a cotia ou se pesca o tambaqui.” . E Ferreira de Castro informa, então, ser aquele “o talão grande”, o que, depois de “somado às despesas da viagem e mais empréstimos, prendia por muitos anos ao seringal, em trabalho de pagamento, o sertanejo ingênuo.” 16 E, a seguir, a descrição do modo como deviam agir os seringueiros para a extração do látex, figurando no texto como parte das instruções que foram dadas por Firmino, o primeiro companheiro na floresta, de Alberto: “– Olha você. Pega-se no machadinho e se corta assim... Está vendo? Assim, que é para não arrancar a casca e não fazer mal ao pau. Quando se arranca a casca, os empregados vão fazer queixa de nós a seu Juca. Levou o braço a um arbusto seco, em cuja extremidade, cortada para o efeito, se emborcavam, enfiados uns nos outros, cinco receptáculos de folha, que tinham base redonda e iam se alargando até a boca, onde não caberia uma mão fechada. – Isto são as tigelinhas. Se espeta a elas na seringa, pelas bordas. Assim... é preciso ter cuidado para que a folha fique segura, senão a tigelinha cai e o leite escorre todo para fora. Está compreendendo?” 35 Revista ALB 50_finalizada.pmd 35 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A seguir, Firmino golpeou a árvore, em cinco pontos diferentes, todos à mesma altura, em volta do tronco; e continuou explicando: “– Cada seringueira leva tantas tigelinhas conforme for a grossura dela. Uma valente, como aquele piquiá, que você está vendo, pode levar sete. Uma assim como esta, leva cinco ou quatro, se estiver fraca. Veja: corta-se de cima para baixo, e quando se chega abaixo, o machadinho volta acima, porque a madeira já descansou.” 17 Finalmente, o trecho onde aparece a descrição do acerto de contas, efetuado ao fim de cada semana. entre os seringueiros e o dono do seringal, elaborada com traços reveladores de uma crueldade extrema, no momento em que os seringueiros vão receber, do patrão, no caso, Juca Tristão, o que lhes será necessário para continuar vivendo sua penosa existência: “Quando o seringueiro tinha saldo, vendia-lhe tudo quanto ele desejasse; fosse loucura rematada ou objeto inútil, tudo dava mais lucro do que passar-lhe, no futuro, um saque para ser trocado por bom dinheiro na casa aviadora em Manaus. Mas se o trabalhador, por curta estadia ali, por doença ou preguiça não conseguira solver a dívida inicial, que rebentasse de fome, pescasse ou caçasse, pois não lhe forneceria nada que fosse além do valor da produção” E do mesmo modo, aqui reproduziremos o diálogo que, pouco antes, se dera entre eles, trágico em seu desenvolvimento: “– Um paneiro de farinha? Não pode ser! Levas só dois litros. – Mas que eu vou comer, seu Juca, na semana? – Não sei. Deves mais de seiscentos mil réis. Trabalha! 36 Revista ALB 50_finalizada.pmd 36 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 – Trabalhar mais, eu? A mim nunca seu Alípio ou seu Caetano apanharam na rede. Bem puxo pela estrada, mas ela é que não dá!” 18 Ao final do romance, contudo, quando já se preparava para voltar para Portugal, depois de haver sido transferido do trabalho de extração da borracha para o de escriturário no barracão de Juca Tristão, revela-se, de modo pleno, quem era Alberto, em verdade: A ideia da próxima redenção, a esperança de que se lhe abrisse, em breve, o caminho do regresso à vida, à sua vida, dominavalhe os mais poderosos instintos. Ia-se integrando em si próprio e já tudo ali possuía, para ele, somente uma expressão efêmera. E refletindo sobre tudo que havia lhe acontecido, ao lembrar-se de tantos outros que, ao contrário dele, não haviam conseguido libertar-se da selva (nem conseguiriam jamais ter a possibilidade de fazê-lo), justificou-se, perante si próprio, quando reconheceu que “os homens são bons ou maus conforme e a posição em que se encontram perante nós e em que nós nos encontramos perante eles”. 19 O que deixa perceber ter ele passado a acreditar que tudo se torna, na hora da definição, somente um jogo de circunstâncias – o que acontecera com ele... tanto quanto o que não aconteceria com outros... sem que se mostrasse capaz, na hora próxima de sua libertação, de dar a essas coisas, maior importância, ou encontrar uma razão para terem elas acontecido. Tanto que, naquele instante, declarou Alberto ao despedir-se de Juca Tristão, somente estar a levar da sua vida cheia de agruras e desventuras na Amazônia, um desejo vago e mal definido de “justiça universal”, que acreditava dever vir, um dia, a realizar-se, desde que nos dispuséssemos a “marchar à frente”; sem que houvesse, contudo, apontado culpados pelo que ali acontecera e continuaria a acontecer; nem declarado qual o rumo que deveria ter essa marcha para diante por ele então sugerida.. E, concordamos, afinal, com o que disse sobre A Selva, Humberto de Campos, o primeiro 37 Revista ALB 50_finalizada.pmd 37 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 a comentar o romance no Brasil, fazendo-lhe algumas objeções, mas deixando claro que elas não impediam que “... A Selva, com os sentimentos de alta humanidade que moveram a pena ao seu autor, e com alguns dos seus quadros magistrais, como a pesca no igapó e a tempestade na floresta, fique constituindo um dos subsídios mais preciosos e autênticos para a compreensão da vida amazônica em determinada hora de nossa evolução tumultuária”.20 Ai de alguém, contudo, que procure encontrar em A Selva, um tipo definido de ideologia!.... De quem pretenda caracterizar esse romance como uma obra engajada. Perderá seu tempo!... Debalde será o seu esforço!... Apesar de haver Ferreira de Castro afirmado, no “Pórtico” de A Selva, dever o seu livro “aos anônimos desbravadores, gente humilde que me antecedeu ou acompanhou na brenha, gente sem crônica definitiva, que à extração da borracha entrega a sua fome, a sua liberdade e a sua existência”; e mais, que a razão de escrevê-lo fora a de “registrar o sofrimento dos humildes através dos séculos, em busca de pão e de justiça”. E, mais, que “a luta de cearenses e maranhenses na floresta amazônica é uma epopeia assombrosa de que não ajuíza quem, no resto do Mundo, se deixa conduzir, veloz e comodamente, num automóvel com rodas de borracha – da borracha que esses homens tiram à selva misteriosa e implacável...” 21 E mesmo reconhecendo não existir no romance, firmeza de posições no campo das ideias, continuamos a afirmar que A Selva, considerado o seu vigor descritivo, por sua imensa riqueza de detalhes e sua envolvente poesia, mesmo nele soando fraco um ar de denúncia e, mais que tudo, o de condenação a algum sistema, caracteriza-se, sem dúvida, como uma das maiores obras da literatura 38 Revista ALB 50_finalizada.pmd 38 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 portuguesa, não indo, contudo, em seu caráter, além de sua estrita condição de uma estória bem contada, sobre um mundo injusto e perverso, que não chegou a ser devidamente analisado e condenado. Finalmente, no que se refere à preocupação demonstrada por alguns, de encontrar, em seu contexto, vencedores e vencidos, realcemos o fato de, no curso de sua narrativa, somente poder constatar-se haver existido um vencedor: – a mata, sádica, tirana, praticamente invencível!... E desejamos, sinceramente, que ela continue a ser assim!.... NOTAS E REFERÊNCIAS GOLDMANN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 10. 2 BOSI, Alfredo.História Concisa da Literatura Brasileira. 36ª edição. São Paulo: Cultrix, 1994, p. 392. 3 CASTRO, Ferreira de. A Selva. 18ª edição. Lisboa: Guimarães & Cia, 1957, pp.43/44. 4 CAMPOS, Humberto de. “Um romance amazônico” in CAMPOS, Humberto. Crítica: Segunda série. São Paulo: W M. Jackson Inc. editores, 1947, p. 429. 5 CASTRO, Ferreira de. Opus cit., p. 113. 6 Idem, p. 101 7 Idem, p. 113 8 Cf. RIVERA, José Eustasio. La vorágine. Edición de Montserrat Ordóñez. Cátedra: Letras Hispânicas, Fernández Ciudad, S.L. España. 2006. Edição brasileira, sob o título A voragem. Tradução de Reinaldo Guarany. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1982. 9 Cr. “Traducciones de ´La Vorágine`” in RIVERA, José Eustasio. Opus cit., pp 67/68. Consta desse texto referência a uma tradução brasileira, que teria sido feita por José César Borba, no Rio de Janeiro, em 1945, que não conseguimos localizar. 10 Cf. “Historia editorial de La Vorágine” in RIVERA, José Eustasio. Opus cit, ´pp. 14/16. 11 Cf. “Historia de la critica de ´La Vorágine`” in RIVERA. José Eustasio Opus cit., pp. 1 39 Revista ALB 50_finalizada.pmd 39 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 CASTRO, Ferreira de . Opus cit;, pp.7/9. Peregrino Junior. “Ciclo nortista” in “O regionalismo na ficção”. In COUTINHO, Afrânio (Diretor) A Literatura no Brasil.. Era realista. Era de transição. Vol 4. Rio de Janeiro: José Olympio Editora/ Universidade Federal Fluminense. UFF-EDUFF, 1986, p. 246. E quanto à expressão sádica y virgen, por ele referida, ela aparece no texto La vorágine, na edição por nós utilizada, à página 297, no parágrafo que se inicia desse modo – Esta selva sádica y virgen procura al ánimo la alucinacón del peligro 14 CASTRO, Ferreira de. Opus cit., pp.114/115, 117/119, 101. Quanto a John Hemming, referiu-se aos parintintins, dizendo que “essa tribo belicosa de fala tupi (...) lutou com sucesso contra a fronteira da borracha”; e que esses índios “despertaram o medo e a fúria dos seringueiros”. Cf. HEMMING, John. Fronteira Amazônica: A derrota dos índios brasileiros. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2009, pp. 372/373. 15 RIVERA, José Eustasio. Opus cit., p.368. 16 CASTRO, Ferreira de. Opus cit., p. 97. 17 Idem, p. 116. 18 Idem, p. 96. 19 Idem, pp. 288-289. 20 CAMPOS, Humberto de. Opus cit., p. 466. 21 CASTRO, Ferreira de. Opus cit., pp. 18/19. 12 13 Waldir Freitas Oliveira é historiador, ensaísta e conferencista; é professor da Universidade Federal da Bahia, e tem vários artigos e livros publicados. Desde 1987 ocupa a Cadeira nº 18 da ALB. 40 Revista ALB 50_finalizada.pmd 40 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O conto e a novela de Xavier Marques Aramis Ribeiro Costa A prosa de ficção na Bahia, ao menos para os pesquisadores mais rigorosos, não começa com Francisco Xavier Ferreira Marques (Itaparica, BA, 03/12/1861 – Salvador, BA, 30/10/ 1942). Há um ou dois nomes a serem mencionados antes dele, como registra Sacramento Blake em seu extenso e quase esquecido Dicionário bibliográfico brasileiro. Porém Xavier Marques é o primeiro a dar relevo e permanência ao conto, à novela e ao romance baianos, obtendo, com suas produções literárias, tanto as curtas quanto as de fôlego, o difícil reconhecimento nacional, ao menos em sua época. Da mesma forma, é o primeiro a fixar a paisagem física e humana da Bahia, em particular da Capital e das ilhas baianas, o arquipélago da Baía de Todos-os-Santos, em sua produção ficcional. Assim, não será injusto nem equivocado considerá-lo o fundador da prosa de ficção na Bahia e, particularmente, o fundador do conto baiano. Aliás, é com o conto e não com a novela ou o romance, que ele estreia na prosa de ficção, num pequeno volume posteriormente excluído por ele próprio da sua bibliografia, intitulado Simples histórias. É de 1886 esse livrinho de formato pequeno – quinze centímetros por dez 41 Revista ALB 50_finalizada.pmd 41 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 – e oitenta e duas páginas, editado na Bahia pela Tipografia do Jornal de Notícias, jornal que ele dirigia. Trata-se, o volume, de doze textos, notadamente curtos em relação aos contos que Xavier Marques produziria mais tarde, porém, na sua maioria, não há como confundi-los com crônicas ou qualquer outro gênero. Os núcleos ficcionais, ainda que muito simples, a objetividade dos diálogos, a preocupação da síntese e a permanência de estruturas fechadas, às quais se acrescenta o cuidado com os desfechos, identificam um contista obediente aos rigores de uma forma que hoje se diria clássica, levando-se em conta que o gênero foi iniciado universalmente dentro desse modelo. São pequenos retratos, dramas e tragédias da sociedade, com a linguagem elegante e correta usada numa determinada esfera social, que reproduzem os costumes, o moralismo exacerbado, os preconceitos, as limitações e as hipocrisias de uma época, formando, no conjunto, um interessante mosaico da condição humana, no tempo e no espaço recriados. É importante salientar que esses cromos, delineados com a pena de um escritor que se iniciava na ficção, apresentam, no estilo e na forma, a segurança de um bom narrador. Não há uma paisagem inútil, uma fala desnecessária, como se o contista obedecesse a uma precisão quase matemática de espaço e de tempo em cada texto. Apesar desse rigor formal e a despeito da linguagem rebuscada, tão ao gosto do autor, onde se nota o uso frequente de vocábulos eruditos e pouco usuais, bem como de expressões e formas verbais tipicamente lusitanas – provável influência de Camilo, sua confessada admiração – , há algo de moderno na concepção dos enredos, pois não são anedotas que possam ser reproduzidas oralmente com grande efeito, o que vale dizer que o interesse despertado encontra-se bem mais na forma de narrar do que no episódio narrado. Em “Aves Migrantes”, por exemplo, o conto que abre o pequeno volume, o autor apenas descreve uma paisagem, e nela 42 Revista ALB 50_finalizada.pmd 42 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 um casal que se refugia numa casinha à beira-mar, para aí viver, longe da reprovação da sociedade, a sua aventura amorosa. Nada mais que isso. Na mesma linha, de simples descrição de uma paisagem onde se insere uma circunstância, é “O Lavrador”, em que um campônio vê aproximar-se do local onde trabalha a mulher e o filho pequeno e, apesar do cansaço, sente-se enternecido. Também apenas isso. O tema da tragédia ligada à criança, no qual se pode perceber, ainda que de forma sutil, uma intenção moralizante, é tratado em dois textos: “O Livro Fatal” e “O Crime Duma Árvore”. No primeiro, uma cena doméstica: enquanto a mãe é absorvida na leitura de um livro, o filho pequeno rodopia na sala sem que ela perceba, até cair morto diante dela. No outro a criança ilude a vigilância dos pais, deixa a casa, embrenha-se no bosque e acaba afogado num tanque. É possível, aliás, que a intenção moralizante, mais sutil ou mais evidente, perpasse todo o volume como um sopro apascentador, uma espécie de satisfação aos leitores, sobretudo às leitoras da época. Em “O Primeiro Beijo”, outro desses pequenos contos, vê-se retratada uma cena familiar que devia ser habitual àqueles tempos: o pai dorme refestelado numa poltrona, enquanto, na mesma sala, a filha mocinha experimenta, com um primo, a emoção do primeiro beijo. Aqui, a moralidade é sutil. Mas já em “Ovelha Desgarrada”, que apresenta um enredo um pouco mais elaborado, porém nada original, a intenção é explícita: a moça ignorante do interior se deixa seduzir pelo convite de uma dama elegante para viver na Capital, e aí se perde. Há, em Simples histórias, outros enredos tão elaborados quanto “Ovelha Desgarrada”. Um exemplo é “Um Dia de Campo”, onde um rapaz da cidade vai passar um dia no campo, e nesse pequeno tempo seduz uma rapariga do lugar, a neta da senhora que o hospeda. Igualmente melhor trabalhado, e mais complexo em sua estrutura narrativa, é “A Cigana”, o mais denso dos contos do livro, onde o marido, cego de ciúmes, arremessa o cavalo a galope sobre a mulher e o rapaz de quem ela demonstra gostar, 43 Revista ALB 50_finalizada.pmd 43 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 ambos sentados na grama, em sorrisos e encantamento, enquanto o menino, filho do casal, brinca ali perto. A cena acaba em sangue. Muito curioso, inclusive como um registro de época, é o conto “Santa!”, onde o autor mergulha mais profundamente na personagem. É uma moça bonita que, apesar disto, não casa e vê a irmã mais nova casar, restando-lhe a amargurada alternativa de tornar-se uma beata e ser considerada uma santa: – Macera-se, coitadinha! É uma santa – os espectadores comentam das janelas, ao verem passar a moça, com sua palidez assustadora, a caminho da igreja. Embora a situação nada tenha de original, a forma de contar conserva o encanto dos narradores bem sucedidos. Completam o volume os contos “A Relíquia”, um texto mais longo, embora um enredo pouco consistente, todo ele em torno de um presente oferecido à mulher, na condição de relíquia, por um marido que parte; “Entre Marialvas”, que se passa num frívolo salão da sociedade, onde um caso é contado por um conviva a outro a respeito de certa baronesa presente; e “Vocação Contrariada”, o texto que fecha o volume, onde um rapaz sem vocação é destinado pela família ao sacerdócio. Os doze textos que Xavier Marques intitulou de Simples histórias deixam, ao término da leitura, aliás, agradável e envolvente, mesmo naqueles contos ficcionalmente mais fracos, a vontade de concordar com o autor, e considerar as narrativas verdadeiramente “simples histórias”, nada mais do que isso. Talvez esse mesmo pensamento crítico o levasse não apenas a não reeditar o livro, como a excluí-lo, nos livros seguintes, da relação da sua obra, à semelhança do que também fez com o primeiro, Temas e variações, de 1884, de poesias. Entretanto, as narrativas de Simples histórias registram a estreia de Xavier Marques na prosa de ficção, e além de serem fundamentais para o estudo evolutivo do autor, constituem um importante documento da história da literatura baiana. Raríssima e tão preciosa quanto os textos que ela guarda, é a edição original e única, com sua apresentação gráfica modesta e sua escrita de antes da reforma ortográfica de 1943. 44 Revista ALB 50_finalizada.pmd 44 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A experiência seguinte do autor com a ficção curta dá-se em 1899, e representa um salto notável no domínio da técnica narrativa, na linguagem e no estilo. Na verdade é a sua mais famosa produção ficcional, que suplantou, em notoriedade, até mesmo os seus romances mais conhecidos. Trata-se da novela Jana e Joel. É preciso observar que, nesse intervalo, de Simples histórias para Jana e Joel, Xavier Marques publicara dois romances, Uma família baiana, em 1888, e Bôto & cia., em 1897, este último refundido em 1921 e transformado em O feiticeiro; publicara também, em 1889, um estudo bio-bibliográfico intitulado Melo Moraes Filho, e um segundo livro de poesias, em 1896, Insulares. Já não era, portanto, um autor estreante, mas um escritor experimentado, em prosa e verso. Jana e Joel, que ele, curiosamente, chamou de “idílio piscatório”, surge como a síntese da sua fase romântica, e sua designação aparece, nas primeiras edições, quase como um subtítulo, tendo por nome de maior destaque a palavra “Praieiros”. Torna-se evidente, porém, que esta outra denominação, de maior relevância nas capas e nas folhas de rosto dos volumes, trazia a intenção de um título geral, com o qual o autor pretendia denominar uma série de novelas, tendo como ambientes as praias e o mar, sobretudo as praias do arquipélago da Baía de Todos-os-Santos, com sua gente lutadora e simples, em geral barqueiros e pescadores, suas mulheres, seus filhos, seus parentes idosos. Tal intuito evidencia-se em publicações posteriores de outras novelas, onde o título comum “Praieiros” permanece. Sendo assim, o desta primeira novela é mesmo Jana e Joel, “Jana” corruptela de Joana e Joel certamente apenas para criar a eufonia entre os nomes. Os personagens centrais, que formam o par amoroso, intitulam a trama, lembrando a “pastoral” Paul et Virginie, de Bernardin de Saint-Pierre, ou mesmo, numa referência mais remota, Dáfnis e Cloé, romance bucólico de inspiração mitológica, atribuído ao escritor grego Longus. O enredo, passado na Ilha dos Frades, na Ponta de Nossa Senhora e no bairro da Calçada, em Salvador, embora já muito 45 Revista ALB 50_finalizada.pmd 45 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 distante daquelas “simples histórias” do primeiro livro em prosa de ficção, permanece simples, como se acompanhasse a simplicidade desambiciosa e satisfeita do viver daquela gente praieira das ilhas da Bahia, naqueles tempos em que as distâncias entre as povoações do arquipélago e a cidade eram incomparavelmente maiores. Jana, a ilhoa de olhos verdes, ignorante e rústica, é órfã de mãe, filha do barqueiro Anselmo, irmã dos gêmeos Cosme e Damião e neta de Teonila, a velha Teó, mãe de Anselmo. Joel, órfão de pai e mãe, marinheiro e pescador, é protegido do mestre barqueiro, criado como um de seus filhos, companheiro de infância e íntimo de Jana. Livres no ambiente rústico da ilha, entre o mar e a montanha escarpada, os dois convivem como irmãos, em divertimentos inocentes e confidências. Um dia desembarca, para veraneio, uma senhora da cidade, que se torna madrinha de batismo de Jana, e convence o pai Anselmo e a avó Teonila a deixá-la levar a afilhada para morar consigo, em sua casa, no bairro da Calçada. Nesse início há a reincidência do autor no tema da mocinha simples que é levada para viver na cidade grande, utilizado no conto já citado, “Ovelha Desgarrada”. Mas o comportamento e o destino de Jana são diferentes. Vive comportadamente com a madrinha, na casa à beira-mar da Calçada. Mais adiante, já mortos Teonila e Anselmo, Jana foge com Joel de volta à ilha, para afinal viverem a plenitude do amor aos poucos descoberto e finalmente assumido. A trama, com urdidura linear e discreta, como a canoa de Joel a deslizar mansa e firme nas águas profundas do grande golfo baiano, desenvolve-se em torno do amadurecer do sentimento e da tomada de consciência desse mesmo sentimento entre os dois personagens, que de ingênuos companheiros de infância, sem malícia ou desejos, a se tratarem de “meu irmão” e “minha irmã”, tornam-se adultos que se amam, um amor que abstrai o mundo e redime suas vidas sacrificadas. A sequência é a mesma bastante usada na literatura e, mais tarde, infinitamente explorada no cinema: Jana tem Joel, Jana perde Joel, Jana recupera Joel. Da 46 Revista ALB 50_finalizada.pmd 46 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 mesma forma, Joel tem Jana, Joel perde Jana, Joel recupera Jana. Há, entretanto, na simplicidade dessa trama universalmente tão explorada, além de uma condução ficcional coerente e agradável, cenas e aspectos magistrais, que colocam esta novela no patamar do que melhor se tem feito no gênero. Por exemplo, logo no início, a cena mais forte do enredo: a destruição do barco Tritão, de Anselmo, por uma feroz tempestade, o desespero do mestre barqueiro ao se ver privado do seu único instrumento de trabalho, a desgraça lhe chegando do mesmo mar que lhe proporcionava e aos seus os meios de viver. Um quadro de destruição e desespero que encontraria o seu paralelo, na literatura baiana, muitas décadas mais tarde no conto “Tempestade”, de Vasconcelos Maia, onde a fúria do mar e dos ventos destrói as embarcações na pequena praia do Unhão, em Salvador. Outra referência antológica de Jana e Joel – que também iria encontrar o seu paralelo na literatura baiana trinta e seis anos depois, na corrida de saveiros entre Guma e Mestre Manuel, em Jubiabá, de Jorge Amado –, é a corrida de canoas, em que a de Joel vence todas as demais. Pungentes são a partida de Jana da sua ilha para morar na cidade, com a madrinha; a demonstração da melancolia da moça, no ambiente para ela estranho e desinteressante da nova morada; o recebimento das notícias das mortes da avó Teonila e do pai Anselmo; e o feliz reencontro de Jana com Joel. Inesquecível e mesmo ousada para os padrões do romantismo, aos quais, até então, Xavier Marques ainda se apegava, é a cena em que Jana é surpreendida inteiramente nua por um homem, o filho da madrinha, ao trocar de roupa no quintal da casa. Curioso é o fato de não serem dados nomes à madrinha e aos demais membros da sua família, com exceção do menino caçula, Carlito, talvez como um artifício do novelista para deixá-los em segundo plano. Curiosa, igualmente, a descrição do bairro da Calçada à época, final do século XIX, um bairro tranquilo, de casas assobradadas dispostas em fila à beira-mar, cujos quintais davam 47 Revista ALB 50_finalizada.pmd 47 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 na praia, e de onde se podiam apreciar os vapores, os barcos, as canoas, naquele tempo em grande número, a cruzar as águas da Baía de Todos-os-Santos. O conjunto dessas cenas e desses aspectos, magistralmente construídos e encadeados, forma a excelência desta novela pioneira da literatura baiana, que seria, já na sua época, o principal trunfo do ficcionista Xavier Marques. De fato, nenhuma outra obra de sua autoria, nem mesmo a consagrada biografia Vida de Castro Alves, obteria tantas edições, nem teria a repercussão de Jana e Joel, inclusive fora do país, tendo sido traduzida para o francês em edição conjunta com Iracema, de José de Alencar. A ficção curta, após a experiência inicial de Simples histórias, encontrava, dessa forma, em Jana e Joel e a ambiciosa proposta dos “Praieiros”, um veio original e rico a ser explorado. Nascido em Itaparica, a ilha maior do golfão baiano, só aos vinte e um anos de idade Xavier Marques passou a morar em Salvador. A infância e a juventude foram vividos em contato com os ilhéus, que eram os pescadores e os praieiros, aquela gente humilde e vigorosa que vivia do mar. Aquele era o seu mundo, do qual conhecia segredos e histórias. Mas a Cidade do Salvador e a História, com “H” maiúsculo, essa interminável narradora da trajetória humana, também o encantavam, e o romance o atraia. E publicou, quase simultaneamente, dois romances, ambos em 1900: Holocausto e Pindorama. O primeiro por H. Garnier Editor, do Rio de Janeiro; e o segundo – romance do descobrimento premiado pela Comissão Baiana do IV Centenário do Descobrimento do Brasil, em Salvador –, pelo Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, sendo impresso na Tipografia Baiana, de Cincinato Melchiades. Porém o retorno à ficção curta e ao tema dos “Praieiros”, a demonstrar a intensa produção do autor nesse período, ocorreu em 1902. E veio com a insistência no gênero novela. O volume, publicado na Bahia, traz duas ficções: Maria Rosa e O arpoador. Um “realista romântico”, no dizer de Érico Veríssimo, 48 Revista ALB 50_finalizada.pmd 48 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 na sua Breve História da Literatura Brasileira (Berkeley, 1945), e mais romântico que realista em Jana e Joel, Xavier Marques se apresenta mais realista que romântico em Maria Rosa e O arpoador. São duas ficções de estrutura narrativa aberta, de ritmo acelerado – usual das narrativas curtas – , bem mais breves que um romance e mais longas que um conto habitual, enredos que se desdobram, como em Jana e Joel, mas sem se alongar demasiadamente nem explorar tramas secundárias. Enfim, ambas as narrativas dentro do modelo usualmente aceito para a novela, ao menos no Brasil, um gênero polêmico, que desperta controvérsias e antipatias dos estudiosos do assunto, mas que o autor havia testado com grande êxito no “idílio piscatório”, o que deve tê-lo animado bastante a seguir percorrendo esse caminho. Como diferencial da experiência anterior, além da predominância do realismo, apresentavam as novas narrativas tramas mais densas e compactadas. Tal circunstância não excluiria Maria Rosa da classificação de novela. Entretanto, não faltará quem classifique O arpoador de conto longo, e esse é justamente o aspecto polêmico do gênero novela, sempre havendo quem queira puxar as narrativas para o domínio do conto, se são curtas, ou do romance, se são mais longas. Mas isso são meras questões didáticas, que não importam muito. O que importa é que são duas ficções curtas primorosas. Maria Rosa passa-se em Vera Cruz, povoado da grande ilha de Itaparica. É “o maior arraial da redondeza”, mas, ainda assim, “não passa de um arruamento de telheiros e palhoças”, e é uma “estância de pescadores” que o autor logo classifica de humildes, dos que vivem do que o mar pode oferecer nas proximidades da terra. Aí vive Maria Rosa, filha do pescador Francisco da Hora e de Joana, a mulata gorda, trabalhadora e festeira. Disputada por dois homens que ela não ama, a sedutora Maria Rosa acaba deixando pai e mãe e fugindo da ilha com um terceiro homem, um lenhador de passagem, e que ela mal conhece. Retorna sozinha, seis meses depois, maltratada, moída de pancadas e feia; é recebida 49 Revista ALB 50_finalizada.pmd 49 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de volta à casa dos pais e torna a ser disputada pelos dois antigos pretendentes que terminam se atracando, um deles matando o outro. O mar aparece, em Maria Rosa, apenas fazendo parte do cenário e da vida rotineira dos personagens, já que a ação se desenvolve toda em terra. Entende-se, aí, a denominação do autor de “praieiro”, e não de marítimo ou marinho, a esta significativa vertente de sua ficção. E a novela Maria Rosa, libertada do lirismo e da suavidade romântica de Jana e Joel, adquire – apesar da linguagem rebuscada do autor e seu gosto pelo vocabulário erudito e por vezes arcaico, amálgama de expressões lusitanas e regionais – , características de permanência e atualidade. O mesmo ocorre com O arpoador, tendo, como diferença, a inserção da trama no mar, no qual eclode o clímax do enredo. Militão é o arpoador que, traumatizado por uma tragédia pessoal ocorrida no exercício de sua atividade, há dez anos não vai ao mar. Instado pelo armador de baleias Manuel Ventura, concorda com o retorno. E trava sua última batalha com as baleias. O que surpreende, nessa história, é o domínio absoluto do autor das situações marinhas, o conhecimento das circunstâncias da pesca da baleia e, tanto quanto, dos termos náuticos. Vale igualmente como um documentário do tempo em que Itapuã era um arrabalde de pescadores, e o mar, ao menos naquele trecho da costa marítima de Salvador, infestado de baleias. Considerando até o final do século XX e início do XXI, O arpoador – novela, como queria o autor, ou conto longo, como querem os antagonistas do gênero novela – situa-se como a mais relevante ficção baiana passada em pleno mar, uma ficção efetivamente marítima e não praieira, construída objetivando o clímax nas águas profundas do oceano. A esse livro seguem-se vários outros, bem afastados da ficção curta: Sargento Pedro, romance histórico, em 1910; Vida de Castro Alves, que o autor classificou de ensaio biográfico e não biografia, também em 1910; A arte de escrever, ensaio, em 1913; Dois filósofos brasileiros, também ensaio, 1916; e A boa madrasta, romance, 1919. Só então é que apresentou, também em 1919, pela Livraria Catilina 50 Revista ALB 50_finalizada.pmd 50 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 de Romualdo dos Santos, em Salvador, o que passou a ser considerado – já que ele próprio excluiu o Simples histórias, e tanto Jana e Joel como Maria Rosa e O arpoador foram enquadrados no gênero novela – seu primeiro volume de contos, A cidade encantada. Um conjunto de seis contos que deveria ser a volta triunfal do autor ao gênero com o qual iniciou a sua prosa de ficção. Entretanto, um livro desigual, tanto na extensão dos textos quanto na qualidade. Inicia-se com uma narrativa extensa e nada brilhante intitulada “Viagem Maravilhosa”. Uma viagem do personagem narrador de nome Otávio, acompanhado pela mulher Deolinda e pela filha Flor, para uma cidade não denominada, mas que é apresentada como lugar estranho e desagradável, povoado por criaturas igualmente estranhas e perigosas. A narrativa, que se inicia de forma realista por meio de uma viagem de navio, conclui de forma misteriosa beirando o fantástico, de forma que não convence nem pelo seu lado realista nem pelo fantasioso. A este conto segue-se a melhor realização de Xavier Marques no gênero, desde que não se considere O arpoador um conto e sim uma novela: “A Noiva do Golfinho”. Este tem sido o seu conto mais antologiado e merecidamente o tem colocado no patamar dos melhores contistas nacionais. O método aplicado é o mesmo de “Viagem Fantástica”, porém desta feita com êxito. Dentro da moldura realista surge a solução fantasiosa. A narrativa, que traz um subtítulo, “Conto de Tabaroas”, mesmo submetida à linguagem arcaica peculiar a Xavier Marques, é fluente e obedece a um ritmo acelerado, levando o leitor rapidamente à surpresa final e fantástica. Passado na Ilha de Tinharé, no sul da Bahia, incluído entre suas narrativas praieiras, trata-se do noivado de uma moça chamada Marina, cujo noivo, ao final, descobre-se ser um golfinho. Apenas isso, porém conduzido de modo a criar interesse, expectativa e surpresa. Teria sido essa, até prova em contrário, a primeira narrativa fantástica de êxito na literatura baiana, um conto que pode figurar entre os maiores da literatura brasileira. 51 Revista ALB 50_finalizada.pmd 51 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A seguir vem o conto que dá título ao volume. À semelhança de “Viagem Maravilhosa”, o conto “A Cidade Encantada” é uma narrativa extensa, lenta e – essa é uma opinião pessoal – sem atrativos. Mais uma vez, tem como motivação temática uma “cidade”. A ambientação desta feita é sertaneja, o autor menciona a Vila de Nossa Senhora do Livramento de Minas do Rio de Contas, o antigo Pouso dos Crioulos, cidade baiana perdida na vastidão da Chapada Diamantina. Dois personagens, dois homens, o explorador e o tropeiro que lhe serve de capataz, atravessando o sertão ainda selvagem em busca de uma cidade lendária e perdida nas imensidões perigosas das matas densas. O argumento é curto, pobre de peripécias, e o autor sustenta a extensão da narrativa à base de reflexões sobre os personagens e os perigos das matas. Felizmente a narrativa seguinte é verdadeiramente encantadora, embora completamente esquecida, sequer incluída em suas produções praieiras de ficção curta, o que é uma injustiça, pois se trata de uma página de mestre, tanto na forma quanto no conteúdo, na qual não falta o valor documental sobre um tempo e um lugar. Intitula-se “Mariquita”, nome de uma localidade num dos bairros mais antigos de Salvador, o Rio Vermelho, e devolve o autor ao seu ambiente natural que é o mar e a proximidade do mar, repondo o volume de contos no patamar de “A Noiva do Golfinho”. Mas, aqui, não há nenhum elemento fantástico. Nem mesmo romântico, embora, num determinado momento, sugira, entre dois personagens, um sentimento de circunstâncias românticas. É uma trama realista, como O arpoador e Maria Rosa, cujo núcleo ficcional podia se passar em qualquer época, desde que modificadas certas particularidades que nada interferem no desenvolvimento e conclusão do enredo. Como faz em Jana e Joel, quando registra a Calçada, e n’O arpoador, que se conclui nas águas revoltas do mar de Itapuã, ambos no início do século, Xavier Marques registra a Mariquita da mesma época, quando era um modesto arrabalde de pescadores, para onde iam, por recomendação dos médicos, pessoas enfermas, em particular 52 Revista ALB 50_finalizada.pmd 52 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 vítimas de beribéri, acompanhadas de suas famílias, para os banhos revigorantes. Nessa condição de enferma é que chega à localidade a bela Suzana, acompanhada do marido, um oficial reformado da Marinha, bem mais velho que ela e fisicamente pouco atraente. O sugerido amor de circunstâncias românticas da bela enferma, que logo se recupera, com um jovem médico em descanso na localidade, serve apenas de pretexto para o ciúme do pescador Tyba, levando-o a cometer, ao final da narrativa, a violência cuja verdade completa o autor não revela. Essa narrativa, encantadora e impactante, reforça a superioridade do ficcionista Xavier Marques quando ambienta suas histórias na beira do mar. E revela, mais uma vez, o precioso registro em suas ficções de uma Cidade do Salvador que o tempo, os novos costumes e o progresso sepultaram definitivamente. A página a seguir, “Visões da Infância”, chega a ser desconcertante do ponto de vista da análise de um livro de contos. Não se trata, evidentemente, de uma página de memória, e sim uma ficção curta, narrada na primeira pessoa, simulando recordações da infância do personagem narrador. Entretanto, não obedece a uma narrativa única e contínua, trata-se de cenas separadas por módulos narrativos numerados, no conjunto uma página sentimental e romântica, cheia de adjetivos, exclamações e reticências, que dificilmente teria a força da permanência para além do seu tempo, muito menos a qualidade ficcional de “A Noiva do Golfinho” e “Mariquita”. Finalmente o volume A cidade encantada é encerrado com uma fábula, quase uma anedota intitulada “A Vida do Homem” sobre as idades do homem e suas peculiaridades. Após A cidade encantada segue-se um longo período de dezessete anos até que Xavier Marques volte a publicar ficção curta. Nesse período publica, em 1921, o romance O feiticeiro, que outro não é senão Boto & cia., de 1897, refundido; Ensaio histórico sobre a Independência, em 1924; As voltas da estrada, romance, em 1930; Letras acadêmicas, ensaios, 1933; e Cultura da língua nacional, ensaio, 53 Revista ALB 50_finalizada.pmd 53 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 também em 1933. Só então é que publicou, em 1936, pela Livraria José Olympio Editora, no Rio de Janeiro, Terras mortas. Trata-se de uma pequena novela, A vila morta, seguida de dois contos, “A Sombra do Malfeitor” e “Milagres”, os três passados no interior da Bahia, e libertados do lirismo que caracterizou o autor de Jana e Joel. A novela e o primeiro conto surpreendem pela capacidade narrativa do autor e também pelos enredos, capazes de despertar a curiosidade e levar o leitor rapidamente ao final de cada um deles. A vila morta repete o velho tema do amor entre dois moços de famílias tradicionalmente inimigas, com muitas mortes e vendetas trágicas, difíceis de serem esquecidas e perdoadas, os Passos e os Cadós, versão baiana, para os lados de Serrinha, dos Montecchio e Capuleto. De permeio, a figura temível do coronel Doca, último representante dos Cadós, a se opor com veemência ao casamento da filha Romana com o coronel Juca Passinho, último representante dos Passos. Apesar da recorrência do tema, o autor mantém o leitor preso às cenas e aos diálogos, levando-o a um final talvez desconcertante, mas, pelo menos, inesperado. “A Sombra do Malfeitor” é um conto de assombração, bem ao gosto de Xavier Marques, que parece ter tido o particular agrado de concluir suas histórias de início realista com soluções fantasiosas, surrealistas ou mesmo sobrenaturais, de que é emblemático o célebre “A Noiva do Golfinho”, o que o torna um dos pioneiros, na literatura nacional, do realismo fantástico. A figura bem delineada e terrível de João Grande, o terror do arraial de São Francisco por seu furor sexual que não respeita as donzelas e as mulheres casadas ou comprometidas, chegando a ponto de praticar crimes de morte para possuí-las, desdobra-se no fantasma que passa a assombrar a vila após a sua morte. Mais uma vez é o excelente narrador quem segura a trama, fazendo o leitor interessar-se até a última linha e surpreender-se com o final. Como “Mariquita”, “A Sombra do Malfeitor” anda injustamente esquecido dos organizadores das antologias do conto baiano. 54 Revista ALB 50_finalizada.pmd 54 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 No segundo e último conto, “Milagres”, o autor retorna a outra de suas tendências, que é a descrição exaustiva de paisagens enquanto viaja, com termos técnicos e expressões eruditas ou arcaicas. Não há um enredo mais elaborado, apenas deixa entrever uma trama de adultério e tragédia que permanece no plano da suposição, sem que a aprofunde, o que, com boa vontade e apenas por esse aspecto, poderia levar teoricamente Xavier Marques ao plano da famosa “circunstância” ou “atmosfera”, tão decantada e tão perseguida pelos contistas modernistas, os que preferem sugerir a contar. “Milagres” representa uma queda no ritmo narrativo do volume, uma queda tanto mais perigosa quanto se trata da última narrativa. No conjunto, entretanto, Terras mortas parece superior a A cidade encantada, por apresentar menos desníveis de qualidade entre as ficções curtas agrupadas e levar o leitor com mais facilidade e interesse ao final do volume. Depois de Terras mortas, Xavier Marques não retornou à ficção curta, a não ser para reeditar, nesse mesmo ano de 1936, em Porto Alegre, Maria Rosa, O arpoador e “A Noiva do Golfinho” num único volume, intitulado Praieiros. Pena ter excluído “Mariquita”. Um projeto que, tudo leva a crer, pela ênfase dada desde o início a esse título geral, “Praieiros”, não foi cumprido em sua totalidade, devendo ter sido idealizado bem mais extenso. Seu último livro foi póstumo, Motivos sociais e históricos e evolução da crítica e outros ensaios, em dois volumes, 1944, Rio de Janeiro. O que se percebe é que a ficção curta ocupou um espaço secundário na extensa bibliografia de Xavier Marques. Sua produção de ficcionista voltou-se prioritariamente para o romance, em número de sete, ou oito, considerando-se separadamente Boto & cia. e O feiticeiro. Verdade que publicou cinco livros de ficção curta. Um deles, porém, foi proscrito por ele próprio, Simples histórias. Outro foi uma novela editada separadamente, Jana e Joel. E, outro ainda, duas novelas em conjunto, Maria Rosa e O arpoador. Dessa forma, foi quantitativamente pequena a sua produção ficcional de curto fôlego. Quanto à qualidade, além dos desníveis 55 Revista ALB 50_finalizada.pmd 55 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 apontados, pesam negativamente em sua literatura, e não apenas na de curto fôlego, os traços também aqui registrados, como os ranços de estilo de um autor excessivamente apegado ao lusitanismo, a nefasta influência de Camilo, o romantismo e o gosto pelo vocabulário técnico, erudito e arcaico. Entretanto, apesar desses pesares, deve-se considerar Xavier Marques de fundamental importância para a história da literatura baiana e, em particular, para o conto e a novela baianos, tanto pelo seu caráter pioneiro e inovador, quanto pela recriação ficcional de uma época, mas, principalmente, pela inegável qualidade literária de vários de seus escritos, que fazem dele, sem nenhuma dúvida, um dos pilares da literatura baiana que se inicia no final do século XIX e segue, em linha contínua de produção e qualidade, aos nossos dias. __________ Aramis Ribeiro Costa é médico e administrador hospitalar, graduado em Letras pela Universidade Católica do Salvador; é poeta, contista e romancista, autor de 17 livros, como O fogo dos infernos (2002), Os bandidos (2005), Reportagem urbana (2008) e Contos reunidos(2011).Desde 1999 ocupa a Cadeira nº 12 da ALB, sendo atualmente seu presidente, na gestão (2011-2013). 56 Revista ALB 50_finalizada.pmd 56 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O biógrafo das criaturas de Jorge Amado Luis Henrique Dias Tavares Paulo Dias Tavares é o biógrafo dos personagens do romancista Jorge Amado, motivo do seu livro Criaturas de Jorge Amado, publicado em duas edições. A primeira da Editora Martins, data de 1969, capa de Carybé. A segunda, da Editora Record, com a participação do Instituto Nacional do Livro – INL –, capa de Floriano Teixeira. Jorge Amado conheceu os originais desse único dicionário de seus personagens em 1965. Cuidou em seguida de sua publicação. Tinha 2.466 personagens dos romances de Jorge Amado, somados de Cacau, que é de 1931, a Dona Flor e seus dois maridos, devendo-se acentuar que Subterrâneo da Liberdade reúne três livros: Os ásperos tempos, Agonia da Noite e A luz no túnel. Acrescento mais que Os velhos marinheiros reúne dois livros: A morte e a morte de Quincas Berro d’Água e Os velhos marinheiros. A segunda edição do Criaturas data de 1985. Soma 3.746 personagens. Somados aos nomes de personalidades reais ou lendárias acrescentam-se mais 802; nomes de animais e aves Obs: Pronunciamento feito em 16.09.2010 na Academia de Letras da Bahia. 57 Revista ALB 50_finalizada.pmd 57 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 com nomes próprios, mais 50; localidades, mais 312, totalizando 4.910 verbetes. A 1a edição do Criaturas não foi para as livrarias. Repito a data: 1969. O Brasil estava sob ditadura inaugurada em 1964. Alcançaria total negação de tudo com o AI-5, 1968. Jorge Amado estava sob permanente vigilância dos olheiros que o espionavam. Cuidadoso para que essa brutalidade não alcançasse o Criaturas e o seu autor Paulo Dias Tavares, nosso inesquecível Jorge Amado incluiu o Criaturas na coleção de seus livros posta à venda. Foi um sucesso e uma fórmula que permitiu ganho inesperado a Paulo Dias Tavares. A 1a edição do Criaturas não tem prefácio. Não obstante, o romancista James Amado, na orelha, escreveu: “Paulo Tavares eleva o padrão deste tipo de dicionário no tratamento dos verbetes dedicados aos personagens, para o que utiliza a própria linguagem do texto de ficção ou a recria – o que é mais frequente – com grande habilidade”. A 2a edição data de 1985. O nosso sagrado Brasil ainda se encontrava sob ditadura, mas havia sinais de mudança, piscados no ato que concedeu anistia aos brasileiros que sofreram prisões e torturas. O Criaturas de Jorge Amado era um livro premiado pela Academia Brasileira de Letras desde 1970 (Prêmio Carlos de Laet). Daí a sua repercussão com artigos assinados por Carlos Drummond de Andrade, Josué Montello, Wilson Martins, Antonio Olinto, Permínio Asfora, Esdras do Nascimento, José Alípio Goulart, Raymundo de Menezes, Anízio Teixeira, José Conde, Eneida, Malcolm Silverman (Universidade de San Diego, EUA), Zdenek Hampl (Universidade de Praga) e William Grossman (Universidade de New York). Essa 2a edição do Criaturas chegou às livrarias a partir do lançamento na livraria de Dmeval Chaves na Avenida Sete, trecho das Mercês. Vendeu muito bem em todo o Brasil! No entanto, não existe hoje qualquer nova edição do Criaturas de Jorge Amado. Repito: a edição de 1985 foi a última. Hoje não 58 Revista ALB 50_finalizada.pmd 58 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 existe qualquer iniciativa para que volte a ser editado, o que é uma injustiça! Passo agora a Paulo Dias Tavares que estaria completando 100 anos no próximo dezembro, porquanto nasceu em 1910 na cidade de Nazaré das Farinhas, filho de Amélia Rodrigues da Costa Tavares e Joaquim Dias Tavares. Aos sete anos, criança que encantava a todos por ser bonito e inteligente, Paulo Dias Tavares sofreu paralisia, em 1917, doença que abateu em Nazaré outros meninos com as idades entre sete e 10 anos. Não havia cura! Paulo Dias Tavares aprendeu a ler e escrever no sobrado de seus pais, Amélia e Joaquim, situado na Praça Municipal. Não sei o nome da professora. Todavia sei que desde aquela aprendizagem, Paulo Dias Tavares revelou fome de livros e firme decisão para a vida. Primos mais velhos e amigos muito próximos, no exemplo de Ciridião Tude, cuidaram de inaugurá-lo para o sexo. Iam buscálo no primeiro andar do sobrado e o carregavam para o carro de Ciridião. Dali, o levavam para a cama de uma prostituta na Rua da Fontinha. O jovem Paulo era alegre e cativante. Não demorou para conhecer e namorar a jovem Haydée Guimarães, baiana da Cidade do Salvador, presente na cidade de Nazaré na casa da família Crusoé, localizada do outro lado do Rio Jaguaripe. O jovem Paulo Dias Tavares ia namorá-la montado em uma mula. Haydée em pé, a mula inquieta, não os deixando namorar. Paulo Dias Tavares desejou possuir uma baratinha Ford. Joaquim Dias Tavares, o seu pai, era o comerciante da família Dias Tavares. Maria Rosa Coelho de Souza Tavares, mãe de Joaquim, era a dona do armazém que o seu marido, o português João Dias Tavares, construíra e fizera progredir até a sua morte em 1894, ele com 48 anos. Na forma da época, Maria Rosa escolheu o filho mais velho (tinha 11 filhos e filhas), Abílio, para suceder o marido. Abílio estudava medicina no Rio de Janeiro. Resistiu ao chamado, mas obedeceu a ordem de sua mãe. Quase 59 Revista ALB 50_finalizada.pmd 59 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 em seguida se casou com Alice Lopes Caldas Brito e constituiu família. Nos anos de 1910, Abílio ganhou um prêmio no sorteio do banco com o qual trabalhava. Foi por isso que ele decidiu mudar-se para a Cidade do Salvador e passou a administração do armazém para o irmão Joaquim. A família Dias Tavares era partidária do governador Francisco Marques de Góes Calmon. Foi daí que conseguiu nomear Paulo Dias Tavares escrivão de coletoria estadual na cidade de Nazaré. Era a maneira de garantir condições financeiras para o casamento de Paulo Dias Tavares. O casamento já estava marcado quando denunciaram ao governo que Paulo era paralítico, condição proibida no serviço público. Ele foi demitido. Todavia a família Dias Tavares conseguiu que Haydée fosse nomeada escrivã de coletoria estadual. Casaram-se em 1931. Contudo não existiu um só dia em que Haydée Guimarães Tavares exercesse o trabalho de escrivã de coletoria porque Paulo Dias Tavares cumpria completamente as tarefas. Cabia à sua esposa assinar os relatórios finais da coletoria. Só! Acentuo que Paulo Dias Tavares continuou amante dos livros. Ademais, com o auxílio do pai, comprou a desejada baratinha. Pergunte-se: como a movimentava se ele era paralítico? Respondo: Paulo Dias Tavares ligava e dirigia a sua baratinha apenas com as mãos, habilidade que se tornou possível por causa da inteligência e inventiva do italiano Marighela. Ele possuía uma oficina e jamais respondia “não posso fazer”. Ao contrário. Quando procurado, ele dizia “vamos ver”. Foi assim quando a baratinha de Paulo Dias Tavares foi levada para a porta de sua oficina. Em menos de duas semanas, Marighela inventou o jogo manual que permitiu a Paulo Dias Tavares dirigir a sua baratinha. Ele conheceu Jorge Amado em 1943, ano em que o grande romancista voltou de seu exílio em Montevidéu e foi preso, ao desembarcar, no Rio de Janeiro. Não obstante a prisão e as terríveis condições do cárcere, ele conseguiu que o governo do Estado 60 Revista ALB 50_finalizada.pmd 60 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Novo permitisse a sua volta para a Bahia sob o compromisso de não viajar para outro estado. Ora, muito bem! Paulo Dias Tavares, de quem Jorge Amado sabia que era seu leitor e inimigo da ditadura do Estado Novo, razão para ir visitá-lo na cidade de Nazaré. Logo se identificaram amigos e conversavam na varanda da casa de Paulo Dias Tavares. Contavam coisas e davam risadas que ecoavam na Praça Municipal. Pergunto-me: foi naqueles dias terríveis da II Guerra Mundial que Paulo Dias Tavares imaginou escrever a biografia dos personagens de Jorge Amado? Avalio que não. Suponho que ele mergulhou neste enorme trabalho nos anos de 1960, quando a escrivã Haydée Guimarães Tavares foi transferida da Coletoria de Nazaré para outra na Cidade do Salvador por denúncia de um coletor que a perseguiu ao descobrir que Paulo Dias Tavares era quem exercia de fato as tarefas da coletoria. Mudaram-se de Nazaré para a Cidade do Salvador e levaram algum tempo trocando de endereços até fixarem-se no apartamento da Graça. A escrivã Haydée foi aposentada. Acredito que foi naqueles novos anos de 1960 que Paulo Dias Tavares escreveu o Criaturas de Jorge Amado. Desejo informar que Paulo Dias Tavares dominava o inglês, não para falar, mas para ler e traduzir. Lembro como exemplo a tradução do poema de Pablo Neruda na saudação a Luis Carlos Prestes no famoso comício do Pacaembu (SP). Paulo Dias Tavares conhecia o poema em inglês e o traduziu. Acrescento que ele aprendeu inglês escutando a BBC de Londres. Acrescento mais que Paulo Dias Tavares comprou e se ilustrava com a leitura da Enciclopédia Britânica – preciosidade que ele ofertou a este seu sobrinho, admirador e amigo. Lembro que Paulo Dias Tavares fez uma conferência nesta Academia sobre o seu Criaturas de Jorge Amado. Ele tinha sofrido três infartos. Sentiu tonturas no decurso da conferência.Foi com o auxílio da sua dona e amada de toda a vida, Haydée, que voltou 61 Revista ALB 50_finalizada.pmd 61 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 para o seu carro e o dirigir para a garagem do edifício em que residia no Campo Grande. Não vou adiante. Solicitei este honroso encontro ao nosso presidente para comemorar o centenário de Paulo Dias Tavares, meu reverenciado tio-mestre, que transcorre em dezembro próximo. Quero observar que é inaceitável não haver qualquer providência para a reedição do seu imortal Criaturas de Jorge Amado. Luís Henrique é historiador, ficcionista, autor premiado de dezenas de livros de história e de ficção; é Professor Titular de História da Universidade Federal da Bahia, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual da Bahia. Desde 1968 ocupa a Cadeira nº 1 da ALB. 62 Revista ALB 50_finalizada.pmd 62 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A Influência Francesa na Arquitetura e Urbanismo Brasileiros Paulo Ormindo de Azevedo Em 25 de março de 1983, Thales de Azevedo, meu pai, pronunciou nesta academia uma conferência magistral sobre a influência francesa na linguagem, costumes e valores na Bahia de sua juventude, A Francesia Baiana de Antanho. Por um cacoete profissional, não resisti à tentação de reunir alguns comentários sobre a francesia num dos campos onde ela foi mais forte no Brasil, durante o século XIX e primeira metade do século passado, a arquitetura, o urbanismo e as artes. Após três séculos de isolamento econômico e cultural do mundo, uma circunstância histórica, a invasão napoleônica de Portugal, transformaria o Brasil Colônia em Metrópole e consequentemente aberto para o mundo. São os ingleses os que forçam e tiram o maior proveito da abertura comercial, mas a abertura cultural seria em direção à França, promovida por D. João VI com a contratação de uma missão de artistas franceses para iniciar o ensino das artes no país, ainda muito provinciano. A ideia partiu do ministro Antonio de Araújo Azevedo, 1º Conde da Barca. A Missão foi chefiada por Joaquin Lebreton e composta 63 Revista ALB 50_finalizada.pmd 63 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 pelo arquiteto Grandjean de Montigny, os pintores Nicolau Taunay e Jean Baptista Debret, o escultor Auguste Marie Taunay e o gravador Charles Simon Pradier. Embora fundada em 1816, a Academia Imperial de Belas Artes só começaria a funcionar efetivamente dez anos mais tarde, quando alguns membros da missão já haviam morrido ou retornado à França. Mas nesse período fizeram obras importantes e documentaram a cena brasileira. Nesse particular foi importantíssima a contribuição de Jean Batista Debret documentando paisagens, costumes e tipos do país em sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Se a Missão perdeu alguns membros ganhou outros, como os irmãos Marc e Zépherin Ferrez, escultores e gravadores franceses que imigraram para o Brasil por conta própria. Assinale-se ainda os artistas Charles Henri Levesseur e Louis Symphorien Meunié, que lecionaram na Academia de Belas Artes na condição de pensionistas (RIOS FILHO, 1960, p. 245). O Neoclássico introduziu a simetria nas plantas e fechadas, elevou os edifícios do chão criando o chamado porão baixo e introduziu a platibanda (plate-bande) como forma de dar a sensação que os edifícios terminavam em terraços (terrasses) ou áticos e não em telhados como na tradição colonial. A nova academia transforma o Neoclássico no estilo oficial do Império, que se irradiaria do Rio de Janeiro para todo o país. Outros profissionais que se destacam neste período foram Grandjean de Montigny e e pouco depois Pedro Alexandre Cavroé, filho de franceses, que foram agraciados com o título de Arquiteto do Senado da Câmara. O francês Pedro José Pézérat foi arquiteto particular de D. Pedro I e Joaquin Bethencourt da Silva recebeu o título de Arquiteto Imperial durante o reinado de Pedro II. Cite-se ainda os arquitetos Joaquim Cândido Guillobel; e Charles-Philippe Garçon Riviére que atuaram durante o 1º e 2º reinados. Ainda no Rio de Janeiro assinalem-se os trabalhos de urbanismo do Eng. Pedro Taulois que projetou uma avenida 64 Revista ALB 50_finalizada.pmd 64 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 litorânea, em 1830, na região da Gamboa e Saco do Alferes, não executada, onde foi construído depois o cais do porto. Em 1874 no Governo do Visconde do Rio Branco, o Ministro do Império, João Alfredo, nomeou uma comissão para elaborar um plano de melhoramentos para a cidade da qual participou entre outros o futuro prefeito Francisco Pereira Passos e o Eng. Ernesto Guignet. Este primeiro plano urbanístico integral elaborado no Brasil não foi executado na época, mas seria em grande parte aproveitado por Pereira Passos quando prefeito (PEREIRA, 2008, p.14) . No paisagismo, devemos assinalar as contribuições de Auguste Marie Francisque Glaziou, botânico e hábil jardineiro, que reformou o Passeio Público, o Campo de Sant’Anna e a Quinta da Boa Vista e projetou o jardim da Praça da Aclamação, atual da Republica, entre 1860 e 1880, bem como a contribuição de seu discípulo Paul Villon (TELLES,1994, p. 148). No Nordeste, o arquiteto francês Louis Léger Vauthier, egresso da École Nationale de Ponts et Chaussés com passagem pela École Polytechnique de Paris difundiria o Neoclássico no Recife, onde chegou em 1840. Nessa mesmo cidade, o mestre pedreiro e arquiteto Manuel Ferreira Jácome projetou a igreja de de São Pedro dos Clérigos. A arquitetura eclética adotada pela Primeira Republica foi em grande parte feita por arquitetos franceses, como Francisque Couchet, sócio de Arquimedes Memória e com quem projetou a Camara de Deputados e o Jóquei Clube, no Rio de Janeiro, ou de inspiração francesa, como o Teatro Municipal do Rio de Janeiro (1905-1909), do Eng. Francisco de Oliveira Passos, sobrinho do Prefeito, uma replica da Ópera de Paris, de Garnier. O engenheiro contou neste projeto com a colaboração de técnicos de nomes ou sobrenomes franceses, como René Brada (coor.), Albert Gilbert, Antonio Ruffin, Charles Peyroton, Emílio Bion e J. Personne. A vizinha Biblioteca Nacional foi projetada pelo escritório francês Hector Pepin et Taquenot, entre 1905 e 1910. Modernizando as técnicas construtivas, os programas, e a decoração o Ecletismo deixou muitos termos ainda em uso na 65 Revista ALB 50_finalizada.pmd 65 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 arquitetura brasileira. Na construção civil podemos citar o betão armado (béton armé), a betoneira, o radier ou laje armada sob uma construção, as telas depolyé de metal estendido para armar o estuque (stuc), o gransepe, chapuz corrido para fixação de assoalho sobre laje de concreto, a claraboia (claire voie) e o pilotis. Novos cômodos foram incorporados às casas, como o budoar (boudoir) ou quarto íntimo de mulheres, o sanitário (sanitaire), antes conhecido como quartinho, ou casa de banho, agora com bidê (bidet), ducha (duche) e retreta (retrete) e as mansardas (mansardes), nova denominação das modernizadas águas furtadas. Mas é na decoração sua maior influencia com a introdução do vital (vitrail), lambris, parquet, plafond (forro ou luminária de teto), abajur (abat jour) e móveis, como sofá (sofa), divã (divan), pufe (pouf), console e toalete (toilette). Muitos arquitetos e engenheiros brasileiros fizeram sua formação na França, como o Eng. Francisco Pereira Passos, formado pela École des Ponts et Chassés de Paris, e o arquiteto gaúcho Manuel de Araujo Porto Alegre, diplomado pela Escola de Belas Artes da mesma cidade. O paulista Francisco de Paula Ramos de Azevedo, autor dos projetos do Teatro Municipal e da atual Pinacoteca de São Paulo e o baiano José Nivaldo Allioni, receberam o título de engenheiro-arquiteto pela Universidade de Gand, na Bélgica. Allioni assina o projeto da primitiva Escola de Belas Artes, depois transformada em Senado da Câmara do Estado da Bahia, na Praça da Piedade, mutilada com a abertura da Av. Sete de Setembro por Seabra. Reformou também o sobrado do colecionador Jonathas Abott, na Rua do Tijolo, mais tarde sede da Escola de Belas Artes da Bahia1. Podemos ainda citar como provavelmente formado na França Francisco de Azevedo Monteiro Caminhoá, onde se encontrava quando mandou o projeto da reforma classicizante da Casa de Câmara e Cadeia de Salvador (1887), inspirado na arquitetura de Luiz XVI. Curiosamente, o primeiro livro de urbanismo de autor brasileiro, o Eng. Francisco Saturnino de Brito, foi escrito em francês, Le Tracé Sanitaire de Villes, publicado em 1916 (TELLES, 1984, p. 165). 66 Revista ALB 50_finalizada.pmd 66 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O Art Nouveau foi outro estilo da Belle Époque brasileira e teve no franco-argentino Victor Dubougras um de seus maiores representantes no Brasil. Dubougras é o autor da reconstrução da nossa Faculdade de Medicina, depois do incêndio de 1905. Atuaram muito no Rio e em São Paulo, entre 1910 e 1920, os escritórios de arquitetura Viret & Marmorat e de Joseph Gire, este projetista do Copacabana Palace, Hotel Gloria e Ed. de A Noite, com 22 pavimentos em estrutura de béton, armé, um assombro na época2. Mas a maior influência francesa seria no urbanismo, com a reforma de Belém do Pará, sob o intendente Antonio Lemos (1897-1902), que a transformou na “Paris n’America” ou “Petit Paris” e em Belo Horizonte (1894-97), projeto do Eng. Aarão Reis, com um boulevard de 50m de largura e largos trottoirs - a Av. Afonso Pena – terminando em uma réplica de L’Etoile de Paris, o rond points do obelisco. Mas a mais impactante influência do urbanismo francês no país se deu na reforma do Rio de Janeiro (1902-06), então capital do país, quando prefeito Francisco Pereira Passos, que estudara na França enquanto Haussmann reformava Paris. Pereira Passos queria abrir a Av. Central, atual Rio Branco, com 50 m. largura, como as avenidas de Paris, mas se conformou com 33 m. De qualquer modo reproduziu um boulevard parisiense na Av. 28 de Setembro e abriu as avenidas Salvador de Sá, Gomes Freire e Passos. A reforma do Rio de Janeiro seria reproduzida no Recife e aqui em Salvador pelo Governador J.J. Seabra (1912-16)3. O urbanismo francês se fez presente também na atuação de Alfred Agache no Rio de Janeiro. Ele fora convidado, em 1927, para urbanizar as áreas resultantes do desmonte do Morro do Castelo e aterro do Calabouço, o que resultou na criação da Comissão do Plano da Cidade, depois transformada no Departamento de Urbanismo da Prefeitura carioca. Agache foi o terceiro colocado no concurso para o planopiloto de Camberra, Austrália. Adepto do urbanismo de Haussmann, Agache propôs grandes avenidas para o Rio e projetou uma Cidade Universitária na Praia Vermelha. Ele é o provável 67 Revista ALB 50_finalizada.pmd 67 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 introdutor do cul de sac no Brasil. O Urbanista francês chegou a fazer uma proposta, no inicio da década de 1940, para realização do Plano Diretor de Salvador, concorrendo com Mario Leal Ferreira. A influênciaria francesa é também visível no plano-piloto de Goiânia (1933-37), de Attilio Corrêa Lima, pós-graduado em Urbanismo pela Sorbonne, com uma malha de rond points e arquitetura Art Déco nas edificações públicas. Este estilo, iniciado com a Exposição de Arte Decorativa de Paris (1925), teve grande influencia na primeira geração de edifícios de Copacabana e em São Paulo. Aqui em Salvador o Art Decó produziu a bela decoração marajoara do Instituto do Cacau da Bahia (1932-36) e algumas residências pequeno burguesas em bairros novos, como Barris, Canela, Rio Vermelho e Pituba. Neste último bairro, vale lembrar a Casa do Navio, já demolida, construída pelo Dr. Boureau. A influência francesa foi também muito forte no Modernismo brasileiro. Na Semana de Arte Moderna de 1922, uma das figuras centrais foi o escultor ítalo-brasileiro Victor Brecheret, que havia estagiado com Auguste Rodin e Èmile-Antoine Bourdelle na França. Muitos outros artistas modernistas se aperfeiçoaram na França como Ismael Nery, que cursou a Academia Julian em Paris nos anos 20 e Portinari, que morou na mesma cidade no período 1928-30, onde conheceu Chagall e Picasso. Já nessa época os arquitetos brasileiro começavam a se contaminar com as ideias de Le Corbusier publicadas na revista L’Esprit Nouveau e com a publicação de seus primeiros livros, Vers une Architecture (1923) e L’Urbanisme (1924). Sua passagem pelo Brasil em 1929 fazendo conferências no Rio e em São Paulo prepararia o caminho para o convite do Ministro Gustavo Capanema para projetar o Ministério da Educação e Saúde e Cidade Universitária na Mangueira, em 1936, em equipe com arquitetos brasileiros liderados por Lucio Costa. Consolidava-se, assim, a arquitetura modernista brasileira, cuja maior expressão é 68 Revista ALB 50_finalizada.pmd 68 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Brasília (1957-59), inspirada nas ideias de Le Corbusier, dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna - CIAM e na paixão de Lucio Costa por Paris, onde passou a infância. Brasília, como Paris, possui eixos de composição, boulevards, esplanadas ou plataformas (plate-formes) e a referência visual de uma torre que ordena todo o espaço urbano. Pela mesma influência, a maioria das prefeituras brasileiras tornou o pilotis, que passou a ser sinônimo de piso vazado, obrigatório nas construções habitacionais em altura. Durante um século e meio a inspiração da arquitetura brasileira foi francesa. Com a Semana de 1922 e a construção de Brasília, a arte, a arquitetura e o urbanismo brasileiro assumem um caráter próprio e se distancia da França. NOTAS E REFERÊNCIAS AZEVEDO, Paulo Ormindo. A arquitetura e o urbanismo da nova burguesia baiana. In: De Villa Catharino a Museu Rodin Bahia: um palacete bahiano e sua história. Salvador: Solisluna Design e Editora, 2006, p. 59-103. Vide SANTOS, Paulo F. Quatro séculos de Arquitetura. Rio de Janeiro: IAB, 1981, p. 43-98 e BRUAND, Ynes, Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981. – Sobre a reforma de Salvador sob Seabra vide PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé. Salvador: Edufba, 1999. Paulo Ormindo de Azevedo é arquiteto, ensaísta, Professor Titular da Universidade Federal da Bahia; é consultor da UNESCO, membro do Conselho Consultivo do IPHAN e do Conselho Nacional de Política Cultural, Presidente do IAB-Ba. Tem diversos artigos e livros publicados . Desde 1991 ocupa a Cadeira nº 2 da ALB. 69 Revista ALB 50_finalizada.pmd 69 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 70 Revista ALB 50_finalizada.pmd 70 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Presença do humanismo militante na poesia de Jacinta Passos Florisvaldo Mattos N a introdução à segunda edição de Canção da Partida (Salvador: Fundação das Artes, 1990, José Paulo Paes lamentou estivesse a poesia de Jacinta Passos (1914-1973), àquela altura, “ausente das livrarias”, desde a publicação de sua última coletânea de versos, Poemas Políticos, 39 anos antes, precisamente em 1951. Atribuía esta ausência a “razões de vária ordem”, como “o reconhecido descaso do leitor brasileiro hoje pelos livros de poesia, o que os condena, com raríssimas exceções, a uma vida editorialmente curta”, e a problemas de saúde que afetaram a vida da poeta. Ponho-me a cavaleiro desse vexame editorial, já que coube justamente a mim, por razões que atribuo à ingerência dos fados, então na presidência da Fundação das Artes, na gestão do governador da Bahia Waldir Pires, o privilégio de apoiar e favorecer as iniciativas que resultaram na segunda edição de Canção da Partida, de cuja organização e estudo crítico se incumbira José Paulo Paes. Atendendo a um gentil convite de Janaína Amado, sua única filha, volto agora a me encontrar com a poesia de Jacinta Passos. E não poderia imaginar quanto me iria oferecer de aprendizagem 71 Revista ALB 50_finalizada.pmd 71 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 e deleite essa auspiciosa homenagem. Primeiro, retirando-me do desconforto de leitor de um único livro seu, Canção da Partida, em sua edição baiana; depois, por me permitir a leitura de outros livros seus, desde o primeiro, Momentos de Poesia, 1942, a própria Canção da Partida, na edição de 1945, com ilustrações a bico-depena de Lasar Segall, Poemas Políticos, de 1951, a poesia de nítido vinco ideológico de A Coluna, de 1957. Confesso que saí dessas leituras altamente reconfortado, como que liberto de uma culpa e enriquecido pelo que me trouxe a ampla gama de significados embutidos no corajoso lirismo de Jacinta Passos. E foi percorrendo meandros desse estuário que atentei para as singularidades de um norte temático, responsável por rupturas na criação poética, para as quais se pode tomar o ano de 1939 como ponto de partida, justo com o poema intitulado “Campo limpo”, quando paulatinamente começa a desaparecer de sua poética o que José Paulo Paes chamou, em seu estudo, de “flexão verbal da súplica”, elemento condutor de símbolos por meio dos quais anteriormente se expressavam o espírito religioso e o temperamento místico de Jacinta Passos. “Campo limpo” parece estabelecer uma divisa. A índole poética como que, gradativamente, se desvia, se exila das invocações místicas, em busca de outras cogitações, outros cenários, onde a invocação de “Senhor”, conquanto presença ainda não indispensável, vai se ausentando, substituída por outras formas de satisfação espiritual e existencial. Poesia são janelas, e poetas, faces, prontas para descobertas, há de ter pensado Jacinta, em fins de 1939, provavelmente quando redigiu este poema, que a fez vislumbrar, primeiramente, o ardor da “natureza viva”, brotando do ardor da seiva de campos, a ondular ante novo olhar de assombro para as formas da existência real. Vê profundidades de noites e estrelas, num esplendor de beleza, que a faz perceber em si “uma estranha alegria” – a terra, os campos, a paisagem, como pedaços vivos de si própria, vibrações de uma vida amanhecente. 72 Revista ALB 50_finalizada.pmd 72 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Realmente, amanhece ali outra Jacinta Passos, e logo se produz um encadeamento vibrante de temas. No primeiro poema de 1940, “Alegria”, mente a perscrutar, a poeta descobre o “irmão desconhecido e anônimo”, cuja “face marcada pelo sofrimento” tem o “traço de semelhança” com a verdadeira “face perfeita de todos os homens”. Tudo doravante tornar-se-á matéria de descoberta. Neste mesmo 1940, já com a guerra de Hitler avançando – “A guerra”, “Poema”–, veredas de amor e ternura se abrem pela via mais larga da solidariedade; o olho e o olhar se aproximam do ser humano carente de cuidado e afeto. Simplesmente, Tranquilamente, Eu me abandonarei a ti num gesto de oferenda. Encontrarás no meu olhar a compreensão das palavras que não disseres.” (“Poema”, Momentos de Poesia) A virada se acentua em 1941 com a assunção plena da consciência solidária, a introspecção reflexiva mostrando o sentido da vida em favor de outrem, em poemas como “Compreensão” (Esquecida/de todas as dores do mundo, do mal profundo da vida), “Mensagem aos homens” (Inteira, pura e livre como a luz, a livre luz das alvoradas), “Mistério carnal” (Corpos humanos que a morte tocou./Por que esperam os corpos abandonados/na branca solidão do vasto cemitério?). No processo de libertação da transcendência para a progressiva assunção de uma consciência social, antes mesmo de firmar-se uma opção de cunho ideológico sob os ditames de uma agremiação política (sabe-se que ela em 1945 filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro), Jacinta Passos começa a delinear um panorama temático com a sensibilidade voltada para uma gama de preocupações e anseios que futuramente se vão desdobrar e se firmar, a par com as marchas e contramarchas de um processo 73 Revista ALB 50_finalizada.pmd 73 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 político, através de movimentos, campanhas, organizações, bandeiras, cuja força de atuação tende a se afirmar e crescer, abarcando sucessivos decênios, à medida que o século XX avança, para se transformar em uma quase neurose, ao irromper o XXI. Esse amálgama ideológico que busca se definir numa contracorrente das mudanças políticas cristaliza-se em torno de um feixe temático que, agindo como doutrina de múltiplas faces, vai concentrar-se em fenômenos sob a forma de lutas em defesa da cidadania, do meio-ambiente e da internacionalização de propostas globais de total afirmação das potencialidades do humanismo. Tenho para mim que esse painel temático se escalona, arbitrariamente, na seguinte ordem: 1 – a mulher, a condição feminina, inserida num processo de afirmação e ascensão; 2 – a criança, que desperta a confiança no futuro, a merecer atenção, sendo até objeto de projetos e programas, em escala mundial, que impeçam venha ela mergulhar no desamparo; 3 – a natureza, expressada como um bem a serviço da felicidade geral dos homens, refletida em todos os passos da existência humana, o que pressupõe uma luta permanente pela sua preservação; 4 – finalmente, a eleição exaltada das manifestações populares como refúgio dos desassistidos e vencidos pelos desajustes da própria ordem opressora, na qual se inserem todas as vitimas das desigualdades sociais. Configurando o que já era uma tendência no livro anterior, Canção da Partida se apresenta como uma síntese do engenho antecipativo desse humanismo militante, que, por vezes, na dimensão das ações práticas, toma a forma de humanitarismo. Ao longo deste livro, a poeta constrói poemas, que vão acumulando, concentrando as potencialidades de uma energia humanista, que não seria demasiado chamá-la de raiz precursora de atitudes, comportamentos, posturas e ações, englobadas sob 74 Revista ALB 50_finalizada.pmd 74 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 os rótulos de cidadania, ambientalismo e internacionalização de hábitos e signos culturais. Instala-se um campo magnético de implementação de vontades, na esfera de criação, de aspirações positivas, de ações em defesa dos mais carentes e mais fracos, símil daquele posterior à Segunda Grande Guerra, que fez acender ânimos e crenças – aquele suelo de creencias, vislumbrado pelo espanhol Ortega y Gasset –, ao tempo em que se desmoronavam velhas e caducas formas de afirmação e poder, sob o pálio de novas ideias e padrões de convivência humana e social. Ruem os modelos de dominação do homem pela porta do individualismo, instalando-se uma nova realidade pontuada pelas ideias de liberdade, democracia e socialismo. Hoje, ao fim de uma trajetória que levou de roldão mitos e crenças, alçam-se bastiões de propagação das criações do espírito, como a se instalar um estado de necessidade regido pela lucidez, cujo universo se manifesta e se codifica por meio de novas palavras, novos signos, novos gestos, propagados como compromisso de teor universal. Em face disto, numa linha de premonição, a poesia de Jacinta Passos distingue-se como uma luz precursora de etapas e realidades futuras e se afirma, apesar de editorialmente curta, como um farol, a iluminar múltiplas sendas, planaltos e planícies, onde se vão empreender marchas fatigantes, porém essenciais. Vejamos como se apresenta a poesia de Jacinta Passos nesta sugerida grade temática. Três poemas de Momentos de Poesia – “Mulher”, “Mistério carnal” (ambos já anteriormente aludidos) e “Canção simples” – deflagram o processo em que a condição feminina rompe o grilhão da religiosidade, a que a poeta se filiara por doutrinação espiritualista e inclinação mística, para adquirir expressão de independência em “Três canções de amor”, “Canção da alegria” e, principalmente, num poema de mais fôlego estrutural, “Chiquinha” – todos de Canção da Partida. 75 Revista ALB 50_finalizada.pmd 75 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 No primeiro dos três últimos, valendo-se de reiterações de uma cantiga de roda do folclore infantil, o ato de oferecer o corpo de mulher ao amado, porque, assumida a condição com naturalidade, sabe que amar é doce, enquanto o efeito da entrega agora muda o sol, que muda a terra, ela e também o parceiro, para ambos virarem passarinho, símbolo de pureza e liberdade. E logo a série de perguntas emblema: Cadê a Princesa? A Princesa fugiu? A terra tremeu? A torre caiu? O amor é grande, porém ainda sobram determinações, regras. Logo a poeta decide mandar, e é uma ordem: Abra a porta, queremos entrar! (...) Que porta pesada. Que porta caturra! Empurra! (...) Já cresce o gigante maior que o mar. A porta de bronze vai arrombar! No segundo poema, “Canção da alegria”, elementos do folclore infantil de matriz rural se unem no ato de fazer para sugerir um outro fabrico, além da farinha, quando a urupemba, de tanto peneirar, não resiste, e logo sobrevém o alerta, o grito: Olhe o rombo olhe o rombo olhe o rombo arrombou! 76 Revista ALB 50_finalizada.pmd 76 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 olhe o cisco olhe o risco urupemba furou! (...) Escorra! Escorra! Tirai essa borra! E restará no fim: Farinha fininha Peneiradinha! Ai! vida, que vida minha! nuinha! Vida igualzinha à da “Nêga Fulo”, de Jorge de Lima. Dedicado a sete mulheres – todas certamente de linha participante, como a poeta –, o poema “Chiquinha” tematiza a condição feminina numa perspectiva histórica que enfileira geografias e impérios remotos, séculos, humanidades e conflitos, rumo à libertação do indivíduo mulher em plena sociedade burguesa capitalista, onde a máquina, símbolo de escravização mecânica, se torna no instrumento ideal de, por artes de perseverança e determinação, alcançar-se a salvação. A máquina, típico meio de extensão de braços e mãos, depois do inexorável passar de sofrimentos e humilhações, liberta na mulher operária o corpo de serva doméstica e, arrancando-a de casa, derruba paredes/ limites, fronteiras/ do lar, doce lar/ – prisão milenar. E um corpo liberto constrói o mundo, pela dignidade do trabalho, bom e valoroso – o bastante para a poeta proclamar e concluir, indagando afirmativamente: Chiquinha tu sabes que a máquina que move o mundo moderno te vem libertar? 77 Revista ALB 50_finalizada.pmd 77 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Em “Canção simples”, o recurso ao verso em redondilha patenteia vontade de alteração, de mudança, com um dinamismo rítmico que acondiciona o impulso de vencer a adversidade da submissão feminina, refletida comparativamente na imagem da flor caída no rio, que a leva para onde quer, como fatal destino. Mas, encadeando paralelismos, a poeta maneja uma dialética em que subsiste a ideia da “mulher semente”, da entrega da virgindade como uma divisão que não deixa resto, das confissões masculinas de amor infinito que contrastam com a finitude da vida, para por fim rotular a submissão chancelada pela relação sexual como expressão da “fraqueza humana”. Não sem razão, José Paulo Paes, em seu estudo crítico, invoca observação de Sérgio Milliet, que ressaltava, em Jacinta Passos, uma sensibilidade “marcadamente feminina”, a abrir-se para “uma visão crítica da condição da mulher rara de encontrar-se na poesia brasileira” até ali, basicamente por meio da criação poética projetada na Canção da Partida. “Cantiga das mães”, de Momentos de Poesia, encara o tema da criança numa clave de fatalidade, subjacente na inevitável perda maternal do filho, por efeito de um determinismo existencial, imposto pela ordem natural das coisas. Fruto quando amanhece cai das árvores no chão e filho depois que cresce não é mais da gente não. Porém, não é a cadeia do afeto possessivo, supervisionada por um desígnio da natureza, capaz de impedir que filhos cresçam – antes ficassem meninos/ os filhos do sangue meu, geme o coração materno –, pois quem leva o filho não é a morte, mas a própria vida, na dialética de uma realidade cíclica. Amargamente, para a mãe, os filhos partiram – foram viver seus destinos,/ isto sempre foi assim, consente a razão conformista – longe, 78 Revista ALB 50_finalizada.pmd 78 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 bem distante de berço, riso/coisas puras,/ brigas, estudos, travessuras/ tudo isso já passou, rematando com o doloroso refrão: Foi a vida que roubou. Depois da “Canção para Jana” (Poemas Políticos), na qual, ferida no mesmo bordão de perda irrecusável – Flor buliçosa/rosa crescei –, suspira a incerteza da volta, para agasalhar-se na sombra aqui destas asas/ até um dia, é na “Canção de brinquedo” que o estado de resignação se impõe, na certeza de que no reino da terra/ riso será, riso que (avisa) não é de graça, porque para a flor de sangue invocada (a criança) tempo virou/ tempo virá. E mostra a linha de risco, marco de desafio, já que a menina não é flor sozinha, logo novo aviso: Um olho aceso entre as mulheres criatura minha. E então manda o destino de ser liberto, que segue (a menina) puxando o novelo: Agora sim. Flor no cabelo entra na roda e dança, ó jasmim. Obra seminal desta antecipação de temáticas que irão proliferar num contexto de humanismo universalizante, Momentos de Poesia apresenta o poema que traduz o sentimento inaugural de devoção e reconhecimento do primado da natureza – “Campo-Limpo”, justamente o nome da fazenda onde nasceu Jacinta Passos, nas proximidades de Cruz das Almas, no Recôncavo baiano. É lá que, nos seus campos banhados de sol, literalmente viceja o ardor da seiva rebentando nessa natureza viva, propagado em doçura de céu crepuscular, árvores frondosas que se alongam como fantasmas quando a noite desce, cujo esplendor de beleza provoca uma estranha alegria, por de lá provirem sombra e flor e fruto – paisagens que fazem reviver, interiormente, todos os instantes perdidos para sempre, ocultos, de uma infância já morta, mas conservada no ser profundo. 79 Revista ALB 50_finalizada.pmd 79 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Nessa poética de descortino virtual do mundo, o amor livre, presumido e desejado em canção, não acontece apenas com o despir da roupa da mulher, mas no instante em que o corpo é fruto (“Canção do amor livre”). Traduzido em escrita despojada: Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre. Madeira e água deslizante, fuga aí rija cintura de potro bravo. E o corpo masculino aflora como Relâmpago depois repouso Sem memória, noturno. A predisposição de amar, de dar-se ao amor (“Chamado de amor”), não se consuma como exorcismo carnal, mas como forma delineada a partir de potencialidades da natureza que se manifestam: Tanta laranja madura ai tanta! que aroma vem do quintal. A maré já deu passagem cresce meu canavial. (...) Jasmim da noite floriu. Jasmim. Acabou-se o bem e o mal. Desde o recurso à inserção de formas líricas oriundas do universo infantil, usando refrões de cantigas de roda – Passa/ passa/ passará/ derradeiro ficará (“Canção da Partida”); Eu fui por 80 Revista ALB 50_finalizada.pmd 80 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 um caminho./ Eu também./ Encontrei um passarinho./ Eu também (“Três canções de amor”); Su su su/ neném mandu/quem dorme na lagoa/ é sapo cururu (“Cantiga de ninar”) –, de formas folclóricas (samba-de-roda), até toadas de trabalho – Urupemba/ urupemba/ mandioca aipim!/ peneirar/ peneirou/ que restou no fim? (“Canção da alegria”), como observa José Paulo Paes, a poesia de Jacinta Passos avança para latitudes criativas em que ressaltam preocupações com as adversidades do ser humano, centradas no sofrimento e em estados de infortúnio que se apossam de almas desamparadas pela sociedade, de que são exemplos, para resumir, os poemas “Navio dos Imgrantes”, “Sangue Negro” e “Carnaval”. O primeiro deles, dedicado ao pintor Lasar Segall, que ilustra a primeira edição de Canção da Partida, exalta a triste saga aventurosa de seres humanos impelidos aos quadrantes do mundo por vicissitudes diversas, como corpos largados/desamparados,/límpido tempo/de primavera/mora no fundo/de vossa espera. Corpos humanos suportam corpos seus desenganos. Corpo, cansaço longa viagem, busca um regaço terra ou miragem. O segundo, “Sangue Negro”, lavrado em vertente nitidamente social, irradia um halo de confiança plena na extinção do flagelo da miséria que se abate sobre seres humanos, através de forças latentes criadoras do progresso material, como no fazer jorrarem as reservas petrolíferas das profundezas do solo baiano – sangue negro da cor da noite/ da cor do negro africano, em alusão ao braço que muito deu à terra de que foi escravo –, energia libertadora, que impulsiona transformações múltiplas, refletida até mesmo no aboio 81 Revista ALB 50_finalizada.pmd 81 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de indício mutante do vaqueiro nordestino – O homem tira da terra/ a chuva que o céu não dá. E até, com a alma transbordante de fé: O lavrador largará a enxada que dos pais recebeu e moverá os arados mecânicos que os homens de outras terras lhe ensinaram através da distância e dos ventos oceânicos. Em “Carnaval”, manejando o verso-livre – uma particularidade formal da poética modernista –, a linguagem se solta, variam timbre e ritmos, aflora um estado de ânimo que, penetrando numa expressão da vida popular, acompanha o seu desenrolar, impelido pela imaginação plural, em flagrante manifestação de liberdade ao longo dos espaços urbanos, consagrado pela mistura de raças e classes, cores e ritmos, própria da cultura da Bahia. É ali que, pelos cantos e batuques, o negro é rei. Negro é rei no carnaval, tem manto, tem cetro, e o chapéu de sol é pálio real. É no carnaval que gritos humanos, interjeições,/ lança-perfumes, desejos sem rumo (...)/ um cheiro forte de todas as raças,/ vibram no ar. Uma massa humana, todas as cores, todas as raças, todas as classes, em confusão. De que subsolo irrompeu, informe, nua, essa nova realidade sem nome que dança na rua? 82 Revista ALB 50_finalizada.pmd 82 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 E prossegue a poeta, registrando em versos a mistura sem fim – homens, mulheres chiques que têm amantes, vagabundos elegantes, literatos de academia, gente graúda, gente pobre, louro estrangeiro, ondas humanas, cuja voz se perde na multidão e no asfalto. Um povo surgiu, surgiu não sei donde dançando, cantando, um povo surgiu. Universo especular de símbolos em que se reflete a alma de Jacinta Passos, porque a um só tempo está no seu sangue, em que se concentram sementes de vida popular. No meu sangue, as raças, as classes, os povos misturam-se. Eu sou a Bahia. Viva o Rei Momo! Hoje é seu dia. A permanência da poesia de Jacinta Passos há de ser analisada pelas virtualidades que antecipa o seu humanismo militante em relação a temas hoje mundialmente disseminados sob rótulos e bandeiras diversas em defesa de princípios como cidadania, meioambiente e solidariedade internacional, na luta contra a ignorância, a violência e a miséria, por efeito das palavras que usa para expressar seus estados de alma, na busca de si mesma. Desta maneira, poemas, versos, timbres e variados ritmos de sua obra, lastimavelmente curta, fazem-na uma precursora de ideias, movimentos e campanhas hoje agasalhados sob o vasto manto da ação humanista patrocinada por organizações não-governamentais (ONGs), instituições nacionais e internacionais, em vários países, proclamados e consagrados como vias capazes de assegurar ao homem paz e sobrevivência produtiva na terra. Uma poesia que propaga sonhos e metamorfoses, pela força de seu lirismo. 83 Revista ALB 50_finalizada.pmd 83 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 TRÊS POEMAS DE JACINTA PASSOS Canção do Amor Livre Se me quiseres amar, não despe somente a roupa Eu digo: também a crosta feita de escamas de pedra e limo dentro de ti, pelo sangue recebida, tecida de medo e ganância má. Ar de pântano diário nos pulmões. Raiz de gestos legais e limbo do homem só numa ilha. Eu digo: também a crosta essa que a classe gerou vil, tirânica, escamenta. Se me quiseres amar. Agora teu corpo é fruto. Peixe e pássaro, cabelos de fogo e cobre. Madeira e água deslizante, fuga ai rija cintura de potro bravo. Teu corpo. Relâmpago depois repouso sem memória, noturno. 84 Revista ALB 50_finalizada.pmd 84 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Campo-Limpo Quando vejo, ondulando ante os meus olhos, os teus campos banhados pelo sol, o ardor da seiva rebentando nessa natureza viva, a doçura do teu céu na hora crespular, a sombra negra das árvores que se alongam como fantasmas quando a noite desce a profundeza insondável das tuas noites estreladas, quando vejo o esplendor de tua beleza, sinto, inesperada, uma estranha alegria, como se encontrasse um pedaço vivo de mim mesma. Campo-Limpo, as tuas paisagens se identificaram com todas as vibrações de minha vida amanhecente. As tuas paisagens parecem humanas. Parece humano o murmúrio do vento nas tuas árvores seculares e a branca silhueta da velha casa antiga. Tuas paisagens revivem a minha vida já morta, todos os instantes perdidos para sempre e que eu quizera integrados num momento eterno. Como árvores que dá sombra e flor e fruto esconde as raízes na terra de onde veio, estão mergulhadas no teu solo, as raízes mais profundas do meu ser. 85 Revista ALB 50_finalizada.pmd 85 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 1935 Tenso como rede de nervos pressentindo ah! novembro de esperança e precipício. Fruto peco. Novembro de sangue e de heróis. Grito de assombro morto na garganta, soluço seco dor sem nome. Ferido. De morte ferido. Como um animal ferido. Luta de entranhas e dentes. Natal. Sangue. Praia Vermelha. Sangue. Sangue. É quase um fio escorrendo sangrento tenaz por dentro dos cárceres, nas ilhas e nos corações que a esperança guardaram. ________ Florisvaldo Mattos é poeta, jornalista e ensaísta. Publicou diversos livros, como Travessia de Oásis – A sensualidade na poesia de Sosígenes Costa (2004); recentemente, lançou o livro Poesia Reunida e Inéditos (São Paulo: Escrituras, 2011). Desde 1995 ocupa a Cadeira nº 31 da ALB. Este texto foi escrito especialmente para o livro Jacinta Passos, coração militante – poesia, prosa, biografia, fortuna crítica (Salvador-BA: Edufba / Editora Corrupio, 2010), que teve Janaína Amado como sua organizadora (págs. 521 a 531). . 86 Revista ALB 50_finalizada.pmd 86 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Afrânio Coutinho, centenário: um testemunho de leitura Adeítalo Manoel Pinho Este texto constitui uma homenagem ao centenário do crítico e historiador baiano Afrânio Coutinho. Pretendo aproximar a leitura de sua obra a alguns dos termos propostos por mim durante o estudo do sistema literário da Bahia e da pesquisa de periódicos. Esteio de Sistema e Amadurecimento de Cultura são dois desses termos. Caros para a argumentação, eles pretendem, na sua prática, reverter em positivo o negativo do termo tradição (amadurecimento de cultura) e as íntimas ligações entre escritores cuja obra são capazes de manter acesos os formatos dos acervos literários da Bahia: esteio de sistema. Afrânio Coutinho, por seu lado, é um esteio. É capaz de erguer, nas suas inúmeras pesquisas, principalmente nas obras A Literatura no Brasil e Enciclopédia da Literatura Brasileira, um rol imenso de autores e obras ligadas ao sistema literário do Estado. Sendo assim, me utilizo das ideias da Teoria da Recepção, dos estudos culturais e da nova história da literatura. __________ Texto apresentado no III Colóquio do Grupo de Estudos Literários Contemporâneos: um cosmopolitismo nos trópicos e 100 Anos de Afrânio Coutinho (1911-2011): a crítica literária no Brasil, Universidade Estadual de Feira de Santana/PPGLDC, 15 e 16 de dezembro de 2011. 87 Revista ALB 50_finalizada.pmd 87 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Uma das primeiras experiências com Afrânio Coutinho provém da visão da coleção A literatura no Brasil vendida na livraria do PIDL, na Universidade Estadual de Feira de Santana. No início dos anos 1990, os seis volumes da publicação, orgulhosamente mostrada e comentada pelo professor e diretor da livraria Raimundo Luiz, tornaram-se para os estudantes mais aplicados do curso de Letras da UEFS um objeto de desejo. Comprávamos aos poucos, volume a volume, como numa coleção. Os exemplares volumosos eram consumidos primeiro pelos olhos, depois pela leitura e, ao final, descobríamos os autores, os ensaios de peso. A narrativa no plural era fato. Lembro que mais colegas chegavam à livraria interessados no conjunto de ensaios, principalmente, sobre Antonio Vieira, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Jorge Amado. Alguns próximos podem também testemunhar, como Valéria Soares, Maria da Conceição Araújo, Jecilma Alves, Maria Valdilene, Glória Mendes, Francisco Fábio de Vasconcelos e José Francisco da Silva (esses últimos não me lembro se compravam, mas queriam ter). Aliás, era uma das poucas fontes de estudo sobre o romancista baiano cujo centenário será comemorado no ano de 2012. Como tínhamos manias que parecem desaparecidas ultimamente, discutíamos em sala de aula, biblioteca e mesas de bares sobre os ensaios e, pasmem, conseguíamos identificar ensaístas como Luiz Costa Lima, Barreto Filho, Brito Broca, Lúcia Miguel Pereira, Antonio Candido, e o polêmico Eugênio Gomes, que evidentemente não sabíamos que era baiano e, com justiça ou não, oscila entre os mais notáveis vilões ou perseguidos da história literária brasileira. Estão neste pódio Sousândrade, Lima Barreto, José do Patrocínio, Coelho Neto, Monteiro Lobato. Ignorávamos a tumultuada querela do papel da história da literatura no contexto, nos interessava discutir os grandes textos da literatura brasileira a partir do peso daqueles ensaios reunidos. Outro assunto indigesto, as ligações ideológicas entre tais senhores de farta bibliografia e estilo marcante não passavam 88 Revista ALB 50_finalizada.pmd 88 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 por nossos temas de debate. Nem tão pouco que, alheio ao sonoro esforço de separação entre direita integralista e esquerda socialista, Afrânio Coutinho reunia numa mesma publicação Adonias Filho, Eugênio Gomes, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda e outros. Intelectualmente, isto era muito grave, pois as facções estavam divididas. Outros empreendimentos foram tentados e fracassaram porque alguns estudiosos não queriam estar associados ao regime de Getulio Vargas ou ao Integralismo de Plínio Salgado (nossa versão fascista de nacionalismo). Sobre estes assuntos, senhores sentados nestas cadeiras, presentes a este evento comemorativo e de estudos literários,1 podem versar com mais intimidade e até conforto (ou aflição!) de testemunhas. Para indivíduos como eu, que escolheu enveredar por esta via de estudo da literatura, a historiografia, somente vi aumentar a importância da obra para os estudos literários brasileiros, pois além de reunir o nosso melhor momento de amadurecimento nestes estudos, víamos ali, o que, saberíamos depois, seria o nosso melhor momento criativo de literatura (BUENO, 2009). Ao que parece, os ensaístas também estavam impressionados com as possibilidades de reflexão, aprofundamento, variação e temas capazes de ser encontrados e construídos em seus textos. E isto somente foi possível porque um baiano polêmico, incansável e agregador resolveu fazer uma obra coletiva ainda num contexto dos estudos individuais, das grandes soluções personalistas e, ainda, da formação de um líder espiritual e intelectual que conduzisse para aprisco seguro os nossos sempre incipientes estudos da literatura. Obviamente estou falando de __________ 1 Estava presente ao evento o filho de Afrânio Coutinho, o ensaísta e professor da UFRJ Eduardo de Faria Coutinho. E também Jorge de Souza Araújo, professor da UEFS, que realizou estudos de pós-graduação junto a Afrânio Coutinho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Roberto Veloso Cairo, professor da Unesp de Assis/SP e egresso da UFBA, que passou a juventude na Bahia em tempos ideológicos e de regime militar. 89 Revista ALB 50_finalizada.pmd 89 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Antonio Candido e do que se tornou, ao seu redor, os estudos da literatura na Universidade de São Paulo e foi disseminado para todos os cursos de Letras do Brasil, sempre com muita justiça. Por outro lado, ao que parece, Afrânio Coutinho, na sua faina de pesquisador, via mais longe. Conseguiu legar alguns exemplares de trabalho coletivo capazes de, ao tempo em que promovia a divulgação da literatura no Brasil, dos modelos de pesquisa, também promover avaliação de tais obras e estudiosos. Os alunos de letras, nos quais eu me incluía, discutiam, através daquela obra, literatura, escolhiam os melhores momentos, muitas vezes não os mais populares: parnasianismo, pré-modernismo. A contragosto, meus colegas elegiam o modernismo sobre o qual eu indagava “quem ele havia lançado?” Não se preocupem, todos nos uníamos em torno de Guimarães Rosa, Jorge Amado e Clarice Lispector. Gostaria de justificar um pouco do meu entusiasmo com Afrânio Coutinho na conta da sua baianidade. Se a pertença a esta parte do país pouco importou para ele (a afirmação merece estudo mais apurado), para a minha pesquisa é fundamental. Naquele momento de estudante de Letras, ao que me lembro, não sabíamos disso e nem se tornava informação digna de constar em nossa pauta de apreciação da literatura. As lições de literatura como sistema de Candido não faziam efeito, mas o estudo do estilo e o comparatismo com as grandes obras ocidentais eram a tônica de desvendamento. Também, se nossa via de entrada para o debate a respeito do autor de Tieta do agreste e Gabriela, cravo e canela tinha outro mestre na figura da caixa iluminada da televisão e do cinema, são questões ainda por resolver. Era o tempo, os anos 1990, das adaptações populares da literatura para um público mais amplo. De fato, o Brasil tomava conhecimento de O tempo e o vento, de Erico Verissimo; de Grande sertão, veredas, de Guimarães Rosa; de O primo Basílio, de Eça de Queiroz; de Tieta do agreste, de Jorge Amado, através dos seguidos capítulos da teledramaturgia. Transformados em folhetim muito bem elaborados, adaptados e encarnados por atores e atrizes 90 Revista ALB 50_finalizada.pmd 90 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 famosos do público, velhos conhecidos do sofrer e das paixões de outros personagens, tais livros gloriosos da nossa galeria literária chegavam ao conhecimento do público brasileiro em geral. Se os leitores atuais podem ser chamados de geração internet ou das redes sociais, a nossa facilmente se reconhece como geração TV. Em se tratando de literatura, indiferenciáveis de outros leitores mais cosmopolitas, tínhamos nossos hábitos de leitura clandestina, como diz Roger Chartier. Explico-me. Nossos professores mandavam ler Machado, Graciliano, Drummond, João Cabral, líamos também Jorge Amado, Marquez, Kundera, Sidney Sheldon, quiçá Paulo Coelho. Os anos 1990 também tinham a marca do livros populares, geralmente divulgados pelas listas dos mais vendidos das revistas Veja, Isto é e dos grandes jornais, como Estadão, Folha e JB. Os bestsellers até faziam divulgação em intervalos comerciais da televisão, anunciando que estavam à disposição do público Nas bancas, A insustentável leveza do ser e O amor nos tempos do cólera apareciam anunciados junto a Fernão Campelo gaivota e O alquimista. Em termos de estudos literários, a fala recente do pesquisador João César de Castro Rocha demonstra que aquela energia formada nas entradas e saídas da livraria do Prof. Raimundo Luiz e investida ao longo dos anos por alguns de nós não foi em vão. O professor carioca, um dos principais teóricos da nova história da literatura, afirmou na PUCRS, em outubro de 2011, que iria utilizar a metodologia de A Literatura no Brasil, para organizar a sua nova história da literatura. Para um dos mais interessantes estudiosos de literatura da nova geração, o modelo de Coutinho é viável porque agrega os pesquisadores da área, fornece painel da literatura no Brasil, assume a diversidade nacional quase impossível já de ser conhecida de outra forma que não seja a chamada de publicação, mesmo recortada, torna possível avaliação das diferenças. Isto tudo levando-se em conta também todos os pontos polêmicos, questionáveis e incontroláveis com os quais se pode deparar aquele que resolve empreender tal atividade. As agências de fomento e avaliação acadêmicas, como a CAPES, 91 Revista ALB 50_finalizada.pmd 91 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 também pensam de forma semelhante, quando resolvem financiar eventos e produtos que comprovem o esforço de agregação nacional de especialistas em torno de temas comuns, em vez da dispersão e multiplicação de eventos sobre o mesmo tema. Faz algum tempo realizei estudo sobre a figura do poeta Castro Alves a partir de termo proposto por mim: esteio de sistema. Naquela oportunidade, tomei Castro Alves como esteio de sistema da Bahia. Lá, afirmava que, além da figura poética, erguida ao campo semântico de monumento (LE GOFF, 2003), Alves se tornara essencial para a memória cultural do Estado. Reúne-se, mobilizase, sonha, reconhece-se em torno desse Castro Alves emblemático, erótico, mítico, gerações e mais gerações de intelectuais, literatos, artistas, incentivadores, acadêmicos. O poeta de A Cachoeira de Paulo Afonso toma o lugar, simboliza, corporifica e insufla o que vem a ser a própria Bahia. Pertencer a uma esfera de literatura nacional pouco importa, ou melhor, implementa tais expectativas. Autorizado pelos laços de identidade que ligam literatura e pertença, pode-se pensar numa alegoria estadual. Do mesmo modo que o Estado se acomoda entre os empurrões e solavancos dos outros Estados mais a oeste, pressionando-o em direção ao mar, como é impedido de esgueirar-se sinuosamente para o sul e aparenta, vigoroso, suster os estados do nordeste, a presença de Alves pretende guardar lugar para obras do passado, geradas no presente e gestadas para o futuro. Obviamente, para não parecer bairrista, – não é esta a minha a intenção – , a Bahia também pressiona e fragiliza as outras unidades da federação. Basta lembrar os discursos do político baiano, recentemente desaparecido, Antonio Carlos Magalhães. Em suas áreas de atuação, outros autores são capazes de tais proezas, como Jorge Amado e Afrânio Coutinho. Não por acaso, são exatamente estes 3 autores que inspiraram a ideia agora exposta de esteio de sistema (PINHO, 2008). Naquele momento, os pontos historiográficos explorados na produção de Castro Alves, Afrânio Coutinho e Jorge Amado foram a consagração e a 92 Revista ALB 50_finalizada.pmd 92 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 polêmica. Agora, após a investida em outros referenciais, como é o caso de Jacques Le Goff, até o silêncio pode ser catalogado nesta descrição de fisionomia de sistema. Nesse caminho crítico, outro intelectual de relevo da Bahia causou admiração pela obra que foi capaz de erguer, nas condições que lhe foram oferecidas. Trata-se do Afrânio Coutinho (19112003) que neste ano completa o seu centenário de nascimento. O seu desempenho é tão insinuante que o biógrafo (BELÉM, 1987) justifica a capacidade de trabalho, polêmica e deslocamento com a projeção de obras e instituições, com a saída do tacanho Estado e uma viagem para os Estados Unidos da América. A explicação é muito fácil e poderia reduzir a sensação angustiante de não poder afirmar a força cultural do sistema que vê nascer Coutinho. Óbvia a pretensão de enfatizar tais discursos contra a força intelectual formativa de autores tão distantes no tempo, Padre Vieira e Afrânio Coutinho, nas escritas de seus intérpretes. Contudo, a minha experiência de trabalho com os jornais e as instituições culturais, os quais me fazem ver por um lado totalmente desconhecido da história e da crítica literária tradicional, mostra-me não um Afrânio Coutinho, mas um conjunto sólido anterior de longa data de intelectuais bastante interessados em fortalecer a sua visão particular de cultura (talvez matizada por messianismos, visão particular da terra, etc). Infelizmente, esta mesma solidez não permitiu movimentos positivos como passos decisivos para assunção de visões mais democráticas, menos coronelistas, etc. Por seu lado, a narrativa hegemônica tenta transformá-los em exceções para depois classificá-los fora do estereótipo de atraso com o qual se tenta explicar o sistema cultural baiano. A dificuldade do discurso hegemônico está na quantidade de exceções, na temporalidade envolvida e nos projetos que os unem. Em vista do prestígio do Modernismo paulista, a Bahia pagou alto tributo por esta mesma possibilidade de vinculação na longa duração da cultura do ocidente em nossas terras e em nosso 93 Revista ALB 50_finalizada.pmd 93 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 imaginário. Convidada a esquecer e abandonar vínculos vistos como retrógrados, antinacionalistas, retóricos, algo sempre a fez insistir pela permanência e festejo. No mais forte mergulho no tempo, autores do calibre de Padre Antônio Vieira e o poeta boca de brasa Gregório de Matos ofereceram a maturação de leitura e recepção de Jorge Amado, Adonias Filho e Afrânio Coutinho. Não se pode negar também a existência da instituição do Colégio dos padres Jesuítas como formadora de uma prática de pensamento que moldou formatos de comportamento e agir intelectual bem-sucedido na longa duração: Vieira é uma celebridade internacional no seu tempo, formado ali na grosseira e diminuta, como disse José Veríssimo, capital das Américas. A passagem dos regimes coloniais para imperialista e desse para republicano e depois todos os reveses no século XX podem demonstrar insatisfações e diálogos nem sempre em sintonia. Afinal, trata-se da cultura que se vai vencendo enquanto entra e é testada na crise, como defende Martim Heidegger. Não se deve negar, no entanto, a cultura que veio arrolada e providenciou uma identificação própria, talvez não propícia, o que é outra história. Por hora, convém entrarmos com dignidade nesta linha de amadurecimento cultural, reconhecendo os valores intelectuais e seus esforços. Afrânio Coutinho, nos seus 100 anos completos, certamente fornece tintas a esta aquarela bafejada de mares e sertões. REFERÊNCIAS ADONIAS FILHO. O Ciclo Baiano. In: COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987. v.5. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. Tradução por Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. 94 Revista ALB 50_finalizada.pmd 94 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 BELÉM, Odilon. Afrânio Coutinho: uma filosofia da literatura. Rio de Janeiro: Pallas, Didática e Científica, 1987. CALMON, Pedro. História da Literatura Bahiana. 2ª ed. 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É Professor Adjunto da UEFS, lecionando na graduação em Letras e no Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural. Coordena o Grupo de Pesquisa Estudos Literários Contemporâneos. É autor do livro de ensaios Perfeitas memórias (Rio de Janeiro: 7Letras, 2011). 96 Revista ALB 50_finalizada.pmd 96 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A expressão do indizível: Rosa, Meyer-Clason, Wittgenstein Antonio Brasileiro Para Dominique Stoenesco “Cinzenta, caro amigo, é toda teoria.” São palavras de Mefistófeles, no Fausto, de Goethe. São elas nosso ponto de partida. Não por Goethe, mas por Wittgenstein. O filósofo as conhecia.1 E talvez, também, Curt Meyer-Clason, o tradutor de Rosa para o alemão. Sabemos das façanhas de alguns tradutores de Rosa, da rica troca de ideias entre eles e o escritor, assim como do espantoso conhecimento que tinha Rosa, o poliglota, das dificuldades de uma tradução de obras como a sua. Meyer-Clason, um desses tradutores, era um intelectual de peso, conhecia bem a alma do Brasil e mereceu toda a confiança do romancista. Na carta de 22 de janeiro de 19642, quando estava a braços com Grande Sertão: Veredas, escreveu: “Toda interpretação mata a poesia à medida que dá mastigado para o leitor o que este deveria captar com sua imaginação.” Assinalamos aqui a palavra “imaginação”. Captar com a imaginação. “Captar” talvez seja também outra palavra a ser destacada. E “poesia”, naturalmente, pois Meyer-Clason faz 97 Revista ALB 50_finalizada.pmd 97 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 questão de dizer “poesia”. Na verdade, a frase que antecede à que transcrevemos também vale a pena ser transcrita. “Mas quando captei o que o poeta quis dizer, dei à versão alemã sempre que possível uma for ma poética equivalente distanciando-me de uma tradução interpretativa.” Meyer-Clason insiste: poeta, forma poética. Está consciente do que traduz: trata-se de poesia. Não que esteja a traduzir algum poema (real) de Guimarães Rosa, que também os escreveu: o que traduz é sua prosa. Mas o tratamento que lhe dá – que dá a essa “prosa”– é, digamos, diferenciado. Vamos por partes. Não nos estenderemos, não mapearemos o livro ou coisa assim. As informações de que dispomos – uma só carta – já nos são suficientes. Assinalamos que o cuidado de Meyer-Clason nem é bem com as palavras – a matéria das palavras –, mas com a linguagem. Linhas antes, no início do parágrafo que estamos comentando, Meyer-Clason fala de sua “maneira” de traduzir: uma “maneira funcional”. A tradução funcional, diz ele, “dispensa conceitos tais como ‘literal’ ou ‘livre’, pois são conceitos vagos, equívocos, que nada sabem daquela fidelidade ao espírito da obra oriunda de uma afinidade interior ou de uma identificação artística.” Ele fala, como vemos, de uma “afinidade interior” e de uma “identificação artística”. Esse é um dos pontos que nos remete a Wittgenstein, quando este filósofo faz compartilhável todo conhecimento tão só àqueles que já o carregam dentro de si. Mas queremos ainda assinalar (nesta mesma carta) o passo onde Meyer-Clason insere sua preocupação com “o impulso, o andamento, o elemento musical” de um texto a ser traduzido. No texto em português está: feito flecha, feito faca, feito fogo, e ele exclama: “Fabuloso, inimitável!” Vibra a alma do tradutor. Mas tem que admitir, como escreve logo em seguida: “O Senhor não poderá ter tudo na versão alemã. Em alemão, o Senhor deverá satisfazer-se com o seguinte: wie der Welle, wie der Wille, wie der Wind.” Não precisamos conhecer tão bem a língua alemã para 98 Revista ALB 50_finalizada.pmd 98 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 perceber a “funcionalidade” – e a inteira propriedade – da tradução: onda, vontade e vento cobrem perfeitamente o espírito. Quanto à inclusão de Wittgenstein nesse estudo, uma nota se faz necessária. Assim como abordamos tão só um trecho de uma carta de Meyer-Clason, pinçamos também apenas um tópico de Wittgenstein. Diríamos até, melhor, em Wittgenstein, pois suas ideias aqui apresentadas já se achavam em outros pensadores ao longo da história da filosofia.3 Por outro lado, a despretensão de nosso trabalho não exige mais que essas poucas ideias, não importando de onde venham. De Wittgenstein, portanto, dois pensamentos. O primeiro deles é ampla e merecidamente citado: “Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar.” É a frase que fecha o Tractatus logicophilosophicus. Remete-nos a algo onde campeia o “mistério”, termo usado pelo próprio filósofo como “pano de fundo” daquele quê de árido do seu filosofar. Lá estão suas palavras: “O indizível (o que me parece cheio de mistério e que não sou capaz de exprimir) forma talvez o pano de fundo em virtude do qual o que posso exprimir adquire uma significação.”4 O indizível, sempre presente esse indizível. Alertava mesmo os amigos para que não o discutissem, esse indizível, com as palavras do discurso. Não cabia ao discurso, mas tão só à arte a apreensão do essencial. (Wittgenstein pensava na música sobretudo, mas não excluía a poesia.) Linguagem feita de palavras, a poesia – e seu parentesco com a linguagem discursiva, não ia, contudo, além do (mero) uso das palavras. O próprio filósofo que era, admitia que “para bem fazer a filosofia, só a deveríamos escrever em poemas.”5 Isso, por certo, não estava assentado para os mais influentes filósofos contemporâneos. Jean-Paul Sartre, por exemplo, em O que é a literatura, apontava para essa peculiaridade da poesia: “O prosador escreve, é verdade, e o poeta escreve também. Mas entre esses dois atos de escrever só há em comum o movimento da mão que traça as letras. De resto, os seus universos mantém-se incomunicáveis, e o que é válido para um não é válido para outro.”6 99 Revista ALB 50_finalizada.pmd 99 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Esse também, assinalamos, não é um pensamento propriamente moderno: se bem procurarmos, vamos encontrá-lo ao longo dos séculos e das civilizações. A filosofia devia ser descrição pura, e não explicação – é o que pensava Wittgenstein, segundo Cristiane Chauviré, autora de um conciso mas importante estudo sobre o filósofo. Wittgenstein escrevera: “Recusarei o que quer que se diga, não pela falsidade da explicação, mas por ser uma explicação.” Entre parênteses, logo a seguir, Chauviré comenta: “E esta é uma das mais nítidas declarações anti-teóricas que Wittgenstein jamais fez.” Não transcrevemos esse comentário com o só intuito de evocar a frase de Goethe (“Cinzenta, caro amigo, é toda teoria”); nossa intenção foi mais a de aproximar (de Goethe) o conhecimento de Ludwig Wittgenstein, a “poesia” de João Guimarães Rosa e o reconhecimento de Curt Meyer-Clason. A teoria não diz. Ou, pelo menos, não diz o poético. Certo que o poético, aqui se estendendo para a arte como um todo, não quer transmitir senão a si mesmo. (Wittgenstein: “A obra de arte não quer transmitir coisa alguma senão a si mesma.”) 7 Não que isto seja um limitação – o poético ensimesmado, visão de mundo por uma fresta. O que queria Wittgenstein era um posto privilegiado para a arte: mostrar o inexprimível. Justo o que, nas palavras de Meyer-Clason, o poeta queria dizer. Não uma interpretação. Não uma “explicação”, dirá Wittgenstein, como já apontamos. Por que não uma explicação? Porque não há explicação, transcrição do ser. Isso não é possível. A obra de arte é o que é. Não queremos dificultar ainda mais a apreensão dessas ideias. Nossos três personagens, cada um ao seu modo, sabiam, no fundo, que a compreensão de alguma coisa passa, naturalmente, pela linguagem. Criaram, explanaram, comentaram sobre isso, e todos eles alicerçados na e guindados pela linguagem. Mas sabiam que o inefável os perscrutava. Como, então, expressá-lo? Estamos diante da obra de Guimarães Rosa? Não, não estamos. Perscrutamos o pensamento de Wittgenstein? Não, não o 100 Revista ALB 50_finalizada.pmd 100 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 fazemos. Cuidamos do teor da correspondência Rosa/MeyerClason? Não. Registramos apenas um ponto que, segundo nosso modo de ver, acolhe esses três nomes: a expressão do indizível. E que é isto: o indizível? A música de Brahms, como queria Wittgenstein? O feito flecha, feito faca, feito fogo, traduzido por wie der Welle, wie der Wille, wie der Wind, como o quis Meyer-Clason? Para Rosa, compreendê-lo, talvez. Mas há caminhos para chegar a essa compreensão? Talvez não. A menos que os tenhamos – a esses caminhos – dentro de nós. A rigor, só compreendemos o que trazemos dentro de nós. A riqueza de um Guimarães Rosa não está em um magote de palavras que “significam”. Não importa o que significam, seja isso ou aquilo. Nem na melhor das traduções: a melhor das traduções, por seu turno, é um novo objeto, que, como tal, é também inabordável em sua essência. A riqueza de um Guimarães Rosa está no indizível, apontado todo o tempo em sua obra, ainda que se queira limitar essa obra ao grande romance, ou a algumas estórias, ou a uma só dessas estórias. Ou a umas poucas palavras, diríamos mesmo. Exemplos? Um: Hei que ele é. Sem quê nem pra quê, isto está ali, sozinho, num dos prefácios de Tutaméia. Vem até registrado o “nome” de seu autor: Do Irreplegível. Mais invenções de Rosa? Vai-se ao Aurélio, lá está: “Irreplegível. 1. Que não se pode encher. 2. Que não pode encher-se ou fartar-se; insaciável.” Outro exemplo, em outro dos prefácios do mesmo Tutaméia: Tudo é incauto e pseudo, as flores sou eu não meditando... Um último exemplo: Necessariamente, pois, as diferenças entre os homens são ainda outra razão para que se aplique a suspensão de julgamento – agora, em mais outro prefácio do mesmo Tutaméia, assinado por Sextus Empiricus, personagem real. Feitas as contas, garantenos isso ter Rosa nas mãos? Um matiz sequer de Rosa? Mas se exemplos como esses se estendem aos centos, aos centos dos centos, indefinidamente... 101 Revista ALB 50_finalizada.pmd 101 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 É isso o que nos dá a certeza de que, por mais que se fale de um escritor como Guimarães Rosa, ainda é pouco. Alguns dentre seus admiradores preferimos pequenas observações, nada (bem longe disso) de interpretações e quejandos. E mesmo essas pequenas observações, são apontadas como que envolvidas por um certo carinho, esse gozo peculiar do leitor amorável e desarmado. No caso de Rosa, compará-lo aos filósofos não deve em nada parecer estranho. Rosa gostava dos filósofos. Além do mais, filosofia e poesia são irmãs, se podemos insistir na concepção de um poeta Rosa. A escolha de Wittgenstein não carece maiores preocupações; Heidegger ou Cassirer poderiam ser igualmente evocados. O importante, como dissemos, é fixar a ideia da intraduzibilidade de nosso escritor aos moldes discursivos. Não que toda essa nossa atividade de explanadores seja vã. Nada é vão. Há caminhos que não chegam a parte alguma. Mas por que mesmo teríamos que chegar a alguma parte? Agora, se não quisermos ser tão metafísicos, temos que nos voltar para o chão da vida: saber ver tem importância. Saber ler Rosa é, um pouco, tocar essa importância. A resposta de Guimarães Rosa à carta de Meyer-Clason fala da “sincera, copiosa alegria” que teve ao recebê-la. “Ela se fez uma ‘radiografia’ perfeita da tradução, digo, do traduzir-datradução – como foi meditada, sopesada, planejada e realizada, isto é, em seus rumos, meios, viver e intento. Fiquei comovido, e encantado.” Rosa percebeu, portanto, que estava em boas mãos. Concordava com tudo que lhe apresentara o tradutor. Estava correta sua orientação básica, assim como as “coordenadas de linguagem e estilo entre as quais lúcida e licitamente se moveu.” 8 E acrescentou: “Enfim, sinto-me feliz, tranquilo e cheio de certeza. Não tenho dúvida de que a tradução será a melhor, a mais válida, a que virá prestigiar no mundo o Grande Sertão: Veredas.”9 102 Revista ALB 50_finalizada.pmd 102 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 NOTAS E REFERÊNCIAS Christiane Chauviré. Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 1991, p. 75. “A sabedoria é cinza. A vida, ao contrário, e a religião, são cheias de cor” – assim se expressa Wittgenstein. A nota da tradutora é que remete a Goethe. 2 João Guimarães Rosa. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2003. 3 Apud. Bryan Magee. Confissões de um filósofo. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 127. 4 C. Chauviré. op. cit. p. 16. 5 Id. ibid. 6 Jean-Paul Sartre. Situações II. Lisboa: Publicações Europa-América, 1968, p. 67. 7 Apud C. Chauviré. op. cit. p. 71. 8 João Guimarães Rosa. op. cit. p. 163. 9 Id. ibid. 1 __________ Antonio Brasileiro é pintor, poeta, ensaísta, e editor; é Professor Pleno (titular) da Universidade Estadual de Feira de Santana. Tem vários livros de poesia e de ensaios publicados. Desde 2011 ocupa a Cadeira nº 21 da ALB. 103 Revista ALB 50_finalizada.pmd 103 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 104 Revista ALB 50_finalizada.pmd 104 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Descrença na palavra Carlos Ribeiro Há indícios consistentes de uma descrença cada dia maior na literatura como instrumento de mudança política e social. Tal fenômeno, apontado por diversos estudiosos contemporâneos, nos leva a refletir sobre o papel do escritor, quando este já não se vê na posição de consciência de uma nação ou coletividade, como foram no passado, Victor Hugo, Emile Zola, Jean-Paul Sartre e Thomas Mann. As palavras, nessa perspectiva, seriam esvaziadas do seu poder de contestação, pelo que se supõe ser um enfraquecimento do lugar de autoridade do intelectual. Afinal, como disse o ensaísta e professor da Universidade Nova de Lisboa, Eduardo Prado Coelho, deve-se colocar, hoje, uma questão essencial: que autoridade teria um escritor para se pronunciar sobre uma guerra (referia-se à que era então movida contra o Iraque, pelo governo de George W. Bush) “ou sobre a proibição voluntária da gravidez? Que autoridade tem um pintor para contrariar a instalação de um cassino no centro de Lisboa?”1 O ensaísta português lembra que “a distinção entre trabalhadores intelectuais e trabalhadores manuais está hoje bastante obsoleta”. 105 Revista ALB 50_finalizada.pmd 105 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Distantes, já, do paradigma estabelecido por Zola no caso Dreyfus, “cena matricial da figura contemporânea do intelectual”, a relação com o conhecimento teria passado por um processo de dessacralização. E, mais do que isto, “a legitimação do saber se desligou de uma perspectiva epistemológica e humanista para passar a encontrar sua legitimidade última em valores de performatividade que engrenam nas expectativas confusamente entrevistas daquilo que mitificamos como o ‘mercado’”.2 Permanece, entretanto, a definição tradicional do intelectual como aquele que tem a coragem de dizer “não”. Os intelectuais que aceitam o existente tal como está podem, como é óbvio, colocar-se na categoria de intelectuais. Mas a tradição – precisamente aquilo que faz que os intelectuais tradicionais sejam associados habitualmente à esquerda – é a de que um intelectual se inscreve nesse processo da história que tem a ver com a capacidade de negação.3 Tal posição torna-se problemática quando, “em determinadas circunstâncias, a esquerda toma o poder e começa a exercer as responsabilidades da governação”, como ocorreu no Brasil com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva e, mais recentemente, da presidenta Dilma Roussef à presidência da República. É quando se apresenta o seguinte dilema: Ou o intelectual trai a sua missão de intelectual e passa a ser um defensor do regime, na coerência própria de quem sempre defendeu que esse regime existisse e não quer contribuir para a sua queda; ou o intelectual trai aqueles que eram seus companheiros na mesma luta e passa a ser crítico dos aspectos mais negativos do governo que exerce o poder.4 Vale ainda destacar um dos três fatores referidos por Eduardo Prado Coelho que, sobretudo numa perspectiva mais europocêntrica, 106 Revista ALB 50_finalizada.pmd 106 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 levam alguns a falar no “fim dos intelectuais”: a dificuldade do intelectual “em apresentar-se como testemunha do universal, responsável pelos valores fundamentais da humanidade”. O novo papel do intelectual passa a ser o de tradutor; sua principal função é a de estabelecer “pontes entre os diversos códigos por vezes extremamente diferenciados”.5 Para Augusto Santos Silva, professor de Sociologia da Universidade do Porto, embora “a figura moderna do ‘escritor’, no sentido amplo da palavra, de saber enciclopédico, recorte literário e intenção polêmica em torno de ideias gerais”, tenha atravessado todo o século XX, era “inevitável que sofresse a erosão correspondente, face à crescente especialização e profissionalização das disciplinas de pesquisa e análise das realidades sociais, chamassem-se elas sociologia, economia, história, antropologia ou ciência política”.6 Nesse quadro, repleto de vazios e vacilações, torna-se necessária, segundo Santos, a crítica cultural do mundo contemporâneo: lugar crítico que não pode ser preenchido (...) por nenhuma das estruturas de significação que a comunicação e a cultura de massas foram construindo: nem pela opinião pública, nem pela imprensa, nem pelo imaginário. Se o deixarmos vazio, vazias ficarão as funções políticas que só ele pode cumprir. E, para o mantermos ativado, é preciso mobilizar os princípios de elaboração e validação e as propostas interpretativas que, ao longo de histórias sinuosas e complexas, mas actualizando sempre em cada conjuntura o traço das conjunturas passadas – o campo cultural – os campos ou mundos da cultura – foram incessantemente construindo e reconstruindo. Ou seja, é preciso ser e agir como intelectual, falando sobre, para e com a sociedade, intervindo na esfera pública, no espaço da cidadania, a partir, também, das posições e dos interesses culturais.7 107 Revista ALB 50_finalizada.pmd 107 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Nessa perspectiva, ocorreria o que alguns autores caracterizam como uma passagem: a do estatuto do intelectual-legislador da modernidade para o intelectual-intérprete da pós-modernidade, “chamando ao centro do trabalho intelectual o exercício da comunicação e da ‘tradução’ entre diferentes quadros culturais e simbólicos e o exercício da interpretação dos ‘textos’, palavras, sons, movimentos e imagens, que informam a nossa contemporaneidade”.8 A ênfase na perspectiva pós-moderna de interpretar com o objetivo de criar pontes entre os diversos saberes, em lugar da perspectiva revolucionária, marxista, de interpretar o mundo para mudá-lo seria mais específica do intelectual universitário? Podese dizer o mesmo dos escritores para os quais os canais de manifestação de sua voz parecem estar cada vez mais reduzidos? Não seria este mais suscetível ao que Jean Franco chama de esfacelamento da cidade letrada da qual, como diz Renato Cordeiro Gomes, “restam ruínas, resíduos, fragmentos”? São questões ainda não muito claras, mas que apontam para um fenômeno recente: o do deslocamento da autoridade, antes exercida pelo escritor engajado, per se, pela força da sua própria palavra e do seu testemunho, para o âmbito da indústria cultural. As consequências do esfacelamento da cidade letrada, diz Renato, citando Ricardo Piglia, seriam a perda de ilusões por parte dos intelectuais, tornando-se sensatos e conformistas; e a crise do intelectual como porta-voz. A figura dominante do especialista e do técnico, do jornalista como ideólogo, deslocou por completo a tradição do poeta como porta-voz da tribo. Esse papel, inscrito na cidade letrada, relaciona-se ao fato de que a literatura fazia parte do espaço público (ver, nesse sentido, as alianças e as diferenças dos escritores com o Estado). E acrescenta: “Não sei se há de lamentar, mas a sociedade apagou esse lugar, tirou a literatura do meio, e substituiu-a pela televisão. Deslocou os lugares de 108 Revista ALB 50_finalizada.pmd 108 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 enunciação da tradição intelectual e de seu pão intelectual e de seus problemas para a cultura de massa”. [Piglia. Crítica y ficción, p. 193].9 Num âmbito mais restrito, mas não pouco significativo, essa autoridade migrou, nas últimas décadas, também para o âmbito universitário, onde o teórico, leitor e intérprete privilegiado da obra literária, mediado por títulos e pelas instituições, se impõe sobre o criador. Este já não teria mais autoridade sequer sobre a sua própria obra. O PAPEL DO INTELECTUAL O fato é que parece haver uma descrença generalizada, entre os escritores contemporâneos, na ideia de que possa existir em seus livros (e na sua autoridade, como escritores e cidadãos) o poder de alterar qualquer coisa. O escritor parece não ser mais visto como uma ameaça ao sistema e aos poderosos. Em vez de queimar seus livros – como na novela Farenheit 465, de Ray Bradbury – é mais fácil ignorá-los, deixando cair sobre eles o manto da indiferença ou, simplesmente, deixando-os entregues à lógica do mercado. Numa farsa democrática, a palavra não é mais silenciada, mas negligenciada, ridicularizada ou soterrada por outras palavras. Para Saul Bellow (1915-2005), o escritor e o poeta são, hoje, motivo de desprezo pelos homens verdadeiramente poderosos. Eles agem assim porque a literatura moderna não lhes dá nenhuma prova de que alguém esteja pensando sobre qualquer questão significativa. Talvez haja um exagero nisto. Afinal de contas, alguns escritores estão entre as vozes dissidentes dos intelectuais que se opõem ao imperialismo e ao fundamentalismo, em todas as suas formas. Nomes como os de Norman Mailer, Susan Sontag, Kurt Vonnegut, José Saramago (já falecidos, mas cujas vozes ainda repercutem), Phillip Roth, Gore Vidal, Eduardo Galeano, 109 Revista ALB 50_finalizada.pmd 109 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Pepetela, Umberto Eco, Tarik Ali, João Ubaldo Ribeiro, Affonso Romano de Sant´Anna e Ferreira Gullar, entre outros, engrossam o coro dos descontentes. Mas a ideia de que um escritor possa interferir de forma decisiva no curso dos acontecimentos históricos parece tornar-se cada dia mais ilusória. Ao ampliar a noção de escritor para a do intelectual, entretanto, surgem algumas indagações que têm se mostrado de grande relevância no mundo contemporâneo: que papel este desempenha ou deve desempenhar na chamada modernidade tardia em que as identidades parecem ter entrado em crise? Na qual as grandes narrativas entram em declínio, os valores são dessacralizados e ocorre um questionamento da própria noção de humanismo que, nos últimos séculos, serviu de referência na civilização ocidental? A questão de uma suposta crise de identidade no mundo contemporâneo é colocada de forma até bastante didática por Stuart Hall: Para aquele/as teóricos/as que acreditam que as identidades modernas estão entrando em colapso, o argumento se desenvolve da seguinte forma. Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.10 Trazemos esta questão tendo em vista a perspectiva de que o suposto esvaziamento da autoridade do intelectual é fruto de um 110 Revista ALB 50_finalizada.pmd 110 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 longo processo. E que esse processo pode ter uma relação com o deslocamento apontado por Hall das noções do sujeito. Ao sujeito totalmente centrado, unificado, constante e “usualmente descrito como masculino” do Iluminismo, segue-se, na modernidade, o sujeito sociológico, que “ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu-real’”, mas que é “formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos fornecem”. A este, suceder-se-ia um dito sujeito pós-moderno, carente de uma identidade fixa, essencial ou permanente. “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”.11 O estágio mais recente dessas transformações se daria na chamada modernidade tardia e que seria resultado do impacto da “globalização” sobre a identidade cultural. Sendo esta última uma aceleração de um fenômeno já identificado por Karl Marx nas sociedades capitalistas do final do século XIX: o da mudança constante, rápida e permanente do/no mundo marcado pela descontinuidade, pela fragmentação e pela ruptura. Mais do que em qualquer outro período da história, o indivíduo é instado a desempenhar uma grande diversidade e pluralidade de papéis, não raras vezes contraditórios entre si. Uma das principais “baixas” verificadas nesse processo de “descentramento” seria, portanto, a do sujeito construído pelo humanismo, guiado pela razão e por valores sólidos profundamente impregnados por uma teleologia. Deslocado do lugar central que ocupava em nossa civilização, identidades mestras, marcadas pela autoridade, já não disporiam da energia necessária para alinhar as demais identidades como resistência ao processo desumanizante do mercado e da globalização. Restaria, portanto, “o indivíduo isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal”.12 111 Revista ALB 50_finalizada.pmd 111 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 No livro Humanismo e crítica democrática, Edward W Said (19352003) relaciona alguns problemas que influíram no desgaste sofrido pelo humanismo no mundo contemporâneo e “repúdios da revolução anti-humanista das décadas de 1960 e 1970”. Um deles seria (...) uma conexão frequente, mas nem sempre admitida, entre o humanismo como uma atitude ou prática associada amiúde a elites muito seletivas, sejam religiosas, aristocráticas ou educacionais, por um lado, e, por outro, associado a uma atitude de oposição severa, ora declarada, ora não, à ideia de que o humanismo teria a possibilidade e a capacidade de ser um processo democrático, que produzisse uma mente crítica cada vez mais livre. Em outras palavras, o humanismo é considerado algo muito restrito e difícil, como um clube um tanto austero com regras que excluem a maioria das pessoas, e, quando algumas são admitidas, com um conjunto de regulamentos proibindo qualquer coisa que poderia aumentar os membros do clube, torná-lo um lugar menos restrito ou um local mais agradável de frequentar.13 Outras questões, envolvendo relações entre o tradicional e o canônico, a revitalização da linguagem, a complexa questão da identidade nacional (que abordaremos adiante) e questões relacionadas à presença histórica das humanidades, são abordadas por Said para chegar ao foco principal da sua argumentação: o questionamento da ideia de que o humanismo e a figura do humanista já estariam superados. Ideia que, afirma ele, é consequência de uma incompreensão do próprio significado do humanismo. O humanismo é o emprego das faculdades linguísticas de um indivíduo para compreender, reinterpretar e lutar corpo a corpo com os produtos da linguagem na história, em outras 112 Revista ALB 50_finalizada.pmd 112 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 línguas e outras histórias. Na minha compreensão de sua relevância atual, o humanismo não é um meio de consolidar e afirmar o que “nós” sempre conhecemos e sentimos, mas antes um meio de questionar, agitar e reformular muito do que nos é apresentado como certezas transformadas em produtos do mercado, empacotadas, incontroversas e codificadas de modo acrítico, inclusive aquelas contidas nas obras-primas agrupadas sob a rubrica de “os clássicos”. O nosso mundo intelectual e cultural não é hoje uma coletânea simples e evidente de discursos eruditos: é antes uma discordância em ebulição de notações não resolvidas, para usar a bela expressão de Raymond Williams para as articulações interminavelmente ramificadas e elaboradas da cultura.14 O ensaísta palestino enfatiza, entretanto, a necessidade de se fazer uma revisão, reconsideração e revitalização das humanidades e do humanismo, que “uma vez mumificados na tradição, deixam de ser o que realmente são e tornam-se instrumentos de veneração e repressão”.15 Essa revisão é fundamental para que o intelectual humanista possa desempenhar o seu papel de resistência às “forças desumanizadoras da globalização”. O humanista, diz ele, “deve oferecer alternativas agora silenciadas ou indisponíveis pelos canais de comunicação controlados por um pequeno número de organizações de notícias”.16 Somos bombardeados por representações pré-fabricadas e reificadas do mundo que usurpam a consciência e previnem a crítica democrática, e é à derrubada e desmantelamento desses objetos alienantes que, como disse corretamente C. Wright Mills, o trabalho do humanista intelectual deve ser dedicado.17 113 Revista ALB 50_finalizada.pmd 113 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Na luta contra o que chama de “má escrita”, a “informação pré-fabricada que domina o nosso padrão de pensamento (a mídia, a propaganda, as declarações oficiais e a argumentação políticoideológica destinada a persuadir ou propiciar a submissão, e não a estimular o pensamento e envolver o intelecto)”, Said propõe que “a reflexão humanista deve quebrar o domínio do formato curto, da manchete, da informação fora do contexto, e tentar induzir em seu lugar um processo mais longo e mais deliberado de reflexão, pesquisa e argumentação inquiridora que realmente considere o caso, ou os casos, em questão”. Quando os humanistas recebem ordens ou repreensões para voltar aos seus textos e deixar o mundo àqueles que têm a tarefa de administrá-los, é salutar, até urgente, lembrar que a nossa era e o nosso país não simbolizam apenas o que foi estabelecido e aqui reside de forma permanente, mas também sempre e constantemente a turbulência não documentada de exilados, imigrantes não fixos e desabrigados, populações itinerantes ou cativas para as quais ainda não existe nenhum documento, nenhuma expressão adequada que dê conta do que elas passam. E, na sua energia profundamente instável, este país merece o tipo de consciência ampliadora que vai além da especialização acadêmica e que toda uma gama de humanistas mais jovens tem assinalado como cosmopolita, mundana, móvel.18 A grande função do intelectual humanista passa a ser, não mais a de um tribuno, mas de um intérprete, de um decodificador da história humana, entendida por Nietzsche como um “exército móvel de metáforas e metonímias”. Tal leitura filológica, diz Said, é ativa, e “implica adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido em qualquer texto que possamos ter diante de nós”.19 114 Revista ALB 50_finalizada.pmd 114 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Diante de todos os grandes problemas, como as guerras, a opressão e a negação dos direitos fundamentais de grandes segmentos da humanidade, é preciso dar nome e voz ao anônimo, ao impessoal, pois é sempre mais difícil aceitar a morte de uma pessoa quando ela tem uma humanidade reconhecível. O humanismo tem, portanto, a função primordial de (...) desenterrar os silêncios, o mundo da memória, de grupos itinerantes que mal sobrevivem, os lugares de exclusão e invisibilidade, o tipo de testemunho que não chega às reportagens, mas que cada vez mais questiona se um meio ambiente exageradamente explorado, pequenas economias sustentáveis e pequenas nações, além de povos marginalizados tanto fora como dentro da goela do centro metropolitano, podem sobreviver à trituração, ao achatamento e ao deslocamento que são características tão proeminentes da globalização.20 São incontáveis os silêncios a serem desenterrados, e parece contar muito pouco o que vem à tona, em reportagens menos superficiais que a simples exposição de dados e fatos. Aos poucos, torna-se animador o fato de que há hoje, apesar da grande massa de excluídos, uma democratização maior dos meios de comunicação, a exemplo das câmaras filmadoras incorporadas aos aparelhos celulares cujas imagens podem ser, muito mais do que no passado recente, disseminadas pela internet e pelos próprios meios de comunicação mais tradicionais. Há, decerto, no fluxo ininterrupto de imagens e palavras que parecem inundar o mundo real, e ser cada dia menor a necessidade de um médium, no sentido etimológico do termo: ou seja, de alguém que dê voz a quem não a tem. O que não significa que esses mediadores não tenham ainda um grande valor e uma extrema necessidade. 115 Revista ALB 50_finalizada.pmd 115 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 NOTAS COELHO, Eduardo Prado. “Novas configurações da função intelectual”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro (Org.). O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. 2 Op. cit. p. 18. 3 Op. cit. pp. 16-17. 4 Op. cit. p. 17. 5 Op. cit. p. 21. 6 SILVA, Augusto Santos. “Podemos dispensar os intelectuais?”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro. O papel do intelectual hoje (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.. p. 49. 7 Op. cit. pp. 50-51. 8 Op. cit. p. 58. 9 GOMES, Renato Cordeiro. “O intelectual e a cidade das letras?”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro. O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.. p. 122. 10 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. pp. 8-9. 11 Op. cit. pp. 12-13. 12 Op. cit. p. 32. 13 SAID. Edward W. Op. cit. p. 35. 14 Op. cit. pp. 48-49. 15 Op. cit. p. 53. 16 Op. cit. p. 95. 17 Op. cit. p. 95. 18 Op. cit. p. 106. 19 Op. cit. p. 82. 20 Op. cit. p. 107. 1 116 Revista ALB 50_finalizada.pmd 116 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 REFERÊNCIAS COELHO, Eduardo Prado. “Novas configurações da função intelectual”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro (Org.). O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. GOMES, Renato Cordeiro. “O intelectual e a cidade das letras?”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro. O papel do intelectual hoje. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. SAID, Edward W. Humanismo e crítica democrática. São Paulo: Cia das Letras, 2007. SILVA, Augusto Santos. “Podemos dispensar os intelectuais?”. In: MARGATO, Izabel e GOMES, Renato Cordeiro. O papel do intelectual hoje (Org.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. Carlos Ribeiro é jornalista, ensaísta e escritor; é professor de Jornalismo da Universidade Federal do Recôncavo Baiano, em Cachoeira-BA; tem diversos artigos e nove livros publicados, dentre os quais Lunaris (romance, 2007) e Contos de sexta-feira (2010). Desde 2007 ocupa a Cadeira nº 5 da ALB. 117 Revista ALB 50_finalizada.pmd 117 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 118 Revista ALB 50_finalizada.pmd 118 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Mato virgem : um príncipe austríaco em visita a Ilhéus, em 1860 Celina Scheinowitz Tarefa empolgante, para Moema Parente Augel, acercar-se de Mato virgem (1864), de Maximiliano de Habsburgo, a fim de vertêlo do alemão para o português. Ela o faz com competência, talento e paixão, no livro publicado em Ilhéus, pela Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, em 2010. Acrescenta uma introdução e notas ao texto do arquiduque austríaco e infeliz imperador do México, que relata sua viagem a Ilhéus e arredores em 1860. Juntam-se ainda ao volume Anexos de grande importância para o conhecimento do contexto em que se insere a obra. Nascida em Ilhéus, Moema P. Augel tem o alemão como segunda língua, vez que está radicada desde seu casamento, em 1965, na Alemanha; ademais, um de seus centros de interesse como pesquisadora se volta para os viajantes estrangeiros que visitaram a Bahia no século XIX. Daí navegar com extrema desenvoltura pelo tema modulado em Mato virgem, aliando erudição e conhecimento histórico na interface em que se situa sua investigação; sem que a ternura que nutre pelo personagem histórico obscureça sua análise, tendo ressaltado com firmeza e imparcialidade a “ferina ironia” do autor austríaco, que não poupa 119 Revista ALB 50_finalizada.pmd 119 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 “sarcasmo nem mesmo desprezo pelo pouco desenvolvimento que viu no país” (p. 33). O livro publicado pela Editus, além da bela edição em um volume, também foi impresso em edição de luxo de três volumes, objetivando homenagear comme il faut a vinda à terra ilheense do ilustre visitante, irmão do imperador Francisco José da Áustria; esposo da princesa Charlotte, filha do Rei dos belgas Leopoldo I, da linhagem de Saxe-Cobourg-Gotha; primo afim da rainha Victoria da Inglaterra (sobrinha de Leopoldo I) e também primo do imperador brasileiro D. Pedro II, da dinastia de Bragança (filho de D. Leopoldina, princesa da casa austríaca de Habsburgo). Mato virgem, cujo título vem grafado em português no texto original alemão, não integra os seis volumes de Reise Skizzen (“Esboços de viagem”), publicados em Viena de 1854 a 1861, só vindo a lume em 1864 e perfaz o sétimo tomo da edição global dos “Esboços de viagem” de Leipzig de 1867, Reiseskizzen (em um só vocábulo, desta vez). Mato virgem, nesta versão em português, compõe-se de cinco capítulos, a saber, “São Jorge dos Ilhéus, 15 de janeiro de 1860” (p. 59-68); “Fazenda da Vitória, 16 de janeiro de 1860” (p. 69155); “No Mato virgem, 17 de janeiro de 1860” (p. 156-199); “No Mato virgem, 18 de janeiro de 1860” (p. 200-217) e “Na colônia alemã em Cachoeira, 19 de janeiro de 1860” (p. 218-220). Precede a estes textos a Introdução (p. 25-56) e seguem-lhes os Anexos A, “Reconstituição da viagem de Maximiliano de Habsburgo ao Brasil [...]” (p. 223-253); B, “Carta de Maximiliano de Habsburgo ao imperador Francisco José” (p. 255-277); C, “Poemas” (p. 279-351); D, “Obras de Maximiliano de Habsburgo, depois Maximiliano I, Imperador do México, em ordem cronológica” (p. 353-358) e E, “Roteiro da viagem de Maximiliano de Habsburgo ao Brasil” (p. 361-364). O livro apresenta ainda dois textos introdutórios, “Algumas palavras”, assinado por Soane Nazaré de Andrade, professor Titular da UESC e o “Prefácio”, de Consuelo Pondé de Sena, presidente do Instituto Geográfico 120 Revista ALB 50_finalizada.pmd 120 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 e Histórico da Bahia, o primeiro datado de 29 de junho e o segundo de agosto de 2008. O texto de Mato virgem interrompe-se no dia 19 de janeiro, em um momento em que os membros da expedição estão decepcionados porque, ao despertarem, após uma noite em plena floresta, descobrem os rastros de duas antas, mas não conseguem delas se aproximar. As anotações do príncipe nos Cadernos 1 e 2 e em sua Caderneta de campo (Anexo A, p. 223-253) permitem que se perceba sua intenção em desenvolver a narração de sua viagem até o dia 16 de fevereiro, data em que se despede da América e o vapor Elisabeth deixa Pernambuco e o Brasil, rumando em direção de Cabo Verde. Considerando as características da escrita de Mato virgem, movida pela emoção e pelo subjetivismo do autor, que o levam a colocar-se no centro dos acontecimentos e da observação, bem como sua fascinação pelo espetáculo da natureza, Moema P. Augel filia a obra ao Romantismo. Moema vê Maximiliano profundamente marcado pelo ideário de Alexander von Humboldt; como o cientista prussiano, ela o vê arrebatado pela luxuriante natureza tropical e empenhado em construir uma obra em que informações objetivas da ciência se aliem a impressões pessoais face ao espetáculo da natureza brasileira, em especial sua flora e fauna. Apaixonado pela zoologia e sobretudo pela botânica, Maximiliano, em sua visita a Ilhéus, realizava seu sonho romântico de penetrar na floresta virgem, tendo trazido, em sua comitiva, cientistas consagrados, como o médico Heinrich Wawra e o botânico Franz Maly, bem como artistas, como o pintor Joseph Selleny. O material recolhido nas andanças, encaminhado a Viena, foi examinado e classificado por estudiosos, especialmente por Heinrich Schott, diretor dos jardins imperiais. Embora seduzida pela personalidade do príncipe, a comentarista, em sua Introdução, analisa o olhar etnocêntrico, 121 Revista ALB 50_finalizada.pmd 121 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 estereotipado, reducionista e às vezes preconceituoso, do príncipe. Moema P. Augel, como tradutora, assume a posição honesta de não amenizar certas expressões que poderiam chocar o leitor, como quando ele considera os selvagens puro-sangue, ou quando se refere às bocarras das negras ou aos horríveis mulatos que encontrou em terras baianas. Os princípios que nortearam a tradução estão explicitados, tendo-lhe servido de base a edição original de 1864, em função dos cortes e supressões da edição póstuma de 1867, que foi descartada, a tradutora havendo assinalado no rodapé esses desvios. Assinala, igualmente, os casos em que os nomes próprios são substituídos pela inicial com asterisco, retifica a grafia dos topônimos e de outras palavras e grafa em cursiva sempre que o autor utiliza palavras ou expressões em português. Enfim, altera ocasionalmente a pontuação e às vezes abre parágrafos, objetivando oferecer maior clareza na leitura. Os anexos propiciam esclarecimentos para uma melhor compreensão de Mato virgem. A edição que ora comentamos amplia seu interesse com a apresentação, no Anexo C, de vinte poemas, escolhidos entre centenas que o arquiduque compôs. Nessa seleção, levou-se em conta o conteúdo das composições, havendo sido selecionados poemas que se relacionam com momentos presentes no relato da viagem ou com registros que ocorrem na carta ao imperador Francisco José. Embora, no original, os versos de Maximiliano sejam rimados e escritos dentro de esquemas rítmicos próprios da poesia lírica, a tradutora optou por uma tradução em versos livres, buscando, o mais possível, a fidelidade ao texto. Os poemas apresentados agrupam-se em torno de alguns centros, a terra natal e o desejo de viagem; a estada em Salvador; o mato virgem; a estada no Rio de Janeiro; o retorno à pátria, além de “Dístico”, onde o autor caçoa do país que visita, em que “a Liberdade e a Constituição gargarejam goela abaixo”, mas “onde se compram escravos, acrediteis” e “Liberdade é só caçoada” (p. 348). Moema adiciona, ainda, ao florilégio que montou neste anexo, o poema “Suadades” (sic) que, apesar de fugir à temática do 122 Revista ALB 50_finalizada.pmd 122 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 conjunto, evoca, em seus dois quartetos, a amada Maria Amélia de Bragança, filha de D. Pedro I e de Amélia de Leuchtenberg, que Maximiliano conhecera em Portugal, em 1852, e por quem se apaixonara. Alguns meses após o encontro dos dois príncipes, a jovem falece de tuberculose: “O botão que no Tejo vi brilhar. / / Tornou-se rosa para fenecer”, lembra o poeta, deixando “Um tremor de saudade, triste e melancólica” a invadir seu “ferido coração” (p. 345). Um elo sutil entre o arquiduque e o Brasil, que Moema P. Augel destaca, em filigrana. Ao concluir a leitura do livro Mato virgem, publicado em 2010, pela Editus, o leitor deslumbra-se com a riqueza de seu conteúdo; por outro lado, fica surpreso ao avaliar que esse tesouro de nossa cultura per maneceu releg ado ao esquecimento durante quase um século e meio. Com efeito, é a primeira vez que está sendo difundido em português, para o público brasileiro, o texto do arquiduque, vindo à luz em Viena, em 1865, segundo afirmamos anteriormente. A importância histórica e científica da obra é inconteste. Flagram-se nela aspectos significativos, ligados aos costumes e ao meio ambiente, bem como relativos ao contacto entre os diferentes segmentos da população, os brasileiros, os índios (Kamakã e Pataxó), os escravos e os colonos estrangeiros. Em especial, a população grapiúna ficará provavelmente satisfeita, talvez até emocionada, em encontrar no livro alusões aos emigrantes germânicos, em alguns casos seus ancestrais. Maximiliano de Habsburgo dá relevo em seu relato a Heinrich Berbert, que denomina, com admiração, o Rei da Floresta, pelo domínio e sintonia que este demonstrava na plenitude da natureza selvagem, grande caçador que era; a Ferdinand von SteigerMUnssingen, em cuja casa rural da Fazenda Vitória ficou hospedado; ao Barão Paravicini, casado com uma francesa; a Pedro Koch, administrador da fazenda de Steiger e ainda a Lohmann, cônsul da Áustria na Bahia e rico comerciante, nascido em Hamburgo e com a idade de apenas 29 anos. 123 Revista ALB 50_finalizada.pmd 123 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Para arrematar nossos comentários, apontamos para a vertente que nos parece a mais resplandecente no livro Mato virgem: a exuberância de informações relativas à vegetação encontrada na floresta e aos animais silvestres. Encontrá-los e admirá-los era a meta do arquiduque. A leitura de seu texto torna-se ainda mais fascinante, com as indicações de rodapé que as completam, fornecidas por Moema P. Augel. Celina Scheinowitz é Doutora em Letras e Ciências Humanas (Université de Paris IV,Paris-Sorbonne ), com pós-doutorado pela École des Hautes Études (França); é professora aposentada da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de Santana; tem diversos artigos e livros publicados no Brasil, na França e em outros países. 124 Revista ALB 50_finalizada.pmd 124 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Destino, ação e sabedoria na literatura oral do sertão Antonio Sá da Silva 1 A INTRODUÇÃO “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”1. Essas foram as palavras introdutórias do discurso proferido pelo Nobel de literatura de 1998, o escritor português José Saramago, cujo feito mais memorável – ao que me parece – não foi o de restaurar o prestígio da Língua Portuguesa no mundo, mas o de fazer “ver” as diferentes vozes que ela possui e as diferentes formas por meio das quais ela pode ser expressa. A frase de Saramago é responsável pelo meu atrevimento ao aceitar o generoso convite do Prof. Edivaldo Boaventura para lhes falar nesta tarde. Isso porque a importância que o poeta luso atribuía ao seu avô em sua formação literária me confortava, afinal, nesta decisão de ocupar os vossos ouvidos com o tema Destino, ação e sabedoria na literatura oral do sertão. É que, se por um lado o tema pressupõe que a oralidade é capaz de instituir um verdadeiro modelo de literatura, por outro, ele também identifica certa sabedoria e certa visão de mundo. E, desse modo, a minha 125 Revista ALB 50_finalizada.pmd 125 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 pretensão aqui – e talvez não passe de uma simples pretensão! – é fazer um ligeiro mergulho em uma comunidade específica de narradores que, por meio da oralidade, testemunha uma experiência civilizacional também muito delimitada: a do sertão brasileiro. Com efeito, se atentarmos para as lições de Walter Benjamim, haveremos de reconhecer que os narradores dos quais falo e dos quais muitos já falaram talvez façam parte de uma experiência do passado, mas nem por isso menos importantes para a compreensão da comunidade ética em que vivemos e da complexidade de nossas vidas. É que para o autor alemão o narrador – o autêntico narrador – é o depositário e o transmissor daquela experiência comunitária que anda de boca em boca2. É ele aquela figura pública, hoje em extinção, cuja morte encontra seu primeiro indício no surgimento do romance – por causa do seu isolamento e da consequente perda da experiência3 – e se aprofunda com o surgimento da informação, uma vez que esta substituiu o fantástico e o distante pelo realístico e pelo imediato. O narrador é sempre quem sabe dar conselhos ao ouvinte, e o conselho é cingido pela substância da vida vivida; é sabedoria que se tornou antiquada no nosso tempo. Assim é que, pelas mãos de Luís da Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Juvenal Galeno, Leonardo Mota etc., os trabalhos de recolha e sistematização deste acervo literário tão expressivo da nossa brasilidade advertem para aquilo que disse Câmara Cascudo no prefácio de seu Contos Tradicionais do Brasil: ao lado do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas e solitárias da memória e da imaginação popular, mas tão poderosas como as outras na arte de contar vivamente a história, a etnografia, as ideias, os julgamentos e as decisões de um povo4. Assim sendo, não pretendo de modo algum dar conta da imensidão de questões suscitadas pelo referido tema, uma vez que são, muitas vezes, controvertidas, algo que uma simples intervenção de um neófito jamais poderia esgotá-las. Isto me 126 Revista ALB 50_finalizada.pmd 126 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 obriga, certamente, a invocar aquela humildade cultural e humana que Riobaldo, a personagem ilustre do Grande sertão: veredas por meio da qual Guimarães Rosa me aproxima de uma interpretação muito autêntica do mundo, também invoca em seu favor perante aquele que pacientemente lhe escuta: “Eu sei que isto que estou dizendo é dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução que o senhor tem”5. Assim, o que o jagunço Riobaldo quer mesmo é decifrar as coisas que são importantes, e, nesta empreitada, qualquer sabença – no dizer de Patativa do Assaré6 – apresenta um valor intrínseco, o que me permite falar desta linguagem como uma partilha e como uma forma de vida. Desse modo, no item dois desta apresentação, tecerei comentários sobre a concepção trágica da vida que permeia o imaginário narrativo dos poetas da oralidade sertaneja, para depois, no item três, abordar as consequências diretas que essa imaginação exerce na visão da praxis encontrada nas narrativas daqueles poetas. 2 A MORTE DE JOÃO MAJOR E A LIÇÃO DE DONA INÁCIA “Quando João Major morreu no chifre de um cuiabano/A viúva Dona Inácia ajoelhou no chão chorando/Nesta lida tão infame tenho um filho inclinando/ Mas nem Deus que é poderoso há de cortar os meus plano/O dinheiro compra tudo/Ele há de ter estudo/Pra ser Seu doutor fulano/. Pra não contrariar sua mãe com bem dor de coração/O rapaz tirou a espora e pendurou lá no galpão/ Meu filho na sociedade terá boa educação/Não lhe faltará dinheiro pra cumprir sua missão/Seja tarde ou seja cedo/Terá um anel no dedo/Invêis de um laço na mão/ Depois que o moço foi embora/Seis anos tinha passado/Os fazendeiros vizinhos viviam tudo alarmado/Um bando de desordeiro vinha ali pra roubar gado/Atravessavam o rio pra vender no outro Estado/Igual a palma da mão/Esse bando de ladrão/Conhecia 127 Revista ALB 50_finalizada.pmd 127 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 aqueles lado/. Com mais de cem peão armado a polícia reuniu/ E fizeram uma tocaia na outra banda do rio/O cerco foi tão perfeito nem um bandido fugiu/Dona Inácia com a notícia de satisfação sorriu/Tomara que o delegado/Surre de laço dobrado/Esse bando de vadio./ Nisso bate à sua porta todo afobado um peão/O doutor diz pra senhora ir prestar declaração/A viúva nem por sonho desconfiou da situação/ Mas chegando na cadeia deu um grito de aflição/É que seu filho adorado/Lá estava encarcerado/Da quadrilha era o chefão./ Dava pena a gente ver aquele tão triste quadro/A viúva entre as grade abraçando o filho amado/Aconteça o que acontecer estarei sempre a seu lado/Tanto dinheiro gastei pra te fazer um homem honrado/Meu orgulho Deus quebrou/ Invêis de um filho doutor/Formei um ladrão de gado”7. Esse clássico sertanejo, gravado pela dupla Liu e Léu e intitulado Ladrão de gado, foi composta por Nelson Gomes e Teddy Vieira na década de 50 e expressa uma concepção trágica da vida, algo muito comum entre os violeiros do sertão. Com efeito, D. Inácia não desejava para o seu filho a mesma sorte do pai, qual seja, levar uma vida inteira de excelência na arte de dominar o boi e, em um minuto apenas, despedir-se anonimamente dela como um qualquer. Mas a sua jura não passou de uma pretensão inútil, e o seu “orgulho” foi inexoravelmente destruído. Pode-se assim dizer que do mesmo modo como Homero retrata o castigo de Ulisses – o de andar errante pelos mares por causa dos desaforos disparados contra Poseidon8 –, os autores falam do castigo que D. Inácia terminou pagando, isto é, as duras penas por ter desafiado o destino do seu filho; ele, de fato, não seguiu a profissão do pai, mas também não foi doutor como ela queria: foi, sim, um ladrão de gado! Se é bem verdade que se trata de culturas muito distintas, isso não desmente o fato de que os dois imaginários narrativos partilham dos mesmos pressupostos de que “o homem não é a medida de todas as coisas”, ou como 128 Revista ALB 50_finalizada.pmd 128 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 disse Riobaldo, a vida humana parece mais um relato sem pé e nem cabeça, uma peça que já está escrita no livro da vida quando nós nascemos e que teremos de representar. E sem possibilidade, é claro, de escolhermos o nosso papel9! É verdade, como Werner Jaeger nos diz, que não existe propriamente um conceito universal de tragédia, contudo é possível reconhecer alguns traços fundamentais que o autor alemão observa no teatro clássico: “A representação clara e vívida do sofrimento nos êxtases do coro, expressos por meio do canto e da dança, e que, pela introdução de vários locutores, se convertia na representação integral de um destino humano, encarnava do modo mais vivo o problema religioso há muito candente, do mistério da dor enviada pelos deuses à vida dos homens”10. O próprio Aristóteles, em seu conceito de tragédia, descrevia-a como sendo uma imitação das ações humanas, cuja origem na boa e na má fortuna das pessoas suscitam o terror e a piedade no auditório, alcançando com isso a purificação das nossas emoções (katharsis)11. Isso é o que se pode ver representado por Ésquilo com a personagem Orestes, inteiramente subjugado ao arbítrio do destino, tendo inexoravelmente de matar a própria mãe para vingar a morte do pai: “Não, não me vai trair o poderoso oráculo de Lóxias, que me ordena que corra este risco, eleva sem cessar a sua voz e me anuncia desastres capazes de me fazer gelar o sangue, se eu não perseguir os responsáveis pela morte de meu pai, tratando-os como eles o trataram, matando quem matou, vingando, com a fúria de um touro, a perda dos nossos bens. Caso contrário, pagarei com a própria vida no meio de múltiplas e cruciantes dores”12. A iniciativa de ludibriar a sorte resultou em profunda desgraça a ser suportada por D. Inácia na medida em que assiste de pé, no teatro da vida, ao desenvolvimento de outra excelência do seu filho: a de chefiar o bando em razão de conhecer, como nenhum dos outros, as peculiaridades regionais da sua terra. Esse mesmo atrevimento o fazendeiro Jeremias teve, de acordo com aquilo 129 Revista ALB 50_finalizada.pmd 129 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 que o Trio Parada Dura diz na sua música Boi tufão, tendo que aprender com o próprio filho – isso para mais uma vez fazer valer a lição do poeta que Machado de Assis toma para si, a de que o menino é o pai do homem13 – que diante do destino só há o que se conformar: “Papai, preste atenção/Eu vou pra junto de Deus/Me tenha no coração/Meu destino era morrer/Nos chifres do boi tufão”14. De fato, a cigana Maria, a pedido do próprio Jeremias, leu a sorte do seu filho e a revelou, porém o fazendeiro ordenou ao seu empregado para matar o boi logo em seguida; comeram-no, e a cabeça do animal ficou rolando pelo quintal até cair no esquecimento; mas o dia fatídico chegaria, e chegou quando o menino, correndo para atender o chamado da mãe para almoçar, caiu em cima do chifre como já lhe era prometido. E por ali ser sertão bravio, como diz o compositor, o médico não pôde atender às últimas investidas de Jeremias contra o destino de seu filho. Assim, o testemunho dos eventos anteriores representa para as suas personagens um modo próprio de pensar a vida, não como um cosmos ou como uma ordenação do mundo ao modo dos pré-socráticos; não como um logos universal à maneira dos estóicos; não como uma ordem divina ao modo dos doutores da Igreja e, muito menos, como uma ordem científico-racional tão ao gosto dos pensadores modernos. Essa forma peculiar de enxergar o nosso lugar do mundo apresenta os seus testemunhos em diferentes formas de expressão literária. Parece-me exemplificativo o exemplo do já referido João Guimarães Rosa que, mesmo de modo indireto – a personagem Riobaldo, embora seja uma criação literária, incorpora de modo muitíssimo autêntico a figura do narrador sertanejo –, testemunha essa compreensão trágica da vida que sobrevive com muita intensidade no nosso sertão. Mas se quisermos um testemunho direto e igualmente exemplar, podemos encontrá-lo em Patativa do Assaré, o poeta da roça, o qual já tendo sido referido como “Hesíodo do sertão”15, expressa de modo insofismável e autêntico essa visão sertaneja do teatro das nossas vidas. 130 Revista ALB 50_finalizada.pmd 130 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Com efeito, naquele cordel intitulado Diabo a cete (sic) e produzido pelo Memorial de Patativa em seu projeto de documentação da poesia de Patativa, pode-se ver que o poeta cearense dá ao destino aquela mesma configuração encontrada na confissão-relato de Riobaldo: “Ninguém zombe da verdade/ Daquilo que não conhece/Azá e felicidade/Na nossa vida acontece/O veio João Lafaéte/Falava do diabo a cete/E eu fazia mangação/Poristo um grande aperreio/Cronta mim um dia veio/ Botá mesmo com a mão”16. Não é muito diferente com a personagem Riobaldo, para quem o mundo, pela própria natureza, é todo doido: gente nascendo, crescendo, casando, querendo emprego, saúde, riqueza, prestígio etc. Para ele, todo esse remexer tem um nome: o Diabo, cujas insondáveis maquinações fazem do mundo uma doideira só17. Mas se quisermos remontar às origens literárias dessa forma de compreender o mundo, pode-se dizer que as Moiras – aquelas fiandeiras lúgubres que trabalham incansavelmente todos os dias e horas do ano – tecem e cortam nossa boa ou má fortuna logo que nascemos. E disso nos mostra, pelo testemunho narrativo de Nelson Gomes e Teddy Vieira, que a ação transgressora de D. Inácia foi demasiadamente temerária para ser admitida como modelo de conduta no universo cultural do sertão. Isso tudo exige, portanto, as considerações seguintes sobre a ação preferível ou sábia acerca das peculiaridades do sertão. 3 O SERTÃO É TRAIÇOEIRO MAS O SERTANEJO É UM FORTE O problema do acaso em nossas vidas foi objeto de muitas especulações em toda a história da filosofia, encontrando em Aristóteles uma tentativa de conceituação a ser observada neste trabalho: ele é um fato cuja causa é indeterminada, que nunca ocorre em vista de um fim, diferentemente da natureza, que é um fato de causa interna e regular18. A boa ou má fortuna resulta 131 Revista ALB 50_finalizada.pmd 131 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 da aquisição de bens para a qual não há uma explicação coerente: qual explicação lógica – pergunta o Estagirita – para o fato de um guerreiro e não outro estar no alvo de uma flecha lançada em uma guerra, ou para o fato de uma pessoa que sempre foi a um determinado lugar ali não comparecer exatamente no dia em que outro que nunca tinha ido, ali comparecer e lá encontrar a morte19? Se digo isso, é porque a poesia oral do sertão não testemunha apenas da desgraça como apressadamente se poderia concluir, não proclama a uma pura resignação perante o acaso de nossas vidas. Esse testemunho, via de regra, aparece acompanhado de reflexões sobre aquilo que é permitido ou não fazer diante dessas incertezas do mundo. Os nossos narradores se ocupam em denunciar também a indiferença da pessoa face à desgraça que pode se abater em nossas vidas. Quando Paulinho Retratista voltou de férias, ele se interessou muito por uma das fotos reveladas pelo empregado no período em que esteve ausente. Apaixonou-se forte e imediatamente pela moça, não pensando e nem fazendo mais nada na vida a não ser pensar no dia em que ela regressasse ao seu estúdio. Ocorre que, um dia, para a desilusão de Paulinho, ao invés da moça, veio uma senhora para buscar a foto, e ele, desesperado, perguntou logo o porquê de a moça não ter ido e tê-la mandado resgatar a foto. A resposta diz por si só e, de modo muito comovente, explica a razão do desespero de Paulinho diante do acontecido: “Não fique triste rapaz/ O destino é mesmo ingrato/ No tempo da mocidade/Eu fui bonita de fato/Há muitos anos guardei/Esse negativo intato/Por incrível que pareça/Sou a moça do retrato”20. Assim é que a música A moça do retrato, gravada por Zé Tapera e Teodoro, conta o causo de um rapaz que perdeu a consciência da história e do tempo, duas realidades que marcham sobre nós quando não aprendemos a lidar com elas. A música denuncia a resignação e o conformismo perante os acontecimentos. Ela manifesta outra face do sertanejo que os poetas não se cansam de representar: uma gente de ação. Assim 132 Revista ALB 50_finalizada.pmd 132 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 é que Euclides da Cunha iria reconhecer que o sertanejo acima de tudo é um forte, embora suas aparências possam sugerir o contrário21. Como diria Riobaldo22, dado que o sertão não chama ninguém às claras, ao contrário se esconde e acena, de repente ele se estremece debaixo dos nossos pés, e é preciso dominá-lo antes que ele nos domine23. Essa traição perpetrada pela natureza contra o sertanejo, pelo que se depreende dos textos poéticos, tem um modo próprio de ser enfrentada, e, como o próprio Riobaldo iria dizer, quem a enfrenta não pode nunca pretender ser o dono do sertão; ao contrário, deve apenas ir compondo com ele como quem vai lhe obedecendo24. É que o sertão é insondável e extenso, não adiantando querer dele fugir: do sertão, somente se consegue sair entrando por ele adentro25. Fica dito assim que há uma sabedoria própria para superar os contratempos do sertão; daí que sou levado a crer que o conceito de vida boa dos poetas da oralidade sertaneja é indissociável de um conceito de virtudes, o qual se manifesta por meio de um continuum prático que integra o sertanejo no meio que ele vive. Desse modo, razão, fé, justiça e moralidade apresentam-se, muitas vezes, sem uma fronteira muito definida ou que separe cada um dos campos da ação proposta. Essa é uma sabedoria ao modo de uma prudência como Aristóteles bem o mostrou no Livro VI da sua Ética a Nicômaco: um saber não do geral e do abstrato, mas um saber particular que possibilita ao phronimos decidir corretamente sobre como fazer alguma coisa da melhor forma possível, usando os recursos que dispõe em uma situação concreta em que está vivendo26. “Quem mói no aspr’ro, não fantasêia”27, disse-o bem Riobaldo sobre a diferença entre o que ele queria e o que ele realmente podia fazer ao marchar sobre o sertão. Essa é a sabedoria que o chefe da comitiva, naquela história narrada na canção caipira Travessia do Araguaia, expressa ao mandar o ponteiro empurrar na água um boi velho para iludir as piranhas enquanto o restante da boiada e os peões atravessavam28. 133 Revista ALB 50_finalizada.pmd 133 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Mas quero insistir nesse saber complexo e nessa ação que não estabelece qualquer fronteira entre os discursos da praxis, e o faço tomando como exemplo mais uma narrativa sertaneja intitulada Boiadeiro punho de aço: “Me criei em Araçatuba/Laçando potro e dando repasso/ Meu velho pai pra lidar com boi/Desde pequeno guiou meus passo/ Meu filho o mundo é uma estrada/Cheia de atalho e tanto embaraço/ Mas se você for bom no cipó/Na vida nunca terás fracasso/. Com vinte anos parti/Foi na comitiva de um tal Inácio/Senti o nó me apertar à garganta/ quando meu pai me deu um abraço/Meu filho Deus lhe acompanhe/São esse os voto que eu lhe faço/E como prêmio do teu talento/Lhe presenteio com esse meu laço/. Por este Brasil afora/ Fiz como faz as nuvens no espaço/Vaguei ao léu conhecendo terras/Sempre ganhando dinheiro aos maço/Meu cipó em três rodia/Cobria a anca do meu Picasso/Foi o que me garantiu o nome/De boiadeiro punho de aço/. De volta pra minha terra/ viajava à noite com um mormaço/Naquilo eu topei com uma boiada/ Beirando o rio vinha passo-a-passo/Um grito de boiadeiro/ Pedindo ajuda cortou o espaço/E eu vi o peão que ia rodando/ Saltei no rio com o meu Picasso/. A correnteza era forte/ Tirei o cipó da chincha do macho/E pelo escuro ainda consegui/Laçar o peão por um dos seus braços/Ao trazer ele na praia/Meu coração se fez em pedaço/Por um milagre que Deus mandou/Salvei meu pai com seu próprio laço”29. Eu quero dizer que o boiadeiro do punho de aço somente se vê no mundo como uma pessoa excelente na medida em que se cumprem, na mesma ação, as exigências da arte, da ética e da justiça. Em outras palavras, seria possível dizer que sua ação somente é justificada moralmente na medida em que fez justiça 134 Revista ALB 50_finalizada.pmd 134 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 ao seu pai, e ele somente pôde fazê-lo quando se tornou excelente na arte de lidar com o laço; por outro lado, a sua excelência artística não se verifica no domínio puro e simples do laço, mas apenas assim pode ser considerada quando essa arte lhe permite responder pelas suas obrigações com o seu pai; nisso se baseia a compreensão da eticidade de sua conduta, ou seja, a consciência do cumprimento do seu dever somente foi atingida quando daquela oportunidade de provar a si mesmo e de responder ao pai que as suas lições de vida foram adequadamente assimiladas. Essa concepção trágica da vida e esse modelo de ação é que orientam a visão da praxis humana em todas as suas dimensões. O dever para com a pessoa é orientado pela convicção de que a mesma é titular de uma dignidade que lhe é inerente; é o que retrata a canção Rei do gado, na qual se denuncia a discriminação e se rejeita qualquer forma de humilhação contra quem quer que seja. O dever para com a comunidade é orientado por uma ética do cuidado e da hospitalidade bastante original, tal como visivelmente aparece naquele conto popular no qual o avô ensina ao seu neto a necessidade de ajudar seus vizinhos para que eles nunca deixem de lhe ajudar em um momento de necessidade30; disso se deu conta muito bem Euclides da Cunha quando descreve, entre outras práticas da solidariedade, o socorro que os vizinhos se prestam mutuamente para reunir o gado arribado das fazendas31. E, por fim, o dever para com a natureza é orientado por uma relação de amizade humana com os animais e com os outros seres da terra, e não propriamente de dominação ou de conquista; isto parece muito exemplar no cordel O cachorro dos mortos, de Leandro Gomes de Barros32, e nas músicas Assum preto de Luiz Gonzaga33 e Planeta azul de Xitãozinho e Xororó34; o mesmo se diz daqueles contos imemoriais contados pelos nossos pais, tais como Esopo, do tempo em que os bichos conversavam. O que muito importa ter em mente é que qualquer dessas responsabilidades pressupõe uma vulnerabilidade das nossas vidas, reclamando sempre uma humildade cultural e humana como se 135 Revista ALB 50_finalizada.pmd 135 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 sugere na música A caneta e a enxada, na qual, por intermédio de uma metáfora, a dupla Lourenço e Lourival denuncia a soberba e a pretensão, ao passo que enaltece a obrigação para com o estrangeiro e a importância de aprender com ele outras coisas consideradas importantes para as nossas vidas35. A nossa condição humana não é de autossuficiência, mas de fragilidade; daí que aqueles poetas nos assemelham muitas vezes aos próprios animais e atribuem a nós igual destino deles nesta vida, tal como os caipiras Tonico e Tinoco, naquela canção Destinos iguais, bem souberam expressar. Como o leitor pode ver ali, o compositor testemunha as juras de amor entre um casal de canários que prometem entre si nunca se separarem, cerimônia de afetos essa que é interrompida por um gavião que passa o bico e leva embora a canarinha. A ação traiçoeira daquela ave é, para o autor, como a de uma pessoa que age de emboscada, e a reação do canário que persegue o malfeitor é igualmente movida pelo sentimento humano de raiva e de desespero, seguido depois pelo de desalento diante da impotência frente ao acontecido. O retorno e o gorjeio do canário são, para o compositor, um chorar; o infortúnio desperta no artista a mesma lágrima por lembrar a sua igual condição de estar separado da pessoa que ama por motivos alheios à sua vontade, cujo arremate não parece deixar nenhuma dúvida dessa semelhança estabelecida: “Chorei, pois tive saudade/Daquela felicidade/ Que o destino me roubou/O meu viver solitário/É tal e qual desse canário/Que perdeu o seu amor”36. 4 A CONCLUSÃO Posto assim, tenho que concluir. Faço-a sugerindo que a sabedoria expressa nos textos da oralidade sertaneja remete a uma concepção de fragilidade da vida, remetida tanto aos poetas clássicos como à filosofia aristotélica, de que o homem é um ser moral, mas não inteiramente liberto de outras circunstâncias 136 Revista ALB 50_finalizada.pmd 136 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 que não escolhe. Nomeadamente, a sua condição animal! Essa limitação partilhada com outros seres, como Martha C. Nussbaum bem sabe esclarecer, faz de nós pessoas permanentemente necessitadas de cuidado37. Ela não nega e eu também não negarei que a liberdade é um elemento essencial à experiência prática, mas pensamos tudo isso na perspectiva animal: nossa liberdade nunca é, como a liberdade de outros seres, independente das outras pessoas ou desprovida de sua atenção. Essa vulnerabilidade, tal como a professora de Chicago nos lembra com aquela poesia de Píndaro, assemelha-nos a uma planta que, uma vez no mundo, precisa se alimentar permanentemente, mas, para isso, dependerá de condições não encontradas dentro dela mesma38. Essa é uma sabedoria que, talvez por não possuir nenhuma, ocupo-me apenas de testemunhar, retribuindo o gesto de bondade e de abertura desta Casa – e dos seus confrades – para um estrangeiro. Não advogando aqui nenhuma demanda entre oralidade e escrita, como uma interpretação desavisada daquela frase de Saramago poderia induzir. Contento-me apenas em recordar as lições do Fedro nas quais Platão, um poeta e escritor por excelência, adverte para as limitações do texto e para os ganhos que podemos ter se realmente estiver mos dispostos a ouvir aquilo que definitivamente não pode ser dito por meio da escrita.39 NOTAS E REFERÊNCIAS Obs.: O texto que agora é publicado refere-se exatamente àquele da palestra realizada na sede da Academia de Letras da Bahia em 05/08/2010. Os meus sinceros agradecimentos ao Prof. Edivaldo M. Boaventura que, na qualidade de presidente da Casa, me formulou o honroso convite, aos demais integrantes da Academia pela presença e pelos debates, e ainda à colega Helena Vieira Pabst pelo esmerado cuidado e pelo olhar crítico sobre este texto. 137 Revista ALB 50_finalizada.pmd 137 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 SARAMAGO, José. Discursos de Estocolmo. Caminho: Lisboa, 1999, p. 11. 2 BENJAMIM, Walter. O narrador: reflexões sobre a obra de Nikolai Lesskov. In: ____. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Tradução de Maria Amélia Cruz. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1992, p. 27 e segs., bem como 48 e segs. 3 Op. cit., p. 32 e segs. 4 CASCUDO, Luíz da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil. 13. ed. São Paulo: Global, 2004, p. 12. 5 ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 100. 6 PATATIVA DO ASSARÉ. Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra, 2006, p. 14. 7 VIEIRA, T; GOMES, N. Ladrão de gado. Intérpretes: Liu e Léu. In: LIU E LÉU. Nosso Rancho. São Paulo: Continental, p1962. 1 LP. Faixa 3. 8 HOMERO. Odisseia. Tradução de Cascais Franco. Mem Matins: Europa-América, 2000, canto I. 9 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 244. 10 Cf. JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 206. 11 Cf. ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Sousa. 6. ed. Maia: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2000, 1449b-1450a. 12 Cf. ÉSQUILO. Coéforas. In: ______. Oresteia. Tradução de Manuel de Oliveira Pulquério. Lisboa: Edições 70, 1992, 269-277. 13 ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. 28. ed. São Paulo: Áticam 2002, p. 32. 14 CRIOLO. Boi tufão. Intérpretes: Trio Parada Dura. In: TRIO PARADA DURA. Casa da Avenida. São Paulo: Chororó, p1977. 1 LP. Faixa 2. 15 FERNANDES, Beto. Os 100 anos de Patativa segundo o jornalista Beto Fernandes. Blog do Crato. Crato, 05 ago. 2010. Disponível em: <http://blogdocrato.blogspot.com/2009_03_07_archive.html>. Acesso em: 05 ago. 2010. 16 PATATIVA DO ASSARÉ. Diabo a cete. Assaré: Fundação Memorial Patativa do Assaré, s/d, p. 01. 17 ROSA, João Guimarães, op. cit, p. 235. 1 138 Revista ALB 50_finalizada.pmd 138 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior et al. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, 1369a/b. 19 ARISTÓTELES. Retórica, 1362a. 20 PASSARINHO; DADÁ. A moça do retrato. Intérpretes: Zé Tapera e Teodoro. In: ZÉ TAPERA E TEODORO. [S.T.]. São Paulo: RCA, p1970. 1 LP. Faixa 1. 21 CUNHA, Euclides. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 146. 22 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 522. 23 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 495. 24 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 375. 25 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 279. 26 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de António de Castro Caeiro. 2. ed. Lisboa: Quetzal Editores, 2006, 1141b15 e segs. 27 ROSA, João Guimarães, op. cit., p. 10. 28 FRANCO, D; SANTOS, D. Travessia do Araguaia. Intérpretes: Tião Carreiro e Pardinho. In: TIÃO CARREIRO E PARDINHO. Som da Terra. [S.L]: [S.G], p1994. 3 CD. Faixa 08. 29 CARREIRO, T; VIEIRA, T. Boiadeiro punho de aço. Intérpretes: Tião Carreiro e Pardinho. In: TIÃO CARREIRO E PARDINHO. Som da Terra. [S.L]: [S.G], p1994. 3 CD. Faixa 05. 30 Um menino estava almoçando na casa do avô e então este disse ao neto: – Esta carne que estamos comendo aqui agora é de uma vaca que eu matei o no dia que seu pai nasceu. O menino admirava muito as coisas que seu avô fazia mas não compreendeu direito aquilo que ele tinha contado. Um compadre do seu avô, que tinha vindo de longe para visitá-lo e estava junto, ouviu a conversa e ao chegar em casa matou também uma vaca, guardou tudo na despensa e em poucos dias já não tinha mais nada. Voltando à casa do seu compadre, reclamou que este tinha mentido para o neto, já que a carne de uma vaca não era suficiente para uma família comer durante tantos anos. Aí então o velho respondeu: – Compadre Joaquim.... ninguém sabe do dia de amanhã! Por isto, quando eu mato uma vaca, um carneiro ou um porco aqui em casa, mando um pedaço para os meus vizinhos. Muita gente faz o mesmo e deste jeito a carne nunca acaba porque um socorre o outro na hora da precisão. 18 139 Revista ALB 50_finalizada.pmd 139 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Op. cit., p. 158. BARROS, Leandro Gomes. O cachorro dos mortos. São Paulo: Luzeiro, s/d. 33 TEIXEIRA, H; GONZAGA, L. Assum preto. Intérprete: Luiz Gonzaga. In: LUIZ GONZAGA. Volta pra curtir: ao vivo. [S.L]: BMG Brasil, p2001. 1 CD. Faixa 06. 34 ALDEMIR; XORORÓ. Planeta azul. Intérpretes: Xitãozinho e Xororó. In: XITÃOZINHO E XORORÓ. Planeta azul. Rio de Janeiro: Polygram, p1992. 1 CD. Faixa 07. 35 BALDUINO, C; VIEIRA, T. A caneta e a enxada. Intérpretes: Lourenço e Lourival. In: LOURENÇO E LOURIVAL. 20 Preferidas. Rio de Janeiro: Som Livre, p1996. 1 CD. Faixa 04. 36 PIRES, A; LAUREANO. Destinos iguais. Intérpretes: Tonico e Tinoco. In: TONICO E TINOCO. As 12 Mais. São Paulo: Caboclo Continental, p1968. 1 LP. Faixa 01. 37 NUSSBAUM, Martha C. Frontiers of Justice: disability, nationality, species membership. Cambridge/London: The Belknap Press of Harvard University Press, 2006, p. 87 e segs 38 NUSSBAUM, Martha C. The Fragility of Goodness: luck and ethics in greek tragedy and philosophy. Revised Edition. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. I. 39 PLATON.pHÈDRE. In:_____. Oe vres Complètes. Traduction nouvelle et notes par Léon Robin. S/Cid.: Librarie Gallimar, 1950, 274c e segs. 31 32 Antonio Sá da Silva é mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/Portugal. Professor da Faculdade de Direito da UFBA e da Faculdade Baiana de Direito. Coordenador do Curso Noturno da Faculdade de Direito da UFBA. ExPesquisador do Instituto de Investigação Interdisciplinar da Universidade de Coimbra. 140 Revista ALB 50_finalizada.pmd 140 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Dos estreitos limites do internato, fui salvo pelo mar: O Padre Luiz Gonzaga Cabral e Jorge Amado Manuel de Novaes Cabral P “ ara o menino grapiúna – arrancado da liberdade das ruas e do campo, das plantações e dos animais, dos coqueirais e dos povoados recém-surgidos –, o internato no colégio dos jesuítas foi o encarceramento, a tentativa de domá-lo, de reduzi-lo, de obrigá-lo a pensar pela cabeça dos outros”. É desta forma acabrunhante, persecutória, limitativa e censória que Jorge Amado faz a primeira referência ao Colégio dos Jesuítas Antônio Vieira, em São Salvador da Bahia de Todos os Santos, onde seu pai o interna aos nove anos. N’O Menino Grapiúna – obra editada pela primeira vez em 1980 e da qual retirei este pequeno excerto – Jorge Amado conta as suas memórias – aventuras infantis, traçando o perfil familiar, sobretudo de seu pai, de sua mãe e de seu tio Álvaro. Neste pequeno mas impressivo livro, fácil é apercebermo-nos da bondade de sua mãe, dona Eulália, da dureza de seu pai, o Coronel João Amado de Faria ou do companheirismo de seu tio, o Coronel Álvaro Amado – “homem ladino e aventureiro”, no testemunho do escritor. Ao longo do texto, percorremos a saga do cacau empreendida na nação grapiúna, as migrações da mão 141 Revista ALB 50_finalizada.pmd 141 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 de obra, a apropriação de terras de ninguém e as lutas pela sua posse, o crescimento de povoações que surgiram do nada, com os consequentes negócios de bens e da carne, as difíceis relações sociais e o pouco valor da vida humana. Aí, Jorge Amado contanos a sua intimidade com os “despossuídos” e com “as mulheres marcadas com ferro em brasa”, a perseguição da bexiga e dos bexigosos, as suas primeiras noções de amor, a vida “intensa e sôfrega”, passada entre o “amor” e a “morte”, conta-nos, enfim, das suas “universidades”. Os primeiros anos de vida de Jorge Amado foram preenchidos por vivências tão ricas e tão impressivas que vão desenhar uma boa parte das personagens que povoarão os seus livros. Personagens recriadas de seres reais, com vidas próprias, possuídos e “despossuídos”, poderosos e miseráveis, manobradores e submissos, com uma enorme beleza física e apenas com beleza interior. Personagens que preencheram uma vida rica, complexa, mas sobretudo intensamente vivida. Personagens que só podem brotar de um ser inteligente, que absorveu todas as suas vivências como uma poderosa esponja, sugando tudo o que viu e viveu com todos os seus sentidos. Depois de uma infância plena de liberdade, Jorge Amado sentiu-se “encarcerado” quando o pai, pretendendo embora “educá-lo no melhor colégio, o de maior renome”, o interna no Colégio Antônio Vieira que, nessa época – cerca de 1920 –, ganhava novo fôlego. Com efeito, o advento da República em Portugal, em 1910, tinha conduzido a mais uma – a terceira – expulsão da Ordem de Santo Inácio de Loyola. Os revolucionários consideravam que os padres jesuítas eram demasiado influentes, sobretudo na Corte; por isso, foram vilipendiados, insultados e ferozmente perseguidos. À frente da Província Portuguesa estava então o Padre Luiz Gonzaga Cabral que, apesar de ser uma das presas mais apetecíveis da novel república, logrou escapar do seu Colégio de Campolide, em Lisboa, refugiando-se em casa de um humilde alfaiate das 142 Revista ALB 50_finalizada.pmd 142 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 vizinhanças e, depois, junto de uma família francesa. Estão impressas e contam-se ainda hoje na família histórias rocambolescas a propósito da sua evasão. Esta aconteceu, afinal, apenas graças a ter-se disfarçado como caixeiro-viajante, vendedor de máquinas de escrever Remington, tendo sido essenciais à peripécia dois recursos que lhe sobravam: o seu reconhecido bomhumor e o grande dom que tinha para as línguas e para a representação. Para esclarecer qualquer dúvida que possa persistir, a história está contada, na primeira pessoa, no final do primeiro volume da obra que ele encarregou o Padre Luiz Gonzaga de Azevedo de elaborar, intitulada “Proscritos”, que constitui a memória viva do que passaram os Jesuítas portugueses nessa época de provação. Os primeiros tempos do exílio, passou-os o Padre Cabral a percorrer diversos países da Europa e a divulgar o seu protesto intitulado “Ao meu paiz”, o qual foi impresso em diversas línguas e teve numerosas edições, bem como a reunir e a instalar a sua numerosa “família religiosa” – como dizia. Mas quem era, afinal, este padre jesuíta que tanta influência viria a ter em Jorge Amado? Luiz Gonzaga do Valle Coelho Pereira Cabral nasceu no dia 1 de Outubro de 1866 na Foz do Douro, no Porto, na casa de praia de seus pais, situada na antiga rua Central, que hoje ostenta o seu nome: “rua do Padre Luís Cabral – orador sacro”. Foram seus pais Constantino António do Valle Pereira Cabral, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, Comendador da Ordem de Cristo, bacharel formado em Direito pela Universidade de Coimbra, grande proprietário no Douro e no Minho e que exerceu numerosos cargos no Porto mercantil da época, designadamente o de diretor da poderosa Companhia-geral de Agricultura das Vinhas do Alto Douro – fundada pelo Marquês de Pombal, mentor da primeira expulsão dos Jesuítas – e de sua mulher Maria Emília da Conceição Ribeiro Coelho, da Casa de Sandim, em Roriz, Santo Tirso, conhecida familiarmente por avó Flores, 143 Revista ALB 50_finalizada.pmd 143 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 evocando a grande casa patriarcal na Rua do mesmo nome, no centro comercial do Porto, casa esta bastante referida por diversos autores e que ostenta no portal das cavalariças, que dão para a rua da Vitória, o brasão de armas concedido ao referido Constantino, para Vales, Pereiras, Cabrais e Madeiras (na pedra de armas em questão, este último quartel está erradamente representado como Alves). Luiz Cabral era o décimo filho de seus pais. Quando nasceu, sua mãe estava já perto dos cinquenta anos. Os trabalhos de parto foram de tal modo complicados que, estando em risco as vidas da mãe e do filho, a vizinhança e a parentela o apelidaram logo de “menino do milagre”… Mas deixemos o Padre Cabral falar de si próprio: “A minha mãe valeu-lhe a extraordinária robustez e heróica paciência em sofrer os trabalhos a que a sujeitei; a mim, valeu-me a eloquência precoce, que me atribuem: quando todos me davam por perdido e, vendo-me arroxeado, quase exânime, me deixaram sobre a bacia do primeiro banho, para atender minha mãe em sério risco de vida, afirmei, de repente, os meus direitos à existência, num espernear enérgico e num berreiro de Hércules, que espantou a morte e chamou a mim as atenções alvoroçadas e felizes dos circunstantes”. Aos nove anos – sensivelmente com a mesma idade em que o mesmo acontece com Jorge Amado – Luiz Cabral é levado para Lisboa por sua mãe e entregue aos cuidados dos padres Inacianos, no Colégio de Campolide. Não deixa de ser interessante esta opção pela Companhia de Jesus. Sua mãe era “senhora de acrisoladas virtudes, sobretudo de vivíssima piedade. O culto afervorado da religião foi sempre na família Cabral (…) de tradições arreigadas”, como atesta o seu biógrafo Domingos Maurício Gomes dos Santos. No entanto, seu pai, apesar de ser “não somente um christão convicto, mas um catholico praticante, que se abeirava da Sagrada Mêsa com uma frequência rara para aqueles tempos, (…) durante a maior parte da sua 144 Revista ALB 50_finalizada.pmd 144 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 vida foi um adversário sincero dos Jesuítas, a quem tinha na conta de homens nefastos ao paiz” – e este testemunho tem a autenticidade de ter sido escrito pelo próprio Padre Cabral na introdução à sua obra Jesuítas no Brasil. Ou não fora Constantino Cabral um dos mais altos responsáveis e reformador da Companhia-geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro… Mas o próprio Padre Cabral, de seguida, cita o arrependimento tardio de seu pai em conselho que dá ao filho mais velho, Constantino, a propósito do uso de muitos dos livros da sua vasta biblioteca: “Quero prevenil-o de que o conteúdo destas duas estantes são livros máos, que eu olhei durante muitos anos como um quinto evangelho; tenha-os sempre debaixo de chave para que não vão fazer mal a outros”. A partir do dia em que franqueia pela primeira vez as portas do Colégio de Campolide, toda a vida do Padre Cabral é centrada na Companhia, tendo desenvolvido a sua atividade essencialmente como religioso e pedagogo. A sua ação foi marcante para várias gerações, sobretudo de portugueses e brasileiros, do que há numerosos testemunhos impressos. Acaba por ter um relevante papel político, que não desejaria, pelo fato de a revolução republicana (1910) ter acontecido durante o seu exercício como Provincial (1908-1912). Era um requerido orador sagrado, por muitos considerado o maior do seu tempo. Foi diretor do Colégio de Campolide de 1903 a 1908 – época em que o Colégio ganha o maior relevo, sendo acrescentado e melhorado graças ao investimento de bens do seu diretor. Em paralelo, o Padre Cabral desenvolve uma intensa atividade como pregador sacro, ganhando fama as suas Conferências Quaresmais pregadas no púlpito da Igreja dos Mártires e os Sermões Quaresmais, pregados na Sé de Lisboa. Chama a atenção da sociedade da época, que acorre em grande número para o ouvir, sendo de assinalar o registo da assistência a uma delas de Teófilo Braga, que veio a ser Presidente da República em 1915. 145 Revista ALB 50_finalizada.pmd 145 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Já antes, em 1901, tinha levado a cabo a edição da sua obra de maior fôlego, Vieira Pregador. Em dois extensos volumes analisa detalhadamente a obra do Padre Antônio Vieira. Mais: como diz o sub-título, trata-se de um “Estudo Filosófico da Eloquência Sagrada, segundo a vida e as obras do grande orador português”. Não me admiraria que Jorge Amado tivesse beneficiado do método estudado e praticado pelo Padre Cabral a propósito de Vieira e das formas mais adequadas e eficazes da pregação e da oratória, eruditamente desenvolvidas neste profundo estudo. Não fora apanhado a meio do seu provincialato pela revolução republicana, e essa seria certamente a história do Padre Cabral: um grande pedagogo e um orador sagrado aplaudido. Mas a vida tem destas coisas. A meio da sua vida, é obrigado a novas provações, a um exercício político para o qual não se sentiria vocacionado, mas que, desafiado, exerce com enorme vigor. O seu protesto “Ao meu paiz”, já referido, é o seu grito de revolta pela injustiça tremenda que considera ter sido cometida pelas novas autoridades. O seu biógrafo Domingos dos Santos diz mesmo que este escrito “alcançou o mais extraordinário êxito que, nestes últimos cinquenta anos, se registrou na bibliografia portuguesa. Além de inúmeras edições vernáculas, largamente espalhadas, de norte a sul, foi traduzido (pelo menos) em alemão, espanhol, inglês, francês, italiano, holandês e, até em árabe, saindo reproduzido nos principais jornais e revistas no estrangeiro. O Governo Provisório tentou estorvar a sua divulgação em Portugal, decretando a apreensão dos exemplares remetidos pelo correio. Isto, porém, serviu apenas para maior publicidade. Nos cafés e nos bondes elétricos, e até nos teatros, todos queriam ler o protesto do provincial dos Jesuítas portugueses. Em Lisboa, Porto e Coimbra, teve honras de leitura pública, sendo uma delas, por sinal, feita pelo grande humorista Ramalho Ortigão, velho conhecimento do autor em Campolide e que, a cada período, era sacudido pelos soluços e lágrimas, que lhe estoiravam a alma”. Era deste calibre o Padre Cabral. 146 Revista ALB 50_finalizada.pmd 146 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Depois de deixar o provincialato, continuou pela Europa até rumar à Bahia, em 1916. Aí, tornou-se (quase) no orador oficial da colônia portuguesa. Assim foi, por exemplo, na chegada a Salvador de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral, a 9 de Junho de 1922, depois de galgado pela primeira vez o Atlântico Sul. Assim foi, anos depois, em 1927, quando os aviadores Sarmento de Beires, Jorge de Castilho e Manuel Gouveia renovaram a façanha. Ao mesmo tempo, percorria o Brasil de lés a lés, proferindo conferências e animando púlpitos em numerosas intervenções que, em grande parte, tiveram edição avulsa e acabaram publicadas nos seus Inéditos e Dispersos. De fato, o Padre Cabral resistiu muito a insistentes pedidos de publicação das suas conferências. Vale a pena ouvir as suas razões, descritas detalhadamente no primeiro volume dos seus Discursos Académicos, sobretudo nos dias que correm, em que tantos falam sobre tudo e coisa nenhuma, sem os conhecimentos adequados ou a prudente meditação sobre o assunto em causa: “… sou inimigo da improvisação temerária, que se abalança a fallar em público, sem a profunda meditação do assumpto, exigida pelo respeito devido a todos os auditórios, por humildes que sejam (…); tanto me repugnou sempre a pregação decorada, em que o esforço de memória tolhe a liberdade de inspiração e coarcta a espontânea sinceridade do zelo (…). (Por isso) (…) ia colher materiais para cada assumpto que havia de tractar. Depois, meditava-o, quanto m’o permittia a minha pouquidade e o tempo de que dispunha (…); escrevia, numa folhinha de dezoito por treze, preenchida nas entrelinhas, esse resumo esmiuçado (…) e entregava depois ao calor da improvisação a estructura verbal do discurso.” “Nestas condições é claro que não podia, sem mais, entregar os sermões ao prelo, pela simplicíssima razão de que não os tinha escriptos”. Em boa hora resolveu o Padre Cabral dedicar-se ao trabalho de publicar grande parte das suas intervenções, perpetuando assim muito material de interesse. 147 Revista ALB 50_finalizada.pmd 147 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O Padre Luiz Cabral veio a morrer no seu Colégio Antônio Vieira – a cuja organização e construção dedicou com intensidade os últimos anos de vida e que, precisamente neste ano de 2011, completa o seu centenário – em 28 de Janeiro de 1939. Morreu no Brasil, a sua “segunda Pátria”, como tantas vezes dizia. É exatamente neste tempo que o Padre Luiz Gonzaga Cabral encontra o menino grapiúna Jorge Amado. Felizmente, a história está contada pelo próprio Jorge Amado, não só no livro das suas memórias de infância que temos vindo a seguir, como em diversas entrevistas gravadas. Eu próprio tive a grata oportunidade de com ele conversar largamente sobre o assunto e de ouvir o seu testemunho direto sobre a admiração e a memória que sempre guardou do Padre Cabral. N’O Menino Grapiúna, Jorge Amado dedica nada menos do que três capítulos ao Padre Cabral. Só o admirado tio, Coronel Álvaro Amado, com ele pode competir! O mesmo se diga relativamente às magníficas ilustrações de Floriano Teixeira, nas entradas dos capítulos 15, 17 e 18, nas quais o Padre Cabral é retratado entre o eloquente e o grandioso! Não há, por isso, debate ideológico sobre eventuais tentativas de influência do padre jesuíta sobre o jovem estudante do Colégio Antônio Vieira que possam sobrepor-se ao próprio testemunho de Jorge Amado. Mesmo quando Amado diz, no seu Navegação de Cabotagem que “o Colégio Antônio Vieira, discriminatório além de caro, acolhia os filhos dos ricos, dos senhores, os padres projetavam influir sobre os futuros governantes”, ele faz apenas uma afirmação genérica, dando a sua leitura sobre o intuito geral do Colégio e dos Jesuítas. Mas quem duvida que quem quer educar com excelência quer obter o melhor resultado dos seus alunos? Qual o estabelecimento de ensino de qualidade que não pretende ter os seus alunos entre os melhores da sociedade? De resto, nesta sua afirmação, Amado não está a referir-se especificamente à sua relação com o Padre Cabral, pois isso seria absolutamente 148 Revista ALB 50_finalizada.pmd 148 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 contraditório com o testemunho deixado anteriormente n’O Menino Grapiúna. Sobre a sua fugaz passagem pelo Colégio Antônio Vieira, Jorge Amado descreve-a saborosamente na Navegação …, dizendo que os padres, “no primeiro ano haviam (nele) percebido vocação de noviço; no segundo, declarara-me ateu e bolchevique, revelarame contestatário e insubmisso: finalmente, no terceiro, fugi no dia da inscrição quando meu tio me deixou na portaria!” Devo dizer que penso mesmo que, no seu livro de 1980 O Menino Grapiúna, Jorge Amado terá já feito alguma catarse relativamente ao seu militantismo comunista de tantos anos. A sua cabeça era demasiado livre para se ater a concepções ortodoxas e limitativas da vida e do mundo. No capítulo 16 d’O Menino Grapiúna, Jorge Amado questionase: “Não serão as ideologias por acaso a desgraça do nosso tempo?” – antecipando desta forma o acelerar da história a que conduziu a queda do Muro de Berlim em 1989. E continua: “O pensamento criador submergido, afogado pelas teorias, pelos conceitos dogmáticos, o avanço do homem travado por regras imutáveis? Para logo dar a sua receita: sonho com uma ideologia, onde o destino do ser humano, seu direito a comer, a trabalhar, a amar, a viver a vida plenamente não esteja condicionado ao conceito expresso e imposto por uma ideologia seja ela qual for. Um sonho absurdo? Não possuímos direito maior e mais inalienável do que o direito ao sonho. O único que nenhum ditador pode reduzir ou exterminar”. Jorge Amado era demasiado livre! Julgo não abusar de liberdade interpretativa ao dizer que o fato de este capítulo estar intercalado entre os que, nesta obra, dedica ao Padre Cabral, constitui uma reflexão sobre a liberdade, ou melhor, sobre a capacidade que o Homem tem de, mesmo quando condicionado, fazer valer a sua liberdade, a liberdade que é essencial à sua – à nossa – existência. As condicionantes que a vida nos impõe, tenham elas a ver com os recursos econômicos, 149 Revista ALB 50_finalizada.pmd 149 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 com a saúde ou com a sociedade, nunca tolhem totalmente a réstia de liberdade que há-de sempre persistir em nós. Quanto à história em si, à forma como o breve encontro entre o Jesuíta e o escritor influiu fortemente neste último, não vale a pena recriá-la. Dizê-la por outras palavras seria retirar-lhe a força que tem quando contada com a mestria amadiana. E ela está contada em todas as biografias de Jorge Amado, apesar de ter ligeiros cambiantes, é certo. Mas ouçamos o próprio Jorge Amado: “Aplaudido orador sagrado, o Padre Luiz Gonzaga Cabral era a grande estrela do colégio, a sociedade baiana vinha em peso ouvir seu sermão dominical. Brilhava também no Liceu Literário Português nas comemorações de datas lusitanas. Tendo adoecido o nosso professor de português, padre Faria, ele o substituiu. Seus métodos de ensino nada tinham de ortodoxos”. Como vemos, e contrariamente ao que lemos em algumas biografias de Amado, o Padre Cabral nunca foi seu professor titular de português. Era diretor do Colégio e julgo que, por isso, relativamente inacessível, de acordo com os costumes da época. É o acaso que os junta. O acaso e a inopinada doença do Padre Faria! Continuemos a seguir atentamente as memórias d’O Menino Grapiúna: “Em lugar de nos fazer analisar Os Lusíadas, tentando descobrir o sujeito oculto e dividir as orações, reduzindo o poema a complicado texto para as questões gramaticais, fazendo-nos odiar Camões, o padre Cabral, para seu deleite e nosso encantamento, declamava para os alunos episódios da epopeia. Apesar do sotaque de além-mar, a força do verso nos tomava e possuía. Lia-nos igualmente a prosa de Garrett, a de Herculano, cenas de Frei Luiz de Sousa, trechos de Lendas e Narrativas. Patriota, desejava sem dúvida nos fazer conscientes da grandeza de Portugal, o Portugal das descobertas e dos clássicos. Obtinha bem mais do que isso: despertava a nossa sensibilidade, retirandonos do poço da gramática portuguesa (cujas rígidas regras nada tinham a ver com a língua falada pelo povo brasileiro) para a 150 Revista ALB 50_finalizada.pmd 150 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 sedução da literatura, das palavras vivas e atuantes. As aulas de português adquiriram outra dimensão”. Saltamos então, diretamente, para a tão evocada redação sobre o mar que os biógrafos de Jorge Amado tanto celebram: “O primeiro dever passado pelo novo professor de português foi uma descrição tendo o mar como tema”. Neste ponto aparece-nos mais uma incongruência vulgarizada em biografias de Amado: diz-se muitas vezes que o título da redação apresentada pelo futuro escritor seria “O Mar”. Ora, como podemos constatar, o mar era o tema geral dado pelo novo professor para os meninos fazerem as suas redações. Adiante: “A classe se inspirou, toda ela, nos encapelados mares de Camões, aqueles nunca dantes navegados, o episódio do Adamastor foi reescrito pela meninada. Prisioneiro no internato, eu vivia na saudade das praias do Pontal onde conhecera a liberdade e o sonho. O mar de Ilhéus foi o tema da minha descrição. “Padre Cabral levara os deveres para corrigir em sua cela. Na aula seguinte, entre risonho e solene, anunciou a existência de uma vocação autêntica de escritor naquela sala de aula. Pediu que escutassem com atenção o dever que ia ler. Tinha certeza, afirmou, que o autor daquela página seria no futuro um escritor conhecido. Não regateou elogios. Eu acabara de completar onze anos”. E o vaticínio precoce do Padre Cabral teve consequências imediatas: “Passei a ser uma personalidade, segundo os cânones do colégio, ao lado dos futebolistas, dos campeões de matemática e de religião, dos que obtinham medalhas. Fui admitido numa espécie de Círculo Literário onde brilhavam alunos mais velhos. 151 Revista ALB 50_finalizada.pmd 151 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 (Contudo) nem assim deixei de me sentir prisioneiro, sensação permanente durante os dois anos em que estudei no colégio dos jesuítas. “Houve, porém, sensível mudança na limitada vida do aluno interno: o padre Cabral tomou-me sob a sua proteção e colocou em minhas mãos livros de sua estante. Primeiro “As Viagens de Gulliver” depois clássicos portugueses, traduções de ficcionistas ingleses e franceses. Data dessa época a minha paixão por Charles Dickens. Demoraria a conhecer Mark Twain, o norte-americano não figurava entre os prediletos do padre Cabral”. E, contrariamente ao que seria o desejo – dito ou inconfessado – de alguns, a memória que Jorge Amado reteve do Padre Cabral é simpática, afável e reconhecida: “Recordo com carinho a figura do jesuíta português erudito e amável. Menos por me haver anunciado escritor, sobretudo por me haver dado o amor aos livros, por me haver revelado o mundo da criação literária. Ajudou-me a suportar aqueles dois anos de internato, a fazer mais leve a minha prisão, minha primeira prisão”. Como bem diz a recente estrela da literatura norte-americana Jonathan Franzen, “normalmente é a vida que nos torna melhores leitores, a vida e bons professores”…) À laia de síntese, Jorge Amado conclui como entreviu a heresia de alguém que vivia num mundo de ortodoxia. E como essa heresia lhe abriu portas, as portas da literatura, as portas do mundo: “No colégio dos jesuítas, pela mão herética do padre Cabral, encontrei nas “Viagens de Gulliver” os caminhos da libertação, os livros abriram-me as portas da cadeia. A heresia do padre Cabral era extremamente limitada, nada tinha a ver com os dogmas da religião. Herege apenas no que se referia aos 152 Revista ALB 50_finalizada.pmd 152 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 métodos de ensino da língua portuguesa (…) essa pequena rebeldia revelou-se positiva e criadora. A heresia é sempre ativa e construtora, abre novos caminhos. A ortodoxia envelhece e apodrece ideias e homens. “A longa e dura experiência ensinou-me, no passar dos anos, a importância de pensar pela própria cabeça. Para pensar e agir pela minha cabeça, pago um preço muito alto, alvo que sou do patrulhamento de todas as ideologias, de todos os radicalismos ortodoxos. Preço muito alto, ainda assim barato”. Terão notado que, em vez de contar a história mil vezes contada, optei, num exercício algo romântico, por trazer para aqui as palavras do próprio Jorge Amado – para meu deleite e Vosso seguro benefício. Uma última nota para dar conta de que esta relação intelectual entre o jesuíta e o escritor não passa despercebida sequer à pródiga e imaginativa literatura de cordel, que assume Jorge Amado e as suas histórias e personagens com a naturalidade sincrética de quem se sente próximo. Um anônimo, que assina com as iniciais L.V.P.Q., no seu folheto intitulado “Venturas e aventuras de Jorge que é muito Amado”, conta assim esta nossa história: “Todo Cabral português Tem gana de discubrimento Cum Jorge Amado, na classe Deu-se o acontecimento: Seu professô jesuíta Descobriu o seu talento (…)” Esta história é, para mim, uma história de família. O Padre Luiz Gonzaga Cabral é, em minha casa, o tio Luís Padre – pois sou seu sobrinho em segundo grau, bisneto de seu irmão e padrinho Francisco. Por isso mesmo, farão o favor de descontar alguma carga emocional que eu possa, eventualmente, trazer para este discurso. 153 Revista ALB 50_finalizada.pmd 153 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 No entanto, a figura universal de Jorge Amado que, a partir da nação grapiúna, ganhou o mundo, despertou em mim, desde cedo, vontade de saber mais. Levou-me, por isso, à presença e ao convívio com Jorge Amado, ao conhecimento de sua mulher Zélia Gattai e de sua filha Paloma. Percebi, de viva voz, a importância que um encontro, afinal fugaz, teve para toda a vida do escritor. Ora, isso só poderia ter acontecido com uma personalidade forte e de grande espessura moral e cultural, como acontecia com o Padre Luiz Gonzaga Cabral – como de resto o testemunham tantos outros intelectuais brasileiros como Herberto Sales, Anísio Teixeira, Flávio Neves, Francisco Albernaz, Otacílio Lopes ou Thales de Azevedo. E esta história é apenas o princípio do enorme e vistoso novelo que foi a vida de Jorge Amado. Amado cruzou continentes, privou com grandes celebridades da cultura e da política. Mas, sobretudo, escreveu. Escreveu muito, romanceando as suas experiências da vida. A sua obra recebeu inúmeros prêmios, apesar de ter passado sempre ao lado do Nobel – ao qual, não obstante, propôs alguns autores de língua portuguesa, língua que considerava injustiçada pela academia. Sobre o merecimento da obra de Jorge Amado, poderíamos repetir o que ele próprio disse, em Navegação de Cabotagem, a propósito de Miguel Torga: “eu me pergunto o motivo porque não lhe foi dado ainda o Prêmio Nobel. Pergunta cretina, talvez, já que Torga e a sua literatura estão acima dos prêmios, sejam eles quais forem, os pequenos ou os grandes, nem sequer o cheque que por vezes os acompanha faz falta à pobreza do escritor”. Torga nunca receberia o Nobel. Jorge Amado também não. É hora de terminar. “Dos estreitos limites do internato, fui salvo pelo mar…“ – disse Jorge Amado nessa extraordinária prosa poética onde fui buscar o título desta minha palestra. “Dos estreitos limites do internato”, foi ele salvo pelo Padre Luiz Gonzaga Cabral – sabia-o o grande Jorge Amado e não o esqueceu ao longo de toda a sua vida. São Salvador da Bahia de Todos-os-Santos, aos 6 de Setembro de 2011. 154 Revista ALB 50_finalizada.pmd 154 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 NOTAS E REFERÊNCIAS Obs. Nas citações manteve-se a ortografia original. AMADO, Jorge. O menino grapiúna. 10.ed. Rio de Janeiro: Record, 1987. AMADO, Jorge. Navegação de Cabotagem – apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 2ª Ed., Publicações EuropaAmérica, 1992. AMADO, Jorge. Tenda dos milagres.36.ed.Rio de Janeiro: Record, , 1987. AZEVEDO S.J., Ferdinand, A missão portuguesa da Companhia de Jesus no Nordeste 1911-1936. policopiado. 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Tb. http://pt.scribd.com/doc/ 55857165/Maria-Brandao-Thales-de-Azevedo CABRAL, A. C. de Sequeira. “Vales Pereiras Cabrais, da Casa da Rua das Flores – resenha genealógica e biográfica de uma família portuense”, Porto, 1981. CABRAL, S.J., P. Luiz Gonzaga, Inéditos e Dispersos, 8 volumes: I.Discursos Académicos (1º). Braga: Livraria Cruz, 1922. II.Theatro. Braga: Livraria Cruz, 1926. III.Jesuítas no Brasil (século XVI). São Paulo: Melhoramentos, 1925. IV.Discursos Académicos (2º). Braga: Livraria Cruz, 1930. V.Vieira-Pregador I. Braga: Livraria Cruz, 1936. VI.Vieira-Prégador II. Braga: Livraria Cruz, 1936. VII.Cartas de Viagem (1º). Braga: Livraria Cruz, 1936. VIII.Cartas de Viagem (2º). Braga: Livraria Cruz, 1936. CASTILHO, Alceu Luís.”Relançamento da obra de Jorge Amado põe em evidência as estratégias de linguagem do romancista”, http:// revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11554 155 Revista ALB 50_finalizada.pmd 155 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 FERREIRA, Damião Vellozo e SOUSA, D. Gonçalo Vasconcelos e. Os fundadores do Club Portuense e a sua descendência. Porto, 1997, vol. III. FRANZEN, Jonathan. “A fama de Jonathan Franzen é o seu serviço público”, entrevista a Rogério Casanova, in Público, Ípsilon, 6.Maio.2011. GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. “Uma leitura antropológica de Jorge Amado: dinâmicas e representações da identidade nacional”, in Diálogos Latinoamericanos, n. 005, Universidade de Aarhus, DK, 2002, pp. 109-133. L.V.P.Q. Venturas e aventuras de Jorge que é muito Amado; (literatura de cordel). LIMA, Hermes. “Anísio Teixeira: estadista da educação”. 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É comendador da Ordem da Honra, da Grécia (2002) e do Mérito Real, da Noruega (2008), Oficial da Ordem do Mérito Agrícola, da República Francesa (2005) e Cavaleiro da Ordem da “Stella della So lidarietà Italiana. 156 Revista ALB 50_finalizada.pmd 156 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Subjetividades traçadas pela linguagem em dialogia: nas relações institucionais e na vida cotidiana Rosa Helena Blanco Machado Trazemos para a reflexão uma discussão em torno ao ensino da língua e da linguagem, sua função, sua importância nas sociedades humanas, particularmente em sociedades como a nossa, tocada, em alguns setores e agrupamentos pelo ultramodernismo, com conhecimentos tecnológicos há pouco tempo impensáveis; e por outro lado, uma sociedade pouco escolarizada, pouco informada, empobrecida, de difícil cotidiano. Não nos deteremos em especificidades do ensino da língua e da linguagem em todas as suas manifestações, a exemplo do ensino da literatura, embora entendamos que através do contato e da familiaridade com o fato literário, um mundo de saberes, de sensibilidades, de discernimento se abre para o ser humano. Vamonos ater ao ensino da linguagem, da língua, considerada por tantos como um “instrumento” de que nos servimos para a comunicação, nas diversas manifestações, pensando primeiramente no espaço escolar – visando às reflexões em torno ao papel e à função do ensino e da aprendizagem da língua(gem). Mas as reflexões não vão se prender tão somente ao universo escolar. Pretendemos levantar alguns questionamentos a respeito 157 Revista ALB 50_finalizada.pmd 157 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 do saber da língua, da linguagem, de seu funcionamento, seu uso no ambiente da vida cotidiana, desde o interior da família até os relacionamentos mais distanciados que estabelecemos com o nosso semelhante nas diversas situações da vida, nas interações do dia a dia, sejam elas mais rotineiras ou mais esporádicas, a todo momento. Queremos tecer considerações sobre o comportamento linguísticodiscursivo do homem e da mulher no cotidiano, e sobre a importância e a força da língua(gem) na formação das nossas subjetividades e das nossas consciências, refletindo sobre uma prática que atravessa a sociedade em sua inteira dimensão e dinâmica, sobre os efeitos dos entendimentos a respeito da natureza da linguagem e da língua e sobre as questões que abordam as relações entre as práticas linguísticas, os homens e o mundo. AS DIFERENTES CONCEPÇÕES DE LÍNGUA(GEM) E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA NAS ESCOLAS Referimo-nos anteriormente à língua como um “instrumento”. Mas o fizemos assinalando a palavra com aspas, de modo a marcarmos nosso distanciamento desta caracterização da língua. Aspeamos a palavra porque não entendemos a língua tão simplesmente como um “instrumento” de que nos servimos para falar ou escrever, tal fosse um artefato guardado em um armário, retirado sempre que necessitamos falar, comunicar algo. Embora o fato de linguagem seja assim entendido, ainda hoje, por muitos, este aspecto certamente não contempla todas as faces desse saber e dessa construção humanas que é a linguagem, a língua natural. Torna-se, por esse entendimento, algo quase palpável, algo de que nos apossamos, acreditando sermos senhores absolutos do que dizemos e crentes de que o nosso conhecimento, a nossa fala é toda ela passada pelo crivo de nossa consciência e do nosso discernimento total quanto aos fatos do mundo. Algo semelhante ao que ocorre quando nos servimos do objeto/instrumento/ ferramenta para fazermos algum trabalho. 158 Revista ALB 50_finalizada.pmd 158 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 É uma concepção da linguagem, atraente, por um lado, porque nos permite uma apropriação mais perfeita desse sistema de comunicação. E nos dá uma ideia de que assim fazendo, estamos tendo maior rigor e mais credibilidade nas conclusões sobre o fato de linguagem, quando em estudo. Todavia, um tanto quanto enganadora é essa concepção posto que nos faz pensar a língua(gem) tão somente como um conjunto organizado de sinais, harmoniosamente coordenado, com suas partes componentes, seus signos, sinais, sons/fonemas, sílabas, morfemas, palavras, textos, perfeitamente encaixados uns aos outros, permitindo transparecer, a partir de estruturas sintáticas organizadas, sentidos únicos ou quase únicos, sentidos transparentes, sentidos tão somente literais, que não admitem variantes, não admitem contrariedades, objetivando a cristalização da significação, do sentido. E estes sentidos e estas significações cristalizadas são, claramente, estabelecidos pela sociedade; ou melhor, por alguns segmentos da organização social os quais reclamam para si um poder de estabelecer verdades, isto é, de estabelecer sentidos únicos, que deverão ser válidos para todos, consagrados pelo acordo ou pela convenção social, posto que a língua é um fato social. Ora, pela língua e linguagem, o homem faz sua identidade, se subjetiva tornando-se um sujeito da história, de seu tempo, assentado nas coordenadas vigentes, no ideário que perpassa toda a reflexão de sua época. Michael Bakhtin, estudioso russo, em seus belíssimos e muito importantes estudos sobre a língua e linguagem diz: Tudo aquilo que me toca vem à minha consciência – a começar por meu nome – desde o mundo exterior, passando pela boca dos outros (da mãe, etc.) com sua entonação, sua tonalidade emocional e seus valores. Inicialmente, eu não tomo consciência de mim a não ser através dos outros. É deles que eu recebo as palavras, as formas, a tonalidade que formam minha primeira imagem de mim mesmo [...] (BAKHTIN, apud TODOROV, 1981, p.148). [...] 159 Revista ALB 50_finalizada.pmd 159 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O homem não possui território interior soberano, ele está inteiramente e sempre sobre uma fronteira; olhando para o seu interior [...] Eu não posso me abster do outro, eu não posso me tornar eu mesmo sem o outro (BAKHTIN, apud TODOROV, 1981, p.148).1 Imerso no mundo que o viu nascer, um mundo com suas escolhas e suas reflexões, suas crenças, seus saberes, o homem se forja e se desenvolve, ao lado de seus contemporâneos, trocando com esses ideias, pensamentos, sentimentos, formas de relacionar-se e de estar neste mundo, de compreender e de atuar sobre ele. A linguagem tem aí invulgar poder de força, é com ela e sobre ela que se dá o início e se faz a caminhada do homem. Nas suas interações com o outro e com o mundo, a linguagem se faz presente. Ou melhor, ela torna possível a interação entre as pessoas, a reflexão e a representação que acabamos por constituir daquilo que nos cerca. Para Bakhtin, o homem e a mulher, em sua caminhada, na medida da sua interação e do seu relacionamento com o mundo, na comunicação verbal, bebendo na fonte dos enunciados já proferidos (seus e de outrem), vão-se construindo, vão-se fazendo ao tempo em que também vão impondo, através de sua fala, uma marca sobre a língua(gem). É no ato da comunicação verbal que o sujeito vai organizando sua experiência, sua fala interna vai-se corporificando, sua consciência vai tomando forma. Para Bakhtin “Não é a experiência que organiza a expressão e, sim, o contrário: a expressão organiza a experiência. A expressão é o que primeiro dá à experiência sua forma e especificidade de direção. (BAKHTIN, 1976, p 107)” Carlos Franchi, em seu trabalho “Linguagem – Atividade Constitutiva” (1977), entende a língua antes como um trabalho de construção dos homens, um trabalho que a um só tempo se ocupa do seu fazer e refazer contínuos, num debruçar-se sobre si mesma. Ela é então algo que está sempre em constituição. Por 160 Revista ALB 50_finalizada.pmd 160 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 outro lado, a língua opera sobre a realidade, essa que nos circunda, mas de que propriamente não conhecemos a essência. Aí a língua atua constituindo essa realidade como um sistema de referências, e sobre esse sistema de referências a construção linguística vai significar. Tudo é filtrado pela linguagem num trabalho de eterno fazer e refazer. Assim, um estudo de língua/linguagem que a vê apenas enquanto um “instrumento” de que nos servimos para nos comunicarmos com o nosso semelhante, não tem como preocupação a formação de nossas subjetividades e de nossas consciências, sendo a língua considerada tão somente como um “sistema” organizado de sinais que dão corpo a um pensamento que nos ocorre, tal qual uma vestimenta, uma capa de sustentação a essa reflexão nascida de uma consciência independente, interna, que se movimenta do nosso interior para o mundo, para o nosso interlocutor. A língua é entendida aí como um sistema de signos fechado e monológico. Por outro lado, a língua enquanto sistema organizado de sinais, é uma realidade da qual não se escapa; não é possível lidarmos com o saber da língua sem considerarmos essa realidade e o seu funcionamento, do modo como os estudos linguísticos mais tradicionais autorizam, estes que fizeram e fazem a fundamentação da linguística da modernidade. Os estudos feitos e por fazer em torno a esse referencial de língua/linguagem são conhecimentos fundamentais para se adentrar a natureza do fato linguístico. Não há como negligenciar todo um saber já construído e que se desenvolveu em outros tempos e se consolidou no século XX, quer seja negando-o, quer seja deixando-o de lado. Efetivamente, foram esses estudos, em seus desdobramentos posteriores, derivando para diversas áreas de estudo da linguagem, tal como a Sociolinguística, que permitiram a emergência, hoje, nos Manuais de Ensino e outros documentos, aí incluindo os textos oficiais, de declarações relativas ao ensino – aprendizagem da Língua Portuguesa na Escola Básica, do tipo: 161 Revista ALB 50_finalizada.pmd 161 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação ás falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe uma única forma “certa” de falar – a que se parece com a escrita – e o de que a escrita é o espelho da fala– e, sendo assim seria preciso “consertar” a fala do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes (...)(Parâmetros Curriculares Nacionais, Língua Portuguesa, volume 2, p. 31, 1997). Observa-se aqui a consideração das variantes linguísticas encontradas no território brasileiro e a necessidade de se respeitarem essas variantes em sala de aula, evitando que o aluno falante de uma variante popular da Língua Portuguesa seja estigmatizado por ter um falar que não corresponde ao que é antecipadamente considerado como o “certo”; e evitando-se, ao mesmo tempo, que não apenas este aluno mas toda a comunidade da qual ele é oriundo seja marcada como incapaz. Sem dúvida, este já é um grande avanço para o ensino e a aprendizagem da Língua Portuguesa. Entretanto, ainda não se vê nas escolas, uma atmosfera natural de absorção deste ensinamento e, mais do que isso, não se veem na prática, iniciativas que procedam à sua incorporação no cotidiano da escola e das aulas em Língua Portuguesa. Os professores em boa parte não sabem como agir. Atuando em força contrária, não são poucos os argumentos que se apresentam e se apressam em desmentir e desacreditar ensinamentos como esses, sem mesmo se ter muita clareza do que isso significa ou do que possa ocorrer. Levantam-se vozes contrárias e muitas vezes exaltadas sob a argumentação de que estes ensinamentos só 162 Revista ALB 50_finalizada.pmd 162 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 impedem e dificultam a esperada ascensão social das classes populares, com o auxílio da linguagem, em sociedades democráticas como se diz ser a nossa. Praticar a fala de origem é o mesmo que renunciar a qualquer pretensão de ascensão social; dificultar essa ascensão, por ensinamentos como este que está aí contido, é uma outra maneira de fazer permanecer um quadro de desigualdade sem possibilidade de mudança. Em outras palavras, é trabalhar pela manutenção da exclusão de grande parte da população brasileira. Por isso, de modo geral, em meio a uma ou outra novidade, pende a balança do ensino em direção à manutenção, em boa parte do tempo, dos estudos em torno à variante culta da Língua Portuguesa, a norma culta. É preciso, porém, conhecer um pouco mais sobre o assunto para falar dele. Em realidade, argumentos como esses impedem mesmo que se discutam esses fatos linguísticos, que se conheçam as várias realidades e performances de linguagem entre as pessoas. De qualquer sociedade, adiante-se; não apenas a nossa, ainda que na nossa haja uma realidade bem marcada em vista mesmo da formação do português brasileiro. Publicações como os Parâmetros Nacionais e outros semelhantes vêm alertando para a necessidade de se contextualizarem os estudos em torno à língua e à linguagem, retirando-os do espaço que lhes era destinado, de estudos estáticos, apoiados em conhecimentos da gramática normativa construída à base de normas dadas como cultas; conhecimentos esses, os quais, por sua vez, para se consolidarem, fundamentam-se principalmente em eventos de língua praticados por determinadas personalidades (autores) do mundo acadêmico e literato e em setores (como a imprensa) da sociedade, considerados os mais aptos no uso “idôneo”, “correto” , “nobre” da língua, paradigmas que devem ser seguidos por todos nós, os falantes da Língua Portuguesa. Sem dúvida, os Parâmetros Curriculares Nacionais são generosos e prolíficos em reflexões mais flexíveis no trato com a linguagem, admitindo e mesmo recomendando uma postura e uma prática 163 Revista ALB 50_finalizada.pmd 163 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 de ensino da língua materna, a nossa língua portuguesa, que observe, contemple, promova, pratique ações, atividades, reflexões sobre a língua não mais tratada como uma nomenclatura, uma relação de palavras as quais servem para a nomeação das coisas que nos cercam, dos eventos que praticamos e que vemos acontecerem em nosso entorno. E uma prática de ensino que aborde o fato linguístico não somente para a consideração de sua fidelidade ou não aos cânones da norma culta, da consideração de um “certo” e um “errado” em nossas expressões linguísticas; mas que veja este fato linguístico na riqueza que ele traz em si mesmo, considerando uma série de fatores que são relevantes para sua constituição e seu aparecimento como expressão de um falante nativo de uma língua natural. É dessa riqueza que se pode e se deve falar, claro, incluindo-se na discussão aspectos de natureza cultural, ideológica, histórica e política – por que não dizer? – posto que a língua, como qualquer elemento cultural, é objeto de avaliação e de valoração pela sociedade e, mais do que isso, é, agora sim, conforme dizem os estudiosos, um “instrumento” de poder, de discriminação entre os homens. Nesse sentido, se posiciona Gnerre (1985) comentando não ser a função denotativa da linguagem “senão uma (d)entre outras, entre as quais ocupa a posição central a função de comunicar ao ouvinte a posição que o falante ocupa ou acha que ocupa na sociedade...” (1985, p.3) O autor fala do poder e de discriminação que a linguagem exerce sobre os homens, um poder e uma discriminação que, certamente, a escola, no rastro de outras instituições da sociedade, mantém sobre seus sujeitos, isto é, seus alunos, a razão de sua existência. É preciso que a escola pare e reflita sobre essa questão da linguagem, libertando-se deste ideário, criando ou, se quisermos, resgatando seu papel de promotora da igualdade entre os homens através do conhecimento, do discernimento, do acesso à informação. Isto ainda não se verifica em nosso meio, principalmente em nossas escolas públicas, abertas ao grande 164 Revista ALB 50_finalizada.pmd 164 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 segmento de jovens e crianças e mesmo aos adultos não escolarizados, em sua absoluta maioria provenientes dos segmentos mais populares e até estigmatizados da sociedade brasileira. O professor tem aí um papel da maior importância e deve ter uma formação mais cuidada, mais generosa e mais rigorosa em suas bases e em suas fundamentações. Este tipo de reflexão não pode faltar nos currículos das Instituições de Ensino Superior formadoras de profissionais que lidam com o ensino de língua. Os Parâmetros Curriculares Nacionais procuram enfatizar também a questão da natureza dialógica da linguagem, uma abordagem aos estudos da linguagem que considera a situação espaço-temporal da interação verbal, os interlocutores, as relações entre os interlocutores e os sentidos construídos historicamente, envolvendo essas relações entre interlocutores e aquilo de que falam. São estudos que se preocupam com aspectos linguístico-discursivos da comunicação humana, agrupados hoje sob uma grande área de saber sobre a língua(gem) denominada de Análise do Discurso. As premissas de fundamentação teórica encontrada nestes Manuais que apontam para o entendimento de língua e da linguagem como uma atividade dialógica, como um saber e uma propriedade de todos os homens e mulheres de uma sociedade dada, situada historicamente, entretanto precisam ser discutidas com mais frequência, estar mais presentes nas conversas e no trato não apenas do campo da linguística, no campo do estudo da linguagem, mas em todo o campo das ciências humanas, principalmente, onde se produz o conhecimento sobre o homem e a ação do homem sobre seu semelhante e sobre seu entorno; as reflexões precisam ser absorvidas por todos os atores do processo de ensino-aprendizagem para que de fato possam ser incorporadas à prática diária de sala de aula, quer no tempo destinado ao estudo da língua(gem), quer nos outros momentos da escolaridade. Mas não somente aí: a tarefa de formação de nossa infância e da juventude pode-se dar em qualquer lugar onde se esteja, em casa, com os nossos filhos, na rua, numa fila de ônibus, ou de banco, 165 Revista ALB 50_finalizada.pmd 165 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 se quisermos. Ou seja, esse entendimento sobre a língua e a linguagem precisa ser melhor trabalhado para que os nossos alunos possam com naturalidade compreender o que se passa entre os homens e as mulheres no que diz respeito ao seu comportamento linguístico e avaliar melhor o papel absolutamente fundamental que a língua/gem tem na formação do ser humano e de suas consciências, nas sociedades. É sobre esse aspecto, a ser discutido adiante, com mais detalhes, que pretendo efetivamente deixar aqui a minha contribuição. Os ensinamentos e recomendações dos documentos referidos não têm ecoado de modo proveitoso nas escolas brasileiras, no que diz respeito especificamente ao ensino da língua portuguesa. O que se tem visto, nas escolas públicas, sobretudo em nosso estado, é um completo desencontro, uma desorientação: os professores por não saberem em quê se apoiar para fazerem um trabalho como esse; por não terem o conhecimento; por não terem tido, em sua formação de professor de Letras, oportunidade para discutirem questões como essas, ou simplesmente por entenderem que um ensino como esse, certamente demanda muito mais esforço do que o que vem sendo empreendido, no sentido de que são novas as determinações e os procedimentos, atividades em sala de aula; e os resultados deste ensino, para parecerem eficientes, conforme os modelos de avaliação em vigência, deverão ter rituais de medida bem distintos daqueles que até hoje vêm sendo realizados nas escolas. O fato é que não se percebe maior amadurecimento nem maior clareza, nem maior habilidade dos alunos em relação ao domínio de qualquer das modalidades da língua, a falada e a escrita, e em relação à capacidade de questionar em torno à língua(gem). Os alunos da escola pública, hoje provenientes, em boa parte, de segmentos da sociedade praticantes de falares de certo modo distintos daqueles que são preconizados pela escola (pela sociedade mais estudada, praticante da variante culta da língua, falantes oriundos dos setores socioeconomicamente privilegiados), 166 Revista ALB 50_finalizada.pmd 166 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 não se reconhecem ali, entre tantas outras razões – das quais não cabe aqui análise – porque se veem em um espaço que não os prestigia tanto do ponto de vista de sua performance linguística como de sua inserção cultural. Nem a forma como falam, às vezes, nem mesmo o sotaque, nem o que dizem, o seu conteúdo, a significação – que afinal é aquilo para o quê falam – têm boa receptividade. Ao contrário, a forma, isto é, a realidade fonológica e gramatical da variedade linguística da língua portuguesa que praticam é, com frequência, motivo de reparação, sem que haja explicações plausíveis para o que acontece. Como lembra Perini (2000), em qualquer estudo sobre os fatos do meio que nos circunda, seja natural, seja cultural, ao se questionar sobre algo, as respostas vêm revestidas de um tecido científico, isto é, vêm explicadas cientificamente. Contudo, às perguntas de língua e de gramática normativa, porventura lançadas por alunos nos instantes dedicados a seu questionamento, sobre, por exemplo, por que tal forma é certa e a outra é errada, a resposta dada pelo professor é, via de regra, construída à base do: “ É assim que é o certo” (PERINI, 2000, p.51). E isso assim acontece porque está na essência da gramática normativa esta imposição. Isso evidentemente não credencia saber algum. É preciso um pouco mais de aprofundamento em torno ao assunto para que se ofereça ao aluno /aprendiz uma explicação satisfatória à sua curiosidade sobre a natureza da linguagem e de seu funcionamento. E isso a escola pode promover, pode desenvolver com seus alunos uma postura mais científica no trato das questões linguísticas, como essa aqui referida, contribuindo para um entendimento mais lúcido, mais produtivo e comprometido entre as nossas crianças e jovens, que se pretende sejam cidadãos bem formados e com capacidade de discernimento sobre a realidade de seu entorno, incluindo aí a prática linguística. O nível de desencontro, de desacertos que atinge o ensino de Língua Portuguesa, sobretudo na escola pública, hoje, em nosso país, porém, não se prende tão somente ao fato de que os 167 Revista ALB 50_finalizada.pmd 167 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 professores não tenham tido uma formação de graduação como a que estamos configurando aqui, que consideramos necessária para responder aos questionamentos colocados. De fato, a graduação em Letras, mesmo alguns cursos de Pedagogia, no país, já há algum tempo, introduziram os estudos linguísticos em seus currículos, ainda que não tão dedicados, por exemplo, a trabalhos com os campos da Pragmática e da Análise do Discurso. Os ensinamentos da Linguística e da Sociolinguística, porém, ainda não se constituíram em referencial teórico de que os professores lancem mão na construção de seus planos de curso, na elaboração de atividades e práticas de sala de aula e na disposição de assumir uma nova postura diante do fato de língua em sala de aula. Em realidade, estamos, no que diz respeito ao ensino da língua materna – muito aquém de uma realidade tal como a recomendada nos Parâmetros Curriculares Nacionais, os quais, se bem entendidos, se bem discutidos entre os professores, certamente renderão bons frutos para a nossa escola, no que diz respeito ao ensino de língua e linguagem. A LÍNGUA(GEM) ENQUANTO FORMADORA DE CONSCIÊNCIAS Voltemos, porém, à discussão deixada atrás, em que se falava sobre a importância e a força da língua e da linguagem na formação das subjetividades, na formação das consciências do homem e da mulher. Ou, se quisermos, na construção das significações, sobre a realidade circundante, que habitam as nossas consciências, que orientam a formação de pensamentos, emoções, sentimentos. Bakhtin revela em seus escritos, respeito e consideração pela obra de Saussure, considerado, com propriedade, o pai da linguística moderna. Mas aponta, nessa abordagem, vieses que, para ele, comprometem uma verdadeira compreensão do fenômeno da linguagem, segundo suas reflexões, com as quais concordamos e aqui trazemos. 168 Revista ALB 50_finalizada.pmd 168 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Bakhtin não se satisfaz com a explicação dada pelo estudioso, em seu Curso de linguística geral, ao fenômeno linguístico. Para ele, a oração é uma unidade da língua, inteligível, examinada do ponto de vista de sua organização sintática e de sua significação: O autor mostra que o exame de uma unidade da língua falada ou escrita, a que se dá o nome de oração, tomada totalmente desvinculada da situação de uso, fora da interação verbal na qual estão atuando outros fatores, tais como os interlocutores e os sentidos que esses interlocutores trazem consigo sobre aquilo que está sendo dito, nada diz verdadeiramente da natureza da linguagem, não considera o acento que cada palavra carrega consigo; não é possível então que se adote com relação a ela, uma atitude responsiva ativa, isto é, que considere uma resposta do interlocutor, com seu acento e o tom concedido a este dito. Considerar tão somente esta oração é não considerar a resposta do outro, do interlocutor, não admitir as variações de tom e de expressividade que as palavras carregam e das quais nos apropriamos em outras interações de fala já vivenciadas anteriormente. As abordagens sobre a língua(gem) e a significação tal como se apresentam nos estudos de Saussure, por exemplo, estão fundamentadas na ideia de língua como um sistema rígido de sinais, um sistema monológico que rege e controla os significados. Essa abordagem não considera a palavra, o discurso realizado efetivamente em uma situação sócio-verbal; não avalia o peso das interações verbais para a vida da palavra, não mensura a sua caminhada nos vários momentos em que ela foi significada por ambos os interlocutores. Enfim, não vê a natureza dialógica da palavra. O funcionamento da linguagem, tal como se espera dos estudos estruturalistas, evidentemente, não prevê esse movimento em direção ao interlocutor, de que se espera uma atitude de responsividade ativa. Para o estruturalista, a comunicação se faz entre duas ou mais pessoas as quais se servem da linguagem como um instrumento, um sistema de signos e sinais que por seus 169 Revista ALB 50_finalizada.pmd 169 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 arranjos sintáticos carregam um significado que há de ser decodificado pelos interlocutores. Este entendimento do funcionamento linguístico não responde ao pensamento de Bakhtin em torno à língua e à linguagem e seu uso entre as pessoas. São suas palavras: É por isso que a experiência verbal individual do homem toma forma e evolui sob o efeito da interação contínua e permanente com os enunciados individuais do outro. É uma experiência que se pode, em certa medida, definir como um processo de assimilação, mais ou menos criativo, das palavras do outro (e não das palavras da língua). Nossa fala, isto é, nossos enunciados (que incluem as obras literárias) estão repletos de palavras dos outros (grifos do autor), caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação, caracterizadas, também em graus variáveis, por um emprego consciente e decalcado. As palavras dos outros introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos. (BAKHTIN, 1992, p.314). (grifos nossos) Nas palavras do pensador russo, se evidenciam, com clareza, a natureza dialógica da linguagem e a heteroglossia presente em nossa expressão. Diz-se heteroglossia porque o que falamos, dizemos ou escrevemos “está repleto de palavras do outro, caracterizadas, em graus variáveis, pela alteridade ou pela assimilação”, conforme se pode ler na citação feita. Numa perspectiva de língua(gem) entendida como uma atividade dialogizada, em que a palavra é naturalmente dialógica, em que a nossa palavra é sempre também palavra do outro, a compreensão do que acontece na situação de fala deve-se dar também a partir da análise de como ocorre a transmissão da palavra alheia e sua incorporação/ assimilação à nossa. Isso significa distanciarnos de uma compreensão da língua que se resolve por si mesma 170 Revista ALB 50_finalizada.pmd 170 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 enquanto um sistema de sinais fechado em seus limites; leva a entender que as significações devem ser estudadas no movimento da palavra em meio à vida social em que a linguagem é utilizada. Bakhtin (2002), falando da estilística tradicional e contrapondo-a ao seu pensamento, considera que “O discurso do pensamento estilístico tradicional conhece apenas a si mesmo (isto é, ao seu contexto), seu objeto, sua expressão direta, somente como um discurso neutro da língua, como discurso de ninguém, como simples possibilidade” (p.85). A estilística tradicional, sob a qual estamos acostumados a compreender esses fatos de linguagem, nos faz ver, na resposta do outro, uma palavra que não contempla nenhuma “resistência do discurso de outrem”, uma palavra não matizada, que não recebe tons nem acentos, por isso mesmo uma resposta que não pode incomodar nem servir de contestação: a palavra deve ter apenas aquela compreensão, aquele sentido. Fugir a esse sentido é não conhecer a palavra, é desconhecer-lhe o significado, único. O estudo da lingua(gem) não tem sido no sentido de incorporar esses matizes e tons que as pessoas emprestam ao discurso, submetido ao ritmo das falas das quais as pessoas participam. Espera-se então que o entendimento do objeto seja igualmente monológico, não tocado pela acentuação que lhe emprestam as várias situações nas quais aquela palavra já foi significada. Algumas passagens de eventos de linguagem, coletadas em nossos trabalhos de pesquisa na Universidade, ilustram com clareza essa compreensão em torno ao conceito e à natureza da linguagem aqui apresentadas, com base nos ensinamentos de Bakhtin. O trecho abaixo é parte de uma entrevista de um garoto que já tivera experiências de vida nas ruas e que se encontrava, no momento da entrevista, acolhido por um órgão de assistência. A entrevista foi concedida a uma professora universitária que estava a realizar uma pesquisa em sociologia2: ENT – Você frequentou a escola, não frequentou? 171 Revista ALB 50_finalizada.pmd 171 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 – Eu só frequentei só foi a primeira série.Aí eu comecei a um dia a ir, outro não, dia sim dia não, e indo para a rua, que .. – Por que que você não gostava da escola? – Porque eu queria ir para sinaleira, queria mais era ajudar minha mãe, aí não... – Não achava a escola importante não? – Não, pra mim a escola era só... coisa que tinha que ir, só pra escrever mas não tinha importância, pensava que importante pra mim era sinaleira, que eu ia ajudar minha mãe, na sinaleira eu ia arranjar um trabalho melhor, ai eu ia ajudar minha mãe melhor, na escola não, eu ia só ficar escrevendo e sem ganhar nada... ajudar minha mãe... depois eu... – Hoje você mudou de ideia a respeito da escola? O que é que você pensa da escola? – Mudei. Hoje eu penso que a escola... que é muito melhor, a pessoa aprende a ler a escrever e quem sabe, amanhã ou depois arranja um trabalho melhor que possa mudar de vida. Eu só mudei... pensando que a escola era uma coisa chata [...] quando eu vim morar na instituição, que Edu me explicou que eu tinha que ir para o colégio porque a escola é bom, ajuda as pessoas a aprender ler, escrever, ai foi que eu [...]a gostar da escola, eu fui alfabetizado pela moça. Há uma palavra aqui em torno ao tema, a escola, que diz que escola não vale para nada, você vai lá somente para escrever, mas se você quiser obter algum dinheiro para sua sobrevivência de todo dia você terá de ir para as ruas, para a sinaleira. Lá está o mais importante, o dinheiro. Mas, ao final da passagem já se pode depreender outro entendimento de instituição escolar, entendimento esse que não chega a esse garoto senão quando ele entra para a instituição de assistência e acolhimento: a escola como algo bom e que ensina coisas importantes, ler e escrever. A compreensão inicial que o garoto tem de escola como algo aborrecido, que só servia para escrever, algo sem importância, não deve ser entendida como uma simples ignorância do sentido 172 Revista ALB 50_finalizada.pmd 172 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 comum de escola, um desvio do sentido da instituição escolar, tal como aprendemos: a escola como instituição que oferece a possibilidade de ascensão e de melhora social, sendo portanto algo bom e necessário. É uma compreensão nascida das interações sócio-verbais que ele vivencia, ao longo de sua vida. E nessas experiências, esse é o tom que vem sendo dado à palavra, isto é, esse é o entendimento que o menino tem da instituição social Escola. Em um mundo em que há certamente prioridades avassaladoras de sobrevivência que se apresentam todos os dias para aquele menino e para sua família a instituição escolar não necessariamente é contemplada com significações que só a apreciem e falem de sua importância. O que se observa aqui é a recusa a essa palavra que diz ser a escola uma instituição social criada e desenvolvida para prover os meios de ascensão social através do ensino da língua, da cultura, da ciência, da informação geral, visando formar cidadãos atuantes na sociedade. Se somos formados no caldo cultural da sociedade que nos abriga, se nos formamos e à nossa consciência, pelo mergulho nessas experiências, nas palavras do outro, do nosso interlocutor, ao mesmo tempo em que vamos imprimindo à linguagem também o nosso tom, não podemos estranhar ou considerar tal entendimento de escola como algo desviante porque proferido por um garoto pertencente a um grupo de que se diz não ter cultura. As representações sociais com que lidamos são aquelas “permitidas”, isto é, são aquelas forjadas nessas interações vivenciadas. Este é o significado de escola para o menino. Isto não está muito distante do que ocorre a qualquer um de nós, em qualquer situação, em nosso dia-a-dia. Basta retomarmos aqui e agora, fatos recentes e bastante divulgados por nossa imprensa, e que geraram manifestações diversas. Falamos da violência sofrida por Sirlei Dias, uma mulher carioca, de 32 anos, doméstica, que sofreu agressão física e moral, espancamento, xingamento e roubo por quatro jovens também cariocas, de classe média, que acabaram por ser presos no último mês de junho. 173 Revista ALB 50_finalizada.pmd 173 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Muitos foram os comentários e reportagens sobre o acontecido. As citações que vou aqui fazer foram retiradas de um desses artigos, publicado no jornal A Tarde.3 Segundo o texto, o pai de um dos rapazes agressores, diante do fato de seu filho vir a ser preso, diz não ser “ justo que crianças que estudam, que estão na faculdade, que trabalham, sejam mantidas presas. Tem que ter outra forma de punição. Não é justo prender cinco jovens que têm pai e mãe, e juntar com bandidos que a gente não sabe de onde vieram”. Diante dessa fala indignada de um dos pais dos agressores, todos eles maiores de dezenove anos, pergunta-se se é “justo” chamar-se de crianças a rapazes maiores de dezoito anos, que às cinco h da manha, em carro particular, param em um ponto de ônibus unicamente com a finalidade de atingir a moça que se encontrava ali à espera de condução. E o que dizer quanto à palavra “bandidos” – que aparece ao final do texto e que aí se encontra nomeando um grupo de pessoas que funciona como de oposição a estas “crianças”, os jovens agressores de Sirley? Por esta colocação, os agressores de Sirlei não são bandidos. Bandidos são aqueles com quem eles vão-se encontrar na prisão, segundo a fala do pai. Os rapazes são “crianças”, estudantes que trabalham, têm família constituída de pai e mãe: não podem ser considerados bandidos, não são bandidos. Imaginemos agora os diálogos que mantém esse pai – e pais como ele – com seus filhos, em suas casas, sobre as várias situações com que se defrontam na vida cotidiana. A ideia que fica é de que os rapazes fizeram algo errado, por isso devem ser punidos; mas não como bandidos, não podem ficar presos, são criaturas de certo modo, inocentes e ingênuas, são crianças, são jovens. Ou que, por uma razão ou por outra, não explicada, não merecem o tratamento que estão querendo lhes dar. O feito dos agressores, por outro lado, não foi agressão, o problema é que Sirley é mulher e nesse caso o espancamento se faz mais evidente. Ainda nessa 174 Revista ALB 50_finalizada.pmd 174 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 linha de tentativa de justificativa, é de arrepiar também a surpreendente explicação para o ato, dada pelos agressores, quando dizem que supunham ser aquela mulher que agrediram, uma prostituta. Prostituta é então aí uma palavra que designa uma pessoa que pode ser agredida por outras, sem que isto se constitua um crime para aquele que agrediu – que, aliás, neste caso, nem seria agressor. Se em situações públicas esse pai expõe uma significação que desperta indignação nos leitores, esperamos que na sua maioria, ao pretender inocentar o filho e suas atitudes, não é insensato pensar que, na intimidade de seu lar, as reflexões, as trocas, as interações linguístico-discursivas com a família sejam plenas desses entendimentos. E é desse manancial que o seu filho se nutre, na construção de seu referencial, na constituição das representações sociais que vão reger sua consciência e que vão conduzi-lo na vida, na relação com os outros, na relação com o mundo. Se a consciência se faz da expressão, como quer Bakhtin, este é o momento ideal para se pensar no que fazemos a cada momento em que entabulamos nossas conversações, nossas interações verbais, sejam elas com o nosso próximo, o nosso filho, seja com o nosso aluno, seja com o menino e a menina que se aproxima de nós, na rua, no jardim, na sinaleira, na cidade. Seja com quem for. Uma outra passagem de entrevista com meninos de rua, pode ilustrar um pouco mais o tanto de responsabilidade que cada um de nós tem para com o nosso semelhante, tão somente pela natural atividade de linguagem que exercitamos todos os dias e todas as horas. A entrevista foi gravada por ocasião da pesquisa de tese de doutorado, cujos sujeitos são garotos e garotas de rua.4 A. ENT – Como é que as pessoas, como é que a sociedade trata você, seus amigos que estão na rua? 175 Revista ALB 50_finalizada.pmd 175 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 – Tem uns que trata mal [ – ]. Quando eu tava na rua mesmo, passava uma mulher, eu: “tia, arranja um trocado”, ela: “vá trabalhar, vagabundo”. – “Vá trabalhar! Fica aí na rua!” Quando eu ia arranjar comida mesmo, chegava num prédio: “tia, arranja um pouquinho de comida?” “Ah, vá trabalhar, vai procurar alguma coisa prá fazer. Por que não fica em casa? Não tem mãe, não tem pai, não sei o quê...” Aí eu ficava assim olhando, falei: “(...) dá uma raiva”. Eu ir lá em cima dela dar uma bronca, ela falando isso, ela não sabe, amanhã ou depois, quem ri por último ri melhor... B. – [...] pensando que eu ia robar ele, saiu de junto de mim. Tem outros quando passa de junto da gente fica falando, várias... é... falando coisa, uns têm medo, outro... é... trata é... uns, principalmente uns, tudo racista, quando vê a gente pede [...] alguma coisa nun dão, fala coisas horrorosas pá gente... Certo que a gente tá na rua, mas também né, mas não desse jeito que eles têm que tratar a gente. Eu mesmo... eu me lembro... por isso o menino quando mata, faz, acontece... porque eu acho que merece, uma parte merece, porque do jeito que eles tratam... Ontem mesmo eu vi, o menino foi pedir: “moço, me dá 10 centavos pá comprar um pão”. Ele falou: “vá procurar o que fazer, vá robar que é melhor”. Ele pediu, não quis dar, por isso que ele vai e roba. Eu dou razão a eles.[...]% É, porque pediu, mandou robar! Se foi pro outro: “não, vá trabalhar, vai prá casa, trabalhar”. Não, ele mandou foi robar. E tinha cara de barão, ele. BREVES CONCLUSÕES No estudo da fala de outrem e de sua assimilação numa esfera extraliterária, isto é, na esfera da vida cotidiana dos homens e das mulheres em sociedade, Bakhtin busca verificar não os mecanismos de representação dessa língua(gem) mas os meios de sua transmissão. Nesse percurso do seu projeto de reflexão em torno à heteroglossia e ao dialogismo, o estudo da palavra do 176 Revista ALB 50_finalizada.pmd 176 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 outro toma aqui um caminho em direção à questão da formação ideológica dos homens: compreender a introdução da palavra do outro vai iluminar a compreensão sobre a evolução ideológica do homem: “um processo de escolhas e de assimilação das palavras de outrem” (BAKHTIN, 2002, p. 142). Essa palavra de outrem assume aqui, neste processo de formação ideológica do homem, um matiz diferenciado, relacionado às “bases de nossa atitude ideológica em relação ao mundo e (de) nosso comportamento” (BAKHTIN, 2002, p.142). Duas categorias são propostas então de conceituação da palavra de outrem no processo de transmissão do discurso: a palavra de autoridade e a palavra interiormente persuasiva. Tanto uma quanto outra dessas modalidades de palavras, com as quais nos deparamos, cotidianamente, em nossas vidas, ambas contribuem para a formação de nossas consciências. Ainda que não possamos falar delas aqui agora, o seu registro se faz necessário já que estamos tratando da formação ideológica dos homens. São categorias com as quais Bakhtin procura descrever os percursos da formação das consciências dos homens, “as bases da nossa atitude ideológica em relação ao mundo”. Ao finalizar a nossa fala, chamamos a atenção para esses aspectos que consideramos da maior importância e que dizem respeito ao fenômeno da língua e da linguagem. Não se trata tão somente da questão do ensino da língua e da linguagem na escola, nem se restringe, ocasionalmente, aos problemas com que nos deparamos, em nossos tempos e na sociedade brasileira, baiana em particular, em relação ao propalado fracasso da empreitada educacional na área da linguagem. Tudo isso é fato, já discutimos algo a respeito e esperamos ter inclusive apontado para alguns dos possíveis problemas causadores dos impasses e dos conflitos que parecem se apresentar no enfrentamento ao ensino da linguagem nas escolas. Superado todo esse quadro, resta ainda e sempre a compreensão de que o ser humano é ser humano também porque é ser falante – uma distinção em relação aos 177 Revista ALB 50_finalizada.pmd 177 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 animais ditos não racionais; que a linguagem é que torna o homem sujeito, e somente em sua atividade de linguagem, se subjetiva, se situa no mundo e em relação aos outros homens e à realidade que o circunda; que a linguagem é dialógica e que a nossa fala, heteroglóssica como é, está plena da fala dos outros, e essas falas que recebemos têm o tom e o acento dos enunciados já realizados, vivenciados: nós não os colhemos no sistema da língua mas no movimento incessante das nossas interações verbais, a linguagem viva. Com essas palavras formamos a nossa consciência, construímos os nossos referenciais sociais e ideológicos, partimos para o enfrentamento e fazemos os nossos caminhos. Dentro da perspectiva bakhtiniana de dialogia da palavra e da heteroglossia de nosso discurso, o estudo dos procedimentos de transmissão do discurso de outrem permite esclarecer um pouco mais o processo de formação ideológica do homem e da mulher; e fornece bons critérios para compreendermos melhor como a língua(gem) funciona nos diálogos cotidianos – a base da vida da linguagem – e qual sua função no desenvolvimento culturalideológico do ser humano. NOTAS As traduções dos textos estrangeiros referidos na bibliografia são de minha responsabilidade. 2 A entrevista foi gentilmente cedida, ainda na sua forma gravada, no ano de 1995, pela professora dra.Iara Dulce B. de Ataíde, professora da UNEB e da UCSAL. A transcrição da entrevista foi feita por mim mesma. O órgão de assistência de que se fala é o ICAJ – Instituto Cristão de Atendimento aos Jovens. Salvador – Bahia. 3 FONTES, Malu. As violentas “crianças da classe média brasileira”. A Tarde, Revista da TV, p. 9, 1o. julho de 2007. 4 Os resultados deste trabalho estão publicados em MACHADO, 2003. 1 178 Revista ALB 50_finalizada.pmd 178 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 REFERÊNCIAS BAKHTIN M. O problema do texto. In: Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 1992. BAKHTIN M. - VOLOSHINOV. El Signo ideológico y la filosofia del lenguaje. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión, 1976 (original de 1929). BAKHTIN, M. M. O Discurso no Romance. In BAKHTIN, M. M. Questões de Literatura e Estética. A teoria do romance. São Paulo: Anna Blume/Hucitec, 2002. BRASIL, Secretaria de Educação fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC, 2002. FARACO, Carlos Alberto. Some sources of Bakhtin’s dialogism seen in great time. In ZYLKO, Boguslaw (ed.) Bakhtin & his intellectual ambience. Gdansk: Wydawnictwo Uniwersytetu Gdanskiego, 2002, p. 49-58. FRANCHI, Carlos. Linguagem – atividade constitutiva. In Almanaque – Cadernos de Literatura e Ensaio. 5 São Paulo: Brasiliense. 1977, p. 9-27. GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985. MACHADO, Rosa Helena Blanco. Vozes e silêncios de meninos de rua. O que eles dizem sobre nossas instituições. São Paulo: Martins Fontes, 2003. PERINE, Mário. Sofrendo a gramática. Ensaios sobre a linguagem. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000. TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine. Le príncipe dialogique. Paris: Edition du Seuil, 1981. __________ Obs.:Este texto foi apresentado no III Ciclo de Seminários “Discutindo o Ensino das Ciências do Homem e Letras”, organizado pela Academia Baiana de Educação, em 11 de julho de 2007. Salvador, Bahia. O texto original foi levemente ajustado para publicação nesta revista, ainda que conservando um pouco do ritmo de uma comunicação oral. Rosa Helena Blanco Machado é Professora Titular do DCH I – Departamento de Ciências Humanas I – da Universidade do Estado da Bahia. 179 Revista ALB 50_finalizada.pmd 179 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 180 Revista ALB 50_finalizada.pmd 180 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Em favor da criação da Academia de Ciências da Bahia Roberto Figueira Santos As pesquisas científicas e tecnológicas não alcançaram ainda, no Brasil nem na Bahia, a devida valorização por parte de expressiva parcela dos nossos conterrâneos. No entanto, a economia das nações passou a depender, cada dia mais, da racionalidade no aproveitamento dos recursos naturais e da agregação de valor às matérias-primas disponíveis, mediante o emprego de tecnologias baseadas no conhecimento cientificamente adquirido. Essas atividades têm se revelado essenciais para o bem-estar das sociedades modernas. São altamente recomendáveis todas e quaisquer iniciativas que estimulem a geração e a divulgação desses conhecimentos. Tendo em vista circunstâncias históricas adiante analisadas, no Brasil foi promulgada, recentemente, a chamada “Lei da Inovação” (Lei número 19.973, de Dezembro de 2.004), destinada a ressaltar a importância das pesquisas técno-científicas que envolvam originalidade nas ideias e que inovem na concepção de produtos e de processos. As particularidades da aplicação dessa lei deverão ser analisadas pela Academia de Ciências ora sendo constituída. 181 Revista ALB 50_finalizada.pmd 181 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Além de estimular a expansão das fronteiras do conhecimento, a nova Academia deverá promover o saudável debate entre correntes de pensamento acerca de temas relevantes, quer nas suas sessões ordinárias, quer pela realização de simpósios e de congressos com a participação de cientistas estranhos ao seu próprio quadro. A observância de normas éticas pertinentes a essa atividade estará entre as cogitações de máxima importância para os seus associados. A mobilização de recursos financeiros para o funcionamento da Academia constará no Regimento da nova instituição. No Brasil, as pesquisas científicas e tecnológicas dependem ainda, preponderantemente, do financiamento pelo poder público. São sempre bem-vindas, por isso, as oportunidades para maior divulgação dessas atividades, que precisam ter boa visibilidade junto à população geral, à qual cabem as decisões mais relevantes quanto ao futuro da nacionalidade. À medida que o nosso país se desenvolve e a sua população enriquece, tenderá a crescer a produção científica e tecnológica a cargo das empresas privadas. Deverá ser este um dos fatores essenciais à sofisticação da nossa economia. Frequentemente, as imagens projetadas pelas instituições de pesquisa aparecem como se estas fossem privilégio das sociedades altamente capitalizadas, dispondo de recursos humanos excepcionalmente bem preparados e com propósitos de grande transcendência. Não obstante, quando adequadamente planejadas, entre populações que aspirem intensificar o seu desenvolvimento econômico e social, as pesquisas técno-científicas poderão ser importantes fatores de inclusão social. Durante séculos, o Brasil importou grande parcela do que a nossa população consumiu. Entre os produtos localmente fabricados, preponderaram processos desenvolvidos em outros países. A escassa investigação cientificamente orientada, durante longo período resultou do esforço de pesquisadores estrangeiros e de brasileiros formados em países europeus. Ressalvadas umas 182 Revista ALB 50_finalizada.pmd 182 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 poucas exceções, essas pesquisas não se realizaram em entidades de ensino superior, e, sim, em órgãos especializados, cujo campo de atuação envolveu ora a saúde pública (para a fabricação de vacinas), ora a agronomia (visando a saúde animal e vegetal), ora a identificação dos nossos recursos naturais (com finalidade econômica). Não existiam, entre nós, entidades comprometidas com a formação de pesquisadores. Muito tardiamente, já no meado do século XX, a economia nacional entrou em nova etapa, caracterizada pela criação de incentivos para a substituição por produtos fabricados no próprio país, de similares antes importados. Logo se tornou evidente a necessidade do melhor conhecimento das peculiaridades das nossas matérias-primas, do nosso mercado e da nossa mão de obra, o que teria de ser alcançado mediante a formação local de pesquisadores que se encarregassem de tais tarefas. Foi, então, criado o “Conselho Nacional de Pesquisas”, com a sigla CNPq, depois designado “Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico”. Surgiram, em alguns Estados, fundações de apoio à pesquisa. As Universidades constituíram o campo natural para o preparo dos pesquisadores, o que levava, obrigatoriamente, ao estímulo da realização de pesquisas no ambiente universitário. Foi este o momento propício para a regulamentação dos programas de pós-graduação stricto sensu (cursos de mestrado e de doutorado) e para o aprofundamento, nas Universidades, dos dispositivos encarregados das disciplinas referentes aos setores básicos do conhecimento. Foi o que ocorreu mediante a restruturação universitária determinada pelos decretosleis 53 de 1966 e 252 de 1967. Simultaneamente, na rede de Universidades federais teve início a implantação do regime de trabalho docente em dedicação exclusiva, fator da máxima importância para o sucesso na elaboração de pesquisas. Reconhecidamente, é mais fácil o recrutamento de pessoal de magistério com dedicação exclusiva para as matérias básicas do que para as disciplinas profissionalizantes. Desde então, a 183 Revista ALB 50_finalizada.pmd 183 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 produção científica e tecnológica foi ampliada e aprimorada, consideravelmente, nas nossas Universidades federais. Aos poucos, mais tarde, de grande importador de produtos manufaturados, o Brasil vem se transformando em fabricante e exportador de mercadorias com expressiva agregação de valor às matérias-primas. Até à implantação das primeiras Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no começo da década de 1930, os estudos em nível superior referentes aos setores básicos do conhecimento (matemática, física, química, biologia, geociências, ciências humanas, letras, filosofia) sofreram restrições condicionadas pela função que lhes cabia naquela época, que era a de apoiar a compreensão das práticas inerentes a determinada profissão. Nas nossas Faculdades, portanto, ressalvadas umas poucas exceções, as citadas disciplinas não eram cultivadas pelo importante significado do seu conteúdo no aperfeiçoamento da inteligência e na capacidade de raciocínio do estudante, e sim pelo apoio que proporcionavam ao aprendizado das práticas correspondentes à profissão escolhida pelo aluno. Para citar, apenas, alguns exemplos, era o que ocorria, então, nas Faculdades de Engenharia, Medicina, Agronomia, com o aprendizado da física e da química. Os escassos trabalhos de investigação científica então realizados resultaram, quase sempre, de iniciativas individuais e, não, de projetos institucionais. Durante mais de três séculos, entre os anos 1500 e 1800, os nossos colonizadores não admitiram a existência de cursos superiores no Brasil. Entre o começo do século XIX até cerca da metade dos anos 1900, o propósito essencial das nossas escolas de nível superior consistiu no preparo da mão de obra necessária à prestação de serviços especializados à população local. Antes e logo depois da Independência do Brasil, havia sido muito insuficiente o número de profissionais com estudos universitários vindos da Europa para a principal colônia portuguesa. Tornarase urgente, ainda mais pelo aumento da população, implantar o 184 Revista ALB 50_finalizada.pmd 184 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 sentido profissionalizante atribuído às Escolas ou Faculdades então criadas. Eram elas completas em si mesmas no sentido de que, precedendo o ensino das práticas profissionais, cada qual dessas Faculdades oferecesse aos alunos as disciplinas básicas essenciais à compreensão e ao preparo para o exercício da profissão. Alem disso, por muito tempo, as Faculdades não se articularam entre si, mesmo quando a serviço da mesma comunidade, no intuito de formarem Universidades. Os nossos conterrâneos, a esse tempo, reconheciam nas instituições de nível superior, tão somente, a função de formar a mão de obra indispensável à prestação de serviços especializados às populações. Apenas, excepcionalmente, eram elas avaliadas pela qualidade e pelo volume de pesquisas nelas produzidas. No entanto, essa é a avaliação habitual entre os que habitam países que, de mais tempo, ostentavam elevado nível cultural. Por ser tão recente no Brasil, parte expressiva da nossa população e das nossas lideranças apenas começa a compenetrar-se da importância da missão de realizar pesquisas técno-científicas, como essencial ao próprio conceito de Universidade. No meado do século XX, conforme já assinalamos, o Brasil havia adotado a política da substituição de importações, ao estimular a produção local de bens e de serviços mediante processos desenvolvidos em outros países. Valeu, para isso, o enorme mercado interno representado pela nossa grande população. Em contraste, outros países, a exemplo da Coréia do Sul, por não contarem com idêntica magnitude no seu mercado interno, decidiram ampliar a sua produção visando a exportação, o que os obrigou a buscarem inovações na produção, mediante pesquisas técnico-científicas que atraíssem a preferência dos consumidores entre produtos semelhantes, no competitivo mercado internacional. Explica-se pelos motivos apontados, que no Brasil se hajam originado, relativamente, poucas ideias inovadoras que justifiquem a proteção pelas leis internacionais de defesa da propriedade 185 Revista ALB 50_finalizada.pmd 185 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 intelectual. É esse um dos fatores responsáveis pelo reduzido número de pedidos de registro de patentes até agora submetidos por pesquisadores brasileiros, comparado com os que se originam em outros países. A análise aprofundada das normas de defesa da propriedade intelectual, paralelamente à regulamentação criteriosa do sistema de patentes, estarão entre os objetivos da futura Academia de Ciências. A Academia de Ciências da Bahia deverá ocupar-se com a promoção do ensino das ciências aos jovens, desde a mais tenra idade, mediante metodologia ajustada aos alunos. Infelizmente, foi muito tardio, entre nós, a perda do prestígio da pedagogia baseada na exclusiva transmissão, pelo professor, de enorme volume de informações a serem acumuladas na memória dos alunos. É o que passou à história sob a designação de “decoreba”, hoje condenada e detestada por justas razões. Em substituição, tem se difundido entre nós, o aprimoramento da capacidade de raciocínio do aluno, por meio do incentivo, pelo professor, ao debate sobre as criações da inteligência humana e sobre a observação de fatos que conduzam à redescoberta, pelos alunos, das leis da natureza. O atraso dessa evolução tem contribuído para que muitos dos nossos cientistas não sejam, ainda, suficientemente inclinados a valorizar o pensamento criativo e inovador. O preparo adequado de professores, em números muito mais elevados do que se tem verificado até agora, constitui o principal caminho para que se acelere, no nosso meio, a modernização da pedagogia das ciências em todos os níveis de educação. Por sua vez, o exercício satisfatório das tarefas desses professores carece de uma grande ampliação no apoio material a eles oferecido, sob a forma de melhores salários, laboratórios escolares bem equipados, livros apropriados, e visitas a museus didáticos. Os museus de ciência e tecnologia, quando devidamente organizados, são instrumentos poderosíssimos para a exata compreensão, pelos jovens, do significado do desenvolvimento científico e tecnológico na sociedade moderna. 186 Revista ALB 50_finalizada.pmd 186 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Tem sido, entre nós, muito insuficiente o registro dos fatos relevantes para a história da ciência e da tecnologia, nos arquivos das instituições dedicadas a essa atividade. A Academia de Ciências tentará corrigir essa deficiência. As iniciativas tendentes à popularização da ciência terão muito a ganhar com a colaboração ainda mais decidida dos órgãos de comunicação, do que tem ocorrido até agora. Entre outras providências que a Academia de Ciências da Bahia deverá incentivar, estará o preparo de profissionais especializados no jornalismo científico. A crescente complexidade das providências referentes à organização, ao planejamento e ao financiamento das entidades encarregadas de pesquisas científicas e tecnológicas e da formação dos pesquisadores, vem exigindo a colaboração de gestores que conheçam o assunto em profundidade. É esse mais um importante item a ser apreciado pela futura Academia de Ciências. Em virtude do exposto acima, cabe resumir nos seguintes termos os objetivos da Academia a ser criada: a) incentivar a realização, entre nós, de pesquisas sobre temas relevantes de ciência e de tecnologia, tanto em entidades públicas como privadas; b) estimular a formação de pesquisadores, preferentemente, em instituições universitárias que possuam ou aspirem criar tradição em linhas de investigação de reconhecida importância, situadas nas fronteiras do conhecimento e que se apliquem às tecnologias consideradas “de ponta” no momento dado; c) analisar em profundidade a “lei da inovação” na pesquisa científica e tecnológica junto ao ambiente produtivo nacional; d) estimular o ensino das ciências em todas as idades, com a metodologia e os materiais ajustados às peculiaridades dos alunos; e) servir de elo entre cientistas e instituições locais, de um lado, e, de outra parte, junto a entidades projetadas nacional e internacionalmente, visando a troca de informações em caráter pessoal e a criação de oportunidades para trabalhos em parceria; 187 Revista ALB 50_finalizada.pmd 187 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 f) apoiar decididamente iniciativas que visem a popularização da ciência em termos corretos, quer na área do jornalismo científico, como pela organização de museus de ciência e tecnologia com feitio didático; g) priorizar a formação de lideranças que atuem no cumprimento dos items a, b, c, d, e e f acima enunciados; h) identificar e apoiar projetos técno-científicos que contribuam para a inclusão social; i) ocupar-se com a criação de oportunidades de emprego para os cientistas com a formação adequada, particularmente para os que se disponhamn a trabalhar sob o regime de dedicação exclusiva; j) apoiar encarregadas do registro de fatos relevantes para a história da ciência e da tecnologia, tanto em âmbito local como global. Bahia, Julho de 2009. Roberto Figueira Santos é ex-Governador da Bahia, ex-Reitor da Universidade Federal da Bahia. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 26 da ALB. 188 Revista ALB 50_finalizada.pmd 188 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Poesia 189 Revista ALB 50_finalizada.pmd 189 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 POESIA 190 Revista ALB 50_finalizada.pmd 190 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 CONDIÇÃO Ruy Espinheira Filho 1 E aqui estou escrevendo mais um livro. Não sei até quando escreverei mais um livro. Não posso saber, não pertenço à raça irritada e depressiva dos profetas. O que sei é que venho tentando escrever livros desde que respirei pela primeira vez conscientemente o ar da sala em que meu pai, colhendo e abrindo misteriosos objetos de longas e altas prateleiras, mergulhava no concentrado silêncio em que (eu o soube depois) conversava com Platão, Eça, Proust, Huxley, Pessoa, Homero, Skakespeare, Voltaire, Roger Martin Du Gard, Pierre Van Paassen, Rubem Braga, Camões, Sosígenes Costa, Bandeira, Cecília, Drummond, Quintana, Bertrand Russell, Vieira, por exemplo. 191 Revista ALB 50_finalizada.pmd 191 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 2 Na verdade, houve um antes de tentar decifrar aqueles objetos mágicos de que fala muitas vezes Borges relembrando Emerson. Para tanto, por meses e meses, minha mãe me guiou entre os primeiros e hostis hieróglifos. E com infinita paciência, pois desde o início bem sabia que eu não me chamava Jean-François Champollion. 3 Penso estas coisas enquanto, mais uma vez, escrevo, muito depois de meu pai se tornar memória luminosa, como aqueles com quem conversava em silêncio, e a paciência de minha mãe finalmente já ter merecido o devido repouso. 4 Sim, novamente escrevendo. Sem saber, como sempre, aonde estou indo, se é que estou indo a algum lugar. Às vezes me ocorre que escrever é exatamente isto: ofício de quem não sabe aonde ir. 192 Revista ALB 50_finalizada.pmd 192 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 E, como não sabe, tateia na névoa à espera de encontrar alguma coisa que não só não sabe onde está como não sabe o que é e que talvez seja uma parte da alma que ficou perdida na travessia entre sombras ancestrais e a vida. 5 Ao contrário do que versejou o poeta Drummond, a literatura não estragou as minhas melhores horas de amor. Na verdade, deu-me algumas das minhas melhores. Amor de muitos textos admiráveis, muitas mulheres, muitos heróis e mundos além do mundo. Vasto sonho carregado de sonhos, em que eu mesmo fui e sou meus sonhos e o sonho nos meus sonhos. Sim, também sofrimentos. Sim, também horrores. Sim, também abominações. Mas é que os sonhos são coisas da vida, nascem da vida, não se pode sonhar senão com a vida, que talvez seja também sonho, como acreditava Calderón de La Barca. 193 Revista ALB 50_finalizada.pmd 193 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 6 A sala mágica de meu pai se desfez no tempo, que é, como diz Wystan Hugh Auden, sempre o culpado. Conservei alguns dos seus objetos, outros fui amealhando ao longo dos anos. Agora estou aqui, em minha própria sala mágica, de que alguns se queixam por causa do mofo, da poeira e dos ácaros, que não sei se existem e se existirem também são mofo, poeira e ácaros mágicos. Sinto-me melhor aqui do que em qualquer lugar. Meu pai certamente se sentia ainda melhor em sua sala prodigiosa, pois não lhe faltava pedaço nenhum da alma e só precisava escrever as peças jurídicas necessárias ao nosso sustento. Quanto a mim, estão vendo, continuo tateando na névoa. 194 Revista ALB 50_finalizada.pmd 194 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 7 Continuo, continuo. Assim creio que será o tempo que ainda me resta. Não se trata de resolução, mas de condição. Que não desejo a ninguém, porém não preferiria outra qualquer. Olho em torno, nas estantes, os velhos e novos rostos amigos, densos de sabedoria, aventuras, dúvidas, angústia, revolta, nostalgia, esperança, paixão, lirismo. Felicidade também, para quem sabe reconhecê-la. Como eu, que tenho tantas limitações, materiais e de espírito, e tanto me preocupo com família e amigos, e trago muitas perdas e perenes saudades e chagas de injustiças e às vezes não sou senão um vale de lágrimas, mesmo quando elas não me chegam aos olhos. 195 Revista ALB 50_finalizada.pmd 195 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 8 Sim, aqui, entre as paredes forradas por milhares de objetos inesgotáveis em maravilhas e espantos, reconheço que sou feliz. Creio mesmo que sempre fui feliz, inclusive nos momentos em que me sentia e me dizia infeliz. E, nesta sala, agora, escrevendo não sei o quê, nem para quê, sem porto de origem ou de destino, sinto-me plenamente feliz, como feliz também quando, daqui a pouco, sair para janeiro, que, além da varanda, sonha coqueiros à brisa e mar e céu azuis. Ruy Espinheira Filho é escritor, jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia, é autor de dezenas de livros de poesia, ficção e ensaios, tendo recebido diversos prêmios nacionais. Desde 2000 ocupa a Cadeira nº 17 da ALB. 196 Revista ALB 50_finalizada.pmd 196 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 CINCO POEMAS AUTOBIOGRÁFICOS Fernando da Rocha Peres DECISÃO Se a Bíblia tudo diz, contém, prescreve, explica, redime, salva, os poetas são uns toleirões, sentimentais e estetas. Assim sendo versejo! 2011, maio Salvadolores 197 Revista ALB 50_finalizada.pmd 197 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 CRIAÇÃO O verso é branco porque é aberto e contém não contendo a forma sem imposturas. Whitman ensinou com seus berros, janelas abertas, que a semente e o sêmen soltam a vida por aí, ao vento. Como é difícil versejar... Como é difícil criar, versos brancos e crianças. 2011, maio Salvadolores 198 Revista ALB 50_finalizada.pmd 198 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 TRAPOS Não quero correntes, e sim horizontes. Não quero cadeados, e sim descampados. Não quero gaiolas, e sim gaivotas. O não querer é assim, um contraste de palavras, de sentimentos, escamas e lavras. E o querer, como é? Tudo que levo no bolso, na mão e no coração, plenos ou vazios, e está nos horizontes, nos descampados da vida e nas asas das gaivotas: o infinito, o salto, o voo, o sonho, rondas que entontecem gentes, e fazem dos poetas trapos. 2011, maio Salvadolores 199 Revista ALB 50_finalizada.pmd 199 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 LAUREATE Não sou estúpido pois leio a poesia dos outros, e escrevo aos domingos os versos da semana, assim como vou ao supermercado: GOD SALE THE POET. GUDEIRO Quando menino jogava bolinha de gude no quintal. Um velho peru arrastando as asas gostava de ciscá-las: viciado em berlindes tecnocoloridas, tinha bom gosto e preferia as americanas. Um dia o peru gudeiro ganhou os aplausos no Natal dos Peres. Fernando da Rocha Peres é escritor, historiador e professor da Universidade Federal da Bahia; é autor de dezenas de livros de poesia e ensaios. Desde 1988 ocupa a Cadeira nº 25 da ALB. 200 Revista ALB 50_finalizada.pmd 200 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 ROMANCE DA VOLTA DE ULISSES Myriam Fraga Quando Ulisses regressou Eu estava tão distraída Em minha tapeçaria Que a princípio não entendi Porque o cachorro gania. Foi um antigo serviçal Quem me alertou os sentidos: – “Senhora, por um acaso Não vedes vosso marido?” Voltei-me, desnorteada, À procura de um prodígio, Mas o homem que ali estava Não me era conhecido. O tempo que tudo vence Também o tinha vencido, Não encontrei nem a sombra Daquele amante perdido... Onde o porte de guerreiro Com seu olhar atrevido? Onde estava o navegante De mundos desconhecidos? 201 Revista ALB 50_finalizada.pmd 201 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Os dez anos de tormenta Na incerteza dos perigos, Ofuscaram por completo O brilho dos olhos vivos E a barba que emoldurava Seu belo rosto curtido Era agora um pêlo crespo Falhado e descolorido. Os braços já não curvavam Com a força de antigamente O mesmo arco potente Com que enfrentava o inimigo. Porém o que me tocava, O que mais me compungia, Era saber que era outro O homem por quem morria, Esperando a vida inteira Enquanto um pano tecia, Pensando em seu beijo quente, No abraço que me envolvia. Por quem chorava de noite Na cama em que não dormia, Por quem tanto me guardara Dos outros que me queriam. 202 Revista ALB 50_finalizada.pmd 202 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Com o coração apertado, Lembrei da fala macia Sussurrando em meu ouvido Palavras quase esquecidas. Lembrei da paixão ardente, Do beijo da despedida De um homem tão diferente Daquele que agora vinha, Peregrino de passagem Que em busca de ceia e pouso Em minha porta batia. E vi que dos anos todos, Quando chorava e tecia, Só ficara o sentimento De saber que o mundo gira, Sem descanso e sem medida E que nada mais restara Daquela espera sofrida, Além de um velho sudário Tecido com a própria vida. Mar Grande, 02-02-2010. __________ Myriam Fraga é administradora cultural, Diretora da Fundação Casa de Jorge Amado; é poeta, ensaísta e ficcionista, autora de diversos livros, como Poesia Reunida (2008). Desde 1985 ocupa a Cadeira nº 13 da ALB. 203 Revista ALB 50_finalizada.pmd 203 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 POEMAS Cyro de Mattos DEVASTAÇÃO I Vem das cinzas Essa flor sonora Que a agonia gera. Horas de amor, Anos de chuva, Minúsculos dramas. A fome persistente De tal sorte escoa O instante de terror. Escuta: o riso insano Cobre os tocos, Penas verdes e azuis Da ópera que ecoa Sem fragrâncias. 204 Revista ALB 50_finalizada.pmd 204 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 II Pia no mato neste verão Chamando o macho Ou por estar em extinção? Quem tanto amor viveu Recua sem as flores Onde tomba a aurora. A vida estava aqui e ali, O rio sem morrer de sede, A terra debaixo da nuvem.. Vento que sopra sombras É apenas uma forma Da arma do crime. Verso do bicho único Virando fera do nada, Sofredor de um mal Que nele caminha soberbo. De mais vítimas soubesse Para soterrar os verdes e azuis Até o último gemido 205 Revista ALB 50_finalizada.pmd 205 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O COMUNICADOR Sedenta e faminta a tua alma Das amargas que eleges como facas. Sanha em que lateja teu ciúme, A inveja do poeta e suas vitórias. Prazer de ferir o teu teatro Onde cães ladram raivosos. O mundo desumano te fascina Embora exista a flor até no pântano. Há o som da foto três por quatro, A arenga nessa baba enfadonha. Penduricalhos: óculos e binóculos Enfeitam teus clichês na rima tola. Nessa ferrenha disciplina diária Verdades essenciais não escutas. No próspero comércio do poder A falsa glória reserva tua cota. Barras de ouro ou em sabão Na miopia da leitura frouxa Do que aconteceu e acontece 206 Revista ALB 50_finalizada.pmd 206 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 – De que lado não importa. Assim o sol com seu cristal Não risca as estações generosas Que ele põe nos seres e coisas Quando colhe brisas e chuvas. A lucidez dos puros sentimentos. A beleza que renegas da vida Tece em mim mesmo a cada dia Os fios eternos do sonho Entre o luar e a folhagem. Embalam-me com a aragem Dos jardins que fecundam formas. Não demora o tempo a cobrar-te Isso em que outrora escrevias. Vestido de nadas no leito solitário Não deixa dúvidas teu oco resumo. Justo tributo em metais de silêncio Sem o provinciano tom diabólico. __________ Cyro de Mattos é Bacharel em Direito, poeta e ficcionista, autor de diversos livros, alguns dos quais premiados nacionalmente. Tem textos traduzidos no exterior e recebeu, recentemente, um prêmio na Itália.É membro correspondente da ALB. 207 Revista ALB 50_finalizada.pmd 207 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 POEMAS Gláucia Lemos INVENTÁRIO Eu só tenho de meu estes pés machucados marcados pelo chão destes caminhos. Pés dos quais ninguém vê gotejando o sangue dos sozinhos. O que tenho de meu são estas mãos que há tanto tempo mourejam e mourejam e me enxugam o suor do meu rosto. Mãos que doem sob os calos da empreitada, e gemem da geada do abandono. Eu só tenho aqui dentro este vazio, E esta vontade de entender a vida traiçoeira, a escorrer-se nos suores destes pés e destas mãos todos os dias. 208 Revista ALB 50_finalizada.pmd 208 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O SONETO DOS IRREDIMIDOS Guardarás a palavra, e da palavra o segredo que eu nunca te direi saber. Como em nós próprios se guardava o mal que me causaste e eu te causei. Fui teus olhos, tuas mãos, e a própria clava fui na tua luta. Escravo foste e rei no meu destino. Me amaste o que restava do pouco que eu quis ser, mas ser não sei. Fica de nós, legado de dois loucos, dos que se amaram como se amam poucos, dos que tudo se deram sem ter nada. A nós, por pena, cabe uma alma exangue. Sentirás chagas no teu ombro em sangue, da cruz que no meu ombro é carregada. 209 Revista ALB 50_finalizada.pmd 209 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 SONETO DO ENVOLVIMENTO Aonde me levam águas deste rio com a insignificância de uma folha, não sei como parar, não tenho escolha, deslizo em seixoa e húmus. Sol ou frio. Ora, numa vetigem rodopio indo à flor da corrente, ora à bolha da água batendo em pedras. Ora me olha a me encantar, o seu perfil esguio. Perderam-se os meus pés por estas águas. Minha sorte não sei. Mas sei que trago a ansiedade de ainda prosseguir. Por isso me pergunto, vez em quando, se é mesmo o rio que me está levando ou se sou eu que estou querendo ir. 210 Revista ALB 50_finalizada.pmd 210 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 SONETO SEM OFERTÓRIO A quem escrevo quando escrevo à toa se mãos não tenho a grafar destinos? Se os versos rolam como rolam brumas na turva espuma do apagar das noites. Se os versos cantam como cantam dores se são pedaços dos espaços mortos, a quem me entrego nas palavras soltas qual folhas rotas na voragem fosca? Se os versos choram como choram rezas se nada prezas dos perdidos beijos a quem os venho ventilando ao vento? Se não me perco sob as coisas torpes se não me elevo sobre as coisas santas, a quem eu canto quando escrevo à toa? 211 Revista ALB 50_finalizada.pmd 211 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 ÚLTIMO VERÃO Quando ele chegou era verão. Havia galos e sementes nos quintais. Ele habitou as salas e as janelas, o panorama azul aberto à serra, os cheiros de café e os meus cristais. As goiabas já amadureciam. Ao vento os meus lençóis embandeiravam avisos de chegada. Eu acendia as lamparinas frias, porque ao fim da tarde ensombrecia, até que despertasse a madrugada. Quando a noite acabou, chegara o inverno. A densa manta sufocava a luz que, engastada no céu, amortecia. Ele montou no seu selim ligeiro, e aquelas marcas dos cascos no terreiro foi tudo o que ficou daquele dia. Nunca mais foi verão naquela casa, nem nas janelas, nem nos meus beirais. Nem galos, nem sementes nos quintais. . 212 Revista ALB 50_finalizada.pmd 212 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 VIAGEM “Perdido em ti, jamais dou trégua a mim.” Luis Antônio Cajazeira Ramos Escondo o que me dizem meus silêncios. Dentro em mim mesma oculto os meus pavores. Nunca sei ler no turvo que se estende no não saber do que não sei de amores. Navego há muito tempo em noite escura. E a aventurar a rota das estrelas me desventuro em trágica aventura de solidões antigas e procelas. Resta tão pouco em meu batel... E é noite. Ficou tão nada em sobra dos açoites, que atracar talvez fosse a paz dos céus. Mas se estendo meus braços do rochedo ao qual me agarro, sei que sinto medo de não saber como se diz adeus. __________ Gláucia Lemos é bacharel em Direito, crítica de arte, poeta, contista e romancista; é autora de mais de 30 livros, com vários prêmios conquistados.Desde 2010 ocupa a Cadeira nº 14 da ALB. 213 Revista ALB 50_finalizada.pmd 213 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 POEMAS Maria Lúcia Martins UM PONTO Um ponto dentro de nós. Só isto: um ponto. O ponto, uma posição e nenhuma dimensão. Para além de existir dentro de nós. Um ponto. A espera de ser tocado a cada vez que re-começamos outro intervalo infinito de nossa vida finita. 214 Revista ALB 50_finalizada.pmd 214 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 DIAMANTE NÃO VIRA ROSA I Sob teus pés sussurra seco o mar de folhas de bom outono, vermelho roxo, abóbora, sangue e verde mosto à cor do vento. Da terra escorre chuva deitada entre folhagens ao podre húmus. E as samaúmas de vida imensa prenham nodosas mil sacupenas. Assim me atenho. Em nada penso pensa-me o nada: árvore ou alma? 215 Revista ALB 50_finalizada.pmd 215 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 II Do livro de lenho claro, salmos de saltimbancos nas vozes de goliardos vai procissão de cegos desejo des/incarnado. Sonho florado, espinhos furando o umbigo da alma. Roca (agulha de estanho) fios fúxia, manta acre, enxuga o leite e o sangue. Matéria é nada e é tudo. Minhoca e minério se atraem vingam sémem, fruto, malva. Mas diamante não vira rosa. Nem o espinho, diamante. Os nervos de um corpo inteiro não duram o osso de um dedo. A idéia (invenção de uma máquina, ou o traço de mais pura graça) não compra uma grama de ouro. 216 Revista ALB 50_finalizada.pmd 216 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 III Lembrar viaja abismos primevos e imagens reais rugem em silêncio. Aos olhos, tuas extremas cenas. Cravado (caprichos do cérebro) o trauma cala no corpo. Lembrar acende mil células do corpo, intensa viagem DOR que te muda em algoz. Tempo: memória só-negada o trauma fala no corpo. Lembrar. Descidas as pálpebras à luz da manhã escancarada às vezes, a poesia passa; Passa e fecunda o poema de ressussitar a alma. Às vezes. Às vezes. Rio, 9 de setembro de 2010. 217 Revista ALB 50_finalizada.pmd 217 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 ALABÊ Alabê é o cuidador. Sob atabaque e agogô, e o improviso da dança, nasce a saga sonora. Alabê, docemente, leva a moça-em-transe, negra de espáduas largas, para a beira do precipício. “Toda beleza é sozinha: (explica alabé cuidador) cruel. Sabedora da queda, nenhuma tristeza ou dor, nenhum toque, nem palavra, faz mais leve a sua sina. Destino veio da névoa, lá dos altos da montanha. Ninguém. Nem a sombra acompanha a moça na queda”. __________ Maria Lúcia Martins é Licenciada em Filosofia (Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 1976), especialista em Educação Matemática e Psicopedagogia Clínica e Institucional; é autora de doze livros de poesia, de ensaio e de ficção. 218 Revista ALB 50_finalizada.pmd 218 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 TRÊS BAILARINAS Alexandre Bonafim I BAILARINA MARÍTIMA a Sophia de Mello Breyner Andresen Os búzios ornam teus cabelos, onde adormecem as tempestades. Os ventos, as dunas, as praias são a medida de tuas mãos, o acorde de teus pulsos. Danças ausente de corpo, despida de gestos. Danças em essência apenas, em pureza plena. E no vidro do ar riscas a iluminura dos relâmpagos, o arabesco do espanto. 219 Revista ALB 50_finalizada.pmd 219 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Os búzios guardam tuas vazantes, tuas procelas: mar contido na enchente de teus poros. Os corais arrebentam-se em tuas ondas, em tuas vestes de alga e espuma. E bailas esculpida pelo acaso, desenhada pelos desastres. Espiral de maresia, tropel de vento, bailas em carne viva, em pulsação aberta. Bailas no crepitar da febre, no redemoinho do êxtase. Tua maré cheia, tua arquitetura de sal desfazem-se em procelas, em vagas de crescente lua. E cortas o destino, a imprecisão das horas, feres a incerteza, o mistério, e arrancas da morte o coral de espuma a lhe cingir o rosto: estigma de todos naufrágios. 220 Revista ALB 50_finalizada.pmd 220 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 II ISADORA DUNCAN Acariciando a pele do planeta com os pés orvalhados pela dança, a poeta dos movimentos arranca de si o perfume dos vendavais. Frágil gesto imortal tecendo terra e céu no seio da vida. Bailam luzes, alucinam-se músicas, mãe de toda natureza sua dança transcendental. Sentimento da bruma desfeita em alma. Lógica do corpo construindo o ar. III RILKE E A BAILADORA ANDALUSA No meio da noite, nos braços da embriaguez, contemplas essa bailadora de ardentes constelações, de mil gestos como pássaros apunhalados pelo sol, pela vertigem do vinho. Esfinge de desertos sedentos de luz, pergaminho de rubis em vivo magma, somente tal dádiva pode incendiar-te 221 Revista ALB 50_finalizada.pmd 221 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 na plenitude do teu ser; somente essa terrível beleza sabe queimar as tuas feridas, o teu ser anterior ao nascimento, contemporâneo da eterna morte. Rútilo em absoluto movimento, esse rochedo evola-se em cristalina dança, em vertiginoso frêmito: asa de uma suave música a incinerar-te na agudeza do êxtase, na beleza dos desastres. O rosto da bailadora arde o teu olhar em viva labareda, em círculos de um fogo concêntrico, infinito vórtice em incêndios múltiplos. Dessa chama ressuscitas, nela te inscreves, fazes de tua carne o bailado das flamas, o frêmito das centelhas. Desse sol insurges, a ele consagras tua frágil humanidade, essa invencível muralha, serena cordilheira. Dessa queimadura fazes a tua sede, as brasas de latejante existência. Longamente fitas o estertor dessa face, desse sorriso a pulsar os relâmpagos... Também teu rosto torna-se fogo, cântico, fuga de violinos em fúria, sopro de sementes em louvor. Tão intimamente abraças esse vício, tão completamente respiras a alquimia dessa febre, que de tuas entranhas faz-se a fome de um Deus selvagem. __________ Alexandre Bonafim nasceu em Belo Horizonte. Poeta e ficcionista, publicou os seguintes livros: Biografia do deserto, A outra margem do tempo, Sagração das despedidas e Sob o silêncio do anjo. Atualmente é doutorando em literatura portuguesa pela USP e professor efetivo de literaturas de portuguesa da UEG. 222 Revista ALB 50_finalizada.pmd 222 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 POEMAS INÉDITOS María Pugliese I el olfato ondula entre los vestidos que conservan la fragua de los aromas íntimos y me traiciona el sabor del café oscila por el borde de la taza y refiere a los sellos de la boca sobre el esternón y me traiciona el discurso de un andar constante bajo sauces sombreados evoca pasillos maullidos vidrios rotos escritos llantos desesperos vanidades y me traiciona 223 Revista ALB 50_finalizada.pmd 223 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 el erizo cautivo se resiente se niega al alimento se encrespa y se contrae cuando el único peligro es la huída cuando la única certeza es la ansiedad y me traiciona la estela enaltece con ráfagas aristas que devuelve el sueño: mejillas en roce cinturas trenzadas piernas en arco ensalmos placidez y me traiciona son una niebla espesa que transmuta en desprecio cualquier rastro de amor 224 Revista ALB 50_finalizada.pmd 224 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 II señales imperfectas atraviesan un crisol de sonidos recurrentes se combinan y alternan recepción-emisión con dádivas del pretérito en presentes con cláusulas de impertinencia un idioma sin resonancias vigas pacientes sobre arena interrogan persuaden resignifican lo que avanza y arrasa sin piedad III una morada en ruinas flores de paraíso en cementerio lloviznan uno a uno sonidos recurrentes ni se oye llorar 225 Revista ALB 50_finalizada.pmd 225 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 IV desde aguas turbias vengo a brazo partido desde la hondura de lo inevitable retuve entre los labios pétalos de amapolas que ahora se desprenden en breteles de aromas sobre las simas del perineo alterné los expiros con desechos y lodo le di impulso a los pasos con insignes evocaciones de la palabra suelo asilo recinto demoré los latidos profané del aire del sopor sobre aguas turbias los camalotes mecen una presencia inalterable: de pie de espaldas sin mirar sin oír sin pronunciar no quiero 226 Revista ALB 50_finalizada.pmd 226 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 V no me niegues no te escondas de mí que aniden en su bretel de aromas que resistan ante los gestos sumisos de las brisas que bajen por la ribera de los juncos no me niegues no te escondas de mí que ondulen sobre aguas turbias que perturben con sus tramas a los engaños y a las mentiras y a todo lo fingido sepultado los ojos 227 Revista ALB 50_finalizada.pmd 227 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 sus ojos digan me digan los ojos mis ojos digan le digan pero no me niegues no te escondas de mí VI nunca nadie nada detrás 228 Revista ALB 50_finalizada.pmd 228 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 VII en punto muerto los pájaros advierten el fin de la tormenta los soplos arrasaron con granizos la debilidad de las hojas de las ramas quebradas humedad sobre una sed estéril se anuncian adioses en el cuenco de los desperdicios donde convergen senderos anudados sin respiros sin salidas __________ María Pugliese é natural de Buenos Aires, é poeta, ensaísta e especialista em educação infantil; é professora da Universidad Nacional de Luján, na Argentina. Tem vários livros de poesia publicados, como Voces como furias (1996) e recebeu importantes prêmios em seu país. 229 Revista ALB 50_finalizada.pmd 229 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 230 Revista ALB 50_finalizada.pmd 230 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 FICÇÃO 231 Revista ALB 50_finalizada.pmd 231 29/02/2012, 19:52 Revista ALB 50_finalizada.pmd 232 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 [Saibam todos que um jovem e maligno clone de Charles Starrett, de camisa preta, botões de madrepérola e dois revólveres no cinto, cavalgou por estradas ermas e agitou arruados no sul da Bahia] Durango Kid Hélio Pólvora Pois é como lhe digo, começou ele. Antes, tirou do bolso, com extremo vagar, um pequeno monte compacto de mortalhas. Destacou uma, guardou o bloco e olhou o horizonte. Não tinha pressa. Para que pressa? A tarde mal começava a quebrar-se para a banda larga da noite e no céu corriam nuvens. Céu destampado, ainda limpo, tão claro e tão puro no seu fulgor que ao vê-lo ninguém pensaria na treva sempre à espreita por trás da luz. Porque assim é, assim será. A treva. Lugares pequenos, você sabe, você viu. Muitas vezes apenas uma rua, casas dos dois lados, agarradas, que se escoram para não cair. Arruados é como chamam. Durango, no desvario dos seus vinte e poucos anos, assombrava lugarejos adormentados e renovava o estoque dos prostíbulos. Enquanto isso, em Itabuna, o coronel seu pai, metido num terno de brim quadriculado, o paletó mal sobrando para se fechar no ventre e mal atingindo a cintura, passeava nas calçadas, de mãos trançadas nas costas – aquela cidade que ele, quando menino, ajudara a fundar. O olhar se dirigia instintivamente para os armazéns que cheiravam, principalmente no fim das tardes e durante as noites, que é quando 233 Revista ALB 50_finalizada.pmd 233 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 os cheiros bastardos das ruas se dissipam para que predomine o cheiro penetrante, doce e amargo, mistura de suor e lágrimas – o cheiro balsâmico do cacau, que está em nós, perfume dos nossos corpos, incenso de almas. Pois o coronel tinha naqueles armazéns pilhas de cacau seco, montes escorregadios de lisas amêndoas que desmoronavam a qualquer sopro ou movimento. Faz uma pausa (este aqui, não me refiro ao coronel) e me olha. Gestos parados, ele era então, no átimo daquele segundo, um vulto erigido no alpendre, o esboço de um corpo de barro que o sol enfraquecido ainda assim doura e cresta. A mão esquerda com a mortalha – uma lâmina de papel pardo – e a outra perto do bolso. Ia sacar a quicé, eu sabia. Nas matinês de sábado e domingo, ele prosseguiu, o melhor do programa era o episódio do seriado em que heróis justiceiros atiçavam a nossa imaginação. A gente queria ser como eles, agir que nem eles, carregar dois revólveres polidos no cinturão grosso que era também depósito de balas, correr em cavalos velozes – cavalos ensinados que socorriam os cavaleiros nas armadilhas. O cavalo do rancheiro solitário é branco e se chama Silver. Empina as patas e relincha. O cavaleiro não precisa bater-lhe com o látego; basta saltar-lhe no lombo e gritar: “Hi-Yo, Silver!” E logo ele dispara, é um dardo a varar vales e montanhas áridos do Texas, nos idos de 1867. Silver pressente a proximidade de bandidos e relincha o aviso de cautela. Investe sobre os vilões com as patas no ar e as crinas eriçadas. É participativo, é companheiro, é fiel. Está sempre encilhado e pronto, no lugar certo, para que o cavaleiro mascarado salte de telhados diretamente na sela, e antes de assentar o fundilho já esteja em disparada. Já imaginou um cavalo desses ao serviço da nossa polícia metropolitana? Com a quicé na mão, ele ri – um riso grosso, estrangulado como certas águas represadas em ribeiros, e começa a alisar a mortalha. De um lado e de outro, como se estivesse a lavrar. A mortalha parece esticar-se. Eu nada digo – e talvez por isso ele me olhe de viés, ressentido. 234 Revista ALB 50_finalizada.pmd 234 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Você se lembra, era do grupo das matinês – prossegue, agora com certa má vontade. Acompanhou conosco o seriado O Guarda Vingador, que em inglês se chamava The Lone Ranger, era da Republic, ano de 1938, estrelado por Lee Powell, Hal Taliaferro e o chefe Thundercloud, que a gente chamava de Índio, ou de Tonto – o mesmo Tonto com a mesma roupa de pele de corça, adornada de tiras nas mangas, e a mesma lealdade firme que dedicaria adiante a outro mascarado, o Zorro, El Zorro, tipo de fingido herói afrescalhado que as ansiosas mocinhas do Oeste repudiavam. Eu resolvo espevitar o fogo da conversa, do contrário ele morre sem as lambidas de súbitas labaredas vorazes. Empurro um tição ainda esbraseado: e Durango? Durango Kid? Era mais moço que nós, ele diz. Começou a cavalgar com o guarda vingador e depois pulou na sela de Buck Jones, Ken Maynard, Bill Elliott, Charles Starrett. Gostou deste, que personificava o Durango Kid, e apegou-se. Acho que a camisa preta com botões de madrepérola, que brilhavam, o atraiu mais. Os revólveres de um branco metálico ressaltavam do cinturãocartucheira cartucheira apertado nos quadris. O chapéu curvava as abas de maneira correta e elegante. Durango falava pouco; suas mensagens eram expedidas em forma de balas e socos. E disparava pelas distâncias do set de filmagem, sempre a passar pelo mesmo rochedo, a mesma árvore retorcida, sempre a se arriscar no mesmo desfiladeiro ou na planície pedregosa, ou a espadanar água do mesmo córrego. Vê aqueles montes? Sigo o rumo do seu olhar. Há no fundo do horizonte espinhaços de serras que se sucedem, envoltas na descolorida névoa da distância. É verdade, penso. Distâncias significam chamados. E ai de quem não atendê-los: ficará sob forma de pendência, pelo resto da vida, o caminho que não foi trilhado, a chegada que não se consumou. Vejo que no alpendre o vento brando lança sombras vanguardeiras da tarde. O meu visitante acaba de retirar do bolso uma caixa laqueada em que guarda fumo 235 Revista ALB 50_finalizada.pmd 235 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 de rolo cortado e desfiado. Vai encher a mortalha, depois de dobrála com os destros dedos da mão esquerda. Distâncias, ele confirma – e estende o beiço, como a querer tocá-las. Distâncias. Aqui no sul da Bahia as distâncias se desdobram, parecem virgens, escondem segredos a descobrir sob os panos das névoas ou sob o brilho ofuscante do sol – ou ainda sob o crepe da noite baixa. A Durango entediava decerto o mundo pequeno, na abrangência dos olhos, faltava-lhe paciência para voltar na próxima semana e ver, como diziam os letreiros, que afinal se fizera justiça: havia menos bandidos em assaltos a bancos, trens e carroças, em bravatas nos saloons, em tiroteios nos arruados. Cegos cantavam na feira: Durango é filho de rico, moço muito vaidoso, faz e desfaz alvoroço, assusta mais que bruxedo. No seu cavalo alazão, de arreios prateados, entra em vilas, arruados, é pior do que a peste. Durante imita o enredo de filmes de faroeste. Acompanhamento de viola caipira ou de sanfona, enquanto a cuia adiante, pousada nas pedras do calçamento, espera o surdo choque de moedas ou o pouso de amarfanhadas cédulas de baixo valor. Os dedos diligentes parecem mover-se por conta própria como autômatos, sem o comando da tropa distante dos neurônios, aos poucos espalham na espessura exata o trilho de fumo na mortalha tensa. Um dos dedos, em sutis piparotes, acomoda o fumo na trilha. Sabe de uma coisa? Para mim, Durango tem mais força de presença do que Charles Starrett. É que ele era nosso, sonho nosso, de toda uma geração inflamada pelo imaginário, e talvez prolongamento de cada um de nós. Por isso eu ainda o vejo nas encostas, ladeira abaixo, nas estradas, nos redemoinhos de poeira, ou nas ruas, no estrépito de cascos ferrados que tiram faíscas das pedras. Sempre a caminho. O mito do herói solitário, que precisa estar só para cumprir o fado de justiceiro, que não deve se agarrar a mulher nenhuma e se emascular no carinhoso aconchego da família. O samurai que, depois de pacificar o clã, sangra o último 236 Revista ALB 50_finalizada.pmd 236 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 inimigo, embainha e espada gotejante e, com um alçar de ombro, avança por uma estrada erma. Ignora para onde vai e o que o espera. Ou o guarda vingador que, no último episódio, aquele que perdemos porque naufragou com o Itacaré em 23 de agosto de 1939, na barra de Ilhéus, tira a máscara, descobre um sorridente rosto jovem e parte sem um beijo na possível amada. Encostas, vales, desfiladeiros. Se os bandidos conseguem esconder-se nas calcinadas e abertas paisagens do velho Oeste, imagine aqui, nesta faixa de terra verdejante em que as árvores, de tão centenárias e grossas, oferecem cavernas. E as distâncias. Umas se quebram em sinuosas ondulações para receber os murmúrios vagos do oceano, outras partem de uma cidade para outra cidade, de um arruado para a mata escura e outro arruado; para uma praça, um quiosque no meio da praça, um moirão coletivo em que burros impacientes escavam a terra e fazem lama, mulheres se debruçam em janelas – e ouve-se o seco entrechoque de bolas de bilhar. Cidadezinhas, lugarejos amodorrados dentro da onda de calor e poeira que os caminhões levantam, lugares que se parecem entre si e onde o mesmo guarda de túnica amarela e mãos às costas bate o solado das botinas em calçadas esburacadas e provoca estremecimentos nos jogadores de bilhar. Mergulhados, esses lugarejos, no sonolento pestanejar das tardes, quando até os cães famintos decidem adormecer no fundo de quintais. E onde, de repente, um grito rompe o ventre fechado da mesmice – um grito apenas, veio da mesa de bilhar. Então o guarda leva a mão ao cabo do revólver e um homem aparece logo depois amarrado ao moirão, entre animais escoiceadores. Os mesmos dedos diligentes que regularam o fumo na mortalha conseguem agora o milagre de fechá-la em dois ou três movimentos destros que dispensam ajuda, alheios à central de comando dos movimentos corporais e, assim dizem, também ao fluxo das emoções. O meu narrador olha, então, o cigarro pronto. Basta um gesto para levá-lo à boca, prender uma ponta no cuspo grosso e acendê-lo. Mas ele não o faz. Fica a olhar o cigarro 237 Revista ALB 50_finalizada.pmd 237 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 crioulo, como que fascinado. Talvez acabe de pensar que tirou o cigarro do nada, do não-ser, para que lhe traga felicidade, ainda que breve – e mesmo sem prová-lo, sabe que isso é bom, e que depois de tanto esforço convém descansar e contemplar o que feito está. Lugares, arruados, vilas (ele voltou a falar com aquela certeza de que eu estaria à espera, preso à sua boca, ao que dela sairia, vômito ou bálsamo), cidades que se agitavam, muitos jogadores de bilhar amarrados aos moirões, entre as patas nervosas dos cavalos, quando Durango, todo de preto, botões de madrepérola na camisa, dois revólveres no cinto, esparramou lama no seu cavalo alazão. Saía da penumbra do cinema para repetir nos arruados as cavalgadas da tela, as cenas de mãos ao alto, as brigas em volta do pano verde, os tiros certeiros nas garrafas de aguardente, principalmente os namoros, ele muito teso na sela com enfeites de prata, as moças à janela – moças vestidas de chita que sonhavam com uma casa em cidade maior, saraus dançantes nos clubes, carrinhos cheios de comida nos mercados semanais; moças que povoavam as janelas quando o cavalo de Durango sacudia lama ou levantava poeira nos arruados sul baianos. De quando em quando, uma ou duas, de há muito suspeitadas, eram vistas nos prostíbulos da cidadezinha maior, ainda pálidas e chorosas, braços caídos no regaço, deixando-se apalpar por sujeitos de anel no dedo que enchiam a mesa de cascos de cerveja. Moças que sonhavam com os penteados das artistas de cinema e seguiam, uma que outra, Durango à margem do rio, se despiam e entravam na água aos gritos – e dias depois recebiam caixas de sapatos, cortes de seda, bolsas, frascos de perfume, essas coisas imaginadas à janela em tardes de calmaria, apenas o soldado a bater os tacões na calçada, o moirão ardendo ao sol. Lugares esses que passavam a viver freneticamente quando Durango Kid se dignava concederlhes a sua pessoa, e o soldado segurava, respeitoso, as rédeas do cavalo de cauda trançada. “Gente braba, coronelzinho. Qualquer coisa me chame”. E enquanto Durango, no desvario dos vinte e 238 Revista ALB 50_finalizada.pmd 238 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 poucos anos, assombrava lugarejos pacatos e renovava a lotação dos prostíbulos, o coronel seu pai passeava de mãos trançadas às costas, em passo calmo, pela calçada larga da cidade maior que ele fundara; o olhar detendo-se nas rumas de cacau seco dos armazéns exportadores, que ele era capaz de formar com a produção de uma só fazenda; lembrando-se (assim pensavam os que o viam passar ensimesmado, no ocioso passeio dos fins de tarde-começos de noite) dos bons tempos em que não havia a peste do padre, o juiz safado e o escrivão ganancioso, tempos em que ele mandava soltar o gado na fazenda do vizinho para forçálo a vender terras por qualquer ninharia; tempos heróicos em que jagunços disparavam rifles rolando pelo chão, que era para evitar alvo fácil aos inimigos, e em que o coronel, fumando charuto no alpendre da casa-grande, se divertia com a orquestra de sapos no brejo. Tempos que o padre, o delegado e o escrivão teimavam em civilizar, aqueles poltrões. Restavam agora as caminhadas lentas rente às portas das lojas e dos armazéns de cacau, a comida a pesar-lhe no estômago como grãos de chumbo no bornal – passeios que se detinham, se já era noite feita, numa cadeira à porta do bar, de onde o coronel, o charuto aceso, olhava o mulherio passar de braços nus, de semivelado busto intumescido, umas cachorras. Da cadeira aproximavam-se às vezes sujeitos tímidos, e debruçados sobre o vulto mirrado do coronel espantavam-lhe as cismas, a gaguejar queixas complicadas: quebrou o espelho do bar; atirou na tela de cinema; tirou a menina de casa. Proezas de Durango. Queixas que o coronel seu pai bebia na cadeira do bar, o olhar errante pousado nos rabos gelatinosos das mulheres em desfile, cadelas paridas pela civilização e pela lei. Queixas que ele absorvia e ampliava no seu sonho senil, atribuindo-as a si mesmo, vendo-se mais uma vez no lombo de um cavalo, a comandar avançadas dentro da noite, a tirar sangue de donzelas em pânico. “Bobagens”, ria o coronel. “Mas coronel...” “Bobagens, já disse. Estripulias de menino que ainda não assentou juízo”. E na manhã seguinte, na sala do palacete, 239 Revista ALB 50_finalizada.pmd 239 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 por trás da secretária de jacarandá lavrado, ele girava o corpo e abria o cofre. Contava cédulas de quinhentos mil-réis e estendia o maço com que amortecia a consciência das vítimas de Durango. Almoçava, fazia a sesta e se preparava para o ocioso passeio até a cadeira do bar – mulheres quase nuas a caminhar, outras queixas, a fumaça azulada do charuto apaziguador. O narrador se interrompe para acender o cigarro de palha. Para isso é preciso que eu lhe mande trazer da cozinha uma brasa em colher de sopa. O fumo arde e espalha um doce perfume de láudano. Doravante de cigarro na boca, ele o manterá aceso por obra de ocasionais tragadas, até consumir-se e ser cuspido. E eis que agora as sombras já se estendem no alpendre, avançam sorrateiras para os nossos pés, talvez para ali pousar o focinho de cão amigo. O silêncio me incomoda, acabo por perguntar-lhe se Durango foi afastado pelo coronel seu pai para a capital, se afinal criou juízo e veio a casar e ter filhos e herdar os bens, ou se morreu bobamente de morte morrida. De morte matada, ele responde – e põe o cigarro na boca. É natural. Pense bem, ele não era um justiceiro. Nem de longe lembrava Wyatt Earp, aquele delegado famoso que, depois de pacificar o faroeste americano, morreu de velho, na Califórnia. Afinal, o nosso Durango era apenas um herói de terceiro mundo, reles imitador, mais encrenqueiro e exibicionista do que justiceiro oficializado, mais para o bandalho do que para o sério. Não sei se alguém chorou no seu enterro. Sei tão somente que, no de Wyatt Earp, Tom Mix chorou.”Tom Mix wept”, diz o narrador Robert Mitchum no final de um filme sobre o célebre delegado do Oeste americano. Começa a escurecer. Agora a ponta do cigarro brilha como pequena brasa neste alpendre sem roda de leme no mar de sargaços da noite. Parece colado ao beiço inferior. Estou inquieto – e isso me irrita. “Por que me contou?” Ele chupa ainda o cigarro. E responde, sem alterar a voz: “Setenta anos depois poderemos duvidar da imortalidade da alma, da sobrevida neste planeta. Mas 240 Revista ALB 50_finalizada.pmd 240 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 não devemos guardar pendências de infância. Afinal, o mocinho tira a máscara e beija a mocinha no último episódio de O Guarda Vingador? Eu precisava saber para me acalmar na velhice. E para que você tivesse também a sua velhice calma. Pois saiba agora que ele se desmascara, mas não beija. Comprei o seriado inteiro, a única cópia existente”. Meu visitante se levanta, suspira, põe o chapéu na cabeça, cospe enfim por cima do gradil o toco de cigarro que já lhe queimava o beiço. E parte sem dar boa-noite. É um vulto, talvez um samurai errante por uma estrada erma, agora reduzida a um túnel de sombras. Nela o vulto se desmancha. Hélio Pólvora é jornalista, crítico literário, ensaísta, tradutor e, principalmente, ficcionista; publicou recentemente o romance Inúteis Luas Obscenas (São Paulo: Casarão do Verbo, 2010). Desde 1994 ocupa a Cadeira nº 29 da ALB. 241 Revista ALB 50_finalizada.pmd 241 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 242 Revista ALB 50_finalizada.pmd 242 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Sinhá Quequé Lemina Ubiratan Castro de Araújo Deram-lhe um nome cristão de Guilhermina, mas a língua do Povo da Costa1 só dava pra chamar de Quequé Lemina. Ficou até parecendo um nome nagô2. Depois de muitos anos de idade e de muita caridade que fez para os parentes cativos, passou a ser chamada respeitosamente de Sinhá. Havia um acento agudo que distinguia a cor da criatura. Sinhá so para as brancas. Afinal esta era a corruptela de Senhora, dona proprietária, condição diferente das pretas que eram apenas Sinhá: Sinhá Maria dos Acaçás, Sinhá Pulquéria dos Acarajés, Sinhá Quequé Lemina, do Alívio. Chegou ao Brasil ainda molecona. Os peitinhos mal apontavam. Tinha sido capturada em Jebu3, sua terra africana que nunca mais viu. Foi buscar lenha em uma mata, perto de sua aldeia e foi capturada pelos capitães do mato4. Jogaram-lhe uma rede por cima e pronto. Atravessou o mar oceano e terminou em Saubara5, comprada por um plantador de cana para a função de ama-seca de suas filhas menores. Na senzala passou pelo suplicio de todas as cativas, mas não se viciou na cama dos senhores. Reagiu, esperneou, e finalmente descobriu fazer-se inanimada para não dar nenhum gosto ao seu algoz. Foi considerada de pouca 243 Revista ALB 50_finalizada.pmd 243 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 serventia para a casa grande e foi mandada para o eito, na roça de mandioca. Ali mesmo que ela queria ficar, na lavoura, perto dos seus parentes da Costa d’África. A natureza lhe fez infértil. Uma libertação. Ela foi poupada de dar crias para o cativeiro. Era só coçar o caroço como ela gostava! Não podia ver um macho, principalmente um parente africano, que dava uma coceira... De vez em quando ela fugia para a senzala para vadiar com os parentes. Era uma folia. – Quequé Lemina chegou! Em 1822, durante a guerra dos brasileiros contra os marotos da Bahia6, Quequé Lemina atendeu a convocação patriótica das mulheres de Saubara. Reuniram-se as brancas, mulatas, as pretas forras e as cativas para ajudar as tropas do General Labatut, que estavam acantonadas perto da vila. Os soldados estavam exaustos, de moral baixa e famintos. Decidiram que cada uma levaria uma panela de mingau para o acampamento. Saíram de noite, enroladas em xales, mascaradas como as caretas de carnaval, para não serem reconhecidas. A missão que se impuseram foi alimentar os combatentes e dar um chamego neles, de modo a levantar suas forças morais. Quequé Lemina deitou e rolou. Na noite do mingau ajeitou-se com o destacamento de negros libertos e deu assistência total a todos. O resultado da intervenção patriótica das Caretas do Mingau7 foi espetacular. A tropa partiu no dia seguinte em marcha batida para a Bahia. La juntaram-se ao grosso do Exército de Labatut e deram uma surra nos portugueses na Batalha de Pirajá. Uma das caretas era prima do proprietário de Quequé Lemina. Em reconhecimento pelo seu patriotismo, conseguiu sua carta de alforria. Enfim livre! *** Quequé Lemina foi para Santo Amaro. Na feira, conheceu Antonio, um crioulo8 que veio do Sertão. Ele era raizeiro. Sabia 244 Revista ALB 50_finalizada.pmd 244 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 tudo de plantas medicinais e de plantas para banhos de descarrego. Era um crioulo que conhecia os fundamentos das folhas. Descendia da Antiga nobreza do Reino do Congo. Seu pai, Pedro Manicongo9, tudo lhe ensinara dos segredos das plantas africanas. Já molecão, foi agregado de um andarilho que conhecia tudo sobre plantas do sertão brasileiro, o reputado botânico Antonio Muniz de Souza. Andou com ele nos sertões do Cariri, nos grandes chapadões de Goiás, nas caatingas e nos tabuleiros da Bahia. Aprendeu o que pôde de raízes, de raspas de pau, de folhas medicinais e de venenos de cobra. Acompanhou o seu patrão na Guerra do Madeira10. No quartel de Cangurussu, cuidou dos doentes e tirou muito bicho-de-pé. Ganhou uns cobrinhos e depois da guerra resolveu trabalhar por conta própria. Comprou um pequena tropa de três animais e passou a fazer as suas próprias viagens para o sertão, de onde trazia as suas medicinas para vender, ambulante, nas feiras do Recôncavo da Bahia. Alem das plantas, Tonho fazia sucesso com suas infusões, todas evidentemente medicinais. À boa cachaça de Santo Amaro juntava cambuí, alumã, erva-doce, pau d’arco, jurubeba, milhomem. Vendia garrafas de meladinha-de-parida, especiais para os nascimentos dos crioulinhos. Suas andanças pelo sertão o fizeram um conhecedor das cobras venenosas. Botava cobras inteiras em garrafões de cachaça. Eram jararacas, cascavéis, cobras coral, cainanas e surucucus. Os clientes tomavam grandes goladas destas infusões, na crença que estavam curando o corpo do veneno das respectivas serpentes. Nunca foi provada a eficiência de vacina. Mas também é verdade que ninguém ouviu falar que um freguês de Tonho tenha morrido de picada de cobra! Numa madrugada de segunda-feira, Tonho chegou com seu burro carregado de folhas e de garrafas. Armou sua tendinha. Começou a urubuservar11 o povo que chegava para feira. De repente a sua vista bateu em um vulto que se aproximava. Apurou as vistas e viu um monumento semovente. Uma preta muida, bem feitinha de corpo, grandes olhos redondos quase 245 Revista ALB 50_finalizada.pmd 245 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 esbugalhados, beiços carnudos e bem desenhados e, que bunda! Equilibrava na cabeça um grande balaio cheio de bolas de carimã enroladas na folha de bananeira. Tonho ficou paralisado, como se tivesse sido atingido por uma flecha com veneno de índio. Não trastejou12, partiu para ela e perguntou: – Crioula, cadê seu Homem? – Criola não! Me respeite! Eu sou Nagô-jebú, sou da Costa! – Tu tem senhor? –Tá perguntando porquê? Tá interessado? Deu um largo sorriso, com uma ponta de desafio devolveu: – Tu acha quie home pra mim? – Qué vê, qué vê? Vãobora? Parece que estava combinado. Pularam pra dentro de um caçuá13 vazio, e foi tanto uiuiui, aiaiai, que apareceu um cachaceiro, alferes da Guarda Nacional, armado de uma lambedeira14, que começou a fazer um discurso moralista: – Chicote nesses negros, não respeitam mais as famílias de Santo Amaro! Tonho pulou de dentro do caçuá, todo preto nu, luzidio como uma suçuarana, ainda de pau duro e berrou de raiva: – Nunca viu ninguém fuder não, seu porra? Sinhá Maria Fateira perdeu as estribeiras, partiu para o Alferes e lhe deu uma descompostura: – Se compreenda, homem, ta com inveja do crioulo? Só porque tu não pode mais fazer e sua mulher anda lavando a jega15 como esquadrão de cavalaria? Aquele espetáculo, Às 6 horas da manhã, era uma festa para os feirantes. Todos começaram a rir e deram uma sonora vaia no alferes: – Chifre de ouro! Os dois, Quequé Lemina e Tonho já saíram dali amigados. Juntaram-se na cama e no trabalho, ela nos beijus e ele nas infusões, e foram felizes por mais de dez anos. *** 246 Revista ALB 50_finalizada.pmd 246 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A história do caçúa correu meia Bahia. Espalhou-se a novidade que a infusão de Tonho levantava pau de defunto. Os negócios prosperaram. Durante a semana eles circulavam pelas feiras de Santo Amaro, de Saubara, da Vila de São Francisco e até do povoado de Candeias, passados uns três anos, mudaram-se para Salvador, onde montaram uma barraca de folhas no mercado de São Miguel. A barraca Saubara era muito concorrida. O Povo de Santo ia buscar os aviamentos dos ebós e dos banhos de folha. Os cachaceiros disfarçados iam buscar as infusões sob o pretexto de cuidar da saúde. – Tonho, me dá um alumã que eu estou com dor no figo16 ! – Tonho, me dá um Cambuí que a patroa anda reclamando das minhas forças! Além de aprender tudo de folhas com seu marido, Quequé Lemina desenvolveu o dom de cuidar dos doentes. Tirava bichode-pé, espremia tumores, preparava e aplicava emplastros e chegou mesmo a administrar os famosos clisteres, infusões injetadas pelo rabo dos pacientes para lavar-lhes os intestinos. Cuidava de toda gente, especialmente dos Tios da Costa. Eram todos seus parentes17. Davam pena. Eram homens muito velhos, sem família, estropiados pelo trabalho da escravidão, que viviam em porões escuros nas chamadas lojas. Eram escravos de ganho, organizados em cantos de trabalho18. Depois de velhos sem serventia, ficavam a míngua, sem ter ninguém por si. Muitos aleijados, alguns tinha feridas crônicas, todos padeciam de coceiras, piolhos, chatos e frieiras. Os pés, esse era um grande problema. Pelo estatuto da escravidão tinham que andar descalços. Pisavam em areia, em pedra de ponta, em chão quente do meio-dia. Pés inchados, rachados e feridos, é o que mais se via. Ela fazia tudo para atenuar o sofrimento desses Tios. Lavava, limpava, medicava os ferimentos com ervas e infusões. Ela comprou uma caríssima navalha alemã, com a qual raspava a cabeça dos Tios, para combater os piolhos. De alguns mais velhos chegou mesmo a raspar os pentelhos para debelar a praga dos 247 Revista ALB 50_finalizada.pmd 247 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 chatos19 e dos respectivos esquizustulins20. Jamais cobrou nada aos seus pacientes. Em compensação, nunca faltou em sua casa uma fruta, um legume e um embrulhinho de acarajé, depois das seis da tarde. Era tudo presente do povo agradecido. Pelo seu jeito atencioso e eficaz de tratar os velhos, mereceu o tratamento cerimonioso de Sinha Quequé Lemina, o anjo da guarda dos pretos velhos. Depois da morte de Tonho, bem velhinha, ela continuou sua missão. O pessoal do mercado arranjou uma meninota que a acompanhava em suas visitas, para carregar o mocó de plantas e medicamentos. Um dia de segunda-feira, Sinhá Quequé Lemina foi embora para sua terra africana, Jebu, levada com toda cerimônia por seu Obaluaiê21 querido. NOTAS Povo da Costa – sinônimo de Africano, no século 19, na Bahia. Nagô – Yorubá. 3 Jebu – Antigo reino, na atual Nigéria, tributário do Reino de Oió. 4 Capitães do Mato – caçadores de escravos. 5 Saubara – Antigo distrito de Santo Amaro, hoje município emancipado. 6 Guerra da Independência da Bahia. 1822-1823. 7 Ainda hoje as Caretas do Mingau são relembradas nos festejos cívicos da Independência, no município de Saubara. 8 Crioulo – negro nascido no Brasil 9 Manicongo – denominação da antiga nobreza no Império do Congo. Eram também manicongos os governantes de cada província e de cada reino tributário do Império. 10 Guerra do Madeira – Guerra de Independência da Bahia 11 Urubuservar – observar de longe. 1 2 248 Revista ALB 50_finalizada.pmd 248 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Trastejar - titubear Caçuá – dois grandes cestos de cipó, atrelados um de cada lado de sela de um animal de carga. 14 Lambedeira – punhal longo de dois cortes, com um longo sulco no meio da lâmina para escorrer o sangue da vítima. 15 Lavar a jega – fartar-se, aproveitar bastante. 16 Figo – expressão popular para fígado. 17 Parente – tratamento que dispensavam entre si os africanos na Bahia 18 Escravos de ganho – grupos de carregadores de ganho, escravos, reunido por etnia e comandados por um capitão de canto em um ponto da cidade. Ali se contratavam serviços. 19 Chato – tipo de parasita que habita nos pelos pubianos e nos órgãos genitais. No sentido figurado uma pessoa desagradável e persistente. 20 Esquizustulins – expressão humorística popular – o chato que da na púbis do próprio chato. 21 Obaluaiê – Orixá na tradição dos Yorubás, responsável pelo combate às epidemias e pela atenção dos entes e aos mortos. 12 13 Ubiratan Castro de Araújo é historiador, ensaísta e escritor; é professor de História da Universidade Federal da Bahia, e Diretor Geral da Fundação Pedro Calmon; tem diversos artigos e livros publicados, dentre os quais Histórias de negros (contos, 2.ed. 2009). Desde 2004 ocupa a Cadeira nº 33 da ALB. 249 Revista ALB 50_finalizada.pmd 249 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 250 Revista ALB 50_finalizada.pmd 250 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 As hienas Myriam Fraga A noite em que ouviu a primeira gargalhada pensou que talvez devesse reforçar um pouco mais as janelas. Não que as julgasse particularmente vulneráveis, mas os ferrolhos não eram lá muito resistentes e, depois, nunca se sabe. Durante aqueles anos todos jamais tivera uma preocupação semelhante. Pelo contrário, chegava mesmo a dormir, muitas vezes, de portas e janelas escancaradas deixando que os ventos secos da ilha varressem todos os cômodos da casa, pois nada havia a temer naquele canto esquecido, povoado apenas por gente simples, de índole boa e pacífica. A natureza ali fora tão pródiga que para subsistir não se precisaria mais do que erguer a mão para a árvore mais próxima ou estender as redes na entrada da barra da pequena enseada. A fartura estendia-se aos campos onde os rebanhos pastavam desacompanhados e em cada touceira de arbustos amontoavamse os ninhos de aves sem conta. Nas épocas de colheita, o perfume das frutas era estonteante e muitas vezes se tornava tão enjoativo que era obrigado a mudar 251 Revista ALB 50_finalizada.pmd 251 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 se para o pequeno mirante projetado para servir de depósito e torre de vigia. De lá podia ver a linha de espumas da arrebentação e o ondeado suave das areias da praia limitada por dois grandes blocos de pedras negras que avançavam mar a dentro, como grandes baleias encalhadas. Podia-se também avistar léguas e léguas em torno. Os campos plantados, a represa, as pastagens simetricamente divididas, a estrada de barro encascalhada que, para lá da porteira, fazia a volta por traz das montanhas e terminava por voltar novamente ao ponto de partida em frente ao casarão avarandado. Anos a fio o silêncio e a solidão foram sua melhor companhia. Mas, de uns tempos para cá, tinham começado as gargalhadas e, com elas, uma espécie de inquietação indefinida. Não poderia precisar bem quando. O tempo, naquele lugar, tinha um significado diferente. Não era medido em extensão, mas em intensidade. Assim, poderiam transcorrer vários anos, sem que se notasse sequer a mudança dos meses, mas de repente um único dia parecia querer condensar o peso e a consistência de séculos. Não poderia, também, afirmar se fora no inverno, na primavera ou no verão, mesmo porque não havia como separar as estações. Os dias sucediam-se, ao bel prazer dos elementos, chuvas torrenciais alternando-se com dias ensolarados. Aos mais observadores não passavam despercebidas, no entanto, certas alterações climáticas, pálido reflexo, talvez, do que se passava do outro lado do mar-oceano, no continente oposto, quando uma brisa mais fresca anunciava que em algum lugar estavam chegando as tempestades, ou uma súbita aparição de dezenas de medusas, vindas de longe, trazidas pelas correntes marinhas, anunciava que o outono estaria acontecendo em alguma outra parte. 252 Revista ALB 50_finalizada.pmd 252 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Havia também o cheiro das flores que apareciam boiando sobre as águas e frascos de perfume e sabonetes espalhados na areia, como restos de naufrágio, denunciando os rituais propiciatórios dos pescadores, no verão de outras praias distantes. Mas, ultimamente, as gargalhadas estavam se tornando mais e mais repetidas e, às vezes, o que antes parecia apenas um sussurro ia-se avolumando em choro alto como se uma criança faminta estivesse vagindo em sua porta. Vinham de longe, do que ainda restava de um pedaço de mata primitiva no topo das montanhas. Uma torrente cristalina a escorrer pelas encostas, as gargalhadas eram como água ricocheteando nas pedras e transformando-se num soluço angustiado e assustador nas dobras da noite escura. Pela manhã as flores pisadas e os rastros desencontrados denunciavam que efetivamente alguém estivera ali, rondando, em sua porta. Começara a pensar também nas histórias que o poeta lhe contara naquela noite do banquete, no encerramento de um dos Encontros Literários aos quais, eventualmente, comparecia. A cidade de Lisboa espraiava-se ao pé da encosta e no restaurante envidraçado reunia-se a fina flor da inteligência. O poeta sentiase visivelmente deslocado, suas mãos embaraçavam-se no pratinho de pão, amassavam o guardanapo e perdiam-se na decifração dos copos e dos talheres como se buscassem rastros de cobras nas savanas da África, de onde, aliás, tinha acabado de chegar. O poeta, na verdade, não pertencia às cortes literárias. Tinha sido convidado meio por acaso, para ocupar um lugar vago, para compor a mesa, talvez. Tinha dedos compridos e a pele clara e luminosa como um fruto maduro. Cochichava-se que atuara como guerrilheiro em muitas frentes nacionalistas e o leve odor de sangue que transpirava de suas roupas tornavam-no simplesmente irresistível. Havia também o bigode e os cabelos revoltos a reforçarem-lhe o perfil de aventureiro romântico. 253 Revista ALB 50_finalizada.pmd 253 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Fora naquela noite que ele lhe falara das hienas. De como elas farejavam os feridos e arrastavam-se dias e noites seguindo as caravanas à espera da presa. De como os nativos acendiam fogueiras nos acampamentos e, mesmo assim, podiam-se adivinhar os vultos desengonçados a deslizarem sorrateiros, com as grandes mandíbulas deformadas e os traseiros mirrados, equilibrando-se na ponta das unhas divididas em quatro, enquanto seus olhos demoníacos brilhavam na treva e um odor nauseabundo confirmava-lhes a presença. E de como se acercavam dos despojos abandonados pelas grandes feras saciadas e com os dentes possantes trituravam as ossadas. Em épocas de escassez, fustigadas pela fome, se tornavam mais atrevidas e rondavam as aldeias a soluçar, farejando os cemitérios em busca de alimento. Os cristais e as velas acesas punham reflexos dourados na face translúcida do poeta enquanto suas longas mãos descuidadas tentavam equilibrar grandes nacos de salmão rosado nas pontas do garfo. À sobremesa falaram de vagos projetos literários e de como sentia-se estranho, tendo de viver a portas fechadas, tão acostumado estava à vida de aventuras. Finalmente despediramse, com frases protocolares e acenos corteses, pensando que provavelmente nunca mais se reencontrariam, a não ser em outro seminário ou congresso do mesmo tipo. E, mesmo assim, não seria muito provável, pois não eram estrelas de primeira grandeza, das que costumam ter presença assegurada em tais auditórios. A cada vez que voltava de uma dessas viagens convencia-se de que viver numa ilha como aquela era, realmente, compartilhar do paraíso. A felicidade consistindo na ausência de dor, de desespero, de ansiedade, de expectativas. Mistério e perigo eram palavras destituídas de sentido e só o doce ondear das marés e os ventos que sopravam sem descanso, carregados de areias trazidas do 254 Revista ALB 50_finalizada.pmd 254 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 deserto, faziam-no lembrar-se de que existia, lá fora, um outro mundo e um outro calendário para definir o destino. Mas, aos poucos, muito lentamente, na medida em que os dias pareciam voar, tangidos pela brisa, começara a pressentir alguns sinais de mudança. Primeiro foram os rastros no jardim, as estranhas marcas quadriunguladas. Depois, os pequenos animais dilacerados e os vultos rondando à noite, como cachorros de pelo estriado, os olhos venenosos brilhando no escuro. E foi então que começaram as gargalhadas. Por vários dias, meses talvez, pretendeu ignorá-las, mas elas se tornavam cada vez mais insistentes, cada vez mais próximas, parecendo cercá-lo com uma muralha cascateante e cristalina como vidraças que se partissem emitindo o som de mil gargantas feridas. Noite após noite refugiava-se no mirante querendo fugir daquela orquestra invisível e diabólica até que, aos poucos, finalmente, pareceram acalmar-se. E passaram-se semanas, meses talvez, na mais completa quietude, no mais rigoroso silêncio. Tudo parecia ter voltado à santa paz do princípio quando, uma noite, sonhou com o poeta. Estavam sentados em frente a uma grande mesa de madeira carcomida pelo tempo e repartiam uns restos de comida e algumas pedras cinzentas. Tentavam desesperadamente comunicar-se, mas as palavras escorriam pela garganta como se sugadas por um redemoinho. Acordou banhado em suor e com uma terrível sensação de já ter vivido aquele sonho. Então ouviu o choro da criança. Era um choro fraquinho, quase um soluço, abafado pelo vento que recomeçara a soprar. Espiou pelas venezianas entreabertas, mas não viu nada além das trevas. A criança agora chorava sem parar, um choro angustiado que dilacerava o coração e os sentidos. Quem seria aquela criança? Como fora parar em sua porta? Quem sabe 255 Revista ALB 50_finalizada.pmd 255 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 não fora abandonada e estava ali, com fome e com frio, aguardando apenas ser socorrida? Cheio de curiosidade e compaixão girou a chave no trinco, descerrou o ferrolho e abriu a porta com cuidado. Uma réstia de luar clareava a soleira. Nada, ninguém. Apenas na treva dois pontos fosforescentes como olhos que estivessem a observá-lo. Só quando se curvou para examinar o que pareciam restos de penas espalhadas no caminho, é que se lembrou do que, naquela noite, lhe contara o poeta. Mas então já era tarde. Um cheiro insuportável apagara o doce aroma de jasmins e folhas pisadas e, enquanto nuvens escuras toldavam a luz esbranquiçada da lua, as gargalhadas ressoavam em toda parte, contraponto ao soluçar desesperado de uma criança invisível. As areias moviam-se, ao sopro do vento que descabelava os coqueiros. O alarido se aproximava, cada vez mais desvairado, cada vez mais ululante, até cercá-lo de todo. O pior, no entanto, foi o estalido das mandíbulas, quando os dentes afiados se lhe enterraram na carne. __________ Myriam Fraga é administradora cultural, Diretora da Fundação Casa de Jorge Amado; é poeta, ensaísta e ficcionista, autora de diversos livros, como Poesia Reunida (2008). Desde 1985 ocupa a Cadeira nº 13 da ALB. 256 Revista ALB 50_finalizada.pmd 256 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Ópera em Viena Consuelo Novais Sampaio O maior espetáculo esportivo da terra. Assim foi anunciada a Olimpíada que teria lugar em Munique, setembro de 1972. As quadras esportivas, ginásios, a enorme e bela vila olímpica, causaram admiração a quantos lá estiveram. Eu sempre quis assistir aos jogos olímpicos, mas nunca me havia sido permitido. Quando tomei conhecimento desta, o espetáculo já havia começado. Mas iria assim mesmo. Seria uma fuga de tanta opressão, inclusive de uma ditadura militar que mostrava intenção de ficar. Ninguém saberia de nada, exceto minha mãe que me dera dólares necessários para alguns dias de escapada. Assim, pela primeira vez, voei de Salvador a Viena, breve escala em Zurich, depois, Munique! Sozinha. Sentido de completa liberdade! Grande excitação. Previa uma jornada de grandes atrações. Tudo novo para uma baiana que nunca havia antes pisado no chão da Europa. Voo confortável, aeronave relativamente vazia, transformei três bancos numa bela cama. Dormi e sonhei. Vi-me em Munique, o coração da Baviera, cujas batidas ressoavam no meu peito, embora num estranho compasso ternário que sugeria as valsas de Viena. 257 Revista ALB 50_finalizada.pmd 257 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Ao despertar desse sonho, na breve escala em Zurich, fiquei chocada, como os demais passageiros, quando o comandante informou que o vôo seria redirecionado para Viena, pois havia ocorrido um atentado terrorista na Vila Olímpica. O coração da Baviera sangrava, paralisando aquela que seria a maior Olimpíada de todos os tempos. Ao aterrissar no aeroporto internacional de Viena, fiquei sabendo que a organização palestina Setembro Negro havia invadido a Vila Olímpica e liquidado dois atletas israelitas. Em seguida, da varanda de um dos quartos, exibiram nove reféns. Queriam que Israel imediatamente libertasse 200 árabes que mantinha na prisão. E que não demorassem, avisaram, pois a cada hora transcorrida matariam dois dos reféns. Todo o mundo chorou essa tragédia. Os da minha geração jamais esquecerão aqueles dias sangrentos. Ainda em Zurich, muitos passageiros tomaram direções diferentes. Considerando que o meu sonho poderia ser uma premonição, decidi conhecer Viena palmo a palmo; dançaria ao som dos minuetos de Mozart, das valsas de Strauss! Já me via num daqueles longos e rodados vestidos da época, saia bordada a fios de ouro, salpicada de pedras preciosas; o corpete extremamente justo, ressaltando o pulsar da minha alma. Não me importaria se o salão não estivesse num daqueles magníficos palácios, afinal a maioria havia sido transformada em asilos, abrigando um mar de desajustados, produzidos pela Segunda Guerra Mundial. Não haveria problema, estava pronta para bailar em qualquer lugar, num daqueles amplos salões das casas de chá reservadas a turistas de baixa renda, ou mesmo nos passeios, nas ruas, num barco, descendo o Danúbio... Em pouco tempo, o táxi conduziu-me a um hotel. Será que o motorista pensou que eu era rica? Ao saltar do veículo, olhei para a fachada do prédio e, já no hall, fiquei alarmada com o luxo que me cercava. Tive ímpetos de gritar para o motorista, “espere, espere”. Mas o cansaço não deixara. O chão era de mármore polido, possivelmente de Carrara, pensei; enormes candelabros 258 Revista ALB 50_finalizada.pmd 258 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de cristal, pingentes adornados, iluminavam o grande hall. Rapidamente me registrei e subi apressada para o quarto; não queria ver mais nada. Fechei a porta rápido, como se quisesse impedir-me de fugir. Contudo, logo vi na parede acima de requintada escrivaninha, um belíssimo Gobelin; a cama de dossel poderia ter pertencido a algum nobre falido; os travesseiros enormes, estofados com penas de gansos e cisnes, convidavam ao mergulho. Foi o que fiz, caindo em sono profundo, só acordando com o morno sol da manhã seguinte. Desci para o café matinal, um verdadeiro banquete, ainda que ali faltassem o colorido, a exuberância e flagrância das nossas frutas tropicais. Pobre rica Europa, suspirei. Antes de sair, fui checar o preço da diária. Minhas pernas tremeram, minha mente se turvou, quando constatei que gastaria sessenta dólares por dia. E mais grave, só para dormir, pois o meu plano era palmilhar cada canto da cidade. Tanto para ver... Teria de sair imediatamente daquele hotel. Os meus recursos eram minguados, e já estavam se esvaindo, com o táxi, o café da manhã... Muito gentil o motorista me levou a uma pequena pousada, às margens do Danúbio. Que sorte, pensei. Mas o famoso rio, não tão azul como se propagava, era bastante largo para permitir que nele flutuassem os sonhos dos brasileiros. Malas guardadas, fui andar por Viena, marginando esse rio inspirador. Alegremente, caminhei pelas ruas com passeios adornados de lindas flores coloridas (possivelmente importadas, pois não era Primavera) admirando monumentos, sentindo o peso do passado histórico. Tudo muito limpo e organizado, talvez demasiado “civilizado”, tão distante da minha realidade... Breve lanche, continuei andando. De repente deparei-me com o magnífico prédio da Ópera de Viena. Uma enorme e intrigante fila de jovens circundava-o, como se fora um abraço caloroso, muito íntimo. – O que está havendo? perguntei a uma delas. Eram duas da tarde e um pôster informava que o espetáculo começaria às oito 259 Revista ALB 50_finalizada.pmd 259 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 da noite. Sorrindo, informou-me que esperavam a hora em que começaria a venda de bilhetes para as galerias, pois eram os mais baratos. A ópera daquela noite seria Don Carlo, de Giuseppe Verdi. Eu não poderia perder. Amava Verdi. Na escola aprendera que a sua ópera Nabuco penetrara na alma dos italianos levando-os a cantar e escrever nos muros da cidade os seus versos libertários, que tanto contribuiu para levar o povo a lutar pela independência da Itália: “Oh, mia pátria si bella e perduta ...” Os cantores líricos que interpretariam Don Carlo justificavam a longa espera na fila – o que eu só constataria anos mais tarde. A grande atração era Plácido Domingos que já despontava como um dos maiores e formosos tenores dos nossos tempos. Katia Ricciarelli, beleza física, voz celestial, também brilhava como uma das melhores sopranos do mundo. Interpretaria o papel de Elizabeth, a bem amada do infante Don Carlo. Então, ambos eram para mim ilustres desconhecidos. Embora houvesse aprendido com a minha mãe a apreciar a beleza da ópera – essa harmoniosa junção de grandes manifestações artísticas do homem, drama, música, dança, canto. Os favoritos da minha mãe, contudo, não mais existiam. Patrioticamente, ela escalava a brasileira Bidú Saião, como a maior soprano de todos os tempos, concedendo a Maria Callas um discreto segundo lugar. Despontando entre os tenores do seu coração, estavam Beniamino Gigli e Caruso. Chorou muito quando Caruso, “a mais bela voz de todos os tempos”, foi assassinado pela máfia italiana, simplesmente porque se negara a cumprir uma ordem do gran capo da época. “Não entendiam (comentava revoltada) que a sua garganta estava doente de tanto cantar?” Não lamentou menos quando Gigli morreu em 1957. Durante toda uma semana ouvimos o seu disco, mãos postas como se estivéssemos orando, numa cerimônia religiosa. A hora da comunhão se dava quando, interpretando Pagliacci, Gigli deixava escapar aquela ressoante, amarga e trágica gargalhada, expressando o sofrimento que a traição da bem-amada lhe causava. Nossos olhos enchiam-se de lágrimas. 260 Revista ALB 50_finalizada.pmd 260 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Mas, inexoravelmente, as gerações se sucedem, e ali estava eu frente a cantores líricos dos quais nunca ouvira antes falar. O fato de ver tantos jovens motivados em torno de um espetáculo, dispostos a passaram cinco horas numa fila, despertou-me a curiosidade, e decidi ir à ópera. A fila, como disse, já estava muito longa. A ópera só começaria às oito e eu não tinha tempo a perder. Minhas finanças não permitiam que eu ficasse mais de uma semana em Viena. Ainda havia muitas léguas a percorrer, muito para conhecer. Resolvi aproximar-me da grande fila e abordar uma das adolescentes, como as demais simplesmente vestida, saia e blusa. Mas seus longos cabelos encaracolados chamaram-me a atenção. Expliquei-lhe o meu drama e candidamente pedi: – “Por favor, guarde-me um lugar na fila, prometo voltar logo”. Não se comoveu quando lhe falei do meu problema. Apenas disse “Desculpe, não posso”. Não me afastei. Fiquei ali parada. Haviase criado para mim um impasse. Eu queria assistir à ópera, mas não podia perder cinco horas numa fila. Será que ela não entendia como era difícil vir à Europa? Enquanto mentalmente lamentava a minha situação, ouvi uma voz suave: – “ Mas posso guardar um lugar para você nas galerias.” Não entendi como ela poderia guardar-me um lugar onde não havia lugares marcados. Sem alternativa, concordei e afastei-me, conformada com a minha pouca sorte. Embora ainda estivesse claro, a noite já havia tomava conta da cidade, quando decidi voltar ao Staatsoper. Sem filas, comprei rápido o meu ingresso e guardei-o na bolsa. Vestia longo casaco de inverno bege, bolsa a tiracolo, quando apressada entrei no teatro. Todos já haviam tomado os seus lugares. Meti a mão na bolsa, à procura do meu bilhete. Onde o havia colocado? Acabara de comprá-lo! A minha ansiedade crescia à medida que levantava a cabeça e via que aquele jovem, trajado a libré, continuava à minha frente, aguardando o meu ingresso para conduzir-me às galerias. Nervosamente, remexia a bolsa, virava os bolsos do 261 Revista ALB 50_finalizada.pmd 261 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 casaco e não o encontrava. Num ímpeto, joguei tudo que havia na bolsa no chão, provocando barulho constrangedor, com as batidas dos objetos no mármore reluzente. O jovem olhou para mim, sobrancelhas arqueadas, grave olhar de censura. Mas o bilhete apareceu logo ali, junto aos seus pés. Entreguei-o em suas mãos e ele, garbosamente, conduziu-me até as galerias. Ainda deslumbrada com a beleza daquele teatro – por toda parte iluminado por enormes lustres de cristais; suas escadarias de mármore cobertas de veludo vermelho, corrimões de bronze impecavelmente polidos – tentei encontrar um lugar naquele mundo de jovens já acomodados nos seus assentos De repente, avistei sentada na segunda fileira, aquela que me prometera ajudar. Fez-me discreto sinal com a cabeça e fui ao seu encontro. Vi que havia amarrado um lenço no corrimão da segunda fileira, deste modo marcando o meu lugar. Agradavelmente surpresa, tirei o lenço e o devolvi, agradecendo-lhe. Mal havia me acomodado, as luzes dos imensos lustres de cristal lentamente foram-se amortecendo. Quando a orquestra fez soar os primeiros acordes da introdução, deixou claro que aquela era uma das mais belas óperas de Verdi. As pesadas cortinas de veludo se abriram, fazendo surgir a jovem Elizabeth de Valois, na floresta de Fontainebleau, longe de todos, aguardando o seu amado noivo Don Carlo. Nessa sombria ópera histórica, o gênio musical de Verdi, transcende o de Schiller, autor do poema-tragédia que evoca o nefasto destino desses amantes. A partir do segundo ato, o drama da ópera se desenvolve naquele lúgubre Escorial – imenso palácio-mosteiro que Felipe II mandara construir. Eu já não gostava dele porque, na sua ânsia de dominar a Europa, acreditando ser o escolhido por Deus para combater os protestantes, chegou a dominar o Brasil durante 40 longos anos. E, à medida que a ópera avançava, passei a detestálo por haver roubado a noiva do seu filho. Vencera a guerra contra a França e exigira que do tratado de paz constasse o seu casamento com a nobre francesa, assim agindo, confessou, por “razões de 262 Revista ALB 50_finalizada.pmd 262 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Estado”. Hipócrita! Com essa mesma justificativa esse sinistro personagem já havia matado duas esposas, e a pobre Elizabeth seria a terceira. Além do mais, ele era muito velho, padecia de gota, que com frequência o deixava imobilizado. Centralizador, burocrata empedernido! Como poderia casar com aquela bela francesa? Não via que incorrera em pecado mortal, ao roubá-la do filho, já destinado a com ela se casar? Que paz maldita era essa, que transformava a mulher amada em madrasta, ferindo de morte tão belos amantes? Tanto fez o mórbido monarca que o ultrajado Don Carlo – engrandecido pela límpida voz e beleza física do tenor Plácido Domingos – foi acusado de conspiração, de apoiar os rebeldes flamengos, ansiosos por libertarem-se de Flandres, então parte do império espanhol. Julgado pela Inquisição, foi expatriado. A meu ver, o que salvou Felipe II naquela noite, foi a voz magnífica do garboso barítono búlgaro, Nicholai Ghiaurov. Confesso que senti pena daquele infeliz monarca quando, na solidão do seu austero e frigido gabinete, monasticamente decorado, deixou que a sua alma atormentada extravasasse a desilusão que o aniquilava, numa das mais belas árias da ópera: “Ella giammai m’amo” /seu coração está fechado para mim/ amor por mim não tem/ Ainda vejo seus olhos/ olhando tristes e admirados/ para os meus cabelos grisalhos/ no dia que veio da França para se encontrar comigo/ Não, amor por mim não tem”. Desgraçado Felipe, afundado na sua amarga solidão! Assim morrerá, mesmo depois do quarto casamento. No último ato, o todo poderoso Imperador Carlos V, avô de Don Carlo, manifesta-se através de um frade, que entra no claustro do monastério, acompanhando o Inquisidor e Felipe II. Flagraram um encontro secreto entre Don Carlo e seu amor proibido, junto à tumba do avô. O casamento não havia arrefecido o sentimento que clamava pela união dos amantes. Despediam-se, antes da partida dele para os Paises Baixo; Elizabeth incentivava-o a lutar 263 Revista ALB 50_finalizada.pmd 263 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 pela liberdade daquele povo oprimido. Da tumba, a voz grave do imperador saia possante e estrondosa como um trovão, reverberando nas paredes ricamente trabalhadas do recinto: “a angústia do mortal se prolonga até este claustro/ só o portal do sagrado pode conceder-nos a paz final”. Ao mesmo tempo, o vulto assombrador de Carlos V crescia, atraindo Don Carlo para perto de si – o que significava a morte trágica que esperava o seu neto no exílio a que fora condenado. O espetáculo foi muito mais do que belo. Todos na plateia e nas galerias ficaram imobilizados por um momento, sem moverem um músculo da face, ante a chocante tragédia humana, e o fantástico desempenho dos cantores. Estavam comovidos. Também sem ousar mover-me, vi pelo canto dos olhos, que ao meu lado estava um jovem de rosto pálido, longo e magro, cabelos encaracolados, que mais parecia um anjo descido dos céus. Olhei o meu relógio: passava da meia-noite. A ópera havia durado quatro horas! Comecei a ficar nervosa. Como voltar para o hotel? Estava sozinha em Viena. E se me assaltassem? Me matasse, no escuro da noite? Ninguém iria saber. Prestes a entrar em pânico, e antes que os aplausos entusiasmados rompessem o silêncio da emoção, escrevi no meu libreto, em letras maiúsculas: “CAN YOU TAKE ME TO A TAXI ?” Ainda me valendo da prolongada ovação, pus a minha mensagem, mão trêmula, ante os olhos daquele que eu identificara como meu anjo protetor. Sem se mover, concentrado nos aplausos, fechou os olhos, em sinal de consentimento, e continuou aplaudindo... Depois, gentilmente, sem trocarmos sequer uma palavra, acompanhou-me até um táxi cujo motorista conduziu-me ao hotel, embalando a minha primeira noite em Viena. Agradeci e corri para a porta. Estava fechada. Nervosa, da rua gritei, uma, duas, três vezes: “Please, open this door”. Ninguém me ouvia. O tempo passava e a minha insegurança aumentava. Fiquei desesperada. Apoiei a cabeça nos braços encostados na porta, e comecei a chorar. Pouco tempo depois, ouvi barulho, virei a cabeça e vi três 264 Revista ALB 50_finalizada.pmd 264 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 rapazes alegres, passando pela rua. Pude ver que olhavam para mim, parcamente iluminada pela fraca luz na frente do hotel. Tive medo quando um deles começou a vir em minha direção. Aproximou-se e perguntou o meu nome. Que fazer? O que ele quer? Teria de dizer-lhe o meu nome, pois quem garantiria que ele não iria me matar? Jamais voltaria à minha terra! Contrastando com o meu nervosismo, calmamente ele apertou o botão de uma caixa fixada ao lado da porta e disse o meu nome. Como por encanto, a porta se abriu, sem que ninguém nela houvesse tocado. Passe de mágica? Mistérios de Viena? Não procurei saber. Corri apressada para o meu quarto e tranquei a porta. Essa foi a primeira vez que eu vi um interfone... De volta ao Brasil, compreendi que em Viena, naquele setembro de sonhos e tragédias, o meu destino havia sido traçado. Don Carlo fez de mim uma amante da ópera. Desde aquela noite, passei a colecionar as mais conhecidas óperas, depois, aquelas que remontavam aos séculos XVIII e XVII, chegando a possuir mais de trezentas. Hoje, depois de haver doado a maior parte, guardo apenas as que mais amo, para lembrar-me que neste mundo de tantas misérias, também há belos e inesquecíveis momentos. Todos muito breves... Desde então, não mais perdi uma Olimpíada, embora passasse a assisti-las no aconchego do lar. A ópera entrou definitivamente na minha vida. Foi através dela que, anos depois, encontrei o meu grande amor; tão grande que até hoje me faz sentir a mais feliz dos mortais. Tão imenso e poderoso quanto a vastidão do espaço sideral, que se pôs à minha espera, para em breve realizar a suprema façanha do nosso reencontro. Consuelo Novais Sampaio é historiadora, ensaísta e professora de História da Universidade Federal da Bahia. Foi Diretora do Centro de Memória da Bahia, da Fundação Pedro Calmon; tem diversos artigos e livros publicados, dentre os quais 70 Anos de Lutas e Conquistas: Liga Bahiana Contra o Câncer (2006). Desde 1992 ocupa a Cadeira nº 40 da ALB. 265 Revista ALB 50_finalizada.pmd 265 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 266 Revista ALB 50_finalizada.pmd 266 29/02/2012, 19:52 Discursos Revista ALB 50_finalizada.pmd 267 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 268 Revista ALB 50_finalizada.pmd 268 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Discurso de posse na Academia de Letras da Bahia Paulo Costa Lima Abre-te discurso! De nada nos sonegue. Ouço-te antecipadamente, fornalha de sentidos, bigorna de sonoridades, em busca de método, música, retórica e utopia. Se não queres cavalos alados e musas, manda buscar em Cachoeira o fogo simbólico que nos ilumina a cada 2 de Julho – mais do que passado e alegoria, a esperança de uma sociedade que esteja à altura dos ideais desde lá projetados. E peço-te não estranhares que falo a ti, discurso, enquanto falas a todos. Faço-o em nome da clareza complexa do compor – pois penso em ti como material, mesmo que vivo, como paleta de possibilidades sobre as quais está posto o desafio de encontrar o ambiente de palavras necessário à tecelagem desta noite. “Feliz de quem com cânticos se esconde e julga tê-los em seus próprios bicos, e ao bico alheio em cânticos responde.” (Jorge de Lima) 269 Revista ALB 50_finalizada.pmd 269 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Discurso, ó discurso! Devo tratar-te como música que és? Seguir tua dança? Tu és neguinha? “Um discurso acadêmico. Como perpetrá-lo?”1 Quantas partes, quais os materiais, quais os processos? Lembras-te dos primeiros ensinamentos da invenção contemporânea – “Linguagem usada é linguagem morta”2? Ou, como disse despetaladamente Claude Debussy, abrindo o século: “Esforcei-me bastante para desaprender tudo que me foi ensinado”. “Uma música que seja como os mais belos harmônicos da natureza. Uma música que seja como o som do vento na cordoalha dos navios... Uma música que comece sem começo e termine sem fim... O som do vento numa enorme harpa...” (Vinícius de Morais) Eis aí modelo em miniatura de método e de retórica Desconstruir-te de unidade ou inteireza. Aceitar alegremente o que me ofereces como possibilidade cantante. Celebrar que és intertexto e polifônico – Ramalhete acrisolado e, ao mesmo tempo, conversa sem rodeios3. A pluralidade das vozes como estratégia de tempo e o tempo como estratégia de gozo, como na mandala sonora da música dos pigmeus ou na música do barroco – de Vivaldi e Bach, como totalidade das expectativas, dos sentidos e das relações, espelho dos falantes desejantes. 270 Revista ALB 50_finalizada.pmd 270 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 O tempo moldura, receptáculo, interstício, e principalmente o tecido da própria vivência afetando método, retórica e utopia. Discurso, ó discurso, “o corpo humano não vive fora de sua humanidade de palavra... cada sujeito constituído pelas sonoridades de um Outro que o antecede”4, sendo o tempo projeção desse Outro, uma categoria de suposto saber, sabe quem sou antes de mim, parceiro inalienável da criação, da fantasia e do sonho, de cujo material somos feitos, parceiros do ‘manda gozar’! Carpe Diem: de que importa esse discurso se não aproveitar a vida? Então, que ele saia assim carpejado – ‘eu sou do mundo / eu sou o samba...’. Raio de luz que ilumina os passos de minha vida. Não tem ontem, nem amanhã, porque não declina, não se apaga. Adriano Pondé, em seu discurso de posse, citando John Donne. A polifonia das perspectivas que aqui confluem, A perspectiva das vidas que aqui confluem: • as vozes de todos os acadêmicos da cadeira n. 8, Luis Anselmo da Fonseca (seu fundador), Francisco Peixoto de Magalhães Neto, Adriano Pondé e Ary Guimarães; 271 Revista ALB 50_finalizada.pmd 271 29/02/2012, 19:52 R EVISTA • DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 a voz de seu ilustre patrono Cipriano Barata, projetada como se fosse, e é, o próprio fogo simbólico chegando ao discurso; das Cortes de Lisboa em 1822, até esta noite: Os mulatos, Sr. Presidente, cabras, crioulos, os índios, os mamelucos e mestiços são gentes nossas, são portugueses e cidadãos muito honrados e valorosos... Além disso, temos também os negros da Costa da Mina, Angola, etc. A falta de cuidado nestes artigos pode fazer grande mal, porque toda gente de cor no Brasil clamaria que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto.5 Como entender essa evocação de cabras, crioulos, índios, mamelucos, mestiços, negros da Costa e de Angola, gentes nossas, cidadãos muito honrados e valorosos? É ou não é o espírito e a encarnação prévia do cortejo de 2 de Julho na Bahia – nossa alegoria brotando viva a partir do que foi enunciado naquele momento? É um, é dois, é três É cem, é mil a batucar (Vinicius de Moraes) O respeito e a ousadia – dois parceiros improváveis – tramando outra ordem política e social, pensando nação e cidadania a partir dessa perspectiva inclusiva, que a Europa não estava preparada para ouvir (Já está? Já estamos?), e muito menos Portugal. Canta Cipriano! Há trezentos invernos que os tiranos Da ocidental Europa celerados, Nas três partes do globo empoleirados, De oprimir não cansavam desumanos... 272 Revista ALB 50_finalizada.pmd 272 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 E como requinte de ironia, neste Soneto I, Cipriano brinca com a forma dos Lusíadas, pois nunca lhe faltou tempero. E vai adiante: ...Para mais insultar a Natureza Traficam de comprar e vender gente!!! Mas o grande Brasil, cuja altiveza De tais monstros é ser independente Para sempre vingou tanta fereza Gostaria de focalizar uma modulação sutil que aparece no discurso às Cortes. Ao lembrar que “toda gente de cor no Brasil clamaria que lhes queiram tirar os direitos de cidadãos e de voto”, Cipriano está atribuindo poder criativo a essa população subalternizada6. Uma estratégia de pensar que potencializa o Outro, ao invés de debilitá-lo. E faz isso a partir de uma noção de povo que ainda guarda o frescor da esperança iluminista mais candente. Cipriano expõe, em 1823, sua concepção de Revolução7: Em uma revolução o povo reassume a sua autoridade e os seus Direitos imprescritíveis e destrói o seu Governo, aniquila os Reis, as Leis e tudo velho para criar tudo novo, segundo a sua Soberana Vontade. Obviamente ainda não havia Affonso Romano de Sant’anna lembrando que “o povo é um ovo”, que pode ser coisa viva ou ave torta, dependendo de quem o põe ou quem o gala: Se chamais povo, a marcha regular das armas, os uivos e silvos no esporte popular... então mais amo uma manada de búfalos em Marajó. 273 Revista ALB 50_finalizada.pmd 273 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Também não havia búfalos em Marajó. Mas, ao atribuir aos subalternizados uma postura afir mativa, capaz de autorreconhecer-se como valor diferencial, o discurso de Cipriano Barata emerge como algo que interfere sobre uma secular passividade com relação ao espetáculo civilizado europeu – e antecipa as cordas da lira de um Milton Santos, imaginando a globalização de baixo para cima. Registra o mestre Luis Henrique Dias Tavares em seu precioso ensaio sobre Cipriano: No dia 4 de abril de 1831 na cidade do Salvador, três dias antes do Imperador Pedro I ser deposto no Rio de Janeiro, Cipriano Barata apareceu aos manifestantes ‘vestido de casaca preta de algodão da terra, sapatos de couro de veado, sem tinta, e chapéu de palha, com um ramo de café nas mãos, símbolo da paz’, como ele próprio se descreveu... Que aparição fantástica deve ter sido essa. Uma verdadeira personificação, que como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”, se instala na encruzilhada da construção cultural brasileira, projeta fundamentos que serão imprescindíveis, permanece por quase duzentos anos como traço estruturante. E a consciência, tão baiana, da importância fundamental da performance como escolha política – Cipriano tropicalista? Transpondo a esperança iluminista de nação e de cidadania para o Brasil, Cipriano Barata expõe o desafio da diversidade – mesmo que, em sua forma de pensar, predomine a intenção de superar essa condição pluralista. Ora, diversidade não é coisa estática ou simplesmente pacificadora, não é apenas material sonoro para bordões politicamente corretos; como se a invocação de seu nome fosse uma terapêutica social completa... 274 Revista ALB 50_finalizada.pmd 274 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 O verdadeiro desafio da diversidade é o desafio de potencialização das vozes que a constituem, vozes da alteridade, divisão de poder, e isso cada vez mais se impõe como necessidade vital no cenário contemporâneo, por exemplo, como posição de luta diante de um capitalismo pós-industrial que ameaça toda a diversidade cultural do planeta, em nome de um modelo hegemônico de estética e lucratividade... quase me escapa a expressão ‘estética da lucratividade’ – se é que já não existe! Buscar a construção de políticas públicas em cultura no Brasil não significa impor uma determinada visão de cultura ao conjunto dos cidadãos. É muito mais do que isso: abrir espaço para que a própria noção de cultura se transforme em objeto de re-elaboração permanente, exige flexibilidade com relação aos cânones e atenção diferenciada com relação aos movimentos sociais e identitários. Tudo isso está latente no discurso de Cipriano Barata – basta pensar na tal aparição –, alguém que lutou bravamente por uma Constituição liberal, pela unidade do Império do Brasil, pela abolição gradual do trabalho escravo e por uma industrialização voltada para as reais necessidades, contra o luxo. Seus ideais deságuam na perspectiva estabelecida pela cadeira n. 8. Cipriano Barata traz para a Academia de Letras da Bahia a largueza de sua utopia de nação, e todas as consequências dessa visão para o pensamento cultural. 275 Revista ALB 50_finalizada.pmd 275 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Por exemplo: ao lidar com o desafio de afirmação da nossa identidade política, esbarra necessariamente no delicado equilíbrio entre apropriações externas e legitimações nossas. Traz, em si, a semente daquilo que vai ser classificado mais de um século depois como ‘reversão antropofágica’, no âmbito do mapeamento conceitual do jogo entre dependência e autonomia cultural – a transmutação de passividade em atividade transformadora. Tupi or not tupi that is the question… Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem... Contra todos os importadores de consciência enlatada. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls, diz Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago. Mas, para quem tem olhos de ver, essa atividade transformadora atuou durante séculos por todos os grotões do País, a partir do agenciamento dos ‘de baixo’, costurando imagens, práticas, símbolos. Há uma ilustração inequívoca desse processo – o carro do Caboclo, a nossa alegoria –, um carro de guerra português que tem lança de madeira apontada para um dragão, cocar, muitas penas, armadura de ferro em estilo medieval, baionetas, anjinhos barrocos, placas com nomes de heróis, colares diversos, alforjes, bandeiras, folhas e mais folhas, bilhetes com pedidos pessoais entre muitas outras coisas. Do ponto de vista da formação de intelectuais no Brasil, vale lembrar, com Eneida Leal Cunha (2006), o costumeiro dilema: saber-se nãoeuropeu, saber-se não-índio, compor a própria ascendência. 276 Revista ALB 50_finalizada.pmd 276 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Tal qual Cipriano, vestido de algodão da terra com chapéu de palha e ramo de café na mão, fomos levados a compor nossa identidade. Esse gesto e essa necessidade varrem uma quantidade enorme de feitos, movimentos, linhas de força e estilos “brasileiros”; por exemplo: • “coletando situações do imaginário que desenham uma genealogia da nacionalidade instituída” – Cunha (2006) –, como é o caso de Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro; instituindo critérios para a construção de uma música “autenticamente” brasileira, carregada de ritmos de origem africana; calibrando todas as forças envolvidas – das harmonias à linguagem – fundindo tradições europeias e africanas para a plasmação daquilo que passou a ser identificado como música popular brasileira; ou mesmo criando Academias como esta, a partir do espírito de Arlindo Fragoso e de sua valorização da diferença de opiniões, tomando como referência o modelo francês, mas representando uma afirmação de autonomia para a construção social do mérito. • • • E o mérito é político, projeta a plenos pulmões Boaventura de Souza Santos em sua última visita à Bahia. Curiosamente, essas constatações nos levam diretamente ao discurso de Ary Guimarães, ilustre ocupante desta cadeira, que me antecede pontuando sobre o dever de: ...pronunciar-se diante das instituições e do momento brasileiro. Do destino brasileiro, que é também o destino de cada um de nós, que é também o destino de nossa cultura. De nossa identidade como povo, de nosso papel no grande palco mundial... 277 Revista ALB 50_finalizada.pmd 277 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Estão aí praticamente todas as conexões que haviam sido feitas anteriormente. E, sobretudo, a visão do horizonte mais amplo – “o nosso destino” –, e a vocação de análise crítica que aponta para uma avaliação das estruturas. Aliás, o próprio Ary Guimarães estabelece o paralelo entre ele e Cipriano: Os laços que nos aproximam de Cipriano Barata, entretanto, são mais nítidos: o jornalismo ... e a dedicação à política, ele como ativista, nós como objeto de estudo. A política e o jornalismo como liames entre as duas vidas. A paixão pela construção de cartas constitucionais como caminho de redesenho da sociedade, algo que aparece claramente em Cipriano... Sim, eu vos adoro Instituições santas, mesmo para o bem alheio – governo popular ou representativo, limitação dos poderes do Executivo, liberdade de imprensa, tributação razoável... – enquanto vós não apareceis na nossa Constituição Brasileira... e também em Ary – sua dedicação de vida, sua cátedra – e, aliás, com grande ênfase em seu discurso de posse, pronunciado em 10 de novembro de 1988, logo após a Constituinte, como denúncia e como alerta: O resultado foi uma constituição que querem de toda forma, bloquear. Já a disseram fonte de ingovernabilidade. Querem impedir que vigore para que se mantenha o ‘status quo ante’. O texto é reflexivo, sem dúvida, mas também apaixonado. Não posso deixar de observar que mobiliza o leitor, e, nesse sentido, tem lá os seus traços de ativismo. A constituição como construção inviolável de uma sociedade, e como caminho de enfrentamento das questões estruturais: 278 Revista ALB 50_finalizada.pmd 278 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Esse é o quadro a que chegamos: sem dúvida, a pior crise já vivida em toda a vida do Brasil, fruto de elementos sociais e políticos acumulados, que jamais foram enfrentados. Saímos de vinte anos de uma autocracia que se instalou para tentar a saída permanentemente vencida: a de solucionar a crise estrutural da sociedade e da economia brasileira sem tocar sua estrutura. Ao inquietante exército de famintos mandou-se esperar enquanto o bolo crescia... mas a miséria é que cresceu. O texto é pungente: solucionar a crise estrutural da sociedade sem tocar sua estrutura. A sua análise permanece viva, pulsante, corajosa e desafiadora, denunciando “o imobilismo de nossa estrutura social”. Denunciando que, “toda e qualquer ditadura amesquinha o País”, que “todo autocrata é, no fundo, um incompetente”, “todo golpe uma traição” Amesquinha-nos a constante presença do autoritarismo, a sombra sempre ameaçadora do apelo à força. Então, é desse homem e dessa franqueza que estamos falando. Em seu discurso de recepção, o Mestre Luís Henrique Dias Tavares pontua com precisão exemplar: Faça-se contudo, um aviso. Contido e discreto, V. Exa., não é de polêmicas, mas é firme, seguro, bravo e corajoso...Ninguém se engane, portanto, com o aparente ar de distanciamento de V. Exa... Do quanto tem opiniões firmes, do quanto pode ser corajoso, deu V. Exa. seguidas demonstrações recentemente na admirável série de estudos dedicados á Assembleia Nacional Constituinte – os melhores que a imprensa brasileira publicou... Por vezes V. Exa bordejou a temeridade. Temos assim que há o Ary Guimarães composto, contido, permanentemente discreto, e há o Ary Guimarães que luta e defende princípios... Este, briga. 279 Revista ALB 50_finalizada.pmd 279 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Que belo retrato. E para realçá-lo ainda mais, por contraste de estilo e atmosfera, reverbero aqui a primeira frase do discurso de Posse de Ary: Há sonhos que não se confessam a si mesmos. São talvez, os mais profundos, os que revelam melhor quem os sonha... E por isso mesmo, são guardados de tudo. Principalmente para quem elegeu como norma de vida a suspeita no julgamento próprio. Mudamos de cena: agora estamos tratando da constituição interna – e dessa ponte caprichosa entre olhar interno e externo, entre a coerência e a fantasia. E eis que o nosso personagem reconhece a profundidade da ‘outra cena’ – sonhos que não se confessam a si mesmos –, e adota como norma de vida a suspeita no julgamento próprio, ou seja, a suspensão do ego. Poucos disseram com tanta elegância da honra de pertencer a esta Casa. A ele me associo humildemente. Cipriano Barata e Ary Guimarães são muito diferentes e muito parecidos – talvez devêssemos dizer: diferentes em suas similaridades. Peço agora ao discernimento sutil de Ary Guimarães que apresente o fundador dessa cadeira – Luis Anselmo da Fonseca. “Há uma linha de coerência entre Cipriano e Luis Anselmo”, observa Ary, ambos “polígrafos, polemistas e defensores de políticas avançadas”. Pois bem: agora estamos em 1888, e a escravidão foi abolida no Brasil. Os libertos da Bahia comemoram... Vejam quem aparece nesse cortejo carregando um estandarte da Faculdade de Medicina – Luis Anselmo da Fonseca... Mais uma vez o 2 de julho não se conforma em ser meramente alegoria, invade o real do discurso, e demonstra como é sutil a diferença entre realidade e imaginário. 280 Revista ALB 50_finalizada.pmd 280 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Luis Anselmo da Fonseca: pardo (hoje afro-descendente), filho natural, batizado em 1848 (em Jacobina), formado pela Faculdade de Medicina em 1875, abolicionista, autor do livro A Escravidão, o Clero e o Abolicionismo, publicado em 1887; e professor da Faculdade de Medicina a partir de 1883. O personagem se apresenta com a epígrafe deste seu famoso livro: Se não tendes o espírito emancipado, se vos não habituastes a amar a verdade e a justiça, se alimentaes qualquer preconceito – seja de partido, seita, escola, classe, hierarquia ou de outra espécie, – vos aconselhamos que não leias este livro... Das opiniões e dos atos de várias pessoas – relativamente aos escravos e à sua grande causa – nos ocupamos, é certo. A historiadora Wlamyra de Albuquerque (1999) descreve em detalhe as comemorações pela abolição em 1888, na cidade de Salvador8. Os libertos solicitaram os carros dos caboclos para a festa – sendo liberado o carro da Cabocla, talvez por ser menos impositivo, ressaltando a conciliação: Os populares saíram da Lapinha, seguiram pelo Terreiro de Jesus, passaram pela Praça Castro Alves e rumaram até o Forte de S. Pedro Uma semana depois, organizou-se o retorno do carro à lapinha. Desta vez, os ânimos arrefecidos, o préstito foi organizado com mais controle das autoridades: à frente estava o esquadrão da Cavalaria do Exército, o Esquadrão Patriótico Joaquim Nabuco, e só depois surgia o carro da Cabocla, puxado por libertos. Por fim, desfilou a Legião da Imprensa seguida pelo carro da Sociedade Abolicionista Libertadora Baiana com o seu estandarte e o retrato de Joaquim Nabuco. Além da presença neste cortejo de retorno, Luis Anselmo também integra a comissão organizadora de todo o evento. 281 Revista ALB 50_finalizada.pmd 281 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Francisco Peixoto de Magalhães Neto, ilustre sucessor de Luis Anselmo da Fonseca nesta cadeira, seu aluno na Faculdade de Medicina, deixou sobre ele um importante ensaio, colocando em destaque suas principais facetas: médico, professor, filósofo, abolicionista e polemista. Traça um perfil analítico cuidadoso de seu antecessor, avaliando suas relevantes contribuições. Todavia, mergulhado na leitura do polpudo livro de Luis Anselmo sobre o Abolicionismo, devo confessar, que aquilo que mais me impressionou foi o traço de crítica cultural, tão ferino e decidido que merece registro um pouco mais detido. Falando daquilo que considerava atraso deplorável entre nós, diz Luis Anselmo: A Bahia construiu o edifício de sua civilisação sobre as bases da instituição servil, que é a negação da liberdade e da iniciativa, e do ultramontanismo (português) que é a negação da sciencia e do movimento. (sic) O autor dedica todo um capítulo à descrição minuciosa da luta pela implantação do trabalho livre na Bahia, e descreve toda a resistência do status quo, pressionando para a manutenção do trabalho escravo – focaliza de forma especial os serviços de catraieiros, carregadores de fardos e remadores de saveiros, descrevendo a incrível luta para tornar possível o funcionamento de trabalho livre nesses setores. Uma batalha que foi disputada palmo a palmo. Volta à carga: A Bahia adora o passado, ama o status quo e antipathisa todo movimento... Aqui para alguém merecer a estima publica é preciso imitar a immobilidade do fakir... 282 Revista ALB 50_finalizada.pmd 282 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A Bahia não é mais que um dormitório. Sua população, reclinada sobre o dorso das collinas, dorme... dorme sempre e... sonha com a escravidão... Só acorda ou para o carnaval eleitoral, ou para as festas de egreja... ...Hoje nossa instrução está quase aniquilada... Os professores primários muitas vezes deixam de receber seus ordenados por 12, 18 e 24 meses... E tudo resume com essa fina análise de cultura política: ...Pior do que este lamentável estado de cousas é a presunção d’aqueles baianos que consideram sua terra muito adiantada e feliz... Os bahianos que conhecem estes males attribuem-nos ao governo e do governo esperão os remedios. É obvio que elles têm no pensamento o governo absoluto e paternal das tradicções coloniaes. Convencido do atraso da Bahia com relação às outras Províncias, Luis Anselmo sonha com uma modernização reparadora, provavelmente em torno da noção de progresso e ciência. Mas esse vetor de análise da cultura política permanece atual e vai encontrar ecos no trabalho recente de pesquisadores como Paulo Fábio Dantas Neto e Israel Pinheiro. E aqui, nesse ponto do percurso, podemos observar o importante alinhamento entre essas três figuras – Cipriano, Luis Anselmo e Ary Guimarães. Devotam grande interesse e energia a transformações profundas da nossa sociedade. Percebem, cada um a seu modo, as fragilidades do nosso edifício social, e sonham com mudanças. Retorno ao texto de Ary Guimarães. Ele busca regularidades na linha sucessória da cadeira n. 8. Observa que a vocação pela vida pública é um traço presente em todos os ocupantes. Vocação exercida não apenas na “trincheira das assembleias políticas, mas 283 Revista ALB 50_finalizada.pmd 283 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 também no magistério responsável, formando geração de pensadores”. Destaca a condição de mestres humanistas, tanto em Magalhães Neto como em Adriano Pondé, levando o humanismo, necessariamente, ao interesse e ao engajamento com a realidade política do País. Encontramos Magalhães Neto em 1934, como representante do estado da Bahia na Assembleia Nacional Constituinte. No discurso proferido em 26 de março trata de questões da saúde pública no Brasil, e abre parêntesis para homenagear seu antecessor... Eminente professor de higiene, cujo nome quero citar com saudade, o grande baiano e eminente patriota doutor Luiz Anselmo da Fonseca escreveu, no limiar mesmo de seu laboratório: “aprendei a evitar moléstias, curá-las quando não impossível é sempre mais incerto, difícil e penoso. Reflete ainda sobre a natureza complexa dos problemas sanitários — de como se entrelaçam como peças de um mosaico, afetando todas as atividades da vida comum — passando a exigir um investimento especial de coordenação. Como bem registra Adriano Pondé, Magalhães Neto defendia o conceito de que a Medicina, pela sua própria finalidade, cabe em grande parte nos domínios das ciências sociais... Doença e pobreza são elos de uma só cadeia... Saúde e desenvolvimento são expressões que cada vez mais se encontram associadas. Essa linha de pensamento, incorporada à sua trajetória, deu origem ao sonho de criação de uma Escola de Saúde Pública na Bahia, e o coloca como um dos ideólogos do movimento que resultaria na estruturação da área de medicina preventiva, e posteriormente, na criação do Instituto de Saúde Coletiva. Mais uma linha de pensamento transformador que se associa ao histórico da Cadeira 8. 284 Revista ALB 50_finalizada.pmd 284 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Ary Guimarães, ressalta Magalhães Neto era um intelectual e homem cuja sensatez, sabedoria e equilíbrio nas decisões o transformaram em oráculo... Lembram-me as sessões do Conselho Departamental onde todos aguardavam sua palavra de experiência... Foi das figuras completas que identificavam sua época. Não lhe faltou sequer a fina inspiração de epigramista, que o tornou temido... E Adriano Pondé registra outro conjunto de qualidades: ,erudito e frequentador dos clássicos latinos conhecendo o grego bastante para apreciar, no original, textos de Homero e Xenofonte ,escritor que valoriza a forma literária – límpida e elegante ,orador de amplos recursos ,intelectual comprometido com a defesa das nossas instituições culturais, a Academia, onde ingressou de fato aos 42 anos, e muito especialmente, o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, que presidiu durante muitos anos... Porém, de todas as qualidades comentadas, a que Adriano prefere ressaltar como a mais fundamental é a generosidade; que inclusive se traduzia em um esforço permanente para encontrar a justa medida na árdua tarefa do julgamento. Quanto a Adriano Pondé, lendo o que nos deixou escrito, e especialmente os depoimentos de quantos o conheceram sobre sua natureza humana e dedicada, sobre seu grande conhecimento médico, percebemos que – independentemente de significativas contribuições institucionais, tais como a criação da Escola de Nutrição, ou o desempenho como Reitor da UFBA após a morte de Miguel Calmon, entre tantos outros –, sua melhor trincheira estava na esfera do indivíduo. Digo isso com a consciência de que a esfera do indivíduo é talvez uma das que mais exijam desprendimento e doação – pois, para permitir o afloramento da individualidade, é preciso construir 285 Revista ALB 50_finalizada.pmd 285 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 qualidades de recepção, espaços abertos e livres para a representação do outro. Não seria justamente essa a verdadeira arte do clínico? Impressiona, no discurso do próprio Adriano, a atenção dedicada ao tema ‘A medicina não se desumanizará’: a técnica não é uma finalidade, é o instrumento para que se alcance um resultado humano, e recorre ao mestre Amoroso Lima: A libertação do homem não está nas coisas. Está em si próprio... o progresso da humanidade não depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles que as souberem manejar, Em suma, depende da virtude do espírito... Nada mais natural, portanto, que uma mente cultivada como a de Adriano Pondé caminhasse na direção da obra de Proust, um virtuose na literatura, justamente pela via da construção complexa da individualidade, da vivência de ser sujeito... Para marcar a passagem do seu centenário, em 2001, alguns de seus ex-alunos se organizaram e produziram um belíssimo documento, com depoimentos que projetam uma coleção impressionante de atitudes, de instantâneos, dedicando ao mestre o mesmo cuidado que dele receberam. Registro alguns desses instantâneos: Fidalgo no trato com seus assistentes, seus discípulos e de modo muito especial, com seus pacientes (Assis Fernandes) ... dou o meu testemunho desse desempenho, diante do seu comportamento na enfermidade de minha mãe, quando presenciei as suas lágrimas de emoção no seu falecimento precoce, naquela ocasião eu era um adolescente de quinze anos que nunca tinha visto um médico chorar. A partir daí passei a amar minha profissão... (Antonio Carlos Peçanha Martins) 286 Revista ALB 50_finalizada.pmd 286 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Sabia falar com seus pacientes e familiares. Tinha paciência e muito jeito, sugerindo e valorizando o ambiente harmônico como peça fundamental na cura... (Anita Guiomar Franco Teixeira) Mas a esfera do indivíduo é também a esfera da construção de medidas objetivas. Para Gilson Soares Feitosa – falando como Presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia –, Adriano Ponde foi um visionário que anteviu a mudança do quadro nosológico com ênfase nas doenças infecciosas para a verdadeira epidemia de doenças cardiovasculares degenerativas que se seguiu – trabalhando por um enfrentamento organizado do problema e merecendo lugar de destaque na Cardiologia nacional. Mais uma vez – a responsabilidade com a dimensão coletiva. E agora podemos tratar de uma das quadras mais sutis do discurso de Ary Guimarães. Sutileza que nada sacrifica em termos de franqueza. Partindo da atuação de cada ocupante da cadeira n. 8, ele passa a refletir sobre o papel político da Academia, como um todo. E observa, com apuro: Há de entender-se que uma instituição que exerce e que pretende exercer presença cultural é, inerentemente, uma casa política. Não só por praticar o poder que vem da cultura (apenas essa expressão mereceria um longo parêntesis, e a ela retornaremos) mas também porque, fazendo-se de um punhado de homens distintos, que se tenham destacado na sociedade, não pode descurar-se de que seu procedimento, ainda que mais afastado pareça do jogo do poder e das ideologias, define-se nele. 287 Revista ALB 50_finalizada.pmd 287 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 E prossegue: Digo que devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de nosso destino, pois em cada uma dessas circunstâncias a Pátria nos exige a participação. Afinal, ela, a Pátria, não é feita senão do conjunto de todos os cidadãos, conjunto que não prescinde daqueles que são julgados notáveis na sociedade. Pelo contrário: deles, principalmente, se deve servir. Quantas coisas importantes estão sendo ditas sob essa aparência de simplicidade! Várias questões e possíveis encaminhamentos estão aflorando do texto. Desde aquela formulação sintética – o poder que vem da cultura –, sobre a qual todo um discurso poderia ser desenvolvido, até a colocação do problema da nossa missão. Friso bem: da nossa missão. Ary Guimarães não particulariza essa missão – como se houvesse uma missão específica da Academia, distinta da de todos os cidadãos. Ele raciocina a partir da totalidade Devemos estar presentes em cada grande momento, em cada esquina de nosso destino Nem precisaria comentar sobre a sutileza da imaginação de ‘destinos com esquinas’, é uma construção poética, mas absolutamente objetiva, precisa, as esquinas são os grandes momentos. E prosseguindo: A Pátria não é feita senão do conjunto de todos os cidadãos, conjunto que não prescinde daqueles que são julgados notáveis na sociedade. De início esse jogo precioso com as negações – “não é feita senão do conjunto de todos os cidadãos”. Há aí um aviso claro aos navegantes: ninguém ouse solapar essa totalidade, excluindo quem quer que seja. E mais: a notabilidade dos notáveis só pode ser entendida como uma função perante o todo da sociedade, e não como celebração 288 Revista ALB 50_finalizada.pmd 288 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de privilégios ou idiossincrasias. Acho que o recado está dado, com todo estilo, franqueza e simplicidade. Viva Ary Guimarães por tal capacidade crítica! Pois como disse Gregório: O todo sem a parte não é todo / A parte sem o todo não é parte, /mas se a parte o faz todo, sendo parte, /Não se diga, que é parte, sendo todo. (Gregório de Mattos, soneto) Nasceu Ary Guimarães em 24 de agosto de 1933, aqui em Salvador. Seus pais: Daniel Guimarães e Alzira Guimarães. Sua vida esteve repleta de feitos e funções de grande dignidade. Bacharel em Direito pela UFBA, em 1956. Professor Titular da UFBA, lecionou Ciência Política e Direito Constitucional na Faculdade de Filosofia e na Faculdade de Direito. Professor da Pós-Graduação em Direito Administrativo. Superintendente da Federação das Indústrias do Estado da Bahia entre 1967 e 1970. Diretor do SPHAN entre 1980 e 1986. Jornalista profissional, chegando a editor do jornal A Tarde. Autor dos Livros “Um sistema para o desenvolvimento”, publicado pela UFBA em 1966 e “As eleições baianas de 1970”, que foi tese do concurso para Titular, em 1972. O mais importante: as características do seu discurso foram as mesmas da sua vida – inteligência sutil, postura discreta e, ao mesmo tempo, radicalmente corajosa, quando necessário. Mais uma vez recorro ao Mestre Luis Henrique, que cunha uma expressão inesquecível: “O Ari é correto”. E vai adiante, lembrando que o estudo da saúde política, o esforço por uma educação política – paciente, correta, diária – constitui o trabalho mais urgente e necessário no Brasil dos nossos dias. Portanto, além de correto, e justamente por isso, Ary Guimarães permanece necessário. 289 Revista ALB 50_finalizada.pmd 289 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Retomo a noção que ele apresentou em discurso sobre a vinculação entre as partes e o todo, entre os cidadãos e os destinos da sociedade brasileira. Digo que esta talvez seja a melhor utopia do nosso tempo – uma que ressalto confiante – embora todos os sinais apontem em direção contrária, Estamos vivendo a época onde o indivíduo-celebridade é que faz estrutura – não digo que faz sozinho, há toda uma indústria trabalhando nessa direção, mas sem ele fica inoperante. Quem faz a música? Cada vez menos pensamos em coletivos e mais no indivíduo celebridade. Muitas vezes o coletivo é convocado para legitimar a celebridade, e a partir daí permanece mais ou menos inativo. Quem faz a instituição? A ciência? O partido? A moda? O consumo? Será que faz a ética...? Mas, não podemos simplesmente sair por aí gritando ‘abaixo o indivíduo!’, muito menos num discurso de posse, até porque, afinal de contas, houve muita luta, muita revolução francesa para per mitir a continuidade do processo de maturação da subjetividade, das subjetividades... Muita reviravolta para permitir a complexidade com a qual tratamos a questão do sujeito... Seus tempos, suas cenas... Encaminhei o discurso na direção de uma utopia – estava prometida desde o início –, e qual não foi a felicidade: encontrála no próprio discurso de Ary... Sabendo, desde sempre, que as utopias se alinham com a teoria crítica, e se distinguem da ciência positiva justamente pela decisão de não reduzirem a realidade ao que existe, Ou seja, pela decisão de tratar a realidade como campo aberto de possibilidades... 290 Revista ALB 50_finalizada.pmd 290 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Precisamos aprender novas formas de responder a esse desafio do equilíbrio entre a exuberância do indivíduo e das subjetividades e a construção de autonomia do coletivo, a construção de uma dinâmica do coletivo, que muitas vezes recebe o apelido de democratização. Mas o termo acaba sendo escorregadio, ao sugerir que há uma forma padrão de fazer isso; como se a dinâmica dos coletivos não exigisse soluções específicas a cada caso, e em cada conjuntura. Estamos diante de um paradoxo: nem todas as ‘democratizações’ envolvem uma dinâmica do coletivo. Nem todas interessam. * * * Agora uma quadra complexa. O desafio de uma breve autoapresentação. Agarro-me ao princípio vislumbrado por Ary e vou registrando abaixo o conjunto de situações de pertencimento que me constituíram como gente. Pode até parecer estranho, mais penso numa analogia estreita com o batuque... Sei que pertenço aos batuques. Onde os houver no mundo, lá estarei, mesmo que sejam batuques renascentistas polifonias renascentistas. Eles, os batuques, representam de forma exuberante essa confluência mágica entre um e todos; são peles vibrantes, são formas distintas de dividir e de compartilhar o tempo e o contratempo... De instituir ordem e subversão. Não seria difícil imaginar meu núcleo familiar de origem como uma pequena batucada: Antonio Batista Lima e Dinorá Costa Lima, Dona Amélia Duarte (uma segunda mãe), João Augusto e, este que vos fala – 291 Revista ALB 50_finalizada.pmd 291 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 tenho certeza que há uma estrela onde habitam esses personagens que fui e que fomos... E na outra ponta, a família construída, minha mulher Ana Margarida, minha companheira de 36 anos, minha alma gêmea – parceira de todas as iniciativas –, e nossos filhos Cláudio e Maurício, a quem amamos com todas as forças; cubro-os todos com um manto de carinho e agradecimento, e estendo esses votos ao círculo mais amplo da família Costa, Lima, Cerqueira Lima, Isensee, Horschutz, Nogueira, Walter e a todos os preciosos amigos que foram sendo aconchegados ao longo da vida, em sua trama... Também agradeço a todos os ambientes que me acolheram no processo de formação. A todos os professores, artistas e lideranças que me inspiraram na direção do trabalho e do aperfeiçoamento: desde a Escola Getúlio Vargas, passando pelo ICEIA - Instituto Central Isaías Alves, o Colégio de Aplicação da UFBA, os Seminários de Música (a partir de 1969), a Faculdade de Medicina da UFBA, durante um longo ano, a Escola de Música e Artes Cênicas da UFBA, a Universidade de Illinois em Champaign-Urbana, até a Faculdade de Educação da UFBA e a Universidade de São Paulo, onde desenvolvi teses de doutoramento. Mas também devo assinalar alguns outros ambientes ou ciclos de aprendizagem: 292 Revista ALB 50_finalizada.pmd 292 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 a psicanálise como descoberta radical; a psicanálise que pratico como leitor assíduo e analisando. a visão amorosa da religião, tal como vi em Dom Timóteo; e tal como vi recentemente em Alfredo Dórea; o horizonte idealizado da transformação social e da construção de um Brasil sem a tragédia da exclusão e da desigualdade; a rede viva de todos os amigos, que mencionei antes, e que aqui sublinho como uma mola do querer viver, do querer seguir em frente... Devo também mencionar os ambientes onde desenvolvi atividade profissional: a própria Escola de Música da UFBA, meu ninho de referência, e dentro dela, o Grupo de Compositores da Bahia, ou melhor, o movimento da composição – do Falamassa ao OCA e ORCA – Oficinas de composição Agora. agradeço especialmente aos meus estudantes, com os quais, mais aprendi que ensinei; a todos os parceiros de ideias e ideais... a Reitoria da UFBA, onde exerci a função de Pró-Reitor de Extensão entre 1996 e 2002; e aprendi que a trama do conhecimento é bem mais ampla que a universidade... a Fundação Gregório de Mattos, e por consequência, todos os cantos culturais da cidade de Salvador... Desde as instituições mais tradicionais como o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, liderado pelo espírito de luta de Consuelo Pondé de Sena, até as agremiações culturais de bairro, as academias de capoeira, o mundo do candomblé, nosso tesouro de ética e de estética, a quem saúdo através de um amigo, o venerável Esmeraldo Emetério do Tumba Junsara; 293 Revista ALB 50_finalizada.pmd 293 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 o diálogo produtivo, criativo, a grande parceria com o Ministério da Cultura do Governo Lula – de Juca e de Gil –, e toda a sua plataforma de estimulação das dinâmicas do coletivo através políticas públicas de cultura. Todos esses âmbitos dariam origem a uma impressionante ciranda de nomes, que me constituíram e me constituem – algo impossível de lidar na presente situação: * * * E, com isso, desemboco numa pergunta fundamental: O que ficou de tudo isso? 1. O aprendizado de que a questão ética é o campo prioritário. Que as pessoas são pessoas; e que nos cabe observá-las e admirálas em sua performance de gente... Ser testemunhas, como disse Drummond... Creio ter adquirido, ao longo dos anos, uma consciência cada vez maior desse princípio sagrado, e até mesmo certa habilidade em conseguir valorizar o outro. Trata-se da ferramenta mais importante para a gestão, e especialmente a gestão da cultura... Trata-se também, da mais importante ferramenta pedagógica... Por exemplo: não adianta querer ensinar composição às pessoas; ensinar a criar – que ultraje... Só aprendem a compor quando se sentem compositores, ou seja, quando há uma estrutura relacional que garante essa ousadia; esse é o papel inalienável do professor. 294 Revista ALB 50_finalizada.pmd 294 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 2. A ética como justiça, como igualdade de oportunidades, como reparação. A ética de protestar e de ser contra, de imaginar novos mundos, com novos atores e autores, novas artes, novas vidas... A ética da equidade – a equidade da ética. 3. O valor profundamente transformador das ideias, dos desejos, e dos sonhos. As ideias são entidades perigosas, elas ameaçam a ordem vigente, elas podem durar segundos ou séculos; elas se infiltram, elas vicejam, elas retornam em mil disfarces... E, nessa conexão, o valor do trabalho, do rigor, da disciplina, da limitação de liberdades para construir mais liberdade... 4. O papel da cultura como refundadora da nossa ética de sociedade, de coletividade. A cultura como repositório gentil de uma miríade de pertencimentos possíveis, a cultura como esquina essencial do destino da nação brasileira, como “proposição corretiva de uma brasilidade a ser conquistada”. O civismo é uma questão de futuro e não de passado. A cultura como convocação a todos, como oportunidade de valorizar e ser valorizado, como esperança de transposição de antigas fronteiras entre letrados e não-letrados, entre eruditos e populares, modernos, românticos ou pós-modernos, bregas e chiques, globais e locais. E a Academia como “lugar de serviço à sociedade”, tal como nos lembra o Mestre Edivaldo Boaventura, enfrentando o desafio de ampliar a consciência desse processo, fertilizando-o, e fertilizando-se nele. 295 Revista ALB 50_finalizada.pmd 295 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 5. A importância da territorialização, do arraigamento, das raízes, e, ao mesmo tempo, do impulso contrário, a desterritorialização, a abstração radical, a construção de cenas desgarradas de tudo, ou potencialmente universais. E, sobretudo, o diálogo travesso entre esses dois processos – cada um puxando arbitrariamente para seu lado, e nós no meio. Creio ter cumprido o meu dever de recipiendário – ao evocar os discursos daqueles que me antecederam, buscando sublinhar as linhas de força mais adequadas para a tecelagem desta noite, os ideais que impressionam e comovem, os valores. Também planto aqui, neste momento conclusivo, um ramo de agradecimento sincero e profundo pela generosidade do gesto de minha acolhida, e a tantos amigos e companheiros declaro mais uma vez minha fidelidade ao espírito de luta que a Academia ilumina. Fecha-te Discurso! Que tudo recolhas e guardes na memória! Passaste como batucada de sentidos e sonoridades, e agora, simplesmente, cala-te. 296 Revista ALB 50_finalizada.pmd 296 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 NOTAS Cf. Discurso de Posse de Machado Neto, Revista v. 23, p. 102 Cf. Futility 1964 para voz e fita magnética, de Herbert Brün 3 Cf. Discurso de Posse de Fernando Peres, Revista vol. 36, p.278. 4 Gerard Pommier, Qué es lo ‘Real’: Ensayo psicoanalítico, Buenos Aires, Nueva Vision, 2004. 5 Cf. Marco Morel, Cipriano Barata na sentinela da liberdade, p. 126 6 Uma descrição dos móveis do lavrador, médico e filósofo, feita por ocasião de uma Devassa em torno de 1798, registra o seguinte: Uma banca, meia dúzia de cadeiras, uma tina, um leito velho, dois baús, dois caixões velhos de madeiras, três camas de pretos e uma estante de por livros, tudo com bastante uso. Para Marco Morel, essas “três camas de pretos” indicam que, como era comum o lavrador morar sob o mesmo teto dos escravos. 7 Cf. Marco Morel. 1 2 __________ Discurso de posse proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia no dia 17 de dezembro de 2009 – Cadeira nº 8 da ALB. Paulo Costa Lima é compositor, pesquisador e teórico de composição; professor da Escola de Música da UFBA, ensaísta e escritor. Já produziu cerca de 80 obras, com mais de 300 execuções no país e no exterior. Publicou 5 livros, além de diversos CDs e vídeos. 297 Revista ALB 50_finalizada.pmd 297 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 298 Revista ALB 50_finalizada.pmd 298 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Saudação a Paulo Costa Lima Edivaldo M. Boaventura Sem precisar sair da Escola de Música da Universidade Federal da Bahia, de profundas raízes na tradição germânica, o professor doutor Paulo Costa Lima entra na Companhia fundada por Arlindo Fragoso. Seja, pois, bem vindo à Academia de Letras da Bahia. Você ingressa, exatamente, quando a Academia se abre aos residentes em todo o território baiano, depois da reforma do estatuto. O instante também é de implementação eletrônica com registro da vida dos acadêmicos e do que momentaneamente acontece. O Círculo Baiano de Leitura, os Encontros Literários e as Visitas Guiadas, que movimentaram tanto o Sodalício neste ano, foram possibilitados pelo Ponto de Cultura, graças à proposta do confrade Aleilton Fonseca. A parceria com a Fundação Pedro Calmon, por iniciativa do acadêmico Ubiratan Castro, efetivou a apresentação das Novas Letras. Os seminários sobre vida e obra das escritoras Myriam Fraga e Helena Parente Cunha, tão bem coordenados por Evelina de Carvalho Sá Hoisel, aprofundaram a pesquisa literária e 299 Revista ALB 50_finalizada.pmd 299 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 disseminaram novos achados, abrindo novas sendas para a análise e para o conhecimento da literatura baiana, nosso grande objetivo. Por outro lado, o zelo com o Solar Góes Calmon, o requinte da sua arquitetura eclética e a pintura de Presciliano Silva exigiram uma tratamento museológico para tanto contamos com a competência e Sílvia Athayde, ancestralmente, ligada a esta casa. O seu pai, o engenheiro Aderbal Menezes, foi o artífice da restauração do palacete, entregue ao público, pelo governador Luiz Viana Filho, em 6 de novembro de 1970, dia do aniversário de Góes Calmon, que sempre quis que sua casa fosse um museu. Para a cuidadosa preservação do seu acervo artístico, mestre José Dirson Argolo tem contribuído com a sua expertise e com a sua dedicação. Talvez nenhuma outra iniciativa da diretoria tenha sido mais gratificante do que a criação do prêmio pelo conjunto da obra literária, patrocinado pela Eletrogóes, bem assim a instituição da Medalha do Fundador Arlindo Fragoso, pois, é preciso premiar sempre, porque não premiar é punir pelo silêncio. A exemplo da matriz francesa, as academias devem distribuir prêmios, ocupar-se da gramática e do dicionário. Lá chegaremos com o estudo dos falares e com o dicionário de autores baianos. A doação do Solar Góes Calmon e o fornecimento dos recursos para a sua manutenção pelo poder público, isto é, “a implantação de acesso e difusão das ações cultura da Academia de Letras da Bahia – ALB”, exigem de nós uma pronta resposta à comunidade. Assim, meu caro Paulo, há muito o que você fazer. Temos excitantes expectativas com a sua chegada. Ao recepcioná-lo, desde já o convoco para atuar nesses e em outros projetos. Meus caros amigos, Com quase quatro décadas, nesta casa, entrei na ousadia dos meus dos 37 anos, sou acadêmico de número,sócio benfeitor e presidente, portanto, tenho desafiantes responsabilidades que 300 Revista ALB 50_finalizada.pmd 300 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 compartilho com os meus eméritos pares e de todos tenho recebido o maior apoio. Pois bem, durante todos esses anos, tenho admirado a representatividade das gerações que nos sucederam, a começar pela dos médicos e a cultura médica é marcante na Bahia, passando pelos juristas cultos, filósofos, jornalistas, historiadores, educadores, poetas, ensaístas e ficcionistas. Mais recentemente o sodalício tem agregado os componentes da geração formada pela revolução branca da pós-graduação com mestrados e doutorados: Yeda Pessoa de Castro tem atraído a presença afro-brasileira desde a sua posse, dando autenticidade étnica à Companhia; os operosos Aleilton Fonseca e Carlos Ribeiro; Cleise Mendes, presença bonita da dramaturgia; Evelina de Carvalho Sá Hoisel, coordenadora dos simpósios; Ruy Espinheira Filho, nosso poeta nacional, ocupa-se da biblioteca; Ubiratan Castro todo colaboração e conto sempre com o apoio afetivo da muito querida confreira Consuelo Novaes Sampaio. A via universitária de acesso à Academia é uma das alternativas de ingresso, porém não é, nunca foi e nem será a única. A Academia sempre privilegiou a manifestação coletiva do talento daqueles que se expressam pelas letras. Venham da Universidade ou se originem da aprendizagem autodidata apoiada na leitura formadora, como Xavier Marques, um dos nossos maiores. Grande leitor é a pena dourada do grapiúna Hélio Pólvora. No complexo e complicado processo de escolha, muitas vezes a Companhia tem ratificado candidatos consagrados pela comunidade culta. A facúndia do monsenhor Gaspar Sadoc da Natividade já de muito era assinalada pelo seu extraordinário talento de orador sagro, herdeiro de longa tradição que remonta ao imenso Vieira. O saber da história e o conhecimento de tudo o que dica respeito as coisas da Bahia candidataram o professor Cid Teixeira à sucessão de Godofredo Filho. A expressividade, o saber, o charme feminino e a liderança forte e decidida de Consuelo Pondé de Sena conduziram-na muito naturalmente a 301 Revista ALB 50_finalizada.pmd 301 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 suceder ao seu mestre o sempre lembrado José Calasans Quem melhor do que Samuel Celestino para recolher a herança de Jorge Calmon, nesta casa? Constituíram-se em candidaturas comunitárias de expressivas lideranças que sociologicamente se impuseram à nossa consideração. Meu caro Paulo, seja assíduo, como Waldir Freitas Oliveira, Geraldo Machado, João Eurico Matta, Paulo Ormindo de Azevedo, colaborador, como Luís Henrique Dias Tavares, Cláudio Veiga, Cid Teixeira, Francisco Sena, e generoso como os últimos que ingressaram: Yeda Pessoa de Castro, Samuel Celestino, que nos presenteou com o busto de Jorge Calmon, Dom Emanuel d’Able do Amaral e Joaci Góes que proporcionou o suporte para o prêmio pelo conjunto da obra literária. Meus caros amigos, Acredito que seja o momento de indagar: o que o professor, doutor e doutor Paulo Costa Lima veio fazer na Academia? Poderia ter continuado com a sua música, fruindo da requintada formação com mestrado e dois doutorados, no departamento universitário. Por que nós o escolhemos para suceder ao saudoso Ary Guimarães? Paulo, não se esqueça que a Academia é honraria, mas é também serviço, na dicotomia de Maurice Druon, o famoso escritor do menino do dedo verde, Somos acadêmicos ad vitam... Elaboramos, sim, continuamente a agenda do amanhã com a poesia, a prosa, o ensaio, a fala, a escrita, a palestra e, daqui para a frente, com a música. Convenhamos que não existe especialidade nas Academias, afirma sabedoria de Paul Valéry, quando escreveu sobre o mistério e a função da Academia., Um professor de literatura pode suceder a um médico, como um engenheiro pode substituir a um poeta, com uma condição – contanto que ambos os intelectuais “tenham publicado trabalhos de reconhecido mérito, em qualquer dos gêneros da literatura, ou obra científica de valor literário,” 302 Revista ALB 50_finalizada.pmd 302 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 prescreve sabiamente o nosso estatuto, sempre interpretado pelo oráculo e romancista Aramis Ribeiro Costa. A bem da verdade, na marcha democrática do conhecimento prévio das candidaturas à sucessão de Ary Guimarães, pela primeira vez, na história deste grêmio, as candidaturas foram apresentadas, amplamente discutidas, com comprovação da documentação sobre a vida e exposição das obras publicadas. Tal procedimento deu a impressão que se tratava de um sério concurso de provas e títulos. No seu caso, impressionou vivamente aos confrades a sua trajetória universitária, as obras publicadas como resultado da investigação científica, ensaios, artigos e as realizações do gestor da cultura como compromisso comunitário. De fato, depois da tentativa da medicina, concentrou-se na música e realizou, verticalmente uma brilhante formação acadêmica – graduação em Composição com distinção honorífica, na Universidade de Illinois, seguida do Mestrado em Educação Musical nesta mesma instituição. Retornando ao Brasil, ingressou na Escola de Música e Artes Cênicas, onde fez toda a carreira acadêmica até o presente posto de professor associado. Para o doutorado em Educação, escolheu o tema da pedagogia da composição de Ernst Widmer. Pude, Deus louvado, participar do seu projeto acadêmico como professor e co-advisor, oportunidade em que estudamos os clássicos da metodologia da pesquisa: Fred Kerlinger, Robert Travers, Donald Ary, Babbie, Leedy. Para prosseguirmos na orientação, lembro-me bem que indaguei em certo momento como pesquisaríamos um compositor suíço alemão sem o domínio deste idioma? Quanto ao inglês, disse-lhe, você tem o domínio perfeito com a graduação e o mestrado em Illinois, mas quanto o alemão, que faremos? Respondeu-me, com tranquila naturalidade não ser problema: eu leio e falo alemão. Continuamos com os trabalhos de orientação, chegamos à defesa da bem elaborada tese doutoral Ernst Widmer e o ensino de 303 Revista ALB 50_finalizada.pmd 303 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Composição Musical na Bahia. Depois, realizou o doutorado em Artes, na Universidade de São Paulo – desta vez, concentrando – se em processos analíticos da música de Widmer, especialmente as estratégias envolvendo escalas de oito sons ou octatônicas, que permitiram ao grande compositor transitar com facilidade entre as práticas musicais brasileiras e europeias, entre o passado tonal e o presente atonal. Com o desmembramento da Escola de Música e Artes Cênicas, Paulo dirigiu a Escola de Música, entre 1988 e 1992. Dando-lhe identidade, restaurou os antigos Seminários Internacionais de Música, uma das mais notáveis iniciativas do Reitor Edgard Santos – e foram quatro grandes festivais, realizados entre 1988 e 1992, trazendo mais de 300 professores e artistas visitantes a Salvador. Criou a pós-graduação com o Mestrado em Música, algo que dá início a uma nova etapa na história da Escola de Música, e conseguiu ampliar consideravelmente o espaço físico da escola no processo de criação do Memorial Linderbergue Cardoso – prestando uma justa homenagem a esse grande talento que nos deixou tão cedo. Ao lado do professor, o músico virtuoso registra 88 composições e 280 performances em mais de 15 países, com participação em recitais no Carnegie Hall e Lincoln Center (ambos em New York), em Seattle, Paris, Bruxelas, Berlin, Roma, Lisboa, e no Brasil no Festival de Campos de Jordão, nas Bienais do Rio de Janeiro na Sala Cecília Meireles, na Sala São Paulo com a OSESP regida pelo Maestro John Neschling, nos Festivais de Santos, e com manifestações da crítica, inclusive do New York Times. Paulo é verbete no famoso New Grove Dictionary of Music and Musicians (2001), a notória enciclopédia musical do mundo. A música de Paulo Costa Lima é marcada pela experiência de formação vanguardista, mas foi se aproximando cada vez mais do desafio de estabelecer diálogos com as tradições musicais brasileiras, e especialmente, as tradições musicais afro-baianas. Muitas vezes escolhe idéias rítmicas ou melódicas da música de 304 Revista ALB 50_finalizada.pmd 304 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 candomblé como ponto de partida para variações e desenvolvimentos que vão estabelecer uma espécie de entre-lugar sonoro, entre Europa, África e Bahia. Foi distinguido como compositor pela concessão da Bolsa Vitae de Composição em 1995, anteriormente concedida a Ernst Widmer, e passou a integrar a comissão julgadora deste importante prêmio a partir de 2003. Também teve obras premiadas pelo Concurso Max Feffer (1995), e obras comissionadas pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (1994), pela American Composers Orchestra (1996), pela Orquestra do Estado de São Paulo (2000) e pela Orquestra Sinfônica da Bahia (1986, 2005 e 2007). Como escritor, além da tese, Paulo Costa Lima tem uma larga pauta de publicações. Sobressai livro de ensaios Invenção e memória: navegação de palavras em crônicas e ensaios sobre música e adjacências (2005). Segundo Eneida Leal Cunha: “Esta coletânea de textos reúne uma saudável diversidade de formas e de investimentos reflexivos sobre música, cultura, universidade, educação, pertencimentos, políticas, a contemporaneidade nossa e dos outros”. Dentre outros contributos relaciona psicanálise e música. Alem de ter organizado mais de 16 livros, inúmeros artigos, foi editor da Revista ART e de várias séries de publicações, partituras, gravações de discos e CDs, e apresentação de obras. Publicou, recentemente, artigos em dois importantes periódicos da área de música nos Estados Unidos: o Latin American Music Review, da Universidade do Texas, e a revista SONUS, do New England Conservatory. Orientou dissertações e teses, sempre valorizando a produção composicional da Bahia, por exemplo, mergulhando na obra de Lindembergue Cardoso e de Fernando Cerqueira, e hoje lidera um importante grupo de pesquisa em composição e identidade cultural. Atualmente é colaborador semanal do site nacional Terra Magazine, onde vem publicando crônicas e ensaios sobre música popular brasileira. 305 Revista ALB 50_finalizada.pmd 305 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Se considerarmos a primeira geração de professores da Escola de Música, onde predominaram os europeus como Koelreutter, os Benda (Lola e Sebastian), Pierre Klose, Walter Smetak, entre tantos... e especialmente Ersnt Widmer, vemos na segunda geração já a predominância dos brasileiros, contando com a inteligência de Manuel Veiga (que retorna dos Estados Unidos em meados dos anos 60), Jamary Oliveira, Lindembergue Cardoso, Fernando Cerqueira. Paulo integra a terceira geração de compositores formados pela Universidade Federal da Bahia e assume relativamente cedo em sua carreira diversos papéis de liderança. Assim, a Universidade construiu ontem o currículo para o acadêmico de hoje. Depois da diretoria da Escola de Música, desempenhou dois cargos com responsabilidades diretas com a criação cultural: Pró-Reitor de Extensão da UFBA e Presidente da Fundação Gregório de Matos. Como Pró-Reitor durante duas gestões (1996-2002), é responsável pela concepção e implementação do programa UFBA em Campo e das Atividades Curriculares em Comunidade (ACC), com 55 disciplinas e 850 alunos por semestre. Aproximou a Universidade do Carnaval, instituiu a TV UFBA e ‘last but not least’ a rede de outdoors, uma ideia simples que tanto tem contribuído para a projeção da UFBA na sociedade. Ocupar a Pró-Reitoria de Extensão de uma Universidade pública no Brasil significa assumir o compromisso de repensar as relações entre universidade e sociedade. A criação do programa UFBA em Campo e das ACC dinamizou de diversas maneiras o intercâmbio entre grupos da universidade e das comunidades, acentuou a responsabilidade social daqueles que lidam com o conhecimento, e certamente antecipou, facilitando, as iniciativas recentes nessa mesma direção implantadas pelo Reitor Naomar de Almeida Filho. Na presidência da Fundação Gregório de Matos, a extensão tomou a dimensão urbana. Atenção especial emprestou à relação entre cultura e participação popular, especialmente pelo diálogo 306 Revista ALB 50_finalizada.pmd 306 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 entre cultura letrada e ancestralidade. Lançou mais de 50 livros, CDs., vídeos. Sobressai a identificação dos mestres nas diversas manifestações populares. Pelo visto, há muito a continuar realizando neste sodalício. Enfrentou bravamente o desafio de construção de programas inovadores na direção das políticas públicas de cultura, que a cidade tanto almeja e merece. Com a formação direcionada para a música, enriquecido com a experiência na gestão da extensão e na cultura popular soteropolitana, passa, então, da Universidade à Academia. Afortunados são os que transitam por esta ponte erudita. Se você me permite é a plenitude da scholarship. Ponderemos, todavia, que a Universidade tem no seu âmago a Academia. Academia é o coração da Universidade. As duas gestam o conhecimento que refletido profundamente na prática da vida atinge-se a sabedoria Academia é convivência para a disseminação do conhecimento. Como o primeiro músico a adentrar-se, encha a Academia de música. Venha com Beethoven, Mozart, Schumann, Bach, Schönberg, Villa-Lobos, Pixinguinha e Batatinha..... Com a música erudita e com a popular, se é que podemos ainda estabelecer tal distinção, com a música religiosa dos candomblés, um dos campos de investigação da musicologia, seguindo as pegadas de Bartok. Na música, você terá no nosso confrade José Carlos Capinan um excelente parceiro. Meu caro Paulo Costa Lima, Venha com a sua Ana Margarida, filhos, amigos e alunos. Alunos, sim, porque a Academia é uma escola não formalizada pelo currículo, mas uma entidade que educa pela convivência. Depois do ingresso nesta seletíssima e sereníssima Companhia, o seu horizonte de ambições gregárias ficará bastante limitado. Veja Seabra, que governou tantas vezes a Bahia, não se eximiu de ser um dos nossos e mais, de presidi-la por bastantes anos. Meu caro Paulo, você alcançou o convívio das vocações eruditas, como a exemplar presença do professor Roberto Santos nosso reitor de sempre. 307 Revista ALB 50_finalizada.pmd 307 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 O que mais você poderá mais ambicionar? Experimentando a convivialidade com os confrades, você pensará talvez em uma Academia de Música para a Bahia. Academia de Música que sustentará a nossa portentosa explosão A sua chegada ao Sodalício, como músico, compositor e pesquisador do fenômeno musical, você acrescenta a dimensão do ritmo, da melodia e da harmonia ao serviço das letras. Seja bem feliz. Salvador-Bahia, 17/12/09. __________ Discurso de saudação ao acadêmico Paulo Costa Lima, proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em solenidade de posse na Cadeira nº 8, em 17 de dezembro de 2009. Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios; foi presidente da Academia de Letras da Bahia, de 2007 a 2011. Atualmente exerce o cargo de diretor-geral do jornal A Tarde. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 39 da ALB. 308 Revista ALB 50_finalizada.pmd 308 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Discurso de posse João Falcão Imaginava encerrada minha atividade literária com a publicação do livro Valeu a Pena (Desafios de minha vida) ao final do ano passado, quando fui eleito, pela generosidade dos membros desta Academia de Letras da Bahia, para ocupar a Cadeira de nº 35. Embora este momento glorioso de minha vida viesse acontecer aos meus noventa anos, foi exclusivamente por minha culpa, pois onze anos atrás, em 1999, o saudoso amigo e acadêmico Josaphat Ramos Marinho fez a indicação do meu nome para concorrer a uma cadeira desta Casa. Fiquei muito honrado com esta deferência. Agradeci, mas não competi. Posteriormente, o querido amigo e acadêmico Waldir Freitas Oliveira consultou-me sobre o lançamento de minha candidatura. Lisonjeado e agradecido novamente declinei do honroso convite. Perdoem-me pela negligência... E neste momento, quando escrevo este despretensioso discurso de posse na Academia de Letras da Bahia, minha memória transporta-me para longínquos momentos de minha vida, dedicados ao culto das letras. 309 Revista ALB 50_finalizada.pmd 309 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Em 1936, aos 16 anos, pela primeira vez dediquei-me à arte de escrever, ao fundar o Jornal Unidade, órgão do Grêmio Pedro Calmon, no Ginásio da Bahia, no Curso Complementar, ao lado dos saudosos colegas João Agripino da Costa Dória, Gerardo de Souza Alves e Luis Menezes Monteiro da Costa. Dois anos depois, em 1938, fundei a revista Seiva, ao lado dos estudantes Virgildal Sena, Emo Duarte e Eduardo Guimarães, e tendo também Armênio Guedes, o único ainda vivo e residente em São Paulo, como diretor oculto, porque já era conhecido como comunista. Naqueles anos, o ambiente cultural da Bahia, como de todo o Brasil, vivia asfixiado sob a ditadura do Estado Novo, de caráter fascista, implantado por um golpe de estado, chefiado pelo próprio presidente da República, Getulio Vargas, no ano anterior, em 1937. O Congresso foi fechado, dissolvidos os partidos políticos, as prisões se alastraram pelo Brasil afora e, finalmente, foi revogada a constituição democrática de 1934. Também foram detidos muitos intelectuais e lideres sindicais, entre os quais o ministro Otavio Mangabeira, que foi exilado. Através da revista Seiva, eu pude conviver com a nata da inteligência baiana e brasileira durante os anos de 1938 a 1943. Não somente ingressei no rol dos seus colaboradores, como entrei em contato com escritores como Aliomar Baleeiro, Aydano do Couto Ferraz, Almir Mattos, e os saudosos acadêmicos Afrânio Coutinho, Eugenio Gomes, Edison Carneiro, José Valadares, Carlos Eduardo da Rocha, Carlos Vasconcelos Maia, Jorge Amado, Luis Viana Filho, Nestor Duarte, Nelson Sampaio, Orlando Gomes, Odorico Tavares, Walter da Silveira, Wilson Lins e muitos outros escritores de outros estados, como Carlos Lacerda, Carlos Drummond de Andrade, Joel Silveira, Rubem Braga, Samuel Wainer, Lêdo Ivo, Leôncio Basbaum, o poeta Rossine Camargo Guarnieri, Fernando Góes e muitos outros. Para manter esta revista, além de redator, eu atuava como corretor de anúncios, para assegurar sua manutenção e continuidade. 310 Revista ALB 50_finalizada.pmd 310 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 De tal forma esta revista tornou-se incomoda à ditadura e aos setores fascistas do país, que, depois de cinco anos, sua circulação foi proibida em julho de 1943, sendo presos seus diretores João e Wilson Falcão e o secretário Jacob Gorender. Durante sua existência, foram seus redatores Antonio Santos Morais, Aldenor Campos, Almir Mattos, Rui Facó, Jacinta Passos e Ariston Andrade, que reside no Rio de Janeiro. Em abril de 1945, fui fundador e diretor do jornal O Momento, ao lado de uma plêiade de jornalistas como João Batista de Lima e Silva, Mario Alves de Souza, Alberto Vita, Almir Mattos, Ariston Andrade e muitos outros. Mas um jornal diário do Partido Comunista para atender aos seus objetivos políticos, haveria de ser um jornal para as massas, indo diretamente ao povo levantar seus problemas, expressar suas esperanças e reivindicações. Para isso, tornou-se necessária a mobilização de uma equipe de jornalistas, redatores e repórteres novos, que fossem não somente bons profissionais, mas, também animados pela mesma fé e imbuídos de propósito comum que inspirou sua criação. Este contingente fomos buscar nas fileiras do Partido Comunista. Além dos nomes citados, também vieram colaborar os jovens: Jafé Borges, Ariovaldo Mattos, Nilo Pinto, Quintino de Carvalho, Inácio de Alencar, Arary Muricy, José Gorender, José Marroco de Moraes e muitos outros, todos falecidos. Mas, felizmente, ainda vivos, os acadêmicos Luis Henrique Dias Tavares e James Amado, Henrique Lima Santos, Boris Tabacof, Carlos Aníbal Correia, Alice Gonzalez, Aurélio Rocha Filho, Newton Sobral, Simão Schnitmann e muitos outros que a ele se dedicaram. O Momento circulou até o ano de 1957. Nesta mesma época, em 1938, quando ingressei na Faculdade Livre de Direito, entrei em contato com vários professores também acadêmicos. Em primeiro lugar, lembro do seu diretor e meu professor Felinto Justiniano Ferreira Bastos, já octogenário. Fui cumprimentá-lo, como meu ilustre conterrâneo e meu 311 Revista ALB 50_finalizada.pmd 311 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 professor de Direito Romano. Era membro desta Academia, fundador da cadeira de nº 21. Passei a conviver no dia a dia das aulas, com os mestres e acadêmicos Demetrio Tourinho, Castro Rebelo, João Américo Garcez Fróes, Heitor Praguer Fróes, Muniz Sodré, Aloísio de Carvalho Filho, Orlando Gomes, Nestor Duarte, Augusto Alexandre Machado, Jayme Junqueira Aires e Aloísio Henrique de Barros Porto. Na Câmara dos Deputados, ainda no Rio de Janeiro, no período de 1955 a 1958, convivi novamente com os deputados e acadêmicos Nestor Duarte, Luis Viana Filho, e, também, com o acadêmico Otavio Mangabeira, ex-governador da Bahia, que me cederam o título do Jornal da Bahia. Em 1958, já desligado do Partido Comunista, fundei o Jornal da Bahia, ao lado dos saudosos companheiros Zittelman José Santos de Oliva, membro desta Academia, Milton Cayres de Brito e Virgilio da Motta Leal. Fui seu diretor durante 25 anos, até o ano de 1983, e o Jornal da Bahia circulou até 1994. Foram seus redatores, além de muitos outros, os acadêmicos João Carlos Teixeira Gomes, Florisvaldo Mattos, Samuel Celestino da Silva Filho e João Ubaldo Ribeiro, da Academia Brasileira de Letras. O Jornal da Bahia nasceu num momento especial da história de nosso país. O Brasil e a Bahia procuravam romper a estagnação em que viviam. O governo do Presidente Juscelino Kubstschek, empossado em 1956, havia lançado o slogan desenvolvimentista de 50 anos em 5, estava construindo a nova Capital da República, Brasília, implantando a indústria automobilística e um parque industrial no Brasil. Os resultados desta política alcançaram a expressiva taxa de 7% do crescimento do PIB. A euforia dominava todos os setores da vida nacional e a Bahia estava inserida naquela conjuntura progressista. Havia muita esperança e confiança no desempenho do novo jornal. Na primeira metade do século vinte, predominava no cenário jornalístico baiano a existência de uma imprensa 312 Revista ALB 50_finalizada.pmd 312 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 conservadora e vinculada a pessoas e partidos: A Tarde de Simões Filho; o Diário de Noticias e o Estado da Bahia de Assis Chateaubriand; O Imparcial do coronel Franklin Albuquerque; e o Diário da Bahia do conservador Partido Social Democrático. A Bahia esperava há muito tempo por um veículo de imprensa independente, sem tutores, resultado da conjugação da vontade de toda a população, que subscreveu em massa seu capital social. O Jornal da Bahia marchava firmemente seu caminho, quando seis anos depois, a vitória da ditadura implantada em 1964, impôs uma longa e drástica censura em toda a imprensa, transformandose em 1970, ao tomar posse o governador Antonio Carlos Magalhães, também membro desta Academia, numa terrível e implacável perseguição, que o tornou obcecado no propósito de fechá-lo. Mas, o Jornal da Bahia não se curvou. Este governo findou-se em 1975 e eu continuei na sua direção até 1983. O Jornal da Bahia, que perdeu 90% de sua publicidade, sobreviveu, à custa de muitos sacrifícios, tendo de vender sua sede própria e obrigando seu diretor a um grande sacrifício pessoal, forçado que foi à venda de quase todo o seu razoável patrimônio e de sua esposa. Nessa luta, porém, encontrou o apoio de toda a imprensa brasileira e dos órgãos de classe nacionais e internacionais, além da opinião pública. E, por isso, sobreviveu até o ano de 1994, trinta e quatro anos após sua fundação. Senhores Acadêmicos, Senhoras e senhores: Peço perdão pelo tempo a que vos submeti com as minhas reminiscências e com a história de minha vida literária, porque o primeiro dever do acadêmico que toma posse é o de registrar a história dos que o antecederam nesta cadeira nº 35, que acabo de assumir, com muita alegria e orgulho, por ter sido seu Patrono Manoel Vitorino Pereira; seu Fundador Antonio Pacifico Pereira e seus titulares Affonso Costa, Ruy Santos e Rubem Rodrigues Nogueira. 313 Revista ALB 50_finalizada.pmd 313 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Manoel Vitorino Pereira: Nasceu a 30 de janeiro de 1853, nesta Cidade do Salvador, filho de Antonio José Pereira, marceneiro, de nacionalidade portuguesa, e de sua esposa Dona Carolina Maria Franco, brasileira. Apesar de sua origem humilde, Manoel Vitorino aspirou, bem cedo, aos estudos médicos. Era à noite – após o diuturno labor da marcenaria – que estudava, até lograr a matrícula na escola médica, primaz do Brasil, a gloriosa Faculdade de Medicina da Bahia, aos dezoito anos. Conquista, por concurso, no quinto ano, o lugar de Interno da Clinica Médica – vitória das mais expressivas. A 16 de dezembro de 1876 realizou perante a Congregação da Faculdade, o sonho ardente de sua mocidade: a colação do grau médico, aos vinte três anos de idade. Não tardaria Manoel Vitorino a concretizar outra acalentada aspiração: a viagem à Europa, que empreende no intuito de aperfeiçoar seus conhecimentos médicos. Em 1881 casou-se com Dona Ametia Silva Lima, filha do seu mestre e amigo J.F. Silva Lima. Em 1883, fez concurso para a 2ª Cadeira de Clínica Cirúrgica, como candidato único. O Conselho de Mestres concedeu-lhe a nota de “louvor”. Nesta época, renova o ensino da Clínica Cirúrgica, adaptando-o às novas doutrinas e práticas em vigor nos mais adiantados centros europeus. Os alunos elevam-no, em 1884, à gloria do paraninfado, ocasião em que profere admirável discurso, de substancioso conteúdo filosófico e ético. Valeria esse discurso como uma oração de despedida... É que a política solicitaria os serviços do insigne mestre, exigindo a contribuição do seu talento à esfera do serviço publico de seu Estado e do país. Com a queda da monarquia, aos 32 anos, filiado ao Partido Liberal, seria o substituto de Virgilio Climaco Damásio como governador interino da Bahia. Numa curta gestão de cinco meses, torna-se merecedor da confiança popular e elege-se constituinte 314 Revista ALB 50_finalizada.pmd 314 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 estadual e a seguir Senador da República, aos 39 anos de idade, ocupando a presidência do Senado. Em meio a um período conturbado da vida política nacional, com uma operação de urgência do presidente Prudente de Morais, este afasta-se temporariamente do governo e passa-o, por ofício, a Manoel Vitorino. “Atingido o cume do poder, embora numa nterinidade perigosamente indeterminada, pretende exercê-lo em sua plenitude. Designa ministros, inaugura festivamente a nova sede do governo – o Palácio do Catete, adota medidas econômicas e financeiras, enfrenta o problema da Guiana Francesa e convida Rui Barbosa para defender os direitos do Brasil. Numa palavra: governa, e, com isto desperta o despeito e o ciúme de Prudente de Morais, que, quatro meses decorridos da operação, interrompe a licença sem aviso prévio, desce de Teresópolis e mediante lacônico aviso levado por um cabo de ordem, de surpresa, comunica a Manoel Vitorino que reassume suas funções presidenciais. Era o começo do fim. Manoel Vitorino não se reelege. Abandona a atividade política e passa a escrever no jornal Correio da Manhã. O sucessor de Prudente ‘’de Morais, o presidente Campo Sales, nega-lhe tudo, chegando ao extremo de vetar a lei do Congresso Nacional que lhe havia concedido a prorrogação da licença em que se achava, indispensável para a manutenção da família que se mudara para o Rio de Janeiro. Uma semana depois do veto mortificante adoece gravemente e morre no Rio de Janeiro, a 7 de setembro de 1902. Tinha apenas 49 anos de idade. A terra natal reclama os despojos do seu grande filho. Segue para a Bahia, a bordo do encouraçado Deodoro, o corpo do insígne brasileiro, que foi recebido pelo governador do Estado, Severino Vieira, com honras e pompas oficias. Com grande acompanhamento realizou-se o enterro, no Cemitério do Campo Santo, tendo falado à beira do túmulo, em 315 Revista ALB 50_finalizada.pmd 315 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 nome da Congregação da Faculdade de Medicina, o Dr. Climério de Oliveira. Findara-se, assim, a existência de Manoel Vitorino, mestre cujo talento exaltaria a cátedra médica brasileira; parlamentar cuja atuação foi modelo de sã política e sábio cuja condição e cultura constituíram uma das glórias científicas de sua pátria.” (Cf. Isolino Vasconcelos – Revista Brasileira de Historia da Medicina, volume V.) Antonio Pacífico Pereira: Fundador da Cadeira nº 35, nasceu a cinco de junho de 1846. Era irmão de Manoel Vitorino, matriculou-se na Faculdade de Medicina, onde se doutorou, após curso brilhante, em 30 de novembro de 1867, sendo o orador da turma na colação de grau. Em 1871 foram estabelecidos os concursos na Faculdade de Medicina, suspensos desde início da guerra contra o Paraguai. Realizadas as provas, com o maior brilhantismo, foi aprovado unanimemente pela congregação e nomeado pelo governo imperial. Tomou posse a 13 de maio do mesmo ano. Em 1882 foi designado lente catedrático de Anatomia Geral e Patológica. Eleito diretor da Faculdade de Medicina, exonerou-se em outubro de 1897, em solidariedade ao irmão Manoel Vitorino Pereira, que se achava em oposição ao Presidente da República. Aposentou-se em 17 de abril de 1912, continuando na Clínica e a realizar os seus estudos. Foram seus principais trabalhos: Feridas por armas de fogo (1874) tese para o concurso à cadeira de patologia; Centenário de Fundação do Ensino Médico no Brasil (1908); Memória sobre a Medicina na Bahia (1922). Morreu e foi sepultado em Salvador a 18 de novembro de 1922, aos 76 anos. Afonso Costa: Foi o segundo titular desta Cadeira. Nasceu na cidade Palmeirinhas do Jacuípe, no município de Jacobina, neste Estado, a 2 de agosto de 1885. Foi eleito para esta academia em março de 1925. Ele seguiu sua vida no interior da Bahia. Educação primária apenas. 316 Revista ALB 50_finalizada.pmd 316 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Tornou-se funcionário público para sobreviver. Mas, foi um incansável escritor. Em 1916, ao escrever um trabalho para o 5º Congresso de Geografia, denominou-o Minha Terra. Já residindo no Rio, para onde se transferiu em 1923, escreveu os livros “Poetas de outro sexo,” e Baianos de Antanho.” Tomou posse por declaração dirigida à Mesa da Academia, de acordo com o artigo 24 dos Estatutos então vigente, que foi aceita na sessão de 7 de março de 1928, considerando os acadêmicos o fato de Afonso Costa já estar residindo no Rio de Janeiro. Afonso Costa não foi somente o historiador, ou o jornalista, ou o escritor. Fundou ou dirigiu jornais, foi membro do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, e, depois do Instituto Geográfico e Histórico Brasileiro. Eleito para Academia Carioca de Letras, chegou à sua presidência. Mas não ficou aí. Editou a revista Cadernos, das quais saíram vinte números. Graças aos seus esforços conseguiu a realização, em 1936, do 1º Congresso de Acadêmicos e Sociedades Literárias do Brasil, inclusive a Academia Brasileira de Letras. Daí à Federação dos Acadêmicos foi um passo. Chegou, afinal, à velhice e à morte a 31 de dezembro de 1955. Ruy Santos: Nasceu a 15 de fevereiro de 1906, em Casa Nova, na região do Rio São Francisco. Casou-se com dona Nair Vianna Santos e teve os filhos: Engº Rui Santos Filho, falecido, e a médica Relma Santos de Souza. Sua biografia é muito rica. Formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, em 1928, aos 22 anos, foi clinicar no interior do estado, na cidade de Itapira, hoje Ubaitaba. Teve atividade profissional modesta e meteórica. Após quatro anos de exercício da medicina fez sua estreia na política, sendo nomeado prefeito daquela cidade, em 1932, pelo interventor federal, Juracy Magalhães. Trazido por ele para Salvador para exercer atividade profissional liga-se aqui a setores especializados do serviço publico, associado ao magistério superior, após a livre docência obtida 317 Revista ALB 50_finalizada.pmd 317 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 em 1936 na Faculdade de Medicina, dedicou-se a intenso e vigoroso jornalismo. Este aguça-lhe o apetite político e credenciao em 1945 ao mandato de deputado federal, que se renovaria por seis legislaturas, de 1946 a 1970, em seguida às quais é conduzido por oito anos ao Senado Federal “ de 1971 a 1978. Interrompeu sua atividade parlamentar de 1959 e 1962, para assumir uma secretaria de Estado na Bahia. Faço essas referências ao seu nome para vos dar uma ligeira ideia do quanto representou Ruy Santos na história da Bahia, como político, médico, jornalista e escritor. Mas, para não me alongar quero falar sobre sua produção literária, que honrou a Cadeira de nº 35, para a qual foi eleito a 14 de junho de 1956 e tomou posse em outubro do mesmo ano, quase ao completar cinquenta anos de idade: Teixeira moleque – 1960 (romance) Sertão maluco – 1961 Nossa Senhora dos Alagados – 1973 (romance) O poder legislativo, suas virtudes, seus defeitos – 1972 Cacau – 1974 (romance) Memórias de um leguleio – 1977 A Faculdade do meu tempo – 1978 (memórias) Recordações de um velho medico da roça – 1978 (memórias Da Aurora da minha Vida – 1978 (história) Acrescente-se a esta relação, uma inesgotável produção de artigos em jornais e revistas. Rui Santos faleceu a 20 de maio de 1985. Em homenagem à sua memória, em sessão desta Academia, o saudoso acadêmico Wilson Lins conclui sua oração com as seguintes palavras: “Por não ser possível separar nele o homem de letras do homem público, a Academia cultuará a memória dos dois, fazendo-se depositária do legado literário de um, e guardiã do exemplo de probidade cívica do outro.” 318 Revista ALB 50_finalizada.pmd 318 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Rubem Rodrigues Nogueira: Nasceu a 13 de setembro de 1913, na cidade de Serrinha, neste Estado. Dentro de quatro dias estaria comemorando 97 anos. É o quinto dos onze filhos do casal Luiz Osório Rodrigues e Ana Ribeiro Nogueira. Casado em primeiras núpcias com Adalgisa Peixoto Ferreira Nogueira, com ela teve o filho Claudio Peixoto Ferreira Nogueira e a neta Claudia. Do segundo casamento com Gilka Felloni de Mattos Nogueira teve seis filhos: Rubem Junior, Maria Patrícia, Gilka Maria, Maria do Rosário, Maria Clara e Paula. Diplomouse pela Faculdade de Direito da Bahia no ano de 1937. Inicialmente, exerceu a profissão em São Paulo, na cidade de São José do Rio Preto, e, depois, no Rio de Janeiro, transferindose finalmente para a Bahia em 1945. Aqui, foi Procurador Geral da Prefeitura de Salvador e Procurador Geral da Justiça; professor titular de Introdução à Ciência do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Católica e consultor jurídico do Ministério da Justiça. Foi membro da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto dos Advogados da Bahia. Nas legislaturas de 1947-51 e 1955-59 foi eleito deputado estadual. Suplente de deputado federal pelo Partido de Representação Popular na legislatura de 1959-1963, assumiu o mandato em 1961. Novamente suplente pelo mesmo partido de 1963 a 1967. Na Assembleia Legislativa teve atuação brilhante. Foi membro efetivo da Comissão de Constituição e Justiça. Foi autor da lei que criou os primeiros ginásios públicos estaduais no interior do Estado, assim como escolas Normais e Regionais e escolas técnico-profissionais. Foi eleito deputado Federal no exercício de 1967-1971 pela Aliança Renovadora Nacional (Arena). Defendeu a preservação do sistema ferroviário brasileiro; a assistência financeira pelo Banco do Brasil, às lavouras das regiões semi-áridas, sem hipoteca e mediante longo prazo (sisal, algaroba e palma). 319 Revista ALB 50_finalizada.pmd 319 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Representou a Câmara Federal em vários eventos internacionais. Na gestão do ministro Petrônio Portela exerceu o cargo de consultor jurídico do Ministério da Justiça. Na Câmara Federal foi, também, membro efetivo da Comissão de Constituição e Justiça. Foi membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, do Instituto dos Advogados da Bahia, membro fundador do Instituto dos Advogados Brasileiros e do Instituto Bahiano do Direito do Trabalho. Foi colaborador da Revista de Direito Administrativo (Rio de Janeiro), da revista Ciência Jurídica (Braga -Portugal) e da Revista de Informação Legislativa (Senado Federal). Se sua vida foi esse monumento de trabalho e realizações no campo parlamentar e do saber jurídico, sua obra literária ainda foi maior. A inspiração principal de suas produções literárias foi a vida e a obra de Rui Barbosa. Pela ordem cronológica, são os seguintes os seus livros publicados: O Advogado Rui Barbosa – 1949; 1º premio no concurso nacional no ano do seu centenário de vida. Pareceres – 1954 Rui Barbosa e a Técnica de Advocacia – 1956 Natureza Jurídica das Riquezas Minerais do Sub-solo – 1960 Introdução ao estudo do Direito – 1989 O Homem e o Muro – 1997 Rui Barbosa – contemporâneo do futuro – 2006. Eu tive a satisfação de estar no lançamento do seu livro O Homem e o Muro nesta Academia, no qual ele escreveu a seguinte dedicatória: “Ao colega e amigo João Falcão, muito cordialmente. Rubem Nogueira, Salvador, 23/07/1997” O saudoso acadêmico Nelson de Souza Sampaio ao saudá-lo na sua posse, encerrou seu discurso com as seguintes palavras: 320 Revista ALB 50_finalizada.pmd 320 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 “Ensina a experiência que os indivíduos inteligentes que se devotam a um grande mestre se tornam, eles próprios também mestres. É assim que a Academia de Letras da Bahia recebe hoje Rubem Nogueira, como um mestre que lhe confere honra e alegria.” Faço minhas as palavras do inesquecível acadêmico Nelson de Souza Sampaio ao ingressar Rubem Nogueira nesta Academia para ocupar a Cadeira nº 35, não obstante as divergências, já superadas, que nos colocaram em campos opostos há mais de sessenta anos. Ele integralista, eu comunista. Eu estou tendo a honra de ingressar numa Academia de Letras, ocupando o lugar de um grande acadêmico e não num partido político. Ao me afastar do Jornal da Bahia, aos 65 anos, após quarenta e seis anos de uma intensa vida na militância do Partido Comunista, no jornalismo revolucionário, na vida parlamentar, na atividade imobiliária e bancária, dediquei-me a escrever o primeiro livro: O Partido Comunista que eu conheci. Desde outubro de 1984, quando o comecei, até concluí-lo, decorreram quase quatro anos. Nesse mergulho no tempo, para escrevê-lo, fiz cerca de sessenta entrevistas, e foi muito gratificante o reencontro com velhos camaradas e amigos, ao lado dos quais vivi e lutei. Em todos, sem exceção, encontrei uma acolhida fraternal e o espírito forte, cheio de cauteloso otimismo e esperança num mundo melhor. Essa peregrinação começou fora do Brasil, em Buenos Aires, em outubro de 1984, onde fui encontrar Rodolfo Ghioldi e sua mulher, Carmen, aos 86 anos, pouco antes de falecer, em 1985, o velho líder fundador do Partido Comunista da Argentina. Seu depoimento foi muito lúcido e esclarecedor. Ao regressar de Buenos Aires, procurei no Rio de Janeiro a Luís Carlos Prestes, em sua residência na Gávea, no Rio de Janeiro. Ao lado de sua mulher, Maria Prestes, recebeu-me carinhosamente. Aos 88 anos, estava também completamente lúcido e me deu um excelente depoimento. A última vez que nos encontramos, há quarenta anos passados, eu o levava como seu chofer, do Rio 321 Revista ALB 50_finalizada.pmd 321 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 para São Paulo, foragido. Era o dia em que estava fazia cinquenta anos, 03 de janeiro de 1947. Encontrei-me, também, com Giocondo Alves Dias, então secretário-geral do PCB, substituindo a Luís Carlos Prestes, que havia rompido com a direção do Partido. Apesar de doente, entrevistei-o em três oportunidades, para não cansá-lo, e dele colhi valiosos subsídios para o livro. Em 1993 escrevi duas biografias: Giocondo Dias – Vida de um Revolucionário, lançado nesta Casa e A vida de João Marinho Falcão, meu pai, comemorando seu centenário. Antes de concluir o livro acima, morre Giocondo Dias, a sete de setembro de 1987, aos 74 anos, deixando impressionante trajetória nos seus 52 anos de vida revolucionária: de cabo do Exército e chefe militar do levante comunista de Natal, em 1935, a secretário-geral do Partido Comunista, em 1980, substituindo a Luís Carlos Prestes. Decidi escrever sua biografia movido por dois sentimentos muito fortes: minha grande admiração por ele, que conheci em 1942, aos seus 29 anos, e na militância daquele partido, durante vinte anos, e pela noção de dever perante a história política de nosso país, de registrar o amor e o devotamento de um autentico revolucionário à causa da liberdade e felicidade de nosso povo. Tendo acompanhado mais de quatro décadas de sua vida, para escrever este livro realizei, durante três anos, uma trabalhosa pesquisa para resgatar sua longa e árdua atividade política, em grande parte vivida na clandestinidade. No afã de desvendar sua vida e sua personalidade, entrevistei os familiares, doze membros do Comitê Central do PCB, muitas pessoas ligadas aos aparelhos onde vivera, seus assessores mais próximos e figuras destacadas do partido, homens e mulheres experimentados que conviveram com ele. E nessa busca encontrei uma rara joia humana. Neste livro, o leitor encontrará, finalmente, ao lado de passagens de intensa dramaticidade, páginas amenas e singelas, mas de muita beleza, nos encontros clandestinos com a família – 322 Revista ALB 50_finalizada.pmd 322 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 cinco filhos e uma extraordinária mulher – aos quais nunca faltou com sua assistência. Ao concluir este livro, fui solicitado pelos meus irmãos para escrever a biografia de nosso pai, como parte da comemoração, pela família, do seus cem anos de vida, a 13 de maio de 1993. Voltei-me inteiramente para esse objetivo. O livro era, ao mesmo tempo, um depoimento e uma biografia. Essa história mostrou-me – e aos meus irmãos – quanto o admirávamos e amávamos. Ele foi o nosso ídolo. Durante o tempo em que o escrevi, policiei-me para não passar para suas páginas essa idolatria. Uma coisa, porém, é certa: ele foi escrito com amor, alma e lagrimas. E não somente meus, mas, também, dos meus irmãos. Em 1999 escrevi o “Brasil e a Segunda Guerra Mundial – testemunho e depoimento de um soldado convocado”. Este livro é um depoimento e um testemunho sobre a Segunda Guerra Mundial, iniciada a 1º de setembro de 1939 e finda a 14 de agosto de 1945. Tinha eu a idade dezenove anos quando se desencadeou o conflito, que envolveria, de um lado, a Alemanha, do outro, a França e a Inglaterra, e se abateria sobre os cinco continentes, tornando-se, em cinco anos e meio, a mais bárbara e cruel hecatombe bélica da história. Neste livro, constata-se o fato insólito de ter sido o Brasil o único membro das Nações Unidas cujo povo exigiu a declaração de guerra ao Eixo e o envio de um corpo expedicionário, por meio de um contínuo movimento de massas que perdurou por mais de dois anos. Nunca, em nossa história, nem mesmo no recente movimento das Diretas já, foi tão decisiva a participação das massas populares na definição dos destinos do país. O Brasil jamais assistiu a um movimento popular daquela envergadura, que reuniu em todo o país centenas de milhares de pessoas. Vários autores, nacionais e estrangeiros escreveram sobre o Brasil e a Segunda Guerra Mundial. Nenhum deles, porém, analisou devidamente a correlação das forças políticas da 323 Revista ALB 50_finalizada.pmd 323 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 sociedade brasileira naquela conjuntura, nem considerou as forças populares como principal personagem desse grandioso momento histórico. O testemunho dos homens e mulheres da minha geração – que acompanharam e vivenciaram de perto todo o desenrolar da Segunda Guerra – foi fundamental para o sucesso do livro. Em 1943 fui convocado como reservista. Em setembro de 2006 escrevi o livro Não deixe esta chama se apagar – Historia do Jornal da Bahia. Trabalhei incessantemente, durante dois anos, aos oitenta e cinco anos de idade, para escrever este livro. Eu devia esta denúncia ao povo da Bahia e aos jornalistas do Brasil, para que ficasse registrado em nossa história este inominável atentado praticado contra a liberdade de imprensa em nosso país. Em 2008 escrevi A história da Revista Seiva, também lançado nesta Academia, quando ofertei a esta Casa a coleção completa desta revista. Este livro perpetua a história de uma revista que exerceu um papel muito importante na nossa vida política. Sendo um dos poucos órgãos de imprensa do país que se colocaram contra o fascismo, num período em que essa doutrina estava em ascensão e a Alemanha nazista dominava quase toda a Europa, com exceção da Inglaterra e da União Soviética. Vale ressaltar sua corajosa presença no cenário intelectual do país, pregando a liberdade e a democracia, em plena ditadura do Estado Novo. Suas páginas estão repletas de artigos da maior atualidade para a época, podendo, mesmo, ser considerados ousados, escritos por colaboradores de todo o país. Em 2009, ao completar noventa anos, escrevi minhas memórias com o título Valeu a pena (desafios de minha vida). É o livro de minhas memórias, a partir de minha infância em Feira de Santana; do curso ginasial e acadêmico; dos vinte anos de militância no Partido Comunista; de quarenta e sete anos de jornalismo; de sessenta anos como empresário do ramo 324 Revista ALB 50_finalizada.pmd 324 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 imobiliário; dez anos de atividade bancária; cinquenta anos como rotariano e sessenta e três anos de vida conjugal. Ao concluir este discurso da minha posse na Academia de Letras, neste momento tão expressivo, quero dedicá-lo à minha esposa e companheira Hyldeth, parceira solidária em todos os momentos de minha tumultuada e operosa vida. Neste momento, relembro com emoção ao misto de amor e incertezas de uma jovem de 21 anos de idade, ao deixar o lar abençoado do casal Antonio e Isaura Ferreira e a convivência fraterna com oito irmãos, no ano de 1947, para ir viver no Rio de Janeiro, clandestinamente, com um jovem marido de 27 anos de idade, que era caseiro, segurança e chofer do perseguido líder comunista Luís Carlos Prestes. E três anos depois, em 1950, volta a Salvador, mãe de duas filhas, Maria Adenil e Maria Luiza, para continuar a mesma trajetória revolucionária de seu companheiro, até o ano de 1957, quando me afastei do Partido Comunista por divergências ideológicas. Nesta altura o nosso lar já estava enriquecido por mais três filhos: João, Maria Célia e Antonio. Depois vieram Maria Helena e Wilson. Em 1971, perdemos dolorosamente o filho Antonio. A estes seis filhos quero dedicar também este momento grandioso que ora vivo, ao lado de vinte um netos e onze bisnetos. Hyldeth, quero agradecê-la pelos sessenta e três anos que me destes de feliz convivência e devotada solidariedade. Finalmente, quero prestar uma homenagem póstuma aos meus pais, João Marinho Falcão e Adenil Costa Falcão por haverem moldado o meu caráter e me proporcionarem uma educação exemplar, suplantando todas as dificuldades da época, quando em Feira de Santana não havia nenhum curso ginasial, mandandome e aos meus nove irmãos estudar em Salvador. Senhores Acadêmicos: Estou muito grato e honrado pela generosa indicação do meu nome para a Cadeira nº 35 desta Academia e quero agradecer aos 325 Revista ALB 50_finalizada.pmd 325 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 que me honraram com sua indicação e aprovação como candidato único. Prometo servi-la com a humildade e a sabedoria dos mais velhos, para que ela continue a cumprir o seu grandioso papel de colina sagrada da cultura da Bahia. Muito Obrigado! __________ Discurso de posse proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, no dia 9 de setembro de 2010 – Cadeira nº 35 da ALB. João Falcão (1919-2011) foi advogado, político, empresário, jornalista e escritor, sobretudo memorialista, tendo publicado 5 livros. 326 Revista ALB 50_finalizada.pmd 326 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Saudação ao ingresso de João Falcão na ALB Joaci Góes Eminente confrade João da Costa Falcão, Chegais a esta casa no momento mais alto da existência, quando nos inclinamos a dedicar parcela ponderável do tempo, a repassar, vezes sem conta, o filme de nossa vida, com todo o seu cortejo de ocorrências que costumamos catalogar no escrínio de nossa alma como boas e ruins, alegres e tristes, aquelas de que nos orgulhamos e outras tantas que, se pudéssemos, gostaríamos de eliminar do nosso script existencial, tentativa vã, tarefa impossível, porque, como já ensinava Agathon, no Século V A. C., na Grécia de Péricles, “Nem Deus pode mudar o passado”. Quem conhece, porém vossa poliédrica biografia, há de concluir que de tão variada e rica, nela pouco ou quase nada de relevante poder-vos-ia conduzir ao desejo de alterar algum ponto do itinerário percorrido. Inspirada nos modelos da Academia Francesa e da Brasileira de Letras, a da Bahia, se tem no compromisso maiúsculo com as letras o primado do requisito básico para o ingresso nela, também pela exponencialidade em um ou mais domínios pode-se alcançar o mesmo fim. 327 Revista ALB 50_finalizada.pmd 327 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A singularidade do vosso caso consiste, precisamente, no caráter plural dos feitos que emolduram a vossa história. A começar pelo jovem idealista que aos dezoitos anos, atraído pelo desejo de transformar o mundo, abraçou, intimorato, a causa do socialismo. Com marcante ineditismo em nosso estado, fostes o primeiro membro de família abastada a filiar-se a um partido político que propunha a erradicação da propriedade privada, como meio de fazer a felicidade coletiva. Frederick Engels foi, no particular, o caso mais conspícuo do rico que abraça o comunismo. Psiquiatras sociais que se debruçaram sobre as técnicas de proselitismo marxista concluíram que o desenvolvimento do sentimento de culpa, entre os materialmente aquinhoados, diante da pobreza de muitos, constituiu um dos mais poderosos meios de aliciamento ou, no mínimo, de promoção da simpatia ou tolerância diante do avanço da causa socialista. Não é difícil imaginar o enorme conflito em que colocastes vossos pais, tios e avós, ao perceberem que o filho, sobrinho e neto amado se encaminhava numa direção que, segundo estavam convencidos, levaria ao fim de tudo, a começar pela morte da liberdade. Contra todas as expectativas, que avaliavam como passageiro o vosso entusiasmo de jovem que chegava para a aventura da vida com a confiança do moço Rafael subindo as escadas do Vaticano, persististes, teimosa e firmemente, na perseguição da quimera que aqueceu vossa alma por vinte anos, ao longo dos quais conhecestes as dores das incertezas e o medo natural de navegar por águas não mapeadas, a percorrer caminhos virgens. Foi quando, verdadeiramente, vos habilitastes a entender o significado dos versos do poeta espanhol António Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. E andastes abrindo caminhos, do nordeste brasileiro a Buenos Aires, em missões secretas, destinadas ora ao avanço do projeto de reformar o Brasil, como meio de reformar o mundo, ora na prática de medidas arriscadas, mas necessárias ao abortamento de atos 328 Revista ALB 50_finalizada.pmd 328 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 repressivos destinados a banir do cenário político brasileiro o “fantasma” do socialismo. A prova do quanto vos saíeis bem de cada uma dessas missões era a convocação para o cumprimento de novos misteres, atribuídos àquele jovem dedicado que colocava, sem reclamar, acima de todos os seus interesses o patrocínio da comunização da sociedade brasileira. É como se tivésseis incorporado a reflexão dirigida por Antônio Siqueira Campos a Agildo Barata, em 1930: “Todas as grandes causas têm seus mártires e seus heróis; sejamos os mártires que os heróis hão de vir”, ou ainda como se houvésseis intuído a lição da chilena Gabriela Mistral, primeiro latinoamericano a ganhar o Nobel de literatura, ao ensinar que a verdadeira grandeza consiste em tomar a nosso cargo as tarefas necessárias que ninguém quer executar. Dentre tantas tarefas difíceis a vós cometidas, se incluiu a nobilíssima de responder pela segurança dos lugares onde esconder o grande líder Luís Carlos Prestes, do incessante encalço da polícia do governo federal, obstinada no propósito de prendê-lo, mais uma vez, agora em 1947, quando, de novo, o Partido Comunista foi posto na clandestinidade. Quando ponderastes que vos encontráveis na iminência de contrair núpcias, com prendada jovem baiana, ouvistes de Diógenes Arruda Sampaio, segundo na hierarquia do PC, logo abaixo de Prestes, a reprimenda de que isso era preocupação pequeno-burguesa, desmedidamente miúda para prejudicar o cumprimento de uma missão partidária tão honrosa quanto a de velar pela segurança do Cavaleiro da Esperança. Dividido entre os apelos do coração que recomendava ir ao encontro da amada e o chamamento do dever revolucionário de proteger o líder contra o alcance da mão armada da violência institucional, vivestes a vossa escolha de Sofia. Guiado, talvez, por aquela intuição profética que só o consórcio do amor com o dever é capaz de inspirar, entregastes ao deputado Nestor Duarte, no Rio de Janeiro, com o pedido de entrega-la, em mãos, em Salvador, a carta que dirigistes à noivinha Hildete, com o 329 Revista ALB 50_finalizada.pmd 329 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 apaixonado pedido de compreensão para que aceitasse prorrogar, por algumas semanas, o casamento já marcado, feitos os proclamas, convites distribuídos e escolhidos os padrinhos. Como é fácil imaginar, a notícia do adiamento produziu em Salvador os efeitos de uma bomba. Tanto maior o estouro quanto vos encontráveis inteiramente impedido de explicar as superiores razões que justificassem a inopinada quanto surpreendente alteração de agenda tão cara. É verdade que conseguistes imprimir ao vosso pedido de compreensão, uma nota de sofrimento tão tocante que só os sentimentos verdadeiros são capazes de transmitir. É como se houvésseis repassado aquela dor extrema de querer, mas não poder falar a que se referiu o padre Antônio Vieira, ao ensinar que “é tão agradável falar que até os penhascos mais duros falam. É tão desagradável não poder falar que Deus fez surdos aos que nascem mudos, porque se escutassem e não pudessem falar, arrebentariam de dor”. O fato é que poucas vezes à sociedade baiana foi oferecido pratázio tão suculento para exacerbar o gosto e o imaginário das comadres e dos compadres ao especularem sobre as possíveis razões que levaram à mudança do sagrado calendário nupcial. Mais uma vez a jovem Hildete foi levada ao calvário de resistir às advertências paternas sobre os riscos de desposar alguém de procedimento tão heterodoxo, um jovem inteligente, boa pinta, de respeitável família, mas, certamente, subversor da ordem natural das coisas, para não dizer lelé da cuca. Com o casamento vieram os sete filhos amados: Maria Adenil, Maria Luíza, João, Maria Célia, o saudoso Antônio Ferreira de Souza Falcão, o Ferreirinha, tragado na inocência dos seus quatorze anos, Maria Helena e Wilson. Genros, noras, e as centenas de descendentes diretos e colaterais, sobrinhos, netos e bisnetos vos põem à testa de um clã tão numeroso quanto belo. Ao deixardes o Partido Comunista, fizeste-o com dignidade; não recorrestes ao habitual expediente de enxovalhar aquelas práticas que vos conduziram à inevitável apostasia, inclusive o 330 Revista ALB 50_finalizada.pmd 330 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 desencanto da percepção de que nunca seríeis aceito como um puro-sangue ideológico, uma vez que indelevelmente maculada vossa origem pelo irremissível pecado da bonança familiar. O exercício de um mandato de deputado federal, entre 1955 e 1958, encerrou vossa atividade partidária, quando, então, vos decidistes por mais uma grande vertente de vossa vida: a atividade empresarial, em que esplendestes, como construtor, banqueiro, fomentador do desenvolvimento urbano e editor de jornal, já agora sem as limitações da clandestinidade. Como construtor, entre outros projetos, fostes o primeiro a edificar um prédio com a assinatura do insuperável centenário Oscar Niemeyer. Como banqueiro, fundastes e presidistes o Banco Baiano da Produção, experiência que levastes para enriquecer o governo de Luis Viana Filho, como presidente do Desembanco. Na área do desenvolvimento urbano, entre inúmeras contribuições, destaca-se o aprazível sea side resort de Interlagos, o point elegante, por excelência, do litoral Norte. Como fundador, editor e diretor do Jornal da Bahia, cumpristes a etapa final de memorável carreira jornalística ao tempo em que iniciastes, simultaneamente, exitosa atividade empresarial. É deveras surpreendente e meritório que hajais começado, em 1938, aos dezenove anos, idade própria para os folguedos da adolescência, a publicação da revista Seiva, que operou, em seus 19 números, como receptáculo de alguns dos maiores pensadores do continente. No número inaugural, lá estavam Orlando Gomes, Afrânio Coutinho, Carlos Lacerda e o vosso artigo Eu os vi no campo, contrariando recomendações partidárias. Do jovem intelectual e político Luis Viana Filho, em artigo publicado em A Tarde, de dezembro de 1938, a revista Seiva recebeu calorosos votos de boas vindas. Ainda há pouco, em 2008, destes a conhecer aos coevos o significado dessa histórica publicação, em livro prefaciado pelo brilho analítico de um dos maiores intelectuais do país, o professor e nosso confrade João Eurico Mata. 331 Revista ALB 50_finalizada.pmd 331 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Dois anos depois do fechamento de Seiva, o Partido Comunista confiou a vossa criatividade, espírito irrequieto e capacidade gerencial comprovada, em 1945, a ingente tarefa de trazer a lume o semanário, O Momento, transformado, no ano seguinte, em matutino diário, que haveria de exprimir, até 1957 o pensamento socialista entre nós. Com o fechamento de O Momento, encerravase, também, vossa participação no Partidão. A vocação para a grandeza do Jornal da Bahia se afirmou desde o primeiro momento de sua gestação: uma conversa que mantivestes com colegas de bancada na Câmara dos Deputados, as personalidades tutelares de Otávio Mangabeira, Nestor Duarte e Luis Viana filho, em fins de 1955, resultou na concessão por eles do título Jornal da Bahia e do repasse de uma velha impressora. Os prestigiosos nomes dos integrantes da direção da nova empresa responsável seguiram pelo mesmo caminho, a começar pela extraordinária figura de Zittelman de Oliva, dedicado e operoso companheiro de todas as horas, que colocou, lealmente, a serviço do novo jornal o concurso de sua reconhecida inteligência, competência gerencial e proverbial vocação diplomática. O comando da redação foi confiado ao talento de João Batista Lima e Silva, Flávio Costa, Ariovaldo Matos e Alberto Vita. Entre os jornalistas que militaram no JB, ao longo dos 25 anos em que esteve sob a vossa batuta, podemos destacar os nomes de Arary Muricy, Antônio Torres, meu colega de escola primária, Anísio Félix, o artista plástico Calazans Neto, o grande cronista Carlos Eduardo Novaes, David Salles, Emiliano José, Fernando Rocha, Genebaldo Corrêa, Glauber Rocha, Gustavo Tapioca, nosso saudoso confrade Guido Guerra, Helington Rangel, Héron Alencar, meu saudoso primo Humberto Vieira, João Santana Filho, Jeová de Carvalho, João Ubaldo Ribeiro, José Amílcar, José Gorender, Zezito Contreiras, Joselito Abreu, Lázaro Guimarães, Levy Vasconcelos, nossos confrades Florisvaldo Matos, Samuel Celestino e Luis Henrique Dias Tavares, Marcelo Simões, Marcelo Duarte, Maria Adenil, Carmela Talento, Misael Peixoto, Muniz 332 Revista ALB 50_finalizada.pmd 332 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Sodré, Nelson Cerqueira, Newton Calmon, o Santelmo, Newton Sobral, Oldack Miranda, Orlando Garcia, Orlando Sena, Otacílio Fonseca, Quintino Carvalho, primeiro redator chefe da Tribuna da Bahia, em cuja função faleceu, Sebastião Nery, Silvio Lamenha, Tasso Franco, Tom Zé, Vera Matos, Wilter Santiago, além dos fotógrafos Anísio Carvalho, Domingos Cavalcanti, Mário Paraguassu, Walter Lessa e o chargista Lauzier. Mas, certamente, foi ao lado de João Carlos Teixeira Gomes, também nosso confrade, bravo e talentoso jornalista e poeta, cognominado o “Pena de Aço”, que enfrentastes os momentos mais difíceis, quando o guante da violência institucional se abateu sobre o impávido Jornal da Bahia, com o malsão propósito de silenciá-lo. Com vossa resistência, escrevestes uma das páginas mais bonitas na defesa da liberdade de imprensa em nosso país. Tudo isso, aliás, é objeto do vosso excelente livro de 2006, “Não deixe esta chama se apagar”. Mas já é tempo de cuidar daquela vertente de vossa vida, particularmente cara à casa em que hoje ingressais, como um dos seus maiores. Refiro-me à vossa criação literária, propriamente dita. Como destaquei ao submeter o vosso respeitável nome aos confrades, sois, sem dúvida, um dos mais fecundos memorialistas brasileiros. A ninguém como a vós se ajusta o preceito da epígrafe com que Gabriel Garcia Marquez abre seu livro de memórias, Vivir para contarla, ao dizer que “La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda para contarla”.( A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda e como recorda para conta-la). Ao estreardes em livro, aos sessenta e oito anos, com o imprescindível O Partido Comunista que eu conheci (20 anos de clandestinidade), ninguém poderia imaginar que aquela seria a primeira de uma série de obras notáveis, vindo a compor, no seu conjunto, um dos mais ricos fastos do Brasil no Século XX. Os vinte e três anos transcorridos daquela estreia auspiciosa confirmam o prestígio desse livro como inestimável fonte primária 333 Revista ALB 50_finalizada.pmd 333 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 para o estudo dos conflitos ideológicos no Brasil, tendo o Partido Comunista como pivô, porque o vosso depoimento vem revestido da autoridade de quem viveu os bastidores do Partidão e da isenção de quem quer servir a verdade, sem trair, no entanto, os deveres éticos oriundos do compromisso da filiação. Em A Vida de João Marinho Falcão, fostes muito mais longe do que, simplesmente, dar uma prova de admiração e amor filiais, ao ensejo do transcurso do centenário de vosso estremecido genitor. Tivestes o talento de, amparado na exuberante personalidade de vosso pai, sem qualquer dúvida, arquétipo do que se poderia denominar Coronel Estadista, demonstrar o quanto de pujança moral, de espírito progressista e patriótico foi possível desenvolver a partir da elite do nosso patriciado rural. Em Giocondo Dias, a vida de um revolucionário, ensinais, entre tantas outras coisas, como a atitude deste líder histórico contribuiu para reduzir o grau da violência, nascida do conflito ideológico, esquerda versus direita, entre nós, ao poupar a vida dos militares, quando tomou de assalto o quartel do 21o BC, em Natal, em 23 de novembro, de 1935, Em 1999, com ‘O Brasil e a 2a Guerra’, testemunho e depoimento de um soldado convocado, radiografastes, em pormenores que impressionam, o que foi a participação do País naquela hecatombe apocalíptica, com ênfase especial sobre a intervenção popular, cujo papel foi decisivo para forçar o governo a entrar na guerra, ao lado dos países aliados, contrariamente à preocupante tendência pró nazismo, manifestada pelo ditador Vargas. Mais que tudo, o livro ensina que o Brasil foi o único país do mundo cuja entrada na guerra decorreu da pressão popular. Sem dúvida, o conhecimento dessa peculiaridade histórica importa, sobremodo, como fator de elevação de nossa auto-estima nacional. Só depois do torpedeamento, por submarinos alemães ou italianos, de mais de dez navios brasileiros, de carga e de passageiros, em águas internacionais, com a perda de centenas de vidas inocentes, foi que Getúlio cedeu ao clamor popular, para 334 Revista ALB 50_finalizada.pmd 334 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 declarar guerra ao Eixo. As maiores manifestações ocorreram em Salvador, nos meses de março e abril de 1942. Daí em diante, mais doze navios foram torpedeados na costa brasileira e alguns no litoral baiano. Quando os cadáveres bateram às nossas praias, a exemplo de mais de cinquenta nas praias de Valença, a indignação popular chegou à loucura. E vós, confrade João Falcão, testemunhastes e narrastes para a posteridade, com meticulosidade proustiana, esses momentos dramáticos de nossa história. O ensino da História, como disciplina escolar, ganharia muito em eficiência se, ao invés de o fazermos, como de praxe, do passado para o presente, passássemos a fazê-lo, inversamente, do presente para o passado. E o vosso livro sobre a Segunda Grande Guerra seria um bom começo, sobretudo porque, nele, aprendemos, como em nenhum outro, como se processou a participação da Bahia e dos baianos naquele conflito, que não teria acontecido não fosse o tratado espúrio firmado entre a loucura de Hitler e o oportunismo russo, para retalhar a Polônia. Quando se supunha que o livro Não deixe esta chama se apagar, História do Jornal da Bahia, publicado aos 87 anos, seria vosso canto de Cisne literário, eis que surpreendestes o mundo das letras com o magnun opus Valeu a pena, desafios de minha vida trazido a lume ao ensejo das festividades do vosso nonagésimo aniversário. Ao ler este grande livro, não pude fugir à tentação de refletir sobre como a vós se aplica com toda a propriedade a afirmação de que há pessoas vocacionadas para renascer como protagonistas como a fênix das cinzas. Na avaliação crítica que fez dessa obra colossal, nas páginas da Tribuna da Bahia, o amigo comum e advogado Carlos Sodré foi lapidar ao sustentar que “a obra autobiográfica com que celebra os seus 90 anos – é uma arrebatadora narrativa de sua saga. Nela, exsurgem em bela e concatenada linguagem, ricas revelações da origem interiorana do autor; da influência familiar haurida, especialmente da figura marcante de seu pai; da sequiosa busca do saber e da avidez por participar das grandes lutas do seu tempo, 335 Revista ALB 50_finalizada.pmd 335 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 donde refulge a intensa e obstinada atuação na vida estudantil, jornalística e cultural da Bahia de então; da imersão nos domínios da vida ideológica, partidária e a epopeia da clandestinidade, suas prisões e o exílio; a passagem pelo Parlamento no tempo em que homens públicos dignos e brilhantes eram regra e não exceção, como hoje; as incursões na atividade empresarial da construção imobiliária e de banqueiro; a experiência da administração pública. Ao lado de tudo isso, de sua leitura se colhe que o autor, ainda que invariavelmente altivo e rígido no cotidiano cumprimento das tarefas partidárias, nunca perdeu o traço da serenidade que lhe assinala a personalidade, sendo possível identificar nele assim um quê guevariano pois, por mais que imprimisse, ao que fazia, uma postura intransigente e dura, aflora a percepção de que se exercia “sem perder a ternura, jamais”. Confrade João da Costa Falcão, a Academia de Letras da Bahia lança sobre o vosso nome o manto da imortalidade. Sede bemvindo! Salvador, 9 de setembro de 2010. __________ Discurso de saudação ao acadêmico João Falcão, proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em solenidade de posse na Cadeira nº 35, em 9 de setembro de 2010. Joaci Góes é bacharel em Direito, empresário, jornalista e ensaísta. Desde 2009 ocupa a Cadeira nº 7 da ALB. 336 Revista ALB 50_finalizada.pmd 336 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Travessias literárias Discurso de posse Rita Olivieri-Godet Senhor Presidente, senhores acadêmicos, queridos colegas e amigos, A natureza arredia da palavra se manifesta particularmente em momentos especiais de nossas vidas: quanto mais queremos exprimir a singularidade do instante, mais a palavra se esquiva. Nosso discurso, pelo menos este meu discurso, termina recorrendo às formas usuais para manifestar um sentimento único. Não podendo apelar para a criatividade do poeta ou do romancista, pelo simples fato de o não ser, só me restaria calar. A solenidade do momento, no entanto, não me permite silenciar. Sendo assim, diante da impossibilidade de expressar plenamente e de maneira original meus próprios sentimentos, digo simplesmente que foi com surpresa e com muita alegria que recebi a notícia de minha eleição como membro correspondente da Academia de Letras da Bahia. Ver meu trabalho reconhecido por uma instituição que representa a comunidade intelectual da Bahia é, para mim, uma forma de me sentir presente na minha terra, de transcender a ausência física, transformando-a numa ausência 337 Revista ALB 50_finalizada.pmd 337 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 drummondiana, que, nas palavras do poeta, significa uma “ausência assimilada”. Agradeço ao escritor, colega e amigo Aleilton Fonseca pela indicação do meu nome, e ao escritor e acadêmico Carlos Ribeiro a proeza de ter convencido os membros desta Academia a acatar a indicação. Procurarei honrar o título, continuando a assumir a tarefa de mediadora entre duas culturas que me formaram e me levam a descobrir o mundo através de seus referentes culturais e identitários, às vezes complementares, muitas vezes contraditórios, experiência que me despertou muito cedo para a ideia de que o real é uma construção e as modalidades de percepção do mundo, múltiplas e diversas. Utilizo o fragmento de uma entrevista de um dos meus escritores preferidos, João Ubaldo Ribeiro, como mote que orientará o conteúdo da minha fala. Em entrevista recente ao Rascunho, atualmente um dos poucos jornais literários de qualidade no Brasil, sediado em Curitiba, Ubaldo declara: [...] a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e a procriar, tudo seria muito pobre. Minha paixão pela literatura tem a ver com minha visão da literatura, visão que transparecerá neste discurso com o qual pretendo evocar meu percurso de professora e pesquisadora, na Bahia e na França. Inúmeras vezes, e por motivos vários, cruzei o Atlântico. Mas antes dessas viagens se realizarem, inúmeras outras vezes meu imaginário cruzou este Oceano. Desde menina, transportavamme para um mundo desconhecido as aulas de francês de “Mamãe Cristina”, como apelidávamos carinhosamente, no Colégio de Aplicação, a professora Cristina Guerra, tia do escritor Guido Guerra. Menina, ainda, fui aluna de Raymond Van Der Haegen na Casa da França, situada, na época, no paradisíaco Vale do 338 Revista ALB 50_finalizada.pmd 338 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Canela, como paradisíaca era, para mim, a biblioteca daquela instituição onde descobria, maravilhada, a coleção dos clássicos da Gallimard, com suas capas de um amarelo discreto, e todo o mistério de um mundo que eu ignorava. Essa curiosidade pelos livros devo à estante de meu avô, Silvanísio Pinheiro, infinitamente mais modesta, mas não menos atraente que a biblioteca da Casa da França. A minha paixão pela literatura e pela França nascem praticamente juntas e se confundem num mesmo desejo de fazer a experiência do inusitado, de fugir de padrões costumeiros e aventurar-me num espaço insólito como uma “estranha estrangeira”. Jovem estudante do Instituto de Letras da Bahia, admirava a erudição do grande intelectual e ex-presidente da ABL, professor Cláudio Veiga. Mas foram as aulas de literatura francesa do professor Jacques Salah, e de Teoria da Literatura da escritora e professora Judith Grosmann que definitivamente traçaram meu caminho, inserindo-me para sempre no universo da leitura. Eis o que sou, essencialmente leitora, o que me permite ser também professora de literatura e crítica literária. A experiência da leitura é a outra face na qual o ato de criação se completa. O ato de leitura é um convite para que o leitor se aproprie plenamente das palavras e experiências emanadas dos escritores, aprendendo nos seus textos a ser livre, a ser sujeito de sua própria existência. Escritor e leitor, quando este aceita o desafio do texto literário, trilham juntos o caminho da tentativa de interpretação do ser e do estar no mundo, desdobrando-se em eus, como o poeta modernista quando afirma: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta, / [...] Abraço no meu leito as milhores palavras, / E os suspiros que dou são violinos alheios”. As experiências literárias de criação e de leitura, por caminhos peculiares a cada uma delas, fazem surgir um mundo que não existe, embasadas pelo anseio platônico de se libertar das sombras enganosas do interior da caverna, para contemplar a luz do sol. Não que a revelação esteja no final do túnel; na verdade, é impossível atingir toda a verdade, como constata Drummond 339 Revista ALB 50_finalizada.pmd 339 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 num poema homônimo. A forma de questionar o mundo é que é substancial, embora angustiante. No dizer do poeta Antônio Brasileiro: “Nenhuma verdade é paz; é só o inquietar-se” (“O anjo no bar”). É esse desassossego que é próprio da literatura e que nos prepara culturalmente para suspeitar de todo tipo de rigidez dogmática. Meu primeiro texto foi publicado pelo cineasta José Umberto, no Suplemento Literário do Jornal da Bahia, em 1974. O artigo era dedicado a uma leitura do romance O jogo da Amarelinha do escritor argentino, Júlio Cortazar, radicado na França. A obra me fascinou pela radicalidade de sua inovação formal, conjugada à sua dimensão transcendente. O título do artigo, “Em busca do absoluto”, prefigura o significado da literatura no meu próprio itinerário, atraída que fui e sou pela aspiração de ir além dos limites da realidade sensível. No meu banquete literário, “aventureira do absoluto”, persigo os sonhos desmedidos dos poetas, que ecoam em versos como os de Myriam Fraga: “O sonho que eu travo / Com fúria nos dentes”. Desde então, escrevi inúmeros textos, a maior parte deles motivada por uma necessidade imperiosa de me libertar de uma espécie de tumulto que certas obras provocam, na tentativa de domar pela reflexão o que percebo intuitivamente. O exercício da escrita situa-se, para mim, na fronteira entre esses dois movimentos: talvez por medo do abismo, sinta necessidade de tomar as rédeas e romper a embriaguez da palavra luminosa. Outras vezes, escrevo movida pela vontade de explorar determinados temas que considero de relevância social no campo do ensino e da pesquisa. Assim, à paixão pela literatura associa-se uma certa visão da literatura, veículo de prazer e transcendência, que procuro transmitir aos meus alunos. Desde os tempos de jovem professora da Universidade Estadual de Feira de Santana – a experiência profissional e humana mais marcante da minha vida – , trabalho no sentido de levar o aluno a usufruir do prazer da leitura, aliado 340 Revista ALB 50_finalizada.pmd 340 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 ao objetivo de veicular um conteúdo que contribua para despertar uma consciência crítica que o torne capaz de questionar a realidade e o seu lugar no mundo. A literatura é uma forma de conhecimento do mundo que interfere na construção do sujeito. Conhecer é libertar-se, é desenvolver a capacidade de criar outros caminhos. É nesse sentido que entendo a função do educador como, de certa forma, análoga à do artista. Minha experiência como professora e pesquisadora de literatura brasileira na França, inicialmente como professora convidada da Universidade de Bordeaux 3, em seguida como Maître de Conférences da Universidade de Paris 8 e, atualmente, como professora titular de literatura brasileira da Universidade de Rennes 2, coloca-me diante de novos desafios. A visão idealizada que eu projetava daquele país deu lugar a uma percepção crítica de sua realidade que tento compartilhar com meus alunos. O que mais me fascina é ajudá-los a descobrir uma outra maneira de ver, sentir e pensar o mundo, através das obras de escritores brasileiros estudados, ou do contato com escritores e artistas convidados para participar de cafés literários, conferências e colóquios. A produção modernista e contemporânea da literatura brasileira ocupa um lugar privilegiado nas minhas aulas e nos meus textos, com especial atenção para as obras de autores baianos: Eurico Alves Boaventura, Jorge Amado, Antônio Torres, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Brasileiro, Myriam Fraga, Aleilton Fonseca, Ruy Espinheira Filho, Roberval Pereyr, Washington Queirós, Juraci Dórea, são alguns dos escritores baianos que se fazem presentes nas minhas aulas e nos meus textos, ao lado de outros nomes de escritores brasileiros e de outras nacionalidades. Minha situação de estrangeira aguçou certamente meu interesse por uma reflexão sobre as construções identitárias na literatura, discutindo questões relacionadas com figurações de projetos identitários da nação brasileira, relações entre identidade e alteridade, ou ainda debruçando-me sobre a construção do imaginário social do Brasil na França. Dediquei a este tema, aberto aos diálogos interculturais, vários estudos que comentarei brevemente. 341 Revista ALB 50_finalizada.pmd 341 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A presença do Brasil no imaginário literário francês foi construída através de séculos. Evoco rapidamente alguns momentos-chave dessa construção do imaginário social. Penso em escritores tão distantes no tempo quanto em termos de projetos, como Michel de Montaigne (1533-1592), Victor Hugo (1802-1885) ou Conrad Detrez (1937-1985). É possível ler em algumas obras desses autores uma crítica à decadência da civilização europeia, em contraposição à esperança de ver surgir uma nova humanidade do outro lado do oceano, movimento que corresponde a um eixo ideológico que projeta no Novo Mundo a utopia de recomeço de uma civilização que está morrendo. Montaigne, contemporâneo das descobertas, escreve em um dos seus ensaios: Notre monde vient d’en trouver un autre e acrescenta: cet autre monde ne fera qu’entrer en lumière quand le nôtre en sortira . Alguns séculos mais tarde, em 1888, período fundamental para a história do Brasil, num poema endereçado a republicanos brasileiros, Victor Hugo escreve: Vous êtes le printemps et moi je suis l’hiver ;/ Je suis le soir tombant, vous le jour frais et clair,/ Et j’aime à regarder l’aurore s’épanouir./ Oh oui ! je sens la force et la joie me venir/ A vous voir. Vous croissez. L’Europe, le vieux monde/ Dans l’histoire a vécu la rapide seconde/ De sa vie. Vous serez l’Europe après-demain. No poema de Victor Hugo, o Brasil aparece como um país no qual os aspectos ainda “primitivos” devem evoluir em direção aos valores da civilização ocidental. No século XX, no período crítico dos anos 60, a experiência brasileira assume um caráter iniciático para o escritor franco-belga Conrad Detrez. De modo semelhante ao escritor austríaco Stefan Zweig, que se instala em Petrópolis para fugir da guerra na Europa, Detrez quer se afastar de uma Europa que considera superficial e que, segundo ele, condenaria o indivíduo ao vazio existencial: Je suis né en 1937 au pays de Liège. Une deuxième vie a surgi et a bouleversé la première, en 1963, à Rio de Janeiro. Detrez elabora a imagem de um Brasil terceiro mundista, onde os verdadeiros combates por valores autênticos visando à transformação radical da sociedade, podem e devem ser travados. 342 Revista ALB 50_finalizada.pmd 342 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Esses dados só reforçam a constatação de que estamos diante de uma forma recorrente de representação das «terras virgens» do Novo Mundo, situando-as na continuidade da Europa ou delas se servindo para elaborar a utopia do recomeço. O novo nada mais é do que o “mesmo” idealizado, o mito do Brasil país do futuro, espécie de terra prometida ou de terra potencialmente afortunada: a alteridade sonhada determina a relação com o Outro. Num ensaio de 2009, ano da França no Brasil, intitulado “Imagens do Brasil no romance francês contemporâneo”, examino a permanência e/ou a releitura desses mitos, ou ainda a veiculação de novos parâmetros subjacentes às imagens privilegiadas na representação da alteridade brasileira pela produção da literatura francesa do século XXI. Os romances analisados se inscrevem numa tendência literária contemporânea que explora, com maior ou menor sucesso, as poéticas do Outro. Dou-me conta que liberados da visão etnocêntrica e da noção de ação civilizadora no contato com o outro, os escritores são investidos de uma consciência etno-antropológica, procurando desenvolver um processo de compreensão e de interpretação dos dados materiais da cultura brasileira minuciosamente descritos nos textos romanescos. Existe uma real vontade de diálogo e um desejo de ultrapassar os estereótipos. Nem sempre, porém, os autores conseguem evitar os problemas oriundos de uma concepção essencialista da identidade, marcada pela psicologia dos povos e pela naturalização dos traços culturais. As boas intenções não garantem o sucesso da realização literária. Esta depende do projeto literário e do talento de cada autor. São esses elementos que fazem com que a viagem que induz a uma “arqueologia” de culturas e de povos se realize também no plano da linguagem. O último trabalho que escrevi, no âmbito dos diálogos interculturais entre Brasil e França, diz respeito a um texto de apresentação para a antologia bilíngue Poetas e Poemas da Bretanha e da Bahia, ainda inédita, organizada por Dominique Stoenesco e 343 Revista ALB 50_finalizada.pmd 343 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Aleilton Fonseca. Nele ressalto a importância de tomar a linguagem poética como mediadora da interação entre espaços geográficos e culturais distintos. Dos dois lados do Atlântico, poetas repetem, incansáveis, o mesmo gesto ancestral de refundar a linguagem para desvelar e recriar o real, buscando sondar os enigmas do ser humano: “Pela palavra o homem é uma metáfora dele mesmo”, escreve o poeta mexicano Octavio Paz. Formada inicialmente pelo estruturalismo francês, que sofreu um processo de amadurecimento e de reajustamento através dos anos, meus trabalhos de análise literária são, em parte, fruto desse viés teórico ao me debruçar sobre os aspectos imanentes do texto, recorrendo à narratologia e à poética, para tentar dar conta da especificidade da linguagem e da construção formal da obra. Esses aspectos articulam-se a outras perspectivas inspiradas na fenomenologia da literatura, na temática, na sociocrítica. Considero que a obra literária é, ao mesmo tempo, forma estética e social, esforçando-me, nas minhas leituras críticas, por articular essas duas vertentes. Meus trabalhos dialogam com certos conceitos da história, da sociologia, da antropologia, cada vez que eles me parecem pertinentes a dar conta da natureza diversa do texto literário, procurando esclarecer a compreensão de um ou vários de seus aspectos, sem negligenciar a especificidade de sua linguagem, que, segundo Theodor Adorno, é a garantia do que ele denomina “a autonomia relativa” da expressão artística literária. Adorno e Bakhtin orientam a minha percepção da obra literária enquanto fenômeno de literariedade e de historicidade. A ideia do texto literário enquanto espaço dialógico atravessa minhas leituras. Considero que o exercício hermenêutico, característico do discurso crítico, deve procurar dar conta desse movimento dialético do texto literário a um só tempo centrado nele mesmo, na materialidade de sua linguagem, e aberto ao mundo, inscrevendo no seu seio uma multiplicidade de relações. Sartre, em Qu’est-ce que la littérature?, atribui ao escritor a função de fazer com que ninguém possa ignorar o mundo, nem tampouco 344 Revista ALB 50_finalizada.pmd 344 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 se dizer inocente. O escritor, ele mesmo, imerso e engajado no universo da linguagem, não pode mais fingir que não sabe falar. Para o escritor e o leitor, a experiência literária redefine e amplifica os possíveis destinos do eu, sua relação com o Outro, sua consciência reflexiva sobre o mundo que os cerca. Desde a adolescência, aprendi com o existencialismo sartriano uma certa ideia de liberdade: o aforismo, “o homem está condenado a ser livre”, marcou-me profundamente. A adesão, romântica e ingênua dos meus tempos de adolescência, à ideia de Sartre foi amadurecendo ao longo do meu aprendizado, na vida e nos livros, sobre a distância entre o mundo que idealizamos e aquele em que nos é dado viver. Paradoxalmente, apesar da consciência dessa distância, o aforismo sartriano se impôs. E se impôs como uma forma de resistência, de estratégia de sobrevivência, na qual a literatura desempenha um papel fundamental. Compartilho com Sartre a ideia de que “a literatura é, essencialmente, a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente.” Constato, como o faz o escritor francês, que a ausência de condições para que sociedades sem classes, sem ditadura, existam hoje, é que justifica o ato de continuar a escrever. Para além dessa função que pode parecer excessivamente pragmática, minha visão da literatura aproxima política e estética, valorizando sua dimensão subjetiva, aquela que toca o ser humano na sua mais profunda intimidade. Por esse motivo identifico-me com o projeto literário surrealista que ilustra bem esse objetivo de ultrapassar as contradições entre materialismo e idealismo. É o que se lê, claramente, na afirmação de André Breton que aproxima as célebres frases de Marx e de Rimbaud: Transformer le monde a dit Marx, changer la vie, a dit Rimbaud, ces deux mots d’ordre pour nous n’en font qu’un (“Transformar o mundo, disse Marx, mudar a vida, disse Rimbaud, essas duas palavras de ordem se transformam, para nós, em uma única”). Num contexto marcado pelo desencanto pós-moderno, pela uniformização da cultura de massa, no qual diversão é sinônimo 345 Revista ALB 50_finalizada.pmd 345 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de prazer e a energia da vida se vê submergida pela lógica do capital e do trabalho, alienado e alienante, a palavra deslocada e plural da literatura segue manifestando sua resistência, para, no dizer do escritor moçambicano Mia Couto, vingar uma realidade feita de carência e injustiça. A modulação insólita do discurso literário não cessa de inaugurar e de propor outras trajetórias possíveis, como no poema “Lembrete” de Carlos Drummond de Andrade: Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida. Ávida de poesia e de vida, prossigo o caminho que me foi aberto pela literatura. Nele se incorpora, hoje, esta solenidade que muito me honra. Muito obrigada. Discurso de posse como membro correspondente proferido no salão nobre da ALB em 4 de agosto de 2011. Rita Olivieri-Godet é Doutora em Letras (USP), com Pós-Doutorado na França, é professora titular de Literatura Brasileira na Universidade Rennes 2 (França), tem diversos artigos e livros publicados no Brasil e na França. 346 Revista ALB 50_finalizada.pmd 346 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Saudação a Rita Olivieri-Godet Aleilton Fonseca Caríssima acadêmica Rita Olivieri-Godet: Que missão agradável e inesquecível a Academia de Letras da Bahia me concede, neste momento de grande júbilo para as Letras da Bahia. Saudar o seu ingresso nesta Casa é, para mim, um motivo de enorme satisfação, de entusiasmo e de orgulho, por ver seu nome se associar ao quadro de ilustres escritores e intelectuais baianos, pasando a fazer parte de uma tradição que reúne personalidades ilustres da nossa vida cultural ao longo de quase um século. Minha caríssima amiga: venho acompanhando sua laboriosa trajetória intelectual há anos, e desde cedo percebi nos seus gestos, nas suas palavras e nas suas realizações a manifestação de uma inteligência privilegiada, de um caráter exemplar e de uma personalidade generosa, cuja simpatia e encanto conquistam a amizade, o respeito e a admiração dos que se acercam de seu convívio pessoal e profissional. Tantos são os seus amigos, alunos e admiradores. 347 Revista ALB 50_finalizada.pmd 347 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Minhas Senhoras e meus Senhores: Este momento solene é de enorme significado para a cultura baiana, na sua expressão mais cosmopolita e plural. Estamos diante de Rita Olivieri-Godet, uma mulher baiana, natural de Salvador, estudiosa da literatura baiana e brasileira, há anos radicada na França, e lecionando nossas letras na universidade francesa. Eleita por unanimidade, torna-se agora membro da Academia de Letras da Bahia, que assim homenageia a sua trajetória intelectual e lhe confere o reconhecimento – em sua própria terra - pelos seus altos méritos, como ensaísta criativa, criteriosa e profícua que se dedica a divulgar e inserir a literatura baiana e brasileira na Europa, contribuindo enormemente para o conhecimento de autores, obras e temas brasileiros no exterior. Sua brilhante trajetória universitária teve início na Universidade Federal da Bahia, onde se diplomou em Licenciatura em Letras Vernáculas com francês, demonstrando desde já a sua vocação para as aproximações e os diálogos entre culturas diversas, através das línguas e das literaturas. Ingressou no quadro docente da Universidade Estadual de Feira de Santana, assumindo a cadeira de titular de Teoria Literária. Ali se destacou de forma exemplar, no ensino e na convivência universitária. Fez avanços nos estudos de literatura, elevando a qualidade do ensino das letras na UEFS. Por sua qualidade docente, influenciou e agregou diversos estudantes de então em torno de si, formando-os enquanto pesquisadores e ensaístas, despertando-lhes a competência para a investigação e a análise literária. Rita Olivieri-Godet é ainda hoje na UEFS um nome de referência, do qual muitos manifestam o orgulho de haver sido seus alunos. Na UEFS alguns de seus ex-alunos exercem o magistério superior e a pesquisa, como prova de seus investimentos didáticos e de sua solidariedade acadêmica. Desde então despertou para a necessidade de estudar atores baianos e fazer avançar a abordagem de novos temas e escritores contemporâneos, muitos dos quais autores de obras significativas 348 Revista ALB 50_finalizada.pmd 348 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 que continuavam sem a devida atenção dos críticos e dos pesquisadores. Assim, ao realizar seus estudos de doutorado Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo, Rita Olivieri-Godet mais uma vez deu uma contribuição inovadora. Debruçou-se de forma intensa e profunda sobre a obra poética de Adélia Prado, então pouco estudada e pouco considerada pela crítica, revelando os valores literários e temáticos de sua obra, numa tese de doutorado magistral, pela substância teórica, pelo rigor metodológico e pela abordagem inovadora da moderna poesia brasileira. Firmava-se de vez a grande ensaísta, um epíteto que a acompanha até a presente data. E Rita tornou-se uma das mais brilhantes ensaístas da literatura brasileira contemporânea, uma verdade reconhecida no Brasil e no exterior, mercê de seus ensaios e artigos disseminados em diversas publicações, apresentadas em congressos internacionais, em fóruns de pesquisa, e publicados em diversas revistas, sites e livros. Rita Olivieri-Godet não se acomodou com o título de Doutora, conferido pela maior e mais prestigiada universidade da América do Sul. Seguiu para a França, para fazer seus estudos de pósdoutorado, na Universidade de Paris 10. E seu interesse pelo estudo e pela divulgação da nossa literatura passou a ser a marca fundamental de seu trabalho. Em seguida, seu interesse pela França e o interesse dos franceses por seu trabalho se cruzaram de maneira mais concreta E Rita assumiu a acdeira de Professor Visitante, para lecionar literatura brasileira na prestigiada Universidade de Bordeaux 3. Sua missão francesa então começava de forma intensa e excepcionalmente fértil. Não tardou, e assumiu a cadeira de Maître de Conférences na Universidade de Paris 8, cargo que exerceu entre os anos de 1998 e 2003. Isso porque, justamente naquele ano de 2003, Rita Godet auferiu o seu maior feito acadêmico na pátria de Charles Baudelaire. Prestou concurso público para professora titular de 349 Revista ALB 50_finalizada.pmd 349 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 literatura brasileira na Université Rennes 2 em 2003, chegando ao auge de sua carreira universitária na França, ocupando lugares cada vez mais importantes na estrutura universitária, na docência, na orientação de pós-graduação, na pesquisa e, finalmente, na administração acadêmica de sua instituição. Assim, sua carreira de pesquisadora internacional deslanchou de modo insofismável, para a alegria de seus amigos e admiradores, e para a grandeza da literatura baiana e brasileira, que ganhava na França uma divulgadora de altíssimo nível e de uma generosidade intelectual poucas vezes vista no nosso meio universitário. Sim, porque Rita Godet não se bastou com os cargos e o prestígio conquistados através de sua atuação dinâmica e percuciente no seleto, criterioso e exigente espaço universitário francês. Ela passou a ser uma espécie de agente cultural, ao se dedicar a promover eventos e cursos, para os quais convida escritores e professores baianos e brasileiros, promovendo um intercâmbio contínuo e cada vez mais efetivo, construindo e mantendo uma ponte Brasil-Bahia-França, pelas quais já transitaram dezenas de escriores e de pesquisadores universitários. Como resultado desse admirável trabalho, constam nas biografias e currículos de desses autores e ensaístas suas diversas viagens à França, como convidados para eventos e palestras, como membros de grupos internacionais de pesquisa, e como estudantes de mestrado, doutorado e pós-doutorado. Como efeito dessas ações, constam ainda esses vários nomes como coautores de livros de ensaios publicados em França e no Brasil, marcando espaço internacional para os estudos de literatura brasileira contemporânea, elevando o currículo e o nível dos ensaístas baianos e brasileiros, com importantes publicações no exterior, traduzidos para a língua francesa. Que missão extraodinária! Um trabalho de tão alto interesse nacional, de grandeza e de generosidade – e, ao mesmo tempo, feito com simplicidade, com naturalidade, e com muito empenho e espírito coletivo. Nessa trajetória admirável, é forçoso aduzir 350 Revista ALB 50_finalizada.pmd 350 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 que, de 2004 a 2007, Rita Olivieri-Godet exerceu o cargo de diretora adjunta da École doctorale “Humanités et Sciences de l’Homme” da Université Rennes 2. E tornou-se Diretora do Departamento de Português dessa grande universidade da Bretanha. É também responsável pela coordenação do Master Internacional “Les Amériques” e pelo laboratório de pesquisa PRIPLAP- Pôle de Recherche Interuniversitaire sur les pays de langue portugaise, e da equipe de pesquisa ERIMIT – Equipe de Recherche “Mémoires, Territoires, Identités”, espaço de pesquisa no qual organiza inúmeras atividades em torno da cultura brasileira, com um destaque especial para a cultura baiana. Os colóquios literários promovidos e coordenados por Rita Godet são marcantes, inesquecíveis, produtivos e encorajadores para todos aqueles que deles participam e guardam recordações indeléveis. Mesmo porque, para além de cada um desses encontros e dessas festas, permanecem as experiências acumuladas, os intercâmbios estabelecidos, as amizades conquistadas. E sempre surge um livro, no qual se registram as contribuições dos convidados, fazendo circular nomes e saberes, engrandecendo autores, temas e obras de nossa cultura literária e artística. Assim, podemos citar o Colóquio sobre Jorge Amado, que resultou num admirável livro, com uma edição francesa pela Université de La Sorbonne Nouvelle – Paris 3, e uma edição brasileira pela Fundação Casa de Jorge Amado, desde então referência inapagável nos estudos amadianos na França e no Brasil. Com excepcional brilho, ela promoveu o Colóquio Internacional “João Guimarães Rosa: memória e imaginário do sertão-mundo”, realizado em Rennes, Capital da lendária Bretanha, em outubro de 2008, que contou com a participação de pesquisadores de várias universidades brasileiras, francesas e italianas, e a presença representativa de artistas e professores baianos como Antônio Brasileiro e Juraci Dórea, de quem os franceses tiveram a oportunidade de admirar a obra plástica, numa exposição realizada no salão da Biblioteca da Universidade. 351 Revista ALB 50_finalizada.pmd 351 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Incansável viajante, Rita Godet não para de colaborar com as Universidades brasileiras entre as quais a Universidade Estadual de Feira de Santana-UEFS, a UFBA, Universidade de São Paulo, a Universidade de Brasília, a Universidade Federal de Minas Gerais, entre outras instituições que recebem sua atenção, como parceiras de empreitadas ousadas, efetivas e admiráveis. Um trabalho tão fértil havia mesmo de resultar numa produção bibliográfica de altíssimo nível e de variado alcance temático. São vários os seus artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras. São cerca de onze publicações dedicadas a literatura e cultura brasileiras no Brasil e na França. É preciso destacar a importância do livro A poesia de Eurico Alves. Imagens da cidade e do sertão, de 1999, reunindo estudos seus e de outros autores, em torno dos temas e formas da poesia do poeta feirense, em ensaios que são hoje referências obrigatórias e citações indispensáveis para qualquer análise que se faça da poesia baiana do século XX. Seguem-se outros títulos de livros organizados ou coorganizados, sempre reunindo estudos importantíssimos sobre os diversos aspectos de nossa produção literária. Podemos destacar enfaticamente o livro Jorge Amado : leituras e diálogos em torno de uma obra (de 2004), com edição francesa em 2005, em parceria com a prestigiada pesquisadora francesa Jacqueline Penjon, da Sorbonne, reunindo trabalhos de grande alcance crítico e temático em torno da obra de Jorge Amado. E ainda o livro La littérature brésilienne contemporaine (de 1970 à nos jours), de 2007, em parceria com Andrea Hosne (USP), resultado de mais um colóquio internacional, com a expressiva presença de pesquisadores baianos e brasileiros. Com Rubens Pereira, organizou o livro Memória em movimento : o sertão na arte de Juraci Dórea, publicado pelo Programa de PósGraduação em Literatura e Diversidade Cultural, da UEFS, em 2003, reunindo ensaios seminais sobre a admirável obra do poeta e artista plástico feirense. 352 Revista ALB 50_finalizada.pmd 352 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Organizou também o livro Figurations identitaires dans les littératures portugaise, brésilienne et africaines de langue portugaise, editado pela Université Saint-Denis, Université Paris 8 Com Lícia Soares Souza, da UNEB, organizou o livro Identidades e representações na cultura brasileira, publicado em 2001, cujo título já demonstra a relevância e atualidade do tema. Com a Profa Maryvonne Boudoy organizou Le modernisme brésilien, também editado por Saint-Denis, Université Paris 8, no ano 2000. É necessário também exaltar com ênfase a sua proeza mais recente, resultado de pesquisas originais, realizadas na universidade francesa. Trata-se do seu ensaio sobre a obra de João Ubaldo Ribeiro, que atualiza a crítica e orienta novos estudos, como uma preciosa contribuição teórica e metodológica para todos aqueles que trilham os caminhos da ensaística literária contemporânea. De fato, o livro é ousado e inovador, dedicando-se a analisar as Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro. Tese de concurso na França, o livro foi escrito originalmente em francês, com o título João Ubaldo Ribeiro: Littérature brésilienne et constructions identitaires, sendo publicado pelas editora da Universidade de Rennes 2, em feliz parceria com Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural/UEFS-Bahia, em 2005; numa coedição encaminhada por Rosana Ribeiro Patricio, então coordenadora do referido programa de pós-graduação. Uma obra crítica dessa invergadura científica e acadêmica não podia ficar inédita no Brasil. Assim, cuidadosamente traduzido para o português, o ensaio Construções identitárias na obra de João Ubaldo Ribeiro constitui uma versão revista do livro publicado originalmente em francês. Assim, traduzido pela própria autora e por Regina Salgado Campos, a obra veio a lume, em português, numa coedição tripartite que reuniu a editora Hucitec, de São Paulo, a Editora da UEFS, de Feira de Santana, e a Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, sendo lançado em 2009, com 353 Revista ALB 50_finalizada.pmd 353 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 uma recepção crítica admirável nos meios acadêmicos. Este livro indispensável constitui hoje um ensaio seminal na abordagem da obra de João Ubaldo Ribeiro, constando em bibliografias de teses, cursos, concursos e seleções de pós-graduação, além de constituir um exemplo de lucidez crítica, justa aplicação de conceitos e métodos, fazendo do ensaio uma arte literária maior. Por todos os seus méritos, o livro recebeu o Prêmio de Ensaio 2010, da União Brasileira de Escritores, do Rio de Janeiro, sendo considerado o melhor ensaio já escrito sobre o autor baiano. Do que, enfim, trata esse livro tão festejado e reconhecido? No livro, a ensaísta debruça-se sobre a ficção ubaldiana para analisar a questão da identidade. Ora, a configuração identitária dos povos nunca foi um processo claro e pacífico. A história tem mostrado como as diferenças provocam conflitos, levam à intolerância e à discriminação. Em face disso, a literatura muitas vezes se torna uma forma de representação crítica, mostrando a crueza e o absurdo de realidades que precisam ser compreendidas e superadas. A obra de João Ubaldo Ribeiro mostra-se atenta a essas questões, ao abordar diversos aspectos da formação social do povo brasileiro. O livro de Olivieri-Godet debruça-se sobre as construções identitárias do autor de O albatroz azul, para examinar uma das facetas mais significativas de sua obra. Rita Godet faz isso com muita autoridade, uma vez que antes já publicara diversos artigos sobre as representações literárias das relações culturais contemporâneas. No ensaio, ela analisa Viva o povo brasileiro, Vila Real, O Feitiço da ilha do pavão, A casa dos budas ditosos, as crônicas do livro Um brasileiro em Berlim, além de contos do livro Já podeis da pátria filhos. Godet aborda os textos ficcionais a partir de uma conceituação teórica específica, citando autores brasileiros e franceses, como Antonio Candido, Silviano Santiago, Zilá Bernd, Francis Utéza, Georges Bataille, Gérard Genette, Gilles Deleuze, e os caribenhos Patrick Chamoiseau, Édouard Glissant, entre outros. 354 Revista ALB 50_finalizada.pmd 354 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Nos quatro capítulos do livro, a autora estabelece conexões entre as obras de João Ubaldo e as questões identitárias, demonstrando suas recorrências, seus significados e sua abrangência. Com isso, insere a literatura brasileira na problemática das identidades, como ponto de partida para situar o lugar ocupado por Ubaldo nesse universo temático. Seu estudo aponta o percurso do ficcionista, desde a tendência carnavalizante de Vencecavalo e o outro povo (1974), passando pelo neo-realismo de Vila Real (1979), até chegar a uma ficção que “faz coexistir uma visão épica e dramática com a perspectiva carnavalesca, que, cada vez mais, terá tendência a se impor em sua obra” (p. 28). Em suas análises, Godet anuncia que, em João Ubaldo Ribeiro, “a problemática da identidade nacional afasta-se da homogeneização dos traços culturais, privilegiando uma representação plural da identidade brasileira” (p. 28). Para demonstrar seu ponto de vista, ela coteja os textos ficcionais com o aparato teórico, privilegiando a articulação entre as estratégias narrativas e as figurações identitárias operadas pelo escritor. O ensaio correlaciona memória, história e ficção, e aproxima identidade, território e utopia, mostrando as marcas da voz autoral, as intertextualidades, a técnica e as estratégias narrativas. Segundo a autora, Ubaldo implode estereótipos, instaura a pluralidade de vozes, revelando a face obscura e conflituosa da formação identitária brasileira. Rita Godet demonstra como os textos de João Ubaldo refletem sobre os dilemas de nossa época, ainda marcada por reações de intolerância diante de certas manifestações da diversidade cultural e identitária. Dessa forma, considera que sua ficção contribui para que entendamos melhor a sociedade em que vivemos, identificando seus conflitos e suas possíveis soluções. Sem dúvida, um ensaio de grande percuciência literária que se constitui também como uma ação civilizadora, ao ressaltar a necessidade de se refletir sobre os valores das diferenças e das convivências identitárias. 355 Revista ALB 50_finalizada.pmd 355 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Sr Presidente, senhoras e senhores: Os méritos de Rita Olivieri-Godet são sobejos e sobrantes para nossas homenagens e nosso reconhecimento. Ela construiu um lugar de relevo para a ensaística baiana na França, através de seu intenso trabalho de docente, pesquisadora e conferencista. Seu assunto principal tem sido a obra de autores baianos, como Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Antônio Torres, Antônio Brasileiro, Juraci Dórea, Eurico Alves, entre tantos outros brasileiros. Nesta Casa, portanto, ela está no seu devido lugar, colhendo o reconhecimento e as merecidas glórias em sua própria terra natal. Rita é aquela santa de casa que faz milagre. E tem devotos. E este discurso de recepção a Rita Olivieri-Godet devia ser mais curto, para que mais cedo todos aqui pudessem, como farão em instantes, saudá-la, abraçá-la, confraternizando-se com a Academia de Letras da Bahia por diplomá-la e consagrála enquanto acadêmica. Todavia, diante de tão extraordinária e brilhante trajetória intelectual, por mais que eu me tenha extendido, ainda foi pouco para celebrar o talento, o carisma, a simpatia e a beleza de uma pessoa tão iluminada, ao mesmo tempo tão mansa e simples de coração, tão dada aos amigos, como é a nossa mais nova acadêmica baiana. Minha querida e admirada amiga Rita Olivieri-Godet, seja bemvinda a esta prestigiosa Casa, lugar simbólico da cultura baiana, que se torna mais sábia, mais simpática e mais bonita com a sua iluminada presença e a sua dedicação incansável às nossas letras. Muito Obrigado. Salvador, 4 de agosto de 2011. ________ Discurso de saudação à acadêmica Rita Olivieri-Godet, proferido na solenidade de posse, realizada no salão nobre da ALB, em 4 de agosto de 2011. Aleilton Fonseca é escritor, ensaísta e Professor Pleno (titular) da UEFS. Desde 2005 ocupa a Cadeira nº 20 da ALB. 356 Revista ALB 50_finalizada.pmd 356 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Discurso de posse Maria Beltrão D esejo iniciar esta fala expressando meu comovido agradecimento a meu amigo, colega do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Ex-presidente da Academia de Letras da Bahia, Dr. Edivaldo Boaventura pela indicação de meu nome. Tenho o prazer de compartilhar sua amizade há anos. E muito tenho me beneficiado com este convívio. O professor Edivaldo é um belo escritor, grande intelectual e dedicado educador, professor, Mestre e Ph.D em Educação pela Pennsylvania State University. Ocupou já, por duas vezes, o importante cargo de Secretário de Educação e Cultura do Estado da Bahia. Trata-se de personalidade de exceção, culta, superiormente lúcida e informada. Ingressando na Universidade Federal da Bahia pela rota da Escola de Administração passou pela Economia para finalmente fixar-se no Direito. É um polimata, um sobrevivente intelectual do tipo de saber que concretizou os homens da Renascença. Jamais fugindo de desafios aceitou o mais recente: Transformar a nova Universidade de Salvador num centro de excelência, o que vem logrando com inegável êxito. 357 Revista ALB 50_finalizada.pmd 357 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Não pretendo relatar aqui suas conquistas nem comentar sua obra, já de profundo conhecimento de todos os presentes. Desejo apenas ressaltar alguns pontos, justificando meu encanto e meu orgulho de contar no rol dos meus amigos com um homem com estas qualidades. Sabemos que seu envolvimento com as Letras e a Literatura é antigo. Já fazia parte de sua vida desde os tempos do Colégio Antonio Vieira, onde fez seus estudos básicos. E seguiu com ele daí pra frente. Vício nobre do espírito, esta irresistível vocação humanística sempre o marcou em todo o seu trajeto profissional. Tornou-se um intelectual respeitado e reconhecido internacionalmente, merecendo inúmeras honrarias. Entre elas a de Comendador e Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique, uma das mais importantes de Portugal, além de Donato de Devozione da Soberana e Militar Ordem Hospitalar de Malta, a mais antiga ordem Religiosa Medieval, já que a do Santo Sepulcro, anterior, não chegou a ser institucionalizada como ordem de serviços e campanha no período das cruzadas. A Edivaldo Boaventura, portanto, dirijo meus agradecimentos. Faço também questão de sublinhar o importante apoio que meu nome e minha candidatura receberam da querida colega e grande amiga, Consuelo Pondé. Estendo a Consuelo meu comovido agradecimento por este voto de confiança que é também uma forma de confirmar o valor da nossa antiga amizade. Não posso omitir os membros ilustres desta Academia que tão generosamente aceitaram meu nome como membro correspondente desta notável instituição e ainda saudar com emoção e profundo respeito o atual Presidente desta venerável Academia, Aramis Ribeiro Costa. ********** A Bahia sempre foi para mim uma região fascinante por sua história, sua gente, sua vocação intelectual, berço de ilustres nomes 358 Revista ALB 50_finalizada.pmd 358 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de nossas letras e de nossa vida política. Terra de Castro Alves, de Rui Barbosa, de Luis Vianna Filho. Não é minha intenção criar em torno desta bela terra nenhuma imagem irreal de luz e de sonho. A Bahia dispensa e não precisa de nada disto. Ela já e bela e já é sonho por sua história, sua realidade e sua importância cultural. Soube forjar através dos tempos o próprio mito. Pelo trabalho de sua gente. Pela grandeza de seu esforço. Mito no sentido dado ao termo por Mircea Eliade, o de ter como função mapear nosso imaginário e dar sentido à nossa presença no mundo. Por isto ser baiano não é uma realidade política neutra, nem uma verdade familiar de caráter aleatório. É um fato carregado de sentido, uma bênção do destino, uma glória pessoal que se consolida na memória coletiva pela herança acumulada. O baiano é o herdeiro da grande construção nacional que começou em fins dos anos 500. Por suas mãos, desde os colonos que por aqui ficaram com Tomé de Souza, construindo famílias, engenhos, comércio, expandindo a fé, erguendo Salvador do nada e consolidando a vida na região foi surgindo o Brasil. Com ele nascem para a história nossos primeiros mazombos, unindo-se no esforço construtivo com seus coetâneos de Piratininga e Olinda. Souberam como abrir espaços, projetando uma epopeia de força, valentia e audácia, enfrentando desafios desconhecidos. Venceram as agruras de uma vida nos trópicos difíceis, lutaram contra a hostilidade de tribos indígenas complicadas, incursões francesas, mais adiante holandesas, tornando-se o ponto de ignição que deu início a uma nova sociedade emergente. Desde o primeiro momento da missa rezada a céu aberto nas areias de suas praias, assistida por aborígines curiosos, até a vinda dos primeiros jesuítas, firmou-se na Bahia a antevisão lúcida do futuro cristão. Nas pequenas igrejas do interior, nas grandes e belas Igrejas de Salvador, na devoção simples das massas sertanejas, nas casas, nas ruas, nos ofícios dos mestres artesãos, tudo vibrava em uníssono, numa intensidade espiritual vivida pela 359 Revista ALB 50_finalizada.pmd 359 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 comunhão de culto, de fé e do respeito a Deus e à vida. Surgia na História um tipo de existência que sempre tem marcado o compasso cadenciado dos dias nesta Bahia austera, simples e devota. Mantendo-se, desde estes primórdios, com identidade própria e autêntica, soube os baianos conferir dignidade a suas ações e esperança a suas devoções. Em meu livro recente, todo ele elaborado sobre temas e problemas das antigas terras da Bahia, chamado “Alto Sertão”, destaco estes aspectos da fé, da união cultural das massas pobres do interior. Sei que em meu trajeto percorri espaços similares aos de Euclides. Coincidência inevitável já que visitamos quase os mesmos sítios. Considero bem claro no meu livro que não tive o propósito de emulá-lo. Meu objetivo foi outro, bem diferente do seu. De comum só a realidade do Alto Sertão e sua gente. Euclides esperou e divulgou para o Brasil o grande equívoco histórico cultural e o imperdoável crime humano de Canudos. Ao fazê-lo falou sobre o clima, a vida e a cultura da região que visitaria como repórter de um jornal. Evidentemente os dados antropólogos constantes da obra foram reunidos a partir da perspectiva teórica possível à sua época e dos poucos elementos de pesquisa que dispunha no curto tempo em que permaneceu no sertão. Tudo ocorreu há mais de cem anos, quando eram outros os meios de que se dispunha e outro o nível em que se encontrava a Arqueologia e a Antropologia científica. Minha época já é bem outra. E o período dedicado à pesquisa, no meu caso, foi mais generoso. Somente por isto agreguei observações e conclusões sobre o sertão e o sertanejo que nem sempre coincidem com as de Euclides. Mas se o fiz foi apenas devido a um desejo inerente a todo cientista, atualizando dados em função dos avanços da ciência. Ao passar tanto tempo no sertão entre sertanejos passei pelos mesmos espantos e curiosidades que estimularam Euclides ante este tipo de homem e de vida. 360 Revista ALB 50_finalizada.pmd 360 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A verdade, meus amigos, é que o sertão exerce sobre todos nós fascínio irresistível. Ele nos assombra. Sendo um sorvedouro de forças, um emaranhado de ameaças e desafios, é também um construtor de energias, um unificador de vontades, um inspirador de audácias. Nele captamos o perene que se revela como transitório. Vemos o fundo opaco das coisas, as máscaras sociais que caem, uma a uma, ante a imposição da verdade. No sertão ou se encontra a forma de dominar a contingência ou não se sobrevive. Neste sentido entendo a frase famosa de Euclides: “o sertanejo é antes de tudo um forte”. É forte porque em sua vida enfrenta uma ordem onde tudo se une, na natureza e com a natureza, para repeli-lo. O céu é um exagero indiferente de estrelas, o calor uma agonia persistente, a caatinga nos perfura com seus espinhos, a seca uma condenação perversa. Tudo sem medida. Mas há uma ironia neste desmesurado. À distância ressecada é a mesma que protege; o espinho que nos fere é o mesmo que nos defende do inimigo. Nele cada dia é uma conquista, cada hora uma vitória, cada ano que se supera uma afirmação do humano, uma redescoberta, sempre renovada, da força obstinada do sertanejo. No cismar sem pausa dos grandes silêncios solitários o homem do sertão revela seu pragmatismo numa mente desprovida de sonhos vagos, formada por compacto conceito de honra. Honra que o leva a dividir o pouco que lhe sobra com um amigo necessitado e usar até o que não tem para vingar-se de um inimigo jurado. Nos anos de convivência com sua gente simples, codifiquei suas poesias, anotei seu folclore, suas danças, sua ética, seu tipo de vida, sua música, divertimento, seus mitos, sua forma de tratar a si mesmo e ao próximo. Percebi que nestas poucas alegrias possíveis o sertanejo vive na fé que eterniza o transitório e o transforma em objeto de amor. Tudo isto porque entendo haver um subsolo metafísico a sustentar a cultura. Ele nos sustenta por ser pleno de significados. Como uma mandala especial, a cadeia dos sentimentos se une na 361 Revista ALB 50_finalizada.pmd 361 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 grande roda da Vida. Não para explicá-la. Não se explica o aleatório. Mas para senti-la e captá-la. Quando os inimigos celtas chamavam o poeta de “bardo” e os romanos o denominava “vate” é porque sentiam na poesia, como forma sublime de arte, a capacidade de exprimir e sentir o que o homem comum sente ter capacidade de exprimir. Alarguemos o conceito, como faz a Arqueologia. Tentemos ver nas artes em geral, não apenas na poesia, mas também na pintura rupestre, no folclore, no cordel, na música, na dança, esta mesma capacidade estética do “logos”. Melhor fazia os gregos ao denominar de “panarkós” este esforço de dominar os sentimentos que todos sentem, mas ninguém, a não ser o artista, é capaz de exprimir. Foi esta grande cadeia do Ser que procurei em minhas pesquisas no alto sertão. Revelando sua história pela existência traçada na teia da vida significativa, tratamos de buscá-la nas evidencias possíveis. Daí nosso interesse pela arte rupestre, no artesanato das coisas, no folclore revelado na dança de um existir que lá está para ser captado e sentido. Em “Alto Sertão” fui desdobrando o seu fio perdido, quase uma nova Ariadne, para percorrer o labirinto das sombras que o passado tem a sutil argúcia de omitir da curiosidade moderna. Na Bahia situei muitos de nossos primeiros sítios arqueológicos. “Arque”, “arcano”, o passado que se dilui na memória coletiva. Tudo nos vai desaparecendo. As pistas se dissolvem. Só nos resta à pesquisa arqueológica para sermos capazes de antever um tipo de vida que já se foi para sempre no abismo de um tempo perdido na pré-história... Dele se nutriu a existência do homem précabraliano. Tratei de reerguê-lo e resgatá-la. Tratei de polir a memória enevoada pelos tempos de abandono. Com este passado convivi. Mas ao fazê-lo, pude também conviver com o presente sertanejo. E dele participar. Motivo de meu espanto e de minha admiração. Seguindo meus objetivos próprios, na busca dos nossos ancestrais remotos, não pude deixar 362 Revista ALB 50_finalizada.pmd 362 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de me admirar com o que via, sentia e captava da cultura sertaneja que me acolhia em seus braços generosos. Em minhas andanças reuni indícios reveladores da presença de mamíferos do Pleistoceno e do Homo Eretus em nossas terras, é certo, mas delas soube recolher o aprendizado da vida e da cultura sertaneja. Entendi as razões da apoteose espiritual de Euclides ante a vida do Sertão. Deixo este ponto bem claro em meu livro. Quanto à escolha que fiz, para trabalhar na Bahia resultou da instituição da ciência e das evidências de que a Bahia é o Estado brasileiro que tem oferecido maiores oportunidades reais para o conhecimento do homem pré-histórico, habitantes destas terras. Por isto, mudei-me para cá. Instalei-me no alto sertão, na pequena cidade de Central, com suas inúmeras Tocas e de lá iniciei uma busca sistemática dos indícios. Andei muito. Explorei a região mais a oeste, pesquisei os contrafortes da Serra da Mangabeira, cheguei ao Planalto onde ocorre o São Francisco, andei pela Chapada Diamantina, pela Serra do Sincorá. Localizei pinturas rupestres interessantíssimas no Toca do Pintado no município de Cafarnaum e na Toca do Cosmos, no município de Xique Xique. O que levantei foi bastante. Recolhi artefatos, dados e principalmente visões novas e interpretações cuidadosas da arte rupestre encontrada em grutas, como na Toca de Búzios, Aranha, Boqueirão, Chico Eduardo e da Esperança, comprovando o que já havia percebido em Itaboraí, a presença milenar do homem em nossa terra. O resultado de todo este esforço resultou neste livro. Mas nele é possível ver que não me restringi a este ângulo da pesquisa. O resultado final foi bem mais que um trabalho arqueológico. Foi uma antropologia da gente que vive neste Brasil profundo. E foi também minha oportunidade de satisfazer o que sempre desejei realizar, uma pesquisa sobre a terra, os mitos, a fala, a gente e os costumes do sertão da Bahia. Aqui fui ao encontro ao velho Brasil 363 Revista ALB 50_finalizada.pmd 363 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 de minhas recordações antigas, trabalhadas na infância nas noites vagarosas, entre histórias de família. Para isto a Bahia sempre me fascinou. Seu encanto consolidouse em meus primeiros estudos e ficou comigo como projeto secreto que só recentemente, com este trabalho, pude realizar como pretendia. Na verdade, ali estava eu a desvendar o Brasil que se esconde dele mesmo, seja o de muito antes da colonização, seja o de nossa etnologia sertaneja. ********** Mas acima indiquei brevemente que, no caso específico do Brasil português, tudo começou pela Bahia. Digo agora por que, já que muitos podem contestar o afirmado alegando a presença de esforços colonizadores no Sul, na região São Vicente e Piratininga bem como mais ao norte, no Pernambuco de Duarte Coelho. Sustento-me em alguns fatos. Antes de Tomé de Souza aqui construir nossa primeira cidade planejada e nela instalar a sede de um governo central, antes de Garcia D’Ávila iniciar, pela pecuária, a penetração do interior, antes dos engenhos do Recôncavo ganhar forma e substância, antes das primeiras igrejas erguidas e dos jesuítas fundarem o primeiro colégio, como base do ensino e da sustentação da fé, não parece, nem histórica nem sociologicamente viável, sequer falar de “Brasil”. O que Tomé de Souza encontrou na chamada Terra dos Papagaios ou Terra de Santa Cruz, foi uma região fracionada pelas doações do Rei de Portugal através do sistema das capitanias. Entre elas a de São Vicente e Pernambuco. Em obediência a esta linha decisória abriu-se espaço para que as autoridades portuguesas aqui deslocadas como responsáveis por estas então chamadas “capitanias hereditárias” se constituíssem em centros autônomos. 364 Revista ALB 50_finalizada.pmd 364 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Com seus recursos próprios, seus grupos de colonos e emigrados, acabaram formando enclaves isolados de grandes extensões de terra, concentrando em suas mãos o poder de dirigir, legislar e julgar. Eram, portanto, donos de regalias e poderes extraordinários, sem dúvida, mas antes, não seria pertinente falar de um “país” porque nada se integrava através de algum esforço comum. Mais ainda. Nesta fase de nossa vida colonial sequer seria possível afirmar que toda a imensa região não seria, afinal, dominada pela França, tal era o comércio e o número de feitorias francesas em todo o litoral, especialmente da região do Rio de Janeiro para o norte, enquanto na parte sul, as imprecisões do Tratado de Tordesilhas não favoreciam distinções seguras entre o que pertencia à Coroa de Portugal e da Espanha. O chamado “bacharel da Cananéia”, por exemplo, criou um núcleo colonizador e explorador de escravos em terras que pertenciam legalmente à Espanha. Não será nenhuma inverdade, portanto, indicar que na Bahia, a partir de Tomé de Souza, constitui-se o pólo de ignição do processo de formação de povo brasileiro. Estando a tomar posse numa Academia de Letras não podemos deixar de realçar o papel das letras, especialmente as que foram surgindo desde então, especialmente na Bahia, colaborando para a dinâmica formadora de uma identidade coletiva. Nas letras está concentrando o verdadeiro “panarkós” o esforço de permitir à compreensão humana penetrar nos mistérios da alma e entender a cultura de um povo. Descontada a literatura jesuíta, cujo objetivo era específico, as primeiras manifestações de uma literatura brasileira podem ser localizadas nesta terra gloriosa. Aqui se fundaram os primeiros colégios e se reuniram as primeiras bibliotecas. Quando desembarcou em Salvador o poeta português Antonio Soares que seria o famoso Frei Antonio das Chagas, isto em meados do II século, já encontrou na Bahia um grupo dedicado às Letras especificamente à poesia, dele constatando Bernardo Ravasco, um poeta nascido na Bahia. 365 Revista ALB 50_finalizada.pmd 365 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Não era só a poesia. Com Frei Vicente Salvador surge a primeira história do Brasil no II século. Na mesma época Manoel Botelho de Oliveira, inspirando-se na terra que passou a ser a dele escreve o elogio à “Ilha da Maré”, texto em que ressoam os primeiros vestígios de nativismo, usando palavras, tópicos, frutas, plantas e descrições numa linguagem nova. Na mesma década podemos encontrar por aqui aquele que é considerado por todos como maior poeta colonial brasileiro, Gregório de Matos Guerra. Pouco adiante é no movimento chamado das “Academias” que a Literatura brasileira vai encontrar certa firmeza embora sendo, neste início tateante, ainda basicamente subserviente às letras portuguesas. Mas o fato não impede que nosso segundo historiador, também baiano, Sebastião da Rocha Pita, pertencente a uma delas, já use vocábulos indígenas e descrições de coisas e fatos que nada têm de lusitanos. Sabemos que este cultivo das letras, numa sociedade rude e afastada de tudo foi uma proeza digna de admiração. Por isto temos de louvar e sustentar na Bahia as duas Academias. A primeira delas, na verdade, foi pioneira no Brasil, a Academia Brasileira dos Esquecidos, fundada em 1724. A seguinte, anos depois, já sob Pombal, a Academia Brasileira dos Renascidos, em 1759. Não eram “esquecidos” então, muito menos agora, quando a história lhes faz justiça resgatando, como o fez a competente crítica italiana Luciana Stegagno Picchio, considerando a importância destas Academias para a consolidação da literatura brasileira. Havia um Brasil a surgir e este Brasil vinha surgindo na Bahia, com seus tipos, suas letras, seus poemas e sua economia. Não podemos afirmar que estas letras baianas deram corpo a mais autêntica de toda a nossa forma literária, a regional, porque o esforço tornou-se exemplar de um clima dominante em fins do século XIX consolidando-se nos anos 30 do século seguinte. Mas podemos indicar sem exagero que no esforço de seus intelectuais 366 Revista ALB 50_finalizada.pmd 366 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 consolidam-se ecos de amor e lenda que a verdade de nossa condição impõe. Da defesa da etnia humilhada com o inesquecível Castro Alves, aos memoráveis discursos de campanha de Rui Barbosa, fronteiriços ao socialismo e ao resgate dos humilhados, até chegarmos ao personagem dominante da literatura social, Jorge Amado, a elite intelectual da Bahia soube eternizar-se, imune ao tempo e às variações de gosto, levando-nos a nos inclinar, em reverencia a seu talento, na sintonia profunda que seus textos revelam com a alma e o sentimento brasileiro. É, portanto, com evidente orgulho e profundo respeito que aceito pertencer desde agora, como membro correspondente da Academia que representa um passado de autenticidade, realizações e conquistas. No embalo de meu encanto por um mundo construído com trabalho, fé e audácia, dirijo-me a todos os senhores para esta síntese emocionada de minhas múltiplas emoções nesta hora de alegria. Muito obrigada a todos. __________ Discurso proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, em solenidade de posse como membro correspondente da ALB, em 18 de agosto de 2011. Maria Beltrão é Doutora em Antropologia (Arqueologia) e em Geologia pela UFRJ; com vários trabalhos na área. Foi coordenadora, pelo Brasil, da Missão Franco-Brasileira que pesquisou em Lagoa Santa, de 1970 até 1977. Já publicou 9 livros e cerca de 450 trabalhos no país e no exterior. 367 Revista ALB 50_finalizada.pmd 367 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 368 Revista ALB 50_finalizada.pmd 368 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Saudação a Maria Beltrão Edivaldo M. Boaventura É com muita satisfação que saúdo Maria Beltrão, quando completo, neste mês de agosto, quarenta anos de Academia. Incorporada ao nosso quadro societário, a Companhia enaltece e reconhece o seu notável trabalho nos sertões euclidianos da Bahia. A Academia de Letras e o Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, tão bem dirigido pela acadêmica Consuelo Pondé de Sena, conjuntamente, a distinguem pelos serviços prestados à nossa comunidade. Na aprovação unânime da minha proposta para membro correspondente, em 16 de dezembro de 2010, o Sodalício potencializou a sua dedicação à nossa cultura. Convenhamos que trabalhar nos altos a sertões não é fácil. Com os seus inúmeros títulos e trabalhos realizados, apresenta um contributo inusitado ao conhecimento das sociedades préhistóricas que nos precederam, comprovado em 50 anos de investigações científicas, publicações e exposições. A Academia, na representação maior da cultura, a acolhe, intelectual e afetivamente, na companhia fraterna dos nossos 369 Revista ALB 50_finalizada.pmd 369 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 patronos, fundadores e sucessores. Todos eles de agora e para sempre passam a confrades de Maria Beltrão. A partir de hoje, 18 de agosto de 2011, Maria Beltrão é uma das “nossas”, com toda a carga semântica e possessiva que tenha esse pronome. Vejamos um pouco de sua personalidade. Maria Beltrão é uma mulher vinculada à terra, à mãe natura. Nascida em uma fazenda, desde cedo começou a indagar sobre a natureza e a cavar o chão. O caminho da terra foi indicado pelo seu pai, João Duarte Coutinho, que muito cedo lhe colocou nas mãos um livro sobre ciências naturais. Como gostava de observar a terra, afirmou o pai, certamente gostaria das ciências. Maria confessa: “desde este dia, após ver pela primeira vez uma preguiça gigante, nunca mais deixei de me interessar pelo assunto. Curioso é que, nas minhas escavações pela Bahia, encontrei vários ossos de preguiça gigante ao longo da minha vida profissional.” A mulher da terra e a mulher das grandes metrópoles se confundem com a mulher-mãe de Johann, Hélio, Cristiana e Maria. Trabalha, viaja, vê o mundo, dá festas, cativa os amigos e se recolhe em sua fazenda em Paraíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro. Formada em Geografia e História, doutora em Antropologia e Geologia, em estágio no Museu Nacional, sentiu que a área de conhecimento que mais lhe interessava seria a da Arqueologia. Neste sentido, realizou curso pioneiro, na Universidade Federal do Paraná, quando obteve o primeiro lugar. Ingressou, então, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisou a área árqueofísica, no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Foi a primeira professora titular de Arqueologia no Brasil e foi também a primeira representante brasileira, no Conselho Permanente da União Internacional de Ciências Pré-históricas e Proto-Históricas, escolhida pela UNESCO. Aproximando-nos da sua progressão, pessoal e profissional, percebo uma clara inclinação para o interior. Talvez, seja a 370 Revista ALB 50_finalizada.pmd 370 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 misteriosa chamada das pedras. Recordo o título do livro que você me ofertou faz tempo: Pintura das rochas na Chapada Diamantina e o universo mágico-religioso do homem pré-histórico no Brasil. A arqueologia brasileira, no início de sua carreira, estava voltada para o estudo da região litorânea, pouco a pouco, foi se interiorizando. Apresentou, adrede, à Academia Brasileira de Ciências uma justificativa sobre a necessidade de se interiorizar a pesquisa. Passemos aos projetos nos sertões euclidianos da Bahia. A seguir, trabalhou no interior do Paraná, de São Paulo e do Rio de Janeiro e há 30 nos vem se concentrado no coração da Bahia. Nessa trajetória em busca das profundas interioridades, encontra-se o seu projeto no Município de Central, que inclui um subprojeto “O sertão vai virar museu”, daí resultou a implantação de dois museus, o primeiro, o Museu Arqueológico de Central, e o segundo, o Museu da Terra, limites da Bahia com o Estado de Tocantins. A criação do Museu de Central repercutiu em outros municípios, especialmente, Barreiras e Angical. Recorde-se, que, para a Bíblia, o coração significa, sobretudo, um sinal de interiorização. Agora vem a pergunta instigante: por que escolheu a Bahia? Sei que há uma resposta científica. A doutora em Geologia observou as camadas superpostas... Prefiro pensar ao contrário: foi a Bahia dos sertões quem chamou Maria Beltrão. Chamar é um verbo bem baiano. Caymmi canta “Vamos chamar o mar”. Maria Beltrão ouviu o chamamento dos sertões, pela voz de Teodoro Sampaio e de Euclides da Cunha. A Bahia sertões tem a face montanhosa, verdejante, paraíso das bromélias e das orquídeas. E aqueloutra Bahia mineral, pétrea, sertaneja, euclidiana, a Bahia das Lavras, a Bahia de Canudos. Ontem, a Bahia das românticas minas de prata, hoje, a Bahia das minerações. Enfim, no seu Mergulho interior, O prazer ecológico : 371 Revista ALB 50_finalizada.pmd 371 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Meu hedonismo É o paraíso da mata fechada, Da neblina de madrugada, Do aconchego das noites mornas, Ao sabor das horas; Do céu limpo, Com estrelas caindo. Vamos da natureza à cultura, dos projetos aos museus. O Projeto Central teve início em dezembro de 1982 e seu nome é uma homenagem ao Município, cuja região abrange 100.000 km2. Engloba a Planície Calcária, as Serras Quartzíticas da Chapada Diamantina e a região oeste do Estado da Bahia. Entre as várias descobertas registradas nessa região, que datam desde o pleistocênico até o século passado, duas se destacam pelo seu caráter revolucionário: o sítio arqueológico mais antigo das Américas, a Toca da Esperança, e as pinturas rupestres. Em seguida, veio o Museu da Terra, instalado, em 2004, em parceria com a prefeitura do Município Luiz Eduardo Magalhães. Abriga exposição de fotos e reproduções de pinturas rupestres. Nesses projetos, a arqueóloga forma equipes volantes que auxiliam os artesãos a proceder ao resgate da memória local, objetivando o saber tradicional. No ano que vem, o projeto Central arredonda trinta anos. É seu intento maior “espalhar museus por todo o sertão baiano. A preservação e a gestão do patrimônio arqueológico são fundamentais para se entender as escolhas que foram feitas pelas sociedades que nos antecederam.” Pondera que os museus não devem ser isolados dos contextos em que surgiram, mas envolvidos pela política de conservação integrada e vinculados às comunidades locais e aos seus habitantes. E conclui: “Devem estar adequadamente ligados às atividades locais, desenvolvidas pelos grupos humanos que habitam a área. É imprescindível dividir com a sociedade a incumbência de 372 Revista ALB 50_finalizada.pmd 372 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 proteger e defender o patrimônio histórico-cultural. Porque ele é de todos nós.” Recorde-se a propósito a experiência da conselheira consultiva do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), dentre muitos outros cargos de conselho. É titular do nosso Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Portuguesa da História, onde sempre nos encontramos. O poeta Paulo Cordel, na espontaneidade da expressão popular, reconheceu muito antes desta Academia e do Instituto a saga e a grandeza da nossa acadêmica. O toxodonte é o marco O pivô da descoberta Da “pró” Maria Beltrão Que chegou na hora certa. Sai do Rio de Janeiro Mostra pro mundo inteiro O sertão de porta aberta .................................... Fato é que a Doutora Dona Maria Beltrão Veio do Rio de Janeiro Pra chamar nossa atenção Sobre o tesouro perdido Que estava escondido No centro desse sertão. Destaquemos alguns contributos. Importantes achados foram por ela datados, como o primeiro sítio arqueológico pertencente ao período pleistocênico sul americano. Trata-se de um fato histórico da maior importância para a arqueologia brasileira e para as ciências da terra. Compôs a famosa missão científica na região da Lagoa Santa, quando se envolveu na descoberta da mais antiga ossada humana, no Brasil, datada de mais de 11 mil anos. 373 Revista ALB 50_finalizada.pmd 373 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Defende a teoria da convergência cultural entre os continentes, pela qual teria existido intercâmbio de populações entre os continentes. Assim, a sua equipe encontrou, no sítio arqueológico de Gentio do Ouro, na Chapada Diamantina, pela primeira vez nas Américas, desenhos do tigre-de-dente-de-sabre, animal que viveu entre 1,5 milhão a 11 mil anos atrás. Os seus estudos de pintura rupestre indicam que no Brasil o homem conviveu com animais comuns à África e à América do Norte, a simbologia encontrada é semelhante nos três continentes. O conhecimento dos seus trabalhos é responsável pela participação em inúmeras associações científicas e congressos internacionais. Como professor de Metodologia da Pesquisa, fui aluno da grande Helen Snyder, em Penn State, aprecio o seu ensaio sobre os métodos em arqueologia. Afirma: “Arqueologia é antropologia ou não é nada”. Desenvolveu-se como ciência do comportamento humano no passado. Utiliza-se da evidência física e material, como fonte de informação sobre o comportamento humano. Aprazme ver a arqueologia no grupo das behavioral sciences. No mundo das letras, são muitas as suas contribuições em livros e artigos. Foi presidente do Pen Clube do Brasil. Chamo a atenção para o seu livro O alto sertão: anotações. Para Cândido Mendes: “Não hesita a autora em trazer o discurso da arqueologia ao engaste histórico e ao exercício interdisciplinar das ciências sociais, a que não poupa o da própria semântica do linguajar”. Traça neste belo tomo um panorama integrado da sertânia euclidiana. Como um observatório elevado do alto da Chapada Diamantina, distingue para melhor unir a sequência bem euclidiana: cenários da natureza, saga humana e mergulho interior: Falar dos veios, rochas, Minerais (mineralizar meus sonhos). Dissolver-me nos tempos. 374 Revista ALB 50_finalizada.pmd 374 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Consolidar-me em basalto e Derreter-me como a lava vulcânica. Integra-se na cultura local e espanta-se com o fenômeno da grande lua: “a lua e as estrelas parecem ter baixado muito, como querendo alcançar a terra.” Fenômeno que acontece quando “não há nenhum grau de umidade no ar, o que faz com que tenhamos uma visão tão inusitada e desconhecida em outras regiões.” Na trajetória traçada, a monotonia sertaneja é quebrada quando relata as aventuras de Lampião, do pistoleiro Gregário, da Coluna Prestes e, por último, de Lamarca. Para concluir, um convite. Finalmente, que me seja permitido formular um convite à nossa acadêmica Maria Beltrão, em conformidade com a herança de Euclides da Cunha. O sertão será sempre uma oportunidade de grandes encontros. A paisagem lunar, desolada e solitária, de céu “estrelejado”, terra ondulada e por vezes cinza, como a favela seca, evoca-me sempre os tempos bíblicos com bodes e carneiros. A capital mística e emblemática dos sertões é Canudos. Lugar imanente! As terras das lutas fratricidas foram resolvidas por mim em Parque – o Parque Estadual de Canudos. Como fiz antes com o berço do Poeta, em Cabaceiras do Paraguaçu. Como gostaria de um dia conduzir Maria Beltrão em peregrinação à terceira Canudos. Repito o que aprendi com José Calasans. A primeira Canudos desapareceu pelo fogo. A segunda Canudos foi submergida pelas águas, mas nas noites tépidas de verão, é possível ouvir ainda o sino da Igreja Velha, quando as águas baixam. A terceira Canudos surgiu como uma primavera esperançosa das margens do açude tranquilo de Cocorobó. Os sertões semiáridos da Bahia são um desafio ao conhecimento. Maria Beltrão contribuiu com a arqueologia, em um contexto trans e multidisciplinar, e construiu museus. 375 Revista ALB 50_finalizada.pmd 375 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 A Bahia é agradecida a esta grande mulher, charmosa, culta e requintada, por isso a Academia a trouxe para o aconchego da nossa companhia. A casa de Góes Calmon é o seu pouso soteropolitano, nas suas voltas e voltas pelos sertões euclidianos da Bahia. Antes que retorne ao seu Rio de Janeiro, leve estas rosas de agosto. Não são láureos, são as rosas da infância. Seja bem feliz. Seja bem-vinda. Gratos a todos pela presença e mais ainda pela atenção. Salvador, 18 de agosto de 2011. REFERÊNCIAS BELTRÃO, Maria. Rock art. Rock paintings of the Chapada Diamantina and the magical-religious universe of prehistoric man in Brazil. New York : World Trade Center, 1996. ______. Métodos em Arqueologia. In: HESENBERG, Leônidas; SILVA, Mariluze Ferreira de A. ( Orgs.). Métodos. São Paulo: EPU, 2005. p.91-100. ______. Et al. Catálogo de moedas: acervo arqueológico do sítio histórico Fazenda Macacu. Rio de janeiro: Cesar Faria, 2010. ______. O Alto Sertão. Anotações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2010. _____. Curriculum vitae. Rio de Janeiro, 2010. [email protected] [email protected] ________ Discurso de saudação à acadêmica Maria Beltrão, proferido na solenidade de posse, realizada no salão nobre da ALB, em 18 de agosto de 2011. 376 Revista ALB 50_finalizada.pmd 376 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Dr. Eliezer Audíface, membro benemérito da Academia de Letras da Bahia João Eurico Matta Faz três meses, numa das sessões ordinárias de agosto deste 1992, dezoito Acadêmicos, desta ilustre Companhia fundada em 1917, propusemos a indicação do nome, de veneranda memória, do médico escritor, professor e devotado pediatra por 57 anos que foi o baiano ELIEZER AUDÍFACE DE CARVALHAL FREIRE, para que lhe fosse concedido o raro título de Membro Benemérito da Academia de Letras da Bahia. Cumpríamos assim o disposto no artigo 16 e seus dois parágrafos do nosso Estatuto vigente, ultrapassando até, para aquele propósito, o quorum de dois terços da maioria absoluta dos 40 membros efetivos desta casa de memória, pesquisa, produção e difusão da cultura baiana. Desse modo reconheceríamos e resgataríamos, em homenagem póstuma, sua admiração antiga, expressa em seis décadas de comparecimento fiel a quase todos os eventos culturais da Academia, particularmente às sessões de posse, um convívio afetuoso com Acadêmicos que eram seus antigos professores, colegas de profissão médica e amigos de outro ofício, desde os anos 1930 até os anos 1980. Pode conferir-se sua assinatura em nossos livros de frequência ou registro de presença em todas as 377 Revista ALB 50_finalizada.pmd 377 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 sedes que nos acolheram, fosse a primeira delas, na ladeira da Praça, ou, já em início dos anos 1940, em ampla sala da Biblioteca Pública do Estado, bonito prédio construído na Praça Thomé de Souza pelo governador Antônio Moniz de Aragão, nosso confrade fundador, mas cedida aos eventos da Academia pelo na ocasião Diretor da Biblioteca, Jorge Calmon Moniz de Bittencourt; fosse na sede da Avenida Sete, 283, ao lado do Palácio da Aclamação, onde esteve a Academia de 1945 a 1949, até que a doação (de 1941), feita pelo Interventor Landulfo Alves de Almeida, do prédio ocupado pelo Tribunal de Justiça do Estado no Terreiro de Jesus se tornasse efetiva, para mudança física da Academia, em virtude da inauguração do Forum Ruy Barbosa pelo quarto governador que se fez nosso confrade Acadêmico, Octávio Mangabeira (antes deste o foram Severino Vieira e José Joaquim Seabra) ; seja, enfim, nesta quinta sede, o palacete Goes Calmon, desde 1983 doada por outro governador Acadêmico, Antônio Carlos Peixoto de Magalhães. Lembro que a casa/sede da Avenida Sete foi cedida pelo Interventor (por quatro meses) Bulcão Viana, mas o grande empenho para a ocupação desse prédio coube a outro amigo próximo de Eliezer Audíface, o saudoso Acadêmico Heitor Praguer Froes, médico escritor, professor e Secretário de Estado da Educação e Saúde, de novembro de 1945 a fevereiro de 1946. Saberemos, adiante, que esta Secretaria da Educação e Saúde teve grande significação para a carreira do Audíface médico pediatra, desde 1935, ano em que nela foi criado, pelo governador eleito pela Constituinte estadual, Juracy Magalhães, um Departamento Estadual da Criança, o primeiro no país com tal amplitude. Mas neste momento creio oportuno recordar que foram também professores, colegas de ofício e amigos aplaudidos de Eliezer Audíface, desde os de saudosa memória, os Acadêmicos de Letras Luiz Pinto de Carvalho, João Garcez Froes, Pirajá da Silva, Francisco Peixoto de Magalhães Neto, Edgard Rego Santos, César Augusto de Araújo, Antônio do Prado Valadares, Estácio de Lima, Ruy Santos, Otávio Torres, Adriano Pondé, Hélio Simões, 378 Revista ALB 50_finalizada.pmd 378 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 até Luiz Fernando Seixas de Macedo Costa, Jayme de Sá Menezes, José Silveira, Thales de Azevedo, Itazil Benício dos Santos, o exgovernador Roberto Figueira Santos, e para não citar todos. Tal reconhecimento, registro e resgate se inspiraram no fato singelo, com gesto generoso, de que, enfermo, no último ano de sua vida, já viúvo, de longa data, de sua esposa amada, D. Juvessura de Oliveira Freire, o Dr. Eliezer Audíface expressou, a seu único filho e herdeiro, – o músico e compositor, profissional de televisão (que morou nos Estados Unidos, em estudos, e no Rio de Janeiro e São Paulo, a trabalho), e poeta publicado, – Luiz Henrique Audíface de Oliveira Freire, o desejo de que, após seu passamento, fosse doada à Academia de Letras da Bahia uma seleta de 50 (cinquenta) figuras de biscuit, brancas e policromadas, de tamanhos variados, de sua coleção de peças de arte de “porcelana cozida no forno e não vidrada”, reunidas paciente e persistentemente pelo aficionado casal por décadas de meticulosa busca, através de encomendas e visitas a lojas e antiquários, em numerosas viagens pelo Brasil e pelo Exterior. Sobre seu pai, o poeta Luiz Henrique Audíface, no seu livro de versos de estilo picaresco, de 64 páginas, intitulado Laivos, – prefaciado por seu companheiro de geração e juvenil vizinho de rua-e-bairro Boulevard América, o professor Doutor em Letras Ildásio Tavares, – escreve versos de louvor, identificando o gentleman que sempre foi, em sua vida, e Das artes, conhecedor, Gente extremamente fina, Das ciências, luminar. (...) Após a morte de Dr. Eliezer, acanhado quanto a aproximar-se da Academia de Letras da Bahia para revelar o desejo do pai, de doação das peças de biscuit, Luiz Henrique aconselhou-se com outro companheiro de geração e vizinho da casa de seu pai no n° 19 da enladeirada rua Boulevard América: o professor de Odontologia da UFBA e intelectual escritor, Dr. Dílson de Sá Milton da Silveira, aliás meu cunhado, – há 57 anos morador da casa pioneira no lugar, construída em 1935 por seu pai, o saudoso Engenheiro, político partamentar e ex-prefeito de Salvador, 379 Revista ALB 50_finalizada.pmd 379 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Aristides Milton da Silveira. Nesta ladeira Dr. Aristides Milton e seu logo depois vizinho, o notável pediatra e mestre de medicina Hosannah de Oliveira, – há poucos dias celebrado, nos jornais, como pioneiro, há 60 anos, dos estudos de Freud e da Psicanálise na Bahia, – foram dois amigos que assistiram à mudança de Eliezer Audíface para o n° 19 da rua e que por décadas se acostumaram a testemunhar a fidelidade do pediatra aos seus amigos Acadêmicos e aos eventos culturais efetuados na Academia de Letras da Bahia. Ciente disso, o Professor Dilson da Silveira, então, – depois de contacto telefônico comigo e com o Assessor, poeta Carlos Cunha, da Presidência da Academia,– incentivou e encorajou, enfaticamente, Luiz Henrique Audíface a visitar o Acadêmico Presidente Cláudio Veiga para formalizar a doação que fora desejo expresso pelo pai. Feita a visita e comunicada a doação, os Acadêmicos Presidente Cláudio Veiga e ex-Presidentes José Calasans e Jorge Calmon e muitos dos confrades nos encantamos com a oferenda, que praticamente todos consideramos “ser viço de especial importância” – nos termos do artigo 16 do Estatuto vigente – em benefício do patrimônio de arte e das atividades de cultura desta Companhia. De imediato o confrade Jorge Calmon onerouse com várias providências de design e projetamento de estantes e vitrinas, assessorado pelo nosso confrade Acadêmico e arquiteto Paulo Ormindo Azevedo, e de fotografia e catalogação das peças doadas, como das soluções de decoração do salão de visitas, com o assessoramento da museóloga e ex-conselheira de Cultura do Estado, Silvia Athayde. Os confrades reuniram-se, em seguida, para aprovar a referida proposição do título de Membro Benemérito firmada, em 6 de agosto de 1992, por dezoito Acadêmicos, e deliberar sobre a sessão especial de homenagem póstuma prevista para a tarde de hoje, 25 de novembro, constituída de inauguração e exposição de placa comemorativa e retrato do doador, Dr. Eliezer Audíface, de autoria do saudoso mestre-pintor Alberto Valença, de entrega post mortem do pergaminho-título de Membro 380 Revista ALB 50_finalizada.pmd 380 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Benemérito da Academia de Letras da Bahia, Eliezer Audíface de Carvalhal Freire, ao seu filho único, presente, Luiz Henrique Audíface de Oliveira Freire, seguidas de palestra pronunciada pela ilustre jornalista Theresinha Cardoso, colunista de A TARDE, sobre “a pérola”– no dizer da palestrante – que são as cinquenta peças de biscuit doadas e em exposição, e deste discurso de apologia do doador Benemérito, que peço vênia para perorar com referências ao expressivo curriculum vitae do nosso homenageado póstumo, começando por breves recordações pessoais que, de parte minha, são investimento afetivo maior, para engrandecer a memória do médico pediatra escritor Eliezer Audíface. Curiosamente, conheci-o no verão de 1938, ele, médico diplomado em 1934, com quatro anos de exercício da ciência e arte da pediatria, e eu, com dois anos e seis meses de idade. Era janeiro no “Boulevard” ilhéu de Itaparica, à vista do forte de São Lourenço, estávamos em casa de veraneio gentilmente cedida pelo historiador da ilha, o notável Ubaldo Osório Pimentel, amigo e constituinte advocatício de meu pai, Edgard Matta. A jovem filha, Maria Felipa Osório Pimentel, – a Mariá de tanta ternura com o parrudo caçula de Eunice Tavares Freire Matta ( estão ambas aí, e há fotos, para confirmar a veracidade desta recordação), bacharelanda em Direito daquele ano ( com a nossa confreira Hildegardes Viana) e mãe, poucos anos mais tarde, de meu amigo, colega e ex-aluno ( pós-graduado, em 1962) João Ubaldo Ribeiro, – recomendou consulta pediátrica urgente, via lancha fretada em demanda a Salvador, para o garotinho peralta acometido de infecção estival por comilança de manga verde e desidratação resultante da soalheira itaparicana. O médico pediatra em Salvador foi, nos seus 27 anos, o Dr. Eliezer Audíface. Por 36 anos, até novembro de 1974 quando faleceu, ouvi meu pai Edgard, todas as vezes que se lembrava aquele episódio de 1938, exclamar, com certo exagero de pai extremoso, que Eliezer salvou a vida desse menino!. Ainda estudante na centenária Faculdade do Terreiro de Jesus, no início dos anos 1930, Eliezer foi interno da Liga Baiana contra 381 Revista ALB 50_finalizada.pmd 381 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 a Mortalidade Infantil e, doutorando em maio de 1934, era nomeado interno da Clínica Pediátrica da Faculdade de Medicina, cátedra do Professor Martagão Gesteira. Trinta e três anos mais tarde será eleito, em 1967, Presidente da Liga Álvaro Bahia contra a Mortalidade Infantil, reeleito no período 1971 a 73 e até 1985. No Departamento Estadual da Criança, criado em 1935 pelo governador Juracy Magalhães, logo em 1936 se engajou o jovem médico, contratado para o Serviço Suburbano daquele grande Departamento, do qual já será médico efetivo em 1937. A ditadura Vargas extingue o Departamento estadual da Criança, como tal, em 1938: ficará um Serviço Especial da Criança e uma Inspetoria de Higiene Pré-Natal e Infantil. Mas logo em fevereiro de 1940 o Decreto-Lei n° 2.024, de Getúlio Vargas, cria no Ministério da Educação e Saúde – na verdade inspirado no paradigma baiano de 1935 – um Departamento Nacional da Criança. A Exposição de Motivos do Ministro Gustavo Capanema não escondia que os Estados e Municípios estavam animados do maior interesse pela solução da problemática da criança e do adolescente. Os anos 1940 marcam assim a onda dos entusiastas pela chamada Puericultura. Como tantos pediatras baianos, maduros e jovens, já ilustres, Eliezer continuou engajado. Na época um santamarense admirável, entre seus 25 e 35 anos, Alberto Guerreiro Ramos, não médico, mas sociólogo como tal identificado em 1941 pelo Secretário da Educação e Saúde baiano, Isaias Alves de Almeida, ao fundar a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, se entregou à causa no Rio, onde se graduou em Sociologia e Direito: atuou no Departamento Nacional da Criança, publicando no Rio e em 1944, Aspectos Sociológicos da Puericultura, e texto equivalente no n° 1 da revista baiana Pediatria e Puericultura, set. de 1945, de cuja equipe redacional participará Eliezer Audíface. O Departamento Nacional da Criança publicará em 1949, de Guerreiro Ramos, o Problemas Econômicos e Sociais do Brasil. Na Bahia, o Secretário da Educação e Saúde Anísio Teixeira (que fora Diretor de Instrução Pública nos anos 1920, no governo 382 Revista ALB 50_finalizada.pmd 382 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Goes Calmon) consegue do Governador Octávio Mangabeira a sanção da Lei n° 264, de 11 de abril de 1950, que cria o Departamento Estadual da Criança (uma recriação daquele de 1935). Pesquisas de Guerreiro Ramos sobre “mortalidade infantil”, publicadas em São Paulo em 1951 e em 1955, pela Universidade Nacional do México, no ensaio Sociologia de La Mortalidad Infantil, são textos do amigo que Eliezer Audíface mencionará como puericultor e professor, inclusive como titular de Puericultura na Escola de Serviço Social da UCSAL, desde a fundação desta até a extinção, pelo Ministério da Educação, daquela disciplina (ou “cadeira”) denominada de Puericultura. Evoco esses temas porque pelos caminhos multi- ou transdisciplinares da chamada Puericultura e das vertentes de medicina preventiva e curativa, sanitária e pediátrica, Eliezer Audíface fará carreira segura, com trânsito nacional e internacional. Será fellow da American Academy of Pediatrics, estará entre os fundadores da Sociedade de Escritores Médicos, ingressará na Sociedade de História da Medicina e na Academia de Medicina da Bahia, como estará, em 1982, na diretoria da Associação de Pediatria de Língua Portuguesa, entidade internacional. Será médico efetivo da Legião Brasileira de Assistência e participará de numerosos conclaves da especialidade a que se devotou, no Brasil e em vários países das Américas e da Europa. Até o desaparecimento do Departamento Estadual da Criança, ou sua transformação em Divisão Materno-Infantil de um grande Departamento de Assistência, na Secretaria de Estado da Saúde reestruturada pela Reforma Administrativa implementada pelo governo Lomanto Júnior em 1966, Eliezer Audíface foi, de 1951 a 1966, Chefe do Serviço de Proteção Social da Criança. A partir daquele ano será, em vários mandatos, por dezoito anos até 1984, Presidente da Sociedade de Pediatria da Bahia. Ocupará outros cargos, terá outras missões, mas aqui se deve registrar o encantamento com que escolhia, com sua esposa ou solitariamente, para sua coleção de biscuits, figuras infantis, – bebês, 383 Revista ALB 50_finalizada.pmd 383 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 crianças ou adolescentes – especialmente as peças de cor clara ou branca, de inspiração na estatuária grega ou romana, por exemplo, de Eros (ou Cupido) e Psique, infantes ou adolescentes, ou a lembrar a delicadeza da pintura francesa de Bouguereau, na mesma temática. Estava eu ausente de Salvador, em 1962, porque ainda concluía meus estudos pós-graduados em Administração da Mudança no Setor Público, na Universidade do Sul da Califórnia, em Los Angeles, a mesma que acolheria Alberto Guerreiro Ramos, de 1966 a 1981, como seu docente titular ou Full Professor, mas Dr. Eliezer Audíface esteve presente no casamento de minha irmã caçula Maria das Vitórias com o Prof. Dr. Dílson da Silveira, em casa de meu pai e a convite deste e do Dr. Aristides Milton. Mas nós nos encontraríamos, e nos defrontaríamos, na refrega do programa de Reforma Administrativa, eu como Secretário de Estado e o Diretor do Departamento Estadual da Criança de então, meu bom amigo, o pediatra Arlindo Fraga Leite, ladeado por três companheiros seus, colunas-mestras do Departamento: precisamente o Dr. Eliezer Audíface; Dr. José Peroba; e Dr. Arnaldo Sant’Anna. Essa batalha empolgante se deu nos jornais, especialmente o Diário de Notícias, um dos diários associados da poderosa rede de Assis Chateaubriand no qual Fraga Leite assinava uma prestigiosa “Coluna Médica” e o Suplemento D. N. Infanto-Juvenil. Foram meses de combate e entrevistas pro- e contra- a dita “extinção” do Departamento Estadual da Criança. O quarteto de devotados puericultores e pediatras lutou com pertinácia e bravura, apelou para os Secretários de Estado – de saudosa memória – Adelaido Ribeiro e Eduardo Bizarria Mamede; recorreu ao presidente da ARENA, um dos dois partidos políticos de então, Deputado Federal Antônio Carlos Magalhães; pressionou outros políticos eminentes e parlamentares da Assembleia Legislativa baiana que definiriam a questão; e pressionou o governador Lomanto Júnior. Os jornais A Tarde e Jornal da Bahia também, daqueles meses, 384 Revista ALB 50_finalizada.pmd 384 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 dezembro de 1965 a março de 1966, documentam a refrega. Recorreu-se, em defesa do Departamento da Criança, à crônica “Rosa dos Ventos”, de Odorico Tavares; à experiência inglesa; e à memória de pediatras ilustres, Álvaro Bahia, Martagão Gesteira, Franca Rocha. Em seus artigos de combate Fraga Leite citava com frequência Eliezer e colegas. Advertia que “Só reformando a Constituição!” Ironizava os técnicos do programa de Reforma e tentava envolver o Secretário Eurico Matta. Defendia 700 funcionários, argumentando com vigor e veemência, por exemplo: “Não há castas impenetráveis dos que vivem em função da puericultura e da pediatria, mas tão somente o propósito de fazer o melhor pela infância”. No Diário de Notícias de 24 de fevereiro de 1966, Fraga Leite registra: “Enquanto aguardavam no aeroporto o avião que trazia ilustres ministros, conversavam o Secretário Mamede, da Saúde, e diretores do Departamento da Criança, quando se aproximou o Governador Lomanto Júnior. A este disse o Secretário: ‘Estou aqui com a criança, meu Governador!’ Ao que o Sr. Lomanto respondeu: ‘Vejo que a criança está forte!’ O colega Eliezer Audíface segredou ao José Peroba: ‘– Isso é bom sinal! Será que o governador quer caracterizar a sua decisão de não consentir na extinção do Departamento da Criança?’ O Arnaldo Sant’Anna concordou com um sorriso (...). Determinada figura da política nacional revelou ao Diretor do Departamento, quando da chegada dos ministros, que o Secretário Eurico Matta lhe afirmara, minutos antes: – A extinção ou manutenção do Departamento da Criança dependerá, agora, do Secretário da Saúde. Se assim for, creio que o Departamento permanecerá.” Na sua coluna do dia 28 de fevereiro Fraga Leite apela para o drama com o texto e o título: “Quinhentos anjos (morrem) por dia!” 385 Revista ALB 50_finalizada.pmd 385 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Na Câmara de Deputados, todavia, a Comissão da Reforma, de que faziam parte doze ilustres parlamentares – inclusive o nosso Acadêmico Wilson Lins, – já se tinha definido, junto com o Secretário Mamede: era contra a permanência do Departamento como tal. A coluna “Política e Políticos” de A Tarde de 19 de março de 1966 anuncia essa diretriz, por declarações do Deputado Relator do capítulo “Secretaria da Saúde”, no corpo do projeto de Lei: Carlos Linhares, um médico. Nesses mesmos dias a Sociedade de Pediatria da Bahia reelegeu sua diretoria: para Presidente, Eliezer Audíface. Segundo noticiou a coluna do batalhador Fraga Leite, no D.N. de 13/14 de março: “Na oportunidade foi aprovada, por unanimidade, uma moção de protesto, contrária à já decidida extinção do Departamento Estadual da Criança!” Quatro anos mais tarde, no Jornal da Bahia de 19 e 20 de abril de 1970, na coluna sem assinatura “Medicina, Gentes e Fatos”, meu amigo, companheiro rotário, Arlindo Fraga Leite, ainda se mantinha firme e convicto, escrevendo: “O prezado João Eurico Matta, ex-secretário para Assuntos da Reforma Administrativa, não poderia acreditar que a extinção do Departamento Estadual da Criança acarretasse tantas omissões. Ele foi avisado.” Hoje, – Senhoras e Senhores; eminentes pediatras amigos do Dr. Eliezer Audíface, vejo ali o Dr. José Peroba; Senhor Luiz Audíface; Senhores Confrades desta Academia, – decorridos 22 anos dessa última data referida, nenhum de nós incorre em omissão com respeito a um notável médico pesquisador e escritor, exemplo de pediatra e puericultor, membro de tantas irmandades religiosas e cristãs da Bahia, cidadão brasileiro paradigmático, gentleman das ciências, artes e letras que foi nosso confrade, Membro Benemérito Eliezer Audíface de Carvalhal Freire, de memória grata e sempiterna para todos nós ! Discurso proferido na sessão especial para concessão do título de Membro Benemérito, post mortem, ao Dr. Eliezer Audíface, em 25 de novembro de 1992. João Eurico Matta é administrador, professor emérito de Administração da UFBA, crítico e ensaísta. Desde 1989 ocupa a Cadeira nº 16 da ALB. 386 Revista ALB 50_finalizada.pmd 386 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Homenagem a Samuel Celestino (Saudação ao final de seu mandato como Presidente da Associação Baiana de Imprensa) Geraldo Machado “O jornalista é o historiador do presente” Albert Camus Agradeço, honrado, a todos aqueles que me confiaram a tarefa de saudar Samuel Celestino. Prazerosa foi a tarefa de recolher lembranças e depoimentos entre amigos e familiares, recortá-las, difícil selecioná-las e tecê-las em um relato coerente, urdido de modo sólido e tão lúdico quanto nossa amizade, uma homenagem cuja inteligência emocional o merecesse. Imaginem a abundância, o exagero de histórias e passagens saborosíssimas? Quais delas escolher de modo a bem dizer de nosso afeto e admiração por uma figura tão especial? Imensas alegrias ao procurar imagens para descrever um amigo fraterno, uma pessoa a quem todos nós admiramos muito e a quem queremos tanto bem; que nos ensina a querer bem. Um grande esforço para representá-los a contento. Organizada pelo círculo mais íntimo, os frequentadores dos almoços das quintas-feiras na Cantina, a noite de hoje sacramenta nosso reconhecimento e festeja essa figura ímpar, polêmica, afiada, inteligente e amiga. Queremos proclamar nossa grande admiração por sua coerência e rigor em sua trajetória profissional, ao tempo em que celebramos também o profundo afeto e a admiração que temos pelo amigo cuja convivência é cavalheiresca, generosa e gentil. Que nos permite, sem falsos pudores, participar de sua 387 Revista ALB 50_finalizada.pmd 387 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 intimidade e de seus ensaios antes de levantar voos: dúvidas, anseios, bem divide conosco de suas alegrias e realizações. Samuel, um homem fiel a si mesmo e aos seus princípios na vida pública, também faz prevalecer em sua vida pessoal a lealdade à sua família e aos seus grandes amigos. A esses últimos ele vem transformando, ao longo do tempo, como uma extensão, uma côterie, uma família lato sensu. Afigurou-se como quase impossível, tarefa ingrata, fazer uma triagem dos convidados, diante da enormidade espantosa da primeira lista que se configurou. Desconfio, estou quase certo, devam ter acontecido omissões, muitas involuntárias, outras tantas apenas para não fugir ao propósito central desse encontro: reunir os amigos mais chegados, aqueles postos à prova pelas ondulações do tempo. Nenhum critério protocolar, político ou de representatividade social foi observado; tão somente o grau de proximidade, as afinidades eletivas e a convivência estreita e íntima, o círculo mais próximo. Esse viés só foi possível porque muito embora Samuca possua uma invejável coleção de amigos fiéis e devotados, nunca fez muita questão ou se esforçado minimamente por expandir networks que lhe fossem úteis. Jamais fez do território da Amizade um campo novidadeiro de acúmulos, inconsequências ou conveniências. Compraz-se e orgulha-se em conservar amigos, os mais antigos, cujo afeto recíproco foi se consolidando ao longo do tempo, necessidade vital de sua alma cultivada e alimentada com muita arte e engenho. Mesmo aqueles que já partiram, ainda assim permanecem por ele cultivados na sua condição de “encantados”. Sempre lembrados, a eles continuamente se refere com vagar, evocando suas histórias e saboreando seus “causos”, frases, brincadeiras, mantendo-os vivos em sua lembrança fiel. Os tantos outros amigos que porventura não tenham participado deste jantar, mas que desejem festejar nosso querido Samuel, arregimentarão com facilidade um número semelhante de convidados, pois nosso homenageado é merecedor de inumeráveis comemorações e festejos. 388 Revista ALB 50_finalizada.pmd 388 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Já se disse que para conservar um amigo, três coisas são indispensáveis: honrá-lo quando esteja presente; valorizá-lo quando ausente e dar-lhe pronta assistência quando dela estiver necessitado. Samuel se desincumbe com maestria também nos roteiros das artes da amizade. De sobejo. Quando observamos de perto a diversidade do leque de suas amizades, podemos perceber que é pelo caminho do respeito e encanto pelas diferenças que ele adianta seus afetos. A tolerância e o respeito acolhem e pastoreiam os defeitos dos amigos. Parte da premissa de que uma verdadeira amizade é uma construção de fraternidade incondicional. Assegura a cuidadosa manutenção do vínculo, renovado, sempre, por novas camadas de afeto. Seus amigos correspondem na mesma medida, respeitam seus defeitos, características e idiossincrasias. Que não são poucas, diga-se. Segundo Clarice Lispector, “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro.” Samuca contagia a todos com sua dedicação aos rituais do encontro. Preza e celebra a companhia, o compartilhamento da boa mesa, o ofertório dos bons vinhos. Comunga conosco de sua inteligência, o espírito sempre ágil e do coração caloroso. Louve-se sua capacidade rara de escuta atenta e serena, quase como a de um confessor, disponível para acompanhar atentamente as aventuras e desventuras do seu interlocutor e ajudar no que lhe for possível, sem julgamentos. Nosso curso se estende diante de nós como um mistério a ser experimentado, indecifrável. Navegado imprecisamente, orientado por cartas mutantes; às quais consultamos atordoados e emaravilhados. Eis os tantos mistérios da Vida. “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo.”( Guimarães Rosa ). Não pretenderia, meus amigos, nesta breve fala, definir um homem tão multifacetado quanto Samuel Celestino. Ele mesmo estará em busca de se examinar, decifrar e fruir seus próprios 389 Revista ALB 50_finalizada.pmd 389 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 enigmas. Em construção, acrescentar-se de cada dia. O bom da vida é que não estamos prontos, bem nos lembrou o mesmo Rosa. Preciso dizer do amigo, entretanto. Recupero meus sonhos juvenis de cineasta e me proponho a fazer algumas viagens no tempo através de flashbacks que permitam aqui revelar ou relembrar com vocês algumas passagens curiosas de sua vida, que nos permitam perceber como algumas de suas facetas foram se constituindo. De que modo Samuel Celestino ia sendo impressionado pelo mundo, ao tempo em que nele ia deixando suas marcas. Para tanto, temos que começar lá longe, começar do princípio, ao falar de Muzinho, uma vez que o “Samuel” só passou a existir depois que se tornou jornalista com assinatura reconhecida pelo respeitável público. Até então era somente o Muzinho, uma criaturinha intensa que desde a tenra infância nutria ardentes desejos de ser Super-Homem. Diligente, passou do sonho à prática: belo dia, com uma castanha de caju, desenhou um caprichadíssimo S no peito, dentro do famoso escudo triangular que continha a logomarca do seu herói. A pigmentação ou nódoa da castanha de caju vale como uma tatuagem de longa permanência. Resultado: durante muito tempo o menino não podia tirar a camisa sem revelar aos outros sua supersecreta identidade. Superpoderes que viabilizariam seu acentuado senso de justiça, sempre pronto a defender os mais fracos, os oprimidos. As grandes responsabilidades sempre acompanham os grandes poderes. Por outro lado, ninguém é perfeito, desde jovem adorava ver uma briga, uma boa porrada. O prazer da luta. Dizem as más línguas que até hoje ainda adora a assistir a uma boa contenda, ou até mesmo acirrá-las, levemente... Samuca era metido a valentão. Ilustro: certo dia a bola do baba foi presa por uma dupla Cosme-Damião. Todo mundo correu com medo. Ele os enfrentou, destemido, e, indagado sobre quem era, não titubeou: “Sou James Dean, o chefe da juventude transviada!” A dupla de policiais entreolhou-se estupefata, sem nada entender . James Dean, o SuperSamuqueiro, conseguiu a 390 Revista ALB 50_finalizada.pmd 390 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 bola de volta. Desde sempre amou o futebol, ardoroso e fanático tricolor que era e permanece. Aos 15 anos, sem dinheiro, entrava na Fonte Nova desde a manhã com a turma que ia vender guaraná, para conseguir assistir gratuitamente o jogo da tarde de domingo. Nadinho, Henricão, Marito, Alencar e Biriba eram seus heróis futebolísticos à época. Desde cedo revelou-se um líder. Criou um time, na Rua do Sodré, com o nome de “Peñarol”. Como era o chefe supremo do time, jogava, é claro, entre os titulares, e tinha a alcunha de “Touro Bravo”. Um perna-de-pau como jogador, mas um verdadeiro trombador. Seus companheiros de time eram Lagartixa, Batatinha, Bicho-Papão, Pinduca, Esqueleto, e Querrequechel. Muzinho, doublé de cartola, obrigava os meninos mais novos, a sair com listas pela rua, pedindo grana para as camisas e bolas. Era tão empreendedor que até um campo de futebol ele fez, na Rua Saldanha Marinho, Caixa D’Água, nos fundos da Fábrica de Biscoitos Celeste. S de SAMUEL, de SAMUCA, de Super-Homem e também de Sedutor: Quando muito jovem (porque jovem é e sempre será) foi vaidoso (e continua), metido a galã. Cabelo liso e fino – constituído então em vasta cabeleira – escorrido na testa, tanta brilhantina usava para armar um vistoso pimpão, que as irmãs o apelidaram de “basilicão” e sua mãe reclamava dos grossos emplastros sujando o travesseiro. Na Rua do Sodré era metido a namorador, o “boniton” do pedaço. Queria simplesmente namorar todas as meninas do mundo. Era tão metido que ousava querer até namorar, ao mesmo tempo, as duas filhas do Gerente da Varig, na Rua Carlos Gomes Ele ficava do outro lado da rua, assobiando (fu-fiii-fiu). Era a glória, quando as duas apareciam ao mesmo tempo na janela! Mas morria de medo do gerentão, pai das moçoilas! Namorava a sobrinha de um Secretário da Fazenda do Estado, menina bonita de Amargosa, quando obrigou seu irmão Reub a namorar com a irmã da moça, que, aliás, segundo relatos, 391 Revista ALB 50_finalizada.pmd 391 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 não era lá essas coisas. Reub sofria a sina dos irmãos mais novos... Isso como compensação, por que, de outra feita, indiscreto, já exercitando seu faro jornalístico, espalhou para todo mundo um segredo do irmão. Como um bom pichador precoce, Samuel escreveu nos muros da rua, com giz, uma frase que havia conseguido ler no fim da carta de amor que outra garota mandara para Reub, despedindo-se: “Dar-te-ei um beijo na boca”. Com esse furo “jornalístico” no dazibao improvisado, arruinou e jogou às feras a primeira sensação idílico-amorosa do irmão, que o perdoou, porém nunca se esquecerá do fato! Adorava poesia e considerava-se um vate com grande potencial. Nos veraneios da Ilha, na Gameleira, beira-mar, adorava exercitar seu talento. Dormiam 6, 7 meninos no mesmo quarto. Iluminados a fifó, lampião a gás, daqueles com camisa. Na hora de dormir, apagavam-se os candeeiros e toda vez alguém pedia: “Muzinho, recita uma poesia!” Cheio de orgulho e vaidade, empostava-se: “Pequenino, acorda, pequenino. Olha que te levam para o mesmo lado de onde os sinos tangem numa voz de choro...” Sonífero infalível, trem bala para o mundo dos sonhos... Conta-se que Muzinho, sem se dar conta, recitava entusiasmado a imensa poesia até o fim, ignorando o sono profundo da plateia. Samuca nasceu em Itabuna e desde cedo foi impregnado pela mitologia épica da civilização do cacau, suas histórias delirantes de amor, traição, tiranias e bravuras; universo tão bem desenhado por Jorge Amado. Num corte para os seus 19 anos, podemos vê-lo em Salvador, protagonista de uma cena amadiana a mais não poder. Para comemorar sua aprovação no vestibular vejam nosso herói a descer a Rua do Sodré, completamente bêbado, coberto de roxoterra, com cabelo todo pinicado, sem camisa, aos gritos: “- Sou acadêmico de Direitoooooo!” Todos na rua riam e se orgulhavam juntamente com ele por sua juvenilíssima vitória . Era, então, metido a comunista e admirador de Brizola e Jango. 392 Revista ALB 50_finalizada.pmd 392 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Com essa mesma idade foi trabalhar na Sociedade dos Amigos da Cidade do Salvador, no escritório no Jardim da Piedade, emprego arranjado por Joca Dórea, um primo segundo por parte de mãe. Seu primeiro trabalho foi assim fruto do mais puro nepotismo. Acontece que Muzinho sonhava mesmo era com o jornalismo. E lá se foi ele, atrás de seus sonhos. A ditadura militar marcou o seu caminho, como, de resto, a todos os seus contemporâneos, de uma forma ou de outra. Sua formação intelectual deu-se Faculdade de Direito sob um clima sufocante. A repressão acirrou sua rebeldia, seu desejo de expressão e sua paixão pelos valores democráticos e libertários. Dali para o jornalismo, um salto elástico. Algum tempo depois conseguiu, enfim, ser foca do Jornal da Bahia, mas não lhe concediam uma vaga de jornalista, porque seu cunhado Joca, João Carlos Teixeira Gomes, redator-chefe, não permitia, preocupado com as alegações de parentesco. Joca só veio a aceitá-lo depois que um movimento na redação lançou o repto: “Cunhado não é parente, Samuel para a vaga existente!” No JB foi companheiro e sempre amigo de Orlando Garcia (o Gordo) e Wilter Santiago (o Professor), entre muitos outros. Foi nessa mesma época, finais dos 60s, que me aproximei dessa turma fantástica. Adorávamos nos reunir para comer pizza aos domingos na inesquecível Pizzaria Guanabara, na Barra, a primeira da Bahia, com muitas cantorias, contando piadas, “metendo o pau” no regime ditatorial, conversas inesquecíveis regadas a tantas e intermináveis cervejas. Com o amadurecimento e o consequente refinamento de seus traços de personalidade, Samuel foi cuidadosa e consistentemente edificando sua prestigiosa carreira profissional, para a qual, a partir de certo ponto, passou a receber a segura orientação de Jorge Calmon, seu grande mestre. Jorge era um cavalheiro de estirpe, pessoa rara, elegantíssimo no texto, no comportamento e posturas, na alma. “Quando o discípulo está pronto, o mestre aparece.” 393 Revista ALB 50_finalizada.pmd 393 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Jorge o levou para a ABI, onde Samuel desenvolveu definitivamente sua paixão pela profissão e fortaleceu suas noções de civismo, participação e responsabilidade social. Do mestre recebeu valiosas lições de elegância, lisura e correção. Tornou-se o mais ardente e combativo defensor da liberdade de imprensa, da democracia, dos direitos da cidadania. Durante os 24 anos em que foi Presidente, Samuel deu provas de altivez, independência e coragem. Lutou tenazmente contra todas as formas de autoritarismo, prepotência e arrogância. Denunciou todas as ameaças e violências, todos os crimes contra a imprensa e os jornalistas. Fortaleceu a ABI e a fez mais respeitada e admirada. Samuel Celestino chega ao presente cercado por uma legião de admiradores fiéis, conquistados ao longo de muitos anos, à custa de muito trabalho e dedicação: é lido e citado quase que religiosamente, sua opinião tem um peso valioso. Provoca, desafia, contesta e tensiona os poderes de plantão. Nesse sentido ele exerce uma espécie de liderança difusa que não pede ou jamais induzirá votos nem suporta puxa-saquismos. Ao longo do tempo, Celestino modelou, desbastou, burilou e poliu seus vários dons, suou e trabalhou muito para exercitar e enfeixar na escrita seus muitos talentos, uma soma de inteligência; sagacidade; lucidez; perspicácia; sensibilidade social e conhecimento pragmático da realidade, tudo isso a serviço de grande coragem e capacidade de colocá-la à prova, na luta cotidiana, no conjunto oscilante das materialidades e na intangibilidade do dia a dia. Se há algo que destaca Samuel de seus pares é que ele toma posições claras e comprometidas em relação a todo e qualquer assunto. Coisa rara no jornalismo político da Bahia, suas posições são fundamentadas por princípios, crenças e valores, guiadas por conceitos sólidos através dos quais navega e encontra seu norte. Pode-se concordar ou não com suas posições, mas ninguém poderá negar que se lança por completo, em verdadeiro estado de entrega, e coloca-se, íntegro, no que escreve. Várias vezes eu disse a Samuca 394 Revista ALB 50_finalizada.pmd 394 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 que ele fazia sua coluna política praticamente na primeira pessoa. Tem toda razão em seguir este tom: o que é a vida, o trabalho, a escrita, senão alguma coisa antes de tudo profundamente pessoal? O que viemos fazer por aqui senão levarmos o que somos à sua melhor expressão? “Se não agora? Quando? Se não eu? Quem?” Samuel cresceu no jornalismo, no processo de se construir jornalista, tornou-se o grande cronista da vida política baiana. Quem o conhece bem sabe que ele não é movido por qualquer viés sectário ou ideológico. Comprometido, porém, com um ideal claro e definido: a consciência do valor inerente e imanente da Liberdade Democrática e seus corolários: a política exercida com ética, pelo bem comum, a compreensão da coisa pública, a noção do que seja o Estado, para além da administração de políticas partidárias. Imensas batalhas vividas, das quais quase sempre saiu vitorioso, ou, pelo menos, ileso. E sempre renovado. Mantém aceso e vivo dentro de si aquele jovem defensor das causas justas e nobres, sobretudo quando se trata de defender interesses coletivos vilipendiados ou ignorados; comunidades carentes esquecidas ou exploradas; o nosso patrimônio cultural e histórico, as grandes causas ligadas ao meio ambiente. Para essa batalha teve que constituir algumas trincheiras de luta como prioridades. Hoje milita em três fronts, três mídias diferentes, onde pode dar vazas a sua versatilidade de expressão. Na destacada coluna política do Jornal A Tarde, de onde construiu paulatinamente seu imenso prestígio, e dali mapeou a amplitude do território político. Depois, em um dos melhores saques e sentido de oportunidade de sua vida (que credita também ao sócio e amigo, Luzbel), criou um site exclusivo de política, pouso obrigatório para quem se interessa pelo assunto, e que vem quebrando recordes sucessivos de visitação diária. Há poucos dias ultrapassou 100 mil acessos. E, finalmente, seu mais novo espaço profissional: na Rádio Tudo, que já está entre as primeiras em audiência, tornou-se um radialista diário, um comunicador de grande sucesso. Semana passada, em uma pesquisa nos EUA, o rádio foi sacramentado como 395 Revista ALB 50_finalizada.pmd 395 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 a mídia que traz mais fruição e felicidade para seus usuários. Quem vaticinava o seu final enganou-se redondamente. A quem, como Samuel, saiba chegar bem aos seus ouvintes, a mídia do rádio traz ricas recompensas através do contato direto, imediato e interativo com todas as faixas sociais e etárias da população. Em um mundo cada vez mais indiferenciado e materialista, semidevorado por um capitalismo ignorante, apressado e autofágico, Samuel alimenta um Quixote vivo em seu coração e toda hora esporeia seu Rocinante, parte para enfrentar gigantes. Muito embora mantenha o bom senso camponês, os pés bem plantados na realidade. Sancho Pança não teria com que se preocupar. Sua mais recente cruzada é contra a cultura da corrupção institucionalizada que parece ter tomado conta do país, uma sangria desatada que exaure nossos recursos de modo espúrio, indecente. A classe política parece ter passado a ter lugar cativo, diário, no noticiário policial. Nessa luta tem obtido imensa resposta e apoio da opinião pública que percebe e ratifica suas acaloradas denúncias e questionamentos. Alinhavando todos esses aspectos de ser Samuca, vive um menino buliçoso, que ele protege e alimenta como uma chama sagrada. Curioso, travesso, bem humorado e gozador, fantasioso e inventivo. Chega para aprontar toda vez que a vida estagna, quando a seriedade começa a ficar sisuda, as grandes calmarias ameaçam apodrecer as velas por falta de vento, o preço do dia a dia enverga a alegria e a leveza, lá vem ele, de pimpão, “jamesdeanizando” a vida. Impulsivo e destemido, cativante e brincalhão. Mal lhe brota no espírito uma ideia, uma emoção, uma indignação, um sentimento, imediatamente os transforma em ação. Apaixonado, sem racionalizar ou ensaiar nada. Confia plenamente no seu instinto, na sua intuição. Segue então sua “estrela guia” e joga-se à frente, sem pestanejar, se lança de corpo inteiro na arena renhida pelas causas em que acredita. Não raro cria também muitos inimigos, a quem combate com o aço de suas palavras, espada de samurai. S de super-homem, S de samurai. 396 Revista ALB 50_finalizada.pmd 396 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Bom de briga, poderoso e respeitado entre seus pares e pelos leitores, internautas e ouvintes, faz com que seus inimigos tremam. Quando se decide pela luta, escolhe um alvo, bate sem piedade, fazendo armas das palavras, luvas de boxe do teclado. Às claras, expondo suas verdades e motivos de forma clara e limpa. Vez por outra, quando convencido que está errado, volta trás, o que demora, por que lhe custa muito dobrar sua teimosia recalcitrante. Celestino inventou para si um alter ego de modo escapar das malhas da política, dar curso a sua imaginação fértil e a seu talento narrativo e ficcional. Nascia o Zeca Di Affonso. Essa persona nos ofereceu crônicas muito engraçadas, delirantes, algumas delas surreais. Deu asas à cobra: a parte de sua alma que permanece descaradamente anárquica. A dobradinha Samuel Celestino/Zeca Di Affonso o levou à Academia de Letras da Bahia, à Cadeira nº 23, antes ocupada por Jorge Calmon. Foi ungido imortal, reconhecimento pelos seus bons tratos às palavras. Viajar na companhia de Samuel é uma experiência inesquecível por dois motivos. O primeiro deles é que a própria viagem se torna mais agradável em sua companhia arguta e divertida. Depois, porque seu talento narrativo irá conjurar sempre no presente, como por passes de mágica, as viagens findas, cuja duração se torna, assim, ilimitada Os tantos episódios interessantes e engraçadíssimos de suas peregrinações pelo globo, muitas delas acompanhado dos amigos rendem relatos hilários, aperfeiçoados a cada vez que os relembra. São contados e recontados por ele de viva voz, uma vez que são literalmente impublicáveis, com graça e delícia. Uma sucessão de cidades, personagens, acontecimentos, exageros, boutades, piadas, ironias. Relembro algumas passagens: nunca durma num vagão com um mendigo catador de moedas. Jamais chegue bêbado numa cidade como Florença. Cuidado com os “negronis” de Veneza. Atenção nas saídas noturnas em Taiwan. Esteja realmente presente em casas de massagem em Seoul. Mantenha a seriedade nas solenidades oficiais e troca de brindes na China. Olho vivo nas madrugadas em bares de Genebra. Nas germânicas 397 Revista ALB 50_finalizada.pmd 397 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 garçonetes das cervejarias de Hannover e no seu perigoso metrô. No errático tiro ao alvo das boates de Bangkok. Tudo fica mais interessante e vívido ao ser recontado pelo amigo Samuel. Muitos dos presentes vão entender esses registros inesquecíveis. Até o fim da década de 80 foi um dos mais famosos namoradores da Bahia. Sua casa em Armação era sinônimo de festas, das boas, animadíssimas. Open house, sem parar. Era um Don Juan febril. Bem que ele tentou sossegar. Duas vezes se casou. Com Verusa teve seus três filhos, Vanessa, Leonardo e Ariel, filhos maravilhosos. Só veio a pendurar definitivamente as chuteiras quando conheceu Mirella, por quem se apaixonou e com quem aprendeu, finalmente, a viver as delícias de uma família estável, sobretudo depois do nascimento de Daniel, nosso querido Dandan, que chegou para iluminar, inspirar, amolecer e rejuvenescer o coração do pai. Hoje, finalmente apascentado, canaliza seu grande poder de sedução para sua atuação profissional e para a convivência e cultivo da amizade, um privilégio de seus amigos, que, justamente por este motivo, hoje aqui se reúnem para homenageá-lo. Grosso modo, esse o caminho que o fez chegar até aqui, a ser quem é. O tanino que marcava o triângulo e o S podem ter somente fingido desaparecer, mas na verdade se entranharam como tatuagens na alma. Longos e produtivos anos pela frente, novos sonhos, grandes desafios são nossos emocionados votos ao jovem vaidoso e empreendedor Muzinho: ao impulsivo, apaixonado, determinado e pugnaz Samuel, ao divertido e solidário Samuca, ao anárquico Zeca Di Affonso, ao imortal, ao radialista, ao marido, ao pai, ao grande amigo, super-homem, sedutor, samurai, sonhador Samuel Celestino. Obrigado. Geraldo Machado é engenheiro, mestre em Gestão Social e Desenvolvimento (UFBA), Cavaleiro na Ordem das Artes e das Letras da França, foi Secretário da Indústria e Comércio do Estado da Bahia e dirigiu várias instituições públicas e privadas. Hoje está à frente da Superintendência do SENAR Bahia. Desde 2003 ocupa a Cadeira nº 4 da ALB. Agradecimentos a Katia Fraga Jordan por sua valiosa colaboração a este discurso. 398 Revista ALB 50_finalizada.pmd 398 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cláudio Veiga – vida, obra e Academia Edivaldo M. Boaventura Cumprindo o ritual da saudade, a Academia homenageia Cláudio Veiga. Familiares, confrades e alunos se juntam na expressão dos melhores sentimentos, recordando o companheiro, o professor de francês e o pai. Como professor, ensinou, pesquisou e publicou, enfim, construiu a obra legada. Partindo das fundações francesas, escolheu como objeto de estudo personalidades franco-brasileiras, como Philéas Lebesgue, que se relacionaram com o Brasil. Ocupou-se bastante dos baianos vinculados à pátria de René Descartes, cujo melhor exemplo é a biografia definitiva de Caetano Moura. Vamos, assim, traçar o arco de sua vida produtiva e complementar com o reconhecimento do acadêmico prestante. FORMAÇÃO E CARREIRA DOCENTE Cláudio Veiga soube, disciplinarmente, construir uma obra coerente. Professor, por toda a vida, ilustrou o magistério secundário, sendo um dos últimos catedráticos do Colégio da Bahia, tendo sido também o seu diretor-geral. Distinguiu-se como 399 Revista ALB 50_finalizada.pmd 399 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 professor de língua e literatura francesas do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e como presidente da Academia de Letras da Bahia (ALB). Da matriz francesa, iniciou a primeira etapa de sua obra. São os anos de aprendizagem no exterior. Revigorou a formação humanística, obtida no Seminário Central, com o bacharelado pela então, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade Federal da Bahia. Nela, a influência maior foi do professor de francês Raymond van der Haegen, agregé de Universidade e diretor da Casa da França da Ufba, importante centro de difusão da cultura francesa com cursos regulares, biblioteca e filmes. Segundo Cláudio, Van der Haegen foi o introdutor da metodologia do comentário de texto, no curso de letras, da então Faculdade de Filosofia. Pela reforma universitária de 1968, criou-se o Instituto de Letras, do qual Cláudio foi o segundo diretor, sucedendo ao professor de Literatura Portuguesa Hélio Simões. O bom êxito nos estudos o conduziu à França, para cursar a Escola Superior de Preparação e de Aperfeiçoamento de Professores de Francês no Exterior, na Universidade de Paris – Sorbonne. Estudou também no Instituto de Filologia Românica, de Estrasburgo, e no Instituto Católico de Paris. Mais tarde, no precioso diário, Um estudante em Paris 1950-1952, contou como foi o seu tempo de estudante na França. Que representa para o jovem bacharel em letras aqueles cursos na França? A força dos estudos especializados, o método que leva à armadura e tessitura dos trabalhos intelectuais, o aprendizado da maneira cartesiana de expor com ordem e objetividade, arte em que os francesas são mestres, forneceram os parâmetros para a vida acadêmica que se iniciava. Ao regressar à Bahia, acrescentou ao bacharelado de três anos a licenciatura de um ano por exigência do magistério. Era o esquema “três mais um”, isto é, conteúdos e formação pedagógica das licenciaturas. 400 Revista ALB 50_finalizada.pmd 400 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Da experiência francesa saíram as disciplinadas teses que formaram o erudito. No seu caso, basicamente, as dissertações exercitaram o método que o capacitou para o trabalho intelectual. Para a sua trajetória, foram sumamente importantes os estudos pascoalinos: Das pequenas cartas de Pascoal, A comparação e as Provinciais e Aspectos de Pascoal escritor. Mas, por quê? Pelo que Blaise Pascoal representa para o pensamento francês? Positivamente, sim. E mais ainda, são essas teses que marcaram o início da carreira do scholar que Cláudio Veiga veio a ser. São também dessa fase os trabalhos sobre a língua francesa: Vestibular de francês, Gramática nova do francês, Textos franceses, Introdução à poesia francesa e a Mini-antologia bilíngue da poesia francesa, que depois desabrochou na monumental Antologia da poesia francesa, do século IX ao século XX, com a apresentação do professor e cônsul honorário Jacques Salah. A Antologia é o seu trabalho de maior fôlego que consumiu mais de vinte anos. No dizer de Salah: “labor beneditino ao qual o Prof. Cláudio Veiga consagrou os seus mais legítimos instantes de lazer”. Ele foi sempre fiel durante toda a vida às fontes francesas de sua formação. A atividade de magistério secundário e superior motivou bastante a sua produção linguística e literária. Despertou para a vertente da Literatura Comparada, perfeitamente, em conformidade com o seu disciplinado trabalho acadêmico que desenvolveu como professor titular de Literatura e Língua Francesas da Ufba. Começou com o cotejo entre os clássicos Camões e Ronsard, delineou-se, assim, a fase da literatura comparada na sua vida literária. Cláudio ensinou na Universidade Católica do Salvador (Ucsal), provavelmente, até o advento do regime do tempo integral com dedicação exclusiva. É nesse contexto que se insere Aproximações: estudos de literatura comparada, coletânea de ensaios que envolve autores franceses, brasileiros e portugueses. Tinha predileção pela obra do padre Antônio Vieira. Desse período são também as contribuições das presenças francesas em Castro Alves. Trata-se de uma análise 401 Revista ALB 50_finalizada.pmd 401 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 definitiva dos autores franceses que influenciaram o nosso poeta romântico. Estuda também Huysmans, em Eça de Queiroz. Examina as traduções e as aproximações entre O navio negreiro e Le bateau ivre, entre Os Lusíadas e La Franciade Na perspectiva da dualidade nacional, França e Brasil-Bahia, surge o interesse pela vida e obra de Caetano Lopes Moura o que determinou as pesquisas, diretamente, na Biblioteca Nacional da França e no Arquivo do Exército em Vincennes, visto ter sido Caetano Moura integrante da Legião Portuguesa nas guerras napoleônicas. A biografia de Caetano Moura é o seu trabalho mais duramente pesquisado e pode ser considerada a sua melhor obra. Nos arquivos de La Neuville-Vault, buscou o relacionamento do brasilianista Philéas Lebesgue com os escritores brasileiros. Estudou ainda o visconde da Pedra Branca, pai da condessa de Barral, nosso primeiro ministro-plenipotenciário em Paris, um homem de fronteira entre Brasil e a França. A familiaridade com a literatura francesa vai permitindo lançar pontes e passarelas para compreensão do fenômeno literário em certos autores brasileiros e baianos de nítida influência gaulesa. Castro Alves aponta, então, com bem mais força, não somente pelo estudo meticuloso da presença francesa em sua poética, como pela análise das traduções de poetas franceses. De Le bateau ivre passou Cláudio a O navio negreiro, para chegar ao porto da Bahia, adentrando-se cada vez mais na contribuição dos escritores baianos. Na transposição da temática francesa para a brasileira, a concentração no estudo, a cadência da disciplina acadêmica, a meticulosidade na análise, a coerência na análise, o espírito do método, enfim, o que adquiriu na aprendizagem da investigação francesa vai se dirigindo, inicialmente, para os paralelos entre personalidades franco-brasileiras e, em seguida, para aumentar a capacitação na pesquisa literária. Nesse evolver, tudo indica ser Os prosadores e poetas da Bahia o mais investigado, por exigência do 402 Revista ALB 50_finalizada.pmd 402 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 método. A linha do inquiry por determinação de segurança, do material coletado e da proximidade, em uma palavra, a própria evidência empírica, é que levou Cláudio a escolher os baianos a exemplo de Caetano Moura, de quem deixou a biografia definitiva. Se da fase inicial dos seus estudos franceses, trouxe a teoria literária – é a teoria que sempre guia a pesquisa, a imprescindível fundamentação teórica dos trabalhos acadêmicos – do segundo período vieram às técnicas e os processos do método comparado, o que não deixou de ser um procedimento de investigação histórica. No particular, cabe a afirmativa de Robert Travers sobre o método histórico com referência à educação, aplicável também à investigação literária. Toda investigação literária é uma pesquisa histórica, pela revisão da literatura, pela consulta às fontes, pela aproximação do método com as técnicas da pesquisa nas ciências do comportamento. O mesmo se pode afirmar quanto à literatura comparada. A maior parte das vezes que se utiliza a metodologia bibliográfica ou metodologia documental a abordagem histórica está presente, instrumentalizada com a análise do conteúdo ou pela análise do discurso. É exemplo do que acabo de dizer a obra Um brasileiro soldado de Napoleão, que é a requintada biografia intelectual de Caetano Moura. Observe-se a riqueza do material coletado, na Bahia, no Rio, em Paris, em Ruan, devidamente interpretado, que resultou em um primoroso trabalho acadêmico de organização periódica e tópica, merecendo do crítico Wilson Martins a apreciação elogiosa: “Alto modelo de biografia intelectual, implicando, além da extraordinária e sólida cultura humanística, porque o autor é conhecido, meticulosa e sistemática pesquisa no Brasil e no Exterior.” Seguindo a mesma line of inquiry, apareceu uma leitura de Artur de Salles, Sete tons de uma poesia maior. O esquecido simbolista baiano encontrou, para Pedro Calmon, “quem o compreendesse e estudasse na inteira dimensão de sua arte: Cláudio Veiga.” 403 Revista ALB 50_finalizada.pmd 403 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Na significativa contribuição à literatura brasileira, pela proximidade do que encontrou sur place, Cláudio Veiga se ocupou do árcade Pedra Branca, Caetano Moura, Artur de Salles, Péthion de Vilar, Altamirando Requião, que, por sua vez, chamaram ao estudo outros escritores baianos: Jorge Amado, Adonias Filho, Xavier Marques, J. J. Seabra, Prado Valadares, Álvaro Reis et alii. Estes autores integram o volume Prosadores e poetas da Bahia que é, emblematicamente, uma clara linha de investigação da literatura baiana. O abalizado pesquisador confessa: “Neste livro o denominador comum é a Bahia, a história de sua literatura. Quase todos os escritores arrolados nasceram na Bahia...” Cláudio Veiga partiu das matrizes francesas e erigiu a sua obra de escritor, de tradutor e de pesquisador de nossa literatura, constituindo-se em um ensaísta erudito academicamente, um scholar pela obra edificada e pela postura assumida. Cláudio integra a primeira geração dos diplomados, pelo Instituto de Letras da Ufba, com expressiva formação, especialização ou doutorado no exterior ou no país, juntamente com Joselice Macedo de Barreiro, doutora em Linguística, Zilma Parente de Barros, doutora em Língua Germânica, Antônio Barros, doutor em Literatura Brasileira, Newton Vasco da Gama, doutor em Filologia Românica, Luiz Angélico Costa, doutor em Língua Inglesa e outros. Uma circunstância especial quanto ao ingresso no nosso sodalício: Cláudio Veiga foi o primeiro licenciado em Letras a ingressar na Academia de Letras da Bahia. ACADÊMICO E PRESIDENTE DO SODALÍCIO A obra coerentemente elaborada o conduziu à nossa Companhia e mereceu o reconhecimento da emerência pela Universidade que tão bem serviu. Acerca da entrada na casa de Arlindo Fragoso, gostaria de recordar Hélio Simões quando propôs Cláudio para a nossa Companhia, sucedendo a A. L. Machado Neto. Confessou-me o 404 Revista ALB 50_finalizada.pmd 404 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 confrade que o trazia, como de fato o trouxe, para Companhia, porque Cláudio tinha uma obra bem definida e bem construída. Detentor de marcante contribuição literária entrou, em 1978, onde muito cedo progrediu e com três anos apenas elegeu-se para presidir por vinte e seis anos o nosso grêmio, de 1981 a 2007. Repetindo a sucessão no Instituto de Letras da Ufba, também na Companhia sucedeu a Hélio Simões na presidência. Na gestão de Cláudio Veiga, procedeu-se a transferência da sede da Academia do Terreiro de Jesus para o nobre solar Góes Calmon. A solenidade de 7 de março de 1983, aniversário do Sodalício, selou a chegada ao bairro de Nazaré. A partir daquele momento, a Academia passou a ter acentuado desempenho com a realização de atividades colegiadas e de eventos marcantes a serviço das demandas literárias e das ofertas crescentes da produção do conhecimento e de sua disseminação. Cláudio liderou a organização do novo espaço acadêmico, ambientando-o às funções dos serviços acadêmicos. Mas do ponto de vista da manutenção, a nova bela sede foi e uma preocupação constante do presidente Cláudio Veiga. Desejo muitíssimo agradecer, publicamente, ao presidente Cláudio a outorga do título de acadêmico benfeitor. O momento comporta uma explicação. Acompanhei de muito perto os primeiros anos da sua gestão, iniciada ainda na sede do Terreiro, em 1981, pois só nos mudamos para a casa de Góes Calmon, em março de 1983. Como manter a Academia albergada em um palácio sem recursos próprios e sem funcionários? Como secretário da Educação e Cultura do Estado da Bahia, o último, aliás, que acumulou essas duas funções, de 1983 a 1987, colaborei com os meios necessários ao seu funcionamento. Coloquei à disposição da Academia o pessoal dos quadros administrativos oficiais necessários ao funcionamento mediante convênio. E com outro convênio, mantive financeiramente a Academia. Paguei os móveis e equipamentos doados pelo governo 405 Revista ALB 50_finalizada.pmd 405 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 anterior. Com o apoio institucional da Secretaria que dirigia, pude fazer a Academia funcionar ajudando o presidente no papel de líder da cultura. Com a sede no Solar Góes Calmon, o grêmio tornou-se o centro da atividade literária da cidade do Salvador, promovendo inúmeros lançamentos, conferências, cursos, recitais e concursos. Por esse e outros serviços prestados, o Sodalício tornou-me membro benfeitor, juntamente com Jorge Calmon. Em 7 de março de 1986, recebemos Jorge e eu, a promoção pela palavra sempre atenciosa e carinhosa de Hildegardes Viana. Senti, naquele momento, que entrava na Academia outra vez. Dessa maneira, entendo que cabe ao Estado estimular e apoiar as atividades culturais. As Academias, principalmente as de Letras e das Ciências, mantêm conhecido relacionamento com o poder público desde as suas origens francesas. Recordemos, pois, que o saber é uma forma de dominação. Um exemplo ilustre é o da Academia Portuguesa da História, criada por D. João V, e o da Academia de Ciências de Lisboa, que inclui uma seção de letras, instituída por D. Maria I – ambas sempre mantidas pelo Estado português. É salutar, por dever de justiça, destacar o quanto foi relevante para o sucesso da gestão Cláudio Veiga o apoio de Jorge Calmon. Graças ao seu prestígio pessoal, conseguiu o solar Góes Calmon para sede da Academia e ampliou o seu patrimônio edificado com a construção de um pavilhão que leva o seu nome. A doação dos pratos brasonados, que tanto embeleza a aconchegante sala de reunião, recompôs o cenário de finesse do início do século XX da antiga sala de jantar do casal Julieta e Francisco Marques de Góes Calmon. Aliam-se aos serviços prestados por Jorge Calmon a dedicação e o empenho pessoal do poeta Carlos Cunha, sempre presente e companheiro inseparável do nosso saudoso homenageado. Destaco também a colaboração de Teresa Veiga e dos atuais funcionários Valdir Sena, Maria do Carmo Moscovits e Genilda Santana. 406 Revista ALB 50_finalizada.pmd 406 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Ao ensaísta Cláudio Veiga, a Academia muito deve. Cultor da língua e literatura francesas, estudioso da literatura comparada, teórico e prático da tradução. Verteu para o vernáculo o livro de Jules Romains, Morte de alguém. É monumental o seu esforço de tradução para a Antologia da poesia francesa do século IX ao XX. Destaque-se a sua contribuição para a literatura baiana no contexto luso-franco-brasileiro. O professor Cláudio Veiga é, portanto, um fautor que muito favorece a realização da Academia de Letras. Tanto soube construir o conhecimento com comprovada obra universitária, como soube fazer a Academia, dirigindo-a com sabedoria por mais de duas décadas. A sua gestão foi paciente e sábia na agregação de pessoas, de livros e de bens móveis. Promoveu a integração de vários acervos – Álvaro Nascimento, Odorico Tavares, Waldir Oliveira e outros. Incorporou parte do espólio de Edith Mendes da Gama e Abreu e a coleção de estatuetas de biscuit do doutor Eliezer Audíface. Perpetuou em bronzes os vultos de Cervantes, Otávio Mangabeira, Arlindo Fragoso, Pedro Calmon e Jorge Amado. Complementamos o sculptural garden, iniciado em sua gestão, com a inauguração do busto de Jorge Calmon por Márcia Magno, oferta do presidente da Associação Baiana de Imprensa (ABI), o confrade Samuel Celestino. Instalamos a estátua do governador Francisco Marques de Góes Calmon, por Paschoal di Chirico, restaurada pelo professor José Dirso Argolo e postada no jardim, pelo seu neto o ministro Ângelo Calmon de Sá. Outra importante contribuição de Cláudio foi a institucionalização de cursos, seminários e concursos literários. Tonificou o Curso Castro Alves em Colóquio da Literatura Baiana com a ajuda do acadêmico Aleilton Fonseca, criou o Curso Folclore, tão bem coordenado pela saudosa professora Doralice Alcoforado. Convencionou o Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia com a Braskem. Os diversos lançamentos, palestras, exposições, edições da Revista da Academia, 407 Revista ALB 50_finalizada.pmd 407 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 publicações, renovadas posses solenes e parcerias com diversas instituições culturais, movimentaram a nossa Academia. Merece uma menção especial o duplo convênio com a Assembleia Legislativa da Bahia. Com o nosso confrade homenageado, manteve-se a linha de erudição, que converte o grêmio em uma entidade cimeira da cultura baiana. CLÁUDIO VEIGA, ACADÊMICO BENFEITOR Pela obra, Cláudio Veiga é um ensaísta, expoente da literatura baiana. O reconhecimento pelo seu trabalho o introduziu no pequeno e selecionado grupo dos membros benfeitores, composto por Heitor Praguer Fróes, Jorge Calmon e por mim. A outorga do título foi uma das primeiras iniciativas quando assumi a presidência. O título, como todos os diplomas de mérito, é um emblema de reconhecimento. Cláudio Veiga é um dos construtores desta Academia, símbolo de compreensão, de sabedoria e de convivência acadêmica. Grato a todos pela presença e mais ainda pela atenção! Salvador, 2 de junho de 2011. REFERÊNCIAS VEIGA, Cláudio. Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX). Rio de Janeiro: Record; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1991. VEIGA, Cláudio. Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX). Rio de Janeiro: Record; Salvador, Bahia: Secretaria da Cultura e do Turismo, 2ª edição, 1999. 408 Revista ALB 50_finalizada.pmd 408 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 _________ . Atravessando um século: A vida de Altamirando Requião. Rio de Janeiro: Record; Salvador Bahia: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1993. _________. Um Brasilianista francês – Philéas Lebesgue. Rio de Janeiro: Topbooks; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1998. __________. Prosadores e Poetas da Bahia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. ___________. Aproximações: estudos de literatura comparada. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1979. ___________. Sete tons de uma poesia maior: uma leitura de Arthur de Sales. Rio de Janeiro: Record, 2ª edição, 2002. ___________. Um brasileiro Soldado de Napoleão. Rio de Janeiro: Record, 1979. Discurso proferido na Sessão da Saudade, dedicada ao acadêmico Cláudio de Andrade Veiga, e realizada no salão nobre da ALB, em 2 de junho de 2011. Edivaldo M. Boaventura é ensaísta, pesquisador, professor emérito da UFBA, autor de diversos livros de ensaios; foi presidente da Academia de Letras da Bahia, de 2007 a 2011. Atualmente exerce o cargo de diretor-geral do jornal A Tarde. Desde 1971 ocupa a Cadeira nº 39 da ALB. 409 Revista ALB 50_finalizada.pmd 409 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 410 Revista ALB 50_finalizada.pmd 410 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cláudio Veiga, professor de Francês Denise Lavalée A tendendo ao honroso convite do Ex-presidente da Academia de Letras da Bahia, prof. Edivaldo M. Boaventura, para que apresentássemos, nesta homenagem póstuma, nosso testemunho sobre o prof. Cláudio Veiga, que por longo período dirigiu esta casa, gostaríamos inicialmente de agradecer a oportunidade que nos foi concedida de compartilhar com os presentes alguns episódios de sua brilhante carreira, durante sua atuação como docente na Faculdade de Filosofia. O perfil do homenageado se inscreve sob múltiplas vertentes. Mergulhado na secularidade de um espaço social ambíguo, ele se pautou sobre uma formação clássica cujos fundamentos filosóficos, ancorados na tradição, transpareciam em seus trabalhos, norteando o criterioso reexame dos textos selecionados, em permanente busca de autenticidade e de apuro técnico, presentes nas obras que publicou. Assim, dentre elas, merecem destaque algumas particularmente significativas, que se converteram em instrumento de trabalho no cotidiano dos professores de francês. Citemos primeiramente a Gramática nova do francês, de cunho normativo, destinada a estudantes brasileiros, que adquirimos 411 Revista ALB 50_finalizada.pmd 411 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 desde o seu lançamento, em 1965, pela Editora F.T.D. Ltda de São Paulo e da qual extraímos os melhores momentos de nossa prática pedagógica. O autor atuava como Catedrático de Língua e Literatura Francesa da Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia, antiga denominação do prédio onde estudamos, localizado em frente a esta Academia; ocupava igualmente a função de professor das mesmas disciplinas na Faculdade de Filosofia da Universidade Católica do Salvador, e de catedrático de Francês no Colégio Estadual da Bahia. Data desse período (1964) o Vestibular de Francês, de sua autoria, editado pela Livraria Progresso de Salvador, considerado como “a bíblia” dos candidatos a tal rito de passagem. Um quarto de século depois, quando a Editora do Brasil (SP) lança a 4ª edição da referida Gramática, já então consagrada em 1990, decidimos adquirir outro exemplar, agora numerado, o 732, para uso exclusivo dos alunos em classe, favorecendo o acesso a aspectos contrastivos do idioma francês, ali apresentados sob a ótica comparatista de nossa língua materna. Adquirimos posteriormente um terceiro exemplar, no sebo que funcionava nas proximidades da Praça Castro Alves. Os amantes das línguas estrangeiras e da palavra escrita transferem muitas vezes para a aquisição de gramáticas, dicionários e livros suas inquietações existenciais relativas à segurança, ao prazer estético e à paz interior. A propósito dos dicionários, na qualidade de ex-aluna e posteriormente colega do prof. Cláudio Veiga, gostaríamos de evocar sua profunda rejeição à ausência de senso crítico manifestada por alguns docentes de francês que, ao sabor das novas metodologias, se entregavam a acrobacias mentais – infrutíferas – com o fito de evitar a tradução pura e simples de qualquer vocábulo francês para a língua materna, mesmo diante de idiomatismos ou de fatos interculturais de alta complexidade: as armadilhas herméticas da tradução. Outra obra que reflete o labor do poeta e do tradutor, publicada pela Universidade Federal da Bahia em 1979, consiste nas 412 Revista ALB 50_finalizada.pmd 412 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 “Aproximações: estudos de literatura comparada”. Ali estão cotejadas as literaturas brasileira/francesa/portuguesa; Castro Alves, Rimbaud, Camões e Ronsard são analisados quanto à sua poética ou às atividades de tradução. Pertence a esse livro o paralelo, bastante divulgado nas Faculdades de Letras, entre o “Navio negreiro” de Castro Alves e “Le bateau ivre” de Rimbaud, um primoroso entrelaçamento entre mar – navio – veleiro – tombadilho – viagem que apresenta numerosos pontos convergentes. Voltemo-nos, porém, para obras mais recentes, como sua Antologia da Poesia Francesa (1991), editada pela Record, do Rio de Janeiro. Trata-se de um trabalho cuidadosamente tecido, por onde desfilam onze séculos de poesia, traduzidos com a isenção e a sensibilidade características do estilo do autor, cujo método de trabalho confirmaria Nietzsche, ao declarar que nenhum vencedor acredita no acaso, nem deixa sua inspiração à mercê da imprevisibilidade. Tais considerações, embora breves, nos trazem de volta à antiga Faculdade de Filosofia dos anos sessenta. Para vivenciar a nostalgia existem formas distintas: a que nos toca mais de perto consiste no saudável resgate de gratas reminiscências e de momentos marcantes, capazes de evocar admiração, deleite intelectual e até mesmo um sorriso cúmplice. Atravessemos, pois, a rua diante de nós, em busca do passado. Uma escada central de madeira escura e polida dá acesso ao primeiro andar onde, à esquerda da grande sala, sentado à mesa, o professor Cláudio Veiga apresenta aos alunos do curso de Línguas Neo-latinas um dos mais belos exemplos da poética simbolista francesa, o poema “Parfum Exotique”, de Charles Baudelaire, extraído do volume Les Fleurs du Mal, datado de 1857. A obra, tão controvertida quanto fascinante, mereceu, no mesmo ano, em carta dirigida ao autor pelo poeta Victor Hugo, a seguinte apreciação: “Suas Flores do Mal deslumbram e resplandecem como estrelas”. O que não poupou a Baudelaire um processo 413 Revista ALB 50_finalizada.pmd 413 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 seguido de multa por ultraje aos bons costumes e à moral pública, episódio que ilustra um dos vários oximoros que pontilharam sua agitada existência. Ocorre que a edição do livro-texto utilizada pelo professor trazia a capa ilustrada por belas musas, desnudas, obviamente, em posturas condizentes com o conteúdo do volume. Naquela época, os alunos, e particularmente as alunas, costumavam frequentar as aulas vestidos com relativo apuro. A capa do livro causava algum tipo de desconforto ao nosso homenageado. O grupo se compunha, majoritariamente, de jovens representantes do sexo feminino, muitas delas oriundas do colégio vizinho, Nossa Senhora Auxiliadora, dirigido pela educadora Anfrísia Santiago, de reconhecido valor moral e pedagógico. Aquele curto trajeto entre as duas instituições recebia, dos rapazes do bairro de Nazaré, o epíteto de Passarela do Saber, em tom de leve zombaria. Diante dos alunos, prosseguindo na apreciação dos poemas e discorrendo sobre a biografia polêmica de Baudelaire, após duas ou três aulas o professor Cláudio Veiga surge com um novo livro. Ao vê-lo manusear suas páginas, constatamos que se tratava do mesmo autor, e tem início a análise estilística do conhecido poema “Parfum exotique”. Desdobram-se diante de nós evocações derivadas dos cinco sentidos humanos, visões paradisíacas provocadas pelo perfume da mulher amada, o toque acetinado da sua pele como vetor de novas sensações visuais e auditivas, impressões gustativas advindas de frutas tropicais de países distantes, cenas sinestésicas embaladas pelo marulho das águas e pelo canto dos marinheiros. Praticávamos ali um mergulho sensorial na harmonia e na beleza, guiados pela palavra. Porém, por mais perfeito que seja considerado esse poema, por mais indecisas que se mostrem as fronteiras entre o sensual e o sexual que envolvem as Flores do Mal, a mais bela experiência que vivemos naquele semestre de juventude foi o gesto do 414 Revista ALB 50_finalizada.pmd 414 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 professor – o gesto sensível, o gesto delicado, o gesto insólito e raro de recobrir, com uma folha opaca de papel pardo, a capa da edição Flores do Mal, visando com isso preservar dos olhos juvenis a nudez das musas e evitar reações de constrangimento. Se alguém considerou inusitada aquela atitude, representou, sem dúvida, uma solitária voz divergente no coro de silenciosos aplausos que aquela prova de sensibilidade mereceu. Cristalizouse ali, diante de nós, a imagem do mestre, modelo de seriedade e de moral que a todos conquistou. Este foi, nos anos de magistério, o ex-presidente desta casa, com quem aprendemos a exercitar o vouvoyement e ao qual ninguém ousaria tutoyer, tratamento que ele próprio desaconselhava, com humor, recomendando empregar, em qualquer circunstância, o pronome pessoal vous, sobretudo em se tratando de interlocutores franceses, habituados ao rigor dos códigos linguísticos da norma culta. Para o aprimoramento do seu perfil como escritor, tradutor, historiador, pesquisador e poeta, contribuiu particularmente sua formação como educador em sua longa passagem pelo magistério, bem como contribuíram os valores que sempre cultivou: a disciplina, a sobriedade e o formalismo. Graças ao conjunto de sua obra, aliada à argúcia de suas análises estilísticas e interpretações textuais, sua presença na Universidade, na Associação de Professores de francês e nesta Academia influenciou decisivamente alunos e docentes, professores de francês dos quatro cantos do mundo francófono, que hoje temos, em nome da Bahia, a honra de representar. Cada vez que nos cabe analisar textos baudelairianos, cada vez que os alunos nos solicitam explicações sobre o léxico ou sobre construções mais complexas da escrita do poeta maldito, um perfume exótico de passado também nos penetra, iluminado pelo soleil monotone que provoca outras tantas visões felizes, árvores e frutos (sim, a velha faculdade também os tinha!), jovens de corpo esbelto e olhar franco saltam do poema circulando pelas 415 Revista ALB 50_finalizada.pmd 415 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 dependências, cenas que se misturam ao toque dos sinos da Igreja vizinha, ao entardecer... E, um pouco à maneira de Proust, todo o poema é reescrito no trânsito da memória, trazido pelas mãos seguras do prof. Cláudio Veiga, que ora se retira com seus livros e suas musas, mas que conosco permanecerá, graças ao gesto indelével registrado naquela tarde singular. Muito obrigada. Discurso proferido na Sessão da Saudade, dedicada ao acadêmico Cláudio de Andrade Veiga, e realizada no salão nobre da ALB, em 2 de junho de 2011. Denise Lavallée é mestre em Educação pela UFBA, professora da Uneb, Fundadora e diretora da Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (Uneb), Diretora do Núcleo de Estudos Canadenses (Uneb) e Presidente da Associação Brasileira de Estudos Canadenses. 416 Revista ALB 50_finalizada.pmd 416 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O desempenho da Academia de Letras da Bahia de 2007 a 2011 Edivaldo M. Boaventura Presidente da ALB (2007-2011) Reunimo-nos, hoje, 24 de março de 2011, para agradecer e passar o comando da Academia ao confrade Aramis Ribeiro Costa, escolhido e eleito por unanimidade para suceder-me na presidência. Há exatamente trinta anos que houve posse de presidente na Academia. A última aconteceu quando o professor Cláudio Veiga assumiu a direção, ainda na antiga sede do Terreiro de Jesus, em 12 de março de 1981. Cotejando as duas datas, percebemos como evoluímos. Fortes sentimentos se juntam neste momento em que completamos quase quatro anos de convivência acadêmica pela disseminação do conhecimento e zelo pela casa de Góes Calmon. Objetivos que nortearam toda a nossa caminhada no quatriênio. O governo não nos doou um prédio qualquer, mas uma casa requintada que abrigou obras de arte e que deram origem ao Museu de Arte da Bahia. Há uma motivação pelo compromisso tácito de disseminar a cultura quando recebemos esta casa para nossa sede. Vamos às chegadas e partidas. A movimentação da vida acadêmica de 13 de julho de 2007 a 24 de março de 2011, muito se enriqueceu com a entrada de Yeda Pessoa de Castro, Samuel 417 Revista ALB 50_finalizada.pmd 417 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Celestino, Dom Emanuel d´Able do Amaral, Joaci Góes, Antônio Brasileiro, Paulo Costa Lima, João Falcão e Gláucia Lemos. Como sócios correspondentes, empossamos Antônio Carlos Secchin e Dominique Stoenesco, como também elegemos Rita OlivieriGodet e Maria Beltrão. Os confrades Samuel Celestino e Paulo Costa Lima foram saudados por mim. Dei-lhes a resposta pela Companhia. Abraçamos efusivamente todos que ingressaram. No mesmo período, foram para o outro lado os confrades Oldegar Franco Vieira, Jorge Calmon, Antônio Carlos Magalhães, Zélia Gattai, Ary Guimarães, Rubem Nogueira, Pedro Moacir Maia e Epaminondas Costalima, e os sócios correspondentes, José Mindlin e Anthony John Russell-Wood. Na Academia, cumpre-se o ciclo vital em busca da imortalidade: “poder de uma vida que não tem fim”, conforme a carta de São Paulo aos Hebreus. Aos que partiram a nossa saudosa homenagem. Ainda quanto à escolha democrática dos candidatos progredimos bastante. Aperfeiçoamos o processo eleitoral pela apresentação e discussão da obra e do currículo dos pretendentes pelos confrades interessados na escolha. Seguem-se algumas iniciativas que marcaram o crescimento do nosso grêmio seguidas do relato de atividades de 2007 a 2011. MUSEALIZAÇÃO DO ESPAÇO Permanentemente, cuidamos da casa. Foi com surpresa e entusiasmo que acolhemos a proposta da família Calmon, à frente o ministro Ângelo Calmon de Sá, para transladar a magnífica estátua de Góes Calmon, para os jardins desta casa, da sua casa. Estamos ainda sob as emoções de 22 de março de 2011, dia solar da inauguração do bronze bem talhado por Pachoale di Chirico. Coube a recuperação e instalação ao professor José Dirson Argolo com a participação do confrade Paulo Ormindo David de Azevedo, tão dedicado à Companhia. 418 Revista ALB 50_finalizada.pmd 418 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 No que tange ao bom gosto do construtor do solar, governador Francisco Marques de Góes Calmon, ouvi de sua filha Ana Maria de Góes Calmon, ao entrevistá-la para escrever a história do solar: “Ele tinha um sonho: que a sua casa fosse transformada em museu”. E a vontade do governador se cumpre mesmo tendo a moradia mudando sucessivamente de função e de dono. Para sediar a Companhia, o espaço sofreu remanejamento a fim de atender à destinação acadêmica. Para tanto, contamos com a colaboração de Sylvia Athayde, diretora do Museu de Arte da Bahia. No salão nobre, chamado de Salão Dourado, no tempo da família Calmon, a entronização do retrato do fundador Arlindo Fragoso definiu o sítio privilegiado pelo impressionismo tardio de Presciliano Silva. Aliás, Arlindo Fragoso está reverenciado não somente nesse salão, mas também no busto, doado pelo acadêmico Cid Teixeira, e na medalha corporativa do fundador. Ainda compõem o ambiente uma gravura em preto e branco de D. João VI, comemorativa do dia da proclamação e coroação, e uma pequena reprodução da conhecida gravura de Goethe pelo pintor Joseph Stieler (1781-158), de Munich. O mobiliário do salão se enriqueceu com móveis de estilo, doados pelos acadêmicos Francisco Sena e Joaci Góes. A mobília da acadêmica Edith Mendes da Gama Abreu foi recuada para a parte posterior do Salão Dourado, que deveria ter sido espaço reservado para o piano. Vestem as paredes desta parte uma tela de Alberto Valença, um crayon da Senhora Fernandes Dias, por Presciliano Silva, uma gravura do príncipe D. Pedro I ainda muito jovem, um quadro inacabado de Presciliano Silva e uma gravura do médico Audíface, doador das estatuetas de biscuit. Na rota da musealização da casa, encontra-se a galeria de retratos de Rui Barbosa de corpo inteiro, por Presciliano Silva; Xavier Marques, por Guttman Bicho e Otávio Torres, restaurados por José Dirson Argolo. Compõe ainda a coleção o retrato do governador e acadêmico Luiz Viana Filho, sentado, de autoria de 419 Revista ALB 50_finalizada.pmd 419 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 T. Pacheco, doação da família. Os desenhos com as imagens dos poetas Godofredo Filho, por Presciliano Silva, Carvalho Filho, por Alberto Valença, e Agrário de Menezes, por Presciliano Silva, complementam a exposição. E como traço de união entre a antiga sede, no Terreiro de Jesus, e a nova, no solar Góes Calmon, encontra-se a antiga mesa de reunião, reformada pelo artesão Edilson Costa Dias. Passado o vestíbulo, alcança-se a galeria dos presidentes. Achei por bem guarnecer o vestíbulo da escada com gravuras da minha coleção. São paisagens da Bahia antiga e de outras cidades que vestem as paredes: 1) duas reproduções de William Gore Ouseley que retratam as ruínas da Igreja de São Gonçalo do Amarante, que existiu no Rio Vermelho, o local atualmente é um largo, e a rua Bartolomeu de Gusmão; 2) um mapa da América do Sul, adquirido na França; 3) duas gravuras de fundo azul com elevações da entrada da Baía de Todos os Santos, onde se pode ver o Yath Club e o Solar Unhão; 4) um quadro com dois azulejos cada, fabricação da empresa Eleane, comemorativo dos 500 anos da descoberta do Brasil; 5) uma gravura em preto e branco da Bahia no século XVII, quando da invasão dos holandeses; 6) uma gravura colorida da Praça da Piedade; 7) gravura antiga da cidade de Paris na Idade Média, adquirida em Paris; 8) gravura antiga da cidade de Veneza, Itália. Os pratos brasonados da coleção Jorge Calmon restituíram de porcelanas o donaire decorativo da outrora sala de jantar da família com móveis de época. Mais uma vez o talento museológico de Sylvia Athayde esteve a serviço da casa. Esta sala tão aconchegante é o nosso lugar predileto de encontro. É onde se põe realmente em prática a convivência acadêmica. Ali nos reunimos, trocamos ideias, opinamos sobre os assuntos de interesse, discutimos e tomamos importantes decisões. Enfim, a casa de Góes Calmon e a Academia de Letras caminham juntas e se complementam. O zelo com o solar magnifica o sodalício. O seu enriquecimento valoriza a cultura. 420 Revista ALB 50_finalizada.pmd 420 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 REFORMA DO ESTATUTO E BUSCA DE TERRITORIALIDADE Em 2007, como vice-presidente, tivemos por força maior, de assumir plenamente a presidência em face da renúncia do confrade Cláudio Veiga. A eleição em 13 de julho confirmou a nova diretoria para completar o biênio. Uma das primeiras decisões da diretoria foi a reforma do estatuto. No que dizia respeito ao domicílio do candidato à Academia, exigia-se que fosse em Salvador. Para a reforma do estatuto, a colaboração do confrade Aramis Ribeiro Costa foi decisiva. Eis um dos motivos de sua escolha unânime para dirigir a nossa Companhia. A reforma dos atos constitutivos alargou a territorialidade da Academia. Elegemos, de pronto, o desejado poeta Antônio Brasileiro, da queridíssima cidade comercial de Feira de Santana. Vamos, assim, em busca de mais espaço. GALERIA DOS PRESIDENTES E A MEMÓRIA DA INSTITUIÇÃO Nenhum outro projeto tocou tanto à identidade do Sodalício como a galeria dos presidentes. O objetivo foi resgatar a memória da instituição. A sucessão dos titulares resultou da pesquisa de Bruno Lopes do Rosário, historiador e chefe do Arquivo da Academia. As fotos, obtidas no jornal A Tarde, foram trabalhadas e organizadas mais uma vez pela diretora do Museu de Arte da Bahia, Sylvia Athayde. Em 9 de outubro de 2008, foi inaugurada a galeria na presença festiva de filhos, descendentes, familiares e amigos, com a palavra da confreira Consuelo Pondé de Sena, presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. A busca identificou 15 presidentes. A começar pelo filólogo Ernesto Carneiro Ribeiro, 421 Revista ALB 50_finalizada.pmd 421 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 que se notabilizou pela polêmica com Rui Barbosa sobre a redação do Código Civil. Seguem-se o cientista Gonçalo Moniz, vice que assumiu por interinidade; o historiador e médico Braz do Amaral; o governador J.J. Seabra, que foi professor da Faculdade de Direito do Recife; o jurista Carlos Gonçalves Ribeiro; o professor de Medicina João Garcez Fróes; o médico que governou a instituição por quase vinte anos Luiz Pinto de Carvalho; o jurista e professor de Direito Penal Aloysio de Carvalho Filho; o antropólogo e mestre de todos nós Thales de Azevedo; o historiador José Calasans Brandão da Silva, o monsenhor Manoel de Aquino Barbosa; o professor de Medicina Legal Estácio de Lima; o jornalista, professor e benfeitor Jorge Calmon; o poeta e professor de Literatura Portuguesa Hélio Simões; o professor de Língua e Literatura Francesas Cláudio Veiga; o professor de Educação Edivaldo M. Boaventura, benfeitor. Para a organização do quadro de dirigentes, obedeceu-se a tradição militar da galeria dos comandantes de quartel. PUBLICAÇÕES Com a colaboração da Organização Odebrecht, conseguimos editar os números 48 e 49 da nossa Revista e este último encontrase disponível no site da Academia. Estamos na rota dos procedimentos de indexação da Plataforma Lattes do periódico para a obtenção do Qualis. A revista continua com dupla função: literária e house organ. Em convênio com a Assembleia Legislativa editamos, dentre outras obras, A vida de Rui Barbosa, de Luiz Viana Filho; Recordações históricas, de Braz do Amaral; Poesia reunida, de Myriam Fraga; e a coletânea O olhar de Castro Alves: textos críticos de literatura baiana, organizada por Aleilton Fonseca. A Academia é agradecida ao presidente Marcelo Nilo e aos servidores Délio Pinheiro, Paulo Roberto Martins Bina e Luiz Guilherme Tavares. 422 Revista ALB 50_finalizada.pmd 422 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O Boletim da Academia de Letras da Bahia saiu três exemplares. O segundo número contou com o editorial definidor do acadêmico Hélio Pólvora. O Boletim publicou a última página do confrade Pedro Moacir Maia. Foi uma tentativa de house organ. Encontra-se em revisão o Anuário da Academia de Letras da Bahia 2010, pesquisa biobibliográfica de Genilda Santana, diretora de nossa biblioteca, e Bruno Lopes do Rosário, chefe do Arquivo. Biblioteca e Arquivo são segmentos que prestam permanente serviço à comunidade de pesquisadores. PREMIAÇÕES E DISTINÇÕES A qualidade se expressa em prêmios. Desde as suas origens, as Academias estão marcadas pelas premiações literárias e outras distinções. Somente depois de muitos anos, o presidente Cláudio Veiga conseguiu estabelecer o Prêmio Nacional de Literatura com a empresa Braskem. Expressamos o reconhecimento à Braskem, nossa tradicional parceira em prêmios. Com o beneplácito da Eletrogóes, instituímos um novo estímulo com o Prêmio pelo Conjunto da Obra, concedido, pela primeira vez, em 2010, à escritora Helena Parente Cunha. Seguiram-se as distinções de Honra ao Mérito e do Diploma de Amigo da Academia. Não existe nada de mais alto, mais digno e mais emblemático do que a Medalha do Fundador Arlindo Fragoso. Honraria que eleva o sodalício, e distingue os confrades e terceiros que hajam prestados serviços às letras e à Academia. Ao encerrar hoje a nossa gestão, marco o reconhecimento aos confrades e lideranças com a outorga da medalha do fundador Não premiar é punir pelo indiferentismo. Mas as sociedades democráticas, abertas, midiáticas e modernas estão regularmente distinguidos os seus cidadãos. Enquanto as sociedades tradicionais, 423 Revista ALB 50_finalizada.pmd 423 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 atrasadas e escravocratas guardam os prêmios somente para uns poucos iluminados e não reconhecem o mérito do trabalho. Em 16 de dezembro de 2010, inauguramos o busto do confrade benfeitor Jorge Calmon, oferta do presidente da Associação Baiana de Imprensa, Samuel Celestino, sucessor de Jorge e seu discípulo no jornalismo. INFORMÁTICA, INTERNET E MARKETING Depois de várias tentativas, conseguimos informatizar a Academia. Foi decisivo o empenho profissional de Leonardo Cardoso de Moraes, consultor de tecnologia da informação, e do confrade Carlos Ribeiro. Os softwares de utilização básica (sistemas operacionais e sistemas Office) foram atualizados através de doação conseguida para a Academia via parceria estabelecida com entidades desenvolvedoras de programas de computação. A biblioteca foi agenciada pelos serviços de fornecedor LPG Soluções. Prevê-se a digitalização do acervo do Arquivo. Precisamos adquirir um computador servidor para que as informações e dados não fiquem estanques em cada microcomputador. Foi idealizado e desenvolvido um novo website para a Academia. Sentimos um contentamento muito grande por ter conseguido informatizar a nossa Companhia. As chamadas do website com os links, colocou-nos no amplo mundo digital. Não podia mais a nossa Academia funcionar sem o apoio eletrônico (www.academiadeletrasdabahia.org.br e [email protected]) Vinculado à informática, a Academia aderiu ao projeto comunitário nacional “Doe um livro”, isto é, doação de livros para escolas públicas e bibliotecas carentes de todo o país. O projeto “Doe um livro” é da maior relevância social. 424 Revista ALB 50_finalizada.pmd 424 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 COMEMORANDO CENTENÁRIOS No período, o ano de 2008 foi rico em comemorações centenárias. O Sodalício participou do bicentenário da chegada da Corte Portuguesa, com a palavra sempre pronta de Consuelo Pondé de Sena. Houve, na Bahia, a abertura dos portos e a criação do Curso Médico, do quarto centenário do padre Antônio Vieira, do primeiro de Luiz Viana Filho e de Guimarães Rosa, e os cem anos de falecimento de Machado de Assis. O centenário do acadêmico e poeta José Luiz de Carvalho Filho foi festejado pela família e pela palavra erudita e sempre bem articulada de João Eurico Matta. Com a Universidade Estadual de Feira de Santana, a Academia integrou-se nas comemorações do centenário do poeta modernista Eurico Alves Boaventura, em 2009. Os acadêmicos Aleilton Fonseca, Waldir Freitas Oliveira e João Eurico Matta registraram os centenários, respectivamente, do epigramista Lafayette Spínola, do professor Eloywaldo Chagas de Oliveira e do jurista Orlando Gomes. Igualmente registraram os cem anos do desaparecimento trágico de Euclides da Cunha. A Academia aderiu aos cem anos de falecimento de Joaquim Nabuco, líder abolicionista e escritor fundador da Academia Brasileira, e compareceu ao seminário no Recife, em dezembro de 2010. O centenário do acadêmico Manuel Pinto de Aguiar, ocorrido em março 2010, foi festejado, recentemente, em 17 de março de 2011, quando houve o lançamento da biografia: Pinto de Aguiar: audacioso inovador, de Consuelo Novaes Sampaio, com a participação de Consuelo Pondé de Sena, Aristeu Almeida, Osmar Sepúlveda, Luis Guilherme P. Tavares e Joaci Góes e coordenação de Edivaldo M. Boaventura, presidente da Academia. 425 Revista ALB 50_finalizada.pmd 425 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A INTERNACIONALIZAÇÃO DA ACADEMIA E AS ACADEMIAS MUNICIPAIS Finalmente, iniciamos a internacionalização da Academia. Por sugestão do eminente professor catedrático Antônio Dias Farinha, da Universidade de Lisboa, secretário da Academia de Ciências de Lisboa, entidade fundada por D. Maria I, solicitamos a nossa inscrição na União Acadêmica Internacional, com sede em Bruxelas, na Bélgica. Além da iniciativa da Academia portuguesa, o secretário geral adjunto da União, Jean-Luc De Paepe, nos sugeriu a Academia de Língua e Literatura de Buenos Aires, Argentina, como segunda proponente, visto que há exigência de duas patrocinadoras. A nossa admissão nos possibilitará participar das comissões internacionais de sábios. Iniciamos, internamente, contactos com as Academias Municipais de Letras: Valença, Paulo Afonso, Vitória da Conquista, Guanambi, Feira de Santana e Recôncavo. Há outros sodalícios a serem contatados. Vamos em busca de outros espaços. ATIVIDADES EM ANDAMENTO Inúmeras atividades e projetos estão em processamento. Há, todavia, de se reaver parte do nosso Arquivo que se encontra na Biblioteca Pública do Estado da Bahia. É premente o tombamento federal e estadual da sede e do acervo. O registro no Cartório de Imóveis do prédio doado ainda não se efetivou apesar dos esforços. É preciso dar prosseguimento à restauração dos azulejos da Academia conforme o projeto do técnico Estácio Fernandes e concluir a pintura externa já iniciada graças à colaboração de Artur Sampaio, presidente da Associação Cultural Brasil-Estados Unidos. 426 Revista ALB 50_finalizada.pmd 426 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 A DISSEMINAÇÃO DO CONHECIMENTO Passemos às atividades de ensino-aprendizagem . Dentre seminários, conferências e lançamentos, gostaríamos de destacar as atividades do Ponto de Cultura: Espaço das Letras. O projeto vitorioso do confrade Aleilton Fonseca, efetivou-se em vários segmentos. O Círculo Baiano de Leitura, coordenado pela professora Maria Lúcia Martins, debateu 8 (oito) livros de literatos de projeção estadual e nacional com a participação de escolas públicas e privadas. As Oficinas Literárias, organizadas por Bruno Lopes do Rosário, trabalharam: cordel com Antônio Carlos Barreto; leitura de contos com Ivo Falcão; roteiro cinematográfico com Clarissa Rebouças; narrativa de teatro com Roquildes Santos; e oficina de quadrinhos com Vitor Santos, além das visitas guiadas. O sucesso dos Encontros Literários se deve à feliz combinação do trabalho conjunto de acadêmicos, autores e professores universitários de literatura. Foi uma das atividades que atraíram maior público de interessados. Iniciados em 2009 com Hélio Pólvora e Mayrant Gallo (ficção), comentários de Antônia Herrera e Gerana Damulakis; Ruy Espinheira Filho e Maria Lúcia Martins (poesia), comentários de Lígia Telles e Valdomiro Santana; Luís Henrique Dias Tavares e Adelice Souza (ficção), comentários de Cássia Lopes e João Eurico Matta; Myriam Fraga e Ildásio Tavares (poesia), comentários de Evelina Hoisel e Gustavo Felicíssimo. Em 2010, os Encontro Literários foram intensificados e realizados por: Carlos Ribeiro e Lima Trindade (ficção), comentários de Luciano Lima e Suzana Varjão; Florisvaldo Mattos e José Inácio Vieira de Melo (poesia), comentários de Cid Seixas e Eliana Mara; Aleilton Fonseca e Állex Leyla (ficção), comentários por Mirella Márcia e Rosel Soares; Fernando da Rocha Peres e Kátia Borges (poesia), comentários por Francisco Lima e Nilson Galvão; Aramis Ribeiro Costa e Carlos Barbosa (ficção), 427 Revista ALB 50_finalizada.pmd 427 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 comentários por Ângela Vilma e Janaína Amado; Cleise Mendes e Roberval Pereyr (poesia), comentários de Adelice Souza e Nildecy Miranda Bastos; Armando Avena e Marcus Vinicius Rodrigues (ficção), comentários de Andréa Hack e Gerana Damulakis; Gláucia Lemos e Guilherme Radel (ficção), comentários Ângela Vilma e Joaci Góes. A Academia é reconhecida a Luís Antônio Cajazeiras Ramos, ao acadêmico Carlos Ribeiro, a Bruno Lopes do Rosário e, sobretudo ao acadêmico Aleilton Fonseca, dedicado confrade encarregado da programação dos eventos. SEMINÁRIOS SOBRE AUTORES A professora Evelina Hoisel foi responsável pelo inovador seminário “autor e obra”. A sua larga experiência como gestora universitária, tanto na direção do Instituto de Letras da nossa Alma Mater, como na coordenação da sua pós-graduação, mestrado e doutorado, projetou-se, empiricamente, nesta Companhia. O seminário Memória e Poesia analisou o conjunto da obra poética de Myriam Fraga. A metodologia replicou-se na análise da obra da escritora baiana Helena Parente Cunha, no seminário As formas informes do desejo. Esse tipo de colóquio temático deve ser continuado com outros autores, a exemplo da contribuição das oficinas literárias de Judith Grossmann e de outros escritores como Hélio Pólvora e Cláudio Veiga. Marcantes eventos acadêmicos foram liderados por Evelina Hoisel, basta lembrar o Colóquio Internacional Vieira na Bahia, em comemoração ao seu IV centenário de nascimento, e o Seminário Machado de Assis e Guimarães Rosa. De igual modo, o acadêmico Aleilton Fonseca marca mais uma vez a sua participação construtiva com o nosso grêmio. Coordenou o seminário 100 anos do Manifesto Futurista e suas repercussões no Brasil, explorando a contribuição de Almachio Diniz. . 428 Revista ALB 50_finalizada.pmd 428 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O Curso Castro Alves alcança a quinta edição como Colóquio da Literatura Baiana com a participação expressiva de estudantes e professores das nossas universidades estaduais. Boa parte desses universitários vêm dos municípios onde há educação superior. O Colóquio é o único evento estadual para alunos e professores pesquisadores da língua e da literatura. Nesse contexto, Aleilton Fonseca concebe: “A Academia torna-se o lugar de catalisação dos estudos, das motivações, do reconhecimento e do incentivo aos mestres, discípulos e orientandos.” Com o nosso confrade Ubiratan Castro de Araújo, presidente da Fundação Pedro Calmon, efetivamos o seminário Novas Letras e os encontros com as Academias Municipais. O Instituto Goethe tem sido um parceiro constante. Realizamos as semanas Hermann Hesse e Friedrich Hölderlin. Para este ano, teremos a semana Franz Kafka. Podemos e devemos ampliar a colaboração com outros centros bi-nacionais. O nosso intuito é trabalharmos a literatura baiana no contexto nacional e internacional. PRESENÇA AFRO-DESCENDENTE Impulsionamos, conscientemente, a cultura afro-descendente, na Academia. Não é mais possível deixarmos esse importante segmento fora de nossas cogitações. A incorporação da professora e doutora em línguas africanas Yeda Pessoa de Castro tem sido um apoio na aproximação com a mãe África. A confreira Yeda realizou o Curso de Línguas e Culturas Africanas e o Curso Quilombos no Brasil, um trabalho conjunto com a vitoriosa Universidade do Estado da Bahia (Uneb), comprometida desde a sua criação com a cor e o semiárido baiano.Foi um prazer poder contar com a sua experiência mais uma vez, recordando o pioneirismo quando juntos introduzimos a disciplina Estudos Africanos, na escola secundária baiana nos anos oitenta. 429 Revista ALB 50_finalizada.pmd 429 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O Curso Manuel Querino – Personalidades Negras tem como fulcro o estudo, a difusão, a rememoração da vida e obra de lideranças afro-descendentes baianas e brasileiras que se destacaram nos mais diversos setores de atividades – Cosme de Farias, Jorge de Lima e o idioma poético afro-descendente, Lima Barreto, Alberto Guerreiro Ramos, Francisco Solano Trindade, Francisco da Conceição Menezes, Edson Carneiro, George Alakija, Artur Arézio da Fonseca, Mãe Senhora, Nelson de Araújo, a Irmandade da Boa Morte de São Gonçalo dos Campos, Mãe Menininha do Gantois. Chegamos à terceira edição com a coordenação do professor e pesquisador Jaime Nascimento. O tema do Prêmio Nacional Academia de Letras da Bahia / Braskem, de 2010, versou sobre a literatura de expressão afrobrasileira (ficção). Venceu o escritor Ordep Serra com a obra Ronda, oratório malungo. Com anos de atraso, a Academia ocupouse da literatura dos afro-descendentes. Ainda na década de setenta do século passado o doutor, Gerald Moser, titular de língua e literatura portuguesa, da Universidade do Estado da Pennsylvania, a inesquecível Penn State da minha vida, já publicava uma bibliografia sobre a literatura africana de expressão portuguesa. A abertura para a cultura dos afro-descendentes foi uma das mais marcantes inovações desses quatro anos. Cursos e seminários da Academia efetivam a disseminação do conhecimento. Credencia-se, dessa maneira, a captar recursos públicos e privados para a sua programação. Encerramos o resumo de nossas atividades de ensino com o confrade Hélio Pólvora: “a Academia passou de um conciliábulo de cultura ornamental para a amplitude de órgão que serve à cultura e está comprometido com a educação extracurricular do Estado da Bahia”. Eis uma das realizações pioneiras do presidente Cláudio Veiga que teve a devida continuidade. A gestão administrativa, contabilidade, finanças, biblioteca, arquivo e secretaria constam dos anexos deste relatório. Para concluir, vamos aos agradecimentos e à transmissão da presidência. 430 Revista ALB 50_finalizada.pmd 430 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 RECONHECIMENTO Concluindo a gestão da presidência, no período de 2007 a 2011, assim sintetizamos as principais contribuições: reforma do estatuto e do regimento da Academia; criação da galeria dos presidentes; seminário sobre autor e obra; musealização do solar Góes Calmon; informatização da Academia e criação do website; boletim; restauração das telas; programa Ponto de Cultura: espaço das letras; coleção de gravuras; prêmio pelo conjunto da obra com suporte pela Eletrogoes; criação das distinções Honra ao Mérito e Amigo da Academia; Medalha Fundador Arlindo Fragoso; inauguração do busto do acadêmico Jorge Calmon; inauguração da estátua Góes Calmon; relacionamento com as academias municipais; internacionalização com a filiação à União Acadêmica Internacional; presença afro-descendente. Em primeiro lugar, agradecemos ao Fundo de Cultura e à Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. O doutor em economia Paulo Henrique de Almeida e o administrador Carlos Paiva muito colaboraram conosco. Mantivemos um diálogo colaborativo com o secretário Márcio Meireles e estimulador da territorialidade da cultura. O custeio anual da Academia monta a quase 500 mil reais. Ao prezado colega da Universidade Federal, prof. Albino Rubim, novo secretário da Cultura, estudioso do fenômeno cultural, esta Academia deseja o maior sucesso com manutenção da cooperação. Agradecemos a todos os confrades. O reconhecimento aos companheiros de diretoria: Waldir Freitas Oliveira, Cid Teixeira, João Eurico Matta, Consuelo Pondé de Sena, Paulo Ormindo de Azevedo, Ruy Espinheira Filho, Evelina Hoisel, Carlos Ribeiro. Ressaltamos a colaboração especial de Aleilton Fonseca, Joaci Góes, Aramis Ribeiro Costa, Samuel Celestino, que nos doou o busto de Jorge Calmon, inaugurado em 16 de dezembro de 2011, e o apoio de Myriam Fraga.Pelo que realizaram são, verdadeiramente, benfeitores da Academia. 431 Revista ALB 50_finalizada.pmd 431 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 O reconhecimento envolve o quadro de zelosos servidores desta Academia: Maria do Carmo Moscovits, Marcelo Tinoco, na secretaria; no setor administrativo e financeiro Valdir Sena e Valmiro Marques Filho; a biblioteca aberta ao público vem aumentando o número de consultas com a bibliotecária Genilda Santana; o arquivo caminha para um núcleo de pesquisa bibliográfica e documental com Bruno Lopes do Rosário; a informática, internet e marketing, com Leonardo Cardoso de Moraes. Um destaque para Fernando do Carmo dos Santos, Valmira Jesus da Silva e Ninalva Alves dos Santos, dedicados servidores. A todos que colaboraram com a Academia o nosso agradecimento, Deus seja louvado. Terminado o relato estatutário e com a certeza do dever cumprido, passo ao confrade Aramis Ribeiro Costa a presidência da Academia de Letras da Bahia. PRESIDENTE ARAMIS RIBEIRO COSTA O escritor vocacionado soube construir a sua obra de romancista e contista, mais uma vez consagrada pelo ingresso na Academia. Além da obra e da excelência do seu currículo, o confrade Aramis é um dos mais dedicados confrades ao nosso sodalício. Demonstra amor à causa acadêmica e vela zelosamente pelos seus atos constitutivos. A nossa escolha para dirigir o grêmio contou com a unanimidade dos confrades. Estamos certos que a Academia em suas mãos estará segura e muito progredirá. Meu caro confrade Aramis, diz São Paulo, na carta aos Hebreus, que “O lugar compete àquele a quem está destinado”. A presidência da Academia de Letras da Bahia é o seu lugar. Seja bem feliz com a Diretoria. Salvador, 24 de março de 2011. _________ Discurso proferido no salão nobre da Academia de Letras da Bahia, na Sessão de Abertura do Ano Acadêmico de 2011. 432 Revista ALB 50_finalizada.pmd 432 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 DIVERSOS 433 Revista ALB 50_finalizada.pmd 433 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 434 Revista ALB 50_finalizada.pmd 434 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Efemérides 2010 Março 14 – Sessão especial para homenagem a Castro Alves: 163 anos, com exibições dos filmes Retrato falado do poeta Castro Alves, direção de Sílvio Tendler; e o documentário A noiva direção de Claude Santos – IFPC/ALB. 17 – Sessão especial para a aula inaugural do Programa de Pósgraduação: da informação Instituto de Ciência da informação/ UFBA, com as seguintes programações: abertura Prof. Edivaldo M. Boaventura, Presidente da ALB e Profª. Henrieta Ferreira Gomes, coordenadora da PPGCI; aula inaugural da Ciência à Filosofia da Informação com o Prof. Armando Malheiro da Silva – Univ. do Porto-Portugal; lançamento do livro A medicina na era da informação – organizadores: Profª. Zeny Duarte e Prof. Lúcio Farias. Apresentação Prof. Edivaldo M. Boaventura; Lanche. 18 – Sessão especial de abertura do ano acadêmico: lançamento do Prêmio Nacional de Literatura ALB/Braskem/ficção 2010 e lançamento do livro Sete portas do escritor Ordep Serra, vencedor do Prêmio/conto 2008. 19- Encontros literários na ALB (ficção): Carlos Ribeiro e Lima Trindade, comentários : Luciano Lima (UNEB) e Suzana Varjão (jornalista); Lançamento do livro Contos de sexta-feira e duas ou três crônicas do escritor e acadêmico Carlos Ribeiro. 23 a 25 – 2º Curso Manuel Querino – Personalidades Negras. Coordenação do Prof. Jaime Nascimento. Abertura Prof. 435 Revista ALB 50_finalizada.pmd 435 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Edivaldo M. Boaventura Presidente da ALB, Dep. Marcelo Nilo Presidente da Assembleia Legislativa do Estado da Bahia e o Prof. Penildo Silva Filho – Palestra: Manuel Querino e as artes na Bahia – Prof. Dr. Luís Alberto Freire (UFBA); Manuel Querino: Vida e obra na luta contra o racismo científico – Profª. Ms. Sabrina Gledhil (Pós-Afro CEAO-UFBA/IGHB); Palestra: Francisco Solano Trindade – Profª. Raquel Trindade; Palestra: Francisco da Conceição Menezes: o educador – Profª. Ms. Débora Kelman de Lima (colégio da Bahia); Debate e encerramento. Palestra: Antonio de Souza – coronel negro da Chapada Diamantina, Prof. Ms. Jedean Gomes Leite(UNEB); palestra: Edison Carneiro e o samba na chave do Folclore, Profª. Maria Alessandra Carvalho da Cruz (UCSAL); palestra: George Alakija: ensaio para um perfil biográfico, Prof. Ms. Alakija; palestra Arthur Arézio da Fonseca: um nome para escrever em caixa alta. Prof. Dr. Luis Guilherme Pontes Tavares (FIB/ALB); debate e encerramento. Palestra: Mãe Senhora, filha de Uxum Miera – Prof. Luís Domingos de Souza (restaurante Maria de S. Pedro). Palestra: Nelson de Araújo. Prof. Dr. Adailton Silva dos Santos (UNEB); palestra: A Boa Morte de S. Gonçalo dos Campos – A família Cazumbá, Prof. Dr. Sebastião Heber Vieira da Costa (UNEB-IGHB); palestra: Mãe Menininha do Gantois. Prof. Dr. Francisco Soares de Senna (UFBA/ALB). Debate e encerramento. Abril 08 – Homenagem póstuma ao saudoso acadêmico Rubem Nogueira, cad. 35, sendo orador o confrade Waldir Freitas Oliveira. 15 – Reunião da Diretoria da ALB. 16 – Encontros literários na ALB (Poesia): Florisvaldo Mattos e José Inácio Vieira de Melo; comentários de Cid Seixas e Eliana Mara. Coordenação do poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos. Lançamento do livro Roseiral do Poeta José Inácio. 436 Revista ALB 50_finalizada.pmd 436 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Maio 06 – Sessão especial para a palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira: A selva – 80 anos depois. Sessão conjunta da ALB, consulado de Portugal e IGHB. 20 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Consuelo Pondé de Sena, Consuelo Novais Sampaio, Luís Henrique Dias Tavares, Emanuel d’ Able do Amaral, Mons. Gaspar Sadoc, Geraldo Machado, João Eurico Matta, Evelina Hoisel, Aleilton Fonseca, Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Fernando da Rocha Peres. Reunião da diretoria com acadêmicos e funcionários. 21 – Encontros Literários na ALB (ficção): Aleilton Fonseca e Alex Leylla; Comentários: Mirella Márcia e Rosel Soares. Coordenação: do Acadêmico Carlos Ribeiro. 26 – Seminário Novas Letras: seminário Mulheres e Peixes FPC/ALB. Conferências: Peixes e mulher: quanto mais fritos melhor! Gal Meirelle (UNEB); As noivas do Golfinho: mulheres praieiras nos contos de Xavier Marques; Denise Gomes (UNEB); Clarice e os peixes: flutuações literárias, Rosana Patrício (UEFS) seguido do lançamento da edição fac-similar Jana e Joel, de Xavier Marques e apresentação da banda da 6ª Região Militar – Exército Brasileiro. 27 – Sessão ordinária a que estiveram presentes os acadêmicos Consuelo Pondé de Sena, Carlos Ribeiro, Cláudio Veiga, Cid Teixeira, Samuel Celestino, Geraldo Machado, Ruy Espinheira Filho, Mons. Gaspar Sadoc, Luís Henrique Dias Tavares, Francisco Senna, Waldir Freitas Oliveira, Roberto Santos Edivaldo Boaventura, Consuelo Sampaio, Aramis Ribeiro Costa, Emanuel d’ Able do Amaral, Fernando da Rocha Peres, João Eurico Matta, Evelina Hoisel, Paulo Costa Lima, Paulo Ormindo, Joaci Góes. Eleição para a sucessão do acadêmico Rubem Nogueira, cad. nº35. 437 Revista ALB 50_finalizada.pmd 437 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Junho 10 – Sessão solene para a posse do poeta Antônio Brasileiro na cadeira nº21 de que foi o último ocupante a acadêmica Zélia Gattai Amado, sendo saudada pelo confrade Ruy Espinheira Filho. 17 – Homenagem póstuma ao saudoso acadêmico Epaminondas Costalima, cad. nº14, sendo oradora a confreira Consuelo Pondé de Sena. 18 – Encontros Literários na ALB (poesia): Fernando da Rocha Peres e Kátia Borges; comentários de Francisco Lima e Nilson Galvão. Coordenação do acadêmico Aleilton Fonseca. Julho 01 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Myriam Fraga, Consuelo Pondé, Cid Teixeira. Reunião da Diretoria e acadêmicos. 08 – Sessão ordinária. Pressentes os acadêmicos Consuleo Pondé, Dom Emanuel d’ Able do Amaral, Consuelo Sampaio, Joaci Góes, Ruy Espineira Filho, Aleilton Fonseca, Carlos Ribeiro, Aramis Ribeiro Costa, Waldir Freitas Oliveira. Apresentação de candidatos à sucessão do acadêmico Epaminondas Costalima, cad. nº14. 15 – Encontros Literários na ALB (ficção): Aramis Ribeiro Costa e Carlos Barbosa, comentários: Ângela Vilma e Janaina Amado (Ponto de Cultura). 22 – Reunião da diretoria para tratar da Revista, Site e Anuário da ALB. 29 – Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Cláudio Veiga, Geraldo Machado, Luís Henrique Dias Tavares, Carlos Ribeiro, Hélio Pólvora, Mons. Gaspar Sadoc, Waldir Freitas Oliveira, Cid Teixeira, Ruy Espinheira Filho, Roberto Santos, Consuelo Pondé, Dom Emanuel d’ Able do Amaral, Edivaldo M. Boaventura Presidente da ALB, Consuelo Novais, Aramis Ribeiro Costa, Francisco Senna, Joaci Góes. Myriam Fraga, João 438 Revista ALB 50_finalizada.pmd 438 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Eurico Matta, Aleilton Fonseca, Armando Avena. Indicação de candidatos à vaga do acadêmico Epaminondas Costalima, cad. nº14. Agosto 05 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa, Edivaldo Boaventura Presidente da ALB e convidados. Palestra do Prof. Antônio Sá da Silva: Destino, ação e sabedoria na literatura oral do sertão. 17 – Sessão especial para a palestra Vida e obra do escritor angolano Oscar Ribas: Drª. e acadêmica Yeda Pessoa de Castro. Realização Casa de Angola e ALB. Exposição das obras de Oscar Ribas. 26 – Encontros Literários na ALB (Poesia): Cleise Mendes e Roberval Pereyr, comentários: Adelice Souza e Nildecy Bastos de Miranda (Ponto de Cultura). Setembro 02 – Sessão ordinária a que compareceram os acadêmicos Waldir Freitas Oliveira, Gláucia Lemos, Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Roberto Santos, Cid Teixeira, Aramis Ribeiro Costa, Consuelo Sampaio, Paulo Ormindo, João Eurico Matta. Palestra do acadêmico Waldir Freitas Oliveira: La vorágine: o romance amazônico da Colômbia. 09 – Sessão solene para a posse do jornalista e escritor João Falcão na cadeira nº35 de que foi o último ocupante o acadêmico Rubem Nogueira, sendo saudado pelo confrade Joaci Góes. Exposição das obras do autor João Falcão. 16 – Sessão ordinária a que estiveram presentes os acadêmicos Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Cláudio Veiga, Luís Henrique Dias Tavares, Cid Teixeira, João Falcão, Myriam Fraga, Consuelo Novais, Evelina Hoisel, João Eurico Matta. Palestra do acadêmico Luís Henrique Dias Tavares: O biógrafo das criaturas de Jorge Amado. 439 Revista ALB 50_finalizada.pmd 439 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 22 a 24 – Curso Castro Alves 5º Colóquio Baiano de Literatura (Ponto de Cultura). Coordenação acadêmico Aleilton Fonseca. Palavra de Abertura: Edivaldo M. Boaventura Presidente da ALB; Sessão 1, 2, 3 e 4 – Comunicação de Literatura Baiana; Mesa redonda: Pontos de Literatura Baiana, coordenação: Aleilton Fonseca (UEFS/ALB): Mortes e sinais: como se chega à Literatura Baiana? Adeítalo Manol Pinho (UEFS): Letras(en)cena: Cleise Mendes no entrelugar da Literatura e do Teatro da Bahia, Eduardo Silva Dantas de Matos (UFBA). Novíssima Literatura Baiana: as derivas do sujeito na escrita de Ângela Vilma, Sandro Ornelas e Marcus Vinícius Rodrigues, Lívia Maria Natália de Souza Santos (UFBA); Sessões 5, 6, 7 e 8 – Comunicações de Literatura Baiana; Conferência: A Bahia na modernidade da Literatura Brasileira, Valmiro Santana (Fund. Pedro Calmon); documentário: A Bahia de Euclides da Cunha, direção Carlos Pronzato; Sessões 9, 10, 11 e 12 – Comunicações de Literatura Baiana; conferência: As musas de Castro Alves: Antônio Carlos Secchin (UFRJ/ALB/ABL); Recital: Castro Alves em seus poemas de amor: Aicha Marques e Sandro Rangel, direção Aicha Marques. 30 – Encontros Literários na ALB (ficção): Armando Avena e Marcus Vinícius Rodrigues. Comentários: Andréa Hack e Gerana Damulakis (Ponto de Cultura). Outubro 07 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Aramis Ribeiro Costa, Paulo Ormindo, Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Geraldo Machado, Myriam Fraga, Joaci Góes, Evelina Hoisel, João Eurico Matta. Palestra do acadêmico Paulo Ormindo David de Azevedo: Da francesia ao americanismo através da música popular. 07 – Entrega do Prêmio pelo conjunto da obra à escritora Helena Parente Cunha, patrocinado pela Eletrogóes. Lançamento do livro 440 Revista ALB 50_finalizada.pmd 440 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 As formas informes do desejo: Seminário Helena Parente Cunha, reunindo estudos sobre a obra da escritora. 18 – Semana Friederich Hölderlin – Palestra de abertura: Dr. Marco Aurélio Werle (USP): Hölderlin: intuição e intimidade 19 e 20 – Oficina de Cordel Antônio Carlos Barreto: A voz do Cordel nos saberes da vida (Ponto de Cultura). 21 – Sessão solene de posse da escritora Gláucia Lemos na cad. nº14 de que foi o último ocupante o acadêmico Epaminondas Costalima, sendo saudada pelo confrade Waldir Freitas Oliveira. 25 e 26 – Oficina de leitura de contos Ivo Falcão (Ponto de Cultura). Novembro 04 – Visita guiada na ALB pela moralizadora Cultural Diana Souza (Ponto de Cultura). 09 e 10 – Oficina de Roteiro Cinematográfico Clarissa Rebouças (Ponto de Cultura). 11 – Homenagem póstuma ao membro correspondente Anthony John R. Russel-Wood (1940-2010), sendo oradora a acadêmica Consuelo Novais Sampaio. 17 – Lançamento dos Anais da Secretaria da Educação e Cultura do Município do Salvador Leitura de poemas de Gregório de Mattos. 18 – Encontros Literários na ALB (ficção) – Gláucia Lemos e Guilherme Radel. Comentários de Ângela Wilma e Joaci Góes (Ponto de Cultura). 23 e 24 – Oficina de Narrativa e Teatro Roquildes Santos (Ponto de Cultura). 24 – Lançamento dos livros: A Bahia e seus governantes na República de Antonio Ferrão Moniz de Aragão e Povoamento da cidade do Salvador, de Thales de Azevedo, duas importantes obras da história da Bahia, que voltam a público em edições fac-similares. 25 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Waldir Freitas Oliveira, Cid Teixeira, Cláudio Veiga, Luís Henrique Dias 441 Revista ALB 50_finalizada.pmd 441 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Tavares, Dom Emanuel d’ Able do Amaral, Paulo Ormindo, Ruy Espinheira Filho, Roberto Santos, João Falcão, Paulo Costa Lima, Geraldo Machado, Aramis Ribeiro Costa, Consuelo Pondé, Consuelo Novais Sampaio, Carlos Ribeiro, Evelina Hoisel, Myriam Fraga, Joaci Góes, Aleilton Fonseca. Eleição da nova diretoria. Dezembro 14 e 15 – Oficina de quadrinhos – Vitor Souza (Ponto de Cultura). 16 – Inauguração do busto do acadêmico Jorge Calmon elaborado pela escritora Márcia Magno. Promoção ABL/ABI. Lançamento da Revista da ALB nº49. 28 – Sessão ordinária com a presença dos acadêmicos Edivaldo Boaventura Presidente da ALB, Carlos Ribeiro, Paulo Ormindo, Yeda Castro, Luís Henrique Dias Tavares, Gláucia Lemos, Aramis Ribeiro Costa, Dom Emanuel d’ Able do Amaral, Paulo Costa Lima, Consuelo Sampaio, João Eurico Matta, Joaci Góes, Aleilton Fonseca, Consuelo Pondé de Sena. Aprovação da Ata da eleição da nova diretoria. Biênio 2011/2012. 442 Revista ALB 50_finalizada.pmd 442 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Quadro Social da ALB Cadeira 1 Patrono: Frei Vicente de Salvador Fundador: José de Oliveira Campos 2º Titular: Júlio Afrânio Peixoto, fundador da Cadeira 25, por transferência consentida pela Academia 3º Titular: José Wanderley de Araújo Pinho Titular atual: Luís Henrique Dias Tavares Posse em 14.06.1968 Cadeira 2 Patrono: Gregório de Mattos e Guerra Fundador: Aloysio Lopes Pereira de Carvalho, conhecido por Lulu Parola 2º Titular: Luis Viana Filho Titular atual: Paulo Ormindo David de Azevedo Posse em 20.06.1991 O quadro dos titulares da Academia de Letras da Bahia foi elaborado pelo acadêmico Renato Berbert de Castro (1924-1999). 443 Revista ALB 50_finalizada.pmd 443 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cadeira 3 Patrono: Manuel Botelho de Oliveira Fundador: Arthur Gonçalves de Sales 2º Titular: Eloywaldo Chagas de Oliveira Titular atual: Anna Amélia Vieira Nascimento Posse em 26.03.1992 Cadeira 4 Patrono: Sebastião da Rocha Pita Fundador: Braz Hermenegildo do Amaral 2º Titular: João da Costa Pinto Dantas Júnior 3º Titular: Jayme de Sá Menezes Titular atual: Geraldo Magalhães Machado Posse em 31.10.2003 Cadeira 5 Patrono: Luís Antônio de Oliveira Mendes Fundador: Carlos Chiacchio 2º Titular: Antônio Luís Cavalcanti Albuquerque de Barros Barreto 3º Titular: Carlos Benjamin de Viveiros 4º Titular: José Silveira 5º Titular: Guido Guerra Titular atual: Carlos Jesus Ribeiro Posse em 31.05.2007 Cadeira 6 Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira Fundador: Manoel Augusto Pirajá da Silva 2º Titular: Thales Olímpio Góes de Azevedo 3º Titular: Dom Lucas Cardeal Moreira Neves Titular atual: Cleise Furtado Mendes Posse em 15.04.2004. Cadeira 7 Patrono: José da Silva Lisboa Visconde de Cairu Fundador: Ernesto Carneiro Ribeiro 2º Titular: Francisco Borges de Barros 3º Titular: Aloísio de Carvalho Filho. Eleito para a Cadeira 26, permutou esta, obtendo acordo da Academia, pela Cadeira 7, com monsenhor Francisco de Paiva Marques, quando ambos ainda não-empossados. 444 Revista ALB 50_finalizada.pmd 444 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 4º Titular: Nélson de Souza Sampaio 5º Titular: Pedro Moacir Maia Titular atual: Joaci Fonseca de Góes Posse em: 24.09.2009 Cadeira 8 Patrono: Cipriano José Barata de Almeida Fundador: Luís Anselmo da Fonseca 2º Titular: Francisco Peixoto de Magalhães Netto 3º Titular: Adriano de Azevedo Pondé 4º Titular: Ari Guimarães Titular atual: Paulo Costa Lima Posse em 10.11.1988 Cadeira 9 Patrono: Antônio Ferreira França Fundador: José Alfredo de Campos França 2º Titular: Edgard Ribeiro Sanches 3º Titular: Antônio Luís Machado Neto 4º Titular: Cláudio de Andrade Veiga Titular atual: João Ubaldo Ribeiro (ainda não empossado) Eleito em 21.07.2011 Cadeira 10 Patrono: José Lino dos Santos Coutinho Fundador: Antônio Muniz Sodré de Aragão 2º Titular: Altamirando Alves da Silva Requião Titular atual: Monsenhor Gaspar Sadoc Posse em 16.10.1990 Cadeira 11 Patrono: Francisco gê Acaiaba de Montezuma, Visconde de Jequitinhonha Fundador: Antônio Ferrão Moniz de Aragão 2º Titular: Otávio Torres 3º Titular: Oldegar Franco Vieira Titular atual: Yeda Pessoa de Castro Posse em 10.04.2008 445 Revista ALB 50_finalizada.pmd 445 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cadeira 12 Patrono: Miguel Calmon, Marquês de Abrantes Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida 2º Titular: Alberto Francisco de Assis 3º Titular: Afonso Rui de Sousa 4º Titular: Itazil Benício dos Santos Titular atual: Aramis de Almada Ribeiro Costa Posse em 25.11.1999 Cadeira 13 Patrono: Francisco Moniz Barreto Fundador: Egas Moniz Barreto de Aragão, literariamente conhecido por Pethion de Villar 2º Titular: Afonso de Castro Rebelo Filho 3º Titular: Walter Raulino da Silveira 4º Titular: Odorico Montenegro Tavares da Silva 5º Titular: Luís Fernando Seixas de Macedo Costa Titular atual: Myriam de Castro Lima Fraga Posse em 30.07.1985 Cadeira 14 Patrono: Francisco Gonçalves Martins, Visconde de São Lourenço Fundador: Bernardino José de Sousa 2º Titular: Alberto Alves Silva 3º Titular: Edgard Rego Santos 4º Titular: Raul Batista de Almeida 5º Titular: Carlos Vasconcelos Maia 6º Titular. Epaminondas Costalima Titular atual: Gláucia Maria de Lemos Posse em 21.10.2010 Cadeira 15 Patrono: Ângelo Moniz da Silva Ferraz, Barão de Uruguaiana Fundador: Otaviano Moniz Barreto 2º Titular: Hèlio Gomes Simões Titular atual: João Carlos Teixeira Gomes Posse em 08.06.1989 446 Revista ALB 50_finalizada.pmd 446 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cadeira 16 Patrono: José Tomáz Nabuco de Araújo Fundador: Eduardo Godinho Espínola 2º Titular: Orlando Gomes dos Santos Titular atual: João Eurico Matta Posse em 10.05.1989 Cadeira 17 Patrono: Antônio Ferrão Moniz Fundador: Gonçalo Moniz Sodré de Aragão 2º Titular: Leopoldo Braga 3º Titular: Carlos Eduardo da Rocha Titular atual: Ruy Espinheira Filho Posse em 15.09.2000 Cadeira 18 Patrono: Zacarias de Góes e Vasconcelos Fundador: José Joaquim Seabra 2º Titular: Augusto Alexandre Machado 3º Titular: Dom Avelar Brandão Vilela Titular atual: Waldir Freitas Oliveira Posse em 27.10.1987 Cadeira 19 Patrono: João Maurício Vanderley, Barão de Cotegipe Fundador: Severino dos Santos Vieira 2º Titular: Arlindo Coelho Fragoso. Fundador da Cadeira 41, criada em caráter provisório, transferiu-se para esta, após a morte de Severino Vieira, ocorrida a 27 de setembro de 1917, a fim de que fosse extinta a temporária. 3º Titular: Deraldo Dias de Morais 4º Titular: Guilherme Antônio Freire de Andrade Filho 5º Titular: Godofredo Rebelo de Figueiredo Filho Titular atual: Cid José Teixeira Cavalcante Posse em 25.03.1993 447 Revista ALB 50_finalizada.pmd 447 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cadeira 20 Patrono: Augusto Teixeira de Freitas Fundador: Carlos Gonçalves Fernandes Ribeiro 2º Titular: Epaminondas Berbert de Castro 3º Titular: Lafayette Ferreira Spínola 4º Titular: Ivan Americano da Costa 5º Titular: Joaquim Alves da Cruz Rios Titular atual: Aleilton Santana da Fonseca Posse em 15.04.2005 Cadeira 21 Patrono: Francisco Bonifácio de Abreu, Barão da Vila da Barra Fundador: Filinto Justiniano Ferreira Barros 2º Titular: Estácio Luís Valente de Lima 3º Titular: Jorge Amado 4º titular: Zélia Gattai Amado Titular atual: Antonio Brasileiro Borges Posse em: 10.06.2010 Cadeira 22 Patrono: José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco Fundador: Ruy Barbosa 2º Titular: Ernesto Carneiro Ribeiro Filho 3º Titular: Aloísio Henrique de Barros Porto Titular atual: Clóvis Álvares Lima Posse em 08.05.1980 Cadeira 23 Patrono: Antônio Januário de Faria Fundador: João Américo Garcez Fróes 2º Titular: Jorge Calmon Moniz de Bittencourt Titular atual: Samuel Celestino Silva Filho Posse em 21.08.2008 Cadeira 24 Patrono: Demétrio Ciriaco Tourinho Fundador: Luís Pinto de Carvalho 448 Revista ALB 50_finalizada.pmd 448 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 2º Titular: Luís Menezes Monteiro da Costa 3º Titular: Renato Berbert de Castro Titular atual: Francisco Soares Senna Posse em 27.04.2000 Cadeira 25 Patrono: Pedro Eunápio da Silva Deiró Fundador: Júlio Afrânio Peixoto. Com o consentimento da Academia, transferiu-se para a Cadeira 1 após a morte de seu fundador, José de Oliveira Campos. 2º Titular: Francisco Hermano Santana 3º Titular: Raimundo de Sousa Brito 4º Titular: Luís Augusto Fraga Navarro de Brito Titular atual: Fernando da Rocha Peres Posse em 16.06.1988 Cadeira 26 Patrono: Dom Antônio de Macedo Costa Fundador: Padre José Cupertino de Lacerda 2º Titular: Alberto Moreira Rabelo, único membro da Academia que faleceu antes de tomar posse. 3º Titular: Monsenhor Francisco de Paiva Marques. Eleito para a Cadeira 7, permutou esta pela Cadeira 26, com Aloísio de Carvalho Filho, quando ambos ainda nãoempossados. 4º titular: César Augusto de Araújo Titular atual: Roberto Figueira Santos Posse em 10.08.1971 Cadeira 27 Patrono: Francisco Rodrigues da Silva Fundador: Frederico de Castro Rebelo 2º Titular: Antônio Gonçalves Vianna Júnior 3º Titular: Jaime Tourinho Junqueira Aires 4º Titular: Antônio Loureiro de Souza Titular atual: James Amado Posse em 26.04.1990 449 Revista ALB 50_finalizada.pmd 449 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Cadeira 28 Patrono: Luís José Junqueira Freire Fundador: Francisco Torquato Bahia da Silva Araújo 2º Titular: Homero Pires de Oliveira e Silva 3º Titular: José Calasans Brandão e Silva Titular atual: Consuelo Pondé de Sena Posse em 14.03.2002 Cadeira 29 Patrono: Agrário de Souza Menezes Fundador: Antônio Alexandre Borges dos Reis 2º Titular: Manços Chastinet Contreiras 3º Titular: Colombo Moreira Spínola 4º Titular: Jorge Faria Góes Titular atual: Hélio Pólvora de Almeida Posse em 08.03.1994 Cadeira 30 Patrono: Joaquim Monteiro Caminhoá Fundador: Antônio do Prado Valadares. Permutou a cadeira com Roberto José Correia, titular da 38. 2º Titular: Roberto José Correia 3º Titular: Alfredo Vieira Pimentel 4º Titular: Nestor Duarte Guimarães 5º Titular: Josaphat Ramos Marinho Titular atual: Paulo Furtado Posse em 24.04.2003 Cadeira 31 Patrono: Belarmino Barreto Fundador: Ernesto Simões da Silva Freitas Filho 2º Titular: José Luís de Carvalho Filho Titular atual: Florisvaldo Mattos Posse em 23.11.1995 Cadeira 32 Patrono: André Pinto Rebouças Fundador: Teodoro Fernandes Sampaio 2º Titular: Isaías Alves de Almeida 3º Titular: Zitelmann José Santos de Oliva 450 Revista ALB 50_finalizada.pmd 450 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Titular atual: Gérson Pereira dos Santos Posse em 28.11.1991 Cadeira 33 Patrono: Antônio de Castro Alves Fundador: Francisco Xavier Ferreira Marques 2º Titular: Heitor Praguer Fróes. Tomou posse em 15 de novembro de 1931, na Cadeira 34, transferindo-se para esta, após a morte de Xavier Marques 3º Titular: Waldemar Magalhães Mattos Titular atual: Ubiratan Castro de Araújo Posse em 17.11.2004 Cadeira 34 Patrono: Domingos Guedes Cabral Fundador: José Virgílio da Silva Lemos 2º Titular: Heitor Pragues Fróes. Transferiu-se para a Cadeira 33, depois do desparecimento de Xavier Marques 3º Titular: Adalício Coelho Nogueira 4º Titular: Walfrido Moraes Titular atual: Evelina de Carvalho Sá Hoisel Posse em 27.10.2005 Cadeira 35 Patrono: Manoel Vitorino Pereira Fundador: Antônio Pacífico Pereira 2º Titular: Afonso Costa 3º Titular: Rui Santos 4º Titular: Rubem Rodrigues Nogueira 5º Titular: João da Costa Falcão Cadeira vaga Cadeira 36 Patrono: Joaquim Jerônimo Fernandes da Cunha Fundador: Afonso de Castro Rebelo 2º Titular: Mosenhor Manuel de Aquino Barbosa 3º Titular: Hildegardes Vianna Titular atual: José Carlos Capinan Posse em 17.08.2006 451 Revista ALB 50_finalizada.pmd 451 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA ACADEMIA DE LETRAS DA B A H I A , n. 50, 2011 Cadeira 37 Patrono: João Batista de Castro Rebelo Júnior Fundador: Almachio Diniz Gonçalves 2º Titular: Edith Mendes da Gama e Abreu 3º Titular. Antonio Carlos Magalhães Titular atual: Dom Emanuel d’Able do Amaral Posse em: 28.05.2009 Cadeira 38 Patrono: Alfredo Tomé de Brito Fundador: Oscar Freire de Carvalho 2º Titular: Roberto José Correia. Permutou sua cadeira com Prado Valadares, fundador da Cadeira 30. 3º Titular: Antônio do Prado Valadares 4º Titular: Cristiano Alberto Müller 5º Titular: Wilson Mascarenhas Lins de Albuquerque Titular atual: Armando Avena Filho Posse em 28.04.2005 Cadeira 39 Patrono: Francisco de Castro Fundador: Clementino Rocha Fraga Filho Titular atual: Edivaldo Machado Boaventura Posse em 06.08.1971 Cadeira 40 Patrono: Francisco Cavalcanti Mangabeira Fundador: Otávio Cavalcanti Mangabeira 2º Titular: Manoel Pinto de Aguiar Titular atual: Consuelo Novais Sampaio Posse em 26.11.1992 Obs.: Cadeira 41 - Criada em caráter provisório para que Arlindo Fragoso, idealizador e organizador da Academia, não lhe ficasse de fora, devendo ser extinta com o falecimento de qualquer um dos 41 fundadores. Patrono: Manuel Alves Branco, Visconde de Caravelas (2º). Fundador Arlindo Coelho Fragoso. Com a morte de Severino Vieira, em 27 de setembro de 1917, para a sua Cadeira, de número 19, foi transferido Arlindo Fragoso, e supressa a cadeira provisória. 452 Revista ALB 50_finalizada.pmd 452 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 Endereços dos acadêmicos LUÍS HENRIQUE DIAS TAVARES Rua do Ébano, 159, Edfº Henti Matisse, aptoº 802 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-370 (71) 3245-3524 [email protected] PAULO ORMINDO DE AZEVEDO Rua João da Silva Campos, 1132, Itaigara Salvador - BA - 41840-060 (71) 3358-7571 [email protected] ANNA AMÉLIA VIEIRA NASCIMENTO Rua Cândido Portinari, 19, Barra Salvador - BA - 40140-680 (71) 3247-3312 [email protected] GERALDO MAGALHÃES MACHADO R. Edith Mendes da Gama e Abreu, nº300 Edfº. Port Saint James, aptoº1403, Itaigara Salvador - BA - 41815-010 (71) 3353-5350 / (71)9976-7033 [email protected] 453 Revista ALB 50_finalizada.pmd 453 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 CARLOS RIBEIRO Rua do Timbó, 680 Edf. Villa Etruska, aptoº503 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-660 (71) 3011-7019/ (71) 8899-5864 [email protected] CLEISE MENDES Av. Araújo Pinho, 114/1301, Canela Salvador - BA - 40110-050 (71)3337 0312 [email protected] JOACI GÓES Av. Amaralina, 885 – Edf. Amaralina Center – Loja 9 Salvador -BA - 41900-020 (71) 3444-2308 / (71)8814-3631 [email protected]; [email protected] PAULO COSTA LIMA Rua Sabino Silva, nº282, Edf. Saint Mathieu, aptoº401 Jardim Apipema - Salvador -BA - 40155-250 (71) 8832-1545 /(71)3235-5676 [email protected] JOÃO UBALDO RIBEIRO Rua General Urquiza, 147/401 Rio de Janeiro - RJ - 22431-040 (21) [email protected] YEDA PESSOA DE CASTRO Rua Rodrigues Dórea, Qd 23 Lt 3 - Jardim Armação Salvador -BA - 41750-030 (71) 3461-9033 [email protected] 454 Revista ALB 50_finalizada.pmd 454 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 MONSENHOR GASPAR SADOC Rua Crisipo de Aguiar, 12, aptº 102 Salvador - BA - 40080-310 (71)3336-0346 ARAMIS RIBEIRO COSTA Rua Piauí, 439, aptº 1103, Pituba Salvador - BA - 41830-280 (71)3240 4969 / (71)9984-1165 [email protected] MYRIAM FRAGA Rua Waldemar Falcão, 761, aptº 301, Brotas Salvador - BA - 40295-001 (71) 3356 4611 [email protected] GLÁUCIA LEMOS Rua Ceará, 853, apto. 203 - Pituba Salvador -BA 4l830-450 (71)3240-3688/(71)9147-9904 [email protected] JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES Rua Espírito Santo, 15, aptº 802, Pituba Salvador - BA - 41830-190 (71) 3240 1712 / (21) 2246-0790 JOÃO EURICO MATTA Rua Afonso Celso, nº301, Edf. Concórdia, aptoº302 - Barra Salvador - BA - 40140-080 (71) 3247-0869/ (71)8880-0869 [email protected] 455 Revista ALB 50_finalizada.pmd 455 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 RUY ESPINHEIRA FILHO Caixa Postal 10333 Salvador - BA - 41520-970 (71)3287 2225/ (71) 9973-8711 [email protected] WALDIR FREITAS OLIVEIRA Rua Tiradentes, 52, Abrantes Camaçari - BA - 42840-000 (71) 3623 1434 [email protected] CID TEIXEIRA Rua das Violetas, 85, Pituba Salvador - BA - 41810-080 (71) 3452 -7202 [email protected] ALEILTON FONSECA Rua Rubem Berta, 267, aptº 402, Pituba Salvador - BA - 41810-045 (71) 3345 1519 / (71)88761519 [email protected] ANTONIO BRASILEIRO Rua Alto do Paraná, 300 – Bairro Sim 44.042-000 Feira de Santana - BA - 44042-000 (75)3625-8512 [email protected] CLÓVIS LIMA Av. Sete de Setembro, 750, aptº 404, Mercês Salvador - BA - 40060-001 (71) 3329 4178 456 Revista ALB 50_finalizada.pmd 456 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 SAMUEL CELESTINO Rua do Ébano, nº159 - Edf. Henri Matisse Aptº.1301 Caminho das Árvores Salvador - BA - 41820-370 (71) 3341-4485 / 71- 3359-7741 [email protected] FRANCISCO SENNA Rua Prof. Milton Oliveira, nº73 Edf. Palazzo Anacapri, aptoº202 - Barra Salvador - BA -40.140-100 (71)9967-0685 FERNANDO DA ROCHA PERES Av. Sete, 2901, ala norte, aptº 202, Ladeira da Barra Salvador - BA - 40130-000 (71)3336 3670 ROBERTO SANTOS Rua Basílio Catalã de Castro, Quinta do Candeal, quadra B, lote 19 Salvador - BA - 40280-550 (71) 3276 57549 [email protected] JAMES AMADO Rua Edith Gama Abreu, 53, aptº 1203 - Itaigara Salvador - BA - 41815-010 (71) 3358 5203 CONSUELO PONDÉ DE SENA Av. Princ. Leopoldina, 288, aptº 301, Graça Salvador - Ba - 40150-080 (71) 3336 6205 [email protected] 457 Revista ALB 50_finalizada.pmd 457 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 HÉLIO PÓLVORA Av. Sete de Setembro, 1862/1202, Corredor da Vitória Salvador - BA - 40080-004 (71) 3337 0169 [email protected] PAULO FURTADO Orlando Gomes, Costa Verde, Rua A, q. H, 1.3 Salvador - BA - 41650-120 (71) 3367 9481 [email protected] FLORISVALDO MATTOS Rua Sócrates Guanaes Gomes, 107, Aptº 1901, Cidade Jardim Salavador - BA - 40296-720 (71) 3353 9785 [email protected] GÉRSON PEREIRA DOS SANTOS Rua Dr. João Ponde, 86, aptº 501, Barra Salvador - BA - 40150-810 (71) 3264 3436 UBIRATAN CASTRO DE ARAÚJO Rua Dr. Clemente Ferreira, 117, aptº 11 Salvador - BA - 41110-200 (71) 3237 2364 [email protected] EVELINA HOISEL Rua Mons. Gaspar Sadoc, 48, Jardim de Alá Salvador - BA - 41750-200 (71) 3343 5789 [email protected] 458 Revista ALB 50_finalizada.pmd 458 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 JOSÉ CARLOS CAPINAN Rua Tamoios, 96, Rio Vermelho 41940-040 – Salvador - BA - 41940-040 (71) 3345 2080 [email protected] DOM EMANUEL D’ABLE DO AMARAL Largo São Bento, 01 Centro Salvador - BA - 41205-220 (71) 2106-5272 /8151-1053 [email protected] ARMANDO AVENA Jardim Gantois, 346, Rua C, Piatã Salvador - BA - 41680-170 (71)3115 3694 [email protected] EDIVALDO M. BOAVENTURA Rua Dr. José Carlos, 99, aptº 801, Acupe Salvador - BA -40290-040 (71)3276 1242 [email protected] CONSUELO NOVAIS SAMPAIO R. Catarina Paraguaçu nº02 aptoº805 - Graça Salvador - BA - 40150-200 (71)3331-3694/3012-1010/9976-4656 [email protected] 459 Revista ALB 50_finalizada.pmd 459 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 MEMBROS CORRESPONDENTES ANTONIO CARLOS SECCHIN Av. Atlântica, 2112, aptº801 Copacabana- 1 Rio de Janeiro - RJ - 22021-001 (21) 2236-1112 [email protected] ANTONIO CELESTINO Casa do Ribeiro – São João Del Rei 4830 – Póvoa do Lanhoso – Portugal ÁTICO FROTA VILLAS-BOAS DA MOTA Rua Dr. Manoel Vitorino, 411 - Coité Macaúbas -BA - 46500-000 (77) 3473-1292 CYRO DE MATTOS Travessa Rosenaide, 40 / 101 – Zildolândia 45600-395 – Itabuna – BA (73) 3211-1902 /(73) 88461883 [email protected] DOMINIQUE STOENESCO 26 bis, allée Guy Mocquet - 94170 Le Perreux-sur-Marne - France (003133) 1 48 72 16 56 / (003133) 06 08 65 50 23 [email protected] FLANKLIN W. KNIGHT 2902 W. Strathmore Avenue Baltimore, Maryland 21209 -USA GLÓRIA KAISER Dr. Robert Siegerst, 15 A 8010 – Graz - Áustria 460 Revista ALB 50_finalizada.pmd 460 29/02/2012, 19:52 R EVISTA DA A CADEMIA DE L ETRAS DA B AHIA , n. 50, 2011 HELENA PARENTE CUNHA Rua das Laranjeiras, 280/200 Rio de Janeiro- RJ -22240-001 ((21) 2285 2130 / (21) 9974 4119 [email protected] ISA MARIA CARNEIRO GONÇALVES Rua Milton Melo, 413 - Santa Mônica Feira de Santana -BA - 44050-560 (75) 3625-2416 [email protected] LUIS ALBERTO VIANNA MONIZ BANDEIRA Reilinger Strasse, 19, D - 68789 Deutschland– Alemanha MARIA BELTRÃO Rua Prudente de Moraes, 1179, COB. 01 Ipanema – Rio de janeiro – RJ - 22420-043 (21) 2247-4180 mcmcbeltrã[email protected] RITA OLIVIERI-GODET 24, Avenue Sergent Maginot 35000 Rennes - France 02 99 67 35 02 [email protected] VAMIREH CHACON Universidade de Brasília Instituto de Ciência Política Brasília - DF - 70910-900 461 Revista ALB 50_finalizada.pmd 461 29/02/2012, 19:52 Revista ALB 50_finalizada.pmd 462 29/02/2012, 19:52 Direção MYRIAM FRAGA Coordenação editorial ALEILTON FONSECA Revisão ARAMIS RIBEIRO COSTA ALEILTON FONSECA Arte Final de miolo e capa MARCEL SANTOS Impressão AUTO EDITOR Tiragem 1000 exemplares Revista ALB 50_finalizada.pmd 463 29/02/2012, 19:52 Revista ALB 50_finalizada.pmd 464 29/02/2012, 19:52