Revista Brasileira de Direito Civil - Instituto Brasileiro de Direito Civil
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Revista Brasileira de Direito Civil ISSN 2358-6974 Volume 2 Out / Dez 2014 Doutrina Nacional / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho /Eroulths Cortiano Júnior / Guilherme Calmon Nogueira da Gama / João Gabriel Madeira Pontes / Pedro Henrique da Costa Teixeira / José Fernando Simão Doutrina Estrangeira / Neil Andrews Pareceres / Arnoldo Wald / Gustavo Tepedino Atualidades / Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior Resenha / Fabiano Pinto de Magalhães Vídeos e Áudios / Gustavo Tepedino APRESENTAÇÃO A Revista Brasileira de Direito Civil tem por objetivo fomentar o diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades doutrinárias, jurisprudenciais e legislativas no âmbito do direito civil e de áreas afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e à experiência comparada, que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos. A RBDCivil é composta das seguintes seções: Editorial; Doutrina: (i) doutrina nacional; (ii)doutrina estrangeira; (iii) jurisprudência comentada; e (iv) pareceres; Atualidades; Vídeos e áudios. Endereço para contato: Rua Primeiro de Março, 23 – 10º andar 20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil Tel.: (55) (21) 2505 3650 Fax: (55) (21) 2531 7072 E-mail: [email protected] 2 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 EXPEDIENTE Diretor Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Conselho Editorial Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha. Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil. Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil. Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Pietro Perlingieri – Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenador Editorial Aline de Miranda Valverde Terra Carlos Nelson de Paula Konder Conselho Assessor Eduardo Nunes de Souza Fabiano Pinto de Magalhães Louise Vago Matieli Paula Greco Bandeira Tatiana Quintela Bastos 3 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 SUMÁRIO Editorial Atividade interpretativa e o papel da doutrina e da jurisprudência – 6 Gustavo Tepedino Doutrina nacional Usucapião imobiliária urbana independente de metragem mínima: 9 uma concretização da função social da propriedade – Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho A propriedade privada na Constituição Federal – Eroulths Cortiano 28 Júnior O Direito Civil-Constitucional e o livre desenvolvimento da 42 personalidade do idoso: o dilema de Lear – Guilherme Calmon Nogueira da Gama; João Gabriel Madeira Pontes e Pedro Henrique da Costa Teixeira Há limites para o princípio da pluralidade familiar na apreensão de 61 novas formas de conjugalidade e de parentesco? – José Fernando Simão Doutrina estrangeira Interpretação dos “contratos escritos” na Inglaterra – Neil Andrews 79 Pareceres Regime jurídico aplicável à sociedade anônima cujo comando é 96 compartilhado entre uma empresa pública e uma empresa privada. 4 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Sujeição às normas de direito comum e inaplicabilidade do regime de direito público – Arnoldo Wald A Boa-Fé Objetiva e o Regime de Bens na União Estável de Cônjuges 109 Separados –Gustavo Tepedino Atualidades O usucapião ordinário e o justo título – Ministro Ruy Rosado de 127 Aguiar Júnior Resenhas Regulação da internet e promoção de direitos e liberdades civis – 133 Resenha do livro: Direito privado e Internet, de MARTINS, Guilherme Magalhães (Coord.) – Fabiano Pinto de Magalhães Vídeos e áudios Autonomia Privada e o papel da vontade na atividade contratual – -- aula proferida pelo Prof. Gustavo Tepedino na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2012 Submissão de artigos Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira 142 de Direito Civil - RBDCivil 5 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 EDITORIAL ATIVIDADE INTERPRETATIVA E O PAPEL DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA Gustavo Tepedino Em recente evento promovido pelo Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, o Prof. Ian Peter Smith, do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado de Hamburgo, Alemanha, apresentou minuciosa, densa e respeitosa crítica à utilização da boa-fé objetiva pela jurisprudência brasileira. Segundo aquele professor, verifica-se o emprego da boa-fé pelo Superior Tribunal de Justiça de modo meramente reforçativo ou retórico, o que tem mitigado a força normativa da cláusula geral. Em seu modo de entender, evitar-se-ia a banalização da boa-fé mediante a sua contenção às funções típicas, incidindo exclusivamente em hipóteses em que inexista regra contratual ou legal para a solução da controvérsia. Tal formulação crítica suscitou profícuo debate metodológico, na medida em que a convergência interpretativa de valores, princípios e regras mostra-se inevitável para a atividade hermenêutica; e a densificação das cláusulas gerais ocorre muitas vezes na aplicação conjunta com outros dispositivos legais, justificando e potencializando a sua adoção em hipóteses de incidência que, singularizadas pela concretude das circunstâncias fáticas, escapariam do alcance de regra isoladamente considerada. Seria o caso, no ilustrativo âmbito do Código de Defesa do Consumidor, dos padrões valorativos necessários ao estabelecimento de vícios de qualidade do produto ou serviço e da durabilidade do produto para caracterização de defeitos ocultos. Na mesma linha de raciocínio, a boa-fé objetiva tem sido empregada, sem hipérbole depreciativa, na análise de alocação de riscos para a responsabilidade civil, revisão contratual, instrumentalidade das formas, e assim por diante. Nessa perspectiva, mostrar-se-ia benfazeja a adoção, pela jurisprudência brasileira, e especialmente pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, da boa-fé como fundamento para a construção argumentativa, ao fixar norma de conduta para o caso concreto que leve em conta a totalidade de comandos prescritivos; sob fundamento argumentativo consistente, que demonstre ao jurisdicionado a motivação da decisão mais do que a simples referência 6 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 legislativa, necessariamente incompleta antes da atividade interpretativa (de qualificação e aplicação do direito). Independentemente, contudo, das divergentes e legítimas conclusões desse debate, o ponto alto daquele encontro científico foi o testemunho, corriqueiro em culturas alienígenas, da indispensável assunção, pela doutrina, de seu papel formulador e sistematizador da jurisprudência. Nesse aspecto, mostra-se significativa a agenda de sucessivos Congressos organizados pelo Instituto Brasileiro de Direito Civil. Após o I Congresso do IBDCivil, ocorrido no Rio de Janeiro em 2012, dedicado à relação entre Liberdades e Tecnologia, o II Congresso do IBDCivil, realizado em 2013 em Curitiba, ocupou-se especificamente do tema Direito Civil e Construção Jurisprudencial, deflagrando ampla pesquisa a partir da constituição de Observatório Nacional de Jurisprudência. Anuncia-se agora o III Congresso Brasileiro de Direito Civil, organizado pelo IBDCivil com a OAB-PE, a se realizar em Recife nos dias 10 a 12 de agosto de 2015, com ampla agenda voltada para o Direito civil: interpretação e o protagonismo da doutrina. O eixo central desses eventos tem sido precisamente o estabelecimento de canais de comunicação entre a prática judiciária e a atividade do doutrinador, de modo a estimular cada vez mais a definição precisa de suas indispensáveis funções, especialmente diante da evolução da técnica legislativa e dos novos direitos. A urgência da pauta proposta decorre da constatação de que tais papéis tem se sobreposto nas últimas décadas na experiência brasileira, em prejuízo da segurança do jurisdicionado. De um lado, vê-se difusamente jurisprudência desacompanhada de base teórica sólida, que assegure coerência sistemática ao conjunto de julgados. De outro, literatura jurídica dominada por manuais para concursos, tomados como doutrina, valem-se muitas vezes de decisões isoladas (chamadas açodadamente de jurisprudência) para a condução ou validação de seus próprios entendimentos. Cria-se, então, círculo vicioso em que a doutrina deixa de orientar as decisões jurisprudenciais, as quais, por sua vez, não apresentam caráter orgânico apto a indicar modelos de comportamento confiáveis. O descompasso entre as funções da doutrina e da magistratura suscita inquietante insegurança, na medida em que se perdem as referências que deveriam balizar o convívio social. No direito contemporâneo, em que a técnica regulamentar perde espaço para as cláusulas gerais – mais eficientes diante da multiplicidade e complexidade das hipóteses fáticas de incidência, no mundo em frenética transformação –, torna-se imprescindível reformular a antiga noção de segurança jurídica. Esta não se identifica com a clareza da regra abstrata senão com a argumentação coerente que deve fundamentar e 7 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 motivar as decisões, encontrando-se ou não na presença de regras (aparentemente) claras. Se assim é, como parece, mostra-se urgente a assunção pela doutrina de seu papel orientador e sistematizador, para que forneça aos juízes, para além das apostilhas impressas como cursos de direito, os fundamentos dogmáticos de suas decisões, com base em premissas teóricas sólidas e bem definidas. Com isso ganhará em muito a jurisprudência, a doutrina e o jurisdicionado, transformando a decantada crise da segurança jurídica em círculo virtuoso em que, fortalecida a motivação das decisões, melhor se torna a prestação jurisdicional e, consequentemente, a estima (e a autoestima) dos doutrinadores, cuja boa atuação se reverte necessariamente em proveito para a sociedade. G.T. 8 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional USUCAPIÃO IMOBILIÁRIA URBANA INDEPENDENTE DE METRAGEM MÍNIMA: UMA CONCRETIZAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE1 Acquisition of urban real property by prescription regardless minimum dimensions: an aplication of the social function of property Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Resumo: O presente estudo pretende cuidar da função social na aquisição por usucapião de imóvel urbano, enfrentando o problema das dimensões mínimas da propriedade previstas nas diretrizes normativas de cada cidade, situando-o, pois, no plano funcional do direito de propriedade, à luz de renovada teoria da interpretação. Dentre os objetivos do artigo incluise, igualmente, a identificação da atual crise no tratamento jurisprudencial da matéria, marcada pela contraposição de duas correntes majoritárias, e protagonizada pelo Superior Tribunal de Justiça, em que prevalece a improcedência do pedido aquisitivo, e os Tribunais de Justiça estaduais, favoráveis, em regra, à possibilidade da aquisição independente de metragem mínima – tese defendida neste artigo como resultado da funcionalização das situações patrimoniais aos valores existenciais e da ponderação de interesses em jogo no caso concreto. Palavras-chave: Função social; Propriedade imobiliária urbana; Aquisição; Usucapião; Metragem mínima; Acesso à moradia;Garantia do domínio; Ponderação de valores. Abstract: The present article intends to analyze the social function in the acquisition of urban real property by prescription, facing the problems of minimum dimensions predicted in the regulatory guidelines of each city, situating it on the functional plan of property law, iluminated by the renewed interpretation theory. Among the goals of this article it is the identification of the actual crises in the jurisprudential treatment of the subject, well known by the contrast of the two majority understandings and protagonized by the Superior Court of Justice, where it prevails the improcedence of the legal request and the State Courts, most 1 O autor agradece a Rafael Sinay, mestrando em direito civil no Programa de Pós-Graduação em Direito da UERJ, pela valorosa colaboração na pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. 9 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 favorable to the acquisition independent of the minimum dimensions thesis. This last doctrine is defended in this article as a result of the functionalization of the patrimonial situations to the existential values and the interests weighting in the concrete cases. Keywords: Social function; Urban real property; Acquisition; Prescription; Minimum dimensions; Access to housing;Garanty of the domain; Weighting of values. Sumário: 1. Contornos introdutórios do caso em análise e o digladiar de correntes antagônicas –2. Funcionalização: para que servem os direitos – 3. Propriedade funcionalizada – 4. Aquisição funcionalizada: hipóteses congêneres – 5. Usucapião imobiliária urbana independente de metragem, os valores em jogo e o aceso debate na jurisprudência – 6.Considerações finais 1. Contornos introdutórios do caso em análise e o digladiar de correntes antagônicas Imagine-se que determinada pessoa exerça posse mansa e pacífica, contínua e ininterrupta, sobre uma área devidamente caracterizada de um imóvel, por período de tempo longo o suficiente a assegurar-lhe a conversão de sua posse em propriedade. Posto que preenchidos os requisitos para a aquisição da propriedade imóvel por usucapião, há na hipótese, todavia, uma circunstância peculiar consistente no seguinte fator. É que tendo em vista que a posse se exerce sobre parte da unidade imobiliária formalmente constituída no registro, o possuidor não logra alcançar a metragem mínima do módulo proprietário urbano, estabelecida na legislação municipal competente. Este aspecto, por assim dizer, quantitativo, suscita verdadeiro nó de interpretação, na busca da melhor solução dos múltiplos casos concretos que deságuam no Judiciário assiduamente, e tem ensejado duas possibilidades de definição antagônicas do problema: (i) improcedência do pedido na ação de usucapião, tendo em vista a impossibilidade de fracionamento do terreno para criação de lote com área abaixo da metragem mínima municipal; (ii) procedência do pedido, com a expedição de ordem judicial para criação do lote a menor, à luz do preenchimento dos requisitos normativos constantes do Código Civil e da Constituição. O presente estudo pretende cuidar deste assunto, situando-o no plano funcional do direito de propriedade, à luz de renovada teoria da interpretação, como se verá nas próximas linhas. Dentre os objetivos do artigo inclui-se, igualmente, a identificação da atual crise no tratamento jurisprudencial da matéria, marcada pela contraposição das duas 10 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 correntes descritas no parágrafo anterior, e protagonizada pelo Superior Tribunal de Justiça, em que prevalece a improcedência do pedido aquisitivo, e os Tribunais de Justiça estaduais, favoráveis majoritariamente à tese da aquisição independentemente de metragem mínima. 2. Funcionalização: para que servem os direitos Conquanto se revele a funcionalização fenômeno permanente ao longo da história do Direito, a aceitação da ideia de que a ordem jurídica tem e sempre teve um papel de instrumento predisposto à satisfação de determinado interesse espraiou-se recentemente. Ora explícito ora escamoteado, este papel instrumental tem assumido diversos perfis no curso do tempo, em diferentes sociedades: de manutenção da ordem e da paz social2; de garantia das situações estabelecidas (ou do status quo)3; de garantia da vontade livremente pactuada4, da propriedade (privada)5; da preservação da justiça e da 2 A destacar o uso da força, em nome da segurança coletiva, para garantia da paz, leciona Kelsen: “Quando a ordem jurídica determina os pressupostos sob os quais a coação, como força física, deve ser exercida, e os indivíduos pelos quais deve ser exercida, protege os indivíduos que lhe estão submetidos contra o emprego da força por parte dos outros indivíduos. Quando esta proteção alcança um determinado mínimo, fala-se de segurança coletiva – no sentido de que é garantida pela ordem jurídica enquanto ordem social. (...) A segurança coletiva visa a paz, pois a paz é a ausência do emprego da força física.” Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 40-41. 3 Norberto Bobbio apresenta a evolução do aspecto funcional no Direito: “Nas constituições liberais clássicas, a principal função do Estado parece ser a de tutelar (ou garantir). Nas constituições pós-liberais, ao lado da função de tutela ou garantia, aparece, cada vez com maior frequência, a função de promover. (...) o prêmio atribuído ao produtor ou ao trabalhador que supera a norma é um típico ato de encorajamento de um comportamento superconforme, prêmio este que tem a função de promover uma inovação, enquanto qualquer medida destinada a desencorajar a transgressão de uma dada norma serve para manter o status quo.” Norberto Bobbio. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução de Daniela BeccacciaVersiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara e Renata Nagamine. Barueri-SP: Manole, 2007, p. 13-21. 4 Explicando a evolução dessa liberdade ilimitada para uma liberdade funcionalizada, Lorenzetti pondera: “O direito clássico pensou no indivíduo auto-suficiente. Partia da suposição de que todos os indivíduos têm similar capacidade de decisão e por isso podem optar; nada há que fazer o Direito diante disso. O Direito moderno pensa, ademais, no indivíduo hipossuficiente, em que há uma série de condicionamentos externos que devam se desmontar para melhorar a capacidade de decisão”. Ricardo Luis Lorenzetti. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 504. Para Pietro Perlingieri, a garantia da vontade não pode ser absoluta, mas necessariamente deve atender a fins sociais. “A autonomia não é livre arbítrio: os atos e as atividades não somente não podem perseguir fins anti-sociais ou não-sociais, mas, para terem reconhecimento jurídico, devem ser avaliáveis como conformes à razão pela qual o direito de propriedade foi garantido e reconhecido.” Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 228. 5 Sobre a propriedade nos códigos oitocentistas, destaca Luiz Edson Fachin: “A propriedade para a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consistiu em direito inviolável e sagrado. Tanto o Código francês quanto o Código italiano de 1865 estatuíam que a propriedade é o direito de gozar e dispor do bem absoluto.” Luiz Edson Fachin. A função social da posse e a propriedade contemporânea: uma perspectiva da usucapião imobiliária rural. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 16. No campo da economia, Ludwig Von Mises expõe a noção de propriedade segundo a ótica liberal: “A propriedade privada gera para o indivíduo um universo no qual ele se vê livre do estado. Ela põe limites à operação da vontade autoritária. Permite o surgimento de outras forças, que se colocam lado a lado e em oposição ao poder político. (...) É no solo em que 11 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 segurança jurídica6; de promoção de valores sociais, solidários e igualitários7; de tutela privilegiada da pessoa humana e demais valores existenciais que gravitam ao seu redor8; dentre diversos outros. A noção geral de funcionalização, pode-se afirmar, parte da distinção, tão querida aos filósofos, entre fins e meios9. Tudo o que se diz meio para a realização de alguma coisa, se diz instrumento e, na esteira, se diz funcionalizado àquela noção que representa o seu fim. Se assim é, como parece, numa concepção hierárquica, os meios estão abaixo dos fins, uma vez que se curvam aos seus ditames, servem àquelas finalidades10. as sementes da liberdade se nutrem e em que se enraízam a autonomia do indivíduo e, em última análise, todo progresso intelectual e material.” Ludwig Von Mises. Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010, p. 9. Em sentido diverso, confira-se o contraponto de Eduardo Espínola ao conceito liberal de propriedade: “O pressuposto de confiança recíproca e boa-fé, que se integra no moderno conceito de obrigação, encontra correspondência na função social, implícita no direito de propriedade, no sentido de consideração à solidariedade social, compreendendo os direitos do proprietário e os deveres que lhe são impostos pela política legislativa”. Eduardo Espínola. Posse, propriedade/compropriedade ou condomínio/direitos autorais. Atualizado por Ricardo R. Gama. Campinas: Bookseller, 2002, p. 190. 6 Nas palavras de San Tiago Dantas: “(...) o direito de propriedade, tal como se concebe, não pode ser retirado pelo Estado a ninguém. É condição essencial que preceda a esse ato a indenização, depois de ter sido exarado, normalmente, mediante um decreto especial, que aquela desapropriação se impõe por motivo de utilidade pública. Todo ato administrativo, portanto, e até mesmo toda lei ordinária, que tolha a alguém a propriedade particular sem fazer indenização correspondente, está inquinado do vício de inconstitucionalidade. (...) o direito de propriedade figura entre aqueles que a Constituição protege por considerá-lo uma das instituições civis básicas dentro da estrutura social”. Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Programa de direito civil III: direito das coisas. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1979, p. 115, 116. 7 Vale destacar a lição de Gustavo Tepedino sobre a superação de uma lógica meramente patrimonialista em benefício de outra, qualitativamente diversa, de precedência dos valores existenciais: “Revisitou-se, pouco a pouco, a partir de então, a metodologia do direito privado, mediante a reconstrução de seus conceitos fundamentais, e procurou-se fazer do compromisso para com a pessoa humana e a justiça social a fonte de inspiração para a produção intelectual, preocupação esta que se refletiria inevitavelmente na jurisprudência. O direito civil, então, procurou superar a perspectiva patrimonialista que o distinguia, e voltou-se para a promoção dos valores constitucionais, especialmente no que concerne à dignidade da pessoa humana, à solidariedade social, à igualdade substancial e ao valor social da livre iniciativa (...).” Gustavo Tepedino. O direito civilconstitucional e suas perspectivas atuais. In Temas de Direito Civil – Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 22. 8 Maria Celina Bodin de Moraes pontua o advento da tutela da dignidade da pessoa humana como o cerne do Direito: “Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico, de modo que é este o valor que conforma todos os ramos do direito”. Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um direito civil-constitucional. In Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 11. 9 Na lição de Aristóteles: “Digamos que a sabedoria filosófica e o discernimento devem ser dignos de escolha porque são a excelência das duas partes respectivas da alma, ainda que nenhuma delas produza qualquer efeito. Ademais, elas produzem algum efeito, não como a arte da medicina produz a saúde, mas como as condições saudáveis são a causa da saúde; é assim que a sabedoria filosófica produz a felicidade, pois, sendo uma parte da excelência como um todo, por ser possuída, ou melhor, por ser usada a sabedoria filosófica faz o homem feliz. Além disso, a função de uma pessoa se realiza somente de acordo com o discernimento e com a excelência moral, porquanto a excelência moral nos faz perseguir o objetivo certo e o discernimento nos leva a recorrer aos meios certos.” Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. 3º Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985, 1992, p. 125. 10 Para Aristóteles, os fins são objetivos que possam ser apreciados por si mesmos – Ética a Nicômaco, cit., p. 20. 12 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Nesse panorama, o intérprete que se vê diante de uma situação jurídica qualquer, deve perquirir, para além de seus elementos constitutivos (o que ela é), a sua razão teleologicamente justificadora: para que serve11? Ou seja, os institutos jurídicos, partes integrantes da vida de relação, passam a ser estudados não apenas em seus perfis estruturais (sua constituição e seus elementos essenciais), como também – e principalmente – em seus perfis funcionais (sua finalidade, seus objetivos). Perlingieri exemplifica em tema do direito de propriedade: “a propriedade, de dois pontos de vista distintos, é situação subjetiva e é relação”. E o aspecto funcional prevalece quando se compreende a propriedade como relação jurídica12. O presente trabalho encontra na função social da propriedade a um só tempo o seu foco e ponto de partida, tendo em vista as múltiplas acepções que hoje assume o fenômeno da funcionalização. No presente estudo, em particular, cuidar-se-á da função social na aquisição por usucapião de imóvel urbano, enfrentando o problema das dimensões mínimas da propriedade previstas nas diretrizes normativas de cada cidade. 3. Propriedade funcionalizada Atribui-se a Leon Duguit, como se sabe, nas primeiras décadas do século XX, o desenvolvimento da tarefa de incorporar ao direito de propriedade um conceito jurídico de função social. Duguit acreditava que a propriedade, tal como os direitos em geral, devia se adequar à evolução da sociedade e evoluir no ritmo das necessidades econômicas. A partir do momento em que tais necessidades econômicas se transformassem de individuais em sociais, a propriedade individual se transformaria em função social. A imagem de um 11 Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 94. Norberto Bobbio também faz referência a essa importante ideia: “Em poucas palavras, aqueles que se dedicaram à teoria geral do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito’ do que ‘para que o direito serve’”. Norberto Bobbio. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito; tradução de Daniela BeccacciaVersiani; revisão técnica de Orlando Seixas Bechara e Renata Nagamine. Barueri-SP: Manole, 2007, p. 53. 12 Pietro Perlingieri. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 937-954. Perlingieri explica que a transformação do entendimento da propriedade, que de mera situação subjetiva passa a ser compreendida como relação jurídica, significou não apenas uma metamorfose estrutural, mas principalmente funcional: é a passagem de uma postura individualista para uma postura relacional. “(...) De modo que esta [a função social] concerne ao conteúdo complexo da disciplina proprietária, não somente aos limites” (p.240). E aduz antes que “mudados os parâmetros, os valores de fundo do ordenamento, interpretações redutivas como estas não se justificam mais: a produção, a empresa e seu incremento não representam os fins, mas os meios para realizar interesses não avaliáveis economicamente” (p.939). 13 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 direito subjetivo absoluto, egocêntrico, é substituída pela figura da “propriedade-função” – uma situação funcionalizada a razões de ser específicas, que atendessem aos interesses não só individuais, mas sobretudo de toda a coletividade13. Dada sua relevância histórica e de seu papel cambiável no tempo, o direito de propriedade constituiu o terreno fértil em que os influxos funcionalistas deitaram suas primeiras sementes. De fato, a propriedade já cumpriu a missão paradoxal de servir desde fundamento de regime escravocrata, até servir de dogma associado à liberdade do ser humano. Em outro ângulo, por exemplo, a propriedade já foi apontada até mesmo como fundamento do chamado “pacto social”14. Se a propriedade pode servir de meio a tamanha diversidade de fins, parecem superados os mitos de sua pretensa neutralidade, ou de sua concepção inata, ensimesmada, decorrente de um direito natural ou plasmada na religião 15, a representar um fim em si mesma. Já se revelou que por trás de aparente neutralidade alojavam-se concepções que remetem às raízes do movimento liberal-patrimonialista. Hoje, à luz dos fundamentos do direito contemporâneo, os quais alçam a pessoa humana e a sua plena realização existencial a valor supremo, estrutura e função do direito de propriedade devem ser relidas nas múltiplas situações em que se apresentam. Configura-se assim linha de ruptura com os moldes do patrimonialismo e do individualismo e se inicia a construção de um direito de propriedade em harmonia com princípios e valores não patrimoniais16. A questão ora estudada representa uma face desta temática maior. 13 Leon Duguit. LastransformacionesdelDerecho Publico y Privado. Buenos Aires: Editorial Heliasta S.R.L., 1975, p. 178 e ss. V., também, José Diniz de Moraes. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 94-97. 14 “Fundando-se todos os direitos civis sobre o de propriedade, assim que este último é abolido nenhum outro pode subsistir. A justiça seria mera quimera, o governo uma tirania, e deixando a autoridade pública de possuir um fundamento legítimo, ninguém seria obrigado a reconhecê-la, a não ser constrangido pela força”JeanJacques Rousseau.O contrato social. Tradução: Antonio de PaduaDanesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989. 15 “A ideia de propriedade privada, em Roma ou nas cidades gregas da antiguidade, sempre foi intimamente ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens próprios de uma gensou de uma família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de sangue que unem um grupo humano”. Fabio Konder Comparato. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. p.1. Disponível em: http://academico.direitorio.fgv.br/ ccmw/images/5/55/Comparato.pdf.Acesso em 20/06/2014. 16 Este é o magistério de Gustavo Tepedino: “novos parâmetros para a definição da ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais”. Gustavo Tepedino. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. In Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2004, p. 22. 14 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 No plano normativo pátrio, enquanto o caput do artigo 1.228 do Código Civil trata dos aspectos estruturais ou estáticos da propriedade, seus parágrafos, mais precisamente o primeiro, quarto e quinto cuidam de seu aspecto dinâmico, correspondente à sua função social17. O conteúdo estrutural do direito de propriedade abrange os aspectos interno (econômico) e externo (jurídico) do direito subjetivo. O aspecto interno, igualmente conhecido como senhoria, constitui-se de todas as espécies de aproveitamento econômico do objeto por parte de seu titular, que se traduzem nas chamadas faculdades de usar, fruir e dispor – também conhecidas como poderes do titular do domínio. Já o aspecto externo ou jurídico18 disciplina o momento patológico da situação proprietária, com as ações de defesa da propriedade, bem como o direito de reaver a coisa para si, quando o titular sofre os efeitos da lesão (ou ameaça de lesão) de direito19. O ponto de vista funcional põe em jogo o controle de legitimidade da propriedade, a justificativa finalística dos poderes do titular em razão das exigências suscitadas por outros centros de interesse antagônicos – tais como vizinhos, entes públicos, enfim, terceiros proprietários ou não proprietários. Desta compatibilidade entre interesses proprietários e extraproprietários resulta o conceito da função social, que atua sobre a senhoria da propriedade e remodela, em sua essência, os poderes do titular. Assim sendo, diversos interesses dignos de tutela passam a compor o núcleo do direito de propriedade, 17 Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas; (...) § 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante; § 5 o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores. 18 Desenvolve Ricardo Lira: “No seu aspecto externo – o jurídico –, a propriedade, como ensinava Bernardo Windscheid, nada mais é que o direito de exclusão que tem o titular de afastar todos e qualquer um do campo em que se exercita a sua senhoria, manifestando-se inclusive no direito de reaver a coisa de quem injustamente a possua ou detenha.” Ricardo Pereira Lira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 156. 19 “O direito romano dá ao proprietário o meio de recuperar a posse de todo indivíduo em cujas mãos acha a sua coisa, seja qual for o modo por que este adquirisse a posse. Esse meio, que antigamente consistia num ato solene de recorrer-se à força privada, e que não conduzia a uma instância judiciária senão no caso de resistência, é a reivindicatio.” Em outro momento de sua obra, Ihering aborda a ação possessória: “A ação possessória mostra-nos a propriedade na defensiva, e a reivindicação na ofensiva.” Rudolf Von Ihering. Teoria simplificada da posse. In Ruy Barbosa. Posse de direitos pessoais / Rudolf Von Ihering. Teoria simplificada da posse. Apresentação de Orlando Gomes; edição cuidada por Alcides Tomasetti Jr. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 70 e 86, respectivamente. 15 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 permeando seu aspecto interno. São exemplos disso os interesses ambientais, trabalhistas, culturais, dentre outros, que se tonam relevantes e oponíveis ao proprietário. Com efeito, a função social parece exercer papel de controle de merecimento de tutela, garantindo e promovendo os valores cardeais do elenco axiológico do ordenamento. Segundo Perlingieri: Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume um papel do tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento.20 De mais a mais, tecnicamente a propriedade deixa de ser estudada como mero direito subjetivo, tendencialmente pleno, a respeitar apenas certos limites externos, de feitio negativo, tornando-se, isso sim, situação jurídica subjetiva complexa, a abranger também deveres (positivos) ao titular, além de ônus, sujeições etc.21 Não deve, igualmente, ser referida como gênero, formal e abstrato. Cabe aqui o alerta fundamental de Salvatore Pugliatti, no sentido de não mais ser desejável se referir à propriedade no singular, mas sim no plural, haja vista a enorme diferenciação entre os diversos estatutos proprietários existentes nas distintas situações subjetivas que se revelem em concreto22. 20 Pietro Perlingieri. O direito civil na legalidade constitucional. Tradução: Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 940. 21 “Não se pode sustentar que os limites e as obrigações não fazem parte do direito de propriedade; fatos externos são o ônus real, a servidão, o peso imposto pelo exterior e que, portanto, não fazem parte da estrutura da situação subjetiva-propriedade. (...) A propriedade é, ao revés, uma situação subjetiva complexa.” Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 224. Compartilhando do mesmo ponto de vista, Ricardo Lira: “(...) contemporaneamente, a propriedade não sofre apenas as limitações exteriores decorrentes do poder de polícia, consubstanciando a função social da propriedade, mas ela própria é uma função social, sobretudo quando cria poderes inerentes a um bem de produção.” Ricardo Pereira Lira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 313. Anota ainda Anderson Schreiber que “na concepção individualista do direito de propriedade, definido como o direito de usar e dispor das coisas ‘de lamanièreplusabsolute’, parece evidente que a função do domínio correspondia unicamente à proteção dos interesses do proprietário. O titular do direito de propriedade era dotado de um direito quase absoluto, cuja amplitude esbarrava apenas em limitações de caráter negativo, obrigações de não fazer que lhe eram impostas pelo poder Público. E mesmo essas obrigações negativas eram consideradas excepcionais e estranhas ao instituto da propriedade”. Anderson Schreiber. Função Social da Propriedade na Prática Jurisprudencial Brasileira. Disponível em: http://www.anderson schreiber.com.br/downloads/Funcao_Social_da_Propriedade_na_Pratica_Jurisprudencial_Brasileira.pdf p. 46. Acesso em 18/06/2014. 22 Salvatore Pugliatti. La proprietà e le proprietà. In La proprietà nel nuovo diritto. Milano: Giuffrè, 1954, p. 148, 149. Gustavo Tepedino, em sentido análogo, registra a passagem da noção abstrata do instituto para sua concretização: “De fato, a variedade e relatividade da noção de propriedade (…) corroboram a rejeição (…) da propriedade como noção abstrata. (...). Chega-se, por este caminho, à configuração da noção pluralista do 16 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Em termos constitucionais, a função social da propriedade no Brasil passou por processo de evolução e amadurecimento. A Constituição Federal de 1946, em seu artigo 147, já tratava a função social da propriedade como princípio da ordem econômica23. Na Carta Magna de 1988, além de alicerce da ordem econômica, a função social da propriedade ganha ainda mais prestígio, passando à categoria de direito fundamental, com implicações hermenêuticas evidentes24. Hoje se pode afirmar que a perspectiva funcionalizada decorre mesmo da força dos princípios constitucionais da solidariedade social e da dignidade da pessoa humana (Constituição, artigos 1º, III, e 3º, I e III)25, situando-se o núcleo do conceito de função (social) da propriedade no condicionamento da tutela do direito do proprietário à realização dos valores constitucionais, e ao atendimento de interesses não proprietários considerados socialmente relevantes26. instituto, de acordo com a disciplina jurídica que regula, no ordenamento positivo, cada estatuto proprietário. (...). A construção, fundamental para a compreensão das inúmeras modalidades contemporâneas de propriedade, reflete, na realidade, a superação da própria concepção tradicional de direito subjetivo, entendido como o poder reconhecido pelo ordenamento ao sujeito para realização de interesse próprio, finalizado em si mesmo. (...) Referida construção aplicada à propriedade permite concebê-lanão mais uma situação de poder, por si só e abstratamente considerada (...), mas como ‘una situazionegiuridicasoggettivatipica e complessa’, necessariamente em conflito ou coligada com outras, que encontra a sua legitimidade na concreta relação jurídica na qual se insere.” Gustavo Tepedino. Comentários ao Código Civil: direito das coisas, v.14; coordenador: Antônio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 241-243. No mesmo sentido, Ricardo Lira disserta: “Consequentemente, a rigor, não há que falar só em redefinição da propriedade, mas em diversificação do direito de propriedade, no seu conteúdo, conforme o bem de vida que esteja em jogo, visando à função social da propriedade, como um dos instrumentos da Justiça Social. Assim, o direito de propriedade, assegurado na Constituição da República pode variar, como verdadeira função social, nos termos e limites fixados pela lei, como expressão da vontade coletiva, desde que não seja ele esvaziado no seu conteúdo essencial mínimo.” Ricardo Pereira Lira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 161. 23 Art 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos. 24 Ao analisar o sentido e o alcance da função social da propriedade, Luiz Edson Fachin defende que não devem ser atendidas as pretensões possessórias do proprietário não cumpridor da função social de sua propriedade, mesmo que em tese tais pretensões sejam garantidas pelo Código Civil. Confira-se: “(...) é defensável concluir que é incongruente com a norma constitucional e a mens legis deferir proteção possessória ao titular de domínio cuja propriedade não cumpre integralmente sua função social, inclusive (e especialmente) no tocante ao requisito da exploração racional. A liminar que seja deferida concedendo a reintegração de posse de imóvel nessa condição pode até atender a dogmática do Código Civil, mas se choca de frente com o novo texto constitucional. (§) Com base neste ponto de vista, torna-se possível não atender as pretensões de defesa possessória do proprietário que deixa de imprimir à sua propriedade uma função social, não obstante possua título de domínio. É aqui valorizado, acima do direito abstrato da propriedade, um fato concreto que se baseia na posse agrária legitimando a propriedade”. Luiz Edson Fachin. A justiça dos conflitos no Brasil. In: A questão agrária e a justiça.Juvelino José Strozake (org.). São Paulo: RT, 2000, p. 285. 25 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 26 Art. 5º - (...), XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta 17 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Conclui-se, com Gustavo Tepedino, que a propriedade constitucional “não se traduz numa redução quantitativa dos poderes do proprietário”, mas, “ao reverso, revela uma determinação conceitual qualitativamente diversa”27. Em definitivo: A disciplina da propriedade constitucional, a rigor, apresenta-se dirigida precisamente à compatibilidade da situação jurídica de propriedade com situações não-proprietárias. De tal compatibilidade deriva (não já o conteúdo mínimo mas) o preciso conteúdo da (situação jurídica de) propriedade, inserida na relação concreta28. A função remodela a estrutura e o conteúdo do direito29. Não há espaço, hoje, à luz do projeto constitucional, para o exercício do domínio em moldes apartados do elenco axiológico do ordenamento jurídico. 4.Aquisição funcionalizada: hipóteses congêneres Se é verdadeiro que a funcionalização projeta suas luzes sobre a situação proprietária e as relações jurídicas a ela subjacentes, como visto acima, parece lógico que o momento aquisitivo não escapa de tal espectro, muito especialmente quando o processo se mostra permeado por valores especialmente socializantes. Por outras palavras, quando entram em cena situações tais como a usucapião especialíssima (CC, art. 1240-A)30 ou a aquisição onerosa decorrente do exercício da exceção de posse socialmente qualificada (CC, art. 1228, pars. 4 o e 5o)31, o elenco de Constituição; XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento. 27 Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. 3ª edição atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.323. 28 Ob. cit., p. 323. 29 Neste rumo, Pietro Perlingieri, ao afirmar ter se tornado a função social “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a determinado sujeito”. Pietro Perlingieri. Perfis do direito civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional; tradução de Maria Cristina De Cicco. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 226. 30 “Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011) 31 “§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social 18 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 valores supremos do ordenamento incide diretamente e de modo privilegiado sobre o caso concreto, permitindo o acesso dos mais vulneráveis ao uso e fruição dos bens jurídicos que a ordem constitucional fez tutelar. Assim, devem ser repelidas todas as tentativas de interpretação que causem embaraços ou que criem obstáculos à eficácia desses dispositivos. Afinal, impedir o exercício do direito previsto no parágrafo quarto do artigo 1228, por exemplo, por conta da ausência de recursos, do estado de miserabilidade dos possuidores ou por exigência de legislação urbanística municipal quanto à metragem mínima é verdadeiramente atentar contra os valores constitucionais que conferem precedência da pessoa sobre o patrimônio. Essa precedência é justamente o que identifica o marco axiológico do ordenamento jurídico na dignidade humana e na solidariedade32, bem como a constatação da prevalência, nas situações de conflito, dos valores não-patrimoniais sobre os patrimoniais, do interesse da coletividade sobre o individual, por opção (democrática) do Poder Constituinte.33 Quadro semelhante se verifica quando se enfoca a usucapião especialíssima, no que tange ao percentual de frações ideais que detém o condômino beneficiário do expediente, e que remanesce no imóvel. Basta a situação da comunhão para que seja deflagrado o mecanismo ad usucapionem em relação à fração remanescente, ainda que a razão original de divisão entre as cotas seja desfavorável ao adquirente. O raciocínio, tal como apresentado, para além da aparente consagração do antigo brocardo interpretativo – onde o legislador não distinguiu não cabe ao intérprete fazê-lo –, encontra justificativa última nos valores constitucionais da tutela da pessoa humana no ambiente familiar. Simplifica o acesso ao domínio pleno do bem, reunindo as frações sob a titularidade do responsável que permanece na residência, em beneficio da segurança jurídica do núcleo34. e econômico relevante. § 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.” 32 Gustavo Tepedino esclarece a profunda transformação do direito de propriedade: “Desse modo, (não já o conteúdo mínimo, mas) o preciso conteúdo da situação jurídica de propriedade, inserida na relação concreta, deriva da compatibilidade da (situação jurídica de) propriedade com situações não proprietárias. Assim considerada, a propriedade (deixa de ser uma ameaça e) se transforma em instrumento para a realização do projeto constitucional (acesso a garantias fundamentais).” Gustavo Tepedino. Comentários ao Código Civil: direito das coisas, v.14; coordenador: Antônio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 249. 33 Ricardo Lira compactua desse espírito: “Nesse caso a riqueza social aumenta, a distribuição da riqueza se faz mais justamente, na medida em que, visando ao bem de todos, o interesse protegido do dominus definha diante do interesse subordinado da comunidade”. Ricardo Pereira Lira. Elementos de direito urbanístico. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 313. 34 Seja consentido remeter a Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Usucapião especialíssima: um olhar sobre o novo instituto. In Revista Trimestral de Direito Civil; coord. Gustavo Tepedino, v.49, janeiro/março 2012, Rio de Janeiro, Padma, 2000, p. 242. 19 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Para além de corresponder à noção de garantia35, o direito de propriedade, hoje, representa igualmente a ideia de acesso. Valoriza-se, funcionalmente, o dito direito à propriedade – nas palavras de Luiz Edson Fachin: “passa-se a entender que esse direito subjetivo tem destinatários no conjunto da sociedade, de modo que o direito de propriedade também começa a ser um direito à propriedade. Gera, por conseguinte, um duplo estatuto: um de garantia, vinculado aos ditames sociais, e outro, de acesso”.36 O acesso, por seu turno, no quadro social de escassez em que vive a sociedade brasileira, vincula-se a alguns dos valores fundamentais do ordenamento, ilustrados nos incisos I e III do artigo 3º da Constituição, segundo os quais constitui objetivo fundamental da República Federativa do Brasil construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais, em nome da tutela privilegiada da dignidade da pessoa humana, fundamento da República, a teor do art. 1º, III, da Constituição. Por isso mesmo a posse cumpridora de sua função social goza de autonomia em relação à garantia do direito de propriedade, podendo prevalecer mesmo contra o domínio37. E a prioridade axiológica dos valores existenciais em jogo (moradia, trabalho) aponta para a prioridade finalística da acessibilidade ao estatuto dominial por via da usucapião especial independente da restrição de metragem, oriunda da legislação municipal, tema melhor desenvolvido a seguir. 5. Usucapião imobiliária urbana independente de metragem, os valores em jogo e o aceso debate na jurisprudência Ao retornar-se à questão objeto específico deste ensaio38, verifica-se a ocorrência de uma (apenas aparente) colisão entre princípios e valores, protegidos pelo ordenamento. Se, por um lado, mostra-se coerente com o interesse público geral de ordenação urbana a solução que preconiza a inviabilidade da usucapião sobre área menor que a metragem mínima das posturas municipais, a fim de atender ao princípio da função social da cidade, evitando-se a degradação do tecido urbano e a consequente favelização, 35 Constituição da República, art. 5º, caput e incisos XXII e XXIII. Luiz Edson Fachin. Teoria Crítica do Direito Civil. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 289. 37 Permita-se a referência a Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rumos cruzados do direito civil pós-1988 e do constitucionalismo de hoje. In Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. Org. Gustavo Tepedino. São Paulo: Atlas, 2008, p. 275 a 277. 38 Cf. item 1, supra, em especial os parágrafos iniciais. 36 20 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 por outro, não se pode negar que o acesso à propriedade imóvel, por meio da usucapião, constitui mecanismo de relevância social de impacto, a bem do acesso à moradia, do princípio da isonomia e da garantia da segurança jurídica. As decisões dos conflitos pelo Judiciário refletem uma divisão de cenário, em oscilações entre as duas orientações enfocadas. Em meio a torrencial aplicação do Enunciado número 7 de sua Súmula de Jurisprudência39, parece prevalecer, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a exigência de metragem mínima para aquisição da propriedade imobiliária urbana por usucapião. Em recente julgado, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino retratou a posição do STJ no tema: “o entendimento desta Corte é no sentido de que não é possível a usucapião de terreno com dimensões inferiores ao módulo urbano (ou rural)”40. Há precedente da Corte em igual sentido:REsp 402.792/SP, Rel. Min. Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julg. 26.10.200441. Entretanto, em outro acórdão o STJ houve por bem manter decisão de Tribunal estadual que acolheu a tese da possibilidade de usucapião: REsp 150.241/SP,Rel. Min. Sálvio De Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julg. 02.12.1999, DJ 08.03.200042. 39 O apontado enunciado, publicado em 3.7.1990, impede sejam conhecidos pelo STJ um sem número de recursos especiais, filtrando a multidão de feitos que assola a Corte. Veja-se seu inteiro teor: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”. 40 AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO. RECURSO ESPECIAL. USUCAPIÃO ESPECIAL. LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. RECURSO ESPECIAL. NÃO CABIMENTO. PREQUESTIONAMENTO. AUSENTE. SÚMULA 211 DO STJ. USUCAPIÃO. ÁREA MENOR QUE MÓDULO URBANO. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (STJ, 3ª T., AgRg nos EDcl no Ag 1407458/RJ, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julg. 07.05.2013). 41 CIVIL - RECURSO ESPECIAL - USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO - ÁREA INFERIOR AO MÓDULO URBANO - LEI MUNICIPAL - VEDAÇÃO - ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO AOS ARTS. 550 e 552 DO CC/16 - INOCORRÊNCIA. 1 - In casu, como bem ressaltado no acórdão impugnado, “o imóvel que se pretende usucapir não atende às normas municipais que estabelecem o módulo mínimo local, para parcelamento do solo urbano.” (fls.168/169), não constituindo o referido imóvel, portanto, objeto legalizável, nos termos da lei municipal. Conforme evidenciado pela Prefeitura Municipal de Socorro, no Ofício de fls. 135, o módulo mínimo para o parcelamento do solo urbano daquele município é de 250m2, e o imóvel em questão possui apenas 126m2. Ora, caso se admitisse o usucapião de tal área, estar-se-ia viabilizando, de forma direta, o registro de área inferior àquela permitida pela lei daquele município. Há, portanto, vício na própria relação jurídica que se pretende modificar com a aquisição definitiva do imóvel. 2 - Destarte, incensurável o v. acórdão recorrido (fls. 169) quando afirmou que "o entendimento do pedido implicaria em ofensa a norma municipal relativa ao parcelamento do solo urbano, pela via reflexa do usucapião. Seria, com isso, legalizado o que a Lei não permite. Anotou, a propósito, o DD. Promotor de Justiça que, na Comarca de Socorro, isso vem ocorrendo "como meio de buscar a legitimação de parcelamento de imóveis realizados irregularmente e clandestinamente." 3 - Recurso não conhecido (STJ, 4ª T., REsp 402.792/SP, Rel. Ministro Jorge Scartezzini, julg. 26.10.2004). 42 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO. PROPRIEDADE RURAL. ÁREA INFERIOR A UM MÓDULO RURAL. SOCIEDADE DE FATO. POSTERIOR REGISTRO. CONTAGEM DO PRAZO DE USUCAPIÃO. DOUTRINA. RECURSO ESPECIAL ENUNCIADO N. 283 DA SÚMULA/STF. RECURSO DESACOLHIDO. I - Nos termos do art. 18 do Código Civil, "começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição dos seus contratos, atos constitutivos, estatutos ou compromissos no seu registro peculiar, regulado por lei especial, ou com a autorização ou aprovação do Governo, quando precisa". 21 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A consideração da existência de uma metragem mínima para constituir o denominado módulo urbano da propriedade imobiliária, imposta por legislação municipal, tem impressionado muitos intérpretes. Apegados à subsunção e acostumados a técnicas legislativas regulamentares, não conseguem superar o óbice urbanístico. Afinal, se há uma dimensão mínima para a concepção da propriedade imobiliária no interior da cidade, qualquer tentativa, seja de que natureza for, de se instituir lote com área inferior àquela do módulo mínimo deve ser, de plano, refutada. Mais forte se torna o argumento, supõem seus adeptos, diante da ausência, na outra ponta, de metragem mínima para efeito de aquisição por usucapião. A “aplicação” da lei municipal à hipótese, assim, não encontraria opositor e preencheria o vácuo normativo federal, desempenhando papel de integração do ordenamento. Chega a chamar a atenção o apego exasperado à subsunção, a procura de um regulamento legal, de uma solução específica na letra da lei, a servir de “moldura” para “encaixar” o caso concreto. E não é só. A tal quadro soma-se ainda a motivação da tese. Inspirada no firme propósito de garantir a função social da cidade, em que se inclui a qualidade de vida de seus moradores, e para evitar o risco de favelização, considerada uma chaga oriunda da ausência de regulação dos espaços urbanos, o raciocínio culmina na decisão de impossibilidade jurídica do pedido. Vale dizer, inexistindo respaldo no ordenamento, amparo legal para a pretensão aquisitiva em relação àquela porção de terra que se deduz em juízo, outro caminho não resta ao magistrado senão a extinção do feito sem julgamento do mérito, na forma do artigo 267, inciso VI, do Código de Processo Civil43. As posturas municipais, em nítida subversão hermenêutica, são elevadas a patamares superiores à legalidade constitucional, inclusive ao ponto de engendrar a carência das condições da ação de usucapião do possuidor. No entanto, se o texto da Constituição da República não especificou a dimensão mínima da área em que as espécies de usucapião constitucionais deveriam se dar, Por outro lado, nada impede que a sociedade de fato, que venha a registrar-se posteriormente, procure valerse, após a sua constituição legal, de direitos adquiridos anteriormente ao seu registro. II - O legislador de 1973 inovou ao atribuir, no art. 12-VII, CPC, capacidade para ser parte às sociedades sem personalidade jurídica. Assim, mesmo antes de sua constituição legal, é permitido à sociedade de fato postular em juízo os seus direitos. III - Assentando-se o tribunal de origem em mais de um fundamento para ter como possível a aquisição por usucapião de imóvel rural, cada um deles suficiente, por si só, para manter o acórdão, e não havendo impugnação de todos eles, não há como conhecer do recurso especial. (STJ, 4ª T., REsp 150.241/SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 02.12.1999). 43 “Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito: (…) VI- quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual”. 22 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 ao contrário, restringiu apenas o limite máximo nessas hipóteses – assim como o Estatuto da Cidade e o Código Civil procederam da mesma forma nos modelos de que cuidam –, certamente não faria sentido que o legislador municipal pudesse incluir tal dimensão em regras normativas de aquisição da propriedade imobiliária. Mesmo porque não têm os Municípios competência para legislar sobre direito civil – parcela que se inclui no rol privativo da União, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição de 198844. Parodiando antigo brocardo interpretativo, poder-se-ia sustentar que onde o constituinte não distinguiu, não cabe ao legislador municipal fazê-lo. E, pior: eventual aplicação combinada dos dispositivos da Constituição com as posturas municipais, em exercício interpretativo que estendesse as fronteiras da norma municipal para além de suas possibilidades finalísticas, ensejaria modelo absurdamente estreito de eficácia social da usucapião especial no Brasil, restrito a espaço confinado entre a metragem mínima municipal e a máxima constitucional. No caso do Município do Rio de Janeiro, como as regras de zoneamento exigem a metragem mínima de 225 metros quadrados e a Constituição impõe o limite máximo de 250 metros quadrados, conclui-se que o espaço quantitativo para a aquisição por usucapião especial residiria neste intervalo estreito entre um limite e outro, afastando-se todas as demais dimensões. Mais grave ainda: se, como ocorre em muitas cidades no país, o limite mínimo municipal for igual ou superior à metragem máxima constitucional, pronto: estaria inviabilizada, e sem condição de produzir qualquer efeito, a previsão constitucional de aquisição por usucapião, por força da regra de zoneamento municipal45. Com efeito, em atenção à hierarquia das leis e à supremacia da Constituição, há diversas decisões, em segunda instância, descartando a tese da 44 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I- direito civil, (…)”. Existe previsão na Lei 6.766/79 de metragem mínima do lote urbano em 125 m2 e indicação à legislação municipal, em termos vinculantes e cogentes, para que defina as áreas mínima e máxima dos lotes que sejam criados em seu território. Vejam-se as disposições a seguir: “Art. 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos: (...) II - os lotes terão área mínima de 125m² (cento e vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima de 5 (cinco) metros, salvo quando o loteamento se destinar a urbanização específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social, previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes; (...) §1o A legislação municipal definirá, para cada zona em que se divida o território do Município, os usos permitidos e os índices urbanísticos de parcelamento e ocupação do solo, que incluirão, obrigatoriamente, as áreas mínimas e máximas de lotes e os coeficientes máximos de aproveitamento”. A decisão do STJ mencionada na nota de rodapé nº 41, supra, infelizmente consagra a metragem mínima para a usucapião em cidade que adota o módulo mínimo urbano de 250 m2, fazendo tábula rasa da previsão constitucional da usucapião especial – Município de Socorro, Estado de São Paulo. 45 23 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 impossibilidade jurídica do pedido, em face de um status inferior das leis municipais em contraposição às normas federais – sejam de termos constitucionais ou infra46. Em rigor, no entanto, não parece haver propriamente conflito entre a norma constitucional e a municipal, a desafiar a tábua hierárquica que constitui o ordenamento. Trata-se, isso sim, de normas com vocações e funções bastante diferentes. As posturas municipais que determinam o zoneamento urbano destinamse ao bem-estar coletivo, à ordenação do território da cidade, ao fiel cumprimento de sua função social, com implicações e impactos na rede de transportes, nas relações de vizinhança, na segurança pública, no meio ambiente etc. Daí decorrem a legitimidade e a competência da municipalidade para legislar e administrar, mediante o exercício de seu poder de polícia, o território urbano, por outorga do sistema jurídico constitucional, a bem da eficácia de suas leis e ações administrativas – na regularização de empreendimentos urbanísticos e de parcelamentos urbanos submetidos à aprovação das autoridades públicas da prefeitura. Tais poderes decorrem diretamente do pacto federativo absorvido nas normas constitucionais (artigo 30, incisos I e VIII e artigo 182 da CF47), e são regulamentados nos termos do Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257, de 10.7.2001). Por outro lado, à normatização da situação específica da aquisição da propriedade imobiliária por conversão da posse, cumpridos os requisitos para tanto, destinase o comando do artigo 183 da Constituição48, do artigo 9o do Estatuto da Cidade, e dos artigos 1.238 a 1.244, do Código Civil. A função, aqui, é eminentemente distinta, a promover a conversão da posse em propriedade e permitir o acesso ao domínio por parte do possuidor, fortalecendo o estatuto de sua moradia. Representa a consagração dos anseios por justiça social, além de 46 TJRJ, 10ª C.C., Ap. Cív nº 00051742520048190202, Rel. Des. José Carlos Varanda dos Santos, julg.: 19.03.2014. Da fundamentação, extrai-se: “Neste sentido, ainda que o artigo 30, VIII da Constituição Federal e demais normas infraconstitucionais tenham possibilitado aos entes municipais legislar sobre o ordenamento do solo urbano, não se pode perder de vista que estas normas jurídicas não podem, e jamais poderiam inviabilizar a eficácia do artigo 183 da Constituição Federal, hierarquicamente superior (...) Por certo, o comando constitucional, de eficácia plena, apenas delimita o tamanho máximo do imóvel, e não o mínimo, justamente porque qualquer outra ressalva poderia obstar o acesso ao direito à moradia, princípio fundamental decorrente da proteção à dignidade da pessoa humana”. 47 “Art. 30. Compete aos Municípios: I- legislar sobre assuntos de interesse local; (…) VIII- promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”. “Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. 48 “Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. 24 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 eloquente exemplo da prevalência dos interesses extrapatrimoniais sobre os patrimoniais, na medida em que antepõe a função social da posse exercida pelo possuidor à propriedade do incauto titular; o direito à moradia à especulação dominial; a dignidade humana ao capital; o desempenho ativo da situação jurídica subjetiva à letra fria do título no Registro de Imóveis; a solidariedade ao individualismo; a substância à forma. E a forma de aquisição, originária, descaracteriza qualquer relação de transferência, por ato de autonomia privada, com a titularidade anterior – surgindo na verdade uma situação proprietária nova, que não guarda comunicação com a situação antecedente, permitindo a abertura de uma específica matrícula no Registro Geral de Imóveis, independente da cadeia registral existente. Neste processo, muitas vezes penoso, de obtenção do registro na serventia competente, o fato de se exigir requisito não contemplado no texto constitucional por si só vilipendia a isonomia substancial e obstaculiza o acesso à propriedade por parte das pessoas que mais carecem da tutela social da Constituição. Não se pode perder de vista que, em existindo na localidade eventuais imóveis que por qualquer circunstância tenham sido registrados com dimensões inferiores ao plano urbanístico, com maior eloquência restaria caracterizada a violação ao princípio da igualdade (formal), materializando-se a lesão, per se, na exigência do dimensionamento mínimo, por se atribuir tratamento desigual a pessoas que se acham na mesma situação jurídica49. Além disso, gize-se ad colorandum que, em termos dos modos de aquisição de propriedade, a usucapião representa exceção no contexto fático atual, não se podendo alegar risco de favelização generalizada em consequência do reconhecimento judicial pontual de um dos efeitos mais fortes da posse, a usucapião. Acresceu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em recentíssima ocasião, em sua Súmula da Jurisprudência Predominante, a de número 317, procurando pacificar os entendimentos em torno da concepção majoritária na corte estadual, nos seguintes termos: “É juridicamente possível o pedido de usucapião de imóvel com área inferior ao módulo mínimo urbano definido pelas posturas municipais”50. 49 Tal circunstância pode ser demonstrada por meio da apresentação de certidão do serviço registral competente, a atestar a existência de matrículas porventura abertas relativamente a imóveis com metragem abaixo do módulo mínimo. 50 A publicação da Súmula data de 18.08.2014, a partir do julgamento do Incidente de Uniformização de Jurisprudência n. 001314964.2005.8.19.0202, julgamento em 14.4.2014, Rel. Des. Marcus Quaresma Ferraz. 25 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 O teor do novíssimo enunciado interpretativo corresponde igualmente à tese que parece prevalecer no país, em meio à celeuma de decisões judiciais na matéria por todos os tribunais. Há, inclusive, número expressivo de acórdãos a tutelar o interesse do usucapiente, dando provimento, em segunda instância, aos recursos interpostos contra as sentenças terminativas prolatadas por impossibilidade jurídica51. A matéria chegou ao Supremo Tribunal Federal, a quem competirá dar a definição jurisdicional do problema, já tendo sido afeta ao Plenário, por decisão unânime da 1ª Turma52. Espera-se, em meio às expectativas de parte a parte, que o Tribunal reflita em sua decisão a prevalência dos valores existenciais e da justiça social, bem como leve em conta os avanços da teoria da interpretação, e caminhe no mesmo sentido da recente Súmula editada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. 6. Considerações finais Sob a perspectiva funcional, o contraste das duas vocações (ordenar o território da cidade e garantir acesso à propriedade pelo possuidor que preenche os requisitos da usucapião) permite entrever a concepção de sistema e a ideia de unidade na complexidade de fontes que constituem o ordenamento, dentro do qual ambas as regras podem e devem conviver em harmonia. O reconhecimento pontual da usucapião, em determinadas circunstâncias, passa ao largo da proibição de parcelamento do solo que crie lote com área inferior ao mínimo legal. Em termos da função de cada instituto, o conflito, que estruturalmente se coloca ao intérprete, acaba por se apequenar, se é que de conflito se possa falar. Insista-se, à exaustão: uma coisa é a limitação proveniente da legislação municipal para a implantação de lotes autônomos, direcionada ao parcelamento do solo urbano pelos diversos meios negociais; outra, completamente diversa, é a previsão da usucapião constitucional (ou da 51 Assim, TJRJ, 3ª CC, Ap. Cív. nº 0015350-79.2003.8.19.0208, Rel. Des. Elton Leme, julg. 15.1.2014; no mesmo sentido, TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, Ap. Cív. nº 0062548-25.2010.8.26.0224, Rel. Des. João Pazine Neto, julg. 10.9.2013; bem como TJPR, 18ª Câmara Cível, Ap. Cív nº 692.874-7, Rel. Fabian Scweitzer, julg. 8.6.2011; e, ainda, TJSC, Câmara Especial Regional de Chapecó, Ap. Cív nº 20120219266, Rel. Des. Eduardo Mattos Gallo Júnior, julg. 12.08.2013. 52 STF, 1ª T., RE 422.349/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 27.04.2010. A decisão foi lavrada nas seguintes palavras: “A Turma, por indicação do Ministro Marco Aurélio, decidiu afetar o processo a julgamento do Tribunal Pleno. Unânime. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski”. Em decisão mais recente, o Tribunal deu provimento a Agravo para subir Recurso Extraordinário em que se debate o mesmo tema: STF, 1ª T., AI 832718/RJ, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 16.12.2013, decisão em que se menciona a expectativa da definição do assunto pelo Plenário da Suprema Corte. 26 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 legislação ordinária federal), voltada à conversão da posse em propriedade, modo originário de obtenção do domínio53. Somente uma exegese que artificialmente forçasse a literalidade da norma municipal em detrimento de sua teleologia e função no sistema permitiria conclusão diversa. Negar aprovação, na esfera administrativa, a projeto de subdivisão de terra urbana que crie lote com área abaixo da prevista para o módulo mínimo, quando for o caso54, e chancelar, no plano jurisdicional, a aquisição (originária, sublinhe-se) por usucapião sobre parcela de terreno que dê origem a lote novo, ainda que inferior às dimensões do módulo mínimo, é o que se espera do Estado, em nome da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, sem que se possa vislumbrar qualquer contradição entre tais medidas. Recebido em 02/09/2014 1º parecer em 19/10/2014 2º parecer em 18/11/2014 53 Do ponto de vista da estrutura, supondo-se o choque entre os princípios e valores no caso, se o resultado da ponderação indicasse a prevalência do módulo mínimo na usucapião, restariam aniquilados os interesses do possuidor, que teria negado seu direito constitucional de acesso à propriedade, mesmo tendo reunido todos os pressupostos aquisitivos cabíveis. Tal aniquilamento não se mostra desejável. A ponderação, ao revés, permite a compatibilização, em certa medida, dos valores em confronto, em detrimento do sacrifício total de um polo. 54 O Superior Tribunal de Justiça houve por bem manter decisão judicial que negava a implantação de loteamentos residenciais com área menor que o módulo urbano (STJ, Corte Especial, AgRg em suspensão de liminar e de sentença nº 1.067-SP, Min. Rel. Cesar Asfor Rocha, julg. 18.11.2009). Neste julgado, o Ministro Relator fundamentou seu voto no argumento de que “cabe à administração pública tomar as medidas urgentes cabíveis para evitar criação de favelas, invasões e o aumento do número de família sem residência própria”. 27 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A PROPRIEDADE PRIVADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Private property in the Federal Constitution EroulthsCortiano Junior Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR Resumo: Trata este artigo de revelar e demonstrar sistematicamente os dispositivos constitucionais que têm como objeto a propriedade privada, colaborando para a compreensão do instituto em sua dimensão constitucional. Para tanto, a propriedade privada é apresentada como um instituto jurídico e não como uma categoria conceitual, com todos os riscos imanentes a esta abordagem. A visão institucional da propriedade irá permitir a sua compreensão integral no plano do direito civil-constitucional. Palavras-chave: Direito Civil; Propriedade privada, Constituição Federal; Direito de propriedade. Abstract: The following article intends to reveal and systematically scrutinize the constitutional provisions concerning private property in Brazilian Law, thereby collaborating to a wide comprehension of such right in its constitutional dimension. Private property is thus presented as a legal institution, rather than as a conceptual category, despite the risks inherent to this approach. The understanding of property rights as legal institutions allow its holistic comprehension, in a civil-constitutional perspective. Keywords: Civil law; Private property; Federal Constitution; Property. Sumário: 1. Os institutos civis – 2. A Constituição Federal e o direito civil – 3. As normas fundamentais da propriedade privada na Constituição de 1988 –4. A propriedade privada, a renda e a tributação – 5. Limitação, perdimento, desapropriação, expropriação da propriedade privada – 6. Competência legislativa em tema de direito de propriedade –7. Propriedade privada e propriedade pública –8. As normas instrumentais para defesa do direito de propriedade – 9. Síntese 1. Os institutos civis Enquanto a dogmática jurídica trabalha com regras e princípios, o refinamento teórico vale-se de instrumentos específicos de construção do conhecimento, tais como as categorias e os institutos jurídicos. Estes instrumentos, além de otimizadores da construção do conhecimento, são extremamente úteis para a aplicação prática do direito. No que diz respeito às categorias, o processo cognitivo do cientista identifica, diferencia e classifica objetos, organizando-os em grupos, classes ou categorias, 28 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 com um determinado propósito específico. No caso do jurista, a organização dos elementos jurídicos (normativos ou não) em categorias jurídicas, permite, além da reflexão epistemológica em si, a operação do direito na praxis. Nos termos colocados por LIPARI, a categorização conceitual é uma operação mental de classificação da experiência, voltado a agilizar o resultado interpretativo, de maneira funcional a um efeito aplicativo1. Os nexos construídos pelo jurista, a partir da observação da realidade social (vista na sua evolução cultural e histórica) e dos enunciados técnicos (os dados legais, doutrinários e jurisprudenciais), permitem-lhe criar, com racionalidade e razoabilidade, um esquema de pensamento que se constitui em instrumento notável de conhecimento da realidade e de operação do direito. No mesmo sentido, os institutos jurídicos apresentam-se como instrumentos úteis para a tomada de decisões jurídicas concretas a partir da integração de normas, princípios e regras. Como diz MENEZES CORDEIRO, o instituto é “um conjunto concatenado de normas e princípios que permite a formação típica de modelos de decisão”2. O jurista constrói os institutos jurídicos a partir da sistematização de normas que, em um mesmo ordenamento, digam respeito a um determinado e destacado objeto. Não se trata, porém, de apenas somar e agregar as normas que venham a compor o instituto: este exige uma articulação normativa sistemática, construída com forte unidade interna, apta a permitir a tomada de decisões concretas. A partir da qualidade de sua construção e de sua aceitação pela doutrina, um instituto tende a tornar-se ponto histórico de referência que repercute, por sua vez, em toda a cultura jurídica, para o presente e para o futuro. Tanto as categorias conceituais como os institutos jurídicos constituem uma proposta interpretativa e um princípio de orientação para a aplicação do direito, o que envolve, nitidamente, a prática social. Por outras palavras, as categorias e os institutos jurídicos, por ordenarem e organizarem a realidade jurídica, são instrumentos metodológicos imprescindíveis para a atuação do jurista teórico e prático, na medida em que permitem, de forma consistente e coerente, a tomada de decisões. 1 N. LIPARI. Le categorie del diritto civile. Milano: Giufrè, 2013, p. 21.A respeito da utilização dos conceitos e das categorias jurídicas para a compreensão da lógica normativa, sugere-se, também, D. MESSINETTI. Per un’ecologia dellamodernità: il destino dei concetti giuridici. L’apertura di R. Nicolò a situazioni complesse. Rivista Critica del Diritto Privato. Mar/2010, p. 23-38 e D.CARUSI. Principio di differenziazione e categorie giuridiche (l’Unione Europea, l'eguaglianza, il paradigma della legge). Rassegna di diritto civile 3/2010, p. 731 e ss. 2 CORDEIRO, Antonio Menezes. Teoria geral do direito civil. 1º volume, 2ª edição revista e actualizada, Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito, 1994, p. 294. 29 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Por se tratarem, as categorias e os institutos, de instrumentos juscientíficos, nada obsta que haja uma coincidência terminológica entre alguns deles. Exemplo disto é a propriedade privada. Para além de um direito subjetivo, a propriedade foi construída pela teoria como uma categoria conceitual e também como um instituto jurídico. É deste último sentido – a propriedade privada como instituto, ou o conjunto sistemático normativo da propriedade privada – que se cuida neste texto. 2. A Constituição Federal e o direito civil A Constituição se integra ao direito civil – e no direito civil – por seu valor posicional dentro da hierarquia normativa, por sua eficácia direta e pelos mecanismos de integração e aplicação da própria norma civil3. O método civil-constitucional, construído e em construção, se apresenta ao direito brasileiro e abre novos caminhos interpretativos4. Nesta perspectiva, parece importante verificar e sistematizar a base constitucional do instituto jurídico da propriedade privada (até porque esta base não se resume aos incisos XXII e XXII do artigo 5º e aos dispositivos que referem a sua função social). A concatenação da normativa constitucional pode revelar, por suas falas e também por seus silêncios, a construção dogmática e ideológica da propriedade no direito brasileiro contemporâneo. O que se propõe é isso: revelar, sistematizando criteriosamente, os dispositivos constitucionais que tem como objeto a propriedade privada. Neste aspecto, a Constituição Federal de 1988 é marcante. Ainda que o direito de propriedade tenha sido objeto de tratamento constitucional em cartas anteriores, é a Constituição de 1988 que permite uma efetiva construção de um conceito geral-concreto do direito de propriedade. Tenta-se, aqui, exclusivamente, com todos os riscos imanentes, revelar a propriedade como instituto jurídico. Este objetivo afasta (ou lança para outra oportunidade) a importante e imprescindível crítica ao instituto propriedade privada e às opções legislativas do legislador constitucional. O que se pretende, em síntese, é a realização de uma cartografia da propriedade constitucional, de maneira a compor (sob alguma mínima sistematização) as 3 Neste sentido, A. CARRASCO PERERA. El derecho civil: señas, imágenes y paradojas. Madrid: Tecnos, 1988. p. 72. 4 Para uma objetiva e didática referência sobre a constitucionalização do direito civil, remete-se para os escritos já clássicos de M. C. BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de direito civil, imobiliário, agrário e empresarial, v. 65, p. 21/32 jul/set/1993; G. TEPEDINO. Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 1 e ss.; e P. LOBO. Constitucionalização do direito civil. Revista de Informação Legislativa, n. 141, 1999, p. 99-109. 30 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 diversas normas constitucionais e colaborar para a compreensão do instituto em sua dimensão constitucional. Nesse andar, pode-se sistematizar o tratamento constitucional da propriedade sob os seguintes aspectos: (i) as normas fundamentais sobre o conteúdo do direito de propriedade e seu papel instrumental na consecução dos objetivos da República; (ii) as normas relativas à renda e à tributação; (iii) as normas relativas à limitação e expropriação da propriedade privada; (iv) as normas sobre competência legislativa acerca do direito de propriedade; (v) as normas que discriminam a propriedade pública da propriedade privada; e (vi) as normas instrumentais para a defesa do direito de propriedade. Esta classificação – como qualquer outra – é aleatória (no sentido de que são possíveis outras classificações) e, apesar de não isenta de crítica, permite uma primeira aproximação ao instituto jurídico da propriedade privada na Constituição Federal. 3. As normas fundamentais da propriedade privada na Constituição de 1988 A conformação fundamental do direito de propriedade é construída pela Constituição sob duas perspectivas: de um lado o reconhecimento do direito de propriedade e, de outro, a importância desse mesmo direito para os objetivos da República. Ao prescrever os fundamentos da República, o artigo 1º5 permite encontrar o direito de propriedade como um dos elementos úteis para o respeito à dignidade da pessoa humana, notadamente na perspectiva de um patrimônio mínimo compositor do mínimo existencial6. Como propriedade ou como acesso, e ressalvado todo o componente ideológico do direito de propriedade, o certo é que o artigo 1º da Constituição, lido em sistema com a demais normativa constitucional, abre portas para a relevância constitucional da propriedade privada. 5Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. 6 Sobre o tema, deve sempre ser consultado L. E. FACHIN. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, que vai além da propriedade fundada na apropriação formal ou registral, propondo uma “dimensão própria de patrimônio”; a obra, pois, refere-se a um espaço do viver muito mais alargado do que o da propriedade privada. 31 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Nesse mesmo caminho, o artigo 3º impõe o objetivo republicano de erradicação da pobreza7, sendo a garantia da propriedade privada um – e apenas um – dos instrumentos econômicos e sociais que podem ser trabalhados para o desenvolvimento nacional e para a diminuição das desigualdades materiais (aliás, outros dos objetivos estipulados no mesmo dispositivo constitucional). De mais a mais, o artigo 170, VII, estabelece como princípio da ordem econômica a “redução das desigualdades regionais e sociais”. Avulta, daí, a importância do artigo 5º da Constituição, ao reconhecer expressamente a garantia da inviolabilidade do direito à propriedade e não do direito de propriedade, o que pode ser entendido como a inafastabilidade das garantias de acesso à propriedade8. Passando-se as coisas assim, constata-se que o caput do artigo 5º da Constituição vem exatamente completar os contido nos artigos 1º e 3º. No rol dos direitos estabelecidos no artigo 5º, verifica-se a garantia da propriedade (e, por óbvio, também da posse) por intermédio da garantia da inviolabilidade da casa9 e da liberdade de locomoção da pessoa com os seus bens10. Os incisos XXII e XXIII da Constituição garantem, agora, o direito de propriedade desde que atendida sua função social11. Esta garantia remete automaticamente ao título VII da Constituição, que cuida “Da ordem econômica e social”. No ambiente da ordem econômica e social, há três momentos de importância. Em primeiro lugar, a Constituição estabelece (artigo 170) que a ordem econômica deve observar os princípios da propriedade privada e da função social da propriedade12. Em segundo lugar, o tratamento dado à política urbana, onde se destaca 7Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 8 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 9 Art. 5º (...) XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; 10 Art. 5º (...) XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; 11Art. 5º. (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; 12Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:I 32 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 (artigo 182) que a política de desenvolvimento urbano será executada pelo poder público municipal conforme diretrizes gerais fixadas em lei, respeitada a função social da propriedade imóvel urbana13. Em terceiro lugar, aparece a regulação da política agrícola e fundiária, onde a Constituição estabelece claramente o conteúdo da função social da propriedade imóvel rural, com seus elementos econômico, social e ambiental (artigo 18614). Não pode deixar de ser mencionado que a Constituição acata, em termos modulados, a proteção à criação intelectual como direito autoral patrimonializado e sucessível (artigo 5º, XXVII15). Outra norma da maior importância em matéria de propriedade privada (aqui como direito à propriedade e direito de propriedade) é a garantia do direito de herança, inamovível em seu pedestal de tradição (artigo 5º, XXX16). Por fim, em se tratando de garantia à propriedade, é necessário registrar os dispositivos que regulam o usucapião constitucional, marcado pela valorização da possetrabalho e pela proteção da moradia (artigos 18317 e 19118) Consuma-se, aqui, este ponto de partida: a propriedade privada é regulada e garantida na Constituição e é instrumento de atingimento dos objetivos da República. Não há erro em afirmar que a proteção do direito de propriedade decorre de sua importância para - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; (...) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; 13Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. (...) 14Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 15Art. 5º (...) XXVII - aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar; XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas; XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País; 16 Art. 5º (...) XXX - é garantido o direito de herança; Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 18 Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. 17 33 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 o atingimento dos objetivos nacionais estampados na Constituição. Há então um caminho de mão dupla: assim como a propriedade privada é importante para os objetivos nacionais, estes dependem do reconhecimento da propriedade privada funcionalizada. 4. A propriedade privada, a renda e a tributação A propriedade privada também é protegida na medida da proteção dos ganhos remuneratórios do trabalho, sob qualquer dimensão ou nomenclatura. A renda é elemento constitutivo da propriedade privada. Assim, por exemplo, a propriedade privada é antevista na proteção dos direitos sociais salariais (artigos 6º e 7º19) na iniciativa privada (com destaque para as garantias de salário mínimo, de piso salarial e de irredutibilidade 19Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)II - seguro-desemprego, em caso de desemprego involuntário; (...)IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;V piso salarial proporcional à extensão e à complexidade do trabalho;VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;VII - garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável;VIII - décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; (...) X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;XI participação nos lucros, ou resultados, desvinculada da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei;XII - salário-família pago em razão do dependente do trabalhador de baixa renda nos termos da lei; (...) XV - repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos;XVI - remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; XVII gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; (...) 34 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 salarial) e no funcionalismo público (artigos 3720 e 3921) espraiando-se pela remuneração da magistratura (artigo 95, III) e do Ministério Público (artigo 128, § 5º I, c). No que toca ao sistema tributário, e como corolário do direito à propriedade e do direito de propriedade, regulam-se os impostos sobre a propriedade (nos tradicionais exemplos do ITR, IR, IPTU, IPVA22-23-24), estabelecem-se limitações fundadas 20 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) X - a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; XII - os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo; XIII - é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público; XIV - os acréscimos pecuniários percebidos por servidor público não serão computados nem acumulados para fins de concessão de acréscimos ulteriores; XV - o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos arts. 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I. 21Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. § 1º A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: (...) § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.§ 4º O membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado e os Secretários Estaduais e Municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, X e XI.§ 5º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderá estabelecer a relação entre a maior e a menor remuneração dos servidores públicos, obedecido, em qualquer caso, o disposto no art. 37, XI. § 6º Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário publicarão anualmente os valores do subsídio e da remuneração dos cargos e empregos públicos. (...) 22Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: (...)III - renda e proventos de qualquer natureza; (...)VI - propriedade territorial rural; VII - grandes fortunas, nos termos de lei complementar. 23Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; (...)III - propriedade de veículos automotores. 24Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:I - propriedade predial e territorial urbana;II transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; (...) 35 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 na capacidade econômica do contribuinte (§ 1º do artigo 14525) e a proibição da tributação confiscatória ou limitadora da circulação da propriedade privada (artigo 15026). 5. Limitação, perdimento, desapropriação, expropriação da propriedade privada A Constituição, ao lado da garantia do direito de propriedade, estabelece as situações de limitação ao exercício deste direito e, mesmo, de expropriação (expressão usada, aqui, em seu sentido mais amplo) dele. De logo, registre-se que há total vedação à perda de direitos – o que abrange o direito de propriedade – por exclusiva discriminação religiosa, política ou filosófica (artigo 5º, VIII27). Os incisos XLV e XLVI do mesmo artigo 5º, ainda no plano dos direitos individuais, limitam – remetendo ao legislador ordinário – a pena de perdimento de bens28. A desapropriação da propriedade privada por necessidade ou utilidade pública assegura ao proprietário justa e prévia indenização em dinheiro (artigo 5º, XXIV29), podendo também o poder público, em caso de iminente perigo público utilizar a propriedade privada com eventual indenização posterior, conforme inciso XXV do artigo 5º30. Na mesma 25Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...)§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. 26Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)IV - utilizar tributo com efeito de confisco;V - estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público; (...) 27 Art. 5º (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; 28Art. 5º (...)XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; (...) 29 Art. 5º (...) XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição; 30 Art. 5º (...) XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; 36 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 direção, a decretação do estado de sítio permite a requisição de bens, gerando limitação temporária ao direito de propriedade (artigo 139, VII31). A desapropriação por interesse social, vinculada à reforma agrária, está prevista nos artigos 184 e 18532 da Constituição. Reservada à União, envolve a verificação do cumprimento da função social e permite o pagamento em títulos da dívida agrária (pagamento em dinheiro para as benfeitorias úteis e necessárias). Excluem-se – embora haja desenvolvida discussão sobre a constitucionalidade desta exceção – da desapropriação para reforma agrária, a pequena e média propriedade rural cujo proprietário não possua outra e a propriedade produtiva. Além disso, cabe desapropriação da propriedade imóvel urbana com pagamento de indenização em dinheiro ou em títulos da dívida pública em caso de seu inadequado aproveitamento (artigo 18233). A Constituição também prevê a expropriação da propriedade privada sem indenização, nos casos de cultivo de cultura ilegal ou exploração de trabalho escravo (artigo 24334). E não poderá ser objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes da própria atividade produtiva a pequena propriedade rural trabalhada pela família (artigo 5º, XXVI35). 31Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: (...) VII - requisição de bens. 32Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei. § 1º - As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro. (...) Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II - a propriedade produtiva. Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social. 33Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes .(...) § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro. § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais. 34 Art. 243. As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. 35 Art. 5º (...) XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento; 37 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 6. Competência legislativa em tema de direito de propriedade Competindo à União legislar sobre direito civil (artigo 22, I36), cabe a ela legislar sobre direito de propriedade, com papel atribuído ao Congresso Nacional (artigo 4837). Excepcionalmente – rectius: em casos de urgência e relevância – o Presidente da República poderá legislar sobre propriedade por intermédio de medida provisória, exceto para seqüestro ou detenção de bens, poupança ou ativos financeiros. Esta assertiva decorre de análise das matérias sobre as quais é vedada a utilização de medidas provisórias, não estando entre elas a legislação civil (mas constando, por exemplo, a legislação sobre direito penal e processual38). 7. Propriedade privada e propriedade pública A discriminação entre bens públicos e privados envolve diretamente a distinção – e o consequente regime jurídico diferenciado – entre propriedade privada e propriedade pública. A Constituição atribui ao poder público uma série de bens, discriminandoos da propriedade privada. Pertencem à União os bens arrolados no artigo 20 (por exemplo, as terras devolutas indispensáveis à defesa do país, os lagos, rios e correntes de água em suas terras ou que banhem mais de um estado ou sirvam de limites com o estrangeiro, com os respectivos terrenos marginais e praias fluviais, as ilhas oceânicas e as costeiras, as cavernas 36Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;II - desapropriação; (...) 37 Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: 38Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; II - que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; (...) 38 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 subterrâneas etc.39). Na propriedade da União também se inscrevem as jazidas, recursos minerais e potenciais de energia hidráulica, nos termos do artigo 17640. Nesse ponto, chamam especial as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Elas são consideradas bem da União (artigo 20, XI41) e submetem-se a regime especial. Os indígenas têm direito originário sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles, as quais são consideradas bem da união, e lhes é assegurado a posse permanente e o usufruto das riquezas respectivas. Tais terras são inalienáveis e indisponíveis, sendo considerados nulos e extintos quaisquer atos negociais que envolvam a ocupação, o domínio e a posse dessas terras (artigo 23142). O artigo 26 elenca as terras de propriedade dos estados membros da federação (por exemplo, as terras devolutas que não sejam da União43) e o artigo 30 permite 39Art. 20. São bens da União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VI - o mar territorial; VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; VIII - os potenciais de energia hidráulica; IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; (...) 40 Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. 41Art. 20. São bens da União: (...)XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. 42Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º. 43Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados: I - as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União; II - as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, excluídas aquelas sob domínio da União, Municípios ou 39 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 ao Município o ordenamento territorial, o que pode repercutir no exercício da propriedade privada44, em consonância com o artigo 182 da Constituição. Ainda quanto às terras públicas importa referir não serem passíveis de usucapião (artigos 183, § 3º45 e 191, parágrafo único46), bem como, em relação às terras públicas e devolutas, a obrigatoriedade de seu ingresso no patrimônio de particulares ser concatenado com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária (artigo 18847). 8. As normas instrumentais para defesa do direito de propriedade A garantia do direito de propriedade depende de atuação estatal e, neste aspecto, há variada normativa constitucional instrumentalizada, direta ou indiretamente, para esta garantia. Assim, por exemplo, o âmbito da jurisdição do Estado (artigo 5º, XXXV48), a proteção ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (artigo 5º, XXXVI49), e a garantia do devido processo legal, com referência expressa ao perdimento de bens (artigo 5º LIV50). Opera no mesmo sentido o artigo 5º, LXXVI, garantidor do acesso à justiça com gratuidade51. 9. Síntese terceiros; III - as ilhas fluviais e lacustres não pertencentes à União; IV - as terras devolutas não compreendidas entre as da União. 44Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; (...) VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;(...) 45Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. § 1º - O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. § 2º - Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. § 3º - Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. 46Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinquenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade. Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. 47 Art. 188. A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária 48 Art. 5º (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; 49 Art. 5º (...) XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; 50 Art. 5º (...)LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal; 51 Art. 5º (...) LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; 40 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Partindo da ideia de instituto jurídico como a sistematização normativa acerca de um determinado objeto, pretendeu-se revelar o instituto jurídico da propriedade privada na Constituição. A ausência de aprofundamento sobre aspectos desta regulação constitucional e de crítica ao instituto não significa superficialidade deste escrito, mas opção. A concatenação – tentada aqui – das normas constitucionais sobre a propriedade privada pretende ser útil justamente para a construção da crítica sobre o instituto. Espera-se que este texto realmente tenha esta utilidade. Recebido em 21/08/2014 1º parecer em 10/09/2014 2º parecer em 08/11/2014 41 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 O DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL E O LIVRE DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE DO IDOSO: O DILEMA DE LEAR Civil Constitutional Rights and the Free Development of the Elderly Personality: Lear's Dilemma Guilherme Calmon Nogueira da Gama Mestre e Doutor em Direito pela UERJ. Desembargador Federal do TRF da 2a Região. Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. Professor Associado da UERJ e Professor Permanente do PPGD da UNESA. Pesquisador CNPq, UNESA e UERJ. João Gabriel Madeira Pontes Integrante do Grupo de Pesquisa "Direitos da personalidade da pessoa idosa" da UERJ. Pedro Henrique da Costa Teixeira Integrante do Grupo de Pesquisa "Direitos da personalidade da pessoa idosa" da UERJ Resumo: O artigo apresenta abordagem doutrinária a respeito dos direitos da personalidade da pessoaidosa com emprego da metodologia civil constitucional.O tema leva em conta a autonomia da pessoa idosa e busca apontar parâmetro que permita solucionarquestões atuais tais como a escolha do tratamentomédico e a releitura do regime das incapacidades Palavras-chave: Direito Civil; Direitos da personalidade; Direito do idoso; Conflitos solucionáveis. Abstract: The paper presents doctrinal approach regardingpersonality rights of the elderly with use of constitucional private methodology. The theme takes into account the autonomyof elderly people and seeks to identify the parameter that willaddress current issues such as the choice of medical treatmentand the rereading of the system of disability. Keywords: Private Law; Personality rights; Law of the elderly; Solvable conflicts. Sumário: Introdução: a metodologia civil-constitucional a partir de 1988 – 1. Os direitos da personalidade do idoso à luz da Constituição Federal de 1988 – 2. Isonomia e autonomia no desenvolvimento da personalidade do idoso – 3. Em busca de um parâmetro – 3.1. O regime das incapacidades no CC/02 – 3.2. A possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual será submetido – 4. Conclusão: um cidadãoemancipado 42 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 "O, sir, you are old; Nature in you stands on the very verge Of her confine: you should be rul'd and led By some discretion, that discerns your state Betterthanyouyourself."1 Introdução: a metodologia civil-constitucional a partir de 1988 No clássico shakespeariano, Lear, idoso e rei da Bretanha, decidiu dividir seu reino, ainda em vida, entre suas filhas, desde que elas provessem o seu sustento. No entanto, a personagem não imaginava que viria a ser traída e rejeitada pelas herdeiras, até que, em miséria, a tragédia se consumasse. A hipótese em tudo se assemelha à causa de revogação da doação contemplada na legislação civil brasileira em vigor. Visto como um ônus e peso a ser suportado, improdutivo e enfraquecido, a situação ficcional de Lear muito se assemelha a de inúmeros idosos no Brasil e em vários outros países. Reflete-se, assim, uma visão de mundo que não diferencia “idoso” e “senil”,2crescente na medida em que, nas relações interindividuais,valoriza-se mais o patrimônio e a capacidade produtiva e laboral do que a existência do ser em si, como pessoa humana. No entanto, a Constituição de 1988 (CF/88) trouxe ao centro da ordem jurídica, posicionando-o em seu vértice axiológico e normativo, o conceito jurídico de dignidade humana, alçado ao patamar de fundamento da República. Não se pode pensar a dignidade da pessoa humana sem explicitar seu elemento primordial, a autonomia, isto é, a possibilidade de autodeterminação do indivíduo como sujeito de direitos, racional e livre para desenvolver sua personalidade.3 Conceber a autonomia dessa forma significa romper com o pensamento exposto na epígrafe deste artigo, o qual não passa de puro, simples e odioso paternalismo fundado em critério cronológico que, ao vincular a idade à senilidade, retira do idoso a esfera decisória no que tange aos rumos de sua própria vida. Não se tratam de meras elucubrações, uma vez que o próprio Código Civil de 2002 (CC/2002),editado e promulgado sob o signo 1 SHAKESPEARE, William. King Lear. Nova Iorque: American Book Company, 1903, p. 76. AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2012, p. 26. 3 BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, vol. 919. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 160. 2 43 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 da CF/88, adota, em seu artigo 1.641, II, esse modelo ao regrar hipóteses de necessidade legal do regime de separação obrigatória de bens.4 A regra prevista no referido dispositivo exemplifica a necessidade de releitura de todo o sistema civilista à luz da Carta de 1988, conforme a metodologia que se convencionou chamar civil-constitucional. Diante dessa perspectiva constitucionalizada, cabe uma breve análise histórica da evolução do pensamento civilista brasileiro no século XX. O Código Civil de 1916 foi editado no auge do liberalismo jurídico, tendo por destinatário principal o homem burguês, e por institutos paradigmáticos, o contrato e a propriedade, sob o signo do dogma da completude. No entanto, a unidade do Código foi desafiada pela realidade social de duas guerras mundiais, por uma crise econômica global e pela consagração de ideologias que propunham a intervenção do Estado na economia, fatos que provocaram atividade legislativa intensa, consubstanciada em leis extravagantes.5Esse fenômeno foi estudado por Orlando Gomes6 como a transição do monossistemarepresentado pelo Código Civil, que compunha um macrossistema ao tratar, sob o paradigma do dogma da completude, todos os temas civilistas, para um polissistema,dentro do qual o Código de 1916 passou a conviver com leis especiais que lhe “dilaceravam” a disciplina de matérias do Direito Civil, compondo microssistemas normativos.7 A ruptura em relação ao já mencionado dogma da completude, que situava o Código Civil na posição de centro regulador das relações da vida privada, acarretou a necessidade de reconstrução da unidade do sistema. Neste sentido, parte da doutrina8passou a defender que o cerne dessa unidade se deslocara para a Carta de 1988, em deferência à hierarquia das fontes do direito, que postula a superioridade da Constituição como norma fundante do ordenamento jurídico. A CF/88 não seria, sob essa ótica, composta de meros limites à atividade legislativa, filtrando a inconstitucionalidade das normas legais.Em outras palavras, seus 4 Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: (...) II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos; 5 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Renovar: Rio de Janeiro, 2008, p. 4. 6 GOMES, Orlando. A Agonia do Código Civil. In: Revista de Direito Comparado Luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, n. 10, 1986, p. 5. 7 TEPEDINO, op. cit., p. 12. 8 MORAES, Maria Celina Bodin de. Namedida da pessoa humana: estudos de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 8. 44 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 princípios e regras poderiam (e deveriam) ser aplicados como normas jurídicas.9 Consectário dessa compreensão, também não seriam os princípios constitucionais meras orientações políticas a inspirar o legislador ordinário. Mais que isso,sua normatividade atenderia à função promocional que a Constituição assumia,incidindo sobre as relações privadas de modo imediato, por meio de cláusulas gerais, ou mediato, através da releitura dos institutos e das regras infraconstitucionais.10 A aplicabilidade da norma constitucional ao caso concreto, em ambas as situações, desafia a lógica tradicional da divisão entre direito público e direito privado,11implicando, assim, uma crescente comunicação entre esses grandes ramos do Direito. Dessa maneira, os influxos das normas constitucionais conformam a incidência e a interpretação das normas infraconstitucionais, isto é, a programação da Carta de 88, voltada à consagração da dignidade da pessoa humana e ao livre desenvolvimento de sua personalidade, irradia seus efeitos para todo o ordenamento jurídico. A prevalência dessas situações existenciais, no entanto, demanda uma atuação positiva do Estado, no sentido de universalizar o acesso e o exercício dos direitos fundamentais e de resguardar novos sujeitos de direito historicamente discriminados ou ignorados.12Desse modo, surgem estatutos voltados à concretização das promessas constitucionais de igualdade e livre desenvolvimento da personalidade, cujos destinatários são sujeitos jurídicos tão distintos quanto o consumidor,a criança e o adolescente ou o idoso. Busca-se, assim, aprofundar a abordagem do papel que a Lei Maior e a metodologia civil-constitucional exercem na temática da autonomia da pessoa idosa e de suas correspondentes situações jurídicas, em especial as de natureza existencial. 1. Os direitos da personalidade do idoso à luz da Constituição Federal de 1988 9 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 571-572. 10 Ibidem, pp. 589-590. Veja-se também TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Renovar: Rio de Janeiro, 2008, pp. 19-20. 11 MORAES, op. cit., pp. 9-10. 12 MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de ações afirmativas em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao consumidor idoso. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 186. 45 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Ao longo dos anos, a doutrina13 elucubrou acerca dos parâmetros que poderiam ser adotados para se definir quem é o idoso, tendo em vista a necessidade que o Direito apresentava de delimitar juridicamente esse grupo social. Nesse contexto, destacaram-se diversos critérios para fazê-lo, dentre eles o psicobiológico, o qual se centra não na faixa etária da pessoa, e sim nas suas condições físicas e mentais, e o socioeconômico, cuja principal preocupação é a análise da situação financeira do indivíduo. Contudo, a nosso ver, nenhum critério é capaz de delinear melhor a silhueta da figura jurídica em tela que o etário, o qual, por causa de sua patente objetividade, garante segurança e previsibilidade ao tratamento legal dado aos idosos. Tal orientação foi acertadamente acolhida tanto pela Organização Mundial de Saúde (OMS)14 quanto pelo ordenamento jurídico brasileiro. No país, para fins jurídicolegais e de políticas públicas, consideram-se idosas, nos termos do artigo 1º, da Lei no. 10.741/03 – conhecida como Estatuto do Idoso – todas as pessoas com idade igual ou superior a 60 anos15; e a elas são garantidos, aos moldes do CC/02 e da CF/88, todos os direitos da personalidade, não só os legalmente previstos como também os inerentes à própria sistemática civil-constitucional16. Em linhas gerais, os direitos da personalidade – também denominados personalíssimos – são releituras dos direitos humanos. Enquanto estes apelam ao contexto das liberdades e das relações públicas, os primeiros “abrangem os aspectos intelectual e moral da pessoa (englobam os direitos à honra, ao nome, à imagem, ao segredo, à liberdade de religião e consciência, etc.)”17. No entanto, vale salientar que o termo aqui empregado para caracterizá-los – qual seja, “releituras” – não deve ser compreendido sob uma lógica de absoluta adstrição, já que não há uma total correspondência entre as duas categorias de direitos em exame. A título exemplificativo, o direito à propriedade, que é direito humano, 13 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 63. 14 Ibidem, p. 64. 15 Apesar de a idade ser, com efeito, o melhor critério para se definir quem é o idoso, conforme já expusemos acima, vale ressaltar que, a nosso ver, a idade fixada – qual seja, 60 anos – não é a mais adequada, uma vez que há muitas pessoas com 60 anos ou mais que ainda mantêm o mesmo ritmo de vida que uma pessoa de 40, 50 anos. Nesse sentido: Ibidem. 16 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. São Paulo: Atlas, 2011, p. 217. 17 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2006, p. 29. 46 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 não compõe o rol de direitos personalíssimos, eis que apresenta um conteúdo eminentemente patrimonial18. Como foi mencionado anteriormente, os direitos da personalidade não são típicos, isto é, transcendem, em qualidade e quantidade, o elenco estabelecido em lei19. Do mesmo modo, também não pertencem exclusivamente à classe dos direitos subjetivos, uma vez que podem incidir sobre as mais variadas situações jurídicas (e.g.: poder jurídico, direito potestativo, faculdade, ônus)20. Dito isso, não há dúvida de que, dentro do universo do Direito brasileiro,só foi possível atribuir aos direitos personalíssimos tais peculiaridades graças à cláusula geral de tutela da personalidade, cujos contornos normativos ganharam forma através das letras dos artigos 1º, inciso III, 3º, inciso III e 5º, § 2º, todos da CF/88. Tal fato comprova que, com efeito, a seara civilista – à qual pertencem por excelência os direitos personalíssimos – está sujeita às benéficas irradiações da Carta Maior. Sob uma perspectiva talvez menos específica – porém igualmente bastante relevante –, pode-se dizer que os direitos em questão também devem o não exaurimento de seu campo semântico ao texto legal a outra cláusula geral: aquela referente à tutela da pessoa humana. Esta constitui a concretização de um dos princípios mais caros à ordem jurídicoconstitucional deste país, a dignidade humana21. Não é, pois, tarefa árdua distinguir o liame que existe entre o escopo dos direitos da personalidade e a dignidade, já que ambos remetem à devida valorização da dimensão existencial da vida dos indivíduos. Nesse sentido, pode-se afirmar que um dos resultados mais importantes do encontro entre os direitos da personalidade e o princípio da dignidade humana é o conceito de livre desenvolvimento da personalidade, tutelado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 194822. Ao contrário de outros países, como Espanha, Portugal e Colômbia, no Brasil, o Constituinte optou por não positivar essa essencial garantia 23. Mesmo assim, o 18 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 584. 19 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito Civil: Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2006, p. 32. 20 MORAES, Maria Celina Bodin de. O Princípio da Dignidade Humana. In: MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Princípios do Direito Civil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 51. 21 Ibidem, idem. 22 Artigo XXII – Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade (grifo nosso). 23 MARTINS, Thiago Penido; SAMPAIO JR, Rodolpho Barreto. O direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade: contributo do direito comparado para o ordenamento jurídico brasileiro. In: Conpedi. (org.). Anais do XX Congresso Nacional do Conpedi. Florianópolis: Editora Boiteux, 2011, v. 1, p. 8091-8111. 47 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 livre desenvolvimento da personalidade é um princípio que, apesar de implícito, tem sua força e sua aplicabilidade asseguradas pela estrutura normativa da dignidade humana24, sobretudo se esta for analisada sob o prisma da autonomia. É imperioso ressaltar que a noção de autonomia à qual se fez referência acima não se limita a uma perspectiva meramente negativa. Em outras palavras, desde o advento do WelfareState, tornou-se impossível imaginar qualquer forma de liberdade que se realizasse apenas sob uma perspectiva absenteísta no que concerne à atuação estatal. A rigor, com vistas a uma integral e perfeita concretização de todos os direitos fundamentais, também se deve recorrer a um comportamento estatal proativo, voltado à proteção e à promoção desse grupo de direitos. Nesse sentido, afirma Ingo Sarlet: Com efeito, já se fez menção que todos os direitos fundamentais (inclusive os assim chamados direitos de defesa) (...) são, de certo modo, sempre direitos positivos, no sentido de que também os direitos de liberdade e os direitos de defesa em geral exigem, para sua tutela e promoção, um conjunto de medidas positivas por parte do poder público e que sempre abrangem a alocação significativa de recursos materiais e humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral.25 Desse modo, pode-se afirmar que a autonomia, faceta constitutiva do princípio da dignidade humana e uma das bases para o livre desenvolvimento da personalidade, efetiva-se de duas maneiras. Por um lado, não é possível impor restrições injustificadas ao seu pleno exercício, bem como é imprescindível salvaguardá-la de qualquer ação – oriunda do Estado ou de particulares26 – capaz de comprometer sua higidez. Por outro, também é muito relevante que os entes públicos, em parceria com a própria sociedade, direcionem esforços no sentido de promover, no plano dos fatos, o conteúdo da garantia em tela. Para resumir essas duas ideias, os teóricos costumam se referir aos termos liberdade formal e liberdade material, respectivamente. 24 LUDWIG, Marcos de Campos. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade na Alemanha e possibilidades de sua aplicação no direito privado brasileiro. In: MARTINS-COSTA, Judith (org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: RT, 2002, p. 292. 25 SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Sociais como Direitos Fundamentais: contributo para um balanço aos vinteanos da Constituição Federal de 1988. In: BINENBOJM, Gustavo; SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988.Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 479-510. 26 “O Estado e o Direito assumem novas funções promocionais e se consolida o entendimento de que os direitos fundamentais não devem limitar o seu raio de ação às relações políticas, entre governantes e governados, incidindo também em outros campos, como o mercado, as relações de trabalho e a família”. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 323. 48 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Dentro do mesmo contexto, devido à sua condição de direito fundamental, a igualdade também pode ser concebida tanto pelo viés formal quanto pelo viés material, conforme será explicitado a seguir. 2. Isonomia e autonomia no desenvolvimento da personalidade do idoso O princípio da dignidade humana, já delineado nos dois itens anteriores, postulaque todos os homens se igualam, pois dotados do mesmo valor intrínseco, são merecedores de igual respeito e consideração por seus semelhantes.27O denominador comum a todos os indivíduos, atributivo da dignidade, corresponde à autonomia, derivada de sua própria consciência e razão. No entanto, como aponta Sarlet,28não é o exercício em si dessas faculdades, mas a potencialidade de seu exercício, que define o ser humano. Caso se adotasse a posição inversa, estariam excluídos da humanidade todos os que não pudessem, definitiva ou transitoriamente, exercer a razão ou estivessem em estado de inconsciência.29Nesse sentido, mesmo que se reconheça a diferença entre senilidade e senescência,30 o idoso estaria em posição desvantajosa, pois o avanço da idade tende à gradativa fragilização de seu organismo, tornando-o mais suscetível à superveniente diminuição do discernimento, isto é, potencializando sua vulnerabilidade.31 Assim, incide a isonomia como componente do conceito da dignidade para filtrar discriminações odiosas contra o ser humano vulnerável. É a vulnerabilidade o elemento comum aos novos sujeitos de direito, a exemplo do consumidor, da criança e adolescente e do idoso.32Consubstancia um estado de potencial exposição a riscos que 27 BARROSO, Luis Roberto. “Aqui, lá e em todo lugar”: A dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais, vol. 919. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 163. 28 SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp. 101 e 102. 29 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A Nova Filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 128. 30 AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2012, p. 26 e pp. 99-100. 31 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Pessoa Idosa no Direito de Família. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo (org.). Temas Contemporâneos de Direito das Famílias. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2013, pp. 256-257. 32 BARBOZA, Heloisa Helena. O Princípio do Melhor Interesse do Idoso. In: Tânia da Silva Pereira; Guilherme de Oliveira. (org.). O Cuidado como Valor Jurídico. 1ª ed.Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense, 2007, p. 60. 49 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 possam lesar pessoa em situação jurídica ou substancialmente desigual perante seus semelhantes. Diante da vulnerabilidade potencializada que caracteriza a pessoa idosa, o Estatuto do Idoso foi editado com o fito de se instrumentalizar como contrapeso jurídico à desigualdade material, a oferecer proteção integral a esse especial estágio de desenvolvimento de sua personalidade. Conforme seu artigo 8º, o direito ao envelhecimento é personalíssimo, cabendo-se entender, pelas normas dos artigos 9º e 10, que o Estado Social de Direito deve assegurar o mínimo existencial para o livre desenvolvimento de sua personalidade.33 Em contrapartida, se de um lado a vulnerabilidade do idoso demanda uma atuação protetiva por parte do Estado, por outro essa proteção não deve sufocar as esferas de liberdade da pessoa. Esse é o dilema de Lear, centro de um embate entre a autonomia inerente ao ser e a heteronomia (paternalismo) da vontade de terceiros sobre ele. Um exemplo de regra que encampa a heteronomia sobre o idoso está no artigo 1.641, II, do Código Civil de 2002, que define a obrigatoriedade do regime de separação de bens no casamento para o idoso com mais de 70 anos. Antes da edição da Lei nº 12.344/10, a idade prevista no inciso era de 60 anos. Essa regra foi merecidamente criticada por parte da doutrina,34que a entende inconstitucional por estabelecer uma restrição excessiva ao idoso, em um capítulo tão íntimo à narrativa de sua vida, que é o matrimônio. É fato notório que a idade per se não acarreta a incapacidade, nem minora o discernimento para as decisões relevantes da vida civil, devendo incidir princípios constitucionais como a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana para a devida filtragem do artigo.35 33 Nesse sentido, ainda que não explicite os artigos, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul utilizou o art. 8º do Estatuto do Idoso como parâmetro interpretativo para a destinação de idosa que viva em más condições para abrigo. Transcreve-se trecho da ementa de TJRS, Ap. 70054659008, Relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29/08/2013: “Verificada a negligência dos anteriores cuidadores da interdita, que residia em moradia desorganizada e em precárias condições de higiene, impõe-se a manutenção da medida de proteção de abrigo em entidade, prevista no art. 45, inc. V, do Estatuto do Idoso, como forma de resguardar os interesses e direitos da curatelada, permitindo-lhe um envelhecimento saudável e em condições de dignidade”. No Tribunal de Justiça de São Paulo, relativo a aplicação desse direito a planos de saúde, veja-se TJSP, Ap. 014470908.2012.8.26.0100, Relator Des. Carlos Alberto Garbi, j. 31/10/2013: “Direito ao envelhecimento (art. 8º). Direito que tem sucedâneo no princípio da dignidade da pessoa humana e no principio do solidarismo”. 34 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Pessoa Idosa no Direito de Família. In: CORDEIRO, Carlos José; GOMES, Josiane Araújo (org.). Temas Contemporâneos de Direito das Famílias. 1ª ed. São Paulo: Pillares, 2013, p. 259. Veja-se também STEFANO, Isa Gabriela de Almeida; RODRIGUES, Oswaldo Peregrina. O idoso e a dignidade da pessoa humana. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 244. 35 A jurisprudência é dividida a respeito do tema. O TJSP se manifestou recentemente pela inconstitucionalidade ou flexibilidade do art. 1.641, II, CC/2002, quando respeitada a legítima: TJSP, Ap. nº 0399286-78.2009.8.26.0577, Relator Des. Fábio Quadros, j.19/09/2013; e TJSP, Ap. nº 001922250 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 O STJ se defrontou com questão relativa ao artigo 1.641, II, CC/2002 no que dizia respeito à extensão da norma à união estável.36 Trata-se de decisão que merece críticas porque, além de rechaçar a inconstitucionalidade do dispositivo, reiteradamente confunde senescência (o estágio de desenvolvimento do idoso) com senilidade (a doença também conhecida por demência), o que reforça a associação entre idoso e incapacidade.No voto que trata a respeito da constitucionalidade do inciso, alega-se que, por ser um direito patrimonial, nada obsta a restrição imposta pelo dispositivo em razão de seu caráter protetivo. No entanto, como se afirma acima, não se cuida de um mero direito patrimonial, como obrigações contratuais ou direitos reais, mas de uma norma íntima à regulação do matrimônio e da condução da vida em comum dos cônjuges, e por consequência, abarcada pelo livre desenvolvimento da personalidade, isto é, por um direito de cunho existencial. O Recurso Especial que brevemente se analisou acima demonstra a necessidade, objeto deste artigo, de se reforçar critérios judiciais para a avaliação da constitucionalidade de normas referentes ao idoso, a exemplo da já reconhecida prevalência de situações existenciais sobre as patrimoniais. 3. Em busca de um parâmetro Por ora, faz-se mister frisar alguns pontos importantes, já abordados com maior profundidade neste texto, antes de se avançar na análise. Em primeiro lugar, está claro que o idoso é vulnerável, e por isso, precisa receber especial atenção da sociedade e do poder 17.2010.8.26.0482, Relator Des. Paulo Alcides, j. 13/03/2012. O mesmo tribunal, ainda em 2013, apresenta acórdão manifestamente a favor da regra insculpida no referido artigo, o que demonstra a atualidade e controvérsia sobre o tema, em TJSP, AgI. nº 0149935-66.2013.8.26.0000, Relator Des. João Batista Vilhena, j. 06/11/2013. 36 STJ, REsp. n. 1090722 / SP, Relator Min. Massami Uyeda, j. 02/03/2010. Ementa:“RECURSO ESPECIAL - UNIÃO ESTÁVEL - APLICAÇÃO DO REGIME DA SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS, EM RAZÃO DA SENILIDADE DE UM DOS CONSORTES, CONSTANTE DO ARTIGO 1641, II, DO CÓDIGO CIVIL, À UNIÃO ESTÁVEL - NECESSIDADE - COMPANHEIRO SUPÉRSTITE PARTICIPAÇÃO NA SUCESSÃO DO COMPANHEIRO FALECIDO QUANTO AOS BENS ADQUIRIDOS NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO ESTÁVEL - OBSERVÂNCIA - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 1790, CC - RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I - O artigo 1725 do Código Civil preconiza que, na união estável, o regime de bens vigente é o da comunhão parcial. Contudo, referido preceito legal não encerra um comando absoluto, já que, além de conter inequívoca cláusula restritiva ("no que couber"), permite aos companheiros contratarem, por escrito, de forma diversa;II - A não extensão do regime da separação obrigatória de bens, em razão da senilidade do de cujus, constante do artigo 1641, II, do Código Civil, à união estável equivaleria, em tais situações, ao desestímulo ao casamento, o que, certamente, discrepa da finalidade arraigada no ordenamento jurídico nacional, o qual se propõe a facilitar a convolação da união estável em casamento, e não o contrário.” O TJRS já apresenta julgados que expressamente seguem a orientação derivada desse acórdão: TJRS, Ap. nº 70043554161, Relator Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 04/08/2011; e TJRS, Ap. nº 70050371772, Relator Des. AlzirFelippeShmitz, j. 25/10/2012. 51 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 público no tocante à tutela de sua integridade física e psíquica. Contudo, também é igualmente notável a sua condição de sujeito de direitos. Por conseguinte, sua vontade no momento de definir os rumos de sua própria vida é soberana e deve ser respeitada, eis que sua autonomia e sua liberdade gozam de pleno respaldo no ordenamento brasileiro. Não obstante, a prática social, muitas vezes, ignora o fato de o idoso ser capaz de escrever a sua própria biografia. Infelizmente – e esta é uma marca da civilização ocidental como um todo –, ainda existe intenso preconceito por parte dos demais membros da sociedade. As famílias, assumindo uma posição altamente autoritária, resolvem, em grande parte dos casos, assumir o comando da vida de seus patriarcas e de suas matriarcas, relegando-os ao papel de meros coadjuvantes de suas próprias histórias. Esse cenário deplorável se dá porque, em geral, costuma-se nivelar a regra pela exceção, ou seja, a pessoa em processo de envelhecimento – etapa irremediável da experiência humana – é vista como um ser incapaz de agir, de sentir e de pensar quando, na verdade, a idade mais avançada não implica necessariamente debilidade. Nesse contexto, é preciso estabelecer um critério que, deferente à metodologia civil-constitucional vigente, seja capaz de anular esta visão paternalista de que o idoso não é apto a se autogovernar. Em outras palavras, deve-se dar uma resposta juridicamente coerente ao dilema de Lear. A nosso ver, portanto, o melhor parâmetro a ser utilizado na interpretação e na aplicação das normas legais e constitucionais as quais podem incidir sobre situações que envolvam os direitos dos idosos é o livre desenvolvimento da personalidade, como forma de sempre valorizar a esfera existencial desses indivíduos. Para fins de exame, destaca-se um complexo de situações em que a autonomia do idoso é posta à prova, sobretudo devido à adoção, por parte de familiares, de médicos ou de outras pessoas próximas a ele, de uma postura ofensiva aos seus direitos mais fundamentais. Tais situações envolvem (i) o regime das incapacidades previsto no CC/02 e (ii) a possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual será submetido. Todas elas precisam ser relidas sob o prisma do livre desenvolvimento da personalidade para que se possa assegurar, de maneira plena e eficaz, o conjunto das múltiplas dimensões que compõem a pessoa idosa. 3.1. O regime das incapacidades no CC/02 No tocante ao regime das incapacidades delineado nos artigos 3º e 4º do Código Civil de 2002, cabe apontar seu perfil marcadamente patrimonial, visto que sob a 52 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 inspiração do Código de 1916, objetiva resguardar interesses econômicos e negociais que permeiam a vida de pessoas transitória ou definitivamente vulneráveis.37 Como consequência, deve-se questionar a incidência das regras de incapacidade no que diz respeito a situações existenciais, nas quais predomina a autodeterminação individual na condução de interesses alheios à lógica patrimonial, quais sejam, aqueles íntimos à personalidade, como é a hipótese da já mencionada opção por submissão a tratamento médico, ou ainda, em maior escala, aqueles relacionados aos direitos da personalidade. Nesse sentido, deve o regime das incapacidades ser aplicado de modo exaustivo a essas situações personalíssimas que envolvem o idoso? Reconhecendo-se a já definida diferença entre as situações patrimoniais e as existenciais, a aplicação exaustiva do regime de incapacidades ocorreria de modo acrítico e violador da dignidade do idoso como ser humano apto a se autodeterminar. Isto é, a eventual incapacidade que venha a ser declarada em relação ao idoso por razão de perda do discernimento–seja absoluta, seja relativa– deve ser fragmentária, permitindo-lhe espaços de vivências e experiências. Em sentido contrário, anular-se-ia a personalidade do idoso deficiente.38 Essa releitura do instituto da incapacidade civil acompanha a concepção de que nem toda deficiência mental enseja a inviabilidade do idoso de compreender os pressupostos e resultados de sua decisão, isto é, não será qualquer enfermidade que afetará o discernimento para se informar e, assim, valorar uma escolha de vida. Dessa maneira, na hipótese de sujeição à curatela prevista no artigo 1.767, I do Código Civil, no que diz respeito à gestão dos bens do interditado enfermo ou deficiente mental, essa será regida como hipótese de absoluta incapacidade em interpretação a contrario sensu do artigo 1.772 do Código. Por outro lado, no que concerne às escolhas personalíssimas do curatelado, deverá ser avaliada a interdição caso a caso, conforme o nível de clareza intelectual que o idoso apresente. Quando for possível distinguir momentos de lucidez, essas opções existenciais deverão se sobrepor à intervenção heterônoma do curador, restringindo a interpretação de “atos da vida civil”, no artigo 1767,I, a atos de conteúdo patrimonial. 37 AZEVEDO, Lilibeth de. O idoso e a autonomia privada no campo da saúde. 2012. 167 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2012, p. 104. 38 PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 164. 53 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Portanto, busca-se apresentar uma resposta que compatibilize a tutela dos interesses patrimoniais do idoso com a ideia de livre desenvolvimento da personalidade. 3.2. A possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual será submetido Sobre a referida questão do tratamento médico, amplamente debatida em razão do artigo 17, do Estatuto do Idoso, é importante desde já salientar que a saúde,39 direito fundamental de todo e qualquer indivíduo, se realiza não só pela ausência de máculas à sua integridade, mas também pela ação do Estado e da sociedade no sentido de promovê-la no mundo dos fatos. Dessa forma, nota-se que o direito à saúde apresenta uma proeminente faceta prestacional;40 é, portanto, dever de todos atuar de modo a tentar concretizá-lo. Sem dúvida, tal regra também se aplica – e de maneira ainda mais imperiosa, deve-se dizer – à lógica da proteção do idoso. Por causa de sua peculiar condição de vulnerabilidade, acarretada pelo fato de a idade avançada trazer consigo certas restrições, os anciãos carecem de uma preocupação especial quanto ao seu direito à saúde. Isso é consubstanciado tanto no princípio da solidariedade41 quanto na ideia de dever de cuidado,42 os quais, segundo Heloísa Helena Barboza, “viabilizam o envelhecimento ativo, definido como ‘o processo de otimização das oportunidades de saúde, participação e segurança, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida à medida que as pessoas ficam mais velhas’”.43 Nesse sentido, pode-se dizer que a atenção da sociedade e a elaboração de políticas públicas voltadas à tutela da saúde do idoso se justificam não apenas porque se trata de um direito que tem valor por si só, mas principalmente porque este é, em última análise, um pressuposto para o real exercício de todos os outros direitos essenciais do indivíduo, como, por exemplo, a liberdade. Logo, não é exagero afirmar que, assim como o zelo pela saúde dos idosos tem como consequência inexorável a efetivação de uma miríade de importantes garantias, métodos negligentes e desrespeitosos para com a integridade 39 Ao definir o que é saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS) salientou que não se trata apenas da ausência de doenças, mas principalmente de um estado de total bem-estar físico, mental e social. 40 SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. In: Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 126-167. 41 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 112. 42 BARBOZA, Heloisa Helena. O princípio do melhor interesse do idoso. In: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 70. 43 Ibidem, idem. 54 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 psicofísica dessas pessoas contribuem para a baixa potencialidade de outros direitos individuais imprescindíveis. Entretanto, é importante salientar que a observância ao dever de cuidado não se confunde com paternalismo. Em definição ampla, paternalismo é a “prática de uma administração paternal ou, do ponto de vista jurídico, (...) a intenção de suprir as necessidades ou de regular a vida de uma nação da mesma forma como um pai faz com sua família”.44 Já sob o viés da Medicina, pode ser conceituado como “a representação de um poder sobre o outro justificado no princípio de fazer o bem”,45 isto é, traduz uma série de condutas por meio das quais o médico se põe no comando da relação com seus pacientes, seja pelo domínio técnico de determinado conhecimento específico, seja pela própria legitimidade social.46 Nesse contexto, o profissional em análise chega inclusive a supor qual é o tratamento mais adequado aos seus pacientes, ignorando, assim, a vontade destes. É, por conseguinte, uma postura coercitiva e autoritária, que contraria pontos basilares do próprio Estado de Direito, tal qual a autodeterminação individual. Em casos mais extremos, os argumentos utilizados para justificar o paternalismo médico fundamentam práticas abjetas, como a ocultação e a manipulação de informações em prol da mera obstinação terapêutica.47 Em contrapartida ao paternalismo médico, tem-se o chamado consentimento informado – ou, como alguns autores preferem chamar, consentimento livre e esclarecido –, definido como “a aceitação racional de uma intervenção médica ou escolha entre alternativas possíveis para uma determinada situação clínica”. 48 Não se trata, pois, da mera verticalização da relação médico-paciente, tão própria do paternalismo, mas sim da formação de laços de confiança entre os dois. É certo que, levando em conta a especialização técnica intrínseca à arte da Medicina, existe um desequilíbrio natural entre os sujeitos em questão. Porém, a despeito disso, não se pode negar que há um dever de informação o qual 44 MARTINELLI, João Paulo Orsini. Paternalismo na Lei de Drogas. In: Revista Liberdades, n. 2, setembrodezembro de 2009, p. 14. 45 BEIER, Mônica. Algumas considerações sobre o Paternalismo Hipocrático. In: Revista de Medicina de Minas Gerais, Belo Horizonte, vol. 20, n. 2,2010, pp. 246-247. 46 Ibidem, idem. 47 A obstinação terapêutica é tão nociva ao paciente que o Conselho Federal de Medicina, ao elaborar o Código de Ética Médica, proibiu-a expressamente. De acordo com o parágrafo único do artigo 41 do referido diploma, “[n]os casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal”. 48 GONZÁLEZ, Miguel Angel Sánchez. Testamentos Vitais e Diretivas Antecipadas. In: RIBEIRO, Diaulas Costa (org.). A Relação Médico-Paciente: velhas barreiras, novas fronteiras. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2010, p. 132. 55 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 o médico tem a obrigação de cumprir para que a autonomia e a dignidade de seus pacientes sejam respeitadas. Sob essa perspectiva, o livre desenvolvimento da personalidade incidiria de duas maneiras sobre a interpretação e sobre a aplicação do artigo 17, do Estatuto do Idoso.49De um lado, serviria de barreira à adoção de medidas excessivamente paternalistas, eis que a liberdade do idoso no que tange à escolha do tratamento ao qual será submetido deve ser, via de regra, assegurada pelo ordenamento jurídico. De outro, também poderia ser utilizado como fundamento para o consentimento informado,50 uma vez que exige do médico significativo ônus argumentativo no momento de mostrar a seus pacientes o tratamento que se revela ser o mais adequado em face de determinada conjuntura. Vale ressaltar que, sob o prisma do livre desenvolvimento da personalidade do idoso, o consentimento informado não pode se resumir à assinatura de meros formulários.51 A rigor, constitui um processo de diálogo e de interação entre médico, família e paciente, o qual leva em consideração, acima de tudo, as particularidades deste último. Em outras palavras, cabe ao médico fornecer ao paciente, de forma compreensível, todas as informações necessárias para que este possa manifestar sua vontade. Quanto aos familiares, resta respeitar a decisão tomada pelo idoso. Alguns autores afirmam que o consentimento informado é uma espécie de paternalismo mitigado. Entretanto, não se pode entender dessa maneira. Na verdade, tratase de uma concretização do dever de informação inerente ao exercício da função médica. Enquanto o paternalismo, independentemente de classificações teóricas,52 centra-se na figura do médico e na autoridade que ele representa aos olhos dos leigos, o consentimento livre e esclarecido valoriza a autonomia e a vontade do próprio paciente. Por isso, pode-se 49 No Brasil, o consentimento livre e esclarecido se encontra positivado no artigo 6º, III, do Código de Defesa do Consumidor; no artigo 56 do Código de Ética Médica; no artigo 10 da lei n. 9.434/97; e no item II.11 da Resolução n. 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde (CSN). 50 GONZÁLEZ, Miguel Angel Sánchez. Testamentos Vitais e Diretivas Antecipadas. In: RIBEIRO, Diaulas Costa (org.). A Relação Médico-Paciente: velhas barreiras, novas fronteiras. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2010, p. 143. 51 Beier (vide nota 45) nos lembra de que “Joel Feinberg define o tipo de paternalismo segundo a capacidade das pessoas de fazerem suas escolhas: paternalismo fraco é aquele que restringe a autonomia em favor da beneficência, em indivíduos com restrição de capacidade temporária ou definitiva (...); e paternalismo forte aquele exercido em indivíduos plenamente capazes”. Tal como Feinberg, outros teóricos já elaboraram suas próprias classificações para distinguir os tipos possíveis de paternalismo. Contudo, julgamos necessário deixar claro que, apesar de serem abstratamente diferentes, todas essas classificações apresentam um traço em comum, qual seja, o valor exacerbado que conferem à vontade do médico e ao poder por ele exercido, em detrimento da decisão do paciente. 56 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 afirmar que o consentimento informado institui uma acertada mitigação ao paternalismo, mas não configura outro tipo de paternalismo, mesmo sob o rótulo de “mitigado”. O artigo 17, do Estatuto do Idoso, em seu parágrafo único, ainda nos apresenta outro desafio bastante complicado. Como a autonomia do ancião pode ser respeitada quando ele, em circunstâncias excepcionais e por motivos de ordem psicofísica, não puder optar pelo tratamento mais favorável à sua saúde? Nesse caso, as decisões tomadas pelo idoso ao longo de sua vida devem ser acolhidas, ou seja, se o paciente pôde, antes do advento da condição que lhe extirpou a capacidade de fato, manifestar, de alguma forma, sua vontade, esta deve ser acatada por todos, incluindo seu médico e seus familiares.53 Por isso, é preciso, neste momento, fazer referência às chamadas diretivas antecipadas. Segundo resolução do Conselho Federal de Medicina, as diretivas antecipadas de vontade são “o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. 54 Por assegurarem ao ancião o papel de personagem principal dentro da relação médico-paciente, podem ser vistas como uma maneira de harmonizar a aplicação do parágrafo único do artigo 17, do Estatuto, ao conceito de livre desenvolvimento do idoso. Se, no entanto, não houver diretiva antecipada ou qualquer outra evidência capaz de apontar qual seria a vontade do paciente diante de certa situação clínica crítica, resta seguir o razoável entendimento de Rui Nunes: “o médico e equipe de saúde, em estreita colaboração com a família, devem determinar o curso de atuação mais adequado de acordo com o melhor interesse do paciente”.55 Ainda, se houver discordância entre a equipe de médicos e os familiares, Nunes apresenta outra solução bastante plausível: “deve tentar-se, até ao limite, uma estratégia consensual. Após envidados todos os esforços, se não for possível a obtenção do consenso,então deve-se recorrer a meios formais de resolução. Designadamente mecanismos intrainstitucionais – tal como o Comitê de Ética – ou extrainstitucionais, como o poder judicial”.56 Todas essas – frise-se – são respostas que, à 52 Como está expresso no artigo 9º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, “[a] vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta”. Nesse sentido, veja-seAZEVEDO, Álvaro Villaça. A Autonomia do Paciente e Direito de Escolha de Tratamento Médico Sem Transfusão de Sangue. In: AZEVEDO, Alvaro Villaça; LIGIERA, Wilson Ricardo (coords.). Direitos do Paciente. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 283. 53 Trata-se do artigo 1º da resolução CFM n. 1995, de 31 de agosto de 2012. 54 NUNES, Rui. Proposta sobre suspensão e abstenção de tratamento em doentes terminais. In: Revista Bioética, vol. 17, n. 1, 2009, p. 34. 55 Ibidem, idem. 57 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 semelhança do subitem anterior, respeitam, em alguma medida, a ideia de livre desenvolvimento da personalidade do idoso, e, portanto, devem ser consideradas. 4. Conclusão: um cidadão emancipado Em 1988, o Estado e a sociedade brasileiros assumiam o compromisso de cumprir todas as promessas presentes no então recém-elaborado texto constitucional. Naquele período de redemocratização e de quebra de antigos paradigmas, iniciou-se uma procura por novas maneiras de aplicar e de interpretar as normas jurídicas, as quais valorizassem a pessoa humana e o pleno desenvolvimento de sua existência. Inaugurou-se, assim, uma metodologia constitucional preocupada, sobretudo, com a dignidade dos indivíduos e com o respeito a seus direitos fundamentais. Sob esse viés, vários institutos jurídicos bastante relevantes passaram por um processo de releitura para que pudessem ser adequados às demandas sociais nascentes. Para fins de ilustração, a igualdade deixou de ser vista como a mera inexistência de discriminações legais infundadas para se tornar uma verdadeira luta contra os abismos reais que separam os diferentes membros da sociedade. Do mesmo modo, não bastava que a liberdade fosse encarada apenas como a ausência de injustas amarras institucionalizadas às ações individuais; a rigor, essa garantia passou a ser entendida como o que realmente deve ser, isto é, uma tentativa verdadeira de se promover a independência, a autonomia de todas as pessoas. Seguindo a lógica da constitucionalização do Direito brasileiro mencionada acima, alguns baluartes normativos do direito privado também tiveram de ceder diante do cenário em análise. Isso se deveu ao fato de o Código Civil de 1916, alicerçado sobre princípios tão caros ao ideário liberal, ter se mostrado incapaz de servir adequadamente às ambições da Constituição de 1988, que ganhava um papel de destaque cada vez maior dentro do novo contexto jurídico nacional. Dessa maneira, mostrou-se o Código Civil de 2002 ser uma das pedras de toque deste importante movimento da história do Direito brasileiro, uma vez que representou a formação de um elo entre a seara civilista e os princípios e regras mais essenciais do ordenamento pátrio, contemplados na Carta Maior. Do ponto de vista material, deslocou-se, pois, o centro do regramento das relações interpessoais. Mais especificamente, o patrimonialismo que caracterizava a letra do Código Civil de 1916 deu lugar a uma maior atenção à pessoa humana e às suas particularidades. Passou-se a exigir dos indivíduos respeito mútuo, sob a ótica da 58 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 preservação de um projeto de cooperação social, cujos principais expoentes são o próprio texto constitucional e a ideia de solidariedade que, além de ter sido expressamente prevista por este em seu artigo 3º, I, perpassa todo o seu conteúdo. Atendendo à necessidade de promover concretamente os valores contemplados pela Constituição, detectaram-se, com o tempo, determinados sujeitos que se mostravam merecedores de cuidado especial devido à vulnerabilidade a eles inerente. Um deles é o idoso. Por causa de sua idade avançada, que acaba por trazer consigo uma série de condições e de novos desafios de ordem prática a serem superados, o ancião passa a carecer de maior amparo por parte de seus familiares, da sociedade como um todo e do próprio Estado. Contudo, tal assistência esbarra em um dilema que clama por uma solução urgente:como se pode aliar a construção de mecanismos eficazes de proteção à pessoa idosa ao devido respeito à sua capacidade de gerir sua própria vida, considerando que, em geral, os demais membros da sociedade a tomam por incapaz de fazê-lo? Logo, tendo em vista o panorama descrito, o presente artigo objetivou, em primeiro lugar, encontrar um parâmetro capaz de servir ao processo de resolução do questionamento posto. Para tal, levou-se em conta a principiologia civil-constitucional e foram tomadas por objetos de análise algumas questões controversas, como a possibilidade de o idoso escolher o tratamento médico ao qual será submetido. Ao fim e ao cabo, devido à sua forte ligação com o princípio da dignidade da pessoa humana e com um sem número de direitos individuais essenciais,o livre desenvolvimento da personalidade se destacou como potencial meio de tutela da integridade psicofísica do idoso e, simultaneamente, de proteção à sua autonomia. É um conceito ao qual tanto a doutrina quanto o próprio Poder Judiciário vêm atribuindo grande valor, sobretudo no tocante ao direito que todos os indivíduos têm de adotarem condutas no sentido de se autodeterminarem. Como um dos maiores problemas enfrentados pelo idoso nos dias de hoje é a ideia preconceituosa de que ele não é hábil para tomar decisões existenciais e patrimoniais importantes, o livre desenvolvimento da personalidade se revela um mecanismo necessário para a devida valorização da independência e da liberdade desse sujeito de direitos. Em síntese, tentar lidar com a vulnerabilidade do idosodeve passar ao largo de reputá-lo impossibilitado de desempenhar os diversos atos da vida civil. Em verdade, o ancião está tão suscetível às vicissitudes da experiência humana quanto qualquer outra 59 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 pessoa, independentemente de idade. Por conseguinte, é tempo de tomá-lo definitivamente por quem ele é: um cidadão emancipado. Recebido em 15/08/2014 1º parecer em 21/08/2014 2º parecer em 18/10/2014 60 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 HÁ LIMITES PARA O PRINCÍPIO DA PLURALIDADE FAMILIAR NA APREENSÃO DE NOVAS FORMAS DE CONJUGALIDADE E DE PARENTESCO? Are there limits to new family standards according to the principle of plurality? José Fernando Simão Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Universidade de São Paulo Largo de São Francisco. Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Membro do Instituto dos Advogados de São Paulo, do Conselho Curador da ESA/SP e Conselheiro da Escola Paulista de Advocacia - IASP, do IDCLB Instituto de Direito Comparado Luso-brasileiro, do BRASILCON Instituto Brasileiro de Política e Defesa do Consumidor e do Conselho Editorial do jornal Carta Forense. Membro do IBDFAM Instituto Brasileiro de Direito de Família e Diretor de Relações Institucionais do IBDFAM/SP. Professor de Cursos Preparatórios para Concurso Público e Exame de Ordem e de Especialização em várias Faculdades do Brasil. Advogado em São Paulo. Autor de obras jurídicas. “Qualquer maneira de amor vale a pena, Qualquer maneira de amor vale amar” Paula e Bebeto, Milton Nascimento e Caetano Veloso Resumo: O propósito deste estudo é investigar os tipos de família hoje admitidos no ordenamento jurídico brasileiro. Para tanto, percorremos a evolução do conceito de família na história do direito brasileiro. Em maior ou menor grau, é nossa conclusão, o Direito impõe limites mínimos à definição do que seja família. Durante todo desenvolvimento deste conceito, um limite mínimo, opção do legislador, foi sempre observado: a monogamia. Com o advento das recentes revisões do conceito para abranger as famílias de pessoas do mesmo sexo, o direito apenas cria um conceito aberto de família que ainda se baseia na família monogâmica. No fenômeno das famílias simultâneas, por exemplo, o Direito ampara o companheiro de boa-fé e os filhos advindos da relação, mas não pode conferir à relação afetiva proteção jurídica. Nas uniões estáveis as mesmas restrições se seguem. Isto porque o direito brasileiro pune, civil e penalmente, a bigamia; atribuindo-lhe a mais alta repressão do nosso sistema legal. Palavras-chave: Família no direito brasileiro; Casamento entre pessoas do mesmo sexo; Famílias simultâneas; Bigamia; Uniões estáveis plurais. Abstract: The purpose of this study is to investigate the types of family currently recognized in the Brazilian legal system. In order to do so, we follow the evolution of the concept of family in the history of the Brazilian Law. In bigger or smaller degree, it is our conclusion, the Law imposes minimum limits to the definition of what could be called a family. During all of the development of this concept a minimum limit, an option taken by the legislators, it was always observed: the monogamy. Along with recent revisions of the concept in order to include families with couples of the same sex, the Law simply creates an open concept of 61 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 family that is still founded by the monogamic family model. In the simultaneous families’ phenomenon, for instance, the Law protects the consensual husband or wife in ignorance and its offspring, but it can not give its protection to the relationship itself. The same restrictions are followed in common-law marriages. This is due to the extreme civil and penal sanctions attributed by the Brazilian Law to bigamy. Keywords: Family in the Brazilian Law; Same-sex marriage; Simultaneous families; Bigamy; Plural common-law marriages. Sumário: 1. O debate: limitar ou não limitar, eis a questão! – 2. Notas sobre o casamento homoafetivo – 3. Algumas notas sobre a “transformação” do concubinato em união estável: autonomia privada e sua limitação – 4. Novas velhas formas de famílias.a) Famílias simultâneas ou paralelas – delimitação teórica. b) Família poligâmica – delimitação teórica – 5. Nota conclusiva 1. O debate: limitar ou não limitar, eis a questão! Desde que Shakespeare, retratando os dilemas do jovem e atormentado Príncipe dinamarquês, Hamlet, cunhou a célebre fase “ser ou não, eis a questão!”; toda vez que se escreve sobre as “questões controversas” do direito de família na pós-modernidade a frase retorna com novos matizes. Com o abandono do modelo unitário de formação de famílias em que o casamento gerava a família legítima, sendo as demais formas alijadas de qualquer regramento ou proteção, na atualidade o que se pergunta é exatamente o oposto: há algumas formas de constituição de família que prosseguem alijadas desta proteção? A pergunta desafia o jurista e o homem comum e leva o cidadão a uma reflexão grandemente influenciada pela Resolução 175 do CNJ que, em 14 de maio de 2013, de maneira singela e objetiva, determinou a todos os registros civis que habilitassem os casais de mesmo sexo para o casamento civil. Dispõe a Resolução em questão que: Art. 1º É vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. 62 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A regra pôs fim a um impasse que durou quase dois anos, pois em maio de 2011, na decisão da ADPF 132/RJ e da ADI 42771, o Supremo Tribunal Federal admitiu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, com todos os efeitos da união estável heterossexual, mas a decisão se silenciou com relação ao casamento. Com essa orientação do STF, com a posterior resolução do CNJ e a ocorrência de casamentos homoafetivos, a pergunta que o homem comum se faz (e que não deveria ser feita pelos juristas) é a seguinte: se atualmente pessoas do mesmo sexo podem se casar, o sistema adotou a total liberdade para o casamento em proteção às minorias? Viveríamos hoje um sistema em que todo e qualquer modelo de família passa a ser aceito em razão da inexistência de um rol taxativo de famílias no art. 226 da Constituição Federal? As perguntas se sucedem. Seria constitucional limitar os modelos de família juridicamente protegidos ou qualquer limitação fere a dignidade da pessoa humana e sua liberdade de escolhas? A essas indagações outras se somam. O afeto é um valor jurídico e essa afirmação não admite questionamento. É elemento que, se presente, gera parentesco independentemente dos vínculos consanguíneos. Nesse sentido, afirma Ricardo Lucas Calderón que no Século XXI tornouse perceptível como a afetividade passou a figurar de forma central nos vínculos familiares, não em substituição aos critérios biológicos ou matrimoniais (que persistem com inegável importância), mas ao lado deles se apresentou como relevante uma ligação afetiva.2 Em se admitindo que o afeto é um valor jurídico, e isso hoje não se discute, a questão que se coloca é se este valor necessariamente é elemento criador de parentalidade ou de conjugalidade e, em caso positivo, se o direito posto poderá limitar os efeitos jurídicos de relações permeadas pelo afeto. Limitar os efeitos do afeto fere a dignidade da pessoa humana? A resposta “depende do caso concreto” não é jurídica. Se é conveniente para muitos temas, em Direito Civil, representa o fracasso do jurista na construção de categorias jurídicas que se propõem sérias. É a fuga da construção de um direito como ciência para se voltar ao empirismo romano, superado há mais de um mil e quinhentos anos. Com base nessas indagações, nessa verdadeira tirania dos princípios que reduz e empobrece o debate jurídico a afirmações pouco densas (v.g. fere a dignidade da pessoa humana qualquer limitação) que pretendemos construir a reflexão e responder a 1 Decisão esta vinculante e com efeito erga omnes. CALDERÓN, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 205. 2 63 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 pergunta: há limites para o princípio da pluralidade familiar na apreensão de novas formas de conjugalidade e de parentesco? 2. Notas sobre o casamento homoafetivo Algumas notas sobre o casamento homoafetivo se fazem necessárias, exatamente em razão do fato de ser este argumento utilizado por parte da doutrina para pregar que o direito não mais restringe o conceito de família como fazia no passado e que, portanto, toda e qualquer forma de família conta com a proteção jurídica.3 A decisão do STF de 2011 (ADPF 132/RJ e da ADI 4277) foi ponto fulcral no debate relativo aos direitos das minorias e respeito às liberdades de escolha. Tendo aquele Tribunal, a mais alta Corte, admitido que as uniões homoafetivas e heterossexuais produzem iguais efeitos, a admissão do casamento entre pessoas do mesmo sexo não passava de questão de tempo. Assim, naquele mesmo ano de 2011, o STJ decidiu que era possível a habilitação de duas mulheres para o casamento. Esta decisão, um simples precedente e sem efeito vinculante, tomou por base os seguintes fundamentos abaixo transcritos4: O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, 3 Exemplo do raciocínio simplista e tendencioso vem de entrevista da Tabeliã da Cidade de Tupã que lavrou uma escritura pública de união estável poligâmica (duas mulheres e um homem). Ponto alto da desinformação vem consubstanciada nas frases da própria Tabeliã “responsável” pela Escritura quando indagada em entrevista: “Caso um recurso de reconhecimento de uma família poliafetiva chegasse ao Supremo, qual seria uma provável decisão?Na minha experiência, tenho visto que, em casos parecidos, em primeira instância, a solicitação costuma ser negada, e, com recursos subsequentes, chega-se ao Supremo Tribunal Federal, que julgará a ação com um olhar constitucional. Foi o que aconteceu com as famílias homoafetivas. Mas é claro que a corte pode aprovar ou não a ação (http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias)”. 4 REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012. 64 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. Note-se que os fundamentos para admissão do casamento de pessoa do mesmo sexo podem ser divididos em três. O primeiro é que a Constituição não limita as formas de constituição de família como fazia o antigo Código Civil de 1916, logo, o artigo 226 apenas indica, exemplifica as formas de família protegidas pelas Constituição. Abole-se o sistema de exclusividade do casamento como forma de constituição de família para a adoção de um modelo plural. O segundo argumento é a ausência de vedação expressa pelo Código Civil da possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo. Essa noção implica que o intérprete se valha do antigo adágio pelo qual “se a lei não proíbe, não é dado ao intérprete proibir”. Se o preceito constitucional que, ao tratar da união estável, utiliza o vocábulo “entre o homem e a mulher”, foi interpretado como sendo exemplificativo, as regras do Código Civil que utilizam essa mesma locução devem seguir igual interpretação. 65 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Nesse sentido, temos o artigo 1.5175. Já os artigos que tratam da habilitação mencionam “os nubentes”6 e não apenas o “homem e a mulher”, bem como os que se referem à celebração utilizam a expressão “contraentes”78. A fórmula do artigo 1535, por si só, não pode ser usada como impedimento para o casamento de pessoas do mesmo sexo9. A literalidade da fórmula, se confrontada com as demais disposições do Código Civil, que não proíbem o casamento homoafetivo, em interpretação sistemática, fica afastada. O terceiro fundamento é a proteção das minorias. É função do Poder Judiciário proteger as minorias não obstante a omissão do Poder Legislativo. A ausência de lei que proteja a família homoafetiva não significa que o Poder Judiciário possa ignorá-la. É forte e precisa a frase do Ministro Luiz Felipe Salomão: “não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente”. Se a liberdade garantida pela própria Constituição Federal quanto à orientação sexual não é apenas norma programática, vazia de alcance, a admissão do casamento homoafetivo é de rigor. Os três fundamentos afastam qualquer dúvida quanto à desnecessidade de mudança do Código Civil ou criação de um Estatuto da Diversidade Sexual para se admitir o casamento homoafetivo que é uma realidade inconteste no Brasil10. 5Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. 6 “Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador...” 7 “Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos contraentes” 8 “Art. 1.533. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar previamente designados pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem habilitados com a certidão do art. 1.531” 9 "De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados." 10 Em que pesem os esforços de alguns pouco versados em História para afirmar que na Grécia e na Roma Antiga havia proteção aos homossexuais, pois eram sociedades tolerantes, fato é que são afirmações vazias, pois carecem de fundamento sólido, mormente admitindo-se a variação temporal (o Império romano do ocidente durou quase 1.300 anos) e as peculiaridades locais (cada cidade-estado grega tinha regras próprias de convívio social). Se é que antes do Cristianismo a tolerância em razão da orientação sexual era maior, na sociedade romana a homossexualidade podia não ser motivo de perseguição, mas era abertamente motivo de chacota e críticas veementes. Suetônio narra que os modos efeminados de Julio Cesar (fim da Roma republicana) eram motivos de gracejo no Senado Romano e afirma, ainda que sua relação com o Rei Nicomedes da Bitínia era causa de mancha grave e duradoura que o expôs a ultrajes e reprovações. Dolabela, no Senado, o chamara de ‘rival da rainha, a prancha inferior da liteira real’ e Cúrio o denominava “a prostituta da Bitínia’. Cúrio, o pai, cunhou a frase que entraria para História: “o marido de todas as mulheres e a mulher de todos os maridos” (SUETÔNIO. A Vida dos Doze Césares: A vida pública e privada dos maiores imperadores de Roma. 2. ed. trad. por Sady-Garibaldi. São Paulo: Ediouro, 2002, fls. 34/60). Outro motivo de escândalo, agora na Roma imperial, foi o casamento do Imperador Nero com seu escravo Sporus. Suetônio afirma que Nero 66 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Pode-se mencionar que o casamento sofreu 4 grandes revoluções na história ocidental. Com a proclamação da República em 1889, a separação entre Estado e Igreja se aprofunda de maneira indelével já que em um sistema monárquico há sempre uma aproximação entre estas entidades. Assim, a primeira revolução quanto ao instituto do casamento foi a ruptura com a Igreja Católica ocorrida por meio do Decreto 181 de 24 de maio de 1890 em que o casamento passa a ser monopólio do Estado, ou seja, laico perdendo o casamento religioso o status anterior de forma de constituição de família legítima, gerando simples união de fato, sem proteção jurídica.11 A segunda revolução foi a admissão do divórcio como forma de extinção do vínculo matrimonial. Historicamente, no sistema das Ordenações Filipinas e do próprio Decreto 181 de 1890, o casamento válido só se dissolvia pela morte de um dos cônjuges.12 É longa a trajetória que acaba por admitir o divórcio no Brasil o que só ocorre em 1977.13 A terceira revolução foi a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges que só adveio com a Constituição de 1988 que em seu artigo 226, parágrafo 5º, consagra: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.” A quarta e última foi a possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo. Trata-se de efetiva, profunda e sem precedentes na história brasileira revolução no conceito de casamento, pois, desde os tempos romanos, Modestino14 já definia casamento como maris et faeminaeconjunctio, consortium omnis vitae, divini et humani juris communicatio, um consentimento do homem e da mulher, uma sociedade por toda vida, e uma comunicação de todos os direitos humanos e divinos15. esforçou-se mesmo para transformar em mulher o jovem escravo, arrancou-lhe os testículos paramentou-o com os adornos de Imperatriz, cobrindo-o a cada passo de beijos. (op. cit., p. 365). 11 Dois artigos do Decreto valem menção: “Art. 108. Esta lei começará a ter execução desde o dia 24 de maio de 1890, e desta data por deante só serão considerados válidos os casamentos celebrados no Brazil, si o forem de accordo com as suas disposições. Paragraphounico. Fica, em todo caso, salvo aos contrahentes observar, antes ou depois do casamento civil, as formalidades e ceremoniasprescriptas para celebração do matrimonio pela religião deles” e “Art. 109. Da mesma data por deante todas as causas matrimoniaes ficarão competindo exclusivamente ájurisdicção civil. As pendentes, porém, continuarão o seu curso regular, no fôroecclesiastico”. 12 Art. 93. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos conjuges, e neste caso proceder-se-ha a respeito dos filhos e dos bens do casal na conformidade do direito civil. 13 Sobre o tema indicamos a leitura de nosso artigo SIMÃO, José Fernando. Tributo a Nelson Carneiro: Luta pelo Divórcio X Batalha do Divórcio. In: O Novo Divórcio no Brasil. FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, George Salomão; LEITE, Glauber Salomão (Orgs.). Salvador: Editora Jus Podium, 2011. 14 Século III d.C. 15 HULOT, M. La Clef des Lois Romaines. Tomo II. Paris: Meltz, 1810, p. 41. A dualidade de sexos era tão evidente a palavra latina para casamento, matrimonium, significava que a conjunção tinha por efeitos que a 67 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Assim como no Século XIX foi grande a estranheza da população que sempre considerou o casamento religioso como forma única de constituição de família e viu esta tradição milenar abandonada por força do Decreto 18116, no Século XXI o fim da dualidade de sexos como elemento essencial ao casamento causa perplexidade. 3. Algumas notas sobre a “transformação” do concubinato em união estável: autonomia privada e sua limitação É longa a evolução para se admitir a união estável como forma de constituição de família. Isso porque a união estável, no início do século, sequer era assim denominada, pois a família informal, à época dita ilegítima, era chamada de concubinária. É no concubinato que encontramos a origem das famílias informais. A etimologia do termo concubinato merece análise. Explica o Álvaro Villaça Azevedo que concubinato deriva do vocábulo latino concubinatus, us, mancebia, amasiamento. A origem está, ainda, em concumbo, is (derivado do grego) que significa dormir com outra pessoa, copular, ter relação carnal, estar na cama.17 No Livro Quarto das Ordenações, Título LXVI, proíbe-se a doação ou venda feita por homem casado a sua barregã. O texto afirma que “se algum homem casado der a sua barregã alguma cousa móvel ou de raiz, ou a qualquer outra mulher, com quem tenha carnal afeição, sua mulher poderá revogar e haver para si a cousa, que assim foi dada”.18 Em compilação interessante e que retrata a diversidade linguística brasileira, Euclides de Oliveira diz que concubina também é chamada de amante, amásia, esposa se torna mãe (mater) (op. cit., p. 40). Casar com uma mulher era convidá-la para tornar-se mãe. Este era seu título mesmo antes de ter filhos (Amor em Roma, Pierre Grimal, p.61). 16 Escreve Paulo de Lacerda que foi abandonada uma tradição secular do povo brasileiro que via no matrimônio um sacramento instituído pelo fundador da Igreja cristã e regulado na sua última fase pelos cânones do Concilio Tridentino (De Sacramento Matrimonii) e pelas Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (Manual do Código Civil, p. 9). Explica Lafayette Rodrigues Pereira, que o cristianismo, desde sua fundação, chamou o casamento para si e o elevou à dignidade de sacramento, daí os esforços constantes da Igreja Católica de subtraí-lo da ação do poder temporal (Direitos de Família, p. 31). 17 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da Família de Fato. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002., p.186. 18 Em seus comentários, Cândido Mendes de Almeida diz que se trata de mulher amancebada e que, antigamente, na Espanha, era mulher legítima que por ser desigual em nobreza não gozava de direitos e foros do marido. Em outras partes da Europa é mulher da mão (manca) esquerda, ou porque o marido dava essa mão ao se casar ou porque a trazia a sua esquerda, lugar menos honroso. Citando Viterbo no Elucidário, Cândido Mendes de Almeida diz que barregã ou concubina é a mulher que procura filhos,ou faz diligência para isso, fora do santo matrimônio. Os filhos assim gerados são chamados de filhos de Guança, Gança ou Ganhadia, como espúrios ou ilegítimos (2004:871) 68 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 amiga, arranjo, barregã19, camarada, caseira, china, comborça, espingarda, fêmea, gato, manceba, moça, murixaba, puxavante, rapariga e sexta-feira. Nas obras espetaculares de Jorge Amado, percebe-se o termo teúda e manteúda cujas origens remontam as Ordenações Filipinas. Benedito Silvério dos Reis20 anota, ainda, o uso popular do termo amancebada, cuja origem etimológica é a palavra latina mancipium, que significa dizer escravo (criado de servir). Nota-se, pela origem e pelas acepções, que o termo para designar a mulher que não é casada ou a união de pessoas não casadas é sempre algo permeado de conotação sexual, com um viés de forte preconceito. Nesta esteira, identificava o Código Civil de 1916 a concubina como a amante do homem casado e os artigos que a mencionavam o faziam para vedar doações ou herança.21 Desta forma, não se reconhecia a possibilidade de uma pessoa solteira viver com outra, também solteira, e que tal união contasse com proteção jurídica. Ademais, conceder direito às famílias ditas ilegítimas seria desprestigiar a instituição do casamento. A noção de moral e de direito acabavam por se misturar. Assim, negavamse direitos aos concubinos sob o fundamento de se tratar de um ato imoral, que não pode ser protegido e nem dele decorrer vantagens22. Por meio de um longo processo histórico de aceitação do diferente, a categoria jurídica da união estável foi sendo delineada. Passo importante foi o conceito de concubinato puro e a contribuição de Edgard de Moura Bittencourt.23 A união estável, por fim, conta com a proteção constitucional (art. 226, parágrafo 3º) e é então definida como união pública, contínua e duradoura com o objetivo de constituir família (art. 3º da Lei 9278/96 e 1.723 do Código Civil). 19 Explica Benedito Silvério, em correspondência ao autor, que o termo “barregana” vem do árabe barrakan, que é uma fazenda espessa e, portanto, barregão significa algo forte, resistente como o tecido. Fala-se, ainda em um termo latino pellacana, do grego pellakê, prostituta. 20 A explicação veio em correspondência ao autor datada de 2008. 21 “Art.248. A mulher casada pode livremente: IV - Reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo marido à concubina (art. 1.177).” “Art. 1.177. A doação do cônjuge adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de dissolvida a sociedade conjugal (arts. 178, § 7°, VI, e 248, IV). Art. 1.719. Não podem também ser nomeados herdeiros, nem legatários: III- a concubina do testador casado”. 22 RT 165/694. 23 BITTENCOURT, Edgard de Moura. O Concubinato no Direito. São Paulo: Alba Limitada, 1961. 69 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 O texto do Código Civil é claro ao afastar da noção de união estável a união entre pessoas impedidas de se casar. Isso se dá por meio do disposto no parágrafo primeiro do art. 1.723 (§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente) e no art. 1.727 (As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato). As relações concubinárias (antigo concubinato impuro) são afastadas de qualquer proteção em termos de direito de família. Seria uma afronta a dignidade da pessoa humana afastar da proteção do direito as pessoas impedidas de se casar e que vivem como se casadas fossem? Uma premissa serve como partida à reflexão. O sistema é monogâmico por opção do legislador. Não se trata de admitir ou proibir que uma pessoa possa ter mais de uma família simultaneamente. Trata-se de restringir a autonomia privada negando efeitos jurídicos às famílias paralelas ou ploligâmicas. Explico. É direito da pessoa compor seu núcleo familiar como lhe aprouver.24 Cabe ao Direito, então, optar por regulamentar ou não os efeitos jurídicos que tais famílias receberão. Não, a autonomia privada não pode tudo em um sistema como o concebido no Brasil em que é alto o grau de intervenção do Estado sobre a liberdade individual. Não há nenhuma ofensa à dignidade humana a imposição de um mínimo restritivo. Assim como o Estado intervém, sem grande assombro ou resistência da doutrina (ou de parte dela), no conteúdo e efeito dos contratos (a função social é sistematicamente utilizada de maneira atécnica para legitimar ou fazer desaparecer a autonomia privada), o Estado intervém nas regras aplicáveis às diversas formas de composição de família. Não se trata mais de tipificar a família, como fazia o revogado Código Civil, impondo um modelo unitário, qual seja, a família é legítima se decorrer do casamento. O sistema é aberto e as formas de família são diversas em sua formação. Para algumas o direito confere efeitos jurídicos, para outras não. Então o que mudou entre a forma antiga e a atual de se reconhecer direitos à certa modalidade de família? A mudança é a seguinte. Antes, apenas o casamento formava 24 A premissa da afirmação é que a relação se estabelece, por livre e espontânea vontade, entre pessoas maiores e capazes. 70 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 a família que recebia proteção do Estado. Hoje, todas as formas de família, desde que não expressamente excluídas, recebem a proteção do Estado. Antes havia um modelo unitário, hoje o modelo é plural, aberto, respeitados mínimos impostos pelo Direito, mínimos estes que contém os valores inspiradores e subjacentes ao próprio Direito de Família. Efetivamente é possível responder o que se pergunta no início dessas reflexões: a lei estabelece o mínimo para excluir os efeitos jurídicos decorrentes do direito de família a certas famílias. É por isso que a família decorrente do incesto não conta com proteção legal. O conceito de dignidade humana não implica a chancela do Direito a todas as opções do ser humano, sejam elas na seara obrigacional, na seara do ilícito ou na seara familiar. Fixada esta premissa, podemos aplicar a tese a duas situações distintas. 4. Novas velhas formas de famílias a) Famílias simultâneas ou paralelas – delimitação teórica Famílias simultâneas é o termo cunhado pela doutrina para indicar uma situação em que uma pessoa, não necessariamente o homem, convive com outra pessoa, não necessariamente uma mulher, em dois núcleos distintos e simultâneos. É o caso clássico da literatura em que um homem que muito viaja tem dois núcleos familiares distintos em localidades distintas. Para a delimitação teórica é importante compreender que a pessoa tem dois núcleos distintos em que todos os membros componentes destes núcleos não residem sob o mesmo o teto. Seguem exemplos que utilizam o homem como centro da vida familiar simultânea apenas pelo fato de serem estes os casos trazidos a julgamento e que serão discutidos a seguir. a) Homem que é casado com determinada mulher em Salvador, migra para o Rio de Janeiro e se casa com outra mulher, pois em sua certidão de nascimento não fora anotado o casamento anterior; b) Homem que é casado com uma mulher em São Paulo e, em Porto Alegre, convive com outra mulher de maneira pública, contínua e duradoura; 71 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 c) Homem que, na mesma cidade, tem duas casas e em uma mora com sua esposa e filhos, mas, também, passa parte do dia ou da noite na casa de outra mulher com quem tem filhos; d) Homem casado que mora com sua mulher, mas tem relação afetiva e sexual com outro homem com quem convive de maneira pública, contínua e duradoura. Não tenho dúvidas em afirmar que em todos os exemplos o homem tem duas famílias. Também não tenho dúvidas em afirmar que a proteção constitucional dos filhos implica igualdade de todos, independentemente de sua origem e todos os filhos terão a ampla e integral proteção que o Direito lhes confere. Contudo, com relação às pessoas maiores e capazes que mantém uma relação de afeto, com comunhão de vida, seja essa relação hétero ou homoafetiva, o Direito de Família, em tese, não tem qualquer aplicação, pois se trata de concubinato expressamente excluído das formas de criação de família. A relação entre concubinos será regida pelo Direito das Obrigações, ou seja, mediante prova do esforço comum o patrimônio adquirido por um dos concubinos poderá ser partilhado25. Contudo, o direito tempera a regra do art. 1727 com o princípio da boafé26. Essa solução não é nova para o Direito de Família. É historicamente adotada para a hipótese de casamento inválido que produz efeitos ao cônjuge de boa-fé. É a putatividade que o Direito de Família adota como forma de não punir aquele que desconhecia o vício ou a mácula que inquinava o próprio casamento. A ignorância ou desconhecimento do fato (portanto a situação é efetivamente de boa-fé subjetiva) garante a concessão dos efeitos do casamento válido. Quem agiu de má-fé não tem a mesma sorte27: o casamento não produz efeitos para ele. A boa-fé é princípio caro ao Direito e em especial ao Direito Civil. Em todos os exemplos que indicamos acima, o homem sabia ter dois núcleos familiares e as outras pessoas com quem convivia desconheciam tal fato. A boa-fé gera efeitos jurídicos claros: possibilidade de manutenção do sobrenome do outro cônjuge, direito a alimentos nos 25 É a aplicação da velha Súmula 380 do STF que, em seus primórdios, era aplicada para o concubinato puro (atualmente união estável). Hoje, sua aplicação se restringe a pessoas que não constituem família, ou seja, àqueles impedidos de se casar nos termos do art. 1727 do Código Civil. 26 Daí utilizo a locução “em tese” no parágrafo acima. 27 Com sentindo de destino. 72 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 termos do binômio possibilidade/necessidade e se o regime de bens permitir, direito de meação sobre os bens do outro cônjuge. Contudo, se a pessoa tiver conhecimento de que o homem com quem convive mantém outra relação simultânea, ou seja, é casada com outro homem ou outra mulher e, tendo conhecimento deste fato, com ele convive, em razão da má-fé nenhum direito terá. É uma relação familiar concubinária excluída pela lei dos efeitos do Direito de Família. Foi exatamente o que decidiu o STF na famosa questão ocorrida na Bahia em que determinado sujeito que tinha duas uniões concomitantes em que ambas a esposa e a ‘companheira’ requeriam pensão do falecido. O interessante do caso em julgamento é que o falecido nunca se separou de fato de esposa. Assim era casado de fato e de direito e com a esposa tinha 11 filhos; mas mantinha relação duradoura de 37 anos com outra mulher da qual nasceram 9 filhos (RE 397.762-8/BA, j. 03/06/2008). O Relator Ministro Marco Aurélio Mello assim fundamenta seu voto que prevaleceu no caso em questão: “É certo que o atual Código Civil, versa, ao contrário do anterior, de 1916, sobre a união estável, realidade a consubstanciar o núcleo familiar. Entretanto, na previsão, está excepcionada a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que se um deles é casado, o estado civil deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a esposa. O que se percebe é que houve envolvimento forte (...) projetado no tempo – 37 anos – dele surgindo prole numerosa - 9 filhos – mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de o companheiro ter mantido casamento, com quem contraíra núpcias e tivera 11 filhos. Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tido como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe respeito às balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável, quando na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do CC”. É exatamente a aplicação do “mínimo” restritivo que defendo, respeitando a decisão de legislador de não dar os efeitos do direito de família a certas relações pessoais afetivas. 73 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A monogamia é um valor jurídico, uma baliza mínima na construção da família que recebe os efeitos do Direito de Família. Então vem a pergunta: mas se o direito brasileiro reconhece a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, porque não conceder os efeitos e proteção do Direito de Família às famílias simultâneas? A questão será abordada nas conclusões do presente artigo. b) Família poligâmica – delimitação teórica O prefixo “poli” tem origem no grego polús, polle e significa numeroso. Opõem-se a ao prefixo “mono” que significa único, um apenas. Poligamia é a união conjugal de uma pessoa com várias outras. É gênero que contém duas espécies: poliginia quando um homem se casa com mais de uma mulher ou poliandria quando uma mulher se casa com mais de um homem28. A definição dos termos não acompanha a realidade jurídica. Sendo o casamento homoafetivo presente como realidade social, podemos imaginar um homem que se casa com vários homens e uma mulher que se casa com várias mulheres, bem como um homem que se casa com um homem e uma mulher ou uma mulher que se casa com um homem e uma mulher. A caracterização da poligamia, como forma de delimitação e diferenciação da família paralela ou simultânea, é que todos vivem sob o mesmo teto. É o caso do homem que professa a fé islâmica e, segundo permissão do Alcorão, poderá ter até 4 mulheres, desde que trate todas com igualdade.29 A família poligâmica recebe a proteção jurídica do Direito de Família? A resposta também é negativa. A monogamia é um valor socialmente consolidado, historicamente construído e legalmente disciplinado. Em termos jurídicos, temos duas regras que aniquilam qualquer possibilidade de se admitir a bigamia no sistema jurídico brasileiro, uma de ordem civil e outra criminal. 28 Essa é a definição vernacular segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa. “... podereis desposar duas, três ou quatro das que vos aprouver, entre as mulheres. Mas, se temerdes não poder ser equitativos para com elas, casai, então, com uma só.” (Alcorão 4:3) in http://www.islamreligion.com/pt/articles/325/ (acesso em 2 de setembro de 2014) 29 74 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A primeira está no Código Civil que prevê a mais dura sanção reconhecida pelo ordenamento em ocorrendo o casamento bígamo: a nulidade absoluta (arts. 1521, VI e 1548 do CC). Se é verdade que o Direito Penal não mais reconhece no sistema brasileiro a pena de morte ou açoite, e se não há mais tribunais do Santo Ofício, nem por isso o crime de bigamia deixa de ser tipificado. Assim, o Código Penal brasileiro prevê em seu artigo 235 que é crime contrair novo casamento, sendo casado e a pena é de reclusão de 2 a 6 anos. Nas palavras de Pedro Lazarini, “busca-se com essa previsão tutelar a instituição do casamento e a organização familiar que dele decorre, estrutura fundamental do Estado, que são colocados em risco com as novas núpcias”30. A pergunta que se segue é: se a pessoa não pode se casar com duas pessoas simultaneamente em razão da vedação à poligamia, há algum impedimento para que três pessoas convivam simultaneamente em união estável? Poder-se-ia argumentar de maneira pueril que uma escritura de “união estável” com três ou mais pessoas não cria poligamia, porque não há casamento, mas simples união estável Em termos jurídicos, a interpretação que esse argumento dá ao Código Penal e Civil seria a literal. O que se deve fazer é dar uma interpretação teleológica. O sistema não concebe, com base em um valor secular, a possibilidade de dupla união como forma de constituição de família. Se sempre existiram famílias poligâmicas e isso não se nega, nunca o sistema jurídico brasileiro as admitiu. Muito menos sob a forma de união estável, que como forma de constituição de família, conta com a proteção da Constituição (art. 226, par. 3º). A monogamia é um limite mínimo trazido pelo ordenamento para afastar do Direito de Família, certas relações afetivas. Poder-se-ia argumentar que a monogamia não está entre os elementos necessários à configuração da união estável. Logo, a união estável plural não encontraria óbice legal, não estaria abarcada pelo limite do mínimo. Neste ponto, merece nota o fundamento dado pelo STJ quanto à questão: Com efeito, uma sociedade que apresenta como elementoestrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra oconceito de lealdade e respeito mútuo – para o fim de inserir no âmbito do Direitode Família relações afetivas 30 Código Penal Comentado, 4ª Ed., Primeira Impressão, 2010, p. 973. 75 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização deseus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade.31 A lealdade como dever decorrente da união estável (art. 1724 do CC) e a fidelidade como dever do casamento (art. 1566 do CC) são óbices para o reconhecimento de uniões poligâmicas para fins do direito de família. Não se trata, aqui, de confundir os planos da existência e da eficácia. Se é verdade que os deveres estão no plano da eficácia e que a deslealdade não faz com que o casamento ou a união estável deixem de existir, há um impeditivo ético do qual o direito de socorre para fazer da monogamia um valor inconteste. O argumento se repete. A lei indica um mínimo que obsta o reconhecimento dos efeitos do direito de família às situações de poligamia ou uniões simultâneas de três ou mais pessoas. Novamente surge a questão. Se o direito brasileiro reconhece a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, porque não conceder os efeitos e proteção do Direito de Família às famílias poligâmicas? 5. Nota conclusiva A dignidade humana como princípio se transformou em lugar comum, virou nota de rodapé em toda e qualquer decisão judicial que se pretenda atual ou cujos julgadores temam a possibilidade de reforma. O problema da vulgarização de um princípio tão caro ao Direito é que sua invocação em questões banais, corriqueiras, que nenhuma relação guardam com a pessoa humana, ou com sua dignidade, é que se transforma em vazio axiológico, perdendo todo e qualquer significado.32 Aplicar o princípio para se admitir uma absoluta possibilidade de criação de modelos familiares e que o Direito de Família deve, necessariamente, protege-las é algo 31 REsp 1348458/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/05/2014, DJe 25/06/2014. 32 O Ato Institucional n. 5, um dos maiores atentados contra a liberdade e uma das maiores violações aos direitos humanos, em seu preâmbulo, invoca a dignidade da pessoa humana: “CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, ‘os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria.’” 76 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 tão anacrônico quanto se sustentar, hoje, que o Estado, por meio dos princípios sociais, não pode intervir no conteúdo do contrato. Essa opção de parte minoritária da doutrina revela um saudosismo sepultado com o Século XIX em que a vontade era expoente máximo e intocável da criação de relações jurídicas. Assim, apesar de o direito brasileiro admitir as famílias homoafetivas, quer tenham origem no casamento, quer na união estável, como modelos juridicamente protegidos e merecedores da mais ampla proteção e tutela, as famílias poligâmicas e simultâneas não podem contar com qualquer proteção (ressalvada a boa-fé dos participantes, bem como a integral proteção dos filhos, por óbvio). O primeiro argumento aplicado às famílias homoafetivas é que a Constituição não limita as formas de constituição de família como fazia o antigo Código Civil de 1916, logo, o artigo 226 apenas indica, exemplifica as formas de família protegidas pelas Constituição. E isso significa que toda e qualquer família seja merecedora da proteção do direito de família? A resposta é negativa. Se a lei limitar a noção de família, a Constituição Federal não proíbe que o faça. Não há uma regra geral pela qual qualquer forma de família decorrente da autonomia privada deva ser necessariamente protegida pelo Direito. O segundo argumento, a ausência de vedação expressa pelo Código Civil quanto à possibilidade de casamento de pessoas do mesmo sexo, não ocorre com relação às famílias poligâmicas e simultâneas. A vedação se dá na seara civil e penal. A sanção de nulidade aplicada ao casamento poligâmico, o crime tipificado, o dever de lealdade e fidelidade e a exclusão do concubinato como modelo familiar bastam para afirmar que não há proteção aos maiores e capazes que optam por tais formas de família, à luz do Direito de Família. O terceiro fundamento aplicado às famílias homoafetivas é a proteção das minorias é função do Poder Judiciário proteger as minorias não obstante a omissão do Poder Legislativo, ou seja, a ausência de lei que proteja a família homoafetiva não significa que o Poder Judiciário possa ignorá-la. Não é isso que ocorre com relação aos núcleos poligâmicos e simultâneos. Se são igualmente minoritários, não há qualquer omissão do Poder Legislativo quanto a tais núcleos. Há uma vedação explícita à poligamia e a monogamia é eleita pelo legislador como um valor. A admissão às famílias simultâneas e poligâmicas é, naturalmente, a admissão, também, às famílias incestuosas, já que a vedação a todas elas se encontra no mesmo dispositivo legal: art. 1.521 do CC. 77 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A conclusão que chego é a seguinte: a manutenção de uma baliza mínima, longe de ser inconstitucional ou ferir a dignidade humana, é salutar ao sistema. Se tudo fosse admitido haveria um esvaziamento natural do instituto. O “não” que faz parte do processo de amadurecimento da pessoa humana, que muitas vezes tem dificuldade de aceitá-lo, também permeia o ordenamento e faz parte do amadurecimento social. Mudando a lei, alterando-se as balizas, o modelo familiar juridicamente protegido pode ser ampliado, estendido33. Em conclusão, os afetos são ilimitados, mas aqueles que contam com a proteção jurídica o são e sempre serão. Se toda a forma de amor vale a pena (e vale), se qualquer forma de amor vale amar, com elas o direito pode não se preocupar, respeitando a autonomia privada, mas deixando de fora do alcance das normas do direito de família relações que ultrapassem os limites mínimos impostos ou determinados por lei. “As pessoas crêem perseguir estrelas e acabam como peixes vermelhos em um aquário. Fico pensando se não seria mais fácil ensinar desde logo às crianças que a vida é absurda! Isso privaria a infância de uns bons momentos, mas faria o adulto ganhar um tempo considerável”. A elegância do Ouriço, Muriel Barbery. Recebido em 08/09/2014 1º parecer em 12/09/2014 2º parecer em 18/11/2014 33 É isso que fará o Estatuto das Famílias (Projeto de Lei do Senado 470 de 2013) em sendo aprovado: “Art. 14. As pessoas integrantes da entidade familiar têm o dever recíproco de assistência, amparo material e moral, sendo obrigadas a concorrer, na proporção de suas condições financeiras e econômicas, para a manutenção da família. Parágrafo único. A pessoa casada, ou que viva em união estável, e que constitua relacionamento familiar paralelo com outra pessoa, é responsável pelos mesmos deveres referidos neste artigo, e, se for o caso, por danos materiais e morais”. 78 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina estrangeira INTERPRETAÇÃO DOS “CONTRATOS ESCRITOS” NA INGLATERRA1 Interpretation of Written Contracts in England Neil Andrews Professor de Direito Processual Civil e de Direito Privado na Universidade de Cambridge e Membro honorário (bencher) da associação dos advogados de MiddleTemple ([email protected]). Resumo: Este artigo analisa os mais relevantes princípios que balizam a interpretação de contratos escritos no direito inglês. Trata-se de uma análise completa e incisiva que compreende desde a atual legislação até o entendimento contemporâneo da doutrina, incluindo tanto o princípio equitativo da retificação como os poderes dos Tribunais Recursais e da Suprema Corte no caso de recursos sobre decisões arbitrais. O tema da interpretação de contratos escritos é dinâmico e possui grande importância, uma vez que a interpretação é o principal aspecto comercial em litígios e pelo fato de o direito inglês ser recorrentemente aplicado para inúmeros negócios transnacionais. Palavras-chave: Contratos Escritos; Interpretação;Direito Inglês; Cortes Recursais. Abstract: This article examines the leading principles governing interpretation of written contracts under English law. This is a comprehensive and incisive analysis of the current law and of the relevant doctrines, including the equitable principles of rectification, as well as the powers of appeal courts or of the High Court when hearing an appeal from an arbitral award. The topic of interpretation of written contracts is fast-moving. It is of fundamental importance because this is the most significant commercial focus for dispute and because of the number of cross-border transactions to which English law is expressly applied by businesses. Keywords: Written Contracts;Interpretation; English Law;Appeal Courts. 1 Artigo original InterpretationofWrittenContracts in England, traduzido por Breno Luiz Guilherme Gaspar, Flávia Costella de Pennafort Caldas, Gustavo Cavaliere da Rocha, Luiz Filippe Esteves Cunha, Maria Beatriz Silva Machado Paschoal e Pedro Moysés Delfino. 79 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Sumário: Introdução – 1. Interpretação – 2. Retificação – 3. Recursos em questão de interpretação ou de retificação – 4. Considerações finais Introdução2 Neste tema, a abordagem inglesa definitivamente se distingue do entendimento de outros ordenamentos.3 No Direito inglês, o objetivo está em descobrir qual é o sentido linguístico objetivo pretendido pelas partes nos contratos escritos. Assim, as 2 Textbooks: Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.01- to 14.32 (o autortambémanalisa o processo civil naobraAndrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings at ch 15; sobrerecursos a partir de decisõesarbitraisenvolvendo o Direitoinglês, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol II, Arbitration and Mediation); K Lewison, Interpretation of Contracts (5thedn, London, 2011; e primeirarevisãoemDezembro 2013); G McMeel, The Construction of Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford, 2ndedn 2011) (vejatambémMcMeel, `The Interplay of Contractual Construction and Civil Justice: Procedures for Accelerated Justice’ (2011) European Business L Rev 437-449); Catherine Mitchell, Interpretation of Contracts (London, 2007); (para umaanálise da perspectivaaustraliana) JW Carter The Construction of Commercial Contracts (Hart, Oxford, 2013).Outrasdiscussões: Lord Bingham, `A New Thing Under the Sun: The Interpretation of Contract and the ICS Decision’ (2008) 12 Edinburgh LR 374; R Buxton, `”Construction” and Rectification After Chartbrook’ [2010] CLJ 253; A Burrows, `Construction and Rectification’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 88 et seq; R Buxton, `”Construction” and Rectification After Chartbrook’ [2010] CLJ 253; J Cartwright, 'Interpretation of English Law in Light of the Common Frame of Reference' in H Snijders and S Vogenauer (eds), Content and Meaning of National Law in the Context of Transnational Law (Sellier, 2009); Lord Grabiner, `The Iterative Process of Contractual Interpretation’ (2012) 128 LQR 41; Lord Hoffmann, `The Intolerable Wrestle with Words and Meanings’ (1997) South Africa LJ 656; E McKendrick, in S Worthington (ed), Commercial Law and Commercial Practice (Hart, Oxford, 2003); D McLauchlan, `Contract Interpretation: What is it About?’ (2009) 31 Sydney Law Review 5; Lord Nicholls, `My Kingdom for a Horse: the Meaning of Words’ (2005) 121 LQR 577; Lord Phillips, `The Interpretation of Contracts and Statutes’ (2002) 68 Arbitration 17 Spigelmann CJ, `From Text to Contract: Contemporary Contractual Interpretation’ (2007) 81 ALJ 322; Sir Christopher Staughton, `How Do The Courts Interpret Commercial Contracts?’ [1999] CLJ 303; para leitura comparativa, veja a nota n° 3 abaixo. 3 Para leituras comparativas a respeito da interpretação de contratos, MJ Bonell, 'The UNIDROIT Principlesand CISG – SourcesofInspiration for EnglishCourts?' [2006] 11 Uniform Law Review 305; MJ Bonell (ed), The UNIDROIT Principles in Practice: Case Law and Bibliography on the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts (2nd ed, Ardsley, NY, USA, 2006), 144; Eric Clive in H MacQueen and R Zimmermann (eds), European Contract Law: Scots and South African Perspectives (Edinburgh University Press, 2006), ch 7 at 183; E Allan Farnsworth, `Comparative Contract Law’ in M Reimann and R Zimmermann (eds), The Oxford Handbook of Comparative Law (Oxford University Press, 2006), ch 28, at 920 et seq; C Valke, `On Comparing French and English Contract Law: Insights from Social Contract Theory’ (2009) Jo of Comparative Law 69-95 (citadocomo `Iluminador’ por Lord Hoffmann no casoChartbrook[2009] UKHL 38; [2009] 1 AC 1001, at [39]); `Contractual Interpretation: at Common Law and Civil Law: An Exercise in Comparative Legal Rhetoric’ in JW Neyers, R Bronaugh, SGA Pitel (eds), Exploring Contract Law (Hart, Oxford, 2009), 77-114; S Vogenauer, `Interpretation of Contracts: Concluding Comparative Observations’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford, 2007), ch 7; S Vogenauer and J Kleinheisterkamp (eds), Commentary on the UNIDROIT Principles of International Commercial Contracts (Oxford University Press, 2009), 311; K Zweigert and H Kötz, An Introduction to Comparative Law (trans Tony Weir, 3rdedn, Oxford University Press, 1998), ch 30 (cabefazer a ressalva de que a discussãodestesautoressobre o direitoinglêsestádesatualizada, devido a desenvolvimentosexplicadosmaisespecificamentenaseção II desseartigo). 80 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 cortes inglesas não permitem que as partes argumentem sob a perspectiva subjetiva e pessoal em torno da interpretação do que foi escrito. Da mesma forma, não é usual que as cortes inglesas considerem válidos argumentos referentes às negociações ocorridas antes da elaboração do contrato como suporte para interpretar as cláusulas do contrato posteriormente redigido. Especificamente sobre este ponto de usar o que foi discutido previamente sobre o contrato para interpretar sua redação, é preciso fazer uma ressalva, uma vez que as cortes tendem a aceitar este comportamento quando as partes fazem uso do instrumento do remédio da retificação, buscando a solução por equidade. Essa exceção será discutida com maiores detalhes no tópico III do presente artigo. Em resumo, o princípio da retificação é um remédio equitativo, permitindo que a corte insira novas palavras para melhor refletir o verdadeiro consenso, objetivamente verificável, que existiu imediatamente antes da formalização do acordo.4 Assim, a retificação permite que a corte altere o sentido de cláusulas escritas se houver evidências de que as partes falharam em refletir nas cláusulas do contrato o que foi realmente acordado, desde que o consenso em torno deste acordo seja objetivamente factível e claro. Finalmente, cabe dizer que o advogado de civil law considerará notável o fato de que toda esta área não é regulada por leis. Todas as normas envolvendo a intepretação de contratos, assim como a doutrina equitativa da retificação (equitable doctrine of retification), são criações jurisprudenciais de tribunais recursais ou de decisões arbitrais que usaram o direito contratual inglês.5 Este monopólio judicial na área de contratos, até agora, tem funcionado bem, com as cortes tendo o poder de refinar, e, em alguns casos, de corajosamente desenvolver, os princípios norteadores na área. Aliás, há de ser ressaltado que este não é apenas o ponto mais importante do direito contratual inglês, como também, a partir de uma perspectiva prática, o tópico mais dinâmico da doutrina contemporânea. 1. Interpretação 4 Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.33 to 14.51; Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 5-110 et seq; D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims for Rectification for Mistake (London, 2010);G McMeel, The Construction of Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford University Press, 2 ndedn, 2011), ch 17; Snell's Principles of Equity (32ndedn, , London, 2010), ch 16; GH Treitel, The Law of Contract (13thedn, by E Peel, London, 2011), 8-059 et seq; M Smith, `Rectification of Contracts for Common Mistake’ (2007) 123 LQR 116; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral Mistake’ (2008) 124 LQR 608; A Burrows, `Construction and Rectification’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 77. 5 No caso de referências arbitrais que sejam entre a Inglaterra e o país de Gales, a High Court em Londres deve primeiro dar permissão para um recurso baseado no Direito inglês para que o processo siga para a High Court: s 69(2) e s 69(3), ArbitrationAct 1996 (Inglaterra e País de Gales). 81 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Revisão Recursal: Construção dos Contratos Escritos é uma Questão Legal e não Factual:Se o Direito Inglês regulamenta os negócios jurídicos relevantes, a interpretação de (todos) os ‘contratos escritos’ (incluindo os documentos eletrônicos)6 é uma questão de direito7 enquanto a interpretação de um contrato não totalmente contido em linguagem escrita (seja oral, ou parte escrita e parte oral) é uma ‘questão de fato’. Cortes recursais têm o poder de revisar erros relativos ao direito da primeira instância, porém, em geral, são deferentes às conclusões factuais.8 Objetividade: O ‘princípio objetivo dos negócios jurídicos’ impede referências a entendimentos não revelados e pessoais das partes sobre os efeitos e os significados dos termos escritos.9Lord Hoffmann, no caso Investors Compensation Scheme (1998), afirma: “Interpretação [dos contratos escritos] é a averiguação do significado que o documento iria transmitir a uma pessoa razoável, tendo esta todo o conhecimento anterior que estaria razoavelmente disponível para as partes na situação em que se encontravam no momento de celebração do contrato.”10 Contexto: As cortes preferem adotar uma abordagem contextual para a interpretação ao invés de uma reduzida ao ‘significado do dicionário’: veja-se a inspiradora declaração de Lord Hoffmann em Investors Compensation Scheme Ltd v. West Bromwich Building Society (1998)11 (na qual ele remete a decisões na década de 1970).12 As cortes permitem que partes consultem o contractual setting, expresso de formas variadas como ‘o propósito comercial’, ‘a genesis’, ‘o backgorund’, ‘o contexto’ da transação, a sua localização no ‘mercado’ relevante,13 ou seu ‘cenário’.14 Deve ser enfatizado, entretanto, que background não se estende às negociações pré-contratuais (sobre isso, veja abaixo; entretanto, no caso 6 Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 12-048. Ibidem, 12-046. 8 Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings, at para 15.12 and 15.72 et seq. 9 Reardon Smith Line Limited v. Hansen Tangen [1976] 1 WLR 989, 996, HL, per Lord Wilberforce. 10 [1998] 1 WLR 896, 912-3, HL. 11 [1998] 1 WLR 896, 912-3, HL; E McKendrick, in S Worthington (ed) Commercial Law and Commercial Practice (London, 2003) 139-62. 12 Prenn v. Simonds [1971] 1 WLR 1381, 1384-6, HL and Reardon Smith Line Limited v. Hansen Tangen [1976] 1 WLR 989, HL; no casoPrenn, at 1384, Lord Wilberforce liga a abordagem ‘anti-literal’ a decisões do séculodezenove. 13 O comentário principal é feito por LordWilberforce em Reardon Smith LineLimited v. Hansen Tangen[1976] 1 WLR 989, 995-6, HL; veja Sir Christopher Staughton [1999] CLJ 303 sobre o problema da ‘matrix factual’. 14 Charter Reinsurance Co Ltd v Fagan [1997] AC 313, 384, HL, per Lord Mustill: “As palavras devem ser colocadas como um todo no cenário do instrumento.” 7 82 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 de applications for rectification, existe uma exceção à proibição de negociações précontratuais como prova: veja mais abaixo). Necessidade de Disciplina Processual: Lord Hoffmann no caso BCCI (2001) afirma que cortes e árbitros deveriam frear as tentativas das partes de fornecerem quantidades excessivas de informações de background.15 Considerando isso, em Procter and Gamble Co v Svenska Cellulosa Aktiebolaget SCA (2012)16 o procedimento de pre-trial disclosurede documentos da Common Law17 foi avaliada por Rix LJ como um importante complemento para a construção de documentos. Acessibilidade ao Material de 'Background': O ‘background’ relevante deve ter sido acessívelàs partes presentes: no caso Sigma (2009) Lord Collins enfatiza este último ponto.18 Eles não devem estar enterrados com restos arqueológicos de uma transação originalmente formada por partes ou entidades diferentes — como em um documento inicial criado pelas partes X e Y, tempos atrás. A disputa atual importa a A e B, que são estranhos ao documento original, mas o adotaram, junto com outras centenas ou até milhares de outras partes contratantes no ‘mercado’ relevante. Proibição de Negociações Pré-Contratuais: Interpretação: A regra inglesa – sem equivalente na maioria dos ordenamentos ao redor do mundo – é de que, quando procurando interpretar contratos escritos (enquanto distintos dos contratos orais ou parcialmente escritos), uma parte não pode prover, sem a permissão do oponente, provas relativas às negociações anteriores das partes. A justificativa quíntupla para essa proibição é 15 [2001] 1 AC 251, at [39], HL. [2012] EWCA Civ 1413, at [38]: No direito inglês, evita-se questionar o que as partes tenham efetivamente pretendido, posto que a própria questão da intenção contratual é que esta seja derivada do contrato, e que, quando surge uma disputa referente à questão da real intenção, esta seja levada à submersão em “wishful thinking”. No âmbito da Civil Law, as questões são analisadas de forma diferente, com a corte livre, da forma como vejo estas questões, para a análise de todas estas com o propósito de prover a verdadeira, mesmo que distinta da imputada, intenção das partes. Mesmo assim, por razões distintas, a Lei Inglesa é mais disposta do que a Civil Law, novamente, da forma como vejo estas questões, a criar espaço para a revelação de documentos e para análise cruzada, ainda que isto aumente os custos do litígio. Em questões de interpretação contratual, existe uma ironia nesta combinação de abordagens. Ainda assim, aplicando voluntariamente, como faço, o entendimento corrente sobre a interpretação contratual na Lei Inglesa, que vem se tornando cada vez mais aberta a influências sobre considerações provenientes da matriz factual e construção intencional, sou incapaz de criar um acordo que as partes poderiam ou não ter alcançado, se estas houvessem pensado e discutido sobre o problema que as acometeu. 17 As regras principais estão codificadas em CPR Part 31: para comentários sobre essas regras procedimentais, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings,at ch 11. 18 Mas no caso Sigma, [2009] UKSC 2; [2010] 1 All ER 571; [2010] BCC 40, at [35] to [37], Lord Collins (com o suporte dos Lords Mance e Hope) desaprovou também expandir a procura por antecedentes quando, como no próprio caso Sigma, as partes da transação relevante poderiam não estar presentes em seu nascimento, e por sua vez se tornaram usuários de segunda-mão ou recebedores remotos do texto contratual de outros que estivera em circulação no mercado financeiro relevante. 16 83 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 (justificativas coletadas por Briggs J,19 primeiramente, em Chartbrook Ltd v. Persimmon Homes Ltd (2007), baseando-se na famosa palestra de Lord Nicholls, ‘My Kingdom for a Horse’):20 (i) evitar ‘incertezas e imprevisibilidades’, (ii) o fato de que não se pode garantir o acesso a esse histórico das negociações a terceiros interessados, (iii) esses acordos mudam constantemente, então tais provas não seriam úteis, (iv) impressões unilaterais podem contaminar o exame de forma tal que a abordagem interpretativa objetiva venha a ser minada, e (v) ‘negociadores experientes estariam tentados a deixar uma trilha de documentos úteis para si.’.21 Negociações de Pré-Formação Relevantes para a fundamentação do Princípio da Retificação: Estas provas devem ser apresentadas para o propósito de retificação, um remédio equitativo independente (ver abaixo). Assim, reivindicações por retificação são, geralmente, feitas em conjunto com um pedido baseado na ‘interpretação’ ordinária.22 Conduta na Pós-Formação: Um contrato escrito não deve ser interpretado por meio de referências à conduta das partes subsequentes à constituição do contrato.23 Entretanto, há duas exceções: (1) se puder ser comprovado que as partes especificamente concordaram em alterar ou dispensar o acordado;24 ou (2) se a teoria do 'estoppel by convention' puder ser estabelecida, ou seja, se for possível provar que, após a formação, as partes concordaram implicitamente em como os termos escritos deveriam ser interpretado ou modificados.25 19 [2007] EWHC 409 (Ch), at [23]. Lord Nicholls, `My Kingdom for a Horse: the Meaning of Words’ (2005) 121 LQR 577; nesta nota sobre a decisão da House of Lords no casoChartbrook, D McLaughlan (2010) 126 LQR 8, 9-11 rejeitaessasmúltiplasjustificaçõessugeridas. 21 Chartbrook v Persimmons [2008] EWCA Civ 183; [2008] 2 All ER (Comm) 387, at [111], per Collins LJ; esse argumento é descrito como não convincente por D McLaughlan (2010) 126 LQR 8, 11. 22 Nessa abordagememduasfrentes, verG McMeel (2011) European Business L Rev 437-449, e R Buxton, “Construction” and Rectification After Chartbrook’ [2010] CLJ 253 e A Burrows, `Construction and Rectification’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 88 et seq. 23 Whitworth Street Estates (Manchester) Ltd v. James Miller & Partners Ltd (1970) [1970] AC 583, 603, HL, per Lord Reid. 24 Chitty on Contracts (31stedn, London, 2012), 12-111. 25 Para estabelecer tal ‘estoppel', um acordo implícito deve ser estabelecido em seus padrões de comportamento e interação: AmalgamatedInvestment&PropertyCoLtd v. Texas CommerceInternational Bank Ltd [1982] QB 84, 120, CA, perLordDenning MR: ‘Então temos aqui (...) provas de condutas subsequentes que vieram à nossa ajuda. É possível – não interpretar o contrato – mas ver como eles próprios agiram. Sob a forma do ‘estoppel [byconvention]’ nós podemos prevenir que as partes neguem a interpretação que elas próprias deram.’ 20 84 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Senso-Comum Comercial: As cortes devem interpretar instrumentos escritos, inclusive contratos, de uma maneira 'comercial', com sensibilidade ao ‘senso comum’ dos negócios.26 Há uma série de declarações em favor dessa visão. (1) Lord Diplock afirma em Antaios Cia Naviera SA v. Salen Rederierna AB (1985):27‘se a análise detida tanto da semântica quanto da sintática das palavras em um contrato comercial leva a uma conclusão que desconsidera o senso comum dos negócios, devese abdicar desta em favor do senso comum dos negócios.’ (2) Lord Steyn afirma em Mannai Investment Co v. Eagle Star Life Assurance (1997):28 ‘Palavras são (…) interpretadas da forma como um comerciante razoável as construiria. E o padrão de um comerciante razoável é hostil às interpretações técnicas e às ênfases indevidas nas sutilezas da linguagem.’ (3) Lord Hope endossou essa abordagem na Suprema Corte inglesa em Multi-Link Leisure v. North Lanarkshire (2010),29 notando que isso era consistente com os princípios de Lord Hoffmann’s principles em Investors’ Compensation Scheme Ltd v. West Bromwich Building Society (1998).30 (4) A Suprema Corte reiterou essa abordagem no caso Rainy Sky (2011),31 no qual Lord Clarke afirma: [20] Não é, a meu ver, necessário concluir que, a não ser que o sentido mais natural das palavras leve a um resultado tão extremo a ponto de indicar que não era o intencionalmente almejado, a corte deva dar eficácia ao referido significado (…).[21] (…) Caso existam duas construções possíveis, o tribunal deve preferir aquela que é compatível com o senso comum dos negócios e de rejeitar a outra (…).[40] Uma vez que a linguagem da estipulação contratual relevante é susceptível a dois significados, é apropriado que o tribunal leve em conta o senso comum comercial ao definir o que um homem razoável teria depreendido sobre a intenção das partes. (5) E a Corte de Apelações, em Procter and Gamble Co v Svenska Cellulosa Aktiebolaget SCA (2012), enfatizou que o caso Rainy Sky não é um mandado para que se reescreva um contrato a fim de atingir um “resultado mais justo” (ainda que se assuma 26 Antaios Cia Naviera SA v. Salen Rederierna AB [1985] AC 191, 201, HL, per Lord Diplock. [1985] AC 191, 201, HL. 28 [1997] AC 749, HL (uma decisão por maioria sobre aviso de aluguel); PV Baker (1998) 114 LQR 55-62. 29 [2010] UKSC 47; [2011] 1 All ER 175, at [21]. 30 [1998] 1 WLR 896, 913, HL. 31 Rainy Sky SA v Kookmin Bank [2011] UKSC 50; [2011] 1 WLR 2900. 27 85 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 que isto poderia ser alcançado). No caso Procter and Gamble Moore-Bick LJ afirma que, onde não há ambiguidade, o tribunal deve dar cumprimento ao sentido estrito do contrato.32 Interpretação pela Reconstrução do Texto:33 A House of Lords em Chartbrook Ltd v. Persimmon Homes Ltd (2009)34 sustentou que um juiz pode 'interpretar' um contrato pela reformulação total de uma frase relevante ou de um pedaço do contrato quando (i) está claro que houve equívocos na elaboração e (ii) também está claro, como uma questão de interpretação objetiva, qual era a verdadeira intenção das partes. Logo, tanto princípios interpretativos ordinários quanto a doutrina de retificação podem ter como efeito a revisão de um documento. O caminho mais seguro para a parte que busca uma decisão judicial favorável em um contrato sub judice é pedir tanto a ‘construção’ (no sentido ‘reconstrutivo’ aqui explicado) e a ‘retificação’ (resumida abaixo).35Há vários exemplos de invocações deste estilo interpretativo pelos tribunais: Holding & Barnes plc v. Hill House Hammond Ltd (No 1) (2001);36Littman v. Aspen Oil (Broking) Ltd (2005);37KPMG LLP v. Network Rail Infrastructure Ltd (2007);38Springwell Navigation Corporation v. JP Morgan Chase (2010);39Pink Floyd Music Ltd v. EMI Records Ltd (2011).40 [2012] EWCA Civ 1413, at [22], per Moore-Bick LJ: ‘... o ponto de partida devem ser as palavras que as partes usaram para expressar suas intenções ou, no caso de um contrato cuidadosamente elaborado, como este, o tribunal deve se atentar para não cair na armadilha de reescrever o contrato para produzir o que se acredita ser um sentido melhor. Na minha visão, o contrato, como um todo, não é razoavelmente passível de ser lido com duas significações distintas.’Rix LJ adicionou em [38]: ‘... aplicando de boa vontade, como faço, o atual entendimento sobre interpretação contratual no Direito inglês, que se tornou cada vez mais aberto a influências de considerações de matriz factual e interpretações teleológicas, não sou capaz de criar um contrato que as partes poderiam, ou não ter chegado, caso tivesse pensado e discutido o problema que os afligiu.’ Nos fatos do caso Procter & Gamble, o tribunal sustentou que as partes haviam concordado que o preço por plantas caras estaria em euros, mas o pagamento de tais valores se daria em libras. Após a formação, a taxa de câmbio euro/libra se moveu desvantajosamente para o comprador. Mas o comprador não pôde mostrar, se por um processo interpretativo, implicação dos termos, ou retificação, que havia um consenso de que os euros deveriam ser convertidos em libras na cotação (favorável ao comprador) da data do contrato, distintamente das datas subsequentes de entrega. Um dos documentos comerciais trocados pelas partes trazia uma anotação dando uma taxa de câmbio aplicável à data. Mas isso não tinha como objetivo impor uma taxa de câmbio fixa. Apenas registrava um processo de cálculo feito quando das negociações entre as partes. Na ausência da provisão de uma cotação fixa, o movimento adverso da moeda deveria estar a cargo do comprador, e não era função do tribunal salvar a parte deste resultado econômico’. 33 Investors Compensation Scheme case [1998] 1 WLR 896, 912-3, HL (propositions (iv) and (v)). 34 [2009] UKHL 38; [2009] 1 AC 1101; noted D McLaughlan (2010) 126 LQR 8-14. 35 Nessa abordagemdupla, G McMeel (2011) European Business L Rev 437-449, and R Buxton, `”Construction” and Rectification AfterChartbrook’ [2010] CLJ 253 and A Burrows, `Construction and Rectification’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 88 et seq. 36 [2001] EWCA Civ 1334; [2002] L & TR 103. 37 [2005] EWCA Civ 1579. 38 [2007] EWCA Civ 363; [2007] Bus LR 1336. 39 [2010] EWCA Civ 1221; [2010] 2 CLC 705, at [132] to [140]. 40 [2010] EWCA Civ 1429; [2011] 1 WLR 770 (LordNeuberger MR andLaws LJ sustentou que um contrato de exploração de gravações do Pink Floyd poderia ser interpretado de forma a abarcar gravações digitais da mesma banda. Decidir de forma contrária seria ir contra o propósito comercial óbvio da transação. Contudo, Carnwath LJ discordou, acreditando não haver erro óbvio). 32 86 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Situações nas quais a utilização da teoria da Reconstrução não é possível: Essa reconstrução não será uma possibilidade se: (1) A única real reclamação é de que as duas partes entenderam equivocadamente a extensão do objeto: Bashir v. Ali (2011);41 ou (2) Onde a cláusula é falha, mas não apresenta uma solução interna: a Corte de Apelação em ING Bank NV v. Ros Roca SA (2011)42 afirmou não ser possível, segundo os fatos, aplicar a técnica da interpretação 'reconstrutiva' para reescrever a cláusula concernente à 'taxa adicional' de bancos de investimento. De forma similar, a tarefa de reconstruir o texto foi declarada impossível em Fairstate Ltd v. General Enterprise & Management Ltd (2010),43 caso no qual o juiz afirma:44 'os defeitos no contrato registrados na 'Guarantee Form' são tão fundamentais e extensivos que não podem ser curados de forma suficiente pela construção intencional, ou por retificação, ou por qualquer combinação dessas abordagens.’ (E a retificação falhou por não existir um consenso anterior claro a respeito dos efeitos e do escopo da garantia). Cortes não devem exceder em seu Poder de Interpretação: As cortes não devem reescrever contratos ilegitimamente se seu significado é claro e não leva a absurdos comerciais. Lord Mustill em Charter Reinsurance Co Ltd v. Fagan (1997) ressalta que é ilegítimo a cortes ou a árbitros ‘extrair das palavras um significado que elas não carregam [2011] EWCA Civ 707; [2011] 2 P & CR 12, at [39], per Etherton LJ: `…esse não é o caso…no qual as palavras usadas pelas partes, durante a construção, levem a resultados arbitrários e irracionais.’ 42 [2011] EWCA Civ 353; [2012] 1 WLR 472 (porém a corte foi capaz de alcançar uma resolução favorável para o banco ao aplicar a doutrina do 'estoppel by convention' para levar em conta acordos posteriores: veja [111] a [112], per Rix LJ, especialmente essa passagem em [111] `...'estoppel' é uma doutrina flexível que pode levar em conta … a interação honesta e responsável de partes comerciais ao contratar. Onde há espaço para desacordo quanto ao significado ou efeito de um contrato, mas as partes claramente escolheram (ou pretendiam escolher) seu próprio entendimento e se relacionaram com base nesse entendimento, independentemente se essa mutualidade é encontrada em uma presunção comum, ou em consentimento, ou na confiança das partes nas interpretações recíprocas, a doutrina do 'estoppel' permite à corte dar efetividade no caso específico aos ‘acordos objetivamente verificados e mútuos’ das partes’. 43 [2010] EWHC 3072 (QB); [2011] 2 All ER (Comm) 497; 133 Con LR 112 (Richard Salter QC, Deputy). 44 Ibidem, at [94]: “os defeitos no contrato registrados na 'Guarantee Form' são tão fundamentais e extensivos que não podem ser sanados de forma suficiente pela construção intencional, ou por retificação, ou por qualquer combinação dessas abordagens.” Garantias requerem clareza, ibidem at [93]: `é particularmente importante que a Corte exija clareza para todos (e não apenas alguns) os termos materiais das transações em casos, como o presente, onde é requisitada a usar seus poderes de construção intencional ou de retificação para corrigir erros na redação do documento, que é invocado para satisfazer os requisitos do Estatuto de Fraudes de 1677 s 4. Agir de outra forma é se arriscar a colapsar a proteção que o estatuto deveria conferir.’ Quanto à alegação do credor de que o pretenso garantidor estava impedido (‘estoppel by representation' pela oferta do documento) de negar a validade do documento, o juiz afirmou, ibidem, at [97]: ‘é difícil enxergar por que qualquer signatário de um acordo de garantia defeituoso não estaria impedido de forma similar. Quanto a isso, a posição aqui me parece ser bastante similar à considerada pela House of Lords em Actionstrength Limited (t/a Vital Resources) v International Glass Engineering In. Gl. En. Spa [2003] UKHL 17; [2003] 2 AC 541, no qual o 'plea of estoppel' foi unanimemente rejeitado.’ 41 87 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 verdadeiramente’, já que isso seria ‘substituir a barganha real por uma que a corte acredita que seria melhor se tivesse ocorrido.’45 No mesmo sentido, Rix LJ diz em ING Bank NV v. Ros Roca SA (2011):46‘Juízes não deveriam ver em Chartbrook Ltd v Persimmon Homes Ltd [2009] AC 1101 um precedente para reconstruir o contrato das partes, mas a oportunidade de solucionar pela construção um claro erro de linguagem que não poderia ser proposital.’ 2. Retificação47 As Duas Bases: existem duas bases distintas que possibilitam a retificação de contratos escritos: (1) retificação de intenções comuns baseada em divergência entre a versão inicialmente manifestada da transação a ser realizada e os termos finais acordados entre estas partes; ou (2) erro unilateral, onde a parte B, de modo criticável, falhou em apontar à parte A que os termos escritos da transação iminente não acordariam com o entendimento errôneo desta mesma parte A quanto ao conteúdo daquele contrato escrito. Estas duas vertentes serão, agora, analisadas separadamente. Retificação de Intenção Comum: um contrato pode ser retificado para trazêlo à conformidade com os entendimentos compartilhados e pré-contratuais das partes sobre os termos presentes, sendo necessário (i) que haja alguma manifestação externa daquele entendimento;48 e (ii) que este entendimento seja apurado e interpretado pelo recurso ao método objetivo. Não é suficiente que ambas as partes tenham, de modo equivocado, entendido que estavam lidando com o objeto ‘X’ e aplicado este rótulo durante as negociações subsequentes. Se o contrato escrito, então, confirma que o objeto a ser tratado é, de fato, ‘X’, não há espaço para retificação, por não haver divergência entre o consenso anterior exteriorizado e os termos eventualmente escritos.49 A corte não tem ‘poderes ilimitados para fazer o que considera justo em relação a um pedido de retificação’.50 45 [1997] AC 313, 388, HL. [2011] EWCA Civ 353; [2012] 1 WLR 472, at [110]. 47 D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims for Rectification for Mistake (London, 2010); Snell's Principles of Equity (32ndedn, London,2010), ch 16; vejatambémNeil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.33 to 14.51; Chitty on Contracts (31stedn, London, 2012), 5-110 et seq; GH Treitel, The Law of Contract (13thedn, by E Peel, London, 2011), 8-059 et seq; M Smith, `Rectification of Contracts for Common Mistake’ (2007) 123 LQR 116, especialmente 130 até o final; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral Mistake’ (2008) 124 LQR 608, especially 608-10, 639-40; A Burrows, `Construction and Rectification’, in A Burrows and E Peel (eds), Contract Terms (Oxford University Press, 2007), 77, especialmente 90 até o final. 48 Joscelyne v. Nissen [1970] 2 QB 86, CA. 49 Rose (Frederick E) (London) Ltd v. Wm H Pim Junr & Co Ltd [1953] 2 QB 450, CA. 46 50 Holaw (470) Ltd v Stockton Estates Ltd (2000) 81 P & CR 404, em [41], por Neuberger J. 88 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Necessidade de uma intenção contínua e não interrompida: se no estágio anterior das negociações impuser que as partes concordem com um conjunto de termos ‘A, B e C’, mas a versão final é um conjunto de termos ‘X, Y e Z’, pode estar claro que as partes substituíram os termos A, B e C pelos novos elementos X, Y e Z. Se este for o caso, não deveria haver escopo para retificar o contrato para restaurar os termos A, B e C. A razão simples para a retificação ser negada é que as partes substituíram, livremente, os termos antigos pelos novos e concordaram sobre estes. A retificação será apropriada apenas se houve uma intenção contínua e não interrompida de entrar em um contrato baseado nos termos A, B e C. Nos fatos acima apresentados, não houve tal consenso não interrompido e, assim, os termos finais devem permanecer: X, Y e Z. A necessidade de subsistir intenção comum em forma inalterada surgiu de modo dramático no caso Daventry (2011),51 uma decisão majoritária da Corte de Recursos (Toulson LJ e Lord Neuberger MR; Etherton LJ sendo contrário e Vos J anulando). A surpreendente decisão majoritária parece entrar em conflito com o processo elementar de negociação mencionado.52Será decepcionante se esta decisão problemática sobreviver. Não é certo que a lei inglesa permita que ocorra retificação quando, durante as negociações, houve clara quebra no padrão da linguagem contratual relevante e a versão preferida de uma das partes tenha claramente prevalecido (aplicando princípios comuns que regem negociações sequenciais). Se a outra parte falhou em fazer objeção a esta cláusula ou novo conjunto de termos claramente contraditórios e não há constatação de negociação inconcebível nesta fase, o contrato deve proceder sobre estes termos estabelecidos. 51 Daventry District Council v Daventry & District Housing Ltd [2011] EWCA Civ 1153, em [210], por Lord Neuberger: “estava sendo esclarecido por DDH … que eles estavam incluindo um termo que tinha como efeito que DDC deveria pagar o deficit da pensão e, também, que isto seria compatível com a cláusula 14.10.2, que havia sido incluida no rascunho contratual quase que desde o princípio.”Apontou P Davies [2012] LMCLQ. 52No caso Daventry o conselho distrital (`DDC’) obteve, com sucesso, retificação, apesar do fato de que o réu, uma associação de habitação, (`DDH’), havia claramente introduzido na segunda fase das negociações uma cláusula competitiva que, inequivocadamente, contradizia a versão preferida pelo DDC, e à qual o DDC, por aconselhamento legal, objetivamente pareceu assentir por celebrar o contrato final nos termos preferidos pela DDH. Surpreendentemente, uma maioria da Corte de Apelação (Toulson LJ and Lord Neuberger MR) reverteu Vos J. Na opinião majoritária, a versão original do documento, conforme apontado por Vos J, alocou os encargos financeiros para o déficit de pensões para DDH. Durante os estágios iniciais da negociação, o negociador principal da DDH percebeu que esta formulação escrita não estaria exatamente a favor do DDC, porém não interviu para ter certeza de que as partes focariam especialmente nesta incerteza textual. Toulson LJ, em [178], e Lord Neuberger MR, em [213] a [225], esta última, ‘não sem hesitar’, em [227] apoiou que a alteração subsequente, notável inserção da cláusula 14.10.3, introduzida pela DDH (esta cláusula inequivocadamente colocou o encargo financeiro com o DDC), não tinha sido sinalizada de forma suficientemente clara ao DDC. Desta forma, objetivamente, na opinião majoritária, esta modificação não havia se sobreposto à versão precedente. A maioria chegou a esta conclusão, mesmo que esta redação final claramente contradissesse a versão anterior e mesmo que esta versão final estivesse disponível para ser lida pelos oficiais do DDC e seus advogados. Porém, com respeito, a decisão de Toulson LJ’s e Lord Neuberger MR não é convincente’. 89 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Retificação de Erro Unilateral: a regra geral é de que a corte não deve conceder retificação simplesmente para compensar o entendimento equivocado de uma parte.53 Porém, a exceção é possível se a parte B está ciente de que a parte A está equivocada quanto ao conteúdo ou significado dos termos escritos. Portanto, onde esta exceção for aplicável, a retificação é possível. Para este propósito, B estará “ciente” dos erros de A em qualquer destas três situações: (1) se ele tinha conhecimento do fato; (2) se estava propositalmente cego a um fato óbvio; ou (3) se ele, intencional ou irresponsavelmente, falhou, contrário à noção de razoabilidade e honestidade, em perguntar se havia de fato acontecido um erro.54 Mesmo que tenha sido dito que a lei não requer prova de ‘má-fé’,55 fica claro que, nas três situações expostas, houve ausência de boa fé ou de probidade por parte de B.56 A linha da equidade compreende que, nas situações (1) a (3), se B se mantiver em silêncio, ele não pode tirar vantagem do erro de A, e que, além disso, o contrato pode ser retificado em favor de A.57 Isto é justificado com fundamento na má-fé, da conduta pouco escrupulosa ou concordância repreensível de B com o erro de A. Esta é uma forte intervenção equitativa, pois a parte equivocada atinge “vitória completa”: o contrato é reformulado para refletir seu entendimento unilateral, mesmo que não tenha havido entendimento compartilhado que suporte esta nova versão do contrato.58 Status Residual da Retificação: a retificação não precisa ser invocada se a 53 Riverlate Properties v. Paul [1975] Ch 133, CA. Commission for New Towns v. Cooper (GB) Limited [1995] Ch 259, 281 D, 292 F, CA; George Wimpey UK Ltd v. VI Construction Ltd [2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P & CR DG5, at [79]; Traditional Structures Ltd v H W Construction Ltd [2010] EWHC 1530 (TCC) 55 Thomas Bates Ltd v. Wyndham's (Lingerie) Ltd [1981] 1 WLR 505, 515 H, CA, per Buckley LJ: “Sem dúvidas, eu acredito que, em qualquer caso como este, a conduta do réu deve se dar de tal maneira para que seja desigual que ele deva ser permitido a se opor à retificação do documento. Caso isto, necessariamente, implique alguma medida de “ausência de boa-fé”, que seja; mas, por minha parte, acredito que a doutrina seja algo mais dependente da equidade das posições.” 56 George Wimpey UK Ltd v. VI Construction Ltd [2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P & CR DG5, at [79]. 57 Roberts & Co. Ltd v. Leicestershire CC [1961] Ch 555, 570, Pennycuick J (noted RE Megarry (1961) 77 LQR 313-6); `The Olympic Pride’ [1980] 2 Lloyd’s Rep 67, Mustill J; Thomas Bates Ltd v. Wyndham's (Lingerie) Ltd [1981] 1 WLR 505, CA; AgipSpA v. Navigazione Alta Italia SpA, `The NaiGenova and the NaiSuperba’ [1984] 1 Lloyd's Rep 353, 365, CA; Commission for New Towns v. Cooper (GB) Limited [1995] Ch 259, CA (noted D Mossop (1996) 10 JCL 259-63); George Wimpey UK Ltd v. VI Components Ltd [2005] EWCA Civ 77; [2005] 2 P & CR DG5; Traditional Structures Ltd v HW Construction Ltd [2010] EWHC 1530 (TCC), at [25] to [31] ; D McLauchlan, `The “Drastic” Remedy of Rectification for Unilateral Mistake’ (2008) 124 LQR 608-40 (queacreditaqueestacategoria de retificaçãotenhasidoequivocadamenteentendida; apesar de um juiz de primeirainstâncianão deter liberdade para reconsiderarestacategoria de retificaçãoporserlimitado pela autoridade da Corte de Recursos: Traditional Structures, caso, ibidem, em [32] e [33]; nesteponto, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.47). 58 Rowallan Group Ltd v Edgehill Portfolio No 1 Ltd [2007] EWHC 32 (Ch); [2007] NPC 9, at [14], per Lightman J: `o remédio da retificação para erro unilateral é um remédio drástico, pois este tem o resultado de impor ao réu um contrato que ele não celebrou e não intencionava celebrar.’D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims of Rectification (London, 2010), 4-90 to 4-93. 54 90 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 corte puder, como uma questão de simples “construção” (conforme explicado na seção II deste artigo), revisar o documento relevante. Isso é possível se (a) estiver claro que a escolha de palavras atual não fizer sentido comercial, e (b) se estiver aparente como o documento deva ser reconstruído.59 Porém, a teoria da retificação só deve ser aplicada em último caso nesta hipótese. Esta doutrina é aplicada apenas se outras técnicas, como interpretação por Common Law, ou mesmo a implicação60 de termos na Common Law,61 falharem em apresentar uma solução.62 ‘Explosão’ da Retificação em Litígios: Embora, como já foi mencionado, a teoria da retificação somente deva ser adotada em último caso, tem havido uma ‘explosão’ de demandas com fundamento na retificação. Isso pode ser atribuído aos seguintes fatores: primeiramente, ao aumento da complexidade dos contratos comerciais e de outros tipos de contratos escritos; em segundo lugar, à tendência ao uso sucessivo de minutas elaboradas sob o modelo ‘copiar e colar’ de processamento de palavras; ao aumento dos acordos modernos com múltiplas partes e jurisdições; e, finalmente, à riqueza dos registros eletrônicos das negociações.63 Retificação e Prova: A parte que procura a retificação deve conseguir satisfazer padrões elevados de prova, especialmente quando ambas as partes tiveram um aconselhamento profissional.64A retificação permite um esclarecimento melhor de pontos obscuros de um texto escrito do que o processo de interpretação da Common Law. Ao considerar um pedido de retificação, a corte pode admitir provas externas, ou seja, admitir 59 Holding & Barnes plc v. Hill House Hammond Ltd (No 1) [2001] EWCA Civ. 1334; [2002] L & TR 103; Littman v. Aspen Oil (Broking) Ltd [2005] EWCA Civ 1579; Nittan (UK) Ltd v. Solent Steel Fabrication Ltd [1981] 1 Lloyd’s Rep 633, CA. 255 Em termos geralmente implícitos, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), ch 13. 61 Holaw (470) Ltd v Stockton Estates Ltd (2000) 81 P & CR 404, at [41], per Neuberger J, at [44] (se um ponto é tão óbvio que pode ser compreendido sem que seja necessária explicação, o juiz acredita que a doutrina apropriada seja termos implícitos no lugar de retificação equitativa). 62 Snell's Principles of Equity (32nd edn, London, 2010), 16-002: `Retificação não será decretada se o resultado desejado puder ser atingido de forma conveniente por outros meios: por dependência dos direitos de Common Law, ou por acordo entre as partes’.Snell, em 16-009, também observa que a base para termos implícitos, incluindo no contexto de contratos escritos, continua sendo matéria que demanda ‘necessidade’, conforme observado por Sir Anthony Clarke MR, em Mediterranean Salvage & Towage Ltd v Seamar Trading & Commerce Inc, `The Reborn’ [2009] EWCA Civ 53; [2009] 2 Lloyd’s Rep 639, at [18]; neste caso e na recepção atraentemente cética da discussão de Lord Hoffmann’s em Attorney-General for Belize v Belize Telecom Ltd [2009] UKPC 10; [2009] 2 All ER 1127, at [16] to [27], especialmente [21], Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), at 13.15; e ver G McMeel, The Construction of Contracts: Interpretation, Implication and Rectification (Oxford University Press, 2nd edn, 2011), ch’s 10 and 11. 63 D Hodge, Rectification: The Modern Law and Practice Governing Claims of Rectification (London, 2010), prefáciopor Lord Neuberger MR, at p (vii). 64James Hay Pension Trustees Ltd v.Hird [2005] EWHC 1093 (Ch), em [81]; Surgicraft Ltd v Paradigm BiodevicesInc[2010] EWHC 1291 (Ch), at [69], per Christopher Pycroft QC (Deputy High Court Judge); Traditional Structures Ltd v HW Construction Ltd [2010] EWHC 1530 (TCC), at [34] 91 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 discussões ou material documental fora do texto do acordo escrito como prova. Assim, a retificação é uma exceção da ‘parol evidence rule’ (regra especial inglesa que domina os contratos escritos – a prova encontrada fora do contrato escrito não pode ser usada pela parte para mudar, suplementar ou contradizer os conteúdos do documento).65 Além disso, a ‘parol evidence rule’ não restringe o processo de discernimento pré-contratual das intenções e negociações das partes para o propósito de retificação. Nem uma cláusula ‘entire agreement’ é compreendida como prova externa, se a prova é citada durante o requerimento de retificação de um contrato escrito. Uma cláusula ‘entire agreement’ é uma estipulação do contrato principal declarando que as partes concordaram em excluir do seu acordo quaisquer garantias ou promessas prévias ou externas. Sugere-se que não seria apropriado para a cláusula ‘entire agreement’ excluir tais provas, neste contexto, porque a função dessa cláusula é excluir o recurso a compromissos orais ou garantias escritas adjacentes, independentes do contrato principal escrito (promessas prévias ou colaterais). Em contraste, a retificação é invocada para mostrar que o contrato principal não mostra com precisão o real consenso estabelecido entre as partes.66 3. Recursos em questão de interpretação ou de retificação67 Se o Direito inglês é aplicável à transação relevante, a interpretação (da integralidade) de ‘contratos escritos’ (incluindo documentos eletrônicos)68é uma questão de direito.69 Isto significa que, se a permissão para interpor recurso é obtida – e permissão é um pré-requisito para a interposição de um recurso em um caso civil no direito inglês 70 – uma corte de recursos terá oportunidade de reconsiderar a visão da corte inferior no que se refere 65 De forma geral, nestaregra, Neil Andrews, Contract Law (Cambridge University Press, 2011), 14.26 et seq. Surgicraft Ltd v Paradigm BiodevicesInc[2010] EWHC 1291 (Ch), at [73], per Christopher Pycroft QC (Deputy High Court Judge); Snell's Principles of Equity (32ndedn, London, 2010), 16-008; Chitty on Contracts(31stedn, London, 2012), 5-112. 67 Nos procedimentos do sistema de apelações na corte Inglesa, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings at ch 15; sobre apelações em sentenças arbitrais em pontos de direito inglês, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol II, Arbitration and Mediation, para 18.67 et seq. 68 Chitty on Contracts (31stedn, London, 2012), 12-048. 69 Ibidem, 12-046. 70 CPR 52.3(1); CPR 52.4(2). 66 92 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 aos efeitos do contrato71 (ou o ponto em questão pode ser objeto de recurso à Corte Comercial, por parte de um tribunal arbitral, se a Corte Comercial conceder permissão).72 Em contraste, cortes de recurso são, de modo geral, relutantes quanto a reconsiderar análise de fato feita por cortes de primeira instância, apesar de que a abrangência exata dos recursos contra questões de fato tenha se tornado campo complexo no processo: “... a abordagem de uma corte de recursos dependerá do peso anexado à decisão do juiz e esse peso dependerá da extensão da vantagem que o juiz, como juiz de primeira instância, tem sobre a corte de recursoos; quanto maior a vantagem, mais relutantes estarão as cortes de recursos em interferir.”73 A ‘vantagem’ seria o monopólio da corte inferior (na prática moderna) quanto à colheita da prova oral. As decisões da High Court ou da Corte de Recursos sobre a interpretação de contratos escritos fornecem importantes precedentes quanto a palavras ou frases consideradas como padronizadas em documentos comerciais. Estas decisões serão vinculantes para todas as cortes inferiores, bem como em relação aos árbitros que aplicarem o direito inglês. Quanto ao remédio equitativo da retificação (ver sessão III acima), uma obra74 expõe que: apesar de os princípios aplicáveis que baseiam a retificação serem uma questão de direito, se um instrumento particular deva ou não ser retificado é uma questão de fato; considerando que a construção correta de um contrato escrito particular é uma questão também de direito. Assim, recursos referentes à interpretação são bem mais comuns do que recursos com fundamento na teoria da retificação. 4. Considerações finais Cortes inglesas modernas, bem como árbitros aplicando a lei inglesa, não estão mais amarrados à redação literal do contrato escrito, podendo considerar a intenção comum das partes. Em face de mais de um significado possível, é legítimo que as cortes 71 eg, AXA Reinsurance (UK) v. Field [1996] 1 WLR 1026, HL. s 69, Arbitration Act 1996 (England); possibilidade de concessão de autorização para apelar de uma decisão de árbitro é restrita: ibidem, s 69(3). 73 Assicurazioni Generali SpA v. Arab Insurance Group [2002] EWCA Civ 1642; [2003] 1 WLR 577, CA, at [15], per Clarke LJ. 74 Snell's Principles of Equity (32ndedn, London, 2010), 16.11. 72 93 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 prefiram um determinado significado que reflita melhor as realidades comerciais do contrato relevante, ou mesmo da cláusula contratual específica. As mesmas cortes e árbitros especificados acima, que aplicam princípios substantivos ingleses, possuem um poder liberal de interpretar um contrato escrito com a intenção de criar novo sentido a partir daquele, dado que é objetivamente claro que o contrato foi escrito defeituosamente e, também, dado que seu real significado seja óbvio. Esta última condição deve se manter estrita. A corte não deve envolver-se com especulações ou reescrita criativa, situação desprovida de suporte por parte da seguinte implicação: ‘é isto que nós, verdadeiramente, intencionávamos e tínhamos acordado, apesar de o documento final não ter, precisamente ou inteligivelmente, refletido isto.’ O direito contratual inglês não permite referência a negociações précontratuais quando da interpretação de contrato escrito. A esta última proposição, há uma grande exceção quando uma parte busca o remédio equitativo da retificação. Cortes de recursos podem revisar uma decisão de corte de primeira instância (ou de tribunal arbitral em que a lei inglesa tenha sido aplicada)75 em um ponto de interpretação se o contrato relevante for integralmente contido em linguagem escrita. Isto se dá pelo fato de a interpretação de tal documento ser classificado como uma questão de direito, diferentemente de uma questão de fato (questões de fato, se se estiverem relacionadas a provas orais produzidas em primeira instância, não costumam ser discutidas em grau de recurso). Não obstante, recuros cíveis, mesmo que referentes a questões de direito, não estão automaticamente autorizados. O recorrente deve, primeiramente, ingressar na corte de primeira instância ou na corte de recursos para obter permissão para recorrer. Se tal permissão for concedida, a corte de recursos poderá apreciar a questão referente à interpretação.76 A declaração da corte de recursos quanto à metodologia relevante do significado conflitante será, então, vinculante para todas as cortes inferiores e tribunais arbitrais que aplicam o direito inglês. O significado dos termos escritos relevantes, ao menos naquele contesto imediato, será também vinculante. Desta forma, cortes inglesas 75 No caso de referências arbitrais onde a essência inclui a Inglaterra e Gales, a Suprema Corte em Londres deve primeiramente conceder permissão para apelação em um ponto de direito Inglês para proceder à Suprema Corte: s 69(2) e s 69(3), Arbitration Act 1996 (England and Wales) 76 No sistema de ‘permissão’ para recursos de acordo com o procedimento nas cortes inglesas, Andrews on Civil Processes (Intersentia, Cambridge, 2013), vol I, Court Proceedings at 15.25 et seq. 94 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 construíram um rico histórico de precedentes quanto a frases padronizadas no uso comercial. Estas decisões auxiliam na promoção de previsibilidade.77 Recebido em 15/09/2014 1º parecer em 19/09/2014 2º parecer em 04/12/2014 G McMeel, `The Interplay of Contractual Construction and Civil Justice: Procedures fr Accelerated Justice’ (2011) European Business L Rev 437, 438, no n 6, coleta declarações judiciais em favor da segurança comercial, especialmente Lord Bingham em `The Starsin’ [2003] UKHL 12; [2004] 1 AC 715, at [13]; e Lord Steyn em `The Jordan II’ [2004] UKHL 49; [2005] 1 WLR 1363, 1370. 77 95 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 PARECER REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À SOCIEDADE ANÔNIMA CUJO COMANDO É COMPARTILHADO ENTRE UMA EMPRESA PÚBLICA E UMA EMPRESA PRIVADA. SUJEIÇÃO ÀS NORMAS DE DIREITO COMUM E INAPLICABILIDADE DO REGIME DE DIREITO PÚBLICO Arnoldo Wald Professor Catedrático da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor em Direito pela Faculdade Nacional de Direito, Rio de Janeiro, 1956. Doutor Honoris Causa da Universidade de Paris II, Paris, 1998. Advogado A maioria do capital social nem sempre é relevante para determinar o controle, pois pode não assegurar o comando da empresa, em virtude das disposições dos estatutos e dos acordos de acionistas. A Sociedade Anônima não tem a natureza de sociedade controlada, direta ou indiretamente, pelo Estado, eis que, segundo suas próprias disposições estatutárias, nenhum dos sócios detém, individualmente, o poder de eleger a maioria dos administradores ou de orientar os negócios sociais. Trata-se, pois, de empresa privada com participação estatal, sujeita tão-somente ao direito comum. “Como se vê, a lei prevê duas hipóteses em que um grupo de pessoas pode vir a ser titular do poder de controle: (...) quando esse grupo se forma através de um acordo de votos, firmado entre diferentes pessoas, físicas ou jurídicas, associando interesses distintos, se bem que convergentes. Em tais hipóteses, fala-se em controle conjunto ou compartilhado (joint control), pois, nelas, o grupo de controle exerce as prerrogativas e as responsabilidades que incumbem ao acionista controlador sempre de forma coletiva. Ou seja, as pessoas que o constituem agem e respondem como se fossem uma só pessoa, sem que cada uma, por si só, possa ser caracterizada como ‘acionista controlador’. A circunstância de que qualquer um dos participantes seja eventualmente majoritário, dentro ou fora do 96 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 grupo, não o converte, ipso facto, em um acionista controlador,senão quando visto como parte componente da coletividade”.1 “Acionista controlador, na conceituação legal, é o acionista que exerce o poder de comando da sociedade (e não do grupo de controle). O poder de controle é atributo e prerrogativa do grupo considerado coletivamente, e não de qualquer dos seus participantes considerado isoladamente. O só fato de o acionista precisar do grupo para integrar o controle é suficiente para demonstrar que sozinho ele não pode exercer esse poder”.2 Sumário: 1. Quesito básico da consulta – 2. Parecer: O controle da Sociedade Anônima: compartilhamento entre empresa pública e empresa privada; – 2.1 O conceito de controle e de acionista controlador; – 2.2. A inexistência de controle por parte de integrante do chamado “controle partilhado”; – 2.3. O efetivo compartilhamento do comando da Sociedade Anônima e a inexistência de controle público; – 3. Conclusão e resposta ao quesito 1. Quesito básico da consulta Deve ser considerada como sendo de economia mista uma empresa constituída por uma estatal com 51% das ações e de uma sociedade privada com 49% na qual a estatal não exerce o controle? 2. Parecer O controle da Sociedade Anônima: compartilhamento entre empresa pública e empresa privada 2.1. O Conceito de controle e de acionista controlador 1 LEÃES, Luiz Gasto Paes de Barros. Acordo de comando e poder compartilhado, In: Pareceres, São Paulo: Singular, 2004, p. 1309. 2 MOTTA, Nelson Cândido. Alienação do poder de controle compartilhado, Revista de Direito Mercantil, nº 89, p. 43, jan./mar. 1993. 97 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 1. O controle societário pode caracterizar-se de inúmeras maneiras, a depender de sua composição acionária e das regras contidas em seu estatuto ou em eventual acordo de acionistas. O controle societário corresponde, em última análise, a um fato econômico, que gera consequências diversas previstas em cada legislação aplicável3. 2. No direito brasileiro, o legislador definiu o acionista controlador, inclusive conferindo-lhe responsabilidades diferenciadas em relação aos demais acionistas, no artigo 116 da Lei nº 6.404, de 1976 (“Lei das S.A.”), constando as definições de sociedades controlada e controladora do parágrafo 2º do artigo 243 da mesma lei, conforme transcrições abaixo: Art. 116. Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que: a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembléia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia; e b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Art. 243. (...) § 2o Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou através de outras controladas, é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores. 3 WALD, Arnoldo. Algumas considerações sobre as sociedades coligadas e os grupos de sociedades na nova lei das sociedades anônimas, Revista Brasileira de Mercado de Capitais, Rio de Janeiro, nº 8, p. 171, maio/ago. 1977. Nesse sentido, TULLIO ASCARELLI assevera que o controle é noção meramente econômica e, enquanto situação de fato, pode constituir o pressuposto da aplicação de determinadas normas jurídicas. (“Riflessioni in tema di titoli azionari, personalità giuridica e società tra società”, Banca, Borsa e Titoli di Crédito,n. 1, p. 385, 1952). Segundo CLAUDE CHAMPAUD, a noção de controle caracteriza-se por um poder sobre bens alheios, decorrente da administração dos bens empresariais. Para ele, o controle constitui um poder, uma dominação da sociedade, exercida via instituições societárias, com o fim de dirigir a atividade econômica da empresa social (Le pouvoir de concentration de lasociete par actions, Paris: LibrairieSirey, 1962, p. 105). 98 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 3. Sobre o conceito adotado pelo direito societário brasileiro, ALFREDO LAMY FILHO e BULHÕES PEDREIRAensinam que é acionista controlador aquele que detém a capacidade de determinar as deliberações da assembleia geral, permitindo-lhe exercer, em caráter permanente, o poder político sobre as atividades desenvolvidas pela sociedade4. 4. Embora normalmente detenha tal capacidade quem detém a maioria do capital social, o conceito de poder de controle e maioria acionária não se confundem, pois a organização empresarial (decorrente, por exemplo, de disposições estatutárias ou de eventuais acordos de acionistas) pode outorgar a outros sócios direitos que lhes assegurem a capacidade de orientar os negócios sociais. 5. Por tal razão é que a Lei das S.A., no art. 243, § 2º, acima citado, não conceitua acionista controlador como aquele que detém maioria acionária, mas como aquele que “é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”. 6. Com efeito, o poder de controle, atributo específico do acionista controlador, é fundamentalmente o poder de decidir, no âmbito dos órgãos societários, as questões relacionadas com a direção ou determinação das atividades sociais5. Nessa linha, salientaJOSÉ EDWALDO TAVARES BORBA: Controla uma sociedade quem detém o poder de comandá-la, escolhendo os seus administradores e definindo as linhas básicas de sua atuação.6 7. Tendo em vista a estrutura administrativa deste tipo societário, pode- se afirmar que “o núcleo da definição de controle, na sociedade anônima, reside no poder de determinar as deliberações da assembléia geral”, órgão que corresponde, na prática, à “última instância decisória” da companhia7. 8. Corroborando as assertivas acima, PEDRO A. BATISTA MARTINS afirma que: 4 LAMY FILHO, Alfredo; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A., 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, v. 2, p. 235. 5 “Controlar uma companhia, portanto, é o poder de impor a vontade nos atos sociais e, via de consequência, de dirigir o processo empresarial, que é o seu objeto.” (CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, v. 2, p. 489). 6 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário, 9. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 334. 7 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima, 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 51 e 88. 99 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 O acionista controlador exerce, permanentemente, o poder político, porque a titularidade do bloco de controle, que lhe assegura a capacidade de determinar as deliberações da Assembléia Geral, permite dirigir as atividades sociais na certeza de que suas decisões serão formalmente confirmadas pelo órgão social – transformar-se-ão em ‘lei’ para a sociedade.8 9. Verifica-se, assim, que o controle não está vinculado à propriedade da maioria das ações votantes, pois prevalece, no caso, a configuração, ou seja, a forma da estrutura societária e a organização empresarial, tanto assim que se admite a existência do controle minoritário e até o controle externo9. 10. Esta lição também é adotada pela doutrina administrativista. MARÇAL JUSTEN FILHO, por exemplo, registra que “o poder de controle consiste no poder jurídico de determinar o destino da sociedade, o que se traduz na eleição da maioria dos administradores da companhia, submetendo-os à observância de diretivas e orientações.”10 11. A concepção de controle vincula-se, pois, à capacidade do acionista, ou do grupo de acionistas, de impor, em caráter exclusivo, preponderante e permanente 11, a sua vontade no âmbito da assembleia geral, não à maioria das ações, muito embora esta, muitas vezes, assegure aquela. Mas o que caracteriza o poder de controle é a capacidade, a prerrogativa de orientar o funcionamento dos órgãos de administração, e, por consequência, a gestão das atividades sociais. 12. Dessa maneira, como destaca NELSON CÂNDIDO MOTTA: Não faz portanto nenhum sentido, nem lógico, nem jurídico, que se possa ou se pretenda identificar o acionista controlador, independentemente da verificação desse prévio e essencial requisito, que é a efetividade do voto majoritário nas assembléias gerais da companhia.12 8 MARTINS, Pedro A. Batista. Responsabilidade de acionista controlador: considerações doutrinária e jurisprudencial, Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, nº 27, p. 45. 2005. 9 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit. p. 89 e ss. 10 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 128. 11 Na esfera do Poder Judiciário, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou a respeito, consignando as noções de preponderância e de permanência para a caracterização do controle de sociedade. Em voto que proferiu, como Relator, o Ministro BARROS MONTEIRO teve o ensejo de afirmar, ressaltando a definição legal, que:“Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou por meio de outras controladas, é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores”. (grifamos) (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 556.265/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ 13 de fevereiro de 2006). 12 MOTTA, Nelson Cândido. Alienação do poder de controle compartilhado, Revista de Direito Mercantil, São Paulo, nº 89, p. 42, jan./mar. 1993. 100 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 13. O Superior Tribunal de Justiça também já se manifestou a respeito, consignando as noções de preponderância e de permanência para a caracterização do controle de sociedade. Em voto que proferiu, como Relator, o Ministro BARROS MONTEIRO teve o ensejo de afirmar, ressaltando a definição legal, que: Considera-se controlada a sociedade na qual a controladora, diretamente ou por meio de outras controladas, é titular de direitos de sócios que lhe assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores.13 14. Em precedente mais antigo, o mesmo Ministro houve por bem ressaltar as noções desupremacia nas deliberações da assembleia geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da companhia como fatores essenciais à caracterização do controle14. 15. O Supremo Tribunal Federal, em julgado de lavra do Ministro NÉRI DA SILVEIRA, tangenciou o tema, tratando da alienação de ações, ao verberar que “[a referida alienação]deve ser, no caso, compreendida na perspectiva do controle acionário da sociedade de economia mista, pois é tal posição que garante à pessoa administrativa a preponderância nas deliberações sociais e marca a natureza da entidade.”15 16. Posteriormente, este mesmo entendimento foi reiterado pela Ministra CARMEN LÚCIA, em caso análogo, fazendo remissão expressa ao aludido julgado relatado pelo Ministro NÉRI DA SILVEIRA, exigindo lei específica para autorizar a alienação de ações, em sociedade de economia mista, que implique a transferência, pelo Estado, de direitos que lhe assegurem preponderância nas deliberações sociais, ou seja, do controle acionário16. 13 STJ, 4ª Turma, REsp nº 556.265/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ de 13.02.2006. STJ, 4ª Turma, REsp nº 784/RJ, Relator Ministro BARROS MONTEIRO, DJ de 20.11.1989. 15 STF, Tribunal Pleno, ADI n.º 234/RJ, Relator Ministro NÉRI DA SILVEIRA, DJ de 15.09.1995. 16 É válido conferir o seguinte trecho da ementa: “1. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 234/RJ, ao apreciar dispositivos da Constituição do Rio de Janeiro que vedavam a alienação de ações de sociedades de economia mista estaduais, o Supremo Tribunal Federal conferiu interpretação conforme à Constituição da República, no sentido de serem admitidas essas alienações, condicionando-as à autorização legislativa, por lei em sentido formal, tão-somente quando importarem em perda do controle acionário por parte do Estado. Naquela assentada, se decidiu também que o Chefe do Poder Executivo estadual não poderia ser privado da competência para dispor sobre a organização e o funcionamento da administração estadual. 2. Conteúdo análogo das normas impugnadas nesta Ação; distinção apenas na vedação dirigida a uma sociedade de economia mista estadual específica, o Banco do Estado do Rio de Janeiro S/A - Banerj (...)” (STF, Tribunal Pleno, ADI nº 1.348/RJ, Rel. Min. CARMEN LÚCIA, DJ de 07.03.2008). 14 101 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 2.2. A inexistência de controle por parte de integrante do chamado “controle partilhado” 17. Como ensina LUIZ GASTÃO PAES DE BARROS LEÃES, no chamado controle compartilhado, as partes exercem as prerrogativas que incumbem ao acionista controlador de forma coletiva. Em outras palavras, as pessoas que constituem o grupo dominante agem como se fossem uma única pessoa, sem que cada uma, isoladamente, possa ser caracterizada, por si só, como “acionista controlador”17. 18. De fato, é evidente que “não é titular do poder de controle o acionista (ou grupo de acionistas) que dependa do voto de outros sócios, para fazer valer a sua vontade nas assembléias gerais”18. 19. Nesse sentido, é possível afirmar que, no caso do comando compartilhado que é exercido em conjunto pelos acionistas, nenhum dos sócios detém, individualmente, o controle. Ou seja, no fundo, em boa técnica, não existe controle compartilhado, pois o controle, a hegemonia no comando da empresa, não é divisível. 20. Poucos são os estudos específicos sobre a sociedade sob comando partilhado, o que se explica pelo fato de se tratar de situações que somente se desenvolveram recentemente. Porém, há doutrina mansa e pacífica reconhecendo não só a unidade do controle como também o fato de que, caracterizado como uma hegemonia, só pode pertencer a um único titular, que deve ser reconhecido como sendo o controlador da empresa. 21. Fez-se uma adequada analogia entre o controle societário e a soberania nacional, que também é una e indivisível, pois não se pode dizer que cada um dos vários poderes que integram o Estado seja soberano. Soberano é tão-somente o Estado. E a melhor doutrina reconhece o controle como “poder soberano”19. 22. Em estudo pioneiro sobre a matéria, NELSON CÂNDIDO MOTTA, escreveu a respeito que: Evidentemente não é titular do poder de controle o acionista (ou grupo de acionistas) que dependa do voto de outros sócios, para fazer valer a sua vontade nasassembléias gerais. A rigor, só detém realmente o poder de controle o acionista (ou grupo de acionistas) que possa contar, de 17 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Restrições a transferência de ações e alteração do poder de controle, Revista de Direito Mercantil, nº 153-154, p. 290, jan./jul. 2010. 18 MOTTA, Nelson Cândido, op. cit., p. 42. 19 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit. p. 135. 102 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 modo, se não permanente, pelo menos estável, com mais de 50% dos votos habilitados a concorrer à assembléia geral.20 (...)O poder de controle, sendo soberano por definição, é necessariamente único e exclusivo”. (...) O só fato de o acionista precisar do grupo para integrar o controle é suficiente para demonstrar sozinho ele não pode exercer esse poder.21 23. Por sua vez, o Professor LEÃES define o controle, afirmando que: É tendo em vista essas características do poder de comando que se pode falar em controle comum ou compartilhado. No controle comum ou compartilhado, os integrantes do grupo dominante exercem, em conjunto, de forma coletiva, as prerrogativas e as responsabilidades que incumbem ao acionista controlador (joint control). Ou seja, a pessoas, que constituem a coletividade, agem e respondem como se fossem uma única pessoa, sem que cada uma, isoladamente, pudesse ser caracterizada, por si só, como acionista controlador.22 24. E conclui, após ter comparado o controle compartilhado ao condomínio, que: A circunstância de que qualquer um dos participantes seja eventualmente majoritário, dentro ou fora do grupo, não o converte, ipso facto, em um acionista controlador.23 25. Em todo grupo de controle, a lei pressupõe sempre o exercício de um poder coletivo, entendendo que essa coletividade deva ser encarada como um único sujeito de direito. Nesse sentido, o artigo 116 da Lei das S.A. conceitua o acionista controlador usando expressão no singular, abarcando tanto a pessoa natural ou jurídica, como grupo de pessoa, acionistas da companhia, vinculados por acordo de voto ou sobre o controle comum24. 26. O poder de controle é, no caso do comando compartilhado, um atributo do grupo e não dos seus membros individualmente considerados. 20 MOTTA, Nelson Cândido, op. cit. p.42. MOTTA, Nelson Cândido, op. cit. p.43. 22 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros, op. cit., p. 290. 23 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Acordo de comando e poder compartilhado, In: Pareceres, São Paulo: Singular, 2004, v. 2,p.1309. 24 LEÃES, Luiz Gastão Paes de Barros. Restrições a transferência de ações e alteração do poder de controle, op. cit., p. 291. 21 103 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 27. É exatamente este o caso da Consulta, em que o poder de controle é exercido conjuntamente por EMPRESA PRIVADA e EMPRESA PÚBLICA, como se demonstra a seguir. 2.3. O efetivo compartilhamento do comando da Sociedade Anônima e a inexistência de controle público 28. No caso da SOCIEDADE ANÔNIMA, o comando, que podemos denominar poder de controle, é claramente exercido de modo compartilhado pelos sócios, EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA em decorrência de três fatores principais, quais sejam: (i) a SOCIEDADE ANÔNIMA foi criada para realização de um empreendimento comum, em que ambas as partes (EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA) teriam participação equivalente nas decisões estratégicas e obrigações de natureza complementar; (ii) a Escritura Pública, de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA, estabeleceu que cada parte teria o direito de eleger um diretor e que as decisões seriam tomadas conjuntamente; e (iii) se verificou, em toda a existência da SOCIEDADE ANÔNIMA, que o comando sempre foi, de fato, exercido de forma compartilhada entre os sócios PÚBLICA EMPRESA e EMPRESA PRIVADA. 29. De fato, com relação ao fator descrito no item (i) acima, da leitura da Escritura Pública de sua constituição extrai-se que a SOCIEDADE ANÔNIMA foi criada para a realização de um empreendimento comum entre os sócios, PRIVADA, EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA em igualdade de condições, embora cada um tivesse obrigações de natureza complementar. 30. A SOCIEDADE ANÔNIMA, com efeito, foi criada e incumbida de lavrar o minério das minas dos dois sócios e vendê-lo a EMPRESA PRIVADA, para beneficiamento e tratamento industrial. E foram definidas, desde logo, as participações de cada empresa nos resultados do empreendimento, com a peculiaridade de que o lucro não é proveniente, na sua maior parte, do processo de mineração, mas do beneficiamento e da industrialização do minério e de sua venda no mercado nacional e internacional, etapas a cargo exclusivo da EMPRESA PRIVADA. 104 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 31. A EMPRESA PÚBLICA, em particular, tem dupla participação no empreendimento, pois recebe: a) 50% do lucro da SOCIEDADE ANÔNIMA, que recebe 100% da receita decorrente da venda de todo o minério, de acordo com a Escritura Pública; b) 25% do lucro de toda a operação da EMPRESA PRIVADA, em virtude de sociedade em conta de participação prevista na Escritura Pública. 32. No projeto conjunto, portanto, a expressiva participação numérica da EMPRESA PÚBLICA só existe num primeiro momento, de extração do minério, que é todo vendido à EMPRESA PRIVADA, para que esta desenvolva, por sua conta e risco, as atividades de beneficiamento e de industrialização do minério, com tecnologias que não pertencem à EMPRESA PÚBLICA, nem foram objeto do contrato de constituição do negócio. Aliás, o know-how já pertencia à EMPRESA PRIVADA no momento em que as partes se associaram e foi por ela aperfeiçoada no tempo. 33. Mas não é só. Com relação ao fator descrito no item ii acima, tendo em vista a natureza e o contexto de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA, as partes decidiram, desde o início, estabelecer participação igualitária nas decisões sociais relevantes. 34. Para tanto, em primeiro lugar, as ações da SOCIEDADE ANÔNIMA foram divididas em três classes distintas. 35. Em segundo lugar, o Estatuto Social constante da Escritura Pública de criação da SOCIEDADE ANÔNIMA estabeleceu que a empresa teria dois administradores: a. o Diretor Presidente – a quem compete privativamente a direção dos serviços relativos à administração, contabilidade, tesouraria, faturamento e cobrança de vendas, escrituração fiscal e cumprimento de todas as obrigações legais da sociedade; b. o Diretor de Operações – a quem compete privativamente a direção de todos os serviços que integram o objeto social: a extração mineral e a entrega do minério extraído à EMPRESA PRIVADA, para que o comercialize. 36. E, em terceiro lugar, o Estatuto Social conferiu aos titulares de cada classe de ações preferenciais direitos políticos que, em seu conjunto, outorgam à EMPRESA PRIVADA poderes de efetiva direção sobre os negócios sociais, em situação de igualdade com a EMPRESA PÚBLICA. 37. Mais especificamente, aos titulares de ações preferenciais classe A, o Estatuto conferiu direito de voto, juntamente com as ações ordinárias, para eleger ou destituir o Diretor-Presidente. 105 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 38. Aos titulares de ações preferenciais classe B, conferiu-se o direito de voto, juntamente com as ações ordinárias, para eleger ou destituir o Diretor de Operações. 39. E, por fim, aos titulares das ações preferenciais classe C, conferiu-se o direito de voto, juntamente com as ações ordinárias, nas principais decisões sociais, de modo a orientar os negócios da SOCIEDADE ANÔNIMA. 40. Assim, para verificar quem tem o poder de eleger o Diretor Presidente, somam-se as ações ordinárias e as preferenciais classe A e apura-se, desse cálculo, quem tem a maioria. Conforme os números acima, a EMPRESA PÚBLICA detém 53,62% das ações com direito a voto nessa matéria enquanto os demais acionistas detêm, em conjunto, 46,37% das ações com direito a voto nessa matéria. Neste sentido, à EMPRESA PÚBLICA foi atribuído o poder de eleger o Diretor Presidente. 41. Da mesma forma, para verificar-se quem tem o poder de eleger o Diretor de Operações, somam-se as ações ordinárias e as preferenciais classe B e apura-se, desse cálculo, quem tem a maioria. A EMPRESA PRIVADA detém 50,69% das ações com direito a voto nessa matéria enquanto os demais acionistas detêm, em conjunto 49,31% das ações com direito a voto nessa matéria, pois as PNA não o têm. À EMPRESA PRIVADA foi atribuído, portanto, o poder de eleger o Diretor de Operações. 42. Por fim, as principais decisões da SOCIEDADE ANÔNIMA (dentre as quais qualquer alteração do próprio Estatuto, incorporação, fusão, dissolução,liquidação, destinação dos lucros, alienação, locação ou sublocação de bens ou direitos do seu ativo ou constituição de ônus reais, aquisição de bens imóveis, participação em outras sociedades, criação ou participação em qualquer outro empreendimento, contratação de empréstimos e aquisição de bens a prazo) dependem necessariamente de voto conjunto da EMPRESA PÚBLICAe da EMPRESA PRIVADA, poisuma é detentora de 51% das ações ordinárias e outra de 49% de ações ordinárias e de 100% de preferenciais Classe C, totalizando exatamente 50% das ações com direito a voto na matéria. Não podem, nessas matérias, que são essenciais para a sociedade, qualquer um dos sócios decidir sem o consenso do outro. 43. Assim, fica evidente que, desde a criação da SOCIEDADE ANÔNIMA, o poder de controle é exercido pelas duas sócias principais, EMPRESA PÚBLICAe EMPRESA PRIVADA, já que cada um dos dois administradores da sociedade seria indicado por uma dessas sócias e que as decisões relevantes para a SOCIEDADE ANÔNIMA dependeriam de manifestação unânime desses mesmos sócios. 44. Assim, em face da estrutura jurídica do empreendimento, que hoje não é passível de modificação, a SOCIEDADE ANÔNIMA deve ser entendida como um 106 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 empreendimento privado típico de exploração mineral, na qual a EMPRESA PÚBLICA não tem qualquer participação na gestão, embora disponha dos elementos necessários para exercer estrito controle de sua participação nos lucros, mediante procedimentos contábeis e realização de auditorias. 45. Por fim, com relação ao item (iii) acima, é fácil verificar, do exame dos atos societários da SOCIEDADE ANÔNIMA, que as regras estabelecidas na Escritura sempre foram observadas, sendo o poder de controle exercido efetivamente de modo compartilhado entre EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA durante toda a existência da sociedade, ou seja, durante mais de 40 anos. As deliberações em assembleia geral da SOCIEDADE ANÔNIMA têm sido sempre tomadas de forma unânime pelos acionistas EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA. 46. Em suma, o poder de controle da SOCIEDADE ANÔNIMA é e sempre foi exercido, desde sua criação, em conjunto, pelos dois sócios principais, EMPRESA PÚBLICA e EMPRESA PRIVADA, não tendo nenhum deles o controle da companhia se não tiver a concordância do outro. Cada um dos dois administradores da sociedade é indicado por um sócio e as decisões relevantes para a SOCIEDADE ANÔNIMA dependem de manifestação unânime desses mesmos sócios. 47. Desse modo, nenhum dos sócios detém, individualmente, o poder de eleger a maioria dos administradores ou orientar os negócios sociais da SOCIEDADE ANÔNIMA, razão pela qual a premissa de que partiu o Tribunal de Contas do Estado – qual seja, a de que a SOCIEDADE ANÔNIMA é controlada pelo Estado, por meio da EMPRESA PÚBLICA – simplesmente não é verdadeira e se baseou numa presunção inexata quanto à representação dos sócios na companhia e desconsiderou a letra e o espírito dos estatutos da empresa e do acordo de acionistas. 48. Tais conclusões, vale registrar, por fim, se harmonizam, inclusive, com o arcabouço legal estadual pertinente. Com efeito, não consta das leis instituidoras e modificativas da antiga EMPRESA PÚBLICA, a previsão específica para a criação de subsidiárias e/ou participação no capital de sociedade de economia mista, mas é admitida a participação em empreendimento econômico em parceria “com empresas estatais ou privadas”. 49. Trata-se, destarte, de acordo com a determinação legal de mera participação ou parceria, como a lei frisa, e não de controle. 3. Conclusão e resposta ao quesito 107 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 50. Diante do exposto, passamos a responder à Consulta que nos foi formulada. PRIMEIRO QUESITO: A SOCIEDADE ANÔNIMAA é uma entidade controlada pelo Estado e, portanto, integrante da Administração Indireta, à luz da Constituição? 51. Não. A SOCIEDADE ANÔNIMA não se amolda à situação prevista na Constituição do Estado, uma vez que a EMPRESA PÚBLICA, não tem poder de controle sobre ela, nos termos preconizados pelos arts. 116 e 243, §2º, da Lei das S/A. 52. Conforme restou demonstrado neste Parecer, desde a criação da SOCIEDADE ANÔNIMA, e à luz da composição acionária atual, a EMPRESA PÚBLICA não tem capacidade de impor, sozinha, em caráter permanente, a sua vontade no âmbito da assembleia geral, ou seja, além de não deter preponderância nas deliberações sociais, tampouco pode eleger a maioria dos administradores. 53. Na verdade, o comando e, consequentemente, o controle da SOCIEDADE ANÔNIMA é, efetivamente, compartilhado entre a EMPRESA PÚBLICA e a Consulente, de modo que a decisão do TCE/MG partiu de premissa equivocada, o que invalida as demais conclusões a que o tribunal administrativo chegou. 54. A conclusão inarredável, portanto, é a de que a SOCIEDADE ANÔNIMA deve se sujeitar, como sempre se sujeitou, exclusivamente às normas de direito privado, não lhe sendo aplicáveis quaisquer das obrigações de direito público afeitas às entidades da Administração Indireta. Este é o nosso parecer, atendendo à consulta formulada. São Paulo, agosto de 2013. 108 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 A BOA-FÉ OBJETIVA E O REGIME DE BENS NA UNIÃO ESTÁVEL DE CÔNJUGES SEPARADOS Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sumário: 1. Síntese; – 2. Inexistência de união estável entre X e Y no período entre 1996 e 2004. Incidência do regime de separação de bens estabelecido por pacto jamais extinto ou alterado pelas Partes; – 3. Violação do princípio da boa-fé objetiva por Y. Legítima confiança de X na manutenção do regime de separação de bens. Honra-nos X, por meio de conceituado escritório de advocacia, solicitando opinião doutrinária com base nos seguintes fatos: O Sr. X e a Sra. Y casaram-se, em 30 de maio de 1993, pelo regime de separação de bens, mediante pacto antenupcial. Em 31 de maio de 1995, o casal se separou judicialmente, com a renúncia recíproca à prestação de alimentos. Não houve, contudo, divórcio. Após 18 (dezoito) meses da separação judicial, o casal restabeleceu a sociedade conjugal. Decorridos 8 (oito) anos da reconciliação, Y propôs ação de reconhecimento e dissolução de união estável, pelo período de 1996 a outubro de 2004, na qual requer (i) dividendos oriundos de ações da P S.A., sociedade da qual X era sócio, doadas aos filhos de X com reserva de usufruto, no período da alegada união estável; (ii) prestação de alimentos vitalícios; (iii) permanência no apartamento do Rio de Janeiro, sem compensação financeira até a decisão final, além do direito à metade do imóvel; (iv) metade do carro, adquirido na constância da suposta união estável; e (iv) divisão das benfeitorias voluptuárias realizadas em imóvel da propriedade de X, em Baraqueçaba, São Paulo, adquirido antes da relação conjugal. O Juízo de 1ª instância declarou a existência de união estável entre 1996 e 2004 e, por conseguinte, determinou a partilha dos bens adquiridos nesse período, de eventuais dividendos auferidos, além de fixar alimentos no montante de R$ 8.000,00 (oito mil reais) por mês e autorizar Y a residir no referido apartamento até a partilha, compensando-se, ao final, o valor pela ocupação exclusiva do imóvel. Apresentados os 109 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 recursos de apelação e embargos de declaração por ambas as Partes, o tribunal estadual confirmou a existência da união estável entre os cônjuges, determinando a partilha: (i) do apartamento fluminense adquirido na constância da declarada união; (ii) de benfeitorias realizadas em imóvel paulista; (iii) dos lucros auferidos por X decorrentes de participação societária na empresa P. S/A durante o período de convivência, que passariam a integrar o patrimônio, embora não imobiliário, de ambos; (iv) de um automóvel; bem como (v) a fixação de alimentos em favor de Y no montante de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por mês, desde a citação, limitados ao período de 36 (trinta e seis) meses contados do acórdão da apelação, datado de novembro de 2010. As Partes apresentaram Recurso Especial que se encontra pendente de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça. Diante dos fatos acima narrados e dos documentos apresentados, o Consulente indaga acerca do regime jurídico de bens aplicável ao casal no período entre 1996 e 2004. Passa-se a responder a tal indagação, em dois eixos temáticos adiante desenvolvidos, precedido de síntese das conclusões alcançadas. 1. Síntese No direito de família, dois princípios antagônicos devem ser harmonizados pelo intérprete: (i) princípio do rigor formal do regime matrimonial, decorrente do prestígio constitucional do casamento, invulnerável à sobreposição de qualquer outra entidade familiar, justificando-se assim, em favor da segurança jurídica, o ato solene na celebração e o intenso formalismo do direito matrimonial; e (ii) princípio da realidade afetiva ou da afetividade, que se traduz no reconhecimento dos efeitos decorrentes dos liames socioafetivos constatados na realidade social, que se impõem sobre as estruturas formais no direito de família (chamadas relações de fato). Da compatibilização de tais princípios, segue-se a necessidade de conciliar o prestígio do casamento, que só se extingue pelo divórcio, com a flexibilização do formalismo jurídico, em favor das relações de fato extraconjugais. Daqui decorre a admissão, pelo sistema, da suspensão momentânea da produção de efeitos das relações patrimoniais entre cônjuges antes do divórcio, pela separação judicial, como consequência do fim da sociedade conjugal e da comunhão de vida a ela inerente. Preserva-se, desse modo, o patrimônio conjugal e impede-se a sua contaminação com os bens adquiridos com terceiros 110 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 em relações de fato concorrentes com o vínculo conjugal – após a separação e antes do divórcio. Harmonizam-se, assim, os efeitos patrimoniais resultantes da relação conjugal e aqueles produzidos por relações familiares de fato ou não fundadas no casamento. Se a relação conjugal estabelecida é retomada pelos mesmos cônjuges após a separação judicial (e ainda durante o vínculo matrimonial, não extinto pelo divórcio), verificando-se a reconciliação, restaura-se a comunhão de vida e, conseguintemente, os efeitos do ato solene, válido e regular, do casamento coincidem com a relação conjugal de fato, e devem ser reconhecidos no âmbito da relação conjugal (reconciliação de fato). A tentativa de desconsiderar a unicidade jurídica de tal relação matrimonial (não extinta pelo divórcio), estabelecida entre os mesmos cônjuges que retomam a convivência antes da extinção formal do casamento, contraria o sistema, violando, a um só tempo: (a) o regime patrimonial adotado pelo casamento (e não extinto, nem de direito nem de fato); (b) a realidade socioafetiva inserida na chamada relação de fato; (c) o princípio da autonomia privada, já que tanto a vontade declarada dos cônjuges, manifestada em pacto antenupcial válido e não extinto, quanto a convivência espontaneamente verificada, traduzem a preservação, ao longo do tempo, do acordo de vontade; (d) a boa-fé objetiva de quem estabeleceu vida comum mediante pacto antenupcial, sob regime diverso da comunhão parcial (aplicada, por empréstimo, às uniões estáveis se – e somente se – inexiste entre os conviventes acordo em sentido contrário). A pretensão de união estável, com a aplicação do regime de comunhão parcial, entre cônjuges que retomam a vida conjugal antes do divórcio, e cujo casamento se encontra regido por pacto antenupcial de separação de bens, viola a legítima expectativa do outro cônjuge, revelando-se comportamento contraditório e, como tal, reprovado pela ordem jurídica (nemopotestvenire contra factumproprium). 2. Inexistência de união estável entre X e Y no período entre 1996 e 2004. Incidência do regime de separação de bens estabelecido por pacto jamais extinto ou alterado pelas Partes Após dois anos de casamento sob o regime de separação de bens estabelecido em pacto antenupcial válido e eficaz, X e Y se separaram judicialmente, sem a extinção do vínculo conjugal pelo divórcio, com renúncia recíproca quanto aos alimentos. O 111 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 período de separação judicial perdurou por 18 (dezoito) meses, quando o casal restabeleceu a vida conjugal. Como se sabe, a separação judicial não tem o condão de dissolver o vínculo matrimonial, o que somente ocorreria com o divórcio ou a morte de um dos cônjuges. Nessa direção, dispõe o art. 226, §6º, Constituição da República, alterado pela Emenda Constitucional n. 66, de 2010.1 Aludido dispositivo substituiu a norma anterior que autorizava a dissolução do casamento civil pelo divórcio precedido de separação judicial por mais de um ano, nos casos expressos em lei, ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos. Independentemente da discussão doutrinária, que se seguiu à Emenda Constitucional, acerca da revogação do instituto da separação2, certo é que a supressão da referência à separação judicial corrobora o entendimento de que apenas o divórcio ou a morte de um dos cônjuges, não já a separação judicial ou de fato, põe fim ao casamento ou ao vínculo matrimonial. Na mesma esteira da norma constitucional, o §1º, art. 1.571, Código Civil, reproduzindo substancialmente o parágrafo único do art. 2º3, Lei 6.515/77 (Lei do Divórcio), determina que apenas o divórcio ou a morte de um dos cônjuges extingue o casamento.4 Como mecanismo para conciliar o rigor formal do regime matrimonial – fundado no casamento, o qual é detentor de indiscutível prestígio constitucional – com a realidade da vida afetiva (chamadas relações de fato), pretendeu o legislador blindar o patrimônio comum dos cônjuges em face de relação extraconjugal eventualmente constituída após a separação e antes do divórcio. Daí a previsão do inciso III do art. 1.5715, segundo o qual a separação judicial implica o término da sociedade conjugal. A dissolução da sociedade conjugal limita-se a extinguir os deveres pessoais dos cônjuges e a impedir a comunicação “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (...) § 6º. O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. 2 Sobre o tema, v., por todos, Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de direito civil, vol. 5, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 293-294. 3 “Art. 2º. A Sociedade Conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; Il - pela nulidade ou anulação do casamento; III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio. Parágrafo único - O casamento válido somente se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio”. 4 “Art. 1.571. (...) § 1o. O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente”.Conforme observado em doutrina, o “término da sociedade conjugal é diferente de extinção do vínculo matrimonial. A dissolução da sociedade conjugal não dissolve o casamento, permanecendo o vínculo conjugal que impede os separados de se casarem. (...) Com a mera dissolução da sociedade conjugal, embora cessem principalmente os deveres pessoais dos cônjuges, não se dissolve o vínculo matrimonial, que impede os separados de se casarem. Todavia, se a separação do casal for somente de fato, não impede que qualquer deles possa viver em união estável (art. 1.723, §1º, do Código Civil)” (Álvaro Villaça Azevedo, Direito de família, São Paulo: Atlas, 2013, p. 212). 5 “Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: (...) III - pela separação judicial; IV - pelo divórcio (...)”. 1 112 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 dos seus patrimônios relativamente aos bens que passem a integrá-los, tornando assim o patrimônio constituído na constância do casamento indene à contaminação com os bens amealhados por um dos cônjuges com terceiro.6 Embora apartado o patrimônio do casal em face de terceiros, o vínculo matrimonial permanece íntegro, razão pela qual os separados se encontram impedidos de casarem novamente. O divórcio, por sua vez, diversamente da separação judicial, tem a força de extinguir a sociedade conjugal e o casamento, autorizando os ex-cônjuges a contraírem novas núpcias.7 Deste modo, como a proibição de novo casamento por parte dos cônjuges separados, sob pena de bigamia, dirige-se somente a terceiros, não os impedindo de reatar a convivência conjugal, a alteração de regime provocada pela separação judicial tem por finalidade evitar a promiscuidade de fundos entre patrimônio de titularidades distintas – aquele apurado na constância do casamento, segundo o regime matrimonial adotado, e o patrimônio amealhado subsequentemente, em cenário extramatrimonial. Vê-se, portanto, que o rompimento da comunicabilidade dos patrimônios consiste em mecanismo inserido no rol dos efeitos da separação judicial para evitar que o patrimônio dos consortes se confunda com os bens adquiridos supervenientemente com a participação de terceiros, quando não há mais convivência entre os cônjuges.8 Ou seja: Na síntese de Rolf Madaleno, “a separação judicial não extingue o vínculo do casamento, ficando aos cônjuges simplesmente autorizados à separação de seus corpos, rompendo a convivência e não mais respondendo pelos deveres de coabitação e de fidelidade, também encerrando a comunicação patrimonial dos regimes de comunhão de bens” (Curso de direito de família, Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 171). Em direção semelhante, Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 288. 7 Como anotado em doutrina, “o divórcio, pelo inciso IV do art. 1571, é a derradeira causa pela qual a sociedade conjugal termina e, segundo o § 1º do referido artigo, também dissolve o casamento válido (§1º) e, se a simples separação, litigiosa ou consensual, não permite que os separandos venham a novamente casar, isto não ocorre quanto aos divorciados, que podem contrair novo matrimônio. (...) Determina o §1º do dispositivo em comentário, entretanto, que só haverá dissolução do casamento válido em caso da morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (§1º) (...). (Antônio Carlos Mathias Coltroet al., Comentários ao novo código civil, vol. 17, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 328). Na jurisprudência: “antes do divórcio, o casamento é existente, ainda que tenha havido a separação judicial. Destaque-se, ainda, que a separação judicial não põe termo ao casamento, mas apenas à sociedade conjugal, conforme previsão do artigo 1571, III, do Código Civil (‘A sociedade conjugal termina: (...) III – pela separação judicial; (...)’). Em outras palavras, após a separação judicial, o vínculo do matrimônio segue existente, a despeito da dissolução da sociedade conjugal. Da mera leitura do sobredito dispositivo legal já se pode inferir que a separação dos cônjuges não é o mesmo que o divórcio. De fato, trata-se de institutos jurídicos distintos e, nessa medida, produzem efeitos que não se confundem” (STJ, REsp 1129048/SC, 3ª T., Min. Massami Uyeda, Julg. 15.12.2009, DJe 3.2.2010). 8 Nessa direção, cf. o entendimento consolidado do STJ: “Casamento (efeitos jurídicos). Separação de fato (5 anos). Divórcio direto. Partilha (bem adquirido após a separação). Em tal caso, tratando-se de aquisição após a separação de fato, à conta de um só dos cônjuges, que tinha vida em comum com outra mulher, o bem adquirido não se comunica ao outro cônjuge, ainda quando se trate de casamento sob regime de comunhão universal. Precedentes do STJ: por todos, o REsp 140.694, DJ de 15.12.97. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 67678/RS, 3ª T., Rel. Min. Nilson Naves, Julg. 19.11.1999);“Este Tribunal consolidou a orientação de que, constatada a separação de fato, cessam os deveres conjugais e os efeitos da comunhão de bens, motivo 6 113 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 impede-se a comunicação dos patrimônios entre entidades familiares distintas, contornandose possível enriquecimento sem causa de quem não colaborou para a aquisição do patrimônio após a separação. Eis a ratiodo art. 1.546, Código Civil, ao dispor que “a separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens”.9 Pode-se afirmar, portanto, que ao rigor formal do casamento, constituído pelo mais solene dos atos jurídicos (princípio do formalismo) e cuja extinção pelo divórcio têm previsão constitucional, sobrepõe-se o reconhecimento, pela ordem jurídica, da realidade da vida (ou, na difusa expressão de Nelson Rodrigues, a vida como ela é), em que exsurge espontaneamente a entidade familiar. Trata-se das chamadas relações de fato, que nada mais são que relações jurídicas de convivência, desprovidas do ato formal do casamento, mas cujos efeitos o direito tutela, considerando-as legítimas (realidade socioafetiva ou princípio da afetividade).10 Nesta perspectiva, quando o vínculo formal do casamento, como no caso em exame, não tendo sido extinto pelo divórcio, coincide com múltiplos períodos de convivência de fato, totalizando longo período de vida conjugal sem divórcio (reconciliação de fato), as duas preocupações da ordem jurídica (alcançadas pelos aludidos princípios do rigor formal e da realidade socioafetiva) convergem, teleologicamente, e sem colisão de princípios, para a tutela do casamento, da autonomia privada traduzida no pacto antenupcial e da realidade fática, esta a confirmar a vontade negocial pela insuperável força dos fatos. pelo qual os cônjuges não fazem mais jus aos bens adquiridos pelo outro” (STJ, Ag no AI 1.268.285/SP, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Julg. 5.6.2012). 9 A finalidade da norma legal é incontroversa: “Não faz sentido a comunicabilidade dos bens quando já desfeito o casamento pela separação do casal, a ensejar indevido locupletamento do cônjuge que não deu sua colaboração ao ato aquisitivo do patrimônio após a separação de fato” (Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, cit., p. 204). V. tb. Antônio Carlos Mathias Coltroet al., Comentários ao novo código civil, cit., p. 419: “Poderá ocorrer de o casal, antes da separação judicial, encontrar-se separado de fato, tendo um ou os dois adquirido bens nesse período, os quais, entretanto e quando da concretização judicial da separação, não serão objeto de partilha, já que inexistente comunicação no tocante a eles. Com efeito e finda a afeição existente entre os cônjuges, disto resultando a separação de fato que acaba por levar à judicial, não se tem como justo venham a se comunicar os bens que um ou ambos adquiram no curso da separação fática, porquanto e conforme referido em precedente paulista que teve como relator o culto Des. Campos Mello, ‘(...) se o bem foi adquirido quando nada mais havia em comum entre o casal, repugna ao Direito e à moral reconhecer comunhão apenas de bens e atribuir metade desse bem ao outro cônjuge’”. 10 Sobre o tema, v. Rolf Madaleno, Curso de direito de família, cit., p. 66-67: “O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana. A afetividade deve estar presente nos vínculos de filiação e de parentesco, variando tão-somente na sua intensidade e nas especificidades do caso concreto. Necessariamente os vínculos consanguíneos não se sobrepõem aos liames afetivos, podendo até ser afirmada a prevalência desses sobre aqueles. O afeto decorre da liberdade que todo indivíduo deve ter de afeiçoar-se um a outro, decorre das relações de convivência do casal entre si e destes para com seus filhos, entre os parentes, como está presente em outras categorias familiares, não sendo casamento a única entidade familiar”. Cf., na mesma direção, Maria Berenice Dias, Manual de direito das famílias, cit., p. 71-72. 114 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Tendo-se por premissa que a noção jurídica de casamento expressa tanto o ato formal que inaugura a família (casamento = ato solene) quanto a relação de convivência decorrente daquele ato solene (casamento = vida conjugal), pode-se afirmar, na hipótese em análise, que a presença dos mesmos cônjuges submete sua vida conjugal, construída na realidade fática, ao acordo de vontade, válido e regular, por eles livremente manifestado e sacramentado com celebração solene do casamento. Note-se que o fato de o legislador pretender, com o mecanismo da separação judicial, evitar confusão entre patrimônios não poderia significar, na lógica do sistema, que, caso os separados (mas não divorciados) restabelecessem a convivência, o regime de bens que vigia antes da separação estaria extinto, de modo que a retomada da vida em comum inauguraria novo regime de bens, diverso do anterior. Essa conclusão representaria desvirtuamento da norma, que, a rigor, objetiva impedir que bens adquiridos após a separação se comuniquem entre os separados, mas não tem o intuito de proibir o retorno ao estado anterior em que viviam os cônjuges antes da separação, mesmo porque o vínculo matrimonial (de direito e, in casu, de fato) permanece intacto. Em outras palavras, os separados que restabelecem a vida em comum retornam ao estado anterior à separação judicial ou de fato, isto é, ao estado de casados, tal qual estabelecido consensualmente com o ato formal do casamento e do pacto antenupcial definidor do regime de bens. Pode-se afirmar, sob esse ponto de vista, que a separação suspende, momentaneamente, a produção de efeitos do casamento, o qual, contudo, permanece vigente, vez que o vínculo matrimonial não é extinto com a separação. O ato jurídico do casamento não perde validade, tecnicamente, com a separação, deixando de produzir efeitos justamente por conta da ausência de sociedade conjugal, que se extingue, de ordinário, naquele momento, com a pressuposta extinção da comunhão de vida entre os cônjuges. Afinal, há aqui compreensível presunção relativa do legislador quanto à extinção da comunhão de vida entre os cônjuges. Restaurada, contudo, a vida conjugal entre os mesmos cônjuges no mundo real, não poderia o intérprete dar as costas para a realidade dos fatos e nulificar, antes do divórcio, o casamento válido, presumindo, a partir de então, alteração de regime de bens. A retomada da sociedade conjugal pelos cônjuges restaura, portanto, os efeitos do casamento válido, restabelecendo o status quo ante. 115 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Por isso mesmo, o art. 1.57711, Código Civil, prevê a possibilidade de os cônjuges separados judicialmente restabelecerem a sociedade conjugal, a qualquer tempo, mediante mera solicitação ao juiz, em figura conhecida como reconciliação. A não extinção do vínculo matrimonial permite que os consortes formulem o pedido de reconciliação. Mostra-se, nessa direção, eloquente o raciocínio desenvolvido pelo Superior Tribunal de Justiça: Nos termos do art. 1571, §1º, do CC/02, que referendou a doutrina e a jurisprudência existentes sob a vigência da legislação civil anterior, o casamento válido não se dissolve pela separação judicial; apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. Por isso mesmo, na hipótese de separação judicial, basta que os cônjuges formulem pedido para retornar ao status de casados. Já, quando divorciados, para retornarem ao status quo ante, deverão contrair novas núpcias. A ausência de comprovação da posse do estado de casados, vale dizer, na dicção do acórdão recorrido, a ausência de prova da intenção do falecido de com a recorrente constituir uma família, com aparência de casamento, está intimamente atrelada ao fato de que, muito embora separados judicialmente, houve a continuidade da relação marital entre o falecido e sua primeira mulher, que perdurou por mais de cinquenta anos e teve seu término apenas com a morte do cônjuge varão, o que vem referendar a questão de que não houve dissolução do casamento válido.12 Em coerência com tal entendimento, por maioria de razão, a vida conjugal livre e efetivamente estabelecida entre os cônjuges, que se projeta por anos a fio, expressará manifestação de vontade robustamente dirigida no sentido da reconciliação de fato e preservação do casamento. Na espécie, X e Y se separaram judicialmente em 1995, mas não se divorciaram, de modo que o vínculo matrimonial permaneceu íntegro. Em 1996, os separados retomaram a vida em comum, retornando ao estado de casados (reconciliação de fato). No interregno, portanto, entre a separação e o restabelecimento da convivência, os “Art. 1.577. Seja qual for a causa da separação judicial e o modo como esta se faça, é lícito aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo. Parágrafo único. A reconciliação em nada prejudicará o direito de terceiros, adquirido antes e durante o estado de separado, seja qual for o regime de bens”. 12 STJ, REsp 1107192/PR, 3ª T., Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ acórdão Min. Nancy Andrighi, Julg. 20.4.2010. Veja, ainda na jurisprudência da 3ª Turma do STJ: “Da mera leitura do sobredito dispositivo legal já se pode inferir que a separação dos cônjuges não é o mesmo que o divórcio. De fato, trata-se de institutos jurídicos distintos e, nessa medida, produzem efeitos que não se confundem. Não é por outra razão que o próprio Código Civil designa de ‘cônjuges’ aqueles que são separados judicialmente, mas que não tenham se divorciado. A referência, no ponto, é ao artigo 1577 do Código Civil, que dispõe ser lícito, após a separação judicial, ‘aos cônjuges restabelecer, a todo tempo, a sociedade conjugal, por ato regular em juízo’” (STJ, REsp 1129048/SC, 3ª T., Min. Massami Uyeda, Julg. 15.12.2009). 11 116 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 efeitos do casamento válido se encontravam suspensos, ou paralisados pela ordem jurídica, voltando a se produzir novamente a partir de 1996. Desse modo, se o casamento permaneceu válido, vez que não verificado o divórcio, o retorno ao estado de casado restaura os efeitos do casamento, sob o mesmo regime de bens. Inexiste, por estarem os cônjuges casados, a possibilidade de configuração entre eles de união estável, fundada na interpretação do art. 1.546, Código Civil, anteriormente mencionada, e dos artigos 1.521 e 1.723, § 1º, do mesmo diploma. O art. 1.521, Código Civil, estabelece os impedimentos para o casamento, dentre os quais o fato de a pessoa já estar casada (inciso VI). Tal vedação impede a formação de famílias simultâneas, ou seja, afasta a possibilidade de que pessoa casada constitua, em paralelo, outro casamento ou união estável.13 O art. 1.723, §1º, Código Civil, por sua vez, ao tratar da união estável, estabelece que o impedimento para novo casamento relativo às pessoas casadas, acima indicado, não se aplica à união estável se estiverem separadas de fato ou judicialmente.14A norma, com efeito, objetiva assegurar que pessoas separadas, mas não divorciadas, e, que, portanto, estejam impedidas de casar novamente, possam constituir união estável com outra pessoa. Por outras palavras, embora impedidas de casar, as pessoas separadas poderão estabelecer união estável com outrem. A norma, desse modo, reconhece que as pessoas separadas possam ingressar em nova relação afetiva.15 Na lógica do sistema, portanto, o art. 1.723, §1º, Código Civil, permite que pessoas separadas de fato ou judicialmente estabeleçam união estável com outra pessoa, Na dicção do preceito legal: “Art. 1.521. Não podem casar: (...) VI - as pessoas casadas”. Em doutrina, percebe-se nitidamente a preocupação do legislador em coibir relações extraconjugais: “Esta proibição de casamento entre pessoas casadas é coerente com o Princípio da Monogamia, que prevê a exclusividade nas relações afetivas que tenham sexualidade como pano de fundo. Esta vedação permanece até a dissolução do vínculo conjugal. Uma pessoa casada não pode constituir uma união estável, isto é, uma outra família paralela ao casamento, ou mesmo, à outra união estável. Caso isto ocorra, a relação será um concubinato adulterino, ou simplesmente concubinato (...)” (Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao novo código civil, vol. 10, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 58). V., no mesmo sentido, Zeno Veloso, Código civil comentado, vol. 17, São Paulo: Atlas, 2003, pp. 122-123: “Como o princípio monogâmico é fundamental no direito de família brasileiro, enquanto persistir o vínculo matrimonial, a pessoa casada não pode casar-se novamente, e o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio (...). E se o casado não pode casar novamente, cometendo, inclusive, se o fizer, crime de bigamia (Código Penal, art. 235), não pode, igualmente, constituir família pela união estável. O relacionamento afetivo de uma pessoa casada, com outra, que não seu cônjuge, implica em adultério, e não se considera, obviamente, união estável”. 14 “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1 o. A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”. 15 No ponto, v. Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao novo código civil, cit., pp. 42-43. 13 117 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 diversa evidentemente de seu cônjuge, com o objetivo justamente de estimular novas entidades familiares na complexa realidade da vida.16 A norma não incide, por isso mesmo, no caso em que pessoas separadas judicialmente restabeleçam a convivência entre si, hipótese em que se restaura o estado de casado, anterior à separação (reconciliação de fato dos efeitos matrimoniais no seio de casamento válido). Dito diversamente, a interpretação sistemática do inciso VI, art. 1.521, e do art. 1.723, §1º, determina que podem contrair união estável pessoas separadas de fato ou judicialmente, tendo por pressuposto lógico a preexistência de casamento com pessoa distinta.17 Esse é o fio condutor de reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: É de assinalar, também, ser possível o reconhecimento da união estável, ainda que um dos companheiros, ou ambos, tenham com outrem vínculo de casamento, desde que se encontrem separados judicialmente, ou de fato. É aliás, o que preceitua o artigo 1723, §1º, do Código Civil (...).18 Observa-se, assim, que o deslinde da causa consistiu na interpretação do art. 1723, § 1º do CC/02, cujo dispositivo permite o reconhecimento de união estável entre conviventes quando um deles seja casado, desde que comprovada a separação de fato ou judicial. É certo que a jurisprudência desta Egrégia Corte reconhece como união estável a relação entre conviventes mesmo quando um deles seja casado, desde que comprovada a separação de fato ou judicial.19 Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do §1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável. Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí por que se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas.20 Como sublinhado por Rolf Madaleno: “Já de longo tempo tem sido praticamente incontroverso que a separação de fato autoriza a formação de uma nova entidade familiar, e isto restou definitivamente consolidado com a expressa ressalva do atual §1º, do artigo 1723 do Código Civil, ao corrigir a flagrante falha verificada na edição da Lei nº 8971/94, anteriormente corrigida pela Lei nº 9278/96. É a convivência e não o casamento meramente formal que condiciona a formação ou não de um novo relacionamento” (Curso de direito de família, cit., p. 790). 17 Anota Zeno Veloso: “Porém, se o cônjuge está separado de fato do outro, não há impedimento, e o separado de corpos pode estabelecer nova família, mediante união estável” (Código civil comentado, cit., p. 125). 18 STJ, REsp. 1107192/PR, 3ªT., Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ acórdão Min. Nancy Andrighi, Julg. 20.4.2010 – Voto Vencido; grifou-se. 19 STJ, REsp. 1.018.205/DF, 4ª T., Rel. Min. Honildo Amaral de Mello Castro, Julg. 15.12.2009; grifou-se 20 STJ, REsp 912926/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Julg. 5.8.2010; grifou-se. 16 118 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Em consequência, as normas dos arts. 1.521, VI, e 1.723, §1º, Código Civil, não se aplicam à hipótese em exame, em que as pessoas separadas judicialmente e que restabelecem a sociedade conjugal vieram do mesmo casamento (reconciliação de fato). Essas normas pressupõem, portanto, o cônjuge separado de fato ou judicialmente que estabelece união estável com terceiro, alheio àquela relação. Em definitivo: na espécie, são as mesmas pessoas que se separaram e voltaram a conviver, X e Y, hipótese em que a lei não autoriza (e nem poderia fazê-lo, por impossibilidade lógica) a união estável, tendo em vista que o vínculo matrimonial não se dissolveu. Além disso, a disciplina da união estável orienta-se pela sua conversão em casamento, nos termos do art. 226, §3º21, Constituição da República, a denotar a preocupação do sistema jurídico em estimular o casamento22 que, por seu rigor formal, confere elevado grau de segurança jurídica aos cônjuges Em consequência, há de se prestigiar, na hipótese vertente, o vínculo matrimonial existente e válido entre o casal, que não se dissolveu com a separação judicial, acompanhado do regime de bens fixado no pacto antenupcial, precisamente o regime de separação de bens. Embora in casunão tenha havido pedido formal ao juiz de reconciliação, a relação de fato estabelecida pelos cônjuges, que se reconciliaram de fato e voltaram a viver como se casados fossem, prepondera sobre o requisito formal indicado pelo art. 1.577, Código Civil. Isto porque, mais uma vez, a preocupação do codificador, com o dispositivo e seu parágrafo único, dirige-se à proteção de terceiros, que eventualmente tenham constituído direitos ou obrigações patrimoniais com um dos cônjuges durante o período de separação. Daí a exigência de controle judicial, o qual, de resto, embora frequente nos Códigos do Século passado, encontra-se cada vez menos rígido na jurisprudência e nas legislações contemporâneas. Assim como as entidades familiares produzem efeito sem o ato formal do casamento, independentemente do casamento ou até mesmo em detrimento do casamento, a reconciliação de fato, que restaura a vida comum no curso de casamento válido, não poderia ser desconsiderada. Cuida-se de mais uma hipótese em que a realidade da vida (relações de fato ou socioafetivas) há de ser tutelada em detrimento da forma. No caso da reconciliação, pode-se aduzir, ainda, que o favor interpretativo ao seu reconhecimento (de fato) é imperativo que decorre do favor constitucional pró-matrimônio, como acima mencionado (art. 226, §3º, C.R.). 21 “Art. 226. (...)§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. 22 Sobre o ponto v. Rodrigo da Cunha Pereira, Comentários ao novo código civil, cit., p. 204. 119 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 De mais a mais, fosse adotado critério estritamente formal, em desfavor da interpretação sistemática e teleológica que admite a reconciliação de fato, forçoso seria concluir que, uma vez válido e íntegro o vínculo matrimonial, vez que ausente o divórcio, a alteração do regime de bens dependeria de autorização judicial, mediante pedido motivado, em ação própria, de ambos os cônjuges23, ressalvados, mais uma vez, os direitos de terceiros (art. 1.639, §2º24, Código Civil).25 Nesse cenário, acolher a pretensão de Y de configuração de união estável com seu marido X, após a retomada da convivência conjugal antes do divórcio, representaria violação aos dispositivos do Código Civil que determinam a integridade do vínculo matrimonial sem o divórcio e, por via transversa, burla à norma do art. 1.639, §2º, Código Civil. Diante do exposto, vê-se que o matrimônio entre X e Y, cujos efeitos haviam sido suspensos durante a separação judicial, voltou a ter eficácia com o restabelecimento da sociedade conjugal, retornando, portanto, os cônjuges ao estado anterior à separação, mediante a produção dos efeitos do casamento, com idêntico regime de separação de bens. Tal aspecto mostra-se particularmente relevante na medida em que, ao disciplinar a união estável, conforme já observado em outra sede26, o legislador do art. 23 Confira-se, no comentário doutrinário, o rigor formal exigido pelo Codificador para a alteração do regime de bens, na mesma tendência judicializante que presidiu o art. 1.577: “Para que os cônjuges possam modificar o regime de bens, legal (desde que não seja obrigatório, art. 1641) ou convencional, após o casamento, são necessários três requisitos cumulativos: (a) autorização judicial; (b) motivação relevante; (c) ressalva dos direitos de terceiros. (...) O pedido deve ser dirigido ao juiz competente, segundo a respectiva organização judiciária, em ação própria, postulada por advogado comum. Somente será possível o seguimento do pedido se ambos os cônjuges forem autores do pedido; a recusa ou reserva de qualquer deles impedirá o deferimento. A falta de anuência do cônjuge recalcitrante não poderá ser suprida pelo juiz. A alteração produzirá efeitos entre as partes com base na decisão judicial” (Paulo Luiz Netto Lôbo, Código civil comentado, vol. 16, São Paulo: Atlas, 2003, p. 234). 24 “Art. 1639. (...) § 2o. É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. 25 Sobre a reconciliação entre cônjuges, anota Antônio Carlos Mathias Coltro: “Basta a vontade dos separados para que possa ocorrer a reconciliação, tenha a separação sido ou não consensual, voltando o casal a se submeter aos direitos e deveres decorrentes do casamento e tornando a produzir efeitos o regime matrimonial anteriormente adotado, para cuja alteração haver-se-á proceder nos termos do art. 1.639, § 2º, ficando sem efeito, no tocante aos bens que ainda possuírem, a partilha de bens ocorrida na separação, com ressalva a direitos de terceiros, adquiridos anteriormente e durante o estado de separação e em relação aos quais a reconciliação não pode interferir. (...)” (Comentários ao novo código civil, cit., pp. 422-423). Na jurisprudência, cf: STJ, AgRg AI 1.336.311/SP, Rel. Min. Ricardo Villas BôasCueva, Julg. 21.8.2012; STJ, REsp. 776455/RS, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, Julg. 17.4.2012. 26 “O art. 1.725 do Código Civil, reconhecendo a aplicação analógica do regime de comunhão parcial à união estável, traduz longa evolução doutrinária e jurisprudencial. A inovação, todavia, deve ser compreendida com ressalvas. A natureza do regime de bens se associa ao ato jurídico formal de constituição da família, justificando-se a amplitude de seu espectro de incidência na vida patrimonial dos cônjuges em razão da 120 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 1.72527, Código Civil, não adotou propriamente regime de bens, o que seria típico do casamento, limitando-se a autorizar a adoção, por empréstimo, do regime da comunhão parcial dos bens, “no que couber”, para que, do ponto de vista técnico, os companheiros pudessem se beneficiar da divisão de aquestos decorrentes do esforço comum. Significa dizer que, de acordo com o sistema legal, caso viesse a ser admitida a união estável entre X e Y, em desapreço pelo casamento anterior ainda em vigor, certo é existir – e ao que parece de modo incontroverso nesses autos – contrato formal escrito entre os supostos companheiros, isto é, o pacto antenupcial jamais revogado e que, por insuperável dever de coerência, incidiria para regular, nos termos do art. l.725, Código Civil, as relações patrimoniais entre eles. Trata-se de imperativo do princípio da autonomia privada, não havendo dúvida quanto à vontade manifestada pelas partes na celebração daquele contrato formal. Por outro lado, ainda que fosse juridicamente possível a união estável entre o casal, alterando-se para a convivência o regime de comunhão parcial de bens, mostrar-seia improcedente o pedido de partilha dos dividendos da companhia auferidos pelo Consulente. Com efeito, os dividendos das ações da P. S/A representam, segundo informa o Consulente, a evolução patrimonial da própria empresa, cujas ações foram adquiridas anteriormente ao casamento. Trata-se de fruto de bem particular, produzido sem o concurso do outro cônjuge, que decorre exclusivamente do trabalho de X. Ao propósito, o art. 1.660, V28, Código Civil, ao estatuir que os frutos decorrentes de bens que integram o patrimônio individual se comunicam, presume que os cônjuges empreenderam esforços comuns para a obtenção desses frutos. Cuida-se de presunção relativa, a qual admite, portanto, prova em contrário, compatibilizando-se o publicidade derivada do registro do ato matrimonial no cartório competente, em favor da segurança de terceiros. Disso decorre que a união estável invoca a disciplina da comunhão parcial no que concerne exclusivamente à divisão dos aquestos, não já no que tange aos demais aspectos do regime patrimonial atinentes, como, por exemplo, à outorga conjugal para a alienação dos bens (art. 1.647, I, Código Civil) ou para a celebração do contrato de fiança (art. 1.647, III)” (Gustavo Tepedino, Controvérsias sobre a sucessão do cônjuge e do companheiro. In: Pensar, Fortaleza, v. 17, n. 1, jan./jun. 2012, pp. 151-152). 27 “Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. 28 “Art. 1.660. Entram na comunhão: (...) V - os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão”. 121 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 preceito com o inciso VI do art. 1.65929, Código Civil, o qual determina que os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge estão excluídos da comunhão.30 Desta feita, ao se comprovar que o cônjuge não contribuiu para o surgimento desses acréscimos patrimoniais do bem individual, os frutos não se comunicam31, notadamente quando derivam de sociedade alheia ao casamento, cuja autonomia patrimonial permite que se visualize nitidamente a segregação dos patrimônios, contrariamente à promiscuidade de fundos que permeia, por vezes, os patrimônios dos cônjuges. Compatibilizam-se, assim, os incisos V32 e VI do art. 1.659. Os frutos resultantes de bem particular e decorrentes de esforço exclusivo do cônjuge titular do bem não se comunicam, incidindo o disposto no art. 1.659, VI, de modo a desconstituir a presunção do esforço comum. Por conseguinte, no caso concreto, ainda que se pudesse admitir, em tese, o regime de comunhão parcial de bens mediante (i) o reconhecimento, juridicamente 29 “Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) VI - os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge;”. Ao analisar os dispositivos da Lei 9.278/96, assinala Antônio Junqueira de Azevedo: “a presunção de que os bens (...) são fruto do trabalho e da colaboração comum (...) não é aí a absoluta (iuris et de iure) e sim a relativa (iuris tantum), representando consolidação do que a jurisprudência dominante vinha decidindo. A regra geral é a de que as presunções legais admitem contraprova; sua finalidade é inverter o ônus da prova, atendendo ao quod plerumquefit, no interesse daquele em favor do qual ela foi instituída. Normalmente, as presunções não ‘congelam’ artificialmente a realidade e admitem a produção de prova contrária ao fato presumido. Esse é, aliás, o espírito do processo civil moderno, pautado pela amplitude dos meios de prova (art. 332 do Código de Processo Civil). (...) A regra permanece, pois, a mesma: ausente previsão legal quanto ao caráter absoluto ou relativo da presunção, ela é relativa” (Incomunicabilidade dos proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge no regime da comunhão parcial dos Códigos Civis de 1916 e 2002. Extensão da Incomunicabilidade aos Bens Móveis ou Imóveis Sub-rogados. Incomunicabilidade de Bem Imóvel Adquirido durante a União Estável Anterior ao Casamento, por ser Relativa a Presunção do art. 5º da Lei nº 9.276/96. In: Novos Estudos e Pareceres de Direito Privado, Rio de Janeiro: Saraiva, 2009, pp. 510-511). 31 Na jurisprudência do STJ, confira-se: “Dessa forma, em sendo o regime da comunhão parcial de bens o aplicável para o presente caso, deve-se estar atento aos princípios que regem tal regime, em especial ao do patrimônio adquirido pelo esforço comum dos companheiros, como premissa inicial para a partilha em julgamento. (...) É preciso destacar que, além de a aquisição ocorrer durante o período de convivência, é necessária a presença de um segundo requisito, qual seja, que esse crescimento patrimonial advenha do esforço comum, mesmo que presumidamente. A valorização de cota social, pelo contrário, é decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o esforço laboral da pessoa do sócio detentor. Logo, não se faz presente, mesmo que de forma presumida, o segundo requisito orientador da comunhão parcial de bens, que é o esforço comum. Não há, portanto, relação entre a comunhão de esforços do casal e a valorização das cotas sociais que o companheiro detinha antes do período de convivência.” (STJ, REsp. 1.173.931/RS, 3ª T., Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Julg. 22.10.2013). No mesmo sentido: “Na hipótese dos autos, apurou-se nas instâncias ordinárias que o ora recorrente já era detentor de 50% do capital da empresa antes mesmo de iniciar a união estável. Também restou assente que não teria havido desvio de bens particulares para a empresa. Desse modo, verifica-se que a evolução patrimonial da sociedade decorreu apenas do êxito empresarial, nada havendo a partilhar com a ex-companheira do recorrente, nos termos do precedente supracitado.” (STJ, REsp. 1338943, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Julg. 1.8.2014). 32 “Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) V - os bens de uso pessoal, os livros e instrumentos de profissão;”. 30 122 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 impossível, da união estável; e (ii) a alteração, sem ato formal, do regime de bens estabelecido em pacto antenupcial; os dividendos da companhia na qual X figura como acionista não se comunicam, por representarem frutos decorrentes de bem particular que decorrem de esforço exclusivo do cônjuge varão. Tampouco se comunicaria o imóvel do Rio de Janeiro adquirido na constância da alegada união estável, tendo em conta que, segundo informa o Consulente, a aquisição se verificou com valor exclusivamente de X, em sub-rogação de bem particular, adquirido anteriormente ao casamento com Y (art. 1.659, II33, Código Civil).34 Diante do exposto, revela-se improcedente, à luz do direito brasileiro, o pedido de Y de reconhecimento da união estável com vistas à incidência do regime de comunhão parcial de bens. Por outro lado, mesmo que se pudesse admitir a união estável, ainda assim, afiguram-se insubsistentes os pedidos de (i) alteração do regime de bens estabelecido no pacto antenupcial; (ii) partilha dos dividendos das ações da companhia; e (ii) partilha do imóvel do Rio de Janeiro adquirido com proventos exclusivos do cônjuge varão, em sub-rogação a bem particular. 3. Violação do princípio da boa-fé objetiva por Y. Legítima confiança de X na manutenção do regime de separação de bens De outra parte, o pedido de reconhecimento da união estável formulado por Y, com vistas à incidência do regime de comunhão parcial de bens, afronta a cláusula geral de boa-fé objetiva, incidente sobre todas as relações jurídicas patrimoniais, por força do dever imposto pelos arts. 113 e 422, Código Civil. Princípio fundamental da teoria contratual, destinado a orientar o comportamento dos particulares no âmbito de situações jurídicas patrimoniais, notadamente no direito das obrigações, o princípio da boa-fé objetiva tem incidência nas relações patrimoniais estabelecidas no direito de família.35 33 “Art. 1.659. Excluem-se da comunhão: (...) II - os bens adquiridos com valores exclusivamente pertencentes a um dos cônjuges em sub-rogação dos bens particulares;”. 34 Registra, ao propósito, a doutrina: “Na hipótese do inc. II, não há uma aquisição pura, mas mera substituição de bens, ainda que tal substituição pudesse constituir um acréscimo patrimonial. (...) os bens adquiridos com o produto da venda de bens particulares incomunicáveis tomam lugar destes bens e passam a se revestir da mesma incomunicabilidade dos alienados” (Fredie Didier Júniret al., Comentários ao código civil brasileiro, vol. 15, Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 115). 35 Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “O princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) rege as relações de família sob o prisma patrimonial. (...) o princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código 123 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Por outras palavras, o princípio da boa-fé objetiva se aplica às relações jurídicas patrimoniais que se inserem nas relações jurídicas existenciais pertinentes ao direito de família, a denotar relações negociais, de caráter obrigacional e patrimonial, que se encontram imbricadas com as relações familiares.36 Situam-se aqui questões relacionadas ao regime de bens do casamento. Do princípio da boa-fé objetiva aplicável às relações de família, decorre a observância, pelos cônjuges, de deveres de colaboração, lealdade, honestidade, informação, dentre outros, na condução das questões patrimoniais concernentes à relação familiar.37 Especialmente nas relações entre cônjuges, espera-se que os nubentes ajam de forma leal na dissolução do vínculo e na partilha de bens. Além disso, impõe-se que os cônjuges adotem comportamento coerente relativamente às questões patrimoniais em jogo, preservando-se expectativas legítimas deflagradas por conduta inicial, que restou reiterada por significativo lapso de tempo. Por conseguinte, proíbe-se o comportamento contraditório, que viole a legítima expectativa do consorte, que confiava na manutenção do comportamento inicial do seu cônjuge ou companheiro, em aplicação do princípio do nemopotestvenire contra factumproprium.38 Civil) também rege as relações de família, sob o prisma patrimonial e não meramente existencial (...)” (STJ, REsp. 1164887/RS, 3ª T., Rel. Min. Ricardo Villas BôasCuevas, Julg. 24.4.2014). 36 Anota Anderson Schreiber: “embora aplicando-se efetivamente a boa-fé em seu sentido objetivo, não se está diante de uma relação de família propriamente dita, mas tão-somente de uma relação negocial situada em um contexto de direito de família. Assim, por exemplo, as decisões que analisam o efeito vinculante dos chamados ajustes de divisão de bens celebrados ‘por fora’ no momento da dissolução da união conjugal. Em tais hipóteses, a relação que se examina tem natureza obrigacional, patrimonial, não restando dúvida quanto à aplicabilidade da boa-fé objetiva, como é natural a um conceito concebido e aperfeiçoado no direito das obrigações. O contexto do direito de família, embora possa interferir na decisão do conflito concreto, não afasta, certamente, a incidência da cláusula geral em virtude da própria natureza da controvérsia.” (O Princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: Maria Celina Bodin de Moraes, Princípios do direito civil contemporâneo, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 452). 37 Na doutrina especializada: “Ao delinearmos os contornos dogmáticos da boa-fé objetiva nas relações familiares, a definimos como um princípio geral de colaboração e lealdade recíproca entre os sujeitos, que se traduz por meios dos deveres concretos de cooperação mútua e recíproca, de lealdade, de cuidado e de preservação das expectativas geradas. (...)” (Fernanda Pessanha do Amaral Gurgel, O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, nº 12, vol. 11, Belo Horizonte: IBDFAM, out.nov./2009, pp. 99-100). 38 V. a célebre decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 86787/RS, no qual os cônjuges que pretendiam a dissolução do casamento, embora domiciliados no Brasil, haviam contraído matrimônio no Uruguai com o objetivo de se aplicar, quanto ao regime de bens, a lei uruguaia que determinava, no silêncio das partes, a separação de bens. De acordo com a lei brasileira, de ordem pública (art. 7º, § 4º, LINDB), o regime de bens rege-se pela lei do país em que os nubentes se encontram domiciliados no momento do casamento, no caso o Brasil, a qual determinava, na ausência de pacto antenupcial, o regime da comunhão. O Ministro Leitão de Abreu, em seu voto, ressaltou que a prática, pelos cônjuges, de diversos atos posteriores ao casamento que indicavam a vontade inequívoca de adotar o regime da separação de bens, impediria a conduta contraditória do nubente em sustentar, anos depois, que o regime de bens do casal seria o da comunhão, em manifesta violação ao princípio segundo o qual não pode a parte venire contra factumproprium. 124 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Do mesmo modo, também os negócios firmados no âmbito de relações familiares, de que é exemplo eloquente o pacto antenupcial39, hão de ser interpretados em consonância com o escopo econômico comum que orientou os consortes em sua celebração (arts. 112 e 113, Código Civil). No caso concreto, Y, após período de separação judicial (18 meses), voltou a viver com X, pelo significativo lapso temporal de oito anos, restabelecendo o casamento, com sua plena eficácia, como visto anteriormente. Este casamento, como antes também analisado, foi acompanhado de pacto antenupcial, livremente celebrado, sendo incontroversas a sua validade e eficácia, assim como a sua não extinção pela vontade das partes ou pelo Poder Judiciário. Nesse cenário, a convivência retomada pelo casal e que se prorrogou por oito anos, vivendo como casados, despertou em X, que com Y celebrou pacto antenupcial de separação de bens, a legítima expectativa de que o casamento, com o regime de bens definido em pacto antenupcial, estaria em vigor. Por conseguinte, o pedido de Y de reconhecimento de união estável entre o casal, ignorando o casamento validamente existente e o pacto antenupcial por eles celebrado e jamais extinto, nem formal nem informalmente, viola a legítima expectativa do cônjuge varão, e contraria seu comportamento em reconhecer a validade do regime de separação de bens, a representar venire contra factumproprium, rechaçado pelo princípio da boa-fé objetiva. Tais legítimas expectativas, protegidas pelo princípio da boa-fé objetiva, têm sido amplamente admitidas e tuteladas nas relações familiares, como, de resto, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: Sob a perspectiva inescapável da boa-fé objetiva – que deve guiar não apenas as relações negociais, como também as decorrentes de vínculos familiares, como um manancial criador de deveres jurídicos entre os envolvidos, de cunho preponderante ético e coerente, como o são os deveres de lealdade, de respeito, de honestidade e de cooperação –, munirse-á o Juiz de um verdadeiro radar a fim de auscultar a melhor forma de concretização das expectativas e esperanças recíprocas outrora criadas, nascidas do afeto e nutridas pela confiança.40 Nas relações familiares, o princípio da boa-fé objetiva deve ser observado e visto sob suas funções integrativas e limitadoras, traduzidas pela figura “Ademais, o pacto antenupcial, apesar de se inserir na seara do direito de família, se apresenta como um contrato celebrado entre os nubentes, os quais estipulam as cláusulas que irão reger a sua vida patrimonial após o casamento, e, como tal, se sujeitam à cláusula geral da boa-fé objetiva, consoante preconizado no art. 422 do Código Civil” (Verônica Rodrigues de Miranda, A boa-fé objetiva no direito de família. In: Revista dos Tribunais, ano 102, vol. 927, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./2013, p. 110). 40 STJ, REsp 1.025.769/MG, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, Julg. 24.8.2010. 39 125 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 do venire contra factumproprium (proibição de comportamento contraditório), que exige coerência comportamental daqueles que buscam a tutela jurisdicional para a solução de conflitos no âmbito do Direito de Família.41 Ao lado do comportamento contraditório propriamente dito, a conduta de Y em requerer o reconhecimento da união estável, e nessa esteira, a alteração do regime de bens pactuado, viola os deveres de lealdade e honestidade na dissolução do vínculo matrimonial e na partilha de bens, de observância obrigatória por força do princípio da boafé objetiva. Desse modo, o afastamento do regime de separação de bens e o reconhecimento da união estável, em menoscabo ao casamento válido mantido entre os consortes e do pacto antenupcial em sentido contrário, viola o princípio da boa-fé objetiva que deve nortear os efeitos patrimoniais das relações familiares, devendo, por isso mesmo, ser coibidos à luz do ordenamento jurídico brasileiro. 41 STJ, REsp 1087163/RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, Julg. 18.8.2011. 126 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 ATUALIDADES O USUCAPIÃO ORDINÁRIO E O JUSTO TÍTULO The ordinary adverse possession and fair title Ruy Rosado de Aguiar Júnior Ministro aposentado do STJ. Advogado. 1. O art. 551 do CC/1916 e o atual art. 1.242 do CC/2002 definem o usucapião ordinário, e entre seus requisitos incluem boa-fé e justo título. A orientação predominante, de antes e de agora, entende como justo título aquele hábil a transferir o domínio, o que não aconteceria por um vício de origem ou defeito de forma, comumente na hipótese de compra e venda a non domino. Penso que tal decorre da preeminência dada ao domínio, em detrimento da posse (dos forçados, em favor dos forçadores, na expressão de Pontes de Miranda). O muito ilustre José Osório de Azevedo Júnior, que trata desses temas com maestria, observou: Em tais circunstâncias (após o CC/16), e adotada a propriedade como direito absoluto, a consequência não poderia ser outra: a posse perdeu grande parte de sua relevância jurídica e social, passando a ser considerada um instituto jurídico de segunda classe1. 2. A par disso, convém lembrar que tem sido abrandado o entendimento tradicional e restritivo quanto ao conceito de “justo título” para o usucapião ordinário. 3. Em primeiro, passou-se a dispensar o registro da escritura pública: A jurisprudência tem evoluído na compreensão no tocante ao justo título, assim considerado como suficiente a embasar usucapião ordinária. A entender que o título, para ser justo, deva, além de válido, certo e real, ser 1 AZEVEDO JÚNIOR. José Osório de. Atualidade da posse no direito brasileiro. In: AMORIM, José Roberto Neves; ELIAS FILHO, Rubens Carmo (Coord.). Estudos avançados de direito imobiliário. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014. p. 238. 127 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 registrado, chegaríamos à conclusão de que o domínio já estaria cabalmente adquirido, pois obedecidas todas as formalidades legais intrínsecas e extrínsecas2. 4. Em segundo, permitiu-se, com certa predominância, que contrato outro (não o de compra e venda) pudesse preencher esse requisito, tal como acontece com a promessa de compra e venda: Porém, embora haja bastante controvérsia, doutrina e jurisprudência inclinam-se a alargar o conceito de justo título e inserir nessa categoria aqueles que não atendem ao plano da eficácia, no que concerne à sua aptidão de transferir a propriedade imobiliária, mas que no âmbito da existência e da validade encontram-se hígidos. É a hipótese, por exemplo, dos instrumentos de promessa de compra e venda quitados, que a jurisprudência vem reconhecendo sua aptidão para justificar a usucapião ordinária, desde o precedente firmado no vetusto REsp 32.972/SP, rel. p/acórdão Ministro Nilson Naves, julgado em 19.3.1996, embora tenha havido oscilações anteriores3. A Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aceitou como justo título uma cessão de direitos possessórios feita por instrumento particular: a posse, não sendo um direito real, pode ser transferida por essa forma4. 5. Em terceiro, admitiu-se que o título poderia não se apresentar na forma de um documento, podendo decorrer de atos, declarações e circunstâncias: No que tange ao usucapião, o conceito do justo título sofre modificação, considerando-se que este é compreendido em todo ato ou circunstância que leva uma pessoa de boa-fé à crença de que a coisa que possui ele a houve por ato legítimo de outrem5. 6. Por último, e aqui queria chegar, penso que o “justo título”, para a ação de usucapião, é o justo título da posse. É o ato que justifica juridicamente o exercício da 2 RIBEIRO, Benedito Silvério. Tratado de usucapião. 3. ed. adaptada ao Estatuto da Cidade e ao novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 780. 3 STJ. REsp n° 941.464/SC, Quarta Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, ac. de 24.4.2012. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sSeq=1140034&sReg=200700781588&sData =20120629&formato=PDF>. Acesso em: 2 jun. 2014. 4 TJRS, ac. de 22.9.1965, na Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 72, p. 176. 5 NUNES, Pedro. Do usucapião: teoria, ação, prática processual, formulários, legislação, regras e brocardos de direito romano, jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1984. p. 40. 128 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 posse. É a causa determinante do fato da posse, pois no usucapião tratamos de posse, não de propriedade. Lembro a lição de Colin &Capitant: Em boa legislação dever-se-ia afirmar que existe justo título sempre que um indivíduo, reunindo as condições gerais da posse, se houvesse instalado num imóvel regularmente, seja em consequência de uma venda, de um legado, de uma partilha, de uma sentença, etc., e não como usurpador. [...] O justo título, em outros termos, seria de se considerar unicamente um elemento da boa-fé6. Justo é o título que está de acordo com a ordem jurídica. O possuidor que exerce a posse mediante uma relação admitida pela ordem jurídica, como acontece com aquele que recebe a posse do proprietário com a promessa de transferência da propriedade, exerce posse justa e tem título para isso. Segundo Arnaldo Rizzardo, o significado de justo traduz-se em ato conforme a justiça, a equidade, a razão, ou seja, em ato imparcial, reto, exato, legítimo. Opõe-se à ideia de ato injusto, injurídico ou fraudulento7. No âmbito da posse e de seu efeito, não interessa saber se há título que possa significar a transferência de domínio, que disso não se trata. Ademais, quem detém um título destinado a transferir o domínio, e se tal título está de acordo com a ordem jurídica, raramente necessitaria ele de alguma providência para obter a transferência do domínio. Se o título não atende a essa finalidade, não é justo, isto é, não está de acordo com a lei que regula a transferência da propriedade. Aproximar a ideia de justo título à de transferência de domínio parece-me um equívoco que, apesar de vetusto, não se justifica. Pontes de Miranda, o sábio, já observara: “Alguns erros de juristas duram séculos”8. Serpa Lopes teve a exata noção do conceito de justo título (embora, no final, termine por exigir sua transcrição): Título é o elemento representativo da causa ou fundamento jurídico de um direito. Para o efeito da posse, a noção de título corresponde aos seus respectivos modos aquisitivos, em virtude do que por justo título entendese aquele que é causa jurídica legítima de uma aquisição de posse. Pode 6 COLIN, Ambroise; CAPITANT, Henri. Curso Elemental de Derecho Civil. Madrid: Reus, 1942. t. 2, p. 936. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Aide, 1991. v. 1, p. 435. 8 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial. Atualizado por Giselda Hironaka, Paulo Lôbo [e] Euclides de Oliveira. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. t. 60, p. 277. 7 129 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 ser representado não só por um fato jurídico – a apreensão – como por um negócio jurídico, judicial ou extrajudicial9. 7. O Enunciado 302, aprovado na IV Jornada de Direito Civil promovida pelo CEJ, acolheu a tese: “Pode ser considerado justo título para a posse de boa-fé o ato jurídico capaz de transmitir a posse ad usucapionem, observado o disposto no art. 113 do Código Civil”. 8. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já assim votei na Apelação Cível n° 589.019.629, de que fui relator: O justo título, como requisito para usucapião ordinária, tem sido definido em termos bem restritos, a tal ponto que a experiência forense raramente registra pedido de usucapião por este fundamento, podendo dizer-se que a interpretação restritiva praticamente impede a incidência da norma. Apesar da predominância desse entendimento na doutrina e na jurisprudência, penso que se deve reexaminar o tema para definir-se como justo título aquele que legitima o fato da posse, pois o justo título não há de ser o da propriedade, mas, tão-só, o da posse. Pedro Nunes invoca a lição de Câmara Leal para, primeiramente, definir como título o motivo jurídico pelo qual o possuidor começou a deter a coisa e a havê-la como própria, e como justo título o que se apresenta com veemente aparência de legitimidade (NUNES, Pedro. Do Usucapião: teoria, ação, prática processual, formulários, legislação, regras e brocardos de direito romano, jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1984. p. 43). Para ser título, em se tratando de usucapião, deve-se considerar apenas o título da posse; para ser justo, basta que sirva para legitimar a existência do fato, de acordo com as regras jurídicas vigentes. Nesse conceito, portanto, o justo título da posse é aquele que serve para legitimar a consciência do possuidor de que tem direito à posse do bem em razão de um ato juridicamente admitido pelo ordenamento. Tem justo título para a posse aquele que passa a ocupar o imóvel, com ânimo de dono, em razão de um contrato de promessa de compra e venda celebrado com aquele que detinha a titularidade do domínio ou com aquele que também era titular de uma promessa de compra e venda registrada, como ocorre no caso dos autos, pois ambos podiam alienar o domínio e estavam legitimados a transferir a posse do bem. É verdade que a v. sentença apelada tem em seu prol ensinamentos os mais respeitáveis, mas é preciso interpretar a lei de acordo com os fins sociais a que ela se destina, em obediência aos princípios indicados na lei de introdução e aos enunciados na nova Constituição Federal, de tal modo que o dispositivo legal que prevê a usucapião ordinária, em tempo curto, também possa ser aplicado em favor do possuidor com ânimo de dono que tenha ingressado no imóvel em razão de um título outorgado por quem lhe poderia transferir legitimamente a posse. É preciso distinguir entre a usucapião extraordinária, que favorece a todos, 9 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de direito civil: direito das coisas: princípios gerais, posse, domínio e propriedade imóvel. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962. v. 6, p. 142. 130 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 inclusive aos de má-fé, e a ordinária, em benefício daqueles que de boa-fé e legitimamente recebem a posse do imóvel10. 9. Mais tarde, no egrégio Superior Tribunal de Justiça, deixei consignado o mesmo entendimento em voto vogal: Sr. Presidente. Com relação ao justo título, tenho entendimento um pouco mais extensivo. Parece-me que o justo título para permitir a usucapião ordinária é aquele que legitima a posse – justo título para o exercício da posse. A interpretação que sempre se deu no Brasil de que o juto título é aquele capaz de transferir o domínio, apenas não o faz por um defeito formal, é muito restrita e até hoje não vi nenhum caso a que se aplicasse esse dispositivo legal. Na verdade, o que interessa na usucapião é a posse, e a posse com justo título é que tem esse tratamento especial dado pelo Código11. No Recurso Especial n° 171.204/GO, em julgamento da egrégia Quarta Turma, que aceitou o compromisso de compra e venda não registrado, assim votei, inaugurando a divergência: Sr. Presidente. Peço licença para divergir. O documento de fls. 62/63 é uma escritura pública de compromisso de compra e venda que não foi registrada por dificuldades com o parcelamento do solo. Mas o Tribunal tem dado eficácia para esses documentos. Ora, o possuidor tem uma posse fundada nesse título e, diz a lei, o justo título permite o usucapião ordinário. O que é o justo título? Há muitos anos venho sustentando que justo título é aquele que explica juridicamente o exercício da posse. O recorrente faz citações de doutrina nesse sentido. Então, ele tinha um título que justificava sua posse, a qual já somava quatro anos como posse própria, mais a posse de quem lhe transmitiu. No momento em que o Tribunal afastou isso, violou a regra que permite o usucapião e a soma da posse12. 10. Parece indiscutível que a atual tendência do nosso legislador é a de criar novos instrumentos para consolidação do direito do possuidor de área urbana ou rural, 10 TJRS. Apelação Cível n° 589.019.629, Quinta Câmara Cível, rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julgado em 5.9.1989. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 146, p. 238. 11 STJ. Voto no REsp n° 73.029/DF, Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, ac. de 25.11.1997. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/ita/documento/mediado/?num_registro=199500432722&dt_publicacao=1603-1998&cod_tipo_documento=>. Acesso em: 2 jun. 2014. 12 STJ. Voto no REsp n° 171.204/GO, Quarta Turma, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, ac. de 26.6.2003. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=1115374&sReg=1998002 58906&sData=20040301&sTipo=2&formato=PDF>. Acesso em: 2 jun. 2014. 131 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 como se vê na Constituição da República, no Código Civil e em várias leis esparsas, de que é exemplo a Lei n° 11.977/200913. Nesse contexto, não pode prevalecer o vetusto princípio formado segundo outros conceitos, que despreza a natureza jurídica da posse justa como requisito do usucapião ordinário. 13 BRASIL. Lei n° 11.977, de 7 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei n° 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis n°s 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória n° 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2009/Lei/L11977.htm>. Acesso em: 2 jun. 2014. 132 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 RESENHAS REGULAÇÃO DA INTERNET E PROMOÇÃO DE DIREITOS E LIBERDADES CIVIS Internet regulation and promotion of rights and civil liberties Resenha de MARTINS, Guilherme Magalhães (Coord.). Direito privado e Internet. São Paulo: Atlas, 2014. Fabiano Pinto de Magalhães Mestrando em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Especialista em Direito Privado Patrimonial pela PUC-Rio. Professor da Escola Superior de Advocacia Pública do Estado – ESAP/PGE-RJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro O professor Guilherme Magalhães Martins publica, sob sua coordenação, o livro Direito privado e Internet, que, formado pela coletânea de artigos de renomados autores, aborda a relação entre Direito e Internet em diversas situações possíveis. A obra, atenta aos novos desafios e interesses e às novas situações jurídicas, existenciais e patrimoniais, surgidos pelo uso da Internet, propõe questionamentos e reflexões fundamentais, abordando as mais recentes inovações normativas ou propostas de alterações legislativas, como o Projeto de Lei do Senado nº 281/2012 (que acrescenta dispositivos ao Código de Defesa do Consumidor sobre o comércio eletrônico), o Decreto nº 7.962/2013 (que regulamenta o CDC para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico) e a Lei nº 12.965/2014 (que institui o chamado Marco Civil da Internet). O lançamento não poderia se dar em momento mais oportuno, pois coincide com a promulgação do Marco Civil da Internet, marco regulatório que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. O Marco Civil, constituído a partir de um amplo e inovador processo de participação e deliberação populares realizado na Internet, representa um modelo civil de 133 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 regulação – que o diferencia qualitativamente de anteriores propostas de regulação penal, mediante a criminalização de certas condutas, como a chamada lei Azeredo –, com inegável caráter principiológico e enunciativo de direitos civis. O texto normativo dispõe sobre relevantíssimas questões, entre as quais se destacam a liberdade de expressão, a neutralidade da rede, a privacidade e a proteção de dados pessoais, o direito de acesso à Internet a todos e o regime próprio de responsabilidade civil. Desde a sua elaboração, alguns pontos são objeto de intensas discussões quanto a constitucionalidade, adequação, âmbito de incidência e extensão: neutralidade, pacotes de dados e liberdade dos modelos de negócios promovidos na Internet; privacidade, proteção de dados pessoais, consentimento informado e a inadequação dos modelos tradicionais de sua obtenção; diversidade dos regimes de guarda de registros de conexão e de guarda de registros de acesso a aplicações da Internet; e o regime de responsabilidade civil do provedor de conexão à Internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Não há dúvida de que os problemas não se encerram por aqui. Diante da incapacidade de previsão de todas as hipóteses fáticas, o legislador corretamente fugiu da técnica regulamentar e recorreu ao modelo de princípios e cláusulas gerais para estabelecer um texto normativo dotado de maior vagueza e abertura semântica, que lhe garantem maior potencialidade expansiva para aplicar-se a situações não previstas ou que sequer surgiram. No âmbito da Internet, é ainda maior a possibilidade de surgimento de novas situações, antes não imaginadas, que, malgrado a inexistência de previsão legislativa específica, devem merecer a atenção do Direito, cabendo ao intérprete buscar no ordenamento jurídico soluções para eventuais conflitos. De fato, a criação da Internet potencializou o desenvolvimento da denominada Sociedade da Informação, cujas específicas características (como a lógica de redes aberta, descentralizada e não hierárquica, a penetrabilidade social dos efeitos das novas tecnologias, a aproximação virtual e a interatividade) contribuíram para a produção de significativos impactos nas diversas formas de interação social e em todas as esferas da atividade humana. A Era da Informação impõe, assim, um novo paradigma, transformando os padrões gerais de comunicação e o padrão de comportamento esperado e modificando as formas de organização, processamento e intercâmbio de informação, através de uma infraestrutura de redes sociais e mídia. No entanto, diante da incapacidade da atenção 134 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 humana a todo o volume extraordinário de informação, alerta-se quanto aos inevitáveis encurtamentos e simplificação das mensagens eletrônicas, em prejuízo da transmissão de ideias profundas que demandem reflexão e contemplação críticas. A imensa facilidade de conexão com outras pessoas e de formação de comunidades, a velocidade e o amplo alcance para pesquisa e conhecimento, e as inúmeras alternativas de diversão e entretenimento são apenas outras funcionalidades desta nova ferramenta tecnológica. Mas a Internet não se restringe a isto. Ela constitui importante meio de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e, ainda, uma das principais formas de acesso à informação, com reflexos nas mídias tradicionais. Há pesquisa, por exemplo, que indica que aproximadamente 40% dos jovens americanos com menos de 30 anos se informam e obtêm acesso a notícias principalmente através de redes sociais. Este fato demonstra a necessidade de garantia da Internet como espaço livre, aberto e democrático de manifestação de pensamentos, opiniões e ideias e difusão de conhecimento e informação, em ordem a favorecer um amplo debate público e novas modalidades de ação e participação políticas e de controle do Poder Público. A revolução tecnológica provoca transformações, ainda, na economia e na cultura, constituindo nova plataforma para transações comerciais e consumo e permitindo novos modelos de negócios e de criação e difusão de conhecimento. Há, portanto, necessidade de adequada regulação jurídica da Internet para manter suas características originais de abertura e liberdade, com vistas à tutela e promoção da pessoa humana. Ciente deste rico e complexo cenário, a obra não se restringe ao Marco Civil e analisa outros temais atuais e sensíveis sobre o ambiente virtual, e se propõe a fomentar valiosas reflexões e sugerir possíveis soluções. O livro é estruturado em trêsgrandes partes: (i) situações jurídicas existenciais na sociedade da informação; (ii) a proteção do consumidor na Internet; e (iii) direitos autorais e tecnologia. O artigo de abertura da coletânea (O direito ao esquecimento na Internet), de autoria de Guilherme Magalhães Martins, aborda o atual e difícil tema do direito ao esquecimento na Internet, e procura investigar se seria justo permitir que os usuários apaguem para sempre seus rastros na rede. Este problema é potencializado pela utilização de técnicas de rastreamento de dados, sem autorização de seu titular, e pelo fato de a Internet estar cada vez mais personalizada e vigiada, somados à maior capacidade de memorização e armazenamento de dados. Segundo o autor, “deve haver uma ponderação de interesses 135 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 entre o direito ao esquecimento e a liberdade de imprensa, somente podendo ocorrer o seu reconhecimento caso se trate de ofensa suficientemente grave à pessoa humana, de modo a restringir a disseminação de determinada informação. (...) A utilidade informativa da divulgação da notícia, portanto, deve ser sopesada com os riscos trazidos pela recordação do fato à pessoa envolvida”, ganhando importância a possibilidade de aplicação do princípio da precaução e da execução específica das obrigações para garantir o “direito de não ser vítima de danos”. Em O discurso do ódio na Internet, Ana Paula Barbosa-Fohrmann e Antonio dos Reis Silva Jr. analisam as principais decisões judiciais já proferidas sobre o assunto e procuram responder três questões fundamentais no âmbito da responsabilidade civil: (i) ohate speech gera dano indenizável?; (ii) o discurso do ódio constitui dano extrapatrimonial individual e/ou coletivo?; (iii) a resposta dada pelo ordenamento deve ser por reparação ou alguma sanção civil específica? Em caso de discurso de ódio proferido contra grupo ou classe de pessoas, propõe um modelo sancionatório/punitivo, com tipo específico de reparação, através de pagamento de sanção pecuniária, sem prejuízo da possibilidade de tutela inibitória e de medida alternativa de reparação, como a atribuição de direito de resposta. Danilo Doneda, em O direito fundamental à proteção de dados pessoais, apresenta os principais aspectos relativos à proteção de dados pessoais, que merece reconhecimento como direito autônomo e fundamental no Direito brasileiro, como expressão direta da personalidade. A proteção dos dados pessoais, como novo degrau da privacidade, constitui vínculo objetivo que permite a tutela de outros interesses, circunstância particularmente interessante diante do surgimento de mais riscos em meio digital e do novo paradigma do big data. Por fim, o autor aponta recentes alterações legislativas significativas desta lógica, como a Lei nº 12.414/2011 (lei do cadastro positivo) e a Lei nº 12.527/2011 (lei de acesso à informação). Por sua vez, Helen Cristina Leite de Lima Orleans (Infidelidade virtual e exposição da vida privada na Internet), analisa, com base em criteriosa pesquisa doutrinária, a possibilidade de aplicação da responsabilidade civil por descumprimento dos deveres conjugais em ambiente virtual (redes sociais e chats, por exemplo). Considerados o fim da culpa na separação e o risco de que a condenação ao pagamento da reparação possa acirrar os ânimos entre os cônjuges (ou companheiros), defende que a mera violação do dever de fidelidade não basta para causar danos morais, sendo necessária a verificação de 136 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 circunstância mais grave que viole um dos corolários da dignidade da pessoa humana, tal como a hipótese de exposição da vida privada. No artigo subsequente (Marco civil da Internet no Brasil: breves considerações sobre seus fundamentos, princípios e análise crítica do regime de responsabilidade civil dos provedores), João Victor RozattiLonghi formula, quanto ao regime de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de Internet, firme crítica à necessidade de notificação judicial, ao argumento de que, embora esta exigência busque evitar a retirada indevida de conteúdo unilateralmente por parte dos intermediários da Rede, “acaba por deixar desprotegida a vítima de violações à sua personalidade, uma vez que terá que buscar o judiciário para ver resguardado seu direito à imagem, honra, privacidade, identidade etc”. EmLiberdade de expressão, Internet e signos distintivos, Pedro Marcos Nunes Barbosa defende que a proibição de uso de signos distintivos em manifestações culturais mostra-se desproporcional ao texto constitucional. Assim, considerando que a Internet contribui para a majoração das possibilidades de uso destes signos, o conflito entre interesses existenciais culturais e interesses patrimoniais proprietários deve ser solucionado em favor dos primeiros, com vistas à difusão da cultura, ao acesso ao conhecimento e ao aumento da produção intelectual. Thaita Campos Trevizan realiza comprometida pesquisa sobre “a tutela da imagem da pessoa humana na Internet na experiência jurisprudencial brasileira”, revisitando os conceitos de imagem-retrato, imagem-atributo e direito à identidade pessoal, com destaque para as dificuldades de sua proteção na rede e para os principais julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema. Antonia Espíndola LongoniKlee (O conceito de estabelecimento empresarial virtual e a proteção do consumidor nos contratos eletrônicos: algumas reflexões) alerta, de seu turno, para a necessidade de adaptar o conceito de estabelecimento empresarial, de modo a garantir adequada proteção do consumidor na Internet. Após detalhar suas características específicas e reconhecer que “o estabelecimento virtual é apenas uma representação do estabelecimento empresarial constituído no mundo físico”, propugna por uma especial tutela ao direito à informação e ao direito ao arrependimento do consumidor. Duas questões fundamentais são objeto da análise de Fernanda Nunes Barbosa (Informação e consumo: a proteção da privacidade do consumidor no mercado contemporâneo da oferta): (i) quais os limites do marketing direto?; e (ii) há um direito do consumidor à não-informação? Diante da proliferação abusiva de bancos de dados digitais, 137 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 considerados o tipo de dado coletado e a forma de sua divulgação, bem como a prática de condutas como o spam, a autora defende o direito do consumidor à não informação para protegê-lo contra a venda de cadastro (que viola sua privacidade e permite o enriquecimento sem causa do fornecedor), a publicidade agressiva e o assédio de consumo. O uso da Internet na prestação de serviços médicos é o tema de Paula Moura Francesconi de Lemos Pereira, que examina a viabilidade e os questionamentos jurídicos concernentes ao uso da Internet para serviços médicos de fornecimento e pesquisa de informações, de consultas médicas à distância (telemedicina) e de envio de dados (de prontuários, exames e consultas). Para a autora, a utilização da Internet como fonte de consulta acarreta risco à relação de confiança entre médico-paciente, cuja solução pode ser a técnica de certificação de sites e aplicação das normas deontológicas, de acordo com a axiologia constitucional. A telemedicina deve ser ministrada de forma restrita e cautelosa, comprovada real necessidade e urgência, diante dos riscos à obtenção do consentimento livre e esclarecido e de despersonalização da relação médico-paciente. Por fim, a autora ressalta a necessidade de observância do segredo e sigilo profissionais, de rigoroso controle e de elevadas preocupações técnicas quanto ao envio eletrônico de informações de prontuários, exames ou consultas, os quais contem dados sensíveis do paciente, cujo conhecimento por terceiros pode provocar graves danos a seus interesses existenciais. Em Contratos eletrônicos de consumo: aspectos doutrinário, legislativo e jurisprudencial, Pedro Modenesi examina os chamados contratos por clique (e problemas relacionados ao consentimento e à despersonalização do contrato eletrônico), bem como a acentuada vulnerabilidade do ciberconsumidor (em razão das disparidades econômica e tecnológica e da deficiência informativa). Por tais motivos, reitera a necessidade de regulação legislativa específica para o comércio eletrônico e sugere, ainda, a adoção de mecanismos online de resolução de conflitos. Renato Porto, no artigo intitulado Pequenos navegantes: a influência da mídia nos hábitos de consumo do público infanto-juvenil, demonstra preocupação quanto à necessidade de tutela especial do público infantil e de supervisão da atividade profissional, considerando, após analisar casos concretos, solução adequada a autorregulamentação da publicidade realizada pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária – CONAR. Vinícius Klein escreve sobre As contratações eletrônicas interempresariais e o princípio da boa-fé objetiva: o caso do EDI. O artigo focaliza os desafios surgidos com a utilização mais frequente do EDI (Intercâmbio Eletrônico de Dados 138 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 ou Eletronic Data Interchange) – cujos requisitos para contratação são a forma padronizada, o intercâmbio entre sistemas e a comunicação eletrônica – e as possíveis soluções dadas pelo princípio da boa-fé objetiva. Segundo o autor, a aplicação da boa-fé objetiva, embora de forma diversa, aos contratos empresariais paritários, impõe adequado padrão de confiança e de responsabilidade contratual aos contratos relacionais por EDI. No artigo A tutela do consumidor e o comércio eletrônico coletivo, Gabriel Rocha Furtadoe Vitor de Azevedo Almeida Júnior examinam o regime jurídico das compras coletivas – contrato cuja essência é formada pelo tempo limitado para a compra e pelo número mínimo exigido de compradores, aos quais devem ser somadas a finalidade econômica e a natureza de risco inerente –, bem assim a jurisprudência formada até o momento e as leis estaduais promulgadas. Nestes casos, a responsabilidade civil seria objetiva e solidária do anunciante dos produtos e serviços e dos sites de compra coletiva, visto que todos integram a cadeia de fornecimento. Outro aspecto importante relacionado a estes negócios diz respeito ao conteúdo e à extensão do dever de informação dos provedores intermediários, que, em razão do tempo de duração da oferta para conclusão do contrato coletivo, devem, de forma mais rigorosa, prestar informações adequadas e precisas, bem como respeitar o direito de arrependimento do consumidor. O artigo de encerramento da segunda seção do livro (Cultura, revolução tecnológica e os direitos autorais, de Allan Rocha de Souza) examina, com profundidade, o papel do Estado em relação às transformações tecnológicas, bem como os demais fatores institucionais, econômicos e culturais que influenciam o processo histórico do desenvolvimento tecnológico. Em seguida, analisa a sua importância no desenvolvimento das tecnologias de informação, processamento e comunicação (que atualmente possuem penetração em todos os domínios da vida humana) e na permissão ou restrição, mediante técnicas de incentivos ou controle, de novos modelos econômicos e de comunicação. Carlos Affonso Pereira de Souza inaugura a Parte III (Direitos Autorais e Tecnologias) com o artigo Direitos autorais, tecnologia e transformações na criação e no licenciamento de obras intelectuais. Segundo o autor, o desenvolvimento tecnológico favoreceu o enfraquecimento do dogma de que a outorga de exclusividade (associada à remuneração) seria o único instrumento de fomento da função promocional do direito autoral de estímulo à criação. A função social dos direitos autorais de desenvolvimento da cultura e acesso ao conhecimento pode ser realizada pela tutela dos direitos morais do autor, afastando-se, ainda, da indevida associação entre direitos autorais e o direito de propriedade. A realização da função promocional e da função social deveria, então, estar atenta aos 139 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 reflexos da tecnologia atualmente disponível, no sentido de criar novas formas de acesso e garantir níveis adequados de proteção ao autor. Neste contexto, ganham importância as obras colaborativas (que permitem a terceiros maior liberdade em utilizar), os novos modelos abertos de negócios e as licenças gerais públicas, que provocaram relevantes transformações na necessidade de autorização prévia e expressa, permitindo o surgimento de software livre ecreativecommmons. Cláudio Lins de Vasconcelos (As limitações, o fair use e a guinada utilitarista do direito autoral brasileiro) analisa as limitações aos direitos autorais, que permitem o uso livre, sem anuência prévia do autor, ainda dentro do prazo legal de proteção. Segundo o artigo, esta análise deve-se pautar pelas premissas de que o copyright existe em função de sua finalidade social e de que o conteúdo da função social do direito autoral consiste em estimular a criação intelectual e a diversidade cultural e garantir a liberdade de expressão. Em Plágio e Internet, Helder Galvão, após diferenciar os conceitos de plágio, usurpação e contrafação, advoga a adoção dos critérios da individualidade, criatividade e originalidade para identificação do plágio, que seria o “aproveitamento indevido de uma obra original, com a dissimulação desse aproveitamento”. Em seguida, discorre sobre os testes das semelhanças e a aplicação dos filtros, examina casos de plágio conhecidos internacionalmente e, ao final, justifica a adoção de um regime próprio de responsabilidade civil aos provedores de conteúdo digital, ante a dificuldade de identificação das hipóteses, não raro sutis, de plágio. Por fim, Sérgio Brancoapresenta estudo sobre As licenças CreativeCommons. Segundo o autor, considerando que a revolução tecnológica tornou insuficientes os modelos de proteção dos direitos autorais, teria maior eficácia a criação de licenças uniformes que permitem ao usuário identificar os direitos atribuídos e autorizam a coletividade a usar as obras dentro dos limites das licenças. Estas licenças públicas gerais – das quais a licença CreativeCommons é uma espécie – garantem a adequada proteção aos direitos autorais, o acesso à cultura e o exercício da criatividade, incentivando o desenvolvimento de modelos participativos. A variedade de temas analisados nos trabalhos reunidos em Direito privado e Internet revelam a riqueza e complexidade das discussões atuais neste campo, cujo rol é frequentemente ampliado pelo surgimento de novos casos, entre os quais, a realidade do big data (e os desafios à privacidade e à proteção de dados pessoais), a chamada Internet das Coisas e a ubiquidade tecnológica (acompanhadas de riscos de monitoramento, 140 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 vigilância e à segurança), o bitcoin (a moeda gerada e trocada de forma digital) e novas formas de uso compartilhado de bens. Em qualquer destas hipóteses, independentemente da existência de previsão legislativa específica, é missão do jurista buscar soluções baseadas em uma regulação jurídica adequada para garantia de direitos e liberdades individuais, com vistas à tutela e promoção da pessoa humana. 141 Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 2 – Out / Dez 2014 Submissão de Artigos Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil para publicação devem observar às seguintes normas: 1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não deve estar pendente em outro local. 2. Os trabalhos deverão ser enviados via e-mail para o endereço [email protected] . O processador de texto recomendado é o Microsoft Word. É permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os artigos sejam gravados no formato .rtf (RichTextFormat), formato de leitura comum a todos os processadores de texto. 3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nominados de acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado. 4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15 e 35 laudas. 5. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio "ENTER" já determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve ser A4. 6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax, e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade exercida. 7. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89 (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica básica deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 142 natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do artigo, com a indicação “Notas”. 9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um travessão. Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2. Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada descodificação. 10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado. 11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos recebidos serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a publicação. 12. A publicação na RBDCivil implica a aceitação das condições da Cessão de Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade, que serão encaminhados ao(s) autor(es) com o aceite. 13. Como contrapartida pela Cessão de Direitos Autorais, o(s) autor(es) receberá(ão) um exemplar da RBDC. 14. As revisões ortográfica e gramatical são inteiramente de responsabilidade do(s) autor(es). Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 143