Asas de mariposa O sol absurdamente quente faz a terra quase
Transcrição
Asas de mariposa O sol absurdamente quente faz a terra quase
Asas de mariposa O sol absurdamente quente faz a terra quase fritar e, por consequência, perto de mim, árvores secas. As sacolas, lotadas de coisas que eu nunca pensaria em comprar, ocupam minhas mãos, e eu dou graças a Exu por minha casa estar a passos de mim. Li infinitamente a redação da minha filha Sarah, de 9 anos, e, por isso, não houve sono noite passada. As lembranças dessa redação são rojões na minha cabeça a todo instante. “Pedi aos alunos para relatarem o significado de ser diferente e, ao ler o texto de Sarah, fiquei horrorizada. Peço que leia e converse com ela. Profa Elizabeth”, dizia o pedaço de papel, junto ao envelope que estava dentro da agenda escolar. Abri o envelope, comecei a ler e me impressionei com o texto extremamente triste. Sarah se sentia sozinha por ser diferente, e eu me perguntava por que não percebi isso antes. Estava decidido a perder o próximo dia de trabalho para fazer algo a respeito. Já ia tentar dormir de novo, mas o relógio me empurrou da cama para levar Sarah ao colégio e comprar algumas coisas quando voltasse. É preciso ir cedo, pois a cidade é covardemente longe, o ônibus costuma quebrar e, por isso, a maioria dos alunos vai a pé. Depois de andar quilômetros de ida e volta, finalmente, entro em casa. Meu estômago grita, minhas pernas quebrarão se eu não me sentar neste instante, então, coloco as sacolas no chão ainda sem varrer e me jogo num velho sofá cheio de pó. Nessas horas seria bom sentir de novo as massagens da minha falecida esposa — penso alto enquanto levanto. Não há tempo para descanso, tampouco para almoço, abocanho uma maçã na cozinha e volto minha atenção ao conteúdo daquelas sacolas. Coloco as bugigangas no chão, tirando-as das sacolas, e observo na esperança de me afogar numa onda de criatividade. Não é tanta coisa. O salário de gari paga as contas, compra alimento, as coisas que Sarah necessita e, com esse gasto extra... Valerá a pena. Retiro da pilha em que estavam e separo tudo. Surge Salvador em um canto, Rio de Janeiro e Amazonas em outros. Levo um grupo de cada vez para o quarto de Sarah e faço, do meu jeito, essas cidades. Ao término de tudo, olho pela janela, o sol já beija o topo dos montes longe, e eu ainda estou sujo de cola. O banho é rápido. Meu estômago ainda não está satisfeito e, por isso, ganha outra maçã antes que eu saia para buscar minha filha que provavelmente está impaciente com minha demora. Retorno para casa com meu minitornado. Está zangada por causa do meu atraso para buscá-la, e eu, hesitante em falar com ela, peço-lhe para que esconda com a mão seus grandes olhos pretos antes de adentrar o quarto e insisto nisso. Ela o faz logo depois de jogar a mochila em cima daquele velho sofá que antes fora meu conforto por dois minutos ao meiodia. Minha mão vai às suas costas, perto dos fechos dos seus vários colares e assim a guio até pararmos próximo do que me ocupou o dia todo. Seus olhos ainda estão fechados. — Pode olhar agora — falo num sussurro perto da sua pequenina orelha. A surpresa faz da sua boca um “O”, suas palavras descem junto com a raiva para Exu sabe onde, e eu apenas observo seus passos lentos em direção à união, em miniatura, de alguns aspectos de Salvador, Rio e Amazonas. — O que é isso? — apontando para a maquete, ela pergunta sem se virar. — Isso representa o que somos, Sarah. Diferentes. Todos nós. — Por que as cidades juntas? — Pra te mostrar que, para estar em algum grupo, não precisamos ser todos iguais como você pensa. Repare nos índios, na roda de capoeira com as mulheres — aponto para bonequinhos que coloquei perto do pé do Cristo Redentor em miniatura e torço para ela não rir da má arrumação —, eles aprenderam isso com outras culturas. Eles são diferentes uns dos outros e isso é bom. Imagine o quanto seria chato todos sermos iguais, sem termos o que aprender uns com os outros. — Mas, pai — sua expressão é confusa — eu aprendo muito com você, e somos os dois africanos. Não somos iguais? — Sim, mas cada um tem uma coisa que chamamos de essência que é como se fosse um jeito diferente de ver o mundo, de brincar de amarelinha de um jeito diferente, por exemplo — silencio-me para imaginar uma situação explicativa simples para ela e consigo. — Imagine uma mariposa voando em meio a borboletas; as asas dela são diferentes, mas são tão importantes quanto as das borboletas e viceversa. — Acho que entendi... — Vem aqui — ela se aproximou até que eu tocasse seus ombros com as pontas dos dedos —, assim como você me vê como seu pai, e não como um homem negro de kufi na cabeça, eu quero que você enxergue as pessoas. — Como “meu pai”? — uma careta forma-se em seu rosto quando pergunta isso. Não — abaixei a cabeça e ri por um segundo —, por dentro. Quero que veja como são por dentro. Carregamos beleza por ser como somos, e não por nos igualar a outros, lembre-se disso. Quando calei, ela me abraçou. Um abraço que é quase como um grito estridente de agradecimento por tê-la tirado do caos em que estava, seus braços me apertam forte enquanto eu retribuo da mesma maneira o amor que ela me passa ali. Vejo-na levantar a cabeça e perceber as lágrimas que alagam meu rosto, talvez por isso tenha dito que o meu Elevador Lacerda é um rolo de papel higiênico molhado. De certa maneira, há semelhanças. — Pai? — ela diz enquanto se desprende de mim — estou começando a gostar de ter asas de mariposa. Odair Barbosa Araújo - 3º lugar Araci/BA