2006 admitere facultate
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2006 admitere facultate
O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL nº126_novo_cpc.pdf 1 22/04/2015 13:24:05 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Associação dos Advogados de São Paulo Rua Álvares Penteado, 151 Centro cep 01012 905 São Paulo SP tel (11) 3291 9200 www.aasp.org.br 126 ISSN-0101-7497 Ano XXXV Nº 126 Maio de 2015 SUMÁRIO DIRETORIA Presidente Vice-Presidente 1º Secretário 2º Secretário 1º Tesoureiro 2º Tesoureiro Diretora Cultural Assessor da Diretoria Leonardo Sica Luiz Périssé Duarte Junior Fernando Brandão Whitaker Renato José Cury Marcelo Vieira von Adamek Mário Luiz Oliveira da Costa Viviane Girardi Ricardo de Carvalho Aprigliano 5 Ex-Presidentes da AASP: Walfrido Prado Guimarães, Américo Marco Antonio, Paschoal Imperatriz, Theotonio Negrão, Roger de Carvalho Mange, Alexandre Thiollier, Luiz Geraldo Conceição Ferrari, Ruy Homem de Melo Lacerda, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, Diwaldo Azevedo Sampaio, José de Castro Bigi, Sérgio Marques da Cruz, Mário Sérgio Duarte Garcia, Miguel Reale Júnior, Luiz Olavo Baptista, Rubens Ignácio de Souza Rodrigues, Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, José Roberto Batochio, Biasi Antonio Ruggiero, Carlos Augusto de Barros e Silva, Antonio de Souza Corrêa Meyer, Clito Fornaciari Júnior, Renato Luiz de Macedo Mange, Jayme Queiroz Lopes Filho, José Rogério Cruz e Tucci, Mário de Barros Duarte Garcia, Eduardo Pizarro Carnelós, Aloísio Lacerda Medeiros, José Roberto Pinheiro Franco, José Diogo Bastos Neto, Antonio Ruiz Filho, Sérgio Pinheiro Marçal, Marcio Kayatt, Fábio Ferreira de Oliveira, Arystóbulo de Oliveira Freitas e Sérgio Rosenthal Diretor Responsável: Luiz Périssé Duarte Junior Jornalista Responsável: Reinaldo Antonio De Maria (MTb 14.641) José Rogério Cruz e Tucci Heitor Vitor Mendonça Sica 9 16 27 33 Tiragem: 97.000 exemplares A Revista do Advogado é uma publicação da Associação dos Advogados de São Paulo, registrada no 6º Ofício de Registro de Títulos e Documentos de São Paulo, sob nº 997, de 25/3/1980. 39 Solicita-se permuta. Pídese canje. On demande I’échange. We ask for exchange. Si richiede lo scambio. Toda correspondência dirigida à Revista do Advogado deve ser enviada à Rua Álvares Penteado, 151 - Centro cep 01012 905 - São Paulo-SP. Livro_126.indb 3 (In)devido processo legislativo e o Novo Código de Processo Civil. Cassio Scarpinella Bueno 47 A colaboração como norma fundamental do Novo Processo Civil brasileiro. Daniel Mitidiero 53 A função contrafática do Direito e o Novo CPC. Dierle Nunes 58 Nota sobre o incidente de conversão em ação coletiva. Eduardo Talamini 64 Novo CPC: reflexões em torno da imposição e cobrança de multas. Fabio Guidi Tabosa Pessoa 76 Negócios jurídicos processuais: uma nova fronteira? Fábio Peixinho Gomes Corrêa 83 Um novo paradigma para o juízo de admissibilidade dos recursos cíveis. Flávio Cheim Jorge Thiago Ferreira Siqueira 89 Convenção das partes em matéria processual no Novo CPC. Flávio Luiz Yarshell 95 Estabilização da tutela provisória satisfativa e honorários advocatícios sucumbenciais. Fredie Didier Jr. Paula Sarno Braga Rafael Alexandria de Oliveira © Copyright 2015 - AASP A Revista do Advogado não se responsabiliza pelos conceitos emitidos em artigos assinados. A reprodução, no todo ou em parte, de suas matérias só é permitida desde que citada a fonte. Legitimidade recursal do amicus curiae no Novo CPC. Camilo Zufelato Administração e Redação: Rua Álvares Penteado, 151 Centro - cep 01012 905 - São Paulo-SP tel (11) 3291 9200 - www.aasp.org.br Impressão: Rettec, artes gráficas Os honorários recursais no Novo Código de Processo Civil. Bruno Vasconcelos Carrilho Lopes Revisão: Elza Doring, Luanne Batista, Milena Bechara e Paulo Nishihara - AASP Editoração Eletrônica: Altair Cruz - AASP O art. 3º do Novo Código de Processo Civil e o processo do trabalho. Bruno Freire e Silva Coordenação-Geral: Ana Luiza Távora Campi Barranco Dias Capa: Aline Vieira Barros - AASP Citações e intimações por meio eletrônico no Novo CPC. Augusto Tavares Rosa Marcacini REVISTA DO ADVOGADO Conselho Editorial: Eduardo Reale Ferrari, Fátima Cristina Bonassa Bucker, Fernando Brandão Whitaker, Flávia Hellmeister Clito Fornaciari Dórea, Juliana Vieira dos Santos, Leonardo Sica, Luís Carlos Moro, Luiz Périssé Duarte Junior, Marcelo Vieira von Adamek, Mário Luiz Oliveira da Costa, Nilton Serson, Paulo Roma, Pedro Ernesto Arruda Proto, Renato José Cury, Ricardo de Carvalho Aprigliano, Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, Roberto Timoner, Rogério de Menezes Corigliano, Sérgio Rosenthal, Silvia Rodrigues Pereira Pachikoski, Viviane Girardi Nota dos Coordenadores. 101 Partes e terceiros no Novo Código de Processo Civil. Gláucia Mara Coelho 107 Técnicas de uniformização da jurisprudência e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Guilherme J. Braz de Oliveira 23/04/2015 16:28:41 ISSN-0101-7497 Livro_126.indb 4 23/04/2015 16:28:41 ISSN-0101-7497 115 Primeiras impressões sobre a “estabilização da tutela antecipada”. Heitor Vitor Mendonça Sica 124 A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? João Francisco Naves da Fonseca 131 O juiz, a aplicação do Direito e o Novo CPC. José Carlos Baptista Puoli 137 Tutela provisória. José Roberto dos Santos Bedaque 143 O regime do precedente judicial no Novo CPC. José Rogério Cruz e Tucci 152 Novidades em matéria de embargos de declaração no CPC de 2015. Luis Guilherme Aidar Bondioli 158 Uma provável ofensa à garantia da inafastabilidade do acesso à justiça no Novo CPC. Marcelo José Magalhães Bonicio 162 Da expressa proibição à “decisão-surpresa” no Novo CPC. Oreste Nestor de Souza Laspro 169 Motivação das decisões jurídicas e o contraditório: identificação das decisões imotivadas de acordo com o NCPC. Paulo Henrique dos Santos Lucon 175 Anotações sobre a prova no Novo CPC. Ricardo de Barros Leonel 182 A distribuição dinâmica do ônus da prova e o Novo CPC. Ronnie Preuss Duarte Mateus Costa Pereira 192 Apontamentos sobre o saneamento e a organização do processo. Swarai Cervone de Oliveira 198 O que se espera do Novo CPC? Teresa Arruda Alvim Wambier 204 A prova pericial no Novo Código de Processo Civil. William Santos Ferreira Livro_126.indb 5 23/04/2015 16:28:43 José Rogério Cruz e Tucci Nota dos Coordenadores Advogado. Ex-presidente da AASP. Professor titular e diretor da Faculdade de Direito da USP. Coordenador do Conselho da Presidência do CNJ para a Disseminação Nacional da Jurisprudência Uniformizada. Heitor Vitor Mendonça Sica Professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado. Livro_126.indb 6 23/04/2015 16:28:43 E xaltado quando aprovado, o Código de Processo Civil (CPC) de 1973, nestas últimas quatro décadas, prestou-se, de um lado, a reger precipuamente o processo contencioso de forma segura e eficiente, e, de outro, a construir vigorosa doutrina e sólida jurisprudência acerca de institutos e mecanismos que marcaram a nossa experiência jurídica. Com o passar do tempo, no entanto, diante de um número crescente e alarmante de demandas, devido a vários fatores, o diploma processual em vigor sofreu sucessivas intervenções legislativas, que acabaram fragmentando demasiadamente a sua estrutura original. Ressalte-se, outrossim, que, acompanhando as tendências de vanguarda da ciência processual, diferentes paradigmas foram sendo assimilados e aperfeiçoados pelos operadores Nota dos Coordenadores do Direito. Assim, toda esta natural evolução recomendava, de modo inexorável, a elaboração de um novel CPC. Apresentado ao Senado Federal, o Anteprojeto que se transformou no Projeto nº 166/2010, do novo Codex, caracterizou-se por uma tramitação legislativa cuidadosa e participativa, imbuída de inequívoco espírito republicano. Na verdade, em reiteradas oportunidades, toda a É, sem dúvida, empenho hercúleo a construção de nova codificação, qualquer que seja o seu objeto. No tocante ao processo civil, colocando em destaque essa evidente dificuldade, Carnelutti chamava a atenção para a diferença entre a arquitetura científica e a arquitetura legislativa, sendo certo que esta não deve desprezar os valores conquistados pela dogmática jurídica. A tal propósito, nota-se, de logo, que o texto legal, finalmente sancionado em 16 de 7 Revista do Advogado comunidade jurídica foi convidada a oferecer críticas e sugestões à sua respectiva elaboração. março de 2015 – Lei nº 13.105 –, não descurou a moderna linha principiológica que advém do texto constitucional. Pelo contrário, destacam-se em sua redação inúmeras regras que, a todo momento, procuram assegurar o devido processo legal aos litigantes. Até porque os fundamentos de um CPC devem se nortear, em primeiro lugar, pelas diretrizes traçadas pela Constituição Federal. E, assim, num primeiro exame de conjunto, é possível afirmar que a legislação processual recém-sancionada merece os maiores encômios. Embora passível de críticas pontuais, o novo Código encerra um modelo processual governado pelas garantias do due process of law. Saliente-se, por outro lado, que a disciplina legal agora aprovada, em vários dispositivos, fomenta a solução consensual das controvérsias, em particular, por meio da conciliação e Livro_126.indb 7 23/04/2015 16:28:43 da mediação. Não é preciso registrar que, à luz desse novo horizonte que se descortina sob a égide do novel diploma processual, os aludidos protagonistas do foro não devem medir esforços no rumo da composição amigável do litígio. Ademais, o legislador adotou importantes novidades em prol da efetividade do princípio da duração razoável do processo, inclusive no que se refere à atividade satisfativa. Há que se lamentar apenas que o novo Código não tenha aproveitado o ensejo para também dispor sobre a tutela de direitos transindividuais – construída com base nas Leis nº 7.437/1985 e nº 8.078/1990 – ou ao menos se proposto a abrir maior interação com esse microssistema. Ao contrário, o sistema eleito aposta decisivamente na valorização do precedente judicial e nos mecanismos de aglutinação de processos repetitivos. Em cumprimento a mandamento estatutário, nesse sentido, procurando contribuir, como sempre de forma pioneira, para o aperfeiçoamento dos profissionais do Direito, especialmente Nota dos Coordenadores de seus sócios, a Associação dos Advogados de São Paulo oferece a presente coletânea de estudos, estampada na prestigiosa Revista do Advogado, cujo conteúdo reúne uma análise preambular, tanto quanto possível de cunho prático, elaborada por inúmeros especialistas acerca de temas de grande relevância processual, visando à melhor exegese e compreensão do CPC de 2015. Revista do Advogado 8 Livro_126.indb 8 23/04/2015 16:28:43 C itações e intimações por meio eletrônico no Novo CPC. Sumário 1.Introdução 2.O Novo CPC, a Informática e os atos de comunicação 3.Natureza dos atos de comunicação por meio eletrônico 4.Citações e intimações eletrônicas no Novo CPC 5.Considerações finais 1 Introdução A importância, para o processo, dos chamados atos de comunicação, a citação e a intimação, Augusto Tavares Rosa Marcacini certamente é compreendida por todo e qualquer Advogado em São Paulo. Mestre, doutor e profissional do Direito que atue no contencioso. livre-docente em Direito Processual pela Facul- Tais atos, destinados a dar ciência às partes acer- dade de Direito da USP. Professor do Programa de Mestrado em Direito da Sociedade da Infor- ca da própria existência do processo, no caso da mação e de Direito Processual Civil da UniFMU. citação, ou dos seus demais atos, tarefa cumprida Vice-presidente da Comissão de Direito Processual Civil da OAB-SP. Foi presidente da Comis- pelas intimações, garantem praticamente a obser- são de Informática Jurídica e da Comissão da vância do princípio do contraditório. Além disso, Sociedade Digital da OAB-SP. 9 Revi s t a d o A d v o g a d o Bibliografia em um cenário em que os litigantes têm prazos peremptórios para manifestação, prazos esses cuja inobservância pode lhes acarretar a perda de direitos, é sobremaneira importante que haja transparência e certeza sobre a correta prática dessas comunicações (leia-se: que o destinatário tenha tido ciência de seu conteúdo) e sobre qual é o momento preciso em que os prazos se iniciam. Livro_126.indb 9 23/04/2015 16:28:43 C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p or meio eletrô n ico n o Novo CPC. Rev i st a d o A d v o g a d o 10 De um lado, pois, são instrumentos que, bem respeito a outros temas processuais. Entretanto, realizados, contribuem para um processo justo, suas disposições sobre o uso das novas tecnolo- afastando a iniquidade de julgar-se alguém que gias são quase frustrantes. Pouco se avançou em não tenha sido adequadamente ouvido. De ou- relação às normas legais já vigentes, sejam as da tro lado, os defeitos desses atos de comunicação Lei nº 11.419/2006, sejam as trazidas por reformas têm potencial para gerar nulidades que conta- recentes ao Código de Processo Civil (CPC) de minam, se não todo o processo, grande extensão 1973. Considerando que o Judiciário de todo o país de seus atos; assim, até mesmo sob o ângulo da vem promovendo uma rápida migração para o uso mera eficiência da máquina processual, é impor- de autos digitais, era de se esperar que o Novo CPC tante que citações e intimações não contenham dedicasse maior atenção a essas questões. vícios, a fim de se evitar que, com a decretação Aparentemente, neste campo, o Novo CPC é da nulidade, tenha-se desperdiçado tempo e es- mais um produto de uma mesma espécie de sín- forços das partes e do próprio Poder Judiciário, a drome que tem afetado o legislador atual. Pensa- provocar outros meses ou anos de retardamento -se que basta fazer referências, na lei, ao uso de da causa. “meios eletrônicos” e tudo, como mágica, estará A Informática muito pode contribuir para o resolvido por si só. Outras leis recentes de nos- processo, entre outros aspectos, tornando mais so país já enveredaram nessa mesma trilha,1 e ágeis e precisos aqueles atos burocráticos internos imensas lacunas são deixadas em aberto, talvez ao órgão judicial, evitando que o cansaço gerado esperando que caiba aos técnicos da computação pela prática de trabalho humano puramente me- supri-las, e que eles implementem no sistema in- cânico e repetitivo induza o funcionário a erros formático aquilo que o legislador não definiu, não que provoquem nulidades. Basta lembrar, por regulou, não deu forma nem conteúdo, tampouco exemplo, do tempo em que as intimações a pu- definiu requisitos a serem observados, ou por vezes blicar no Diário Oficial (em papel) eram, uma a nem sequer indicou quem é o sujeito que reali- uma, datilografadas pelo serventuário: quantas in- zará as tarefas tecnológicas de que fala a lei. É timações não eram anuladas, em razão dos mais variados desvios formais, especialmente pela incorreção da grafia do nome de partes e advogados. Um sistema automatizado, em que as informações constantes das intimações são retiradas automaticamente de uma base de dados digital, reduz enormemente a chance de erros como esses. Mas, claro, a Informática não é uma panaceia. Ela tem um enorme potencial para colaborar com o sistema judicial, mas também introduz novos problemas e dificuldades. 2 O Novo CPC, a Informática e os atos de comunicação Reconheça-se, inicialmente, que o Novo Código contém muitos progressos no que diz Livro_126.indb 10 1. Desde ao menos a Medida Provisória nº 2.200/2001, que ainda vige “provisoriamente” por força da EC nº 32, inúmeras outras leis, a pretexto de modernizar o direito e o processo, adequando-os às novas tecnologias da informação, não mais fizeram do que, de modo simplista, referir-se ao uso de “meios eletrônicos” ou usar expressões semelhantes, pouco ou nada colaborando para dar um regramento jurídico a tal uso, nem apontando soluções para os possíveis problemas práticos dele decorrentes. Cite-se, como exemplos dessa síndrome de simplismo pseudotecnológico, as Leis nº 11.280/2006, que introduziu parágrafo único ao art. 154, permitindo a prática de atos por meio eletrônico, sem quaisquer outras considerações de cunho formal; nº 11.341/2006, que fala em “mídia eletrônica, em que tiver sido publicada a decisão divergente” usada para fundamentar recurso especial por dissídio jurisprudencial, sem qualquer menção explícita a quem a publicou eletronicamente, nem como o fez; nº 11.382/2006, sobre emprego de meios eletrônicos nos atos de execução, com textos bastante lacônicos; nº 11.419/2006, que regula o chamado “processo eletrônico” e incluiu no CPC de 1973 diversas referências, pouco explicadas, a meios eletrônicos; ou nº 12.682/2012, sobre arquivamento e cópias de documentos em meios eletromagnéticos, um texto legal que em sua inteireza beira a inutilidade e que, se não tivesse sido vetado em metade de suas disposições, teria chegado à monstruosidade. 23/04/2015 16:28:43 nhecimento da tecnologia utilizada, de como ela na para a prática dos mesmos atos, quando efetiva- funciona e, principalmente, de como é operada e dos pela via postal ou por oficial de Justiça, formas de quem a controla. essas que o atual legislador não deve ter julgado Diga-se, ao menos, que tais problemas, decor- inúteis, pois as repetiu no novo Código: para a rentes da má compreensão das novas tecnologias, citação postal, estão no art. 248 e seus quatro pa- não são exclusivamente nacionais. rágrafos; para a citação por oficial, formalidades 2 Assim, de um lado, o novo Código corre o ris- são previstas nos arts. 250 e 251.4 É incompreensí- co de se tornar precocemente superado, quando, vel que o legislador não tenha o mesmo cuidado dentro de poucos anos, já não existirem autos em quando se trata de atos praticados eletronicamen- papel. No que toca especificamente aos atos de te, deixando lacunas que poderão causar grande comunicação, que são objeto destas breves linhas, insegurança jurídica e alimentar novas questões o uso da forma digital é aplicável a todos os pro- processuais paralelas. cessos, mesmo os que ainda correm em autos físicos. Era de se esperar, então, que o Novo CPC tivesse dado mais atenção ao tema, o que, infelizmente, não ocorreu. 3 Natureza dos atos de comunicação por meio eletrônico Comunicações por meios eletrônicos são intimações presumidas, não importa o que diga a lei. Afirmar simplesmente que a citação ou inti- Por outro lado, seja lá como esses atos de co- mação poderão ser feitas por “meio eletrônico”, municação serão praticados em forma eletrônica, como o fez várias vezes o novo texto legal em co- se por essa forma se quer dizer um envio remoto, a mento, parece ter o mesmo significado de dizer, distância, da citação ou intimação, sem qualquer no cenário anterior, que na sua prática seriam contato direto ou pessoal com o destinatário, isso utilizadas “folhas de papel”. Ou seja, não se diz se trata, essencialmente, de uma forma de comu- nada de juridicamente relevante, pois não descre- nicação presumida. Presumir é admitir a existên- ve o modo como se fará a comunicação por “meio cia de um fato, não por conhecimento direto do eletrônico”, nem os requisitos a observar. Dúzias próprio fato, mas pelo conhecimento de um outro de diferentes “meios eletrônicos” podem, em tese, fato, a partir do qual, mediante um juízo mental ser empregados para envio de uma comunicação (ou por determinação legal), se pode deduzir a a alguém, com diferentes maneiras de proceder existência do primeiro. Neste sentido, as intima- ou variados requisitos de segurança a aplicar, que ções feitas mediante publicação no Diário Oficial permitam extrair maior ou menor certeza de que são essencialmente comunicações presumidas: da o ato cumpriu sua finalidade. A título de compara- correta publicação do ato, forrado de seus requi- 3 C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p o r meio eletrô n ico n o Novo CPC. ção, repare-se nas formalidades que a lei determi- 11 Revi s t a d o A d v o g a d o possível que isso seja fruto de um absoluto desco- sitos legais, presume-se que seu conteúdo tenha 2.V., a respeito, “The Italian Style of E-Justice in a Comparative Perspective” e “Information and communication technology for justice: the Italian experience”, de Marco Fabri. 3.V. arts. 183, § 1º, 231, inciso V, 246, inciso V, 270, 513, § 2º, inciso III, 535, 876, § 1º, inciso III, todos do Novo CPC. 4.Regras que correspondem às dos arts. 223, 225 e 226 do CPC de 1973. Livro_126.indb 11 chegado ao conhecimento do advogado da causa, supondo a lei, de forma marginal, um dever profissional de ler tais publicações. Assim, via de regra, uma comunicação eletrônica é apenas uma forma presumida de dar ciên- 23/04/2015 16:28:43 C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p or meio eletrô n ico n o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 12 cia do ato ao destinatário. A partir de registros ele- te insuperável – situação de ter que demonstrar trônicos gravados pelo sistema, relativos aos passos que o sistema informático judicial tenha falhado dados na realização desta comunicação, acredita- e que aquela suposta comunicação não foi rece- -se que o destinatário esteja ciente de seu teor. bida. Imagine-se, a cada alegação de não recebi- Evidentemente, dada a relevância dos atos de mento de uma comunicação judicial, ter-se que comunicação, muita cautela há de ser tomada na realizar uma perícia sobre o sistema informático previsão legal ou realização prática destes atos em utilizado pelo tribunal (isso, claro, se por absurdo suas formas presumidas. Pode-se até afirmar que não se criar uma presunção iuris et de iure de que o excesso na prática de atos de comunicação de os sistemas informáticos judiciais sejam os únicos forma presumida constitui violação das garan- no mundo imunes a erros...). Além disso, sob o tias constitucionais do contraditório e do devido ângulo econômico, é muitíssimo improvável que processo legal. Afinal, tais garantias determinam se encontre mecanismo tecnológico mais barato e um modo de ser do processo e suas formas, limi- menos sujeito a erros do que a feitura automática tando o poder normativo do legislador. Dissesse de um “jornal” em arquivo digital e sua corres- a lei que, mediante o envio de sinais de fumaça, pondente publicação na internet. o réu estaria citado, por certo ninguém duvidaria Qualquer que seja a forma de citar ou intimar da inconstitucionalidade da norma. Uma mera mediante o uso de computadores, tal tarefa pressu- alusão da lei a “meios eletrônicos”, sem quaisquer põe a existência de regras prévias para estabelecer outras considerações, apesar do ar de modernida- que os destinatários mantenham um relaciona- de que aparenta ter, não faz da norma algo muito mento constante com o modelo informático a ser melhor do que o exemplo anterior. Especialmente utilizado. Obrigar alguém, um qualquer do povo, porque, a depender dos meios eletrônicos que fo- a utilizar – e saber utilizar corretamente – um sis- rem empregados, ou do descuido nas medidas de tema informático para o fim de receber comuni- segurança a tomar, estes podem ser tão incertos e cações judiciais, ao que nos parece, no contexto efêmeros quanto a fumaça... atual, seria uma exigência absurda. Pessoas com De longa data temos sustentado que a melhor diferentes níveis de conhecimento ou familiarida- maneira de realizar atos de comunicação por meio de com a tecnologia não podem ser compelidas a eletrônico é pela forma editalícia, reproduzindo- usar computadores para receber tais atos. -se em arquivos digitais publicamente disponibili- Daí, citações e intimações eletrônicas devem zados a experiência do velho e conhecido Diário ser definidas com muita cautela na lei. Os advoga- Oficial. O motivo para isso é que a ampla publi- dos das partes, em nosso país, já são intimados de cidade e acessibilidade do canal de comunicação forma presumida há cerca de um século por meio – levadas ao seu máximo com sua divulgação pela do Diário Oficial. Aceita-se com naturalidade, internet – servem para equilibrar a natureza pre- então, a obrigação desta nossa categoria de acom- sumida da mensagem, dando maiores possibilida- panhar o jornal diário, que mais recentemente des de que tenha chegado a seu destino e, espe- passou a ser publicado em arquivos digitais, em cialmente, tornando publicamente demonstráveis tese, mais fáceis de ler e de encontrar a informação suas eventuais falhas. É importante que o modelo que lhe é dirigida. Exigi-lo, de modo constante e 5 eletrônico de comunicação a ser utilizado permita, de modo fácil e rápido, demonstrar a inexistência ou nulidade desses atos, evitando que a parte se coloque diante da kafkiana – e potencialmen- Livro_126.indb 12 5.Maiores considerações a respeito foram tecidas no já decenal artigo “Intimações judiciais por meio eletrônico: riscos e alternativas”, também disponível on-line em: <http://augustomarcacini.net/index. php/DireitoInformatica/IntimacoesEletronicas>. 23/04/2015 16:28:43 sa a maior parte de seus dias sem receber qual- Judiciário com novas questões formais, parece quer dessas comunicações) parece-nos um grave desejar levar adiante essa tentativa de amplamente desrespeito ao seu direito de ser adequadamente realizar citações por meio eletrônico. É o que se lê informado e uma restrição desnecessária a sua nos parágrafos do art. 246: liberdade individual. Disso resulta a dificuldade “§ 1º - Com exceção das microempresas e das que temos em aceitar a constitucionalidade de ci- empresas de pequeno porte, as empresas públicas tações por meio eletrônico, exceto em situações e privadas ficam obrigadas a manter cadastro jun- peculiares, em que tal meio pode até mesmo ser to aos sistemas de processo em autos eletrônicos, mais seguro ao destinatário do que a citação pessoal. para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente 4 Citações e intimações eletrônicas no Novo CPC por esse meio. § 2º - O disposto no § 1º aplica-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às Como já mencionado, o novo texto legal ape- entidades da administração indireta”. nas faz referências ao uso de meios eletrônicos Essa má ideia de se fazer esse “cadastro” (algo na citação e intimação, sem descrever sua forma, também muito pouco regrado na lei), e para esse nem seus requisitos mínimos de segurança, que fim, é objeto de nossas críticas desde o trâmite do permitam concluir que o ato atingiu sua finalida- projeto que resultou na Lei nº 11.419/2006.6 Man- de. No máximo, remete para a “forma da lei”. ter íntegro e atualizado um cadastro populacional dessas dimensões é tarefa cujas dificuldades ainda Exigir da parte acesso a um sistema informático que nada lhe transmitirá é uma restrição de sua liberdade individual. não foram experimentadas pelo Poder Judiciário, e soa um tanto quanto arriscada a pretensão do legislador de se realizar essa experiência na prática de atos processuais tão importantes como as citações. Por outro lado, não está claro na lei qual será a consequência de não se cadastrar. O novo texto também andou mal ao definir O problema é que a única lei em vigor sobre por exclusão os sujeitos obrigados a tal cadastro. o tema, que traz um mero arremedo de previsão Ao invés de dizer diretamente quem teria obri- sobre a “forma” desses atos, é a Lei nº 11.419/2006, gação de se cadastrar, o § 1º, usando categorias em seus arts. 4º a 7º. O art. 6º autoriza a citação emprestadas do Direito Empresarial, excepciona por meio eletrônico segundo a “forma” do art. 5º, quem não está obrigado. Se, amanhã, a lei socie- que descreve um meio confuso, falível e especial- tária criar novas modalidades de pequenas pessoas mente muito pouco transparente de se realizarem jurídicas (que, por certo, não deveriam igualmente intimações. Aquela lei jamais esclareceu como ser obrigadas ao cadastro), ou transformar estas adaptar tal proceder às citações que, como dito que são referidas no parágrafo, isso poderá trazer acima, exigiriam uma prévia inserção do destina- novos problemas práticos. tário do ato – ou seja, a própria parte – no ambiente informático utilizado. C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p or meio eletrô n ico n o Novo CPC. O Novo CPC, correndo o risco de inundar o 13 Revi s t a d o A d v o g a d o diuturno, de qualquer do povo (alguém que pas- Mesmo a obrigação de se cadastrar imposta a todas as empresas de maior porte soa um enorme despropósito. A experiência sugere que há muitas 6.V. nota nº 5. Livro_126.indb 13 empresas médias no país que apenas eventual- 23/04/2015 16:28:44 C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p or meio eletrô n ico n o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 14 mente tiveram problemas judiciais ao longo de Em primeiro lugar, no que toca às intimações, toda a sua existência. Obrigar uma empresa des- depois que praticamente todo o Poder Judiciário sas, que foi a juízo umas poucas vezes em déca- nacional adotou com sucesso o Diário Eletrônico das, a acompanhar diária ou semanalmente um da Justiça, meio fácil, rápido, barato e pouco sus- “meio eletrônico” qualquer, a fim de verificar se cetível a erros, não há por que se pensar em criar está sendo citada, é uma imposição desmedida, na lei outra maneira de praticar tais atos. Evidente- que atinge sua liberdade desnecessariamente, e mente, tais intimações eletrônicas só são admissí- haverá de agregar custos desproporcionais aos que veis para os casos em que a parte deva ser intimada diligentemente tentarem se manter atentos à re- na pessoa de seu advogado, o que ocorre quando gra; ou servirá para surpreender os mais incautos os atos a realizar após a intimação tenham a na- com uma repentina e despercebida citação, após tureza de atos de postulação (DINAMARCO, meses ou anos em que nada lhes foi comunicado 2001, p. 431). Para as situações em que se exige pelo sistema. intimação pessoal da própria parte, para a prática Além disso, a forma como tais citações serão de atos personalíssimos, sua forma, a princípio, realizadas aos sujeitos assim cadastrados é uma não pode ser eletrônica (e, não importa o que absoluta incógnita. Embora a nova lei tenha in- diga a lei, uma intimação eletrônica não pode ser cluído a obrigatoriedade de informar no processo considerada “intimação pessoal”), excetuadas as o endereço de e-mail das partes, e usá-lo para in- situações que sugerimos a seguir. 7 timar tenha sido ventilado durante o trâmite do Se é intenção do legislador agilizar o proces- projeto, felizmente não restou no texto aprovado so simplificando a citação, melhor seria citar de nenhuma referência ao envio de intimações ou forma editalícia, pelo Diário Eletrônico, somente citações por correio eletrônico. Agiu bem o legis- os grandes litigantes; isto é, aqueles que, pelo vo- lador em retirar tais referências do texto final, eis lume de processos que mantêm em juízo, já têm que o e-mail não é uma via confiável para a práti- o ônus de regularmente acompanhar o diário ele- ca de comunicações formais e sensíveis como es- trônico, e certamente o fazem. É muito mais razoá- sas. A exigência de informar o endereço eletrônico vel definir que apenas a pessoa jurídica que tenha, deve ser vista, assim, como uma forma de permitir digamos, uns 20 ou 30 processos em andamento um canal auxiliar de comunicação com a parte em uma mesma Justiça Estadual ou Seção Ju- (por exemplo, para avisá-la automaticamente da diciária passe a receber citações pelo próprio DJe redesignação de uma audiência ou passar-lhe da- (sendo desnecessário qualquer cadastro!) do que dos da causa); ademais, ninguém pode ser obri- obrigar dezenas ou centenas de milhares de em- gado a ter um endereço eletrônico ou a utilizá-lo presas a manterem um cadastro atualizado junto com frequência. ao Poder Judiciário, tudo isso para serem citadas de um modo mal explicado na lei. Sem contar, in- 5 Considerações finais sista-se, com as dificuldades e custos que o Poder Judiciário haverá de ter com o desenvolvimento As disposições sobre atos de comunicação por meio eletrônico mereceriam maior análise, tanto de sistemas para a criação do próprio cadastro, e a manutenção de ambos ao longo do tempo. por parte da comunidade jurídica como por parte Na medida em que o Poder Judiciário está se do legislador, sendo aqui sugerido que os artigos informatizando, um sistema bem desenvolvido correlatos, constantes do Novo CPC, sejam objeto de uma revisão. Livro_126.indb 14 7. V. art. 319, inciso II. 23/04/2015 16:28:44 DJe. De certo modo, até para o destinatário des- em tempo real, quem são os grandes litigantes ses atos, uma vez ciente de que passará a ser assim que superem o mínimo definido pela lei e – seria citado e intimado, haverá de ser mais simples e prudente fazê-lo – automaticamente cientificá-los seguro acompanhar o jornal eletrônico do que as de que suas futuras citações e intimações pessoais demais formas de comunicação que são esboçadas serão substituídas, a partir daí, por publicações no no Novo CPC e na Lei nº 11.419/2006. Bibliografia DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Perspective. In: MARTINEZ, Agustí Cerrillo i; ABAT, Processual Civil. v. III. São Paulo: Malheiros, 2001. Pere Fabra i (Org.). E-Justice – Using Information FABRI, Marco. Information and communication technology Communication Technologies in the Court System. Hershey: for justice: the Italian experience. In: OSKAMP, Anja; Information Science Reference, 2009. p. 1-19. LODDER, Arno; APISTOLA, Martin (Org.). IT Support MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Intimações judiciais of the Judiciary. The Hague: Asser Press, 2004. p. 111-133. por meio eletrônico: riscos e alternativas. Direito em bits. ______. The Italian Style of E-Justice in a Comparative São Paulo: Fiuza, 2004. p. 35-61. C i t a ç õ e s e i n t i m a ç õ e s p or meio eletrô n ico n o Novo CPC. não teria dificuldades em constatar, até mesmo Revi s t a d o A d v o g a d o 15 Livro_126.indb 15 23/04/2015 16:28:44 O art. 3º do Novo Código de Processo Civil e o processo do trabalho. Os meios alternativos de solução de conflitos se aplicam nessa seara processual? Sumário 1.Introdução 2.A aplicação do Novo Código de Processo Civil ao processo do trabalho 3.O art. 3º do Novo Código de Processo Civil e sua repercussão no processo do trabalho Revi s t a d o A d v o g a d o 16 3.1.Arbitragem 3.2.Conciliação 3.3.Mediação 4.Conclusão Bibliografia Bruno Freire e Silva Advogado em São Paulo, Rio de Janeiro e 1 Introdução Brasília. Professor adjunto de Teoria Geral do Processo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor titular do Programa O art. 3º do Novo Código de Processo Civil de Mestrado da Universidade de Ribeirão Preto (CPC) trata do acesso à Justiça e das formas de (Unaerp). Membro da Associação dos Advogados de São Paulo, do Instituto dos Advogados de resolução dos conflitos, permitindo a utilização São Paulo e do Instituto Brasileiro de Direito da arbitragem (na forma da lei), conciliação, me- Processual. diação e outros métodos de solução consensual de conflitos, que deverão ser estimulados pelos juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público. Neste breve e despretensioso trabalho, procuramos realizar a leitura desse dispositivo sob a ótica do processo do trabalho, tendo em vista a aplicação subsidiária do Novo CPC nessa seara processual, Livro_126.indb 16 23/04/2015 16:28:44 solidação das Leis do Trabalho (CLT) e art. 15 do RIA AO PROCESSO DO TRABALHO. Aplica-se próprio CPC. subsidiariamente ao processo do trabalho o art. 557 do Código de Processo Civil”. 2 A aplicação do Novo Código de Processo Civil ao processo do trabalho O art. 15 do Novo CPC dispõe que “na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas É necessária uma incessante complementação das regras do processo do trabalho com os institutos do processo comum. supletiva e subsidiariamente”. O dispositivo enuncia norma já vigente no or- Diante dessa grande lacuna legislativa proces- denamento brasileiro, segundo a qual o processo sual trabalhista, alguns estudiosos chegaram até a comum é fonte subsidiária dos processos espe- negar a existência de uma autonomia do Direito ciais, como o processo do trabalho, objeto deste Processual do Trabalho. Octávio Bueno Magano breve estudo. (1990, p. 78-9) já afirmou que: O Título X da CLT trata “Do Processo Judi- “A pertinência do processo à atividade jurisdi- ciário do Trabalho”. Em suas disposições preli- cional, e a sua não pertinência ao direito material, minares, determina o art. 763 que mostra ser impossível sustentar-se a autonomia de “o processo da Justiça do Trabalho, no que um processo trabalhista pela simples circunstância concerne aos dissídios individuais e coletivos e à de se estatuírem procedimentos especiais para a aplicação de penalidade, reger-se-á, em todo o ter- composição de lides do trabalho. Quanto aos prin- ritório nacional, pelas normas estabelecidas neste cípios que estadeariam o seu particularismo, é pre- Título”. ciso ter presente, em primeiro lugar, que surgiram Ocorre que a CLT é omissa em muitos aspec- quase todos a modo de contraponto aos princípios tos processuais e, assim, aplica-se a lei processual e peculiaridades do processo comum, quando este comum subsidiariamente. Há, inclusive, previsão possuía feições marcadamente individualistas, o expressa de aplicação subsidiária do CPC nas hipó- que não mais ocorre nos dias atuais. A conclusão teses de omissão da lei trabalhista, como preveem no sentido de não passar o processo de um ramo 1 os arts. 769 e 889 da CLT. ou divisão do direito processual civil, desprovido de A aplicação subsidiária da legislação processual autonomia, além de lastreada no magistério de re- civil ao processo do trabalho é, inclusive, objeto de nomados juristas, constitui, no Brasil, consectário algumas súmulas do Tribunal Superior do Trabalho da regra inserta no art. 8º, XVII, b, da Constituição (TST), a exemplo do Enunciado nº 435: vigente (art. 22, I, CF/1988), que se refere a um O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. “ART. 557 DO CPC. APLICAÇÃO SUBSIDIÁ- 17 Revi s t a d o A d v o g a d o conforme expressa previsão do art. 769 da Con- único Direito Processual”. A despeito da existência ou não da referida au1. Art. 769 da CLT: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste Título”. Art. 889 da CLT: “Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente Título, os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal”. Livro_126.indb 17 tonomia, enquanto inúmeros projetos de reforma que poderiam ter o condão de reduzir essas lacunas não se concretizam, é necessária uma incessante complementação das regras do processo do trabalho com os institutos do processo comum. 23/04/2015 16:28:44 É digno de registro que há duas formas de apli- O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. cação subsidiária do processo comum ao proces- Rev i st a d o A d v o g a d o 18 da reclamação trabalhista. so do trabalho: 1º) Supletividade expressa – indica Esse autêntico exercício de heterointegração pontualmente os dispositivos do processo comum do direito, de supletividade do processo comum a serem aplicados no processo do trabalho. 2º) Suple- ao sistema processual trabalhista, não é exclusivi- tividade aberta – dispõe genericamente que as dade do ordenamento jurídico brasileiro. normas do processo comum são subsidiárias do processo do trabalho. Na CLT encontramos dispositivos que indicam pontualmente os artigos do CPC a serem aplicados no processo do trabalho, como o 836, que dispõe sobre a utilização da ação rescisória,2 e o 882, que estabelece a observância da ordem de gradação legal prevista no art. 655 do CPC,3 os quais deverão ser atualizados diante do Novo CPC. Além dessa previsão de supletividade expressa, com indicação pontual dos dispositivos do CPC a serem aplicados no processo do trabalho, não se pode olvidar a previsão de supletividade aberta, através da previsão genérica de aplicação subsidiária do CPC no já citado art. 769 da CLT, in verbis: “Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas desse Título”. Podemos concluir, pois, que o sistema adotado pelo legislador brasileiro de aplicação do processo comum ao processo do trabalho é misto ou eclético, isto é, utiliza tanto os subsídios da supletividade expressa como aberta. Assim, o Direito Processual Civil é fonte subsidiária do Direito Processual do Trabalho, além daquelas situações expressamente previstas pelo legislador, nas hipóteses de omissão desta e compatibilidade daquela, de acordo com os termos já transcritos do art. 769 da CLT. Na verdade, de acordo com a leitura do referido dispositivo, podemos extrair os seguintes requisitos para aplicação subsidiária do CPC na supletividade aberta: I) a matéria não esteja regulada de outro modo na CLT (omissão na lei trabalhista); II) não viole os princípios do processo do trabalho; Livro_126.indb 18 III) adapte-se às peculiaridades do procedimento Em Portugal, o Decreto-Lei nº 480/1999, que consiste no Código de Processo do Trabalho, estabelece em seu art. 1º que “nos casos omissos, recorre-se sucessivamente à legislação processual comum” (NETO, 2002, p. 22). Na Argentina, o art. 155 da Lei nº 18.345/1969, consistente na Organización y Procedimiento Laboral, adota dois critérios para a matéria: a) o da supletividade expressa, que indica pontualmente os dispositivos do Código Procesal Civil y Comercial de la Nación que são aplicáveis ao processo; e b) o de supletividade aberta, que é semelhante à regra brasileira: “Las demás disposiciones del Código Procesal Civil y Comercial de la Nación serán supletorias en la medida que resulten compatibles con el procedimiento reglado en esta ley” (PIROLO, 2006, p. 424-5). Em síntese, portanto, diante da norma do art. 769 da CLT e, agora, do art. 15 do novo Código, tem-se fortalecida a aplicação subsidiária do processo civil ao processo do trabalho, o que explica a relevância da análise dos novos institutos processuais numa leitura voltada para os operadores do Direito do Trabalho. Devido às limitações do presente trabalho, restringimos nossa análise ao art. 3º do novo diploma, que positiva formas alternativas de solução de conflitos. Vejamos sua aplicação ao processo do trabalho. 2. Art. 836: “É vedado aos órgãos da Justiça do Trabalho conhecer de questões já decididas, excetuados os casos expressamente previstos neste Título e a ação rescisória, que será admitida na forma do disposto no Capítulo IV do Título IX da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, dispensando o depósito referido nos arts. 488, inc. II, e 494 daquele diploma legal”. 3. Art. 882: “O executado que não pagar a importância reclamada poderá garantir a execução mediante depósito da mesma, atualizada e acrescida das despesas processuais, ou nomeando bens à penhora, observada a ordem preferencial estabelecida no art. 655 do Código de Processo Civil”. 23/04/2015 16:28:44 O art. 3º do Novo CPC estabelece que: “Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. naquelas entre particular e o Estado, pois sem ela perdem os cidadãos a possibilidade de viverem em sociedade sob o império da lei”. Ao lado da resolução de conflitos pela jurisdição estatal, o novo Código amplia o âmbito do acesso à Justiça, consagrando expressamente no texto legal § 1º - É permitida a arbitragem, na forma da lei. meios alternativos de resolução de conflitos. O § 1º § 2º - O Estado promoverá, sempre que possí- trata da arbitragem, e os §§ 2º e 3º dispõem sobre vel, a solução consensual dos conflitos. § 3º - A conciliação, a mediação e outros mé- a solução consensual, notadamente através da mediação e da conciliação. todos de solução consensual de conflitos deverão Os conceitos podem gerar certa confusão. Por ser estimulados por juízes, advogados, defensores meio de uma negociação, as partes envolvidas públicos e membros do Ministério Público, inclu- num litígio buscam diretamente e sem interve- sive no curso do processo judicial”. niência de uma terceira pessoa chegar a uma solução consensual. Frustrada essa tentativa, pode-se Ao lado da resolução de conflitos pela jurisdição estatal, o novo Código amplia o âmbito do acesso à Justiça. passar à mediação, por meio da qual se insere a figura de um terceiro, que irá atuar junto às partes litigantes para conseguir obter a pacificação do conflito. Fala-se em modalidade passiva quando o mediador apenas escuta as versões, tenta apaziguar as partes, mas não introduz o seu ponto de vista. E, modalidade ativa, quando o mediador Livro_126.indb 19 O art. 3º do Novo CPC consiste na positivação, interage com as partes e apresenta propostas para no Novo CPC, do princípio da inafastabilidade do solução do conflito. No Direito brasileiro esse úl- controle jurisdicional, consignado no art. 5º, inciso timo modelo recebe o nome de conciliação e está LV, da Constituição Federal (CF): “a lei não ex- ligado ao Poder Judiciário. E, por fim, na arbitra- cluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou gem, um terceiro, que não pertence ao Poder Ju- ameaça a direito”. Trata-se de consequência do diciário, na hipótese de as partes não conciliarem, que a doutrina chama de constitucionalização profere uma decisão para solução da controvérsia, do processo. que deverá ser respeitada pelas partes. O acesso à Justiça pode ser considerado como a A doutrina fala de meios de autocomposição e mais importante das garantias processuais constitu- heterocomposição de solução dos conflitos. Con- cionais. Conforme aponta Leonardo Greco (2005, forme esclarece Ana Paula Pellegrina Lockmann p. 225-6), (2014, p. 127-128), “todas as pessoas naturais e jurídicas, indepen- “a autocomposição é a forma direta de solução dentemente de qualquer condição, têm o direito de do conflito, na qual os litigantes, em consenso e dirigir-se ao Poder Judiciário e deste receber respos- sem o emprego da força, fazem concessões recípro- ta sobre qualquer pretensão. Este é um direito que cas mediante ajustes de vontade, chegando à so- todos devem ter a possibilidade concreta de exer- lução pacífica da controvérsia. Pode se dar à mar- cer, para a tutela de qualquer direito ou posição gem do processo (extraprocessual) ou no bojo do de vantagem, inclusive os de natureza coletiva ou próprio processo (intraprocessual). São exemplos O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. Processo Civil e sua repercussão no processo do trabalho difusa, tanto nas relações entre particulares como 19 Revi s t a d o A d v o g a d o 3 O art. 3º do Novo Código de 23/04/2015 16:28:44 O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. Re v is t a d o A d v o g a d o 20 de autocomposição trabalhista a convenção coleti- tema ainda gera bastante polêmica no processo do va de trabalho e o acordo coletivo de trabalho (art. trabalho. 611 e seguintes da CLT), a mediação e a concilia- A jurisprudência trabalhista majoritária, na ção, inclusive a celebrada no âmbito da Comissão verdade quase unânime, não admite a arbitragem de Conciliação Prévia – CCP (art. 625-E da CLT). como solução alternativa para solução de lides na Na heterocomposição, o conflito é solucionado por seara das relações trabalhistas.5 um terceiro, que decide a lide com força obrigató- Luciano Athayde Chaves (2012, p. 147) ressal- ria sobre os litigantes. Observe que, enquanto na va que “é de se considerar que a legislação traba- autocomposição o resultado é obtido diretamente lhista tem viés protetor em relação ao trabalhador, pelas próprias partes (ainda que haja a participa- em razão de suas vulnerabilidades (técnica, eco- ção de um mediador ou conciliador como facilita- nômica e social), o que implica a necessária inter- dores), na heterocomposição os litigantes (ou um venção do Estado ou de entidade delegada para a deles, no caso de ação judicial) submetem a lide a realização de atos relacionados com o contrato de um terceiro em busca de uma solução por ele a ser trabalho”. E, assim, conclui: firmada. Podemos citar a jurisdição e a arbitragem como exemplos de heterocomposição”. “Parece-me, contudo, que a vedação à arbitragem – salvo situações excepcionais, em que Acerca desta tendência do Direito Processual ausentes as vulnerabilidades que, de ordinário, to- de busca de alternativas para solução dos conflitos, cam ao sujeito ativo do contrato de trabalho, com agora adotada no Novo CPC, Cintra, Grinover e ou sem subordinação – é medida que melhor se Dinamarco (2012, p. 44) lecionam que “alarga-se ajusta ao nosso sistema social e jurídico” (CHA- o conceito de acesso à justiça, compreendendo os VES, 2012, p. 149). meios alternativos, que se inserem em um amplo Na verdade, quanto a esse tema, é necessário quadro de política judicial”. Vejamos cada um deles perquirir se o crédito trabalhista é passível de ser e sua aplicação ao processo do trabalho. objeto de transação ou não. A mera alegação de que se trata de direito indisponível não nos parece 3.1. Arbitragem A arbitragem pode ser definida como a melhor solução. A questão merece maior reflexão, uma vez que, “um meio essencialmente privado e efetivo, após a extinção da relação de trabalho, desde que escolhido pelas partes com o objetivo de obter um haja controvérsia quanto às parcelas objeto do lití- provimento resolutivo final e vinculante para uma gio, não vislumbramos impedimento para utiliza- dada disputa, sem a necessidade de se recorrer à ção de tal forma de solução de conflitos judiciais, Corte Estatal” (REDFERN; HUNTER, 2009, p. 2). No Brasil a arbitragem é regulada pela Lei nº 9.307/1996, e, diante de anterior polêmica quanto à natureza do instituto, o Fórum Permanente de Processualistas Civis editou enunciados que apontam para o seu caráter jurisdicional,4 diante da desnecessidade de posterior validação da decisão arbitral ou homologação estatal. Não obstante a opção legislativa do Novo CPC, que consolida no processo comum a arbitragem como meio alternativo de solução de conflitos, o Livro_126.indb 20 4. “1. Art. 3º; Art. 42. O árbitro é dotado de jurisdição para processar e julgar a controvérsia a ele apresentada, na forma da lei. (Grupo: Arbitragem – Enunciado aprovado por aclamação)”. “3. Art. 16; Art. 42; Art. 69, § 2º. O árbitro é juiz de fato e de direito e como tal exerce jurisdição sempre que investido nessa condição, nos termos da lei. (Grupo: Arbitragem – Enunciado aprovado por aclamação)”. 5. “AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ARBITRAGEM. DIREITO INDIVIDUAL. IMPOSSIBILIDADE. Tendo em vista o caráter de indisponibilidade e irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, é vedada a arbitragem nas relações individuais de trabalho. Inteligência do art. 1º da Lei n. 9.307/96. Precedentes do C. TST. Recurso ordinário a que se nega provimento” (TRT-2ª Região, Proc. RO nº 00712001120095020442, Rel. Juiz Edilson Soares de Lima, 23/9/2011). 23/04/2015 16:28:44 José Abud (2007, p. 13), Nesse sentido é digno de registro que a arbitra- “não equivale à desregulamentação, ou seja, gem é plenamente aceita e aplicada nos dissídios à eliminação de normas do ordenamento jurídi- coletivos, conforme previsão do art. 114, §§ 1º e 2º, co estatal, mas sim à promoção do ajustamento da CF. Nesse caso, não há que se falar em hipos- da legislação trabalhista, contratual, à realidade suficiência econômica em razão da participação sem atingir seus fundamentos dogmáticos nem dos sindicatos, conforme entendimento da juris- modificar sua estrutura normativa. Em outras pa- prudência laboral. lavras, significa a busca de novo paradigma para 6 Não são todos os direitos trabalhistas que são o contrato individual de trabalho, sem abandonar irrenunciáveis. Há alguns que podem ser objeto o protecionismo clássico da legislação trabalhista de transação, como redução de jornada de trabalho cogente”. e consequente redução salarial. O art. 7º, inciso VI, da CF é claro no sentido de que É conhecido no meio jurídico o caso da Volkswagen, que, em vez de realizar uma dispen- “são direitos dos trabalhadores urbanos e ru- sa em massa, optou por, com a intervenção do rais, além de outros que visem à melhoria de sua sindicato, reduzir a carga horária e consequente condição social: irredutibilidade do salário, salvo salário de seus operários, para que fosse respeitada o disposto em convenção ou acordo coletivo”. a garantia do emprego e um de seus principais Ora, conforme o texto expresso da CF, desde que disposto em convenção ou acordo coletivo, é possí- corolários, a dignidade da pessoa humana. A flexibilização, pois, é um válido caminho a seguir. vel a redução salarial. Tal disposto visa resguardar o trabalhador para os momentos de crise financeira. Pergunta-se: é melhor perder o emprego num momento de crise econômica ou ter o salário reduzido? Nesse contexto ganha espaço a corrente de flexibilização das normas trabalhistas, que deixam Não são todos os direitos trabalhistas que são irrenunciáveis. de ser intocáveis, para se adaptarem a novas realidades econômicas. Flexibilizar significa adaptar, É lógico que existem inúmeras vozes desfavo- tornar flexível. Permite-se, pois, a atenuação das ráveis a ela. Algumas mais radicais, conforme o formas rígidas do Direito do Trabalho em deter- autor Luiz Souto Maior (2009, p. 27): “É totalmen- minadas situações econômicas, em oposição a um te equivocado considerar que os acordos e conven- Direito inflexível e engessado. ções coletivas de trabalho possam sem qualquer O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. a hipossuficiência econômica. Conforme ressaltam Fabíola Marques e Cláudia 21 Revi s t a d o A d v o g a d o especialmente naquelas situações em que inexiste avaliação de conteúdo reduzir direitos trabalhistas 6. “RECURSO DE REVISTA. ARBITRAGEM. DISSÍDIOS INDIVIDUAIS TRABALHISTAS. INCOMPATIBILIDADE. Nos dissídios coletivos, os sindicatos representativos de determinada classe de trabalhadores buscam a tutela de interesses gerais e abstratos de uma categoria profissional, como melhores condições de trabalho e remuneração. Os direitos discutidos são, na maior parte das vezes, disponíveis e passíveis de negociação, a exemplo da redução ou não da jornada de trabalho e de salário. Nessa hipótese, como defende a grande maioria dos doutrinadores, a arbitragem é viável, pois empregados e empregadores têm respaldo igualitário de seus sindicatos. [...] Recurso de revista conhecido e provido” (RR nº 13100-51.2005.5.20.0006, Rel. Min. José Roberto Freire Pimenta, 14/10/2011). Livro_126.indb 21 legalmente previstos, simplesmente porque a constituição previu o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho (inciso XXVI do art. 7º), redução de salário (inciso VI, art. 7º) e a modificação dos parâmetros da jornada reduzida para o trabalho em turnos ininterruptos de revezamento (inciso XIV, art. 7º)”, e outras mais moderadas, como a do ministro do TST Maurício Godinho Delgado (2002, p. 212), que defende: 23/04/2015 16:28:44 “Entendo que existem direitos de indisponibilida- resolução de conflitos e de acesso à Justiça no art. de absoluta e direitos de indisponibilidade (ou dis- 3º ora examinado, resta consignada a nossa refle- ponibilidade) relativa”. De toda sorte, repetimos, xão para que os operadores do Direito Processual trata-se de um válido caminho a seguir. do trabalho reflitam e repensem sobre a aplicação do O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. 7 Re v is t a d o A d v o g a d o 22 Nesse diapasão é a jurisprudência do TST, que instituto no processo do trabalho, como já o fez o admite a flexibilização, mas excepciona alguns atual presidente do TST, Antonio José de Barros direitos, como aqueles relativos a segurança e medi- Levenhagem, em julgamento de um recurso de cina do trabalho: revista: “INTERVALO INTRAJORNADA. REDU- “Desse modo, não se depara, previamente, com ÇÃO. PREVISÃO DA HORA CORRIDA EM nenhum óbice intransponível para que ex-empre- ACORDOS COLETIVOS. A Constituição Fe- gado e ex-empregador possam eleger a via arbitral deral de 1988 conferiu maiores poderes aos sin- para solucionar conflitos trabalhistas, provenientes dicatos, de modo que essas entidades podem, no do extinto contrato de trabalho, desde que essa interesse de seus associados e mediante negociação opção seja manifestada em clima de ampla liber- coletiva, restringir certos direitos assegurados aos dade, reservado o acesso ao judiciário para dirimir trabalhadores a fim de obter vantagens não pre- possível controvérsia sobre a higidez da manifesta- vistas em lei. Não obstante, tal flexibilização não ção volitiva do ex-trabalhador, na esteira do art. 5º, autoriza a negociação coletiva que atente contra as inc. XXXV, da Constituição” (TST, 4ª T., RR nº normas referentes à segurança e saúde no trabalho. 144300-80.2005.5.02.0040, j. 15/12/2010). De fato, o estabelecimento do intervalo mínimo de uma hora para refeição e descanso dentro da jornada de trabalho é fruto da observação e análise de comportamento humano, e das reações de seu organismo quando exposto a várias horas de trabalho. Doutrina e jurisprudência evoluíram no sentido da necessidade desse intervalo mínimo para que o trabalhador possa não apenas ingerir alimento, mas também digeri-lo de forma adequada, a fim de evitar o estresse dos órgãos que compõem o sistema digestivo, e possibilitar maior aproveitamento dos nutrientes pelo organismo, diminuindo também a fadiga decorrente de horas de trabalho. Se de um lado a Constituição prevê o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (art. 7º, XXVI da Constituição Federal), de outro estabelece ser a saúde um direito social a ser resguardado (art. 6º da Carta Política). Recurso de Revista não reconhecido” (TST, RR nº 619.959.99.7, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, publ. 14/3/2003). Diante de tal contexto e do Novo CPC, que ratifica a arbitragem como meio alternativo de Livro_126.indb 22 7. É a jurisprudência dos tribunais pátrios: “PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SETORIAL NEGOCIADA. FLEXIBILIZAÇÃO DE DIREITOS DE INDISPONIBILIDADE RELATIVA. O princípio da adequação setorial negociada, que retrata o alcance da contraposição das normas coletivamente negociadas àquelas de cunho imperativo, emanadas do Estado, viabiliza que as normas autônomas construídas para incidirem no âmbito de certa comunidade econômico-profissional possam prevalecer sobre aquelas de origem heterônoma, desde que transacionem parcelas de indisponibilidade apenas relativa, como, e.g, as concernentes à manutenção da hora noturna em sessenta minutos, vez que não caracteriza alteração em patamar prejudicial à saúde do trabalhador e desde que não traduza simples renúncia, mas transação de direitos” (TRT-MG, 01512.2001.018.03.00.4, Rel. Designado Juiz Júlio Bernardo do Campo, publ. 7/6/2002). “ADICIONAL DE PERICULOSIDADE. ÍNDICE INFERIOR AO LEGAL. PACTUAÇÃO EM INSTRUMENTO NORMATIVO. VALIDADE. A Constituição Federal de 1988 trouxe à ordem jurídica trabalhista brasileira maior possibilidade de flexibilização, permitindo, inclusive, a redução salarial, desde que por intermédio da negociação coletiva, como dispõe expressamente o artigo 7º, em seu inciso VI. O artigo 195, § 1º, da CLT, por sua vez, já permitia ao sindicato intentar reclamatória visando à apuração da condição perigosa ou insalubre em ambiente de trabalho. A conjunção dos dispositivos legais em tela e a natureza salarial do adicional de periculosidade revelam a possibilidade de a empresa e o sindicato dos trabalhadores pactuarem o pagamento do referido adicional de forma parcial, considerando os parâmetros estabelecidos na transação havida. Válidos, portanto, os termos do acordo firmado em dissídio coletivo, onde restou estipulado que o percentual a ser aplicado seria 22,5%” (TRT-SP, 02531-2003-2010-02-00-4, Rel. Designada Juíza Mércia Tomazinho, publ. 14/10/2008). 23/04/2015 16:28:44 Paralelamente à arbitragem, o dispositivo de busca de meios alternativos de resolução de legal examinado também concretiza outras im- conflitos, pois o art. 331 do vigente CPC já havia portantes inovações no que tange a métodos de tornado obrigatória a tentativa judicial de con- resolução de conflitos, como a conciliação e a me- ciliação. E o Conselho Nacional de Justiça, por diação. Tais institutos figuram não apenas como meio da Resolução nº 125, determinou que cabe normas fundamentais do processo, mas estão pre- ao Judiciário estabelecer política pública de vistos de forma esparsa em todo o Código, tanto tratamento adequado dos problemas jurídicos no que se refere aos deveres do juiz, das partes e e dos conflitos de interesse não somente nos dos demais sujeitos do processo como na criação processos judiciais, mas mediante outros meca- de centros judiciários de mediação e conciliação nismos de solução de conflitos, em especial dos (arts. 165 e ss.). consensuais, como a mediação e a conciliação. É necessário distingui-los. Conforme esclarece Humberto Dalla Pinho (2013, p. 920), É digno de registro que a conciliação é um dos princípios norteadores do processo do tra- “a distinção entre mediação e conciliação é balho. O juiz do trabalho é obrigado a tentar a tarefa um tanto árdua. Podemos, então, estabe- conciliação na abertura da audiência e antes de lecer três critérios fundamentais: quanto à fina- proferir a sentença, e a decisão que a homologa é lidade, a mediação visa resolver, da forma mais irrecorrível, salvo para a Previdência Social quan- abrangente possível, o conflito entre os envolvi- to às contribuições que lhe são devidas, como se dos. Já a conciliação contenta-se em resolver o observa respectivamente dos arts. 846, 850 e 831, litígio conforme as posições apresentadas pelos parágrafo único, da CLT.8 envolvidos. Quanto ao método, o conciliador as- No dissídio coletivo, a conciliação também é sume posição mais participativa, podendo sugerir obrigatória, como se pode constatar do art. 764 às partes os termos em que o acordo poderia ser da CLT: “os dissídios individuais ou coletivos sub- realizado, dialogando abertamente a esse respei- metidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão to, ao passo que o mediador deve abster-se de to- sempre sujeitos à conciliação”. mar qualquer iniciativa de proposição, cabendo a Nesse diapasão, podemos concluir que o Novo ele apenas assistir as partes e facilitar sua comuni- CPC, ao dispor sobre a conciliação no seu art. 3º, cação, para favorecer a obtenção de um acordo de como meio alternativo de resolução de conflitos, recíproca satisfação. Por fim, quanto aos vínculos, está em total consonância com o processo do tra- a conciliação é uma atividade inerente ao Poder balho, que já prioriza essa forma de solução dos Judiciário, podendo ser realizada por juiz togado, litígios, com sucesso, há bastante tempo. por juiz leigo ou por alguém que exerça a função específica de conciliador”. O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. Falamos em concretização dessa tendência 23 Revi s t a d o A d v o g a d o 3.2. Conciliação Quanto à mediação, não podemos dizer o mesmo, pois, assim como a arbitragem, sofre muito preconceito pela grande maioria dos operadores 8. Art. 846 da CLT: “Aberta a audiência, o juiz ou presidente proporá a conciliação”. Art. 850 da CLT: “Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não excedente a 10 minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a proposta de conciliação, e não se realizando esta, será proferida a decisão”. Art. 831, parágrafo único, da CLT: “No caso de conciliação, o termo que for lavrado valerá como decisão irrecorrível, salvo para a Previdência Social quanto às contribuições que lhe forem devidas”. Livro_126.indb 23 do processo do trabalho e é rechaçada pela magistratura trabalhista para solução de conflitos individuais. 3.3. Mediação Na seara dos conflitos coletivos do trabalho, a mediação já é admitida de forma pacífica, por 23/04/2015 16:28:44 O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. Rev i st a d o A d v o g a d o 24 meio de sucessivas regulamentações legais. Em mentos que versarem sobre interesses difusos, 28 de julho de 1995, foi publicado o Decreto nº coletivos e individuais homogêneos, mediados 1.572, que regulamentou a mediação nas nego- por órgãos do Ministério Público do Trabalho ou ciações coletivas, atribuindo ao Ministério do Ministério do Trabalho, ou negociações coletivas Trabalho e Emprego o exercício da atividade. Os por meio dos sindicatos. Como sempre, o argu- principais critérios para participação do mediador mento é a suposta indisponibilidade que reveste na negociação de conflitos coletivos foram esta- os direitos trabalhistas. belecidos pela Portaria nº 817, de 20 de agosto de Não vemos razão para excluir de forma absolu- 1995. E o Decreto nº 5.063, de 3 de maio de 2004, ta, na solução dos conflitos trabalhistas individuais, definiu como competência da Secretaria de Rela- a mediação. Será que o trabalhador sempre está ções do Trabalho a promoção do planejamento, numa situação de hipossuficiência frente ao seu coordenação, orientação e promoção da prática empregador, de forma a estar incapacitado de ne- de negociação coletiva, mediante arbitragem e gociar os seus direitos por outros meios alternativos mediação. sem intervenção estatal, como ocorre na mediação Ocorre que, na seara dos conflitos individuais, e arbitragem? Ora, tudo que foi dito em relação a ainda há bastante preconceito, especialmente no esta última, no que tange a essa possibilidade de seio da magistratura trabalhista. Exemplo deste solução de conflitos e flexibilização de direitos tra- consiste na intervenção da Associação Nacional balhistas, repetimos aqui para a mediação. dos Magistrados Trabalhistas (Anamatra) no Pro- É importante voltarmos os olhos para o Direito jeto de Lei (PL) nº 7.169/2014 (Nova Lei de Me- Comparado e o que ocorre atualmente em outros diação Brasileira), que teve o condão de extrair o países, como exemplos positivos que possamos termo “trabalhista” do art. 41 da lei, por meio da adotar e seguir. A experiência com a mediação incorporação da Emenda nº 5/2014, de autoria do nos Tribunais do Trabalho do Reino Unido, por deputado Alessandro Molon, que atendeu o argu- exemplo, é muito válida. O recente Employment mento de que “a aplicação da mediação no âmbi- tribunal claim form está em vigor desde 29 de to das relações de trabalho é medida que afronta junho de 2013. a essência própria do Direito do Trabalho [...]”. 9 (2014, p. 427), ao comentar o novo Employment Não vemos razão para excluir, na solução dos conflitos trabalhistas individuais, a mediação. O deputado Alessandro Molon apresentou ainda, recentemente, propostas de emendas aditivas ao substitutivo do PL nº 7.169 (ESB nº 8 e nº 9), com o objetivo de excluir qualquer possibilidade de realização de mediação privada ou obrigatória quando envolver direito individual do trabalho, especialmente durante a vigência do contrato de trabalho, restringindo-a a procedi- Livro_126.indb 24 Conforme ressalta Michele Pedrosa Paumgartten tribunal claim form, “Entre as inúmeras alterações às regras procedimentais trabalhistas que ocorreram a partir de 9. A nota que consta do site da instituição diz o seguinte: “A pretensão legislativa da aplicação da mediação no âmbito das relações de trabalho é medida que afronta a essência própria do Direito do Trabalho, bem como o patamar mínimo de dignidade conferido ao trabalhador. Tal inviabilidade decorre do fato de que as normas de direito do trabalho são normas de ordem pública, assim consideradas porque estabelecem os princípios cuja manutenção se considera indispensável à organização da vida social, segundo os preceitos de direito, sendo que a ordem pública interna denota a impossibilidade de disponibilidade pela vontade privada”. Disponível em: <http:// www.anamatra.org.br/index.php/anamatra-na-midia/mediacao-deconflitos-que-inclui-relacoes-trabalhistas-aguarda-parecer-na-ccj>. Acesso em: 29 out. 2014. 23/04/2015 16:28:45 meio de resolução de conflitos. Os juízes do traba- lhistas à disposição das partes litigantes, seja em lho são obrigados, sempre que possível e apropria- dissídios coletivos, como já é aceito, seja em dissí- do, a encorajar as partes na utilização da concilia- dios individuais. ção, da mediação judicial, extrajudicial ou outros meios que possam viabilizar a celebração de um 4 Conclusão acordo entre as partes”. Merece registro nessa leitura do art. 3º do O Novo CPC, aprovado pelo Senado em Novo CPC, sob o viés do processo do trabalho, dezembro de 2014, com vacacio legis de um ano, a existência das chamadas comissões de concilia- é uma realidade para os operadores do Direito e ção prévia, incluídas na CLT por meio da Lei nº deve começar a ser discutido e estudado pela dou- 9.958/2000, como exemplo de mediação trabalhista. trina nacional. A despeito de o Supremo Tribunal Federal ter Nesse escopo de interpretá-lo e entendê-lo, considerado inconstitucional o art. 625-D da CLT não podem ser olvidados os seus reflexos no pro- que submete obrigatoriamente qualquer demanda cesso do trabalho, cuja aplicação subsidiária a essa trabalhista ao crivo das Comissões de Conciliação seara processual é obrigatória por força de seu art. Prévia antes da propositura da ação trabalhista e 15, bem como art. 769 da CLT. efetivamente na prática as partes não procurarem O art. 3º do Novo CPC permite a arbitragem, tais instituições de composição paritária entre em- determina ao Estado promover, sempre que pos- presas e sindicatos para solução de seus conflitos, sível, a solução consensual dos litígios e incita os se corretamente implantada, seria uma boa alter- operadores do Direito a estimularem a concilia- nativa para solução das lides trabalhistas, uma vez ção e a arbitragem como métodos alternativos de que a homologação dos acordos pelas comissões solução dos conflitos. dá quitação geral para as parcelas objeto da tran- Qual a repercussão dessa norma no processo sação (exceto para eventuais ressalvas consignadas do trabalho? Esses métodos alternativos se apli- no termo), além de a submissão da lide à comissão cam para solução de conflitos trabalhistas? Neste ter o condão de suspender o prazo prescricional brevíssimo artigo procuramos responder a essa para a propositura da ação trabalhista, conforme indagação, feita já no título do trabalho. E nossa regem os arts. 625-E e 625-G do diploma traba- resposta é positiva. lhista. Ou seja, não obtida a composição por meio A conciliação já é uma realidade há bastante dessa espécie de mediação, a parte pode recorrer tempo no processo do trabalho. Em relação aos ao Poder Judiciário Trabalhista sem qualquer pre- demais métodos alternativos, mesmo com toda a juízo processual. desconfiança e preconceito da magistratura traba- As comissões de conciliação prévia, apesar de lhista, diante dos novos conflitos trabalhistas que constituição distinta, têm a mesma função dos surgem com a dinâmica das novas relações so- Centros Judiciários de Solução Consensual de ciais, e ausente a hipossuficiência do trabalhador, Conflitos previstos nos arts. 165 e seguintes do é possível, sim, desde que com ampla liberdade e Novo CPC, que, por meio de conciliação e me- sem qualquer vício de consentimento, os litigan- diação, também buscam uma forma alternativa e tes se valerem da mediação ou arbitragem. célere de solucionar os conflitos. Livro_126.indb 25 O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. mais uma forma de resolução de conflitos traba- 25 Re vis t a d o A d v o g a d o 2013, está a maior ênfase dada à mediação como A vulnerabilidade do trabalhador oriunda de Enfim, a mediação não afronta a essência do sua hipossuficiência econômico-financeira é miti- Direito do Trabalho e deve ser incentivada como gada após a rescisão do contrato de trabalho, pois 23/04/2015 16:28:45 O a r t . 3 º d o N o v o C ó d i g o d e P ro ces s o Civil e o processo do trabalh o. Rev i st a d o A d v o g a d o 26 não há mais a subordinação inerente ao vínculo posição as experiências do Direito Comparado, de emprego. Assim, desde que o trabalhador opte especialmente a mais recente do uso de mediação livremente por uma dessas formas alternativas de nos Tribunais do Trabalho do Reino Unido. solução de conflito, não vemos por que privá-lo, Em suma, vivemos uma nova era na solução dos bem como o seu empregador, de uma solução conflitos, na qual a jurisdição estatal não é mais o mais célere e eficaz para a controvérsia. único caminho a seguir. O Novo CPC entra em vi- É possível e até mesmo aconselhável que seja gor já atento e estimulando essas mudanças de para- obrigatória a participação de advogados e a possi- digma. O art. 3º do novo diploma aqui examinado é bilidade de recurso ao Judiciário para as hipóteses exemplo disso. Como se aplica subsidiariamente ao em que se comprovar a ausência de liberdade na processo do trabalho, é necessário que os operadores escolha do meio alternativo ou vício de consenti- do Direito laboral acompanhem as mudanças, refli- mento de qualquer natureza. tam e repensem suas posições em relação à media- Em relação a essas formas alternativas de solução dos conflitos trabalhistas, corroboram nossa adaptações necessárias à tutela dos trabalhadores. Bibliografia CHAVES, Luciano Athayde. Curso de Processo do Trabalho. São Paulo: LTr, 2012. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria Geral do Processo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2012. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002. GRECO, Leonardo. Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Estudos de direito processual. Campos dos Goytacazes: Ed. Faculdade de Direito de Campos, 2005. LOCKMANN, Ana Paula Pellegrina. Sistema de Solução – A importância de fomentar a cultura da conciliação. In: PIMENTA, Adriana Campos de Souza Freire; LOCKMANN, MARQUES, Fabíola; ABUD, Cláudia José. Direito do Trabalho. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2007. NETO, Abílio. Código de Processo do Trabalho anotado. Lisboa: Ediforum, 2002. PAUMGARTTEM, Michele Pedrosa. A Mediação de Conflitos Trabalhistas no Brasil e a Mediação Judicial no Tribunal do Trabalho do Reino Unido. Revista Eletrônica de Direito Processual da UERJ, Rio de Janeiro, ano 8, v. XIV, jul./dez. 2014. PINHO, Humberto Dalla Bernardina. Direito Processual Civil Contemporâneo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. PIROLO, Miguel Angel et al. Manual de Derecho Procesal Del Trabajo. Buenos Aires: Astrea, 2006. Ana Paula Pellegrina (Coord.). Conciliação Judicial Indivi- REDFERN, Alan; HUNTER, Martin. Internacional Arbitration. dual e Coletiva e Formas Extrajudiciais de solução dos Con- Fifth Edition. Oxford; New York: Oxford University Press, flitos Trabalhistas. Homenagem ao Ministro Antonio José de Barros Levenhagem. São Paulo: LTr, 2014. MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho – Parte Geral. São Paulo: LTr, 1990. Livro_126.indb 26 ção e arbitragem, logicamente com a parcimônia e as 2009. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Negociação Coletiva do Trabalho em Tempos de Crise. Justiça do Trabalho, Porto Alegre, v. 26, 2009. 23/04/2015 16:28:45 O s honorários recursais no Novo Código de Processo Civil. Sumário 1.Uma relevante novidade do Novo CPC 2.Somente devem ser arbitrados honorários nos recursos que tenham origem na decisão final da causa 3.Em todos os recursos? 4.Litisconsórcio 5.Desistência do recurso 6.O arbitramento dos honorários recursais 1 Uma relevante novidade do Novo CPC De acordo com o art. 20 do Código de Processo Civil (CPC) de 1973, “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que an- 27 Revi s t a d o A d v o g a d o Bibliografia tecipou e os honorários advocatícios”. A referência do texto à “sentença” e a inexistência de previsão específica quanto ao cabimento de uma condenação complementar em honorários em sede recurBruno Vasconcelos Carrilho Lopes sal fizeram com que se consolidasse na doutrina Mestre e doutor em Direito Processual pela e na jurisprudência o entendimento de que: i) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. deve ser arbitrada na sentença a verba honorária que remunerará o trabalho do advogado no decorrer de toda a fase de conhecimento do processo; e ii) na hipótese de o vencido interpor recurso e a sentença ser mantida, é inadmissível o arbitramento de novos honorários para remunerar o trabalho desenvolvido pelo advogado do recorrido na fase recursal (CAHALI, 1997, p. 467-468). Livro_126.indb 27 23/04/2015 16:28:45 O s h o n o r á r i o s r e c u r s a i s n o No vo Có d ig o de Processo Civil. Rev i st a d o A d v o g a d o 28 Esse arbitramento único em sentença foi objeto exclusivamente para os casos em que é negado de críticas, pois os honorários servem à remuneração provimento ao recurso, pois é somente nessa hi- do trabalho do advogado e todo o trabalho deve ser pótese que o tribunal “majorará os honorários remunerado, não apenas o realizado em primeiro fixados anteriormente”.1 grau de jurisdição. Como os honorários são arbitra- Quando o recurso é provido, não haverá majo- dos em consideração à efetiva atuação do advogado ração dos honorários fixados anteriormente, pois a e não se sabe no momento da sentença se o proces- condenação em honorários imposta na decisão re- so terá continuidade com a interposição de recurso, corrida beneficiava o advogado do recorrido e será é inviável considerar no arbitramento um eventual cassada. Uma condenação em honorários totalmen- trabalho futuro, que ficará sem remuneração se não te nova deverá ser imposta pelo tribunal, agora em for fixada uma nova verba. Diante dessa e de outras benefício do advogado do recorrente, devendo ser premissas, já no sistema do CPC de 1973 era impe- considerado no arbitramento da verba o trabalho rativo o arbitramento de honorários complementares realizado pelo advogado no decorrer de todo o pro- no julgamento do recurso, de modo a remunerar o cesso, inclusive na fase recursal. Aqui não há novi- trabalho realizado pelo advogado nessa nova fase do dade alguma, pois, de forma incoerente com o não processo (LOPES, 2008, p. 189-190). arbitramento de honorários complementares para remunerar o trabalho do advogado do recorrido O art. 85, § 11, traz verdadeira novidade exclusivamente para os casos em que é negado provimento ao recurso. quando o recurso não é provido, não se questiona na aplicação do CPC de 1973 que no novo arbitramento de honorários decorrente do provimento de recurso o julgador deve considerar todo o trabalho realizado pelo advogado até o julgamento do tribunal, não apenas a atuação em primeira instância. Feitos esses esclarecimentos iniciais a respeito A crítica não surtiu efeito na vigência do CPC do alcance do art. 85, § 11, do Novo CPC, resta de 1973, mas as razões que a ampararam impul- claro de seu texto que o objetivo é remunerar o sionaram o legislador a prever no Novo CPC o trabalho desenvolvido pelo advogado na fase re- arbitramento de uma verba honorária comple- cursal, não punir o recorrente pelo insucesso de mentar no julgamento dos recursos. Eis o texto do seu recurso.2 Entretanto, não se pode ignorar seu art. 85, § 11: efeito colateral benéfico de desestimular a inter- “o tribunal, ao julgar recurso, majorará os ho- posição de recursos protelatórios, da mesma for- norários fixados anteriormente levando em conta ma como a condenação em honorários imposta na o trabalho adicional realizado em grau recursal, observando, conforme o caso, o disposto nos §§ 2º a 6º, sendo vedado ao tribunal, no cômputo geral da fixação de honorários devidos ao advogado do vencedor, ultrapassar os respectivos limites estabelecidos nos §§ 2º e 3º para a fase de conhecimento”. O dispositivo trata de forma genérica do julgamento de recurso pelo tribunal, sem trazer distinções quanto ao resultado do julgamento. No entanto, o art. 85, § 11, traz verdadeira novidade Livro_126.indb 28 1. Trata-se de uma verba adicional, que tem o objetivo de remunerar o trabalho realizado pelo advogado do recorrido na fase recursal. É, portanto, inadmissível considerar no arbitramento dos honorários recursais o trabalho realizado pelo advogado antes de interposto o recurso. A revisão dos honorários arbitrados na decisão recorrida para a fase anterior à sua prolação somente é possível se houver a interposição de recurso que devolva a apreciação da matéria ao tribunal (LOPES, 2008, p. 196). 2. Para evitar uma inadmissível confusão dos honorários recursais com uma sanção punitiva, o § 12 do art. 85 do Novo CPC chega a esclarecer que “os honorários referidos no § 11 são cumuláveis com multas e outras sanções processuais, inclusive as previstas no art. 77”. 23/04/2015 16:28:45 abusivas (DINAMARCO, 2009a, p. 651; LOPES, adequada dos §§ 1º e 11 do art. 85. A responsabili- 2008, p. 4-5). dade por todas as verbas que integram o custo do É certo que em muitos casos o recurso não pro- processo deve ser atribuída a quem deu causa ao vido foi interposto com a melhor das intenções, processo como um todo, não a cada um dos inci- amparado em fundamentos que tornam legítimo dentes que vierem a ser instaurados no decorrer o ato de recorrer. Não há, no entanto, qualquer do procedimento. Vale, “a propósito da carga das afronta ao duplo grau de jurisdição ou à garantia despesas, a delícia que se desfruta ao ser vencida de acesso à Justiça ao ser imposta a condenação não apenas uma simples batalha, mas a guerra” desse recorrente de boa-fé ao pagamento dos ho- (CAHALI, 1997, p. 362). O causador do proces- norários recursais. Aplicam-se aqui os mesmos so, que na grande maioria dos casos é o vencido, princípios e regras que legitimam e norteiam a somente é identificado ao final da causa, no mo- condenação em honorários em primeira instância. mento em que a sentença é proferida. É, portanto, O recorrente que sucumbe é responsável pelos ho- na sentença que deve haver o arbitramento de ho- norários recursais por ter dado causa à instauração norários, e somente faz sentido a fixação da verba da fase recursal e tornado necessário o trabalho honorária prevista no § 11 do art. 85 nos recursos realizado nessa fase pelo advogado do recorrido que tiverem origem na sentença. (CARNELUTTI, 1956, p. 223-225; GUALANDI, Não bastasse ser essa a lógica de todo o sistema 1962, p. 251; LOPES, 2008, p. 38-44). Essa res- de distribuição do custo do processo entre as par- ponsabilidade é objetiva e independe de qualquer tes, idêntica conclusão decorre de uma interpre- consideração a respeito de sua boa-fé ao recorrer tação acurada do § 11 do art. 85 do Novo CPC. (CHIOVENDA, 1935, p. 162-176; GUALANDI, A norma trata de situação em que o tribunal “ma- 1962, p. 263-265; LOPES, 2008, p. 30-38). jorará os honorários fixados anteriormente”, do que se pode concluir que está a disciplinar o julga- 2 Somente devem ser arbitrados honorários nos recursos que tenham origem na decisão final da causa mento de recurso que tem origem em decisão que já havia arbitrado honorários, ou seja, uma sentença. Além disso, a fixação dos honorários recursais deve observar “o disposto nos §§ 2º a 6º” do art. 85, Livro_126.indb 29 O art. 85, § 11, do Novo CPC disciplina a fi- constando do § 2º que o arbitramento tem como xação dos honorários recursais pelo “tribunal, ao referência obrigatória “o valor da condenação, do julgar recurso”, sem trazer qualquer especificação proveito econômico obtido ou, não sendo possí- quanto ao tipo de recurso em que devem ser ar- vel mensurá-lo”, o “valor atualizado da causa”. A bitrados honorários ou à relevância para esse fim utilização desses critérios para o arbitramento de do conteúdo da decisão impugnada. Uma análise honorários somente faz sentido quando a fixação superficial do dispositivo poderia, portanto, levar da verba ocorra na sentença e nos recursos que à conclusão de que em todo e qualquer recurso nela têm origem. deve haver o arbitramento de honorários, conclusão Não se desconhece que em algumas situações que é reforçada pela parte final do § 1º do art. 85: o litígio ou parte dele é decidido em primeiro grau “são devidos honorários advocatícios na recon- de jurisdição em decisão interlocutória. A título venção, no cumprimento de sentença, provisório exemplificativo, esse é o caso da decisão que julga ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos parte do mérito antecipadamente, que, nos termos recursos interpostos, cumulativamente”. dos arts. 203, § 2º, e 356 do Novo CPC, é uma O s h o n o r á r i o s r e c u r s a i s no No vo Có d ig o de Processo Civil. Não é essa, no entanto, a interpretação mais 29 Revi s t a d o A d v o g a d o sentença desestimula a propositura de demandas 23/04/2015 16:28:45 O s h o n o r á r i o s r e c u r s a i s n o No vo Có d ig o de Processo Civil. Re v is t a d o A d v o g a d o 30 decisão interlocutória. Nessas situações especí- cursos julgados sem prévia intimação do recorrido ficas, os honorários pertinentes à causa julgada para apresentar resposta,3 tal como muitas vezes devem ser desde logo fixados na decisão interlo- ocorre com os embargos de declaração, e daque- cutória (LOPES, 2008, p. 170-172) e, nos recursos les em que, apesar de o recorrido ser intimado, seu que a tiverem na origem, devem ser arbitrados ho- advogado não apresenta resposta nem pratica qual- norários recursais complementares. quer ato antes do julgamento do recurso. 3 Em todos os recursos? Os questionamentos suscitados no início do item anterior ainda deixam uma dúvida. Devem ser arbitrados honorários em todos os recursos que tenham na origem uma sentença? Pensemos em um Não há razão para diferenciar um recurso do outro, em todos é realizado trabalho adicional que deve ser remunerado. exemplo hipotético bastante complexo, em que o vencido interponha praticamente todos os recursos Dúvidas podem surgir quanto à aplicação previstos no Novo CPC na tentativa de ver acolhida do art. 85, § 11, à remessa necessária, discipli- sua pretensão. É proferida a sentença em primeira nada no art. 496 do Novo CPC. Mas apesar de instância. Contra a sentença são opostos embargos a remessa necessária não ser propriamente um de declaração. Os embargos são rejeitados e, na recurso (BUZAID, 1972, p. 259-263), o relevan- sequência, é interposta a apelação. A apelação não te para identificar se devem ou não ser fixados é provida e o acordão proferido é impugnado em honorários em complemento aos da sentença é recurso especial. O relator nega provimento ao a realização de um trabalho pelo advogado do recurso especial em decisão monocrática, contra vencedor após o julgamento de primeira ins- a qual é interposto agravo interno. Negado provi- tância, trabalho que não será adequadamente mento ao agravo interno, é interposto recurso extra- remunerado se não forem arbitrados honorá- ordinário, que é julgado no mérito e é igualmente rios complementares. A ratio fundamental do art. improvido. São então opostos embargos de divergên- 85, § 11, é justamente essa: todo o trabalho reali- cia, aos quais é negado provimento. zado pelo advogado no decorrer do processo deve Respeitados os limites previstos no §§ 2º e 3º ser remunerado, não apenas o decorrente de sua do art. 85, devem ser arbitrados honorários recur- atuação em primeira instância. É irrelevante aqui o sais no julgamento de todos esses recursos. Não há fato de o prolongamento do processo pela remessa razão para diferenciar um recurso do outro, pois necessária não depender de um ato de vontade do em todos é realizado um trabalho adicional que ente público beneficiado.4 A remessa é realizada deve ser remunerado. Observe-se, no entanto, que o arbitramento de honorários recursais complementares aos fixados nas instâncias anteriores tem por objetivo remunerar o trabalho do advogado do recorrido na fase recursal. Diante disso, se nenhum trabalho foi realizado, não há o que remunerar e, portanto, não devem ser fixados novos honorários no julgamento do recurso (LOPES, 2008, p. 99). É o caso dos re- Livro_126.indb 30 3. Se, apesar de não intimado, o advogado adianta-se e apresenta a resposta logo após o recurso ser interposto, são devidos honorários recursais para remunerar seu trabalho. O recorrente assume o risco de pagar tais honorários ao interpor recurso e deve ser prestigiada a atitude do advogado do recorrido, que revela boa-fé, precaução e prestígio à celeridade na prestação da tutela jurisdicional (LOPES, 2008, p. 96-97). 4. E ainda que tal fator fosse relevante, o ente público pode impedir o reexame necessário, nos termos do art. 496, § 4º, inciso IV, do Novo CPC. Portanto, é em realidade a sua vontade que determina a sujeição da sentença ao reexame necessário. 23/04/2015 16:28:45 em exclusivo benefício do ente público (Superior confirmação da sentença pelo tribunal), tem-se Tribunal de Justiça – STJ, Súmula nº 45), a causa que ele em nada contribuiu para o encarecimento do prolongamento do processo é a abertura de uma do processo quando tiver omitido qualquer parti- oportunidade para o reexame em seu favor de deci- cipação no procedimento recursal” (DINAMARCO, são contrária aos seus interesses, e, em decorrência, 2009b, p. 186). 5 Desistência do recurso forma de remunerar todo o trabalho realizado pelo advogado da parte vencedora. Se o recorrente desistir do recurso, a decisão que homologar a desistência deverá arbitrar ho- 4 Litisconsórcio norários recursais em benefício do advogado do recorrido? No regime do litisconsórcio, o recurso de um Aplica-se aqui a mesma regra que disciplina a dos litisconsortes não aproveita ao outro se o li- responsabilidade pelo custo do processo na hipó- tisconsórcio for comum. No entanto, o recurso tese de o autor desistir da ação e, de acordo com o beneficiará a todos se o litisconsórcio for unitário disposto no art. 90, caput, do Novo CPC, ou se os litisconsortes forem devedores solidários, “proferida sentença com fundamentos em nesta hipótese apenas se forem comuns as defesas desistência, em renúncia ou em reconhecimento opostas ao credor (Novo CPC, art. 1.005; BARBOSA do pedido, as despesas e os honorários serão pagos MOREIRA, 2008, p. 380-384). pela parte que desistiu, renunciou ou reconheceu”. Não pode haver dúvidas de que, em se tratando O recorrente deverá, portanto, ser condenado de litisconsórcio comum, se algum dos litisconsor- ao pagamento de honorários recursais na decisão tes não recorrer, a responsabilidade pelos honorá- que homologa a desistência do recurso. Foi ele rios recursais deve ser dividida exclusivamente entre quem deu causa ao prolongamento do processo os recorrentes, pois o julgamento do recurso nem com a interposição do recurso e tornou necessária sequer aproveitará àquele que ficou inerte. a realização de um trabalho adicional pelo advogado A regra é a mesma para os casos em que o re- do recorrido e, em decorrência, deve responder curso de um dos litisconsortes aproveita aos de- pela remuneração desse trabalho (CHIOVENDA, mais. Para definir a responsabilidade por qualquer 1935, p. 318; GUALANDI, 1962, p. 257-258). parcela do custo do processo não importa a identi- Lembre-se mais uma vez, no entanto, que os ficação de quem será beneficiado ou prejudicado honorários recursais têm por objetivo remunerar o pela decisão final da causa. O relevante é identi- trabalho realizado pelo advogado em sede recur- ficar quem tornou o processo necessário, ou, no sal. Portanto, se o recorrente desistir do recurso caso dos honorários recursais, quem provocou o antes de ser apresentada a resposta ou praticado prolongamento do processo com a interposição do qualquer ato pelo advogado do recorrido, não recurso (GARBAGNATI, 1942, p. 255-257; GUA- serão devidos honorários recursais. 31 Revi s t a d o A d v o g a d o plementares no julgamento de segundo grau, única O s h o n o r á r i o s r e c u r s a i s n o No vo Có d ig o de Processo Civil. ele deve arcar com o pagamento de honorários com- LANDI, 1962, p. 96; LOPES, 2008, p. 54 e 74). É, portanto, o recorrente quem responderá com exclusividade pelos honorários recursais, ainda 6 O arbitramento dos honorários recursais que o recurso aproveite aos demais litisconsortes, Livro_126.indb 31 pois, “apesar de o litisconsorte que não recorreu De acordo com o art. 85, § 11, do Novo CPC, também ser sucumbente na apelação (em caso de o valor dos honorários recursais deve ser fixado 23/04/2015 16:28:45 O s h o n o r á r i o s r e c u r s a i s n o No vo Có d ig o de Processo Civil. Re v is t a d o A d v o g a d o 32 “levando em conta o trabalho adicional realizado em grau recursal”, com referência aos mesmos critérios e limites instituídos para o arbitramento dos honorários em sentença, ou seja, os previstos nos §§ 2º a 6º do art. 85. Na aplicação desses critérios e limites, merecem especial atenção as situações em que o recorrente interpõe recurso parcial, ao não impugnar parte de um capítulo da sentença ou algum dos capítulos que lhe são desfavoráveis. O recurso parcial devolverá à apreciação do tribunal apenas parte da causa, havendo o trânsito em julgado do que não houver sido impugnado (Novo CPC, arts. 1.002 e 1.013, caput; DINAMARCO, 2014, p. 110-113). Os honorários recursais deverão em decorrência ser arbitrados em atenção ao específico proveito econômico que o recorrente visa a obter com seu recurso, desconsiderando no arbitramento a parte do litígio não devolvida à apreciação do tribunal. Fixar os honorários recursais com referência a uma base de cálculo que em parte não é mais objeto de discussão proporcionaria ao advogado beneficiado um inadmissível enriquecimento sem causa. Interposto um recurso parcial, o arbitramento dos honorários recursais guardará outra peculiaridade, relativa à limitação do valor global dos honorários para a fase de conhecimento a 20% do benefício econômico obtido pelo vencedor. Tal limite deverá ser definido com referência à relevância econômica do específico capítulo de sentença impugnado no recurso, desconsiderando-se os capítulos não recorridos. Um exemplo facilitará a compreensão da questão. A sentença condena o réu a pagar R$ 200,00 e arbitra honorários de R$ 20,00. Se o réu interpuser recurso impugnando a sentença como um todo, o limite total da verba honorária para a fase de conhecimento será de R$ 40,00 e, portanto, no decorrer dos diversos recursos será possível arbitrar honorários recursais de até R$ 20,00. A situação se altera caso o réu impugne a sentença parcialmente, sustentando que deve R$ 100,00, não R$ 200,00. Nesta hipótese, a parte não impugnada da sentença transitará em julgado e restará definido de forma definitiva que o réu deve R$ 100,00 ao autor e R$ 10,00 de honorários ao seu advogado. O processo prosseguirá em sede de recurso para a discussão dos R$ 100,00 restantes, e é esse o valor que deverá ser considerado para a imposição do limite do valor dos honorários de 20% para a fase de conhecimento do processo. Considerando que, com relação a essa parte do litígio, já há uma condenação em honorários na sentença de R$ 10,00, a soma dos honorários recursais não poderá ultrapassar R$ 10,00. O valor total dos honorários para a fase de conhecimento poderá, portanto, ser de no máximo R$ 30,00: R$ 10,00 relativos à parte da condenação transitada em julgado, R$ 10,00 pertinentes à parte da condenação impugnada no recurso e R$ 10,00 de honorários recursais. Bibliografia BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. BUZAID, Alfredo. Da apelação ex-officio no sistema do Código de Processo Civil. In: Estudos de direito. v. I. São Paulo: Saraiva, 1972. p. 209-270. CAHALI, Yussef. Honorários advocatícios. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. CARNELUTTI, Francesco. Istituzioni del processo civile italiano. v. I. 5. ed. Roma: Foro it., 1956. CHIOVENDA, Giuseppe. La condanna nelle spese giudiziali. 2. ed. Roma: Foro it., 1935. Livro_126.indb 32 DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2014. ______. Instituições de direito processual civil. v. II. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009a. ______. Litisconsórcio. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2009b. GARBAGNATI, Edoardo. La sostituzione processuale. Milano: Giuffrè, 1942. GUALANDI, Angelo. Spese i danni nel processo civile. Milão: Giuffrè, 1962. LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Honorários advocatícios no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2008. 23/04/2015 16:28:45 L egitimidade recursal do amicus curiae no Novo CPC. Sumário 1.Novo CPC sim; mas novo processo civil? 2.A previsão legal do amicus curiae no Novo CPC 3. A função e a complexidade do terceiro enigmático e seus reflexos no tema recursal 4.Conclusão Bibliografia 1 Novo CPC sim; mas novo processo Com a aprovação, pelo Congresso Nacional, em dezembro de 2014, de um Novo Código de Processo Civil (CPC) – o que já era aguardado ansiosamente pela comunidade jurídica há pelo 33 Revi s t a d o A d v o g a d o civil? menos quatro anos –, vislumbra-se um período frutífero de discussões acadêmicas com vistas ao aprimoramento da ciência processual brasileiCamilo Zufelato ra em busca de maior efetividade e aderência às Doutor em Processo Civil pela Faculdade de questões prementes da Justiça Civil. Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professor de Processo Civil da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Certamente há inúmeras melhorias no bojo do novo Código; contudo, de modo geral, parece não se estar, ao menos do ponto de vista de texto legislativo, diante de uma ruptura paradigmática frente ao Código de 1973. Evidente que há importantes avanços, desde atualizações jurisprudenciais e até mesmo criação de novos institutos – nesse contexto pode-se citar a previsão expressa da figura do amicus curiae aqui em debate – po- Livro_126.indb 33 23/04/2015 16:28:45 rém, grosso modo, quer nos parecer que o Códi- autorização expressa. A jurisprudência, igualmente, go é novo, mas o processo civil brasileiro ainda tem se inclinado no mesmo sentido. se estrutura nas mesmas balizas fundamentais de L e g i t i m i d a d e r e c u r s a l d o amicu s cu riae n o Novo CPC. outrora. Rev i st a d o A d v o g a d o 34 Em resumo, a ausência de previsão legislativa não seria um impedimento para a admissão Não obstante isso, a realidade vivida pela do amicus curiae no processo civil brasileiro para Justiça Civil brasileira tem demandado soluções além daquelas hipóteses pontuais de autorização – especialmente legislativas – mais ousadas e do legislador. consentâneas com as diretrizes que o Estado Um dos pontos inovadores do Novo CPC é exa- Democrático de Direito impõe; nesse sentido, tamente a previsão generalizadora do amicus curiae, no tocante à técnica processual, há certos as- ao lado de outras formas de intervenção de terceiros, pectos que mereceriam um tratamento mais na Parte Geral do Código, o que nos parece bastante ambicioso do legislador. Um desses temas diz acertado. Na última versão do CPC de que se tem respeito exatamente à possibilidade de interpo- notícia, aquela aprovada pelo Senado em dezembro sição de recurso pelo amicus curiae, que, embo- de 2014, o tema vem tratado no art. 138.1 ra tenha sido contemplado no Novo CPC, tem poderes limitados no campo recursal, como se verá a seguir. 2 A previsão legal do amicus curiae no Novo CPC A doutrina nacional é bastante favorável à admissão de certos terceiros. O amicus curiae tem, há tempos, previsão ex- É preciso ressaltar que, desde a primeira ver- pressa no Direito brasileiro no tocante ao processo são de Projeto de Novo CPC, de autoria da Co- de controle concentrado de constitucionalidade missão de Juristas, passando pela primeira versão e em certas ações relacionadas com dados entes, aprovada pelo Senado e pela versão aprovada pela tais como a CVM, o Inpi e o Cade, o que autori- Câmara dos Deputados, em todas elas a admissão za a intervenção de tais entes nessas demandas. E do amicus curiae no processo civil sempre esteve quanto ao processo civil geral: é possível que um presente, com certa homogeneidade de conteú- terceiro intervenha em algumas demandas com do. O tema de mais evidente dissonância entre as o escopo de aportar melhores elementos de for- versões acima apontadas é exatamente a possibi- mação da convicção do julgador acerca do objeto lidade de o amicus curiae apresentar recurso na litigioso em discussão? Não há qualquer previsão demanda que pretende integrar ou já integra. legal genérica que autorize essa modalidade de intervenção, ao mesmo tempo em que não existe, igualmente, proibição expressa. Nesse limbo legislativo, a doutrina nacional é bastante favorável à admissão de certos terceiros – pode-se dizer com características enigmáticas, na feliz expressão de Scarpinella Bueno, à medida que essa não se confunde com as outras e tradicionais formas de intervenção de terceiros contempladas pelo CPC – mesmo que não exista Livro_126.indb 34 1. Do amicus curiae. “Art. 138 - O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a manifestação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de quinze dias da sua intimação. § 1º - A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos. § 2º - Caberá ao juiz ou relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae. § 3º - O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.” 23/04/2015 16:28:45 em que o tema da possibilidade e legitimidade com acerto, sustenta que o amicus seja dotado de recursal do amicus curiae se destaca: i) da deci- amplos poderes recursais: são que denega a sua não intervenção no processo “Essas considerações são suficientes, acredi- (possibilidade recursal) e ii) da decisão de mérito tamos, para reconhecer ao amicus curiae legiti- no processo no qual foi admitida a sua intervenção midade recursal ampla o suficiente para que ele (legitimidade recursal). Quanto ao primeiro mo- tutele, em juízo, adequadamente os interesses e mento (i), a versão aprovada nega expressamente os direitos que justificam sua intervenção. Do a possibilidade de o amicus recorrer da decisão mesmo modo que acentuamos acima, devem ser monocrática acerca da sua admissão ao processo, reconhecidos ao amicus poderes correlatos à sua e o segundo momento (ii) restringe a possibilidade atuação em juízo, os ‘poderes recursais’ não po- de recurso do amicus tão somente quando se tratar de deriam ser outros ou menores. Assim, mesmo na incidente de resolução de demandas repetitivas – qualidade de mero ‘auxiliar da justiça’, no sentido a contrario sensu, não teria legitimidade recursal mais tradicional do termo, não há como afastar, quando a intervenção se desse em demanda de para o amicus curiae, a incidência do mesmo re- outra natureza. gime jurídico que a doutrina reconhece a eles no Vale frisar que na hipótese (ii) até há um certo que diz respeito à sua legitimidade recursal. Po- avanço em relação às duas primeiras versões de derá o amicus, pois, recorrer na medida em que Novo CPC, que expressamente excluíam a legi- a decisão proferida no processo (na causa ou no timidade recursal do amicus para toda e qualquer incidente, pouco importa) que interveio ou que hipótese. poderia intervir o prejudique ‘em nome próprio’, É sabido que o tema da legitimidade recursal do amicus curiae é bastante controvertido. é dizer, ajustando-se os termos para afiná-los à razão de ser da intervenção do amicus, desde que a Na legislação especial, a Lei nº 6.385/1976, decisão afete, em alguma medida, os ‘interesses’ que trata da CVM, prevê ao amicus uma espé- que justificam a sua intervenção. Para valermo- cie de legitimidade recursal subsidiária, e a Lei -nos do nome que nos parece o mais correto para nº 9.469/1997, que dispõe sobre a intervenção da designar esse fenômeno, desde que o proferimento União nas causas em que figurarem, como auto- da decisão afete, em alguma medida, o interesse res ou réus, entes da administração indireta, au- institucional do amicus curiae”. 2 toriza que certos entes recorram na demanda na qual intervieram. 3 Mas e para além dessas hipóteses? L e g i t i m i d a d e r e c u r s a l d o amicu s cu riae n o Novo CPC. Na doutrina, Scarpinella Bueno (2012, p. 513), 35 Revi s t a d o A d v o g a d o Basicamente, há dois momentos processuais Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), é bem verdade que no julgamento da ADI nº 3.615, em 2008, o STF entendeu, por 6 votos a 2, pela impossibilidade de o amicus recorrer. 2.Art. 31, § 3º: “A comissão é atribuída legitimidade para interpor recursos, quando as partes não o fizeram”. 3.“Art. 5º - A União poderá intervir nas causas em que figurarem, como autoras ou rés, autarquias, fundações públicas, sociedades de economia mista e empresas públicas federais. Parágrafo único - As pessoas jurídicas de direito público poderão, nas causas cuja decisão possa ter reflexos, ainda que indiretos, de natureza econômica, intervir, independentemente da demonstração de interesse jurídico, para esclarecer questões de fato e de direito, podendo juntar documentos e memoriais reputados úteis ao exame da matéria e, se for o caso, recorrer, hipótese em que, para fins de deslocamento de competência, serão consideradas partes.” Livro_126.indb 35 Contudo, ainda que sem enfrentar diretamente o tema aqui em análise, em importante decisão mais recente, na ADI nº 5.022-MC/RO, de 16 de outubro de 2013, o relator ministro Celso de Mello aponta a importância da efetiva participação do amicus curiae no processo perante o STF, e se posiciona francamente favorável à expansão de poderes processuais, sob pena, em não sendo assim, de frustrar os objetivos políticos, sociais e 23/04/2015 16:28:45 L e g i t i m i d a d e r e c u r s a l d o amicu s cu riae n o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 36 jurídicos visados pelo legislador ao prever a sua preciso ter presente a excepcionalidade das deci- admissão. sões monocráticas na seara do princípio do duplo E assevera: grau de jurisdição, de modo que deixar à mercê “Cumpre permitir, desse modo, ao ‘amicus de um único julgador a apreciação acerca da via- curiae’, em extensão maior, o exercício de deter- bilidade ou não da intervenção do amicus curiae, minados poderes processuais. Esse entendimento sob pena de, ao ser incensurável tal decisão, invia- é perfilhado por autorizado magistério doutriná- bilizar a participação institucional desse terceiro, rio, cujas lições acentuam a essencialidade da é bastante grave. participação legitimadora do ‘amicus curiae’ nos processos de fiscalização abstrata de constitucionalidade [...] ou, ainda, a faculdade de solicitar a realização de exames periciais sobre o objeto ou sobre questões derivadas do litígio constitucional ou a prerrogativa de propor a requisição de informações complementares, bem assim a de pedir a O Novo CPC previu que a decisão monocrática do juiz ou relator que aprecia o pedido de intervenção do amicus é irrecorrível. convocação de audiências públicas, sem prejuízo, como esta Corte já o tem afirmado, do direito de E quanto à legitimidade recursal do amicus recorrer de decisões que recusam o seu ingresso para impugnar a decisão que julgar incidente de formal no processo de controle normativo abs- resolução de demanda repetitiva, como se verá a trato. Cabe observar que o Supremo Tribunal seguir, também merece críticas por ser restritiva. Federal, em assim agindo, não só garantirá maior efetividade e atribuirá maior legitimidade às suas decisões, mas, sobretudo, valorizará, sob uma perspectiva eminentemente pluralística, o sentido 3 A função e a complexidade do terceiro enigmático e seus reflexos no tema recursal essencialmente democrático dessa participação processual, enriquecida pelos elementos de infor- É bem verdade que o tema de legitimidade mação e pelo acervo de experiências que o ‘ami- recursal atribuída a terceiro é complexo e polêmi- cus curiae’ poderá transmitir à Corte Constitucio- co. O Direito vigente, ao contemplá-lo, se pauta nal, notadamente em um processo – como o de exclusivamente na dimensão individual do prejuí- controle abstrato de constitucionalidade – cujas zo sofrido pelo terceiro que não participou da de- implicações políticas, sociais, econômicas, jurídi- manda, de modo que o recurso de terceiro preju- cas e culturais são de irrecusável importância, de dicado tem conotação nitidamente individualista. indiscutível magnitude e de inquestionável signi- Nesse sentido, deve ser analisada a expressão nexo ficação para a vida do País e a de seus cidadãos”. de interdependência entre o interesse do terceiro O Novo CPC, contudo, quando regulamentou o tema dos recursos para o amicus curiae, pre- de intervir e a relação jurídica submetida à apreciação judicial, do § 1º do art. 499 do CPC.5 viu que a decisão monocrática do juiz ou relator que aprecia o pedido de intervenção do amicus é irrecorrível, seguindo idêntica posição do art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/1999. Sobre esse ponto temos forte divergência, acompanhando doutrina de escol que critica a solução de irrecorribilidade.4 É Livro_126.indb 36 4.Cfr. BUENO, 2012, p. 183; DEL PRÁ, 2004, p. 72 e ss.; BINENBOJM, 2002, p. 162. 5.“[...] o interesse em intervir é que resulta do ‘nexo de interdependência’ entre a relação jurídica de que seja titular o terceiro e a relação jurídica deduzida no processo, por força do qual, precisamente, a decisão se torna capaz de causar prejuízo àquele” (BARBOSA MOREIRA, 2009, p. 294). 23/04/2015 16:28:46 com essa relação de interdependência de natureza que portanto a sua plena atuação processual, in- individual com a questão posta na demanda. Sua clusive na fase recursal, faz-se indispensável. atuação se dá em função da defesa de um interes- Um exemplo são as demandas vocacionadas se institucional discutido na causa, para o qual à formação de precedentes judiciais vinculantes, ele é legítimo portador de elementos de formação outra novidade do Código – art. 924 e ss. Embo- do convencimento judicial. Ou, nas palavras do ra não necessariamente estarão revestidas pelo tal próprio Novo CPC, ele goza de representatividade incidente, o julgamento dessas ações paradigmá- adequada na manifestação sobre certos assuntos. ticas reverberará na esfera jurídica de muitos su- Ainda que o Novo Código fale que nessa atua- jeitos, e portanto é condição sine qua non para a ção se deem assuntos de relevância da matéria legitimidade democrática da decisão judicial que discutida, especificidade do tema, ou ainda que se imporá, tal como lei, que tenha havido a partici- tenha repercussão social, sem dúvida a questão pação de entes que aportem ao debate processual dos reflexos extra-autos que decorrerão daquele interesses institucionais de todos esses sujeitos julgamento é o elemento fulcral para legitimar a atingidos pelo precedente vinculante. intervenção do amicus. 6 Para a hipótese de recursos especial e extraor- Não há dúvidas de que o amicus curiae é o ente dinário repetitivos, é bem verdade que o Novo apto a permitir a participação, no e pelo processo, Código permite que, “considerando a relevância de interesses institucionais indispensáveis para o da matéria e consoante dispuser o regimento inter- julgamento da causa, num modelo de contradi- no, o relator poderá solicitar ou admitir manifesta- tório cooperativo cuja decisão de mérito ganha ção de pessoas, órgão ou entidades com interesse legitimidade democrática em função dessa par- na controvérsia” (art. 1.035, § 2º), o que pode solu- ticipação, já que são causas com repercussão ou cionar o problema da intervenção do amicus em abrangência sociais consideráveis. fase recursal, mas, para além desses dois recursos, O próprio Novo CPC é pródigo em estabelecer não há a previsão expressa de admissão desses entes a forte conexão entre processo civil e Constituição em outras hipóteses, como em casos singulares que Federal, tais como os arts. 1º, 6º, 7º, 8º, dentre outros, poderão dar origem à súmula. nos quais se vê claramente a relevância da coope- E ainda: não se pode esquecer a modalidade de ração processual e o contraditório efetivo, todos processo civil de interesse público, v.g., as ações elementos que estão no centro da figura do amicus. que promovem controle judicial de políticas Para além desse aspecto que destaca a dimen- públicas, que muito embora não se qualifiquem são coletiva de certas demandas, para as quais o como atuação do incidente de resolução de de- Novo Código criou o incidente de resolução de mandas repetitivas, são notadamente marcadas demandas repetitivas, é preciso lembrar que há por uma relevância social, política, econômica e várias outras hipóteses que não se subsumem à hi- jurídica que justificará a intervenção de amicus pótese de aplicação do referido incidente, mas que curiae. Para essa hipótese estaria excluída a sua le- L e g i t i m i d a d e r e c u r s a l d o amicu s cu riae n o Novo CPC. certamente autorizam a intervenção do amicus, e 37 Revi s t a d o A d v o g a d o O amicus não intervém em processo alheio gitimidade recursal por não se tratar de incidente 6.Há mesmo quem critique o Código ao ter inserido a questão da especificidade do tema: “Portanto, pensamos que a especificidade do objeto não pode ser requisito genérico, nem autônomo, para a admissão do amicus curiae no processo, sob pena de se sobreporem objetivos e hipóteses distintas (intervenção do amicus curiae e poderes instrutórios do juiz) e de se confundir a função do amicus curiae com a do perito, por exemplo” (DEL PRÁ, 2011, p. 312). Livro_126.indb 37 de resolução de demandas repetitivas. Enfim, esses são alguns exemplos de situações nas quais é indispensável para o processo civil cooperativo a legitimidade recursal do amicus curiae. 23/04/2015 16:28:46 Evidente que, caso o tribunal reconheça legi- cia pedido de intervenção do amicus, e na restri- timidade recursal ao amicus curiae – o que já é ção à legitimidade recursal da decisão que julgar previsto no incidente –, todos os seus consectários o incidente de resolução de demandas repetitivas, deverão estar presentes, com destaque para a pos- há visivelmente um tratamento restritivo, incoe- sibilidade de sustentação oral. rente com a visão democrática que o Código se L e g i t i m i d a d e r e c u r s a l d o amicu s cu riae n o Novo CPC. Em resumo, a legitimidade recursal é um pon- Re v is t a d o A d v o g a d o 38 autoatribui. to importantíssimo nos poderes processuais do Ambas as soluções, a que exclui a possibilidade amicus curiae, de modo que limitá-la é, por con- de recorrer e a que limita a legitimidade recursal sequência, enfraquecê-lo. ao tema da demanda, certamente são influenciadas pela já conhecida tônica de restrição ao duplo 4 Conclusão grau de jurisdição fundada no excesso de recursos nos tribunais. Ocorre que essa solução não condiz A partir da função indispensável que o amicus com a promessa de democratização do processo curiae desempenha no modelo de contraditório civil que está na base da existência de um “Novo” dialético, plural e cooperativo, esteios da dimen- CPC. são constitucional do processo civil brasileiro Com efeito, e a partir do relevante papel que contemporâneo, e também a partir das inovações o amicus curiae deve desempenhar no – aí sim – que o Novo Código aporta, especialmente os novo processo civil brasileiro, acreditamos que a precedentes com força obrigatória, as demandas melhor proposta para o tema da legitimidade re- repetitivas e o julgamento de demandas de alto cursal é a ampliação irrestrita para toda e qual- valor axiológico, em que pese o avanço que pode quer hipótese de decisão judicial que possa acar- representar a previsão expressa da admissão geral retar prejuízo ao interesse institucional defendido desse terceiro nas demandas civis, no tema recur- pelo amicus. Qualquer limitação é incompatível sal o tratamento dado é incompatível com o que com as premissas estabelecidas pelo próprio CPC. se espera de um Código vocacionado a estipular Caberá aos tribunais, concretamente, num a participação no e pelo processo como se tem exercício de interpretação constitucional do Novo propalado. Código, a tarefa de alargar o cabimento e a legiti- Nos dois temas recursais que tratou, ou seja, a inadmissibilidade de recurso da decisão que apre- midade recursal do amicus, em nome da efetividade do processo civil atual. Bibliografia BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 15. ed. Rio de Janeiro: 2009. sobre o amicus curiae na ADIn e sua legitimidade recur- BINENBOJM, Gustavo. Democratização da jurisdição sal. In: DIDIER JUNIOR, Fredie; WAMBIER, Teresa constitucional e o contributo da Lei 9.868/99. In: Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre SARMENTO, Daniel (Org.). O controle de constitu- os terceiros no processo civil e assuntos afins. São Paulo: cionalidade e a Lei 9.868/99. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. Livro_126.indb 38 DEL PRÁ, Carlos Gustavo Rodrigues. Breves considerações Revista dos Tribunais, 2004. p. 59-80. ______. Primeiras impressões sobre a participação do amicus BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil curiae segundo o Projeto de Novo Código de Processo Civil brasileiro: um terceiro enigmático. 3. ed. São Paulo: Saraiva, (art. 322). Revista de Processo, São Paulo: Revista dos 2012. Tribunais, v. 194, p. 307-315, abr. 2011. 23/04/2015 16:28:46 (In) devido processo legislativo e o Novo Código de Processo Civil. O Novo Código de Processo Civil (CPC) foi aprovado. Foi a notícia que, em 17 de dezembro de 2014, percorreu o Brasil todo. O que ninguém sabia àquela altura – e, certamente por isso, foram tantas as comemorações que, de norte a sul e de leste a oeste, tomaram o país naquele dia, com notícias sobre a tal aprovação nos mais variados veículos de comunicação, inclusive os não jurídiem um verdadeiro limbo destinado à “revisão” de seu texto. Foram necessários mais de dois meses para que ela fosse concluída e para que, em 24 de fevereiro de 2015, o texto final fosse finalmente Cassio Scarpinella Bueno Advogado, mestre, doutor e livre-docente enviado à sanção presidencial. Os quinze dias úteis para sanção presidencial em Direito Processual Civil. Professor da Facul- (art. 66, § 3º, da Constituição Federal – CF) fo- dade de Direito da PUC-SP. Membro e dire- ram consumidos integralmente e somente em 16 tor de Relações Institucionais do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do de março de 2015 é que o texto foi sancionado Instituto Ibero-Americano de Direito Proces- pela presidente da República, seguindo-se a sua sual e da Associação Internacional de Direito Processual. Integrou a Comissão Revisora do publicação no Diário Oficial da União no dia 17 Anteprojeto de Novo CPC no Senado. Autor de março de 2015, dia de início da vacatio legis de de 20 livros e de diversos artigos científicos. 39 Revi s t a d o A d v o g a d o cos – é que o “Novo CPC” entraria, desde então, um ano para sua entrada em vigor, previsto no seu art. 1.045. Há variadas formas de se lidar com o novo Código agora que ele está publicado oficialmente. Para cá, importa destacar faceta pouco explorada, muito pouco, aliás, que se relaciona e se justifica na perspectiva do processo legislativo. Sim, porque, para aquele que se limita a conhecer o Livro_126.indb 39 23/04/2015 16:28:46 ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i slativo e o No vo Código de Processo Civil. Rev i st a d o A d v o g a d o 40 Livro_126.indb 40 Novo CPC a partir do que foi publicado no Diá- ciso por inciso, alínea por alínea e parágrafo por rio Oficial, não há como verificar a quantidade de parágrafo, deveria prevalecer. Nada de modifica- modificações que o seu texto apresenta quando ções substanciais; nada de estabelecer um terceiro comparado – como deve ser – com os projetos que parâmetro normativo que não guardasse relação lhe antecederam. com os projetos anteriores, aprovados em cada Nesse sentido, esse pequeno texto quer estimular a comunidade de estudiosos do Direito Proces- uma das casas legislativas, com seus erros e acertos, suas virtudes e seus defeitos. sual Civil a também levar em consideração, nas Em 17 de dezembro de 2014, foi aprovado e suas reflexões sobre o Novo CPC, a matéria-prima votado no plenário do Senado Federal o relatório que antecedeu a sua promulgação e a sua publi- apresentado pelo senador Vital do Rêgo, o Parecer cação no Diário Oficial. Não só porque conhe- nº 956/2014, cujo anexo representava, é o que se lê cê-la pode ofertar importantes elementos para a do relatório, o texto submetido à votação. A apro- sua mais adequada compreensão – inclusive para vação foi praticamente total, com exclusão do que constatar que muitas das novidades do Novo CPC acabou constando de outro parecer, de número já tinham sido apresentadas pelo anteprojeto ela- 1.099/2014, identificado como adendo ao Parecer borado pela Comissão de Juristas –, mas, sobretu- nº 956/2014. do – e é isso que cabe relevar aqui e agora –, para permitir a análise do Novo CPC a partir do indispensável devido processo legislativo que antecedeu aqueles seus momentos culminantes. Pode parecer desnecessário lembrar, mas é fundamental que se tenha presente que o antepro- Qual texto foi efetivamente aprovado pelo Senado Federal em 17 de dezembro de 2014? jeto elaborado pela Comissão de Juristas presidida pelo ministro Luiz Fux deu início ao processo le- No Parecer nº 1.099/2014 estão identificadas gislativo no Senado Federal. O projeto respectivo algumas correções redacionais e alguns “erros (PLS nº 166/2010) foi aprovado naquela casa le- materiais” constantes do Parecer nº 956/2014 e a gislativa em dezembro de 2010, sendo enviado em aprovação ou a rejeição dos destaques efetuados seguida para revisão à Câmara dos Deputados, pelo Senado na referida sessão do dia 17 de de- onde passou a tramitar sob o número 8.046/2010. zembro de 2014. Em março de 2014, com a votação dos destaques A leitura do referido Parecer nº 1.099/2014 des- feitos em dezembro de 2013, quando o texto básico perta, desde logo, uma indagação: se havia corre- fora aprovado na Câmara, o projeto foi aprovado ções redacionais e “erros materiais” a serem sana- naquela outra casa legislativa. Como se tratava de dos, bem assim, mera menção ao acolhimento ou verdadeiro substitutivo de projeto de lei, conside- à rejeição dos destaques dos senadores na sessão de rando a quantidade e a qualidade das modifica- 17 de dezembro de 2014, qual texto foi efetivamente ções aprovadas na Câmara, o projeto retornou ao aprovado pelo Senado Federal em 17 de dezem- Senado, casa iniciadora do projeto, por força do bro de 2014? A resposta parece ser: o texto aprova- parágrafo único do art. 65 da CF. do pelo plenário do Senado é o anexo ao Parecer Na última etapa do processo legislativo, que nº 956/2014. No entanto, aquele texto precisava então teve início, a atividade do Senado era limi- ser lido a partir dos elementos constantes do seu tada à confrontação dos dois projetos aprovados e adendo, o Parecer nº 1.099/2014, que, como acabei à escolha de qual dos dois, artigo por artigo, in- de escrever, revela, é essa a grande verdade, que 23/04/2015 16:28:46 texto fechado; era um texto a ser fechado. Sim, Parecer nº 1.099/2014. um texto a ser fechado, ainda escrito (ou reescri- Mas não só. Já no texto aprovado pelo Senado to) em tudo aquilo que o Parecer nº 1.099/2014 Federal em 17 de dezembro de 2014 – aquele que indicava como apuro redacional ou como erro acompanhou o Parecer nº 956/2014 –, são varia- material. E mais ainda para incluir os diversos dos os dispositivos que não encontram fundamen- destaques aprovados pelo plenário na sessão de 17 to, claro, explícito ou direto, nos projetos revisados de dezembro de 2014. Dentre eles, dois institutos por aquela casa legislativa na derradeira etapa dos que não constavam do Parecer nº 956/2014: a con- trabalhos legislativos. Nada, isso é certo, compa- versão da ação individual em ação coletiva (que rável com o número de modificações da “revisão acabou sendo vetado pela presidente da República final”, mas, mesmo assim, um número considerá- com base em razões pífias) e o prolongamento do vel e que não pode passar despercebido pelo estu- julgamento não unânime em determinadas cir- dioso do Direito Processual Civil. cunstâncias, que veio para substituir os embargos infringentes abolidos do Novo CPC. trastar artigo por artigo, inciso por inciso, alínea A circularidade da afirmação, que decorre do por alínea, parágrafo por parágrafo do que foi que se lê do próprio Parecer nº 1.099/2014, im- finalmente publicado como Lei nº 13.105, de 16 pressiona: o texto aprovado no plenário do Senado de março de 2015, no Diário Oficial da União Federal era um texto a ser completado. Quem o de 17 de março de 2015, com o que foi aprovado faria, contudo, se não havia mais sessões no Senado no Senado Federal em 17 de março de 2014 (o Federal em 2014 e o ano legislativo encerrar-se-ia Parecer nº 956/2014) e com o que saiu daquela ao fecho daquela legislatura? casa legislativa em 24 de fevereiro de 2015 rumo Sem querer ofertar nenhuma resposta a essa à sanção presidencial (o Parecer nº 956/2014 “re- pergunta, importa constatar que o trabalho final visado” pelos elementos do Parecer nº 1.099/2014, a ser elaborado a partir de então teria que seguir que deu ensejo ao Parecer nº 1.111/2014, que, em à risca as “instruções” do Parecer nº 1.099/2014 e rigor, é o texto da Lei nº 13.105/2015 publicada que essa observância era (seria) essencial para que como Código de Processo Civil no DOU de 17 o texto final representasse a vontade do Senado de março de 2015, excetuados, evidentemente, os Federal alcançada na sessão do dia 17 de dezem- vetos presidenciais). bro de 2014. Livro_126.indb 41 Tarefa que se põe para todos, agora, é con- ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i s lativo e o No vo Código de Processo Civil. das (e, nesse sentido, querendo ser justificadas) no 41 Revi s t a d o A d v o g a d o aquele texto do Parecer nº 956/2014 não era um Há várias vozes que já se levantaram em re- Foi esse o instante em que o limbo anuncia- lação aos questionamentos até agora insinuados, do de início teve início, um período, isso também afirmando que as modificações efetuadas foram já foi evidenciado, que durou pouco mais de dois “meramente redacionais”. No entanto, não há meses, findando apenas em 24 de fevereiro de como deixar de perguntar: quais os limites de 2015. uma alteração “meramente redacional”? A per- O que chocou todos aqueles que vinham gunta é pertinentíssima porque o necessário uso acompanhando os trabalhos legislativos é que o da linguagem nos textos jurídicos, substrato escri- texto que acabou saindo do Senado Federal, na- to que enseja a extração das normas jurídicas, é quele dia 24 de fevereiro de 2015, apresentava um tema fundamental para a Teoria Geral do Direito sem-número de modificações em relação ao texto e até para a Filosofia do Direito. Tudo a recomen- do Parecer nº 956/2014. Alterações que vão muito dar muito cuidado na realização de quaisquer alte- além das alterações e das modificações anuncia- rações redacionais. Um simples pronome ou uma 23/04/2015 16:28:46 ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i slativo e o No vo Código de Processo Civil. Re v is t a d o A d v o g a d o 42 Livro_126.indb 42 mera preposição que seja alterada, um tempo ver- nado em 17 de dezembro de 2014, isto é, o texto bal modificado, uma palavra substituída, uma vír- que acompanhou o Parecer nº 956/2014. É aces- gula a mais ou a menos, tudo isso pode dar ensejo sar o seguinte endereço eletrônico para lê-lo na à construção de normas diversas, porque geradas, íntegra e confirmar como os textos lá destacados em última análise, a partir de textos diversos. As- em amarelo evidenciam o acerto do que vim de sim, reescrever um texto jurídico pode ir, mesmo escrever: <http://www.senado.gov.br/atividade/ que inconscientemente, além do mero ajustar ou materia/getDocumento.asp?t=158926>. aperfeiçoar sua redação. Realocar e desdobrar artigos, idem. Sua nova posição, quando contrastada com a anterior, sempre dará ensejo a interpretações que poderão levar em consideração, inclusive, o local em que inserido este ou aquele dispositivo. Em suma, o Direito depende de textos que, inter- O Direito depende de textos que, interpretados, ensejam as normas jurídicas. pretados, ensejam as normas jurídicas. Como garantir que alterações, mesmo quando “meramente É certo que esse quadro não contém a “re- redacionais”, não darão ensejo à formulação de no- visão” derivada do Parecer nº 1.099/2014, mas, vas ou diversas normas jurídicas? como escrito acima, não havia como aquela re- O que ocorre, de qualquer sorte, é que a jus- visão desviar-se dos limites nele indicados, todos tificativa acima indicada, de que as alterações te- eles claríssimos. E, não obstante, como aquela riam sido meramente redacionais, parece supor revisão foi muito além daqueles limites, a leitura que ninguém leu o que o Senado aprovou em 17 do texto produzido em seguida, findo o limbo re- de dezembro de 2014 ou, se leu, não tinha pre- visional (o Parecer nº 1.111/2014), revela a outra fa- sente, como deveria ter, o que havia sido aprova- ceta já enunciada: é o caso de compará-lo com os do no PLS nº 166/2010 (de dezembro de 2010) trabalhos legislativos anteriores para constar em e no PL nº 8.046/2010 (em dezembro de 2013 e que medida houve exorbitância dos limites impos- em março de 2014). Trata-se, assim, de assumir tos àquela derradeira revisão. É ler aqui também que não havia memória nenhuma dos trabalhos o que foi divulgado pelo próprio Senado Federal legislativos anteriores àquele instante do processo como “autógrafo enviado à sanção” no seguinte legislativo e, nessa condição, nenhuma resistência endereço eletrônico: <http://www.senado.gov.br/ poderia ser oposta eficazmente ao que acabou se atividade/materia/getPDF.asp?t=160811&tp=1>. transformando, primeiro, no já mencionado Pare- O fato é que quaisquer diferenças entre aque- cer nº 956/2014 e, depois, no referido Parecer nº les textos – e há, sem exagero nenhum, centenas 1.111/2014 e, consequentemente, no Novo CPC. delas – precisam ser bem analisadas para saber se A segurança na afirmação do parágrafo an- são mesmo “meramente redacionais”, se são meros terior reside em uma leitura que se faça de cada apuros de técnica legislativa ou se, travestidas disto um daqueles documentos legislativos. É o próprio e daquilo, vão além, extravasando dos limites que Senado Federal, aliás, que publicou na sua pági- o art. 65 e seu respectivo parágrafo único da CF na da internet interessantíssimo quadro compa- impõem ao “devido processo legislativo” quando rativo com o CPC atual (e ainda em vigor até o da devolução do projeto da casa revisora (a Câmara dia 17 de março de 2016), o projeto do Senado dos Deputados) à casa iniciadora (Senado Federal). (PLS nº 166/2010), o projeto da Câmara (PL nº Parece ser possível agrupar tais modificações em 8.046/2010) e a “suma” afinal aprovada pelo Se- quatro grupos, que servem tanto para o texto final 23/04/2015 16:28:46 do Senado (o Parecer nº 956/2014) como para – e tos e vírgulas apenas para separar as regras dos sobretudo – o texto que, findo o limbo, foi enviado diversos incisos entre si. Sua enumeração seria à sanção presidencial (o Parecer nº 1.111/2014). impossível no espaço reservado para esse pequeno O segundo grupo são modificações que, ao reuniões de artigos tais quais aprovados pelo Se- que tudo indica, querem aprimorar a técnica le- nado Federal em 17 de dezembro de 2014, reúne gislativa, pelo menos aquela até então empregada tão vastos quanto interessantes exemplos. em nove meses de debate no Senado Federal, de março a dezembro de 2014. O terceiro grupo representa desmembramentos ou junções de dispositivos. Uma situação bem ilustrativa está no dispositivo que disciplinava, ao mesmo tempo, o que vem sendo chamado “negócio processual” – ou, de forma mais pomposa e mais interessante, “cláusula O quarto grupo, o último, reúne as hipóteses geral de negociação processual” – e o calendário que, não se amoldando em nenhum outro dos três que as partes e o juiz podem construir em con- grupos, representa texto novo. junto. O texto aprovado no projeto da Câmara e Não é difícil, infelizmente, ilustrar cada um desses quatro grupos. Com relação às múltiplas alterações redacionais, basta ler o texto do Novo CPC, tal qual Livro_126.indb 43 O terceiro grupo, sobre desmembramentos ou o texto aprovado, na última fase de deliberação parlamentar, pelo Senado, estavam em um só dispositivo legal: o art. 191 do PL nº 8.046/2010, correspondente ao art. 189 do Parecer nº 956/2014. publicado no DOU de 17 de março de 2015. Do Após o limbo revisional, os negócios processuais primeiro ao último artigo – e, também aqui, não passaram a ocupar o art. 190; o calendário, o art. 191. há exagero nenhum na afirmação – há modifi- O mais interessante dessa separação repousa cações meramente redacionais. Seja no texto na sua consequência: uma vez separados os dis- aprovado no Senado Federal em 17 de dezembro positivos, tais quais sancionados e publicados no de 2014; seja – e sobretudo – no texto que, após Diário Oficial, é possível que o magistrado exerça o limbo que teve início naquele dia e findou-se controle sobre o calendário processual com a mes- apenas em 24 de fevereiro de 2015, foi enviado à ma intensidade e pelos mesmos fundamentos que sanção presidencial. exerce sobre os negócios processuais? A questão Para ilustrar a afirmação, basta constatar a é pertinente porque o que era um só § 4º para substituição do verbo “velar” empregado pelo art. ambas as figuras passou a ser o parágrafo único 7º do projeto do Senado e pelo art. 7º do projeto do art. 190 (que só trata dos negócios processuais), da Câmara por “zelar” no Parecer nº 956/2014 – silenciando-se, a respeito, o art. 191, que só se ocu- embora, nos arts. 139, inciso II, e 196, leia-se, ain- pa com o calendário processual. da, “velar” – e as inúmeras, cansativas, insistentes Qualquer justificativa dessa alteração esbar- e desnecessárias inversões e desinversões de ora- ra na interpretação daquele dispositivo, tal qual ções ao longo de todo o texto, artigo após artigo. redigido, com um caput e quatro parágrafos na O segundo grupo é bem ilustrado pela elimi- origem, que, ao menos em tese, poderia se dirigir nação de todos os pontos e vírgulas que se encon- a um ou a outro sentido. O desmembramento do travam em um mesmo artigo, um mesmo inciso, artigo em dois quer impor uma forma de interpre- uma mesma alínea ou um mesmo parágrafo. Ao tar a novel figura e sua forma de controle, precon- que tudo indica, a técnica legislativa, pelo menos dicionando o intérprete que, até por desconhecer a empregada no Novo CPC, manda reservar pon- a matéria-prima do processo legislativo, natural- ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i slativo e o No vo Código de Processo Civil. tivamente são meramente redacionais. trabalho. 43 Revi s t a d o A d v o g a d o O primeiro grupo é de modificações que obje- 23/04/2015 16:28:46 mente prender-se-á (e limitar-se-á) ao texto que sos I e II, e 983 do Parecer nº 956/2014 com os arts. aparece no Diário Oficial. 977, incisos I a III, e 986 do Parecer nº 1.111/2014, O que importa destacar para cá, contudo, é ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i slativo e o No vo Código de Processo Civil. que, ainda que o entendimento que venha a pre- Re v is t a d o A d v o g a d o 44 Livro_126.indb 44 sendo certo que nenhuma instrução a esse respeito reside no Parecer nº 1.099/2014. valecer na doutrina e na jurisprudência seja o de Os exemplos relativos ao que acima chamei que os calendários estão fora do controle judicial, de quarto grupo são os mais variados e os mais porque o juiz participa de sua elaboração (art. 191, distintos. Há diversos dispositivos, tanto no texto caput, da redação final do Novo CPC), importa final aprovado pelo Senado Federal (sempre o Pa- que ele derivasse do texto efetivamente aprovado recer nº 956/2014, mesmo quando lido ao lado de pelo Senado Federal a partir do projeto da Câma- seu “adendo”, o Parecer nº 1.099/2014) como na ra, que nunca aprovou o que, agora, está no texto “revisão” do texto enviado à sanção presidencial (o do Novo CPC, dividido em dois artigos. Parecer nº 1.111/2014), que simplesmente não en- Outra situação interessante de desmembramento de dispositivos está no parágrafo único do art. 1.030. Ao isolar naquele parágrafo a regra quanto à inexistência de juízo de admissibilidade contram correspondência com o que está no PLS nº 166/2010 e no PL nº 8.046/2010. Para fins didáticos, cabe distinguir, nesse quarto grupo, dois blocos de situações. perante os Tribunais de Justiça e Regionais Fede- O primeiro são situações objetivamente cons- rais dos recursos extraordinários e/ou especiais, a tatáveis em que a colocação dos artigos correspon- revisão final quis viabilizar um eventual veto pre- dentes do PLS nº 166/2010 e do PL nº 8.046/2010 sidencial considerando o evidente impacto que a lado a lado revela com clareza a falta de corres- nova regra gera aos Tribunais Superiores? A per- pondência entre eles e o que aparece como texto gunta, a despeito de ter se mostrado meramente consolidado (Parecer nº 956/2014) ou como autó- retórica, porque o dispositivo não foi vetado, mos- grafo enviado à sanção presidencial (Parecer nº tra o quão longe se pode chegar ao desmembrar 1.111/2014). Um exemplo, dentre vários, é o § 3º (ou juntar), ainda que sob as vestes de apuro de do art. 1.009 do Novo CPC, sobre a recorribilidade técnica legislativa e/ou redacional, artigos. por apelação de decisões que, não fossem resolvi- Longe da especulação, caso concreto de des- das pela sentença, desafiariam agravo de instru- dobramento que acarretou alteração (indevida) de mento. Também há casos em que se alcança a regra encontra-se nos legitimados ativos para a revi- mesma conclusão em perspectiva invertida, isto são da tese fixada no julgamento do novel incidente é, quando a comparação, lado a lado, dos disposi- de resolução de demandas repetitivas. O texto final- tivos projetados e aprovados, revela a ausência de mente aprovado pelo Senado Federal – que, em si elemento que, por constar dos projetos ou, ao me- mesmo considerado, não é imune a críticas sobre nos de um deles, deveria estar presente na versão sua elaboração porque difere, em larga escala, dos final à falta, justamente, de outra correspondência textos aprovados no PLS nº 166/2010 e no PL possível. Exemplo seguro dessa hipótese, também nº 8.046/2010 – previa, clara e inequivocamente, dentre vários, é a ausência de recorribilidade por a legitimidade das partes, do Ministério Público e agravo de instrumento da decisão que indefere limi- da Defensoria Pública para aquele fim. Por força de narmente a reconvenção, que era o § 3º do art. 344 um desdobramento do art. 974, efetuado no lim- do PL nº 8.046/2010 e que não encontra similar bo revisional, a legitimidade para a revisão acabou em toda a disciplina dada pelo Novo CPC à re- sendo limitada ao Ministério Público e à Defenso- convenção (art. 343) nem nas hipóteses sujeitas a ria Pública. É contrastar os textos dos arts. 974, inci- agravo de instrumento (art. 1.015). 23/04/2015 16:28:46 casos em que o apontamento das novas regras de- reito Processual Civil a se debruçar sobre o Novo pende de análise conjunta de diversos dispositi- CPC também nessa perspectiva e para essa mes- vos e o cuidadoso exame que deve ser feito na sua ma finalidade.1 Trata-se, assim, de convidar todos comparação para justificar o texto final à luz dos a que se voltem ao exame do processo legislativo – dois projetos, sempre entendidos o que foi apro- o devido processo legislativo, porque outro não vado pelo Senado Federal em 2010 e na Câmara deve haver em terras constitucionais brasileiras – dos Deputados em dezembro de 2013 e em março que gerou o Novo CPC. Não há como leis serem de 2014. elaboradas sem observância da Constituição, sob A mais significativa dessas situações, que tam- pena de inconstitucionalidade formal. bém, lamentavelmente, não é única, dá-se com o incidente de resolução de demandas repetitivas. O parágrafo único do art. 978, que prevê a competência do Tribunal de Justiça e/ou do Tribunal O devido processo não é só judicial e não é só administrativo. Regional Federal para, além de fixar a tese, julgar o caso concreto, aplicando-a, não encontra ne- Tanto quanto a correção formal das sentenças nhum correspondente no PLS nº 166/2010 e no depende de sua vinculação aos limites subjetivos e PL nº 8.046/2010, por mais que se queira neles objetivos da petição inicial, no máximo acrescidos encontrar algo similar. por alguma iniciativa do réu ou de algum terceiro Para quem não conseguir justificar todos os dis- interveniente e ao desenvolvimento de um “devi- positivos da “tutela provisória” do Novo CPC (arts. do processo”, a lei pressupõe que sua versão final 294 a 311) com o que os arts. 269 a 286 do PLS nº justifique-se nos projetos aprovados nas duas casas 166/2010 chamaram de “tutela de urgência e tute- legislativas e tramite de acordo com as normas la da evidência” e que os arts. 295 a 312 do PL nº aplicáveis ao seu processo. 8.046/2010 chamaram de “tutela antecipada” ou, Paradoxalmente, é o próprio Novo CPC que ainda, o disposto nos arts. 926 e 927 do Novo CPC nos propõe, desde o seu art. 1º, inspirador, o de- com seus pares naqueles dois projetos (art. 882 e arts. safio de aplicar invariavelmente a CF para “orde- 520 e 521, respectivamente), esse subgrupo torna-se ná-lo, discipliná-lo e interpretá-lo”. Quando ele ainda mais profícuo. E, tomo a liberdade de afirmar, prescreve que “O processo civil será ordenado, a conciliação daqueles textos é tarefa dificílima... disciplinado e interpretado conforme os valores e As situações aqui narradas não são exaustivas, as normas fundamentais estabelecidos na Consti- infelizmente não. Elas são apresentadas na expec- tuição da República Federativa do Brasil, obser- ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i slativo e o No vo Código de Processo Civil. tativa de que elas convidem os estudiosos do Di- 45 Revi s t a d o A d v o g a d o A segunda situação do quarto grupo reside nos vando-se as disposições deste Código”, é também 1. De minha parte, tomo a liberdade de indicar ao leitor interessado dois pequenos trabalhos meus sobre o assunto, publicados ainda antes da sanção presidencial: “A ‘revisão’ do texto do novo CPC” (em <http://portalprocessual.com/a-revisao-do-texto-do-novo-cpc-2/>, publicado em 19 de fevereiro de 2015) e “Ainda a ‘revisão’ do texto do novo CPC” (em <http://jota.info/ainda-sobre-a-revisao-do-novocpc>, publicado em 14 de março de 2015). Mais recentemente, no meu Novo Código de Processo Civil Anotado, publicado pela editora Saraiva, a tarefa ocupou-me mais intensamente, indicando, naquele trabalho, todas as incongruências aqui assinaladas ilustrativamente e apresentando, como não poderia deixar de ser, pautas de superação dos vícios relativos à inconstitucionalidade formal. Livro_126.indb 45 à iniciativa acima indicada, de ter ciência e consciência de sua origem legislativa, que ele se refere. O devido processo não é só judicial e não é só administrativo; ele é, com a mesma intensidade constitucional, o legislativo, que precede o exame de qualquer lei e, entre elas, também o Novo CPC. Por que com ele seria diferente? A higidez da lei pressupõe, faço questão de frisar, tanto quanto a sentença, escorreito processo (forma de 23/04/2015 16:28:46 ( I n ) d e v i d o p r o c e s s o l e g i s lativo e o No vo Código de Processo Civil. Rev i st a d o A d v o g a d o 46 Livro_126.indb 46 atuação do Estado, pelo menos daqueles com o A não se pensar assim, é o caso de formular modelo instituído ao brasileiro pela Constituição de maneira expressa questões que estão implícitas de 1988) a ela anterior. Leis não podem nascer do nas linhas que abrem este trabalho: o que foi, en- nada; não, pelo menos, no Brasil constitucional. fim, aprovado na sessão do Senado Federal de 17 É a contradição do Novo CPC, que quer concre- de dezembro de 2014: meras diretrizes legislativas tizar, em última análise, o devido processo legal a partir de um texto-base? O processo legislativo no âmbito do Judiciário, mas que descumpre o encerra-se sem a produção do texto respectivo? E mesmo devido processo no âmbito do Legislativo. se o texto contém imperfeições, que vão além das Sempre haverá a voz de quem quererá, ainda meramente redacionais – como demonstram os aqui, justificar as alterações ilustrativamente apon- poucos exemplos acima destacados –, não é o caso tadas acima, acentuando ela serem necessárias de superá-las mediante a forma adequada, isto é, a para que os problemas acima indicados e tantos produção de uma nova lei? A experiência de pouco outros que o espaço presente não permite serem mais de 40 anos não é, na perspectiva do devido apresentados fossem solucionados. E que foi as- processo legislativo, a mais correta? Não seria ela, sim para que não se repetisse o que ocorreu com aliás, a mais correta (e republicana) nos ares cons- o CPC atual, em que, durante a sua vacatio legis, titucionais pós-1988? foi promulgada a Lei nº 5.925, de 1º de outubro de Como não há como fugir dessas questões – é 1973, que “retifica dispositivos da Lei nº 5.869, de o próprio art. 1º do Novo CPC que assim deter- 11 de janeiro de 1973, que instituiu o Código de mina, rente, aliás, ao que o art. 1º do anteprojeto Processo Civil” e que entrou em vigor no mesmo e o art. 1º do PLS nº 166/2010 já propunham –, dia dele, perfazendo um todo normativo. Em rigor, caberá aos processualistas civis debruçarem-se aliás, o CPC de 1973 nunca entrou em vigor na sua um pouco mais no processo legislativo, aquele forma redacional originariamente aprovada. Ele, devido, nos precisos termos constitucionais, do ao entrar em vigor, já se apresentou em sua forma próprio CPC, para, somente após conferida a revisada pela precitada Lei nº 5.925/1973. sua conformidade formal e superados e contor- A rejeição à hipotética crítica, sempre com as vê- nados todos os problemas que aparecerem nessa nias de estilo, reside no que acentuei de início e in- perspectiva, que não são poucos, dar início à sua sistentemente. Há um modo preestabelecido para se análise substancial. fazerem leis no Brasil constitucional. Se a etapa final Entender diversamente é insistir no paradoxo dos trabalhos legislativos acabou não se mostrando acima detectado, desprezando um dos elementos suficiente para a deliberação e para o fechamento do nodais do próprio estudo do Direito Processual texto, que o Código não tivesse sido aprovado “por Civil em um modelo de Estado constitucional, o fazer” ou “por completar”, como, infelizmente, aca- do devido processo legal ou, em palavras mais di- ba por sugerir o Parecer nº 1.099/2014, adendo ao retas, mas não menos adequadas: a certeza de que Parecer nº 956/2014, e também o texto que, findo o os fins não justificam – e não podem e não devem limbo revisional, foi enviado à sanção presidencial. justificar – os meios. 23/04/2015 16:28:46 A colaboração como norma fundamental do Novo Processo Civil brasileiro. Sumário 1.Introdução 2.A colaboração como modelo 3.A colaboração como princípio 4.Considerações finais Bibliografia Daniel Mitidiero Professor de Direito Processual Civil dos cursos de graduação, especialização, mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-doutor em Direito pela Università degli Studi di Pavia. Doutor em Direito pela UFRGS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual (IIDP) e da International Association of Procedural Law (IAPL). Advogado. Se olharmos para a ZPO alemã, de 1877, e para o Codice di Procedura Civile italiano, de 1942, perceberemos que em ambos os casos o legislador principia tratando da jurisdição: a ZPO dedica o seu § 1º à competência material dos tribunais (sachliche Zuständigkeit), ao passo que o Codice alude em seu art. 1º à jurisdição (giurisdizione dei giudici ordinari). Se, porém, saltarmos no tempo, veremos que o Nouveau Code de Procédure Civile francês, de 1975, não inicia da mesma maneira: ele começa enunciando princípios diretores do processo (principes directeurs du procès, arts. 1º a 24). Se dermos mais um passo, a fim de “fecharmos” (RHEE, 2007, p. 623) os Novecentos em termos de legislação processual civil, veremos que o legislador inglês de 1997 inicia declinando qual o seu objetivo principal (“overriding objective”, Rule 1.1). 47 Revi s t a d o A d v o g a d o 1 Introdução Nosso Novo Código de Processo Civil (CPC) segue nesse particular esse último caminho: desde Livro_126.indb 47 23/04/2015 16:28:46 A c o l a b o r a ç ã o c o m o n o r ma fu n d amen tal do Novo Processo Civil brasileiro. Rev i st a d o A d v o g a d o 48 o início, o legislador entorna normas funda- brada o trabalho entre todos os seus participantes – mentais que servem para densificar o direito ao com um aumento concorrente dos poderes do processo justo previsto na Constituição (art. 5º, juiz e das partes no processo civil (SICA, 2008, p. inciso LIV) e dar as linhas-mestras que o estru- 324). Como modelo, a colaboração rejeita a juris- turam. Dentre essas normas, consta o art. 6º: “to- dição como polo metodológico do processo civil, dos os sujeitos do processo devem cooperar entre ângulo de visão evidentemente unilateral do fe- si para que se obtenha, em tempo razoável, de- nômeno processual, privilegiando em seu lugar a cisão de mérito justa e efetiva”. Se adotada uma própria ideia de processo como centro da sua teoria chave de leitura apropriada, trata-se de norma da (MITIDIERO, 2011, p. 48-50), concepção mais mais alta importância que ao mesmo tempo visa pluralista e consentânea à feição democrática a caracterizar o processo civil brasileiro a partir ínsita ao Estado Constitucional (CANOTILHO, de um modelo e fazê-lo funcionar a partir de um 1999, p. 89). princípio. A colaboração é um modelo que se estrutura a partir de pressupostos culturais que podem 2 A colaboração como modelo ser enfocados sob o ângulo social, lógico e ético.2 Do ponto de vista social, o Estado Consti- Problema central do processo está na equilibra- tucional de modo nenhum pode ser confundi- da organização das tarefas daqueles que nele to- do com o Estado-Inimigo. Nessa quadra, assim mam parte (OLIVEIRA, 2010, p. 28) – vale dizer, como a sociedade pode ser compreendida como da “divisão do trabalho” entre os seus participan- um empreendimento de cooperação entre os seus tes (MOREIRA, 1989, p. 35-44). Nosso legislador membros visando à obtenção de proveito mútuo procurou resolver esse problema com a adoção do (BOURSIER, 2003, p. 297), também o Estado modelo cooperativo – pautado pela colaboração deixa de ter um papel de pura abstenção e passa do juiz para com as partes. Trata-se de elemento a ter que prestar positivamente para cumprir com estruturante do direito ao processo justo (MARI- seus deveres constitucionais – especialmente, o NONI; MITIDIERO; SARLET, 2014, p. 711-715; de organizar um processo justo, capaz de prestar LANES, 2014, p. 121-129). Como observa a dou- uma tutela efetiva aos direitos. Do ponto de vista trina, “le procès équitable implique un principe lógico, o processo cooperativo pressupõe o reco- de coóperation efficiente des parties et du juge nhecimento do caráter problemático do Direito, dans l´élaboration du jugement vers quoi est ten- reabilitando-se a sua feição argumentativa. Vale due toute procédure” (CADIET; NORMAND; dizer: pressupõe a distinção entre texto e norma e MEKKI, 2010, p. 385). o caráter reconstrutivo da interpretação jurídica 1 A colaboração é um modelo que visa a orga- (ÁVILA, 2014, p. 50-55). Finalmente, do ponto de nizar o papel das partes e do juiz na conformação vista ético, o processo pautado pela colaboração é do processo, estruturando-o como uma verdadei- um processo orientado pela busca tanto quanto ra comunidade de trabalho (Arbeitsgemeinschaft) possível da verdade (TARUFFO, 2002, p. 224) e (RECHBERGER; SIMOTTA, 2010, p. 399-407), que, para além de emprestar relevo à boa-fé subje- em que se privilegia o trabalho processual em tiva, também exige de todos os seus participantes conjunto do juiz e das partes (prozessualen Zusammenarbeit) (WASSERMANN, 1978, p. 97). Em outras palavras: visa a dar feição ao aspecto subjetivo do processo, dividindo de forma equili- Livro_126.indb 48 1. Sobre o assunto, Mitidiero (2011), Oliveira (2003), Didier Júnior (2010, p. 46), Cabral (2009) e Theodoro Júnior (2011). 2. Com maior vagar, Mitidiero (op. cit., p. 71-115). 23/04/2015 16:28:46 mente seu destinatário o juiz (MITIDIERO, op. conflito (DIDIER JÚNIOR, 2013, p. 308), apurar cit., p. 106). a verdade das alegações das partes a fim de que se possa bem aplicar o direito e empregar as téc- A colaboração no processo não implica colaboração entre as partes. nicas executivas adequadas para a realização dos direitos. Para que o processo seja organizado de forma justa, os seus participantes têm de ter posições jurídicas equilibradas ao longo do procedimento. Portanto, é preciso perceber que a organização do O modelo de processo pautado pela colabora- processo cooperativo envolve – antes de qualquer ção visa a outorgar nova dimensão ao papel do coisa – a necessidade de um novo dimensiona- juiz na condução do processo. O juiz do proces- mento de poderes no processo, o que implica ne- so cooperativo é um juiz isonômico na sua condução e assimétrico apenas quando impõe suas decisões. Desempenha duplo papel: é paritário no diálogo e assimétrico na decisão (MITIDIERO, op. cit., p. 81; DIDIER JÚNIOR, op. cit., p. 48). Nessa linha, o juiz tem um verdadeiro “dever de engajamento” (CABRAL, 2009, p. 234) no processo civil. 3 A colaboração como princípio A colaboração no processo é um princípio jurídico. Ela impõe um estado de coisas que tem de ser promovido (ÁVILA, op. cit., p. 102-103). O fim da colaboração está em servir de elemento para organização de processo justo idôneo a alcançar, “em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva” (art. 6º). Isso significa: evitar o desperdício da atividade processual, preferir decisões de mé- cessidade de revisão da cota de participação que se defere a cada um de seus participantes ao longo do arco processual. Em outras palavras: a colaboração visa a organizar a participação do juiz e das partes no processo de forma equilibrada. E aqui importa desde logo deixar claro: a colaboração no processo não implica colaboração entre as partes. As partes não querem colaborar. A colaboração no processo que é devida no Estado Constitucional é a colaboração do juiz para com as partes. Gize-se: não se trata de colaboração entre as partes. As partes não colaboram e não devem colaborar entre si simplesmente porque obedecem a diferentes interesses no que tange à sorte do litígio. E é justamente a partir daí que A c o l a b o r a ç ã o c o m o n o r ma fu n d amen tal do Novo Processo Civil brasileiro. rito em detrimento de decisões processuais para o 49 Revi s t a d o A d v o g a d o a observância da boa-fé objetiva,3 sendo igual- surge observação de fundamental importância que deve ser feita em relação ao texto do art. 6º do novo Código. A colaboração não implica de modo nenhum cooperação entre “todos os sujeitos do processo”. Como é evidente, as partes não querem e não devem colaborar entre si. Não há 3. O que implica reconhecer uma série de comportamentos como vedados aos seus participantes. A boa-fé objetiva revela-se no comportamento merecedor de fé, que não frustre a confiança do outro. Age com comportamento adequado aquele que não abusa de suas posições jurídicas. A doutrina aponta que são manifestações da proteção à boa-fé no Direito a exceptio doli, o venire contra factum proprium, a inalegabilidade de nulidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício do Direito (na doutrina em geral, Cordeiro (2001); na doutrina brasileira, Martins-Costa (2000); na doutrina processual civil brasileira, Didier Júnior (op. cit., p. 79-103); Cabral (2005)). Livro_126.indb 49 dever de colaboração entre as partes. Portanto, a colaboração não deve ser vista como fonte de deveres recíprocos entre as partes nem como um incentivo ao juiz para impor sanções às partes por falta de cooperação recíproca (YARSHELL, 2014, p. 111). A colaboração não implica, pois, revogação do princípio dispositivo em sentido processual 23/04/2015 16:28:47 A c o l a b o r a ç ã o c o m o n o r ma fu n d amen tal do Novo Processo Civil brasileiro. Re v is t a d o A d v o g a d o 50 (Verhandlungsmaxime) (GREGER, 2000, p. 77) 4 – juízo a fim de prestar esclarecimentos sobre os as partes continuam conduzindo o processo a fim fatos da causa, “hipótese em que não incidirá a de ganhar o caso, cada qual exercendo seus direi- pena de confesso” (art. 139, inciso VIII). O le- tos, desempenhando seus ônus e cumprindo seus gislador, ainda, viu a emenda à petição inicial deveres sob o influxo dessa finalidade. A diferença como uma hipótese de concretização do dever de fundamental para as partes é que devem fazê-lo de esclarecimento judicial, tanto é que determinou boa-fé (o processo não é, como já se pensou, um ao juiz que indique “com precisão o que deve ser ambiente livre da moral – “moralinfrei” ). corrigido ou completado” (art. 321). Em ambos 5 A colaboração estrutura-se a partir da previsão os casos, o esclarecimento tem a ver com a me- de regras que devem ser seguidas pelo juiz na con- lhor compreensão dos argumentos das partes dução do processo. O juiz tem os deveres de escla- pelo juiz – isto é, com a compreensão do sentido recimento, de diálogo, de prevenção e de auxílio adequado das alegações fático-jurídicas das partes para com os litigantes. Esses deveres consubstan- (GREGER, 2000, p. 79-80). O esclarecimento é ciam as regras que estão sendo enunciadas quan- pensado como uma ferramenta que visa a evitar do se fala em colaboração no processo. A doutrina mal-entendidos na comunicação processual. é tranquila a respeito do assunto (SOUSA, 1997, p. 65-67; MITIDIERO, op. cit., p. 85). Quanto ao dever de prevenção, o legislador entendeu que, “antes de proferir decisão sem re- O dever de esclarecimento constitui “o dever solução de mérito, o juiz deverá conceder à parte de o tribunal se esclarecer junto das partes quanto oportunidade para, se possível, corrigir o vício” às dúvidas que tenha sobre as suas alegações, pedi- (art. 317). Na mesma linha, determinou que, “an- dos ou posições em juízo” (SOUSA, op. cit., p. 65). tes de considerar inadmissível o recurso, o relator O de prevenção, o dever de o órgão jurisdicional concederá o prazo de cinco dias ao recorrente prevenir as partes do perigo de o êxito de seus pe- para que seja sanado vício ou complementada a didos “ser frustrado pelo uso inadequado do pro- documentação exigível” (art. 932, parágrafo único) cesso” (SOUSA, op. cit., p. 66). O de consulta, o (MITIDIERO, op. cit., p. 170-171). Vale dizer: dever de o órgão judicial consultar as partes antes tem o juiz de alertar a parte de que o uso equivo- de decidir sobre qualquer questão, possibilitando cado do processo – ou o equívoco na forma proces- antes que essas o influenciem a respeito do rumo sual – pode obstar ao exame do mérito. a ser dado à causa (SOUSA, op. cit., p. 66-67). Quanto ao dever de diálogo, o legislador O dever de auxílio, “o dever de auxiliar as partes não só vedou qualquer decisão definitiva sobre na superação de eventuais dificuldades que im- a causa sem prévio contraditório (arts. 7º, 9º e peçam o exercício de direitos ou faculdades ou 10), como também determinou expressamente o cumprimento de ônus ou deveres processuais” que a fundamentação da decisão tem de guar- (SOUSA, op. cit., p. 67). dar congruência com os argumentos determi- Em várias oportunidades o legislador estrutu- nantes formulados pelas partes (art. 489, § 1º, rou o procedimento a partir desses deveres judi- inciso IV). Isso não só condiciona a aplicação ciais. Alguns exemplos podem ilustrar de forma do brocardo Iura Novit Curia pelo juiz ao pré- adequada o sentido da colaboração buscada pelo legislador. Quanto ao dever de esclarecimento, o legislador deixou claro que o juiz pode, a qualquer tempo, convocar as partes para comparecer em Livro_126.indb 50 4. Há tradução de Ronaldo Kochem publicada na RePro, n. 206, 1, 2012. 5. GOLDSCHMIDT, 1925, p. 292, passagem em que refere ainda ser o processo livre de moralidade como a guerra (Krieg) e a política (Politik) – em um evidente testemunho da percepção geral de seu tempo. 23/04/2015 16:28:47 por objeto prestação pecuniária” (art. 139, inciso as partes (TUCCI, 2009, p. 211), como também IV), o que obviamente engloba a possibilidade de veda que a fundamentação seja vista como sim- o juiz determinar que o executado apresente bens ples demonstração do raciocínio pelo qual o juiz suscetíveis de penhora. O mesmo espírito de co- chegou ao dispositivo, o que muitas vezes é feito laboração do juiz para com o exequente anima o sem a devida atenção aos fundamentos arguidos art. 772, inciso III, em que se prevê o poder de o pelas partes. Ainda, em homenagem ao diálogo juiz “determinar que sujeitos indicados pelo exe- no processo, o legislador permitiu a calendariza- quente forneçam informações em geral relaciona- ção do procedimento pelo comum acordo en- das ao objeto da execução, tais como documentos tre o juiz e as partes (art. 191) e saneamento em e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes “cooperação com as partes” nas causas complexas prazo razoável” (MITIDIERO, op. cit., p. 147). (art. 357, § 3º). 4 Considerações finais dor instituiu a dinamização do ônus da prova (art. 373, § 1º), que visa a auxiliar uma das partes a se Como se pode perceber, seja como modelo, desincumbir de probatio diabolica, bem como o seja como princípio, a colaboração foi abraçada poder de o juiz “determinar todas as medidas in- pelo legislador brasileiro do Novo CPC. Se, po- dutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogató- rém, de fato terá o condão de transformar as rela- rias necessárias para assegurar o cumprimento de ções entre o juiz e as partes no processo civil, só o ordem judicial, inclusive nas ações que tenham tempo – e o foro – poderão dizer. 51 Bibliografia ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. BOURSIER, Marie-Emma. Le Principe de Loyauté en Droit Processuel. Paris: Dalloz, 2003. CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no Processo Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ______. O Contraditório como Dever e a Boa-Fé Processual Objetiva. 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Tal tendênDierle Nunes Advogado. Doutor em Direito Processual pela PUC Minas e Universitá degli Studi di Roma La Sapienza. Professor adjunto na PUC Minas e na UFMG. Secretário-geral adjunto do IBDP. Membro cia a parar aumenta exponencialmente se o semáforo for municiado do sistema de “registro de avanço” em decorrência do acréscimo de fiscalidade. Mas qual seria a conexão desta função básica fundador da ABDPConst. Integrou a Comissão do Direito com o Novo Código de Processo Civil de Juristas formada na Câmara dos Deputados (NCPC)? Respondo: toda! para revisão do CPC/2015. 53 Revi s t a d o A d v o g a d o quando se adote uma determinação normativa Ao se perceber uma série de vícios e descumprimentos à normatização (inclusive constitucional), a nova legislação tenta, contrafaticamente, implementar comportamentos mais consentâneos com as finalidades de implementação de efetividade e garantia de nosso modelo processual constitucional. Este é um de seus grandes pressupostos ao se buscar corrigir problemas sistê- Livro_126.indb 53 23/04/2015 16:28:47 A f u n ç ã o c o n t r a f á t i c a d o Direito e o No vo CPC. Rev i st a d o A d v o g a d o 54 micos. Adota-se, assim, uma série de “registros de Tal prática chega ao requinte de promover a avanço” normativos para uma plêiade de compor- edição de enunciados de súmula com o objetivo de tamentos não cooperativos habitualmente ado- criar ferramentas formais de impedimento do jul- tados pelos sujeitos processuais. gamento de mérito das impugnações às decisões. E para não aparentar se estar procedendo a Em face do vício manifesto da jurisprudência de- uma discussão meramente teórica e de fundamen- fensiva, e em sua função contrafática, desde a parte tação, nos valeremos de alguns singelos exemplos. geral (art. 4o do NCPC2), a nova lei impõe premissas Passemos a eles: interpretativas e um novo formalismo que induz o Uma situação recorrente na prática (no mundo máximo aproveitamento da atividade processual fático) que vivenciamos é a de o magistrado, no e a regra da primazia do julgamento do mérito momento de fixar honorários sucumbenciais em (THEODORO JR.; NUNES; BAHIA; PEDRON, causas de grande relevância econômica, especial- 2015; NUNES; CRUZ; DRUMMOND, 2014). mente em face da Fazenda Pública, estabelecer um valor irrisório em prol do advogado, que desconsidera todo o empenho, zelo e esforço empreendido pelo profissional ao longo da tramitação processual. Tal hipótese fomenta o uso de recursos e muitas vezes conduz, ao final, a um resultado indevido com a chancela dos valores anteriormente fixados. Uma situação recorrente é a de o magistrado estabelecer um valor irrisório em prol do advogado. O NCPC, contrafaticamente, ao constatar tal fenômeno, cria critérios normativos que limitam a determinação judicial a parâmetros que atendam ao grau de trabalho empreendido pelo patrono na causa, em seu art. 85.1 O dispositivo fixa limites mínimos e máximos de fixação de honorários, inclusive estabelecendo critérios precisos, principalmente em relação à Fazenda Pública. Outra patologia recorrente na prática que o Novo Código coíbe é a da criação, pelos Tribunais Superiores, de entendimentos que patrocinam um maior rigorismo no juízo de admissibilidade recursal, de modo a reduzir sua carga de trabalho: a famigerada jurisprudência defensiva. Livro_126.indb 54 1. “Art. 85 - A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor. [...] § 2º - Os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa, atendidos: I - o grau de zelo do profissional; II - o lugar de prestação do serviço; III - a natureza e a importância da causa; IV - o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido para o seu serviço. § 3º - Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, a fixação dos honorários observará os critérios estabelecidos nos incisos I a IV do § 2º e os seguintes percentuais: I - mínimo de dez e máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido até duzentos salários mínimos; II - mínimo de oito e máximo de dez por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de duzentos salários mínimos até dois mil salários mínimos; III - mínimo de cinco e máximo de oito por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de dois mil salários mínimos até vinte mil salários mínimos; IV - mínimo de três e máximo de cinco por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de vinte mil salários mínimos até cem mil salários mínimos; V - mínimo de um e máximo de três por cento sobre o valor da condenação ou do proveito econômico obtido acima de cem mil salários mínimos. § 4º - Em qualquer das hipóteses do § 3º: I - os percentuais previstos nos incisos I a V devem ser aplicados desde logo quando for líquida a sentença; II - não sendo líquida a sentença, a definição do percentual, nos termos dos referidos incisos, somente ocorrerá quando liquidado o julgado; III - não havendo condenação principal ou não sendo possível mensurar o proveito econômico obtido, a condenação em honorários dar-se-á sobre o valor atualizado da causa; IV - será considerado o salário mínimo vigente quando prolatada sentença líquida ou o que estiver em vigor na data da decisão de liquidação. § 5º - Quando, conforme o caso, a condenação contra a Fazenda Pública ou o benefício econômico obtido pelo vencedor ou o valor da causa for superior ao valor previsto no inciso I do § 3º, a fixação do percentual de honorários deve observar a faixa inicial e, naquilo que a exceder, a faixa subsequente, e assim sucessivamente. § 6º - Os limites e critérios previstos nos §§ 2º e 3º aplicam-se independentemente de qual seja o conteúdo da decisão, inclusive aos casos de improcedência ou extinção do processo sem resolução do mérito. [...]” 2.“Art. 4º - As partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.” 23/04/2015 16:28:47 a impossibilidade de o relator dos recursos inad- jetiva e, ao mesmo tempo, cria mecanismos de miti-los antes de viabilizar a correção dos vícios, fiscalidade para as aludidas condutas dos sujeitos como, por exemplo, de ausência de documen- processuais. tação ou de representação. Ainda estabelece, Aponte-se que não se trata, como alguns in- em seu art. 218, § 4º, que um recurso praticado sistem em dizer, de uma concepção utópica, pois antes do termo inicial do prazo seja considerado não se defende uma concepção de solidariedade tempestivo. Ou seja, busca-se limitar o comporta- no processo, nem se adota mais a visão tradicional mento não cooperativo dos tribunais de impedir de colaboração que estabelecia quase uma hie- atividades processuais por rigorismos formais des- rarquia entre juiz e partes/advogados, na qual as providos de fundamento constitucional adequado. últimas deveriam ajudar o primeiro. Aqui se trata E, por falar em comportamentos não coope- de uma concepção normativa contrafática que rativos, todos sabemos que o ambiente processual delimita ferramentas de controle de todos os su- sempre está permeado destes, seja o advogado que jeitos processuais ao se perceber a interdependên- se vale de manobras de má-fé com a finalidade cia entre suas atividades e fazendo com que todas de atrasar o procedimento quando isto o interessa, ofertem um importante papel dentro do sistema sejam os juízes que não auxiliam as partes a supe- processual (divisão de papéis). 4 5 rarem dificuldades que as impeçam do exercício Assim, o CPC/2015 traz uma série de preceitos de faculdades ou ônus processuais, como os pro- normativos louváveis que viabilizarão um diálogo batórios (dever de auxílio), as surpreende com mais proveitoso entre os sujeitos processuais com decisões trazendo fundamentos não discutidos ao a adoção, por exemplo, do dever do juiz de levar longo do processo e não enfrentam todos os argu- em consideração os argumentos relevantes das par- mentos relevantes apresentados por elas. E estas tes (Recht auf Berücksichtigung von Äußerungen), são apenas algumas situações não cooperativas. atribuindo ao magistrado não apenas o dever de Ao se vislumbrar tais hipóteses, o NCPC impõe tomar conhecimento das razões apresentadas uma premissa forte (contrafática) ao adotar uma (Kenntnisnahmepflicht), como também o de con- teoria normativa da comparticipação (NUNES, siderá-las séria e detidamente (Erwägungspflicht) 2008) ou cooperação que impõe, mediante vários em seus arts. 10 e 489, § 1º, inciso IV, do NCPC. dispositivos, a necessidade de se repreenderem A f u n ç ã o c o n t r a f á t i c a d o Direito e o No vo CPC. comportamentos que não atendam a boa-fé ob- 55 Revi s t a d o A d v o g a d o Determina-se, assim, nos moldes do art. 932,3 Há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da 3.“Art. 932 - [...] Parágrafo único - Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de cinco dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.” 4.Este também é o entendimento do Enunciado nº 82 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): (art. 932, parágrafo único; art. 938, § 1º) É dever do relator, e não faculdade, conceder o prazo ao recorrente para sanar o vício ou complementar a documentação exigível, antes de inadmitir qualquer recurso, inclusive os excepcionais. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo. Salvador, 2013). 5.Conforme o Enunciado nº 83 do FPPC: “Fica superado o enunciado 115 da súmula do STJ após a entrada em vigor do NCPC (‘Na instância especial é inexistente recurso interposto por advogado sem procuração nos autos’)”. (Grupo: Ordem dos Processos no Tribunal, Teoria Geral dos Recursos, Apelação e Agravo. Salvador, 2013) Livro_126.indb 55 audiência, mas sim como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) (BAUR, 1954, p. 403) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa. Tal concepção significa que não se pode mais acreditar que o contraditório se circunscreva ao dizer e contradizer formal entre as partes, sem que isso gere uma efetiva ressonância (contribuição) para a fundamentação do provimento, ou seja, afastando a ideia de que a participação das 23/04/2015 16:28:47 A f u n ç ã o c o n t r a f á t i c a d o Direito e o No vo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 56 partes no processo possa ser meramente fictícia, primento de um contraditório dinâmico e de uma ou apenas aparente, e mesmo desnecessária no fundamentação estruturada, reestrutura-se a fase plano substancial. de organização e saneamento no art. 357 da Lei nº No sistema alemão, o princípio, nos termos do 13.105/2015, criando, inclusive, a possibilidade de art. 103, § 1º, da Grundgezets (Lei Fundamental negociação processual típica sobre o objeto do pro- alemã), inclui não só o direito de se expressar, mas cesso e calendarizando o procedimento mediante também o direito a que essas declarações sejam acordo entre os sujeitos processuais (THEODORO devidamente levadas em consideração. JR.; NUNES; BAHIA; PEDRON, 2015). Julgados do Tribunal Constitucional Federal Os exemplos poderiam aqui se multiplicar à (por exemplo, BVerfGE 70, 288 NJW 1987, 485) exaustão, mas creio que fugiriam ao propósito localizam esse dever como decorrência do contra- provocativo deste breve ensaio. ditório (Anspruch auf rechtliches Gehör), apontan- No entanto, para terminar, há de se perce- do que ele assegura às partes o direito de ver seus ber que devemos afastar aqueles argumentos argumentos considerados. recorrentes “de que isto não funcionará porque No entanto, o entendimento inconstitucional e sempre foi diferente”, uma vez que negam exata- ilegal corrente no Brasil até o advento do NCPC, mente o papel corretivo e a função contrafática por violador do dever constitucional e legal de fun- do Direito, que se presta a fiscalizar e a imple- damentação das decisões judiciais, autoriza que o mentar balizas normativas (correção normativa) Estado-juiz não enfrente um argumento jurídico a que os direitos, especialmente fundamentais, relevante da parte, ou seja, mesmo argumentos que se prestam. invoquem uma norma jurídica aplicável ao pro- Não podemos tolerar um processo judicial não cesso e que guardem imediata vinculação com os dialógico e cooptado tão somente por imperativos pontos controvertidos (questões) são singelamente de máxima produtividade e de qualidade zero, até desconsiderados por inúmeras decisões judiciais pela percepção óbvia de que esta concepção não que não os acolhem. vem trazendo bons resultados. Só uma nova racio- 6 E o problema na atualidade é de índole prática, eis que a ausência de análise de todos os argumentos nalidade de uso do sistema pode auxiliar na resolução de nossos problemas. relevantes, em especial pelos Tribunais Superiores, O NCPC busca, assim, dentro de seus estritos induz à falta de coerência e estabilidade em sua ju- limites, por ser tão somente uma lei, e não uma pa- risprudência, e se abre para uma constante reaber- naceia, ofertar um balizamento contrafático que tura a que novos debates e novos argumentos, que possa otimizar a atividade processual e melhorá-la já poderiam ter sido analisados desde o primeiro qualitativamente. Resta-nos agora compreendê-lo recurso ou procedimento, sejam levados em consi- e aplicá-lo sempre sob a melhor luz e em confor- deração, fomentando uma anarquia interpretativa. midade com sua parte geral, sua unidade e suas E, em primeiro grau, o desprezo à preparató- premissas norteadoras.7 ria da cognição amplia a dificuldade de análise racional dos argumentos relevantes, em decorrência do déficit da filtragem na fase do art. 331 do CPC de 1973 reformado. Assim, ao exigir o cum- Livro_126.indb 56 6.Cf. com mais argumentos Nunes (2003; 2004, p. 73-85; 2008); Nunes; Theodoro Jr. (2009). 7. Para a devida compreensão cf. Theodoro Jr.; Nunes; Bahia; Pedron (2015). 23/04/2015 16:28:47 Bibliografia BAUR, Fritz. Der Anspruch auf rechtliches Gehör. Archiv aproveitamento. Revista justificando. 18 set. 20114. Dispo- für die Civilistische Praxis, Tubingen, J. C. B. Mohr, nível em: <http://justificando.com/2014/09/18/novo-cpc- n. 153, 1954. formalismo-democratico-e-sumula-418-stj-primazia-merito- Dir. Civ. e Proc. Civil, v. 5, n. 29, maio./jun. 2004. e-o-maximo-aproveitamento/>. Acesso em: 20 jan. 2015. NUNES, Dierle; THEODORO JR., Humberto. Uma di- ______. O recurso como possibilidade jurídica discursiva do mensão que urge reconhecer ao contraditório no direito contraditório e ampla defesa. 2003. Dissertação (Mestra- brasileiro: uma garantia de influência e não surpresa e de do) – PUC Minas, 2003. aproveitamento da atividade processual. RePro, São Paulo, ______. Processo jurisdicional democrático. Curitiba: Juruá, 2008. Revista dos Tribunais, v. 168, 2009. THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, NUNES, Dierle; CRUZ, Clenderson Rodrigues da; DRUM- Alexandre; PEDRON, Flávio. Novo Código de Processo MOND, Lucas Dias Costa. Novo CPC, formalismo demo- Civil: Fundamentos e sistematização. 2. ed. Rio de Janeiro: crático e súmula 418 do STJ: primazia do mérito e máximo GEN Forense, 2015. A f u n ç ã o c o n t r a f á t i c a d o Direito e o No vo CPC. NUNES, Dierle. O princípio do contraditório. Rev. Síntese de Revi s t a d o A d v o g a d o 57 Livro_126.indb 57 23/04/2015 16:28:47 N ota sobre o incidente de conversão em ação coletiva. Sumário 1.Introdução 2.Natureza jurídica 3.A configuração do substrato difuso (ou coletivo) 4.A vedação da conversão para a tutela de direitos individuais homogêneos 5.Outros pressupostos objetivos 6.Legitimados ativos 58 8.Recorribilidade Revi s t a d o A d v o g a d o 7.A garantia do contraditório 9.O procedimento subsequente à conversão 10. A posição do autor originário após a conversão 1 Introdução Eduardo Talamini Livre-docente (Universidade de São Paulo). Doutor e mestre (Universidade de São Paulo). Professor de Direito Processual Civil, Processo Constitucional e Arbitragem (Universidade Federal do Paraná). Advogado em Curitiba, São Paulo e Brasília. Entre os institutos integralmente novos que o Código de Processo Civil (CPC) de 2015 veicula, está a possibilidade de conversão de ação individual em ação coletiva. Tal mecanismo teve sua presença assegurada no novo diploma apenas “nos acréscimos da partida”. Ele não constava do projeto aprovado originalmente no Senado. Surgiu na versão aprovada pela Câmara. No retorno à casa de origem, não constou do relatório final levado à votação. Dependeu da aprovação de um destaque para que fosse incluído no novo Código – e veio a constar no seu art. 333. É uma novidade no Direito brasileiro transformar-se uma ação individual em coletiva, quando a situação conflituosa apresenta, além da preten- Livro_126.indb 58 23/04/2015 16:28:47 não se pode deixar de notar – certo parentesco ção de lei, deva ser necessariamente uniforme, as- com os mecanismos de objetivação do julgamen- segurando-se tratamento isonômico para todos os to de questões repetitivas (julgamentos por amos- membros do grupo” (art. 333, inciso II). tragem), já antes previstos entre nós no âmbito Quanto ao inciso I, imagine-se o caso em do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior que o proprietário rural promove ação destinada Tribunal de Justiça (STJ) e Tribunal Superior do a impedir que uma fábrica continue despejan- Trabalho (TST), e agora aperfeiçoados e estendi- do substâncias poluentes em rio que passa por dos aos tribunais locais pelo novo Código. Mas sua propriedade e está contaminando o solo. O são institutos inconfundíveis. Já em outros orde- proprietário tem uma pretensão individual a essa namentos, por exemplo, na Inglaterra, o próprio tutela específica, tanto quanto o tem à tutela res- modelo-padrão de ação coletiva desenvolve-se sarcitória dos danos causados: não faria sentido em termos similares a esses, iniciando-se a ação afirmar que ele teria o direito de obter indeni- coletiva a partir de ações individuais. zação, mas não o de impedir a ocorrência do 2 Natureza jurídica Tem-se com a conversão uma modalidade de alteração (ampliação) do objeto processual originário. É exceção à norma da estabilidade da demanda (CPC/2015, art. 329). A ampliação é objetiva (acrescenta-se nova demanda) e subjetiva (ingressa um novo sujeito no polo ativo). 3 A configuração do substrato difuso (ou coletivo) Observados outros requisitos a seguir indicados, a conversão será possível desde que o pedido formulado na ação individual “tenha alcance coletivo, em razão da tutela de bem jurídico difuso ou coletivo [...] e cuja ofensa afete, a um só tempo, as esferas jurídicas do indivíduo e da coletividade” (art. 333, inciso I) ou ainda que o pedido “tenha por objetivo a solução de conflito de interesse relativo a uma mesma relação jurídica plurilateral, dano. Mas essa sua pretensão individual à tutela específica coincide, quanto ao resultado, com a pretensão coletiva de tutela ao meio ambiente. São direitos inconfundíveis – o direito individual de não sofrer lesão e o interesse difuso à incolumidade do meio ambiente –, mas concorrentes. O inciso II teria criado nova hipótese de ação coletiva. A configuração de uma ação coletiva a partir da hipótese do inciso II é mais difícil. A rigor, trata-se ali de uma relação jurídica única e incin- N o t a s o b r e o i n c i d e n t e de co n vers ão em ação coletiva. cuja solução, pela sua natureza ou por disposi- 59 Revi s t a d o A d v o g a d o são individual, um nítido substrato coletivo. Há – dível, com uma pluralidade de sujeitos que seriam litisconsortes facultativos, mas unitários. O exemplo mais evidente é o da pluralidade de sócios que estão legitimados a impugnar a validade de uma deliberação assemblear societária. Qualquer um deles tem legitimidade individual, sem que se faça necessário o comparecimento dos outros como litisconsortes. Mas a relação jurídico-material é única e incindível. Caso se forme o litisconsórcio, 1. Pode-se até conceber hipótese de ação coletiva destinada a desconstituir relação jurídica plurilateral: p. ex., com amparo no art. 1º da Lei nº 7.913/1989, o MP promove ação civil pública para invalidar deliberação de assembleia geral societária, a fim de resguardar o interesse difuso à idoneidade do mercado de capitais. Mas a conversão de uma ação individual anulatória em ação coletiva, nessa hipótese, seria baseada no inciso I. Livro_126.indb 59 ele será unitário. Todavia, esse exemplo dificilmente se amolda às hipóteses de direito coletivo ou difuso.1 A questão está em saber se o mecanismo da conversão estaria criando, no inciso II, nova hipótese de tutela coletiva. 23/04/2015 16:28:47 Por outro lado, se, além de um pedido enquadrável em alguma das duas hipóteses anteriores, o autor originário houver cumulativamente formulado outros pleitos, isso não obsta a conversão (art. 333, § 9º). Há uma solução específica para N o t a s o b r e o i n c i d e n t e d e co n vers ão em ação coletiva. essa hipótese (v. adiante, nº 10). Rev i st a d o A d v o g a d o 60 Livro_126.indb 60 4 A vedação da conversão para a tutela de direitos individuais homogêneos Conforme o § 2º do art. 333, a conversão não pode ser utilizada para a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos. No exemplo dado no tópico anterior, não poderia haver conversão em ação coletiva para a formação de condenação genérica para ressarcimento dos danos de todos os demais proprietários ribeirinhos potencialmente afetados. Essa limitação, que foi acrescida no curso do processo legislativo, teve uma justificativa. Reputou- -se que, diante dos mecanismos de julgamento de questões e causas repetitivas, haveria sobreposição de instrumentos com finalidades equivalentes. No entanto, essa limitação tende a ser inócua na maioria dos casos. O § 3o do art. 103 do Código do Consumidor prevê que também 5 Outros pressupostos objetivos Há ainda outros requisitos para a conversão (art. 333, § 3º): I) há um limite temporal: ela deve ocorrer antes do início da audiência de instrução e julgamento. Ao que se infere, reputou-se que, depois disso, a instrução probatória já estaria em estágio muito avançado, não sendo possível a plena produção de provas a respeito de fatos pertinentes à dimensão coletiva do conflito. Poder-se-ia argumentar que nem sempre o conflito coletivo envolve controvérsia fática. Muitas vezes, os pontos controvertidos são fundamentalmente de direito. Mas dado o caráter excepcional do mecanismo da conversão, optou-se por solução mais cautelosa; II) ela também não é admitida quando já há processo coletivo em curso relativamente ao mesmo objeto (pedido e causa de pedir). A litispendência obsta a conversão. A relação de continência também a impede, em qualquer caso. Se o processo coletivo preexistente tiver o objeto maior do que o objeto processual que se estabeleceria com a conversão, recai-se na litispendência (CPC/2015, art. 57, parte inicial). Se o objeto do processo preexistente for menor, de a sentença de procedência nas ações coletivas modo que estaria contido no objeto do processo que versem sobre interesses difusos e coletivos fruto da conversão, ela também não se justifica. – e não apenas aquelas sobre direitos individuais Ações em relação de continência não devem tra- homogêneos – aproveitará aos sujeitos pesso- mitar separadamente. Essa imposição, presente almente prejudicados, que a utilizarão como na disciplina geral do processo (CPC/2015, art. base para suas ações individuais de reparação 57, parte final), é reforçada no âmbito das ações de dano. O resultado final será equivalente ao coletivas (Lei nº 7.347/1985, art. 2º, parágrafo que se teria com a procedência da ação para único). As ações teriam de ser reunidas perante tutela de direitos individuais homogêneos: em o juízo prevento (art. 58, CPC/2015, art. 2º, pa- ambos os casos, a partir daí, o interessado indi- rágrafo único, Lei nº 7.347). Mas, como se vê a vidual, além de verificar e quantificar os danos, seguir, outro requisito da conversão é o de que a terá o ônus de demonstrar o nexo de causalida- nova ação coletiva possa manter-se sob a compe- de entre o ato já reconhecido como ilícito pela tência do juízo perante o qual já tramitava. Se sentença coletiva e os prejuízos que reputa ter ela tem de ser remetida para um juízo prevento, sofrido. a conversão é inviável; 23/04/2015 16:28:47 III) o juiz deve ser competente para a ação requer a conversão conduzir a ação coletiva (art. coletiva que resultaria da conversão. Em outras 333, § 4º) –, e, portanto, o requerente precisa deter modalidades de cumulação de demandas ou de a legitimação ativa coletiva. Ao que tudo indica, a alteração superveniente do objeto do processo redundância, no que tange ao MP e à Defensoria, (cumulação de pedidos, reconvenção, extensão da deriva apenas das vicissitudes do processo legislati- coisa julgada a questões prejudiciais, etc.), põe-se vo, não se podendo extrair nada mais disso. les casos. No mecanismo em exame, não basta a competência absoluta. É preciso que o juiz seja também desde logo territorialmente competente para a ação coletiva resultante da conversão (Có- Não apenas o autor, mas também o réu deve ser ouvido a respeito do pedido de conversão. digo de Defesa do Consumidor – CDC, art. 93: foro local, para lesões de extensão local; foro da O juiz não pode determinar a conversão de capital do Estado ou DF, para lesões regionais ou ofício. Mas pode oficiar os legitimados para a ação nacionais). A competência relativa tem extrema coletiva para que esses avaliem a oportunidade e relevância no processo coletivo, a ponto de os atos conveniência de requerer a conversão – conforme se decisórios do juiz incompetente terem sua eficá- extrai de aplicação analógica do art. 139, inciso X, cia limitada ao âmbito da competência territorial do CPC/2015.2 do órgão prolator (Lei nº 7.347, art. 16). 7 A garantia do contraditório 6 Legitimados ativos O caput explicita a necessidade de o juiz dar A conversão pode ser requerida por qualquer ao autor originário a oportunidade de manifes- dos legitimados para promover a ação coletiva. O tar-se, antes de decidir sobre o pedido de conver- caput do art. 333 refere-se expressamente apenas ao são. Essa imposição já derivaria da garantia do Ministério Público (MP) e à Defensoria Pública. contraditório, consagrada em norma constitucio- Mas o seu § 1º alude a qualquer outro legitimado nal (art. 5º, inciso LV, Constituição Federal – CF) para a ação coletiva que resultaria da conversão, e reiterada em normas gerais do novo Código nos termos da Lei nº 7.347 e do CDC. (arts. 9º e 10). Aliás, em face dessa garantia, vê-se A referência em separado ao MP e à Defenso- que o caput disse menos do que deveria: cumpre ria – que afinal já estariam abrangidos pela regra ao juiz ouvir não apenas o autor originário, mas do § 1º – poderia fazer supor que esses dois entes também o réu,3 bem como eventuais terceiros teriam um regime diferenciado, de modo que esta- intervenientes. riam legitimados a pleitear a conversão mesmo em Nenhum desses sujeitos, incluindo o autor casos em que não estariam legitimados ativamente originário, tem o direito de oposição imotivada. para a ação coletiva daí resultante. Mas essa suposi- A impugnação terá de fundar-se na ausência de ção não procede. Caberá necessariamente a quem alguma das condições objetivas ou subjetivas da 61 Revi s t a d o A d v o g a d o juiz: a competência relativa é prorrogável naque- N o t a s o b r e o i n c i d e n t e de co n vers ão em ação coletiva. como requisito apenas a competência absoluta do conversão.4 2. Nesse sentido é o Enunciado nº 39 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC). 3. Nesse sentido, Enunciado nº 40 do FPPC. 4. Nesse sentido, Enunciado nº 41 do FPPC. Livro_126.indb 61 Quando já não for o próprio autor do requerimento de conversão, o MP deverá ser ouvido também (art. 333, § 10). 23/04/2015 16:28:48 A decisão do juiz deverá ser motivada, enfren- supervenientemente a ação coletiva, e o réu tem tando inclusive os argumentos formulados contra- então a oportunidade de dela defender-se. Ob- riamente à conversão. viamente, não há nova citação porque o réu já integra o processo. A intimação faz-se na pessoa de 8 Recorribilidade seu advogado, em regra. Mas, se for revel, deverá N o t a s o b r e o i n c i d e n t e d e co n vers ão em ação coletiva. recebê-la pessoalmente. Aplicam-se as normas Re v is t a d o A d v o g a d o 62 O novo Código consagra a diretriz de irrecor- relativas à contestação, mas com as devidas res- ribilidade das interlocutórias. Mas entre as exce- salvas do contexto processual: o efeito principal ções está a decisão que defere a conversão da ação da revelia é significativamente mitigado, se não individual em coletiva. Contra ela, caberá agravo de todo afastado, pelo que já houver sido veicula- de instrumento (art. 1.015, inciso XII). do na contestação originária; o mesmo se aplica A decisão que indefere a conversão é irrecor- ao descumprimento do ônus da impugnação es- rível. A disposição acima mencionada, por vei- pecífica. O prazo de 15 dias para a manifestação cular uma exceção, não comporta interpretação (contestação) é dobrado nas hipóteses dos arts. extensiva. Em princípio, as questões resolvidas 180, 183 e 186 ou 229 do CPC/2015. Além disso, por interlocutórias irrecorríveis podem tornar a pode ser ampliado nos termos do art. 139, inciso ser suscitadas preliminarmente no juízo de apela- VI.6 ção (art. 1.009, § 1º). Na hipótese ora em exame, falta interesse jurídico para isso. A conversão nesse No mais, serão observadas a partir de então as regras do processo coletivo. momento não será mais processualmente econômica. Até por isso, não se pode descartar o emprego do mandado de segurança contra a decisão 10 A posição do autor originário após a conversão denegatória da conversão (Lei nº 12.016/2009, art. 5º, inciso II). O autor originário não pode absolutamente ser prejudicado pela conversão. Essa diretriz está 9 O procedimento subsequente à conversão retratada em regras específicas – e tem de ser considerada, como expressão do princípio do acesso à justiça, em todas as questões procedimentais que Deferida a conversão, o juiz fixará prazo para concretamente se ponham. aquele que a requereu promover a emenda ou o Ele “não é responsável por qualquer despesa aditamento da petição inicial, a fim de “adaptá-la processual decorrente da conversão do processo à tutela coletiva” (art. 333, § 4º). Isso significa individual em coletivo” (art. 333, § 7º). adicionar os elementos objetivos (pedido e causa de pedir) próprios da demanda coletiva. A lei atribui-lhe ainda a condição de litisconsorte “unitário” do autor coletivo. Essa quali- Se o requerente da conversão não providenciar ficação é discutível. A rigor, há duas pretensões a adaptação no prazo fixado pelo juiz, o processo distintas, ainda que (total ou parcialmente) con- seguirá como individual.5 Porém, não há o que correntes. Não se tem uma pretensão unitária, impeça que outro legitimado para a ação coletiva mas fundamentos comuns às duas pretensões. promova a adaptação. Pelo próprio CPC/2015, há unitariedade quando Depois dessa adaptação, o réu será intimado para manifestar-se em 15 dias (art. 333, § 5º). Na essência, trata-se de uma contestação: formulou-se Livro_126.indb 62 5. Nesse sentido, Enunciado nº 149 do FPPC. 6. Quanto a esse ponto, Enunciado nº 150 do FPPC. 23/04/2015 16:28:48 tensão individual jamais se identifica propriamen- me para todos os litisconsortes” (art. 116). Isso te com a coletiva: o que se põe é uma relação de não acontece necessariamente na ação convertida concurso objetivo. Essa pretensão será processada coletiva. Imagine-se que o juiz reconheça haver conjuntamente com a pretensão coletiva posta conduta ilícita do réu lesiva a interesse difuso, mas após a conversão – ainda que as questões fáticas negue existir nexo de causalidade entre o ilícito e e jurídicas para a solução de ambas não sejam de o dano alegado pelo autor originário. Nessa hipó- todo coincidentes. Já as demais pretensões postas tese, a ação coletiva será julgada procedente e a pelo autor originário serão objeto de autuação e originária ação individual, não. Possivelmente, a processamento próprios. Não se trata tão somente qualificação do litisconsórcio como unitário visa de autuação apartada nem de mera constituição a apenas assegurar a incidência da parte final do de um incidente processual. A pretensão autua- art. 117 (segundo o qual os atos e omissões de um da em apartado será objeto, a partir dali, de um litisconsorte unitário não prejudicam, mas podem processo próprio e autônomo, ainda que em rela- beneficiar os outros). ção de dependência com o outro, de que proveio: O § 9º do art. 333 estabelece que, se o autor haverá instrução e sentença próprias. A regra do originário houver formulado também pedido “de § 9º presta-se a realçar os dois aspectos anterior- natureza estritamente individual”, esse será pro- mente abordados: i) é especificação de diretriz de cessado em autos apartados. A redação do disposi- que o autor originário não pode ser prejudicado tivo não é perfeita. O pedido do autor originário – pela conversão; ii) evidencia que a unitariedade mesmo o próprio pedido que ensejou a conversão – do litisconsórcio entre o autor coletivo e o autor sempre será essencialmente “individual”. A pre- originário não é total e absoluta. N o t a s o b r e o i n c i d e n t e d e co n vers ão em ação coletiva. “o juiz tiver de decidir o mérito de modo unifor- Revi s t a d o A d v o g a d o 63 Livro_126.indb 63 23/04/2015 16:28:48 N ovo CPC: reflexões em torno da imposição e cobrança de multas. Sumário 1.Introdução 2.Condenação pecuniária e multa por falta de cumprimento 3.Execução do crédito por astreintes 3.1. Decisão que comina a multa e título executivo 3.2.Multa e contraditório Bibliografia 64 Revi s t a d o A d v o g a d o 1 Introdução O novo Código de Processo Civil (CPC), em meio a modificações estruturais de relevo, preocupou-se também, como é natural, com o aperfeiçoamento da disciplina de institutos da legislação vigente, perdendo em contrapartida importante oportunidade de fazê-lo quanto a outros tantos aspectos que reclamavam, a nosso ver, Fabio Guidi Tabosa Pessoa Doutor em Direito Processual pela Universi- maior atenção. dade de São Paulo (USP). Professor doutor Pretendemos, neste breve estudo, abordar duas de Processo Civil na USP. Desembargador do dessas situações, envolvendo multas ligadas ao Tribunal de Justiça de São Paulo. (des)cumprimento de decisões judiciais. De um lado, no tocante ao acréscimo de 10% vinculado a sentenças condenatórias ao pagamento de quantia certa, chama a atenção o deslocamento da multa para o âmbito da própria execução, em aparente tentativa de superar as inquietações provocadas na doutrina e na jurisprudência desde a introdução desse mecanismo Livro_126.indb 64 23/04/2015 16:28:48 redação dada pela Lei nº 11.232/2005). ção das formas de intimação conforme diferentes De outra parte, no tocante às astreintes de que situações (por publicação pela Imprensa Oficial, cuidam os arts. 461, § 4º, e 645, do CPC/1973, o quando houver advogado constituído nos autos, ou novo diploma processual civil, a despeito de al- ainda por carta com aviso de recebimento, meio guns tímidos avanços, acabou por infelizmente eletrônico ou edital); mais adiante, já no capítulo repetir no essencial o silêncio do Código vigen- específico referente ao cumprimento de decisão te em torno de aspecto que nos parece de crucial que imponha o pagamento de quantia certa, vol- importância, e ao qual pouquíssima atenção vem ta a tratar da necessidade de intimação, indicando sendo dada pela doutrina e jurisprudência, qual a fluência, a partir daí, do prazo de 15 dias para seja a necessidade de uma decisão específica em pagamento voluntário, sob pena de acréscimo de torno da incidência e do valor, como requisito à multa de 10% e sujeição do devedor a honorários execução do crédito pecuniário assim gerado em advocatícios (art. 523, caput e § 1º). favor do credor de obrigação inadimplida de fazer, não fazer ou dar coisa. Há, entretanto, uma diferença fundamental quanto ao sistema vigente: tanto a oportunidade para cumprimento voluntário, em si mesma, quanto a 2 Condenação pecuniária e multa por falta de cumprimento multa decorrente de sua inobservância vêm inseridas pelo novo Código, inequivocamente, como fenômenos internos à própria execução. Apresen- Livro_126.indb 65 A intensa controvérsia que se instaurou em tor- tada pelo credor, em tal sentido, manifestação ins- no da multa do art. 475-J vem, como se sabe, e ao truída com demonstrativo discriminado do cré- menos no plano jurisprudencial, de receber solu- dito e demais informações exigidas pelo art. 524, ção uniformizadora. O Superior Tribunal de Jus- instaurar-se-á a execução (tanto que as partes são tiça (STJ), em julgado submetido ao regime de re- desde logo tratadas como exequente e executado), cursos repetitivos, na forma do art. 543-C do CPC, no âmbito da qual terá o devedor a possibilidade acabou por sedimentar tendência que já vinha de forrar-se à multa e à incidência de honorários manifestando há algum tempo, dando resposta a advocatícios, pagando a quantia devida; não o fa- dois relevantes questionamentos formulados pelos zendo, a execução prosseguirá desde logo, acresci- operadores do Direito: a fluência do prazo de 15 do o débito daquelas verbas, com a expedição de dias para pagamento não é automática, demandan- mandado de penhora e avaliação, sem a necessi- do a intimação do devedor para o cumprimento es- dade de novos cálculos ou mesmo de requerimento pontâneo do julgado; e a intimação, por seu turno, expresso do exequente. pode se realizar por meio do patrono da parte (sem Como se sabe, a multa do art. 475-J, caput, do necessidade, portanto, de intimação pessoal), res- atual Código, é prevista como evento exterior e an- salvadas as hipóteses especiais como a de ausência tecedente à execução propriamente dita, estando de advogado constituído nos autos (Corte Especial, compreendida no que pode ser considerada fase de REsp nº 1.262.933-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salo- cumprimento de sentença em sentido amplo, mas mão, j. 19/6/2013, DJe de 20/8/2013). em nicho reservado ao pagamento espontâneo (o A esse respeito, o CPC de 2015 é expresso, qual, no sistema anterior à Lei nº 11.232/2005, aca- mencionando a intimação do devedor para o pa- bava, quando verificado, situando-se em um limbo gamento em duas oportunidades: a primeira delas processual, estranho ao processo de conhecimento nas disposições gerais sobre o cumprimento de já findo, mas por outro lado tampouco integrante N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. sentença (art. 513, § 2º), de par com a explicita- 65 Revi s t a d o A d v o g a d o sancionatório pelo art. 475-J do atual CPC (com a 23/04/2015 16:28:48 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. Rev i st a d o A d v o g a d o 66 de eventual processo de execução, visto que ainda da intimação específica, que de outra forma teria não iniciado). É o que decorre da leitura do dis- de ter vindo expressamente ressalvada. positivo legal referido, em que o curso do lapso de Não se pode deixar de considerar, outrossim, 15 dias vem apontado como consequência direta que, mesmo para a maior parte da doutrina que da simples existência de sentença condenatória lí- sustentou a ideia da necessidade de intimação quida, apenas após a consumação do prazo e a in- (pessoal ou por intermédio do advogado), ou ainda cidência da multa, cogitando o legislador da apre- para a jurisprudência que acabou por aderir a esse sentação pelo credor de requerimento de execução, entendimento, a conclusão não derivou de impe- instruído com cálculo discriminado já incorporando rativo técnico ligado à natureza das coisas, senão o acréscimo legal. de razões de ordem prática e da alegada preocupação para com a segurança jurídica. Invocaram- A multa do art. 475-J, caput, do atual Código, é prevista como evento exterior e antecedente à execução propriamente dita. -se, nessa linha – inclusive no acórdão do recurso repetitivo do STJ antes mencionado, em que citada a doutrina de José Carlos Barbosa Moreira –, dúvidas que se poderiam oferecer conforme o caso no tocante à identificação do momento do efetivo trânsito em julgado, ou ainda dificuldades no tocante à ciência desse evento por parte dos Instituiu-se o que Araken de Assis (2007, p. 112) – advogados, e finalmente empecilhos materiais à partidário, como tantos, da ideia de fluência do realização do pagamento, estando os autos físicos prazo a partir do momento de eficácia da deci- ainda nos tribunais. são condenatória – chamou de tempo de espera, Chegou-se até mesmo a aludir, com frequência, voltado a simplesmente evitar a execução e, se- à necessidade de ser informado o devedor quanto à gundo esse autor, obstativo inclusive da admis- memória de cálculo elaborada pelo credor, de sibilidade do requerimento imediato de início modo a ter conhecimento do valor exato devido,1 daquela. como se a multa, na dicção do art. 475-J, caput, É inevitável considerar, neste ponto, guar- não pressupusesse obrigação líquida (aliás, a di- dado o devido respeito à orientação divergente, fusão dessa prática equivocada, revertida em exi- que da literalidade do texto legal outra não po- gência de cálculo voltada ao credor previamente deria ser a conclusão senão a de que automático à própria intimação para pagamento, acabou de o curso desse prazo legal, liberado pela eficácia toda forma por adiantar a solução que agora vem natural da decisão condenatória e pela exigibi- expressamente alvitrada no CPC de 2015, mas lidade da obrigação por ela encampada – não com enquadramento adequado). dependentes, ambas, de qualquer formalidade Se atendeu, enfim, aos mencionados reclamos adicional ou de ato de comunicação ao devedor de segurança, a institucionalização da exigência de ou seu advogado. intimação, nos termos em que passou a ser tratada, O silêncio da Lei nº 11.232/2005 quanto a essa cobrou entretanto seu preço em termos de coerên- característica, por muitos criticado – e embora cia sistemática e de fidelidade à natureza jurídica tenha o legislador efetivamente abdicado de uma dos institutos envolvidos, prestando-se a equívocos. clareza que poderia ter evitado a celeuma formada –, deveria, segundo entendemos, ter sido recebido como autêntica opção pela desnecessidade Livro_126.indb 66 1. P. ex., STJ, 2ª T., AgRg no AREsp nº 353.381-SP, Rel. Min. Humberto Martins, j. 5/9/2013, DJe de 18/9/2013. 23/04/2015 16:28:48 Livro_126.indb 67 cia a intimação e subsequente decurso do prazo de quanto a sentenças declaratórias ou mesmo homo- 15 dias ao descumprimento da obrigação, quando logatórias de transação, em que inexistente ordem na verdade o inadimplemento é fenômeno ligado de pagar, não obstante a lei lhes reconheça exe- ao plano substancial, e no mais das vezes inclusive quibilidade em torno da obrigação substancial ali anterior à própria sentença condenatória, que ape- representada). nas o reconhece e agrega à prestação um coman- Por outro lado, entender que o comando obje- do judicial tendente à sua satisfação no âmbito do to de um provimento judicial definitivo, emitido processo; havendo esse reconhecimento, a decisão em face do devedor mediante observância do de- condenatória encampa os efeitos da mora até ali vido processo legal, não se imponha desde logo verificados (multa e juros, por exemplo) e permite e somente seja àquele oponível mediante nova que sigam se produzindo após sua prolação, sem intimação, voltada a determinar o próprio cum- solução de continuidade. Também é do trânsito em primento, soa de certo modo fragilizador da au- julgado que recomeça, cessado o estado de litigio- toridade da decisão. Embora do ponto de vista da sidade, a fluir o prazo prescricional no tocante à repercussão prática a figura da multa surja como obrigação substancial, desde logo exigível. diferencial relevante, não se pode esquecer que Mesmo quando o crédito não é anterior ao nem mesmo no sistema da separação processual processo, mas fruto dele (como no tocante aos entre cognição e execução, abandonado em nome encargos da sucumbência), a exigibilidade é ins- da celeridade, da efetividade da jurisdição e, se- tantânea, efeito da sentença que o exprime, e se gundo se diz, da ampliação da carga executiva da perfaz com a consolidação dessa. O que tolhe sentença, se exigia semelhante providência como eventualmente dita exigibilidade (que, assim meio de afirmação do comando estatal. como a certeza e liquidez, é atributo da obriga- Pesados ao fim e ao cabo os inconvenientes ção, não do título) é a existência de termo ou a e pontos sensíveis do sistema em vigor, tal qual subordinação da obrigação a condição suspensi- aplicado, e ante o desejo de preservação da multa va, mas nenhuma das hipóteses corresponde ao como elemento sancionador, a solução encontrada formalismo da intimação para cumprimento da pelo novo CPC se mostra satisfatória. Reconhece- sentença (a exigibilidade da obrigação substancial -se de forma implícita que a falta de pagamen- nela afirmada, de resto, é pressuposto para a exi- to, tão logo liberada a eficácia da sentença (pelo gência desse cumprimento, não consequência). trânsito em julgado ou pendência de recurso sem É preciso ter em conta, enfim, que o descum- efeito suspensivo), é bastante para caracterizar seu primento motivador da multa, tal como atual- descumprimento e autorizar o pedido de tutela mente posta, não tem por causa primária o fato executiva; por outro lado, mantém-se a concessão do inadimplemento da obrigação substancial, de uma oportunidade para o pagamento voluntá- em si considerado, senão o desatendimento do rio, no âmbito da execução, antes que o executa- comando judicial emitido em torno daquela; em- do venha a ser apenado com a multa e onerado bora a aplicação da multa se reflita em acréscimo com os honorários advocatícios (a exceção reside do crédito, trata-se de mecanismo de natureza na tentativa de pagamento espontâneo precedente eminentemente processual, e justificado pelo à execução, por iniciativa do devedor; verificada descumprimento de um dever processual (o que, a insuficiência do valor oferecido, a multa incide aliás, faz com que multa dessa ordem fique restri- desde logo sobre a diferença, sendo a impugnação ta, na perspectiva do sistema vigente, a sentenças ao depósito, pelo credor, recebida como pedido N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. condenatórias; não incide, segundo entendemos, 67 Revi s t a d o A d v o g a d o Passou-se, por exemplo, a associar com frequên- 23/04/2015 16:28:48 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. Re v is t a d o A d v o g a d o 68 Livro_126.indb 68 de execução, como se extrai do art. 526 do novo 806, § 1º, e 814) e por outro lado ressalta-se, em Código). caso de conversão em perdas e danos, a liquidação Não deixa, contudo, de ser curioso que, pas- nos mesmos autos (art. 809, § 2º, 816, parágrafo sados quase dez anos, voltemos, com a ressalva único, e 821, parágrafo único), mas nada se cogita da simplificação dos meios de comunicação e da efetivamente quanto às bases para a cobrança da qualificação do ato cientificador como intimação, multa que tenha eventualmente incidido. ao invés de citação, a um modelo estruturalmente Se se pode divisar alguma diferença no tocan- assemelhado ao da execução por processo autôno- te à lacônica disciplina do CPC de 1973, consiste mo (mas, em detrimento da almejada celeridade, no fato de o novo Código chegar a explicitar, no com a concessão ao executado de um prazo para art. 537, § 1º, inciso II, fatores (de resto, intuiti- pagamento voluntário muito superior ao anterior vos) que podem eventualmente levar à exclusão lapso de 24 horas e mesmo ao de três dias que da multa, como o cumprimento parcial superve- remanesceu para as execuções por quantia certa niente da obrigação ou a existência de justa causa fundadas em títulos extrajudiciais). para o descumprimento. Embora não se tenha, aí, buscado propriamente abordar os critérios para a 3 Execução do crédito por astreintes constituição e cobrança do crédito correspondente, a ressalva legal é útil para o raciocínio que a esse A se lamentar, por outro lado, que o legislador respeito se desenvolverá adiante. tenha deixado de atentar para aspecto fundamental relacionado à multa coercitiva no âmbito de execuções por obrigações de fazer, não fazer e dar coisa, vista não como elemento de apoio voltado à efetivação de tutela específica, mas sob a perspectiva do reflexo patrimonial daí resultante. Referimo-nos, basicamente, aos pressupostos para Não deixa de ser curioso que voltemos a um modelo assemelhado ao da execução por processo autônomo. a cobrança do crédito decorrente da incidência da multa, bem como ao procedimento destinado à respectiva apuração. O fato é que a omissão legal e bem assim o reduzidíssimo questionamento do tema na dou- Nota-se, no CPC vigente, o mais completo des- trina e na jurisprudência derivam, ao que tudo prezo à matéria, como se na verdade o problema indica, da equivocada impressão de que a questão não existisse. Limita-se o Código a tratar da uti- se resolva em termos de simples cálculo aritméti- lização da multa como elemento coercitivo (art. co, mediante a multiplicação do número de dias 461, §§ 4º e 5º, e art. 645), bem como a indicar a (ou outra fração temporal adotada pela decisão possibilidade de alteração do valor e da periodi- cominatória) de descumprimento pelo valor uni- cidade, estando ainda pendente a obrigação (art. tário da multa, tudo a fazer com que se tenha va- 461, § 6º). Quando muito, fala-se em liquidação lor desde logo líquido, a teor do art. 475-B, caput, no tocante à hipótese de conversão da obrigação do CPC vigente (arts. 509, § 2º, e 786, parágrafo descumprida em perdas e danos (arts. 627, § 2º, e único, do CPC de 2015), a dispensar qualquer ati- 633, parágrafo único), coisa, entretanto, distinta. vidade complementar de liquidação. Todavia, não No CPC de 2015, a situação é semelhante: é e não pode ser assim; a questão não guarda tal afirma-se a possibilidade de imposição de multa singeleza e está longe de se resolver em termos de por tempo de descumprimento (arts. 536, § 1º, 537, mera liquidez. 23/04/2015 16:28:48 debeatur, é preciso definir o an debeatur, isto é, satisfazer por meio do processo, não incidindo se algo é devido; em outras palavras, se há base pelo mero fato do descumprimento, no plano para a incidência da multa, somente aplicável extraprocessual, da obrigação principal. Tem ela na hipótese de descumprimento injustificado da origem distinta da obrigação substancial, já que obrigação. E, neste ponto, é ocioso lembrar que as é fruto de ferramenta eminentemente processual, situações concretas podem se revestir de maior ou e o próprio direito que pode eventualmente ge- menor complexidade, sendo a hipótese de inércia rar, de ordem pecuniária, não se confunde com a pura e simples do obrigado apenas uma das pos- natureza da obrigação para cuja efetivação busca sibilidades; em muitos casos, será inevitável uma contribuir. atividade valorativa por parte do juiz, quiçá pre- Mesmo no plano processual, por sua função cedida inclusive de instrução, como quando di- coercitiva, e por somente se justificar como ins- vergirem as partes em torno do adequado cumpri- trumento de pressão psicológica voltado a induzir mento, quando houver cumprimento incompleto o cumprimento pelo obrigado, a incidência não ou ainda em face da alegação de impedimentos decorrerá automaticamente do mero desatendi- objetivos ao cumprimento, esses últimos por si só mento objetivo de decisão que imponha o cum- excludentes da aplicação da multa. primento da outra obrigação; é o caso, por exem- Mais ainda: a aparente inércia do réu após plo, de prestação que não mais seja materialmente determinado tempo não exclui hipóteses como a possível, ainda que por culpa do obrigado (que, existência de obstáculo material ainda não decli- além de ficar sujeito a medidas que levem a re- nado nos autos, ou mesmo o cumprimento regu- sultado equivalente, responderá pelo prejuízo que lar da obrigação, porventura omitido pelo credor assim tiver causado, mas não poderá arcar com o (diversamente das obrigações de pagar, demons- pagamento de multa a pretexto de não ter atendido tráveis por depósito em conta judicial, o cumpri- à determinação judicial). mento de obrigações de fazer ou não fazer, como É importante recordar, ainda, que a multa não também de entrega de coisas, normalmente ocorre se faz devida desde o momento em que é arbitrada fora dos autos, no âmbito das relações entre as par- pelo órgão judiciário, nem tampouco no instan- tes, e necessita, para ser reconhecido nos autos, te em que feita a comunicação ao obrigado; até que uma das partes traga a notícia correspondente). esse instante, existe tão somente uma ferramenta De qualquer modo, ainda que se tome o silêncio de ordem processual, a vincular o órgão estatal como indicativo de descumprimento, quando me- ao obrigado, com função coercitiva, classificada nos pelo desatendimento de um pretenso ônus de por autorizada doutrina como sanção preventiva demonstrar a efetivação da prestação, não há como (TALAMINI, 2001, p. 173-176). O efeito jurídico pretender nessa órbita, em nome da unidade do que se estabelece não é o de sujeição do obriga- sistema, a utilização de critérios diversificados, acei- do ao pagamento do que quer que seja, mas tão tando-se que a multa tenha incidência automática somente à possibilidade de vir a responder pela em casos (aparentemente) singelos, dispensando multa em caso de desatendimento do objeto da decisão para a formação do crédito correspondente, determinação. e em outros entender que dependa de manifestação judicial concreta acerca de sua aplicabilidade. Livro_126.indb 69 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. não é mero acessório da prestação que se busca 69 Revi s t a d o A d v o g a d o Antes da indagação em torno do quantum Dita sanção é levada ao obrigado anteriormente à conduta que se pretende ou que se quer evitar, Faz-se necessária, para a adequada compre- sob a forma de ameaça de vir a arcar com con- ensão do problema, a percepção de que a multa sequência negativa caso não cumpra a obrigação 23/04/2015 16:28:48 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. Re v is t a d o A d v o g a d o 70 que lhe toca. Somente com o descumprimento a fluir o prazo de cumprimento fixado na decisão injustificado é que se constituirá eventualmente judicial e apenas então, havendo renitência do crédito em favor do credor, com a manifestação, obrigado, passe a incidir a multa na periodicidade a partir daí, da faceta punitiva desse instrumento antes prevista. No instante inicial, quando coloca- sancionatório híbrido (DIDIER JR., 2007, p. 144), do o réu ou executado em face da determinação e o estabelecimento de relação obrigacional de de cumprir a obrigação sob pena de multa, não crédito a vincular ambas as partes. há na verdade cobrança alguma, simplesmente porque ainda não há crédito algum a ser cobrado. Enfim, é intuitivo, pela própria natureza, fun- É intuitivo que a formação do direito novo decorrente da multa dependerá de manifestação judicial. ção e efeitos da ferramenta assim considerada, que a formação do direito novo decorrente da multa dependerá da manifestação judicial em torno desse aspecto. De toda forma, o problema se torna definitivamente claro quando analisada a questão sob dois enfoques processuais essenciais, A transição, todavia, de um plano ao outro não pode ser feita de forma automática, ou ficar na de- o da formação do título executivo correspondente e o da observância da garantia do contraditório. pendência de declaração unilateral do credor interessado, demandando valoração judicial quanto ao fato de ter havido descumprimento injustifica- 3.1. Decisão que comina a multa e título executivo do após a cominação da multa; e essa valoração, As hipóteses de imposição de multa coerciti- por seu turno, não pode ocorrer sem que se dê va como instrumento de execução indireta, nos oportunidade ao obrigado para o contraditório, a termos em que estruturado o sistema brasileiro (e que, por evidente, deve se seguir decisão judicial a disciplina seguirá a mesma no CPC de 2015), reconhecendo não apenas o direito do credor, em são variadas, podendo a previsão constar de deci- termos autônomos, a uma nova prestação (de di- são definitiva (sentença ou acórdão), de decisão nheiro), como também os limites dessa prestação provisória que conceda provimento antecipatório (sobre as implicações do contraditório em relação ou ainda resultar de decisão proferida já no curso à constituição da multa se falará ainda no item de execução fundada no título judicial ou mesmo 3.2, adiante). em título extrajudicial. A par disso, a cominação Vale notar que a Súmula nº 410 do STJ tem da multa pode constar da própria decisão que tra- enunciado, com o devido respeito, enganoso, dan- ta da obrigação principal objeto do processo (fa- do num primeiro momento a impressão de respal- zer/não fazer ou entregar coisa) ou vir tratada em dar a tese ora sustentada, quando diz constituir separado, de forma isolada. a prévia intimação pessoal do devedor “condição necessária para a cobrança da multa pelo descumprimento da obrigação de fazer ou não fazer”. Se, 2 entretanto, tomado o conteúdo dos acórdãos que lhe serviram de paradigma,3 verifica-se que ali se trata de coisa diversa, vale dizer, da intimação quanto à própria cominação; vale dizer, o obrigado deve ser intimado pessoalmente para que passe Livro_126.indb 70 2.Enunciado aprovado pela 2ª Seção daquela corte em 25/11/2009 e publicado no DJe de 16/12/2009. 3.3ª T., AgRg no Ag nº 774.196-RJ, Rel. Min. Barros Monteiro, j. 19/9/2006, DJ de 9/10/2006, p. 294; 3ª T., REsp nº 629.346-DF, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 28/11/2006, DJ de 19/3/2007, p. 319; 3ª T, AgRg no REsp nº 993209-SE, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18/3/2008, DJe de 4/4/2008; 3ª T., AgRg nos EDecl no REsp nº 1.067903-RS, Rel. Min. Sidnei Benetti, j. 21/10/2008, DJe de 18/11/2008; e 4ª T., AgRg no Ag nº 1.046.050-RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 6/11/2008, DJe de 24/11/2008. 23/04/2015 16:28:48 Livro_126.indb 71 questionamento em torno da exequibilidade de prévia determinação da natureza do direito e de decisão acerca de multa, caso venha ela fixada em seu objeto (DINAMARCO, 1994, p. 488), ou a mera decisão interlocutória, a que não temos dú- representação completa pelo título de uma norma vida em responder pela afirmativa. Ainda que, no jurídica individualizada, “[...] da qual decorra a Código vigente, não houvesse qualquer menção obrigação de alguém prestar a outrem uma coisa, a decisões interlocutórias como títulos executivos uma quantia, um fato ou uma omissão”, permitindo judiciais no rol do revogado art. 584, persistindo “ao juiz que conheça quem deve, o quanto deve e a omissão, após a Lei nº 11.232/2005, no texto do quando deve cumprir a obrigação” (ZAVASCKI, art. 475-N, a doutrina não hesita em reconhecer 1999, p. 144-145). nessas decisões o atributo de proporcionar subse- Há, enfim, obrigação certa, como condição ao quente atividade executiva em torno de seu cum- reconhecimento em qualquer caso de título execu- primento, como corolário de sua própria utilidade tivo, quando nele descrito o objeto da prestação em e razão de ser. E, dentre os exemplos citados, es- termos tais que torne possível sua identificação ao tão justamente as decisões que impõem multa por mero exame do título. E isso, sem sombra de dúvi- atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou da, não ocorre com a multa, ou mais precisamente não fazer (ZAVASCKI, 1999, p. 109). com o suposto crédito que possa gerar, quando se O CPC de 2015, a esse respeito, traz redação lança o olhar sobre a singela decisão que comina mais flexível, mencionando no art. 515, inciso I, multa coercitiva; nesse momento inicial, há tão so- dentre os títulos executivos judiciais, as decisões mente o reconhecimento (ou o reforço) da existên- que reconheçam a exigibilidade de obrigações de cia da obrigação principal, de existência autônoma, pagar quantia, fazer, não fazer ou entregar coisa. e a imposição da multa como ameaça destinada a De todo modo, insista-se, não discutimos a ideia influir psicologicamente sobre o obrigado. de decisões interlocutórias executivas, sendo, aliás, A multa, nesse momento inicial, é mera pos- justamente dessa natureza (e não, certamente, sibilidade abstrata, e não há nessa decisão, como sentença) a decisão que entendemos deva ser pro- antes dito, a afirmação de crédito algum em favor ferida pelo juiz declarando o crédito relativo às do titular da prestação de fazer, não fazer ou en- astreintes no caso concreto. tregar coisa. Para que se concretize o crédito, é O que não se pode aceitar, entretanto, é vislum- preciso que a multa efetivamente incida, e para brar título executivo, no tocante à multa, na deci- tanto a cominação inicial é insuficiente, sendo são inicial que manda citar ou intimar o obrigado necessário um evento complementar, o descum- ao cumprimento da outra obrigação, sob pena de primento injustificado da determinação em torno pagamento daquela. Título executivo, judicial ou da primeira obrigação; esse evento, todavia, sendo extrajudicial, haverá nesse momento quanto à obri- posterior ao pretenso título e a ele estranho, bem gação principal (de fazer, não fazer ou entregar coi- como dependente de valoração (inclusive quanto sa), mas não em torno da multa, dependente de su- a eventuais limites temporais para a incidência da porte fático autônomo, nascido do próprio processo multa), não se presta a retroagir e incorporar-se à e por conta dele (ZAVASCKI, 1999, p. 110; 2000, decisão cominatória para, num momento seguinte, p. 508), vale dizer, o descumprimento da decisão conferir-lhe certeza e exequibilidade em torno do alusiva à obrigação preexistente. crédito pecuniário. Percebe-se inexistir, a respeito da multa, ele- Decisão que comina multa por descumpri- mento essencial à constituição de qualquer título mento, em suma, não é título executivo para a N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. executivo, qual seja a certeza, entendida como a 71 Revi s t a d o A d v o g a d o Essa gama de possibilidades pode levar ao 23/04/2015 16:28:48 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. Rev i st a d o A d v o g a d o 72 cobrança do crédito correspondente. O título credor de obrigação de fazer, munido de decisão consistirá na necessária decisão que deverá ser cominatória de multa, alegar o inadimplemento proferida pelo juiz, após o decurso do prazo para da obrigação principal e requerer, mediante essa cumprimento e denúncia pelo credor da falta de singela afirmação, a execução da multa, com pos- satisfação da prestação, afirmando-se em tal deci- sibilidade de alegação e prova em contrário pelo são a aplicação em concreto da sanção, bem como obrigado no âmbito da execução. delimitando-se o respectivo valor (e isso, destaque- Ocorre que, em sendo o caso, o único adim- -se, sem prejuízo de a multa continuar conforme plemento que comportaria discussão na cobran- o caso incidindo, vindo a ser objeto de posteriores ça da multa seria aquele relativo ao próprio cré- decisões afirmativas de créditos complementares). dito pecuniário, não quanto à obrigação de fazer. Isso porque, no tocante à última, o descumpri- Decisão que comina multa por descumprimento não é título executivo para a cobrança do crédito correspondente. provocação da tutela executiva, mas como elemento constitutivo do próprio direito (ao crédito da multa). Em outras palavras, quando o devedor afirma não ter havido inadimplemento, não nega o título, mas as condições para a exigência forçada do direito correspondente; em matéria de Por tais razões, discordamos respeitosamente multa cominatória, desde que o devedor preten- de Teori Albino Zavascki (2000, p. 508) quando, da, executado pela multa, alegar que não inadim- após destacar a autonomia e independência do pliu (ou que teve motivos para isso) a obrigação suporte fático da multa em relação à outra obri- de fazer principal, na verdade estará questionan- gação, bem como a necessidade de descrição do a própria essência do título relativo ao crédito completa da norma individualizada de modo ao pecuniário, o que, todavia, não é possível fazer preenchimento do requisito da certeza, surpreen- em sede de execução por título judicial (veja-se dentemente, a nosso ver, alega que o título para o item subsequente). a cobrança da multa é formalmente representado Tampouco cabe invocar, como assemelhada, pela própria decisão que impõe as astreintes, fixan- a situação inerente à formação do título executivo do seu valor e a data de sua incidência. judicial no âmbito do processo monitório. Nesse Cabe, por fim, rechaçar a equiparação da situa- caso, é verdade que, citado o réu para pagar ou ção examinada no presente trabalho com outras opor embargos e permanecendo inerte, forma-se apenas aparentemente análogas e que, eventual- de pleno direito (sem necessidade, pois, de deci- mente, poderiam levar a soluções diversas da que são específica) o título, o que poderia dar margem propomos. à consideração de que, em matéria de multa co- Sabe-se, por exemplo, que o inadimplemento é elemento externo ao título, não impedindo assim, Livro_126.indb 72 mento já não atuaria como fator de interesse à minatória, o silêncio também teria efeito constitutivo automático. ainda quando falsamente alegado, a válida for- Não é assim. No processo monitório, neces- mação de processo ou fase executiva em torno de sariamente parte-se de uma obrigação certa e obrigações diversas, com possibilidade de argui- líquida, no sentido de trazer o objeto respectivo ção do tema pelo devedor como matéria de defesa perfeitamente identificado e delimitado na prova (sob a forma de embargos ou impugnação); sob documental apresentada, desprovida de força exe- tal perspectiva, da mesma forma seria possível ao cutiva. O que o silêncio do réu faz, então, é ape- 23/04/2015 16:28:48 gação desde antes passível de reconhecimento. cio jurídico e, por extensão, a aquisição do direito Novamente, faz-se a distinção: no tocante ao a que visa referido negócio. Quando se pensa no arbitramento de multa, não há obrigação alguma descumprimento como fato gerador do direito do desde logo afirmada, no momento da cominação, credor à multa, não se está pensando em qualquer em torno do crédito pecuniário, apenas no tocan- evento externo condicionador da aquisição de um te à obrigação principal, de outra ordem. Para a direito já perfeitamente afirmado, mas sim no pró- formação do crédito pecuniário, o silêncio não prio elemento constitutivo nuclear desse direito. produz consequências automáticas, pois precisará ser valorado e apenas então permitir a afirmação, inovadora, do direito à cobrança de determinada quantia. Por derradeiro, parece-nos importante destacar, também sob a ótica do contraditório, a im- Finalmente, advirta-se não caber a tentativa possibilidade de exigência de multa a partir de re- de identificar na incidência da multa caracterís- querimento unilateral do credor da obrigação de ticas de condição suspensiva em relação à decisão fazer e da referência singela à decisão cominatória cominatória da multa. Humberto Theodoro Jr., da multa. embora adote posição próxima à nossa no tocan- Não é novidade que em certa medida se faz te à inexistência em princípio de título executivo ele presente também na atividade executiva, po- tendente ao pagamento de quantia, que somente dendo eventualmente adquirir maior ou menor surgirá se o executado deixar de cumprir a obriga- amplitude conforme a origem do título executivo. ção, na dependência de adequado reconhecimen- Em se tratando de título extrajudicial, ainda não to do fato gerador, a mora (THEDORO JR., 2007, submetido previamente ao crivo judicial, o con- p. 557), entende que essa atividade constitua uma traditório, ainda que diferido em relação ao início simples liquidação, por artigos, destinada ao acer- dos atos executivos, se faz de forma ampla, com tamento daquele fato, entendendo haver na deci- a mesma amplitude de uma defesa em processo são cominatória uma sentença genérica (THEO- de conhecimento, podendo, portanto, abranger o DORO JR., 2007, p. 222). questionamento inclusive da existência do direito Não recusamos a tese de que a liquidação pos- Livro_126.indb 73 3.2. Multa e contraditório formalmente estampado no título. sa se prestar a algo mais do que a definição de Já no tocante às execuções fundadas em títu- quantias, eventualmente envolvendo também a los judiciais, em que a existência do direito (ou a definição da existência do direito (an debeatur). norma jurídica singular) vem afirmada no próprio Mas, quando assim é, faz-se necessário que a deci- título, a amplitude da resistência admissível no to- são liquidanda traga em si a afirmação inequívoca cante ao executado é naturalmente mais restrita. do reconhecimento do fato gerador necessário à A cognição, pelos próprios objetivos e pela nature- formação do direito, ainda que seja necessário za da atividade aí desenvolvida, não pode se diri- investigar em complemento a repercussão práti- gir ao questionamento da existência do direito, se- ca daquele evento. Sob tal perspectiva, o que se não a aspectos relacionados à respectiva satisfação percebe é que a decisão cominatória da multa, no (a discussão em torno da substância da decisão, se tocante a essa, não ostenta sequer a característica ainda possível, deverá se concentrar no âmbito de de condenação genérica. eventuais recursos ainda cabíveis contra a mani- Além do mais, a condição suspensiva, para os festação judicial). Como se pondera com todo o fins dos arts. 121 e 125 do Código Civil, é evento acerto em sede doutrinária, a execução é proces- N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. futuro e incerto que condiciona a eficácia do negó- 73 Re vis t a d o A d v o g a d o nas permitir que se agregue essa força àquela obri- 23/04/2015 16:28:48 N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. Rev i st a d o A d v o g a d o 74 Livro_126.indb 74 so de finalidade eminentemente prática, voltada desse crédito, eventuais alegações do obrigado à realização do direito, e não ao acertamento de negando o descumprimento, total ou parcial, ou sua natureza ou existência (DINAMARCO, 1994, ainda apresentando justificativa em torno de sua p. 482). impossibilidade material, ou ainda pretendendo Justamente por isso, o rol de alegações defensivas que se concede ao devedor, ressalvada a discu- por razões diversas a limitação do valor total exigido a título de multa. tível exceção derivada do vício de inconstituciona- Nesse caso, considerando a imperiosa necessi- lidade (art. 475-L, § 1º, do CPC vigente, e art. 525, dade de assegurar à parte o contraditório, a alega- § 10º, do CPC de 2015), envolve, além de hipóte- ção terá de ser conhecida, demandando inclusive, ses relacionadas a vício formal de origem no to- conforme o caso, cognição aprofundada em torno cante à citação, situações que envolvam a falta de de matéria fática, com grave subversão da siste- requisitos de exequibilidade, o excesso na própria mática prevista no ordenamento processual, pois execução e a superveniência de fatos modificati- a discussão que aí se estabelecerá terá por objeto a vos, extintivos ou impeditivos do direito (mas não existência e substância do crédito em execução, a negação propriamente dita de sua constituição). o mesmo crédito supostamente presente no títu- Pois bem, se tomada a cobrança de multa comi- lo executivo judicial assim defendido. Vale dizer, natória, desde que se conceda ao obrigado a prévia estar-se-á permitindo que, fora do âmbito recur- possibilidade de manifestação quanto à alegação sal, transporte-se para a execução de títulos exe- de descumprimento, parece natural que, com ou cutivos judiciais a discussão em torno da própria sem intervenção daquele, siga-se, uma vez assegu- constituição e conteúdo da obrigação. rado o exercício do contraditório, decisão judicial E por essas razões que sustentamos, sem em- valorando a situação apresentada (inclusive com a bargo do silêncio do código atual e também do possibilidade de conhecimento de ofício de ques- vindouro, a necessidade de revisão da conduta tões que podem eventualmente afastar ou limitar que a prática parece ter consagrado, preservan- a multa) e reconhecendo a incidência concreta da do-se, em nome de garantias fundamentais do multa, bem como o montante respectivo, com o processo e da própria coerência do sistema, bem que estará resolvido o problema (pois aí será essa como da segurança jurídica, o desenvolvimen- decisão, como entendemos, o título executivo, não to de uma fase prévia de acertamento, por vezes a que anteriormente cominou a multa). mais singela, por vezes inevitavelmente complexa, Em contrapartida, se se admite, como é fre- da qual emerja a afirmação inequívoca do direi- quente na praxe, que a execução se inicie a partir to do credor ao recebimento de quantia a título da mera declaração unilateral do credor de que a de astreintes, a partir daí não mais suscetível de obrigação não foi cumprida, e sem qualquer ou- questionamento no curso da execução respectiva tra formalidade, o órgão judicial poderá se ver na (apenas por recursos contra a própria decisão assim contingência de enfrentar, já em sede executiva proferida). 23/04/2015 16:28:49 Bibliografia Janeiro: Forense, 2007. DIDIER JR., Fredie. Notas sobre a fase inicial do procedimento de cumprimento de sentença (execução de sen- DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. tença que imponha o pagamento de quantia). In: SAN- THEODORO JR., Humberto. Processo de Execução e Cum- TOS, Ernane Fidélis dos; WAMBIER, Luiz Rodrigues; primento da Sentença. 24. ed. São Paulo: Leud, 2007. NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim ZAVASCKI, Teori Albino. Comentários ao Código de Processo (Coord.). Execução Civil – Estudos em homenagem ao Professor Humberto Thedoro Junior. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. Civil. v. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. ______. Título executivo e liquidação. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. N o v o C P C : r e f l e x õ e s e m to rn o d a imp o s ição e cobran ça de mu ltas. ASSIS, Araken de. Cumprimento de sentença. 5. tir. Rio de Re vis t a d o A d v o g a d o 75 Livro_126.indb 75 23/04/2015 16:28:49 N egócios jurídicos processuais: uma nova fronteira? Sumário 1.Introdução 2.Negócios jurídicos processuais no modelo processual em vigor 3.Inspiração estrangeira do Novo Código de Processo Civil 4.Novo Código de Processo Civil: entre suas inspirações e o modelo em vigor Bibliografia 76 Revi s t a d o A d v o g a d o 1 Introdução O Congresso Nacional debateu – em cada casa separadamente e, ao final, as duas casas entre si – e aprovou o primeiro Código de Processo Civil (CPC) brasileiro sancionado em regime democrático (Lei nº 13.105, de 16 de março de Fábio Peixinho Gomes Corrêa Mestre e doutor em Direito Processual pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Norte-Americano pela Regent 2015). Tal processo legislativo durou cerca de cinco anos e produziu norma que, antes de ser aderente a uma ideologia específica, teve em mira o University. Membro da Associação dos Advogados combate a diversas mazelas do sistema processual de São Paulo e da Comissão de Direito Processual em vigor. De céticos a idealistas, muitas opiniões Civil da Ordem dos Advogados de São Paulo. já se formaram e ainda se formarão sobre os alvos eleitos pelas comissões de juristas que participaram diretamente dessa jornada e sobre as chances de esse novo regramento acertá-los. Se o resultado final dessa norma é incerto, o caminho está posto, cabendo aos operadores do Direito contribuírem ativamente para a consolidação dessa relevante conquista da democracia. Esse espírito participativo, Livro_126.indb 76 23/04/2015 16:28:49 aliás, é uma das tônicas do Novo Código de Pro- apenas retomem trilhas já desbravadas e acabem cesso Civil (NCPC), sendo emblemática a esse em expedições infrutíferas. não é exaurir as alternativas de negócios jurídicos No regime do CPC atual, o tema dos negócios processuais, mas sim sobrevoar o tratamento con- jurídicos processuais teve sua relevância reconhe- ferido a este instituto i) na legislação processual cida em trabalhos doutrinários de renomados pro- em vigor e ii) em dois modelos processuais estran- cessualistas como o saudoso Tucci (1977, passim) geiros que inspiraram o NCPC. Ao fim desse so- e Moreira (1984, passim). No entanto, vozes igual- brevoo, será possível visualizar iii) o horizonte de mente relevantes no Brasil controverteram sobre possibilidades que surgem para os negócios jurídi- a existência dos negócios jurídicos processuais, cos processuais no NCPC. destacando-se a opinião de Dinamarco (2009, p. 484). Em meio a essa controvérsia, as tentativas de sistematização desse instituto só se tornaram 2 Negócios jurídicos processuais no modelo processual em vigor mais frequentes ao tempo da elaboração do pro- Livro_126.indb 77 jeto do NCPC. Diante da ausência de “bagagem” Desde a autonomia da ciência processual, é brasileira sobre o arcabouço legal em vigor, coube acesa a controvérsia doutrinária sobre o instituto à experiência estrangeira recente, em especial na do negócio jurídico processual. No entanto, não França e na Itália, servir de inspiração à comissão é objeto deste breve trabalho descrever tal contro- de juristas que tratou desse tema no substitutivo vérsia, a qual contribuiu para o pouco desenvolvi- da Câmara de Deputados, cuja intenção foi inten- mento do tema na doutrina brasileira. Não pode sificar a celebração de negócios jurídicos proces- passar despercebido, porém, que muitos doutri- suais típicos e atípicos. nadores reconheceram a relevância do tema para Um dos alicerces sobre os quais se erigiu essa a ciência processual (MOREIRA, 1984, p. 182), a orientação em prol de negócios jurídicos proces- qual, entretanto, concentrou-se em propagar suais parece ter sido o redimensionamento do a visão de que o processo não é “coisa das partes” princípio do contraditório, estimulando a cola- (CAPPELLETTI, 1969, p. 194), aprofundando seu boração das partes para superar obstáculos que se viés estritamente público. Com a ampliação do mostravam intransponíveis enquanto estas agiam princípio do contraditório e a aceitação de que a isoladamente segundo seus próprios interesses. decisão judicial é produto de elementos oriundos Nesse sentido, o novo regramento processual eli- da participação efetiva das partes (OLIVEIRA, mina qualquer dúvida de que os negócios jurí- 2003, p. 231), intensificaram-se os estudos voltados a dicos processuais serão legalmente admitidos alternativas para as partes otimizarem suas posições em sua máxima amplitude, ressalvado o juízo de processuais. Porém, a lentidão dessa conscientiza- validade. Trata-se de claro incentivo ao exercício ção fez com que os negócios jurídicos processuais da autonomia privada que pode levar as partes a fossem estudados com pouca frequência sob a desbravarem caminhos novos, tal como “bandei- égide do CPC em vigor, apesar de seu art. 158 adotar rantes” penetrando nos diversos rincões do Direi- redação que favorecia ampla discussão. to Processual Civil, em busca de melhorar suas Na realidade, tal dispositivo legal teve sua posições processuais. No entanto, como não se aplicação marcada mais por sua vinculação a hi- trata de instituto propriamente inédito, existe póteses típicas de negócios jurídicos processuais, o risco de que essas novas rotas, em verdade, não galgando tanta notoriedade como cláusula N e g ó c i o s j u r í d i c o s p r o c e s s u ais : u ma n o va fron teira? brarem negócios jurídicos processuais (art. 190). Para servir de guia, o desafio deste trabalho 77 Revi s t a d o A d v o g a d o respeito a ampla autorização para as partes cele- 23/04/2015 16:28:49 N e g ó c i o s j u r í d i c o s p r o c es s u ais : u ma n o va fron teira? Rev i st a d o A d v o g a d o 78 geral apta a propiciar outros negócios jurídicos juízo, b) respeito ao equilíbrio entre as partes e processuais atípicos, muito em razão do dogma à paridade de armas e c) observância dos prin- da irrelevância da vontade das partes no processo cípios e garantias fundamentais do processo no (CUNHA, 2014, p. 10). Não obstante, é inegável Estado Democrático de Direito. A falta de maior o valor que o CPC em vigor conferiu aos negó- sistematização do instituto, contudo, continuou a cios jurídicos processuais típicos, que vão desde a provocar divergências sobre esse tipo de controle, renúncia ao direito de recorrer (art. 502) até a con- por exemplo, no reconhecimento da validade da venção de arbitragem (arts. 267, inciso VII, e 301, escolha das partes por uma jurisdição estrangeira, inciso IX). Ante a autorização para negócios jurí- a qual tanto pode ser entendida como indevida dicos processuais típicos e atípicos que implicam renúncia à jurisdição nacional concorrente (STJ, constituição, modificação ou extinção de direitos 4ª T., REsp nº 1.168.547-RJ, Rel. Min. Luis Felipe processuais, existiu durante os últimos 40 anos re- Salomão, DJ de 7/2/2011) quanto como mero levante margem de liberdade para que as partes pacto de não demandar um dos juízes competentes emitissem declarações unilaterais ou bilaterais de (MESQUITA, 1988, p. 51). vontade. Até mesmo situações de inércia da parte geraram negócios jurídicos processuais com eficácia imediata, como a prorrogação da competência territorial (art. 114). Assim, com exceção da desistência da ação, todos os demais negócios jurídicos processuais produziram efeitos imediatos no siste- É inegável o valor que o CPC em vigor conferiu aos negócios jurídicos processuais típicos. ma processual atual, ficando dispensado o prévio pronunciamento judicial (TORNAGHI, 1975, p. 14). Outras hipóteses de negócios jurídicos processuais foram admitidas sem maiores controvérsias A confirmar esse estímulo à liberdade, o CPC na jurisprudência pátria, valendo mencionar a em vigor pouco dispôs sobre o regime aplicável a simples suspensão convencional do processo (STJ, cada negócio jurídico processual, figurando entre 1ª T., REsp nº 617.722-MG, Rel. Min. Luiz Fux, as exceções a convenção processual sobre a prova, DJ de 29/11/2004, p. 247) e também o acordo cuja validade está sujeita à disponibilidade do di- das partes para que a procedência da demanda reito objeto do processo e à proibição de tornar a relativa a título de crédito tivesse seu resultado prova excessivamente difícil para a parte a quem atrelado à conclusão da prova técnica ordenada incumbirá o ônus da prova (art. 333, parágrafo pelo juiz (TJSP, 12ª Câmara de Direito Privado, único, incisos I e II). Se, de um lado, a convenção Apelação nº 906.181-2, Rel. Des. José Reynaldo, sobre a prova teve poucos avanços em compara- j. 22/6/2005). ção ao fortalecimento dos poderes instrutórios do juiz (BEDAQUE, 2013, p. 112), de outro lado, as condições de validade de tal convenção lançaram 3 Inspiração estrangeira do Novo Código de Processo Civil luzes sobre os meios de controle de validade dos Livro_126.indb 78 negócios jurídicos processuais, quando há o em- Diversos modelos processuais estrangeiros so- bate com normas cogentes. Nesse sentido, Greco freram modificações no século passado, com o (2007, p. 10) concebeu três condições de validade fito de readequar os poderes do juiz para assegurar para as convenções processuais, a saber a) dispo- a duração razoável do processo (CORRÊA, 2012, nibilidade do próprio direito material posto em p. 149). No início do presente século, essa onda 23/04/2015 16:28:49 Livro_126.indb 79 e o princípio da flexibilização procedimental. prestação jurisdicional tempestiva e a necessidade Enquanto o primeiro princípio traduz a substi- de o julgador basear sua convicção em ampla tuição da visão tradicional de adjudicação da lide instrução. Daí por que sobressaem, na França, o por inovadoras soluções processuais cooperativas princípio da cooperação e a garantia do contradi- (CABRAL, 2009, p. 30), o segundo princípio está tório (CADIET, 2008, p. 71). relacionado à adaptação do procedimento às pe- Na Itália, o projeto de lei do ministro da Jus- culiaridades de cada causa, em contraposição às tiça Clemente Mastella, apresentado na Reunião formas procedimentais predefinidas pelo legisla- do Conselho de Ministros de 16 de março de dor (ZUFELATO, 2014, p. 229). Sem a preten- 2007, levou à reforma do art. 183 do Codice di são de fazer transplante de experiências de outros Procedura Civile, criando a audiência programa países, o NCPC aparece alinhado com a ten- (udienza programma), na qual é fixado o calendá- dência mundial de harmonização de diferentes rio processual a ser seguido. Em 2009, houve a re- ordenamentos processuais, que inclui a flexibi- forma do art. 81-bis do mencionado Codice, para lização da estrutura procedimental e a coopera- o fim de atribuir ao juiz os poderes para fixação ção na produção de provas. Dentre os negócios do calendário processual. Em 2011, nova reforma jurídicos processuais que atingiriam tais objetivos, introduziu a expressa previsão de que a fixação do destacou-se a fixação de programa processual entre calendário processual deverá ser orientada pelo juiz e partes, mediante a adaptação consensual do princípio da duração razoável do processo. Desta procedimento. feita, enquanto o instituto análogo francês enfati- Na França, a reforma ao Nouveau Code de za o caráter decisivo da vontade das partes, a legis- Procédure Civile de 28 de dezembro de 2005 in- lação processual italiana insere a fixação do calen- troduziu o contrat de procédure, que consiste em dário processual entre os poderes instrutórios do negócio jurídico processual entre juiz e partes vi- juiz (art. 175). Ao juiz italiano caberá ouvir as par- sando estabelecer prazos de duração do procedi- tes (art. 81) sobre a necessidade de instrução para, mento (art. 764). Tais negócios dividem-se entre à luz de suas manifestações, decidir se o processo atinentes à instauração do processo (l’introduction deve ser remetido diretamente à fase decisória de l’instance) e atinentes ao desenvolvimento do ou se demanda a realização dos atos instrutórios. processo (au déroulament de l’instance). Esse pro- Nesse último caso, o calendário processual fixará tagonismo das partes na delimitação do objeto do antecipadamente todas as fases do processo, o que processo e na definição das formas e prazos dos viabilizará a previsão da duração do processo. To- atos processuais repercutiu na maior valorização davia, não se encontra no regime italiano a mes- do juiz de la mise en état, a quem compete zelar ma carga preclusiva presente no regime francês, pelo bom e regular desenvolvimento da instrução haja vista algumas possibilidades excepcionais de processual (FERRAND, 2005, p. 10). Outro efei- prorrogação dos prazos de ofício ou a requerimen- to colateral do calendário processual foi o fortale- to das partes. Para Caponi (2014, p. 371), os pro- cimento da preclusão, na medida em que ao jul- tocolos para fixação do calendário processual têm gador é dado encerrar a instrução para a parte que caráter de norma jurídica de eficácia persuasiva. descumprir o calendário processual (art. 780), o A despeito das peculiaridades desses dois sis- que gerou reação contrária de parte da doutrina temas, ambos consideram que o calendário pro- que considera essa sanção indevida violação ao cessual não tem caráter obrigatório. O Direito contraditório (VILLACEQUE, 2006, p. 539). francês prevê expressamente que se trata de mera N e g ó c i o s j u r í d i c o s p r o c e s s u ais : u ma n o va fron teira? Como se vê, há clara tensão entre o anseio pela 79 Revi s t a d o A d v o g a d o renovadora fomentou o princípio da cooperação 23/04/2015 16:28:49 N e g ó c i o s j u r í d i c o s p r o c es s u ais : u ma n o va fron teira? Re v is t a d o A d v o g a d o 80 Livro_126.indb 80 “possibilidade” colocada à disposição do juiz de la aplica-se tanto aos negócios unilaterais quanto aos mise en état, ao passo que o Direito italiano não bilaterais, incluindo as convenções processuais contém previsão similar a respeito do juiz instru- do art. 191 [190]”. Tal enunciado adota o enten- tor da causa. Para sanar essa dúvida, a constitucio- dimento de que a função do art. 190 é estabelecer nalidade do art. 81-bis do Codice foi posta à prova hipóteses típicas de negócios jurídicos processuais, perante a Corte Constituzionale italiana, para que que gozam da eficácia imediata prevista no art. 200. esta se pronunciasse se a omissão na fixação do Essa relação gênero-espécie entre tais artigos serve calendário processual configuraria ofensa ao de- como ponto de partida para a análise das duas es- vido processo legal. A referida corte se posicionou pécies previstas no caput do art. 190, quais sejam pela constitucionalidade da aludida norma, por a) mudanças no procedimento para ajustá-lo às es- entender que houve apenas maior detalhamento pecificidades da causa e b) convenções sobre ônus, dos poderes instrutórios do juiz já conferidos pelo poderes, faculdades e deveres processuais das partes. art. 175 do Codice di Procedura Civile. Além disso, A distinção entre essas espécies de negócios jurídicos foi considerado que a omissão ou o desrespeito ao processuais foi exposta no Enunciado nº 257 apro- calendário fixado pelo juiz representariam meras vado pelo referido fórum, no intuito de esclarecer irregularidades procedimentais, passíveis de serem que as convenções sobre ônus, poderes, faculdades corrigidas a requerimento da parte ou de ofício, e deveres processuais não precisam necessariamen- nos moldes dos arts. 175, § 3º, e 298 do Codice di te importar em ajustes às especificidades da causa Procedura Civile. Nesse passo, a aludida corte pon- (Enunciado nº 258), confirmando a viabilidade de derou que obrigar a fixação do calendário processual uma vasta gama de negócios jurídicos processuais afetaria os poderes de gestão do juiz e contrariaria firmados antes do processo ou até do conflito. o escopo da norma, que seria assegurar a duração razoável do processo por meio da adaptabilidade suas inspirações e o modelo em vigor Não se encontra no regime italiano a mesma carga preclusiva presente no regime francês. Encerrado o sobrevoo do modelo processual Independentemente do momento de celebra- em vigor e de dois dos sistemas processuais es- ção do negócio jurídico processual, o art. 190 trangeiros que adotaram o instituto do calendário ressalva que a causa deverá versar sobre “direitos processual, pode-se iniciar o voo de aproximação que admitam autocomposição” e que não deve ter das inovações relativas aos negócios jurídicos pro- havido inserção abusiva em contrato de adesão cessuais, contidas nos arts. 190 e 191 do NCPC. (parágrafo único). Cuida-se de fórmula análoga do procedimento (BARROZO, 2014, p. 450). 4 Novo Código de Processo Civil: entre Desde logo, é digno de nota que os novos dis- à da Lei nº 9.307/1996, relativa à arbitrabilidade positivos não implicaram a revogação do texto do objetiva, sendo possível também encontrar simi- art. 158 do CPC em vigor, o qual se encontra inte- laridade quanto ao aspecto subjetivo, visto que, gralmente reproduzido no art. 200 do NCPC. No para o novo regramento processual, são vedados âmbito do Fórum Permanente de Processualistas os negócios jurídicos processuais com parte Civis, essa convivência foi objeto do Enunciado “em manifesta situação de vulnerabilidade”. nº 261 aprovado durante o encontro ocorrido em Esse conceito jurídico indeterminado reclamará Belo Horizonte, para explicitar que “o art. 200 cuidado da jurisprudência, que o definirá em casos 23/04/2015 16:28:49 Livro_126.indb 81 mentos infundados e indiscriminados quanto à va- sensível avanço por dispensar a realização de in- lidade do negócio jurídico processual. O dispositivo timações quanto a prazos e audiências fixados no em comento também prevê que os negócios jurídi- calendário processual, evitando que o juiz e seus cos processuais podem ser estipulados por “partes auxiliares tenham que praticar mais atos do que plenamente capazes”, excluindo, por conseguinte, aqueles efetivamente necessários. do âmbito do art. 190 os negócios jurídicos proces- Esse breve voo em direção aos novos disposi- suais que necessitem da atuação do Ministério Pú- tivos legais sobre negócios jurídicos processuais blico como fiscal da lei, em razão de nele figurarem revela o horizonte de possibilidades para aqueles partes absoluta ou relativamente incapazes. que quiserem usufruir da liberdade conferida No que toca especificamente ao calendário pelo legislador. Por óbvio, não se descarta o con- processual, é possível entrever a opção legislativa trole judicial da validade dos negócios jurídicos pela neutralidade quanto à responsabilidade por processuais, que também foi intensificado para sua fixação, dado que o art. 191 convida o juiz e fazer frente às iniciativas das partes, tal como se as partes “de comum acordo”. Ademais, a expres- deu em relação ao juiz de la mise en état quan- são “quando for o caso” reforça o caráter facultati- to ao calendário processual na França. De mais vo desse calendário processual, tal como se dá na relevante das experiências estrangeiras que ins- França e na Itália. No entanto, uma vez fixado o piraram a referida norma, pode-se extrair que o calendário processual, o § 1º do art. 191 estabelece negócio jurídico processual deve se manter ver- regime preclusivo que não é explícito quanto a suas dadeiro a suas origens, de tal sorte que não há consequências como o modelo processual francês, dever inafastável de adaptação procedimental e merecendo destaque a referência de vinculação do não se pode violar princípios e garantias funda- juiz aos prazos que vierem a ser fixados em con- mentais do processo no Estado Democrático de junto com as partes. Considerando que algumas Direito. Caso venham a se valer dos negócios jurí- “etapas mortas” do procedimento ocorrem duran- dicos processuais, caberá às partes e ao juiz cola- te espera por atos do juiz, o calendário processual borarem em prol da definição de seu plano de conseguirá agilizar o trâmite processual se a regu- voo conjunto no processo civil, tendo em mente lamentação dessas etapas do processo for cumprida as coordenadas básicas expostas anteriormente. N e g ó c i o s j u r í d i c o s p r o c es s u ais : u ma n o va fron teira? à risca. Nesse ponto, o § 2º do art. 191 representa 81 Revi s t a d o A d v o g a d o concretos, para que não se torne fonte de questiona- 23/04/2015 16:28:49 Bibliografia BARROZO, Thaís Aranda. O Calendário Processual no Di- FERRAND, Fréderique. The Respective Role of the Judge reito Francês e no Italiano: Reflexos no Novo CPC Brasi- and the Parties in the Preparation of the Case in France. leiro. 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I Colóquio Brasil-Itália de Direito Processual Civil, 2014. p. 216-235. No prelo. 23/04/2015 16:28:49 U m novo paradigma para o juízo de admissibilidade dos recursos cíveis. Primeiras impressões sobre o art. 932, parágrafo único, do Novo Código de Processo Civil. Sumário 1.O art. 932, parágrafo único, do NCPC 2.O juízo de admissibilidade dos recursos 3.O estado da questão na vigência do CPC/1973: a impossibilidade de correção de defeitos formais dos recursos como regra geral NCPC 1 O art. 932, parágrafo único, do NCPC Inserido no capítulo referente à “ordem dos Flávio Cheim Jorge Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela processos nos tribunais”, mais especificamente PUC-SP. Professor nos cursos de graduação e em dispositivo destinado a tratar dos poderes do mestrado da Ufes. Advogado. Ex-juiz do TRE-ES – relator, determina o parágrafo único do art. 932 Classe dos Juristas – Biênios 2004/2008. do Novo Código de Processo Civil (NCPC) que, Thiago Ferreira Siqueira “antes de considerar inadmissível o recurso, o rela- Doutorando em Direito Processual Civil pela USP. tor concederá o prazo de cinco dias ao recorrente Mestre em Direito Processual Civil pela Ufes. 83 Revi s t a d o A d v o g a d o 4.A alteração de paradigma no sistema do para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível”. A regra, que não encontra equivalente no Código hoje vigente (CPC/1973), imprimirá relevantíssima alteração no sistema processual, representando, a nosso ver, verdadeira mudança de paradigma em relação à admissibilidade dos recursos cíveis. Livro_126.indb 83 23/04/2015 16:28:49 U m n o v o p a r a d i g m a p a r a o ju ízo d e ad missibilidade dos recu rsos cíveis. 2 O juízo de admissibilidade dos recursos Rev i st a d o A d v o g a d o 84 Como todo ato postulatório, os recursos estão sujeitos a um duplo exame: o primeiro destina-se a aferir se estão presentes as condições que a lei processual coloca para que se possa realizar a postulação, para admiti-la ou não; já no segundo, analisa-se o próprio conteúdo da postulação, para rejeitá-la ou acolhê-la. de admissibilidade dos recursos são questões de ordem pública, vez que a análise de sua presença interessa não apenas às partes, mas sobretudo ao próprio órgão julgador. Afinal, a este último cabe o papel de controlar a legitimidade da prestação jurisdicional, o que, no caso, se faz mediante a análise das condições que se encontram previstas na própria lei para que o recurso seja considerado regular. Consequência desta característica é o fato de que sua apreciação pode ser feita de ofício, não Os requisitos de admissibilidade dos recursos são questões de ordem pública. estando sujeita à preclusão. Sete são os requisitos de admissibilidade dos recursos – divididos em duas categorias distintas: os requisitos i) intrínsecos – concernentes à existência do poder de recorrer – são i.1) o cabimento, Fala-se, assim, em juízo de admissibilidade e juízo de mérito dos recursos. Naquele, o órgão competente verifica se o recurso preenche todos os chamados requisitos de admissibilidade e, portanto, merece ser conhecido; ou, ao contrário, se deve ser inadmitido pela ausência de alguma daquelas condições. Ultrapassada esta etapa, é analisado se a pretensão recursal – reforma, anulação, integração ou esclarecimento da decisão – merece ser provida ou improvida, pela presença de algum error in judicando ou error in procedendo. Livro_126.indb 84 Costuma-se falar, ademais, que os requisitos i.2) a legitimidade para recorrer, i.3) o interesse em recorrer e i.4) a inexistência de fatos impeditivos ou extintivos do poder de recorrer; já os ii) extrínsecos – relacionados ao modo de exercer o poder de recorrer – são ii.1) a tempestividade, ii.2) a regularidade formal e ii.3) o preparo. 3 O estado da questão na vigência do CPC/1973: a impossibilidade de correção de defeitos formais dos recursos como regra geral No sistema do Código hoje em vigor, a regra, A análise da admissibilidade dos recursos se como se sabe, é a de que todos estes requisitos de- coloca, como parece óbvio, como questão prévia vam estar presentes já no ato de interposição do a seu juízo de mérito, vez que, do ponto de vista recurso. Isto é: não se permite, geralmente, que, lógico, deve lhe ser antecedente. Dentre as ques- após ter apresentado seu recurso em juízo, venha tões prévias, pode-se dizer, ainda, que os requisi- a parte a corrigir algum defeito que comprometa a tos de admissibilidade enquadram-se na categoria admissibilidade daquele. das questões preliminares, vez que sua presença Neste sentido, por exemplo, conhecida é a po- ou ausência torna possível ou não a realização do sição do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que juízo de mérito, sem interferir no conteúdo deste. não permite que o pagamento do preparo (art. 511) Contrapõem-se, destarte, às chamadas questões seja comprovado após a interposição do recurso, prejudiciais, que, sem condicionar a possibilidade ainda que não tenha se escoado o prazo recursal de realização do juízo de mérito, interferem no (STJ, 2ª T., AgRg no REsp nº 1488508-RS, Rel. que nele será decidido. Min. Mauro Campbell Marques, j. 2/12/2014, 23/04/2015 16:28:49 o entendimento segundo o qual a falta das peças te a correção de defeitos no recurso apresentado, obrigatórias do agravo de instrumento (art. 525, ou quem permite que seja relevado o descumpri- inciso I) deve levar, de plano, à inadmissão do re- mento de algum requisito. curso, sendo vedada a sua juntada posterior (STJ, É o que se passa, por exemplo, com os casos em 3ª T., AgRg no AREsp nº 99.576-DF, Rel. Min. que o preparo é recolhido em valor insuficiente: Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 16/9/2014, DJe de nestas situações, o § 2º do art. 511 do CPC/1973 25/9/2014). outorga à parte a possibilidade de complementar Apesar de não ser posição unânime no âmbito o pagamento, tornando, destarte, admissível o seu doutrinário, sempre entendemos que, não exis- recurso. Importante notar que tal hipótese não se tindo no CPC hoje vigente qualquer norma que confunde com aquela na qual, descumprindo o contemple tal possibilidade em caráter geral, não caput do mesmo art. 511, o recorrente deixa de se deve oportunizar a correção dos vícios formais comprovar, no ato de interposição do recurso, o contidos no recurso após a sua interposição, exce- pagamento das custas, caso em que, em nome da to quando a própria lei o determinar. preclusão consumativa, não se permite a compro- É de se notar, neste ponto, que o sistema recursal é fortemente marcado pelo fenômeno Ainda sobre o preparo, há que se mencionar das preclusões. Incide, por exemplo, a preclusão o art. 519 do CPC/1973, que permite que seja re- temporal, a inviabilizar o exercício do direito de levada a pena de deserção e fixado o prazo para recorrer após o escoamento do prazo que a lei co- o recolhimento das custas após a interposição do loca para tanto. Ou, ainda, a preclusão lógica, que recurso caso o recorrente prove a ocorrência de impede o conhecimento do recurso de um sujeito justo impedimento. que tenha, anteriormente, praticado ato incompa- Outra hipótese em que o sistema hoje vigente tível com a vontade de recorrer, como é o caso da permite desconsiderar a ausência de requisito de renúncia ao direito de recorrer ou ao direito sobre admissibilidade é aquela prevista no art. 183, que o qual se funda a ação, da desistência do recurso torna admissível o recurso interposto intempesti- ou da demanda, da aquiescência, do reconheci- vamente se provada a existência de justa causa. mento jurídico do pedido, etc. Afasta-se, com isso, a preclusão temporal que inci- Nessa mesma linha, entendemos que também Livro_126.indb 85 vação posterior. U m n o v o p a r a d i g m a p a r a o ju ízo d e ad missibilidade dos recu rsos cíveis. quem determina que deva ser oportunizada à par- 85 Revi s t a d o A d v o g a d o DJe de 10/12/2014). Nesta mesma linha, ainda, é diria pelo escoamento do prazo recursal. deve ter plena aplicação ao procedimento recursal Vale lembrar, outrossim, da regra disposta no a preclusão consumativa: uma vez exercido o direi- art. 13 do CPC/1973, que permite que seja sanado to de recorrer, não pode a parte recorrente praticar o vício da irregularidade na representação mesmo novamente tal ato em relação à mesma decisão ju- após a interposição do recurso, corrigindo, destar- dicial, ou, ainda, complementar ou aperfeiçoar o te, a ausência de regularidade formal. recurso anteriormente interposto. Não vemos razão, Por fim, não se pode deixar de ressaltar a fun- neste ponto, para deixar de dar plena aplicação a esta gibilidade recursal, que, malgrado não esteja ex- específica modalidade de preclusão, que, longe de pressa no CPC/1973, tem aceitação pacífica na constituir mero formalismo estéril, tem papel da doutrina e na jurisprudência. Trata-se, como se mais alta relevância no sistema processual, impe- sabe, de princípio que permite abrandar o requisi- dindo avanços e retrocessos no procedimento. to do cabimento, tornando admissível um recurso Na verdade, é importante perceber que, em que tenha sido interposto no lugar de outro, que determinadas situações, é o próprio CPC/1973 seria o correto. Para tanto, é necessário que haja 23/04/2015 16:28:49 alguma dúvida objetiva a respeito do recurso U m n o v o p a r a d i g m a p a r a o ju ízo d e ad missibilidade dos recu rsos cíveis. adequado. Re v is t a d o A d v o g a d o 86 Livro_126.indb 86 A norma – é importante deixar claro – aplica-se a todo e qualquer recurso, não se devendo fazer Todos estes exemplos estão a demonstrar, a nosso restrição a esta ou aquela espécie recursal. Afinal, ver, que é o próprio sistema processual hoje vigen- como dito, trata-se de regra prevista em capítulo te quem, em certas situações e diante de circuns- do NCPC destinado a regular, indistintamente, a tâncias que considera relevantes, por vezes afasta a “ordem dos processos nos tribunais”, mais especi- preclusão consumativa ou mesmo a necessidade do ficamente em dispositivo (art. 932) que cuida dos preenchimento de determinados requisitos de ad- poderes do relator. missibilidade. Fora disso, deve ser privilegiada a opção do legislador, sendo vedada a complementação ou a correção do recurso já interposto. 4 A alteração de paradigma no sistema do NCPC Em outras palavras, trata-se de verdadeira alteração de paradigma no juízo de admissibilidade dos recursos. Estas conclusões nos parecem as mais corretas, ressalte-se, para o sistema hoje vigente, em que, ao A dificuldade maior, todavia, é precisar lado de estatuir requisitos para a admissibilidade em quais situações concretas o dispositivo terá dos recursos, o legislador, em situações excepcio- incidência. nais, por vezes optou por abrandar o rigor de um A este respeito, vale dizer que, como parece ou outro pressuposto, ou por permitir a correção claro, apenas diante de vícios que sejam sanáveis de algum defeito no recurso já interposto. há espaço para a aplicação do dispositivo. Isto é: É outra, todavia, a premissa da qual se deve constatando o relator a existência de defeitos que partir na análise do NCPC: havendo, no texto, comprometam irremediavelmente a admissão do norma geral como a do art. 932, parágrafo único, recurso, não podendo ser corrigidos, não se justifica a regra é a de que a parte tem direito à correção a abertura de prazo para o recorrente. de um determinado vício contido em seu recurso, sem qualquer ônus, além de fazê-lo no prazo de Vejamos, então, algumas hipóteses em que a aplicação da regra pode-se mostrar útil. cinco dias. Tal regra apenas pode ser afastada nos Sabe-se que, pelo requisito da regularidade for- casos em que exista norma específica excepcio- mal, é necessário que o recurso respeite uma série nando sua incidência. de preceitos de forma previstos na lei processual. Há, com isso, clara inversão em relação ao Em primeiro lugar, é necessário que qualquer sistema hoje vigente: se, atualmente, a regra é a recurso seja interposto por i) petição escrita, ii) as- de que a preclusão consumativa impede a corre- sinada por advogado com iii) poderes para repre- ção de defeitos no recurso já interposto, no novo sentar a parte recorrente. Código a ideia será a de que a preclusão nestas Quanto a estes dois últimos requisitos, parece- situações deve ser afastada, em prol da possibili- -nos que o art. 932, parágrafo único, do NCPC dade de correção do defeito que até então tornava pode exercer relevante função: é que, como se inadmissível o recurso. sabe, a jurisprudência dos tribunais superiores Em outras palavras, trata-se de verdadeira al- tem entendido que, enquanto nas instâncias ordi- teração de paradigma no juízo de admissibilidade nárias, verificada a falta de assinatura ou a irregu- dos recursos. laridade de representação, deve a parte ser intima- 23/04/2015 16:28:50 o vício, em se tratando de recursos excepcionais é (NCPC, art. 1.017, inciso I). inviável adotar tal diligência (STJ, 2ª T., AgRg no Atualmente, como já foi dito, o entendimento REsp nº 1422681-PE, Rel. Min. Mauro Campbell jurisprudencial, na linha do que defendemos, é Marques, j. 20/2/2014, DJe de 28/2/2014). o de que, ausente algum destes documentos, não A partir da vigência do novel dispositivo, toda- há oportunidade para a parte corrigir o defeito via, tal distinção, hoje já extremamente criticável, após a interposição do recurso. Com o art. 932, não mais se sustentará: em se tratando de defeito parágrafo único, do NCPC, porém, deve o relator formal, passível de correção, em qualquer dessas oportunizar ao agravante a juntada posterior da situações há de ser a parte intimada para suprir a peça faltante, como, aliás, faz questão de frisar o falha. art. 1.017, § 3º, do NCPC. Prosseguindo, é necessário que todo e qual- Podemos citar, ainda, o caso do recurso es- quer recurso contenha iv) pedido de reforma, pecial fundado em dissídio jurisprudencial, que, anulação, integração ou esclarecimento da deci- nos termos do art. 1.029, § 1º, do NCPC, deve ser são, e v) adequada fundamentação a respeito da provado existência de errores in procedendo e/ou errores in “com a certidão, cópia ou citação do repositó- judicando, ou seja, os motivos que poderiam levar rio de jurisprudência, oficial ou credenciado, in- ao acolhimento da pretensão recursal. clusive em mídia eletrônica, em que houver sido Sobre este último ponto, aliás, é hoje assente publicado o acórdão divergente, ou ainda com a a necessidade de que seja observado o chamado reprodução de julgado disponível na rede mun- princípio da dialeticidade, que diz respeito justa- dial de computadores, com indicação da respec- mente à existência de razões que sejam coeren- tiva fonte”. tes com o conteúdo da decisão recorrida, sem as quais o recurso deve ser inadmitido. que deve o recorrente, em suas razões, “demons- Aqui, mais uma vez, entendemos que o art. 932, trar a existência da repercussão geral” (NCPC, parágrafo único, do NCPC pode exercer interes- art. 1.035, § 2º). Ainda que não exista no Código sante papel. projetado norma semelhante à do atual art. 543-A, É que, em relação ao sistema hoje vigente, a § 2º – que exige que o recurso contenha prelimi- preclusão consumativa impede que as razões re- nar específica para tanto –, é certo que a funda- cursais sejam juntadas ou mesmo complementa- mentação a respeito se trata de requisito formal do das após a interposição do recurso. No novo sis- recurso extraordinário. tema, todavia, em que a regra será a possibilidade de correção dos vícios sanáveis, deve o relator, se os embargos de divergência sejam instruídos “com certidão, cópia ou citação de repositório fundamentado, ou mesmo quando inexistente pe- oficial ou credenciado de jurisprudência, inclusive dido de reforma ou anulação, intimar o recorrente em mídia eletrônica, onde foi publicado o acórdão para suprir a falha. divergente, ou com a reprodução de julgado dispo- de forma que dizem respeito especificamente a certas modalidades recursais. 87 Vale mencionar, por fim, a necessidade de que entender que o recurso não está adequadamente Há que se mencionar, ainda, alguns requisitos Livro_126.indb 87 Ou, mesmo, do recurso extraordinário, em U m n o v o p a r a d i g m a p a r a o ju ízo d e ad missibilidade dos recu rsos cíveis. instruído com as chamadas peças obrigatórias Revi s t a d o A d v o g a d o da nos termos do art. 13 do CPC/1973 para suprir nível na rede mundial de computadores, indicando a respectiva fonte” (NCPC, art. 1.043, § 4º). Em todos estes e outros casos, em que a lei Assim, por exemplo, em relação ao agravo de processual faz alguma exigência formal para o co- instrumento, há necessidade de que o recurso seja nhecimento do recurso, pensamos que possa ser 23/04/2015 16:28:50 U m n o v o p a r a d i g m a p a r a o ju ízo d e ad missibilidade dos recu rsos cíveis. aplicada a diretriz contida no art. 932, parágrafo recorrer), vez que sua ausência equivale à inexis- único, do NCPC: verificada a falha na peça utiliza- tência do poder de recorrer naquela específica si- da, e sendo tal defeito sanável, deve o relator, antes tuação. O mesmo se diga, ainda, no que concerne de inadmitir o recurso, oportunizar ao recorrente a à tempestividade: uma vez descumprido o prazo chance de corrigir o vício no prazo de cinco dias. recursal, opera-se a preclusão temporal e, assim, O dispositivo, todavia, como dito, apenas tem deixa de existir o direito de recorrer (NCPC, art. utilidade na correção de irregularidades que 223). Já em relação ao preparo, há regra que deter- sejam sanáveis. Dificilmente, assim, terá inci- mina que, não comprovado o seu pagamento, deve dência em relação ao descumprimento de al- o recorrente ser intimado para recolhê-lo em dobro gum dos requisitos intrínsecos de admissibilidade (NCPC, art. 1007, § 4º), norma que, por seu caráter (cabimento, legitimidade, interesse e inexistência especial, afasta a aplicação do art. 932, parágrafo de fatos extintivos ou impeditivos do poder de único. Re v is t a d o A d v o g a d o 88 Livro_126.indb 88 23/04/2015 16:28:50 C onvenção das partes em matéria processual no Novo CPC. Sumário 1.Objeto e premissas 2.Elementos de existência e requisitos de validade 3.Normas processuais cogentes: temas infensos à convenção das partes 4.Segue: temas propícios à convenção das partes 5.A título de conclusão Bibliografia Dentre as alterações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil (CPC), uma delas, em particular, haverá de desafiar a criatividade dos advogados, de quem, aliás, em boa medida dependerá o êxito ou a inoperância da novidade. Trata-se da 89 Revi s t a d o A d v o g a d o 1 Objeto e premissas possibilidade de que, mediante certas condições, regras processuais sejam estabelecidas pelas partes Flávio Luiz Yarshell Livre-docente. Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de (art. 190). Não se cuida de algo propriamente novo. No São Paulo. Professor titular de Direito Processual Direito Positivo, para ilustrar, a disciplina legal da da Faculdade de Direito da Universidade de arbitragem ganhou fôlego inegável com a Lei nº São Paulo. Advogado em Brasília e em São Paulo. 9.307/1996; mas, a rigor, já vigorava antes disso. Ela já era – e continua a ser – campo relevante para a autonomia da vontade; quer por permitir que as partes abram mão da jurisdição estatal, quer pela prerrogativa de estabelecerem suas próprias regras processuais. Além disso, no CPC de 1973, desde sempre se facultou convenção sobre competência (eleição de foro) e distribuição do Livro_126.indb 89 23/04/2015 16:28:50 C o n v e n ç ã o d a s p a r t e s e m matéria p ro ces s u al n o Novo CPC. Rev i st a d o A d v o g a d o 90 ônus da prova, dentre outros. Também na legis- as normas convencionais devem “simplificar” o lação extravagante havia tal possibilidade, aqui processo, porque o conceito de simplicidade, por ilustrada pela lembrança ao inciso IV do art. 58 incrível que pareça, envolve boa margem de sub- da Lei nº 8.245/1991. Tampouco o tema era desco- jetividade e nem sempre é tão fácil de estabele- nhecido da doutrina nacional, bastando lembrar – cer... O que pode ser “simples” aos olhos do juiz por todos – o trabalho de José Carlos Barbosa nem sempre o será aos olhos das partes e de seus Moreira (1984), escrito há mais de 30 anos, com advogados, cuja visão sobre o litígio e o processo algo de visionário, ao menos para nós. há que também ser levada em conta. No limite, a exigência de “simplicidade” pode, embora de for- O que pode ser “simples” aos olhos do juiz nem sempre o será aos olhos das partes. para desestímulo à formulação de regras convencionais. De outro lado, é preciso considerar que, sem embargo da abertura dada à autonomia da vontade, o processo continua a ser instrumento a ser- Mas, mesmo à míngua de estatísticas a res- viço do Estado, isto é, para atingir objetivos que, paldar a assertiva, parece lícito afirmar que, fora embora também sejam das partes, são públicos: do processo arbitral, a autonomia da vontade fa- atuação do direito objetivo, pacificação social cultada até aqui foi pouco exercitada pelas par- (pela eliminação da controvérsia) e afirmação do tes, por intermédio de seus advogados. Isso talvez poder estatal. Para os fins do objeto ora estuda- se explique precisamente pelo fato de que, sendo do, não parece factível imaginar que juiz estatal a margem de disposição relativamente pequena, e árbitro possam ser singelamente colocados em seria inútil – ou quando menos arriscado – o idêntico patamar. Uma arbitragem é instituída esforço para criação de normas processuais con- para um caso específico e os árbitros são juízes vencionais que, depois, simplesmente não fos- dessa particular situação; já o órgão estatal tem a sem chanceladas pelo órgão jurisdicional estatal. seu cargo uma plêiade de processos e a instituição Melhor, nesse contexto, simplesmente aderir às de diferentes regras processuais – embora não pos- normas legais, ainda que, em determinados ca- sa justificar a pura e simples recusa da convenção sos – por conta das peculiaridades das partes e das partes pelo juiz – deve levar em conta as ca- da controvérsia –, elas talvez não fossem as mais racterísticas e peculiaridades do órgão estatal e da adequadas ou racionais. atividade por ele desenvolvida. Agora, com a vigência do novo diploma, esse quadro pode mudar. Livro_126.indb 90 ma patológica, acabar funcionando como pretexto De todo modo, embora com visão realista e crítica sobre o limitado alcance do novo regime, Naturalmente, não se trata apenas de uma fato é que novos horizontes se abrem para as par- oportunidade para o exercício da criatividade dos tes e caberá a seus advogados construir, se for pos- advogados. Por um lado, regras processuais con- sível e necessário, o processo adequado a suas ne- vencionais, que alterem as opções feitas pelo legis- cessidades. As deliberadamente breves e concisas lador, devem ser pensadas como forma de trazer considerações que seguem – menos acadêmicas e resultados relevantes para racionalização do pro- mais pragmáticas – não são mais do que um con- cesso. Por isso é que a lei falou em mudanças no vite à reflexão: em que medida e de que forma procedimento para “ajustá-lo às especificidades será explorada a autonomia da vontade conferida da causa”. É preferível, a respeito, não falar que pela lei em matéria processual? 23/04/2015 16:28:50 ponto o órgão judicial pode, ou não, desvincular-se Há relevante controvérsia na doutrina sobre a do ato que anteriormente chancelou. A resposta terminologia a ser empregada nesta seara e, mais para isso é positiva e, tal como consta do Projeto do que isso, se efetivamente seria correto falar-se de Novo Código Comercial que (na data em que em negócio processual. Aqui, de forma delibera- escrito o artigo) tramita perante o Senado, o con- da, essa discussão – conquanto seja das mais re- teúdo do calendário só pode ser modificado “em levantes – é deixada de lado. Então, apenas por casos excepcionais devidamente justificados” comodidade, o texto empregará a locução “negó- (art. 950, § 2º). cio processual” para designar o resultado da convenção das partes em matéria processual. O negócio também tem um tempo – que pode ser relevante para, dentre outros, determinar a le- Esse negócio consiste em declaração de von- gislação aplicável ao ato – e um lugar, embora não tade emitida pelas partes. Para que ele tenha se deva confundir o local da celebração do negó- existência, deve ter a forma escrita ou, por outras cio com a base territorial na qual se deve produzir palavras, deve ser de alguma forma documenta- a respectiva eficácia. da. O negócio processual deve resultar de vonta- A validade do negócio processual, conforme já de manifestada de forma expressa e não pode ser preconizara a doutrina precedentemente invoca- presumido do silêncio – o que não quer dizer que da, está sujeita a um regime misto. Ela está sub- esse último seja irrelevante no processo, por força metida tanto às regras do Código Civil quanto ao do ônus de alegação que as partes têm. Seu obje- CPC. Em tentativa de resumir o que parece ser to são as condutas voluntárias, a serem realizadas relevante, dados os limites do presente trabalho, em processo e destinadas a produzir efeitos sobre tem-se o seguinte: ele. Regular-se-ão tanto as posições jurídicas que resultam da relação processual (a lei fala em ônus, Livro_126.indb 91 balho), o que interessa sobre isso é saber até que a) a manifestação de vontade deve ser consciente, livre e em ambiente de boa-fé; poderes, faculdades e deveres) como os atos que b) deve haver igualdade substancial entre as compõem o aspecto formal do processo, que é o partes ou, quando menos, é preciso que o negó- procedimento. O negócio poderá prever termos e cio processual assegure essa situação (“paridade condições, embora seja preciso atentar para a cir- de armas”), ainda que haja desigualdade no plano cunstância de que o ato processual normalmente material; não se concilia com o caráter condicional. Tam- c) a convenção é admissível mesmo em pro- bém é possível, ao menos em tese, que ele conte- cessos “de Estado”, desde que capazes as partes nha cláusula penal, dentre outras disposições. (a lei não falou em direitos patrimoniais, mas em Sujeitos do negócio são as partes. Poder-se-á causas que “admitam autocomposição”) – por discutir se também o juiz (que personifica o Es- isso, não há impedimento para que dele participe tado) ocupa essa posição. Embora isso possa ser a Fazenda Pública; relevante – basta ver que, no caso de se estabele- d) a convenção deve se ajustar aos postulados cer um calendário, a lei diz que o juiz também do devido processo legal – ou, como mais explíci- fica vinculado – essa questão sugere debate que, ta e adequadamente consta da Lei de Arbitragem embora sem ser estéril, aproxima-se daquele já (art. 21), à observância dos princípios do contradi- travado há muitas décadas, sobre se a relação pro- tório, igualdade, imparcialidade e livre convenci- cessual teria natureza dúplice ou tríplice. Sob o mento; C o n v e n ç ã o d a s p a r t e s e m matéria p ro ces s u al n o Novo CPC. de validade ângulo pragmático (escolhido para este curto tra- 91 Revi s t a d o A d v o g a d o 2 Elementos de existência e requisitos 23/04/2015 16:28:50 C o n v e n ç ã o d a s p a r t e s e m matéria p ro ces s u al n o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 92 e) os sujeitos devem ser “plenamente capazes” aproveitar a oportunidade que deu o legislador. (art. 190, caput); o que exclui a possibilidade de Antes, a vontade das partes estava limitada essen- que seja celebrado por relativamente incapazes, cialmente ao que a lei autorizava (ainda que fosse mesmo que regularmente assistidos (embora nesse sustentável a tese de que a autonomia da vonta- caso não se trate de nulidade, mas de anulabi- de poderia extrapolar os casos expressos pela lei); lidade); doravante, esse raciocínio pode ser invertido: nas f) a convenção pode ser celebrada pelas entida- condições e limites que ela traça, a lei processual des que, embora despidas de personalidade civil, tolera tudo o que não seja explícita ou implicita- têm aptidão de estar em juízo (condomínio, espó- mente por ela vedado. Há aí certa analogia com lio e outros análogos); a clássica (quiçá imperfeita) máxima empregada g) não sendo exigível capacidade postulatória, para separar o Direito Público e o Privado, sob a a rigor, a validade não está condicionada à pre- ótica da legalidade (segundo a qual o particular sença do advogado, embora tal intervenção seja poderia fazer tudo o que a lei não vedasse; e o fundamental pela natureza e pelo conteúdo do Administrador só poderia fazer o que a lei auto- negócio; rizasse). h) não há forma prevista em lei e, portanto, é admissível o instrumento particular, independentemente de qual seja a matéria controvertida no processo correlato; i) não é possível derrogar normas processuais cogentes (infra nº 3). 3 Normas processuais cogentes: temas infensos à convenção das partes Na busca do que seja cogente em matéria processual, convém lembrar que a lei processual continua a estabelecer que certas matérias podem e Dentre os requisitos de validade do negócio devem ser conhecidas de ofício pelo juiz. Contudo, processual, aquele indicado na letra i do tópico embora isso possa servir como um parâmetro, tal precedente é o que parece oferecer maiores difi- dado não resolve o problema de determinar se real- culdades. mente vige o caráter indisponível de certa norma As normas de Direito Processual integram o processual. Tampouco é suficiente identificar nor- Direito Público. Ainda que elas possam agora ma cogente e devido processo legal: por certo, há resultar da vontade das partes, continuam a regu- inúmeras regras que merecem aquela qualificação, lar uma atividade estatal e o correspondente ins- mas que não dizem respeito – não ao menos dire- trumento posto a serviço de escopos que, como já tamente – aos postulados que integram o conceito foi realçado anteriormente, são também públicos. de devido processo legal. Além disso, o Projeto de Daí a perspectiva tradicional de que somente em Novo Código Comercial que tramita no Congres- casos excepcionais tais regras poderiam ser deter- so oferece também algumas referências, ao discipli- minadas pelos interessados. nar o que ali se chamou de “processo empresarial” Mas, sem que o processo jurisdicional estatal tenha propriamente perdido tais características, é Livro_126.indb 92 A lei processual tolera tudo o que não seja explícita ou implicitamente por ela vedado. (arts. 948 e seguintes); mas, ainda assim, não há clara delimitação do que seja ou não cogente. preciso considerar a nova opção do ordenamento; Sem resolver o problema e sem qualquer pre- e, com equilíbrio, prudência e destreza técnica, tensão de esgotamento, parece lícito identificar 23/04/2015 16:28:50 limites à convenção das partes no tocante aos se- pontos – compromisso que também o autor deste guintes tópicos. Dessa forma, ao menos em pri- artigo assume. meira avaliação, não se afigura possível: a) excluir ou mesmo limitar a intervenção do Ministério Público; 4 Segue: temas propícios à convenção das partes c) dispor sobre organização judiciária; de disposição pelas partes? Em complemento ao d) dispensar as partes (mesmo que de forma que já foi dito, algumas referências podem ajudar; bilateral) dos deveres inerentes à litigância proba se não com rigor científico, de forma quiçá prag- e leal; mática. e) ampliar o rol das condutas caracterizadoras de litigância de má-fé; Nesse universo, os compromissos arbitrais, conquanto possam eventualmente se limitar a f) criar sanções processuais para repressão de remeter ao regulamento de tal ou qual Câmara, litigância de má-fé ou de atos atentatórios à digni- podem ser boa fonte de inspiração para normas dade da Justiça; processuais convencionais. Isso quer dizer que g) criar recursos não previstos em lei; os profissionais que atuam em processos arbitrais h) dispensar o atendimento aos requisitos le- tenderão a ter maior facilidade para celebrar ne- gais da petição inicial, aí incluída a atribuição de gócios processuais que sejam úteis e adequados à valor da causa; controvérsia com a qual se deparam. Mas, reitere-se i) criar hipóteses de ação rescisória ou de outras medidas tendentes a desconstituir a coisa julgada; j) ampliar ou reduzir os requisitos para concessão da tutela de urgência; k) criar outras hipóteses de suspensão do pro- Livro_126.indb 93 Aqui o outro lado da moeda: o que é passível a advertência: seria um erro colocar o juiz estatal e o árbitro no mesmo patamar, para a finalidade aqui tratada. Portanto, é preciso considerar as diferenças que os apartam, sem prejuízo dos aspectos comuns que os aproximam. cesso, ressalvado o requerimento comum das par- Também o Projeto de Novo Código Comercial tes para tanto, em dado processo (CPC novo, art. 313, indica campos propícios à autonomia da vontade. inciso II); Especial relevância e destaque tem ali a disciplina l) criar regra que permita superar o limite legal da prova. Nesse terreno i) é possível estabelecer de suspensão convencional do processo (salvo regras sobre ônus de alegação e de prova, inclusive requerimento feito e justificado em dado processo, para restringir a atuação oficial em matéria proba- o que é coisa diversa); tória (o que não interfere em sua persuasão racio- m) dispensar a presença de requisitos de validade nal); ii) convencionar a produção extrajudicial de da relação jurídica processual (que não se confun- prova, com ônus de exibição de documentos, com dem com os requisitos do negócio processual); consequências preclusivas para eventual inobser- n) dispensar o requisito do interesse processual. vância; iii) na mesma toada, é possível estabelecer As razões que inspiram tais impossibilidades a oitiva prévia de testemunhas, realizada perante seguramente não são uniformes, embora possivel- os advogados e documentada por notário – idem mente haja aspectos comuns entre elas. Examiná- para depoimento pessoal (ou, simplesmente, oitiva -las demandaria aprofundamento incompatível da parte); iv) regular a prova pericial, com a dis- com a presente sede. Fica, de qualquer modo, a pensa de perito oficial ou previsão de intervenção proposta de melhor reflexão sobre cada um desses apenas na falta de consenso entre expertos das 93 Revi s t a d o A d v o g a d o à incompetência absoluta; C o n v e n ç ã o d a s p a r t e s e m matéria p ro ces s u al n o Novo CPC. b) alterar regras cuja falta de observância leva 23/04/2015 16:28:50 partes. Naturalmente, todas essas alternativas não sistemática, na lícita tentativa de se tratar postu- querem dizer que a prova escape ao controle do lados teóricos gerais. Está aí mais um convite ao juiz, a quem compete delimitar o objeto da prova leitor que tenha se interessado por este trabalho. e controlar o modo e o tempo em que os atos de Nesta sede, infelizmente, não é possível prosse- instrução terão lugar. Aqui, será útil aprender com guir neste exame. C o n v e n ç ã o d a s p a r t e s e m matéria p ro ces s u al n o Novo CPC. a experiência dos sistemas de common law, relati- Re v is t a d o A d v o g a d o 94 vamente a discovery e institutos análogos. 5 A título de conclusão Além desses tópicos, e mais uma vez sem caráter exaustivo, arrisca-se a indicar temas em que Como foi dito no preâmbulo, ao permitir com a autonomia da vontade pode, com criatividade, relevante amplitude que as partes convencionem mas sobretudo com o espírito de racionalizar o em matéria processual, o legislador abriu um processo, atuar. Afigura-se possível, portanto: campo a ser explorado. Nesse mister, será relevan- I. regular os atos de comunicação processual; te a contribuição que os advogados possam dar. II. regular prazos e datas (a lei fala em fixação Com engenhosidade, mas também com a rigoro- de calendário), embora sujeitos ao controle do sa consciência de que as disposições processuais órgão judicial. convencionais devem racionalizar a atividade pro- III. suprimir recursos; cessual, eles podem conseguir no processo jurisdi- IV. determinar que recurso de apelação não cional estatal os avanços e bons resultados obtidos tenha efeito suspensivo; V. condicionar o cumprimento de decisão ao trânsito em julgado; VI. restringir ou alargar a regra de responsabili- em processos arbitrais – sem qualquer ilusão de que isso será, por si só, um remédio para todos os males decorrentes da morosidade e da sobrecarga da Justiça. dade patrimonial (ressalvados direitos de terceiros); De outro lado, é imperativo que os magistra- VII. autorizar que o juiz decida por equidade; dos estejam verdadeiramente abertos a esse novo VIII. limitar litisconsórcio ou intervenção de cenário. Poderá haver quem seja cético e pense – terceiros; talvez diga – que não há como ter processos IX. flexibilizar a rigidez do processo, de sorte particularizados perante órgãos já atarefados. a afastar a preclusão para atos postulatórios (afas- Mas, não é essa seguramente a ideia. Ao confe- tando a estabilização do processo, preservado o rir espaço para a autonomia da vontade, o que contraditório); almejou a lei foi reforçar a cooperação que as X. restringir a publicidade do processo (tal como ocorre com a arbitragem). partes possam dar para o bom andamento dos processos e para a resolução das controvérsias. Naturalmente, o terreno do que pode ser ob- Portanto, depende do esforço e da boa vontade jeto da convenção é mais extenso do que o das de todos os envolvidos o sucesso ou o fracasso vedações. Seria conveniente estudá-los de forma das novas disposições. Bibliografia BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Convenção das partes sobre matéria processual. In: Temas de direito processual. Terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. Livro_126.indb 94 23/04/2015 16:28:50 E stabilização da tutela provisória satisfativa e honorários advocatícios sucumbenciais.1 Sumário 1.Generalidades sobre a estabilização da tutela provisória satisfativa 2.A estabilização como técnica de monitorização do procedimento comum. O microssistema de Livre-docente (USP). Pós-doutor (Universidade tutela de direitos pela técnica monitória. O pro- de Lisboa), doutor (PUC-SP) e mestre (UFBA). Professor adjunto de Direito Processual Civil da blema dos honorários advocatícios Universidade Federal da Bahia. Professor coor- Bibliografia denador da Faculdade Baiana de Direito. Membro dos Institutos Brasileiro e Ibero-Americano de Direito Processual, da Associação Internacional de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado 1 Generalidades sobre a estabilização da tutela provisória satisfativa e consultor jurídico. Paula Sarno Braga O art. 304, caput e § 1º, do Código de Processo Mestre e doutoranda (UFBA). Professora de Civil (CPC) prevê que, concedida a tutela anteci- Direito Processual Civil da UFBA, da Faculdade pada em caráter antecedente, se a decisão conces- Baiana de Direito e da Unifacs. Membro do IBDP. Advogada e consultora jurídica. Rafael Alexandria de Oliveira siva não for impugnada pelo réu com a interposição do recurso cabível, ocorrerá a estabilização Mestre em Direito Público (UFBA). Especialista da decisão antecipatória e o processo será extinto. em Direito Processual Civil (Faculdade Jorge Em que pese o processo seja extinto, a decisão Amado/JusPodivm). Procurador do município de Salvador-BA. Advogado. 95 Revi s t a d o A d v o g a d o Fredie Didier Jr. que concedeu a tutela provisória satisfativa, já estabilizada, conserva seus efeitos. 1. Nota dos autores: Este ensaio busca resolver apenas um problema: como se dá a fixação de honorários advocatícios sucumbenciais no caso de estabilização da tutela provisória satisfativa antecedente (art. 304, CPC). Não se fará, em razão disso, digressões profundas sobre a estabilização. O propósito é mais humilde e visa compor o panorama geral que esta coletânea sobre os honorários advocatícios no Novo CPC pretende apresentar. Livro_126.indb 95 23/04/2015 16:28:50 E s t a b i l i z a ç ã o d a t u t e l a p ro vis ó ria s atis fativa e h on orários advocatícios sucumbenciais. Rev i st a d o A d v o g a d o 96 Os objetivos da estabilização são: i) afastar o risdicionado se concedidas em definitivo e com perigo da demora com a tutela de urgência; e ii) força de coisa julgada – não basta uma separação oferecer resultados efetivos e imediatos diante da provisória de corpos, é necessário um divórcio de- inércia do réu. finitivo com dissolução do vínculo matrimonial, para que se realize o direito, permitindo que se A opção pela tutela antecedente deve ser declarada expressamente pelo autor. cancelamento provisório do protesto de um título, impõe-se a sua invalidação por decisão definitiva. A segurança jurídica da coisa julgada pode revelar-se necessária para a satisfação das partes envolvidas na causa (TALAMINI, 2012, p. 26-27). Para que isso ocorra, é preciso que estejam presentes determinados pressupostos. Desse modo, se o autor tiver intenção de dar prosseguimento ao processo, em busca da tutela a) É preciso que o autor tenha requerido a con- definitiva, independentemente do comportamen- cessão de tutela provisória satisfativa (tutela ante- to do réu frente a eventual decisão concessiva de cipada) em caráter antecedente. Somente ela tem tutela antecipada antecedente, ele precisa dizer aptidão para estabilizar-se nos termos do art. 304 isso expressamente já na sua petição inicial. do CPC. Conforme veremos no próximo item, é possível A opção pela tutela antecedente deve ser de- vislumbrar uma vantagem para o réu em permane- clarada expressamente pelo autor (art. 303, § 5º, cer silente, em não impugnar a decisão que concede CPC). Um dos desdobramentos disso é a possibi- a tutela antecipada antecedente, permitindo a sua lidade de estabilização da tutela antecipada, caso estabilização: a diminuição do custo do processo. o réu seja inerte contra decisão que a conceda Essa interpretação da regra funciona como es- (art. 304, CPC). Os arts. 303 e 304 formam um tímulo para o réu não reagir à decisão concessiva amálgama. Desse modo, ao manifestar a sua op- da tutela antecipada, já que, ainda que estabili- ção pela tutela antecipada antecedente (art. 303, § 5º, zada, poderá ser revista, reformada ou invalidada CPC), o autor manifesta, por consequência, a sua por ação autônoma (art. 304, § 2º, CPC). Permite- intenção de vê-la estabilizada, se preenchido o su- -se que uma tutela estável acabe sendo oferecida porte fático do art. 304. de modo mais rápido e econômico. b) É preciso que o autor não tenha manifes- Sendo assim, pode ele, réu, confiando na esta- tado, na petição inicial, a sua intenção de dar bilização, simplesmente aceitar a decisão antecipa- prosseguimento ao processo após a obtenção da tória, eximindo-se de impugná-la. Mas isso só fará pretendida tutela antecipada. Trata-se de pressu- sentido, somente lhe trará a vantagem da diminui- posto negativo. ção do custo do processo, se a inércia efetivamente A estabilização normalmente é algo positivo Livro_126.indb 96 contraiam novas núpcias; para além da sustação ou gerar a estabilização de que fala o art. 304. para o autor. A estabilização da decisão que ante- O réu precisa, então, saber, de antemão, qual cipa os efeitos de tutela condenatória, por exem- a intenção do autor. Se o autor expressamente de- plo, permite a conservação de efeitos executivos, clara a sua opção pelo benefício do art. 303 (nos mostrando-se útil e satisfatória se perenizada. termos do art. 303, § 5º, CPC), subentende-se que Mas é possível que o autor tenha interesse em ele estará satisfeito com a estabilização da tutela obter mais do que isso. As tutelas declaratória e antecipada, caso ela ocorra. Se, porém, desde a constitutiva, por exemplo, podem só servir ao ju- inicial, o autor já manifesta a sua intenção de dar 23/04/2015 16:28:50 prosseguimento ao processo, o réu ficará sabendo CPC), para cujo acompanhamento o réu deverá que a sua inércia não dará ensejo à estabilização ser citado, tem aptidão para a estabilidade. Não se pode admitir que a opção pelo prosseguimento seja manifestada na peça de aditamento da ini- concede a tutela antecipada apenas parcialmente tem aptidão para a estabilização. cial (art. 303, § 1º, inciso I, CPC). Isso porque o prazo Parece-nos que sim: ela tem aptidão para a es- para aditamento – de 15 dias, no mínimo – pode tabilização justamente na parte em que atendeu coincidir, ou mesmo superar, o prazo de recurso (art. ao pedido provisório do autor. Neste caso, sobre- 1.003, § 2º, c.c. art. 231, CPC). Assim, se se admitis- vindo a inércia do réu, estabilizam-se os efeitos se manifestação do autor no prazo para aditamento, apenas desse capítulo decisório, prosseguindo-se isso poderia prejudicar o réu que, confiando na pos- a discussão quanto ao restante.5 2 d) Por fim, é necessária a inércia do réu diante sibilidade de estabilização, deixara de recorrer. c) É preciso que haja decisão concessiva da da decisão que concede tutela antecipada antece- tutela provisória satisfativa (tutela antecipada) em dente. Embora o art. 304 do CPC fale apenas em caráter antecedente. não interposição de recurso, a inércia que se exige Somente a decisão positiva pode tornar-se es- para a estabilização da tutela antecipada vai além tável. Tem aptidão para a estabilidade do art. 304 disso: é necessário que o réu não se tenha valido tanto a decisão concessiva proferida pelo juízo de de recurso nem de nenhum outro meio de impug- primeiro grau como a decisão (unipessoal ou cole- nação da decisão (ex.: suspensão de segurança ou giada) concessiva proferida em recurso de agravo pedido de reconsideração, desde que apresentados de instrumento interposto contra decisão singular no prazo de que dispõe a parte para recorrer).6 denegatória. O que importa é que tudo isso acon- Há quem diga que, para que se configure a teça antes de o autor aditar a inicial para com- inércia do réu, além de não recorrer contra a plementar a sua causa de pedir e formular o seu decisão, é preciso que ele não apresente defesa pedido definitivo (art. 303, § 1º, inciso I, CPC). (TALAMINI, op. cit., p. 29),7 assumindo a con- 3 Não há necessidade de que a decisão tenha sido proferida liminarmente. Mesmo a decisão 4 proferida após justificação prévia (art. 300, § 2º, dição de revel. Mas não nos parece que a revelia é um pressuposto necessário para a incidência do art. 304. E s t a b i l i z a ç ã o d a t u t e l a p ro vis ó ria s atis fativa e h on orários advocatícios sucumbenciais. Questão interessante é saber se a decisão que 97 Revi s t a d o A d v o g a d o do art. 304. O normal é que o prazo de defesa somente 2.“No mínimo”, porque o juiz pode fixar prazo maior (art. 303, § 1º, inciso I, CPC). 3.Nesse sentido: SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. 4.Em sentido contrário: SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. 5.Nesse sentido: SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. 6.Conforme lição de Heitor Sica, “se o recurso for interposto tempestivamente, impede-se a estabilização, pouco importando se não foi posteriormente conhecido” (SICA, Heitor Vitor Mendonça. Doze problemas e onze soluções quanto à chamada “estabilização da tutela antecipada”. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor). 7. Também coloca como pressuposto a ausência de contestação, Greco (2014, p. 304). Livro_126.indb 97 fluirá a partir da audiência de conciliação ou de mediação (art. 335, inciso I, CPC) ou da data do protocolo do pedido de cancelamento dessa audiência (art. 335, inciso II, CPC). O art. 303, § 1º, inciso II, do CPC diz que, concedida a tutela antecipada antecedente, o réu será citado e intimado para a audiência de conciliação ou de mediação. O inciso III do art. 303, § 1º, por sua vez, diz que, “não havendo autocomposição, o prazo para contestação será contado na forma do art. 335”. Se o caso não admite autocomposição, não é preciso designar audiência de conciliação ou de mediação (art. 334, § 4º, inciso I, CPC). O prazo 23/04/2015 16:28:50 E s t a b i l i z a ç ã o d a t u t e l a p ro vis ó ria s atis fativa e h on orários advocatícios sucumbenciais. Re v is t a d o A d v o g a d o 98 de defesa, contudo, somente deve começar a cor- quem se apresente como assistente simples do rer a partir da intimação feita ao réu do aditamento réu ou por litisconsorte cujos fundamentos de da petição inicial. defesa aproveitem também o réu inerte (TALAMINI, Assim, o prazo de defesa, em regra, demora um pouco para ter início. O art. 304 não exige que se Quando o réu inerte é a Fazenda Pública, espere tanto para que se configure a inércia do réu a discussão pode ser acirrada. A estabilização é, apta a ensejar a estabilização da tutela antecipada. como já dissemos, uma generalização da técnica Se, no prazo de recurso, o réu não o interpõe, monitória no processo civil brasileiro, e muito já mas resolve antecipar o protocolo da sua defesa, se discutia a possibilidade de uso dessa técnica fica afastada a sua inércia, o que impede a esta- em face da Fazenda Pública desde o regime do bilização – afinal, se contesta a tutela antecipada CPC/1973, embora agora haja regra expressa per- e a própria tutela definitiva, o juiz terá que dar mitindo (art. 700, § 6º, CPC). seguimento ao processo para aprofundar sua cog- Há que se considerar, ainda, a possibilidade de nição e decidir se mantém a decisão antecipatória inércia parcial do réu. Isso se dará quando, con- ou não. Não se pode negar ao réu o direito a uma cedida a decisão antecipatória com mais de um prestação jurisdicional de mérito definitiva, com capítulo, o réu só impugnar em sede de recurso, aptidão para a coisa julgada. contestação ou outra via de questionamento, um dos capítulos decisórios, caso em que só os outros, Quando o réu inerte é a Fazenda Pública, a discussão pode ser acirrada. não impugnados, serão alcançados pela estabilização (TALAMINI, op. cit., p. 31). Outra situação a ser considerada: se o autor não aditar a petição inicial (art. 303, § 1º, inciso I), o § 2º do mesmo art. 303 determina a extinção do processo sem exame do mérito. Pode acontecer de a medida Em suma, a eventual apresentação da defesa ser concedida, o autor não aditar e o réu não impug- no prazo do recurso é um dado relevante, porque nar. O que acontecerá? Extingue-se o processo, sem afasta a inércia e, com isso, a estabilização; mas a estabilização, por força do § 2º do art. 303? Extin- inércia que enseja a estabilização não depende da gue-se o processo, com a estabilização da tutela ocorrência de revelia. satisfativa antecedente, por força do art. 304? Observe-se que a estabilização da decisão an- Deve prevalecer a estabilização da tutela ante- tecipatória não será possível se o réu inerte foi ci- cipada – e isso em razão da abertura conferida às tado/intimado por edital ou por hora certa, se partes para rever, invalidar ou reformar por meio estiver preso ou for incapaz sem representante ou da ação prevista no § 2º do art. 304 do CPC. em conflito com ele. Nestes casos, será necessária Feitas essas considerações, pode-se dizer, sin- a designação de curador especial que terá o dever teticamente, que os arts. 303 e 304, CPC, estabe- funcional de promover sua defesa (ainda que ge- lecem como pressupostos para a estabilização: nérica), impugnando a tutela de urgência então concedida (TALAMINI, op. cit., p. 25). Livro_126.indb 98 op. cit., p. 29). i) o requerimento do autor, no bojo da petição inicial, no sentido de valer-se do benefício da tu- Não há que se falar em estabilização, também, tela antecipada antecedente (art. 303, § 5º, CPC), quando, a despeito da inércia do réu, a demanda que faz presumir o interesse na sua estabilização; for devidamente respondida e a tutela antecipada ii) a ausência de requerimento, também no concedida antecedentemente for questionada por bojo da petição inicial, no sentido de dar pros- 23/04/2015 16:28:51 iii) a prolação de decisão concessiva da tutela satisfativa antecedente; quando ela é concedida em caráter antecedente e não é impugnada pelo réu, litisconsorte ou assistente simples (por recurso ou outra via de resis- iv) e a ausência de impugnação do réu, litiscon- tência cabível). Neste caso, o processo é extinto sorte passivo ou assistente simples, que: a) tenha sido e a decisão antecipatória continuará produzindo citado por via não ficta (real); b) não esteja preso; ou efeitos, enquanto não for ajuizada ação autônoma c) sendo incapaz, esteja devidamente representado. para revisá-la, reformá-la ou invalidá-la. Mas nada impede que, mesmo na ausência Representa, assim, uma generalização da téc- destes pressupostos, as partes selem entre si negó- nica monitória para situações de urgência e para cio jurídico, antes ou durante o processo, avençan- a tutela satisfativa, na medida em que viabiliza a do a estabilização de tutela antecipada anteceden- obtenção de resultados práticos, céleres e efetivos te em outros termos, desde que dentro dos limites para o autor, quando, configurada a probabilidade da cláusula geral de negociação do art. 190, CPC. do seu direito (mediante cognição sumária), é ob- É a conclusão firmada no Enunciado nº 32 do Fó- tida uma medida de tutela imediata, em face da rum Permanente de Processualistas Civis: qual o réu permanece inerte. “Além da hipótese prevista no art. 304, é possível No regime do CPC/1973, havia emprego da a estabilização expressamente negociada da tutela técnica monitória em sede de procedimento espe- antecipada de urgência satisfativa antecedente”. cial voltado para a tutela de direitos a uma presta- Por exemplo, as partes podem inserir em sede ção (de pagar quantia e de entrega de coisa fungí- de contrato social cláusula no sentido de que vel ou coisa certa móvel) documentados em prova eventuais medidas antecipatórias antecedentes escrita despida de força executiva (art. 1.102-A e ss., em causas oriundas dos termos daquele contrato, CPC/1973) – isto é, direitos prestacionais evidentes. se concedidas, poderão: i) estabilizar-se indepen- Devidamente instruída a inicial nestes ter- dentemente de requerimento expresso do autor na mos, o juiz, mediante cognição ainda sumária, petição inicial nesse sentido; ii) admitindo-se que, poderia expedir mandado determinando que o diante da revelia e inércia total do réu, o autor te- réu cumprisse a obrigação em 15 dias ou se de- nha preservado o direito de pedir o prosseguimen- fendesse por embargos monitórios. Oferecidos to do processo para obtenção de uma decisão com os embargos, prosseguir-se-ia com procedimen- cognição exauriente e com força de coisa julgada. to ordinário destinado à formação de cognição E s t a b i l i z a ç ã o d a t u t e l a p ro vis ó ria s atis fativa e h on orários advocatícios sucumbenciais. concessiva de tutela antecipada; A estabilização da tutela antecipada ocorre 99 Revi s t a d o A d v o g a d o seguimento ao processo após eventual decisão exauriente. Não oferecidos os embargos no pra- 2 A estabilização como técnica de monitorização do procedimento comum. O microssistema de tutela de direitos pela técnica monitória. O problema dos honorários advocatícios zo (ou sendo eles rejeitados), a decisão que inicialmente ordenara a expedição de mandado de cumprimento da obrigação se revestiria de força executiva, assumindo a condição de título executivo judicial.8 Ou seja, inerte o réu diante da evidência do direito do autor aferida por cogni- A estabilização da decisão concessiva de tutela ção sumária, é dado ao autor um título executivo antecipada é uma técnica de monitorização do que autoriza a imediata e rápida efetivação do processo civil brasileiro. seu direito. Os arts. 700-702 e ss. do CPC mantêm esse 8.Cf. TALAMINI, 2001, p. 92 e ss. Livro_126.indb 99 procedimento especial, com alguns ajustes. A ação 23/04/2015 16:28:51 monitória é estendida, por exemplo, aos direitos a inclusive, pensar em um microssistema de técnica uma prestação de fazer e não fazer. monitória, formado pelas regras da ação monitória E s t a b i l i z a ç ã o d a t u t e l a p ro vis ó ria s atis fativa e h on orários advocatícios sucumbenciais. Sucede que, ao mesmo tempo em que man- Re v is t a d o A d v o g a d o 100 tém e amplia a ação monitória, o legislador vai complementam reciprocamente. além e generaliza a técnica monitória, introduzin- Alguns exemplos demonstram que a técnica do-a no procedimento comum para todos os direi- da estabilização da tutela antecipada pode ser útil. tos prováveis e em perigo que tenham sido objeto Imagine um caso em que um estudante, que de tutela satisfativa provisória antecedente. ainda não havia concluído o Ensino Médio, foi Isso se dá mediante a previsão de estabilização aprovado no vestibular para um curso superior. A da decisão concessiva de tutela satisfativa (ante- instituição de ensino, seguindo determinação do cipada) em caráter antecedente. Monitoriza-se a Ministério da Educação, não realizou a matrícu- tutela de urgência no rito comum ao garantir-se la. O estudante foi a juízo e obteve uma tutela a realização prática e célere do direito do autor, satisfativa liminar, ordenando a matrícula. Para quando é provável e antecipadamente tutelado a instituição de ensino, não havia qualquer inte- sem que tenha havido qualquer resistência do réu. resse em contestar a medida – ela somente não Qual é a vantagem para o réu? Diminuição do matriculara o aluno porque o Ministério da Edu- custo do processo: por não opor resistência, não pa- cação proibia. gará as custas processuais (aplicação analógica do Outro exemplo. Imagine, agora, o caso de um disposto no § 1º do art. 701 do CPC) e pagará ape- consumidor, que vai a juízo pleiteando a retirada nas 5% de honorários advocatícios de sucumbência de seu nome de um cadastro de proteção de crédi- (art. 701, caput, CPC, também aplicado por analo- to. Apenas isso. Obteve a liminar. É muito prová- gia). O modelo da ação monitória (arts. 700-702, vel que o réu não queira mais discutir o assunto e CPC) deve ser considerado o geral – é possível, deixe a decisão estabilizar-se. Bibliografia GRECO, Leonardo. A Tutela de Urgência e a Tutela de Evi- Código de Processo Civil: a estabilização da medida dência no Código de Processo Civil de 2014/2015. Revista urgente e a “monitorização” do processo brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: s/ed., n. 14, de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 209, p. 304, 2014. Disponível em: <http:www.redp.com.br>. Acesso em: 2 jan. 2015. TALAMINI, Eduardo. Tutela de urgência no Projeto de novo Livro_126.indb 100 e pelos arts. 304-305 do CPC, cujos dispositivos se 2012. _____. Tutela Monitória. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 23/04/2015 16:28:51 P artes e terceiros no Novo Código de Processo Civil. Sumário 1.Considerações introdutórias 2.Litisconsórcio 3.Intervenções de terceiros 4.Conclusão 1 Considerações introdutórias Foi com grande honra que aceitei o convite a São Paulo para dedicar breves reflexões sobre as modificações que serão trazidas pelo Novo Código de Processo Civil (NCPC), finalmente aprovado por meio da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Inicio minhas considerações destacando a preocupação com a alardeada capacidade do NCPC 101 Revi s t a d o A d v o g a d o mim dirigido pela Associação dos Advogados de de garantir a celeridade dos processos judiciais. A morosidade na tramitação dos feitos é um proGláucia Mara Coelho Mestre e doutora em Direito Processual Civil pela blema crônico e alvo de inúmeras modificações legislativas ao longo dos anos. Todavia, sem que Universidade de São Paulo. Especialista lato sensu essas alterações sejam acompanhadas de mudan- pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ças estruturais, já tivemos a dura experiência da e pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo. frustração trazida pela promessa que não se cumpre. Como é próprio da legislação, sua simples alteração não é capaz de construir um mundo novo. Discordo, com todo o acatamento aos posicionamentos contrários, que o NCPC não traga avanços para a atual sociedade brasileira, que, diferentemente dos idos da década de 1970, coloca-se em uma realidade urbana de massificação e tecnologia. Livro_126.indb 101 23/04/2015 16:28:51 Os desafios trazidos pelas grandes megalópoles, o avanço do consumo e as inovações velozes que Com efeito, são conhecidas as críticas dirigidas à redação dos atuais arts. 46 e 47 do CPC/1973. advêm das ferramentas tecnológicas não passaram Versa o art. 46 do CPC/1973 sobre as três hipó- despercebidos das discussões para redação dos teses de configuração do litisconsórcio no Direito novos dispositivos legais. brasileiro: i) comunhão de direitos ou obrigações P a r t e s e t e r c e i r o s n o N o vo Có d ig o d e P ro cesso Civil. (inciso I); ii) conexão estabelecida pelo objeto ou Rev i st a d o A d v o g a d o 102 No campo da disciplina das partes e dos terceiros remanesceram questões que há muito deveriam ter sido superadas. pela causa de pedir (incisos II e III); e, finalmente, iii) afinidade de questões (inciso IV). Logo se nota a imprecisão do legislador de 1973, por tratar de três hipóteses em quatro incisos. A conexão entre causas (inciso III) ocorre justamente porque os direitos ou as obrigações derivam do mesmo fundamento de fato ou de direito (inciso II). Disse-se duas vezes Todavia, um exame crítico das alterações propostas não toleraria fechar os olhos para questões a mesma coisa, o que, ao menos em termos de técnica legislativa, não se mostra apropriado. igualmente relevantes, que, por razão técnica ou Do mesmo modo, a redação dada ao art. 47 política, não foram disciplinadas no NCPC. Nes- do CPC/1973 sempre foi alvo de inúmeras críti- se sentido, impossível se afirmar que a novel legis- cas. Trata o referido dispositivo do conceito legal lação processual poderá assegurar celeridade aos do litisconsórcio necessário, mas, para tanto, cla- feitos ou que alterará substancialmente o cenário ramente, mistura os conceitos de litisconsórcio processual vigente, não tendo sido dado tratamen- necessário e litisconsórcio unitário. Ao definir o to, por exemplo, à matéria dos litígios envolvendo litisconsórcio necessário como a hipótese em que, a Fazenda Pública e às demandas decorrentes dos “por disposição de lei ou pela natureza da relação direitos individuais homogêneos. jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uni- Essa mesma análise, que aponta para pontos forme para todas as partes”, o art. 47 parece querer de avanço e para outros de nítida timidez, pode afirmar que todo litisconsórcio necessário também ser aplicada para o tema proposto para o presen- é unitário, o que não se coaduna com a natureza te artigo. Também no campo da disciplina das jurídica desses institutos. Daí por que a doutrina partes e dos terceiros existem alguns ganhos, mas já sugeria a leitura do art. 47 em duas partes. Na remanesceram, infelizmente, questões que há primeira parte, ter-se-ia o conceito do litisconsórcio muito deveriam ter sido superadas, a bem da tal necessário, aquele em que, por disposição de lei ou desejada celeridade processual. São esses pontos pela natureza da relação jurídica, a eficácia da sen- de atenção, positivos e negativos, o objeto desta tença depende da citação de todos que devam ser análise. litisconsortes. Já na segunda metade do dispositivo, revelar-se-ia o conceito do litisconsórcio unitário, 2 Litisconsórcio que ocorre quando, pela natureza jurídica da relação, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme Tema árduo e de enorme dificuldade de com- Livro_126.indb 102 para todos os litisconsortes. preensão, o litisconsórcio sempre suscitou aponta- O mesmo dispositivo traz ainda outra impre- mentos e dúvidas entre os doutrinadores, muitas cisão, ao mencionar que o juiz tem que decidir vezes em razão da redação dada pelo CPC/1973 a lide de modo uniforme “para todas as partes”. aos dispositivos que disciplinam a matéria. Evidente o equívoco aqui, apontado pela doutri- 23/04/2015 16:28:51 mesma decisão para todas as partes, ele termina- sofreu expressiva modificação, conferindo trata- ria empatado... mento que merecia crítica pela sua pouca clareza. Em vista dessas imprecisões e incoerências, o Deixando de lado a desejada separação entre os legislador reformista propôs algumas alterações. conceitos, os arts. 114 e 115 do PL nº 8.046/2010, Assim, no NCPC, o novo art. 113 corrigiu o equí- com seus parágrafos únicos,4 pareciam transpare- voco do art. 46 do CPC/1973, eliminando o atual cer que o litisconsórcio unitário seria gênero, do inciso II do art. 46 e mantendo tão somente a hi- qual o litisconsórcio necessário e o facultativo se- pótese de haver conexão entre as causas (ao lado riam espécies, o que confrontava com o atual en- das duas outras hipóteses: comunhão e afinidade). tendimento da doutrina majoritária sobre o tema. Quanto ao atual art. 47 do CPC/1973, hou- Por esse motivo, esses dispositivos também ve uma mudança importante entre o texto ori- foram objeto de modificação pela Comissão Es- ginal que foi elaborado no Senado Federal (PL pecial Revisora do Senado Federal, a qual propôs nº 166/2010) e o texto modificado no Projeto rejeitar a redação dada pelo Projeto Substitutivo Substitutivo da Câmara dos Deputados (PL nº da Câmara dos Deputados, mantendo-se, assim, 8.046/2010). acertadamente, a proposta original do Senado 1 O PL nº 166/2010 atendia aos reclamos da Federal. Felizmente essa proposta foi acatada na doutrina e trazia em dois dispositivos legais a versão final do NCPC, que incorporou a redação definição dos litisconsórcios necessário (art. 113 mais correta para regulação dos institutos, nos do PL nº 166/2010 ) e unitário (art. 115 do PL arts. 1145 e 116 6 da Lei nº 13.105, de 16 de março nº 166/20103), de maneira ordenada e separada. de 2015. 2 Ademais, o NCPC furta-se a dar tratamento 1. Art. 113 do NCPC: “Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II - entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir; III - ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito”. 2.Art. 113 do PL nº 166/2010: “Será necessário o litisconsórcio quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes”. 3.Art. 115 do PL nº 166/2010: “Será unitário o litisconsórcio quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes litisconsorciadas”. 4.Art. 114 do PL nº 8.046/2010: “Será unitário o litisconsórcio quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes. Parágrafo único - O litisconsórcio unitário pode ser necessário ou facultativo”. Art. 115 do PL nº 8.046/2010: “O litisconsórcio unitário passivo será necessário, ressalvada disposição legal em sentido diverso. Parágrafo único - O litisconsórcio será necessário, ainda, quando a lei assim dispuser expressamente”. 5.Art. 114 do NCPC: “O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes”. 6.Art. 116 do NCPC: “O litisconsórcio será unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes”. Livro_126.indb 103 para hipóteses polêmicas, como o cabimento ou não do litisconsórcio necessário ativo e do litisconsórcio facultativo unitário, deixando ainda em aberto as difíceis discussões sobre o tema. 3 Intervenções de terceiros P a r t e s e t e r c e i r o s n o N o vo Có d ig o d e P ro cesso Civil. Entretanto, na Câmara dos Deputados, o tema 103 Revi s t a d o A d v o g a d o na, já que, se o processo se encerrasse com uma No que toca às intervenções de terceiros, o NCPC incorpora tímidas modificações e inclui alterações topográficas dos institutos. Perdeu-se, portanto, preciosa oportunidade de se modificar o sistema brasileiro das intervenções de terceiros, para dar a ele contornos de modernidade que pudessem abandonar de vez as velhas tradições. Nosso sistema atual é marcado por uma estrita tipicidade, baseada em modalidades de intervenção de terceiros muito escassas, estruturadas sob fórmulas antigas em que os conflitos estavam intrinsecamente ligados a questões de posse e propriedade. Embora o objetivo das intervenções 23/04/2015 16:28:51 P a r t e s e t e r c e i r o s n o N o vo Có d ig o d e P ro cesso Civil. Re v is t a d o A d v o g a d o 104 de terceiros seja permitir a máxima utilização de CPC/1973), o instituto passou a ser disciplinado um processo judicial para a superação de todos dentro do capítulo das intervenções de terceiros, os conflitos que possam dele advir (portanto, em o que parece adequado apenas para a figura do consonância com a necessidade atual de se reti- assistente simples, dada a natureza jurídica de li- rar a máxima utilidade do processo judicial e das tisconsorte que sustento para o assistente litiscon- questões nele debatidas, provadas e decididas), são sorcial.7 A par da singela modificação trazida pe- muito poucas as possibilidades legais para essas in- los arts. 121 e 122 do NCPC,8 que expressamente tervenções. A mera leitura dos dispositivos legais mencionam sua aplicação ao assistente simples (o atuais atinentes à nomeação à autoria, denuncia- que já era reconhecido pela doutrina), talvez as ção da lide, chamamento ao processo e oposição principais modificações tenham sido trazidas no (sem falar ainda da assistência) demonstra a rigi- parágrafo único do art. 121 do NCPC. Tal dispo- dez de situações estabelecida pelo legislador brasi- sitivo deixa de lado a figura do gestor de negócios leiro para o cabimento das intervenções. do atual parágrafo único do art. 52 do CPC/1973 para adotar a figura do substituto processual para Perdeu-se preciosa oportunidade de se modificar o sistema brasileiro das intervenções de terceiros. qualificar a atuação do assistente no caso de revelia ou omissão do assistido, do mesmo modo que adiciona, ao lado da revelia, a situação de qualquer outra omissão. Principalmente com a última modificação, será superado o debate jurisprudencial em torno da manutenção do recurso inter- Essa sistemática, contudo, não está em linha posto pelo assistente, caso o assistido não tenha com os demais sistemas processuais existentes recorrido. Mais uma vez, entretanto, controvérsias (como o português e o italiano), os quais, em vez importantes não são definidas pelo NCPC, como, de estabelecerem rígidas fórmulas, estipulam hipó- por exemplo, se a chamada justiça da decisão, teses abertas em que a intervenção é permitida de trazida pelo atual art. 55 do CPC/1973 e repetida modo principal ou acessório, de forma espontânea pelo art. 123 do NCPC, abrange, por exemplo, a ou provocada (inclusive pelo juiz), assumindo o motivação da sentença. terceiro, em determinadas hipóteses, a condição Novidade interessante e que merece ser elo- de efetivo litisconsorte do autor ou do réu. Não giada diz respeito à eliminação da figura típica existem nesses sistemas situações predefinidas para permitir a intervenção (o que ocorre no Brasil, levando a discussões intermináveis sobre o cabimento ou não da intervenção nas hipóteses concretas). É verdade que algumas alterações importantes foram incorporadas e serão brevemente versadas a seguir. Mas infelizmente não se admitiu um avanço efetivo que permitisse compreender o importantíssimo fenômeno da pluralidade de partes no processo de uma maneira mais ampla e eficiente. Quanto à assistência, o NCPC muda a topografia da disciplina legal do instituto. Hoje tratado ao lado do litisconsórcio (nos arts. 50 a 55 do Livro_126.indb 104 7. Conforme tese de doutoramento defendida perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em maio de 2013, intitulada: “Sistematização da assistência litisconsorcial no processo civil brasileiro: conceituação e qualificação jurídica”. Disponível em: <http://dedalus.usp.br/F/85PUHGB1KNPKCVT1KS79IA5Y81X KTU5XI6E8QAGCTEVQ685UJT-04623?func=full-set-set&set_ number=007851&set_entry=000001&format=999>. 8.Art. 121 do NCPC: “O assistente simples atuará como auxiliar da parte principal, exercerá os mesmos poderes e sujeitar-se-á aos mesmos ônus processuais que o assistido. Parágrafo único - Sendo revel ou, de qualquer outro modo, omisso o assistido, o assistente será considerado seu substituto processual”. Art. 122 do NCPC: “A assistência simples não obsta a que a parte principal reconheça a procedência do pedido, desista da ação, renuncie ao direito sobre o que se funda a ação ou transija sobre direitos controvertidos”. 23/04/2015 16:28:51 tese mais ampla trazida pelos arts. 338 e 339 do do mérito. Embora ainda remanesçam questões NCPC. Exatamente como ocorre em outros polêmicas, advindas inclusive do ineditismo da países (e que teria sido melhor caminho para o figura em nosso sistema (como, por exemplo, em tratamento de todas as figuras de intervenção), que momento será feito o controle judicial dessa adota-se nesse dispositivo um verdadeiro inciden- alteração; se o novo réu poderá se valer novamen- te de substituição da parte, permitindo-se que, te do mesmo procedimento; se a responsabilidade em caso de flagrante ilegitimidade passiva alega- do réu pela indicação do sujeito passivo legítimo é da pelo réu, possa o autor aceitar a substituição da subjetiva; dentre outras), sua adoção é um avanço parte ilegítima pela legítima ou mesmo a inclusão quanto ao tema das intervenções de terceiros. 9 de ambos (réu originário e terceiro indicado), evi- Esse mesmo avanço, contudo, não se verifica no tratamento legal dado ao chamamento ao processo. 9.Art. 338 do NCPC: “Alegando o réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo invocado, o juiz facultará ao autor, em 15 (quinze) dias, a alteração da petição inicial para substituição do réu. Parágrafo único - Realizada a substituição, o autor reembolsará as despesas e pagará honorários ao procurador do réu excluído, que serão fixados entre três e cinco por cento do valor da causa ou, sendo este irrisório, nos termos do art. 85, § 8º”. Art. 339 do NCPC: “Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas processuais e de indenizar o autor pelos prejuízos decorrentes da falta da indicação. § 1º - O autor, ao aceitar a indicação, procederá, no prazo de 15 (quinze) dias, à alteração da petição inicial para a substituição do réu, observando-se, ainda, o parágrafo único do art. 338. § 2º - No prazo de 15 (quinze) dias, o autor pode optar por alterar a petição inicial para incluir, como litisconsorte passivo, o sujeito indicado pelo réu”. 10. Art. 319 do PL nº 166/2010: “É admissível o chamamento ao processo, requerido pelo réu: [...] IV - daqueles que, por lei ou contrato, são também corresponsáveis perante o autor”. 11. Art. 125 do NCPC, § 1º: “O direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for permitida”. Na versão aprovada em 4/12/2014 pela Comissão Especial Revisora do Senado Federal, o tema é disciplinado no parágrafo único do art. 125. 12. Art. 128 do NCPC, parágrafo único: “Procedente o pedido da ação principal, pode o autor, se for o caso, requerer o cumprimento da sentença também contra o denunciado, nos limites da condenação deste na ação regressiva”. Na versão aprovada em 4/12/2014 pela Comissão Especial Revisora do Senado Federal, o tema é disciplinado no parágrafo único do art. 128, com um pequeno ajuste redacional. 13. Art. 314 do PL nº 166/2010: “É admissível a denunciação em garantia, promovida por qualquer das partes: I - do alienante imediato, ou a qualquer dos anteriores na cadeia dominial, na ação relativa à coisa cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta; [...]”. 14. Art. 125 do PL nº 8.046/2010: “É admissível a denunciação da lide, promovida por qualquer das partes: I - ao alienante imediato, no processo relativo à coisa cujo domínio foi transferido ao denunciante, a fim de que possa exercer os direitos que da evicção lhe resultam; [...]”. Essa é a mesma redação do inciso I do art. 125 do NCPC. Livro_126.indb 105 Na redação dada pelo Senado Federal, admitia-se, no inciso IV do art. 319 do PL nº 166/2010,10 hipótese aberta para a participação de terceiros que, por lei ou contrato, também fossem corresponsáveis perante o autor, permitindo, com isso, o chamamento ao processo mesmo nos casos de dívida comum e ampliando a aplicabilidade do instituto. Infelizmente, tal inovação foi eliminada no NCPC, provocando um claro retrocesso. Quanto à denunciação da lide, o NCPC assegura a manutenção do direito de regresso ainda que não haja a denunciação da lide (art. 125, § 1º, do NCPC11) e pacifica a possibilidade de se dirigir o pedido de cumprimento da sentença diretamente contra o denunciado, em caso de procedência do pedido da ação principal (art. 128, parágrafo P a r t e s e t e r c e i r o s n o N o vo Có d ig o d e P ro cesso Civil. tando-se a extinção do processo sem julgamento 105 Revi s t a d o A d v o g a d o da nomeação à autoria para contemplar hipó- único, do NCPC12). O tratamento conferido ao instituto também sofreu importante modificação entre o Senado Federal e a Câmara dos Deputados. No PL nº 166/2010, o inciso I do art. 31413 admitia a denunciação do alienante imediato e também de qualquer dos anteriores na cadeia dominial. Já o PL nº 8.046/2010 excluiu tal possibilidade no inciso I do art. 125,14 eliminando, assim, a possibilidade da denunciação per saltum. Essa última redação foi a que prevaleceu no NCPC, no mesmo inciso I do art. 125. Finalmente, merecem menção o deslocamento topográfico da oposição, que passa a ser tratada no capítulo dedicado aos procedimentos 23/04/2015 16:28:51 P a r t e s e t e r c e i r o s n o N o vo Có d ig o d e P ro cesso Civil. especiais, logo após os embargos de terceiro, pelos arts. 682 a 686 do NCPC; a inclusão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito das figuras de intervenção de terceiros (embora o instituto seja mais próximo das questões de responsabilidade patrimonial), tratado nos arts. 133 a 137 do NCPC; e, finalmente, a correta adoção de disciplina legal específica destinada à tamento legal conferido pelo NCPC às figuras do figura do amicus curiae, no art. 138 do NCPC. no Brasil. 4 Conclusão Espera-se que essas breves notas acerca do tralitisconsórcio e das intervenções de terceiro possam contribuir para o debate sobre esses temas, sempre tão áridos e polêmicos entre os estudiosos Re v is t a d o A d v o g a d o 106 Livro_126.indb 106 23/04/2015 16:28:51 T écnicas de uniformização da jurisprudência e o incidente de resolução de demandas repetitivas. Foi publicado, no último dia 17 de março, o Novo Código de Processo Civil (NCPC), após a aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Lei nº 166, de 2010, ocorrida em 17 de dezembro de 2014. Com pouquíssimos vetos por parte da Presidência da República – mais precisamente, a estrutura no novo diploma processual –, teve início, então, o prazo de vacatio legis de um ano, tal como estabelecido em seu art. 1.045. Dentre as inúmeras modificações trazidas pelo NCPC, uma delas ganha notável destaque e tem chamado a atenção dos operadores do Direito, por 107 Revi s t a d o A d v o g a d o sete, em pontos que não eram fundamentais para significar a mais efetiva e importante mudança para o processo civil brasileiro. Trata-se da criação do incidente de resolução de demandas repetitivas Guilherme J. Braz de Oliveira (IRDR), regulamentado pelos arts. 976 a 987. Mestre e doutor em Direito Processual Civil Embora, de maneira geral, o NCPC não te- pela Universidade de São Paulo. Advogado em nha instituído uma transformação radical, ou uma São Paulo. verdadeira “ruptura com o passado”, limitando-se, em muitos casos, a repisar institutos e conceitos já consolidados, em sede doutrinária e jurisprudencial (cfr. ARRUDA ALVIM NETTO, 2011, v. 191, p. 299; e THEODORO JUNIOR, 2010, v. 395, p. 12), o IRDR representa, como reconhecem os autores, a maior novidade ou a grande alteração a ser implementada pelo NCPC. Livro_126.indb 107 23/04/2015 16:28:51 Nesse sentido, por exemplo, destacou Fredie T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. Didier Junior, durante os debates travados no Rev i st a d o A d v o g a d o 108 Livro_126.indb 108 redação que lhes foi atribuída pela Lei nº 11.418, de 2006. Congresso Nacional, que o Projeto do NCPC Já no Superior Tribunal de Justiça (STJ), a Lei parece ter sido construído a fim de tornar viável nº 11.672, de 2006, criou os chamados recursos esse incidente de coletivização de demandas. Do especiais repetitivos, por meio da introdução do mesmo modo, Arthur Mendes Lobo (2010, v. 185, art. 543-C ao CPC. Nesse caso, destaque-se, a p. 244) enfatiza que o IRDR “será um dos pon- mudança decorreu da edição de simples lei ordi- tos nodais do novo diploma processual”. E, ainda, nária, tendo em vista que não se instituiu, propria- Cassio Scarpinella Bueno (2014, p. 467, grifo nos- mente, um novo pressuposto de admissibilidade so), ao afirmar que ele representa “a mais profun- do recurso especial (OLIVEIRA, 2009, p. 332). da modificação sugerida desde o início dos traba- O que o legislador fez foi, pura e simplesmente, lhos relativos a um NCPC”, de modo a “viabilizar adotar uma nova sistemática para o julgamento uma verdadeira concentração dos processos”. de tais impugnações, quando a matéria ali vei- Não se pode perder de vista, contudo, que culada não estiver afeta, exclusivamente, a um o IRDR se abeberou em figuras, ou melhor di- determinado e específico processo, refletindo- zendo, técnicas de julgamento preexistentes no -se em uma série de outros recursos já julgados CPC de 1973. A principal delas, e que pode ser ou ainda pendentes de apreciação. considerada a origem remota do novel instituto, é Em todas essas hipóteses, nota-se uma clara o, também, incidente de uniformização da juris- preocupação do legislador em, de um lado, criar prudência, previsto nos arts. 476 a 479. Como se mecanismos processuais que, de modo efeti- sabe, infelizmente, ele teve pouca utilização prá- vo, possam dar vazão ao volume, muitas vezes tica, na medida em que se sedimentou o entendi- invencível, de processos que o Poder Judiciário mento de que a uniformização da jurisprudência brasileiro é obrigado – por força do princípio da representaria uma mera faculdade do tribunal, inafastabilidade da jurisdição, presente no art. 5º, “não vinculando o juiz, sem embargo do prestígio inciso XXXV, da CF – a enfrentar e julgar, diutur- e estímulo que se deve dar a esse louvável e belo namente, e que geram a tão propalada morosida- instituto” (REsp nº 3.835-PR, Rel. Min. Sálvio de de da Justiça. Figueiredo Teixeira, DJ de 29/10/1990). De outro lado, e ainda mais importante, está Mais recentemente, pode-se destacar que o a necessidade de, cada vez mais, se consolidar IRDR guarda notável similitude com a sistemá- e uniformizar a jurisprudência dos tribunais tica de julgamento dos recursos excepcionais pátrios, de modo a obter não apenas a desejada de cunho repetitivo, dirigidos aos Tribunais e necessária segurança jurídica, como também Superiores. garantir a isonomia entre os jurisdicionados. No âmbito do Supremo Tribunal Federal Casos idênticos devem ser tratados e decididos (STF), foi instituído, por meio da Emenda Cons- de maneira similar, sob pena de violar, em última titucional nº 45, de 2004, um novo requisito de instância, o princípio da igualdade, um dos pila- admissibilidade para os recursos extraordiná- res do Estado Democrático de Direito, tal como rios, tal como previsto no art. 102, § 3º, da Consti- dispõem os arts. 1º, caput, e 5º, caput e inciso I, tuição do Brasil (CF) (OLIVEIRA, 2009, p. 163). da CF. Com efeito, passou a ser necessário demonstrar a Essa tendência, no sentido de criar e consoli- repercussão geral da questão constitucional, nos dar um sistema de precedentes, no Brasil, embora termos dos arts. 543-A e 543-B do CPC, conforme ainda estejamos atrelados – e assim deva continuar 23/04/2015 16:28:51 peditiva de recursos, permitindo que o juiz não Desde o início das reformas do CPC, iniciadas receba apelação “quando a sentença estiver em em 1994 (cfr. TUCCI, 2002, p. 4 e ss., e DINA- conformidade com Súmula do Superior Tribu- MARCO, 1996, p. 6 e ss.), essa característica já se nal de Justiça ou do Supremo Tribunal Fede- mostrava presente. Com a edição da Lei nº 9.756, ral” (art. 518, § 1º, do CPC, grifo nosso). Nota-se, de 1998, quebrou-se a tradição dos julgamentos co- contudo, alguma resistência em dar concretude à legiados, em segunda instância, de modo a permi- regra, sobretudo em função da garantia (implícita tir que o relator possa decidir, monocraticamente, na CF) ao duplo grau de jurisdição (LASPRO, os recursos que lhe são distribuídos. Com efeito, o 1995, p. 36). art. 557 do CPC possibilitou não apenas a negativa Finalmente, a talvez mais enfática, mas não de seguimento a recurso “manifestamente inad- menos polêmica, inovação aportada ao CPC está missível”, como também o provimento singular na possibilidade de julgamento liminar de im- nos casos em que a decisão impugnada estiver em procedência do pedido. Essa sistemática pode ser confronto com a “jurisprudência dominante” dos aplicada aos casos cuja “matéria controvertida for Tribunais Superiores, ainda que não consolidada unicamente de direito e no juízo já houver sido em verbete sumular (§ 1º-A). proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos” (grifo nosso). Daí é que Com a edição da Lei nº 9.756, de 1998, quebrou-se a tradição dos julgamentos colegiados. “poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”, como possibilita o art. 285-A do CPC (grifo nosso). O mecanismo, como pontua a doutrina, permite a resolução superantecipada da lide, viabili- Livro_126.indb 109 Do mesmo modo, a Lei nº 10.352, de 2001, pas- zando o julgamento imediato, de mérito (ARAÚJO, sou a dispensar o reexame necessário quando, a teor 2011, p. 312). Em tais hipóteses, a sentença limi- do art. 475, § 3º, do CPC, “a sentença estiver fun- nar de rejeição da demanda poderá estar baseada dada em jurisprudência do Plenário do Supremo não em verdadeiros precedentes, como estamos Tribunal Federal ou em Súmula deste Tribunal acostumados a tratar (isto é, decisões que já te- ou do tribunal superior competente” (grifo nosso). nham sido reexaminadas em grau, ou graus su- Esse mesmo diploma legal criou mecanismo periores, e que representem, de maneira efetiva, que, embora bastante importante, também não foi o entendimento consolidado dos tribunais), mas utilizado em sua plenitude, ao menos no âmbito sim em decisões singulares do juízo de primeiro dos tribunais de segundo grau, embora seja aplica- grau. do, com alguma frequência, no STJ, e também no Ocorreu, como se pode notar, uma gradativa STF (cfr. BENETI, 2009, v. 171, p. 9). Naqueles evolução. Por óbvio, o NCPC não poderia estar casos em que estiver presente “relevante questão dissociado dessa realidade que, insista-se, vigora de direito, que faça conveniente prevenir ou há algum tempo no sistema processual pátrio. compor divergência entre câmaras ou turmas Lembre-se, ademais, que já nos idos de 1963, por do tribunal, poderá o relator propor seja o re- meio de reforma ao regimento interno do STF, curso julgado pelo órgão colegiado que o regi- acatando-se sugestão do ministro Victor Nunes mento indicar” (grifo nosso). Leal, o excelso pretório foi autorizado a editar e T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. nova ou recente no país. A Lei nº 11.276, de 2006, criou a súmula im- 109 Revi s t a d o A d v o g a d o a ser – à tradição do civil law, não é, porém, tão 23/04/2015 16:28:51 T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. Re v is t a d o A d v o g a d o 110 Livro_126.indb 110 aplicar súmulas de jurisprudência dominante, trata de questões processuais envolvendo execu- de caráter meramente persuasivo. ções fiscais, com quase 2 milhões de processos O que tem se buscado, novamente, é uma ten- sobrestados). tativa de consolidar a jurisprudência, que agora, Esse número relevante de demandas, para os por meio da sanção do NCPC, chegará às instân- padrões alemães, mas ínfimo em relação ao vo- cias revisoras, dotadas de amplo poder de análise lume de causas em tramitação no Brasil, gerou do caso concreto, inclusive em suas nuances fáti- o atraso indevido na resolução dessas lides e, por cas (cfr. art. 1.013 do NCPC). consequência, fez com que o legislador procurasse Dessa forma, a sistemática de julgamento de uma nova forma de tratar esses conflitos de massa casos repetitivos, antes reservada, como visto, ex- (NUNES; PATRUS, 2013, p. 478). Inicialmente, clusivamente, aos Tribunais Superiores, poderá, de ainda de modo experimental, e com prazo de maneira bastante sofisticada, ser aplicada também vigência determinado, embora atualmente já se perante os Tribunais de Justiça e Regionais Fede- discuta a sua ampliação, até mesmo para torná-lo rais. Não é por outra razão que o art. 928 do NCPC definitivo (CABRAL, 2007, v. 147, p. 132). Vale prevê: “Para os fins deste Código, considera-se referir, também, as experiências da Group Litigation julgamento de casos repetitivos a decisão profe- Order do Direito britânico, os julgamentos-piloto rida em: I - incidente de resolução de demandas da Corte Europeia de Direitos Humanos e, ainda, repetitivas; II - recursos especial e extraordinário o sistema de Agregação de Causas do Direito por- repetitivos” (grifo nosso). E vale ressalvar, tal como tuguês, que, de igual modo, serviram de fonte ins- dispõe o parágrafo único desse mesmo dispositivo, piradora para o legislador brasileiro (BARBOSA; eles poderão ter “por objeto questão de direito ma- CANTOARIO, 2011, p. 497). terial ou processual” (grifo nosso). Nos termos do art. 976 do NCPC, o cabimento Antes de examinar alguns pontos fulcrais do do IRDR está condicionado à presença de dois re- novel instituto, é necessário ressaltar que o IRDR quisitos concomitantes: a “efetiva repetição de foi influenciado, também, como declarado no tex- processos que contenham controvérsia sobre a to da Exposição de Motivos, subscrita pelo pre- mesma questão unicamente de direito” (inciso sidente da Comissão de Juristas encarregada de I, grifo nosso), de modo a gerar o “risco de ofensa elaborar o Anteprojeto do NCPC, ministro Luiz à isonomia e à segurança jurídica” (inciso II, gri- Fux (2011, p. 5), pelo procedimento-modelo fo nosso). Aboliu-se, portanto, a ideia inicial, pre- (Musterverfahren) do Direito alemão. sente no Anteprojeto do NCPC, que viabilizaria O dado curioso que se nota é que essa sistemá- a instauração do incidente de maneira potencial, tica peculiar de resolução, ou por que não dizer, ou seja, mesmo na ausência de controvérsia efetiva, também, de gerenciamento de demandas repe- mas quando houvesse a simples possibilidade de titivas, nasceu em função do congestionamento instauração de numerosas demandas envolvendo gerado nos tribunais da Alemanha, decorrente da a discussão daquela mesma questão. propositura de pouco mais de 13 mil ações de in- Também, a priori, restringiu-se o seu cabimen- vestidores do mercado de capitais, que sofreram to para as questões de cunho exclusivamente jurí- prejuízos semelhantes ao adquirirem ações de dico, excluindo-se as questões fáticas, embora, uma determinada companhia. No Brasil, estima-se segundo se entende, os fatos devam ser, necessa- que a decisão de alguns casos repetitivos pode riamente, considerados no julgamento, de modo afetar milhares ou, até mesmo, milhões de pro- a bem definir qual o objeto do incidente, ou, em cessos (v. REsp Repetitivo nº 1.340.553-RS, que termos práticos, o que o tribunal está, efetiva- 23/04/2015 16:28:52 desse precedente aos demais processos sobresta- Tribunais Superiores. dos, que guardem similitude, ou para as deman- É justamente a presença de um relevante e supe- das futuras, como será examinado logo a seguir rior interesse público, no sentido de uniformizar (OLIVEIRA, 2014, p. 257 e ss.). e, ao mesmo tempo, consolidar a jurisprudência, Demonstrando a efetiva similitude que guarda que confere a possibilidade de instauração de ofício com os recursos excepcionais repetitivos, o § 4º do IRDR. Daí, também, a obrigatoriedade de in- do art. 976 do NCPC destaca que o IRDR não tervenção do Ministério Público, de modo que as poderá ser admitido “quando um dos tribunais su- Procuradorias de Justiça atuantes nos tribunais de periores, no âmbito de sua respectiva competên- segunda instância deverão, necessariamente, profe- cia, já tiver afetado recurso para definição de tese rir parecer em todos esses incidentes, antes de seu sobre questão de direito material ou processual julgamento, tal como determina o art. 976, § 2º, do repetitiva”. NCPC, o qual prevê, ainda, que o parquet deverá, Além de outorgar uma ampla legitimidade para pleitear a instauração do incidente, que po- de modo obrigatório, assumir a titularidade do IRDR, em caso de desistência ou abandono. derá ser solicitado pelas partes, pelo Ministério Público ou Defensoria Pública, por meio de petição dirigida ao presidente do respectivo tribunal (cfr. art. 977, incisos II e III), o NCPC também previu a possibilidade de que ele seja suscitado ex officio, tanto pelo juiz de primeiro grau como A desistência ou abandono do processo não impedirão que ele seja julgado. também pelo relator, no tribunal, por meio de ofí- Livro_126.indb 111 cio dirigido à Presidência da corte (inciso I). Em Seguindo a orientação fixada pelo STJ (Q.O. ambos os casos, é necessário instruir esses reque- no REsp Repetitivo nº 1.063.343-RS, Rel. Min. rimentos com os documentos que comprovem a Nancy Andrighi, DJe de 4/6/2009), o § 1º do art. presença, lembre-se, cumulativa, dos dois requi- 976 é expresso ao determinar que a desistência ou sitos de admissibilidade do IRDR (cfr. art. 977, abandono – note-se, do processo (e não do inci- parágrafo único). dente) – não impedirão que ele seja julgado, em A admissão do incidente, porém, não é auto- seu mérito, de modo a fixar a tese que, segundo se mática. A teor do quanto dispõe o caput do art. pretende, irá pacificar o entendimento a respeito 981, ele deverá ser objeto de livre distribuição, da interpretação de determinado comando legal, porém, atrelada ao órgão que o regimento interno de cunho controvertido, de modo a, como ponde- indicar como competente para o seu julgamento, ra Eros Grau (2013, p. 38), fixar a norma jurídica respeitada, nesse passo, a autonomia orgânico- aplicável à espécie. -administrativa dos tribunais (cfr. art. 96, inciso Nesse sentido, vale destacar que a redação fi- I, da CF). Esse mesmo órgão colegiado deverá nal do NCPC foi enfática ao ressalvar, no art. 978, proceder ao juízo de admissibilidade do IRDR. parágrafo único: Destarte, não poderá o presidente, ou mesmo o “O órgão colegiado incumbido de julgar o in- relator sorteado, decidir, de forma monocrática, cidente e de fixar a tese jurídica julgará igualmen- acerca de seu cabimento, salvo em hipóteses ab- te o recurso, a remessa necessária ou o processo solutamente excepcionais, como, por exemplo, de competência originária de onde se originou o em caso de deficiência na instrução inicial do pe- incidente”. T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. dido ou se a matéria estiver previamente afeta aos 111 Revi s t a d o A d v o g a d o mente, julgando, até para viabilizar a aplicação 23/04/2015 16:28:52 T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. Re v is t a d o A d v o g a d o 112 O julgamento do IRDR ocorrerá, portanto, Caso seja superado esse prazo, o parágrafo úni- de forma objetiva, i.e., dissociada da demanda co do mesmo art. 980 ressalva que a suspensão ou recurso no qual se originou. Após a fixação dos processos, decorrente da admissão do inci- da tese é que a ação será efetivamente julgada, dente, como visto anteriormente, cessará, “salvo pela corte, para aplicação do precedente aos casos decisão fundamentada do relator em sentido con- concretos, de maneira específica. Está-se diante, trário”. Segundo parece, essa decisão, de manter a pois, de julgamento subjetivamente complexo, suspensão de todas as demais demandas similares, tal como já ocorria na sistemática da uniformi- somente poderá ser adotada de modo justificado, zação da jurisprudência (cfr. MARQUES, 1986, quando, por razões que fogem ao controle do tri- p. 211; TUCCI, 2007, p. 95; e DIDIER JÚNIOR; bunal, o incidente não puder ser julgado dentro CUNHA, 2009, p. 561). daquele interregno. Por isso, o simples argumento Como forma de conferir ampla publicidade, da “pletora” de recursos não será mais suficiente. não apenas ao julgamento do incidente, para Até porque espera-se que a corte concentre seus dar conhecimento a todos os jurisdicionados das esforços, tal como vem ocorrendo nos Tribunais questões que serão tratadas nesse âmbito, como Superiores, na análise e julgamento do incidente, também viabilizar que os interessados possam, haja vista o potencial que ele terá de “livrar a pauta”. de maneira efetiva, intervir nesse julgamento e A “suspensão dos processos pendentes, indivi- influenciar, eficazmente, a construção da tese duais ou coletivos, que tramitam no Estado ou jurídica (cfr. arts. 983, caput, e 984, inciso II, a e na região” (grifo nosso) é a medida obrigatória e b, do NCPC), o art. 979 determina, de maneira a mais importante a ser decretada pelo relator, a obrigatória, sob pena, segundo se entende, de nu- partir da admissão do IRDR, como prevê o art. lidade do julgamento, seja conferida ampla e es- 982, inciso I, do NCPC. Ela poderá, inclusive, ser pecífica divulgação dos temas tratados por meio ampliada, passando a valer, em todo o Brasil, por dessa nova sistemática de julgamentos. Exige-se meio de requerimento apresentado por qualquer o registro eletrônico das “teses jurídicas” em dis- dos legitimados, arrolados no art. 977, incisos II e cussão no Conselho Nacional de Justiça (§ 1º), III, ao Tribunal Superior competente. Deferido o bem como junto aos tribunais, identificando-se pedido, que tem por objetivo, como preceitua “os fundamentos determinantes da decisão e os o § 4º do art. 982, a “garantia da segurança jurí- dispositivos normativos a ela relacionados”. Do dica”, essa suspensão vigorará até o julgamento mesmo modo, ampliando o dever de fundamenta- de eventual recurso especial e/ou extraordinário ção, o § 2º do art. 984 do NCPC prevê: interposto contra o acórdão do IRDR (cfr. § 5º). “O conteúdo do acórdão abrangerá a análise É a suspensão das demandas que viabilizará, de todos os fundamentos suscitados concernen- após o julgamento do IRDR, a aplicação da tese tes à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou jurídica fixada pelo tribunal “a todos os proces- contrários” (grifo nosso). sos individuais ou coletivos que versem sobre Ao contrário do que ocorria, até então, com idêntica questão de direito e que tramitem na os recursos excepcionais repetitivos, o art. 980 do área de jurisdição do respectivo tribunal” (gri- NCPC determina que o IRDR deverá ser julgado fo nosso), tal como prevê o art. 985, inciso I, do no prazo máximo de um ano. Por isso, ele goza de NCPC, outorgando efeitos expansivos a esse jul- preferência em relação a todos os demais feitos, gamento (OLIVEIRA, 2014, p. 239 e ss.). exceto os processos criminais que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. Livro_126.indb 112 Embora a parte final de referido dispositivo mencione, também, a aplicação do precedente 23/04/2015 16:28:52 essa previsão é inconstitucional, tendo em vista a do as regras dos arts. 995 e 1.029, § 5º, do NCPC, autonomia prevista no art. 98, inciso I, da CF. Afi- ambos serão dotados de efeito suspensivo, além nal, os Juizados Especiais não estão subordinados, de se presumir a repercussão geral da questão jurisdicionalmente, aos Tribunais de Justiça ou constitucional nele debatida (cfr. art. 987, § 1º, do Regionais Federais (OLIVEIRA, 2014, p. 152 e ss.). NCPC). Por óbvio, em se tratando de julgamento ema- Nesse caso, então, em função dos efeitos que nado do tribunal de segundo grau, a eficácia do emanam dos julgamentos proferidos pelo STJ ou acórdão proferido no incidente estará, necessaria- STF, a tese jurídica fixada, na instância excepcio- mente, limitada à área de jurisdição da corte, nal, deverá ser “aplicada no território nacional isto é, ao Estado ou à respectiva Região. Note-se, a todos os processos individuais ou coletivos que porém, que, para conferir maior abrangência a versem sobre idêntica questão de direito” (art. 987, essa tese, não apenas os processos pendentes, e § 2º, do NCPC, grifo nosso). suspensos, ficarão sujeitos ao entendimento veicu- Em suma, pode-se concluir afirmando que o lado no precedente. O art. 985, inciso II, ressalva NCPC implementará, por meio do IRDR, uma que o julgamento do IRDR deverá ser aplicado nova técnica de julgamento de casos repetiti- aos “casos futuros, que versem idêntica questão vos, voltada, especificamente, para as ditas ações de direito e que venham a tramitar no território de massa, que veiculem fundamentalmente a de competência do tribunal” (grifo nosso), a não discussão de direitos individuais homogêneos, ser que, nesse ínterim, tenha ocorrido a revisão da nos termos do art. 81, parágrafo único, inciso I, tese, por meio de requerimento apresentado pe- do Código de Defesa do Consumidor (TUCCI, los mesmos legitimados a suscitar o incidente, ou, 2010, p. 182-183). então, solicitada de ofício pelo tribunal, tal como dispõe o art. 986 do NCPC. Livro_126.indb 113 Trata-se, por certo, de uma solução audaciosa e drástica, porém atualmente necessária. O legis- Segundo especifica o art. 985, § 1º, caso a tese lador dará, portanto, um importante passo adiante do IRDR não seja observada, caberá reclamação, no sentido de ampliar as técnicas de julgamento por parte do interessado, assim como ocorre em das demandas massificadas, como forma de con- caso de descumprimento de súmula de caráter solidar e uniformizar a jurisprudência, tão logo vinculante, nos termos do art. 103-A, § 3º, da CF. quanto possível e desde que o assunto já esteja Contra o julgamento proferido no IRDR, o maduro para julgamento, prevenindo, ainda no qual, repise-se, irá apenas fixar a tese jurídica, sem estágio inicial, uma nociva dispersão de julgados julgar a demanda, admitir-se-ão a interposição de que tratem, de maneira diversa, ações que, ao fim recurso especial e/ou extraordinário, tal como dis- e ao cabo, são semelhantes. T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. põe o caput do art. 987 do NCPC. Excepcionan- 113 Revi s t a d o A d v o g a d o no âmbito dos Juizados Especiais, entende-se que 23/04/2015 16:28:52 T é c n i c a s d e u n i f o r m i z a ç ão d a ju ris p ru d ên cia e o in ciden te de resolu ção de demandas repetitivas. Bibliografia Rev i st a d o A d v o g a d o 114 ARAÚJO, José Henrique Mouta. Processos repetitivos e o novo CPC – ampliação do caráter vinculante das deci- no Direito Processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. sões judiciais. In: ROSSI, Fernando; RAMOS, Glauco LOBO, Arthur Mendes. Reflexões sobre o incidente de reso- Gumerato; GUEDES, Jefferson Carús; DELFINO, lução de demandas repetitivas. RePro, São Paulo: Revista Lúcio; MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro (Coord.). O dos Tribunais, v. 185, 2010. Futuro do Processo Civil no Brasil – uma análise crítica ao Projeto do Novo CPC. 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OLIVEIRA, Guilherme José Braz de. Repercussão Geral das BENETI, Sidnei. Assunção de Competência e fast-track recur- Questões Constitucionais – e suas consequências para o sal. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, julgamento do recurso extraordinário. 2009. Dissertação v. 171, 2009. BUENO, Cassio Scarpinella. Projetos de Novo Código de Processo Civil – comparados e anotados. São Paulo: Saraiva, 2014. CABRAL, Antonio do Passo. O novo procedimento-modelo (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. ______. Nova Técnica de Julgamento de Casos Repetitivos à Luz do Novo Código de Processo Civil – o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. 2014. Tese (Dou- (Musterverfahren) alemão: uma alternativa às ações co- torado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. letivas. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribu- THEODORO JUNIOR, Humberto. Algumas polêmicas sur- nais, v. 147, 2007. DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. 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Duplo Grau de Jurisdição Latin, 2010. ______. Lineamentos da Nova Reforma do CPC. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 23/04/2015 16:28:52 P rimeiras impressões sobre a “estabilização da tutela antecipada”. Sumário 1.Introdução 2.Quais são as condições para o cabimento da técnica de estabilização da tutela provisória? 2.1.Primeira condição: que tenha havido deferimento de tutela provisória de urgência antecipada (rectius, satisfativa), pedida em caráter antecedente 2.2.Segunda condição: que tenha havido pedido 2.3.Terceira condição: que a decisão tenha sido proferida liminarmente, inaudita altera parte 2.4.Quarta condição: que o réu não tenha interposto recurso contra a decisão que deferiu a tutela provisória 115 Revi s t a d o A d v o g a d o expresso do autor 3.Em que consiste a projetada “estabilidade”? 3.1.Eficácia versus imunidade e estabilidade 3.2.Imunidade versus estabilidade Heitor Vitor Mendonça Sica Professor doutor de Direito Processual Civil 4.Balanço crítico Bibliografia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado. 1 Introdução Os arts. 294 ao 311 do Novo Código de Processo Civil (CPC) denominam de “tutela provisória” a ampla categoria que abrange as chamadas tutelas de urgência (subdivididas entre cautelar e antecipada) e de evidência, ressistematizando e unificando, do ponto de vista procedimental, o que o CPC Livro_126.indb 115 23/04/2015 16:28:52 P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. Rev i st a d o A d v o g a d o 116 Livro_126.indb 116 de 1973 denominaria de tutela antecipada de ur- A redação desse dispositivo é praticamente gência (art. 273, inciso I), tutela cautelar (arts. 796 igual àquela aprovada pela Câmara dos Deputa- ao 888) e tutela antecipada de evidência (art. 273, dos em 26/3/2014, mas apresenta substanciais di- inciso II e § 6º). ferenças em relação ao texto final aprovado pelo Em linhas gerais, esses instrumentos processuais Senado em 15/12/2010,2 bem como, principal- mantêm o postulado, bem vincado pelo CPC de mente, ao que constava do Anteprojeto original- 1973, segundo o qual tutelas fundadas em cogni- mente apresentado ao Senado pela Comissão de ção sumária são, salvo casos excepcionais, precá- Juristas nomeada por ato da Presidência daquela rias (podem ser revistas à luz de novos elementos Casa em 2009.3 fático-probatórios) e provisórias (dependem de Trata-se de técnica inspirada em disposi- uma ulterior confirmação por decisão fundada tivos presentes nos ordenamentos processuais em cognição exauriente para produzir efeitos de estrangeiros – em especial do francês e do ita- forma perene). liano 4 – e que vem há tempos sendo debatida Essa diretriz resta, contudo, parcialmente ate- pela doutrina brasileira, bem como cogitada em nuada pelo Novo CPC, ao prever, em seu art. 304, outros anteprojetos ou projetos de lei que não a chamada “estabilização da tutela antecipada”. vingaram.5 1. Eis a redação do dispositivo: “Art. 304 - A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. § 1º - No caso previsto no caput, o processo será extinto. § 2º - Qualquer das partes poderá demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada nos termos do caput. § 3º - A tutela antecipada conservará seus efeitos enquanto não revista, reformada ou invalidada por decisão de mérito proferida na ação de que trata o § 2º. § 4º - Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida, para instruir a petição inicial da ação a que se refere o § 2º, prevento o juízo em que a tutela antecipada foi concedida. § 5º - O direito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada, previsto no § 2º deste artigo, extingue-se após 2 (dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do § 1º. § 6º - A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revir, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes nos termos do § 2º deste artigo”. 2.Cumpre transcrever os dispositivos pertinentes daquela versão do Projeto: “Art. 280 - O requerido será citado para, no prazo de cinco dias, contestar o pedido e indicar as provas que pretende produzir. § 1º - Do mandado de citação constará a advertência de que, não impugnada decisão ou medida liminar eventualmente concedida, esta continuará a produzir efeitos independentemente da formulação de um pedido principal pelo autor. [...] Art. 281 - [...] § 2º - Concedida a medida em caráter liminar e não havendo impugnação, após sua efetivação integral, o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia. Art. 282 - Impugnada a medida liminar, o pedido principal deverá ser apresentado pelo requerente no prazo de trinta dias ou em outro prazo que o juiz fixar. § 1º - O pedido principal será apresentado nos mesmos autos em que tiver sido veiculado o requerimento da medida de urgência, não dependendo do pagamento de novas custas processuais quanto ao objeto da medida requerida em caráter antecedente. § 4º - Na hipótese prevista no § 3º, qualquer das partes poderá propor ação com o intuito de discutir o direito que tenha sido Ô Ô acautelado ou cujos efeitos tenham sido antecipados. Art. 283 - 1 [...] § 2º - Nas hipóteses previstas no art. 282, §§ 2º e 3º, as medidas de urgência conservarão seus efeitos enquanto não revogadas por decisão de mérito proferida em ação ajuizada por qualquer das partes. Art. 284 - [...] § 2º - A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes”. 3.Eis aqui o texto do Anteprojeto nesse particular: “Art. 293 A decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a revogar, proferida em ação ajuizada por uma das partes. Parágrafo único - Qualquer das partes poderá requerer o desarquivamento dos autos em que foi concedida a medida para instruir a petição inicial da ação referida no caput. [...]”. 4.Aparentemente se inspirou em alguns aspectos do regime geral das ordonnances de référé (arts. 484 a 492) e em outros das ordonnances sur requête (arts. 493 a 498). Já quanto ao CPC italiano, parece-me que alguns elementos foram colhidos dos arts. 186-ter e quarter, com redação dada pelas Leis n os 353/1990 e 263/2005, e do art. 669octies, com redação dada pelas Leis nos 80/2005 e 69/2009 (destacando semelhanças e diferenças entre os dois ordenamentos, que aqui não vem ao caso, confira-se Giovanni Bonato, 2012, p. 35-76). A inspiração é confessada expressamente pela Exposição de Motivos do Anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas nomeada em 2009 pela Presidência do Senado Federal: “Também visando a essa finalidade, o novo Código de Processo Civil criou, inspirado no sistema italiano e francês, a estabilização de tutela, a que já se referiu no item anterior, que permite a manutenção da eficácia da medida de urgência, ou antecipatória de tutela, até que seja eventualmente impugnada pela parte contrária”. 5.Ao que me consta, a primeira proposta nesse sentido foi feita, entre nós, por Ada Pellegrini Grinover (1997, p. 191-195). A técnica voltou a ser estudada pela mesma jurista em outro ensaio, marcado por Ô 23/04/2015 16:28:52 meramente eventual e facultativo o exercício de cação de tal técnica; c) que a decisão concessiva cognição exauriente para dirimir o conflito sub- tenha sido proferida liminarmente, inaudita altera metido ao Estado-Juiz, desde que tenha havido parte; e d) que o réu, comunicado da decisão, não antecipação de tutela (fundada, por óbvio, em tenha interposto o recurso cabível. Adiante será cognição sumária) e que o réu não tenha contra analisada cada uma dessas condições. ela se insurgido. Sumarizam-se, a um só tempo, a cognição e o procedimento.6 O objetivo do presente ensaio é analisar criticamente os principais contornos dessa novidade. Não caberá, contudo, nos exíguos limites deste estudo, um exame aprofundado da legislação estrangeira que inspirou o sistema brasileiro. 2.1. Primeira condição: que tenha havido deferimento de tutela provisória de urgência antecipada (rectius, satisfativa), pedida em caráter antecedente Para adequada compreensão da técnica processual aqui em análise, é preciso, de início, reconhecer que a terminologia adotada pelo Novo CPC 2 Quais são as condições para para tratar de tutelas sumárias é diversa daquela o cabimento da técnica de estabilização da tutela provisória? atualmente utilizada pelo Código em vigor e pela doutrina majoritária. O Novo CPC cria a categoria geral da “tutela provisória”, e a classifica de acordo A leitura dos arts. 303 e 304 permite identificar com três critérios: a) primeiramente, em razão da quatro condições cumulativas a serem observadas necessidade ou não de demonstração de “perigo para aplicação da técnica da estabilização: a) que de demora da prestação da tutela jurisdicional”, a o juiz haja deferido o pedido de tutela provisória tutela provisória pode ser “de urgência” ou “de evi- de urgência antecipada (rectius, satisfativa), 7 dência” (art. 294, caput); b) em segundo lugar, em requerida em caráter antecedente e autônomo; função do momento em que é postulada, a tutela provisória pode ser “antecedente” ou “incidental” Ô ampla pesquisa de ordenamentos estrangeiros e que culminou na elaboração de um novo anteprojeto, desta vez com a participação de José Roberto dos Santos Bedaque, Kazuo Watanabe e Luiz Guilherme Marinoni (2005, p. 11-37). Esse segundo anteprojeto foi encaminhado ao Senado, que o discutiu a partir de 2005 (PLS nº 186/2005) e o arquivou em 2007. A proposição voltou à tona na parte final do Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, cuja elaboração foi coordenada, também, por Ada Pellegrini Grinover. Trata-se, pois, de técnica processual que há muito vem sendo objeto de preocupações da eminente professora do Largo de São Francisco. 6.A sumarização da cognição sempre implica sumarização procedimental, mas o inverso não é verdadeiro. É corrente a ideia de que o procedimento sumário e o procedimento dos Juizados Especiais preservam o exercício de cognição exauriente. 7. Essa era a expressão utilizada pelo Substitutivo da Câmara dos Deputados. 8.De fato, o art. 304, embora não se refira expressamente à tutela de urgência, reporta-se ao art. 303, que, aí sim, por sua vez, trata exclusivamente dessa hipótese (“Art. 303 - Nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação [...]”). 9.O caput do art. 304 dispõe sobre a “tutela antecipada satisfativa”, apenas. E, de fato, não faria sentido cogitar da estabilização de “tutela antecipada cautelar”, como, e.g., o arresto e o sequestro, que não outorgam ao beneficiário da medida a fruição de qualquer bem da vida objeto do litígio. Livro_126.indb 117 (art. 294, parágrafo único); e, por fim, c) levando-se em conta a aptidão da tutela provisória em permitir ao beneficiário fruir o bem da vida objeto do litígio P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. b) que o autor tenha pedido expressamente a apli- 117 Revi s t a d o A d v o g a d o O objetivo primordial da técnica é tornar ou não, ela pode ser “antecipada” (rectius, satisfativa) ou “cautelar” (art. 294, parágrafo único). A leitura dos arts. 303 e 304 permite identificar condições cumulativas para aplicação da estabilização. Face a tais constatações, extrai-se da literalidade do dispositivo acima transcrito que a estabilização não se aplicaria: a) à “tutela provisória de evidência”8 (arts. 294 e 311); b) à “tutela provisória de urgência cautelar”9 (arts. 292, 23/04/2015 16:28:52 parágrafo único, 301, 305 a 310); e, finalmente, ria violação frontal à garantia da inafastabilidade c) à tutela provisória requerida em caráter “inci- da jurisdição, insculpida no art. 5º, inciso XXXV, dental” (arts. 294, caput, e 295). Resta apenas a da Constituição Federal. 10 P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. tutela provisória de urgência satisfativa pedida em Re v is t a d o A d v o g a d o 118 Livro_126.indb 118 caráter antecedente. Finalmente, esse entendimento pode ser extraído da própria interpretação sistemática dos arts. 303 e 304. O primeiro dispositivo prevê a faculdade do 2.2. Segunda condição: que tenha havido pedido expresso do autor autor de provocar o Poder Judiciário apenas para apreciar o pedido de tutela provisória de urgência Outra interpretação que, penso, deva ser forço- satisfativa em caráter antecedente, ao passo que samente extraída dos arts. 303 e 304 é a de que a o segundo dispõe que a técnica de estabilização técnica de estabilização só poderia se aplicar se o se aplica apenas na hipótese de a medida ter sido autor assim o pleitear expressamente. deferida “nos termos do art. 303”. Não bastasse, Isso porque as técnicas previstas nos arts. 303 e 304 constituem “benefícios” ao autor (como deixa o “benefício” do art. 303 precisa ser pleiteado expressamente na petição inicial (§ 5º).13 claro o § 5º do art. 303) e jamais poderiam ser a Em outras palavras: claramente o art. 303 dá duas ele aplicados contra a sua vontade. O jurisdicio- alternativas ao autor: a) pleitear, exclusivamente, a tu- nado tem o direito de se sujeitar aos riscos e cus- tela provisória urgente satisfativa (e apenas “indicar” tos inerentes ao prosseguimento do processo para o pedido de tutela final); ou b) desde logo, pedir, exercício de cognição exauriente, face ao legítimo concomitantemente, a tutela provisória urgente satis- interesse em obter uma tutela final apta a formar fativa e a tutela final. Apenas na primeira hipótese é coisa julgada material. Não se pode obrigar o autor que se cogitaria da aplicação da tese de estabilização. a se contentar com uma tutela provisória “estabili- Isso porque o autor que formula desde logo o pedido zada” apta a ser desafiada por demanda contrária de tutela final, a meu ver, manifesta inequivocamen- movida pelo réu do processo original nos termos te a vontade no sentido de que não se contentará do art. 304, § 5º. Interpretação diversa representa- apenas com a tutela provisória estabilizada.14 10. Igualmente o caput não exclui de maneira textual a estabilização de tutela requerida em caráter incidental. Contudo, essa exclusão resulta evidente da interpretação (necessariamente) conjunta do art. 304 com o art. 303, que trata exclusivamente da hipótese de tutela antecipada pedida em caráter antecedente. 11. A primeira proposta de Ada Pellegrini Grinover (1997, p. 193) enaltecia justamente a vontade “das partes” (e não apenas do réu) como determinante para se dispensar o prosseguimento do processo rumo à decisão fundada em cognição exauriente. 12. Como adiante se demonstrará, a sentença de mérito passada em julgado é muito mais firme que a decisão concessiva de tutela antecipada estabilizada. No primeiro caso, caberá ação rescisória em hipóteses taxativamente previstas (art. 966). No segundo caso, a demanda movida em primeiro grau de jurisdição nos termos do art. 304, § 5º, pode versar qualquer matéria. 13. O nosso sistema vigente apresenta situação similar. O autor munido de “prova escrita sem eficácia de título executivo” tem a opção de manejar ação monitória ou de valer-se do procedimento comum. Embora o primeiro procedimento tenha a aptidão de se revelar mais célere, eventualmente não resultará em sentença de mérito fundada em cognição exauriente, não falta ao autor interesse processual (modalidade adequação) para preferir o segundo. 14. De fato, não faria sentido exigir do autor que pediu logo na peça inicial que fosse observado o regime dos arts. 303 e 304 que desde logo formulasse o pedido de tutela final. Tal pedido restará prejudicado caso o réu não interponha recurso contra a decisão concessiva da tutela antecipada e ela se estabilize. Aliás, sob essa mesma ótica, não há muito sentido em se exigir do autor que, antes mesmo da confirmação ou não da estabilização da tutela antecipada, adite a peça inicial para “complementação de sua argumentação, juntada de novos documentos e confirmação do pedido de tutela final” no prazo de 15 dias ou outro assinado pelo juiz. O certo seria que a complementação houvesse apenas se o réu interpôs recurso contra a decisão concessiva de tutela e, portanto, evitou sua estabilização, afastando, a partir de então, o disposto no art. 304. A redação do dispositivo ainda se ressente de outros problemas. Em primeiro lugar, se o autor optou por formular apenas o pedido de tutela antecipada, não haverá pedido de tutela final a ser confirmado. Houve apenas uma mera “indicação do pedido de tutela final” (há alguma semelhança com o art. 801, inciso III, do CPC em vigor, o qual exige que a peça inicial da ação cautelar traga consigo a indicação “da lide e seu fundamento” a serem deduzidos no “processo principal”). Nessa hipótese, há que se interpretar o dispositivo no sentido de que o autor tem a faculdade de formular o pedido meramente indicado Ô 11 12 23/04/2015 16:28:52 2.3. Terceira condição: que a decisão tenha sido proferida liminarmente, inaudita altera parte recursal (hipótese em que o réu será intimado da decisão para que se lhe dê oportunidade de recorrer). apta à estabilização é aquela concedida liminarmente, inaudita altera parte. 2.4. Quarta condição: que o réu não tenha interposto recurso contra a decisão que deferiu a tutela provisória Se o juiz indeferiu a providência, e o autor A quarta e última condição é a de que o réu, emendou a petição inicial com a formulação do citado e intimado da decisão,15 não tenha inter- pedido de tutela final (art. 303, § 1º, inciso I), posto o recurso cabível. Em se tratando de de- restou descaracterizada a possibilidade de apli- cisão proferida em primeiro grau de jurisdição, o cação do art. 304, pelas razões expostas no item recurso interponível é o agravo de instrumento anterior. (art. 1.015, inciso I). Em se tratando de decisão Restaria saber se a tutela provisória fosse de- proferida em segundo grau de jurisdição, haveria ferida em segundo grau de jurisdição, após o que se pensar no agravo interno contra a decisão manejo de agravo de instrumento contra a deci- monocrática (art. 1.021) ou no recurso especial e/ são de primeiro grau que indeferiu a providên- ou recurso extraordinário, em se tratando de deci- cia (art. 1.015, inciso I) e antes que tenha havido são colegiada. o aditamento da peça inicial (art. 303, § 1º, inciso I). Fiel à premissa aqui acolhida, entendo que, se ao tempo da decisão do tribunal o autor não houver ainda promovido a emenda à peça inicial, com a formulação do pedido de tutela final (art. 303, § 1º, inciso I), pode-se cogitar da O recurso tempestivo é apto a evitar a preclusão da questão recorrida. estabilização da decisão (monocrática ou colegiada) que houver deferido a medida em grau Chama a atenção o fato de que o sistema projetado – que tanto esforço empregou para reduzir Ô anteriormente. Em segundo lugar, se o autor não tiver argumentos para complementar, tampouco documentos adicionais a jun- (art. 1.015)16 – passe a compelir o réu a recorrer para tar, é evidente que o descumprimento desse comando legal não evitar a estabilização. Sob o império do Código vi- lhe poderá trazer qualquer consequência. Apesar de o dispositivo empregar o verbo “deverá”, a interpretação sistemática torna for- gente o réu pode optar por não recorrer da decisão çoso o entendimento de que o autor tem uma mera faculdade de liminar antecipatória de tutela e limitar-se a apre- complementar argumentos e documentos. O órgão julgador deve sentar defesa acompanhada de novos fatos e provas, se contentar com a manifestação de vontade de que o demandante nada tem a acrescer. confiando que o juiz, à luz do aprofundamento da 15. O réu pode já ter sido citado anteriormente ou ingressado volun- cognição, haja por bem revogar a medida.17 tariamente nos autos, hipótese em que a decisão concessiva de tutela poderia lhe ser comunicada apenas mediante mera intimação. Outro aspecto a ser enfrentado concerne à 16. A Exposição de Motivos do Anteprojeto de Novo CPC apresenta- hipótese em que o recurso manejado pelo réu da ao Senado Federal em 2009 detectou expressamente que o “volu- contra a decisão concessiva de tutela provisória me imoderado de [...] recursos” era um dos problemas a ser enfrentado por meio da “diminuição do número de recursos que devem ser apre- “estabilizável” não for conhecido, ante a falta de ciados pelos Tribunais”. Justamente no campo do agravo de instru- algum dos requisitos de admissibilidade. Para so- mento é que essa diretriz se manifestou de maneira mais intensa. 17. Não se cogita de preclusão, conforme assentei em outro trabalho (SICA, 2008, p. 256-262). Livro_126.indb 119 a recorribilidade direta das decisões interlocutórias 119 Revi s t a d o A d v o g a d o 303 concerne ao fato de que a tutela provisória P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. Outra consequência da interpretação do art. lucionar esse problema, parto do entendimento já assentado de que o recurso tempestivo, ainda 23/04/2015 16:28:52 que inadmissível em razão de algum outro vício, eletrônica de aplicações bancárias para efetivação é apto a evitar a preclusão da questão recorrida. da tutela provisória (art. 297, parágrafo único). 18 Logo, se o recurso for interposto tempestivamente, P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. impede-se a estabilização, pouco importando se Re v is t a d o A d v o g a d o 120 não foi posteriormente conhecido. Uma última observação se faz necessária. Há A segunda dúvida a ser dirimida concerne à diferença entre imutabilidade e estabilidade. que se considerar ainda a necessidade de interpre- De fato, há que se reconhecer que se trata tação sistemática e extensiva do art. 304, de modo de fenômenos distintos, sendo o primeiro deles a considerar que não apenas o manejo de recurso típico, apenas, da coisa julgada material. Aliás, é propriamente dito (cujas modalidades são arrola- sintomático que o Novo CPC atualmente empre- das pelo art. 994) impediria a estabilização, mas gue o termo estável, sem jamais falar em imu- igualmente de outros meios de impugnação às tabilidade ou, muito menos, de coisa julgada decisões judiciais (em especial a suspensão de (como fazia o anteprojeto da lavra de Ada Pelle- decisão contrária ao Poder Público e entes congê- grini Grinover em 199721 e aquele elaborado pelo neres19 e a reclamação20). IBDP e examinado pelo Senado Federal entre 2005 e 200722). 3 Em que consiste a projetada “estabilidade”? 3.1. Eficácia versus imunidade e estabilidade Primeiramente, baseio-me na ideia de Liebman (1984, passim) segundo a qual eficácia não se confunde com imutabilidade. Uma decisão pode perfeitamente produzir efeitos independentemente de ainda não ter se tornado imune a modificações ou revogações posteriores. Da mesma maneira, eficácia não se confunde com estabilidade. Sob esse ponto de vista, não há dúvidas de que a decisão que concede a tutela provisória urgente satisfativa antecedente é plenamente eficaz mesmo antes de se estabilizar. A diferença é a de que a tutela ainda não estabilizada enseja execução provisória (art. 397, parágrafo único), ao passo que a tutela estabilizada enseja execução definitiva, tão logo extinto o processo nos termos do art. 304, § 1º. Afinal, não faria nenhum sentido criar a estabilização e ao mesmo tempo impedir o autor de efetivar medidas irreversíveis face às amarras do regime do cumprimento provisório de sentença (art. 520 e ss.), agravadas pela restrição (de duvidosa constitucionalidade) ao uso da penhora Livro_126.indb 120 3.2. Imunidade versus estabilidade O Anteprojeto de Novo CPC já havia recusado a formação de coisa julgada material ao dispor 18. Esse entendimento é particularmente reiterado quando se trata de embargos de declaração tempestivos, mas não conhecidos, para efeito de interromperem o prazo para outros recursos em face da decisão embargada (v.g., Corte Especial, AgRg nos EDcl no AgRE no RE nos EDcl no REsp nº 760.216-PA, Rel. Min. Ari Pargendler e 1ª T., AgRg no REsp nº 1191737-RJ, Rel. Min. Hamilton Carvalhido). O mesmo raciocínio se aplica às demais modalidades recursais e ao efeito impeditivo da preclusão que lhes é inerente. 19. Art. 15 da Lei nº 12.016/2009. 20. Observe-se que o art. 988 amplia exponencialmente o cabimento da reclamação em relação ao sistema atualmente vigente. 21. O anteprojeto elaborado por Ada Pellegrini Grinover em 1997 propunha acrescentar ao art. 273 do CPC em vigor um § 8º, com a seguinte redação: “Havendo impugnação, o processo prosseguirá até final julgamento. Não havendo impugnação, ou sendo julgada inadmissível pelo juiz, o provimento antecipatório converter-se-á em sentença de mérito, sujeita a apelação se, efeito suspensivo, ficando o réu isento de custas e honorários advocatícios se não a interpuser” (1997, p. 191). 22. O PLS nº 186/2005 previa a inserção do art. 273-B, cujos §§ 1º e 2º eram assim redigidos: “§ 1º - Preclusa a decisão que concedeu a tutela antecipada, é facultado, no prazo de 60 (sessenta) dias: a) ao réu, propor demanda que vise à sentença de mérito; b) ao autor, em caso de antecipação parcial, propor demanda que vise à satisfação integral da pretensão. § 2º - Não intentada a ação, a medida antecipatória adquirirá força de coisa julgada nos limites da decisão proferida”. Já o art. 273-C projetado dispunha o seguinte: “Art. 273C - Preclusa a decisão que concedeu a tutela antecipada no curso do processo, é facultado à parte interessada requerer seu prosseguimento, no prazo de 30 (trinta) dias, objetivando o julgamento de mérito. Parágrafo único - Não pleiteado o prosseguimento do processo, a medida antecipatória adquirirá força de coisa julgada nos limites da decisão proferida” (2005, p. 35-37). 23/04/2015 16:28:52 que concede a tutela não fará coisa julgada, via na hipótese vertente uma verdadeira hipótese mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será de imutabilidade, pela ausência de coisa julgada afastada por decisão que a revogar, proferida em material, ainda reservada para as “sentenças de mé- ação ajuizada por uma das partes”. A redação rito” (art. 502 do Novo CPC). permaneceu intacta no texto aprovado pelo Senado Federal em 15/12/2010 (art. 284, § 2º). Sob tal conformação, a técnica da estabilização apresentava indisfarçáveis semelhanças com aquela Via-se claramente que, tal qual redigido pelo empregada no processo monitório.26 e 27 Nele, o juiz Senado, o dispositivo aqui em foco criava mais exerce cognição sumária acerca da prova escrita uma hipótese de “tutela sumária definitiva”, as- sem força de título executivo exibida com a peça sim entendida como aquela que, em contraposição inicial e, com base nela, determina a expedição de à “tutela sumária provisória”, tem eficácia plena in- mandado para pagamento. Se o réu não opõe dependentemente de ulterior confirmação por sen- embargos, o mandado inicial se converte em 25 tença proferida com base em cognição exauriente título executivo judicial, de modo que o autor (cujo exercício, aliás, passa a ser meramente facul- poderá iniciar a execução forçada independente- tativo e eventual, atrelado à provocação do réu, por mente de ulterior decisão fundada em cognição 24 exauriente que confirme a decisão inicial fundada em cognição sumária. Se, por outro lado, 23. Aqui é evidente a inspiração do art. 488.1 do CPC francês: “L’ordonnance de référé n’a pas, au principal, l’autorité de la chose jugée”. 24. Cf., v.g., José Roberto dos Santos Bedaque (2005, p. 663). 25. A essa altura, é ocioso descrever os conceitos de “cognição exauriente” e de “cognição sumária”, bastando referir a obra clássica de Kazuo Watanabe (2015, p. 120-131). 26. Atualmente regulada pelos arts. 1.102-A a 1.102-C do CPC vigente, com redação dada pela Lei nº 9.079/1995, e que a redação do Novo CPC, em linhas gerais, com poucas diferenças, preserva em seus arts. 698 a 700. 27. A aproximação entre as hipóteses é há tempos exaltada. Basta destacar que Ada Pellegrini Grinover a invocou ao elaborar seu primeiro anteprojeto, em 1997 (1997, p. 191-195), e, recentemente, foi ressaltado por Eduardo Talamini (2012, p. 13-34). 28. Cf., v.g., Eduardo Talamini (2001, p. 92-104). O principal argumento extraído de tal lição doutrinária é o de que a cognição exercida pelo juiz para conversão do mandado monitório em título executivo foi meramente superficial. Acrescente-se ainda que, se o réu move embargos e eles são julgados improcedentes, há decisão de mérito, fundada em cognição exauriente, passível de coberta pela coisa julgada material e atacável por ação rescisória. Logo, seria inaceitável que, sem nenhuma decisão fundada em cognição exauriente, houvesse imutabilidade “total” (isto é, inapta ao ataque via ação rescisória). 29. Apesar das semelhanças, há três claras diferenças entre a técnica monitória e a técnica da estabilização: a) a desnecessidade de demonstração de urgência para manejo do processo monitório; b) no processo monitório, a efetivação da decisão sumária ocorre apenas após a estabilização, ao passo que na da tutela antecipada sua eficácia é liberada mesmo antes da estabilização; e c) a desnecessidade de prova escrita de obrigação líquida e certa para pleitear a tutela antecipada urgente satisfativa em caráter antecedente (embora seja difícil imaginar que o autor convença o juiz da probabilidade de seu direito sem qualquer prova escrita). Livro_126.indb 121 o réu opõe embargos, passa-se a se observar o procedimento comum, que resultará numa sentença final proferida mediante exercício de cognição exauriente. Segundo a maioria da doutrina pátria, não se forma coisa julgada no processo monitório,28 permitindo-se que o réu possa eventualmente discutir em ulterior processo a mesma relação jurídica.29 Contudo, durante a tramitação do projeto na Câmara, inseriu-se um novo elemento que precisa P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. meio de um processo autônomo). Contudo, não se 23 121 Revi s t a d o A d v o g a d o expressamente em seu art. 293 que “[a] decisão ser cuidadosamente analisado. Refiro-me à limitação temporal para o ajuizamento de ação pleiteando a revisão da decisão concessiva de tutela provisória estabilizada (dois anos, ex vi do art. 304, § 5º). Essa alteração traz uma evidente dificuldade teórica, pois não explica se, após o transcurso do biênio, forma-se ou não coisa julgada material. Ainda assim, entendo que não há coisa julgada. Para se chegar a essa conclusão, constato, primeiramente, que o § 1º do art. 304 preceitua que a estabilização da tutela provisória produz após a “extinção do processo”, sem informar se com ou sem resolução de mérito. O art. 487 (que basica- 23/04/2015 16:28:53 P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. Rev i st a d o A d v o g a d o 122 mente reproduz as hipóteses do art. 269 do CPC Ademais, a proposta baseia-se numa suposição vigente) não inclui essa hipótese, ao passo que o de que as partes (em especial o autor) se contenta- art. 485 (equivalente ao atual art. 267) poderia riam com a tutela sumária estabilizada. Mesmo que abarcar a situação em seu inciso X (que torna o houvesse algum levantamento estatístico acerca da dispositivo meramente exemplificativo ao nele in- frequência de recursos contra decisões antecipató- cluir os “demais casos prescritos neste Código”). rias de tutela – e não me consta haver –, tal dado Assim, é mais fácil encaixar essa situação nas hipó- não serviria para justificar a inclusão dessa técnica teses de sentenças terminativas, o que afastaria o em nosso ordenamento. Primeiro, porque é possível art. 502 (que reserva a formação da coisa julgada que alvitrar que a inserção da técnica incentivaria material à sentença de mérito). muitos réus a interpor recurso, para evitar as graves Em segundo lugar, há que se reconhecer que consequências hoje não existentes. Segundo, porque a coisa julgada material não tem apenas uma fun- não sabemos se as partes se contentarão com uma ção negativa (que impede que o mesmo litígio seja tutela sumária “estável”, mas não “imutável”.36 novamente judicializado, como dispõe o art. 304, § 5º), mas igualmente uma função positiva (isto é, a decisão há de ser observada em processos futuros entre as mesmas partes).30 A decisão estabilizada não parece ter essa feição positiva.31 Passados os dois anos da decisão extintiva do feito, produz-se uma estabilidade qualificada pois, embora não possa ser alterada, não se confundiria com a imunidade pela inexistência de uma feição positiva.32 No mais, parece mais acertado reconhecer que a explicação para esse fenômeno repousa no instituto da “decadência” (tal como ocorre quando se trata da ação rescisória, ex vi do art. 497 do CPC vigente e art. 975 do novo CPC),33 de modo que a extemporaneidade da demanda promovida com base no art. 304, § 2º, levaria à extinção do feito com fundamento no art. 487, inciso II. 4 Balanço crítico A técnica ora em exame foi importada de sistemas em que a abreviação do procedimento em face da inércia do réu se revela excepcional, de tal modo que se torna necessário criar meios de antecipar o início da execução.34 O nosso sistema já tem meios adequados para tanto, em especial o julgamento antecipado da lide fundado no art. 330, inciso II, do CPC de 1973 (repetido no art. 355, inciso II, do Novo CPC).35 Livro_126.indb 122 30. Conforme lição clássica de Barbosa Moreira (1967, p. 64). 31. Para explicar essa afirmação, pode-se recorrer a uma das fontes de inspiração do projeto, isto é, a comma 9 do art. 669-octies do CPC italiano, que estabelece que “l’autorità del provvedimento cautelare non è invocabile in un diverso processo”. 32. A situação em muito se equipararia à chamada preclusão “pro judicato”, instituto cunhado por Redenti (1938, p. 135) justamente para explicar alguns fenômenos de imunização semelhantes à coisa julgada, mas menos intensos que ela. 33. Esse entendimento explica-se à luz da constatação de que a demanda movida com esteio no art. 304, § 2º, terá eficácia desconstitutiva da decisão antecipatória, aproximando-se, por isso, da hipótese de ação rescisória, cujo prazo para propositura é decadencial (v.g. STJ, REsp nº 1165735-MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão), ainda que se prorrogue até o primeiro dia útil subsequente caso o termo ad quem caia em dia sem expediente forense (e.g., AgRg no REsp nº 747.308-DF, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros). 34. De fato, naqueles sistemas, a ausência de defesa do réu não implica (como nos Códigos brasileiros vigente e novo – arts. 321 e 344, respectivamente) a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor e, consequentemente, não dispensa o juiz de abrir instrução probatória (aqueles sistemas não conhecem o julgamento antecipado previsto no art. 330, inciso II, do CPC vigente e art. 355, inciso II, do novo CPC). Daí por que italianos e franceses se esmeram em criar meios mais céleres de formação de título executivo judicial (o que ajuda a explicar o propalado “sucesso” da tutela monitória naqueles países). No nosso sistema, não faria muito sentido acolher a mesma solução. A gravidade dos efeitos da revelia e a possibilidade de julgamento antecipado da lide – previstos no CPC de 1973 e mantidos no novo CPC – tornam menos úteis e necessárias técnicas processuais baseadas na inércia do réu e destinadas a abreviar o iter procedimental a ser percorrido para que seja possível dar início à execução. Penso não ser outra a razão de a ação monitória não desempenhar entre nós papel relevante. A técnica da estabilização vive sob esse mesmo risco de se tornar um instrumento sem maior utilidade. 35. Penso ter o legislador caído em um dos “mitos” a que alude Barbosa Moreira em ensaio publicado há dez anos (2004, p. 7-10), qual seja a “supervalorização de modelos estrangeiros”. 36. Para outras incisivas críticas à técnica, confira-se o já indicado texto de Eduardo Talamini (2012, p. 31-34). 23/04/2015 16:28:53 uma interpretação restritiva das hipóteses de sível que os problemas anteriormente noticia- cabimento da técnica de estabilização, por en- dos passem despercebidos, e a técnica perma- tender que é preferível mitigá-la a fim de evitar necerá no Código como algo inofensivo, mas maiores problemas de ordem sistemática. Se os desnecessário. Bibliografia BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: al- ______. Tutela jurisdicional diferenciada: a antecipação e sua guns mitos. Temas de direito processual – oitava série. São estabilização. Revista de Processo, São Paulo, Revista dos Paulo: Saraiva, 2004. p. 1-14. Tribunais, v. 30, n. 121, p. 11-37, mar./2005. ______. Questões prejudiciais e coisa julgada. 1967. Tese (Li- LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença vre-docência em Direito Judiciário Civil) – Faculdade de e outros escritos sobre a coisa julgada (com aditamentos Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio relativos ao direito brasileiro). Tradução de Alfredo de Janeiro, 1967. Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores à BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Estabilização das tute- edição de 1945 e notas relativas ao direito brasileiro vigen- las de urgência. In: YARSHELL, Flávio Luiz; MORAES, te de Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Forense, Maurício Zanoide de (Org.). Estudos em homenagem a Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005. p. 660-683. BONATO. Giovanni. I référés nell’ordinamento francese. In: CARRATTA, Antonio (Org.). La tutela sommaria in Europa. Studi, Napoli: Jovene, 2012. CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 3. 7. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1992. Milano: Giuffrè, 1938. SICA, Heitor Vitor Mendonça. 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Tutela monitória – a ação monitória (Lei 9.079/95). 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. P r i m e i r a s i m p r e s s õ e s s o b re a “ es tab ilização da tu tela an tecipada”. tribunais vierem a adotar diretriz similar, é pos- 123 Re vis t a d o A d v o g a d o O presente ensaio, conscientemente, propôs WATANABE, Kazuo. Cognição no processo civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 23/04/2015 16:28:53 A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? Sumário 1.Introdução 2.O STF e o STJ como cortes de revisão 124 Revi s t a d o A d v o g a d o 3.O julgamento da causa nos recursos extraordinário e especial 4.Conclusão Bibliografia 1 Introdução Sempre houve muita polêmica em torno dos limites do julgamento da causa nos recursos extraJoão Francisco Naves da Fonseca ordinário e especial, principalmente diante da ve- Doutor e mestre em Direito Processual pela dação ao reexame dos fatos na instância de super- Universidade de São Paulo – Largo São Francisco. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Pro- posição (Súmulas nº 279 do STF e nº 7 do STJ).1 cessual. Advogado. Parte da doutrina defende que, uma vez admitida e provida a impugnação, o tribunal de superposição poderia rever – ilimitadamente – fatos e provas para julgar a causa subjacente ao recurso.2 1. “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário” (Súmula nº 279 do STF); “a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” (Súmula nº 7 do STJ). 2. Cf., p. ex., Nery Jr. (2008, p. 967, 968, 973; 2004, n. 3.5.1.5, p. 442). Livro_126.indb 124 23/04/2015 16:28:53 que o óbice ao exame da prova abrangeria todas as cesso legislativo,7 empregavam a expressão “julga- etapas do julgamento do recurso de direito estrito, rá a causa”, mais adequada, justamente porque é de modo que o tribunal de superposição somente a terminologia constante da Constituição Federal poderia levar em consideração os fatos constantes do (CF). Foi apenas por ocasião dos chamados “ajus- acórdão recorrido. Visando a trazer alguma luz a tes de redação”, realizados no início de 2015, que essa discussão, o legislador inseriu no Novo Código a palavra “causa” acabou sendo substituída por de Processo Civil (CPC) o seguinte dispositivo: “processo”. Apesar disso, como os tais ajustes não 3 “admitido o recurso extraordinário ou o re- devem alterar o sentido ou a substância do texto curso especial, o Supremo Tribunal Federal ou o aprovado – o qual (repita-se) utilizava corretamen- Superior Tribunal de Justiça julgará o processo, te a terminologia da CF –, deve-se entender que o aplicando o direito” (art. 1.034, caput). vocábulo “processo” foi empregado como sinôni- Trata-se de regra decorrente do próprio texto mo de “causa” no aludido art. 1.034. constitucional, o qual estabelece a competência Mas, afinal, o que significa a expressão “jul- dos tribunais de superposição para julgar as cau- gará o processo, aplicando o direito”, prevista no sas em recurso extraordinário e especial (arts. 102, citado dispositivo legal? Antes de responder a essa inciso III, e 105, inciso III). Essa disposição, ade- indagação, convém relembrar algumas caracterís- mais, já estava prevista no art. 257 do Regimento ticas dos recursos extraordinário e especial direta- Interno do STJ e contemplada na Súmula nº 456 mente ligadas às funções institucionais do STF e do STF. do STJ. 4 5 Note-se que os projetos aprovados na Câmara dos Deputados, na condição de casa revisora,6 e 3.Cf., entre outros, Medina (2009, n. 2.4.2-2.4.4, p. 99-105), Azzoni (2009, p. 171-176) e Costa (2011, n. 8.1.3, p. 223). 4.Regimento Interno do STJ, art. 257: “No julgamento do recurso especial, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma não conhecerá do recurso; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. 5.Súmula nº 456 do STF: “O Supremo Tribunal Federal, conhecendo do recurso extraordinário, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. No mesmo sentido, a antiga redação do art. 324 do Regimento Interno do STF dispunha que, “no julgamento do recurso extraordinário, verificar-se-á, preliminarmente, se o recurso é cabível. Decidida a preliminar pela negativa, a Turma ou o Plenário não conhecerá do mesmo; se pela afirmativa, julgará a causa, aplicando o direito à espécie”. Com a modificação implementada pela Emenda Regimental nº 21, de 30/4/2007, tal regra deixou de constar expressamente no RISTF. Não obstante isso, nada se alterou na prática da corte, pois é a Constituição Federal que lhe autoriza julgar a causa. 6.O Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado nº 166, de 2010 (nº 8.046, de 2010, naquela casa), foi aprovado em março de 2014. 7. A votação do Novo CPC foi concluída no Senado Federal em dezembro de 2014. 8.Cf. Dinamarco (2000, p. 784). 9.Com efeito, todas as Constituições do Brasil, desde 1934, conferiram ao STF competência para julgar a causa subjacente ao recurso extraordinário. Aliás, já a Lei nº 221, de 20 de novembro de 1894, tinha dispositivo de semelhante teor (art. 24). Livro_126.indb 125 2 O STF e o STJ como cortes de revisão Há basicamente dois modelos, diferenciados pela função, de cortes de superposição no mundo: as que cassam e substituem (chamadas de cortes de revisão) e as que cassam sem substituir (daí, meras cortes de cassação). As primeiras enunciam A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? no Senado Federal, já na derradeira fase do pro- 125 Revi s t a d o A d v o g a d o No outro extremo, há entendimento no sentido de a tese jurídica correta e, no julgamento da causa, aplicam-na elas próprias ao caso concreto. As cortes de cassação, por sua vez, após fixarem a solução jurídica a prevalecer no caso, devolvem os autos à instância de origem, ou os remetem a outro órgão judiciário de mesma hierarquia que a sua, para que a tese fixada seja aplicada concretamente.8 No Brasil, como já dito, a CF determina a natureza de corte de revisão do STF e do STJ, na medida em que prevê o julgamento da causa, em recurso extraordinário (art. 102, inciso III) e especial (art. 105, inciso III).9 Por isso, a princípio, se o tribunal de superposição conhece e dá provimento a um recurso, ele deve a) anular a decisão 23/04/2015 16:28:53 A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? Rev i st a d o A d v o g a d o 126 impugnada e remeter o caso para a instância de constantes dos autos, ainda que não mencionados origem, se verificar vício decorrente de inobser- no acórdão recorrido, desde que respeite dois vância de exigência processual (error in procedendo; limites. vício de atividade); ou b) julgar a causa, substituindo o acórdão recorrido, se corrigir erro relativo a norma de direito material (error in iudicando; vício de juízo). Todavia, a despeito de não serem meras cortes de cassação, os tribunais de superposição O primeiro limite consiste na garantia do brasileiros, no julgamento dos recursos extraor- direito à prova, assegurado constitucionalmen- dinário e especial, mesmo nas hipóteses de error te pela cláusula do devido processo legal, de in iudicando, não raramente remetem os autos modo que se o julgamento integral da causa, ao tribunal local para que este aprecie a matéria após a fixação da tese jurídica correta, depen- fática, com base na tese jurídica fixada. Daí por der de prova ainda não produzida, o tribunal que a previsão no CPC da regra contida no art. de superposição deve devolver os autos para que 1.034 é salutar e tem certo caráter didático. Não o juízo de primeiro grau complete a instrução obstante, a interpretação meramente literal desse probatória e profira nova decisão. O segundo li- dispositivo pode causar a falsa impressão de que, mite reside nos pontos de fato já decididos pelo admitido o recurso, os tribunais de superposição tribunal local, porque este é soberano quanto à estarão totalmente livres para reexaminar os fa- matéria fática decidida no acórdão – é vedado o tos do processo. Na verdade, alguns limites ainda reexame, não o exame.11 Aliás, tais fatos já foram deverão ser observados, conforme se verá no tó- aceitos como verdadeiros pelo tribunal de super- pico subsequente. 3 O julgamento da causa nos recursos extraordinário e especial A rigor, o julgamento dos recursos de direito estrito pode ser lógica e potencialmente dividido em três operações: I) verificação da admissibilidade do recurso; II) exame in concreto da existência do erro de direito apontado pelo recorrente (iudicium rescindens); e III) rejulgamento da causa (iudicium rescissorium).10 À operação seguinte só se passa após o êxito do recurso na etapa anterior. Ou seja, o tribunal de superposição deve primeiro investigar se o recurso é ou não admissível. Depois, em caso afirmativo e já no plano do mérito, decidir se a impugnação é ou não procedente (i.e., se efetivamente ocorreu a apontada violação à CF ou à lei federal). Por fim, mas só se for o caso, julgar a causa com base em todos os elementos de prova Livro_126.indb 126 A previsão no CPC da regra contida no art. 1.034 é salutar. 10. Nesse sentido, nas palavras de Barbosa Moreira (2008, n. 226, p. 402-403), em se tratando “de recurso de fundamentação vinculada, parece correto, do ponto de vista lógico, discernir uma dualidade de operações no julgamento do mérito, embora ao ângulo prático, menos nitidamente perceptível, desde que não ocorra cisão de competência. Vencido, com efeito, o juízo de admissibilidade, deve o órgão ad quem verificar previamente se a decisão impugnada contém na realidade o vício típico cuja alegação tornou cabível o recurso. Caso se responda afirmativamente a essa indagação, já fica certo, só por isso, que a decisão não pode subsistir: impende cassá-la. Em posterior etapa se cuidará, então, de substituí-la por outra. Seria, no direito brasileiro, a hipótese do recurso extraordinário interposto com fundamento na letra a do art. 102, nº III, da Constituição da República. Supondo-se, v.g., que o acórdão recorrido contenha ofensa a norma constitucional, incumbe à Corte Suprema rescindi-lo e, em seguida, proferir outro que o substitua, acomodado aos ditames da Lei Maior. Praticamente, vale repetir, tudo isso se faz uno actu, sem descontinuidade apreciável na dinâmica do julgamento; legitima-se a diferenciação, contudo, em nível dogmático, permitindo que se fale de um iudicium rescindens e de um iudicium rescissorium – ambos (e não apenas o segundo) integrantes do julgamento do mérito do recurso extraordinário”. Em sentido semelhante, cf. Zavascki (2012, p. 19). 11. “Ultrapassado o juízo de admissibilidade, e tendo o Superior Tribunal de Justiça que julgar a causa, ele pode examinar – o que é diferente de reexaminar – questão de fato ainda não solucionada, e cuja apreciação é indispensável à solução da espécie. Tanto quanto sutil, a diferença é relevante” (PIMENTEL SOUZA, 2007, n. 16.12, p. 440). No mesmo sentido, cf. Didier Jr. e Carneiro da Cunha (2008, p. 275-276). 23/04/2015 16:28:53 uma questão de direito que superasse a barreira da devolução na etapa de julgamento da causa de admissibilidade, especialmente se o recurso depende da medida do êxito do recurso no juí- invocou erro na subsunção do fato à norma (qua- zo rescindente. Em outras palavras, autoriza-se o lificação jurídica do fato). julgamento do feito pelo tribunal de superposi- No entanto, cabe uma ressalva quanto à cor- ção apenas no que tange aos capítulos da decisão reção de vício de atividade: se, em vez de anular afetados pela correção do erro de direito. Por isso, a decisão impugnada e devolver os autos para a o STF ou o STJ “julgará o processo, aplicando o instância de origem, o tribunal de superposição direito”, mas dentro dos limites do provimento da decidir por julgar a causa desde logo, os pontos impugnação.12 de fato diretamente ligados ao error in proceden- Para melhor entendimento das ideias aqui do podem receber outra conclusão na instância apresentadas, traz-se à colação um caso concreto. de superposição. Esse é o caso, por exemplo, de Após ter afastado a única premissa utilizada pelo acórdão de tribunal local que considerou provado tribunal local para repelir a existência de união determinado fato, por meio de prova que o STF estável, o STJ devolveu os autos ao tribunal de ori- decidiu ser ilícita; entendendo a Corte Suprema gem, para que este, abstraído o fato de a recorren- que o julgamento da causa pode se dar desde logo te nunca ter coabitado com o de cujus, verificasse sem prejuízo do devido processo legal, é óbvio a existência ou inexistência da união estável, a que tal fato, antes considerado provado, pode ser partir dos demais elementos de prova constantes revisto e até considerado inexistente. Consigne-se, dos autos.13 Nesse caso, como se fosse mera corte porém, que o julgamento da causa in totum pelo de cassação, o tribunal superior decidiu, após a tribunal de superposição, após a correção de error correção do error in iudicando, devolver os autos in procedendo, não deve ser a regra, por conta da ao tribunal local para que este julgasse novamen- necessidade de se preservarem as garantias do te a causa, tal como nos sistemas que preveem o direito à prova, do contraditório e da ampla defesa, “reenvio”. Coloca-se, então, a dúvida quanto ao ínsitas ao devido processo legal. acerto desse procedimento. Os tribunais brasileiros, ao darem provimento 12. Assim, por exemplo, “a regra do art. 257 do RISTJ só obriga o julgamento da causa na sua integralidade, em se tratando da letra a, se a norma legal a ser aplicada ou afastada influenciar a decisão do mérito da lide. Não teria sentido, por exemplo, que um recurso especial conhecido apenas por violação do art. 21 do CPC devolvesse ao STJ o exame das demais questões. Hipótese em que a aplicação do art. 538, § ún., do CPC, teve como cenário o julgamento dos embargos de declaração, sem qualquer repercussão nos temas decididos no julgamento da apelação” (STJ, Corte Especial, ED no REsp nº 276.231, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 1º/9/2004, rejeitaram os embs., v.u., DJ de 1º/2/2006). 13. “O art. 1º da Lei 9.278/96 não enumera a coabitação como elemento indispensável à caracterização da união estável. Ainda que seja dado relevante para se determinar a intenção de construir uma família, não se trata de requisito essencial, devendo a análise centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a fidelidade, a continuidade da união, entre outros, nos quais se inclui a habitação comum” (STJ, 3ª T., REsp nº 275.839, Rel. p/ ac. Min. Nancy Andrighi, j. 2/10/2008, deram provimento, v.u., DJ de 23/10/2008). Livro_126.indb 127 a recurso voltado contra acórdão contendo vício A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? É claro também que a dimensão horizontal 127 Revi s t a d o A d v o g a d o posição no momento de verificar a existência de de juízo, devem reformá-lo, substituindo-o, nos limites em que conhecida a impugnação, pois não há – no direito positivo pátrio – regra que autorize expressamente o “reenvio” da causa para o tribunal de origem. Há, entretanto, princípios constitucionais, tais como o do direito à prova, o do contraditório e o da ampla defesa, que devem sempre ser observados. Por isso, se o julgamento integral da causa depender de provas ainda não produzidas, o tribunal deve devolver os autos para que o juízo de primeiro grau complete a instrução e profira nova decisão, em atenção à cláusula do devido processo legal, mesmo em hipótese de error in iudicando. Portanto, somente nesses casos, 23/04/2015 16:28:53 A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? Re v is t a d o A d v o g a d o 128 o “reenvio” é permitido e independe de pedido pronunciado o tribunal local, podendo inclusive recursal, por se tratar de reforma (e substituição) manter a procedência da demanda. parcial do acórdão, porque limitada à matéria de A primeira solução, segundo a qual o tribunal direito, de modo que, se o tribunal pode o mais – de superposição estaria impedido não só de apre- que é julgar definitivamente a causa in totum –, ciar fundamentos ignorados pelo tribunal de ori- deve também poder o menos: decidir parcialmente gem, mas também de remeter os autos para que o mérito e remeter os autos para providências de este os aprecie, sugere que o vencedor-recorrido instrução e julgamento pelas instâncias ordiná- tenha o ônus de manejar recurso adesivo condi- rias. Todavia, esse procedimento deve ser adotado cional, para que não corra o risco de sucumbir no apenas excepcionalmente pelos tribunais brasi- processo, exclusivamente por conta da motivação leiros. Se a instrução estiver completa e a causa deficiente do acórdão impugnado.18 Todavia, não madura, o tribunal de superposição deve julgá-la parece ser essa a melhor solução, primeiro porque integralmente, em atenção aos princípios consti- é discutível o interesse recursal do vencedor, uma tucionais da efetividade e da celeridade do proces- vez que o dispositivo decisório lhe foi totalmente so, mas respeitando a soberania do tribunal local favorável.19 Além disso, tal solução vai de encontro quanto à matéria fática decidida14 e as garantias do devido processo legal.15 Se a instrução estiver completa e a causa madura, o tribunal de superposição deve julgá-la integralmente. Problemas semelhantes podem ocorrer nos casos em que o tribunal de superposição afasta a única causa petendi eleita pelo tribunal local para sustentar a procedência da demanda. Excluído o único fundamento do acórdão recorrido, abrem-se três diferentes soluções sobre os limites do julgamento da causa na instância excepcional, quais sejam: o tribunal de superposição deve a) dar provimento ao recurso e julgar improcedente a demanda, porque estaria impedido de apreciar as causas de pedir não resolvidas pelo tribunal de origem; 16 b) necessariamente devolver os autos ao tribunal local, para que este se manifeste sobre as outras causas de pedir e julgue novamente o feito; 17 c) rejulgar o feito, apreciando as outras causas de pedir lançadas na inicial, ainda que sobre elas não tenha se Livro_126.indb 128 14. Nesse sentido, a título ilustrativo, se o tribunal local reformasse sentença de procedência de reconhecimento e dissolução de união estável, acolhendo o fundamento da inexistência de coabitação, seria mais viável – em comparação com o caso narrado – o julgamento integral da demanda pelo STJ. Isso porque, nessa hipótese, presume-se que o juiz de primeira instância só julga procedente a demanda depois de ter realizado toda a instrução probatória. Portanto, o referido tribunal superior afastaria o fundamento utilizado para reformar a sentença e, em seguida, ele próprio teria condições de verificar a existência ou inexistência da união estável, com base nos elementos de prova já constantes nos autos, mas obviamente levando em consideração o fato já decidido pelo tribunal local, qual seja a ausência de coabitação. 15. Cf. também Fonseca (2012, passim). 16. Cf. Barioni (2010, n. 7, p. 264-266). 17. Cf. Arruda Alvim Wambier (2009, p. 64). 18. Cf. Barioni (2010, n. 7, p. 265-266). Barbosa Moreira também defende os recursos extraordinário e especial adesivo ad cautelam (2008, n. 175, p. 320-321, n. 179, p. 327-330 e n. 324, p. 605-606). Na Itália, com a alteração no art. 384 do CPC, que deu à corte de cassação competência para julgar o mérito quando desnecessário qualquer acertamento de fato, Beatrice Gambineri entende que o vencedor-recorrido passou a ter o ônus de impugnar a decisão do tribunal a quo, via recurso condicional adesivo, a fim de impedir a preclusão de questões que poderiam evitar eventual êxito do recorrente principal em um possível julgamento do mérito pela corte de cassação (2008, cap. III, esp. p. 204-205). 19. Segundo Eduardo Ribeiro, neste caso, o recurso adesivo sequer seria conhecido, tendo em vista que o processo visa a um objetivo prático (2000, p. 56-57). Na jurisprudência: “conhecido o recurso especial, a ele pode-se negar provimento com base em fundamento, exposto na causa, mas não considerado no acórdão recorrido, que teve outro como bastante. Ao litigante que obteve tudo que poderia obter não será dado recorrer, por falta de interesse. Entretanto, não se reformará decisão, cuja conclusão é correta, apenas porque acolhido fundamento errado” (STJ, 3ª T., REsp nº 17.646-EDcl, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 9/6/1992, rejeitaram os embargos, v.u., DJ de 29/6/1992). 23/04/2015 16:28:53 que nega o bem da vida à parte que tem razão, o processo civil. Não há dúvida de que apenas simplesmente porque, vencedora na instância or- questão jurídica prequestionada pode ser objeto dinária, ela entendeu ser desnecessário recorrer. de recurso de direito estrito. Mas superada essa Com efeito, o processo civil instrumental não barreira, o tribunal não pode ter o seu exercício pode ter um procedimento com entraves e surpre- jurisdicional ilegitimamente cerceado,20 razão sas, que impeçam a efetiva realização do direito pela qual ele pode e deve examinar as causas de material em juízo e o acesso à ordem jurídica pedir e os fundamentos de defesa necessários para justa. julgar os capítulos relacionados com o provimento A segunda posição apresentada (reenvio) ser- do recurso.21 É, portanto, também de bom alvi- viria apenas como alternativa subsidiária, mas tre a regra constante do parágrafo único do art. reconhecidamente não é a mais satisfatória, por- 1.034 do novo Código, segundo a qual “admitido que desprestigia os princípios da economia, da o recurso extraordinário ou o recurso especial por efetividade e da duração razoável do processo. um fundamento, devolve-se ao tribunal superior Nesse cenário, a terceira solução é a que mais o conhecimento dos demais fundamentos para a se alinha com a evolução das funções institucio- solução do capítulo impugnado”. De todo modo, nais dos tribunais de superposição, bem como trata-se de mera explicitação de algo que já decorreria – naturalmente e por si só – da regra contida no caput do mesmo dispositivo legal. 20. Na Alemanha, tal como – de uma forma geral – no direito brasileiro, “a instância de revisão, no acesso à suprema instância, não é dominada por uma finalidade uniforme; o interesse geral é o mais preponderante (principalmente pela limitação da admissibilidade); porém, uma vez admitida a revisão, o procedimento se desenrola de acordo com os interesses das partes” (PRÜTTING, 1978, p. 155). 21. Nesse sentido: “Se o tribunal local acolheu apenas uma das causas de pedir declinadas na inicial, declarando procedente o pedido formulado pelo autor, não é lícito ao STJ, no julgamento de recurso especial do réu, simplesmente declarar ofensa à lei e afastar o fundamento em que se baseou o acórdão recorrido para julgar improcedente o pedido. Nessa situação, deve o STJ aplicar o direito à espécie, apreciando as outras causas de pedir lançadas na inicial, inda que sobre elas não tenha se manifestado a instância precedente, podendo negar provimento ao recurso especial e manter a procedência do pedido inicial” (STJ, Corte Especial, ED no REsp nº 58.265, Rel. p/ ac. Min. Barros Monteiro, j. 5/12/2007, deram provimento, m.v., DJ de 7/8/2008). Ainda no mesmo sentido, Negrão, Gouvêa, Bondioli e Fonseca (2014, nota 3 ao art. 255 do RISTJ – “Súmula 456 do STF”, p. 2.015) trazem à baila vários precedentes no sentido de que é possível o julgamento da causa, desde logo, pelo STJ, a despeito de o acórdão do tribunal local não ter se manifestado sobre fundamento do pedido ou da defesa. Livro_126.indb 129 4 Conclusão Em síntese, se o julgamento da causa em recurso extraordinário ou especial depender de prova ainda não produzida, o tribunal de superposição – após fixar a tese jurídica correta – deve remeter os autos à primeira instância para providências de instrução e novo julgamento. Entretanto, se a A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? com os princípios constitucionais que informam 129 Revi s t a d o A d v o g a d o à visão instrumental do processo, na medida em causa estiver madura, o tribunal deve julgá-la integralmente – obviamente nos limites horizontais do provimento da impugnação –, respeitando os pontos fáticos já decididos pelo tribunal de origem, bem como as garantias do contraditório e da ampla defesa. Eis o significado e a real extensão do art. 1.034 do Novo CPC. 23/04/2015 16:28:53 A profundidade do efeito devolutivo nos recursos extraordinário e especial: o que significa a expressão “julgará o processo, aplicando o direito” (CPC/2015, art. 1.034)? Re v is t a d o A d v o g a d o 130 Livro_126.indb 130 Bibliografia AZZONI, Clara Moreira. Recurso especial e extraordinário: aspectos gerais e efeitos. São Paulo: Atlas, 2009. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. V. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 46. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. NERY JR., Nelson. Questões de ordem pública e o julgamento do mérito dos recursos extraordinário e especial: ano- BARIONI, Rodrigo Otávio. Ação rescisória e recursos para os tações sobre a aplicação do direito à espécie (STF 456 e tribunais superiores. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. RISTJ 257). In: MEDINA, José M. Garcia et al. 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Tribunais, ano 34, n. 168, fev. 2009. ZAVASCKI, Teori Albino. Jurisdição constitucional do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 37, n. 212, out. 2012. 23/04/2015 16:28:53 O juiz, a aplicação do Direito e o Novo CPC. Sumário 1.Introdução 2.O art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e os dispositivos semelhantes, debatidos durante o processo legislativo do Novo CPC 3.A evolução da proposta legislativa e a ordem dos elementos incorporados à norma “processual” de aplicação da lei Bibliografia 1 Introdução Em vista da recente aprovação do Novo Código de Processo Civil (NCPC), Lei nº 13.105/2015, 131 Revi s t a d o A d v o g a d o 4.Conclusão dedica-se agora a doutrina a analisar o texto de tal relevante diploma, preparando a sociedade e os operadores do Direito para enfrentar as dificuldades que decorrem deste momento de mudança. José Carlos Baptista Puoli Em boa hora, e com o protagonismo que lhe é Professor doutor de Direito Processual Civil da peculiar, a Associação dos Advogados de São Paulo Universidade de São Paulo. Advogado. abre espaço para este debate em sua tradicional Revista do Advogado, em edição coordenada pelos ilustres Luiz Périssé Duarte Júnior, José Rogério Cruz e Tucci e Heitor Vitor Mendonça Sica, colegas a quem agradeço pela oportunidade de colaborar, apresentando artigo que, nos limites propostos pela coordenação, se dedica a verificar se o NCPC altera o paradigma decisório utilizado Livro_126.indb 131 23/04/2015 16:28:53 pelo juiz brasileiro. Para tanto, este estudo se di- por equidade nos casos previstos em lei”. Tratava-se reciona à exortação que o legislador faz para que de salientar, no âmbito da lei ordinária, o comando o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, atente constitucional da legalidade, deixando claro que o aos “fins sociais e às exigências do bem comum, Direito Positivo apenas poderia ser posto de lado resguardando e promovendo a dignidade da pes- à medida que o próprio legislador excepcionasse a soa humana e observando a proporcionalidade, a situação, expressando hipótese em que a equidade razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a efici- pudesse ser invocada para solução do caso.2 ência”. Numa primeira leitura, tal assertiva parece ser de pouca relevância prática, mas a ordem dos O j u i z , a a p l i c a ç ã o d o D i reito e o No vo CPC. fatores postos no dispositivo e a iniciativa do le- Rev i st a d o A d v o g a d o 132 gislador processual de criar regra a respeito deste tema convidam à meditação sobre qual deve ser a interpretação a ser dada para tal artigo. Este o objetivo do presente texto. 2 O art. 5º da Lei de Introdução às “Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.” Pois bem, se a situação era esta, a leitura do Normas do Direito Brasileiro e os dispositivos semelhantes, debatidos durante o processo legislativo do Novo CPC NCPC causa inquietação. Primeiramente porque parece questionável a necessidade de o diploma processual cuidar deste tema, posto existir norma semelhante e, s.m.j., editada em mais adequado “espaço” normativo, qual seja o situado na Lei de 1 Em sua missão de criar regras de “sobredireito”, Introdução, que, notadamente, a partir da alteração a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de sua denominação (em 2010), destina-se expres- (LINDB) estipula em seu art. 5º que, “na aplicação samente à missão de servir de guia para interpreta- da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se di- ção das normas dos diversos ramos do ordenamen- rige e às exigências do bem comum”. Esta diretriz to jurídico brasileiro. Por sua vez, também passa a se endereça ao campo da interpretação das normas ser necessário indagar qual o objetivo do legislador jurídicas, deixando claro que o juiz, ao empreender ao inovar sua postura quanto ao tema, de forma a a atividade intelectual de busca pelo sentido efetivo regular o modo de aplicação do Direito, confinan- dos textos legais, deve ater-se não apenas à exata ex- do a norma do art. 127 aos termos do atual parágra- pressão gramatical, posto que deverá ter em mente, fo único do art. 140 do NCPC e criando, de outro também, a finalidade social da norma. Inclusive, lado, regra generosa, com menção a vários princí- cabe observar que, no referido art. 5º da LINDB, pios que se encontram elencados numa “ordem” parece haver repetição desnecessária de palavras, que, para leitor desavisado, parece sugerir uma alte- eis que, s.m.j., a finalidade social da norma se con- ração da maneira pela qual o julgador deve aplicar funde com a busca pela realização do bem comum, a lei ou, nos termos preferidos pelo legislador “mo- que, no “frigir dos ovos”, corresponde ao objetivo último do próprio Direito. Independentemente disto, importante mencionar que, no âmbito do CPC, o legislador de 1973 não havia tratado de tal tema. Quando muito, colhia-se do art. 127 menção a que o “juiz só decidirá Livro_126.indb 132 1. Nas palavras de Maria Helena Diniz (2013, p. 23), a LINDB caracteriza sobredireito porque “contém normas relativas à aplicabilidade e incidências de outras normas”. 2.Dois, os tradicionais exemplos em que o legislador permite o julgamento por equidade, a saber, no âmbito da jurisdição voluntária (art. 1.009 do CPC de 1973) e nos casos submetidos à arbitragem (art. 2º da Lei nº 9.307/1996). 23/04/2015 16:28:54 derno”, o ordenamento jurídico. Para solucionar a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a esta inquietação, necessário analisar a evolução da eficiência”. proposta do NCPC, bem como a ordem dos termos utilizados pela regra em comento. A repetição do texto normativo é aqui feita para salientar que, s.m.j., o legislador cria confusão ao incluir menções que, de um lado, mesmo que não 3 A evolução da proposta legislativa e a ordem dos elementos incorporados à norma “processual” de aplicação da lei estivessem escritas, seriam observáveis (ao menos nas situações de real necessidade desta utilização), mas que, por estarem ali expressamente elencadas, podem ocasionar percepção que, com o devido resÉ que as referências à dignidade da pessoa hu- positivo de que se ocupa este texto era um pouco mana, à proporcionalidade e à razoabilidade são mais extenso, afirmava que o juiz deveria obser- feitas como se o legislador estivesse a valorar, esca- var “sempre” os princípios ali elencados, em rol do lonando, os princípios enumerados neste preceito, qual também constava a impessoalidade e mora- de forma que à legalidade estaria reservada ape- lidade. Tal redação foi contemplada ao tempo da nas a quarta prioridade na escala a ser considerada primeira etapa do processo legislativo, sendo certo pelo juiz no momento de aplicar a lei. que o Projeto de Lei nº 166/2010, tal como apro- Dir-se-á que esta graduação estaria adequada a vado pelo Senado Federal em dezembro de 2010, um momento metodológico que, nas palavras do manteve o art. 6º com esta redação mais ampla. ministro Roberto Barroso, caracteriza-se como sendo Em boa medida, a Câmara dos Deputados extir- o da constitucionalização do Direito, marcado pelo pou a menção a que o juiz, na busca por aplicação “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo da lei alinhada com o bem comum, “sempre” tenha conteúdo material e axiológico se irradia com força de observar os princípios ali enumerados. Também normativa por todo o sistema jurídico”. foram retiradas as referências à impessoalidade e à Ocorre que este fenômeno não permite que o moralidade. Mas diga-se, desde já, que isto não será legislador ordinário possa escolher, ele, qual prin- permissivo a que o juiz seja parcial (proferindo deci- cípio deva ser privilegiado, sem que haja expressa sões com o deliberado desejo de atender interesse de norma constitucional permitindo a preferência determinadas pessoas) e/ou que o juiz possa proferir contida na lei. Ademais, causa perplexidade o fato decisões que não sejam probas. de o NCPC ter deixado de lado, ao redigir este Dito isto, cumpre analisar o texto “restante” art. 8º, um dos mais relevantes princípios informa- que, ao longo da etapa legislativa havida na Câma- dores de nosso ordenamento, qual seja o da segu- ra dos Deputados, foi renumerado e, como art. 8º, rança jurídica, entendida aqui, resumidamente, tem a redação anteriormente já mencionada, mas como a necessidade de haver regulação jurídica que, para facilidade do leitor, ora vai reiterada: suficientemente objetiva que permita haver estabili- “Ao aplicar o ordenamento jurídico o juiz dade nas relações sociais e respectiva previsibilidade atenderá aos fins sociais e às exigências do bem co- sobre qual o conteúdo da norma, de modo que mum, resguardando e promovendo a dignidade da cada sujeito possa se conduzir com vistas a buscar pessoa humana e observando a proporcionalidade, determinados resultados. E esta omissão parece se 133 Revi s t a d o A d v o g a d o No art. 6º do Anteprojeto de Novo CPC, o dis- O j u i z , a a p l i c a ç ã o d o D i reito e o No vo CPC. peito, deve ser desde logo repelida. 3 agravar, na medida em que nosso ordenamento 3.Texto elaborado pela Comissão de Juristas nomeada pela Presidência do Senado Federal e finalizado em 8/6/2010. Livro_126.indb 133 continua filiado à família da “civil law”, na qual a fonte preponderante do Direito é a lei. E isto 23/04/2015 16:28:54 vai traduzido pelo papel de destaque que o art. 5º que toca à dignidade humana, cabe referir que ela da Constituição Federal de 1988 (CF/1988) dá ao tem intrínseca ligação com os ideais de proporcio- princípio da legalidade, mencionando-o logo em nalidade e razoabilidade, eis que uma norma que seguida ao caput, que trata da inviolabilidade do não atenda a estes postulados tende a conduzir a re- “direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran- sultados indignos para o ser humano destinatário da ça e à propriedade”. Diz-se isto, posto que o inciso regra. Poder-se-ia dizer, mesmo, que a lei que fere a I “apenas” reitera a referência ao valor igualdade, dignidade humana já seria, em si, desproporcional passando o constituinte a tratar, “logo em segui- e/ou desarrazoada, de modo que novamente parece da”, da legalidade, enfatizando-a, ao mencionar haver, aqui, repetição desnecessária de termos. O j u i z , a a p l i c a ç ã o d o D i reito e o No vo CPC. no inciso II que “ninguém será obrigado a fazer Re v is t a d o A d v o g a d o 134 ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”. Rememorado isto, parece certo que a escala de prioridades da Constituição não aceita a proposição do NCPC de “relegar” a legalidade a uma leitura submissa à dignidade humana, razoabilidade e proporcionalidade. Note-se, não se advoga a validade de leis desumanas e/ou que contemplem medidas irracionais e/ou desmedidas. Insista-se, de todo modo, que dignidade hu- Defende-se, isto sim, que, a despeito da ordem mana, proporcionalidade e razoabilidade devem de fatores posta no texto, seja o art. 8º (em comen- ocupar papel de destaque nas considerações do to) lido com a necessária parcimônia, eis que o juiz moderno, mas não podem servir de pretexto ideal da segurança jurídica não permite haja o para corriqueira afronta à lei positiva, posto que escalonamento contido, ao menos, na leitura ex- tais vetores, de nítida similaridade, são muito pressa do texto de tal artigo do NCPC. genéricos e devem, por isto, continuar a desem- Afirma-se isto sem medo de erro, eis que os penhar papel de critério de solução apenas para valores da dignidade humana, da proporcionali- casos “excepcionais”, sob pena de se espraiar ilegí- dade e da razoabilidade, por sua pouca densida- tima arbitrariedade judicial. de normativa, não podem servir de pretexto para que, em todo e/ou qualquer caso, possa ser des- Neste sentido, Leonardo Greco (2013, p. 12) adverte que considerada a lei. Se isto fosse permitido, haveria “a hermenêutica da modernidade, que reduz a aniquilação do valor segurança, posto que o uso autoridade e a observância da lei, favorece o arbí- indiscriminado de tais princípios levaria a inúme- trio, gera insegurança jurídica e estimula o juiz a ros julgamentos subjetivos que, sem a devida legi- realizar justiça à sua moda, criando a lei do caso timidade, retirariam validade das escolhas feitas concreto e substituindo-se aos demais poderes. pelos canais políticos de deliberação, a respeito Esse caminho é incompatível com o Estado De- das condutas que devem ser prestigiadas e/ou repri- mocrático de Direito”. midas em nossa sociedade. Deste modo propugnase que, como já tem sido ensinado, continuem tais Livro_126.indb 134 Dignidade humana, proporcionalidade e razoabilidade não podem servir de pretexto para corriqueira afronta à lei positiva. De seu lado, José Ignácio Botelho de Mesquita (2005, p. 281) mencionava que valores a ser invocados como normas de conten- “atribuir à sentença outros fins que o de atuar a ção, aplicáveis apenas em situações “limite”, nas lei, fins que o juiz vá buscar alhures, é desnaturar quais a norma positivada estiver levando a verda- a sentença e o juiz [...] e submeter o povo a uma deiros absurdos não tolerados pelo sistema. E, no vontade que não é a sua”. 23/04/2015 16:28:54 Na mesma esteira, já tive a oportunidade de tinua o juiz sujeito à lei. Aquele que, a pretexto mencionar que o juiz deve resolver os casos con- de dar a esta interpretação evolutiva, pretender cretos aplicando a lei, sem fazer preponderar seus impor crenças soluções suas personalíssimas, valores pessoais em detrimento daqueles contidos decorrentes de suas opções políticas, crenças no texto legal, eis que a diretriz legítima para so- religiosas, preconceitos, preferências etc. estará lução dos litígios cometendo ilegalidade e sua decisão não será le- da própria lei, na medida em que ela [...] é resul- Citem-se, ainda, as palavras de Eros Roberto tado da vontade do povo [...] expressada por inter- Grau (2014, p. 138-139), que, em recente obra, na médio de seus representantes políticos” (PUOLI, qual faz importante e surpreendente revisão de 2002, p. 69). aspectos de seus escritos anteriores, afirma que o Enfim, e à vista do anteriormente exposto, endeusar dos princípios “encanta” e “fascina”, mas necessário reiterar que para solução de casos do adverte que talvez esta tendência “acabe quando dia a dia não será possível recorrer a princípios começar a comprometer a fluência da circulação de expressão tão genérica, que tão pouco dizem mercantil, a calculabilidade e a previsibilidade indis- para guiar o juiz e permitir haja razoável uniformi- pensáveis ao funcionamento do mercado”, mencio- dade nas decisões proferidas. Necessário repetir: nando ainda que, até o momento em que houver o a rotineira referência à dignidade humana, à pro- abandono deste modelo de aplicação da lei, ele, mi- porcionalidade e/ou à razoabilidade para decidir nistro Eros, terá “medo dos juízes”, “medo do direito conflitos corresponderia a privilegiar de maneira alternativo”, “medo do direito achado na rua”. descabida o subjetivismo do juiz, que, mesmo tendo a atribuição de decidir, não ostenta poder para 4 Conclusão se posicionar “sempre” em detrimento das esco- Livro_126.indb 135 lhas feitas pelos canais políticos de representação Como toda obra humana, o NCPC contém popular. Em outras palavras, que não se leia o art. 8º aspectos positivos e negativos. Uma escolha que do NCPC como norma que promove revolução de causa preocupação materializa-se na ideia de que- nosso sistema jurídico. rer enfatizar princípios que iluminam nosso siste- Não se veja, pois, na retórica redação de tal ma, mas não são dotados da densidade necessária regra autorização para que, ao contrário do que a garantir haja segurança jurídica. Neste contexto, consta da CF/1988, se queira libertar o juiz da insere-se o art. 8º do NCPC, que, para manter-se submissão à lei em qualquer caso no qual, e mes- íntegro, deverá ser, s.m.j., “lido” com a parcimô- mo sem efetiva densidade normativa, ele queira nia sugerida neste texto, mantida a lei como o prestigiar escolhas pessoais, feitas em nome de critério básico de decisão a ser seguido pelo juiz, um suposto prestígio à dignidade humana, à razoa- reservando-se a necessidade de elucubrações re- bilidade e/ou à proporcionalidade. lativas à dignidade humana, à razoabilidade e/ou Neste sentido, calha mencionar lição de Cân- à proporcionalidade para casos excepcionais, eis dido Dinamarco quando instiga o aplicador da que, como leciona Rosa Maria de Andrade Nery lei a buscar a justiça das decisões, mas igualmente (2006, p. 426), o risco de trocar a “certeza do fala que desta busca não deve direito pelo resultado da ‘genialidade inventiva’ “emanar a ideia de uma carga excessiva e pe- do jurista nos obriga a um exame de consciência”. rigosa de poderes entregues ao juiz. Legislador É o que se põe para debate perante a comunidade ele não é e, com as ressalvas postas, sempre con- jurídica. O j u i z , a a p l i c a ç ã o d o D i reito e o No vo CPC. gítima” (DINAMARCO, 2009, p. 349). 135 Revi s t a d o A d v o g a d o “no mais das vezes será encontrada na dicção 23/04/2015 16:28:54 Bibliografia BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito. Disponível em: <http://www. São Paulo: Malheiros, 2014. luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/ GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do neoconstitucionalismo_e_constitucionalizacao_do_ garantismo processual. In: SOUZA, Marcia Cristina direito_pt.pdf>. Acesso em: 21 jan. 2015. Xavier de; RODRIGUES, Walter dos Santos (Coord.). O BOTELHO DE MESQUITA, José Ignácio. Novas tendências do direito processual civil, o reexame. In: Tese, Estudos e Pareceres de Processo Civil. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. O j u i z , a a p l i c a ç ã o d o D i reito e o No vo CPC. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes. 6. ed. DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Elsevier – Campus Jurídico, 2013. NERY, Rosa Maria de Andrade. Responsabilidade da doutrina e o fenômeno da criação do direito pelos juízes. In: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Processo e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. PUOLI, José Carlos Baptista. Os poderes do juiz e as reformas do processo civil. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. Re v is t a d o A d v o g a d o 136 Livro_126.indb 136 23/04/2015 16:28:54 T utela provisória. Sumário 1.Critérios de classificação e terminologia adotada no CPC de 1973 e no anteprojeto 2.Tutela provisória e técnica processual Bibliografia 1 Critérios de classificação e terminologia adotada no CPC de 1973 e no anteprojeto A comissão constituída pela Presidência jeto do Código de Processo Civil (CPC) houve por bem sugerir a criação de um título próprio para regular a tutela de urgência e a tutela da evidência. Essa iniciativa, aprovada pelo Senado, visava a eliminar discussões acadêmicas sobre a natureza José Roberto dos Santos Bedaque Professor titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP. Desembargador aposentado do TJSP. Membro da Comissão de da antecipação provisória de efeitos da tutela jurisdicional, hoje prevista no art. 273 do Código. Ao lado dessa providência, existe a possibilidade de o juiz conceder à parte, também em caráter Juristas encarregada de elaborar o Anteprojeto provisório, a tutela cautelar, regulada pelos arts. do NCPC e de rever o Substitutivo apresentado 797 e seguintes do estatuto processual. ao Senado pela Câmara dos Deputados. 137 Revi s t a d o A d v o g a d o do Senado Federal para elaboração de Antepro- Ambas as modalidades de tutela jurisdicional acima apontadas caracterizam-se, segundo o critério adotado pelo legislador brasileiro, por não ser a proteção final, concedida ao titular de determinada pretensão deduzida em juízo. Nas hipóteses em que autorizadas, essas espécies de tutela, sempre precedidas de cognição sumária, visam simplesmente a assegurar a efetividade prática da tutela Livro_126.indb 137 23/04/2015 16:28:54 definitiva, esta precedida, ao menos em princípio, de cognição exauriente e juízo de certeza. Possível, então, denominar as tutelas sumárias e provisórias com as seguintes expressões: tutelas de urgência e tutelas da evidência. As tutelas sumárias e provisórias podem, ou não, depender da demonstração de perigo de dano. Além disso, é preciso compreender que as tutelas sumárias também comportam outra classificação. Se considerados seu conteúdo e suas consequências, verificamos que elas podem implicar simples conservação de bens, pessoas ou provas, bem como a antecipação de efeitos da tutela final. Podemos então apontar os critérios levados Tutela provisória. em conta pelo legislador para classificar as tu- Rev i st a d o A d v o g a d o 138 Em ambos os casos, visando sempre a assegurar a efetividade prática desta última. telas por força das quais se assegura a utilidade Elas estão reguladas na legislação brasileira, prática do resultado final do processo. Elas porém de forma tecnicamente imprecisa. A ante- são informadas por cognição sumária, apta a cipação de efeitos da tutela definitiva está prevista revelar a verossimilhança, a plausibilidade do no art. 273, que mistura hipóteses em que há o direito afirmado. Além disso, são provisórias, requisito da urgência com outras nas quais é sufi- visto que sua existência e eficácia estão condi- ciente a verossimilhança. Nos arts. 796 e seguin- cionadas a evento futuro e certo: a tutela final tes, encontram-se tutelas urgentes meramente e definitiva. conservativas, mas também algumas de conteúdo As tutelas sumárias e provisórias, todavia, antecipatório e, pois, satisfativas. comportam outra classificação. Podem, ou não, Essa dicotomia não contribui para a compreen- depender da demonstração de outro requisito: o são da modalidade de tutela jurisdicional, cujas perigo de dano. Em determinadas situações, a tu- características mais importantes são o escopo e tela sumária e provisória só é admissível se quem a provisoriedade.1 Como já procurei destacar em a requer conseguir convencer o juiz da existência outra oportunidade, ao lado das tutelas definiti- de determinado acontecimento, cuja ocorrência vas, destinadas a eliminar as crises verificadas no pode impedir ou comprometer a utilidade práti- plano do direito material e aptas à imutabilidade, ca da tutela final. Nesses casos, a característica da existem outras, cuja função no sistema é simples- urgência é fundamental. mente assegurar a utilidade prática daquelas. Essa Em outros, todavia, o legislador contenta-se característica é comum às cautelares conservati- simplesmente com o alto grau de verossimilhança vas e às antecipatórias satisfativas. Nenhuma delas do direito afirmado. Após descrever as hipóteses em que o fenômeno se verifica, autoriza a concessão da tutela sumária e provisória. Em síntese, essa modalidade de tutela, informada sempre por cognição não exauriente, fundada, portanto, no juízo de verossimilhança, não de certeza, em princípio provisória, destinada a assegurar o resultado útil do processo, comporta duas espécies: as urgentes e as não urgentes. Estas caracterizam-se tão somente pelo grau de evidência do direito afirmado. Livro_126.indb 138 1. A característica da provisoriedade significa a inaptidão dessa modalidade de tutela para alcançar a estabilidade inerente às tutelas definitivas. Transitada em julgado a decisão de mérito, a regulação da situação de direito material torna-se inalterável. Evidentemente, eventual modificação de elementos constitutivos do direito tutelado pode justificar a necessidade de nova tutela. O exemplo clássico é a mudança das circunstâncias em função das quais fixou-se o valor de pensão alimentícia. Nesse caso, a existência de nova situação jurídica autoriza outra intervenção judicial. Não é o que ocorre com a tutela cautelar, cuja instabilidade permite seja alterada a qualquer tempo, por força do mero surgimento de novas provas, sem que tenha havido qualquer alteração fática. Daí por que não parece correta a conclusão de Mitidiero. A tutela cautelar não é definitiva, inclusive em relação à eficácia (cfr. MITIDIERO, 2012, p. 41, esp. nota 137). 23/04/2015 16:28:54 pretendem alguns. Mesmo a tutela antecipada consideração pela comissão de especialistas cons- proporciona tão somente a possibilidade de frui- tituída pelo Senado Federal: reunir todas as es- ção de efeitos do possível direito, cujo reconheci- pécies de tutelas provisórias sob o mesmo título, mento depende da cognição exauriente a ser reali- classificar as respectivas espécies segundo critério zada durante o devido processo legal. Em síntese, homogêneo e não ignorar a terminologia já consa- antecipar a fruição do eventual direito não signi- grada na doutrina. Pretendeu-se, com isso, elimi- fica antecipar o reconhecimento do direito, mas nar as discussões teóricas a respeito do tema, cuja permitir que, se reconhecido no momento opor- compreensão vem sendo dificultada por constru- tuno, a tutela jurisdicional tenha utilidade ao ti- ções muito caras aos nefelibatas. tular. É exatamente o que a cautelar conservativa Assim, com fundamento em respeitadíssima assegura, mas mediante outras medidas, destina- corrente doutrinária, regulou-se a tutela de urgên- das apenas a preservar a efetividade do resultado, cia, cuja concessão pressupõe, além da plausibi- sem permitir a imediata fruição de seus efeitos, lidade do direito, o risco de que algum aconteci- porque desnecessária essa antecipação para o es- mento, concretamente descrito pelo interessado, copo pretendido. possa comprometer a eficácia prática da tutela A solução do litígio, mediante a atuação das final. Essa espécie de tutela provisória pode impli- regras extraídas do plano do direito material, de- car a mera conservação de bens, como a antecipa- pende do regular desenvolvimento do devido pro- ção de efeitos da tutela final. Tudo vai depender cesso legal. Isso demanda tempo, tendo em vista das exigências da situação apresentada. A partir a necessidade das garantias constitucionais do dela, define-se a medida apta a preservar a utilidade processo e da formação do juízo de certeza pelo do resultado final. julgador. O elemento comum nessas modalidades de Nesse ínterim, fatores podem comprometer a tutela é a urgência, decorrente do risco de que al- efetividade prática da respectiva tutela jurisdicio- gum acontecimento, concretamente identificado, nal. Também circunstâncias verificadas no próprio possa comprometer a efetividade prática da tutela processo muitas vezes tornam aconselhável a ante- definitiva. cipação de determinados efeitos da tutela final. Ao lado dessa modalidade de tutela provisória, Nesses casos, e desde que verossímeis os fun- o anteprojeto previu outra, cuja característica é damentos fáticos e jurídicos da pretensão, pode a desnecessidade do perigo de dano. Em alguns o juiz adotar providências protetivas da utilidade casos, tipificados pelo legislador, poderá o juiz prática da tutela final. Consistem essas providên- antecipar determinados efeitos da provável tutela cias na conservação de bens, pessoas ou mesmo definitiva, com fundamento apenas na verossimi- provas, bem como na antecipação de efeitos da lhança do direito. A lei descreve minuciosamente tutela final. A adoção de uma ou outra depende- em que circunstâncias isso ocorre. rá das circunstâncias do caso concreto. Deve ser Por não estar presente a característica da ur- concedida aquela que mais se adequar ao objetivo gência, adotou-se a expressão “tutela da evidên- pretendido, qual seja assegurar a efetividade da cia”, que identifica o aspecto essencial a essa tutela definitiva. modalidade de tutela provisória, qual seja o alto Tutela provisória. Três aspectos importantes foram levados em 2 139 Revi s t a d o A d v o g a d o implica a “imediata realização do direito”, como grau de plausibilidade do direito afirmado. Os 2.Cfr. Mitidiero (2012, p. 38) em apoio à conhecida lição de Ovídio Baptista da Silva. Livro_126.indb 139 elementos apresentados pelo autor justificam a proteção pretendida, pois permitem vislumbrar 23/04/2015 16:28:54 na pretensão do autor a clareza necessária ao res- técnicas processuais destinadas à adoção de de- pectivo acolhimento, não admissível naquele mo- terminadas medidas, cuja finalidade outra não é mento em razão da necessidade do contraditório. senão conferir maior efetividade à tutela final, na Esse juízo de certeza provisório pode revelar-se maioria das vezes sem solucionar a crise de direito equivocado após a apresentação da defesa pelo material. Provisórias, portanto. Opto por denomi- réu. Exatamente por isso, ele não pode ainda ser ná-la “cautelar”.6 Para não ser acusado de filiação definitivo. Mas, como é enorme a possibilidade de a ideias ultrapassadas, como as de Calamandrei que isso venha a ocorrer, o legislador possibilita a (???), invoco um dos maiores processualistas ita- antecipação provisória dos efeitos da decisão final. lianos da atualidade, para quem não só a técnica Essa opção terminológica foi mantida no projeto conservativa, mas também a antecipatória servem aprovado pelo Senado Federal. aos fins da tutela cautelar, qual seja assegurar a priori a definitiva fruttuosità da tutela final, em 2 Tutela provisória e técnica processual consonância com o significado da palavra “cautela” (prudência, proteção, garantia) (COMOGLIO; Técnica processual: essa expressão deve ser FERRI; TARUFFO, 1995, p. 158). Tutela provisória. compreendida como o conjunto de soluções ado- Re v is t a d o A d v o g a d o 140 tadas pelo legislador processual para regular o método de trabalho denominado processo. Daí a necessidade, na construção do modelo adequado de instrumento, de se levarem em consideração as especificidades do direito material submetido A doutrina brasileira reserva a denominação “cautelar” para as tutelas sumárias conservativas. ao processo.3 A tutela cautelar, a meu ver, cumpre a função Aliás, segundo os dicionaristas, cautela é defi- de assegurar a utilidade do processo mediante nida como cuidado para evitar um mal (Aurélio). duas técnicas: conservativa e antecipatória. Am- Esse cuidado, no processo, consiste na conserva- bas são informadas por cognição sumária, pela ção ou na antecipação de efeitos da tutela final, plausibilidade e pela urgência, o que implica, nor- com o que se evita o mal representado pela falta malmente, a provisoriedade. Tudo isso é técnica de efetividade desta última. 4 adotada pelo legislador processual para regular a Mas não faço questão dessa expressão e jamais tutela cautelar. Trata-se de técnicas empregadas tentaria transformar em lei minha preferência para solucionar o problema da urgência, destinadas a evitar que a demora do processo comprometa a utilidade da tutela jurisdicional final.5 A doutrina brasileira, todavia, reserva a denominação “cautelar” para as tutelas sumárias meramente conservativas. Mas tanto elas quanto as medidas com conteúdo antecipatório são urgentes. Ao lado delas, temos as sumárias não urgentes, fundadas apenas na cognição não exauriente e na plausibilidade. Estas podem ser provisórias ou definitivas. Assim, tanto urgência quanto evidência são aspectos considerados pelo legislador para construir Livro_126.indb 140 3.Por isso, as soluções adotadas pelos arts. 461 e 461-A, do CPC, são consideradas técnicas processuais adequadas à tutela dos direitos correspondentes às obrigações de fazer, não fazer e dar (cfr. MARINONI, 2004, p. 28-29). O autor, com razão, insiste na necessidade de as técnicas processuais identificarem-se com as tutelas dos direitos, “para adequação do processo ao direito material” (op. cit., p. 31). Nessa linha, o processo adota técnicas próprias à tutela específica de determinadas obrigações, visando a atender as especificidades do direito material. Cfr. ainda Oliveira (2009, p. 147-152; 2006, p. 291-293). 4.Que também constitui aspecto relacionado à técnica processual (cfr. MOREIRA, 2004, p. 92). 5.Cfr. MOREIRA, 2004, p. 91. 6. Justificativa mais aprofundada dessa opção metodológica encontra-se em Bedaque (2006, p. 123 e ss.). 23/04/2015 16:28:54 nossa vaidade. Nessa medida, prefiro deixar aos a verossimilhança do direito afirmado mostra-se doutos a missão de atribuir nomes aos fenômenos elevada, concede-se à parte a “tutela da evidên- jurídico-processuais. Embora respeite o entendi- cia”. Mediante tais técnicas, busca-se assegurar a mento contrário, todavia, não me parece adequa- efetividade do processo. do incluir a tutela sumária conservativa (a “legíti- No exame do projeto do Novo CPC elabora- ma” cautelar para muitos) como espécie de tutela do pela Câmara dos Deputados, a nova comissão antecipada, pois ela visa a assegurar o resultado nomeada pelo Senado houve por bem adotar no- útil do processo, mediante a técnica da conser- menclatura pouco diversa daquela acolhida no vação, não da antecipação de efeitos, esta sim, a anteprojeto. Trata-se de simples adequação termi- verdadeira e já consagrada pela doutrina “tutela nológica, visto que não implica alteração do con- antecipada”. Se fundadas no perigo de dano, am- teúdo e do significado das regras. 7 bas são “tutelas de urgência”. O alto grau de plau- O Livro V passou a denominar-se “Da tutela sibilidade do direito, muitas vezes revelado pelo provisória”, visto que trata deste gênero de tutela comportamento da própria parte contrária (abuso jurisdicional, cujas espécies são as tutelas urgentes do direito de defesa) ou pela adoção de determina- e as não urgentes. Aquelas – tutelas de urgência – da tese, fundada em fatos comprovados documen- podem ser cautelares (conservativas) ou antecipa- talmente, por súmula vinculante ou julgamento das (satisfativas),9 e são reguladas no Título II do de casos repetitivos, pode justificar a antecipação Livro V (o Título I trata das disposições gerais so- de efeitos da tutela final, independentemente da bre as tutelas provisórias). Nesse Título II há dois urgência. Surge então a figura da “tutela da evi- capítulos. O primeiro versa sobre o procedimento dência”. da tutela antecipada requerida antes da propositu- A classificação adotada no anteprojeto, ao re- ra da demanda principal. O segundo contém re- gular a técnica processual destinada a assegurar gras sobre a tutela cautelar pleiteada também em a efetividade da tutela final, levou em considera- caráter antecedente. ção, portanto, os requisitos necessários à adoção Já as tutelas não urgentes recebem a denomi- das providências a ela inerentes. Se presente o nação de tutela da evidência. Todas têm em co- perigo de dano, temos a “tutela de urgência”. Ve- mum, ao menos em princípio, natureza provisó- 8 Tutela provisória. rificadas as situações em que, ao ver do legislador, 141 Revi s t a d o A d v o g a d o terminológica. Temos o dever de impor limites à ria. E constituem técnicas destinadas a assegurar 7. Essa proposta constava da redação dada ao projeto pela Câmara dos Deputados. 8.Tal como ocorre, aliás, na legislação italiana (CPC, seção quinta, art. 700). 9. Barbosa Moreira (2004, p. 92) trata expressamente da técnica consistente na sumarização da cognição, visando a assegurar o resultado final mediante providências de natureza cautelar e/ou antecipatórias. Opta pela formulação alternativa em razão das incertezas classificatórias em relação a tais medidas. Livro_126.indb 141 a efetividade da tutela jurisdicional. Encontram-se previstas no Título III do Livro V. Essas providências, todas aprovadas pelo Senado Federal, têm por objetivo facilitar a compreensão do instituto e, principalmente, afastar interpretações formalistas, que acabam comprometendo sua finalidade. 23/04/2015 16:28:54 Bibliografia BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. COMOGLIO, Luigi Paolo; FERRI, Corrado; TARUFFO, MOREIRA, Barbosa. Tutela de urgência e efetividade do direito. In: ______. Temas de direito processual. Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004. Michele. Lezione sul processo civile. Bologna: Il Mulino, 1995. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Direito material, pro- MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela cesso e tutela jurisdicional. In: Polêmicas sobre a ação. dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. MITIDIERO, Daniel. Antecipação da tutela. São Paulo: 2009. Tutela provisória. Revista dos Tribunais, 2012. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. ______. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, Re v is t a d o A d v o g a d o 142 Livro_126.indb 142 23/04/2015 16:28:54 O regime do precedente judicial no Novo CPC. “O juiz não pode ser um escravo do passado e um déspota do futuro” (Arthur Goodhart, Precedent in English and Continental Law and Case Law: a Short Replication, Law Quarterly Review, 50, 1934). 1.Premissas 2.CF de 1988 e a crescente relevância dos tribunais superiores 3.Relevância, estabilidade e superação dos precedentes judiciais 4.Técnicas de unificação da jurisprudência e de 143 Revi s t a d o A d v o g a d o Sumário observância do precedente 5.O problema da eficácia retroativa do precedente José Rogério Cruz e Tucci 6.O precedente judicial no Novo CPC Advogado. Ex-presidente da AASP. Professor 7.À guisa de conclusão: esboço de uma teoria titular e diretor da Faculdade de Direito da USP. Coordenador do Conselho da Presidência geral do precedente judicial do CNJ para a Disseminação Nacional da Bibliografia Jurisprudência Uniformizada. 1 Premissas O presente artigo parte de duas premissas básicas, extraídas da atual experiência jurídica brasileira: a) o reconhecido protagonismo dos tribunais superiores; e b) a ausência de uma dogmática consolidada sobre precedente judicial. Livro_126.indb 143 23/04/2015 16:28:54 2 CF de 1988 e a crescente relevância dos tribunais superiores Com a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 e dos inúmeros textos legais que lhe seguiram (v.g.: Código de Defesa do Consumidor, reforma da Lei de Ação Civil Pública, etc.), infundiu-se em cada brasileiro um verdadeiro “espírito O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. de cidadania”. Os cidadãos passaram a ser senho- Rev i st a d o A d v o g a d o 144 res de seus respectivos direitos, com a expectativa de verem cumpridas as garantias que lhes foram então asseguradas. Observe-se ainda que também foram incrementados, a partir do início dos anos 1990, mecanismos processuais adequados a recorrer aos tribunais com maior efetividade, como, por exemplo, a ampliação do rol dos legitimados ativos a manejar as ações diretas de inconstitucionalidade, a ajuizar ações coleti- ciência das agências reguladoras de serviços que também contribuem para a intervenção judicial. O recurso aos tribunais para garantir o acesso a medicamentos e tratamentos médicos é constante. Não é crível que nos dias de hoje muitos brasileiros tenham de ir à Justiça para obter indenização por atraso de voo e extravio de bagagem, ou, ainda, para forçar adequada prestação de serviço em várias atividades. O Poder Judiciário está se tornando um verdadeiro Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC). Nestes últimos anos, os nossos tribunais superiores passaram a desempenhar papel relevantíssimo. vas em prol dos interesses difusos, a consagração da autonomia e independência do Ministério Público e a opção determinada por um modelo de assistência judiciária e de promoção de acesso à Justiça. Na visão insuspeita do sociólogo e jurista Boaventura de Sousa Santos (2014, p. 23 e ss.), a redemocratização e o novo marco constitucional, no Brasil, geraram maior credibilidade à utilização da vertente judicial como alternativa válida para conquistar direitos. De forma natural, os instrumentos jurídicos que já existiam no período Livro_126.indb 144 Tem-se outrossim clara percepção da inefi- O sistema judicial passa, assim, a suplantar o sistema da Administração Pública, a quem, por óbvio, compete sancionar as referidas falhas. Chega-se mesmo ao que poderíamos denominar de “banalização de demandas”, sem esquecer o papel de exator dos tribunais, na função substitutiva de ser o principal palco da cobrança de tributos, diante dos milhares de executivos fiscais que abarrotam os escaninhos dos cartórios forenses. autoritário, como a ação popular e a ação civil pú- Ressalte-se, a propósito, que, nestes últimos blica, passaram a ser amplamente colocados em anos, os nossos tribunais superiores passaram a evidência no foro brasileiro. desempenhar papel relevantíssimo, por duas di- Diante desse importante fenômeno, houve, ferentes razões. Em primeiro lugar, pela necessi- como era notório, um vertiginoso crescimento da dade de uniformizar a jurisprudência, diante das demanda perante o Poder Judiciário. Os núme- incertezas e divergências de julgados, que conspi- ros alarmantes são de conhecimento geral. E isso ram contra a segurança jurídica. São mais de 50 tudo agravado pela circunstância de que a consti- tribunais de segundo grau, espalhados nos diver- tucionalização de um conjunto tão ousado de ga- sos Estados brasileiros. rantias, sem a consecução consistente de políticas Em segundo lugar, pela “nova” tarefa, que públicas e sociais correlatas, tem propiciado, sem passa também a ser carreada ao Judiciário e que o dúvida, maior judicialização dos conflitos. coloca em destaque nos noticiários, referente 23/04/2015 16:28:54 aos julgamentos sobre crimes de viés político, no Nenhum operador do Direito, de época con- combate à corrupção de agentes estatais e de gran- temporânea, pode negar a utilidade e eficiência des empresários. dos precedentes judiciais acerca das várias teses Há alguns anos, a população de um modo que deve sustentar na defesa de um caso ou para geral não conhecia o nome de nenhum ministro fundamentar uma decisão; qualquer acadêmico do Supremo Tribunal Federal (STF). Atualmen- sabe da importância do conhecimento da juris- te, são conhecidíssimos. Há de fato um controle prudência como um dos mais poderosos instru- social externo muito saliente da atividade jurisdi- mentos de persuasão. Não é possível analisar, nos dias de hoje, o cio profissional, a consulta em repertórios de jul- papel dos tribunais sem considerar as interações gados e em coletâneas de jurisprudência selecio- entre eles e os meios de comunicação. Assevera, a nadas por matérias tópicas e/ou anotadas; estas, respeito, Sousa Santos (2014, p. 142) que o aliás, com sucessivas edições atualizadas. “novo protagonismo judiciário decorrente de Os próprios tribunais de um modo geral, ze- uma judicialização dos conflitos políticos não losos em difundir os seus respectivos preceden- pode deixar de traduzir-se na politização dos con- tes, disseminam-nos pela rede mundial de com- flitos judiciários. Mas é óbvio que nenhuma destas putadores, e até mesmo interagem e “dialogam”, transformações sociais teria retirado os tribunais da on-line, com os usuários, chegando a “responder obscuridade e do silêncio a que desde sempre esti- consultas” pontuais sobre determinada questão. veram remetidos se, entretanto, não tivessem ocor- Diante da desmedida pletora de recursos que rido mudanças profundas, tanto técnicas, como po- pendem de julgamento em nossas cortes de Justi- líticas, no domínio das tecnologias, de informação ça, a experiência tem demonstrado que os acór- e de comunicação. Foi no bojo da expansão desta dãos, via de regra, são fundamentados na jurispru- indústria que os tribunais se transformaram, qua- dência, em particular, dos tribunais superiores, se de repente, num conteúdo apetecível. A plácida fator esse que aumenta em muito a previsibilidade obscuridade dos processos judiciais deu lugar à do resultado do processo. trepidante ribalta dos dramas judiciais”. Na verdade, a exigência de interpretação e apli- Nota-se, pois, enorme influência dos tribunais cação, tanto quanto possível, homogênea do ius superiores – inclusive do Superior Tribunal de positum tem efetivamente ocupado a atenção do Justiça (STJ) e do Tribunal Superior Eleitoral legislador pátrio, inclusive, por certo, como meio (TSE) – nos outros poderes, seja na Adminis- de minimizar o afluxo exagerado de demandas. tração, seja no Legislativo. O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. É simplesmente indispensável, para o exercí- 145 Revi s t a d o A d v o g a d o cional. Ocorre que, com o passar do tempo, a mudança dos paradigmas sociais implica saudável evolu- 3 Relevância, estabilidade e superação dos precedentes judiciais ção das teses jurídicas e, consequentemente, do posicionamento dos tribunais. Isso significa que os precedentes judiciais do passado, sobre inúme- Nos horizontes do Direito brasileiro, não há dúvida de que, ao longo da história, a atividade Livro_126.indb 145 ras questões, vão sendo superados por novas orientações que decorrem da dinâmica do Direito. judicial sempre desempenhou importantíssimo Seja como for, é certo que tais alterações nor- mister, tanto no exercício da prática forense quanto malmente não são abruptas, até porque a uni- no próprio aperfeiçoamento dogmático de institutos formidade da jurisprudência garante a certeza e jurídicos. a previsibilidade do direito. Os cidadãos de um 23/04/2015 16:28:54 modo geral, informados por seus advogados, ba- rido no Agravo Regimental no Recurso Especial seiam as suas opções não apenas nos textos legais terada, em tom de exortação, pelo ministro Hum- nº 228.432-RS, julgado pela Corte Especial: “O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o Superior Tribunal de Justiça é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la”. Todavia, a despeito dessa premissa notória, o exercício profissional revela que, acerca de inúmeras questões importantes, há flagrante e indesejada instabilidade nos precedentes dos tribunais superiores. E isso ocorre – o que é pior – num mesmo momento temporal e sem qualquer justificação plausível! É indiscutível que o juiz não pode ser escravo do precedente judicial, porque certamente haveria aí uma abdicação da independência da livre persuasão racional, assegurada pelo art. 131 do Código de Processo Civil (CPC). Contudo, se o tribunal resolver desprezar o precedente judicial, cabe-lhe o ônus do argumento contrário. Gino Gorla (1990, p. 11-12), em um de seus últimos ensaios, pondera, acerca desse verdadeiro dever, que seria até temerário permitir, sem uma argumentação consistente, que um posicionamento jurisprudencial sedimentado deixasse de ser aplicado em hipótese similar. A tutela do cidadão, que confiou no Judiciário, não pode jamais ser relegada a pretexto do poder berto Gomes de Barros, em conhecido voto profe- discricionário da magistratura! vigentes, mas, também, na tendência dos precedentes dos tribunais, que proporcionam àqueles, na medida do possível, o conhecimento de seus respectivos direitos. Na verdade, a harmonia pretoriana integra o cálculo de natureza econômica, sendo a previsibilidade que daquela decorre O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. pressuposto inafastável para o seguro desenvol- Re v is t a d o A d v o g a d o 146 vimento do tráfico jurídico-comercial: uma mudança abrupta e não suficientemente justificada da posição dos tribunais solapa a estabilidade dos negócios. Ademais, a jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça, porque situações análogas devem ser julgadas do mesmo modo, sobretudo no Brasil, em que há grande número de tribunais. O tratamento desigual é forte indício de injustiça em pelo menos um dos casos. A jurisprudência consolidada garante a igualdade dos cidadãos perante a distribuição da justiça. Em suma, ao preservar a estabilidade, orientando-se pelo precedente judicial em situações sucessivas assemelhadas, os tribunais contribuem, a um só tempo, para a certeza do direito e para a proteção da confiança na escolha do caminho trilhado pela decisão judicial. Em nosso país, na órbita da tutela jurisdicional, avulta, a respeito dessa relevante temática, a importância do STJ, como corte federal, cuja vocação precípua é a de uniformizar a interpretação e aplicação do Direito nacional infraconstitucional. E tal inequívoca função nomofilácica foi rei- Livro_126.indb 146 23/04/2015 16:28:54 O expressivo número de tribunais e a ausência de uma dogmática consistente sobre precedente judicial acarretam evidente insegurança jurídica, diante da divergência jurisprudencial acerca de inúmeras teses importantes. Atento a este significativo problema, de todo indesejado, o legislador pátrio estabeleceu – e continua legislando acerca da questão – inúmeras técnicas tendentes à uniformização da jurisprudência, visando sobretudo a assegurar a harmonia de julgamentos. Os arts. 476 a 479 do CPC regram o instituto da uniformização da jurisprudência, cuja instauração não constitui faculdade, mas, sim, dever do juiz. O escopo desse incidente processual, suscitável, em segundo grau, por qualquer juiz da turma julgadora ou por um dos litigantes, é o de provocar o prévio pronunciamento do tribunal acerca da interpretação de determinada tese ou norma jurídica, quando a seu respeito ocorre divergência. Visando à mesma finalidade, destacam-se os embargos de divergência, que constituem um meio de impugnar acórdão proferido, no âmbito de recurso extraordinário ou especial, por uma das de direito federal, a missão constitucional que lhes foi confiada não estará sendo cumprida. Assim, exatamente para reforçar a previsibilidade e harmonia dos julgamentos e, até mesmo, a segurança jurídica, é que os embargos de divergência se tornam um importante instrumento para resolver as inexoráveis divergências intra muros, ou seja, nos quadrantes das respectivas cortes de Justiça. Como bem escreve José Carlos Barbosa Moreira (2009, p. 641), “os embargos de divergência visam afastar interpretação divergente do sentido das normas positivas, em tese, nos órgãos do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Essa é a razão maior da sua existência em nosso sistema processual”. Acrescente-se que, no STJ, em consonância com a regra do art. 546, inciso I, do CPC, somente é admissível a interposição de embargos de divergência quando um acórdão, proferido por uma das turmas, “em recurso especial, divergir do julgamento de outra turma, da seção ou do órgão especial”. Ademais, no modelo brasileiro vigente, tão eficaz é o precedente judicial sumulado, ou até mes(art. 38), reiterada, sucessivamente, pelas Leis nº 9.139/1995 e nº 9.756/1998, que deram nova re- 496, inciso VIII, do CPC: “São cabíveis os seguin- dação ao art. 557 do mesmo diploma processual, tes recursos: [...] VIII - embargos de divergência em qualquer recurso poderá ser liminarmente indefe- recurso especial e em recurso extraordinário”). rido, pelo relator, quando o fundamento da irresig- Enfatiza, de forma precisa, o ministro Humberto nação colidir “com súmula ou com jurisprudência Gomes de Barros, ao relatar os Embargos de Diver- dominante do respectivo tribunal, do Supremo gência no Recurso Especial nº 222.524-MA, que: Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”. dos no escopo de preservar – mais que o interesse 147 mo “dominante”, que, a partir da Lei nº 8.038/1990 turmas, respectivamente, do STF ou do STJ (art. “Os embargos de divergência foram concebi- Livro_126.indb 147 bunais superiores dissentirem sobre questões O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. jurisprudência e de observância do precedente Se os órgãos fracionários dos aludidos tri- Revi s t a d o A d v o g a d o 4 Técnicas de unificação da Incide, nesse caso, a denominada súmula impeditiva de recurso. tópico de cada um dos litigantes – a necessidade O § 1º-A do mesmo art. 557 dispõe que se por- de que o Tribunal mantenha coerência entre seus ventura “a decisão recorrida estiver em confronto julgados”. com súmula ou com jurisprudência dominante 23/04/2015 16:28:55 do Superior Tribunal Federal ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”. Importa notar, por outro lado, que o § 2º do art. 102 da CF determina que: O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. “As decisões definitivas de mérito, proferidas Re v is t a d o A d v o g a d o 148 Livro_126.indb 148 Trata-se de precedente judicial com eficácia vertical obrigatória. A desobediência enseja o ajuizamento de reclamação ao STF, contra o órgão que desrespeitou o princípio sumulado. pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas Até hoje foram editadas quase 40 súmulas vin- de inconstitucionalidade e nas declaratórias de culantes e, ainda, persistem mais de 700 enuncia- constitucionalidade produzirão eficácia contra to- dos sumulados, fixados sob a égide do antigo sis- dos e efeito vinculante, relativamente aos demais tema, que não foram revistos e que detêm apenas órgãos do Poder Judiciário e à administração pú- eficácia persuasiva. blica direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”. A indigitada Lei nº 11.417 introduziu ainda um importante mecanismo democrático de participa- Observa-se assim que a primordial razão po- ção popular, na forma de amicus curiae, no processo lítica inspiradora do Legislativo federal foi, sem de elaboração, revisão e cancelamento da súmula dúvida, a de instituir um mecanismo destinado a vinculante. Dispõe o § 2º do art. 3º que: subordinar, com eficácia vinculante, o desfecho “No procedimento de edição, revisão ou cance- de demandas perante juízos inferiores – monocrá- lamento de enunciado da súmula vinculante, o re- ticos e colegiados – à decisão soberana do STF. lator poderá admitir, por decisão irrecorrível, a ma- A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, a nifestação de terceiros na questão, nos termos do seu turno, voltou a instituir, no sistema jurídico Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. brasileiro, de forma generalizada, a denominada “súmula vinculante”, ao adicionar no texto da CF o art. 103-A, com a seguinte redação: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, Até hoje foram editadas quase 40 súmulas vinculantes e, ainda, persistem mais de 700 enunciados sumulados. a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Acrescente-se que, mais recentemente, foi cria- Poder Judiciário e à administração pública direta do um interessante expediente, com a introdução e indireta, nas esferas federal, estadual e munici- dos arts. 543-B e 543-C no CPC, pelo qual, diante pal, bem como proceder à sua revisão ou cancela- de recursos repetidos, com fundamento em idên- mento, na forma estabelecida em lei”. tica controvérsia, os tribunais de origem deverão O enunciado da súmula, a teor do § 1º do art. escolher um ou mais dentre eles e encaminhá-los 2º da Lei nº 11.417/2006, que regulamentou o ins- à corte superior, sendo que os demais terão o seu tituto em apreço, deve ter por “objeto a validade, respectivo processamento sobrestado. a interpretação e a eficácia de normas determina- A tese fixada pelo tribunal superior servirá de das, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários paradigma para o julgamento dos demais recursos. ou entre esses e a administração pública, contro- O inconveniente desta técnica é que, a rigor, vérsia atual que acarrete grave insegurança jurí- fere a garantia do devido processo legal, porque a dica e relevante multiplicação de processos sobre parte em um recurso é atingida por decisão pro- idêntica questão”. ferida em outro processo, sem a sua participação. 23/04/2015 16:28:55 A despeito de todas estas técnicas de unifor- quando as partes de um acordo partiram em con- mização e de observância do precedente judicial, sonância com a situação jurídica que resultava da ainda remanescem graves problemas atinentes a jurisprudência anterior”.1 esta questão, inclusive no âmago de um mesmo tribunal. No entanto, sem embargo da possibilidade de ocorrência dessa inevitável situação, tanto o Supremo quanto a Corte Constitucional Federal 5 O problema da eficácia retroativa do precedente alemães consideram que as regras que proíbem a retroatividade das leis não poderiam estender-se “conduziria a que os tribunais houvessem de outro problema que ainda se encontra em aberto, estar vinculados a uma jurisprudência outrora uma vez que nem pelo prisma da história e tam- consolidada, mesmo quando esta se revela insus- pouco pela dogmática moderna obteve solução tentável à luz do conhecimento apurado ou em satisfatória. vista da mudança das relações sociais, políticas ou Referimo-nos à árdua questão da eficácia retroativa do “novo” precedente judicial. econômicas” (LARENZ, 1997, p. 618). Diante do interesse da coletividade, a modu- Na verdade, a incerteza que nasce do advento lação dos efeitos pretéritos, a critério do tribunal, de um novo precedente em substituição à orien- constitui técnica oportuna e deveras significativa, tação consolidada acarreta um custo social e eco- a evitar injustiça. nômico elevadíssimo, mesmo nos sistemas que não conhecem força vinculante da jurisprudên- 6 O precedente judicial no Novo CPC cia, uma vez que a situação de insegurança gerada pela mudança somente poderá ser eliminada Na incessante busca de reafirmar a importân- depois de um período relativamente considerável cia das decisões dos tribunais superiores, o nosso para que seja consolidada a nova regula. Novo CPC (Lei nº 13.105/2015) valoriza os pre- Estipulada a “regra do jogo”, deve ser evitada, com efeito, a perversa retroatividade de novel po- cedentes judiciais, embora sem critério científico algum. sicionamento pretoriano, circunstância que impe- O art. 926 insere uma regra, de cunho pedagó- de a perpetração de qualquer emboscada aos ad- gico, totalmente desnecessária e inócua: “Os tri- vogados, preservando-se, como precípuo escopo bunais devem uniformizar sua jurisprudência e da jurisdição, o direito material dos litigantes. mantê-la estável, íntegra e coerente”. Decorre desse importante comportamento a 149 Revi s t a d o A d v o g a d o Cumpre destacar, já sob diferente enfoque, O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. às decisões dos tribunais. Se tal fosse possível, É o mínimo que se espera! consciência de lealdade que deve fluir da função O art. 927 dispensa idêntico tratamento às judicante, ao infundir confiança e segurança jurídi- diversas espécies de precedente, sem qualquer ca à sociedade e, em particular, aos jurisdicionados. distinção ontológica, ao determinar que: Esse problema foi enfrentado pelo Supre- “Os juízes e os tribunais observarão: I - as deci- mo Tribunal Federal da Alemanha, que revelou sões do Supremo Tribunal Federal em controle grande perplexidade com o fato de que a mudança concentrado de constitucionalidade; II - os enun- de rumo dos precedentes judiciais pode mesmo ciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em ensejar o “desaparecimento da base do negócio, incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento 1. Cf. LARENZ, 1997, p. 617. Livro_126.indb 149 de recursos extraordinário e especial repetitivos; 23/04/2015 16:28:55 O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. Rev i st a d o A d v o g a d o 150 IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tri- alteração de jurisprudência dominante do Supre- bunal Federal em matéria constitucional e do Su- mo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou perior Tribunal de Justiça em matéria infraconsti- daquela oriunda de julgamento de casos repetiti- tucional; V - a orientação do plenário ou do órgão vos, pode haver modulação dos efeitos da alteração especial aos quais estiverem vinculados”. no interesse social e no da segurança jurídica”; e Salta aos olhos o lamentável equívoco constante “§ 4º - A modificação de enunciado de súmula, de desse dispositivo, uma vez que impõe aos magistra- jurisprudência pacificada ou de tese adotada em dos, de forma cogente – “os tribunais observarão” –, julgamento de casos repetitivos observará a neces- os mencionados precedentes, como se todos aqueles sidade de fundamentação adequada e específica, arrolados tivessem a mesma força vinculante vertical. considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia”. O regime do precedente judicial opera em todo sistema jurídico a partir da interação de vários fatores. determina que: “Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores”. Daí, em princípio, a inconstitucionalidade da Torna-se realmente imperioso que os tribunais regra, visto que a CF, como anteriormente referi- divulguem as suas decisões, sobretudo aquelas do, reserva efeito vinculante apenas e tão somente referentes às teses mais polêmicas, a nortear as às súmulas fixadas pelo Supremo, mediante devi- demais cortes de Justiça, evitando com isso inde- do processo e, ainda, aos julgados originados de sejada divergência pretoriana. controle direto de constitucionalidade. À míngua de uma dogmática própria, o legislador pátrio perdeu uma excelente oportunidade 7 À guisa de conclusão: esboço de uma teoria geral do precedente judicial para regulamentar um regime adequado da jurisprudência de nossos tribunais, entre as várias Seja como for, para bem compreender e inter- espécies de precedente judicial, a partir de sua pretar as regras do Novo CPC sobre esta temática, natureza, considerando a sua respectiva origem. necessário se torna traçar algumas linhas mestras Todavia, a despeito desse aspecto negativo, que coloca em xeque a principal regra sobre tal Livro_126.indb 150 Ademais, o subsequente § 5º do mesmo art. 927 que podem ser consideradas comuns à dinâmica das decisões judiciais. importante matéria, merece destaque o alvitre Na verdade, uma teoria sobre os precedentes cuidadoso e democrático que disciplina o supe- que aspire a ser geral, e portanto desfrutar de algu- ramento do precedente, inclusive no que se refere ma utilidade heurística, deve, segundo entendo, ao tormentoso problema de sua eficácia retroativa. partir da premissa de que o precedente é uma rea- Com efeito, preceituam os sucessivos pará- lidade em sistemas jurídicos histórica e estrutural- grafos do art. 927 que: “§ 2º - A alteração de tese mente heterogêneos, e que apresenta característi- jurídica adotada em enunciado de súmula ou em cas próprias em diferentes legislações. julgamento de casos repetitivos poderá ser prece- O regime do precedente judicial opera em dida de audiências públicas e da participação de todo sistema jurídico a partir da interação de vá- pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir rios fatores, que podem ser classificados, segundo para a rediscussão da tese”; “§ 3º - Na hipótese de esquema traçado por Michele Taruffo (1994, 23/04/2015 16:28:55 O r e g i m e d o p r e c e d e n t e ju d icial n o No vo CPC. malmente, um número considerável de decisões similares, para chegar-se à concepção de “jurisprudência consolidada”, “dominante” ou “unânime”. Assinale-se que, nessa hipótese, o fator temporal também é importante, porque uma orientação pretoriana sedimentada reclama, normalmente, um longo período. Precedentes contraditórios, em qualquer sistema jurídico, também geram um problema que deve ser resolvido pelo tribunal que está incumbido de decidir o caso sucessivo. Finalmente, a dimensão da eficácia deriva do grau de influência que o precedente exerce sobre a futura decisão em um caso análogo, ou ainda da técnica instituída pela legislação, quanto à sua respectiva eficácia (vinculante ou simplesmente persuasiva). Aduza-se que, sob tal perspectiva, as técnicas do overruling (common law) e do revirement (civil law) representam situações específicas e excepcionais com o escopo de excluir do ordenamento jurídico determinado precedente, ultrapassado, para substituí-lo por outro que melhor se ajuste à hipótese então examinada, à luz da realidade do momento em que a decisão é proferida. Não é preciso dizer, a esse respeito, que a preservação, na medida do possível, das correntes predominantes da jurisprudência constitui obra de boa política judiciária, porque infunde na sociedade confiança no Poder Judiciário. Mas é evidente, por outro lado, que a jurisprudência deve evoluir, dando resposta, realista e tempestiva, às exigências sociais em constante transformação. 151 Re vis t a d o A d v o g a d o p. 387-388), pelos seguintes vetores: 1) a dimensão institucional; 2) a dimensão objetiva; 3) a dimensão estrutural; e 4) a dimensão da eficácia. A primeira delas – a dimensão institucional – deve ser analisada à luz da organização judiciária e a forma pela qual a relação de subordinação hierárquica entre os tribunais é escalonada. Entram aqui em cena as espécies de precedente vertical, horizontal e autoprecedente (precedente no âmbito do mesmo tribunal). Desde que exista uma estrutura burocrática de sobreposição de tribunais, é natural que o precedente de tribunal superior, com eficácia vinculante ou não, exerça um grau de influência maior no âmbito das cortes e juízos inferiores. É claro que o denominado autoprecedente, via de regra, também se impõe, interna corporis, como medida de coerência, além, é claro, da segurança jurídica que deve ser preservada pelos tribunais. Pelo contrário, os precedentes horizontais, provenientes de órgãos postados no mesmo patamar hierárquico, possuem relativa eficácia persuasiva. Ressalte-se que, nessa hipótese, a autoridade intrínseca do julgado, sobretudo quando estiver enfrentando matéria nova, poderá realmente ser seguida por outros tribunais. A dimensão objetiva do precedente, por outro lado, diz respeito à determinação de sua influência na decisão de casos futuros. Tem aqui relevância a distinção entre ratio decidendi e obiter dictum, tendo-se em vista que o predicado formal de precedente é atribuído apenas à ratio decidendi. Já no tocante à dimensão estrutural, ou seja, ao conceito substancial de precedente, exige-se, nor- Bibliografia BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 5. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. GORLA, Gino. Precedente giudiziale. In: Enciclopedia giuridica treccani. v. 23. Roma: Treccani, 1990. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. Coimbra: Almedina, 2014. TARUFFO, Michele. Dimensioni del precedente giudiziario. Studi in memoria di Gino Gorla. t. 1. Milano: Giuffrè, 1994. port. de José Lamego. Lisboa: Fund. C. Gulbenkian, 1997. Livro_126.indb 151 23/04/2015 16:28:55 N ovidades em matéria de embargos de declaração no CPC de 2015.1 Sumário 1.Hipóteses de cabimento 2.Contraditório 3.Julgamento monocrático no tribunal 4.Conversão em agravo interno 5.Recurso previamente interposto 6.Prequestionamento 7.Sem efeito suspensivo 8.Sanções para a manifesta protelação Bibliografia Revi s t a d o A d v o g a d o 152 1 Hipóteses de cabimento O Novo Código de Processo Civil (CPC) trouxe para o texto legal a ideia de que todo pronunciamento judicial é embargável. Ao estabelecer que “qualquer decisão judicial” é passível de embargos de declaração, o caput do art. 1.022 do CPC de 2015 expõe desde os despachos até os acórdãos a esse recurso específico. Não há mais Luis Guilherme Aidar Bondioli menção apenas a “sentença” ou “acórdão”, tal Mestre e doutor em Direito Processual pela Facul- qual faz o inciso I do art. 535 do CPC de 1973. dade de Direito da Universidade de São Paulo. Procura-se, assim, eliminar de uma vez por todas posturas restritivas diante dos embargos declaratórios, tendentes a excluir da sua alça de mira 1. As ideias que serviram de ponto de partida para este estudo estão desenvolvidas de forma mais aprofundada e com referências bibliográficas no trabalho Embargos de declaração, em especial nos seus itens 13, 23, 24, 34, 38, 39, 41, 46, 52 e 56 (BONDIOLI, 2005, p. 74-80, 135-153, 176-179, 195-210, 214-216, 237-242, 268-272 e 288-297). Livro_126.indb 152 23/04/2015 16:28:55 quer fala do órgão julgador é embargável. Aliás, declaração. teria andado melhor o legislador se houvesse usado O Novo CPC não chegou ao ponto de inserir no no caput do art. 1.022 do CPC de 2015 a expressão rol legal de vícios embargáveis os chamados “erros “pronunciamento judicial”, de índole mais ampla, evidentes”, que consistem em manifestos equívo- em vez de “decisão judicial”. cos na análise dos fatos ou na aplicação do direito. O art. 1.022 do CPC de 2015 amplia o rol Todavia, a sanação desses erros em sede de embar- legal de vícios embargáveis em comparação com gos tem sido permitida e deve continuar a sê-lo no o art. 535 do CPC de 1973, ao incluir nele o “erro regime do Novo CPC, com o devido cuidado. Os material” (inciso III). Faz tempo que a sanação embargos de declaração não são instrumento para do erro material por meio dos embargos de declara- simples revisão do julgado nem sede para novas re- ção tem sido aceita, malgrado a ausência de pre- flexões em torno de assuntos que já receberam uma visão legal explícita a respeito. O Novo CPC acer- resposta suficiente do julgador. Porém, quando tadamente referenda essa aceitação e assim traz houver escancarado engano no pronunciamento do segurança para as partes. Passa a ser indiscutível julgador, que tomou a decisão ignorando determi- a pertinência dos embargos de declaração para a nada circunstância ou tomando por base premissa veiculação do erro material. Aliás, os embargos equivocada, e um simples alerta for suficiente para declaratórios são o melhor veículo para postular a reformulação do seu entendimento, os embargos a correção de inexatidões materiais, pois inter- de declaração devem ser admitidos. Deve-se estar rompem o prazo para a interposição de recursos diante de um choque intenso entre a vontade ex- e proporcionam a aplicação da fungibilidade en- ternada pelo julgador e os fatos ou o direito. São tre as hipóteses de cabimento dos embargos (por exemplos de erros evidentes sanáveis via embargos exemplo, invocada pelo embargante a existência de declaração o julgamento sem amparo em pedido de erro material, mas entendendo o juiz que se (sentenças ultra e extra petita), o erro de fato que está diante de contradição, o vício pode ser sa- autoriza a propositura de ação rescisória (art. 966, nado). Lembre-se de que inexatidões materiais inciso VIII e § 1º, do CPC de 2015), a aplicação de continuam a ser sanáveis mediante simples re- uma lei revogada na apreciação da causa, etc. querimento da parte (art. 494, inciso I, do CPC de 2015), mas sem a garantia da interrupção do N o v i d a d e s e m m a t é r i a d e emb arg o s d e d eclaração n o CPC de 2015. facilitar sua eliminação em sede de embargos de 153 Revi s t a d o A d v o g a d o determinados pronunciamentos judiciais. Qual- 2 Contraditório prazo recursal e sem o benefício da fungibilidade, próprios dos embargos. Livro_126.indb 153 Agora, existe na lei previsão expressa sobre o O erro material consiste na dissonância fla- contraditório em sede de embargos de declaração, grante entre a vontade do julgador e a sua exterio- com determinação para que o julgador abra prazo rização; num defeito mínimo de expressão, que de cinco dias para manifestação do embargado, não interfere no julgamento da causa e na ideia sempre que “eventual acolhimento [dos embargos] nele veiculada (por exemplo, 2 + 2 = 5). Não se implique a modificação da decisão embargada” enquadram nessa categoria a inobservância de re- (art. 1.023, § 2º, do CPC de 2015). Trata-se de gras processuais (error in procedendo) e os erros fórmula equilibrada. A abertura de oportunidade de julgamentos (error in judicando). Todavia, é para resposta do embargado não é obrigatória, comum na prática o baralhamento de conceitos, mas não se tolera que se modifique ou se façam com a indevida rotulação de vícios de atividade acréscimos substanciais à decisão embargada sem ou de juízo como erro material, inclusive para que se franqueie oportunidade para reação diante 23/04/2015 16:28:55 N o v i d a d e s e m m a t é r i a d e emb arg o s d e d eclaração n o CPC de 2015. Rev i st a d o A d v o g a d o 154 dos embargos. Assim, para inadmitir os embargos faz sentido convidar para sanar omissões, con- de declaração, rejeitá-los ou até mesmo acolhê-los tradições, obscuridades, erros materiais ou erros em situações nas quais não se altere a decisão (por evidentes quem não participou da confecção da exemplo, no caso de eliminação de erro verdadei- decisão embargada. ramente material), o juiz fica liberado de intimar O § 2º do art. 1.024 do CPC de 2015 fecha o embargado previamente ao julgamento. Porém, assim as portas para prática comum nos tribunais, toda vez que os embargos forem dotados de poten- consistente no julgamento por órgão colegiado de cial para alterar ou ampliar o julgado, é preciso embargos de declaração opostos contra decisão antes ouvir o embargado. monocrática. Tal prática cria percalços para o esgotamento da instância e a ulterior admissão de A abertura de oportunidade para resposta do embargado não é obrigatória. recurso especial ou extraordinário, pois obriga a parte a interpor agravo interno contra um conjunto de decisões formado já com a participação do órgão colegiado. Malgrado não haja espaço para julgamento dos embargos de declaração pelo órgão colegiado Perceba-se que a intimação do embargado para quando a decisão embargada é monocrática, há responder aos embargos não é prenúncio de aco- brecha para a apreciação isolada pelo relator dos lhimento destes nem de modificação da decisão embargos opostos contra acórdão. Estando pre- embargada. A palavra “eventual” deixa claro que sente causa de inadmissão ou rejeição de recurso é a possibilidade de modificação ou acréscimo arrolada nos incisos III e IV do art. 932 do CPC substancial, e não a certeza destes, o discrímen de 2015, os embargos de declaração, como recur- para que se convide o embargado a se manifestar so que são, podem ser isoladamente julgados pelo (art. 1.023, § 2º, do CPC de 2015). relator. Porém, quando os embargos de declaração O prazo de cinco dias para resposta do em- levarem à reabertura do julgamento colegiado, é bargado coincide com o prazo estabelecido para intolerável que isso aconteça com a participação a oposição dos embargos de declaração (art. 1.023, apenas do relator. Por isso, não se autoriza que o caput e § 2º, do CPC de 2015), o que denota iso- relator sozinho acolha os embargos opostos contra nomia na sua disciplina. acórdão, até para que ele não sobreponha a sua vontade à dos demais julgadores. 3 Julgamento monocrático no tribunal 4 Conversão em agravo interno Conhecida diretriz em matéria de embargos Livro_126.indb 154 de declaração conduz ao julgamento destes pelo Outra prática comum nos tribunais levada em próprio prolator da decisão embargada, pessoa conta pelo legislador na edição do Novo CPC mais indicada para a sanação dos vícios tipica- consiste na conversão dos embargos de declara- mente embargáveis. Inspirado por essa diretriz, ção em agravo interno. De acordo com o § 3º do o legislador passa a prever que, sendo monocrá- art. 1.024 do CPC de 2015, “o órgão julgador co- tico o pronunciamento judicial no âmbito do tri- nhecerá dos embargos de declaração como agra- bunal, “o órgão prolator da decisão embargada vo interno se entender ser este o recurso cabível, decidi-los-á (os embargos) monocraticamente” desde que determine previamente a intimação do (art. 1.024, § 2º, do CPC de 2015). De fato, não recorrente para, no prazo de 5 (cinco) dias, com- 23/04/2015 16:28:55 -las às exigências do art. 1.021, § 1º”. mente excepcional a autorizar a medida e abrir A rigor, não tem muito sentido falar da fungibi- oportunidade para adaptação da peça recursal. lidade dos embargos de declaração com outras fi- Não se pode ignorar que, como todo pronuncia- guras recursais. Sendo os embargos de declaração mento judicial, a determinação para o embargan- cabíveis contra todo e qualquer pronunciamento te adaptar o recurso expõe-se a novos embargos judicial, eles devem ser ordinariamente recebidos de declaração... E o acolhimento desses segundos e julgados como tal, sem que lhes seja emprestado embargos pode até levar ao seguimento dos pri- outro rótulo. A aplicação do princípio da fungi- meiros, sem conversão, conforme o vício existente. bilidade somente teria alguma pertinência se a petição de embargos não invocasse nenhum vício 5 Recurso previamente interposto passível de sanação por essa via e fosse necessário Livro_126.indb 155 lançar mão de alguma ferramenta para viabilizar Os §§ 4º e 5º do art. 1.024 do CPC de 2015 o cabimento e o consequente conhecimento da passam a regular a relação entre os embargos irresignação do embargante. Todavia, havendo na de declaração e o outro recurso cabível contra o petição do embargante alusão a qualquer imper- pronunciamento judicial embargado. De acordo feição extirpável por meio de embargos, não tem com o § 4º, “caso o acolhimento dos embargos lugar sua conversão em outro recurso, ainda que de declaração implique modificação da decisão tal imperfeição na verdade inexista. A ausência do embargada, o embargado que já tiver interposto vício alegado é causa de mera rejeição dos embar- outro recurso contra a decisão originária tem o gos, e não de sua transformação em agravo. direito de complementar ou alterar suas razões, Não obstante, os tribunais reiterada e indis- nos exatos limites da modificação, no prazo de criminadamente julgam embargos de declaração 15 (quinze) dias, contado da intimação da deci- como se agravo interno fossem e o fazem de for- são dos embargos de declaração”. Nada mais na- ma surpreendente, sem qualquer alerta prévio ao tural. A parte pode já no primeiro dia do prazo embargante, com o intuito de encurtar o proces- interpor o recurso talhado para a impugnação de so. Ocorre que isso pode ser extremamente pre- determinada decisão e não pode ser prejudicada judicial ao embargante. Sendo restrito o rol de pelos ulteriores embargos de declaração do seu ad- matérias dedutíveis em sede de embargos, estes versário. Isso justifica a abertura de oportunidade muitas vezes não trazem todos os argumentos que para a adaptação do recurso já interposto à nova a parte tem para impugnar a decisão embargada, realidade emergente desses embargos, na precisa legitimamente reservados para o futuro agravo. E medida desta. Complementos ou alterações sem o mero recebimento dos embargos como agravo suporte em modificação acontecida em sede de retira da parte a oportunidade esperada para vei- embargos de declaração não são autorizados, em cular tais argumentos. Daí a inspiração para a ino- respeito à preclusão consumativa formada com a vação legislativa no sentido de somente autorizar a interposição do recurso. conversão dos embargos em agravo mediante pré- Conforme o § 5º do art. 1.024 do CPC de via oportunidade para que o embargante adapte o 2015, “se os embargos de declaração forem rejeita- recurso já interposto. dos ou não alterarem a conclusão do julgamento Assim, com o advento do Novo CPC, dois cui- anterior, o recurso interposto pela outra parte, an- dados deve ter o julgador antes de efetivamente tes da publicação do julgamento dos embargos de converter os embargos de declaração em agravo declaração, será processado e julgado independen- N o v i d a d e s e m m a t é r i a d e emb arg o s d e d eclaração n o CPC de 2015. interno: verificar se está diante de situação real- 155 Revi s t a d o A d v o g a d o plementar as razões recursais, de modo a ajustá- 23/04/2015 16:28:55 N o v i d a d e s e m m a t é r i a d e emb arg o s d e d eclaração n o CPC de 2015. Re v is t a d o A d v o g a d o 156 temente de ratificação”. Em boa hora, o legislador existentes erro, omissão, contradição ou obscu- edita regra para esvaziar a execrável Súmula nº 418 ridade”. Como se vê, o legislador acentua o pa- do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (“é inadmis- pel do embargante e do tribunal superior para a sível o recurso especial interposto antes da publica- caracterização do prequestionamento, a ponto de ção do acórdão dos embargos de declaração, sem passar por cima das falhas do tribunal local no posterior ratificação”), figura perfeita e acabada da julgamento dos embargos e abrir as portas para jurisprudência defensiva e aplicada até em matéria a direta admissão dos recursos excepcionais, sem de apelação. Quem já disse com todas as letras que necessidade de devolução do processo para a com- impugna determinada decisão não deve ser obriga- plementação dos debates em torno das questões do a reiterar a impugnação após o julgamento dos federais ou constitucionais veiculadas nesses re- embargos de declaração. Eis, em outras palavras, o cursos. que determina o legislador no referido § 5º. Nesse contexto, não mais subsiste a Súmula nº 211 do STJ (“inadmissível recurso especial quanto Quem já disse que impugna decisão não deve ser obrigado a reiterar a impugnação após o julgamento dos embargos de declaração. à questão que, a despeito da oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”). E ganha corpo entendimento firmado a partir da Súmula nº 356 do Supremo Tribunal Federal (STF) (“o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por Registre-se que, nas situações de acolhimento faltar o requisito do prequestionamento”), no sen- dos embargos de declaração com efeitos modifi- tido de que para a caracterização do prequestio- cativos, o silêncio do recorrente precoce após o namento e a consequente abertura da instância julgamento dos embargos não deve ser causa, per extraordinária pode ser suficiente o diligente com- se, de inadmissão do recurso previamente inter- portamento da parte no debate da matéria trazida posto. Logicamente, tudo o que ficou prejudicado ao tribunal superior. pelo acolhimento dos embargos cai por terra e isso pode afetar toda a peça recursal. Porém, havendo 7 Sem efeito suspensivo parcela do recurso prévio não afetada pelo julgamento dos embargos, subsiste, ao menos parcial- Considerando que o efeito suspensivo do re- mente, a admissibilidade da pretensão recursal, curso tem mais a ver com a recorribilidade da de- que deve ser enfrentada independentemente da cisão do que com a sua efetiva interposição e que reiteração do recurso. todo pronunciamento é embargável, a atribuição de eficácia suspensiva automática aos embargos, a 6 Prequestionamento rigor, implicaria a ineficácia de todas as decisões judiciais num primeiro momento, ao menos até o Livro_126.indb 156 Salutar inovação legislativa vem expressa no transcurso do prazo assinado para a oposição da- art. 1.025 do CPC de 2015: “consideram-se incluí- queles. Ademais, é de se esperar que a clareza, a dos no acórdão os elementos que o embargante coerência, a completeza e a afinidade entre ideia suscitou, para fins de pré-questionamento, ainda e expressão sejam o ordinário em matéria de deci- que os embargos de declaração sejam inadmitidos são judicial; a obscuridade, a contradição, a omis- ou rejeitados, caso o tribunal superior considere são e o erro material devem ser vistos como algo 23/04/2015 16:28:55 imediata aos pronunciamentos judiciais. Aliás, o festamente protelatórios saltou para “dois por cento legislador deixa claro que determinadas decisões sobre o valor atualizado da causa” (art. 1.026, § 2º, devem ser imediatamente eficazes; tanto assim é do CPC de 2015). que não prevê efeito suspensivo para certos recur- A exigência do depósito prévio da multa para sos. E seria um contrassenso atribuir automatica- o conhecimento do ulterior recurso permanece mente aos embargos de declaração poder que nem vinculada apenas aos segundos embargos de de- mesmo tem o recurso pensado para impugnar com claração manifestamente protelatórios, mas são toda a força a decisão judicial em questão. agora liberados dessa exigência a “Fazenda Pú- Atento a essa realidade, o legislador passou a blica” e o “beneficiário de gratuidade da justiça”, prever expressamente que “os embargos de decla- “que a recolherão ao final” (art. 1.026, § 3º, do ração não possuem efeito suspensivo” (art. 1.026, CPC de 2015). É absolutamente criticável essa caput, do CPC de 2015). E disciplinou que “a liberação de determinadas pessoas do depósito eficácia da decisão monocrática ou colegiada po- prévio, sobretudo no que diz respeito à Fazen- derá ser suspensa pelo respectivo juiz ou relator da Pública, dotada de capacidade econômico- se demonstrada a probabilidade de provimento do -financeira para desembolsar desde logo o valor recurso ou, sendo relevante a fundamentação, se da multa. houver risco de dano grave ou de difícil reparação” (art. 1.026, § 1º, do CPC de 2015). Por fim, prevê-se que “não serão admitidos novos embargos de declaração se os 2 (dois) Perceba-se que, nas hipóteses em que o recurso anteriores houverem sido considerados prote- ulteriormente cabível contra a decisão for dotado latórios” (art. 1.026, § 4º, do CPC de 2015). A de efeito suspensivo (por exemplo, apelação – art. inadmissão de embargos manifestamente prote- 1.012, caput, do CPC de 2015), a contenção da latórios, acompanhada até de atestado do trânsi- eficácia da decisão embargada já acontece natural- to em julgado e de ordem para a devolução dos mente, em razão do alongamento da sua recorribi- autos a instância inferior, é mais uma prática lidade por aquele recurso, graças ao efeito interrup- comum nos tribunais, nas situações de múlti- tivo produzido pelos embargos de declaração (art. plos embargos de declaração manifestamente 1.026, caput, do CPC de 2015). É nas situações em protelatórios, em que a multa não é suficiente que o futuro recurso não contar ordinariamente para desestimular o improbus litigator. O Novo com efeito suspensivo que o embargante deve lan- CPC traz agora para o texto da lei essa sanção çar mão do § 1º do art. 1.026 do CPC de 2015. mais drástica, que não pode ser aplicada de N o v i d a d e s e m m a t é r i a d e emb arg o s d e d eclaração n o CPC de 2015. para os primeiros embargos de declaração mani- 157 Revi s t a d o A d v o g a d o excepcional, o que aconselha a outorga de eficácia plano nem em sede de segundos embargos ma- 8 Sanções para a manifesta protelação nifestamente protelatórios: é preciso que haja duas prévias e imediatamente subsequentes Neste tópico de encerramento, trata-se da nova protelações manifestas para que tenha lugar a disciplina das sanções em desfavor do embargante inadmissão dos embargos, inclusive com a cas- protelador. O teto do valor da multa estabelecida sação do seu efeito interruptivo. Bibliografia BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar. Embargos de declaração. São Paulo: Saraiva, 2005. Livro_126.indb 157 23/04/2015 16:28:55 U ma provável ofensa à garantia da inafastabilidade do acesso à justiça no Novo CPC. Nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser subtraída da apreciação do Poder Judiciário, é o que proclama, solenemente, a regra que está no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República, que traz em seu bojo também a garantia de acesso à justiça. Há, no entanto, uma situação em que o Novo Código de Processo Civil (CPC) parece se afastar 158 Revi s t a d o A d v o g a d o dessa garantia, ao possibilitar que ocorra a arrematação do bem do executado mesmo nos casos de vícios materiais ou processuais evidentes, em virtude do simples fato de esses vícios terem sido reconhecidos somente após a assinatura do auto de arrematação. Segundo o art. 903 do Novo CPC: “Qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo Marcelo José Magalhães Bonicio leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, Professor doutor da Universidade de São Paulo. acabada e irretratável, ainda que venham a ser jul- Pós-doutor pela Universidade de Lisboa. Procurador gados procedentes os embargos do executado ou do Estado de São Paulo. a ação autônoma de que trata o § 4º deste artigo, ressalvada a possibilidade de reparação pelos prejuízos sofridos”. A regra que estava no CPC de 1973 também dispunha que a assinatura do auto tornaria inútil o julgamento dos embargos do executado para o fim de restituição do bem arrematado, mas, em ambas as situações, a incompatibilidade com a inafastabi- Livro_126.indb 158 23/04/2015 16:28:55 sinatura do auto de arrematação não pode frustrar não faz sentido que o juiz venha a assinar o auto a expectativa do executado de proteger seus bens. de arrematação se a procedência desses embargos Se a regra que está no caput do art. 903 for in- vai invalidar essa arrematação, isto é, ou a regra terpretada de modo isolado, quando forem julga- do caput existe para dizer que toda arrematação dos procedentes os embargos em que o executado é definitiva, ainda que venham a ser julgados pro- afirmou, por exemplo, que o leilão teria ocorrido cedentes os embargos, ou para determinar que por preço vil, a arrematação simplesmente não nenhuma arrematação é definitiva se houver vícios seria atingida pelos efeitos desse julgamento, de que possam comprometê-la (como se alguma regra maneira que a pretensão do executado de reaver precisasse afirmar isso). o bem arrematado ficaria frustrada de forma fla- Essa incoerência – que quase parece proposi- grantemente inconstitucional, ou seja, o execu- tal – não é motivo para afastar a inconstituciona- tado ficaria privado de seus bens sem o devido lidade da regra que está no caput do art. 903, pois processo legal. sempre há o risco de alguém interpretá-la isoladamente, como se o § 1º não estivesse se referindo A assinatura do auto de arrematação não pode frustrar a expectativa do executado de proteger seus bens. ao mesmo ato de arrematação que está no caput desse dispositivo. Não se trata, aqui, de desvalorizar a intenção do legislador que, muito provavelmente, é a de conferir segurança ao arrematante e agilizar a execução civil em nosso país, mas sim de criticar a forma pela qual o legislador tratou disso no Novo A inconstitucionalidade apontada só não produz (ou não produziu) efeitos mais desastrosos CPC, que não representa nenhuma evolução em relação ao CPC de 1973. porque a regra atual, assim como aquela que es- Nesse ponto, o Novo CPC perdeu uma precio- tava no CPC de 1973, é muito incoerente, posto sa oportunidade de resolver a inconstitucionalida- que a arrematação não pode ser considerada “per- de apontada e também de eliminar a contradição feita, acabada e irretratável, ainda que venham a que estava no CPC de 1973, com a criação de ser julgados procedentes os embargos do execu- uma regra mais elaborada que a atual, que bem tado ou a ação autônoma”, se, ao mesmo tempo, poderia determinar simplesmente o seguinte: a “arrematação poderá ser tornada sem efeito: I - “o juiz avaliará os fundamentos dos embargos por vício de nulidade”, conforme dispunha o (ou da impugnação ou, ainda, da ação autônoma) CPC de 1973 (art. 694, § 1º) ou “quando realiza- para permitir, conforme o caso, que a arremata- da por preço vil ou com outro vício” (art. 903, § 1º, ção se dê de forma definitiva ou para determinar do CPC atual). que o arrematante terá apenas uma expectativa de U m a p r o v á v e l o f e n s a à garan tia d a in afas tabilidade do acesso à justiça no Novo CPC. De fato, se os embargos versam sobre preço vil, 159 Revi s t a d o A d v o g a d o lidade da jurisdição parece evidente, posto que a as- direito quanto à aquisição do bem, ou, ainda, para 1. No CPC de 1939 a regra do art. 976 era clara ao dispor que “assinado o auto, a arrematação considerar-se-á perfeita e acabada e, salvo disposição legal em contrário, não mais se retratará”, para, logo em seguida, no capítulo destinado à defesa do executado, permitir a interposição de “embargos de nulidade da execução”, desde que dentro dos cinco dias seguintes à arrematação. Nada mais parece ser necessário para resolver o problema do executado que deseja proteger seus bens da arrematação. Livro_126.indb 159 conceder efeito suspensivo a esses embargos”.1 No primeiro caso, o executado teria direito a uma indenização, pelo valor de mercado do bem, enquanto que, no segundo caso, haveria direito à restituição do bem arrematado, tudo em harmonia com a chamada “tutela da evidência” que 23/04/2015 16:28:55 o Novo CPC parece valorizar e com a promessa se o vício simplesmente desaparecesse, hipótese constitucional de acesso à justiça. em que o executado ficaria apenas com o direito a U m a p r o v á v e l o f e n s a à g aran tia d a in afas tabilidade do acesso à justiça no Novo CPC. Essa opção é muito mais segura e harmônica Rev i st a d o A d v o g a d o 160 do que aquela apontada pelo Novo CPC, que, ao O mesmo pode ocorrer nas hipóteses de preço mesmo tempo em que afirma que a arrematação vil ou de falhas na avaliação ou do próprio leilão, é inatingível pelo resultado do julgamento dos ou, ainda, de extinção da execução por qualquer embargos do executado, possui regra no sentido motivo, pois, assim como ocorria antes, para o de que a arrematação pode ser invalidada por ví- Novo CPC a simples assinatura do auto de arre- cios em geral, materiais ou processuais, e permite, matação torna impossível o retorno do bem ao inclusive, que o executado venha a suscitar esses patrimônio do executado, sejam quais forem os vícios no prazo de dez dias contados da arremata- fundamentos do julgamento dessa impugnação. ção (§ 2º do art. 903). Isso significa que a pretensão do executado, É claro que as chances de sucesso do leilão, que é o autor dessa impugnação, de proteger a pro- na segunda hipótese, seriam bem reduzidas, por- priedade de seus bens, está fadada, na melhor das que o arrematante teria de aguardar o desfecho hipóteses, a se transformar em mera indenização do processo para ver consolidada a propriedade (art. 903, última parte) se ocorrer a assinatura do em seu nome, mas é melhor correr esse risco em auto de arrematação antes do julgamento de sua relação ao arrematante, que nada mais faz do que um pretensão, como se o sistema brasileiro não tivesse investimento na aquisição de um bem, do que em erguido, há tempos, a bandeira da instrumentalida- relação ao executado, que pode ter seus bens defini- de do processo, elegendo a máxima chiovendiana tivamente alienados, mesmo no caso de flagrantes de que “processo precisa dar, a quem tem razão, injustiças. tudo aquilo e exatamente aquilo a que o autor tem De fato, se houve algum vício que possa com- direito” como uma de suas colunas centrais. prometer a validade desses atos processuais, não é Não há dúvida de que essa nova regra, que nem a simples assinatura da carta de arrematação, pelo é tão nova assim, poderá conferir maior segurança juiz da execução e por outras pessoas, que vai sa- aos arrematantes em geral, mas o preço pago por nar esse vício ou – pior ainda – que vai impedir essa segurança parece ser alto demais, especial- que esse bem retorne ao patrimônio do executado. mente porque enfraquece o acesso à justiça, uma É nesse ponto que o Novo CPC incorre em das mais importantes garantias constitucionais que violação ao acesso à justiça, porque o executado conhecemos, ante a flagrante inconstitucionalida- perde o direito à restituição do bem independen- de da expressão “ainda que venham a ser julgados temente do julgamento de sua pretensão, que, procedentes os embargos do executado ou a ação aliás, foi formulada em juízo justamente com a autônoma” contida no art. 903 do Novo CPC. intenção de impedir a alienação desse bem. Livro_126.indb 160 uma indenização (art. 903, última parte). Em outras palavras, é evidente que o autor dos No caso da penhora de bem de família, ape- embargos, da impugnação ou da ação anulatória nas para citar exemplo corriqueiro, na linha do tem direito à preservação da integridade de seu que propõe o Novo CPC, se o executado se opôs patrimônio, aí incluída a ideia de que a conversão a isso mediante impugnação, embargos ou ação em indenização jamais substituirá a devolução do autônoma, caso a execução tenha seguimento e bem ilegalmente arrematado, salvo se esse autor as pessoas indicadas na lei cheguem a assinar o assim desejar. auto de arrematação, nada impedirá que ocorra Nessa linha de pensamento, pouco importa o a transferência do bem para o arrematante, como momento em que o auto de arrematação é assi- 23/04/2015 16:28:56 rantias constitucionais de que dispomos, preferiu de qualquer outro instrumento que o executado manter a equivocada e contraditória redação do tenha utilizado para proteger seu patrimônio. CPC de 1973, ao dispor, no caput do art. 903, Apenas para ficar com os exemplos mais co- que a arrematação é impossível de ser invalidada, muns, a perda de determinada quantidade de embora, ao mesmo tempo, tenha afirmado que ações de uma empresa criada pela família do au- essa arrematação pode ser invalidada se houver tor dos embargos ou a perda de uma propriedade um “vício” (material ou processual) com força que foi duramente conquistada por ele são exem- suficiente para isso. plos evidentes de que a simples conversão em Assim, ainda que se consiga extrair dessas re- indenização jamais substituirá o valor (inclusive gras contraditórias que a efetiva vontade do legis- sentimental) do bem ilegalmente arrematado. lador estaria na impossibilidade de restituição do O Estado não pode quebrar a promessa de bem arrematado, seja qual for o resultado dos em- prestar jurisdição a quem dela necessita em vir- bargos ou de outro instrumento, restaria evidente tude de um – lamentável – equívoco do legis- a inconstitucionalidade de um sistema processual lador, repetido no Novo CPC, que parece ter que fecha os olhos às pretensões do executado, preferido não enfrentar esse tema abertamente, apenas para obter mais eficiência na venda do posto que, inexplicavelmente, em vez de promo- bem penhorado, mesmo que isso se dê às custas ver a compatibilização dessas regras com as ga- de graves violações à Constituição. U m a p r o v á v e l o f e n s a à garan tia d a in afas tabilidade do acesso à justiça no Novo CPC. nado, mas sim os fundamentos dos embargos ou Revi s t a d o A d v o g a d o 161 Livro_126.indb 161 23/04/2015 16:28:56 D a expressa proibição à “decisão-surpresa” no Novo CPC. Sumário 1.Introdução 2.A disciplina do Novo CPC relacionada à vedação da “decisão-surpresa” 3.Alcance do art. 10 do Novo CPC às questões cognoscíveis de ofício 4.Consagração da visão contemporânea do princípio do contraditório 5.Previsões semelhantes no Direito estrangeiro 6.Repercussões da expressa vedação à “decisão- 162 Revi s t a d o A d v o g a d o -surpresa” 7.Considerações finais Bibliografia 1 Introdução Era mesmo de se esperar que o Novo Código de Processo Civil (NCPC) brasileiro expressamente contemplasse o direito de os litigantes não serem surpreendidos, na decisão judicial, por funOreste Nestor de Souza Laspro damento que não foi por eles anteriormente venti- Advogado. Professor de Direito Processual Civil lado, ou, ainda, de que não lhes foi dado conheci- da Faculdade de Direito da USP. mento prévio para se manifestarem. Além de se tratar de uma orientação alinhada a avançados ordenamentos estrangeiros, é consentânea com o princípio do contraditório (um dos pilares do processo civil brasileiro). Ademais, numa época em que ainda muito se preconiza a efetividade do processo, a previsibilidade da decisão judicial assume destaque, inclusive, pelo seu Livro_126.indb 162 23/04/2015 16:28:56 entrelaçamento com a segurança jurídica e pelo seu do qual não se tenha dado às partes oportunidade fundamental papel quanto à própria credibilidade do de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre Poder Judiciário (OLIVEIRA, 2003, p. 194). a qual deva decidir de ofício”. A regra em comento veda o que doutrinaria- a processualística italiana (GRADI, 2010, p. 827). Não se tolera um pronunciamento judicial que adota premissas não alvitradas no processo e a respeito das quais os litigantes não tomaram conhe- É nesse contexto que o presente ensaio se de- cimento para viabilizar o debate. A regra, que se bruça: com o escopo de elucidar a sistemática do aplica também em âmbito recursal (a lei fala em assunto pelo NCPC, quer-se avaliar o alcance e “grau algum de jurisdição”), alcança as hipóteses a conveniência da disciplina ali contemplada, em que a decisão se alicerça sobre questões cog- além de apontar algumas de suas repercussões no noscíveis de ofício pelo julgador. cenário jurídico atual – mas tudo sem pretensão Com efeito, os fundamentos sobre os quais a exaustiva, diante dos estreitos limites propostos “decisão-surpresa” se ampara podem correspon- para este trabalho. der a questões de fato ou de direito (SOUZA, 2014, p. 136), envolvendo matéria de direito pro- 2 A disciplina do Novo CPC relacionada cessual ou de direito material. Ilustram isso: a à vedação da “decisão-surpresa” declaração incidental de inconstitucionalidade de uma norma,3 o reconhecimento de ofício da O art. 10 do NCPC1 estabelece: prescrição, o reconhecimento de matérias relati- “O juiz não pode decidir, em grau algum de vas a ausência das condições da ação, nulidades jurisdição, com base em fundamento a respeito ou de pressupostos processuais. Desse modo, vislumbrando qualquer uma dessas hipóteses antes 1. Ao longo deste trabalho, as referências aos dispositivos do NCPC levam em conta a numeração do texto consolidado com os ajustes promovidos pela Comissão Temporária do Código de Processo Civil e aprovada pelo Senado Federal em 17/12/2014. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_ mate=116731>. Acesso em: 23 jan. 2015. 2. Em obra específica sobre o tema, conceitua-se: “decisão-surpresa é uma decisão fundada em premissas que não foram objeto de prévio debate ou a respeito das quais não se tomou prévio conhecimento no processo em que é proferida” (SOUZA, 2014, p. 136). Ademais, “Tudo o que o juiz decidir fora do debate ensejado pelas partes corresponde a surpreendê-las” (THEODORO JÚNIOR; NUNES, 2009, p. 125). 3. Reconhecendo que a declaração incidental de inconstitucionalidade pode se dar ex officio, no controle concreto, vide: SILVA, 2004, p. 15-16. 4. Tal dispositivo prevê expressamente a possibilidade de o magistrado julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. 5. A exemplo do teor do art. 40, § 4º, da Lei de Execuções Fiscais, pelo qual o juiz poderá reconhecer de ofício a prescrição intercorrente somente após ouvir a Fazenda Pública. Livro_126.indb 163 de prolatar sua decisão, o juiz deve propiciar a oportunidade para as partes se manifestarem. D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. de terceira via” – como mais usualmente se refere 163 Revi s t a d o A d v o g a d o A regra em comento veda o que doutrinariamente se chama de “decisão-surpresa”. mente se chama de “decisão-surpresa”2 ou “decisão À proibição de uma “decisão-surpresa” se harmonizam, ainda, outras disposições do NCPC, tais como: o art. 9º, caput (“Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida”); o parágrafo único do art. 484 (“a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se”, ressalvada a hipótese do § 1º do art. 3304); o parágrafo único do art. 490 (“Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir”); o § 4º do art. 919 (que condiciona extinção da execução pela pronúncia da prescrição intercorrente à prévia oitiva das partes).5 Além disso, o art. 7º assegura aos litigantes a 23/04/2015 16:28:56 D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. Rev i st a d o A d v o g a d o 164 paridade de tratamento no processo, “competindo do advento do novo Código6 – efetivamente não ao juiz zelar pelo efetivo contraditório”. se sustenta à luz do mencionado art. 10. Com Advirta-se, ainda, que a vedação constante do efeito, o exercício do contraditório e a cognição art. 10 não é absoluta. Nada obstante tal dispo- oficiosa do magistrado não se excluem: o juiz age sitivo não contemple expressa exceção, uma in- sem o prévio requerimento da parte, mas o con- terpretação sistemática orientada pelas garantias traditório prévio não pode ser desprezado,7 seja constitucionais do processo (como a do art. 5º, por se tratar de inafastável garantia constitucional inciso XXXV) autoriza a conclusão de que situa- (Constituição Federal – CF, art. 5º, inciso LV), ções de urgência com risco de dano irreparável seja porque a coleta de informações pelo juiz ou ou de difícil reparação excepcionam a vedação tribunal pode ser proveitosa, convencendo-o – por à decisão judicial baseada em fundamento não exemplo – da desnecessidade, inadequação ou im- submetido ao debate das partes (ALMEIDA; procedência da decisão que iria tomar (OLIVEIRA, GOMES JUNIOR, 2012, p. 163); não há aí qual- 1993, p. 35). quer vulneração ao contraditório e à ampla defe- Somente após efetivo contraditório, portanto, sa até mesmo porque não se exclui do litigante a a matéria de ordem pública (ou a questão apreciá- possibilidade de se alterar posteriormente aquela vel sem o requerimento da parte) pode ser adotada decisão (o exercício do contraditório é postergado como motivo da decisão judicial. Essa providên- ou diferido). cia deve ser observada pelo magistrado, inclusive, Ademais, a própria sistemática do NCPC re- na hipótese de embargos de declaração recebidos força a ideia de que a proibição da decisão-sur- excepcionalmente com efeito modificativo presa tem ressalvas, eis que, no art. 9º, parágrafo (BEDAQUE, 2011). único, incisos I a III, se estabelece que nenhuma decisão judicial será proferida contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida, exceto 4 Consagração da visão contemporânea do princípio do contraditório nas hipóteses de tutela de urgência e de tutela de evidência ali previstas. A concepção moderna que a ciência processual tem do princípio do contraditório vai além do bi- 3 Alcance do art. 10 do Novo CPC às nômio “informação e reação” – explorado por La questões cognoscíveis de ofício China (1970, p. 394); agrega-se também a ideia de que a participação dos litigantes deve ser incenti- A vedação contida no art. 10 do NCPC se tra- vada pelo juiz, o qual, de sua vez, deve zelar para duz na necessidade de oitiva prévia dos litigantes que haja um diálogo entre ele e as partes, a influir sobre aquelas questões inferidas pelo julgador no resultado do julgamento (e a culminar, inclusi- como possíveis argumentos da decisão, ainda que ve, no que parte da doutrina processual referencia sejam apreciáveis de ofício ou ainda que se trate como um modelo de “cooperação” ou “colabora- de matéria de ordem pública. ção” no processo) (BUENO, 2008, p. 55). Apesar de a prática forense revelar que as questões de ordem pública são usualmente decididas sem a prévia oitiva das partes, a pretexto de serem matérias apreciáveis de ofício (e, por isso, prescindirem da manifestação dos litigantes), tal orientação – já repudiada pela doutrina antes mesmo Livro_126.indb 164 6. Cf. NERY JUNIOR, 2009, p. 227; OLIVEIRA, 1993, p. 35, entre outros. 7. A propósito, a Exposição de Motivos da comissão de juristas encarregada da redação do Anteprojeto do Novo Código já explicitava tal ordem de ideias: “Está expressamente formulada a regra no sentido de que o fato de o juiz estar diante de matéria de ordem pública não dispensa a obediência ao princípio do contraditório”. 23/04/2015 16:28:56 os litigantes têm o direito de influenciar na pre- pois se trata de uma decorrência direta do prin- paração da decisão que será prolatada e o juiz tem cípio do contraditório (como garantia constitu- o dever de consultar as partes, chamando-as para cional prevista no art. 5º, inciso LV, combinado se manifestarem sobre pontos que ele vislumbra com o art. 5, § 1º, da CF), cuja concepção mais como relevantes para a decisão a ser tomada. O moderna não tolera que o litigante seja surpreen- contraditório, nesses termos, coloca-se para o liti- dido por decisão embasada em dados estranhos gante como uma garantia de influência e também à dialética travada no processo. Entendimentos uma garantia de “não surpresa” (já que o julgador do Superior Tribunal de Justiça (STJ) também não decidirá fora do que foi submetido ao debate). acompanham tal linha de pensamento.8 Nesse É acertado concluir, nesse contexto, que o art. contexto, a regra contida no art. 10 do NCPC 10 do NCPC dá concretude ao princípio do contra- não seria exatamente uma inovação.9 ditório e consagra a perspectiva atual que se tem do postulado, já que aquela norma, ao fomentar um debate prévio sobre os fundamentos da futura decisão, impõe o “dever de consulta” ao magistrado, além de assegurar à parte a garantia de influência (na livre convicção do juiz) e a garantia de “não surpresa”. Os litigantes têm o direito de influenciar na preparação da decisão que será prolatada. Conquanto autorizada doutrina afirme que a orientação do art. 10 tenha sabor de novidade De qualquer maneira, temos que o art. 10 do (MARINONI; MITIDIERO, 2010, p. 74; WAMBIER, NCPC consolida um avanço em nosso ordena- 2013), deve ser lembrado que outras prestigiosas mento, seja por se harmonizar com a moderna vozes (THEODORO JÚNIOR; NUNES, 2009, ótica que a ciência processual tem do contraditó- p. 125; NERY JUNIOR, 2009, p. 227) já susten- rio, seja por reforçar no plano infraconstitucional tavam existir a vedação à “decisão-surpresa” em a existência de direitos e deveres dos participantes do contraditório (no que se inclui o juiz), a ponto 8.A título exemplificativo, vide caso em que o STJ repudiou a decisão ex officio tomada no âmbito de expropriatória indireta sem suporte em pedido expresso da parte interessada e sem assegurar ao interessado o contraditório e a ampla defesa “apanhando-o de surpresa” (REsp nº 153828-SP, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJ de 1º/3/1999). Em outro julgado, deparou-se o STJ com sentença fundamentada com base na impossibilidade legal de o Inmetro impor multa; todavia, tal premissa não foi previamente debatida entre os litigantes, o que levou o STJ a reconhecer que o juiz impôs surpresa às partes, anulando o decisum (REsp nº 496348-PR, Rel. Min. Castro Meira, DJe de 10/12/2010). Registre-se, todavia, em sentido divergente, situação em que o STJ já permitiu que o magistrado tomasse decisão ex officio sem a necessidade de propiciar o prévio debate ou sem qualquer prévia advertência às partes: “Inexiste surpresa na inversão do ônus da prova apenas no julgamento da ação consumerista. Essa possibilidade está presente desde o ajuizamento da ação e nenhuma das partes pode alegar desconhecimento quanto à sua existência” (REsp nº 1125621-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJe de 7/2/2011). 9.Didier Jr. (2014, p. 236) trata o art. 10 do NCPC como uma “pseudonovidade normativa”, por se incluir no rol de enunciados que “reforçam, ratificam, confirmam, corroboram etc. a compreensão atual do direito processual civil brasileiro, construída antes da vigência do novo CPC”. Livro_126.indb 165 de espancar dúvidas existentes quanto à delicada questão de se fomentar o debate prévio sobre ma- D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. nosso sistema, mesmo sem uma lei específica, 165 Revi s t a d o A d v o g a d o Nessa perspectiva, desdobra-se a ideia de que téria apreciável de ofício pelo julgador. 5 Previsões semelhantes no Direito estrangeiro O teor do art. 10 do NCPC segue o que ordenamentos processuais de vanguarda contemplam sobre a proteção contra a “decisão-surpresa”. Destaque-se: i) no sistema francês, o art. 16 do Noveau Code de Procédure Civile estabelece que o juiz não pode fundamentar sua decisão sobre uma questão de direito que ele próprio suscitou de ofício, sem conceder oportunidade de manifestação às 23/04/2015 16:28:56 D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 166 partes;10 trata-se de disposição aplaudida já há um Embora não seja o caso, nos limites deste tra- certo tempo pela doutrina brasileira, rotulando-a balho, de tecer comparações, registre-se que o ca- como “sábia” e “inspiradora” (DINAMARCO, minho já trilhado por legislações estrangeiras (so- 2000, p. 135); bre o tema aqui tratado) anuncia a possível vinda ii) o art. 3º, n. 3, do CPC português dispõe que de dúvidas sobre o que pode ou não ser considera- não é lícito ao magistrado, “salvo caso de manifes- do “surpreendente”, bem como a constatação de ta desnecessidade, decidir questões de direito ou eventuais imperfeições da sistemática do NCPC, de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, traduzindo-se em discussões a serem pacificadas sem que as partes tenham tido a possibilidade de pela jurisprudência. De outra parte, a experiên- sobre elas se pronunciarem”. Com tom crítico, a cia estrangeira também nos mostra que a direção doutrina lusitana aponta que, à míngua de um adotada pelo novo Código brasileiro (consolidan- critério legal objetivo, a jurisprudência acaba deli- do o princípio do contraditório em sua moderna berando as situações que se enquadram como de acepção e a confirmar que o reconhecimento de “manifesta desnecessidade” (FREITAS; REDINHA; questões de ordem pública deve ser precedido de PINTO, 2008, p. 10); consulta às partes) não nos afasta da busca do pro- iii) o § 139 do CPC alemão (ZPO) proíbe cesso justo e efetivo. qualquer decisão que se apresente como surpresa aos litigantes, sob pena de nulidade (CRUZ E TUCCI, 2005, p. 12-22); há registro de que o 6 Repercussões da expressa vedação à “decisão-surpresa” legislador alemão, ao instituir a regra, tinha o objetivo da redução do número de recursos, na linha Dentre outras repercussões que o teor do art. de que a previsibilidade sobre o provável desfecho 10 do NCPC pode trazer, cabe mencionar em do processo poderia propiciar satisfação às partes apertadíssimas linhas: com a sentença proferida (BARBOSA MOREIRA, 2004, p. 201); i) a releitura da aplicação do aforismo iura novit curia: o brocardo, que confere ao magistrado a iv) o art. 183, § 4º, do CPC italiano prevê o possibilidade de se valer de norma não invoca- dever de o magistrado indicar às partes as ques- da pelas partes para aplicá-la ao caso concreto, tões cognoscíveis de ofício que pretende utilizar deve ser redimensionado, a ele se acrescentando como fundamento da decisão; no mesmo senti- a noção de que tal possibilidade não dispensa do, o art. 384, § 4º, disciplina o tema no juízo de a prévia manifestação das partes sobre a qua- cassação; mais recentemente, a reforma italiana lificação jurídica que pretende dar aos fatos e levada a efeito pela Lei nº 69/2009 alterou o art. fundamentos do pedido – e tudo como forma de 101 do CPC, autorizando o juiz a utilizar uma concretizar o contraditório e evitar surpresas ao questão conhecida de ofício como fundamento jurisdicionado;11 de sua decisão, desde que ouça as partes previa- ii) há críticas no sentido de que o NCPC mente – e tudo sob pena de nulidade; ao fixar deveria especificar qual a consequência ou sanção tal sanção (ou consequência) para a decisão- para a prolação da decisão desconforme com o surpresa, o teor do art. 101 eliminou boa parte art. 10: a ineficácia (MARINONI; MITIDIERO, de inflamadas discussões doutrinárias e jurisprudenciais até então existentes (sobre ser nulo – ou não – tal pronunciamento judicial) (GRADI, 2010, p. 828-833). Livro_126.indb 166 10. Cf. GRADI, 2010, p. 827; LEONEL, 2010, p. 126-127. 11. O entendimento endossado por Oliveira (1993, p. 135) e Trocker (1974, p. 369), que trataram do princípio do contraditório pelo prisma da cooperação, é também hoje confirmado por Souza (2014, p. 173). 23/04/2015 16:28:56 da decisão-surpresa conduz ao decreto de nulida- ou sendo omisso, é preferível aquela primeira op- de, por violar o princípio do contraditório e pro- ção, mais alinhada à segurança jurídica (SOUZA, piciar cerceamento de defesa (o grave vício dessa 2014, p. 166); decisão consiste justamente no afastamento de iv) a celeridade e o princípio da duração razoá- um modelo previsto na CF). De toda maneira, a vel do processo podem ceder espaço para o princí- crítica ora em comento prenuncia o que ocorreu pio do contraditório: forçoso reconhecer que retar- no sistema italiano: o surgimento de variadas dis- damentos podem acontecer quando o juiz viabiliza cussões sobre ser nula – ou não – a “decisão de o debate prévio sobre questões ainda não ventiladas terceira via” (o que culminou com a alteração do no processo; mas tal situação não se traduz em ine- CPC daquele país, com o acréscimo, no art. 101, fetividade e nem pode autorizar o sacrifício do con- da sanção da nulidade para a “decisão-surpresa”); traditório, pilar do processo civil brasileiro. iii) alegação de “prejulgamento” e de imparcialidade do juiz: não se sustenta a ideia de que a 7 Considerações finais intimação prévia das partes – para falarem sobre Livro_126.indb 167 matéria de ofício – seria indicativo de prejulga- Sem prejuízo das reflexões pontuais trazidas a mento da causa, pois aí se vislumbra a oportunida- este ensaio, cumpre finalizar com o destaque de de para o juiz verificar se a decisão que iria tomar que o art. 10 do NCPC regulou o exercício do con- é acertada – ou não; tampouco existe parcialidade traditório, encampando o que já preconizava pres- nesta postura, já que o juiz age sem armadilhas ou tigiosa doutrina, alinhando-se, ainda, com julgados surpresas para com todos os litigantes do processo. do STJ e com a vanguarda da legislação processual Ad argumentandum, um magistrado que detecta civil estrangeira. A despeito de críticas e aspectos uma decisão de ofício e não previne os litigantes a negativos, maiores são os benefícios com a postura tal respeito também correria o risco de beneficiar de sempre ouvir todos aqueles que, de algum modo, uma parte em detrimento da outra; e se ele corre podem contribuir para uma melhor decisão. D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. o risco de ser parcial viabilizando o debate prévio 167 Revi s t a d o A d v o g a d o 2010, p. 76). Em nosso sentir, todavia, a prolação 23/04/2015 16:28:56 Bibliografia ALMEIDA, Gregório Assagra de; GOMES JUNIOR, Luiz LEONEL, Ricardo de Barros. Direito Processual Civil Francês. Manoel. Um Novo Código de Processo Civil para o Brasil: In: CRUZ E TUCCI, José Rogério (Coord.). Direito análise teórica e prática apresentada ao Senado Federal. Processual Civil Europeu Contemporâneo. São Paulo: D a e x p r e s s a p r o i b i ç ã o à “ d ecis ão -s u rp res a” n o Novo CPC. Rio de Janeiro: GZ, 2012. Re v is t a d o A d v o g a d o 168 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O reforma do processo civil alemão. In: ______. Temas de Projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista direito processual: oitava série. Rio de Janeiro: Forense, dos Tribunais, 2010. 2004. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Novo CPC: expectativa favorável. Carta Forense, 2011. Disponível em: <http:// www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/novo-cpcexpectativa-favoravel/7877>. Acesso em: 23 jan. 2015. BUENO, Cassio Scarpinella. Amicus curiae no processo civil brasileiro: um terceiro enigmático. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. CRUZ E TUCCI, José Rogério. Horizontes do Novo Processo Civil Alemão. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre: Magister, n. 7, 2005. DIDIER JR., Fredie. Eficácia do novo CPC antes do término do período de vacância da lei. Revista de Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 236, 2014. DINAMARCO, Cândido Rangel. 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Livro_126.indb 168 Lex, 2010. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Breve notícia sobre a Acesso em: 23 jan. 2015. 23/04/2015 16:28:56 M otivação das decisões jurídicas e o contraditório: identificação das decisões imotivadas de acordo com o NCPC. Sumário 1.Preâmbulo e objeto de investigação 2.Jurisdição e poder: limitações impostas pela motivação 3.O contraditório na teoria dos princípios 4.Identificação das decisões imotivadas no NCPC 5.À guisa de conclusão 1 Preâmbulo e objeto de investigação No ordenamento brasileiro, a motivação constitui requisito de validade das decisões jurídicas por expressa determinação constitucional. O Código Paulo Henrique dos Santos Lucon Professor doutor de Direito Processual Civil de Processo Civil de 1973 (CPC/1973), ademais, estabelece como um dos requisitos das decisões da Faculdade de Direito do Largo São Francisco jurídicas a exposição pelo juiz dos fundamentos (USP). Vice-presidente do Instituto Brasileiro de que conduzem ou não ao acolhimento do pedido Direito Processual (IBDP) e do Instituto dos Advogados de São Paulo. Integrou a Comissão Especial do autor. Na tentativa de dar concretude a esses do Novo Código de Processo Civil da Câmara dos dispositivos, o Supremo Tribunal Federal (STF) Deputados. 169 Revi s t a d o A d v o g a d o Bibliografia e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) elaboraram algumas máximas para orientar a aplicação dessas normas. O STF, por exemplo, considera motivada decisão mesmo que dela não conste exame de cada uma das alegações ou provas suscitadas e produzidas pelas partes. O STJ, a seu turno, não considera nula a decisão motivada de maneira sucinta ou deficiente. Da análise que se faz dessas Livro_126.indb 169 23/04/2015 16:28:56 M o t i v a ç ã o d a s d e c i s õ e s ju ríd icas e o co n traditório: iden tificação das decisões i m o t i v a d a s d e a c o r d o c o m o NCP C. Rev i st a d o A d v o g a d o 170 máximas, constata-se que esses tribunais preo- bem poderiam ser empregadas em uma miríade cupam-se sobremaneira em não sobrecarregar os de casos diversos e está com isso traçado o cami- magistrados no exercício de sua função judicante. nho da arbitrariedade. Este artigo procura analisar a adequação da motivação, não sob essa perspectiva, preocupada com o gerenciamento do Poder Judiciário, mas sim sob a ótica dos jurisdicionados, com o propósito de demonstrar o seguinte teorema: não pode ser considerada motivada decisão que impossibilite o exercício do contraditório. 2 Jurisdição e poder: limitações impostas pela motivação A necessidade de justificar determinada escolha impõe restrições ao subjetivismo de qualquer elaborador racional de decisões. Independentemente desses novos desafios, algumas noções a respeito da atividade de justificação das decisões judiciais possuem caráter A necessidade de justificar determinada esco- atemporal, como, por exemplo, a necessidade de lha impõe restrições ao subjetivismo de qualquer a motivação ser: i) expressa, sendo vedada moti- elaborador racional de decisões. Ciente de que vação implícita, por conta da violação que isso deve explicitar seu convencimento, o formulador representaria ao imperativo da publicidade dos de decisões que pretende ser racional é constrito atos estatais; ii) clara, ou seja, desprovida de am- a não decidir com base em fundamentos que não biguidades e contradições; e iii) logicamente podem por ele ser expostos. Se essa lógica deve sustentável.1 Atendidos esses requisitos mínimos, ser aplicada em qualquer âmbito decisional, com pode-se afirmar que a motivação cumpre as fun- maior razão isso ocorre nos casos em que se esta- ções que dela são esperadas. A motivação, sob o belece uma relação que revela determinada forma aspecto político de legitimação do poder estatal, de manifestação do poder estatal. Essa tarefa, con- é uma garantia contra o arbítrio judicial e, sob tudo, torna-se cada vez mais complexa nos dias o ponto de vista endoprocessual, é um instituto atuais diante de contexto marcado por uma hipe- que assegura um melhor funcionamento do me- rinflação legislativa e pela utilização de termos canismo processual, isso porque, ao persuadir as jurídicos indeterminados para regulamentação partes da justiça da decisão, a motivação reforça a de condutas sociais. A mera aplicação da lei ao autoridade da decisão tomada e, com isso, deses- caso concreto, a exigir do julgador a explicitação timula a parte sucumbente a impugná-la.2 Se isso do nexo de pertinência entre as fattispecie abstrata não ocorrer e a parte decidir se insurgir contra a e concreta, é então substituída por uma ativida- decisão que lhe é prejudicial, é a motivação que de complexa de justificação em que o magistrado permitirá sejam individuados os vícios a respeito deve, dentre outras atividades, i) demonstrar o sig- dos quais versarão as razões recursais. Por isso, nificado por ele atribuído a cada um desses ter- não deve ser considerada motivada decisão que mos indeterminados, ii) realizar juízo de pondera- subtraia da parte que sucumbiu informações ne- ção, quando diante de conflito entre normas com cessárias ao exercício do contraditório. Se o direito caráter de princípio e iii) indicar o estado ideal de coisas a ser promovido com a sua decisão. Caso assim não proceda, o magistrado tende a justificar suas decisões com base em expressões vazias que Livro_126.indb 170 1. Ver: CRUZ E TUCCI, 1987, p. 15-21. 2.Ver: TARUFFO, 1975, p. 374-375. A respeito dos escopos da motivação – subjetivo, técnico e público –, cf. novamente CRUZ E TUCCI, 1987, n. 5, p. 21-24. 23/04/2015 16:28:56 car todos os atos processuais previstos em lei para cia indireta sobre outras normas jurídicas. Uma obtenção de tutela jurisdicional definitiva, não dessas funções é a chamada função definitória, comporta restrições de qualquer ordem, não pode segundo a qual o contraditório cumpriria o papel o Poder Judiciário limitar o exercício desse direi- de definir, ou seja, delimitar, o comando de um to deixando de fornecer informação necessária à sobreprincípio que lhe é axiologicamente supe- parte que deseja se insurgir contra decisão que rior.8 Sob essa ótica, tem-se que o contraditório lhe foi desfavorável.3 Se ao recorrente é imposto concretiza o princípio da soberania popular, na o ônus de explicitar os motivos para que seja pro- medida em que assegura a participação dos cida- ferida nova decisão, sob pena de o recurso não ser dãos na administração da Justiça. Além dessa fun- conhecido, dele não pode ser cerceado o acesso ção definitória, também por conta da eficácia in- às razões determinantes do julgamento que lhe direta dos princípios, o contraditório desempenha foi desfavorável, ou então estaria o jurisdicionado uma função interpretativa, uma vez que ele é submetido a uma verdadeira situação kafkiana, já utilizado na atividade de interpretação de normas que não lhe seriam fornecidas condições de ele se construídas a partir de outros textos normativos, ver livre do jugo estatal. restringindo ou ampliando seus sentidos. Por fim, 4 3 O contraditório na teoria dos princípios A concepção de processo como procedimento em contraditório5 ressalta o caráter estrutural desta norma para o instrumento estatal de resolução de controvérsias. Ausente contraditório, inexiste processo. Se há contraditório, mas este não é respeitado como deveria, está-se, então, diante de um processo que não pode ser definido como justo. Enquanto princípio jurídico,6 o contraditório produz efeitos sobre outras normas jurídicas de forma direta e indireta. Por conta da eficácia direta, os princípios exercem uma função integrativa, pois agregam elementos não previstos em subprincípios ou regras. Assim, ainda que não haja regra expressa determinando a oitiva das partes a respeito de ato judicial com potencial de influir na esfera jurídica de uma delas, deverá ser oportunizada a sua manifestação.7 Além dessa eficácia 3.Ver: SICA, 2011, p. 23-41. 4.Ver: BARBOSA MOREIRA, 1968, p. 103-107. 5.Ver: FAZZALARI, 1996, p. 29. 6.Ver: ÁVILA, 2009, cap. 2, n. 2.4.3, p. 78-79. 7. Ver: ÁVILA, 2009, cap. 2, n. 2.4.8.1.2, p. 97 e ss. 8.Ver: ÁVILA, 2009, cap. 2, n. 2.4.8.1.3, p. 98 e ss. Livro_126.indb 171 e esta é a função do contraditório que mais de perto nos interessa, tem-se que os princípios jurídicos exercem uma função bloqueadora, que consiste na capacidade de afastar elementos incompatíveis com o estado ideal de coisas a ser por eles promovido. Desse modo, caso uma determinada regra, por exemplo, preveja a concessão de certo prazo para a prática de um ato processual, mas sendo ele incompatível com a natureza do ato a ser praticado, para garantir o regular exercício do contraditório e a efetiva proteção dos direitos do cidadão, um prazo adequado deverá ser garantido M o t i v a ç ã o d a s d e c i s õ e s j u ríd icas e o co n traditório: iden tificação das decisões i m o t i v a d a s d e a c o r d o c o m o NCP C. direta, o contraditório também exerce uma eficá- 171 Revi s t a d o A d v o g a d o de ação, compreendido como o direito de prati- pelo juiz. Da mesma forma, em virtude dessa função bloqueadora do contraditório, é que se deve considerar não motivada decisão que de alguma maneira impossibilite o exercício do contraditório. Isso ocorrerá quando a parte que sucumbiu restar impossibilitada de se insurgir contra decisão que lhe foi desfavorável por conta de alguma omissão do julgador que deixou de explicitar como deveria o seu convencimento. Vale dizer, a função bloqueadora do princípio do contraditório faz com que seja considerada imotivada a decisão que leve a parte que sucumbiu a não dispor de informações suficientes para se insurgir contra a decisão que lhe foi desfavorável. Usualmente, a violação 23/04/2015 16:28:56 M o t i v a ç ã o d a s d e c i s õ e s ju ríd icas e o co n traditório: iden tificação das decisões i m o t i v a d a s d e a c o r d o c o m o NCP C. Re v is t a d o A d v o g a d o 172 Livro_126.indb 172 ao contraditório ocorre quando o juiz se des- ter o dever de materializar esses termos à luz das cola das particularidades do caso. A motivação especificidades de cada caso concreto que lhe é e o contraditório, portanto, estão interligados de submetido. Por exemplo, o art. 422 do Código Ci- modo que a primeira não pode ser considerada vil estabelece que “os contratantes são obrigados adequada se o segundo não puder ser exercido. a guardar, assim na conclusão do contrato, como Trata-se de um liame estrutural. em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”. Referidos princípios, contudo, manifes- 4 Identificação das decisões imotivadas no NCPC tam-se de maneira diversa em cada espécie contratual, por isso incumbe ao magistrado em sua fundamentação explicitar cada um dos deveres Fixadas essas premissas, estabelecido que não de conduta esperados em função da incidência se pode considerar motivada decisão que de algu- desses princípios. Se não for explicitada a mate- ma forma impeça o exercício regular do contradi- rialização atribuída pelo juiz ao termo jurídico in- tório, cumpre-nos identificar aquelas decisões que determinado, a parte que sucumbiu não terá, em devem ser consideradas imotivadas de acordo com suma, conhecimento da conduta reputada como o Novo Código de Processo Civil (NCPC): reprovável pelo magistrado. a) indicação, reprodução, ou paráfrase de ato normativo sem explicitar sua relação com a causa ou a questão decidida (CPC, art. 489, § 1º, inciso I). Os magistrados costumam por vezes justificar suas decisões reportando-se apenas ao texto normativo aplicável ao caso, seja por meio de Algumas decisões são, infelizmente, compostas por frases que nada trazem de novo. mera indicação, reprodução literal, ou então, nos casos de maior sofisticação, por meio de simples c) invocar motivos que se prestariam a justi- paráfrase. Justificativas dessa natureza nada sig- ficar qualquer decisão (CPC, art. 489, § 1º, inci- nificam, porque não aportam à decisão qualquer so III). Apenas frases prontas na motivação merecem informação significativa a respeito da incidência repúdio, porque nada elucidam e dão a nítida e ou não de referido dispositivo legal ao caso con- frustrante impressão de que o julgador nada exa- creto. Se o juiz, ao justificar sua decisão, se limitar minou nos autos. Algumas decisões são, infeliz- a indicar a norma aplicável ao caso e não indicar o mente, compostas por frases que poderiam estar em porquê de sua incidência ao caso concreto, a par- todo e qualquer ato decisório e nada trazem de novo. te que sucumbiu não terá condições de conhecer d) não enfrentar todos os argumentos deduzi- qual é o bem da vida efetivamente outorgado à dos no processo capazes de, em tese, infirmar a parte vitoriosa, não conhecerá qual o fato prin- conclusão adotada pelo julgador (CPC, art. 489, cipal que levou àquela decisão nem tampouco a § 1º, inciso IV). Esse vício de motivação representa prova que foi determinante para esse resultado. acima de tudo uma negativa de prestação da tute- b) utilização de conceitos indeterminados la jurisdicional e uma violação direta ao princípio sem explicar o motivo concreto de sua incidên- do contraditório, pois este também deve ser com- cia no caso (CPC, art. 489, § 1º, inciso II). A utili- preendido como o direito das partes de obterem zação de termos jurídicos indeterminados implica manifestação judicial a respeito das alegações que o deslocamento de competência decisória do Le- elas reputam sustentar suas pretensões jurídicas. gislativo para o Judiciário, que passa, portanto, a Afinal, de que adianta as Constituições democrá- 23/04/2015 16:28:56 seus direitos fundamentais se os Juízes deixarem um princípio sobre o outro, contudo, não pode se de cumprir a sua missão de resolver os conflitos dar de maneira arbitrária, conforme a conveniência com justiça, respondendo sim ou não aos anseios do magistrado. É preciso que ele explicite cada um das partes? dos passos por ele realizados no juízo de ponderação e) utilizar (ou deixar de utilizar) enunciado de para optar por um ou outro dos princípios em confli- súmula, jurisprudência ou precedente invocado to. Sob a ótica da adequação, o juiz deve demonstrar sem identificar seus fundamentos determinan- em síntese que a medida por ele adotada é apta à tes nem demonstrar que o caso sob julgamento realização do fim almejado e, sob a ótica da necessi- se ajusta (ou não) àqueles fundamentos (CPC, dade, ele deve analisar as medidas alternativas a essa art. 489, § 1º, incisos V e VI). Sejam as manifes- e que possam promover o mesmo fim sem restringir, tações judiciais consideradas fontes de direito ou na mesma intensidade, os direitos fundamentais em não, fato é que cada vez mais a elas se faz refe- conflito, e por fim, ao realizar o exame da proporcio- rência nas decisões judiciais. Os magistrados, nalidade em sentido estrito, o magistrado deve res- contudo, para que suas decisões sejam reputadas ponder em síntese à seguinte pergunta para que sua como justas, ao utilizarem determinada norma ju- decisão possa ser considerada motivada: “o grau de risprudencial, têm o ônus de demonstrar as razões importância da promoção do fim justifica o grau da sua aplicação ou não ao caso concreto, o que de restrição causada aos direitos fundamentais?”.9 implica a necessidade de analisar as particularidades de cada caso, do precedente e do caso em 5 À guisa de conclusão exame, para demonstrar que em função da similitude fática entre eles é justificável a aplicação da A atividade de fundamentação das decisões mesma razão de decidir. Além disso, caso se con- judiciais acompanha o contexto sociocultural em sidere que o entendimento jurisprudencial aplicá- que inserido o processo estatal de resolução de vel a princípio ao caso encontra-se superado, tem controvérsias. Na atual configuração do Estado o magistrado o dever de demonstrar, no caso de Constitucional brasileiro, não se pode conceber superação do entendimento, quais as razões que a figura de um juiz que resolva os conflitos jurídi- o levaram a não aplicar a regra jurisprudencial ao cos que lhe são submetidos sem explicitar de ma- caso concreto. Só assim, a parte que sucumbiu neira adequada os motivos determinantes que o terá condições de se insurgir contra essa decisão levaram a agir dessa maneira. Por conta da função para demonstrar que a superação apontada pelo bloqueadora do contraditório, não deve ser consi- magistrado não encontra correspondência na rea- derada motivada a decisão que de alguma maneira lidade e, portanto, não se justifica. impossibilite a insurgência da parte que sucumbiu f) no caso de colisão entre normas, o juiz porque dela foi suprimida informação relevante deve justificar o objeto e os critérios gerais da do convencimento judicial. Por isso o NCPC ca- ponderação efetuada, enunciando as razões que minhou muito bem ao estabelecer hipóteses em autorizam a interferência na norma afastada e que não serão consideradas motivadas as decisões as premissas fáticas que fundamentam a conclu- judiciais. Se todas essas hipóteses puderem ser são (CPC, art. 489, § 2º). É ínsito aos princípios agrupadas sob um só lema, podemos afirmar que jurídicos um estado latente de tensão e de confli- não será considerada motivada decisão que não se M o t i v a ç ã o d a s d e c i s õ e s ju ríd icas e o co n traditório: iden tificação das decisões i m o t i v a d a s d e a c o r d o c om o NCP C. to uns com os outros. A opção pelo predomínio de 173 Revi s t a d o A d v o g a d o ticas consagrarem o acesso à justiça como um de atenta às peculiaridades do caso concreto, porque 9.Ver: ÁVILA, 2009, cap. 2, n. 2.4.8.1.3, p. 175 e ss. Livro_126.indb 173 isso implica violação ao contraditório. 23/04/2015 16:28:56 M o t i v a ç ã o d a s d e c i s õ e s ju ríd icas e o co n traditório: iden tificação das decisões i m o t i v a d a s d e a c o r d o c o m o NCP C. Bibliografia ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale civile. 8. ed. Padova: Cedam, 1996. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O juízo de admissi- SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo bilidade no sistema dos recursos civis. Rio de Janeiro, civil brasileiro, um estudo sobre a posição do réu. São Paulo: 1968. CRUZ E TUCCI, José Rogério. A motivação da sentença no processo civil. São Paulo: Saraiva, 1987. Atlas, 2011. TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova: Cedam, 1975. Re v is t a d o A d v o g a d o 174 Livro_126.indb 174 23/04/2015 16:28:56 A notações sobre a prova no Novo CPC. Sumário 1.Posicionamento da matéria e estrutura geral 2.Previsão da “ata notarial” como específico meio de prova 3.Regulamentação da prova emprestada 4.Incorporação da teoria das cargas probatórias dinâmicas 5.Ampliação dos poderes do juiz em matéria de instrução probatória quanto aos terceiros da urgência 7.Depoimento pessoal, prova testemunhal e acareação por meio de videoconferência 8.Produção da prova testemunhal 9.Produção da prova pericial 10.À guisa de conclusão 175 Revi s t a d o A d v o g a d o 6.Produção antecipada de prova sem o requisito 1 Posicionamento da matéria e estrutura geral Ricardo de Barros Leonel Professor associado do departamento de Direito A matéria foi tratada na Parte Especial do Processual da Faculdade de Direito da Universidade Novo Código de Processo Civil (NCPC) (Lei nº de São Paulo. Promotor de Justiça-SP. 13.105, de 16 de março de 2015) e, nesta, no Livro I (“Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença”), Título I (“Do procedimento comum”), posicionada como Capítulo XI deste Título, sob a rubrica “Das provas”. Há uma seção (Seção II) que trata especificamente da “Produção antecipada da prova” (arts. 381 a 383), matéria esta que, no CPC/1973, era disciplinada no “Processo Livro_126.indb 175 23/04/2015 16:28:57 Cautelar”, no Livro III (arts. 796 e ss.; a produção antecipada de provas, nos arts. 846 a 851). Por outro lado, em tempos em que os meios digitais e eletrônicos de registro de dados e de co- Outras novidades, ainda de ordem geral e municação se tornaram parte do cotidiano de pra- estrutural, são: a) inclusão no contexto da prova ticamente todas as pessoas, torna-se cada vez mais da regra dos poderes instrutórios do juiz (art. 370 frequente a ocorrência de situações cuja divulga- do NCPC, equivalente ao art. 130 do CPC/1973), ção e conhecimento por parte dos interessados ou que era antes tratada no campo dos poderes, de- de terceiros se dão através de meios virtuais. veres e responsabilidades do juiz; b) inclusão no direito probatório da regra do livre convencimento motivado do juiz (art. 371 do NCPC, análogo ao A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. art. 131 do CPC/1973), matéria antes tratada no Rev i st a d o A d v o g a d o 176 âmbito dos poderes, deveres e responsabilidades do magistrado. A prova testemunhal deve ser produzida mediante a coleta das declarações na presença das partes e do juiz. 2 Previsão da “ata notarial” como específico meio de prova Tomemos como exemplo hipótese em que a ofensa à honra de determinada pessoa ocorra O NCPC prevê, no art. 384, que “a existência através dos meios de comunicação digital (“redes e o modo de existir de algum fato podem ser do- sociais”). Imaginemos ainda a hipótese em que a cumentados, a requerimento do interessado, por comunicação entre pessoas de empresas diversas, meio de ata lavrada por tabelião”, dispondo o res- a respeito de fatos relacionados ao cumprimento pectivo parágrafo único que “dados representados de contrato, seja objeto de diálogo digital. por imagem ou gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial”. A possibilidade do registro notarial daquilo que constar em correspondências eletrônicas ou A menção a tal meio de prova certamente eli- em publicações realizadas pelas pessoas envolvi- minará discussões ainda hoje enfrentadas quanto das nas denominadas redes sociais dá força e con- à possibilidade de se considerar como prova, por cretiza de modo prático a via pela qual a prova exemplo, o comparecimento de pessoas ao tabelio- de tais ocorrências pode ser, com simplicidade, nato para declarar conhecimento sobre a existência elaborada. e o modo de ser de determinados fatos. Claro que a prova testemunhal deve ser produzida na forma 3 Regulamentação da prova emprestada prevista na lei processual, mediante a coleta das declarações na presença das partes e do juiz. Daí por No CPC/1973 não há regra tratando dire- que declarações feitas em tabelionato nada mais tamente da determinada prova emprestada. O eram que forma irregular de colher-se prova teste- NCPC cuidou do tema como prova típica. Nesse munhal, não devendo receber positiva valoração. sentido, o art. 372 do NCPC. O legislador acolheu A previsão da “ata notarial” como meio proba- a posição que já era dominante tanto na doutrina tório típico, entretanto, reduz espaço para a crítica como na jurisprudência, no sentido de admitir-se dessa ordem, ainda que não se lhe possa atribuir, a utilização, num segundo processo, de prova pro- quando utilizada para formalizar declarações ex- duzida em outro feito. trajudiciais, o mesmo valor probatório das declarações de testemunhas em audiência judicial. Livro_126.indb 176 Como requisitos para a utilização da prova emprestada, antes da edição do NCPC, costu- 23/04/2015 16:28:57 fosse produzida em processo anterior; b) a parte terior, no segundo processo, no qual ela vai ser no- contra quem se pretendia utilizar a prova tivesse vamente utilizada, quando isso não ocasionar pre- sido também integrante da relação processual for- juízo às partes (é o que se verifica na hipótese da mada naquele feito anterior; c) a prova fosse pro- utilização da prova documental emprestada, pro- duzida licitamente; d) fosse inviável a reprodução duzida antes em outro processo); d) o legislador daquela prova no segundo processo (“irrepetibili- não formulou exigência expressa de que a prova dade” da prova). seja “irrepetível”, ou seja, inviável sua reprodução, O art. 372 do NCPC parece adotar maior fle- exigência que poderia inviabilizar a utilização da xibilidade quanto ao tema, exigindo apenas que prova antes formada em processo distinto, mesmo seja “respeitado o contraditório”. Algumas dúvidas nos casos em que da sua utilização não resultasse surgirão daí, tais como: é possível utilizar prova prejuízo algum para as partes (tome-se novamente emprestada, mesmo que seja viável sua reprodu- o exemplo da prova documental usada em feito ção no segundo feito (por exemplo, a testemunha anterior: quanto à prova documental, o contra- que foi anteriormente inquirida está viva e pode ditório, em qualquer processo, se dá sempre em ser novamente inquirida; o objeto examinado por momento subsequente ao da produção – juntada peritos ainda existe, e pode ser submetido à segun- aos autos). da perícia)? Bastaria o contraditório a posteriori (manifestação das partes, no segundo feito, a respeito daquela prova)? Ou seria imprescindível o 4 Incorporação da teoria das cargas probatórias dinâmicas contraditório efetivo (possibilidade de participação dos interessados no processo e no procedimento no qual a prova foi produzida)? Livro_126.indb 177 O CPC/1973 distribuía de forma estática os encargos probatórios, atribuindo ao autor o ônus O art. 372 do NCPC sinaliza para uma posi- da prova do fato constitutivo do seu direito e ao ção mais flexível, ao não mencionar a exigência réu o ônus da prova dos fatos modificativos, extin- de que a prova não possa ser reproduzida, bem tivos ou impeditivos do direito do autor (art. 333 como ao falar apenas na necessidade de se assegu- do CPC/1973). Ademais, regra específica aplicá- rar o contraditório, deixando de especificar, entre- vel aos litígios na área do Direito do Consumidor tanto, se é exigível o contraditório prévio. já previa a possibilidade de inversão da regra do Nesse quadro podem ser indicados os requisi- ônus da prova nos casos de verossimilhança das tos para o uso da prova emprestada na nova codifi- alegações do consumidor ou de hipossuficiência cação: a) a prova deve ter sido produzida em outro deste (art. 6º, inciso VIII, da Lei nº 8.078/1990). processo (não em simples procedimento investi- Independentemente de previsão legal, corren- gatório), ou seja, processos administrativos, crimi- te doutrinária, contando com o apoio de alguns nais, cíveis, trabalhistas, disciplinares, ou de con- julgados, vinha admitindo que, excepcionalmen- tas (junto aos Tribunais de Contas), que tramitam te, o juiz determinasse a distribuição dos encargos sob o contraditório, e dos quais se pode, ao final, probatórios de modo diverso, com a finalidade obter imposição de conduta ou sanção; b) deve-se de equilibrar, diante do caso concreto, as condi- respeitar o contraditório, o que, em princípio, só ções dos litigantes. Apoiava-se essa linha de en- se verifica quando os interessados são partes no tendimento em argumentos variados, como, por processo anterior em que a prova foi produzida; exemplo, o princípio constitucional da isonomia, c) não se deve descartar, entretanto, a admissão da ou mesmo na ideia de que a ninguém pode ser A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. prova emprestada pelo simples contraditório pos- 177 Revi s t a d o A d v o g a d o mava-se apontar a necessidade de que: a) a prova 23/04/2015 16:28:57 imposto encargo processual do qual não terá con- pode incidir mesmo no momento do julgamen- dições de se desincumbir. to. Na perspectiva das partes, entretanto, o “ônus Os argumentos favoráveis à teoria das cargas pro- subjetivo da prova” deve ser conhecido em tempo batórias dinâmicas não afastavam uma crítica perti- hábil para que o litigante possa cumprir seu en- nente: do modo como essa teoria vinha sendo cons- cargo probatório. truída, conferia praticamente um cheque em branco ao juiz, como se ele pudesse escolher, caso a caso, se deveria cumprir a lei (regra do ônus fixo da prova) ou a Constituição (isonomia), mesmo sem declarar O NCPC inova ao tornar maior o poder do juiz quanto ao terceiro. a lei inconstitucional. Como o NCPC adota regra A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. expressa sobre o tema, a discussão fica superada. Re v is t a d o A d v o g a d o 178 Livro_126.indb 178 Some-se que o art. 373, § 1º, in fine, do NCPC Dessa forma, são requisitos para a “dinamização” prevê que, na hipótese de aplicação da regra da do ônus probatório, nos termos do art. 373, § 1º, do dinamização do ônus da prova, o juiz deve “dar à NCPC, que: a) a distribuição dinâmica seja ne- parte oportunidade para se desincumbir do ônus cessária em função das “peculiaridades da causa, que lhe foi atribuído”. Dessa forma, antes da ins- relacionadas à impossibilidade ou excessiva difi- trução probatória (quando da decisão de sanea- culdade” de se cumprir o encargo na forma tra- mento do processo, ou seja, no momento em que dicional; b) ou haja maior facilidade de obtenção deferir a produção de provas), deverá o juiz alertar da prova do fato contrário àquele que teria, em as partes quanto à possibilidade de aplicação da princípio, que ser provado por uma das partes; c) a inversão. Com isso, assegurará o respeito ao con- inversão do encargo probatório deve ocorrer em traditório relativamente à parte onerada. decisão fundamentada, assegurando-se à parte onerada a possibilidade de se desincumbir do encargo; d) a inversão não pode produzir para qualquer das partes encargo do qual seja impossível ou 5 Ampliação dos poderes do juiz em matéria de instrução probatória quanto aos terceiros excessivamente difícil, para ela, se desincumbir. Um ponto importante diz respeito ao momento da inversão. O art. 341 do CPC/1973 já estabelecia o dever do terceiro de informar ao juízo fatos e cir- O problema é que a disposição processual refe- cunstâncias das quais tivesse conhecimento, rente ao ônus da prova contempla duas diretrizes bem como de exibir coisa ou documento que distintas: a primeira, que pode ser chamada de tivesse em seu poder. Previa ainda, no art. 362, “ônus objetivo da prova”, que nada mais é que uma que, havendo recusa do terceiro, sem justo mo- regra de julgamento, da qual o juiz só deve se valer tivo, em efetuar a exibição, “o juiz lhe ordenará para evitar o pronunciamento do non liquet, veda- que proceda ao respectivo depósito em cartório do em nosso sistema (art. 126 do CPC/1973; art. ou noutro lugar designado, no prazo de 5 (cinco) 140 do NCPC); a segunda, que pode ser chamada dias”, bem como que, se o terceiro descumprir a de “ônus subjetivo da prova”, é diretriz endereçada ordem, “o juiz expedirá mandado de apreensão, às partes, que devem saber, de antemão, os fatos em requisitando, se necessário, força policial, tudo relação aos quais recaem seus encargos probatórios, sem prejuízo da responsabilidade por crime de para que deles possam se desvencilhar. obediência”. Do ponto de vista da atividade jurisdicional, a Em função dessas disposições, a jurisprudên- regra de julgamento (“ônus objetivo da prova”) só cia se cristalizou no sentido da impossibilidade de 23/04/2015 16:28:57 multa, contra o terceiro, dada a ausência de previ- produção antecipada de provas (art. 381, incisos são nesse sentido. O Superior Tribunal de Justiça I, II e III, e § 5º): a) quando houver fundado re- (STJ), a propósito, editou a Súmula nº 372, pela ceio de que venha a tornar-se impossível ou mui- qual, “Na ação de exibição de documentos, não to difícil a verificação dos fatos na pendência da cabe a aplicação de multa cominatória”. ação; b) quando a prova seja suscetível de viabi- O NCPC inova ao tornar maior o poder do lizar a autocomposição ou outro meio adequa- juiz quanto ao terceiro. O art. 380 do NCPC rei- do de solução do conflito; c) quando o prévio tera o dever do terceiro de informar ao juiz fatos e conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar circunstâncias de que tenha conhecimento, bem o ajuizamento da ação; d) quando alguém pre- como de exibir documento ou coisa que esteja tender justificar a existência de algum fato ou em seu poder. Vai além, entretanto, prevendo o relação jurídica para simples documentação e respectivo parágrafo único que, em caso de des- sem caráter contencioso. cumprimento da ordem, poderá o juiz determinar A primeira das hipóteses anteriormente discri- ao terceiro “além da imposição de multa, outras minadas (a) tem natureza nitidamente cautelar. medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou As outras hipóteses (b, c e d) não têm natureza sub-rogatórias”. cautelar, cuidando-se apenas de se assegurar aos Observe-se que a expressa previsão da possibi- interessados a possibilidade de registro dos fatos lidade da aplicação da multa cominatória contra ou obtenção de esclarecimentos quanto a eles, o terceiro neutraliza a posição jurisprudencial como direito autônomo (o chamado “direito autô- contida na Súmula nº 372 do STJ, deixando claro nomo à prova sem o requisito da urgência”), faci- o dever de todos, inclusive daqueles que não são litando-se a composição extrajudicial de conflito partes no processo, de atender as determinações iminente, ou mesmo que através do prévio escla- judiciais, respeitando a autoridade das decisões recimento dos fatos seja justificado ou evitado o advindas do Poder Judiciário. ajuizamento da ação. Não bastasse isso, deve ser destacado o caráter Interessante e oportuna, dadas as peculiarida- exemplificativo das expressões contidas no pará- des da produção antecipada de provas, a fixação grafo único do art. 380 do NCPC, que fala no ca- da competência alternativa do juízo do foro onde bimento da imposição de multa ao terceiro, mas a prova deve ser produzida ou do foro do domicí- também de “outras medidas indutivas, coercitivas, lio do réu (art. 381, § 2º). Igual avaliação merece mandamentais ou sub-rogatórias”. a possibilidade de produção antecipada de prova A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. O art. 381 do NCPC disciplina os casos de 179 Revi s t a d o A d v o g a d o imposição de outras medidas coercitivas, como a requerida em face da União, entidade autárquica 6 Produção antecipada de prova sem o requisito da urgência ou empresa pública federal na Justiça estadual, se na localidade não houver vara da Justiça federal (art. 381, § 4º, do NCPC). São alternativas desti- A matéria deixou de ser tratada como espécie de procedimento cautelar, como ocorria no Livro_126.indb 179 nadas à simplificação, fundadas no art. 109, § 3º, da Constituição Federal. CPC/1973 (arts. 846 a 851), vindo para o âmbito Em consonância com esse quadro, fica excluí- do processo de conhecimento, inserida no contex- da a prevenção para futura ação de conhecimento to da disciplina do direito probatório (arts. 381 a relacionada aos mesmos fatos que tenham sido 383 do NCPC), em seção especificamente desti- objeto da instrução probatória antecipada (art. 381, nada ao tema. § 3º, do NCPC). 23/04/2015 16:28:57 7 Depoimento pessoal, prova testemunhal e acareação por meio de videoconferência O texto legal do Novo Código estabelece expressamente a possibilidade do uso da videoconferência. Nesse sentido os arts. 385, § 2º, 453, § 1º, e 461, § 2º, do NCPC. Essa é uma novidade importante. Elimina A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. qualquer discussão sobre a viabilidade ou não do uso do referido meio eletrônico de comunicação para oitiva de partes e testemunhas que se encontrem em local distante, evitando a necessidade de expedição de cartas precatórias ou rogatórias. Pelo art. 459 do NCPC, as perguntas passam a ser feitas pelas partes diretamente às testemunhas. Re v is t a d o A d v o g a d o 180 Há, nesse mecanismo, potencial para tornar mais célere a conclusão da instrução, bem como manter o juiz em contato “direto” (ainda que, paradoxalmente, por meio virtual de comunicação) com a prova a ser colhida por meio do depoimento pessoal e da oitiva de testemunhas. 8 Produção da prova testemunhal A parte pode, ainda, comprometer-se a apresentar a testemunha independentemente de intimação, caso em que o não comparecimento injustificado gera presunção de desistência da inquirição (art. 455, § 2º, do NCPC). A inércia na realização da intimação também gera presunção de desistência quanto à oitiva da testemunha (art. 455, § 3º, do NCPC). A regra passa a ser que as intimações não são feitas pelo cartório judicial. A exceção – realização das intimações por mandado – se aplicará apenas às seguintes situações previstas de modo expresso no art. 455, § 4º, do NCPC. Pelo art. 459 do NCPC, as perguntas passam a ser feitas pelas partes diretamente às testemunhas, e não mais por intermédio do juiz, ao qual fica o encargo, exclusivamente, de fiscalizar o desenvolvimento da inquirição, a fim de evitar abusos e constrangimentos indevidos aos inquiridos. Trata-se da denominada cross-examination (exame ou inquirição cruzada, em tradução literal), utilizando a referência terminológica dos sistemas de common law, que já vinha ocorrendo entre nós no processo penal, desde a reforma realizada há alguns anos (art. 212 do Código de Processo Penal, redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008). 9 Produção da prova pericial Adota o NCPC, de forma expressa, a possibilidade de realização em audiência da “prova técnica simplificada”, que, nos sistemas de common No que se refere à produção da prova testemu- law, é usualmente referida como expert witness nhal, há modificações importantes, embora singe- (ou, em tradução literal, a “testemunha-perito”), las, como se percebe do cotejo com o CPC/1973. A que presta esclarecimentos em juízo não por ter primeira delas é que as testemunhas arroladas pelas testemunhado o fato a ser comprovado, mas por partes deverão, preferencialmente, ser intimadas ter conhecimento técnico que a habilita a elucidar pelo próprio advogado da parte que as arrolou, me- pontos que não são alvo de conhecimento comum diante carta com aviso de recebimento, que deverá dos homens, entre eles juízes, partes e seus patro- ser juntado aos autos, com a cópia da carta de inti- nos. É o que dispõe o art. 464, § 2º, do NCPC. mação, até três dias antes da realização da audiência para sua inquirição (art. 455, § 1º, do NCPC). Livro_126.indb 180 Ainda sobre o tema, os §§ 3º e 4º do mesmo artigo estabelecem que “a prova técnica simplifi- 23/04/2015 16:28:57 cada consistirá em inquirição pelo juiz de espe- Há ainda, na nova lei, a previsão da “perícia cialista sobre ponto controvertido da causa, que consensual”: sendo as partes plenamente capa- demande especial conhecimento técnico ou cien- zes, e admitindo a causa autocomposição, pode- tífico”, e ainda que o especialista, que deverá ter rão indicar perito em comum acordo (art. 471 do formação acadêmica específica na área objeto de NCPC). seu depoimento, poderá “valer-se de qualquer re- Passa a ser possível, ademais, a dispensa de pro- curso tecnológico de transmissão de sons e ima- va pericial, quando as partes, na inicial e na con- gens com o fim de esclarecer os pontos controver- testação, trouxerem, a respeito das questões de fato, tidos da causa”. pareceres técnicos ou documentos elucidativos que consistir não apenas em esclarecimentos verbais, Trata-se de tentativa de simplificação, maior mas sim em exposição técnica circunstanciada, agilidade e barateamento do processo, que com apoio de aparato logístico, apto a elucidar de poderá, evidentemente, ser objeto de crítica e modo técnico a verdadeira dimensão e modo de ser render ensejo a impugnações fundadas no cercea- de aspectos intricados das alegações relativas aos mento do contraditório e da amplitude do di- fatos que são objeto da instrução probatória. reito à prova. É bem sabido que no CPC/1973 havia a pre- A autorização legal poderá ser útil, mas a visão, no art. 435, de que as partes poderiam soli- dispensa da realização da prova pericial em juí- citar ao juiz que determinasse o comparecimento zo, a pretexto da existência de pareceres técni- do perito ou assistente técnico à audiência, a fim cos, produzidos extrajudicialmente, é medida de que estes prestassem esclarecimentos. Tais es- cuja utilização deve ocorrer com ponderação, clarecimentos, entretanto, tinham natureza niti- evitando-se o cerceamento indevido do efetivo damente complementar relativamente ao laudo contraditório em juízo. (perito) ou parecer (assistente técnico) já apresentado, não podendo, pura e simplesmente, substi- 10 À guisa de conclusão tuir a prova pericial. A novidade trazida pelo art. Livro_126.indb 181 464 do NCPC tem alcance muito maior que a Sem pretensão de esgotar o tema, ficam aqui simples convocação de peritos ou assistentes téc- averbadas algumas das novidades mais importan- nicos para esclarecimentos complementares. tes do NCPC em matéria probatória. A n o t a ç õ e s s o b r e a p r o v a n o No vo CP C. o juiz considerar suficientes (art. 472 do NCPC). 181 Revi s t a d o A d v o g a d o Em outras palavras, o testemunho poderá 23/04/2015 16:28:57 A distribuição dinâmica do ônus da prova e o Novo CPC. Sumário 1.Introdução 2.Inversão do ônus da prova e julgamento com base em “verossimilhança”: esclarecimentos iniciais 3.Dinamização do ônus da prova 3.1.A recepção da teoria no Brasil 3.2.Requisitos e desdobramentos práticos 4.Considerações finais Bibliografia Revi s t a d o A d v o g a d o 182 1 Introdução Ronnie Preuss Duarte Sem pretender reduzir os horizontes probató- Mestre em Ciências Jurídicas. Diretor da Escola rios do processo à repartição dos ônus (estática Judiciária Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral ou dinâmica), isto é, sem olvidar um direito pro- de Pernambuco (TRE-PE). Membro do Conselho de Relações Internacionais da REPRO. Membro da cessual subjetivo à prova (CAMBI, 2001, p. 45 e Associação Norte e Nordeste de Professores ss.), este trabalho enfoca a teoria da distribuição de Processo (Annep). Advogado em Pernambuco. dinâmica dos encargos probatórios; conquanto Mateus Costa Pereira essa teoria não seja novidade entre nós, agora vem Mestre em Direito Processual. Professor de Pro- disciplinada no Novo Código de Processo Civil cesso Civil da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Membro da Associação Norte e (CPC). Nosso intento é fazer um bosquejo dou- Nordeste de Professores de Processo (Annep). trinário diante da singular relevância do assunto, Advogado. refletindo o novo texto normativo à luz das principais correntes formadas sobre o tema no Brasil. O tema exige cautela; respeitosa doutrina já afirmou que a matéria é uma das mais complexas no âmbito do Direito Processual (TARUFFO, 2012, p. 260). No curto espaço de um artigo, não tencionando exaurir o tema – o que não conduz a uma necessária abordagem rasteira –, também iremos Livro_126.indb 182 23/04/2015 16:28:57 estremar o instituto de outros assuntos afins e que, contrastando à própria ideia de instrumen- apresentar alguns desdobramentos práticos da di- talidade, é indiferente à riqueza do direito material namização. Segue. (DALL’AGNOL JR., 2001; KNIJNIK, 2006; DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2013, v. 2, p. 88); 2 Inversão do ônus da prova vale dizer, o legislador conferiu tratamento uni- e julgamento com base em “verossimilhança”: esclarecimentos iniciais entre as partes (paridade significando que “todas as partes que atuam no processo devem dispor Ônus é um “encargo atribuído à parte e ja- de oportunidades processuais preordenadas e si- mais uma obrigação”; encargo, isto é, carga ou métricas” – CRUZ E TUCCI, 2010). Ademais, peso, cuja não desincumbência pode levar a um a regra pressupõe uma simplicidade e repetição 1 prejuízo; pode, não necessariamente traduz um. das situações da vida. Em síntese, o preceito en- Nessa perspectiva, ônus não se confunde com carna uma lupa redutora da complexidade (ri- obrigação, pois no último caso a desobediência queza da vida). Por algum tempo acreditou-se implica um resultado negativo ou mesmo à sorte que a regra estática seria temperada pelo prin- da reprimenda judicial (DALL’AGNOL JR., 2001; cípio da aquisição ou comunhão da prova; algo KNIJNIK, 2006; THEODORO JR., 2010, v. 1, p. 432; que, sob a perspectiva da isonomia, decerto que DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, 2013, v. 2, p. 81). não funcionou. Os ônus também distam das obrigações pelos in- Muito bem. teresses que são tutelados; no primeiro caso, da própria parte, e no último, de terceiros. Há várias situações de ônus processuais entre nós, podendo-se citar a apresentação: de defesa, da “réplica”, de um recurso, a produção de prova, etc. – os ônus vêm atrelados às faculdades (poder). Particularizando ao tema do ônus da prova, Ônus não se confunde com obrigação, pois no último caso a desobediência implica um resultado negativo. o CPC/1973 adotou a conhecida regra estática de atribuir o encargo probatório a quem alega; A única concessão feita pelo legislador do os dois incisos do art. 333 refletem essa diretiva CPC/1973 sobre o tema consta do parágrafo úni- (SANTOS, 1952, v. 1, p. 144-145; SILVA, 2008, v. 1, co do art. 333, ao permitir um negócio jurídico t. I, p. 267) – isso sob a dimensão subjetiva (par- que altere a regra do caput, a chamada “conven- tes), mas sem olvidar a dimensão objetiva do ônus ção sobre o ônus da prova”. Todavia, malgrado (julgamento) (BARBOSA MOREIRA, 1980) –, se desconheçam estatísticas sobre o assunto, essa consubstanciada no brocardo onus probandi também aparenta ser uma situação de rara ocor- incubit ei qui dicit. Contudo, a opção legislativa rência, revelando, mais uma vez, o compromisso é criticada por sua artificialidade, na medida em ideológico do legislador com uma suposta igual- 183 Revi s t a d o A d v o g a d o pressupõe uma paridade – perpétua – de armas A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. forme a todas as situações, o que, de certa forma, dade entre as partes – aqui, em sentido negocial. 1. Com o cuidado de observar, com apoio em Dinamarco (2004, p. 85), que o ônus pode ser “relativo” (ex.: ônus da prova) ou “absoluto” (ex.: não apresentação de apelação diante de uma sentença desfavorável). No último caso, continua o autor, as consequências da inércia são inevitáveis, fatais. Livro_126.indb 183 Até então não se falava em inversão do ônus da prova, seja legal (ope legis; apriorística (em abstrato) ou jurisdicional (ope iudicis; posteriorística (em concreto)). 23/04/2015 16:28:57 Coube ao legislador do Código de Defesa do demonstração da verdade para algumas situações Consumidor (CDC) ampliar os horizontes no (ex.: lesões pré-natais (demonstração de que os campo dos ônus probatórios, sensível à relevância problemas de saúde numa criança foram ocasio- da distribuição do onus probandi para a potencial nados em virtude de lesões suportadas pelo feto justiça da decisão a ser proferida (RANGEL, 2002, durante a gestação – prova da causalidade)), senão p. 101). Alinhado aos anseios protetivos, sobretudo que o julgamento tenha fundamento apenas na ao acesso à justiça do consumidor, o art. 6º, inci- prova de verossimilhança daquilo que é afirmado. so VIII, do CDC permite a inversão do ônus da Claramente, não há como confundir a propos- prova – ope iudicis – sempre que demonstrada a ta defendida pelos autores ao tema da inversão, hipossuficiência ou a verossimilhança das alega- já que uma coisa é a alteração da convicção do ções. O preceito em questão somente pode ser magistrado (verdade ou verossimilhança) e, pois, aplicado diante de uma dessas situações, havendo, daquilo que deverá ser demonstrado nos autos; inclusive, um ônus do pretenso beneficiário em coisa diversa é saber quem está encarregado de A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. 2 Rev i st a d o A d v o g a d o 184 3 4 5 demonstrar uma delas no caso concreto. Algu6 mas polêmicas marca(ra)m o tema da inversão do ônus da prova, mas uma análise miúda desborda de nossos propósitos. Sobre ampliar os poderes do magistrado, a inversão pressupõe a ocorrência de uma das situações descritas em lei; fora delas não é possível ao magistrado reverter a carga probatória. Nessa esteira, conquanto forte, não soa absurdo afirmar que, em certa medida, o móvel da regra encartada no CDC também é estático: inverte-se o ônus (redistribuição estática), apenas em benefício do consumidor, se, e somente se, demonstrada uma situação de fato que espelhe o requisito A ou o requisito B – e o processo continua sendo encarado sob uma lupa redutora da complexidade... E se não se tratar de uma relação de consumo? E se não for o caso de hipossuficiência ou de verossimilhança das alegações e, nada obstante, a aplicação do art. 333, CPC, inviabilizar o pleno exercício do contraditório ou de outro direito processual fundamental? Responderemos a essas indagações em momento oportuno. Por último, nenhuma dessas situações se mistura à redução das exigências probatórias (redução do módulo da prova) rumo à aceitação de definitividade dos juízos de verossimilhança. Entre nós, a teoria é encabeçada por Marinoni e Arenhart (2009), os quais preconizam seja dispensada a Livro_126.indb 184 2.Nesse sentido, lembra Rui Rangel (2002, p. 101) ser “acertado afirmar-se que quanto melhor forem apuradas (e mais perfeitas) as regras de regulação do ónus da prova, mais se aproxima a decisão da verdade material possível, ou seja, mais justa será, com certeza, a decisão”. 3. O CDC também traz hipóteses de inversão legal (ex.: art. 12, § 3º; art. 14, § 3º, etc.), mas sua análise ressai de nossos objetivos. A título de esclarecimento, o legislador pode atribuir a negativa do fato constitutivo ao réu (o § 3º do art. 12, CDC, imputa ao “fabricante, construtor, produtor ou importador” a prova, por exemplo, de que o produto colocado no mercado não apresenta defeito). No particular, ela se aproxima da “presunção legal relativa”, se é que com ela não se confunda. No sentido de ser uma presunção legal relativa, com a qual concordamos: DIDIER JR.; BRAGA; OLIVEIRA, op. cit., p. 89. 4. O que, a nosso ver, não pode ser confundido com a vulnerabilidade; todo consumidor é vulnerável – a própria legislação protetiva tem isso como premissa –, mas não é, necessariamente, hipossuficiente. Também nesse sentido: THEODORO JR., op. cit., p. 435. E também Miragem (2008, p. 136), para quem a vulnerabilidade é presumida no plano do direito material, e a hipossuficiência depende de demonstração no caso concreto. Já Cláudia Lima Marques (2009, p. 63) se refere à hipossuficiência como “espécie de vulnerabilidade processual”. 5. O id quod plerumque accidit: aquilo que normalmente ocorre. Na precisa lição de Taruffo (2012, p. 111): “se considera verossímil aquilo que corresponde à normalidade de certo tipo de comportamentos ou de acontecimentos”. A verossimilhança, pois, pressupõe que o evento seja “repetível”, que se enquadre na “normalidade”. Daí por que, assevera o mesmo doutrinador, a verossimilhança não tem nada a ver com a veracidade ou falsidade do fato afirmado. 6. Há divergências interpretativas sobre o alcance da “hipossuficiência”. Alguns autores entendem que apenas a hipossuficiência econômica poderia autorizar a inversão (MARINONI, 2009), ao passo que outros também trabalham com a ideia de uma hipossuficiência técnica. Criticando a restrição à hipossuficiência econômica e falando que o verdadeiro problema situa-se no campo do conhecimento do consumidor (de ordem técnica ou científica): DALL’AGNOL JR., op. cit. Com sentido similar, apontando como causas a hipossuficiência econômica, social e mesmo cultural, é o alvitre de Klippel e Bastos (2011, p. 342-343), os quais asseveram que o requisito somente pode ser aferido corretamente em confronto à parte adversa da relação processual. 23/04/2015 16:28:57 suposta pelo direito material e processual. Em ca dizer que outras tantas situações foram deixadas suma, o que os referidos doutrinadores professam à margem de uma moderna técnica processual, é uma flexibilização no paradigma da convicção sendo suficiente citar os inúmeros casos de prova judicial, haja vista a falta de racionalidade de sua diabólica (“vício de inesclarecibilidade”); ou mes- observância uniforme para todos os casos (MARI- mo de situações peculiares do direito material em NONI; ARENHART, 2009, p. 204-209), pois há que, ao menos em tese, a inversão do ônus não situações em que a convicção de verdade e, pois, é aplicável. Ora, pelo ordenamento processual do a prova com esse fito – não apenas no atual con- CPC/1973, diante de uma situação em que é di- texto tecnológico – é sobremodo difícil ou impos- fícil ou quase impossível a alguém produzir uma sível para qualquer das partes. No ensejo, é o que determinada prova, mas sendo possível à parte ad- ocorre com clareza na tutela inibitória pura (tute- versa produzir a contraprova (a negativa do fato), la contra a ameaça de um ilícito) que, voltando-se a situação jurídica acabava sendo absorvida pela para o futuro, indiscutivelmente, reclama a dimi- regra genérica do art. 333, CPC/1973, resolvendo- nuição do módulo da prova. -se na pura abstração ali estatuída – em geral, os Muito bem. pretórios não perfilham a construção doutrinária pelo afastamento do dispositivo em virtude de O mais longe que o legislador processual caminhou foi admitir a convenção acerca do ônus. sua não recepção circunstancial, defendido por Macêdo e Peixoto (2014, p. 205) como o único método juridicamente viável para o afastamento da distribuição estática. Como visto, o mais longe que o legislador processual caminhou foi admitir a convenção acerca do ônus. As situações encimadas não se confundem Diante desse cenário, no início da década de com a dinamização – objeto do próximo item. Por 1990, ecoando a doutrina argentina da distribui- ora, importante consignar que ela guarda mais ção dinâmica das cargas probatórias, já era possí- proximidade com a inversão, na medida em que vel encontrar vozes entre nós que censuravam a também é posta como alternativa à distribuição exegese do código que somente alcançava a dis- estática dos ônus probatórios. tribuição estática, isto é, defendendo que a nossa A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. matéria ambiental (REsp nº 972.902-RS). Signifi- 185 Revi s t a d o A d v o g a d o demonstrar essa verdade ou verossimilhança pres- legislação também recepcionava a distribuição di- 3 Dinamização do ônus da prova nâmica. É nesse sentido a preleção de Dall’Agnol Jr. (2001), o qual, num dos primeiros trabalhos pu- 3.1. A recepção da teoria no Brasil Livro_126.indb 185 blicados sobre a dinamização no Brasil, criticava A despeito das polêmicas em derredor do tema os intérpretes que ignoravam os poderes instrutó- da inversão do ônus da prova, o estado atual de rios do magistrado (art. 130, CPC/1973): na “vi- arte arrima uma aplicação restrita em nosso orde- são tradicional, a incidência do art. 333, do CPC, namento jurídico. Por conseguinte, esse instituto ostentar-se-ia inexorável; e asséptica, porque de com envergadura para densificar o acesso à justi- resolução em abstrato, sem consideração para o ça, mesmo com o advento do CDC, não mudou caso concreto”. Para o mesmo autor, a teoria que é a realidade dos litigantes em geral, senão dos con- tributada a Jorge W. Peyrano – senão como autor, sumidores que demonstrem a presença de um dos decerto que um dos principais difusores –, mal- requisitos – consignando que há precedente em grado a ausência de previsão expressa, retiraria 23/04/2015 16:28:57 A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 186 seu fundamento dos poderes instrutórios; todo configuração do dano moral – todas situações de magistrado, pois, teria poderes para redistribuir os larga ocorrência e que podem gerar dificuldades ônus atento às circunstâncias do caso. probatórias.8 Motivado por situações da vida ou do direito Rigorosamente, a dinamização do ônus da material em que sobreleva a dificuldade probató- prova não é uma novidade entre nós, na medida ria, não é incomum o próprio legislador (de di- em que, timidamente, já vinha sendo aplicada reito material) abrandar alguns requisitos, o que, pela jurisprudência atenta a algumas situações de reflexamente, afeta o objeto da prova; a evolução probatio diabolica,9 o que, inclusive, retiraria fun- do Direito em atenção à complexidade social damento do próprio inciso II do parágrafo único pode conduzir a essas reformas. Nesse contexto, do art. 333, CPC/1973 (KNIJNIK, 2006). De toda figure-se o exemplo da teoria da responsabili- sorte, agora vem disciplinada pelo Novo CPC. dade civil, cujo longo percurso evolutivo levou Antes de seu advento, façamos novo registro, mui- à presunção de culpa nalguns casos, seguindo à tas vozes já conclamavam sua aplicabilidade no formulação da responsabilidade objetiva (teoria Direito brasileiro, mormente para garantir a iso- do risco) e, ainda, à responsabilidade pelo risco nomia no plano dos ônus probatórios (KNIJNIK, integral (SCHREIBER, 2007, p. 16 e ss.). Essas 2006; MACÊDO; PEIXOTO, 2014, p. 160). To- situações, de nítidos reflexos no Direito Proces- davia, sabe-se que muitos operadores ainda não se sual, decerto que facilita(ra)m a atuação da parte interessada em juízo; mas são situações, é importante enaltecer, que não se confundem com o regramento de Direito Processual Probatório, pois a flexibilização é do próprio direito material, que não exige a demonstração de culpa (teoria do risco) ou que nem sequer admite a alegação de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima (teoria do risco integral). No particular, o alvitre é do legislador, e não do magistrado – cediço que o legislador não é um ser iluminado como, justamente, era pregado pelo racionalismo iluminista, recordando as influências ideológicas subjacentes à codificação (SILVA, 2006, passim) –, de modo que outras situações continuam sendo deixadas à sua margem. De nossa parte, deparamo-nos com diferentes situações de dificuldade probatória que não contaram com a “clarividência” do legislador e tampouco se enquadram numa relação de consumo. Figuremos três situações comuns do cotidiano: prova de fato negativo; 7 demonstração dos requisitos à configuração da fraude contra credores (eventus damini + consilium fraudis e scientia fraudis); demonstração de dor, sofrimento, angústia, etc. à Livro_126.indb 186 7. Com necessários temperamentos nesses casos, pois não são todos os casos de fatos negativos que, necessariamente, motivam a alteração do ônus, senão os fatos “negativos indefinidos”. Há casos em que a prova do fato negativo alocado como fato constitutivo do direito pode ser realizada pela demonstração de um fato afirmativo. Assim, por exemplo, a pessoa alega que não praticou uma infração de trânsito naquele determinado dia e hora na cidade de Belo Horizonte, porque, por exemplo, estava em outro local ou outra cidade no mesmo horário. Situação diversa, por exemplo, é aquela em que se alega que não recebeu a notificação de infração no prazo de 30 dias, porque nem sequer foi recebida qualquer notificação à ciência do ocorrido e apresentação de defesa. No primeiro caso há um fato afirmativo correlato; no segundo, não. Sem ignorar que o ordenamento também oferece mecanismos específicos à demonstração de alguns fatos negativos, como é o caso das certidões negativas. 8.Sem ignorar que, em se tratando de dano moral, a jurisprudência, tentando corrigir um erro, consagra a teoria do dano moral in re ipsa nalguns casos. Por certo que dano moral nunca deveria estar atrelado à demonstração de dor ou qualquer outra situação anímica. O erro está na origem. (Sobre o tema, mais uma vez, cf. Schreiber, op. cit., passim.) E quanto à prova do fato negativo, também há julgados entendendo que o ônus pode ser invertido. 9. Foi o que sinalizou a ministra Nancy Andrighi em voto exarado no REsp nº 896.435, seguido pelos demais pares da 3ª Turma. Na ocasião, muito embora não tenha havido a aplicação direta da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova para solucionar o caso em exame, essa teoria foi um dos fundamentos invocados para que fosse decretada a invalidação da sentença. Em suma, entendeu-se que o magistrado procedeu com error in procedendo, pois teria outras “alternativas” processuais à sua disposição, que não julgar o pedido improcedente pela ausência de juntada de documento indispensável à propositura da ação, sobretudo diante de um pedido de exibição incidental formulado pela parte. Recomenda-se a leitura do voto da ministra. 23/04/2015 16:28:57 e de seu manuseio reportado por Bobbio (1995, go nos termos do caput ou à maior facilidade de p. 78), daí a renovada importância de precisos obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz contornos normativos. atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde A prova diabólica resulta de um desequilíbrio que o faça por decisão fundamentada. Neste caso, anormal entre as partes, ensejando um “vício de o juiz deverá dar à parte a oportunidade de se de- inesclarecibilidade”. Normalmente, os autores sincumbir do ônus que lhe foi atribuído”. mencionam a relação médico-paciente para ilus- O caput e seus incisos, basicamente, reprodu- trar o desequilíbrio do ponto de vista do conhe- zem o preceito constante do art. 333, CPC/1973, cimento; mesmo porque foi justamente um dos sendo desnecessário transcrevê-los. campos em que a teoria das cargas dinâmicas mais se desenvolveu (PEYRANO, 2008). Mas não apenas no campo da responsabilidade do profissional liberal ela poderá ser aplicada. Em atenção à isonomia, a teoria também vem sendo empregada no campo das relações contratuais bancárias A prova diabólica resulta de um desequilíbrio anormal entre as partes. e securitárias (DALL’AGNOL JR., 2001) e, certamente, tende a ser aplicada para outras situações. Antes do Novo CPC, entre nós, ao lado da hi- Analisemos os contornos normativos e alguns de possuficiência probatória, Theodoro Jr. (2010, v. 1, seus desdobramentos. p. 432-434) entendia que a “verossimilhança” também seria um requisito necessário à dinamização Livro_126.indb 187 3.2. Requisitos e desdobramentos práticos e que, inclusive, o dinamismo seria mais bem Para expor e desenvolver alguns aspectos prá- empregado na seara das provas indiciárias ou cir- ticos do tema neste leito de Procusto (um artigo), cunstanciais. Já Rodrigo Klippel, manifestando-se nossa estratégia será partir das seguintes indaga- sobre o projeto de novo CPC ainda na versão apre- ções: Quais são os requisitos à dinamização? Qual sentada pelo Senado, elogiava a ausência daquilo a medida da “excessiva dificuldade” ou “impossibi- que lhe parecia um “critério casuísta e de difícil lidade” de cumprir o encargo que justifica a distri- interpretação” (2011, p. 350). Diferentemente do buição dinâmica do ônus da prova? Depende de re- art. 6º, inciso VIII, CDC, constata-se que o texto querimento? A dinamização é regra ou tem caráter normativo não exigiu semelhante demonstração, subsidiário? Em que momento deverá ser aplicada tendo, no ponto, avançado. a distribuição dinâmica? Sua aplicação pressupõe É importante ter em mente que a dinamiza- que a outra parte, à qual se atribui um ônus, neces- ção não revoga a distribuição estática, tampouco sariamente, tenha melhores condições de provar? havendo uma antagonização radical no caso con- Os requisitos à aplicação do instituto vieram creto; mesmo porque a aplicação da dinamização indicados no Novo CPC – considerando que, ao não precisa afastar a distribuição estática (pode tempo da elaboração deste opúsculo, o projeto de haver mais de um fato constitutivo, sem que exista lei ainda não havia sido sancionado, opta-se por a dificuldade ou a impossibilidade probatória para não citar a numeração. Sem embargo, reproduzi- todos eles – PEYRANO, 2008). A grande verda- mos seu conteúdo para facilitar a análise: de é que são dois raciocínios sucessivos: a insu- “Nos casos previstos em lei ou diante de pecu- ficiência da distribuição estática, o que se revela liaridades da causa, relacionadas à impossibilida- pela própria leitura do preceito, pode autorizar a A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. de ou à excessiva dificuldade de cumprir o encar- 187 Revi s t a d o A d v o g a d o desvencilharam do vezo oitocentista dos códigos 23/04/2015 16:28:57 A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. Re v is t a d o A d v o g a d o 188 distribuição dinâmica. Nesse ponto, perfilhamos dificuldade” ventiladas no texto normativo. E a doutrina que concebe um caráter subsidiário à mais precisamente: se a análise se dará apenas regra (PEYRANO, 2008; MACÊDO; PEIXOTO, no plano objetivo (em abstrato) ou subjetivo (em 2014, p. 232-233). Havendo uma situação de dese- concreto); é saber se só se deve considerar a “ex- quilíbrio anormal na relação jurídica, em virtu- cessiva dificuldade” quando esta se verificar em de dos encargos probatórios excessivos a uma das qualquer situação que se apresente (como, verbi partes, por hipótese de a contraparte ostentar me- gratia, os tribunais têm considerado na prova de lhores – ou exclusivas – condições probatórias, a fato negativo), ou se é possível a consideração paridade de armas (isonomia em sentido material) de uma dificuldade peculiar, que atinge sujeito fica vulnerada, de modo que deve ser aplicada a ou situação jurídica determinada (por exemplo, dinamização; logo, prova quem tiver melhores uma dificuldade circunstancial e por vezes até condições de fazê-lo (MACÊDO; PEIXOTO, transitória). 2014, p. 163-166). Mesmo com a distribuição di- Com efeito, o atendimento pleno à teleologia nâmica, ao final do processo poderão remanescer do comando normativo impõe que se considere dúvidas sobre os enunciados de fato. Mas também compreendida no âmbito da previsão normativa a não devemos olvidar que a dinâmica das cargas dificuldade ou impossibilidade subjetiva, ou seja, probatórias, como sói, também convive com os permite-se que a “excessiva dificuldade” seja aferi- poderes instrutórios do magistrado. É certo que da pelo aplicador de acordo com as circunstâncias a vinda aos autos de elementos úteis à formação do caso concreto, já que, por razões específicas do convencimento do julgador sobre fatos con- (e não gerais), uma parte pode ver dificultada a trovertidos, em última análise, potencializa a produção de determinada prova. Contudo, é de possibilidade da prolação de uma decisão justa. se exigir, particularmente em casos tais, que a dis- É igualmente inegável que, muito além de servir tribuição não venha a dificultar sobremaneira a como regra de julgamento na hipótese de lapsos produção da prova pela parte onerada.10 É o caso, probatórios, a distribuição do ônus da prova é fa- por exemplo, de fatos controversos em demandas tor de indução à atividade de produção de provas envolvendo empresas de elevada organização ad- (PACÍFICO, 2011, p. 150). ministrativa (como os bancos). Há situações em Sobre a necessidade de requerimento expresso, que o indivíduo teve elementos documentais em diante da ausência de qualquer ressalva na legis- suas mãos e que, por motivo qualquer, deixou de lação, tem-se que a atuação do magistrado poderá dispor. Trata-se de prova de facílima produção ser oficiosa, no ponto; tudo se limita à verificação para a contraparte, mas que, em se aplicando a da presença de uma das situações pressupostas distribuição estática do ônus da prova, não virá em lei. Sempre que, diante das circunstâncias aos autos.11 Imagine-se, ainda, a possibilidade de particulares, o juiz verificar preenchimento do su- litígio em idênticas condições em que, em disputa porte fático para a incidência normativa (situação de preenchimento dos requisitos à distribuição dinâmica do ônus da prova), terá o poder-dever de atribuir àquele que inicialmente não via recair sobre si o onus probandi o encargo de provar fatos determinados. Outra dúvida que se põe prende-se com a exata compreensão de “impossibilidade” ou “excessiva Livro_126.indb 188 10. A consideração de circunstâncias particulares impõe ao juiz um maior rigor na observância da exigência contida no art. 370, inciso II, § 2º, do CPC. 11. Em determinados casos, pode-se pensar na possibilidade de se perseguir a pretensão de exibição de documentos, mas a distribuição dinâmica é medida que melhor atende à celeridade processual, simplificando o procedimento e agilizando a marcha do processo, na medida em que faz recair sobre aquele que possui condições de apresentar determinada prova as consequências da respectiva inércia. 23/04/2015 16:28:58 com conglomerado empresarial, parte do acervo sui uma dimensão passiva: o processo não pode probatório esteja em poder de empresa coligada andar tão rapidamente a ponto de sacrificar os di- no estrangeiro, com acesso inviável para um hi- reitos processuais fundamentais, dentre os quais possuficiente. o de produzir a prova necessária à demonstração cidir a matéria é o do saneamento, o que está in- das alegações que dão sustentação ao pedido (DUARTE, 2007, passim). Precisamente em relação à parte onerada, o o princípio do contraditório. A decisão desafia re- legislador dedicou especial atenção, de modo curso de agravo na modalidade instrumental. A a não vilipendiar a possibilidade de defesa dos nosso ver, a temática não desafia maiores medita- seus interesses em juízo. Aludindo à decisão que ções. De toda sorte, é possível que a dificuldade aplica a distribuição dinâmica, o novo texto co- probatória possa surgir noutra oportunidade – no dificado menciona que o encargo não poderá ser curso da própria instrução – ou mesmo em rela- “impossível ou excessivamente difícil”. Sobre o ção a fatos novos que sejam carreados ao processo. tema, Knijnik (2006) já sustentava que deveria Em todos os casos se afigura possível a distribui- existir uma posição privilegiada do litigante esta- ção do ônus da prova em momento subsequente ticamente não onerado (por deter conhecimen- ao saneamento, desde que se respeite o contradi- tos especiais ou provas relevantes) na situação tório, assegurando-se à parte onerada a oportuni- em exame. Mas, além da prova diabólica, Danilo dade de se desincumbir do encargo (MACÊDO; Knijnik também aludia à hipótese de os elemen- PEIXOTO, 2014, p. 231). tos probatórios terem se tornado inacessíveis ao O Novo Código tenciona resgatar o princípio da fundamentação. estaticamente onerado como fruto de uma atua- A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. dicado noutra passagem do CPC e alinhado com ção culposa ou mesmo em violação aos deveres 189 de colaboração com a parte adversa. Em todos os casos, não se pretende criar uma aporia por uma situação de prova diabólica reversa, sendo certo Livro_126.indb 189 Para além do respeito ao contraditório, é im- que a impossibilidade circunstancial, subjetiva, portante que se assegure à parte onerada tempo também deve ser considerada. Todavia, caso a hábil para se desincumbir do encargo que passou impossibilidade venha a se verificar, desassistido a lhe ser imposto. Com efeito, parte da doutrina de elementos nos autos para a formação da sua fala mesmo em pré-eficácia das normas de distri- convicção, a solução jurídica passará pela “regra buição do ônus da prova para aludir à circunstân- de inesclarecibilidade”, isto é, o magistrado de- cia de que ela opera efeitos práticos antes mesmo verá investigar “qual das partes assumiu o risco da existência do processo, já que as partes (ou, da situação insolúvel” e atribuir a ela, sendo o pelo menos, aquele que demanda), antes do afora- caso, o prejuízo por isso (MACÊDO; PEIXOTO, mento da pretensão, já direcionam a coleta de ele- 2014, p. 230). mentos probantes norteadas pelas regras inciden- Uma última questão se impõe; mas ela, em tes no que toca ao ônus da prova (MÚRIAS, 2000, razão de sua ingente importância, não toma uma p. 29). Assim, impõe-se que, entre a atribuição do indagação como fio condutor. Referimo-nos à ônus e a instrução, seja assegurado à parte um fundamentação da dinamização. Dissertar so- lapso temporal que possibilite a efetiva produção bre a necessidade de motivação pode soar como da prova necessária. Não se pode descurar que a platitude, na medida em que estamos diante de proclamada “duração razoável do processo” pos- uma decisão interlocutória. Todavia, é preciso ter Revi s t a d o A d v o g a d o Segundo o Novo Código, o momento de de- 23/04/2015 16:28:58 o cuidado de perceber que o Novo Código tenciona resgatar o princípio da fundamentação – densificando-o por meio de inúmeros preceitos –, até então bastante maltratado pela jurisprudência de nosso país, sendo uma herança malfadada do A d i s t r i b u i ç ã o d i n â m i c a d o ô n u s d a p ro va e o Novo CPC. sujeito solipsista (STRECK, 2010, passim). Decerto que o atual entendimento pretoriano não se coaduna com a nova orientação legislativa. Logo, a decisão que distribui de maneira diversa o ônus da prova deve indicar a presença dos pressupostos, dizendo o porquê da inversão e, mais importante ainda, especificando de maneira individualizada os fatos controversos que oneram a parte, não se admitindo, no particular, uma inversão genérica. A exigência vem em prestígio à ampla defesa (em sentido lato) e à lealdade processual: aquele que tem um ônus judicialmente fixado há de saber antecipadamente a extensão e as consequências da sua inércia. 4 Considerações finais Conquanto o tema não seja inteiramente novo entre nós, ainda não há uma larga conscientização de sua existência e/ou mesmo importância para a garantia da isonomia no plano dos ônus probatórios. O grande mérito da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova é que ela não se propõe a oferecer uma solução apriorística para todos os casos, senão permitindo uma análise do caso concreto para, de modo fundamentado, redistribuir as cargas probatórias entre as partes em prol da paridade de armas. A adoção da teoria pelo Novo CPC levará à sua disseminação e amadurecimento na prática, sendo certo que se situa no espírito do novo diploma codificado o reforço do papel, do protagonismo e da responsabilidade do juiz na condução do processo, mas sempre em colaboração com as partes, isto é, respeitando-se os direitos processuais fundamentais. Bibliografia Rev i st a d o A d v o g a d o 190 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova. In: Temas de direito processual civil – 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980. BASTOS, Antonio Adonias; KLIPPEL, Rodrigo. Manual de Processo Civil. Vitória: Acesso, 2011. processual civil. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. DUARTE, Ronnie Preuss. 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As (perigosíssimas) doutrinas do “ônus dinâmico vista Magister de Direito Civil e Processual Civil, Porto da prova” e da “situação de senso comum” como instrumentos Alegre, ano VII, n. 38, 2010. para assegurar o acesso à justiça e superar a probatio diabolica. DALL’AGNOL JR., Antonio Janyr. Distribuição dinâmica In: FUX, Luiz; NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda dos ônus probatórios. Revista dos Tribunais, São Paulo: Alvim (Coord.). Processo e Constituição: Estudos em Homenagem Revista dos Tribunais, 90º ano, n. 788, 2001. ao Professor José Carlos Barbosa Moreira. São Paulo: Revista DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael. dos Tribunais, 2006. Disponível em: <http://www.knijnik. Curso de direito processual civil. v. 2. 8. ed. Salvador: Jus- adv.br/upload/artigos/arquivo_13419320784ffc422e8c4cd. Podivm, 2013. pdf>. Acesso em: 18 jan. 2015. 23/04/2015 16:28:58 Bibliografia da prova e sua dinamização. Salvador: JusPodivm, 2014. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. RANGEL, Rui Manuel de Freitas. O Ónus da Prova no Processo Civil. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. v. 1. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 1952. MARQUES, Cláudia Lima. A Lei 8.078/90 e os direitos bási- SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabili- cos do consumidor. In: Manual do direito do consumidor. dade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. MÚRIAS, Pedro Ferreira. Por uma distribuição fundamentada do ônus da prova. Lisboa: Lex, 2000. PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da Prova. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. PEYRANO, Jorge W. La doctrina de las cargas probatorias dinamicas y la maquina de impedir en materia juridica. In: PEYRANO, Jorge W. 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Dentre os diversos dispositivos que visam à ace- leração do processo, à redução de seu tempo de tramitação, merece destaque a redação dada, no Novo Código de Processo Civil (NCPC), ao art. 357, incluído na Seção IV, do Capítulo X, denominada “Do Saneamento e da Organização do Processo”. A denominação da seção faz entrever que seu objetivo é ir além do tradicional saneamento do processo, circunscrito, no Código de 1973, à deci- 192 Revi s t a d o A d v o g a d o são sobre as questões processuais pendentes, à fixação dos pontos controvertidos e à determinação das provas a serem produzidas. É certo que, mesmo à luz do Código atual, a decisão saneadora, se bem elaborada, é perfeitamente apta a organizar o processo, reduzindo sobremaneira o seu tempo de tramitação. Recordo-me de um exemplo: na primeira metade da década passada, pululavam ações em que se pedia Swarai Cervone de Oliveira a revisão de contratos de cartão de crédito. Dentre Mestre e doutor em Direito Processual Civil os pontos sempre levantados estavam a pretensa pela Universidade de São Paulo. Juiz de Direito limitação constitucional dos juros a 12% ao ano em São Paulo. e a legalidade do anatocismo, a cobrança de juros compostos. No mais das vezes, cuidava-se, tão somente, de matérias de direito. Cabe ao juiz – e não a um perito – decidir se os juros devem ser limitados a 12% ao ano e se é lícita a cobrança de juros compostos. Se o autor narra tais fatos e sobre eles o réu não controverte, não há questão de fato a ser dirimida, mas, somente, questão de direito Livro_126.indb 192 23/04/2015 16:28:58 tão”). Não obstante, eram muito comuns decisões passiva contemplação, relegando a momento pos- saneadoras em que se determinava a produção de terior a interposição de recurso. O mais comum, prova pericial. E essa prova tinha por objetivo ve- aliás, é que o saneamento se faça por decisão prola- rificar o percentual dos juros cobrados e a existên- tada fora da audiência, sem qualquer diálogo vivo. cia de juros compostos, muito embora nada disso fosse controvertido. O que se controvertia era a legalidade, portanto, questão de direito. No entanto, determinada a prova, perdia-se enorme tempo no Não mais se toleram advogados passivos nem juízes prepotentes! processo e ele se tornava custoso (diferentes eram os casos em que, em contrato bancário, se negava O art. 357, no entanto, prevê, em seu § 1º, a cobrança de juros compostos. Aí, sim, tratava-se que, realizado o saneamento, as partes podem de questão de fato, a demandar prova pericial). pedir esclarecimentos ou solicitar ajustes, no pra- O exemplo foi dado apenas à guisa de demons- zo comum de cinco dias, sem o que a decisão se tração de que o atual sistema de saneamento do torna estável. O dispositivo, ao mesmo tempo em processo não é obsoleto ou ruim. O problema é o que lhes dá o direito de intervir, as adverte com a mau uso que se faz dele. Há uma série de outros consequência da preclusão; o § 3º prescreve que, exemplos aptos a demonstrar o quanto se pode havendo complexidade da matéria de fato ou de perder de tempo e dinheiro por causa de uma má direito, o juiz deve designar audiência, para que decisão saneadora. Uma boa decisão saneadora – o saneamento seja feito em cooperação com as e não um saneamento meramente formal, sem partes, que podem ser convidadas a integrar ou compromisso com o panorama concreto dos au- esclarecer suas alegações. O recado está dado: tos – é capaz, porém, de reduzir sobremaneira o não mais se toleram advogados passivos nem juí- tempo do processo. zes prepotentes! O processo é instrumento de Ao mencionar, contudo, não apenas o sanea- atuação da jurisdição. E a jurisdição tem como mento, mas a organização do processo, o legisla- escopo a pacificação social, com justiça. Para dor aponta para a necessidade de uma visão pros- tanto, todas as personagens que atuam no pro- pectiva do fenômeno. Cabe ao juiz, ao sanear e cesso devem estar engajadas nesse ideário. organizar o processo, antever as consequências Deixei propositalmente o § 2º para uma aná- da delimitação das questões de fato e de direito, lise específica. É sobre ele que desejo falar. Veja- notadamente do objeto da prova, a fim de evitar mos sua redação: desperdício de custos e tempo das partes. Livro_126.indb 193 A p o n t a m e n t o s s o b r e o s an eamen to e a o rgan ização do processo. ato isolado do juiz, restando os procuradores em 193 Revi s t a d o A d v o g a d o (tratarei, mais à frente, sobre a noção de “ques- “As partes podem apresentar ao juiz, para ho- E é justamente aí que ocorre importante inova- mologação, delimitação consensual das questões ção: o maior comprometimento das partes na orga- de fato e de direito a que se referem os incisos II e nização do processo. Embora, como disse, o atual IV, a qual, se homologada, vincula as partes e o juiz”. sistema não seja ruim, o fato é que a prática forense Já os incisos II e IV rezam que cabe ao juiz, em acabou por isolar o juiz nesse momento processual. decisão de saneamento e organização do processo, Raríssimos os casos em que a decisão saneadora é respectivamente: proferida em audiência preliminar, com a efetiva “delimitar as questões de fato sobre as quais participação das partes, com um diálogo aberto en- recairá a atividade probatória, especificando os tre juiz e procuradores. No mais das vezes, ainda meios de prova admitidos”; “delimitar as questões que proferida em audiência, a decisão traduz um de direito relevantes para a decisão do mérito”. 23/04/2015 16:28:58 A p o n t a m e n t o s s o b r e o s an eamen to e a o rgan ização do processo. Rev i st a d o A d v o g a d o 194 A primeira observação que faço é sobre o con- pretensão – condiciona-se, de certa forma, a ativi- ceito de questão. Segundo conhecida distinção de dade do réu. Incumbirá a ele controverter os fatos Carnelutti (1959, p. 36), ponto é a afirmação in- alegados pelo autor, aduzindo outros, se necessário. controversa, ao passo que questão traduz o ponto Da mesma forma, controverterá o fundamento controvertido. Quando algum fundamento da jurídico. demanda ou da defesa restar incontroverso, tem-se Existe, então, nesse momento, toda a delimi- um ponto; quando, porém, houver controvérsia, o tação do objeto de cognição do juiz. Ou, como ponto ganha o status de questão processual. expressa Milton Paulo de Carvalho (1992, p. 61), Logo, ao tratar da delimitação consensual das “objeto do processo, que é toda a matéria, in- questões de fato e de direito, o legislador exclui, clusive o mérito, submetida à apreciação do juiz evidentemente, os pontos, ou seja, os fundamen- para simples cognição ou para decisão principal tos não controvertidos. ou incidental”. Pois bem. Os pontos, como fundamentos de Todavia, o § 2º aponta para a possibilidade de, fato e de direito, são trazidos ao processo pelo autor. não obstante essa delimitação, conatural ao binômio A lide, que, via de regra, dá ensejo à propositura da demanda/defesa, as partes novamente delimitarem ação, é fenômeno extraprocessual. Ela pode ser ex- as questões de fato e de direito. Pergunto: cuida-se posta, no processo, por inteiro, ou apenas em parte. de uma faculdade incondicionada? Não me parece. É o autor quem elegerá que fatos pretende expor, Quanto às questões de fato, as partes só poderão qual o enquadramento jurídico que dará a eles e, excluir da apreciação judicial aquelas que digam o mais importante, que pedido(s) fará. Em termos respeito à controvérsia sobre fatos simples, secundá- técnicos, ele delimitará o objeto do processo: o pe- rios (sobre a distinção entre fatos simples e fatos dido, iluminado por determinada causa de pedir jurídicos – causa eficiente de uma pretensão pro- (diz-se “iluminado pela causa de pedir”, pois, como cessual –, vide Carvalho, 1992, p. 81). Não pode lembra Ada Pellegrini Grinover, nos comentários haver exclusão sobre a apreciação de fatos essenciais, ao texto de Liebman, “excluem-se da coisa julga- sem os quais perde substância a própria causa de da os motivos, mas são eles mesmos um elemento pedir ou a causa da exceção. E não faz sentido indispensável para determinar com exatidão a sig- alijar de atividade probatória questão de fato – nificação e o alcance do dispositivo” (LIEBMAN, ponto controvertido – relevante ao julgamento, 1984, p. 58)). Nas claras palavras de José Ignácio visto que isso prejudicará aquele responsável pelo Botelho de Mesquita (1980, p. 168), ônus da prova. “causa petendi e petitum, intimamente ligados, Em resumo, à primeira vista, resta pouco às qual verso e reverso da mesma medalha, ou alicer- partes nesse tópico. Pontos incontroversos não são ces e paredes do mesmo edifício, são por excelência questões. Não interessam, portanto. Fundamentos os elementos identificadores do objeto do processo, de fato essenciais, se controvertidos, transmudam-se pois o petitum é condição da existência da causa em questões e não podem ser excluídos de cog- petendi e esta, por sua vez, não se limita a qualificá-lo nição, sob pena de se esvaziar a própria causa de ou restringi-lo, mas o individua plenamente”. pedir. E, se são essenciais e foram controvertidos, A partir do momento em que o autor elege os fatos que narrará (causa de pedir remota), faz Livro_126.indb 194 aquele que tem o ônus de provar não há de concordar com delimitação alguma. uma correlação lógico-jurídica entre eles e a con- O sentido da norma, aí, poderia parecer ape- sequência que reputa necessária (causa de pedir nas o da cooperação, não fosse a locução final: próxima) – como razão para a procedência de sua se homologada, a delimitação vincula o juiz. Mas 23/04/2015 16:28:58 que signifique esvaziamento da causa de pedir tes. De outra forma, como entender a locução ou, muito menos, alteração do objeto do proces- “vincula o juiz”? so. Vale dizer, nessas hipóteses, não se homologa a Vamos a um exemplo real: em uma ação ajui- delimitação. Na medida em que se usa a condicio- zada contra plano de saúde, a parte alegou ter dado nante “se” – “se homologada, a delimitação vin- entrada na internação como emergência. A cober- cula as partes e o juiz” –, fica clara a possibilidade tura foi negada em razão da cláusula de carência. de não homologação, desde que, evidentemente, O pedido de cobertura teve, como causa de pedir, por decisão fundamentada. a abusividade, em contratos existenciais, à luz do Código de Defesa do Consumidor, de cláusula de O juiz está adstrito aos fatos narrados e ao pedido feito. carência. O réu defendeu-se levando em conta esse fato (internação emergencial e existência de contrato entre as partes) e esse fundamento (abusividade da cláusula). Ao proferir sentença, entendi que o fun- Livro_126.indb 195 Mais delicado, no entanto, é o trato da delimi- damento jurídico era equivocado. A cláusula não tação das questões de direito. Se por questão de era abusiva, mas simplesmente inaplicável, porque a direito se entende o fundamento jurídico contro- internação fora emergencial, o que afastava a neces- vertido pelo réu, é de se indagar se, pelo princípio sidade de carência. Julguei procedente a ação, mas do iura novit curia, existe vinculação do juiz a essa por fundamento jurídico diverso do discutido. Não controvérsia. A doutrina é pacífica em responder me afastei dos fatos narrados nem do pedido feito. negativamente à questão (por todos, veja-se Tucci, Somente considerei outro fundamento jurídico. 2001, p. 160 e ss.). O juiz está adstrito aos fatos Vamos supor que, sob a égide do novo Códi- narrados e ao pedido feito. Não pode considerar go, as partes houvessem delimitado como questão fatos alheios ao processo nem julgar em descon- de direito relevante para a decisão do mérito a formidade ao pedido. Quanto ao enquadramento legalidade da cláusula de carência, em contratos jurídico dos fatos, porém, não existe vinculação. existenciais, de adesão. Poderia ter sido proferida Segundo José Rogério Cruz e Tucci (2001, p. 161), a sentença acima? Parece-me que não, dada a vin- “o juiz goza de absoluta liberdade, dentro dos culação imposta ao juiz. Isso é bom? A princípio, limites fáticos abordados no processo, na aplica- também respondo negativamente. Por isso, de- ção do direito, sob o enquadramento jurídico que vem ter cuidado os juízes ao homologarem tais entender pertinente”. delimitações. Mas, se o § 2º diz que as partes podem de- O processo civil é ramo do Direito Público, limitar as questões de direito relevantes para a preocupado com a efetivação da jurisdição, ou decisão do mérito e se, ainda conforme o dispo- seja, com a pacificação social, por meio de deci- sitivo, a delimitação, se homologada, vincula sões justas (“Eliminar conflitos mediante critérios as partes e o juiz, parece-me aberto o caminho justos – eis o mais elevado escopo social das ativi- para a limitação ao princípio do iura novit curia. dades jurídicas do Estado” – DINAMARCO, 2005, Delimitadas as questões de direito relevantes p. 196). Não obstante haja um interesse subjacente (ressalte-se: partindo-se da definição de questão da parte à tutela jurisdicional apta a satisfazer a sua de direito como fundamento jurídico controverti- pretensão, existe, correlatamente, um interesse do do), não poderia o juiz, após homologação, pautar Estado na justiça das decisões. Daí por que o pro- seu julgamento em outros fundamentos jurídicos, cesso atual tem caminhado de uma feição dis- A p o n t a m e n t o s s o b r e o s an eamen to e a o rgan ização do processo. em desacordo com a delimitação feita pelas par- 195 Revi s t a d o A d v o g a d o não se pode pensar numa vinculação do juiz 23/04/2015 16:28:58 A p o n t a m e n t o s s o b r e o s an eamen to e a o rgan ização do processo. Re v is t a d o A d v o g a d o 196 positiva a um modo de ser mais inquisitório, em de improcedência, que, hipoteticamente, poderia que despontam os poderes e a iniciativa do juiz. não ocorrer se o juiz examinasse livremente as Vinculá-lo a uma delimitação a) sobre a ativida- questões de fato e analisasse, segundo o princípio de probatória a respeito das questões de fato; b) iura novit curia, as questões de direito? sobre as questões de direito relevantes à decisão de mérito é ressuscitar um caráter privatístico do processo, que parecia há muito superado. Aliás, é impossível não traçar um paralelo com a fórmula e a litis contestatio do Direito romano. Levando-se em conta apenas as partes ordinárias da fórmula (não as partes adjetas), tinha-se a intentio, a demonstratio, a adiudicatio e a condemnatio. Representavam, de maneira bem resumida, res- Parece-me que a possibilidade de delimitação pectivamente: a pretensão do autor – a enuncia- ora examinada esteja ligada, diretamente, à dispo- ção da relação jurídica substancial e a causa de nibilidade do direito discutido. Embora a disponi- pedir; o fato constitutivo do suposto direito do au- bilidade diga respeito ao direito material, não há tor, nas hipóteses em que a intentio fosse incerta; dúvida de que, no campo do processo, ela condi- a permissão para que o juiz adjudicasse a coisa ao ciona a possibilidade de alguns comportamentos vencedor; e, por fim, o poder de se condenar ou da parte, que, caso se tratasse de direitos indispo- absolver o réu (a pagar quantia em dinheiro). A níveis, caberia ao juiz rechaçar (sobre princípios litis contestatio implicava a existência de consen- dispositivo e inquisitório, indispensáveis as leitu- so entre as partes, finalizando o procedimento in ras de Bedaque, 1994, p. 65 e ss., e Calamandrei, iure, perante o pretor, que editava o decretum. De 1930, notadamente o item 2). Assim, embora se acordo com Tucci e Azevedo (2001, p. 100): possa admitir que a delimitação ora discutida ve- “O escopo primordial da litis contestatio seria, nha em prejuízo de algum dos litigantes, não se portanto, o de fixar o ponto ou pontos litigiosos pode permitir que prejudique pretensão ligada a da questão, definindo os lindes da sentença a ser algum direito indisponível; da mesma forma, um proferida pelo iudex e obrigando os litigantes a legitimado ativo de ação coletiva, nem sequer titu- respeitá-la”. lar do interesse tutelado, não pode subtrair do juiz Veja-se: um comportamento pelo qual se fixavam os pontos litigiosos da questão, definindo Livro_126.indb 196 Haverá possibilidade de delimitação consensual das questões de fato e de direito nas hipóteses de direitos indisponíveis? a possibilidade de amplo conhecimento dos fatos e fundamentos jurídicos. os lindes da sentença a ser proferida pelo iudex e Na verdade, essas questões ligam-se ao exame obrigando os litigantes a respeitá-la. Bastante pa- de sobre o que, exatamente, recairá a coisa julga- recido, não? O problema é que não se tinha, a essa da e qual será o efeito preclusivo que dela decorre altura, noção da feição autônoma e publicística do quando as partes fizerem tal delimitação. Confor- processo. Hoje o panorama é bem diferente. me Bedaque (2002, p. 27), “também a problemá- Isso tudo remete a outro complicador: haverá tica da eficácia preclusiva da coisa julgada tem possibilidade de delimitação consensual das nexo com os elementos objetivos da demanda”. questões de fato e de direito nas hipóteses de Isso, contudo, ultrapassa os limites desses breves direitos indisponíveis? E de interesses coletivos, apontamentos. em sentido amplo? O que ocorrerá se a delimi- Por fim, gostaria de fazer uma rápida observa- tação, homologada, acabar levando a um decreto ção sobre a posição do assistente diante de sua vin- 23/04/2015 16:28:58 digo manteve a atual redação do art. 55, afirmando por algum vício do negócio, é ilustrativo. Sua in- que, transitada em julgado a sentença, na causa em tervenção, como assistente, justifica-se na medi- que interveio o assistente, este não poderá, em pro- da em que pretende excluir sua participação no cesso posterior, discutir a justiça da decisão. alegado vício. É o caso de se decretar a nulidade Há um interesse típico, que pode justificar a as- da escritura, por dolo, mas, na fundamentação, se sistência, que é o de vincular-se, e às partes originá- dispor que o tabelião não tomou parte na atitude rias, à justiça da decisão. Ou seja, pode o assistente dolosa. No entanto, como ficará a situação do as- limitar seu interesse jurídico à imutabilidade da sistente se as partes, em consenso, decidirem que fundamentação da decisão. Como observa Carlos sua participação nos fatos é irrelevante ao julga- Gustavo Rodrigues Del Prá (2007, p. 278), mento da ação e excluírem da apreciação judicial “se o efeito da imutabilidade do fundamento da essa questão? decisão, que atinge o assistente, incide por força de Duas parecem ser as respostas possíveis: a) norma jurídica (art. 55 do CPC), então esse mesmo entende-se que a participação do assistente na de- atingimento pode constituir o núcleo de interesse limitação das questões de fato e de direito é neces- (jurídico) daquele que deseja intervir como assistente”. sária, dado que ele tem interesse na imutabilidade Ora, nessa hipótese, ele será evidentemente da justiça da decisão; b) entende-se que, diante da atingido pela homologação da delimitação que delimitação imposta pelas partes e homologada excluir a atividade probatória sobre questão de pelo juiz, não mais remanesce interesse na inter- fato que lhe interesse ou sobre questão de direito venção e exclui-se o assistente. A primeira solução que repute relevante. parece mais consentânea ao princípio de econo- O exemplo típico – dado no estudo anteriormente mencionado – do tabelião que intervém mia processual, resolvendo, em um só processo, a situação do assistente. Bibliografia BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Os elementos objetivos demanda nova: uma releitura do art. 55 do CPC e a carac- da demanda à luz do contraditório. In: Causa de pedir e terização do interesse jurídico do assistente. Revista de pedido no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, Processo, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 32, n. 144, 2002. ______. Poderes Instrutórios do juiz. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. processo. 12. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros estudos sobre a coisa julgada. 3. ed. Rio de Janeiro: 1. Tradução de Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1959. CARVALHO, Milton Paulo de. 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Lições de história do processo civil romano. 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 23/04/2015 16:28:58 O que se espera do Novo CPC? Pretendo orientar estas minhas reflexões a partir de uma pergunta: o que, afinal, se pode esperar do Novo Código de Processo Civil (NCPC)? Acredito que toda a comunidade jurídica esteja, a esta altura, se fazendo esta pergunta: juízes, promotores, advogados, defensores públicos e a própria sociedade. Mas, atenção: o processo de formação das normas processuais é lento. Acontece depois das primeiras manifestações doutrinárias, dos primeiros acórdãos. Ninguém é “dono” do Código. A interpretação Revi s t a d o A d v o g a d o 198 de um novo Código se constrói, não se impõe. Conta-se que perguntaram ao Gustavo Flaubert o que ele teria querido dizer com uma passagem muito interessante do seu romance Madame Bovary. Teresa Arruda Alvim Wambier E ele respondeu, espantado: Livre-docente. Doutora e mestre em Direito “Mas como? Por que você se interessa por isso? pela PUC-SP. Professora visitante na Universi- Isso não tem a menor importância. O que real- dade de Cambridge – Inglaterra (2008 e 2011). mente interessa é o que o meu texto disse a você. Professora visitante na Universidade de Lisboa (2011). Presidente do IBDP. Vice-presidente do É o que a leitura das minhas palavras conseguiu Instituto Ibero-Americano de Direito Processual. despertar no seu espírito. O resto é bobagem”. Membro conselheiro da International Association of Procedural Law. Membro do Instituto Paname- Mas, voltando à nossa pergunta: o que se pode ricano de Derecho Procesal, do Instituto Português esperar do NCPC? Fundamentalmente que cum- de Processo Civil. Advogada. pra três finalidades: 1ª) que resolva o problema das partes definitivamente; 2ª) que o faça com agilidade; 3ª) e que haja melhora na performance do Judiciário, no que diz respeito a dois aspectos: a sua lentidão e a incapacidade de gerar segurança jurídica, no sentido de previsibilidade. O que existe no NCPC para que o problema das partes seja efetivamente resolvido? Com efeti- Livro_126.indb 198 23/04/2015 16:28:58 Livro_126.indb 199 cessual deve conter regras que façam com que o ocorra a correção da petição inicial, caso esta processo, na grande maioria das vezes, cumpra a apresente defeitos. O juiz não só deve determinar sua verdadeira função, que é gerar uma sentença que haja essa correção, como deve indicar, com de mérito que possa ser realizada, concretizada, precisão, ao autor aquilo que deve ser emendado. no plano empírico. Da mesma forma, o Código É nessa oportunidade também que o autor deverá deve conter regras mais eficientes que levem a corrigir a legitimidade passiva. que, como regra, os recursos sejam julgados no Há dispositivo na nova lei determinando que seu mérito também e não resultem, o que é inde- vício de representação em recurso seja corrigido. E sejável, numa decisão de inadmissibilidade. o Código não faz ressalva alguma: logo, esta ne- Às vezes, o processo não resolve realmente cessidade existe relativamente a recursos interpos- o problema das partes e acaba gerando o que eu tos no segundo grau de jurisdição e nos Tribunais chamaria de “filhotes”; e há processos que acabam Superiores. Extremamente salutar esta nova regra, se transformando em verdadeiros “bumerangues”, que deixa claro que o princípio da instrumentali- pois vão e acabam voltando, às vezes sob uma for- dade se deve aplicar ao primeiro e ao segundo grau ma ligeiramente diferente. Há vários elementos de jurisdição, mas também ao processo que esteja no Código: regras e institutos que são capazes, no sendo objeto de recurso especial ou extraordinário. meu entender, realmente, de desempenhar um Por várias vezes, o legislador insiste em que papel importante neste movimento de resolução o juiz deve determinar a correção de vícios liga- efetiva e integral da lide. dos aos pressupostos processuais e às condições O primeiro desses elementos é, sem dúvida, da ação. Isto é extremamente relevante, pois se o sistema das nulidades. Priorizou-se, neste Có- houver vícios relativos a essas duas categorias, que digo, o princípio da sanabilidade: todos os vícios integram os pressupostos genéricos de admissibili- do processo são corrigíveis ou releváveis. Sabe-se dade da apreciação do mérito, o juiz, de rigor, não que, no Direito Público, especificamente no Di- pode decidir a lide. reito Processual Civil, as nulidades absolutas não Outras mudanças, com certeza, muito espera- se identificam com as nulidades insanáveis, como das pela comunidade jurídica e que têm por obje- ocorre no Direito Privado. De fato, no Direito Ci- tivo justamente o de proporcionar que o processo vil, as expressões são usadas quase como se fos- decida de maneira definitiva a lide, resolvendo de sem sinônimas: nulidades insanáveis, nulidades vez a controvérsia entre as partes, são aquelas que de pleno direito, nulidades ipso jure, nulidades dizem respeito à jurisprudência “defensiva”. Os absolutas. No Direito Público, esta diferença não acórdãos que integram esta categoria de jurispru- existe. Existe, sim, a diferença entre vícios graves dência são, por exemplo, aqueles que dizem que o e vícios menos graves: são nulidades absolutas e recurso não pode ser conhecido porque o carimbo relativas. Mas as absolutas não são insanáveis. está borrado ou porque a guia está mal preenchi- É interessante observar-se que, mesmo à luz do da. Há um dispositivo genérico segundo o qual a CPC em vigor, se pode afirmar que este princípio causa que poderia levar à inadmissibilidade do re- já existe. Mas a ideia subjacente a estes dispositi- curso, se não considerada grave, pode ser relevada vos aparece de uma maneira muito mais nítida no ou deve ser corrigida. E outros específicos. Código de 2015: o processo deve ser “salvo”. Uma O espaço deste artigo me permite citar, ainda, vez salvo, deve gerar uma sentença de mérito, por- duas alterações extremamente relevantes neste que esta é a sua vocação. contexto. O q u e s e e s p e r a d o N o v o CP C? Há, no Código, dispositivo determinando que 199 Revi s t a d o A d v o g a d o vamente resolvido, quero significar que a lei pro- 23/04/2015 16:28:58 Trata-se de inovação com diversos objetivos, O que se fez na nova lei? Na nova lei se criou mas o principal é o de evitar um dos casos de ju- uma regra dizendo que não só a parte efetivamen- risprudência “defensiva”, consubstanciado em te decisória da sentença fica acobertada pela au- acórdãos em que um Tribunal Superior diz que a toridade da coisa julgada. O que se diz no Novo competência é do outro. E nenhum dos dois julga. Código é que também se tornam imutáveis os Ou, às vezes, ocorre o contrário: ambos julgam. fundamentos, desde que a respeito deles haja contraditório e cognição exauriente, juntamente Para que haja mais agilidade no processo, são necessários meios para que este não “empaque”. com a parte propriamente decisória. Quer-se também que o processo decida a controvérsia que se instalou entre as partes, de forma ágil. Para que haja mais agilidade no processo, são necessários meios para que este não “empaque”, O q u e s e e s p e r a d o N o v o CP C? não fique “enroscado”, parado num momento em Rev i st a d o A d v o g a d o 200 Se o relator do recurso especial entender que que não acontece nada de importante nele. a questão sobre a qual versa este recurso é cons- Regras novas que geram mais agilidade no titucional, em vez de, pura e simplesmente, não processo são aquelas que suprimem o juízo de ad- apreciar o mérito do recurso, deve remetê-lo ao missibilidade do recurso do juízo a quo. Na nova Supremo Tribunal Federal (STF). Antes disso, lei, a regra é a de que o juízo de admissibilida- deve dar à parte recorrente o prazo de 15 dias para de dos recursos se dê no órgão que vai julgar o que seja demonstrada explicitamente, em prelimi- mérito desse mesmo recurso. Isso acontece com nar, a repercussão geral. apelação, com recurso extraordinário e com o re- Se o relator do recurso extraordinário, no STF, entender que a questão tratada no recurso curso especial. Isso faz, evidentemente, com que tenhamos muitos recursos a menos. é de natureza infraconstitucional, deve remeter Outra alteração que gera agilidade houve tam- este recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). bém no âmbito do recurso especial e do recurso A última palavra a respeito da natureza da ma- extraordinário. Nossos tribunais de cúpula não téria do recurso é, como é natural, do STF. Esta regra evita que, se forem inadmitidos recursos de acórdão realmente equivocado, nasça uma são tribunais de cassação. Podem, isto sim, dependendo do caso concreto, anular a decisão: cassá-la. Mas podem rejulgar a causa. outra ação: a rescisória. É o processo “bumerangue”! Frequentemente ocorre que pedidos sejam Última observação é relativa à regra que au- formulados perante o Judiciário lastreados em menta o espectro de abrangência da coisa julgada mais de uma causa de pedir. Do mesmo modo, para fazer com que ela passe a atingir também as comumente a defesa se baseia em mais de um questões prejudiciais. Esta nova regra tem o con- fundamento.1 dão de evitar que o processo gere “filhotes”. Isso porque da mesma causa de pedir podem derivar pedidos diferentes. Se as prejudiciais não transitam em julgado, fica a porta aberta para que outras ações sejam movidas, com base na mesma causa de pedir, ações essas que são um modo de trazer novamente o mesmo problema perante o Judiciário. Livro_126.indb 200 1. Segundo o CPC de 1973, em vigor, prevalece a posição segundo a qual, acolhida uma causa de pedir, o juiz de primeiro grau fica dispensado de analisar as demais (isto muda integralmente com o NCPC, à luz das exigências feitas no NCPC quanto à fundamentação da sentença. Julgando procedente a demanda, o recurso que seja, eventualmente, interposto pelo réu, devolve ao tribunal de segundo grau as demais causas de pedir (art. 515, §§ 1º e 2º). Isto cria a possibilidade de que o tribunal, por exemplo, mantenha a procedência do pedido, com base em outra causa de pedir. 23/04/2015 16:28:58 certo contrato por causa da teoria da imprevisão E, por último, pretendo responder, infeliz- e porque o contrato é nulo de pleno direito. Em mente não com a profundidade que o tema mere- primeiro grau de jurisdição, entende-se que se ce, à terceira e última questão: será mesmo que os aplica ao caso a teoria da imprevisão e o réu recor- elementos e institutos trazidos pelo NCPC terão re. O tribunal de segundo grau também decide condições de melhorar a performance do Poder que se aplica ao caso a teoria da imprevisão. O Judiciário como um todo e de responder, de forma STJ, ao julgar o recurso especial interposto pelo satisfatória, às queixas do jurisdicionado no que réu, entende que não se aplica esta teoria. Pode o diz respeito à lentidão dos processos e à falta de STJ analisar a questão da nulidade, ainda que não segurança jurídica do país? Este é justamente um tenha constado do acórdão recorrido? Segundo o dos pontos fortes do Novo Código. A situação que NCPC, pode, sem sombra de dúvida. se instalou hoje, no país, é de extremo desrespeito O NCPC permite expressamente que o pró- ao princípio da isonomia. Os tribunais interpre- prio Tribunal Superior decida as demais causas tam de maneira diferente a mesma regra jurídica, de pedir, assim como permite que se analise ou- a torto e a direito. É extremamente comum que tro eventual fundamento de defesa. tribunais, no mesmo momento histórico, decidam Por fim, uma das alterações que eu conside- a mesma questão jurídica de maneiras diversas, ro bastante modernas e que devem ser vistas com o que gera extrema insegurança jurídica. Fala-se, bons olhos no novo regime é aquela que diz res- portanto, da falta de uniformidade da jurispru- peito à disciplina da tutela provisória. Hoje, o dência no país, o que acaba comprometendo o CPC de 1973, que, como dizem todos, ficou de princípio da isonomia, porque, se a lei deve ser fato parecendo uma “colcha de retalhos”, disci- a mesma para todos, é evidente que a interpreta- plina a matéria de um modo extremamente mal ção da lei deve ser a mesma para todos também. organizado. Há um livro que trata da tutela caute- Senão a regra fica integralmente desmoralizada. lar e um dispositivo específico que trata da tutela antecipada, fora do livro da tutela cautelar. Livro_126.indb 201 tutela de urgência e tutela da evidência. Não se deve, por honestidade, deixar de apontar uma das principais causas desta terrível desu- Sabe-se, todavia, que se trata de fenômenos niformidade que existe na jurisprudência brasilei- extremamente parecidos. Isso porque, na verdade, ra, que é a falta de estabilidade das decisões dos há diversos critérios segundo os quais se pode dife- Tribunais Superiores, principalmente do STJ. É renciar a tutela cautelar da tutela antecipada. um tribunal cuja função deveria ser exatamente Seja qual for o critério em que ela se baseie, o a de gerar um norte, a de orientar, a de servir de que há de comum entre elas é o que há de mais modelo. É claro que os tribunais de segundo grau marcante: a circunstância de ambas serem conce- ficam desorientados porque, em determinadas didas com base em cognição não exauriente. É matérias, não têm a quem seguir, já que, além verdade: tanto a tutela antecipada quanto a tutela de haver desuniformidade interna no STJ quan- cautelar são concedidas em momento processual to a alguns temas relevantes para o país, muito em que o juiz ainda não está plenamente con- frequentemente, quando a jurisprudência já está vencido a respeito do direito do autor. Partindo pacificada em torno de determinado tema, alguns dessa premissa, o legislador de 2015 acabou com dos ministros têm a iniciativa de rever a tese e al- a tipificação das cautelares, o que me parece em teram drasticamente a posição já consolidada do tudo e por tudo excelente, e disciplinou, de forma tribunal. O q u e s e e s p e r a d o N o v o CP C? teando a declaração de que não precisa cumprir conjunta, a tutela provisória, subdividindo-a em 201 Revi s t a d o A d v o g a d o Imagine-se que A mova ação contra B plei- 23/04/2015 16:28:58 Se os nossos tribunais, principalmente o STJ, O q u e s e e s p e r a d o N o v o CP C? conseguirem criar uma jurisprudência estável e Re v is t a d o A d v o g a d o 202 de interesse social, que esse novo entendimento seja aplicado só dali para frente. uniforme em torno de certos temas, muito dificil- Além do âmbito principiológico, houve o refor- mente as partes insistirão em fazer o seu recurso ço nítido dos institutos que já existem no CPC chegar até lá. Não se quer, evidentemente, dizer, de 1973, cujo objetivo é diminuir a sobrecarga que a jurisprudência não pode mudar. É claro que de trabalho dos Tribunais Superiores e prestigiar pode. Mas se sabe que o que justifica a mudança o princípio da isonomia, como é, por exemplo, o da jurisprudência é a circunstância de esta con- julgamento dos recursos extraordinário e especial sistir em um termômetro bastante sensível das os- sob o regime dos recursos repetitivos. Concebeu-se cilações sociais. É muito comum que certas mu- o Incidente de Resolução de Demandas Repeti- danças no Direito aconteçam em primeiro lugar tivas, que é um mecanismo que faz com que o por obra dos juízes e depois, é sempre um pouco Judiciário, em segundo grau, decida determinada mais tarde, o legislador se apercebe de que não tese jurídica, que se repete em processos que ocor- há outro remédio, senão mudar a própria lei. Mas rem às centenas ou aos milhares, fazendo com não em todos os setores! que cada juiz passe a decidir o seu caso concreto a partir daquilo que tenha sido decidido pelo tri- É necessário que as decisões dos Tribunais Superiores sejam respeitadas. Aliás, por eles mesmos. bunal a respeito da tese jurídica que foi objeto do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. Enfim, é necessário que as decisões dos Tribunais Superiores sejam respeitadas. Aliás, por eles mesmos. No Brasil, entretanto, só se diz que algo é real- E aqui são oportunas duas observações: as os- mente obrigatório quando uma consequência cilações sociais são sempre muito lentas. Ocorrem extremamente drástica e onerosa ocorre para a em anos, décadas e, às vezes, em séculos. Não em parte que deixou de fazer aquilo que tinha que ser uma semana, um mês, ou um ano. feito. Mas, na verdade, esta obrigatoriedade não 2 A instabilidade e a desuniformidade da juris- pode ser desconsiderada, sob pena de o NCPC ter prudência desacredita o Poder Judiciário, decep- muito menos da eficácia que dele se pode esperar. ciona o jurisdicionado, desrespeita, inaceitavel- Esta obrigatoriedade cultural, que aqui no Brasil mente, o princípio da isonomia, desacredita o país é fraca, mas talvez não devesse ser, decorre da ra- até no âmbito internacional. zão de ser, da estrutura do nosso sistema judiciá- Há soluções propostas no Novo Código que rio. Afinal, para que serve o STJ? Para que serve têm uma dimensão principiológica. Há diversos o STF? São tribunais cuja função é interpretar a enunciados normativos que nada mais são do que Constituição. A função desses tribunais é dar a in- princípios colocados na lei positiva, em que se re- terpretação oficial da Constituição e da lei federal, comenda aos Tribunais Superiores criarem juris- portanto, desrespeitá-la é desconhecer e tornar prudência estável e uniforme, sempre que possível inútil tanto a estrutura organizacional do Poder editarem súmulas, etc. Judiciário quanto o próprio sistema recursal. A nova lei prevê também a possibilidade de modulação, ou seja, a nova lei também possibilita aos Tribunais Superiores que, se mudarem orientação consolidada, determinem, por razões Livro_126.indb 202 2. Basta pensar-se no exemplo clássico da alteração da jurisprudência americana no que diz respeito a temas ligados ao racismo, que levou mais de um século. 23/04/2015 16:28:59 so de elaboração, de formação do Código não foi NCPC: uma capacidade maior para resolver os democrático? Não. Não é isso que se espera. O problemas da parte de uma forma definitiva, con- que se espera de processualistas, de juristas, de juí- dições para que isso seja feito com mais agilidade, zes, advogados, promotores, das próprias partes, é e que traga regras que contribuam para que o Po- uma atitude de cooperação, para extrair da nova der Judiciário seja mais eficiente como um todo e lei o máximo que essa possa dar, no sentido de gere mais segurança jurídica. E o que se espera responder positivamente às três questões formula- da comunidade jurídica? Que critiquem feroz- das. Porque se sabe que só a lei não faz milagres. mente o Novo Código? Que digam que as regras Quem faz milagres é Deus, com a boa vontade antigas eram melhores? Que digam que o proces- dos homens. O q u e s e e s p e r a d o N o v o CP C? Resumindo e concluindo, o que se espera do Revi s t a d o A d v o g a d o 203 Livro_126.indb 203 23/04/2015 16:28:59 A prova pericial no Novo Código de Processo Civil. Sumário 1.Considerações iniciais 2.Produção da prova pericial 2.1.Saneamento compartilhado e prova pericial 2.2.Perito e exibição obrigatória do currículo 2.3. Distribuição equitativa de nomeações de peritos 2.4.Honorários periciais 2.5.Não realização do trabalho, penalizações e devolução dos honorários antecipados Revi s t a d o A d v o g a d o 204 2.6. Acompanhamento do início da prova pericial e demais atos de sua produção 2.7.Fundamentação pericial 2.8.Perícia consensual William Santos Ferreira 2.9.Contraditório e quesitos suplementares Mestre e doutor pela PUC-SP. Professor de 2.10. Valoração da prova pericial e decisão sobre Direito Processual Civil nos cursos de graduação, mestrado e doutorado da PUC-SP. Coordenador questões fáticas da área de contencioso judicial e arbitral da Bibliografia Especialização em Direito Imobiliário da PUC-SP/ Cogeae. Diretor de Relações Institucionais do Centro de Estudos Avançados de Processo 1 Considerações iniciais (Ceapro). Membro efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Sócio benemérito da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC). Advogado em São Paulo e Brasília. Quando a solução de uma questão fática depende de determinado conhecimento técnico ou científico, normalmente cabe ao juiz a nomeação de um perito judicial. As partes têm a possibilidade de indicar assistentes técnicos. Os detentores do conhecimento específico (perito e assistentes) têm um papel fundamental, especialmente porque contribuem com informa- Livro_126.indb 204 23/04/2015 16:28:59 usualmente não seriam capazes de obter. fecção de um laudo conjunto, cabendo também a Justamente por este “domínio”, o risco da mo- nomeação de dois ou mais assistentes técnicos pe- nopolização é enorme, pondo em cheque a boa las partes); o cabimento de perícia simplificada solução de questões técnicas. Eventuais erros, in- (apenas com oitiva do perito e assistentes – hipó- voluntários ou não, dificilmente são controláveis tese que não “pegou” no Brasil); e a não realização se não houver um contraditório efetivo em que as de perícia na hipótese de as partes apresentarem partes possam realmente participar, apresentan- laudos técnicos que possibilitem ao juiz já proferir do posicionamentos críticos em relação ao que foi uma decisão. Todas mantidas no NCPC. apresentado pelo perito judicial e que sejam efetivamente considerados pelo juiz no momento da valoração da prova. 2.1. Saneamento compartilhado e prova pericial Um dos pontos positivos, se aplicado, será o Quando o perito judicial apresentar proposta de honorários, também deverá apresentar currículo, com a comprovação de sua especialização. saneamento compartilhado, em que caberá ao juiz, com a colaboração das partes, não apenas designar a perícia e nomear perito, como também estabelecer, desde que possível, calendário para a realização da prova pericial, especialmente nos casos em que a produção da prova se revelar mais difícil (§ 8º do art. 357 do NCPC). O Novo Código de Processo Civil (NCPC) Por calendário não se entenda apenas a desig- reúne consideráveis inovações em relação à pro- nação de “prazo” para entrega do laudo (o que é va e, por isto, vamos apresentar algumas delas em o mais comumente visto), mas sim a definição de relação à perícia, dividindo-as em novidades rela- atividades e datas específicas para, p. ex., apresen- cionadas à produção da prova e à sua valoração. tação de proposta de honorários, discussão acerca do que seria necessário para a produção da prova 2 Produção da prova pericial pericial, apresentação e discussão sobre o espectro da perícia e dos quesitos, realização de visitas, en- A prova pericial não é exclusivamente o laudo trega do laudo, apresentação de pareceres críticos, pericial, mas sim todo o conjunto de atos proces- entre outras etapas, dependendo das especificida- suais especificamente voltados à apresentação de des do caso concreto. A p r o v a p e r i c i a l n o N o v o Có d ig o d e P ro cesso Civil. da quantidade de matérias envolvidas, para a con- 205 Revi s t a d o A d v o g a d o ções que os demais participantes do processo elementos para a busca da solução de questões fáticas técnicas ou científicas, elementos estes que não se resumem aos trazidos pelo perito judicial, mas também pelos assistentes técnicos e pelas próprias partes. Livro_126.indb 205 2.2. Perito e exibição obrigatória do currículo Conforme defendi em reunião com a Comissão na Câmara dos Deputados, quando o perito Neste trabalho vamos reunir novidades em judicial apresentar sua proposta de honorários, relação ao CPC/1973 e suas reformas, porque de também deverá apresentar “currículo, com a com- avanços já existentes não trataremos aqui: como a provação de sua especialização”, o que permitirá perícia complexa (nos casos de necessidade de es- às partes efetivamente controlarem e, se o caso, pecialistas em mais de uma área específica, cabe impugnarem a especialização e a experiência (ou a nomeação de dois ou mais peritos, dependendo falta dela!) do perito (art. 465, § 2º). Observa-se 23/04/2015 16:28:59 A p r o v a p e r i c i a l n o N o v o Có d ig o d e P ro cesso Civil. Rev i st a d o A d v o g a d o 206 aqui uma certa incompatibilidade, pois as partes esta generalidade está correta, porque possibilita terão 15 dias da nomeação para suspeição e impe- que seja considerado o que cada parte está provo- dimento (art. 465, § 1º, inciso I), porém o currículo cando no custo da perícia, isto porque, em algu- somente virá posteriormente, quando as partes te- mas perícias, especialmente envolvendo deman- rão cinco dias para falar sobre honorários. Rigoro- das de maior valor, uma das partes, por suas teses, samente, se algum fato novo desconhecido surgir matérias arguidas e quesitos, acaba sendo respon- com a apresentação do currículo, não somente po- sável pela elevação dos custos. derão tratar de honorários, mas também de impedi- Será possível também a determinação de depó- mento, suspeição e falta de especialidade, esta últi- sito de todo o valor relativo aos honorários peri- ma no mesmo prazo de cinco dias para falar sobre ciais (§ 1º do art. 95), garantindo o recebimento honorários, cabendo ao juiz uma decisão. pelo perito, não antecipadamente, mas dependendo, apenas, da liberação judicial. 2.3. Distribuição equitativa de nomeações de peritos bém à luz deste NCPC, incidir na compreensão De duvidosa viabilização, há previsão de distri- de “rateio” o princípio constitucional da isonomia buição equitativa entre os peritos registrados: Como já sustentei anteriormente, entendo, tam- a parametrizar a aplicação da regra de que, em “Art. 157 [...] § 2º - Será organizada lista de cada caso concreto, caberá a determinação judi- peritos na vara ou na secretaria, com disponibi- cial fundamentada de uma “distribuição especí- lização dos documentos exigidos para habilitação fica de custos”, “rateio”, considerando as peculia- à consulta de interessados, para que a nomeação ridades e atribuindo percentuais específicos para seja distribuída de modo equitativo, observadas a cada parte. capacidade técnica e a área de conhecimento”. Quando o requerimento for da Fazenda Públi- Nos casos em que determinados peritos dete- ca, do Ministério Público e da Defensoria Pública, nham maior habilidade ou tenham uma produ- a perícia poderá ser realizada por entidade pública tividade mais adequada, não parece adequado ou, havendo previsão orçamentária, poderão anteci- simplesmente distribuir numericamente a quan- par os honorários e, mesmo que não haja previsão, tidade de nomeações, por isto deve se entender poderá se realizar, desde que pagos no ano seguinte por equitativo e capacidade técnica não somen- ou ao final pelo vencido (§§ 1º e 2º do art. 91). te o conhecimento do perito, como também sua Também há regramentos específicos para os produtividade a justificar um maior número de beneficiários da justiça gratuita, sempre um ponto nomeações. de estrangulamento do sistema probatório. Aqui o custeio ocorrerá com recursos alocados no or- 2.4. Honorários periciais Livro_126.indb 206 çamento do ente público específico e realizada Ficou mantido que a parte que requerer a perí- por servidores do Judiciário ou de órgão público cia terá o ônus de arcar com a antecipação dos ho- conveniado. Cabendo a um particular, o valor da norários, todavia, se ambas as partes requererem a remuneração observará tabela do tribunal respec- perícia (o que já havia) ou esta for determinada de tivo e, se não houver, a tabela será do Conselho ofício, os custos serão “rateados” (aqui a novidade) Nacional de Justiça (CNJ) e pago com recursos (art. 95). da União, do Estado ou do Distrito Federal, a de- Rigorosamente este modelo é uma evolução pender de se tratar da Justiça Estadual ou Federal, em relação ao anterior, porque, embora fale em com inúmeras especificidades estabelecidas nos “rateio”, não apresentando em qual proporção, §§ 3º a 5º do art. 95. 23/04/2015 16:28:59 balhos, além da comunicação a eventual órgão da qual se originou; IV - resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz, pelas partes e pelo órgão do Ministério Público [...]”. de classe (que já existia), haverá penalizações E ainda impõe a adoção de “linguagem sim- que vão da redução dos honorários cabíveis até a ples” e “coerência lógica”, devendo apontar “como impossibilidade de atuar em perícias no prazo de alcançou suas conclusões”. dois a cinco anos, cabendo ao juiz também deter- Como se vê, a perícia não é um ato de “vontade”, minar a devolução do que foi recebido e, não o mas um “ato vinculado” a um interesse público e fazendo, caberá execução nos próprios autos (§§ resultado do exercício de um múnus público e, por 2º e 3º do art. 468). isto, há expressa vedação à emissão de “opiniões pessoais que excedam o exame técnico ou científico do 2.6. Acompanhamento do início da prova pericial e demais atos de sua produção Embora o CPC/1973 já apresentasse uma evolução, no ponto que assegurava às partes o direito objeto da perícia”; com isto, meras impressões sobre declarações de pessoas, suposições sobre elementos não encontrados, declarações sem confirmação técnica ou científica não serão admitidas. de comunicação de dia e local de início de trabalhos periciais, como já tive oportunidade de criti- 2.8. Perícia consensual car, o acompanhamento não pode se limitar ao iní- Outra inovação será a possibilidade de as par- cio, apenas, sendo assim, deverá se estender a todo tes escolherem o perito judicial e indicarem assis- o curso dos trabalhos periciais, como novas visitas, tentes, descrevendo o § 3º do art. 471 do NCPC análises de documentos, entre outros elementos. que esta modalidade é substitutiva daquela reali- Neste ponto também o NCPC expressamente zada por perito nomeado. determina o direito a esta participação, impondo Em que pese ser, para alguns casos específi- que o perito “deve assegurar aos assistentes das par- cos, uma solução que reúne pontos positivos, en- tes o acesso e o acompanhamento das diligências e contrará aqui, no mínimo, um grande choque, dos exames que realizar, com prévia comunicação, porque no Brasil o “perito” é da confiança (técnica comprovada nos autos, com antecedência mínima e ética) do juiz que o nomeia. de cinco dias” (§ 2º do art. 466). A p r o v a p e r i c i a l n o N o v o Có d ig o d e P ro cesso Civil. Nos casos em que o perito não realizar os tra- aceito pelos especialistas da área do conhecimento 207 Revi s t a d o A d v o g a d o 2.5. Não realização do trabalho, penalizações e devolução dos honorários antecipados Particularmente, não vejo aqui obstáculo para este consenso, contudo, caso o juiz não se sinta 2.7. Fundamentação pericial A fundamentação é outra marca do NCPC e que precisa ser fundamentada (como a seguir des- não se limita aos pronunciamentos judiciais, atin- crito), terá o magistrado, mesmo sem regra literal- gindo, também e de forma correta, o perito, apon- mente expressa, o dever-poder de nomear “perito- tando, didaticamente, que o laudo pericial “deve” -consultor” para análise crítico-consultiva do que conter, segundo o art. 473: foi ou será realizado. “I - a exposição do objeto da perícia; II - a análise técnica ou científica realizada pelo perito; III - a indicação do método utilizado, esclarecendo-o e demonstrando ser predominantemente Livro_126.indb 207 confortável, sendo ele o responsável pela decisão Em uma das versões do projeto na Câmara constava que as conclusões técnicas desta “perícia consensual” seriam vinculativas para as partes e para o juiz, no entanto durante os trabalhos legislativos isto foi suprimido, ao menos neste dispositivo. 23/04/2015 16:28:59 2.9. Contraditório e quesitos suplementares O contraditório efetivo é uma marca do NCPC, III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos dedu- bilidade de debate prévio e, por coerência, tam- zidos no processo capazes de, em tese, infirmar a bém, quando uma das partes apresentar quesitos conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enuncia- escrivão dar ciência à parte contrária (parágrafo do de súmula, sem identificar seus fundamentos único do art. 469), e claro que não se limitando o determinantes nem demonstrar que o caso sob contraditório à “ciência” como também incluindo julgamento se ajusta àqueles fundamentos; 208 que o NCPC não traria grandes modificações, não Re v is t a d o A d v o g a d o suplementares (durante a diligência), compete ao A p r o v a p e r i c i a l n o N o v o Có d ig o d e P ro cesso Civil. não sendo admitidas decisões sem que haja possi- a “oportunidade” para manifestação, podendo a VI - deixar de seguir enunciado de súmula, ju- parte intimada questionar ou apresentar também risprudência ou precedente invocado pela parte, quesitos suplementares em contraposição aos da sem demonstrar a existência de distinção no caso parte contrária, e tudo isto deve ser levado em em julgamento ou a superação do entendimento”. conta pelo juiz no momento da decisão (sobre o contraditório – ciência-oportunidade-consideração judicial – ver o nosso Princípios Fundamentais da Prova Cível (2014, p. 46-52). 2.10. Valoração da prova pericial e decisão sobre questões fáticas Em várias oportunidades chegou-se a afirmar seria uma verdadeira quebra de paradigmas. Toda- Mas em que pese toda a preocupação identi- via, há marcantes modificações que dependerão ficável no artigo citado, especificamente na valo- muito do (re)conhecimento dos participantes do ração da prova pericial, há mais uma regra que processo, principalmente juízes, advogados e promo- especifica, ainda mais, o disposto no art. 371, tores, de que não é do que se tratará, mas sim como. para não dar margem a qualquer dúvida que na Dentre as mudanças está o que se compreende valoração da prova pericial deverão ser indicados por contraditório e sua operacionalização (meio) “na sentença os motivos que levaram o juiz a con- no processo, a vedação a decisões-surpresa e sobre siderar ou deixar de considerar as conclusões do o que deve ser considerado fundamentação, para laudo, levando em conta o método utilizado pelo tanto havendo o disposto no art. 489: perito” (art. 479), e esta valoração terá relação di- “Art. 489 [...] reta com a “fundamentação pericial”, pois, se esta § 1º - Não se considera fundamentada qualquer não existir, em geral impossibilitada estará a de- decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: monstração dos motivos pelo juiz. Segundo o art. 371: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à pa- “Art. 371 - O juiz apreciará a prova constante ráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação dos autos, independentemente do sujeito que a com a causa ou a questão decidida; tiver promovido, e indicará na decisão as razões II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; Livro_126.indb 208 Há modificações que dependerão do (re)conhecimento dos participantes do processo de que não é do que se tratará, mas sim como. da formação de seu convencimento”. Portanto, os deveres de fundamentação pericial e judicial são vasos comunicantes e é de sua 23/04/2015 16:28:59 A atividade jurisdicional atende a uma fina- validade das soluções das questões fáticas envol- lidade pública que se, por um lado, autoriza a vendo elementos técnicos ou científicos. invasão da esfera jurídica do particular pelo Esta- Não serão admissíveis declarações como: “con- do-Juiz, por outro, impõe que esta atuação se dê vencido dos fundamentos do laudo”, “extraído das mediante fundamentação justificadora, legitima- conclusões apresentadas pelo expert resulta crista- dora da conduta, isto porque o ato de julgar não lino...”, enfim, descritivos não para demonstrar as é uma tomada de posição, mas antes uma solução razões do convencimento, mas que apenas anun- escorada em um sistema jurídico e um processo ciam um convencimento. que deve reunir os elementos justificadores para No Estado de Direito, a atividade jurisdicio- tal atuação, portanto o foco não está na conclu- nal não é um ato de vontade, com isto não cabe são (no decisum), mas na sua estrutura de base, na se descrever como se vontade do Estado fosse, fundamentação descritivo-legitimadora. porque não há suporte político-institucional Magistrados e peritos têm papéis fundamen- para tal conduta, daí a imposição de fundamen- tais para a sociedade, e a fundamentação efetiva tação na Constituição Federal (art. 93, inciso IX, nos processos é dever estabelecido, o que, finalis- da CF). ticamente, enaltece, valida e qualifica seus atos. Bibliografia FERREIRA, William Santos. Princípios Fundamentais da Prova Cível. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. A p r o v a p e r i c i a l n o N o v o Có d ig o d e P ro cesso Civil. conjugação que serão observados os requisitos de Revi s t a d o A d v o g a d o 209 Livro_126.indb 209 23/04/2015 16:28:59 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL nº126_novo_cpc.pdf 1 22/04/2015 13:24:05 O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL Associação dos Advogados de São Paulo Rua Álvares Penteado, 151 Centro cep 01012 905 São Paulo SP tel (11) 3291 9200 www.aasp.org.br 126