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CMYK EDITOR: Alexandre Botão ● SUBEDITORA: Cida Barbosa ● E-MAIL: [email protected] ● TELEFONE: (61) 3214-1176 4/5 DUNGA EXCLUSIVO Em entrevista ao Correio, em Brasília, o treinador fala dos planos para reconstruir a Seleção Brasileira. Gustavo Moreno/CB/D.A Press Brasília, domingo, 3 de agosto de 2014 Título olímpico de Joaquim Cruz, nos 800m rasos dos Jogos de Los Angeles, completa três décadas nesta semana, enquanto o atletismo brasileiro vive longa seca de medalhas na pista. Em série especial, o Correio discute o futuro da modalidade no país BRILHO SEM LEGADO GUSTAVO MARCONDES LORRANE MELO As únicas glórias da modalidade nos últimos 10 anos vieram do campo, com os ouros de Maurren Maggi, no salto em distância, nos Jogos de Pequim2008; e de Fabiana Murer, no salto em altura, no Mundial de Daegu-2011. Em provas de corrida, o bronze de Vanderlei Cordeiro de Lima na maratona das Olimpíadas de Atenas-2004 foi o último resultado memorável. Desde então, foram cinco mundiais e duas olimpíadas sem pódios (ver quadro abaixo). Há 33 anos vivendo nos Estados Unidos, Joaquim Cruz se ressente da falta de um projeto que o traga de volta ao país.“Sempre pensei em retornar, mas, até este momento, não houve a oportunidade”, diz, com ar de lamentação.Nosúltimosanos,oComitêOlímpicoBrasileiro negociou com o campeão olímpico, mas não chegou a um acordo. “Continuo ajudando a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) e com os projetos do meu instituto”, afirma, sobre o Instituto Joaquim Cruz, em Brasília, que trabalha com jovens carentes. As três décadas que separam o ouro de Los Angeles de hoje não diminuíram o desejo de Joaquim mudar a vida dos mais pobres no Brasil. “É até engraçada essa data. A gente que trabalha com o esporte nem vê o tempo passar. Não presta a atenção nos anos. Me surpreendi quando disseram que (a medalha) ia fazer 30 anos.” Inspirado pelo aniversário de uma das maiores conquistas do esporte nacional, o Correio publica, até a próxima quarta-feira, uma série de reportagens sobre os caminhos do atletismo brasileiro. Dos tempos em que Joaquim começou, nas surradas pistas de Brasília, aos projetos que tentam elevar a modalidade a outro patamar no país. dia 6 de agosto de 1984 entrou para a história do atletismo brasileiro como a primeira — e até agora a única — vez que um atleta do país conquistou a medalha de ouro em uma prova de pista dos Jogos Olímpicos. Há 30 anos, que serão completados na próxima quarta-feira, o brasiliense Joaquim Cruz, movido a passadas largas e elegantes, disparou rumo à vitória na final dos 800m rasos no Estádio Olímpico de Los Angeles, o Memorial Coliseum. O feito daquele garoto de 21 anos, nascido em Taguatinga, em 1963, porém, de pouco serviu para consolidar um legado para o esporte do país, e o atletismo nacional chega às Olimpíadas do Rio em um dos momentos mais questionados de sua história. “Não temos base nenhuma no Brasil”, lamenta Joaquim Cruz, em conversa com o Correio por telefone, de San Diego, nos Estados Unidos, onde vive com a família e trabalha como treinador da equipe paralímpica norte-americana. “Se pegássemos 25% do dinheiro que investimos nos atletas de alto rendimento e colocássemos na base, os resultados seriam bem diferentes”, insiste o ex-atleta, medalha de prata na mesma prova em Seul, 1988. Os resultados minguaram à medida que o ouro de Joaquim ficou para trás. Se nos primeiros 15 anos seguintes ao título em Los Angeles, uma talentosa geração de velocistas (Robson Caetano, André Domingos, Claudinei Quirino) e meio-fundistas (Zequinha Barbosa) conseguiram resultados importantes em olimpíadas e mundiais, o atletismo brasileiro de pista passou a aparecer cada vez menos nos qua» Leia mais sobre Joaquim Cruz na página 2 dros de medalhas das competições mais recentes. CMYK O CMYK 2 • Superesportes • Brasília, domingo, 3 de agosto de 2014 • CORREIO BRAZILIENSE SERENIDADE DE VETERANO Nem o nervosismo do treinador Luiz Alberto nem o congestionamento de Los Angeles. Nada abalou o jovem de 21 anos nos momentos que antecederam a final dos 800m rasos, que ele recorda ao Correio passo a passo Arquivo/CB/D.A Press em Los Angeles, o meio-fundista tinha uma rotina, como ele mesmo descreve, “quase militar”. Alisol começava a se pôr no mentava-se apenas o necessário, Los Angeles Memorial dava uma caminhada leve e desColiseum, completa- cansava praticamente todo o resmente tomado, quando tante do tempo. Gostava de ficar os oito corredores se posiciona- sozinho, concentrando-se. Nas preliminares, o planejaram para a largada da final dos 800m rasos. Apesar de ser o se- mento não poderia ter dado megundo atleta mais jovem daquela lhores resultados. Joaquim havia prova, Joaquim Cruz, aos 21 anos passado como o mais rápido ene quatro meses, demonstrava cal- tre todos os concorrentes, incluma nos momentos que antece- sive vendo amigos como Agberto deram o tiro. Não o abalava o fato Guimarães e Zequinha Barbosa de ser considerado o favorito, ficando pelo caminho antes da fimesmo ao lado do recordista nal. Na semifinal, Cruz venceu mundial e medalhista olímpico sua bateria com o tempo de Sebastian Coe. Quando os corre- 1min43s82. Havia sido o único a dores alinharam, foi Cruz que a correr abaixo do 1min44s. Na ida para o Memorial Colitransmissão oficial da tevê norteamericana focalizou. Menos de seum, outro empecilho que podedois minutos depois, ele seria ria ter desconcentrado um atleta consagrado o primeiro brasileiro comum. Mas não Joaquim Cruz. “Aquele dia, não lembro por que, campeão olímpico na pista. tinha um trânsiA tranquilito pesado em dade podia surLos Angeles, enpreender quem tre a vila olímpinão conhecia o ca e o estádio. jovem garoto Cheguei a me brasileiro, mas questionar se ia não aqueles dar tempo de que conviviam chegar. O Luiz com Joaquim. Tempo de Joaquim Cruz na final. (AlbertoGuima“Ele era muito Ele quebrou o recorde olímpico rães) ficou defocado. Tinha da prova, que só seria batido em sesperado. Mas, um talento Atlanta-1996, quando o no fim, aproveienorme, mas norueguês Vebjorn Rodal foi tei para tirar chegou aonde dois centésimos mais rápido uma soneca no chegou porque ônibus”, brinca treinava com o campeão. muita seriedaO aquecimento foi realizado de”, recorda o treinador Luiz Alberto de Oliveira, que descobriu na pista auxiliar ao Estádio OlímCruz nas pistas do Sesi de Tagua- pico. Ali, Joaquim começou a sentinga e seguiu ao lado do atleta até tir o clima da final. Era o mesmo o fim da carreira.“Ele não era mui- local em que ele tinha trabalhado to de conversa, de festa. Gostava em todos os outros dias de olimpíadas. Estava sozinho. Sentia-se de ficar na dele.” O poder de concentração de em casa. Deu uma volta completa Joaquim Cruz era tamanho que pela pista e só então tomou o nem mesmo a final olímpica lhe transporte para o local da prova. “Quando entrei no estádio, tirava o sono. “Dormi muito bem na noite anterior (à prova)”, re- com aquele público todo, e vi lembra o campeão, em conversa meus adversários, me veio um jacom o Correio. “Levantei cedo e to de emoção no corpo. Eu havia tentei seguir a mesma rotina dos conseguido controlar a energia dias anteriores. Mas aí o Luiz Al- para o momento certo”, analisa, berto me chamou para andar a 30 anos depois, o ex-atleta. “Senti seu lado, e aquela pareceu a ca- meu corpo muito bem. Estava minhada mais longa da minha vi- superconfiante.” O dia era mesda”, ri Joaquim. “Acho que ele es- mo especial para Joaquim Cruz, tava nervoso, mas eu queria pou- que fez parecer fácil cruzar a lipar energia para prova. Fiquei nha de chegada com ampla vantagem sobre os rivais e, de queum pouco ansioso”, confessa. No dia a dia da vila olímpica bra, bater o recorde olímpico. GUSTAVO MARCONDES LORRANE MELO A volta com a bandeira O A confiança no título olímpico era tamanha que Joaquim Cruz planejou ter uma bandeira do Brasil em mão para exibi-la aos torcedores em Los Angeles. A ideia veio quando ele soube que o síndico do prédio onde morava estaria presente na final dos 800m. “Perguntei a ele onde estaria sentado e lhe entreguei a bandeira”, explica o ex-corredor. A volta olímpica com a bandeira do Brasil em mãos — hoje exposta no Instituto Joaquim Cruz, em Brasília — é uma das imagens mais marcantes do país em Jogos Olímpicos em todos os tempos. Foi, inclusive, precursora das famosas voltas de Ayton Senna com o símbolo nacional. “Eu queria dividir aquele momento com todos os brasileiros”, recorda Joaquim. A conquista do ouro em Los Angeles foi histórica também por ter sido o primeiro título olímpico do país transmitido ao vivo na televisão brasileira. No Hino Nacional, o campeão manteve o semblante sério e o olhar fixo na bandeira hasteada. Apenas um leve sorrido no canto dos lábios denunciava a alegria de representar tão bem o país. 1min43s Eu queria dividir aquele momento com todos os brasileiros” Joaquim Cruz deu a volta olímpica com a bandeira que havia entregado ao síndico do prédio onde morava “Ficha só caiu em Seul” Oitocentos metros para a glória A pedido do Correio, Joaquim Cruz relembrou como foi a prova que deu a histórica medalha de ouro na pista nos Jogos de Los Angeles. Arquivo/UPI Photo Largada “Percebi que o (norte-americano) Earl Jones estava logo atrás de mim, em terceiro, então me movimentei para o lado para ter uma posição mais confortável (Joaquim chega a mexer os braços para se livrar da pressão de Jones). Dessa forma, passei a ter a sensação de não ter ninguém à minha frente, de liderar a prova, o que me deixou mais tranquilo.” 400m “Ao fim da primeira volta, o ritmo estava forte (Koech passou a linha em primeiro, com o tempo de 51,07s, com Joaquim em segundo), mas me sentia muito bem. Eu tinha usado o Koech como ‘coelho’ e sabia que era a hora de apertar o passo para os últimos 300m.” O sorriso tímido marcou a presença no pódio no Memorial Coliseum Arquivo/CB/D.A Press “Eu sabia que o queniano Edwin Koech (que largava na raia 8) forçaria o ritmo. Nas semifinais, ele já havia imprimido um ritmo forte demais nos primeiros 400m. Então me preocupei em não ficar para trás no início e em pegar a posição logo atrás dele”. 200m 600m Os últimos 200m foram o momento de maior pressão. Acelerei o ritmo para passar o queniano. Ao mesmo tempo, minha preocupação era vigiar o (britânico) Sebastian Coe, que eu sabia que tentaria chegar forte na reta final (Coe terminaria a prova em segundo).” Chegada Nos últimos 80m (Joaquim entrou na última curva à frente dos rivais e disparou rumo ao ouro), senti um Joaquim Cruz, sobre a volta com a bandeira arrepio e uma emoção enorme no corpo. Eu não conseguia nem ver a separação das raias. Senti como se o público, que começou a fazer muito barulho, estivesse ao meu lado, bem próximo. No fim, em vez de cansaço, só senti emoção ao cruzar a linha. Assista à prova completa no df.superesportes.com.br No dia seguinte à conquista da medalha de ouro, Joaquim Cruz se surpreendeu ao ver a família sendo entrevistada em uma reportagem na televisão. “Ali, comecei a entender o feito que havia conseguido”, afirma o medalhista olímpico. “Eu era um ‘performer’, não costumava prestar atenção a nada do que acontecia a meu redor. Por isso, acho que estranhei quando passei a ser reconhecido na rua.” Nos meses e anos seguintes, Joaquim Cruz viu que a fama repentina pós-ouro não seria passageira. Ele conta que, certa vez, foi seguido na Alemanha por um fã que queria provar a um amigo que aquele era o campeão olímpico. “Mas acho que a ficha só caiu mesmo em Seul, nas Olimpíadas de 1988”, acredita Cruz.“Depois de deixar a imigração na Coreia, saí com a delegação brasileira pelo desembarque. Aí vi um grupo grande de jovens tirando fotos na minha direção. Até olhei para trás, procurando saber quem eles fotografavam,masnãohavianinguém. Era eu mesmo o foco de atenção.” amanha: o começo de » Leia Joaquim Cruz em Brasília. CMYK CMYK 6 • Superesportes • Brasília, segunda-feira, 4 de agosto de 2014 • CORREIO BRAZILIENSE Mesmo após 33 anos morando nos Estados Unidos, o campeão olímpico reforça a importância da infância nas ruas de Taguatinga para a formação como atleta. Na segunda reportagem da série especial do Correio, conheça a trajetória do ídolo na cidade MOLDADO NO CHÃO DO CERRADO Carlos Vieira/CB/D.A Press Memórias eternas GUSTAVO MARCONDES LORRANE MELO oaquim Cruz não disfarça a nostalgia quando fala da infância nas ruas de Taguatinga. “Nunca esqueci e nem quero esquecer a minha origem”, afirma, com bastante seriedade na voz, quando perguntado sobre a importância da cidade em sua formação como atleta. Primeiro e único brasileiro campeão olímpico em uma prova de pista no atletismo — título que completa 30 anos nesta semana —, o medalhista de ouro nos Jogos de 1984 revive até os mínimos detalhes das brincadeiras de criança, nos anos 1970, para explicar como se tornou um fenômeno do esporte mundial. Vindo de um país sem tradição no atletismo de pista, ele saiu do anonimato para, em pouco mais de um ciclo olímpico, vencer os 800m rasos em Los Angeles. “Minha infância foi muito importante no processo que me tornou um campeão. Desde antes da escola, nas ruas, nos campos de terrão que nós mesmo construíamos”, recorda Joaquim Cruz. “Tímido”, lembra a irmã Elita, Joaquim pulava de galho em galho “igual ao Tarzan” na mata do Parque Ecólogico Lago do Cortado — atrás da casa da QNJ 47, onde morou até mudar para os Estados Unidos, alguns anos depois —, moldando caráter e corpo de atleta. “Passei muitos anos caminhando quilômetros pelo cerrado”, orgulha-se o campeão. Em 1974, quando entrou na escola, encontrou a estrutura esportiva do Sesi de Taguatinga. Por ser o mais novo dos seis filhos de dona Lídia de Carvalho Cruz, Joaquim foi, naturalmente, um dos mais protegidos. E, até os 14 anos, precisava que alguém o acompanhasse aos treinos. Mas o atletismo viria um pouco mais tarde. O começo foi no basquete. J Dona Lídia (E) com a filha Elita e as lembranças de Joaquim na casa da família em Taguatinga: a dimensão do feito do filho caçula ainda causa surpresa Givaldo Barbosa/CB/D.A Press - 19/10/84 Em 1984, Joaquim com a irmã e a mãe, após a conquista do ouro A decisão 14 ANOS Sucesso Idade com que Joaquim Cruz teve a primeira experiência com o atletismo, nos Jogos Escolares Brasileiros de 1977 Nos dois anos seguintes, o brasiliense de Taguatinga conquistou uma série de vitórias, que culminaram no recorde mundial juvenil no Troféu Brasil de Atletismo de 1981, no Rio de Janeiro. A marca CMYK Luiz Alberto de Oliveira foi quem insistiu para que Joaquim investisse na pista. “No começo, ele gostava mais do basquete, por causa dos amigos, do jogo coletivo”, relembra o técnico que, pouco depois, o treinaria nos Estados Unidos. “Mas, depois, viu que teria mais chances de representar o Brasil por meio do atletismo”, explica. Mas a decisão foi sofrida para Joaquim. A primeira experiência com o atletismo, nos Jogos Escolares Brasileiros (JEBs) de 1977, foi traumática. Apesar de ter ficado em terceiro nos 1.500m, terminou a prova sentindo muitas dores pelo cansaço físico. “Nunca mais quero saber disso”, disse o garoto de 14 anos ao treinador. “Ele fugia da corrida. Por fazer muito esforço, achava que ia morrer toda vez que acabava a prova”, conta Elita — que coleciona troféus de provas de corrida de rua —, rindo do irmão, que se escondeu por uma semana do treinador. O que convenceu Joaquim a dedicar-se às corridas foi o gosto pela vitória. Em 1978, ganhou duas provas do Brasileiro de Menores. O resultado o levou ao SulAmericano, em que ele conquistou três ouros: 400m, 800m e 4x400m. “Ele queria muito representar o Brasil. E poder ouvir o Hino Nacional três vezes na mesma competição mexeu com ele”, explica o ex-atleta Ricardo Vidal, diretor do Instituto Joaquim Cruz, em Brasília. lhe rendeu o convite para estudar e treinar na cidade de Provo, nos Estados Unidos. Em 1983, iria para a Universidade do Oregon consolidar-se como um dos melhores meio-fundistas do mundo. Os Estados Unidos aperfeiçoariam a máquina de correr que havia sido moldada em terra candanga.“Quando cheguei lá, tinha a explosão dos tempos de basquete e a resistência de tanto correr pelas ruas de terra. Eles até se surpreenderam”, recorda Joaquim. Hoje, aos 51 anos, ele mantém o mesmo corpo esguio de 1984, quando tinha 21 e desfilava sem camisa pelo Oregon — um dos momentos, inclusive, estampa em foto a sala da nova casa da família Cruz em Brasília, ainda emTaguatinga. Treinador da equipe paralímpica norte-americana, o ex-atleta corre durante os tempos livres em San Diego, onde vive, e tenta, vez ou outra, colocar algum parente na raia. “Mas agora a gente tem essa infeliz da internet”, comenta a mãe, dona Lídia, que depois de criar seis filhos e 13 netos encontra barreiras na educação dos 18 bisnetos e três tataranetos. “Criança, hoje, não brinca na rua. Passa o dia com os botões. É por isso que a gente não tem outro Joaquim Cruz”, teoriza. Criança, hoje, não brinca na rua. Passa o dia com os botões. É por isso que a gente não tem outro Joaquim Cruz” Dona Lídia, mãe de Joaquim “Passei muitos anos caminhando quilômetros pelo cerrado” Os três retratos pequenos no lado esquerdo da geladeira ajudaram a detectar os primeiros sintomas. O filho caçula, figura predominante nas fotos, estava ficando apagado para Dona Lídia. Era como se a imagem estivesse distante, mais longe que esse tanto de terra que separa Taguatinga de San Diego, na Califórnia. Aos 80 anos, a mãe de Joaquim Cruz está ficando cega, e os médicos descartam mais uma cirurgia para corrigir o problema da visão. As principais imagens do filho famoso, no entanto, seguem vivas na cabeça de cabelos brancos. O casamento; a chegada a Brasília, vinda de Corrente (PI), na madrugada fria de 3 de maio de 1960 para acompanhar o marido, Joaquim Cruz, que havia vindo construir a capital; a morte do companheiro por enfarto em 1981; e aquele 6 de agosto de 1984, quando uma dezena de jornalistas lotaram o apartamento onde morava, na QNL, para assistir ao outro Joaquim ganhar uma medalha de ouro para o Brasil. Sim, o outro. Porque “o marido que era o verdadeiro”, conta, ainda sem dimensionar e entender, depois de tanto tempo, o tamanho do feito do caçula. Era difícil acreditar que o “Quina”, como é chamado na família, era o responsável por aquele clamor todo. “Foram quatro anos de muito trabalho”, lembra a mãe, que deixou o filho mudar para os Estados Unidos meses depois da morte do pai. “Eu sabia que, se estivesse vivo, ele deixaria. Sentia o maior orgulho do filho”, recorda Dona Lídia, sem arrependimentos. Nem mesmo de estar longe do filho. Foi duas vezes aos EUA, mas não gostou do país onde Joaquim tem a vida feita. Achou as pessoas geladas, assim como aquela madrugada de maio. Agora, aos 80 anos, ela não tem tempo para se acostumar a novos ambientes. Pouco sai de casa. Apoiada no braço da filha Elita, tenta caminhar diariamente por um trajeto desenhado por Joaquim, da porta de casa até o Pistão Norte. Não chega a um quilômetro.Masnãoimporta.“Sãoosmeus 800 metros rasos.” Joaquim Cruz amanhã: os caminhos » Leia do atletismo brasileiro depois do ouro de Joaquim Cruz. CMYK 6 • Superesportes • Brasília, terça-feira, 5 de agosto de 2014 • CORREIO BRAZILIENSE Joaquim Cruz, em Brasília, no ano passado, com jovens de seu instituto na cidade: “Falta investimento nas escolas” FOCO DEVE SER NA BASE rinta anos depois do maior feito do atletismo de pista do Brasil, a medalha de ouro de Joaquim Cruz nos Jogos de Los Angeles-1984, o país praticamente não evoluiu na forma como descobre os talentos. Até hoje, o esporte depende de fenômenos isolados para conseguir resultados expressivos na modalidade. Foi assim com o meio-fundista brasiliense, há três décadas, foi assim com a saltadora Fabiana Murer, campeã mundial em 2011. Apesar de indícios de mudança no ar — com maior estrutura de pistas, equipamentos e competições —, não há um sistema em funcionamento pleno que permita a revelação dos atletas desde a base. A iniciação esportiva na escola é apontada por quem trabalha na área como o passo fundamental para o Brasil ter um atletismo realmente forte. E os projetos de evolução nesse sentido ainda engatinham no país (leia ao lado). “Hoje, está pior do que na minha época. Nos anos 1970, a educação física era, ao menos, em um turno separado. Agora, nem isso. Não há oportunidade de desenvolvimento esportivo”, analisa um Joaquim Cruz indignado. A opinião dele é compartilhada por outros ex-atletas, treinadores e dirigentes. “Os atletas ainda são descobertos da mesma forma que ocorreu com o Joaquim ou comigo: um treinador T percebe o talento e consegue estimular o desenvolvimento. Imagina quantos campeões são perdidos dessa forma”, questiona o tricampeão pan-americano Hudson de Souza. O caminho ideal apontado pelos especialistas é claro: o primeiro passo é o país ter uma grande base de estudantes do ensino básico que pratiquem esporte; os professores de educação física devem ser capacitados a reconhecer bons desempenhos, por meio das competições estudantis, além de receberem uma boa remuneração; na adolescência, os mais talentosos são encaminhados a clubes ou projetos comunitários específicos da modalidades; e, só então, após uma ampla preparação, os atletas devem tornar-se profissionais. “Não é milagre, não é segredo. Um clube tem, no máximo, 100 atletas. Enquanto isso, há milhões de talentos desperdiçados anualmente. Não existe educação física obrigatória nas escolas nem as condições ideais para treinamento”, critica Roberto Gesta, que presidiu a Confederação Brasileira de Atletismo por 25 anos (19872013), período em que o Brasil não conseguiu repetir o feito de Joaquim Cruz na pista. Governo tem programa recém-criado O atraso do investimento na base é tão grande que o governo federal só concretizou um projeto que estimula o esporte no ensino fundamental e médio no ano passado. Em maio de 2013, em ação conjunta dos ministérios do Esporte, da Defesa e da Educação, foi lançado o programa Atleta na Escola, que pretende estabelecer um calendário fixo de competições para estudantes de 12 a 17 anos. O atletismo é uma das modalidades contempladas, ao lado do judô e do vôlei. Neste ano, 44 mil escolas se inscreveram no programa, no qual a participação é por adesão voluntária. O projeto foi criado por causa das Olimpíadas do Rio, mas só dará resultado, se bem efetuado, em outros Jogos. “O atletismo é o principal foco para o desenvolvimento do esporte no país”, afirma Ricardo Leyser, secretário de Alto Rendimento do Ministério do Esporte. “É a modalidade mais tradicional, a que dá mais medalhas.” A pasta ainda implementa 168 centros de iniciação ao esporte (CIE), com minipistas de atletismo, para serem utilizadas pelos alunos do Atleta na Escola. A promessa é terminá-las até 2016. O ex-atleta Edgar Martins de Olivera, hoje trabalhando no Centro Nacional de Treinamento da CBAt, aponta outro problema grave na base. “Não há professores capacitados para gerir os estudantes. Eles são mal pagos, têm que ter vários empregos e acabam com pouco tempo para se dedicar ao alunos”, observa. “A carência de estrutura e profissionais é tão grande país que o país demorará, no mínimo, dois ciclos olímpicos para colhermos frutos desses projetos.” Ídolo em falta Arquivo/CB/D.A Press A falta de uma referência no esporte também é considerada um empecilho para o desenvolvimento do atletismo no Brasil. Joaquim Cruz foi essa pessoa nos anos 1980 e 1990, quando o Brasil conquistou resultados expressivos, como as medalhas olímpicas de Robson Caetano (1988) e dos revezamentos 4x 100m (1996 e 2000) e os pódios em Mundiais de atletas como Zequinha Barbosa (1987 e 1991) e Claudinei Quirino (1997 e 1999). “Joaquim foi um marco para o atletismo brasileiro”, elogia o companheiro Zequinha Barbosa (ffoto, E). “Quando ele despontou, estávamos órfãos de um ídolo, depois do acidente de carro que deixou João do Pulo (medalhista de bronze no salto em distância em Motreal-1976 e Moscou1980) sem uma perna. Joaquim pegou o bastão e foi um exemplo para todos nós.” amanhã: Conheça os » Leia projetos para o futuro do esporte no país e as esperanças do Rio-2016 Quatro perguntas para DAVID RUDISHA — Queniano, atual campeão e recordista olímpico dos 800m rasos, a prova de Joaquim Cruz Você conheceu Joaquim Cruz ? É um ídolo? Eu o conheci em 2011, em Daegu. Fiquei muito feliz . Ele era um grande atleta, e a raça dele ao conquistar a medalha de ouro nos Jogos de 1984, depois de correr as eliminatórias em quatro dias seguidos é impressionante. CMYK GUSTAVO MARCONDES LORRANE MELO Edilson Rodrigues/CB/D.A Press - 25/4/13 Na terceira reportagem da série do Correio, treinadores e ex-corredores apontam a carência de projetos esportivos na escola como a principal razão da falta de uma equipe forte no atletismo brasileiro Por que o Quênia consegue tanto sucesso no atletismo? Correr é esporte simples. No meu país, você não precisa nem de tênisparacomeçar.Todososmeninos da vila começaram assim, inclusive eu. No Quênia, tenho a oportunidade de relaxar. Não existe pressão. Correr é natural. O que é necessário para formar um campeão olímpico? Há muitas maneiras de chegar ao topo. Os treinamento que Cruz, Coe, Kipketer e eu tive são diferentes. Mas todos precisaram de talento, claro, e, em seguida, a quantidade certa de treinamento, concentração, foco e consistência. Seupaifoimedalhistaem1968.Isso ajudouoseuinícionoatletismo? Em alguns aspectos, sim, porque eu ouvia o meu pai falar e, para um menino, era fácil pensar “eu posso fazer isso também”. No começo, você tem uma confiança a mais. Então, você progride, tem sucesso e precisa se manter. CMYK 6 • Superesportes • Brasília, quarta-feira, 6 de agosto de 2014 • CORREIO BRAZILIENSE Mudanças no atletismo brasileiro estão na fase inicial de implementação e devem demorar a mostrar resultados. Para os Jogos do Rio, em 2016, há pouca expectativa de medalhas CORRIDA PARA O FUTURO Carlos Vieira/CB/D.A Press 6 GUSTAVO MARCONDES LORRANE MELO o m p l e t a m -se hoje 30 anos da medalha de ouro de Joaquim Cruz nos 800m rasos das Olimpíadas de 1984, em Los Angeles. Um feito histórico, nunca repetido em provas de pista, que escancara o atraso do Brasil na formação de atletas no principal esporte olímpico, o atletismo. Daqui a dois anos, o país recebe os Jogos em casa, no Rio de Janeiro, e a esperança de que esse longo jejum acabe é praticamente nula. Na última reportagem da série sobre a conquista do meio-fundista nascido em Taguatinga, o Correio mostra que o país passa por mudanças na forma como se trabalha o atletismo, mas que as ações são incipientes. Tanto o governo federal, principalmente por meio do Ministério do Esporte, quanto a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) começaram, recentemente, projetos que visam dar mais estrutura ao esporte. Essas iniciativas, contudo, vieram na esteira da preparação para o Rio-2016. Ou seja, levarão tempo para dar resultados efetivos. “Não será nesta geração (2016) que teremos medalhistas produzidos pelo trabalho que está sendo realizado”, opina Robson Caetano, bronze olímpico em Seul1988 e em Atlanta-1996. Para o ex-atleta, as provas individuais de pista, como a de Joaquim Cruz, devem levar ainda mais tempo para ter atletas entre os melhores do mundo. “Havia falta de interesse em trabalhar esse tipo de corredor. São muito detalhes, e não houve renovação (depois da geração vencedora dos anos 1980 e 1990)”, analisa. A CBAt evita até falar em medalhas nos Jogos do Rio-2016, traçando como meta a obtenção de 12 finais. Em Londres-2012, o país deixou as Olimpíadas sem conquistas e com apenas três finais — só uma em provas de pista (revezamento 4x100m feminino), não incluindo a maratona e a marcha atlética. No Mundial de Moscou, no ano passado, mais um fiasco. Foram seis finais e nenhum pódio. Na prova em que o país teve chance real de medalha, o revezamento feminino 4 x100m, as brasileiras deixaram o bastão cair na última passagem. A maratona e o decatlo, que não têm finais, garantiram bons resultados, mas sem pódio. C Em 2016, o revezamento feminino e a maratona são praticamente as únicas opções de conquista na pista para o atletismo brasileiro. Outras esperanças são concentradas nas provas de campo, como Fabiana Murer (salto com vara), Mauro Vinícius (salto em distância) e Fábio Gomes (salto com vara). Nenhum deles, porém, chegará como favorito. Presidente da CBAt por 25 anos, de 1977 a 2013, Roberto Gesta defende sua gestão, apesar de ter visto o número de brasileiros medalhistas minguarem ao longo dos anos. “Nesse período, construímos centros de treinamento, trouxemos treinadores estrangeiros e nenhum atleta que conseguiu índice deixou de viajar para o exterior”, argumenta. Com um orçamento de R$ 30 milhões por ano, José Antonio Fernandes assumiu em 2013 com Projeto alimenta sonhos Crianças e adolescentes correm na pista de barro do Instituto Joaquim Cruz, no Recanto das Emas: projeto, de 11 anos, começou com doação de tênis Hoje, temos 650 técnicos de atletismo. Precisamos de 5 mil” Antonio Carlos Gomes, superintendente de alto rendimento da CBAt Não adianta cobrar tudo agora (em 2016), botar pressão” Robson Caetano, ex-atleta, medalhista olímpico o discurso de profissionalização da gestão, mas o novo projeto apenas se inicia. Entre os objetivos principais estão a formação de um banco de dados nacional informatizado, com atualização dos resultados por professores; a criação de núcleos de desenvolvimento, para receber os atletas promissores; e a formação de treinadores. “Hoje, temos 650 técnicos de atletismo. Precisamos de 5 mil”, alerta Antonio Carlos Gomes, superintendente de alto rendimento da CBAt. “Podemos contar com resultados disso em 2020, 2024. Para 2016, seria ilusão.” O projeto do Ministério do Esporte para a modalidade é a Rede Nacional de Atletismo, estabelecido por lei federal de 2011, com orçamento de R$ 918,4 milhões. Nele, está prevista a construção de 53 pistas oficiais em 22 estados e no Distrito Federal, além de 168 centros de iniciação no esporte, com minipistas. Apenas 14 dessas estruturas estão finalizadas. “A lógica é que o resultado apareça em dois ou três ciclos olímpicos”, avalia Ricardo Leyser, secretário de Alto Rendimento do Ministério do Esporte. Promessas As principais apostas brasileiras do atletismo não estão na pista. Assim como nos últimos anos, o país tem tido resultados mais consistentes no campo entre os mais jovens, com nomes como Izabela Silva, campeã mundial júnior do lançamento de disco neste ano; Matheus Sá, bronze no salto triplo na mesma competição; e Wagner Domingos, que, com a marca de 74,12m no Íbero-americano, pode sonhar em disputar uma final olímpica no lançamento do martelo. Confira as esperanças na pista: 4x100m Feminino Favorita no Mundial do ano passado, em Moscou, a equipe (ffoto) deixou o bastão cair quando estava em segundo lugar na reta final da decisão. Ainda assim, mostrou a força do país na prova. 100m rasos - Ana Cláudia Lemos A velocista de 25 anos correu no Eles não correm mais com os pés diretamente na poeira, ainda que o Clube dos descalSOS — assim mesmo, como um pedido de socorro no fim — seja o nome que eles carregam nas inscrições. Mas continuam treinando no barro por não haver outra opção. Uma pista de medidas oficiais e piso sintético faria muita diferença nas passadas abertas de cada um dos 120 jovens atendidos pelo Instituto Joaquim Cruz (IJC). A pegada, que marca o terreno mas logo é apagada pelas outras que vêm atrás, faz a poeira subir e logo colore a camiseta branca do ICJ de um vermelho que arde os olhos — não por causa da cor. E, misturada aos abraços de mãos ainda mais sujas, deixa a humildade do DNA e as três letras da sigla que carregam no peito ainda mais camufladas. É que as condições ruins são ainda melhores do que as de 40 anos atrás, quando Joaquim Cruz era “abandonado”, de carro, pelo então técnico Luiz Alberto de Oliveira na Floresta Nacional e precisava voltar a pé para casa, na QNJ 47 de Taguatinga. O sonho do campeão olímpico de ajudar os jovens de Brasília começou há 11 anos, quando começou a trazer tênis usados (seminovos, na verdade) dos Estados Unidos para presentear garotos treinados por Evaristo Neto, na Quadra 105 do Recanto das Emas. Hoje, o projeto acode uma centena de jovens de 12 a 17 anos, também em Ceilândia e Águas Lindas (GO). Procura alta Jorge Silva/Reuters - 28/10/11 CMYK Jogos do Rio Número de finais que o atletismo brasileiro conseguiu no último Mundial, em 2013, em Moscou, sem nenhuma medalha Íbero-americano, depois de nove meses afastada por lesão, com a medalha de ouro e tempo de 11s13, novo recorde da competição e 31ª melhor marca do ano. Thiago André O atleta de 19 anos terminou os 800m e os 1.500m no Mundial Júnior em quarto lugar e pode dar sequência à tradição do país em provas de meio-fundo. Diariamente, eles vão até os locais de treino para uma espécie de garimpo, que começou com convocações nas escolas, mas que hoje quase “se esconde”, pois precisaria de mais apoio para atender toda a demanda. O aporte de uma fornecedora de materiais esportivos e de um banco permite ajudar apenas 120 pessoas, enquanto as inscrições não param de chegar. “Nem todo mundo aqui vai ser campeão, mas vai aprender que, do lado de cá, do esporte, é melhor”, explica Evaristo, que construía casa de pau a pique para viver até convencer as pessoas da comunidade de correrem no terreno baldio. “Perdi as contas de quantos animais eu enterrei aqui”, conta, lembrando que tentava dar um fim mais digno aos cachorros mortos jogados na área abandonada. Cemitério de onde, recentemente, saíram quatro atletas para a Seleção Brasileira de Atletismo e recordes.