o mito oriente-ocidente e sua manipulação geopolítica
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o mito oriente-ocidente e sua manipulação geopolítica
Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém Stephan Fernandes Houat Ensinagem: Faculty of Belém Journal V. 2, n. 1, Janeiro/Junho 2013, p. 110-123 ISSN 2238-4871 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA THE MYTH EAST-WEST AND ITS HANDLING GEOPOLITICS EL MITO ORIENTE-OCIDENTE Y SU MANIPULACIÓN GEOPOLÍTICA Stephan Fernandes Houat 1 RESUMO O presente artigo busca demonstrar que a utilização dos termos Oriente e Ocidente segue mais a interesses geopolíticos do que representam um rigor cultural e religioso das diferentes populações mundiais. Dividir o mundo em blocos fixos e rivais em constante luta, no chamado choque de civilizações é um elemento justificador de guerras que atendem principalmente a interesses políticos e econômicos. Palavras-chave: Oriente. Ocidente. Choque de civilizações. ABSTRACT The present paper aims to demonstrate that the use of terms such as East and West pursues more a geopolitical agenda then represents in an accurate manner the cultural and religious differences of the world populations. Dividing the world in steady and rival blocs in constant fighting, as represented by the so-called 1 Bacharel em Direito (CESUPA - Belém/PA), especialista em Direito Público (na Universidade Católica Dom Bosco - Corumbá/MS), doutorando em Direito pela UMSA Buenos Aires / Argentina, professor de Ciências Políticas da Fabel. Email: stephanhouat@ fabelnet.com.br. 110 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA clash of civilizations is a justifying element of wars that aim mainly to achieve political and economic interests. Keywords: East and West. Geopolitics. Cultural differences. Religious differences. RESUMEN El presente artículo busca demostrar que la utilización de los términos Oriente y Ocidente sigue más a intereses geopolíticos del que representan un rigor cultural y religioso de las diferentes populaciones mundiales. Dividir el mundo en blocos fijos y rivales en constante lucha, en el llamado choque de civilizaciones es un elemento justificador de guerras que atendien principalmente a intereses políticos y económicos. Palabras-clave: Oriente. Ocidente. Choque de civilizaciones. 1 DICOTOMIA ORIENTE-OCIDENTE - ORIGENS Não é nova a tentativa, em meios acadêmicos ou não, de tentar separar o mundo em dois blocos antagônicos: o Oriente e o Ocidente. Tal divisão é simplista e superficial, ignorando as profundidades étnicas, culturais, religiosas, jurídicas, históricas e linguísticas dos vários povos da Terra, forçando que todos sejam enquadrados em um ou outro bloco, imediatamente extirpados de suas particularidades. A despeito de não ser uma discussão nova, sua persistência surpreende, atravessando séculos e contrariando a suposição de que a melhoria dos meios de comunicação levaria à disseminação da informação e que acarretaria na superação de velhas ideias, eivadas de antigos preconceitos. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 111 Stephan Fernandes Houat Em seu livro Orientalismo: a Invenção do Oriente pelo Ocidente, Said (2003) demonstra como escritores europeus faziam análises dos chamados orientais (árabes, indianos, japoneses, chineses, africanos) a partir de um ponto de vista ocidental - europeu e cristão – fantasioso. Segundo o mesmo autor, muitos escritores faziam suas análises sem visitar os países objeto de seus escritos, além de expor suas próprias fantasias pessoais, desejos, frustrações, erotismos e preconceitos acima de uma análise científica e imparcial. Os chamados orientais nunca falam por si próprios, sendo sempre traduzidos por falas ocidentais. Não são eles que têm a explicação correta sobre sua cultura, religião e idioma, é preciso que um europeu lhes diga o que eles realmente querem dizer sobre si mesmos. Foi gerada então uma linguagem de opostos: os autores europeus falavam utilizando os termos nós e eles, sendo que o nós representava o que os autores concebiam serem as características dos demais habitantes da Europa: brancos, educados, civilizados, cultos, trabalhadores. Em oposição havia o eles oriental (asiáticos e africanos, essencialmente) tomados por brutos, deseducados, incivilizados, preguiçosos. A conclusão dos autores orientalistas é que eles, os orientais, eram essencialmente diferentes de nós, ocidentais - concluindo sempre pela superioridade ocidental, obviamente. O homem oriental era descrito como sendo o portador de características indesejáveis – preguiça, trapaça, lascívia-, e tinha muito a aprender com o homem ocidental – trabalhador, honesto, pudico. O homem ocidental tinha a obrigação moral de levar sua civilização aos povos incivilizados - chamado fardo do homem branco, no poema do inglês Rudyard Kipling, discurso que serviu como elemento legitimador das ações colonialistas das potências europeias - e mais tarde dos EUA - em países da África e Ásia, já que a inferioridade racial, moral, religiosa e cultural dos habitantes desses territórios era uma doença a ser combatida pelo antídoto europeu 112 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA de civilização, o que foi posteriormente denunciado em livros como Enterrem meu Coração na Curva do Rio e Veias Abertas da América Latina. A origem dos termos Oriente e Ocidente está na divisão do Império Romano em dois: Império Romano do Ocidente, cujo território depois formaria os países da Europa Ocidental; e Império Romano do Oriente, também chamado de Império Bizantino, cujo território formaria os países do Oriente Médio mediterrâneo e Europa Oriental (HOURANI, 1994). Nota-se que a atual nomenclatura Europa Ocidental e Europa Oriental é herdeira da noção de divisão do mundo em dois, a partir do ponto de vista da separação do Império Romano. É latente a visão totalmente eurocêntrica de tais nomenclaturas, já que o ponto de partida é a divisão do Império Romano, ignorando-se por completo as civilizações que estavam além das suas fronteiras, como a chinesa, indiana e persa. Além de sua característica essencialmente eurocêntrica, a divisão Oriente-Ocidente do mundo ignora por completo particularidades culturais de povos habitantes deste ou daquele hemisfério do mundo, além de menosprezar amálgamas culturais que, fora dos formalismos fictícios dos teóricos, acontecem constantemente no mundo real. Como exemplo, tem-se a biografia do próprio escritor Edward Said: nascido em Jerusalém, em 1935, em uma família árabepalestina de religião cristã ortodoxa, teve sua educação na infância e juventude dividida entre o colégio anglicano St. Georges Academy - Jerusalém-Palestina, o colégio Victoria College - Cairo-Egito, e a escola Mount Hermon - Massachussets-Estados Unidos (SAID, 2003). Como enquadrar alguém que nasceu na cultura árabe sem ser muçulmano, de religião cristã ortodoxa sem ser europeu eslavo, e com educação americana e inglesa sem ser anglo-saxão? A dicotomia rasa Oriente-Ocidente não tem resposta pronta a tal indagação. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 113 Stephan Fernandes Houat 2 O CHAMADO MUNDO JUDAICO-CRISTÃO E A MIOPIA DESTE CONCEITO No contexto da divisão de mundo entre Oriente e Ocidente, encontramos uma subdivisão: a divisão do planeta em mundo judaicocristão e simplesmente o resto ou os de fora, sendo que uma das civilizações de fora seria a islâmica. O chamado mundo judaico-cristão seria o Ocidente, em oposição ao Oriente com tradições religiosas diversas. Analistas mal informados - ou mal intencionados - costumam identificar o chamado mundo islâmico (divisão que por si só é superficial, posto que os diversos países islâmicos possuam profundas diferenças culturais entre si, sendo que as culturas síria, paquistanesa, iraniana e indonésia têm mais diferenças do que semelhanças) em oposição ao chamado mundo judaico-cristão. Por um prisma cultural-religioso, porém, se o cristianismo for interpretado como um prosseguimento do judaísmo é forçoso aceitar também o islamismo como um prosseguimento de ambos. O cristianismo pode ser visto como prosseguimento do judaísmo porque a religião cristã nasceu dentro do judaísmo, proclamando Jesus como o Messias que a religião judaica esperava. O cristianismo deu continuidade à linha de profetas do judaísmo Adão, Moisés, Abraão, acrescentando outros novos, como José, Jesus e Paulo. Prosseguiu, portanto, com a leitura do Antigo Testamento, acrescentando um Novo Testamento, como se pode concluir através da leitura da Bíblia. O islamismo também está inserido, no que talvez poucas pessoas saibam, é que o islamismo não renega o legado judaico-cristão, mas sim o continua. O Alcorão também conta os relatos de Adão e Eva, Moisés, Abraão e, para a surpresa de muitos, de Jesus. De certa forma, os muçulmanos são “cristãos”, porque acreditam em Jesus como um de seus profetas mais importantes, consideram-no 114 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA nascido da Virgem Maria e tratam até de sua crucificação, porém, com um detalhe curioso: quem foi crucificado não foi Jesus, e sim Judas, como punição pela sua traição, já que, por um milagre, Deus fez com que Judas ficasse com a aparência de Jesus, para que as pessoas achassem que era a ele que crucificavam, enquanto que o verdadeiro Jesus estava vivo e protegido por Deus. Além disso, o Alcorão tem um capítulo denominado José e outro denominado Maria, em referência aos pais de Jesus. Não existe, portanto, um antagonismo religioso intrínseco entre islamismo e cristianismo (NARS, 2013). O islamismo tem muito mais elementos em comum com o judaísmo e com o cristianismo do que divergentes, como a crença em um deus único - monoteísmo. Importante dizer que Allah não é “o deus islâmico”, como reiteradamente quer fazer crer a imprensa, mas sim o mesmo deus do judaísmo e do cristianismo. Da mesma forma que cristãos árabes, quando rezam, o fazem para Allah, os cristãos ingleses o fazem para God, e os espanhóis para Dios, sem que se diga que God e Dios são “o deus dos ingleses” ou “o deus dos espanhóis”. Dizer que existe um deus exclusivamente islâmico, em vez de dizer que muçulmanos cultuam o mesmo deus dos judeus e cristãos é uma forma velada de mostrar o quanto eles são diferentes, ou seja, que existe um nós e um eles em oposição. Em um passado não muito distante, mulheres cristãs cobriam os cabelos antes de entrar em igrejas, tradição que ainda hoje é seguida por religiosas judias, ao entrarem na sinagoga. Atualmente, quando retratam a mãe de Jesus, cristãos o fazem usando véu, porém a despeito disso, o chamado mundo judaico-cristão acha estranha que as mulheres muçulmanas cubram os cabelos, como se o véu ficasse bem no altar, mas não nas ruas, e fosse um elemento absolutamente estranho à sua religião. Importantíssimo também mencionar que a filosofia grega, tida por muitos como a base da cultura ocidental só foi mantida porque a Europa renascentista teve à disposição a literatura grega por meio dos livros traduzidos do grego para o árabe, tendo tais livros sido Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 115 Stephan Fernandes Houat mantidos no agora chamado Oriente Médio, já que a Europa medieval os aboliu. Antes de ser uma cultura antagônica, a cultura islâmica foi uma verdadeira ponte que uniu a antiga filosofia grega à Europa moderna (ATTIE FILHO, 2002). 3 AS DIFERENÇAS CULTURAIS CONVENIENTEMENTE ESQUECIDAS SENDO O cientista político americano Huntington (2010) – talvez o maior expoente teórico da separação do mundo em blocos uniformes – publicou, em 1933, um artigo ainda exaustivamente citado, O Choque de Civilizações, onde conclui que as características culturais das diferentes civilizações do planeta – e não motivos econômicos – seriam os propulsores das novas guerras travadas no mundo. Abandonando a separação do globo nas duas metades OrienteOcidente, o autor o dividiu em porções, que lutariam entre si pela supremacia mundial. A partir da leitura de seu livro, pode-se condensar suas ideias em (HUNTINGTON, 2010): a) Civilização chinesa – composta pela China e países sob sua influência cultural como Coreia, Vietnã, Laos e Tibete; b) Civilização japonesa – única civilização formada por apenas um país, o Japão; c) Civilização hindu – constituída pelos países que seguem a religião hinduísta, como, como a Índia; d) Civilização budista - composta pelos países que seguem a religião budista, como a Tailândia e a Camboja; e) Civilização islâmica – formada pelos países que seguem a religião islâmica; f) Civilização ocidental – constituída pelos países da Europa Ocidental e suas ex-colônias na América do Norte (Canadá e EUA) e na Oceania (Austrália e Nova Zelândia); 116 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA g) Civilização lationoamericana – integrada pelos países da América Latina, sendo que por vezes essa civilização é considerada como parte da civilização ocidental; h) Civilização ortodoxa – formada pelos países da Europa Oriental, de religião cristã ortodoxa e cultura eslava; i) Civilização subsaariana – integrada pelos países africanos subsaarianos, já que os situados ao norte do Saara seriam pertencentes à civilização islâmica Tal divisão do mundo ignora que as culturas não são estanques, e sim dinâmicas, ou seja, as várias culturas do mundo entram em contato umas com as outras e se mesclam. O programa de televisão “A TV que se faz no mundo” exibido em 06/09/2013 pelo canal TV Brasil mostrou matéria sobre o Comores, um país africano que foi ex-colônia francesa. Os comorenses são negros, de religião islâmica, falantes correntes tanto do francês quanto de um idioma local, e cuja televisão é patrocinada pela China, exibindo duas horas diárias de programação feita naquele país (incluindo aulas do idioma mandarim). Mas o maior sucesso atual na televisão comorense é uma novela mexicana. A própria cultura brasileira seria um exemplo: aprendemos nas aulas de História do Ensino Médio que nossa cultura é formada pela junção das culturas “negra, indígena e branca”, como se realmente houvesse uma única cultura negra, branca ou indígena no mundo. A realidade é que os escravos trazidos para o Brasil eram de diferentes partes da África, alguns seguindo religiões tradicionais politeístas africanas, outros muçulmanos. Chegaram aqui vindos de territórios diferentes, falando idiomas diferentes, professando religiões diferentes. A chamada “cultura branca” ou “cultura Ocidental”, também não pode ser considerada como unitária. As primeiras colonizações brasileiras, além de portuguesas, também foram espanholas, francesas Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 117 Stephan Fernandes Houat e holandesas. Qualquer pessoa minimamente informada sabe que as tradições culturais de países como Portugal, Holanda, Inglaterra e Suíça são diferentes entre si, mas em termos simplificados, usamos em nossos livros didáticos a expressão cultura branca sem nenhum rigor científico, e quase sem nenhum pudor. A própria cultura portuguesa, por si só, é um conglomerado de culturas sobrepostas: o território que hoje corresponde a Portugal esteve sob influência cultural grega, romana - posteriormente romano, germânica, judaica e árabe, sendo que estes últimos dominaram a Península Ibérica por quase oitocentos anos. Palavras portuguesas como arroz e azeite vieram do árabe ar-roz e az-zeit, além dos famosos azulejos portugueses terem sido inicialmente usados na decoração de mesquitas árabe-muçulmanas de Portugal e Espanha - o próprio nome azulejo vem do árabe az-zalij (ZAIDAN, 2005). Percebe-se, portanto, que muito antes dos primeiros imigrantes sírios e libaneses chegarem ao Brasil, à cultura árabe já havia desembarcado aqui, inserida na cultura portuguesa, mostrando que longe de serem duas culturas opostas e rivais, as culturas ocidental e oriental (ou judaico-cristã e muçulmana) tiveram séculos de intercâmbio e aprendizado mútuo. A cultura brasileira apresenta divisões culturais, como na tradição gaúcha e amazônica. O termo gaúcho não significa apenas o nascido no Rio Grande do Sul, mas sim uma cultura própria, partilhada pelos Estados brasileiros do Rio Grande do Sul e parte de Santa Catarina e do Paraná, além de partes da Argentina e do Uruguai. A Amazônia, por sua vez, também apresenta uma cultura própria que igualmente é transnacional, atingindo os habitantes do norte do Brasil e das duas Guianas, Venezuela, Peru e Colômbia, provando que as dinâmicas culturais humanas vão muito além das fictícias fronteiras nacionais. Um habitante da Amazônia brasileira sente-se culturalmente mais próximo de seu vizinho da Amazônia 118 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA colombiana, ou de um vaqueiro gaúcho? Este, por sua vez, sente-se culturalmente mais próximo daquele, ou de seus vizinhos uruguaios? Questões que não são respondidas com facilidade, e que exigem uma análise muito mais aprofundada do que a mera divisão do mundo em blocos culturais pré-rotulados. Em O Choque de Civilizações, Huntington (2010) ignora as influências culturais mútuas, onde diferentes culturas absorvem elementos umas das outras. Ignora, também, que alguns países são próximos culturalmente de um bloco, mas religiosamente de outro, como é o caso do Paquistão, que foi desmembrado da Índia logo após a sua independência da Inglaterra, para ser o lar dos indianos muçulmanos, que queriam separar-se da Índia, país de maioria hindu. Apesar da quase totalidade da população paquistanesa seguir o islamismo, sua cultura é intrinsecamente ligada à indiana: o idioma nacional paquistanês é o urdu, uma variação do idioma mais utilizado pelos indianos, o hindi. Também as vestimentas paquistanesas, sua comida, sua arquitetura e seu modo de vida são muito mais próximos aos indianos do que dos países árabe-muçulmanos (KIMCHE, 1990). Os países de maioria muçulmana, agrupados em um mesmo bloco pelo autor, espalham-se por três continentes – África, Ásia e Europa, têm climas tão variados como desertos escaldantes e cidades cobertas de neve, economias de modelo liberal e socialista, estados religiosos e laicos, sistemas jurídicos mais ou menos influenciados por regras religiosas, idiomas extremamente variados – árabe, turco, persa, urdu, indonésio – e proximidades culturais muito diversas, como a cultura paquistanesa, sendo próxima da indiana, e a indonésia, sendo uma curiosa mistura das culturas chinesa e indiana, contando, obviamente, com elementos próprios. Mesmo dentro dos grupos de países árabes (que se diferenciam culturalmente dos demais países de maioria islâmica) há diversas diferenças culturais, como, por exemplo, a Síria, que já foi culturalmente grega, romana e depois passou por domínio francês Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 119 Stephan Fernandes Houat (que inclusive influenciou todo o seu sistema legislativo); e a Arábia Saudita, país que esteve pouco exposto a colonizações estrangeiras (HOURANI, 1994). O Egito é um caso emblemático: quando da sua independência da Inglaterra, um comitê de intelectuais egípcios foi convocado para decidir qual era a herança cultural do país, se árabe ou não; sendo que o comitê concluiu que a cultura egípcia era tripartite, fruto da junção da cultura egípcia antiga dos faraós, da cultura árabe e da cultura internacional em geral. Dois dos principais partidos políticos que pregam a união de países árabes são o Renascimento (Baath) e o Partido Social Nacionalista Sírio (Hizb As-Souri Al-Qawmi Al-Ijtima’i), sendo que nenhum dos dois foi fundado por árabes muçulmanos, e sim por árabes cristãos: o primeiro pelo cristão ortodoxo sírio Michel Aflaq, e o segundo pelo libanês também cristão ortodoxo Anton Saadeh. Por fim, comprovando a heterogeneidade de grupos identificados como únicos, os bósnios e albaneses são um povo europeu de religião muçulmana e culturalmente eslavos, lembrando ao mundo que, na Europa, as tradições cristã e muçulmana podem se fundir, sendo absurdamente simplista a divisão Oriente e Ocidente, principalmente quando apontadas como civilizações rivais (HOURANI, 1994). 4 AS UTILIDADES LEGITIMADORAS DE TAIS CONCEITOS Separar o mundo em Oriente e Ocidente não é uma simplificação inocente. Trata-se de verdadeira ferramenta geopolítica, legitimadora da invasão de países por outros. Os povos atrasados e incivilizados precisariam da ajuda dos povos avançados e civilizados fazendo-lhes quase que o favor de tirar-lhes da escuridão. Este foi um dos argumentos utilizados para justificar o tráfico negreiro, a morte de índios nas Américas, o colonialismo na África e 120 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA Ásia, o apartheid na África do Sul, a expulsão de palestinos e a invasão americana do Afeganistão e Iraque. Atualmente, o islamismo é apresentado como uma religião violenta, antidemocrática e perseguidora de mulheres, o que se comprovaria pela existência de grupos que, na verdade, é uma pequena minoria e não representam os cânones da religião. Concluem, por exemplo, que, se a Al Qaeda viola os direitos femininos, é porque o islamismo inteiro adota tal posicionamento. Partindo dessa mesma lógica, e considerando que o Brasil é um país onde existe um elevado índice de violência contra a mulher - daí a necessidade da criação de uma lei específica que a combatesse, chamada de Maria da Penha, seria correto afirmarmos que, sendo o Brasil um país cristão, o cristianismo é essencialmente violento contra a mulher? A tentativa de caracterizar o islamismo como uma “civilização anticristã”, cultuadora de um “deus diferente”, ou uma religião essencialmente violenta, tem origens políticas: serve para a desumanização dos muçulmanos, o que automaticamente legitima a invasão dos seus países e a negativa dos seus direitos. A ideia oculta é que os Direitos Humanos valem para seres humanos, e como os muçulmanos são tão diferentes de nós - novamente a dicotomia nós e eles, isso desfigura a sua humanidade, privando-lhes dos direitos correspondentes. Isso não é um fato novo. Durante as cruzadas, europeus chegavam à Palestina e, atônitos, escreviam para casa dizendo que foram enviados para matar muçulmanos com “chifres e rabo”, mas, ao chegar ali, tudo o que encontravam eram homens e mulheres, não demônios. O historiador inglês Bernard Lewis, orientalista consultor da Casa Branca para assuntos do Oriente Médio, entusiasta da recente invasão bélica americana no Iraque, faz uma releitura dos cânones orientalistas, ao pregar o que vê como a “necessária invasão americana Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 110-123 www.fabelnet.com.br/ensinagem 121 Stephan Fernandes Houat a países árabes, para levar a superioridade cultural ocidental ao bárbaro mundo oriental”, fazendo da já antiga utilização da mentalidade nós e eles um motor ideológico geopolítico (LEWIS, 2002). Enquanto os muçulmanos detiverem as maiores reservas de petróleo do mundo e, enquanto o petróleo for essencial para a indústria, eles continuarão sendo retratados com “chifres e rabos”, como inimigos incansáveis a serem combatidos com fúria. Quem sabe de que forma o mundo irá caracterizar os brasileiros no futuro, se nossas reservas de água doce forem disputadas por potências internacionais? Decerto deixaremos de ser o povo do “samba e da amizade”, e logo ganharemos também chifres, rabos e odor a enxofre. REFERÊNCIAS ATTIE FILHO, Miguel. Falsafa - A Filosofia Entre os Árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002. A TV que se faz no mundo. Rio de Janeiro: TV BRASIL, 06 de setembro de 2013. Programa de TV. BÍBLIA. Português. Disponível em: www.bibliaonline.com.br. Último acesso em 06/09/2013. BROWN, Dee. Enterrem meu Coração na Curva do Rio. São Paulo: LP&M, 2003. GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. São Paulo: LP&M, 2010. GANDHI, Mohandas Karamchand. Minha Vida e Minhas Experiências com a Verdade. HOURANI, Albert Habib. Uma História dos Povos Árabes. São Paulo: Companhia da Letras, 1994. 122 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 110-123 O MITO ORIENTE-OCIDENTE E SUA MANIPULAÇÃO GEOPOLÍTICA HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações. São Paulo: Ponto de Leitura, 2010. KIMCHE, Jon. Nações do Mundo – Índia. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1990. LEWIS, Bernard. Time for Toppling. Disponível em: http://online.wsj.com/ article/SB1033089910971012713.html. Último acesso em 06/09/2013. NASR, Helmi. Tradução do sentido do Nobre Alcorão. Disponível em: www. luzdoislam.com.br/br/tradução-sentido-do-nobre-alcorão-a526.htm. Último acesso em 06/09/2013. SAID, Edward. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003. ____________. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo. Companhia das letras, 1990. ZAIDAN, Assaad. Letras e Histórias - Mil Palavras Árabes na Língua Portuguesa. 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