INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA
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INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA
Ensinagem: Revista Periódica da Faculdade de Belém INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: Ensinagem: Faculty Belém Journal V. 2, de n. 1,comunicação Janeiro/Junho p. 95-109 As consequências da of publicidade, dos meios e da2013, sociedade de consumo na modernidade líquida ISSN 2238-4871 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida INDIVIDUAL AND THE CONSUMERISM, THE DAILY FIGHT CLUB: The consequences of advertising, media and the consumer society in the liquid modernity INDIVÍDUO Y CONSUMISMO, EL CLUBE DE LA LUCHA COTIDIANA: Las consecuencias de la publicidad, de los medios de comunicación y de la sociedad de consumo en la modernidad líquida. Gabriel Lage da Silva Neto 1 RESUMO Com o objetivo de reunir argumentos para a compreensão dos fenômenos sociais aos quais o indivíduo que vive na modernidade líquida, conceito criado pelo sociólogo Zygmunt Bauman, está exposto, este artigo pretende dar destaque para a colaboração que a publicidade, aliada aos grandes meios de comunicação, dá para a sociedade de consumo. Através do pensamento crítico e com o embasamento teórico de autores como Bauman, Berger, Coelho, Klein e Marshall. Temas como o consumismo, a exauribilidade das coisas e o culto ao supérfluo na realidade contemporânea serão relacionados com o filme Clube da luta, dirigido por David Fincher e baseado no livro homônimo de Chuck Palaniuk. 1 Doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Mestre em Comunicação (Faculdade Cásper Líbero). Especialista em Gestão da Comunicação (USP). Autor do livro “Mito e comunicação: a importância da mitologia e sua presença na mídia”. Professor da Faculdade Integrada Brasil Amazônia - Fibra. Email: [email protected]. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 95 Gabriel Lage da Silva Neto Palavras-chave: Publicidade. Mídia. Sociedade de consumo. Modernidade. Cinema. ABSTRACT In order to gather arguments to the understanding of social phenomena to whom the individual who lives in the liquid modernity, a concept created by the sociologist Zygmunt Bauman, is exposed, this article aims to highlight the collaboration that advertising, combined with mass media, gives to the consumer society. Through critical thinking and the theoretical background of authors such as Bauman, Berger, Coelho, Klein and Marshall. Subjects such as consumerism, the exhaustibility of things and the worship to the superfluous in the contemporary reality will be related to the movie Fight Club, directed by David Fincher and based on the homonymous book by Chuck Palaniuk. Keywords: Advertising. Media. Consumer society. Modernity. Cinema. RESUMEN Con el objetivo de reunir argumentos para la comprensión de los fenómenos sociales a los cuales el indivíduo que vive en la modernidad líquida, concepto creado por el sociólogo ZygmuntBauman, está exposto, este artículo pretiende dar destaque para la colaboración que la publicidad, aliada a los grandes medios de comunicación, da para la sociedad de consumo. A través del pensamiento crítico y con la base teórica de autores como Bauman, Berger, Coelho, Klein y Marshall. Temas como el consumismo, el agotamiento de las cosas y el culto al supérfluo en la realidad contemporánea serán relacionados con la película Clube da Luta, dirigido por David Fincher y con base en el libro homónimo de Chuck Palaniuk. Palabras-clave: Publicidad. Mídia. Sociedade y Consumo. Modernidad. Cinema. 96 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida 1 INTRODUÇÃO Engana-se por completo quem crê que o cinema contemporâneo norte-americano é formado apenas por produções que tem o lucro como intuito único. Um olhar mais atento vai revelar que muitas de suas narrativas objetivam passar adiante uma importante mensagem para a sociedade (LAGE NETO, 2010). O filme Clube da Luta, dirigido por David Fincher e inspirado no livro homônimo escrito por Chuck Palahniuk, é um bom exemplo dessa questão. A observação mais superficial vai entender o citado filme como apenas mais um exemplar das dezenas que são produzidos anualmente que têm como tema central a violência e a depredação urbana. Sem dúvida a obra trata disso, mas não somente. A falta de sentido na vida, a busca por algo maior, a batalha contra forças invisíveis, entre outros temas tão comuns na filosofia e na mitologia, são elementos que enriquecem essa história e a tornam indispensável para o entendimento do mundo em que vivemos. De uma hora para a outra, a luta, ainda que inconsciente, do personagem denominado Narrador (representado por Edward Norton) contra o seu vazio existencial e a sua dependência do consumismo toma proporções tão gigantescas que ele próprio só vai conseguir compreendê-las na parte final da história. Tyler Durden personagem vivido por Brad Pitt - é a complexa personalidade que ora se apresenta como aliado e ora como antagonista do Narrador em sua jornada. A ficção retratada em Clube da Luta, por mais absurda que pareça, não está muito longe da realidade do indivíduo que vive na modernidade líquida¹ e que cotidianamente se encontra em choque com a publicidade, os meios de comunicação e a sociedade de consumo, como se vê a seguir. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 97 Gabriel Lage da Silva Neto 2 PUBLICIDADE A publicidade nos faz correr atrás de carros e roupas. Trabalhar em empregos que odiamos para poder comprar bobagens que não precisamos. Tyler Durden. A publicidade geralmente é mostrada como uma mídia competitiva e relacionada a ideais de liberdade. Como escreveu John Berger, em seu livro Modos de ver: “liberdade de escolha para o comprador; liberdade de empreendimento para o fabricante. Os grandes tapumes cobertos de cartazes e néons publicitários das cidades do capitalismo são o sinal visível do ‘mundo livre’” (1999, p. 133). Porém, com uma linguagem bastante singular, a publicidade não oferece muita liberdade de escolha ao consumidor, na verdade a sua proposta é uma só, novamente de acordo com Berger (1999, p. 133): “ela propõe a cada um de nós que nos transformemos, ou a nossas vidas, ao comprar alguma coisa a mais”. O indivíduo se acostumou de tal forma com a publicidade que já não nota mais a influência desta em sua vida. Ela está em toda a parte, pronta para persuadir a mudança, o consumo. Ela precisa convencer o indivíduo de que ele pode ser melhor, sempre mostrando que o tempo presente não é satisfatório, pode e precisa ser melhorado por meio do consumo, tenta fazer com que ele acredite que o produto a ser consumido vai mudar, para melhor, seu viver, seu jeito de ver e ser visto. O indivíduo acaba por acreditar e comprar, e, por quase nunca sentir-se satisfeito (sempre há uma nova moda, um novo modelo de automóvel, uma nova cor da estação, etc.), continua comprando. Da metade do século XX em diante o discurso publicitário se firmou como uma das mais poderosas ferramentas do mundo 98 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida capitalista. De acordo com Marshall (2003, p. 93) “a linguagem da sedução passou a modelar as relações sociais, políticas e econômicas e transmutou diretamente o universo da sociedade, da comunicação e da cultura”. A partir de então, tem-se, cada vez mais, a impressão de que não existe lugar no mundo onde ela não esteja. Marshall (2003, p. 93) prossegue: “A publicidade se converteu em um dos motores da engrenagem da sociedade capitalista, e, qualifica-se já a assumir o lugar da imprensa no posto de quarto poder de nosso modelo econômico de sociedade”. Segundo Coelho (2003, p. 05), “acompanhar o desenvolvimento da publicidade é acompanhar o desenvolvimento da sociedade de consumo”. A missão publicitária é fazer com que o indivíduo acredite que os produtos por ela anunciados irão mudar a sua vida. E como não acreditar, se, para os artistas do cinema, as estrelas do rock, os apresentadores da TV e os modelos retratados nas revistas, basta vestir as grandes marcas, beber a cerveja do comercial e dirigir os melhores carros para serem tão felizes, amados e invejados? Por que ele, indivíduo comum, que consome os mesmos produtos, também não pode ser? Um dos resultados do sucesso publicitário é o que se vê praticamente em todos os lugares: pessoas trajando basicamente as mesmas roupas, ainda que o estilo mude de acordo com a “tribo” na qual essas pessoas estão inseridas. Há mais ou menos trinta anos a tendência mais seguida, independentemente de idade, cor, sexo ou classe socioeconômica, é o uso de roupas que são verdadeiros outdoors de grifes famosas. Em camisetas, calças jeans ou calçados, as grandes marcas estão lá, estampadas. E quanto maior for o tamanho da estampa, melhor. O que raramente se percebe é que, através dessa ostentação das marcas, o indivíduo passa a ser ele mesmo um cartaz, um anúncio publicitário, e nem ao menos está recebendo por isso. Muito pelo contrário, está pagando e, na maioria das vezes, absurdamente caro. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 99 Gabriel Lage da Silva Neto Exatamente como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade: “Desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito, premência, indispensabilidade, e fazem de mim homem-anúncio itinerante, escravo da matéria anunciada”². Na ocasião do lançamento de uma nova linha de roupas com a marca do canal esportivo Fox Sports, o CEO da Fox Broadcasting, David Hill, deu a seguinte declaração: “Esperamos ver a atitude e o estilo de vida da Fox Sports fora da TV e nas costas dos homens, criando uma nação de cartazes ambulantes” (KLEIN, 2002, p. 68). Segundo Marshall (2003): Viver em qualquer cidade grande ou média do mundo ocidental significa estar em meio a um bombardeio cultural, com mensagens de todas as formas e conteúdos procurando aliciar, persuadir e convencer os cidadãos. Mesmo que não queira, ninguém consegue viver alheio a esse tiroteio de tentações (MARSHALL, 2003, p. 94). “Na maioria das vezes, as pessoas não sabem o que querem, até que você mostre para elas”. Esta célebre frase, que reverbera há bastante tempo pelos quatro cantos do mundo, é atribuída ao empresário Steve Jobs (s/d). Pode-se dizer que a afirmação resume muito bem o pensamento publicitário contemporâneo, que anuncia diariamente novos produtos ditos indispensáveis. Curiosamente a sociedade em geral, vivia bem antes da invenção dos mesmos. Nas palavras de Coelho (2003, p. 8) “somos incentivados a sentir cada vez mais necessidades, tornando-se difícil saber o que é uma necessidade real e o que é uma necessidade criada pela publicidade”. Coelho (2003) segue afirmando: 100 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida O conjunto de peças publicitárias funciona como um sistema que captura a dimensão instintiva dos membros da sociedade capitalista de consumo, esvaziando a capacidade de sermos sujeitos dos nossos próprios desejos. A publicidade diz o que devemos desejar, por que devemos desejar e como os desejos podem ser realizados: a dimensão instintiva foi colocada a serviço da reprodução da sociedade capitalista de consumo. Desejamos o que esta sociedade nos oferece, dela dependemos para a concretização dos desejos. Mas, esta situação de dependência não é vivida enquanto tal. Assim como a criança não possui consciência da sua situação de dependência da mãe, o consumidor também não possui consciência da sua dependência das empresas fabricantes dos produtos que consome ou gostaria de consumir (COELHO, 2003, p. 10). Uma das provas de que a publicidade está profundamente entranhada na sociedade contemporânea é que nós “aceitamos a totalidade do sistema de imagens publicitárias da mesma maneira que aceitamos um elemento do clima” (BERGER, 1999, p.132). Ela se faz presente em todos os lugares, nos outdoors das grandes avenidas, nos milhares de folhetos que são entregues pelas ruas, e, principalmente, nos grandes meios de comunicação: na televisão, no rádio, na internet, nas revistas e nos jornais impressos. 3 MEIOS DE COMUNICAÇÃO Crescemos assistindo televisão e acreditando que um dia seríamos milionários, deuses do cinema e estrelas do rock. Mas não seremos. Tyler Durden. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 101 Gabriel Lage da Silva Neto Desde a sua implementação no Brasil, a televisão se caracterizou como um veículo publicitário. Diversos programas incorporavam o nome do patrocinador ao seu, como era o caso de: Repórter Esso, Telejornal Pirelli, Gincana Kibon, Telenotícias Panair e, o mais famoso deles, o Jornal Nacional³, dentre diversos outros. De lá para cá o que mudou foi apenas o aumento do poder publicitário sobre as mídias e a adoção de estratégias que fazem com que o discurso publicitário se infiltre com mais facilidade e menos percepção à grade de programação. A relação de dependência dos meios de comunicação para com a publicidade em todo o mundo chega ao ponto de os anunciantes terem o poder de escolher o que será ou não divulgado, publicado ou exibido. Eis um exemplo: O vice-presidente de uma empresa anunciante de comprimidos contra dor de cabeça, os laboratórios Whitehall, contou à FCC o que a companhia exigia das redes: se uma cena mostra alguém cometendo suicídio pela ingestão de um vidro de comprimidos, queremos que não vá ao ar (BAGDIKIAN apud MARSHALL, 2003, p. 113). É complicado entender como um meio de comunicação tão dependente do capital publicitário pode manter um compromisso com seu público. Imaginemos uma situação onde seja necessária fazer uma denúncia contra uma empresa patrocinadora, a quem o veículo se manterá fiel, à sociedade ou à organização que o mantém funcionando? “A publicidade é à base da sustentação econômica da mídia de massa moderna. Bagdikian revela que 75% dos rendimentos dos jornais provêm dos anúncios. No rádio e na televisão, a publicidade também banca a maior parte dos custos operativos” (MARSHALL, 2003, p. 107). Com base nesses números é difícil imaginar uma realidade onde os meios de comunicação tenham chances de conquistar sua independência em relação à publicidade. 102 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida A internet também é um meio onde as grandes empresas enxergaram excelentes oportunidades para a propaganda de seus produtos. Milhões de usuários da rede têm acesso a textos informativos onde, por exemplo, ao mesmo tempo em que leem a notícia da vitória de um corredor de 100 metros rasos, podem, com um simples clique, comprar o tênis da marca do patrocinador do atleta, a camiseta do evento esportivo, ou passagens de avião para o país onde a próxima competição se realizará. O provedor de acesso UOL – Universo Online mantém um extenso portal de notícias. Nesse portal, ao lado da notícia escolhida para ser lida pelo internauta, estão os anúncios de diversos produtos que, convenientemente, têm relação com o conteúdo da matéria que está sendo exibida. Assim, ao ler sobre um show da sua banda norte-americana preferida, o internauta também pode adquirir uma passagem aérea Brasil – Estados Unidos. Ao lado de um texto sobre o aumento do desemprego no mês anterior, estará o anúncio de vendas de apostilas para concursos, e assim por diante. Outra novidade proporcionada pela internet são as páginas criadas pelas próprias empresas que costumavam anunciar em portais como o do UOL. Agora, no lugar de financiar o conteúdo de alguém, elas mesmas assumem o papel de provedores de conteúdo. “O site da Gap oferece dicas de viagem, a Volkswagem oferece trechos gratuitos de música, a Pepsi incita os visitantes a baixar videogames e a Starbucks oferece uma versão online de sua revista, a Joe” (KLEIN, 2002, p. 67). Tudo isso sem contar com todos os sites especializados em vendas on-line, alguns dos quais geridos por empresas que já mantinham canais televisivos, cuja programação alcança quase 100% de televendas. Com a internet, essas organizações conseguiram mais um espaço onde vender produtos propagandeados como imprescindíveis para a vida do indivíduo. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 103 Gabriel Lage da Silva Neto 4 SOCIEDADE DE CONSUMO E O INDIVÍDUO Você acaba pertencendo às coisas que lhe pertencem. Tyler Durden. Doze prédios onde funcionam as matrizes empresariais dos maiores cartões de crédito do mundo estão para explodir. Com este ato terrorista, o controverso herói Tyler Durden pretende iniciar uma revolução que tem por um de seus objetivos o extermínio da sociedade de consumo. Esta é a primeira cena do filme Clube da luta. No primeiro capítulo de seu livro Vida para consumo, o sociólogo polonês Bauman (2008), afirma: Aparentemente, o consumo é algo banal, até mesmo trivial. É uma atividade que fazemos todos os dias, por vezes de maneira festiva, ao organizar um encontro com os amigos, comemorar um evento importante ou para nos recompensar por uma realização particularmente importante – mas a maioria das vezes é de modo prosaico, rotineiro, sem muito planejamento antecipado nem considerações (BAUMAN, 2008, p. 37). O ato do consumo é tão antigo quanto a nossa sociedade. Desde a revolução industrial, quando o indivíduo passou de produtor para consumidor, é perfeitamente comum pagarmos para consumir bens essenciais para nossa sobrevivência e conforto: bebida, comida, medicamentos, itens de higiene pessoal, roupas, automóveis, moradias, a lista é interminável. Porém, nas páginas seguintes de seu livro, Bauman (2008) fala de outra revolução, a revolução consumista. Esta se deu quando o consumo se tornou extremamente importante para a vida da sociedade, como se fosse à verdadeira missão do 104 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida indivíduo na terra. “E quando nossa capacidade de querer, desejar, ansiar por e particularmente de experimentar tais emoções repetidas vezes de fato passou a sustentar a economia do convívio humano” (BAUMAN, 2008, p. 38-9). Um pouco mais adiante no filme, vemos o ator Edward Norton representando o personagem conhecido como o Narrador. Ele está em seu apartamento folheando um catálogo de compras. Enquanto é mostrada a imagem do personagem comprando pelo telefone um conjunto de mobília para sua sala, que por sinal ainda conta com móveis novos, um monólogo do próprio Norton compõe o fundo da cena: Como muitos outros, eu me tornei um escravo do instinto consumista caseiro. Se eu visse algo interessante, como uma pequena mesa para café no formato de um yin-yang, eu tinha que comprar. O conjunto de escritório Klipsk. A bicicleta ergométrica Hovertrekke. Ou o sofá Ohamshab com o padrão de listras verdes. Até mesmo a cúpula de abajur Ryslampa de papel biodegradável. Eu folheava os catálogos e imaginava “que tipo de jogo de jantar me define como pessoa?”. Eu tinha tudo, até os pratos de vidro com pequenas bolhas e imperfeições. Prova de que tinham sido feitos pelos honestos, simples, trabalhadores, povos indígenas de... Sei lá onde (BAUNAM, 2008, p. 40). O que os indivíduos adeptos do estilo de vida consumista ambicionam primeiramente é simplesmente possuir. Seja pelos benefícios que essas posses lhes proporcionam, ou pelo status que elas lhes conferem, perante a sociedade. Para Bauman (2008, p. 41), o consumismo “é um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer, ‘neutros quanto ao regime’, transformando-os na principal força propulsora e operativa da sociedade”. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 105 Gabriel Lage da Silva Neto Os meios de comunicação, em especial a televisão, estimulam esse comportamento consumista da sociedade. Por exemplo, em seus programas matutinos e vespertinos de variedades onde, entre uma reportagem e outra, o próprio apresentador se dirige a um balcão e faz, ele mesmo, a propaganda do patrocinador. As novelas também não ficam atrás na corrida da venda do telespectador para o capital publicitário, cada vez mais são destacados os rótulos e marcas dos produtos - que vão de fósforos a carros de luxo - através de closes indisfarçados. Nem é necessário falar dos reality shows, onde, a cada episódio, os patrocinadores se fazem extremamente visíveis, com suas marcas compondo temas de competições, cenários e até mesmo uniformes dos participantes. Uma das características da modernidade líquida, termo cunhado por Bauman (2008, p. 42), é a fugacidade, a descartabilidade, a fluidez. Tudo é líquido, tudo tem curto prazo de validade: relacionamentos sejam estes profissionais, pessoais ou amorosos; estilos de ser, agir e pensar; e, como não poderia deixar de ser, bens de consumo. Bauman explica que na era sólido-moderna, “amplos volumes de bens espaçosos, pesados, obstinados e imóveis auguravam um futuro seguro, que prometia um suprimento constante de conforto, poder e respeito pessoais”. Bem diferente dos tempos contemporâneos onde os bens de consumo parecem mesmo ser feitos para quebrar o mais rápido possível. O espantoso é que “os consumidores experientes não se incomodam em destinar as coisas para o lixo” (BAUMAN, 2007, p. 111), muito pelo contrário... Aceitam a curta duração das coisas e seu desaparecimento predeterminado com tranqüilidade, ou por vezes com uma satisfação mal disfarçada. Os adeptos mais habilidosos e sagazes da arte consumista sabem como se regozijar por se livrar das coisas que ultrapassaram o tempo de uso (BAUMAN, 2007, p. 111). 106 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida O personagem de Norton atende ao chamado da aventura e atravessa o primeiro limiar4 quando seu apartamento5 vai pelos ares e ele se vê, pela primeira vez, isolado de todos os seus bens materiais. A cena conta com uma fala interessantíssima do personagem ao ver sua geladeira destruída no meio da rua: “que vergonha, cheia de condimentos, mas sem comida nenhuma” (COELHO, 2003, p. 11). Uma referência direta aos consumistas: pessoas que têm de tudo, menos o que é realmente importante. Na cena seguinte, o Narrador se lamenta para Tyler Durden sobre seu apartamento e seus pertences perdidos: “Eu tinha tudo. Um aparelho de som muito decente, uma coleção de roupas que estava ficando muito respeitável. Eu estava perto de me sentir completo”. Percebe-se que a afirmativa de Coelho (2003, p. 12), “o consumidor se relaciona com as mercadorias como se estas fossem um prolongamento dele mesmo”, faz total sentido ao analisarmos este diálogo. Em resposta ao seu mais novo amigo, Tyler Durden define a sociedade contemporânea: Somos consumistas, somos subproduto de uma obsessão por estilo de vida. Assassinato, crime, pobreza. Essas coisas não me interessam. O que me interessa são revistas de celebridades, televisão com 500 canais, o nome de alguém na minha roupa intima, Rogaine, Viagra, Olestra. 5 CONCLUSÃO A sociedade contemporânea está exposta por completo aos meios de comunicação, à publicidade e aos apelos do consumismo. Em alguns casos o conhecimento pode ser um instrumento que vai trabalhar a favor do indivíduo contra o discurso que tenta homogeneizar, alienar e dominar o maior número possível de pessoas. Não existe uma fórmula mágica para escapar dessa realidade. Porém, talvez ter a simples noção de que constantemente algo ou alguém Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 107 Gabriel Lage da Silva Neto está tentando manipulá-la, influenciar seus ideais e controlar suas ações, já seja um bom começo para a sociedade. A cultura é a mais forte aliada do indivíduo em todas as situações de sua vida. O isolamento do mundo não vai lhe trazer nenhum benefício, muito pelo contrário, continuará o alienando, assim como faz a aceitação cega a tudo o que lhe é imposto pelos meios de comunicação. Já a posse do pensamento crítico e compreensivo, que é garantida pelo conhecimento e pelo estudo, certamente irá auxiliá-lo na interpretação e na formulação de opiniões sobre tudo aquilo que lhe é apresentado. A mensagem do filme Clube da luta, assim como a de Bauman e de todos os outros autores aqui citados pode ser assim resumida: enquanto o indivíduo continuar a permitir ser tratado como um produto inerte que a mídia vende para seus patrocinadores, a sua intelectualidade continuará tão oca quanto um bom slogan publicitário. Ele pode ter certeza que, como uma mercadoria descartável que se tornou, em um futuro próximo estará em algum fundo de gaveta empoeirada, fazendo companhia aos bens de consumo de curtíssima vida útil que ele mesmo descartou. NOTAS 1 O sociólogo polonês Zygmunt Bauman é o criador da expressão modernidade líquida (que, inclusive, é o nome de uma de suas diversas obras sobre o tema). Na modernidade líquida tudo é fluído, nada dura, tudo está em constante mudança. A cultura, os bens de consumo, as personalidades, as opiniões estão sempre ao sabor do vento e ao ritmo da música. Nada é definitivo (Cf. BAUMAN, 2001). 2 Trecho do poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade. 3 O nome do jornal se deve ao seu primeiro patrocinador, o Banco Nacional. 4 “O chamado da aventura” e “a passagem pelo primeiro limiar”, termos criados pelo mitólogo norte-americano Joseph Campbell (1904-1987), são 108 www.fabelnet.com.br/ensinagem Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n. 1, jan./jun. 2013, p. 95-109 INDIVÍDUO E CONSUMISMO, O CLUBE DA LUTA COTIDIANO: As consequências da publicidade, dos meios de comunicação e da sociedade de consumo na modernidade líquida estágios integrantes da fascinante jornada do herói, descrita no livro O herói de mil faces, publicado pela primeira vez em 1949. 5 O apartamento do personagem é localizado em um condomínio cujo slogan é “a place to be somebody” - um lugar para ser alguém, traduzido para o português ao pé da letra. Mais uma referência da obra às posses que acabam definindo a personalidade de seus proprietários. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2001. _________. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. _________. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. BERGER, John. Modos de ver. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 2007. CLUBE DA LUTA. Direção: David Fincher. Produção: Michael Deeley. Intérpretes: Brad Pit (Personagem- Tyler Durden), Edward Norton, Helena Bonham e outros. Roteiro: Chuck Palahnuuk. Gênero: Suspense e Drama. Filme- DVD (139 MIN), Widescreen, Color. Los Angeles (USA): Warner Brothers, 1999. COELHO, Cláudio. Publicidade: é possível escapar? São Paulo: Paulus, 2003. KLEIN, Naomi. Sem logo. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002. LAGE NETO, Gabriel. Mito e comunicação: a importância da mitologia e sua presença na mídia. São Paulo: Plêiade, 2010. MARSHALL, Leandro. O jornalismo na era da publicidade. São Paulo: Summus, 2003. Ensinagem, Belém/PA-Brasil, v.2, n.1, jan./jun.2013, p. 95-109 www.fabelnet.com.br/ensinagem 109
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