O Nascimento de Vênus

Transcrição

O Nascimento de Vênus
SARAH DUNANT
O Nascimento
de Vênus
Tradução de
Ana Luiza Dantas Borges
EDITORA RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2005
Outras obras da autora publicadas pela Editora Record
Marcas de nascença (Coleção Negra)
Sob minha pele (Coleção Negra)
Transgressões
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.
D93n
Dunant, Sarah
O nascimento de Vênus / Sarah Dunant; tradução de Ana
Luiza Dantas Borges. - Rio de Janeiro: Record, 2005.
Tradução de: The birth of Venus
ISBN 85-01-06993-0
05-1093
1. Ficção inglesa. I. Borges, Ana Luiza Dantas. II. Título.
CDD - 823
CDU- 821.111-3
Título original inglês:
THE BIRTH OF VENUS
Copyright © Sarah Dunant 2003
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
À minha mãe, Estelle, e às minhas filhas Zoe e Georgia.
Prólogo
NINGUÉM A VIRA NUA ATÉ A SUA MORTE. Era uma norma da ordem que
as irmãs não olhassem o corpo humano, nem o seu próprio nem o de qualquer
outra pessoa. Uma quantidade considerável de pensamentos era desencadeada
por essa observância. Sob as dobras serpeadas de seus hábitos, cada religiosa
usava uma camisa de algodão comprida, peça que nunca tiravam, nem mesmo
quando se lavavam, de modo que funcionasse como uma tela e parte de um pano
para se enxugarem, assim como camisola. Essa camisa era trocada uma vez por
mês (mais no verão, quando o ar estagnado da Toscana as banhava de suor), e
havia instruções minuciosas do procedimento correto: como deviam manter os
olhos firmemente fixados no crucifixo acima de sua cama enquanto retiravam os
paramentos. Se alguma permitisse que seu olhar se desviasse para baixo, o
pecado era assunto para o confessionário e, portanto, não para história.
Corria um boato de que quando a Irmã Lucrezia tinha entrado para o
convento, havia levado consigo uma certa vaidade juntamente com sua vocação
(seu dote para a igreja, diziam, incluía uma arca de núpcias prodigamente
decorada, cheia de livros e quadros propícios aos cuidados da Polícia Suntuária).
Mas aqueles eram tempos em que a irmandade estava propensa a tais acidentes
de ofensa e fausto, e, a partir da reforma do convento, as normas se tornaram
mais estritas. Nenhum dos habitantes atuais teria como se lembrar de algo tão
remoto, exceto a Reverenda Madre, que havia se tornado uma noiva de Cristo
por volta da mesma época que Lucrezia, mas que há muito virará as costas a tal
mundanismo. Quanto à Irmã Lucrezia, nunca falou de seu passado. De fato, em
seus últimos anos de vida, havia falado muito pouco. De que era pia, não havia a
menor dúvida. E assim como seus ossos se recurvaram e se grudaram com a
idade, a sua piedade e modéstia tinham se fundido. De certa maneira, era natural.
Mesmo que tivesse sido tentada pela vaidade, que superfície teria encontrado
para nela se refletir? O convento não tinha nenhum espelho, as janelas, nenhum
vidro, até mesmo o lago de peixes nos jardins tinha sido projetado com uma
fonte no meio, lançando uma saraivada de chuva para impedir qualquer
possibilidade de narcisismo na superfície da água. É claro que mesmo nas
ordens mais puras, alguma transgressão seria inevitável, e havia tido vezes em
que algumas das noviças mais sofisticadas haviam sido pegas considerando,
sub-repticiamente, seu retrato miniaturizado nas pupilas dos olhos de seus
presbíteros. Mas quase sempre este desaparecia quando a imagem de Nosso
Senhor se assomava maior.
A Irmã Lucrezia parecia não ter olhado diretamente para ninguém fazia
muitos anos. Havia passado cada vez mais tempo em devoção em sua cela, seus
olhos enuviados com a idade e o amor por Deus. Quando sua doença se agravou,
teve de ser absolvida do trabalho manual, e enquanto as outras estavam
trabalhando, ela podia ser encontrada nos jardins ou na horta de ervas que
cultivara ocasionalmente. Na semana anterior à sua morte, tinha sido vista ali
pela jovem noviça, Irmã Garmilla, que havia se alarmado ao se deparar com a
freira anciã não sentada no banco, mas estendida sobre o chão de terra, o corpo
sob o hábito distendido com o tamanho do tumor, sua touca posta de lado e a
face virada para os raios de sol de fim de tarde. Esse despojamento era uma
violação flagrante das regras, mas nessa época, a doença tinha penetrado tão
fundo e a sua dor era tão evidente, que a Reverenda Madre não conseguiu se
decidir a discipliná-la. Depois, quando as autoridades tinham partido e o corpo,
finalmente, sido levado, Carmilla espalhara o boato que repercutia daquele
encontro pela mesa do refeitório, contando como o cabelo desgrenhado da freira,
livre da touca, tinha refulgido como um halo cinza ao redor de sua cabeça, e
como seu rosto se iluminara de felicidade; só que o sorriso, que brincava em
seus lábios, tinha sido mais de triunfo do que de beatificação.
Naquela última semana de sua vida, quando a dor emanou em ondas cada
vez mais profundas, arrastando-a em sua contracorrente, o corredor do lado de
fora de sua cela começou a cheirar a morte; um aroma fétido, como se a sua
carne já estivesse se decompondo. O tumor tinha crescido tanto e se tornado tão
doloroso que ela não conseguia mais se sentar na cama. Introduziram médicos
na igreja, até mesmo um de Florença (a pele podia ser exposta para aliviar o
sofrimento), mas ela recusara todos eles e não dividira sua agonia com ninguém.
A protuberância permaneceu não somente coberta como completamente
oculta. O verão, então, as oprimia, e o convento fervia de dia e abafava â noite,
e, ainda assim, ela ficava deitada sob o cobertor, completamente vestida. O
volume do hábito das religiosas era desenhado de modo a esconder qualquer
indício de forma ou curva feminina. Cinco anos antes, no maior escândalo que
atingira o convento desde os corruptos velhos tempos, uma noviça de quatorze
anos, vinda de Siena, ocultara nove meses de gravidez tão perfeitamente que só
foi descoberta quando a irmã da cozinha se deparou com vestígios de secundinas
no canto da adega e, temendo serem as entranhas de algum animal
semidevorado, procurou até encontrar o pequenino corpo intumescido, afundado
com o peso de um saco de farinha em um tonel de vinho da comunhão. Da
garota, não havia sinal. Quando questionada depois de ter desmaiado, pela
primeira vez, durante as matinas, um mês antes, a Irmã Lucrezia confessou que
o caroço em seu seio esquerdo havia surgido há algum tempo, a sua energia
maligna Bolsando contra sua pele como um pequeno vulcão. Mas desde o
começo foi inflexível, declarando que não havia nada a ser feito. Depois de um
encontro com a Reverenda Madre, que fez com que essa se atrasasse para as
vésperas, não se tocou mais no assunto. Afinal, a morte era uma escala
temporária em uma viagem mais longa, o que, em uma casa de Deus, era algo
que, mais do que temido, deveria ser recebido com prazer. Em suas últimas
horas, ela foi ficando cada vez mais ensandecida de dor e febre. As fortes
concocções de ervas não lhe provocavam nenhum alívio. Enquanto, antes,
suportara seu sofrimento com coragem, era, agora, ouvida uivando noite adentro
como um animal, um som desesperado que assustava despertando as jovens
freiras nas celas próximas. Junto com o uivo, ouviam-se palavras esporádicas,
gritadas em explosões em staccato ou sussurradas como versos de uma oração
desvairada; latim, grego e toscano, tudo junto em uma pasta verbal espessa.
Finalmente, foi levada por Deus em uma manhã, quando mais um dia
abafado despontava. O padre que fora ministrar os ritos finais tinha-se ido e ela
estava só com uma das irmãs enfermeiras que contou como, no momento em
que sua alma partia, o rosto de Lucrezia havia se transformado miraculosamente,
as linhas gravadas pela dor se desfazendo, deixando a pele lisa, quase
translúcida; um eco da jovem e delicada freira que chegara às portas do
convento trinta anos antes.
A morte foi anunciada formalmente no ofício das matinas. No entanto, por
causa do calor (a temperatura nos últimos dias tinha derretido a manteiga na
cozinha), acharam necessário enterrar o corpo de dia. Era costume do convento
conceder a toda irmã que partia a dignidade de um corpo limpo, assim como
uma alma imaculada e vesti-la em um hábito novo; um vestido de noiva para a
noiva que finalmente se unia ao seu marido divino. Esse ritual era realizado pela
Irmã Magdalena que administrava a farmácia e ministrava os remédios
(recebendo uma dispensa especial para ver o corpo físico na mais divina das
ocasiões), auxiliada por uma freira mais jovem, a Irmã Maria, que acabaria por
assumir a tarefa. Juntas, lavavam e vestiam o corpo, depois o deitavam na capela
onde permanecia por um dia, enquanto o resto do convento prestava seus
respeitos. Mas nessa ocasião seus serviços não foram solicitados. Irmã Lucrezia,
parece, tinha feito um pedido especial antes de morrer: que o seu corpo
permanecesse intocado, no hábito em que ela servira ao Senhor por todos esses
anos. Era, no mínimo, um pedido incomum — houve comentários entre as irmãs
se isso deveria ser qualificado de desobediência —, mas a Reverenda Madre o
havia sancionado e não seria contestado se não fossem as notícias, também
recebidas nessa manha, da erupção de uma epidemia na aldeia vizinha.
O convento era separado do vilarejo de Loro Ciufenna por uma cavalgada
vigorosa, embora a velocidade da pestilência se igualasse à das patas de
qualquer cavalo. O primeiro sinal se manifestara, aparentemente, há três dias,
quando o filho de um fazendeiro tinha sido acometido por febre e erupção de
bolhas pelo corpo, que se tornaram imediatamente purulentas, e ele,
extremamente agitado. Morreu dois dias depois, quando seu irmão mais novo e
o padeiro vizinho foram infectados. Soube-se que o menino estivera no convento
na semana anterior, para fazer a entrega de farinha e legumes. A sugestão foi
que a doença do Diabo teria se originado aí, e que a irmã que acabara de morrer
era a sua transmissora. Apesar de a Madre Superiora não ter tempo para rumores
ignorantes e ser capaz de elaborar a logística da marcha da infecção tão rápido
quanto a mulher do lado, cabia-lhe manter-se em bons termos com o vilarejo, do
qual o convento dependia para muitas coisas, e era inegável o fato de que a Irmã
Lucrezia tinha morrido com febre e com muita dor. Se ela fosse uma
transmissora, a crença comum ditava que a pestilência permaneceria nas suas
roupas, escapando, depois, pela terra e voltando a contaminar. Tendo perdido
oito irmãs para uma infecção alguns anos antes, a Reverenda Madre, preocupada
não somente com a reputação do estabelecimento como também com o seu
dever em relação a seu rebanho, com pesar passou por cima do último desejo de
Lucrezia e ordenou que suas roupas fossem retiradas e queimadas e o corpo
desinfetado antes de ser destinado ao solo sagrado.
O corpo da Irmã Lucrezia ficou estendido sobre a cama. A rigidez da
morte, com o atraso, já infectava seus membros. As duas irmãs trabalharam
nervosamente e rapidamente, usando luvas de jardinagem, a única proteção que
o convento podia oferecer contra a contaminação. Tiraram os alfinetes da touca
e a puxaram do pescoço. O cabelo da freira morta estava achatado na cabeça
com o suor, embora sua face permanecesse serena, aveludada como um pêssego,
um lembrete daquela tarde na horta de ervas. Desabotoaram o hábito nos ombros
e o abriram na frente cortando-o, retirando o material, que o suor do sofrimento
transformara em uma crosta. Foram especialmente cuidadosas com a área ao
redor do tumor, onde o hábito e a camisa embaixo tinham se fundido com a pele.
Durante a sua doença, essa parte de seu corpo era tão doída que as irmãs, ao
cruzarem com ela no claustro, se afastavam para evitarem até mesmo roçar em
seu corpo e a fazerem gritar. Era estranho vê-la tão silenciosa agora, enquanto,
indelicadamente, puxavam com força a metade da elevação de pano e pele
ensopados, do tamanho de um melão pequeno e mole ao toque. Não se
despregou com facilidade. No fim, a Irmã Magdalena, que tinha uma força em
seus dedos ossudos que contrariavam a sua idade, deu um puxão violento e o
material se esgarçou do corpo, trazendo junto o que parecia ser o tumor inteiro.
A velha freira ofegou quando a massa de tecido desprendeu-se em sua
mão enluvada. Olhando de volta para o corpo, seu espanto aumentou. Onde o
tumor tinha estado, a superfície da pele estava curada: nenhum ferimento,
nenhum sangue ou pus, nenhuma supuração. A malignidade fatal da Irmã
Lucrezia deixara seu corpo ileso. Era certamente um milagre. E se não fosse
pelo fedor insuportável na pequena cela, elas teriam se ajoelhado ali mesmo em
reconhecimento à magnanimidade de Deus. Mas o fato era que o cheiro parecia
ficar cada vez mais forte com o tumor retirado. Voltaram, portanto, a atenção
para a própria malignidade.
Liberto do corpo, estava na mão da irmã, um saco de tumor distendido,
exsudando, de um lado, um líquido preto, como vísceras apodrecidas, como se
as próprias entranhas da boa irmã tivessem, de alguma maneira, vazado de seu
corpo para o tumor. Magdalena reprimiu um gemido. O saco escorregou de sua
mão e estatelou-se no piso de pedras, estourando com o impacto e espalhando
um líquido e sangue meio coagulado pelo chão. No meio daquela mixórdia
distinguiram formas: espirais negras e nacos de sangue, intestinos, órgãos, na
verdade, vísceras. Embora se fizesse anos desde que a velha freira trabalhara na
cozinha, ela já tinha visto o bastante de carcaças dissecadas para saber a
diferença entre restos humanos e animais.
A Reverenda Irmã Lucrezia não tinha morrido, ao que parecia, de um
tumor, mas das vísceras de uma bexiga de porco que aplicara a si mesma.
A revelação já teria sido chocante o bastante sem o que veio a seguir. Foi
Maria quem a localizou: o traçado prateado na pele do cadáver serpenteando a
ponta do ombro, tornando-se, gradativamente, mais espesso sobre a clavícula até
desaparecer por baixo do que restava da camisa. Dessa vez, a freira mais jovem
tomou a iniciativa, cortando e rasgando a camisa com um único movimento, até
o corpo se expor nu sobre a cama.
De início, não compreenderam o que estava diante de seus olhos. A carne
exposta de Lucrezia era alva como a pele de mármore da Madona no altar
secundário da capela. O corpo estava velho, a barriga e seios flácidos pela idade,
mas com pouca gordura adicional, o que significava que conservara o suficiente
de sua figura para que a imagem mantivesse suas proporções. Quando a linha
pintada se espessava na clavícula, ganhava mais forma e substância,
arredondando-se na forma de um rabo até assumir a forma do corpo de uma
serpente, de cor verde prateada e tão real que, ao deslizar sobre o seio, podia-se
jurar que se via o movimento de seus músculos ondulando por debaixo da pele.
Próximo ao mamilo direito, enrolava-se em volta da aréola escurecida antes de
escorregar do seio e atravessar o estômago. Então, quando imergia em direção à
virilha, a forma como que se horizontalizava, preparando-se para a cabeça da
serpente. A idade desbastara o que havia sido um pêlo púbico espesso em
espirais irregulares e finas. Portanto, o que teria sido invisível, a não ser para um
pesquisador insistente, agora estava evidente.
No ponto em que o corpo da serpente transformava-se em sua cabeça, em
vez do crânio reptiliano, havia a forma mais suave, mais redonda do rosto de um
homem: a cabeça jogada para trás, os olhos fechados como se em êxtase, e a
língua, comprida como a de uma serpente, projetando-se de sua boca para baixo,
na direção da abertura do sexo de Irmã Lucrezia.
PARTE UM
C ONVENTO DE S T . V ITELLA ,
L ORO C IUFENNA ,
A GOSTO D E 15 2 8
O Testamento de Irmã Lucrezia
Um
HOJE, RELEMBRANDO, VEJO MAIS como um ato de orgulho do que de
gentileza o fato de meu pai, naquela primavera, ter trazido com ele, do Norte, o
jovem pintor. A capela em nosso palazzo havia sido concluída recentemente e,
por alguns meses, ele procurara o par de mãos certo para executar os afrescos do
altar. Não que Florença não tivesse artistas o bastante. A cidade estava
impregnada do cheiro de tinta e da garatuja da pena nos contratos. Havia
momentos em que não se podia andar nas ruas por medo de cair em algum
buraco ou lodaçal deixado pela constante construção. Todos que tinham dinheiro
estavam ansiosos por exaltar Deus e a República, criando oportunidades para a
arte. O que eu ouvia, descrito ainda hoje como a Idade do Ouro, era
simplesmente a moda do dia. Mas eu era jovem então e, como muitos outros,
deslumbrada com o Festival.
As igrejas eram o melhor de tudo. Deus estava no reboco aplicado nas
paredes, pronto para os afrescos: histórias dos evangelhos tornados carne para
qualquer um com olhos de ver. Somente aqueles que olhavam viam também
algo mais. Nosso Senhor pode ter vivido e morrido na Galiléia, mas a sua vida
foi recriada na cidade de Florença. O Anjo Gabriel levou a mensagem de Deus a
Maria sob os arcos de uma loggia brunelleschiana, os Reis Magos conduziram
procissões pela região rural da Toscana e os milagres de Cristo se realizaram no
interior dos muros da cidade, os pecadores e os doentes em roupas florentinas e
a massa de testemunhas juncada de rostos públicos: uma hoste de dignitários de
queixo quadrado, nariz grande, olhando do alto dos afrescos para as suas
réplicas reais nos bancos da frente.
Eu tinha quase dez anos quando Domenico Ghirlandaio completou seus
afrescos para a família Tornabuoni, na capela central de Santa Maria Novella.
Lembro-me bem, porque minha mãe me disse para não me esquecer."Tem de se
lembrar deste momento, Alessandra", disse ela. "Essas pinturas trarão muita
glória à nossa cidade." E todos que as viram acharam que sim.
A fortuna do meu pai, na época, crescia do vapor dos tonéis de tintura nas
ruelas de Santa Croce. O cheiro de cochinilha ainda me desperta recordações
dele chegando em casa do empório, os restos de insetos de lugares estrangeiros,
esmigalhados, incrustados em suas roupas. Na época em que o pintor foi viver
conosco, em 1492 — lembro-me da data porque Lorenzo de Medici morreu
nessa primavera —, o apetite florentino por tecidos vistosos nos tornara ricos.
Nosso palazzo, recentemente concluído, ficava no lado leste da cidade, entre a
grande Catedral de Santa Maria del Fiore e a igreja de Sant'Ambroglio. Erguia-
se em quatro andares ao redor de dois pátios internos, com seu próprio pequeno
jardim murado e espaço para o negócio de meu pai no andar térreo. Nosso
brasão adornava os muros externos, e apesar do bom gosto de minha mãe refrear
grande parte da exuberância resultante do dinheiro recente, todos sabíamos que
era apenas uma questão de tempo até nós, também, estarmos posando para os
nossos retratos evangélicos, se bem que particulares.
A noite em que o pintor chegou está nítida como uma gravura em minha
memória. É inverno e as balaustradas de pedra estão cobertas de gelo quando
minha irmã e eu, em nossas camisolas de dormir, colidimos na escadaria,
debruçando-nos para observar os cavalos chegarem no pátio principal. É tarde e
a casa está adormecida, mas a chegada de meu pai é motivo de celebração, não
simplesmente por seu retorno em segurança, como também porque, entre os
cestos com amostras, havia sempre um tecido especial para a família. Plautilla já
está fora de si de excitação, pois estando noiva, só pensava em seu enxoval e
dote. Meus irmãos, por outro lado, são notados por sua ausência. Apesar do bom
nome e tecidos elegantes de nossa família, Tomaso e Luca vivem mais como
gatos selvagens do que como cidadãos, dormindo durante o dia e caçando à
noite. Nossa escrava doméstica, Erila, reservatório de todas as fofocas, diz que
eles são a razão por que mulheres de bem nunca devem ser vistas nas ruas
depois que anoitece. Não obstante, quando meu pai descobrir que não estão em
casa, vamos ter problemas.
Mas ainda não. Por enquanto, todos estamos maravilhados com aquele
momento. Archotes iluminam o ar quando os cavalariços acalmam os cavalos,
seu resfôlego lançando vapor no ar gelado. Meu pai está desmontando, o rosto
tisnado, um sorriso tão redondo quanto uma cúpula quando ergue o rosto para
nós, depois para minha mãe que desce a escadaria para recebê-lo, seu robe de
veludo vermelho amarrado em volta de seu peito e seu cabelo solto, caindo em
suas costas como um rio dourado. Há barulho, luz e a doce sensação de
segurança por toda parte, mas não partilhada por todos. Escarranchado no último
cavalo está um rapaz magricela, seu manto enrolado em volta de seu corpo como
uma peça inteira de tecido, o frio e a fadiga da viagem fazendo-o tombar
perigosamente à frente, na sela.
Lembro-me de quando o cavalariço aproximou-se dele para pegar as
rédeas e ele despertou com um susto, suas mãos agarrando-as como se temesse
um ataque, e meu pai tendo de ir até ele e acalmá-lo. Eu estava, então, muito
cheia de mim para perceber como devia ter sido estranho para ele. Eu ainda não
sabia como o Norte era diferente, como a umidade e o sol pálido mudavam tudo,
desde a luminosidade do ar até a luz da nossa alma. E claro que eu não sabia que
ele era um pintor. Para mim, era apenas mais um criado. Meu pai, porém, tratouo com atenção desde o começo: falando com ele em um tom de voz tranqüilo,
ajudando-o a desmontar e escolhendo um cômodo separado, no pátio dos
fundos, como seus aposentos.
Mais tarde, quando meu pai desembrulhou a tapeçaria flamenga para a
minha mãe e abriu o tecido delicado, todo bordado, branco como leite, para nós
("As mulheres de Rennes ficam cegas cedo servindo à beleza de minhas filhas"),
nos contou como o encontrara, um órfão levado ao mosteiro à beira do mar ao
norte onde a água ameaça a terra. Como o seu talento com uma pena tinha
dominado qualquer senso de vocação religiosa, e, portanto, os monges o tinham
empregado como aprendiz de um mestre, e quando ele retornou, como prova de
gratidão, tinha pintado não apenas a própria cela, mas as celas de todos os outros
monges. Foram essas pinturas que impressionaram meu pai, que decidiu
oferecer-lhe, imediatamente, a tarefa de glorificar a nossa capela. Embora eu
deva acrescentar que, apesar de conhecer tecido, meu pai não era um grande
perito em arte, e suspeito que sua decisão tenha sido muito mais ditada pelo
dinheiro, pois sempre teve bom olho para uma barganha. E o pintor? Bem, como
meu pai colocou — não havia mais celas para pintar e a fama de Florença como
a nova Roma ou Atenas da nossa era, sem dúvida o incitaria a vê-la com os
próprios olhos.
E assim, o pintor foi morar na nossa casa.
Na manhã seguinte, fomos à Santíssima Annunziata agradecer o retorno
seguro de meu pai. A igreja fica do lado do Ospedale degli Innocenti, o hospital
de crianças enjeitadas, onde mulheres jovens colocam seus bebês bastardos
sobre a roda para as freiras cuidarem deles. Ao passarmos, imagino o choro dos
bebês enquanto a roda no muro gira para dentro, para sempre, mas meu pai diz
que somos uma cidade caridosa e que existem lugares, no Norte selvagem, em
que encontramos bebês no meio do lixo ou flutuando, como destroços de
naufrágio, rio abaixo.
Sentamo-nos juntos nos bancos do centro. Acima de nossas cabeças,
pendem grandes maquetes de navios doadas por aqueles que tinham sobrevivido
a naufrágios. Meu pai esteve em um certa vez, embora na época não fosse rico o
bastante para encomendar um memorial na igreja, e nessa sua última viagem
sofreu apenas enjôos. Ele e minha mãe sentavam-se eretos como varas e dava
para sentir sua mente na magnanimidade de Deus. Nós, os filhos, somos menos
santos. Plautilla continua estouvada, com o pensamento em seus presentes,
enquanto Tomaso e Luca parecem que prefeririam estar na cama, embora a
reprovação de meu pai os mantenha alertas.
Quando retornamos, a casa cheira a comida de feriado — a doçura da
carne assada e molhos condimentados descendo em espirais pelas escadas, da
cozinha lá em cima até o pátio embaixo. Comemos quando a tarde se transforma
em noite. Primeiro agradecemos a Deus, depois nos empanturramos: frango
cozido, faisão assado, truta e massas frescas, acompanhados de pudim de
açafrão e creme de ovos com cobertura de calda de açúcar queimado. Todos
estão com sua melhor disposição. Até mesmo Luca segura o garfo direito,
embora seja possível perceber seus dedos cocando para pegar o pão e passá-lo
no molho.
Eu já me sinto fora de mim de tanto entusiasmo só em pensar em nosso
novo hóspede. Pintores flamengos são muito admirados em Florença por sua
precisão e espiritualidade sutil.
— Então, ele vai pintar nós todos, pai. Vamos ter de posar para ele, não
vamos?
— De fato. Ele também veio para isso. Tenho certeza de que ele nos
apresentará uma bela recordação do casamento de sua irmã.
— Nessa caso, ele me pintará primeiro! — Plautilla está tão feliz que
cospe pudim de leite na toalha da mesa. — Depois Tomaso que é o mais velho,
depois Luca e, então, Alessandra. Nossa!, Alessandra, você vai estar ainda mais
alta quando chegar a sua vez.
Luca ergue os olhos do prato e sorri largo com a boca cheia, como se essa
fosse a piada mais espirituosa que ele tivesse ouvido. Mas acabo de chegar da
igreja e estou repleta da boa vontade de Deus para com toda a minha família.
— Ainda assim, é melhor ele não demorar demais. Soube que uma das
noras da família Tornabuoni tinha morrido de parto quando Ghirlandaio reveloua no afresco.
— Esse risco você não corre. Tem de conseguir um marido antes. — Do
meu lado, o insulto de Tomaso é sussurrado e só eu posso ouvi-lo.
— O que disse,Tomaso? — A voz de minha mãe é tranqüila, mas incisiva.
Ele assume a sua expressão mais angelical.
— Eu disse que estou morrendo de sede. Passe a jarra de vinho, irmã
querida.
— É claro, irmão. — Pego a jarra e quando a movo em sua direção, ela
escorrega de minhas mãos e o líquido derramado respinga em sua túnica nova.
— Ah, mãe — explode ele. — Ela fez de propósito.
— Não fiz!
— Ela...
— Filhos... filhos... seu pai está cansado e estão, todos os dois, fazendo
muito barulho.
A palavra "filhos" surte efeito em Tomaso e ele se cala, carrancudo. No
intervalo que se seguiu, o som da boca aberta de Luca mastigando tornou-se
enorme. Minha mãe mexeu-se, impaciente, em sua cadeira. Nossas maneiras
sobrecarregavam-na profundamente. Assim como na jaula, o domador de leão
usa um chicote para controlar o seu comportamento, minha mãe tinha
aperfeiçoado O Olhar. Usa-o agora em Luca, mas ele está tão absorto no prazer
de sua comida que, hoje, é preciso um chute meu por debaixo da mesa para que
ele preste atenção. Somos a obra da vida de minha mãe, seus filhos, e ainda há
tanto a fazer conosco.
— No entanto — disse eu quando parece que já podemos falar de novo —
mal posso esperar para conhecê-lo. Oh, ele deve estar muito grato a você, papai,
por tê-lo trazido. Assim como nós estamos. É uma honra e o nosso dever, como
uma família cristã, cuidar dele e fazer com que se sinta em casa em nossa grande
cidade.
Meu pai franze o cenho e troca um rápido olhar com minha mãe. Esteve
longe muito tempo e, sem dúvida, tinha-se esquecido de como a sua filha caçula
dizia o que lhe passava na cabeça.
— Acho que ele é capaz de cuidar de si mesmo, Alessandra — disse ele,
com firmeza.
Percebo o aviso, mas muita coisa está em jogo para me deter agora.
Respiro fundo.
— Ouvi dizer que Lorenzo o Magnífico considera tanto Botticelli que o
faz comer à sua mesa.
Faz-se um breve silêncio. Dessa vez, O Olhar silencia a mim. Baixo os
olhos e me concentro de novo em meu prato. Do meu lado, sinto o sorriso
afetado de triunfo de Tomaso.
Mas é verdade. Sandro Botticelli senta-se, realmente, à mesa de Lorenzo
de Medici. E o escultor Donatello costumava andar pela cidade em uma túnica
escarlate recebida de Cosimo, avô de Lorenzo, por sua contribuição à República.
Minha mãe contou-me várias vezes como em garota o via, saudado por todos, as
pessoas abrindo passagem para ele — embora isso pudesse ter tanto a ver com
seu péssimo gênio como com seu talento. Mas o fato triste é que apesar de
Florença estar cheia de pintores, nunca conheci nenhum, Apesar de a nossa
família não ser tão rigorosa quanto outras, as chances de uma filha solteira se
encontrar na companhia de homens de qualquer tipo, muito menos artesãos,
eram extremamente limitadas. Evidentemente, isso não impediu que os
conhecesse em minha mente. Todos sabem que há lugares na cidade em que
existem oficinas de arte. O grande Lorenzo, ele próprio fundou uma delas e
encheu seus cômodos e jardins de esculturas e pinturas de sua coleção clássica.
Imagino um edifício repleto de luz, o cheiro das cores como um ensopado
fervendo, o espaço tão infinito quanto a sua imaginação.
Meus próprios desenhos a ponta de prata, até agora, têm sido
laboriosamente riscados em blocos de buxo, ou a carvão sobre papel, quando
consigo encontrá-lo. Destruí a maior parte, achando-a sem valor, e os melhores
estão bem escondidos (cedo ficou claro para mim que os bordados com ponto de
cruz de minha irmã seriam mais elogiados do que qualquer um de meus
esboços). Portanto, não faço a menor idéia de se sou capaz ou não de pintar. Sou
como Ícaro sem asas, mas o desejo de voar é muito forte em mim. Acho que
sempre estive em busca de um Dédalo.
Eu era então jovem, como sabem: estava para completar quinze anos. O
estudo mais preliminar de matemática revelaria que eu tinha sido concebida no
auge do verão, época nada auspiciosa para o começo de uma criança. Durante a
gravidez, quando a cidade estava tumultuada depois da conspiração de Pazzi,
correu um boato de que minha mãe tinha visto matanças e violência nas ruas.
Uma vez, escutei por acaso uma criada sugerindo que a minha obstinação talvez
fosse resultado dessa transgressão. Ou poderia ter sido a ama-de-leite a quem
tinham me enviado. Tomaso, que sempre foi rigoroso com a verdade quando
essa contém rancor, contou que ela foi processada depois por prostituição,
portanto quem sabe que humores e lascívia suguei em seus seios. Embora Erila
diga que ele só fala assim por inveja, que é a sua maneira de se vingar de mim
pelos milhares de desfeitas infligidas na sala de aula.
Quaisquer que sejam as razões, quando tinha quatorze anos, eu era uma
menina diferente, mais qualificada para o estudo e discussão do que para a
submissão. Minha irmã, que era dezesseis meses mais velha do que eu e tinha
começado a sangrar um ano antes, estava comprometida com um homem de boa
família e já tinha, até mesmo, havido uma conversa de uma relação
semelhantemente ilustre para mim (à medida que a nossa fortuna aumentava,
aumentavam as expectativas de meu pai em relação ao meu casamento), apesar
da minha intratabilidade emergente.
Nas semanas seguintes à chegada do pintor, minha mãe ficou atenta a
mim, mantendo-me fechada no estúdio ou ajudando no guarda-roupa de
casamento de Plautilla. Mas, então, ela foi chamada a Fiesole, à casa de sua
irmã, que tinha sofrido muito com o parto de um bebê muito grande e precisava
do conselho de uma mulher. Ela partiu deixando instruções estritas de que eu
deveria começar meus estudos e fazer exatamente o que meus tutores e minha
irmã mais velha mandassem. E concordei com tudo, apesar de não ter a intenção
de obedecer.
Eu já sabia onde encontrá-lo. Como uma república ruim, nossa casa louva
virtudes publicamente, mas recompensa o vício privadamente e fuxicos sempre
podiam ser conseguidos por um preço, embora, nesse caso, Erila o fez de graça.
— ...dizem que não há nenhum. Ninguém sabe nada. Ele fica sozinho,
come em seu quarto e não fala com ninguém. Mas Maria diz que o viu andando
de lá para cá no pátio, no meio da noite.
E de tarde. Ela soltou meu cabelo e fechou as cortinas para que eu
descanse, e está para sair do quarto quando se vira e olha diretamente para mim.
— Nós duas sabemos que você está proibida de visitá-lo, certo?
Confirmo com um movimento da cabeça, meus olhos na madeira
entalhada da armação da cama: uma rosa com tantas pétalas quanto minhas
pequenas mentiras. Há uma pausa na qual eu gostaria de pensar que ela encara
minha desobediência com simpatia.
— Estarei de volta para acordá-la em duas horas. Descanse bem.
Espero até o sol aquietar a casa e então desço furtivamente a escadaria e
atravesso para o pátio dos fundos. O calor já adere às pedras e a sua porta está
aberta, supostamente para deixar entrar alguma brisa. Atravesso, em silêncio, o
pátio crestado e entro.
O interior está obscurecido, os dardos da luz do dia tecendo partículas de
pó no ar. É um pequeno cômodo melancólico com apenas uma mesa e cadeira e
uma série de vasilhas em um canto, e uma porta entreaberta que se conecta com
uma câmara interna menor. Abro mais a porta. A escuridão é profunda e meus
ouvidos agem antes de meus olhos. A sua respiração é longa e regular. Ele está
deitado sobre um catre do lado da janela, a sua mão largada sobre papéis
espalhados. Os únicos homens que vi dormindo são meus irmãos e seu ronco é
desarmonioso. A delicadeza dessa respiração me perturba. O meu estômago se
aperta com o som, fazendo me sentir a intrusa que sou e fecho a porta atrás de
mim.
Em contraste, o outro cômodo agora está mais claro. Em cima da mesa,
está uma série de papéis amassados e rasgados: desenhos da capela extraídos das
plantas dos construtores, rasgados e sujos com marcas de alvenaria. Do lado,
pende um crucifixo de madeira, esculpido grosseiramente, mas que causa
impressão, com o corpo de Cristo caindo tão pesadamente da cruz que se sente o
peso de sua carne pendendo dos pregos. Embaixo, alguns esboços, mas quando
os pego, a parede em frente chama minha atenção. Duas figuras, pela metade: à
esquerda, um anjo esguio, asas de penas leves como a fumaça ascendendo em
ondas atrás dele, e do outro lado uma Madona, seu corpo artificialmente alto e
esguio, flutuando espectral-mente livre, seus pés bem acima do solo. Aproximome para olhar melhor. O chão está espesso com tocos de velas enfiados em
poças de cera derretida. Será que dorme durante o dia e trabalha à noite? Isso
talvez explique a figura suavizada de Maria, seu corpo estendendo-se na luz
bruxuleante de uma vela. Mas ele teve luz suficiente para avivar sua face. Sua
aparência é do Norte, seu cabelo bem puxado para trás para mostrar uma testa
larga, de modo que a sua cabeça me lembra um ovo pálido perfeitamente
delineado. Ela está com os olhos arregalados na direção do anjo e sinto, nela,
uma excitação nervosa, como uma criança que tivesse recebido um presente e
não conseguisse entender perfeitamente a sua boa sorte. Apesar de não se
mostrar tão segura com o mensageiro de Deus, há uma tal alegria em sua
atenção que é quase contagiosa. Faz-me pensar em um esboço que estou
trabalhando, da Anunciação, e meu rosto se ruboriza de vergonha diante da
minha inépcia.
O barulho é mais como um resmungo do que quaisquer palavras. Ele deve
ter-se levantado da cama silenciosamente, pois quando me viro, ele está em pé à
porta. O que me lembro desse momento? O seu corpo é longo e magricela, sua
camisa está amarrotada e rasgada. O seu rosto é largo sob um emaranhado de
cabelo preto comprido, e ele é mais alto do que me lembro da primeira noite, e,
de certa maneira, mais selvagem. Ele está imóvel, sonolento, e seu corpo tem o
cheiro forte de suor seco. Estou acostumada a viver em uma casa com o ar
perfumado de rosas e flor de laranjeira. Ele cheira a rua. Realmente acho, até
esse momento, que acreditava que os artistas vinham, de certa forma,
diretamente de Deus, e, portanto, tinham mais do espírito e menos de homem.
O choque de sua condição física varre qualquer coragem que me restava.
Ele está em pé, piscando por causa da luz, e, então, de repente, cambaleia na
minha direção, arrancando os papéis da minha mão.
— Como se atreve?
— Sou a filha do seu protetor, Paolo Cecchi — grito quando ele me
empurra para o lado.
Ele parece não escutar. Corre para a mesa, pegando os esboços restantes,
murmurando sem parar:
— Noli tangere... noli tangere.
É claro. Há um fato que meu pai esqueceu de nos contar. O nosso pintor
cresceu entre monges e, enquanto seus olhos podem atuar aqui, seus ouvidos
não.
— Não toquei em nada — vocifero aterrorizada. — Só estava olhando. E
se quer ser aceito aqui, terá de aprender a falar a nossa língua. Latim é a língua
de padres e eruditos, não de pintores.
Minha resposta incisiva, ou talvez a força do meu latim fluente, cala-o.
Ele fica paralisado, o corpo tremendo. É difícil saber qual de nós dois está mais
apavorado. Eu teria fugido se não fosse o fato de que, no outro lado do pátio, vi
a criada de quarto de minha mãe saindo da despensa. Tenho aliados nos
aposentos dos criados, mas também tenho inimigos e Angélica há muito tempo
tem dado provas de lealdade. Se sou descoberta é impossível imaginar o ultraje
que causará na casa.
— Pode estar certo que não danifiquei seus desenhos — digo
rapidamente, ansiosamente, para evitar outra explosão. — Estou interessada na
capela. Vim simplesmente ver como seu trabalho estava se desenvolvendo.
Ele murmura algo de novo. Espero que repita o que disse. Leva muito
tempo. Finalmente, ergue os olhos para mim, e quando o encaro, me dou conta,
pela primeira vez, de como é jovem — mais velho do que eu, sim, mas
certamente poucos anos mais velho — e de como a sua pele é branca e pálida. É
claro que sei que terras estrangeiras engendram cores estrangeiras. A minha
Erila é preta, queimada pelas areias do deserto da África do Norte, de onde ela
veio, e naqueles tempos, era possível encontrar vários matizes de pele nos
mercados da cidade, de tanto que Florença era um ponto de atração para o
comércio. Mas essa brancura é diferente, passa a sensação de pedra úmida e céu
sem sol. Um único dia sob o sol florentino certamente enrugaria e queimaria a
sua superfície delicada.
Quando ele finalmente fala, parou de tremer, mas o esforço foi grande.
— Eu pinto a serviço de Deus — diz ele, com o ar de um noviço
declamando a litania que lhe ensinaram, mas que não foi totalmente
compreendida. — E estou proibido de falar com mulheres.
— Realmente — digo, ofendida pelo tom pretensioso. — Isso talvez
explique por que quase não faz idéia de como pintá-las. — Lanço o olhar para a
Madona alongada na parede.
Mesmo no escuro, posso sentir como as palavras o feriram. Por um
instante, acho que ele pode me agredir de novo, ou romper suas regras e me
responder, mas, em vez disso, ele se vira e, agarrando os papéis, cambaleia de
volta ao quarto, batendo a porta.
— A sua grosseria é tão grave quanto a sua ignorância, senhor — gritei
para ele, para dissimular minha confusão. — Não sei o que aprendeu no Norte,
mas aqui, em Florença, nossos artistas aprendem a celebrar o corpo humano
como um eco da perfeição de Deus. Faria bem se estudasse a arte da cidade
antes de se arriscar a rabiscar em suas paredes.
Numa agitação hipócrita, saio do aposento para a luz do sol, sem saber se
a minha voz atravessou a porta.
Dois
— SETE, OITO, VIRAR, DAR UM PASSO, uma volta... não... não, não...
Alessandra. .. Não. Você não está prestando atenção à marcação do compasso.
Odeio meu professor de dança. Ele é pequeno e perverso como um rato, e
anda como se estivesse segurando algo entre os joelhos, embora tenha-se de
admitir que, na pista, ele é melhor representando a mulher do que eu, seus
passos perfeitos, suas mãos tão expressivas quanto borboletas.
A minha humilhação já seria terrível o bastante mesmo sem o fato de que,
na aulas de preparação para seu casamento, Plautilla e eu tenhamos de dançar
com Tomaso e Luca. O repertório é grande e precisamos deles como parceiros
ou uma de nós duas teria de fazer o papel do homem, e apesar de eu ser a mais
alta, também sou a mais desastrada e quem mais precisa das aulas. Felizmente,
Luca é tão desajeitado quanto eu.
— E Luca, você não ajuda nada só ficando aí. Precisa pegá-la e conduzi-la
à sua volta.
— Não posso. Seus dedos estão sujos de tinta. De qualquer jeito ela é alta
demais para mim.
Parece que cresci de novo. Se não na realidade, então na imaginação do
meu irmão. E ele vai chamar a atenção de todos para isso, para que todos riam
de como isso me torna deselegante na pista de dança.
— Não é verdade. Estou exatamente do mesmo tamanho que na semana
passada.
— Luca tem razão. — Tomaso não perde oportunidade de usar as palavras
como dardos contra mim. — Ela cresceu. É como tentar dançar com uma girafa.
— A gargalhada de Luca o incita. —Verdade. Até os olhos agora se parecem.
Vejam... essas bolsas fundas e pretas com pestanas grossas como buxo.
E embora chocante, também é engraçado, de modo que até o professor,
que é pago para ser cordial conosco, não consegue conter o riso. Se eu não fosse
o alvo, também riria, pois é inteligente o que disse sobre meus olhos. Todos
tínhamos visto a girafa, é claro. Tinha sido o animal mais exótico que a nossa
cidade já possuiu, um presente do sultão de não sei onde para o grande Lorenzo.
Vivia com os leões na casa dos bichos, atrás do Palazzo della Signoria, mas
desfilava em dias festivos, quando era levada à cidade do convento de freiras
para que aquelas mulheres devotas casadas com Deus pudessem ver o prodígio
de Sua mão na natureza. A nossa rua ficava no caminho para o convento, que se
localizava no lado leste da cidade e, mais de uma vez, ficamos à janela do
primeiro andar e observamos seu progresso atordoado, suas pernas vacilando
sobre o pavimento de pedras arredondadas. E tenho de admitir que seus olhos
realmente se pareciam um pouco com os meus; fundos e escuros, grandes
demais para o seu rosto e fimbriados de um buxo de cílios. Apesar de eu não ser
tão estranha e tão alta a ponto de poder ser comparada com ela.
Houve um tempo em que um insulto como esse me faria chorar. Mas, à
medida que ficava mais velha, a minha pele se enrijecia. Dançar é uma das
muitas coisas em que eu deveria ser boa e não sou. Ao contrário de minha irmã.
Plautilla move-se pela pista como água e canta como um canário, enquanto eu,
que posso traduzir latim e grego mais rápido do que ela ou meus irmãos o lêem,
sou desastrada na pista de dança e tenho a voz de um corvo. Mas juro que se
pintasse a escala o faria em um piscar de olhos: uma folha dourada brilhante
para as notas agudas, caindo para tons de ocre e vermelho até o púrpura e o azul
mais escuro.
Mas hoje, sou salva de mais tormentos. Quando o professor começa a
cantarolar as notas iniciais, as vibrações em seu pequeno nariz ressoando como
uma mistura de marimbau com uma abelha raivosa, batem estrondosamente na
porta principal, lá embaixo, e depois há uma polvorosa de vozes e a velha
Ludovica entra na sala, bufando e sorrindo largo.
— Senhora Plautilla, chegou. O cassone de casamento chegou. A senhora
e sua irmã Alessandra são chamadas ao quarto de sua mãe imediatamente.
E então minhas pernas de girafa me levaram mais rápido do que as dela de
gazela. Há certas compensações em ser um varapau.
Um caos, a confusão é total. A mulher na frente do grupo está
cambaleando, uma mão agitando-se freneticamente à frente como se para se
firmar. Ela está seminua, sua combinação diáfana ao redor das pernas, o pé
esquerdo descalço no piso de pedra. Em contraste, o homem do seu lado está
completamente vestido. Tem uma perna particularmente bela e um gibão de
brocado ricamente bordado. Se olhamos com atenção, localizamos pérolas
tremeluzindo no tecido. Seu rosto está perto do dela, os braços firmes ao redor
da sua cintura, os dedos retesados para melhor segurarem seu corpo pendente.
Apesar de haver violência na pose, há também graça, como se pudessem estar,
também, dançando. À direita, um grupo de mulheres, elegantemente vestidas,
abraçadas. Alguns dos homens já se infiltraram nesse grupo; um tem a mão no
vestido de uma mulher, outro, os lábios tão perto dos dela que certamente estão
se beijando. Reconheço um dos tecidos de riscas douradas de meu pai na sua
saia e nas mangas elegantemente fendidas. Volto a atenção para a garota na
frente. Ela é muito bonita para ser Plautilla (ele não se atreveria a despi-la, não é
claro?), mas seu cabelo solto é mais louro do que o das outras, uma
transformação de cor pela qual minha irmã daria a vida para conseguir. Talvez
tenha a intenção de que o homem seja Maurizio. Nesse caso, o retrato é uma
peça flagrante de louvor à sua perna. Por algum tempo, nenhum de nós diz nada.
— É uma obra impressionante. — A voz de minha mãe, quando
finalmente se faz ouvir, é calma, mas não dando margem à divergência. — Seu
pai vai ficar contente. Honra a nossa família.
— Oh, é magnífico — gorjeia Plautilla, feliz, do seu lado.
Eu não tenho tanta certeza. Acho a coisa toda, de certa maneira, vulgar.
Para começar, a arca do casamento é grande demais, parecendo mais um
sarcófago. Apesar de ter uma certa delicadeza, o estuque e a ornamentação são
tão elaborados — não há espaço nenhum que não esteja coberto com folha de
ouro —, que enfraquecem o prazer da arte. Estou surpresa por minha mãe ter-se
deixado iludir dessa maneira, embora, mais tarde, tenha percebido que o seu
olhar era sutil, muito bem treinado para ler tanto a nuança de status quanto
estética.
— Isso me faz pensar se não deveríamos ter empregado Bartolommeo di
Giovanni para a capela. Ele é muito mais experiente — cismou.
— E muito mais caro — disse eu. — Papai teria sorte se conseguisse ver o
altar pronto antes de morrer. Soube que ele quase não completou esta a tempo. E
a maior parte dela foi pintada por seus aprendizes.
— Alessandra! — ganiu minha irmã.
— Oh, use os olhos, Plautilla. Veja quantas mulheres estão exatamente na
mesma posição. É óbvio que as usaram para praticar desenho.
Embora, mais tarde, achasse que Plautilla teve de me suportar durante a
nossa infância, no momento tudo o que ela dizia parecia tão trivial ou idiota que
também parecia natural eu espicaçá-la. E igualmente natural ela reagir.
— Como pode dizer isso? Como pode? Ah! Mas mesmo que fosse
verdade, não consigo imaginar alguém notando esse detalhe a não ser você.
Mamãe tem razão, é muito bom. Certamente gosto muito mais do que se tivesse
sido a história de Nastagio degli Onesti. Odeio a maneira como os cães a
encurralam. Mas estas mulheres são bonitas. E suas roupas, perfeitas. A garota
na frente é impressionante, não acha, mamãe? Soube que em toda arca de
casamento que Bartolommeo faz, há sempre uma figura que é baseada na noiva.
Acho que é comovente como ela parece estar quase dançando.
— Exceto que não está dançando. Está sendo violada.
— Eu sei disso muito bem, Alessandra. Mas se você se lembra da história
das sabinas, elas foram convidadas a um banquete, que se transformou em
violação, que elas aceitaram com resignação. Esse é o propósito dessa pintura. A
cidade de Roma nasceu do sacrifício das mulheres.
Pensei em responder, mas percebi o olhar de minha mãe. Mesmo em
particular, ela só tolerava discussões até um certo nível.
— Independente do tema, acho que temos de admitir que ele fez um
excelente trabalho. Para a família toda. Sim, até mesmo para você, Alessandra.
Estou surpresa que ainda não tenha percebido a sua própria figura na pintura.
Olhei de volta para a arca.
— Minha figura? Onde me vê ali?
— A garota do lado, à parte, envolvida em uma conversa tão séria com o
rapaz. Admira-me como a sua conversa de filosofia parece manter a sua mente
em coisas superiores — disse ela tranqüilamente. Baixei a cabeça admitindo a
alfinetada. Minha irmã olhava fixamente a pintura, desatenta à nossa conversa.
— Então, já decidimos — a voz de minha mãe, clara e firme. — E uma
bela peça. Devemos rezar para que o protegido de seu pai sirva à família metade
tão bem.
— Como vai indo o pintor, mamãe? — perguntei, passado algum tempo.
— Ninguém o viu desde que chegou.
Ela relanceou os olhos para mim, rispidamente, e pensei em sua criada no
pátio. Não, certamente não. O encontro tinha acontecido há semanas. Se ela
tivesse me visto, eu teria sabido antes.
— Acho que não tem sido fácil para ele. A cidade é ruidosa e
desagradável em comparação ao silêncio de sua abadia. Ele teve febre. Mas já se
recuperou e pediu autorização para estudar algumas das igrejas e capelas da
cidade antes de continuar com seus projetos.
Baixei os olhos para evitar que ela percebesse a chama de interesse.
— Ele poderia ir conosco à missa — disse eu, como se pouco me
interessasse. — De onde ficamos, ele teria uma visão melhor de alguns afrescos.
Ao contrário de algumas famílias que freqüentavam somente uma igreja,
nós éramos conhecidos por espalharmos nossos favores pela cidade. Isso tanto
oferecia a meu pai a oportunidade de ver quanto de Florença estava usando seus
tecidos mais recentes, quanto permitia à minha mãe se deleitar com a arte assim
como comparar os sermões. Embora eu duvide que qualquer um dos dois
admitisse isso.
— Alessandra, sabe muito bem que isso não seria conveniente.
Providenciei para que fosse sozinho.
A conversa tendo se desviado de seu casamento, Plautilla tinha se
desinteressado e estava sentada na cama, passando as mãos sobre as cores do
arco-íris do tecido, pondo-o sobre o peito ou colo para ver o efeito.
— Oh, oh... Tem de ser este azul para o vestido. Tem de ser este. Não
acha, mamãe?
Viramos as duas para Plautilla, gratas, cada uma à sua maneira, pela
interrupção. Era realmente um azul extraordinário, trespassado com o que
pareciam luzes metálicas. Embora um pouco mais claro, me lembra o
ultramarino que os pintores usam para a roupa de Nossa Senhora, o pigmento
cuidadosamente purificado do lápis-lazúli. A tintura do tecido é menos preciosa,
mas não menos especial para mim, especialmente por seu nome: Alessandrina.
Evidentemente, como filha de um comerciante de tecidos, eu sabia mais
do que a maioria sobre essas coisas, e sempre fui curiosa. Contam que quando
eu tinha cinco ou seis anos, pedi a meu pai que me levasse ao lugar "de onde
vêm os cheiros". Era verão — disso me lembro —, perto de uma grande igreja e
praça à margem do rio. Os tintureiros formaram uma favela só deles, as ruas
escuras e apinhadas de barracos, muitos oscilando na beira da água. Havia
crianças para tudo que é lado, seminuas, respingadas de lama e raiadas da cor
dos tonéis que mexiam. O capataz do trabalho do meu pai parecia o Diabo:
partes de seu rosto e braços estavam enrugados onde a água fervendo o
queimara. Outros, eu me lembro, tinham rabiscado padrões em suas peles,
depois esfregado corantes diferentes nos ferimentos, de modo que seus corpos
eram marcados de sinais brilhantes. Pareciam-se com uma tribo de uma terra
paga. Apesar de seu trabalho manter a cidade cheia de cores, eram as pessoas
mais pobres que eu já vira. Até mesmo o mosteiro que deu seu nome ao distrito,
Santa Croce, abrigava franciscanos, que escolhem as áreas mais miseráveis onde
construir suas igrejas.
O que meu pai sentia em relação a eles eu nunca soube. Embora fosse
muito severo com meus irmãos, ele não era um homem insensível. Os livrosrazões de sua firma incluíam uma conta em nome de Deus, por meio da qual ele
dava esmolas generosas a instituições de caridade, e, em anos recentes, tinha
financiado duas janelas de vitrais na nossa igreja de Sant'Ambrogio. Certamente
o salário que pagava não era pior do que o de qualquer outro comerciante. Mas
não lhe cabia minorar a pobreza. Em nossa grande República, o homem faz a
própria fortuna com a graça de Deus e trabalho árduo, e se outros não eram tão
afortunados, o problema era deles, e não seu.
Ainda assim, algo de sua miséria deve ter-me infectado durante essa
visita, pois apesar de crescer ansiando pelas cores do armazém, também não me
esquecia dos caldeirões, do vapor emitido pelo calor, como caldeiras do inferno
onde ferviam pecadores. E não pedi para voltar lá.
Minha irmã, entretanto, não tinha essas imagens para anuviar o prazer do
pano e, nesse momento, estava mais interessada em como o azul poderia
complementar a protuberância de seus seios. Às vezes, acho que quando chegar
a sua noite de núpcias, ela vai sentir mais prazer com a sua camisola do que com
o corpo de seu marido. Eu me pergunto o quanto isso incomodará Maurizio. Eu
só o vi uma vez. Pareceu um sujeito robusto o bastante, com alguma capacidade
de rir e força, mas não demonstrou pensar muito. Bem, é claro que assim deve
ser melhor. O que sei eu? Parecem satisfeitos um com o outro.
— Plautilla, por que não deixamos isso, por enquanto? — disse minha
mãe calmamente, afastando os tecidos e suspirando levemente. — A tarde está
particularmente quente hoje e um pouco de sol no seu cabelo pode clareá-lo para
um tom muito bonito. Por que não vai para o terraço com seu bordado?
Minha irmã ficou confusa. Apesar de se saber que jovens elegantes se
estragavam regularmente ao sol, na tentativa vã de transformar treva em luz,
essa era uma vaidade de que suas mães supostamente não teriam conhecimento.
— Oh, não fique tão surpresa. Já que fará isso independente do que penso,
parece mais fácil eu dar a minha bênção. De qualquer jeito, em breve não terá
mais tempo para esses preciosismos.
Minha mãe tinha adquirido, recentemente, o hábito de dizer coisas desse
tipo: como se, de alguma maneira, toda a vida natural para Plautilla fosse
terminar com seu casamento. A própria Plautilla parecia achar essa perspectiva
excitante, embora tenho de confessar que a mim deixava em pânico. Ela emitiu
um breve ganido de deleite e se agitou pelo quarto à procura de seu chapéu de
sol. Quando o encontrou, levou um tempo interminável para ajustá-lo, puxando
o cabelo para fora, pelo buraco no meio, para se certificar de que seu rosto
estivesse na sombra enquanto o cabelo ficasse exposto ao sol. Depois, segurou
as saias e saiu rapidamente. Se alguém tentasse pintar a sua saída, teria de lançar
faixas de seda ou gaze ao redor de seu corpo para sugerir o vento em seu
movimento rápido, como eu tinha visto alguns artistas fazerem. Ou isso ou lhe
dar asas de pássaros. Observamos Plautilla sair. Tive a impressão de que isso
deixou minha mãe triste. Levou um momento antes de se virar para mim, o que
significa que apreendi o brilho em seus olhos tarde demais.
— Acho que vou junto com ela. — Levantei-me da cadeira.
— Não seja ridícula. Você odeia sol, Alessandra, e, de qualquer maneira,
seu cabelo é negro com as asas de um corvo. Seria melhor tingi-lo, se quisesse
clareá-lo, o que duvido.
Percebi seus olhos deslizarem para meus dedos sujos de tinta, e os dobrei
rapidamente.
— E quando foi a última vez que cuidou das suas mãos? — A minha
aparência era uma das muitas coisas em mim que a punham à prova, — Oh,
você é impossível. Mandarei Erila nesta tarde. Limpe-as antes de se deitar, está
ouvindo? E agora espere aqui. Quero falar com você.
— Mas mamãe...
— Espere!
Três
PREPAREI-ME PARA O SERMÃO. Quantas vezes eu tinha estado nessa
situação? Nunca resolveríamos isso, ela e eu. Eu quase morri ao nascer. Ela
quase morreu me dando à luz. Por fim, depois de dois dias de trabalho de parto,
eu fui tirada com fórceps, nós duas gritando o tempo todo. O mal causado ao seu
corpo significou que não teria mais filhos. O que, por sua vez, queria dizer que
ela me amava tanto pela minha pequenez quanto por sua perda da fertilidade, e
muito antes de ela começar a ver algo seu em mim, o vínculo entre nós duas já
era muito forte. Certa vez lhe perguntei por que eu não tinha morrido, como
tantos outros bebês de que tinha ouvido falar. "Porque Deus quis assim. E
porque ele lhe deu uma curiosidade e um espírito que a fizeram determinada a
sobreviver, aconteça o que acontecer."
— Alessandra, você já deve saber que seu pai começou a conversar com
possíveis maridos.
Senti meu sangue gelar ao ouvir essas palavras.
— Mas como... eu ainda nem sangro! Ela franziu o cenho.
—Tem certeza?
— Como você não saberia? Maria verifica minha roupa. É um fato que
dificilmente eu poderia esconder.
— Ao contrário de outras coisas — e a sua voz era tranqüila. Ergui os
olhos. Mas não havia sinal de que ela prosseguiria. — Sabe que a protegi
durante muito tempo, Alessandra. Não posso continuar fazendo isso para
sempre.
Falou com tal gravidade que quase me assustou. Olhei para ela
procurando uma orientação sobre como continuaríamos essa conversa, mas ela
não me deu nenhuma.
— Bem — disse eu, com mau humor —, me parece que se não queriam
que eu fosse assim, não deveriam ter permitido.
— E o que poderíamos ter feito? — replicou ela, delicadamente. —
Afastá-la dos livros, tirar suas penas de você? Castigá-la por isso? Você foi
amada demais cedo demais, filha. Não receberia bem esse tipo de tratamento. De
qualquer maneira, sempre foi tão obstinada. No fim, pareceu mais fácil mantê-la
ocupada enviando-a aos preceptores de seus irmãos. — Ela deu um suspiro. Ela
devia ter-se dado conta de que a solução tinha-se revelado tão embaraçosa
quanto o problema. — Em vez deles, foi você que se mostrou tão entusiasmada.
— Não creio que eles agradeceriam por isso.
— É porque você ainda tem de aprender o poder da humildade — disse
ela, dessa vez mais rispidamente. — Como discutimos antes, essa deficiência
fica muito visível em uma jovem. Quem sabe, se você passasse tanto tempo
rezando quanto passa estudando.
— Foi assim com você, mãe? Ela riu.
— Não, Alessandra. No meu caso, minha família pôs um ponto final em
qualquer tentação de vaidade.
Ela raramente se referia à sua infância, mas todos nós sabíamos as
histórias: como as crianças, meninos e meninas, tinham sido educadas juntas por
ordem de um pai escolástico comprometido com a erudição. Como o seu irmão
mais velho tinha sido educado para se tornar um grande erudito, protegido pelos
Medici e vivendo de seu patronato, isto possibilitou às irmãs fazerem bons
casamentos com comerciantes que aceitaram sua instrução fora do comum
quando convencidos por seus dotes generosos.
— Quando eu tinha a sua idade, era ainda menos aceito uma jovem
possuir tal cultura. Se não fosse a fama de meu irmão, eu talvez tivesse
problemas para encontrar marido.
— Mas se o meu nascimento foi vontade de Deus, então você sempre
esteve destinada a se casar com papai.
— Oh, Alessandra. Por que sempre faz isso?
— Faço o quê?
— Leva seus pensamentos para mais longe do que precisam ou devem ir.
— Mas é a lógica.
— Não, filha. Essa é a questão. Não é lógico. O que você faz é mais
audacioso: questionar coisas tão profundas e coerentes na natureza de Deus. De
qualquer maneira, essa lógica humana é imperfeita para compreendê-las.
Eu não disse nada. A tempestade, que não me era desconhecida, passaria
mais rápido se eu não contestasse.
— Não acho que tenha aprendido isso com seus preceptores. — Ela deu
um suspiro, e eu senti que a sua exasperação comigo era intensa, embora ainda
não soubesse por quê. — Deve saber que Maria encontrou desenhos em uma
caixa debaixo da sua cama.
Ah, então era isso. Sem dúvida ela tinha se deparado com eles quando
buscava panos escondidos, sujos de sangue. Revi a caixa em minha mente,
tentando prever aonde sua raiva ia cair.
— Ela está convencida de que você deve ter perambulado pela cidade sem
uma acompanhante.
— Oh! Mas isso é impossível. Como eu poderia? Ela nunca me perde de
vista.
— Ela diz que há esboços de edifícios que ela nunca viu e imagens de
leões devorando um menino na Piazza della Signoria.
— E daí? Ela e eu saímos juntas no feriado. Você sabe disso. Todos
vimos os leões. Antes de matarem o bezerro, um domador ficou na jaula com
eles, que não o tocaram. Então, alguém nos contou, talvez Erila, como um
menino tinha entrado na jaula um ano antes, quando todos tinham ido para casa,
e sido morto. Maria com certeza se lembra disso. Ela desmaiou com a notícia.
—Talvez. Mas o fato é que ela sabe que você não poderia ter desenhado
tudo isso ali mesmo.
— É claro que não. Fiz alguns esboços depois. Mas eram horríveis. No
fim, tive de copiar os leões de uma imagem no Livro das horas. Embora eu
tenha certeza de que seus membros não estão corretos.
— Qual era a lição?
— O quê?
— A lição. No Livro das horas... em que havia os leões.
— Bem... Daniel? — respondi de maneira pouco convincente.
— Lembra-se da imagem, mas não da lição. Oh, Alessandra. — Ela
sacudiu a cabeça. — E os edifícios?
— São da minha cabeça mesmo. Quando eu teria tempo para desenhá-los?
— disse calmamente. — Simplesmente juntei pedaços do que me lembrava.
Ela me olhou fixo por um instante e não sei bem se eu ou ela sabíamos o
que ela estava sentindo. Ela tinha sido a primeira a reconhecer a minha
facilidade com a pena, quando eu era tão pequena que eu própria mal percebia
isso. Aprendi sozinha a desenhar copiando todas as pinturas votivas na casa e,
durante anos, a minha paixão foi um segredo entre nós duas, até eu ter idade
suficiente para apreciar a natureza da discrição. Para meu pai, uma coisa era ser
indulgente com uma criança precoce no esboço ocasional da Virgem, outra, bem
diferente, era ter uma filha crescida tão obcecada que vasculhava a cozinha atrás
de ossos de frango para moê-los e obter pó de buxo ou rêmiges de gansos para
uma dúzia de penas de escrever novas. A arte podia ser um caminho para Deus,
e também um distintivo para um comerciante, mas de jeito nenhum um
passatempo para uma jovem de boa família. Recentemente, Erila tinha-se
tornado minha cúmplice. O que minha mãe achava, eu não fazia mais idéia. Dois
anos antes, quando eu estava tropeçando na habilidade com a ponta de prata —
o estilo tão pontiagudo e duro que não deixa espaço para erros do olho ou da
mão —, ela havia pedido para ver minhas tentativas. Tinha-as examinado por
algum tempo, depois as devolvido sem dizer uma palavra. Uma semana depois,
encontrei uma cópia do Tratado sobre a técnica, de Cennino Cennini, na arca
debaixo da minha cama. Minha mão tornou-se muito mais firme desde então, se
bem que nenhuma de nós se referiu de novo ao presente.
Ela deu um suspiro.
— Muito bem. Não vamos mais falar sobre isso — fez uma pausa. —
Tenho outra coisa a dizer. O pintor pediu para fazer um esboço seu.
E senti uma pequena explosão em alguma parte dentro de mim.
— Como eu disse, ele visitou igrejas. E com o que viu, está pronto para
prosseguir. Ele já fez o retrato de seu pai. Eu estou ocupada demais com o
casamento de Plautilla para perder tempo com ele agora, de modo que ele tem de
se voltar para as crianças. Pediu que você fosse a primeira. Suponho que você
não faça idéia do motivo, estou certa?
Olhei diretamente para ela e sacudi a cabeça. Pode parecer estranho, mas
isso fez uma grande diferença para mim na época, não usar palavras para mentir
para ela.
— Ele instalou um estúdio provisório na capela. Disse que tem de vê-la
no fim da tarde, que essa é a luz correta. Insistiu muito nisso. E você levará
Lodovica e Maria junto.
— Mas...
— Não tem o que discutir, Alessandra. Levará junto as duas. Você não
estará lá para distraí-lo nem debater pontos mais importantes da filosofia
platônica. Em cujo tema acho que, de qualquer maneira, haveria uma diferença
de linguagem.
E embora suas palavras fossem severas, o tom era mais gentil, o que fez
eu me sentir de novo à vontade. O que, evidentemente, significou que eu
calculara errado o risco. Mas com quem mais eu poderia conversar sobre isso,
quando o assunto se tornava tão iminente?
— Sabe, mamãe. Tenho esse sonho às vezes. Devo ter tido umas cinco ou
seis vezes.
— Espero que seja algo pio.
—Na verdade, é. Sonho... bem, sonho que, por mais estranho que pareça,
não me caso com ninguém. Em vez disso, você e papai decidem que devo ir para
esse convento...
— Oh, Alessandra, não seja boba. Você não tem aptidão para um
convento. As regras a encarquilhariam rapidinho. E claro que sabe disso.
— Não... sim, mas, mas no meu sonho, esse convento é diferente. Nesse
convento, as freiras podem celebrar Deus de maneira diferente...
— Não, Alessandra Cecchi. Não vou dar atenção a isso. Se acha que o seu
mau comportamento nos obrigará a mudar de opinião em relação a um marido
está muito enganada.
Pronto, ali estava o começo de sua raiva, como o jato de uma fonte quente
emergindo da terra.
— Você é uma criança teimosa e, às vezes, extremamente desobediente, e
apesar do que eu disse, gostaria de tê-la refreado cedo, porque isso não fará bem
a nenhuma de nós. — Deu um suspiro. — No entanto, acharemos uma saída.
Usarei a palavra de que temos falado com freqüência. Dever. O seu dever com a
família. O seu pai agora é um homem rico, com um registro de serviço público
para o estado. Ele tem dinheiro para um dote que nos honrará e dará prestígio.
Quando ele encontrar o homem certo, você se casará com ele. Está claro? É a
melhor coisa que uma mulher pode fazer, casar-se e ter filhos. Não vai demorar
a saber disso. — Levantou-se. —Venha. Chega de falar sobre isso. Tenho muito
o que fazer. Seu pai falará com você quando tivermos feito uma escolha. Então,
depois disso, não acontecerá nada por algum tempo. Por algum tempo — repetiu
baixinho. — Mas deve saber que não posso mantê-lo conversando para sempre.
Agarrei o ramo da oliveira sofregamente.
— Nesse caso, faça com que escolha alguém que, pelo menos,
compreenda — eu disse e olhei diretamente em seus olhos.
— Oh, Alessandra... — Ela sacudiu a cabeça. — Não sei se isso será
possível.
Quatro
FIQUEI EMBURRADA DURANTE TODO O JANTAR, punindo Maria com
meus silêncios e indo cedo para o quarto, onde puxei uma cadeira e a firmei
contra a porta, e remexi na arca do meu guarda-roupa. Era importante guardar
tesouros em vários lugares. Se uma única parte for descoberta, restará outra.
Enrolado sob minhas combinações, no fundo da arca, estava um desenho, de
tamanho natural, a bico-de-pena sobre papel de cor clara.
Para esse, a minha primeira obra consistente, eu tinha escolhido o
primeiro estágio da Anunciação. Nossa Senhora é pega de surpresa pelo Anjo, e
seu espanto e aflição se revelam na maneira como suas mãos volteiam seu corpo
e seu torso se contorce, como num vôo, como se os dois, ela e Gabriel,
estivessem sendo puxados por fios invisíveis para perto e para longe um do
outro. É um tema popular, em parte porque a força do movimento dos dois é um
desafio para o bico-de-pena, mas me identifico com ele principalmente por
causa da inquietação flagrante de Nossa Senhora — embora os últimos estágios
de submissão e graça sejam os que meus preceptores sempre me impusessem
para estudo espiritual.
Para o cenário, eu tinha usado o meu próprio quarto suntuoso, o marco da
janela atrás para enfatizar a perspectiva. Foi, eu acho, uma boa escolha. A
maneira como o sol atravessa o vidro em uma determinada hora do dia é tão bela
que nos faz acreditar que Deus realmente é conduzido em seus raios. Uma vez,
fiquei horas esperando o Espírito Santo se revelar para mim; os olhos fechados,
minha alma aquecida na luz, o sol como um raio de santidade perfurando minhas
pálpebras. Mas, em vez da revelação divina, tudo o que consegui foi o baque da
batida do meu coração e a coceira incessante da picada de um mosquito.
Continuei obstinadamente — e, agora, me recordo disso quase com excitação —
não beatificada.
Mas a minha Madona é mais merecedora. Ela está ascendendo de seu
trono, as mãos erguendo-se, como pássaros nervosos, para se defender do vento
impetuoso provocado pela chegada de Deus, a virgem jovem, perfeita,
perturbada enquanto orava. Tomei todo o cuidado com o vestuário dos dois
(embora grande parte do mundo estivesse fechada para mim, pelo menos os
tecidos e a moda eu podia estudar à vontade). Gabriel está usando uma camisa
comprida do tecido de algodão mais caro de meu pai, a sua cor creme suave
caindo dos ombros em milhares de pregas minúsculas, juntando-se frouxamente
na cintura, o material leve o bastante para acompanhar a velocidade de seus
membros. Fiz Nossa Senhora muito elegante, as mangas com fenda no cotovelo
para mostrar sua camisa projetando-se, a cintura alta e enfaixada, e sua saia de
seda caindo em uma cascata de pregas em volta de suas pernas e pelo chão.
Quando o esboço estivesse pronto, começaria a trabalhar o sombreado e
os claros, usando diversos graus de solução de nanquim e uma aguada de
alvaiade aplicada com pincel. Erros nesse estágio não serão facilmente
corrigidos, e a minha mão está instável por causa da minha grande ansiedade.
Estava me tornando decididamente mais simpática ao empenho dos aprendizes
nas oficinas de Bartolommeo. Para me dar um pouco de tempo, estava
preenchendo os azulejos do chão no plano mais afastado para praticar a minha
perícia com a perspectiva, quando a maçaneta da porta se moveu e a madeira
bateu na cadeira.
— Ainda não... — puxei um lençol da cama e o joguei sobre o desenho.
— Não estou... vestida.
Uma vez, alguns meses antes, Tomaso tinha-me descoberto ali e
"acidentalmente" derrubado a garrafa de óleo de linhaça, que uso para fazer
papel fino para esboços, em um pilão com pó de alvaiade que Erila tinha
conseguido para mim na loja do boticário. O silêncio de Tomaso foi comprado
ao preço de minhas traduções dos poemas de Ovídio que ele tinha dificuldade
em fazer. Mas agora não era Tomaso. Por que perderia a noite me atormentando
quando podia estar se embonecando para as mulheres das ruas, com seus sapatos
de salto alto, chamando a atenção dos rapazes. Dava para escutá-lo lá em cima,
as tábuas rangendo sob seus pés enquanto, sem dúvida, prevaricava sobre que
cor de meia combinaria melhor com a sua nova túnica que o costureiro acabara
de entregar.
Desenganchei o espaldar da cadeira e Erila entrou, com uma tigela em
uma das mãos e uma pilha de bolos de amêndoa na outra. Ignorando o desenho
— apesar de ser minha cúmplice, é melhor para ela fingir que não —,
acomodou-se na cama, distribuiu os bolos e puxou minhas mãos, mexendo a
massa de limão e açúcar e a aplicando, bem espessa, em minha pele.
— Então. O que aconteceu? Maria delatou você?
— Mentiu, isso sim. Ai... Cuidado... me cortei aí.
— Estão horríveis. Sua mãe disse que se não estiverem brancas até
domingo, vai obrigá-la a usar luvas de camurça durante uma semana.
Deixei-a trabalhar por algum tempo. Adoro a sensação de seus dedos nas
palmas de minhas mãos, e gosto mais ainda do fabuloso contraste de sua pele
preto-azeviche contra a minha, se bem que sempre exija muito do meu
suprimento de carvão quando a desenho.
Ela diz que não se lembra de nada de sua terra natal na África do Norte,
exceto o fato de o sol ser maior e as laranjas, mais doces. A sua história poderia
ser o material de um Homero moderno. Ela foi levada a Veneza com sua mãe,
quando tinha, ela acha, cinco ou seis anos de idade, e vendida no mercado de
escravos a um mercador florentino cujos negócios tinham falido quando perdeu
três navios que vinham das índias. Meu pai a adquirira como pagamento de uma
dívida. Eu ainda era um bebê quando ela chegou e ficou encarregada de cuidar
de Plautilla e de mim, às vezes, o que era mais fácil do que o trabalho manual
que logo a destruiria. Tinha uma inteligência sutil misturada com bom senso, e
desde a minha mais tenra infância, tanto era capaz de me disciplinar quanto de
me divertir. Acho que minha mãe viu nela a resposta para as suas orações,
quando se tratava de moldar a sua filha especial, e, desde então, tornou-se
minha. Mas, na verdade, ninguém era dono de Erila. Embora, pela lei, ela fosse
propriedade do meu pai e ele pudesse fazer o que quisesse com ela, Erila sempre
manteve uma independência e um movimento secreto como os de um gato,
errando pela cidade e trazendo os boatos que corriam como frutas frescas e
fazendo dinheiro com a sua venda. Era a minha melhor amiga na casa desde que
me lembro de mim mesma, e meus olhos e ouvidos em todos os lugares a que
não podia ir.
— Então. Conseguiu?
— Talvez sim, talvez não.
— Oh, Erila! — Mas eu sabia que não devia pressioná-la. Ela deu um
sorriso largo.
— Agora, aí vai uma boa. Hoje, enforcaram um homem na Porta di
Giustizia. Um assassino. Cortou a amante em pedacinhos. Depois de ele se
balançar por meia hora, o baixaram e o colocaram na carroça da morte, onde ele
voltou a se sentar e se queixou de muita dor na garganta, e pediu um copo de
água.
— Não! O que eles fizeram?
— Levaram-no para o hospital, onde está sendo alimentado com pão
molhado no leite, até poder engolir de novo e ser enforcado de novo.
— Não! O que a multidão fez?
Ela deu de ombros.
— Gritaram, ficaram instigando-o aos berros. Mas então, um dominicano
gordo, com uma cara de pedra-pomes, apareceu com um sermão sobre como
Florença era uma fossa tão cheia de perversidades que os celerados floresciam
enquanto os bons sofriam.
— Mas e se não fosse um celerado? Quer dizer, e se isso fosse um
exemplo da misericórdia infinita de Deus, mesmo para os pecadores mais
torpes? Oh, queria estar lá para ver! O que você acha?
— Eu? — riu. — Acho que o carrasco deu o nó errado. Pronto, acabei. —
Segurou minhas mãos, examinando sua obra. Estavam limpas pela primeira vez
em dias, as unhas reluzindo e rosas, porém o quanto mais branca estava a minha
pele era difícil dizer.
— Tome. — De seu bolso, pegou um pequeno frasco de tinta nanquim
(que meus irmãos usavam em seus estudos, durante um mês, e que se acabavam
em meus desenhos em uma semana) e um pincel fino de pêlos brancos de
arminho, delicados o bastante para acrescentar os claros ao rosto e roupa de
Nossa Senhora. Joguei meus braços em volta do seu pescoço.
— Humm. Tem sorte. Eu os consegui baratos. Mas só os use depois de
domingo. Ou serei eu a ficar encrencada.
Depois que ela se foi, fiquei pensando no homem e no laço, e em como alguém
podia distinguir a misericórdia divina de um nó mal dado, ou se seriam a mesma
coisa. Pedi perdão a Deus para o caso de esses pensamentos serem impuros,
depois recorri à Virgem para interceder em meu favor, para fazer minha mão
mais firme para capturar a sua bondade no papel. Eu ainda estava acordada
quando Plautilla abriu o dossel e se arrastou para a cama, exalando o cheiro forte
de óleo para cabelo, generosamente aplicado para neutralizar o ressecamento
pelo sol. Disse sua oração a meia voz, uma litania rápida que parecia mais sobre
palavras do que sentimentos, não obstante, perfeita, depois se acomodou, me
empurrando para o lado para ficar com a maior parte da cama. Esperei até sua
respiração ficar regular e a empurrei de volta ao lugar.
Depois de algum tempo, ouvi uma multidão de mosquitos. O cheiro do
seu óleo estava em toda parte, como mel para a abelha. Prevalecia sobre os
incensos de ervas pendurados no teto. Estendi a mão para pegar o frasco de
citronela que guardava debaixo de meu travesseiro e a passei em minhas mãos e
rosto.
Zzzz.... zzzz... zap. Um mosquito pousou no pulso branco e roliço de
minha irmã. Observei-o se acomodar confortavelmente, antes de morder sua
pele. Imaginei-o sugando seu sangue como um grande gole de água, depois se
soltando de seu corpo, zumbindo janela afora, voando através da cidade até a
casa de Maurizio, onde entraria em seu quarto, descobriria uma parte de seu
corpo exposta, penetrando fundo em sua pele, e o sangue dos dois amantes seria
misturado instantaneamente. O poder da idéia foi quase insuportável, mesmo se
tratando de dois simplórios como Plautilla e Maurizio. Mas se isso fosse
possível — e tendo feito um estudo de mosquitos, me parecia que sim —, quer
dizer, o que isso seria senão o nosso sangue? Quando os matamos no começo da
noite, seus corpos não passavam de manchas pretas, embora, depois,
respingassem o mais vermelho dos sumos vermelhos — se esse tipo de coisa
fosse possível, então, certamente, poderia também ser feito de maneira volúvel.
Havia mil janelas na cidade. Quantos homens velhos gotosos, incompatíveis, já
teriam misturado seu sangue com o meu? Isso me fez pensar de novo que se eu
tivesse de ter um marido, queria um que viesse a mim não com uma bela perna,
pérolas e brocado, mas na forma de um cisne, as asas impetuosas batendo como
uma nuvem de tempestade, como em Zeus e Leda. E se ele fizesse isso, eu
realmente o amaria para sempre. Mas só se ele deixasse que eu o desenhasse
depois.
Como acontecia quase sempre em noites assim, a atividade de meus
pensamentos me manteve acordada até, por fim, eu escorregar para fora dos
lençóis e sair do quarto.
Adoro a nossa casa no escuro. Há tanta negritude e a sua geografia interna
é tão complexa, que aprendi a medi-la em minha mente; sabendo onde encontrar
as portas e em que ângulos é necessário virar para evitar partes intrusas de
móveis ou escadas inesperadas. Às vezes, deslizo de um cômodo a outro,
imagino que estou lá fora, na cidade, os seus becos e esquinas se revelando
como uma elegante solução matemática em minha mente. Apesar das suspeitas
de minha mãe, nunca andei pela cidade sozinha. É claro que houve momentos
em que escapei das garras de uma acompanhante para descer uma rua lateral, ou
me demorar em uma barraca do mercado, mas nunca por muito tempo e sempre
à luz do dia. Nossas raras excursões ao anoitecer para festivais ou missa
mostram um lugar ainda completamente desperto. Como a sua atmosfera pode
mudar quando as tochas se apagam, não faço idéia. Erila era escrava e, ainda
assim, sabia mais da minha cidade do que algum dia chegarei a saber. Tenho
tantas chances de viajar ao Oriente quanto percorrer sozinha as ruas à noite. Mas
posso sonhar.
Abaixo do pátio principal há um poço de escuridão. Desço a escadaria.
Um dos cães ergue um olho sonolento quando eu passo, mas há muito tempo ele
já se acostumou com minhas andanças noturnas. Os pavões de minha mãe no
jardim ameaçavam mais. Não somente tinham a audição mais aguçada, como
seus ganidos pareciam um coro de almas no inferno. Despertá-los significava
despertar todo mundo.
Empurrei a porta do salão de inverno. Senti os azulejos encerados e
macios sob meus pés. A nova tapeçaria pendia como uma sombra pesada e a
grande mesa de carvalho, orgulho e alegria de minha mãe, estava posta para
fantasmas. Enrosquei-me no peitoril da janela e deslizei o ferrolho com cuidado.
Dali, a casa dava para a rua e, ali, eu podia ficar observando a vida noturna. As
tochas em seus grandes cestos de ferro no muro iluminavam a frente da casa.
Era um sinal da recente riqueza do bairro, a existência de casas ricas o bastante
para iluminarem os retardatários a caminho de casa. Eu tinha ouvido histórias de
como, em noites sem lua, nas partes mais pobres da cidade, pessoas morriam ao
cair em buracos na pavimentação de pedras, ou se afogavam em valetas
transbordantes. Se bem que a sua cegueira devia estar agravada pelo vinho.
Sem dúvida, a vista de meus irmãos estaria, nesse momento, enfraquecida.
O que lhes faltava em visão, compensavam com barulho, a sua gargalhada
embriagada atingindo as pedras do calçamento e ricocheteando em um eco
exagerado nas janelas acima. Às vezes, a algazarra acordava meu pai. Mas não
havia essa excitação nessa noite, e minhas pálpebras começavam a se fechar
quando reparei em algo lá embaixo.
Do lado da nossa casa, emergiu uma figura na rua principal, o corpo
brevemente iluminado no clarão das tochas. Era comprido e magro, com um
manto o envolvendo apertado, mas a sua cabeça estava exposta, e percebi aquele
lampejo de alvura em sua pele. Era ele. O nosso pintor estava saindo para a
noite. Veria muito pouca arte a essa hora. O que minha mãe tinha dito? Que ele
estava achando a cidade desagradável em comparação à quietude da abadia.
Talvez essa fosse a sua maneira de aspirar o silêncio, mas havia algo em seu
andar, a cabeça baixa, desejoso de se perder no escuro, que sugeria mais
propósito do que atmosfera.
Eu estava dividida entre curiosidade e inveja. Era simples assim?
Envolve-se em uma capa, acha a porta certa e simplesmente sai para a noite. Se
andasse rápido, estaria na catedral de Santa Maria del Fiore em dez minutos.
Depois, cruzar pelo Batistério e seguir a oeste, em direção a Santa Maria
Novella, ou para o sul, para o rio, de onde podia-se ouvir o som dos pequenos
sinos das mulheres. Outro mundo. Mas eu não gostava de pensar nisso,
lembrando-me de sua Virgem, tão plena de graça e luz que mal podia manter os
pés no chão.
Acomodei-me para observar até que voltasse, mas depois de uma hora
mais ou menos fiquei com muito sono e, não querendo arriscar ser encontrada
ali pela manhã, subi de volta ao meu quarto. Deslizei para baixo do lençol,
notando, com uma satisfação inclemente, como a mordida no pulso de Plautilla
começava a inchar. Enrosquei-me ao redor de seu corpo quente. Ela bufou,
como um cavalo, um pouco queixosa, e continuou a dormir.
Cinco
EM SEU ESTADO CRU, O ESPAÇO tinha pouco de Deus. Ele havia isolado
uma pequena parte da nave em que o sol se filtrava pela janela lateral, batendo
direto em uma ampla faixa dourada. Ele está sentado à sombra, do lado de uma
pequena mesa sobre a qual há cartão, pena e tinta, e alguns bastões afiados de
carvão.
Entro devagar, com a velha Lodovica atrás de mim. Maria tinha sido
acometida por um grave ataque de indigestão. Acreditem quando digo que,
embora eu desejasse que ela ficasse muito doente nesse dia, não tive nada a ver
com a quantidade de comida que ingeriu ou o enjôo conseqüente. Em
retrospecto, isso me fez pensar em como Deus age por meios estranhos. A
menos que, como o nó errado do carrasco, não acreditem que tenha sido sua
obra.
Ele levanta-se quando entramos, seus olhos fixos no chão. Lodovica, sua
idade fazendo-a sofrer de gota, retardou nossa chegada e eu já pedi uma cadeira
confortável para que ela se sente perto. Nessa hora do dia, é questão de minutos
até que ela adormeça, e depois certamente se esqueça de que adormeceu. Ela é
de uma ajuda inestimável para mim nesses momentos.
Se ele se lembra do nosso encontro, não demonstra. Com um gesto, indica
uma pequena plataforma na luz, com uma cadeira de madeira de espaldar alto,
em um ângulo tal que a linha dos nossos olhos não se cruzem. Subo, consciente
de minha altura. Acho que estamos nervosos um com o outro.
— Posso me sentar?
— Como quiser — ele murmura, ainda sem me olhar diretamente.
Assumo uma pose que vi nas mulheres nos retratos em capelas, as costas eretas,
cabeça erguida, mãos cruzadas no colo. Não sei o que fazer com os olhos.
Durante algum tempo, olho diretamente à frente, mas a visão é monótona e
desvio o olhar para a esquerda, onde posso ver a metade inferior de seu corpo. O
couro no fundo de sua meia, percebo, está muito gasto, mas a forma de sua
perna é boa, se bem que um pouco longa demais. Como as minhas. Enquanto
estou ali, começo a perceber seu cheiro, muito mais forte dessa vez: um cheiro
de terra, misturado com um azedume, quase algo apodrecido. Isso me faz pensar
no que teria feito na noite anterior, para estar com esse mau cheiro. Claramente
não se lava o bastante — isso era algo que já tinha ouvido meu pai comentar a
respeito dos estrangeiros —, mas prestar atenção nisso agora eliminaria qualquer
chance de conversarmos. Resolvo deixar esse assunto para Plautilla. O fedor
certamente a deixará irritada.
O tempo passa. Está quente ali, sob o sol. Olho de relance para Lodovica.
Ela levou um bordado que está em seu colo. Baixa a agulha e nos observa por
um tempo, mas, na verdade, nunca demonstrou muito interesse por arte, nem
mesmo quando sua vista era boa o suficiente para apreciá-la. Penso em contar
devagar até cinqüenta, e em trinta e nove, ouço sua respiração rugir em seu
peito. No silêncio da capela, ela ressoa como um grande gato ronronando. Virome para olhar para ela e depois para ele.
Na luz de hoje, posso examiná-lo melhor. Para um homem que passou a
noite vagando pela cidade, parece muito bem. Seu cabelo está escovado e é
comprido demais para a moda florentina atual, porém é basto e sedoso, a sua tez
ainda mais pálida em contraste com a sua cor. É alto e magro, como eu, o que
não é tão negativo em um homem. Os malares são largos e seus olhos são
amendoados, dando uma impressão quase marmórea, verdes acinzentados
salpicados de preto, que me fazem lembrar o olhar de um gato. Ele é diferente de
todos os homens que já vi. Nem mesmo sei dizer se é bonito, se bem que isso
talvez seja por causa da maneira como está sempre voltado para dentro. Afora
meus irmãos e meus preceptores, ele é o primeiro homem que vejo de tão perto e
sinto meu coração bater forte dentro do meu peito. Pelo menos sentada, me
pareço menos com uma girafa. Se bem que não estou certa que ele note. Apesar
de estar olhando para mim, não parece me notar. Desloca-se delicadamente ao
redor do estrado, riscando o cartão, intermitentemente, com o carvão, cada traço
atento, pensado, resultado de uma comunhão singular entre o olho e a mão. É
um tipo de silêncio vibrante com que estou familiarizada. Penso em todas as
horas que passei em uma concentração intensa, meus dedos dobrados ao redor
de um pedaço afiado de carvão, tentando capturar a cabeça de um cão
adormecido na escada ou a feiúra estranha de meu próprio pé descalço, e isso me
torna mais paciente do que seria de outra maneira.
— Minha mãe disse que teve febre — falo, por fim, como se fôssemos
parentes conversando há uma hora e que só tivessem se calado nesse mesmo
segundo. Quando fica claro que não vai responder, penso em trazer à baila as
suas andanças noturnas, mas não sei o que dizer. O som de seu carvão persiste.
Volto os olhos para trás, para enfocar a parede da capela. O silêncio agora é tão
profundo, que começo a achar que ficaremos ali para sempre. Mas Lodovica vai
acabar despertando e será tarde demais...
— Sabe, pintor, se quer ter sucesso aqui, tem de falar um pouco. Mesmo
com mulheres.
Seus olhos se movem rapidamente para um lado, de modo que eu saiba
que compreendeu as palavras, mas que mesmo sendo eu a dizê-las, parecem
cruas demais e me sinto envergonhada. Passado um tempo, me mexo na cadeira,
mudando de posição. Ele pára, esperando que eu me imobilize de novo. Faço um
pouco de barulho. Quanto mais tento ficar imóvel, mais me sinto desconfortável.
Estico-me mais. Ele espera de novo. Somente agora fico alerta à possibilidade
de malícia. Se ele não fala, então não me sento como deveria. Ao parar, ergo
minha mão esquerda até a frente do meu rosto, obscurecendo, deliberadamente,
sua visão. Mãos. São sempre difíceis. Ossudas e carnudas ao mesmo tempo. Até
mesmo nossos maiores pintores têm problemas com elas. No entanto, ele volta a
desenhar rapidamente; dessa vez riscando de maneira tão insistente que me
deixa com a maior vontade de ter um papel.
Depois de algum tempo, fico farta do meu fracasso e volto a pôr a mão no
colo, flexionando os dedos para cima até ficarem como patas de uma aranha
monstruosa sobre minha saia. Observo as juntas se tornarem brancas e vejo uma
única veia latejar de encontro à pele, Como o corpo é estranho, tão cheio de si.
Quando eu era mais jovem, tivemos uma escrava tártara, um caráter impetuoso,
que sofria acessos; quando a acometiam, caía rígida no chão com espasmos, a
cabeça se jogando para trás com tal ímpeto que seu pescoço retesava e esticava
até parecer o de um cavalo, e seus dedos arranhavam o chão. Uma vez, saiu
espuma de sua boca e tivemos de colocar algo entre seus dentes para que ela não
engolisse a língua. Luca, que agora acho que sempre esteve mais interessado no
Diabo do que em Deus, acreditava que ela era possuída por um demônio, mas
minha mãe dizia que ela estava doente e devia descansar para se recuperar. Meu
pai vendeu-a, mais tarde, embora eu não tenha certeza de se ela era inteiramente
honesta em relação à sua saúde. Mesmo que fosse doença, passaria facilmente
por possessão. Se alguém pintasse Cristo expulsando demônios, ela seria um
modelo perfeito.
Lodovica está roncando alto. Seria preciso um trovão para acordá-la. E
agora ou nunca. Levanto-me.
— Posso ver o que fez?
Sinto seu corpo enrijecer. Percebo que quer esconder o papel, mas
também sabe que não seria apropriado. O que pode fazer? Pegar seu material e
fugir? Agredir-me de novo? Se fizesse isso, logo se veria em uma mula de volta
ao ermo norte. E por trás de todo o seu silêncio, não acho que seja um idiota.
A minha coragem me abandona na beirada da mesa. Ele está tão perto,
que posso ver a barba cerrada escura, e seu cheiro doce rançoso se torna mais
penetrante. Faz-me pensar em decadência e morte, e me lembro de sua violência
na outra vez. Relanceio os olhos, apreensivamente, para a porta. O que
aconteceria se alguém entrasse? Talvez ele esteja pensando a mesma coisa. Com
um gesto desajeitado, ele empurra o desenho sobre a mesa, com a face para
cima, de modo que eu possa vê-lo sem me aproximar ainda mais.
O cartão está cheio de esboços: um estudo de minha cabeça, depois partes
de meu rosto, meus olhos, minhas pálpebras semicerradas, com uma expressão
entre tímida e maliciosa. Não me adulou como, às vezes, faço com Plautilla,
para comprar seu silêncio quando ela posa para mim, mas, em vez disso, sou eu
mesma, viva com malícia e nervos, como se não pudesse falar, mas tampouco
ficar calada. Ele já me conhece mais do que eu o conheço.
E então, ali estão os esboços de minha mão em meu rosto, palma e costas,
meus dedos circundando pequenas colunas de pele viva. Da natureza para a
página. A sua perícia me deixa atordoada.
— Oh — eu digo, e há dor, assim como assombro, em minha voz. —
Quem lhe ensinou isto?
Olho de novo para os meus dedos, os de verdade e os desenhados. E, mais
do que qualquer outra coisa, quero ver como ele faz isso, observar a maneira
como cada traço tem início na página. Só por isso eu correria o risco de me
aproximar mais. Olho para o seu rosto. Não é arrogância, é timidez que o
mantém tão calado. Como será ser tão tímido a ponto de ter dificuldade em
falar?
— Deve ser difícil para você aqui — digo calmamente. — Acho que se
estivesse no seu lugar, sentiria saudades da minha terra.
E como não esperava que ele respondesse, sinto um leve arrepio ao
escutar a sua voz, que é mais macia do que me lembro, se bem que mais sombria
do que seus olhos.
— E a cor. De onde vim tudo é cinza. Às vezes, não se consegue dizer
onde o céu acaba e o mar começa. A cor torna tudo diferente.
— Oh, mas certamente Florença é como devia ser no passado. Isto é, a
Terra Santa, onde viveu Nosso Senhor. Todo este sol. É o que os cruzados nos
contam. Suas cores devem ter sido tão luminosas quanto as nossas. Você devia
ir, um dia, ao armazém de meu pai. Quando as peças de panos são concluídas e
empilhadas, é como atravessar um arco-íris.
Percebo que este deve ter sido o discurso mais longo que já escutou de
uma mulher. Sinto o pânico surgindo nele de novo, e me lembro de sua
rusticidade antes, da maneira como seu corpo inteiro tinha tremido diante de
mim.
— Não deve se preocupar por mim — falei sem pensar. — Sei que falo
muito, mas só tenho quatorze anos, o que faz com que eu seja uma criança e não
uma mulher, por isso, possivelmente, não posso lhe fazer mal. E além disso,
gosto tanto de arte quanto você.
Estendo minhas duas mãos e as ponho sobre a mesa, entre nós, abrindo os
dedos livremente sobre a madeira, de modo a haver tensão e relaxamento na
pose.
— Já que está estudando mãos, talvez queira registrá-las em repouso. São
mais fáceis de ver do que em meu colo. — E acho que minha mãe teria
aprovado a humildade em minha voz.
Fico bem quieta, os olhos baixos, esperando. Percebo o cartão deslizar
para fora da mesa e um lápis ser pego do meu lado. Quando ouço seu som na
página, arrisco erguer os olhos. Só consigo vê-lo de relance, mas é o bastante
para observá-lo tomar forma: dezenas de minúsculos traçados fluidos
transbordando sobre a página, sem tempo para pensar ou refletir, sem respirar
entre o ver e o fazer. É como se ele estivesse lendo minhas mãos por baixo de
minha pele, construindo a imagem pelo avesso.
Deixo-o trabalhar por alguns instantes. O silêncio entre nós parece, agora,
mais descontraído.
— Mamãe disse que você visitou nossas igrejas. — Ele assentiu com um
movimento de cabeça sutil. — De que afrescos gostou mais?
A mão pára. Observo seu rosto.
— Santa Maria Novella. A Vida de João Batista — diz com firmeza.
— Ghirlandaio. Oh, sim, Capella Maggiore é uma das maravilhas da
cidade.
Ele faz uma pausa.
— E... de outra capela na outra margem do rio.
— Santo Spirito? Santa Maria del Carmine?
Ele confirma, com a cabeça, o segundo nome. É claro. A Capela de
Brancacci no convento das carmelitas. Minha mãe orientou-o bem, sem dúvida
usando suas relações e o status dele como monge leigo para lhe conseguir
acesso a áreas geralmente esquecidas.
— Os afrescos da vida de São Pedro. Oh, eles são muito considerados
aqui. Masaccio morreu antes de poder concluí-los, sabe. Ele tinha vinte e sete
anos. — Percebo que esse fato lhe causa impressão. — Fui levada lá uma vez,
quando era criança, mas mal me lembro. Do que mais gostou?
Ele franze o cenho como se a pergunta fosse difícil demais.
— Há duas cenas do Jardim do Éden. Na segunda, quando são expulsos,
dão e Eva estão chorando... não, mais... estão gemendo, enquanto são banidos.
Nunca tinha visto uma tristeza assim pela perda da graça de Deus.
— E o de antes da Queda? Estão tão alegres quanto estão tristes depois?
Ele sacode a cabeça.
— A alegria não é tão forte. Veio da mão de outro pintor. E a serpente
pendendo da árvore tem o rosto de uma mulher.
— Oh, sim, sim. — Balanço a cabeça, nossos olhos se encontrando, e por
enquanto, ele está interessado demais para desviá-los. — Minha mãe me contou.
Embora não exista nenhuma evidência nas escrituras para tal representação.
Mas a menção do Diabo em mulher o faz retrair-se de novo e ficar em
silêncio. Os riscos recomeçam. Relanceio os olhos para o cartão. De onde teria
vindo esse talento? Seria mesmo uma dádiva divina?
— Sempre teve essa habilidade, pintor? — perguntei baixinho.
— Não me lembro. — E a sua voz é um murmúrio. — O padre que me
ensinou disse que nasci com Deus nas minhas mãos, para compensar a minha
falta de pais.
— Oh, estou certa de que ele tinha razão. Sabe, em Florença, acreditamos
que a grande arte é o estudo de Deus na natureza. Essa é a opinião de Alberti,
um de nossos eruditos mais importantes. Também Cennini, o artista. Seus
tratados sobre pintura são muito lidos aqui. Tenho cópias em latim, se você
quiser... — E apesar de saber que esse conhecimento é uma maneira de me
mostrar, não consigo resistir. — Alberti diz como a beleza da forma humana
reflete a beleza de Deus. Embora, é claro, ele deva essa compreensão, em parte,
a Platão. Mas você também não deve ter lido Platão. Se quer ser notado aqui, em
Florença, não pode ignorá-lo. Apesar de ele não ter conhecido Cristo, tem muito
a dizer sobre a alma humana. A compreensão que os antigos tinham de Deus é
uma das grandes descobertas florentinas.
Minha mãe, se estivesse aqui, teria levado as mãos à cabeça com a minha
falta de modéstia, tanto em relação a mim mesma, quanto à minha cidade, mas
sei que ele está prestando atenção. Posso afirmar isso pela maneira como sua
mão se detém sobre a página. Acho que ele falaria mais se Lodovica não tivesse
bufado alto, de repente, sinal de que estava para acordar. Nós dois nos
imobilizamos.
— Bem — digo rapidamente, recuando. —Talvez devamos parar agora.
Mas posso voltar para você praticar sobre as minhas mãos, se quiser.
Mas quando larga o cartão sobre a mesa, e vejo o desenho, percebo que
ele já havia apreendido tudo o que precisava.
Seis
PEGUEI CÓPIAS DE ALBERTI e Cennini na minha arca e as coloquei sobre a
cama. Eu não poderia me separar de Cennini. Dependia dele para tudo, desde o
caimento dos panos até as cores, que não conseguia misturar. Mas Alberti podia
ficar com ele.
Tentei fazer de Erila minha mensageira, com a oferta de um lenço
vermelho de seda.
— Não.
— Como pode dizer não?Você adora esta cor. E ela adora você.
— Não.
— Mas por quê? É simples. Basta descer e dar a ele. Sabe qual é o quarto
tanto quanto eu.
— E se a sua mãe descobrir?
— Não vai descobrir.
— Mas se descobrir. Saberá que isso é seu e que foi levado por mim. E
me esfolar viva.
— Não é verdade. — Eu não sabia o que dizer. — Ela... ela vai
compreender nós duas fazemos isso pela arte. Que a nossa relação não tem outra
intenção senão agradar a Deus.
— Ah! Não é o que a velha Lodovica diz.
— O que quer dizer? Ela estava dormindo. Não podia ver nada. —Agora
ficou calada, mas eu tinha falado demais e ela começou a rir. — Oh, Erila,
trapaceira. Ela não disse nada.
— Não. Mas você sim.
— Conversamos sobre arte, Erila. Falo sério. Sobre as capelas e igrejas, as
cores ao sol. Ele realmente tem Deus em seus dedos. — Interrompo-me. — Se
bem que suas maneiras são terríveis.
— É isso o que me preocupa. Vocês dois têm muito em comum.
Mas, apesar de tudo, ela levou.
Os dias seguintes foram frenéticos. Enquanto minha mãe e as criadas
organizavam o guarda-roupa de Plautilla, ela passava horas intermináveis
preparando a si mesma, clareando o cabelo e branqueando a pele, até parecer
mais um fantasma do que uma noiva. A próxima noite que fui à janela, era tarde;
lembro-me disso porque Plautilla estava de tal modo agitada que levou horas
para dormir, e escutei os sinos de Sant'Ambrogio baterem a hora. O pintor
apareceu quase que imediatamente, vestido na mesma capa, enroscada à sua
volta, deslizando para o escuro com a mesma passada determinada. Mas dessa
vez, eu estava igualmente determinada a esperá-lo. Era uma noite clara de
primavera, e o céu, um mapa completo de estrelas, de modo que quando, mais
tarde, o trovão ressoou, fiquei sem saber de onde vinha. O raio que o
acompanhou traçou um ponto de cruz gigantesco no céu.
— Uau!
— Eia!
Vi-os quando dobraram a esquina, meus irmãos e seus comparsas, como
uma gangue de piratas instáveis em terra firme, dando tapinhas e abraços uns
nos outros, ao cambalearem rua abaixo. Recuei da janela, mas Tomaso tem
olhos de falcão e ouvi seu assobio insolente, o que usa para chamar os
cachorros.
— Olá, irmãzinha? — Sua voz retumbou do calçamento de pedras. —
Irmãzinha!
Coloquei a cabeça para fora e sibilei para ele ficar calado. Mas estava
bêbado demais para entender,
— Uau! olhem para ela, rapazes! Um cérebro tão grande quanto o interior
de Santa Maria del Fiore. E a cara de um traseiro de cachorro.
A sua volta, seus amigos latiram, aprovando sua piada.
— Fale baixo ou papai pode ouvi-lo — falei com veemência, simulando a
minha mágoa com a raiva.
— Se ouvir, você terá mais problemas do que eu.
— Onde esteve?
— Por que não pergunta ao Luca? — Mas Luca não estava conseguindo
ficar em pé sem ajuda. — Nós o encontramos com as mãos nos peitos de pedra
de Santa Catarina, vomitando as tripas em seus pés. Provavelmente seria preso
por blasfêmia se não o tivéssemos achado primeiro.
O clarão do raio seguinte iluminou o céu como a luz do dia. O trovão e o
acompanhou estrondeou perto, não apenas uma, mas duas vezes, a segunda
realmente ensurdecedora, como se o solo, abaixo dele, tivesse se partido. É claro
que todos sabíamos dessas coisas: a maneira como, às vezes, a terra pode se
partir e o Diabo capturar algumas almas perdidas pelas fendas. Fiquei em pé
com um terror súbito, mas já tinha acabado. Lá embaixo, eles estavam
igualmente assustados embora simulassem o medo com gritinhos e um horror
afetados.
— Uau! um tremor de terra! — berrou Luca.
— Não. Disparo de canhão. —Tomaso estava rindo. — É o exército
francês vindo pelos Alpes para conquistar Nápoles. Que perspectiva gloriosa!
Pense nisso, irmã. Violações e pilhagem. Soube que franceses grosseiros estão
loucos para deflorar virgens da nova Atenas.
No jardim aos fundos da casa, os pavões tinham começado a ganir de uma
maneira que despertava até os mortos. Na rua, surgiu um clarão de luz. O pintor
teria de esperar. Atravessei a sala e subi a escada em segundos. Ao escorregar
para a cama, ouvi a voz de meu pai irada, lá embaixo.
Na manhã seguinte, a casa estava alvoroçada com as notícias. Como, de
madrugada, um raio atingira a clarabóia do grande domo de Santa Maria del
Fiore, rompendo um bloco de mármore e o lançando ao chão com tamanha força
que metade espatifou-se atravessando o telhado e a outra metade derrubando
uma casa próxima, embora, milagrosamente, nada tivesse acontecido com a
família.
Mas o pior estava por vir. Nessa mesma noite, Lorenzo o Magnífico,
erudito, diplomata, político e o cidadão e benfeitor mais nobre de Florença, jazia
em sua vila em Careggi, incapacitado pela gota e dor no estômago. Quando
soube do que acontecera na cidade, mandou investigarem como a pedra tinha
caído, e quando lhe informaram, fechou os olhos e disse: "Estava vindo por aqui.
Vou morrer hoje à noite."
E assim, aconteceu.
A notícia abalou mais a cidade do que qualquer tempestade. Na manhã seguinte,
meus irmãos e eu estávamos sentados em um gabinete abafado, enquanto nosso
professor de grego gaguejava palavras sobre o discurso fúnebre de Péricles, suas
lágrimas correndo e derramando-se nas páginas do manuscrito especialmente
copiado, e apesar de, depois, debocharmos de seu tom lúgubre, sei que, na hora,
até Luca se comoveu. Meu pai encerrou o expediente por aquele dia e, dos
aposentos das criadas, ouvi Maria e Lodovica em prantos. Lorenzo de Medici
tinha sido o cidadão mais importante da cidade desde antes de eu nascer, e a sua
morte fez soprar um vento frio na vida de todos nós.
Seu corpo foi trazido do mosteiro de San Marco para a noite em que os
cidadãos mais nobres tiveram permissão para vê-lo. Minha família foi uma
daquelas que fez a peregrinação. No interior da capela, o ataúde estava tão no
alto que mal consegui olhar dentro dele. O corpo estava vestido modestamente,
como convém a uma família que, apesar de governar Florença privadamente,
havia sempre tentado demonstrar o contrário em público, e o semblante sereno,
sem sinal das agonias do estômago que diziam ter sofrido no fim (e para as quais
Tomaso fez intrigas dizendo que seu médico receitara pérolas e diamantes
pulverizados. Mais tarde, os que não gostavam dele diriam que morreu
engolindo o que restava de sua riqueza particular, de modo que a cidade não
pusesse as mãos nela). Mas a minha principal recordação é como ele era feio.
Apesar de eu ter visto seu rosto em dezenas de medalhões, era muito mais
impressionante pessoalmente: a maneira como seu nariz achatado descia quase
até seu inferior e o queixo se projetava como um promontório em um rochoso.
Como fiquei assombrada, Tomaso cochichou em meu ouvido que a sua
feiúra era o seu próprio afrodisíaco, atraindo mulheres tomadas pela luxúria, e os
seus poemas de amor incendiavam o coração feminino mais gélido. A sua visão
me fez pensar de novo naquele dia em Santa Maria Novella, quando minha mãe
tinha chamado a atenção para como a grande capela de Ghirlandaio ficaria na
história. E como esse era claramente um momento desse tipo, virei-me e me
deparei com ela no meio da aglomeração, pegando-a desprevenida, e vi suas
lágrimas fulgindo como gotas de cristal à das velas. Eu nunca a tinha visto
chorar antes, e agora isso me perturbou mais do que o corpo morto.
O mosteiro de San Marco, onde o corpo jazia, havia sido o retiro preferido
avô de Lorenzo, e a família tinha gasto uma fortuna com doações para o local.
Mas o seu novo prior tinha-se excluído como um pensador independente,
irritando-se com os Medici, por promoverem as obras de eruditos pagãos sobre a
palavra de Deus. Alguns disseram que ele tinha-se recusado a dar absolvição a
Lorenzo em seus últimos momentos de vida, mas eu acho que isso eram rumores
vulgares, do tipo que se espalha como fogo por uma multidão em uma tarde
quente. Certamente, nesse dia, o Prior Girolamo Savonarola limitou-se às
palavras mais respeitosas: pregando um sermão apaixonado sobre a
transitoriedade da vida em comparação à eternidade da graça Deus, e nos
exortando a viver cada dia usando os óculos da morte, de modo a não sermos
tentados pelos prazeres terrenos e, portanto, estarmos sempre prontos para o
nosso Salvador. Nos bancos, houve muitos movimentos de cabeça concordando,
se bem que eu desconfie que aqueles que podiam se dar ao luxo voltavam ao
cheiro da boa comida e boa vida. Sei que nós sim.
Como a nossa família e a futura família de Plautilla apoiavam
declaradamente os Medici, o casamento foi adiado. Minha irmã, que nunca foi
alguém voluntariamente reservada e cujo sistema nervoso estava à beira de
colapso, vagava pela casa com a cara tão branca quanto um lençol e um humor
tão negro quanto o Demônio do Batistério.
Mas isso não foi o pior. A morte de Lorenzo desestruturou a cidade de
várias maneiras. Nas semanas seguintes, Erila trazia todo tipo de história cruel:
como dois dos leões, o símbolo da nossa grandeza, tinham brigado e matado um
ao outro na jaula atrás da Piazza della Signoria um dia antes de sua morte e
como, no dia seguinte, uma mulher enlouquecera durante a missa em Santa
Maria Novella, disparando pela nave lateral gritando que um touro selvagem a
estava perseguindo com seus chifres em chamas, ameaçando fazer o edifício
desabar em cima de todos eles. Muito tempo depois de a levarem embora, as
pessoas disseram que continuaram a ouvir seus gritos ecoando na nave.
Mas o pior de tudo foi o corpo da jovem encontrado, no período de vigília
de Santa Croce, no brejo entre a igreja e o rio, uma semana depois.
Erila descreveu o fato com todos os detalhes sangrentos para mim e
Plautilla enquanto estávamos no jardim com nossos bordados, sob a sombra da
pérgula, giestas amarelas à nossa volta e o perfume de lilás e lavanda tornando o
mau cheiro da história menos pior.
— ...o corpo estava tão putrefeito, a carne fora dos ossos. O sentinela teve
de tampar o nariz com panos canforados para procurá-lo. Dizem que ela estava
morta desde a noite da tempestade. Quem quer que tenha feito isso, nem mesmo
a enterrou direito. Ela estava em uma poça de seu próprio sangue, e os ratos e
cachorros a tinham atacado. Metade de seu estômago tinha sido devorado e
havia marcas de mordidas por toda parte.
A proclamação que leram mais tarde na praça do mercado dizia que ela
tinha sido violentamente atacada e invocava o perpetrador a se apresentar em
nome de sua própria alma e a boa reputação da República. O fato de jovens
serem violadas e, às vezes, morrerem por isso era uma verdade triste mas
conhecida na cidade. O Diabo penetra nos corações de muitos homens através
de seus órgãos sexuais, e tais ultrajes só provavam a eficácia de tradições que
mantinham homens e mulheres respeitáveis tão estritamente separados até se
casarem. Mas esse crime foi diferente. Pois, segundo Erila, o dano causado tinha
sido tão terrível, seus órgãos sexuais cortados e arrancados, que não se tinha
certeza se o responsável tinha sido um homem ou um animal.
Diante do horror do que aconteceu, não surpreendeu ninguém que, meses
depois, a notícia tenha caído das tábuas raiadas de chuva e sido pisada por
porcos e cabras, e que ninguém tenha-se apresentado para confessar um ultraje
que deixou tal mancha na alma da cidade.
Sete
O CASAMENTO DE PLAUTILLA, QUANDO FINALMENTE aconteceu, foi
a confirmação dos tecidos de meu pai e da fortuna da nossa família. Sempre que
penso nela, é nesse dia. Está sentada na sala de recepção, vestida para a
cerimônia. É cedo, a luz suave e agradável, e o pintor foi chamado para uma
última sessão, para capturá-la para a futura decoração de nossas paredes. Ela
devia estar cansada (tinha passado quase a noite toda em claro, apesar da poção
sonífera que minha mãe lhe dera), mas a sua aparência é de quem acaba de se
levantar dos campos elísios. O seu rosto é redondo e suave, a pele
fabulosamente clara, embora o ruge da excitação ilumine as bochechas. Seus
olhos são claros, as bordas internas cintilando e vermelhas como romãs em
contraste com o branco, seus cílios nem espessos demais nem escuros demais —
nada de buxo — e suas sobrancelhas cheias no meio, depois afiladas, como o
traço de um pintor, em direção ao nariz e orelhas. Sua boca é pequena, e faz um
beicinho, como o arco do cupido, e seu cabelo, ou o que pode ser visto dele sob
as flores e jóias, reflete o seu admirável envolvimento com a indolência, e uma
porção de tardes passadas ao sol.
O seu vestido está na última moda: decote festonado, mostrando sua carne
roliça e o tecido flamengo delicado, e astucioso, de meu pai, que já recebeu
inúmeras encomendas; suas anáguas macias e cheias como asas de anjos, de
modo que quando ela passa deslizando, ouve-se o material suspirar pelo chão.
Mas é o vestido por cima que emociona pela beleza. É feito da melhor seda
amarela, a tonalidade do açafrão mais brilhante cultivado especialmente para a
tintura nos campos ao redor de San Gimignano, e a saia é bordada, não
grosseiramente como as que vemos na igreja, que tentam competir com o pano
do altar, mas sutilmente, de modo que as flores e os pássaros parecem se
entrelaçar através do bordado.
Nessa roupa, minha irmã está tão adorável que, se devemos acreditar em
Platão, ela deveria refulgir de bondade, e, certamente, está mais bonita do que
nunca, nessa manhã, quase flutuando de excitação. Mas apesar de querer seu
retrato registrado, é extremamente impaciente para ficar posando por tanto
tempo. Com todos os outros na casa ocupados, sou levada como companhia e
acompanhante para diverti-la, enquanto, no outro lado da sala, as mãos do pintor
se movem firmemente sobre o cartão.
É claro que estou tão interessada nele quanto nela. Todos na casa
receberam túnicas novas para celebrar o dia, e ele parece bonito, embora não
particularmente à vontade na roupa. Está mais gordo (a nossa cozinha é famosa)
e é minha imaginação ou mantém a cabeça um pouco mais erguida? Nossos
olhos se encontram quando entro e penso ter percebido, até mesmo, um sorriso,
mas nesse, de todos os dias, ele também deve praticar a humildade. A única
coisa que não mudou é a sua mão, concentrada como sempre, cada linha
tornando-a mais viva, marcando o tecido com números, para que saiba que cores
acrescentar depois.
O que ele faz em suas noites fora de casa, ainda não faço idéia. Até
mesmo minha rainha das fofocas não me disse nada. Na casa, continua um
solitário, evitando a companhia dos outros, só que agora o vêem como
arrogante, em vez de doente, colocando-se acima deles, o que, considerando-se
seu status de artista da família, é, evidentemente, apropriado. Só muito depois,
percebo que não é tanto a arrogância que o impede de falar quanto o fato de não
saber o que dizer. As crianças criadas em mosteiros, na companhia de adultos,
aprendem melhor do que a maioria das pessoas o poder da solidão e a disciplina
pura, mas severa, de falar somente com Nosso Senhor.
Vislumbro seu olho e percebo que sua mão muda para mim. Mas a minha
imagem não está em suas instruções e a sua atenção me faz corar. Como irmã
mais nova, é importante que eu não ofusque a noiva, embora a chance de isso
acontecer seja muito pequena. Apesar dos ungüentos de minha mãe, minha pele
é tão escura quanto a da minha irmã é clara, e, recentemente, meu corpo de
girafa começou a se desenvolver de uma maneira que toda a habilidade de Erila
em apertar o espartilho e as grossas pregas do desenho do costureiro não
conseguem esconder. Ele não tem tempo de me concluir. A sala é, subitamente,
invadida por pessoas e estamos sendo apressadas. No pátio abaixo, os portões
principais são abertos e Erila e eu observamos Plauülla ser levantada e colocada
sobre o cavalo branco, seu vestido, arrumado de modo a fluir como um lago
dourado à sua volta, e a arca do casamento, erguida sobre os ombros dos
cavalariços (Erila diz que é preciso tantos homens quantos carregaram o ataúde
de Lorenzo) e, assim, tem inicio o cortejo para a casa de seus sogros.
Ao desfilarmos pelas ruas, uma multidão se aglomera, o que causa um
prazer especial a meu pai, pois sabe que a nossa fortuna aumenta fomentando
nas mulheres o desejo pelos tecidos e que dezenas das famílias mais abastadas
de Florença, todas ansiando por belos panos, nos aguardam na casa de Maurizio.
A fachada de seu falazzo foi decorada com tapeçarias especialmente
alugadas para a ocasião. No pátio interno, o banquete de casamento está disposto
sobre mesas compridas armadas sobre cavaletes. Se meu pai é o mestre dos
panos, seus parentes afins rivalizam com a comida. Não há um animal sequer
dentro dos limites de caça de Florença que não tenha perdido pelo menos um
membro de sua família para o forno nesse dia. A melhor iguaria é a língua de
pavão assada, e considerando como seus primos guincham em nossa casa, não
consigo sentir muita pena desses. Sinto mais pena das rolinhas e camurças, os
dois sendo muito menos gloriosos mortos do que vivos, se bem que o cheiro de
sua carne condimentada é suficiente para fazer os velhos babarem sobre seus
gibões de veludo. Junto com a caça, há as aves domésticas, frango e galinha
cozidos, seguidas de vitela, ura rim inteiro assado e uma grande torta de peixe
temperado com laranjas, noz-moscada, açafrão e tâmaras. São tantos os pratos
que depois de algum tempo, dá para sentir o cheiro dos arrotos tanto quanto o da
comida. É claro que esse excesso culinário é oficialmente reprovado. Florença,
como todas as boas cidades cristãs, tem leis para limitar o luxo. Mas assim como
todo mundo sabe que a arca de casamento de uma mulher é uma maneira de
esconder das autoridades o seu excesso de jóias e tecidos suntuosos, o banquete
que acompanha a cerimônia é privado. Na verdade, não é raro ver as pessoas,
cujo trabalho é fiscalizar o cumprimento da lei, se empanturrando com os outros
glutões, embora o que o novo prior de San Marco faria com tal hipocrisia e
decadência é melhor nem pensar.
Depois da comida, vem a dança. Plautilla é uma noiva genuína nesse
momento, faz um movimento majestoso com a mão em um convite com tal
coquetismo sutil que me deixa, de novo, extremamente insegura com a minha
própria falta de jeito. Quando ela e Maurizio conduzem a Bassa Danza Lauro,
composição de Lorenzo (e a sua própria declaração de lealdade, dançada tão
pouco tempo depois de sua morte), é impossível tirar os olhos dela.
Eu, em contraste, sou desastrada. Em um dos volteios mais complexos,
me perco completamente e só sou salva quando meu parceiro do momento
sussurra em meu ouvido os próximos passos. Quando me recupero, meu
salvador, um homem bem mais velho, me encara com firmeza durante o
próximo movimento, me guiando, e quando nos entrelaçamos pela última vez —
me orgulho dizer que com uma certa elegância —, ele me faz uma reverência e
fala tranqüilamente:
— Diga-me, é melhor destacar-se em grego ou na dança? — diz ele antes
de se virar a tempo de fazer a corte à garota do meu lado.
Como somente a minha família conhece tão intimamente meus defeitos, e
meus irmãos, em particular, que são despeitados demais para usá-los como
intrigas, sinto-me corar, de repente envergonhada. Minha mãe, é claro,
acompanhou todo o encontro como um falcão. Antecipo uma repreensão em seu
olhar, mas ela simplesmente olha para mim por um instante, e logo para o outro
lado.
A festividade prossegue noite adentro. As pessoas comem até sentirem
dificuldade em andar, e o vinho flui como o Arno em época de cheia, de modo
que muitos homens se tornam rudes. Mas o que dizem uns aos outros, não posso
contar, pois sou banida para uma das salas no andar de cima, com duas damas de
companhia e uma dúzia de outras garotas da minha idade. A segregação de
moças solteiras nesses momentos é um costume aceito (as flores ainda em botão
devem ser protegidas de qualquer advento intempestivo do verão), mas
recentemente a lacuna entre mim e as outras garotas parece maior do que a nossa
idade, e, nessa noite, quando olho a festa lá embaixo, juro que será a última vez
que serei um observador e não um participante.
E tinha razão, embora ainda não soubesse o preço disso.
Para minha surpresa, senti saudade de Plautilla. No começo, a extensão de
lençóis brancos e a minha soberania absoluta sobre o que tinha sido o nosso
quarto me deu prazer. Mas logo a cama começou a parecer grande demais sem
ela. Eu não mais ouviria seu ronco nem me entediaria com sua conversa. Sua
tagarelice, apesar de trivial ou chata, tinha sido a tela de fundo da minha vida
por tanto tempo, que eu não conseguia imaginar como seria o silêncio. A casa
começou a ecoar à minha volta. Meu pai estava viajando de novo, e com a sua
ausência, meus irmãos ficavam na rua com mais freqüência. Até mesmo o pintor
tinha ido para uma oficina perto de Santa Croce, onde poderia praticar a arte do
afresco, que precisaria para o altar. Com o professor certo e meu pai
financiando, compraria a sua admissão na Guilda de Médicos e Boticários, sem
o que nenhum pintor podia trabalhar oficialmente na cidade. Só pensar nessa
promoção já me fazia sofrer de saudades.
Quanto ao meu próprio futuro, minha mãe manteve sua palavra e não se
falou imediatamente de negociações de casamento. A cabeça do meu pai estaria
em outras coisas quando ele retornasse. Até mesmo eu podia ver que na esteira
da morte de Lorenzo a geometria de influência na cidade tinha começado a
mudar. Florença estava alvoroçada com especulações sobre até onde Piero de
Medici era capaz de substituir seu pai, e se não, se os inimigos da família
conseguiriam, depois de tantos anos de repressão, apoio suficiente para fazer a
balança pender para o seu lado. Apesar de, na época, eu conhecer pouco de
política, era impossível não perceber o veneno jorrando do púlpito de Santa
Maria del Fiore. O Prior Savonarola, recentemente, crescera mais do que a sua
igreja em San Marco, e, agora, pregava seus sermões semanais em uma catedral
cada vez mais cheia. O santo frade, ao que parecia, estava em contato direto com
Deus, e quando olhavam juntos para baixo, para Florença, viam uma cidade
corrompida pelo privilégio e vaidade intelectual. Depois de tantos anos
devaneando durante os sermões cheios das escrituras, mas nenhum fervor,
percebi sua língua de fogo enfeitiçando. Quando reprovava Aristóteles ou Platão
como pagãos cujas obras solapavam a verdadeira igreja enquanto suas almas
apodreciam no fogo eterno, havia argumentos que eu estava preparada para
contestar, mas somente depois que a sua voz não estivesse mais zumbindo nos
meus ouvidos. Ele tinha uma paixão que se parecia com a possessão, e pintava
imagens do inferno que gelavam o nosso sangue de horror com cheiro de
enxofre.
O que tudo isso significou para os futuros planos de meu casamento é
difícil dizer, mas claramente tinha de me casar. Na visão de Savonarola dessa
cidade árida e maculada, virgens corriam mais perigo do que nunca antes —
bastava pensar na pobre garota cujo corpo tinha sido destruído por luxúria e
deixado para os cães devorarem nas margens do Arno. Meus irmãos, que
permaneceriam solteiros até a faixa dos trinta anos, quando supostamente
estariam sóbrios o bastante para se tornar maridos, tendo arruinado só Deus sabe
quantas criadas virgens, resolveram me atazanar, debochando da questão do
casamento.
O encontro casual, de que me lembro, aconteceu no verão, depois do
casamento. A casa estava de novo cheia, meu pai ocupado com os negócios de
sua última viagem, e o pintor, recém-chegado de seu aprendizado abreviado,
trancado em seus aposentos, concentrado em concluir os desenhos para a capela.
Eu estava em meu quarto, um livro aberto no colo, minha mente ocupada pelas
maquinações de como visitá-lo, quando Tomaso e Luca, fanfarrões, passaram
por mim. Estavam vestidos para sair, mas o novo feitio de túnica, acima da coxa,
caía melhor para a perna de Tomaso do que para a de Luca, que usava o tecido
do meu pai com toda a elegância de um touro castrado. Tomaso, em contraste,
tinha olho para a moda e, desde muito cedo, caminhava como se o mundo
estivesse olhando para ele e aprovando o que via. A sua vaidade era tão patente
que me dava vontade de rir, mas tinha experiência suficiente para saber que era
melhor não debochar dele. Ele já havia me mostrado muito sangue no passado.
— Alessandra, querida — disse ele, fazendo uma reverência zombeteira.
— Veja, Luca, a nossa irmã está lendo mais um livro! Que encantadora. E tão
modesta. Mas é melhor ter cuidado, apesar de os maridos gostarem de mulheres
submissas, que mantêm a cabeça baixa, às vezes você terá de erguer os olhos
para eles.
— Perdão. O que disse?
— Eu disse que você será a próxima. Não é, Luca?
— A próxima a quê?
— Falo eu ou você?
Luca deu de ombros.
— A dar umas trepadinhas — disse ele, fazendo isso soar como algo que
o cozinheiro faz na cozinha. Se por um lado eram lentos em aprender a
gramática grega, por outro, meus irmãos tinham um talento para a gíria de rua
mais recente, que usavam sempre que minha mãe não estava por perto.
— Dar trepadinhas? Por favor me diga, Luca, o que é isso?
— É o que Plautilla anda fazendo. — Sorriu arreganhando os dentes,
referindo-se ao fato de que a nossa irmã, recentemente, iluminara a casa ao
anunciar a sua gravidez precoce e a promessa de um herdeiro varão.
— Pobre irmãzinha. — A simpatia de Tomaso é pior do que seu desprezo.
— Ela não lhe disse como é? Bem, vejamos. Só posso falar pelos homens. Em
um estupro seria como... dar a primeira chupada em um melão suculento.
— E o que faz com a casca?
Ele riu.
— Depende de quanto tempo quer que dure. Mas talvez você devesse
fazer ao seu precioso pintor a mesma pergunta.
— O que ele tem a ver com isso?
— Você não sabe? Oh, querida Alessandra, achei que você sabia tudo.
Pelo menos é o que nossos preceptores sempre nos dizem.
— Só dizem isso em comparação a vocês — retorqui sem conseguir me
conter. — O que está dizendo sobre o pintor?
E estou muito ansiosa, o que lhe dá uma vantagem.
Ele me faz esperar.
— O que estou dizendo é que o nosso aparentemente devoto artistinha
tem passado suas noites bisbilhotando as favelas florentinas. E não está lá para
pintar. Não é, Luca?
Meu irmão mais velho balança a cabeça concordando, seu rosto gordo
com um sorriso tolo.
— Como você sabe?
— Porque o encontramos, por isso.
— Quando?
— Na noite passada, esgueirando-se pela ponte velha.
— Falaram com ele?
— Sim, perguntei aonde tinha ido.
— E?
— Ele parecia o pecado em pessoa, e respondeu que estava "respirando o
ar noturno".
—Talvez estivesse.
— Oh, irmãzinha. Você não tem idéia. O homem estava um trapo. O rosto
parecia o de um fantasma, e estava todo sujo. Positivamente estava fedendo. O
cheiro de xota barata. — Apesar de eu nunca ter ouvido a palavra antes, percebei
pela maneira como a proferiu que devia ser alguma coisa torpe, e enquanto eu
tentava não demonstrar isso, ele me chocou com o desprezo em sua voz. —
Portanto, é melhor ter cuidado. Se ele pintá-la de novo, mantenha seu manto
bem fechado em volta do seu corpo. Ele pode querer mais do que o seu retrato.
— Contou a mais alguém sobre isso?
Ele sorri.
— Se eu o entreguei? Por que faria isso? Acho que ele provavelmente
pinta melhor com uma boa prostituta do que com uma dieta de evangelhos.
Quem foi mesmo aquele artista de que você gosta tanto? O que violou a freira
que posou para a sua Madona.
— Fra Filippo — respondi. — Ela era muito bonita. E ele se ofereceu para
se casar com ela depois.
— Só porque os Medici o obrigaram. Aposto que o velho Cosimo teve um
bom desconto no preço do retábulo.
Estava evidente que Tomaso herdara um pouco da sagacidade de meu pai
para os negócios.
— Então que acordo fez com o pintor em troca do seu silêncio, Tomaso?
Ele riu.
— O que você acha? Fiz com que prometesse dar a mim e a Luca bonitas
pernas e testa larga. A nossa beleza para a posteridade. E dar a você um lábio
leporino. E encurtar sua perna, para explicar você dançando.
Embora eu esperasse por isso, a sua crueldade ainda me chocava. Sempre
acontecia nesse momento da nossa discussão: a sua necessidade de me punir
pelas humilhações no gabinete de estudo, a minha recusa de ser espezinhada. Às
vezes, acho que a trajetória de toda a minha vida se desenvolveu em minhas
batalhas com Tomaso. Cada vez que eu vencia, também perdia, de certa forma.
— Oh, não me diga que feri seus sentimentos! Se você soubesse...
estamos lhe fazendo um favor, não estamos, Luca? Não é fácil encontrar marido
para uma garota que cita Platão, mas que tropeça no próprio pé. Todo mundo
sabe que você vai precisar de toda a ajuda que puder.
— É melhor tomarem cuidado, todos os dois — eu disse de modo
ameaçador, engrossando a voz para ocultar minha mágoa. —Vocês acham que
podem fazer o que querem. Que o dinheiro do papai e o nosso brasão lhes
autorizam isso. Mas se abrirem os olhos, verão que as coisas estão mudando. A
espada da ira de Deus está se erguendo sobre a cidade. Ele move-se
silenciosamente pelas ruas, à noite, e vê que erros cometem.
— Uau, fala igualzinho a ele — ri Luca, nervosamente. Sou boa em
interpretar as vozes quando quero.
— Você ri agora — viro-me para ele, olhando fundo em seus olhos, como
vi Savonarola fazer, do púlpito. — Mas estará chorando muito em breve. O
Senhor enviará peste, inundação, guerra e fome para punir os infiéis. Aqueles
que se cobrem com a retidão serão salvos, o resto sufocará no vapor do enxofre.
Por um momento, juro que até mesmo meu irmão pateta pode sentir o
calor do inferno.
— Não lhe dê ouvidos, Luca. — Tomaso é mais difícil de assustar. — Ele
é um louco. Todo mundo sabe disso.
— Nem todo mundo, Tomaso. Ele sabe pregar e cita bem as escrituras.
Devia escutá-lo um dia.
— Ah... começo a escutar, mas, então, minhas pálpebras começam a
pesar...
— Porque você ficou na rua até altas horas da noite. Olhe para trás de
você e veja o efeito que ele causou naqueles que dormiam em suas próprias
camas. Seus olhos estavam abertos como hóstias. E acreditaram nele. —
Percebo que Luca, agora, presta atenção.
— Guerra? Fome? Inundação? Vemos o Arno nas ruas ano sim ano não, e
se a safra é fraca, o povo passará fome de novo. Não tem a ver com a vontade de
Deus.
— Sim, mas se ele prediz isso e acontece, as pessoas associarão as duas
coisas. Pense no Papa.
— O quê? Ele diz que um homem velho e doente vai morrer, e quando
morre, todos o chamam de profeta. Eu pensava que fosse necessário mais do que
isso para impressioná-la. De qualquer jeito, você deveria ser a mais preocupada.
Se por um lado ele suspeita da erudição em um homem, por outro, acredita que
o Diabo reside nas mulheres. Acha que as mulheres não deveriam nem mesmo
falar... Pois, se ainda não se esqueceu, irmãzinha, foi Eva que usou as palavras
para enganar Adão...
— Por que sempre que há vozes altas na casa são vocês dois? — Minha
mãe surge no quarto, vestida para viajar, Maria e outra criada correndo atrás,
carregando um conjunto de malas de couro. — Brigam como dois arruaceiros. É
um insulto escutá-los. O senhor deveria não atormentar a sua irmã, e você,
Alessandra, é uma desgraça para o seu sexo.
Nós todos baixamos a cabeça para ela. Enquanto baixava a minha, cruzei
o olhar com Tomaso e ele pensou no meu pedido. Ainda havia momentos em
que a nossa necessidade de ajudar um ao outro era tão grande quanto nossas
diferenças.
— Mamãe querida, nos perdoe, estávamos simplesmente discutindo
religião — disse ele com um charme que despiria certas mulheres, mas que era
inútil com minha mãe. — Até onde devemos dar atenção aos recentes sermões
do bom frade?
— Oh... — ela emitiu um suspiro irritado.—Espero que meus filhos
obedeçam à vontade de Deus sem as palavras de Savonarola para instigá-los.
— Mas certamente não concorda com ele, não é mamãe? — eu disse com
um tom urgente. — Isto é, ele acha que o estudo dos antigos é uma traição à
verdade de Cristo.
Ela pára e me olha fixo, metade de sua mente em outras coisas.
— Alessandra, rezo todos os dias para que você encontre uma maneira de
se satisfazer questionando menos e aceitando mais. Quanto a Girolamo
Savonarola, bem, é um homem santo que acredita no reino dos céus — franziu o
cenho. — Ainda assim, me pergunto se Florença teria realmente necessidade de
um frei de Ferrara para revelar-lhe a sua alma. Se temos de ouvir más notícias, é
melhor que sejam ditas por alguém da nossa própria família. Como agora — deu
um suspiro. — Tenho de ver Plautilla.
— Plautilla? Por quê?
— Algum problema com o bebê. Ela me chamou. Provavelmente passarei
a noite lá, mandarei um recado por Angélica. Alessandra, você vai parar de
discutir e se aprontar para o professor de dança, que, aparentemente, ainda
acredita que milagres sejam possíveis. Luca, você vai para seus estudos, e
Tomaso fica e fala com seu pai quando ele chegar. Ele está na reunião do
Conselho de Segurança na Signoria, e é provável que chegue tarde.
— Mas mãe...
— O que quer que tenha planejado para esta noite, Tomaso, pode esperar
até seu pai retornar. Está claro?
E meu bonito irmão, que sempre tem resposta para tudo, ficou calado.
Oito
FIQUEI ACORDADA ATÉ TARDE, COMENDO PUDIM de leite surrupiado
da despensa — o nosso cozinheiro me adorara por causa de meu apetite, e esse
tipo de furto era visto apenas como a forma mais sincera de lisonja — e jogando
xadrez com Erila, para fofocar. Era o único jogo em que sempre a vencia. Em
dados e cartas, ela era um mestre do jogo, embora eu desconfie que a sua maior
habilidade estivesse em trapacear e não no jogo em si. Nas ruas, provavelmente
poderia fazer uma fortuna, embora jogar fosse um dos pecados sobre os que
Savonarola, do púlpito, estaria insuflando fogo.
Quando cansamos de jogar, fiz com que me ajudasse a misturar bem o
nanquim diluído e posasse para mim no vestido de seda da Madona em minha
Anunciação. Coloquei a candeia do seu lado esquerdo de modo que as sombras
criadas se aproximassem do efeito da luz do dia. Tudo o que eu sabia dessas
técnicas vinha de Cennini. Embora estivesse morto havia muito tempo, era o
professor de quem eu podia me aproximar mais, e o estudava com a dedicação
de uma noviça às escrituras. Seguindo o seu ensinamento da drapejaria, usei a
aguada mais carregada para criar a parte mais escura da sombra, depois fui
tornando-a mais suave até atingir a parte de cima das dobras, onde acrescentei
uma risca de alvaiade diluído, de modo que o sulco do pano parecesse capturar o
brilho da luz. Mas, apesar de isso dar à roupa de Nossa Senhora uma certa
profundidade, percebia que era grosseiro, mais um artifício do pincel do que
uma expressão da verdade. Minhas limitações me deixavam em desespero.
Enquanto eu fosse meu mestre e meu aprendiz ao mesmo tempo ficaria sempre
presa à rede da inexperiência.
— Oh, fique quieta, não consigo capturar a prega, se você se mexe. —
Você devia experimentar ficar aqui como uma pedra. Meus braços vão cair de
tanta dor.
— Isso é por causa da velocidade com que movia suas peças de xadrez. Se
estivesse posando para um pintor de verdade teria de bancar a estátua por horas.
— Se eu estivesse posando para um pintor de verdade, estaria com a bolsa
cheia de florins.
Sorri.
— Estou surpresa que não a tenham apanhado nas ruas. Você brilha tanto
quando o sol está em você.
— Ah! E em que história encaixariam a minha pele?
Recordando isso, queria ter tido coragem de pintá-la como a minha
Madona, só para capturar esse lustre do carvão negro. Havia, na cidade, aqueles
que achavam a sua cor estranha: viravam-se e a olhavam embasbacados,
divididos entre fascínio e repulsa, quando voltávamos juntas da igreja. Mas ela
não se alterava, sustentando o olhar deles até que desviassem os seus primeiro.
Para mim, a sua cor era gloriosa. Houve vezes em que eu não conseguia evitar
que meu pincel traçasse uma linha de alvaiade em seu braço, só para admirar o
contraste entre a luz e o escuro.
— E o nosso pintor? Mamãe disse que os afrescos da capela serão sobre a
vida de Santa Catarina da Alexandria. Haverá bastante espaço para você lá. Ele
nunca pediu que posasse?
— Minha figura feita pelo Garoto Magrela? — olhou para mim
atentamente. — O que você acha?
— Eu... eu não sei. Acho que ele tem bom olho para beleza.
— Um monge jovem também tem medo disso. Para ele, sou somente uma
cor que quer capturar.
— Então, acha que ele é inacessível às mulheres?
Ela bufou.
— Se for, será o primeiro que conheço, Ele é rígido de pureza.
— Nesse caso, me pergunto por que você toma tantas precauções para me
manter longe dele.
Ela me encarou por um momento.
— Porque nas mãos certas, a inocência pode revelar mais armadilhas do
que a experiência.
— Bem, isso mostra o quanto você sabe — eu disse, triunfante por ter,
pela primeira vez, uma história a contar que ela desconhecia. — Pelo que soube,
ele passa as noites com mulheres cujas almas são mais escuras do que a sua pele.
— Quem lhe disse isso?
— Meus irmãos.
— Bah! Eles não distinguem o próprio traseiro do cotovelo. Tomaso ama
a si mesmo exageradamente, e quando se trata de um corpo de mulher, Luca não
é capaz de descobrir um corvo em uma tigela de leite.
— Você fala assim, mas me lembro de quando ele a olhava bastante
interessado.
— Luca! — e riu. — Só tem estômago para pecar quando já entornou
meio barril de ale. Quando está sóbrio, sou uma criação do Diabo.
— E é. Pare de se mexer! Como posso captar a sombra certa se você a
muda?
Depois, quando ela já tinha ido embora, senti um latejar em minha barriga
que ia e vinha em um ritmo irregular, embora não desse para saber até que ponto
seria por causa do excesso de pudim de leite. O calor do verão era capaz de
derreter o cérebro. Pensei em Plautilla. Estaria sentindo a dor dela? Ela devia
estar com quatro, cinco meses no máximo, de gravidez. O que isso queria dizer?
Entre as fofocas de Erila e a grosseria de meus irmãos, eu provavelmente sabia
mais sobre o ato do sexo do que a maioria das garotas da minha idade, mas para
cada fato havia um pequeno mar de ignorância e o desenvolvimento de um bebê
era um deles. Ainda assim, a ansiedade de minha mãe foi o bastante para que eu
soubesse que era grave. A dor voltou como um punho apertando meus
intestinos. Levantei-me e pus-me a andar para ver se a aliviava.
Não conseguia tirar o pintor da cabeça. Pensava em seu talento, na
maneira como captara as minhas mãos em repouso, como as fizera parecer
tranqüilas, como se estivessem cheias da alma. Então o vi atravessar
cambaleando a Ponte Vecchio com a turma do meu irmão espalhada à sua
frente. E por mais que tentasse, não conseguia equiparar as duas imagens. Mas,
independente das dúvidas de Erila, o fato de ele ter estado lá era profundamente
incriminatório. A velha ponte tinha uma péssima reputação: os açougues e
fabricantes de velas com seus interiores semelhantes ao útero e o cheiro forte de
cera fervendo e carne apodrecendo pairando na rua. Mesmo durante o dia, havia
cachorros e mendigos por toda parte, farejando restos ou vísceras, enquanto, à
noite, dos dois lados da ponte, a cidade se estilhaçava em um labirinto de vielas
onde o escuro escondia todo tipo de pecado.
As próprias prostitutas eram bastante cautelosas. Havia normas de como
deviam se conduzir. Os sinos que carregavam e as luvas que usavam eram tanto
a lei quanto acessórios de sedução. Porém, também essa era uma lei cumprida
com brandura. Como com a Polícia Suntuária, havia uma diferença, aceita, entre
o espírito e a letra. Erila sempre vinha para casa com histórias sobre como
mulheres abordadas por fiscais por estarem usando peles ou botões de prata se
esquivavam da multa com o uso astucioso da semântica: "Oh, não, senhor, isso
não é pele, é um novo material que apenas se parece com pele. Estes? Não são
botões. Não há casas de botões, está vendo? São presilhas. Presilhas? Sim, deve
ter ouvido falar delas. Certamente Florença é a maravilha do mundo, para ter
coisas modernas assim, não é?" Mas pelo que se dizia, essa esperteza não
funcionava com alguns dos novos oficiais. A pureza estava voltando a entrar na
moda e a autoridade cega estava recuperando a visão.
Eu só tinha visto uma cortesã uma vez. A Ponte alle Grazie tinha sido
fechada por danos causados por uma enchente, e tivemos de atravessar na Ponte
Vecchio. Era fim de tarde. Lodovica caminhava na frente de Plautilla e de mim,
com Maria atrás de nós. Passamos por uma loja aberta, lembro-me que era uma
loja de velas, sombria em seu interior, mas com uma janela nos fundos que dava
para o rio, o pôr-do-sol atrás. Uma mulher estava sentada em silhueta, seus seios
nus e, aos seus pés, um homem ajoelhado com a cabeça entre suas saias, como
se em adoração. Ela era adorável, seu corpo iluminado pelo crepúsculo e, nesse
momento, ela virou a cabeça em direção à rua e tenho certeza de que me viu
olhando. Sorriu e pareceu tão... bem, tão segura de si... Só sei que me senti tão
excitada e perturbada que tive de desviar o olhar. Mais tarde pensei em sua
beleza palpável. Se Platão tivesse razão, então como seria possível uma mulher
sem nenhuma virtude ter tal aparência? A amante de Filippo Lippi pelo menos
tinha sido uma freira que servia Deus quando foi chamada para ser a sua
Madona. E, de certa maneira, continuou servindo a Deus depois, pois a sua
imagem convidava os outros rezar. Oh, ela era linda. Seu rosto iluminou dezenas
de outros quadros dele: olhos claros, serenos, assumindo o seu fardo com
gratidão e graça. Eu gostava mais dela do que da Madona de Botticelli. Embora
Fra Filippo tivesse sido seu professor, ele tomara uma modelo diferente, uma
mulher que todos sabiam ser a amante de Giuliano de Medici. Depois de
conhecer seu rosto, o víamos em toda parte: em suas ninfas, seus anjos, suas
heroínas clássicas, até mesmo em suas santas. A Madona de Botticelli era como
pertencesse a todo mundo que a olhasse. A de Fra Filippo pertencia somente a
Deus e a si mesma.
Meu estômago começou a doer de novo. Minha mãe mantinha uma
garrafa de liquore digestivo no baú de remédios em seu quarto de vestir. Talvez
eu tomasse um pouco, aliviasse a dor. Saí do meu quarto e desci, em silêncio,
um lance de escada, mas ao me virar em direção aos aposentos de minha mãe,
algo me chamou a atenção, uma linha de luz tremeluzindo por baixo da porta da
sala da capela à minha esquerda. A capela era proibida criados, e com minha
mãe e meu pai fora de casa, só podia ser uma pessoa. Não me lembro mais se
esse pensamento me fez hesitar ou me instou a prosseguir.
Dentro, uma onda de luz de vela ilumina a parede de trás do altar, mas
imediatamente a luz se contrai, depois eclipsa-se completamente, quando a
última vela é coberta. Espero, depois fecho aporta atrás de mim, deixando-a,
deliberadamente, ranger, antes de batê-la. Quem quer que eu fosse, até onde lhe
diz respeito, tornara a sair.
Ficamos no escuro por um tempo interminável, o silêncio tão completo
que quando engulo ouço o som da minha saliva dentro de meus ouvidos. Por
fim, um ponto de luz onde as velas tinham estado. Observo quando o acendedor
ocultado ilumina um pavio, depois outro e mais outro, até a parede do fundo
ficar repleta de línguas da cor laranja e ele entrar em foco, seu corpo alto e
magro revelado no interior do semi-círculo de luz.
Dou os primeiros passos na sua direção. Meus pés estão descalços e tenho
prática em andar à noite. E, ao que parece, ele também. Sua cabeça se ergue
abruptamente, como um animal sentindo um perfume noturno.
— Quem está aí? — E a sua voz é áspera o bastante para alterar a batida
do meu coração, se bem que sei que é assim por medo e não por raiva.
Ando até a beira da luz. O clarão das velas lança sombras em sua face e
seus olhos cintilam, um verdadeiro gato no escuro. Nenhum de nós dois está
vestido apropriadamente. Ele está sem túnica, a camisa de baixo aberta, de modo
que posso ver a aresta de sua clavícula e a pele macia embaixo, pérola brilhante
na luz de vela. Sou uma figura desajeitada e paralisada em uma camisola
amassada, o cabelo solto, caindo nas costas. O mesmo cheiro rançoso de que me
lembro da sessão para o retrato pesa no ar à nossa volta. Exceto que agora sei de
onde vem. Como meu irmão o chamou? Fedor de xota barata? Mas se Erila tem
razão, como um homem com tanto medo de mulheres pode sentir tal atração? E
se ele veio aqui para se confessar?
— Vi a luz da vela do corredor. O que está fazendo?
— Estou trabalhando — fala rispidamente.
Agora, atrás dele, posso ver o cânone preso na parede leste do altar, um
desenho em tamanho natural do afresco, com um pequeno esboço, de modo que
possa ser transferido para a parede em carvão. Com o que tanto sei em teoria ele,
agora, está, de fato, familiarizado. Seu novo conhecimento me dá vontade de
chorar. Sei que não devia estar aqui. Seja ele libertino ou não, se somos
encontrados juntos, nossas vidas serão separadas para sempre. Mas a minha
fome e a minha curiosidade superam meu medo e passo por ele para melhor ver
o desenho.
Ainda posso vê-lo agora: a glória de Florença evocada em cem traços
hábeis a bico-de-pena, no segundo plano, dois grupos de pessoas, cada grupo em
um lado, olhando para baixo, para uma maça no chão sobre a qual está o corpo
de uma garota. Esses espectadores são maravilhosos; homens e mulheres reais
da cidade, suas personalidades em seus rostos, idade, delicadeza, serenidade,
obstinação sucessivamente. A sua pena etérea desceu à terra. Mas a sua jornada
é perceptível na garota. Ela atrai nosso olhar imediatamente. Não somente
porque é o ponto de fuga na composição, mas por causa de sua extrema
fragilidade. Com as obscenidades de Tomaso zunindo em minha cabeça, não
consigo evitar imaginar onde ele encontrou o modelo. Talvez só as procure para
pintá-las. Existiam prostitutas tão jovens? Que ela é uma garota ainda, e não
uma mulher adulta, é óbvio; sob sua camisola, pode-se perceber seus seios
brotando, e há uma angularidade canhestra em sua constituição física, como se a
feminilidade estivesse chegando cedo demais. Mas o mais impressionante em
relação ao seu corpo é a sua completa inércia...
— Oh. — E estou falando antes de dar a mim mesma permissão. —
Aprendeu um bocado em nossa cidade. Como faz isto? Como eu posso saber
que ela está morta? Quando olho para ela, isso está tão claro. Mas quais são as
linhas que me dizem isso? Mostre-me. Sempre que desenho corpos, não consigo
distinguir entre sono e morte. Várias vezes parecem simplesmente despertos
com os olhos fechados.
Pronto. Saiu finalmente. Espero que ria na minha cara, ou mostre desdém
de milhões de outras maneiras. O silêncio aumenta e estou tão assustada quanto
quando estávamos no escuro.
— Tenho de lhe dizer que isto que não é uma confissão perante Deus,
senhor, pois Ele já sabe — digo calmamente. — Mas é uma confissão diante o
senhor. Portanto, poderia responder alguma coisa?
Olho além dele, para o escuro da capela. É um lugar tão bom quanto urro
qualquer. Suas paredes certamente escutarão coisas piores nos anos que virão.
— Desenha? — pergunta baixinho.
— Sim. Sim. Mas quero fazer mais. Quero pintar. Como o senhor faz. —
De repente parece ser a coisa mais importante do mundo contar-lhe. — É algo
tão terrível assim? Se eu fosse um garoto e tivesse talento, eu já teria sido
aprendiz de um mestre. Assim como o senhor foi. Então, eu também saberia
como iluminar estas paredes com tinta. Mas, em vez disso, estou presa nesta
casa, enquanto meus pais me procuram um marido. No fim, comprarão um com
um bom nome e irei para a sua casa, dirigir a sua casa, ter filhos, e desaparecer
no tecido da sua vida, exatamente como um fio de linha colorida em uma
tapeçaria. Nesse meio-tempo, a cidade estará cheia de artistas construindo
glórias a Deus. E eu nunca saberei se poderia ter feito a mesma coisa. Mesmo
que eu não tenha o seu talento, pintor, tenho o seu desejo. Tem de me ajudar.
Por favor.
E sei que ele compreendeu. Não ri, nem me rejeita. Mas o que pode dizer?
O que alguém poderia me dizer? Sou tão arrogante, mesmo em meu desespero.
— Se precisa de ajuda, deve, então, pedi-la a Deus. É um assunto entre a
senhora e Ele.
— Oh, já pedi. E Ele me enviou o senhor. — Seu rosto desvia-se da luz da
vela, de modo que não consigo ver sua expressão. Mas sou jovem e ansiosa
demais para suportar seu silêncio por muito tempo. — Não entende? Somos
aliados, o senhor e eu. Se eu quisesse lhe fazer mal, poderia ter contado a meus
pais como me atacou naquela primeira tarde.
— Exceto que acho que pecou tanto contra a propriedade como eu em
relação à senhora, naquele dia — replica calmamente. — Como fazemos agora,
estando aqui juntos. — E se põe a preparar suas coisas para apagar as velas e
vejo tudo isso escapulindo de mim.
— Por que me despreza tanto? Porque sou mulher? — Respiro fundo. —
Pois me parece que aprendeu bastante com elas em outros aspectos. — Ele pára,
embora não se vire nem demonstre de outra maneira admitir minhas palavras. —
Isto é... refiro-me à garota na maca. Eu me pergunto quanto pagou para ela
posar.
Agora ele se vira e olha para mim, e sua face está lívida à luz de vela. Mas
não consigo mais me conter.
— Sei o que faz à noite, senhor. Observei-o deixando a casa. Falei com
meu irmão Tomaso. Acho que meu pai não ficaria feliz ao descobrir que o pintor
da sua capela passa as noites freqüentando prostitutas nas favelas da cidade.
Nesse momento, acho possível que ele chore. Apesar de Deus estar em
seus dedos, ele é extremamente inadequado quando se trata de lidar com a
astúcia da nossa cidade. Como deve ter-lhe sido decepcionante chegar na nova
Atenas e descobri-la tão torpe e com tantas tentações. Talvez Savonarola, afinal,
tivesse razão. Talvez realmente tivéssemos nos tornado mundanos demais para o
nosso próprio bem.
— Não entende nada — diz ele e sua voz soa carregada de dor.
— Tudo o que peço é que veja o meu trabalho. Que me diga o que acha,
sem mentir. Se fizer essa coisa tão simples não contarei a ninguém. Mais ainda...
eu o protegerei contra o meu irmão. Ele pode ser bem mais cruel do que eu e...
Nós dois ouvimos. O ruído da porta central abrindo-se lá embaixo. O
mesmo arrepio de horror nos percorreu e sem pensar, nos pusemos a apagar as
velas à nossa volta. Se alguém entrasse agora... O que eu tinha na cabeça para
assumir um risco desse?
— Meu pai — sussurrei quando o escuro nos engolfou. — Ele estava em
uma reunião na Signoria.
Como esperado, ouvi sua voz, chamando da escada, e, então, mais
próxima, uma porta se abriu. Tomaso deve ter adormecido esperando por ele.
Suas vozes se misturam e, depois, outra porta se fecha. Silêncio.
Do lado, no escuro, o ponto vermelho de seu acendedor refulge como um
vaga-lume. Estamos tão perto um do outro que sua respiração roça minha
bochecha. O seu cheiro me cerca, quente e azedo, e sinto uma náusea repentina
no buraco do estômago. Estendo a mão e toco na pele em seu peito. Dou um
passo atrás como se ele tivesse me queimado, e derrubo uma vela no pavimento
de lajes. O barulho é terrível. Um momento antes e...
— Vou primeiro — digo quando recupero o equilíbrio, e minha voz soa
ríspida de medo.
— Fique aqui até ouvir a porta fechar.
Ele assentiu com um resmungo. Um bruxuleio de luz de vela aparece do
lado do acendedor, com seu rosto iluminado acima. Tínhamos feito um acordo?
Não faço idéia. Recuo rapidamente para a porta. Quando a alcanço, olho para
trás e vejo sua figura em uma silhueta ampliada na parede, enquanto ele tira o
papel da parede do altar, seus braços estendidos como um homem crucificado.
Nove
DE VOLTA AO MEU QUARTO, o som das vozes de meu pai e meu irmão
ecoaram pela escada de pedra, vindo do gabinete lá embaixo. A dor no meu
estômago voltou, de modo que mal consegui me manter ereta. Deixei a
discussão terminar e saí de novo, agora determinada a alcançar o baú de
remédios de minha mãe.
Mas eu não era a única lá em cima, onde eles não deveriam estar. Tomaso
estava descendo a escada com tanta discrição quanto a de um touro ferido. Mas,
pelo menos, ele estava tentando. Esforçava-se tanto em pisar no ar que esbarrou
direto em mim, depois pareceu culpado como se tivesse pecado ao aprumar o
corpo. Tudo isso significava que eu tinha algo negociar.
— Alessandra! Por Deus, que susto me deu — disse ele em um sussurro
dissonante. — O que está fazendo aqui?
— Ouvi você e papai discutindo — menti com tranqüilidade. — Isso me
acordou. Aonde está indo? Está quase amanhecendo.
— Eu... tenho de ver alguém.
— O que papai disse?
— Nada.
— Teve notícias de Plautilla?
— Não, não. Não recebemos nenhuma notícia dela.
— Então do que estavam falando? — Seus lábios apertaram-se. —
Tomaso? — eu disse, um pouco ameaçadora. — O que você e papai estavam
falando?
Lançou-me um olhar frio, como se para mostrar que apesar de ele
perceber a barganha, essa rendição particular não lhe causaria muito desgosto.
— Há problemas na cidade.
— Que tipo de problemas?
Ele fez uma pausa.
— Sério... O vigia noturno de Santo Spirito encontrou dois corpos.
— Corpos?
— Um homem e uma mulher. Assassinados.
— Onde?
Ele respirou fundo.
— Na igreja.
— Na igreja! O que aconteceu?
— Ninguém sabe. Foram encontrados hoje de manha. Estavam estendidos
embaixo dos bancos. Suas gargantas tinham sido cortadas.
— Oh! — Mas havia ainda mais. Pude perceber isso em seus olhos. Deus
me ajude, pois embora eu não pretendesse isso, meus pensamentos se
extraviaram para o corpo da garota todo mordido por cães. — O que mais?
— Os dois estavam nus. E ela tinha algo enfiado em sua boca — disse ele
sinistramente, depois se interrompeu, como se já tivesse falado demais. Franzi o
cenho para mostrar que não compreendera. — Era o pau dele.
Observou a minha confusão, depois deu um breve sorriso sinistro e baixou
a mão para segurar o próprio escroto.
— Entendeu agora? Quem quer que os matou, cortou o pau dele e meteu
na boca da mulher.
— Oh! — Sei que devo ter parecido uma criança, pois, nesse momento,
me senti de novo uma criança. — Oh, quem faria uma coisa dessas? Em Santo
Spirito!
Mas nós dois sabíamos a resposta. O mesmo louco que havia cortado em
pedaços o corpo da garota do lado da igreja Santa Croce.
— Foi disso que a reunião tratou. A Signoria e o Conselho de Reunião
decidiram remover os corpos.
— Removê-los? Quer dizer...
— Para que sejam encontrados fora da cidade.
— Foi isso que papai lhe disse hoje à noite?
Ele assentiu.
Mas por que ele teria feito aquilo? Se pretendem manter tal horror em
segredo, não deviam ficar contando às pessoas. Especialmente a rapazes como
Tomaso que passavam metade da sua vida nas ruas. Rapazes que podiam ficar
em perigo se mudassem seu comportamento... A dor no meu estomago
obviamente aturdia meu cérebro.
— Mas... por que removê-los? Quer dizer, se foram encontrados lá, não
veriam...
— O que está acontecendo, Alessandra? Você fica burra à noite? — Deu
suspiro. — Reflita. A profanação provocaria uma revolta.
Ele tinha razão. Provocaria. Apenas algumas semanas antes, um rapaz
tinha sido encontrado lascando pedaços das estátuas nos nichos do lado de fora
da igreja de Orsanmichele e quase não escapara com vida depois que a ralé o
pegara. Erila disse que ele havia sido afetado pela loucura, mas Savonarola tinha
deixado a cidade nervosa em relação a tal blasfêmia e, depois de um julgamento
sumário, o carrasco o despachara três dias depois com menos violência, embora
com um senso mais limitado de cerimônia. Um sacrilégio como esse ofereceria,
agora, uma boa munição para o frei. Quais eram mesmo suas palavras para
Florença? Quando o Diabo governa uma cidade, sua consorte mais famosa é a
luxaria e, portanto, o mal prolifera até não restar mais nada a não ser
imundície e desespero.
Senti-me tão nauseada e amedrontada que tive de fingir o contrário.
— Sabe, Tomaso — disse eu com um risinho —, há irmãos que
protegeriam sua irmã mais nova dessas histórias.
— E há irmãs que passam seus dias reverenciando seus irmãos.
— Mas que diversão elas seriam para você, pode me dizer? — perguntei
baixinho. — Certamente, elas o aborreceriam.
Pela primeira vez, enquanto olhávamos um para o outro, me perguntei
como teriam sido nossas vidas se não tivéssemos sido moldados como inimigos.
Ele deu de ombros e fez menção de passar por mim.
— Não pode sair agora. Não sabendo do que sabe. Pode ser perigoso.
Ele não disse nada.
— Era por isso que você e papai estavam brigando, não era? Ele o proibiu
de sair?
Ele sacudiu a cabeça.
— Tenho um encontro, Alessandra. Tenho de ir.
Respirei fundo.
— Quem quer que ela seja, você pode esperar.
Olhou para mim na obscuridade por um instante e, então, sorriu.
— Você não entende, irmãzinha. Mesmo que eu pudesse, ela não pode.
Por isso, boa noite. — Disse isso calmamente e fez o movimento para se afastar.
Pus a mão em seu braço.
— Tenha cuidado.
Deixou-a ali por um momento antes de erguê-la delicadamente. Eu estava
prestes a dizer mais alguma coisa, ou só imaginei que sim. Ele recuou.
— Deus, Alessandra, o que aconteceu? Você se feriu.
— O quê?
— Olhe, está sangrando.
Baixei os olhos. A frente da minha camisola estava com uma mancha
escura recente.
E de repente tudo fez sentido. Não era a dor de Plautilla que eu estava
sentindo, mas a minha própria. Tinha acontecido. O momento que eu mais temia
na minha vida. Senti um ardor de vergonha como febre. Meu rosto ficou quente
e pus as mãos sobre a camisola, amarfanhando-a entre meus dedos até a mancha
desaparecer. E enquanto fazia isso, senti um fio de líquido escorrer da parte
interna da minha coxa.
Tomaso, é claro, percebeu tudo. Senti-me ainda mais enjoada com o terror
ante a perspectiva de sua vingança. Mas, em vez disso, ele fez algo de que nunca
me esqueci. Inclinou-se para mim e tocou na minha bochecha.
— Pois é — disse ele, quase gentilmente —, parece que, agora, nós dois
temos segredos. Boa noite, irmãzinha.
E passou por mim, descendo a escada, e percebi a porta, lá embaixo, fechar-se
sem fazer ruído. Fui para a cama e senti meu sangue correr.
Dez
MINHA MÃE CHEGOU EM CASA ANTES de qualquer um de nós termos
levantado. Ela e meu pai comeram a portas fechadas. Às dez horas, Erila me
acordou para dizer que eu era chamada em seu gabinete. Quando viu o sangue,
me lançou um sorriso malicioso, mudou os lençóis e me trouxe pano para
colocar dentro da roupa de baixo.
— Nem uma palavra — eu disse. — Entendeu? Nem uma palavra até eu
mandar.
— Então é melhor que seja logo. Maria vai descobrir pelo cheiro a
qualquer momento.
Erila vestiu-me rapidamente e me apresentei. Na mesa de jantar, encontrei
Luca, os olhos congestionados, se empanturrando de pão e geléia. Estava
nauseada demais para comer. Ele me olhou carrancudo, eu o olhei carrancuda.
Meus pais estavam esperando. Tomaso chegou alguns minutos depois. Apesar
de ter trocado as roupas, estava com a cara de quem não tinha se deitado.
O gabinete de meu pai ficava no fundo de seu mostruário do lado do
palazzo, aonde as mulheres da cidade levavam seus costureiros para escolher os
tecidos lançados recentemente. O lugar cheirava a cânfora e outros sais
suspensos em incensórios para espantar as traças, e a fragrância impregnava sua
sala. Essas áreas eram, geralmente, proibidas a nós, crianças, principalmente a
Plautilla e a mim, e é claro que justamente isso fazia com que eu gostasse mais
delas. Do pequeno escritório forrado de pergaminhos, meu pai dirigia um
pequeno império de comércio por toda a Europa e partes do Oriente. Além de lã
e algodão da Inglaterra, Espanha e África, ele importava muitas das tintas de
diversas cores; cinabre e realgar do Mar Vermelho, cochinilha e oricello do
Mediterrâneo, noz-de-galha dos Bálcãs e, do Mar Negro, pedra-ume para fixálas. Quando o pano ficava pronto, as peças de fazenda que não se adequavam à
moda florentina voltavam aos navios para alimentarem os mercados suntuosos
nos países de onde vieram. Quando hoje me recordo, acho que meu pai vivia
com o peso do mundo em seus ombros, pois apesar de prosperar, sei que havia
momentos em que as notícias não eram boas; quando a perda de um navio em
tormentas ou pirataria chegava à sua sala à noite, e minha mãe nos fazia andar
na ponta dos pés no dia seguinte para não acordá-lo. Certamente, em minhas
lembranças, ele sempre está com seus livros-razões ou cartas, contabilizando as
colunas de lucro e prejuízo, e enviando comunicados aos mercadores, agentes e
fabricantes de tecidos que viviam em cidades cujos nomes eu mal sabia
pronunciar, às vezes em lugares onde não acreditavam que Jesus Cristo era filho
de Deus, embora seus dedos gentios percebessem beleza e verdade suficientes
em um fardo de panos. Tais cartas partiam diariamente de nossa casa como
pombos-correios, assinadas, seladas e envolvidas em panos à prova de água,
protegidas da chuva, esmeradamente copiadas e arquivadas em caso de acidente
ou perda na estrada.
Com um negócio dessa monta sobre si, não admira que meu pai não
tivesse muito tempo para assuntos domésticos. Mas nessa manhã, ele parecia
particularmente cansado, seu rosto empapuçado e sulcado como eu nunca vira
antes. Era dezessete anos mais velho do que minha mãe, e, nessa época, devia
estar na faixa dos cinqüenta. Era rico e bem conceituado, e tinha sido duas vezes
escolhido para cargos oficiais menores, o mais recente sendo sua função no
Conselho de Segurança. Se tivesse usado sua influência de modo mais
estratégico, poderia ter-se promovido mais rapidamente, porém, apesar de sua
sagacidade nos negócios, era um homem simples, com mais aptidão para o
transporte de tecidos do que para a política. Acho que amava seus filhos e sabia
chamar a atenção de Tomaso e Luca, quando seus comportamentos exigiam.
Mas, de certa maneira, ficava mais à vontade em suas fábricas do que em casa.
A sua educação tinha sido a suficiente para o comércio — seu pai fizera isso
antes dele — e não possuía o conhecimento nem falava tão bem quanto minha
mãe. Mas podia dizer se a cor em uma peça de fazenda estava irregular com um
simples olhar, e sempre sabia que tom de vermelho mais agradaria às mulheres
quando o sol brilhasse. Desse modo, o seu discurso nessa manhã foi longo, para
ele, e suspeito que minha mãe tenha-lhe dado muita atenção.
— Primeiro, tenho boas notícias. Plautilla está bem. Sua mãe passou a
noite lá, e ela se recuperou.
Minha mãe aprumou o corpo, as mãos cruzadas no colo. Há muito tempo
ela aperfeiçoara a arte da aquiescência feminina. Se não a conhecesse, acharia
que não estava sentindo nada.
"Mas há outras notícias, que logo saberiam por rumores, e por isso
decidimos que seria melhor serem informados em casa."
Lancei um olhar a Tomaso. Meu pai falaria de mulheres nuas com pênis
na boca? Com certeza não.
"A Signoria reuniu-se durante toda a noite porque acontecimentos atuais
no estrangeiro afetam a nossa segurança. O rei da França chegou ao Norte,
liderando um exército para conquistar a sua reivindicação do ducado de
Nápoles. Destruiu a frota napolitana em Gênova e assinou tratados com Milão e
Veneza. Mas para prosseguir em direção ao Sul, tem de atravessar a Toscana, e
enviou mensageiros para pedir o nosso apoio à sua reivindicação e segurança
para o seu exército nessa travessia."
Percebi no sorriso afetado de Tomaso que ele sabia mais do que me
contara. Mas é claro que as mulheres não têm estrutura para a política.
— Então, vai haver combate? — os olhos de Luca cintilaram como
medalhões de ouro. — Soube que os franceses são guerreiros ferozes.
— Não, Luca. Não haverá luta. Há mais glória na paz do que na guerra —
respondeu meu pai asperamente, sem dúvida ciente de como a demanda de
tecidos elegantes diminuía durante um conflito. —A Signoria com o conselho de
Piero de Medici ofereceu neutralidade, e não apoio para a sua reivindicação.
Desse modo, demonstraremos força combinada com prudência.
Se o nome de Piero fosse dito seis meses antes, provavelmente teria
acalmado todos nós, mas até eu sabia que a sua reputação havia decaído desde a
morte de seu pai. Corriam rumores de que ele tinha problemas em assumir sua
posição sem se queixar ou se irritar. Como poderia ter o encanto ou malícia para
negociar com um rei que não precisava exaltar a nossa cidade-estado, que podia
simplesmente entrar e esmagá-la sob seus pés?
— Bem, se depositamos nossas esperanças em Piero, podemos abrir os
portões hoje e dar-lhes as boas-vindas.
Meu pai deu um suspiro.
— E que linguarudo lhe disse isso, Tomaso?
Tomaso deu de ombros.
— Estou dizendo que a Signoria tem fé no nome Medici. Não há mais
ninguém que inspire tal grau de respeito a um rei estrangeiro.
— Bem, acho que não devemos deixá-los passar. Acho que devemos
combatê-los — disse Luca, como sempre ouvindo, mas sem escutar nada.
— Não, não vamos combatê-los. Conversaremos com eles, faremos
acordos, Luca. A sua batalha não é conosco. Será um acordo entre iguais.
Talvez, até mesmo, nos dêem algo em troca.
— O quê? Acha que Carlos vai lutar por nossos interesses e pôr Pisa em
nossas mãos? — Eu nunca tinha visto Tomaso discutir com tanta veemência na
frente de meu pai. Minha mãe olhava severamente para ele, mas ele não percebia
ou não queria perceber. — Vai fazer simplesmente o que quiser. Ele sabe que só
precisa ameaçar para que a nossa República desabe como um castelo de cartas.
— E você é um garoto querendo falar como homem e se tornando cômico
— disse meu pai. —Até ter idade para discutir esses assuntos, faria melhor
guardando essas opiniões traiçoeiras para si mesmo. Não as ouvirei nesta casa.
Irradiou-se um breve silêncio, quando desviei meus olhos dos dois. Então,
Tomaso disse, mal-humorado:
— Muito bem, senhor.
— E se vierem mesmo? — perguntou Luca, distraído. — Entrarão na
cidade? Vamos permitir que cheguem a isso?
— Isso é algo a ser decidido quando soubermos mais.
— E Alessandra? — perguntou minha mãe, com calma.
— Querida, se os franceses nos atacarem, Alessandra será enviada ao
convento, com todas as outras jovens da cidade. Os planos já foram discutidos. ..
— Não — deixei escapar.
— Alessandra...
— Não. Não quero ser mandada para longe daqui. Se...
— Você vai fazer o que eu achar que tem de fazer — disse meu pai e,
agora, com o tom de voz irritado. Não estava habituado a esse grau de rebelião
na família. Mas ele tinha-se esquecido de como tínhamos crescido, então.
Minha mãe, mais pragmática e sensata, simplesmente baixou, de novo, os
olhos para suas mãos cruzadas e disse baixinho:
— Acho que antes de prosseguirmos, devem saber que seu pai tem outras
notícias.
Entreolharam-se e ela sorriu sutilmente. Ele aceitou, grato, a sua
orientação.
— Eu... é possível que num futuro próximo, eu seja convocado para
honrar o cargo de Priore.
Um dos membros do Conselho dos Oito. Uma honra realmente, embora
seu conhecimento de tal elevação fosse prova de que o processo de seleção era
corrupto. Hoje, pensando retrospectivamente, ainda sinto o orgulho em sua voz
ao comunicar isso. De tal modo que teria sido rude até mesmo pensar que, em
época de uma crise como essa, a cidade seria melhor servida por homens mais
sábios e mais experientes. Pois admitir isso, teria significado também admitir
que alguma coisa estava seriamente errada no Estado e não acho que algum de
nós, nesse momento, até mesmo Tomaso, quisesse ir tão longe.
— Pai — disse eu, quando ficou claro que nenhum dos meus irmãos
falaria —, o senhor honra a nossa família com essa notícia. — E fui ajoelhar-me
a seus pés e beijar a sua mão, de novo uma filha submissa.
Minha mãe relanceou os olhos, de modo aprovador, para mim quando me
levantei.
— Obrigado, Alessandra — disse ele. — Eu me lembrarei disso se e
quando assumir meu lugar no governo.
E quando sorrimos um para o outro, não consegui evitar pensar naqueles
corpos chacinados e todo o sangue que teriam deixado sob os bancos de Santo
Spirito, e em como Savonarola poderia usá-los contra a cidade, onde a ameaça
de uma invasão estrangeira tornava-o, agora, um profeta ainda maior aos olhos
do povo.
Minha mãe está sentada à janela de seu quarto. Por um momento, acho
que talvez esteja rezando. Desde que me lembro, ela tinha uma maneira de ficar
só com seu silêncio que dava a impressão de que estava ausente, Mas se é
pensamento ou oração que ocupa a sua mente, não posso afirmar e não tenho
coragem de perguntar. A porta, observando-a, vejo como ainda é bela, embora já
tenha passado da juventude e a sua beleza mostre-se mais frágil na ríspida luz da
manhã. O que estará sentindo quando a sua família está escapando de seu
controle e a sua primeira filha vai se tornar mãe? Há triunfo por tê-la conduzido
a salvo ou se pergunta o que será de você agora que ela se foi? É uma sorte ela
ainda ter a mim com que se preocupar.
Esperei até notar a minha presença, o que fez sem se virar.
— Estou muito cansada, Alessandra — disse ela calmamente. — Se não
for importante, prefiro que espere até mais tarde.
Respirei fundo.
— Quero que saiba que não irei para um convento.
Ela franziu o cenho.
— Essa decisão ainda é remota. Mas se tiver de ser assim, fará o que seu
pai mandar.
— Mas você mesma disse...
— Não! Não estou falando disso agora. Ouviu o que o seu pai disse. Se os
franceses vierem, e isso ainda não é certo. Então, a cidade não será um lugar
seguro para moças.
— Mas ele disse que não viriam como inimigos. Se houver um
armistício...
— Ouça — disse ela com firmeza, virando-se, por fim, para mim. — Não
é da conta das mulheres saber sobre questões de Estado. E você, em particular,
só aumentará seus problemas se demonstrar que sabe. O que não significa que
deva ser idiota, privadamente. Nenhum exército ocupa uma cidade sem ter
alguns direitos sobre ela. E quando soldados estão na guerra, não são cidadãos,
são somente mercenários, e jovens virgens são as que correm risco. Você irá
para um convento.
Respirei fundo.
— E se eu me casasse? Deixaria de ser virgem e teria a proteção de um
marido. Estaria a salvo, então.
Ela olhou fixo para mim.
— Mas você não quer se casar.
— Não quero ser mandada embora.
Ela deu um suspiro.
—Você ainda é jovem.
— Somente em anos — repliquei. Por que, pensei, sempre tem de haver
conversas? Uma que as mulheres têm quando há homens presentes e outra
quando estão sozinhas? — Em outros aspectos, sou mais velha do que os eles.
Se eu tiver de me casar para ficar, então é o que farei.
— Oh, Alessandra. Isso não é razão suficiente.
— Mamãe — disse eu. — De qualquer jeito, tudo mudou. Plautilla se foi.
Estou em guerra com Tomaso e Luca vive perplexo em sua confusão. Não o
estudar para sempre. Talvez isso signifique que eu esteja pronta. — E nesse
segundo, realmente acho que acreditava naquilo.
— Mas sabe que não está pronta.
— Agora estou — disse eu bruscamente. — Comecei a sangrar na noite
passada.
— Oh. — Suas mãos ergueram-se e depois baixaram em seu colo, como
sempre faziam quando ela tentava manter o controle. — Oh. — E, então, ela e se
levantou, e percebi que também estava chorando. — Oh, filha querida — disse
ela e me abraçou. — Minha querida, minha criança querida.
Onze
COM CARLOS E SEU EXÉRCITO NA fronteira toscana e o pânico rondando
os portões da cidade, Florença refugiou-se na igreja.
Havia tanta gente em Santa Maria del Fiore nesse domingo, que a
multidão se derramava escada abaixo. Minha mãe disse que nunca tinha visto
tanta gente reunida para a missa, mas a minha impressão era a de que estávamos
esperando o Juízo Final. Ao erguer os olhos para o domo, senti, como sempre,
uma vertigem repentina, como se a sua escala desequilibrasse a mente. Meu pai
dizia que o prodígio de Brunelleschi ainda era assunto na Europa — como uma
estrutura tão grande poderia ter-se erigido sem a ajuda das tradicionais vigas de
apoio. Ainda hoje, quando imagino o final se aproximando, penso em Santa
Maria del Fiore ocupada pela massa de devotos erguendo-se das covas, o domo
animado pelas batidas das asas dos anjos. No entanto, esperava que o Juízo Final
cheirasse melhor, já que, nesse dia, o mau cheiro de tantos corpos pairava no ar
como uma névoa de incenso fétido. Várias mulheres mais pobres já tinham
desmaiado, pois, aparentemente, as mais devotas tinham começado a jejuar sob
as ordens de Savonarola, para conduzir a cidade de volta a Deus. Seria preciso
mais tempo para as ricas desfalecerem, se bem que notei que tinham sido
repreendidas cautelosamente: não era hora de correrem o risco de ser culpadas
de vaidade.
Quando subiu ao púlpito, o lugar murmurava com devoção. Mas, então,
com a sua chegada, impôs-se um silêncio mortal. Foi a suprema ironia da época
que o homem mais feio de Florença fosse também o homem mais pio. Havia
uma convicção em sua eloqüência que quando pregava esquecia-se de seu corpo
anão, de seus pequenos olhos penetrantes e o nariz recurvo como o bico de uma
águia. Ele e seu arquiinimigo Lorenzo, juntos, teriam sido material para
gárgulas. Quase era possível imaginar um díptico em que seus perfis se
confrontavam, os narizes tão pronunciados quanto suas personalidades, a cidade
de Florença, o campo de batalha dos dois, no segundo plano. Mas quem
arriscaria essa pintura agora? Quem se atreveria a encomendá-la?
Seus inimigos diziam que ele era tão pequeno que, para aumentar seu
tamanho, ficava em pé sobre livros, traduções de Aristóteles e dos clássicos que
seus monges lhe buscavam, de modo que seus pés pudessem saqueá-los. Outros
afirmavam que usava um banquinho de sua cela, uma das poucas peça de
mobília que se permitia ter em uma vida de extremo ascetismo. Dizia-se que era
a única cela em San Marco que não continha um quadro religioso, de tal modo
desconfiava do poder da arte para arruinar a pureza da fé, e que aplacava
qualquer desejo da carne açoitando a si mesmo diariamente. Apesar de sempre
ter havido aqueles na igreja com apetite por flagelação, esse tipo de refinamento
do sofrimento não atraía a todos. Pensando retrospectivamente, acho que nós,
florentinos, sempre fomos um povo mais interessado no prazer do que na dor, se
bem que, em momentos de crise, o medo gera seu próprio desejo de
autopunição.
Ele ficou, por um momento, em silêncio, suas mãos agarrando-se à beira
da pedra, os olhos esquadrinhando a grande multidão à sua volta.
— Está escrito que o Prior deve acolher com prazer seu rebanho. Mas
hoje não os acolherei assim. — A voz emitida começou como um sussurro,
aumentando seu volume a cada palavra até ocupar a Catedral e erguer-se à
abóbada da cúpula. — Pois hoje, lotam a casa de Deus só porque o medo e o
desespero lambem seus pés como as chamas do inferno, e porque anseiam por
redenção.
"Por isso vieram a mim. A um homem cujo próprio desmerecimento é
compensado somente pela generosidade do Senhor ao fazê-lo seu porta-voz.
Sim, o Senhor se revelou a mim, Ele me concede a bênção de sua visão e
desvenda o futuro. O exército que espera em nossa fronteira foi profetizado. É a
espada que vi pendendo sobre a cidade. Não há fúria como a fúria de Deus. 'Eles
lançarão sua prata nas ruas e o ouro será removido: toda a prata e ouro não
conseguirão salvá-los no dia da ira do Senhor! E Florença jaz como uma
carcaça repleta de moscas no caminho em chamas de sua vingança."
Mesmo para aqueles que conheciam bem as escrituras era difícil perceber
os pontos de ligação. Agora, ele transpirava, o capuz para trás, o nariz movendose de cá para lá, como um grande bico bicando par dais. De início, quando
começou a pregar, dizia-se que a sua voz era fraca e ofegante. Que durante seus
sermões, velhas adormeciam e os cachorros uivavam na porta da igreja. Mas
agora, ele encontrara sua voz e ela ressoava como um trovão. Os gregos talvez
chamassem isso de demagogia, mas havia mais do que isso. Ele falava para todo
mundo; em sua piedade, o pecado era um grande aplanador, destruindo o poder
e a riqueza. Sabia como misturar essa mensagem com o fermento da política.
Por isso os privilegiados o temiam tanto. Mas esses pensamentos vieram depois.
No momento, simplesmente o escutávamos.
De seus paramentos, tirou um pequeno espelho. Ergueu-o para a multidão.
Em um certo ângulo, captou a luz de uma vela e a enviou girando pela igreja.
— Está vendo isso, Florença? Ergui um espelho para a sua alma e o que
ele mostrou? Decadência e podridão. Esta, que já foi uma cidade de Deus, agora
derrama mais imundície por suas ruas do que o Arno quando inunda. "Não entre
na senda dos corrompidos e não penetre o caminho dos homens maus." Mas
Florença tampou os ouvidos às palavras de Deus. Quando cai a noite, a besta
começa a andar e a batalha por sua alma começa.
Do meu lado, senti Luca se mexer em seu lugar. Na sala de estudos, os
únicos textos pelos quais mostrou interesse foram os que falavam de guerra e
derramamento de sangue. Se tivesse luta com quem quer que fosse o inimigo,
ele ia querer estar lá.
— Em cada viela escura em que a luz de Deus foi apagada, há pecado e
violação. Lembrem-se do corpo despedaçado daquela jovem pura. Há ultraje e
sodomia. "Extinga sua impureza, Senhor, e que seus corpos renunciem ao
pecado em tormento no fogo eterno". Há luxúria, há fornicação. "Os lábios de
mulheres estranhas insinuam-se como favo, mas seu fim é mais amargo que
absinto, afiado como uma espada de dois gumes. Seus pés descem à morte e
seus passos controlam o inferno."
Até mesmo Tomaso estava prestando atenção, o mimado Tomaso, cuja
aparência atraía as mulheres como pirilampos à chama da vela. Qual a última
vez em que pensara em inferno? Bem, estava pensando agora. Percebia-se isso
em seus olhos. Apesar de toda a sua despreocupação costumeira, o pensamento
desses corpos mutilados e a ameaça de um exército francês nos portões da
cidade estavam dentro dele nesse momento. Olhei para seu rosto, intrigada com
essa nova ansiedade. Ele sentiu meu olhar e, fazendo uma carranca para mim,
baixou a cabeça.
Quando fez isso, outro rosto no lado de lá do ajuntamento de pessoas
entrou em foco acima do dele; um homem olhava diretamente para mim com um
brilho em seus olhos. Pareceu-me imediatamente familiar, mas precisei de um
momento para reconhecê-lo. Claro, o casamento de Plautilla. O homem que
falara do grego e, depois, me ajudara nos passos de dança. Quando nossos
olhares se encontraram, ele me saudou com um ligeiro movimento da cabeça, e
achei ter percebido um breve sorriso em sua face. Sua atenção ostensiva
confundiu-me e desviei o olhar para o púlpito.
— Perguntem a si mesmos, homens e mulheres de Florença, por que Deus
fez o exército francês marchar contra nós? Para mostrar que a nossa cidade
esqueceu-se da mensagem de Cristo. Uma cidade que se deslumbrou com o ouro
falso, que colocou a erudição acima da piedade, a chamada sabedoria dos pagãos
acima da palavra de Deus.
"Quando o rio da fúria de novo jorrou sobre nós, do corpo da igreja ouviuse um lamento de vozes, uma espécie de coro de desespero. 'Vejam, porque não
temeram meu conselho, rirei de sua calamidade', disse o Senhor. 'Escarnecerei
quando seu medo chegar com a desolação, quando a destruição chegar como
um furacão e quando a aflição e angustia caírem sobre vocês, eu não
responderei'. Oh, Florença. Quando abrirá os olhos e retornará ao caminho de
deus?
O gemido ficou mais alto. Pude até mesmo ouvir o ruído grave
começando na garganta de Luca. Olhei de novo para o homem. Ele não estava
prestando atenção a Savonarola. Ele continuava a olhar para mim.
Doze
QUATRO DIAS DEPOIS, OS CORPOS MUTILADOS do homem e da mulher
foram encontrados além dos muros da cidade, em um olivedo à margem da
estrada, entre Florença e a aldeia de Impruneta.
Como o clima estava quente há muito tempo, espalhou-se o medo da
estiagem e de a safra ser arruinada, e a igreja, então, organizou uma procissão
para levar a estátua milagrosa de Nossa Senhora de Impruneta até a cidade para
preces e uma missa. Se Deus estivesse irritado com Florença, talvez desse
ouvidos à intercessão de Nossa Senhora. Mas quando a procissão foi reunindo
mais e mais gente no caminho para os portões da cidade, retardatários se
extraviaram do caminho entrando nos campos — e foi assim que um menino se
viu vagando na orla de um vinhedo e localizou carne ensangüentada sob as
vinhas. Se eu fosse meu pai no Conselho de Segurança, teria perguntado quem
tinha sido o idiota que permitira o transporte dos corpos para um local tão óbvio,
mas, evidentemente, ninguém disse nada.
Como o crime fora cometido fora dos muros da cidade, não era um caso
estritamente florentino, de modo que não houve proclamações na Praça da
Cidade. Ainda assim, a noticia dos assassinatos se espalhou como praga. A
mulher era uma prostituta e o homem seu cliente, e seus corpos estavam
fedendo, os ferimentos tomados por larvas de insetos. A nossa não era uma
cidade escrupulosa. Se a mulher tivesse sido processada por licenciosidade, uma
multidão sadia teria se reunido para assistir seu nariz ser cortado. Essas mesmas
pessoas provavelmente tinham visto tripas espalhadas em nome da justiça antes,
mas o castigo blasfemo nessa violência atingiu-as imediatamente, e fez as
sombrias profecias do Frei ecoarem de novo. Que homem faria uma coisa
dessas? Tinha sido um ato de tal depravação, que seria mais fácil interpretá-lo
como retribuição: o Diabo levantou-se do inferno e movia-se furtivamente pelas
ruas reivindicando, antecipadamente, o que era seu.
Em casa, meu pai nos reuniu de novo para relatar como os emissários
franceses tinham vindo e ido, carregados de presentes e promessas aduladoras de
neutralidade, mas nenhum salvo-conduto. Seria o bastante ou Carlos teria
coragem de invadir a Toscana? Tudo o que podíamos fazer era esperar. E o calor
continuava. A intercessão de Nossa Senhora, ao que parecia, não era o bastante.
Fiquei em meu quarto. A minha Anunciação estava terminada, mas não
fiquei satisfeita com o resultado. O desconforto de Nossa Senhora tinha sido
bem apreendido e o Anjo tinha certa verve em seus movimentos, mas seu mundo
era monocromático e meus dedos ansiavam por cor. Antes, eu fazia o melhor
que podia com a alquimia caseira. Usava gemas de ovos surrupiadas da cozinha
(o meu amor por merengue era lendário com o cozinheiro) que, misturadas ao
alvaiade, produziam um tom próximo ao da pele. Eu tinha feito o meu próprio
preto com o pó de cascas de amêndoas queimadas e juntado fuligem da candeia
de óleo de linhaça, e, uma vez, tinha até mesmo forjado um tom razoável de
verdete deitando vinagre forte em tigelas de cobre. Mas foi um alvoroço na
cozinha, quando as tigelas foram descobertas manchadas e desfiguradas, e a
qualidade da tinta que produzia era ineficaz. De qualquer jeito — que histórias
se podia ilustrar usando preto, branco e verde?
Fazia quase uma semana do meu encontro casual com o pintor na capela.
Operários tinham começado a erigir os andaimes, para que ele desse início ao
trabalho. Não podia esperar mais. Chamei Erila.
Desde a notícia do sangramento, ela estava excitada por minha causa.
Depois de selecionado um marido para mim, ela ficaria numa casa em que a sua
patroa seria a patroa, e a sua nova influência não teria limites. Tinha muito mais
apetite de vida do que muitos escravos, Se bem que a sua condição não tinha
sido tão cruel para ela quanto para outros. Havia casas em que, quando ficasse
mais mulher, se aproveitariam dela — a cidade estava cheia de escravas de
barrigão que serviam seus patrões tanto na cama quanto na sala de jantar —,
mas o meu pai não era assim e, apesar de Luca ter tentado a sorte, ela o havia
rechaçado com uma tapa na orelha. Tomaso, até onde eu sabia, nunca a
incomodara. Ele tinha excessivo respeito por sua vaidade para empreender algo
que não o levasse à vitória.
— E quando encontrar o pintor, o que direi a ele?
— Pergunte-lhe quando posso entregá-los. Ele vai saber o que isso quer
dizer.
— E você sabe? — disse ela rispidamente.
— Erila, por favor. Simplesmente faça isso por mim, uma vez. Não resta
muito tempo.
E embora me censurasse com seus olhos, ela foi e, mais tarde, quando
voltou, me disse que ele estaria no jardim na manhã seguinte bem cedo.
Agradeci-lhe e disse que tinha de ir pessoalmente.
Levantei-me ao alvorecer. O cheiro de pão assado pairava no ar e meu
estômago cantou de fome. O jardim no pátio dos fundos era a grande alegria de
minha mãe. Ainda era novo, a vegetação de apenas meia dúzia de verões, mas
meu pai o havia abastecido de plantas trazidas de sua vila, de modo a parecer
maduro. Havia um broto de figueira, uma romãzeira, uma nogueira, uma série de
buxos trespassados com murta aromática, uma horta de ervas fértil o bastante
para servir às cozinhas com boa quantidade de salva, menta, alecrim, saião e
manjericão, e flores coloridas que mudavam com as estações. Minha mãe, com
propensão à doçura platônica, achava que os jardins estavam perto de Deus, e
estava sempre exaltando as virtudes da contemplação para o desenvolvimento da
mente. Eu o usava, principalmente, para copiar arbustos e flores, cuja variedade
era suficiente para povoar uma dúzia de cenas separadas da Anunciação e
Natividade.
No entanto, havia um inconveniente. Minha mãe acrescentara às plantas a
vida selvagem: pombos com asas aparadas e seus queridos pavões, dois galos e
três galinhas. Eles reservavam seu respeito, até mesmo afeição, somente para
ela. Conheciam seus passos, e quando chegava, geralmente com um saco de
sementes, os galos corriam para ela. Depois de comerem, os pavões afastavamse empertigados, exibindo suas asas para ela. Eu os odiava, tanto a sua vaidade
quanto a sua crueldade. Uma vez, quando era mais jovem e estava encantada
com suas cores, tentei fazer carinho em um e ele me mordera. Desde então, seus
bicos foram tema de meus pesadelos. Quando pensava nos corpos no campo ou
na jovem coberta de mordidas de animais, não conseguia evitar imaginar o que
bicos de pavões teriam feito com seus olhos.
Mas nessa manha, encontraram outra presa. O pintor estava sentado no
banco de pedra, um conjunto de pincéis e uma dúzia de potes minúsculos de
tinta misturada do seu lado. Na sua frente, os pavões bicavam sementes
lançadas, suas caudas obstinadamente fechadas e caídas atrás deles, e ele os
observava atentamente. Mas quando me viram, um deles emitiu um ganido
irritado, e sua plumagem explodiu em uma dança de ameaça, enquanto me
atacava.
— Ah... não se mexa — disse ele, segurando os pincéis, suas mãos
agitando-se sobre os potes, misturando as cores em sua mente antes de atingirem
seus dedos.
Mas a minha paralisia era verdadeira.
— Por favor! — disse eu. Agora estava na sua vez de me ver aflita. Ele
olhou-me fixamente por um momento, preso entre o pincel e o meu pânico,
então pegou um pouco de semente na bolsa e a estendeu, emitindo um ruído
estranho do fundo da garganta. A ave jogou a cabeça como reconhecendo, e se
dirigiu, literalmente se pavoneando, para a sua mão estendida.
— Não precisa ter medo deles. São inofensivos.
— Isso é o que você pensa. Ainda tenho a cicatriz em minha mão que
prova o contrário. — Fiquei observando-o. Era preciso um certo espírito para
deixar essas aves comerem de sua mão. Minha mãe e ele eram as únicas pessoas
que eu tinha visto conseguir isso. — Como consegue? É tão injusto Deus ter-lhe
dado dedos de Fra Angélico e o toque de São Francisco.
Ele manteve os olhos no animal.
— No mosteiro, cabia a mim a tarefa de alimentar os animais.
— Não desse tipo — murmurei.
— Não — disse ele, os olhos fixos na plumagem ultrajante. — Nunca
tinha visto estas criaturas antes. Embora tenha ouvido histórias.
— Por que precisa pintá-los? Não acho que Santa Catarina comungasse
com animais.
— Asas de anjos — disse ele enquanto o pequeno bico cruel ficava de lá
para cá na sua mão. — Para a Assunção no teto do altar. Preciso de penas.
— Nesse caso, tem de tomar cuidado para que os seus anjos não eclipsem
Deus. — E ao dizer isso, pensei em como era fácil para nós conversar dessa
maneira, como se a divergência no escuro da capela tivesse sido destruída pelo
sol da manhã. — O que você usava no Norte?
— Pombos... gansos e cisnes.
— É claro. Seu Gabriel branco. — E revi as asas ondulantes do afresco
cru em seu quarto. Mas ele estava adquirindo fluência na cor. Eu via isso em
suas mãos. O que eu não daria para ter minhas unhas cobertas com tantos tons?
O pavão tendo beliscado o bastante, afastou-se lançando-me um último insulto
ao me ignorar. O ar luminoso da manha ainda estava entre nós, meu anseio tão
fresco quanto o orvalho nas folhas. Ele tornou a pegar seu pincel, eu me
aproximei.
— Quem mistura suas tintas, pintor?
— Eu.
— É difícil?
Ele sacudiu a cabeça, seus dedos movendo-se rápido.
— No começo, talvez. Agora, não.
Eu sentia meus dedos cocando de vontade de tocar nas cores, a ponto de
ter de prender meus próprios pulsos do meu lado.
— Posso dizer o nome de cada tom em cada muro de Florença, e sei a
receita de uns doze deles. Porém mesmo que eu conseguisse os ingredientes, não
teria um ateliê onde misturá-los nem tempo só meu, sem supervisão. —
Interrompi-me. — Estou tão cansada de bico-de-pena. Dá um matiz sem vida e
tudo que capto parece, de certa maneira, melancólico.
Dessa vez, ele ergueu o olhar para mim e nossos olhos se encontraram. E,
como na capela, juro que ele entendeu. O rolo de desenhos queimava a palma de
minha mão. Dentro estava a minha Anunciação e uns doze outros escolhidos
tanto por sua ambição quanto precisão. Era agora ou nunca. Senti o medo no
suor de minhas mãos, e isso fez com que eu fosse mais ida com ele do que
pretendia. Eu os estendi para ele.
— Não quero tato, entende? Quero a verdade.
Ele não se mexeu, e no silêncio que se seguiu, percebi ter estragado algo
que nascia entre nós, mas eu estava nervosa demais para saber como comportar
de outra maneira.
— Desculpe. Não posso julgá-los para você — replicou calmamente. —
do o que posso fazer é o meu próprio trabalho.
Embora não falasse de modo grosseiro, suas palavras foram como o bico
pavão atacando minha alma.
— Então meu pai enganou-se quanto ao seu talento. E será sempre um
aprendiz e nunca um mestre. — A minha mão continuava estendida. Deixei os
papéis no banco, ao seu lado. — A sua opinião ou a sua reputação. Não me
deixa escolha, pintor.
— E que escolha me resta? — E dessa vez, ele não desviou o olhar. Seus
lhos assim permaneceram por muito tempo, muito além da polidez, até que fui
eu que baixei os meus.
No extremo do jardim, Erila apareceu. Para salvar as aparências, virei-me
para ela, se bem que soubesse que tinha ficado nos vigiando.
— O que está fazendo? — mudei para italiano. — Estava me
espionando...
— Oh, senhora, por favor não me repreenda — disse ela humildemente,
sua docilidade flagrantemente falsa. — Sua mãe a está procurando.
— Minha mãe! A esta hora? O que lhe disse?
— Que estava no jardim desenhando folhas.
— Oh! — virei-me para ele. — Oh, você tem de ir — disse eu em latim.
— Rápido. Ela não pode encontrá-lo aqui comigo.
— E suas folhas?
Seu italiano estava melhorando. Pegou um pedaço de carvão. O arbusto
laranja de minha mãe cresceu sob seus dedos, a fruta tão pesada que era possível
senti-la pronta para cair. Quando me deu o papel, eu não sabia se ria ou chorava.
Ele juntou suas tintas e as colocou na bolsa do seu lado. Depois pegou o feixe de
desenhos e também o pôs na bolsa.
— Não vou me chatear com o que disser — gritei para ele. —Apenas não
minta para mim.
O pão fresco do cozinheiro foi perfeito com compota de marmelo. Comi demais
enquanto minha mãe mostrava-se, extraordinariamente, nervosa, e bebia
somente vinho com água. A carta chegara cedo com um mensageiro, embora ela
certamente já devesse saber do que se tratava: minha irmã Plautilla tinha
convidado a família e amigos para uma pequena reunião. O bebê deveria nascer
em alguns meses e estava na hora de exibir todas as belas peças de cama e roupa
adquiridas em preparação para o evento. Não dei muita atenção. Minha mãe, por
outro lado, parecia não fazer outra coisa senão pensar sobre isso. Mandou Erila
arrumar meu cabelo e separar uma seleção de meu guarda-roupa
antecipadamente.
— Se não aprová-lo, é melhor encontrar uma boa razão rapidamente —
disse Erila, com a boca cheia de grampos, e prendeu meu cabelo para trás, com
os pesados pentes de pérolas.
— O que quer dizer?
— Quando foi a última vez que se arrumou tanto para visitar sua irmã?
Separou o segundo anel de cabelo com a pinça quente e olhamos no
espelho quando ele se enrolou do lado de meu rosto. Por um segundo, os dois
ficaram em perfeita simetria, então o esquerdo desceu resolutamente mais baixo
que seu parceiro.
Quando minha mãe me viu, nem mesmo tentou esconder sua ansiedade.
— Oh, querida. Seu cabelo é tão escuro, não é? Talvez devêssemos usar
uma tintura. Mas acho que podemos nos sair melhor com a sua roupa. Vamos
ver. O dourado ainda está na moda, mas acho que seu pai aprovaria mais uma de
suas sedas brilhantes. O vermelho brasil das índias Orientais combina bem com
a sua tez.
Meu pai, que eu me lembre e apesar de acreditar na eficácia de vestir o
que produzia, nunca fez nenhum comentário sobre o meu guarda-roupa.
— Não acha muito suntuoso? — disse eu. — Não queremos provocar a
ira dos devotos nas ruas.
— O pregador ainda não governa a cidade — retorquiu minha mãe, e acho
que foi a primeira vez que escutei um tom de desdém em relação a ele. — Ainda
podemos nos vestir como queremos, no que diz respeito à família. O tom cai
bem em você. E ponha algo em seu rosto. Talvez um toque de pó branco para
suavizar sua cútis. Erila pode fazer isso por você, se não perder tanto tempo
fofocando.
— Mamãe — disse eu —, se por acaso isso é para um homem, então o
melhor seria escolher um que seja cego. Assim não enxergará meus defeitos.
— Oh, minha querida, você está enganada. Você é adorável. Adorável. Há
um grande viço e brilho em seu espírito.
— Sou inteligente — disse eu irritada. — Não é a mesma coisa. Como já
me disseram muitas vezes.
— E quem lhe disse isso? Não Plautilla, foi? Ela não é tão cruel.
Hesitei.
— Não, não Plautilla.
— Tomaso.
Dei de ombros.
Ela refletiu sobre isso.
— Seu irmão tem uma língua ácida. Talvez tivesse sido melhor não tê-lo
como inimigo.
— Eu não fiz nada — respondi mal-humorada. — Para ele é fácil se sentir
ofendido.
— Bem, não importa. Quando se trata de coisas importantes o sangue é
mais espesso que a água — disse ela com firmeza. —Vamos pensar nos sapatos.
Treze
PLAUTILLA PARECIA UM NAVIO COM AS velas desfraldadas. Até seu
rosto estava rechonchudo. Parecia que ia desaparecer dentro de sua própria
carne. Seu cabelo perdera a cor alourada. Não havia tempo para pintá-lo agora.
Com esse corpo, provavelmente não conseguia mais ir até o telhado. Mas não
parecia se incomodar. Estava gorda e plácida, como um animal atolado em um
poço. Grande demais para se mover. E fazia muito calor.
Fomos os primeiros a chegar. Minha mãe levou frutas e amêndoas
cristalizadas e Plautilla nos mostrou o quarto recém-decorado. Havia novas
tapeçarias na parede e, na cama, lençóis bordados a mão, com o emblema da
família e debruado em toda a volta. O berço do bebê estava do lado, forrado com
uma colcha de damasco branco, com a franja dourada e prateada. A arca de
casamento estava em um lugar de honra, as sabinas dançando, parecendo
vigorosas demais para o calor que fazia. A lascívia dos homens se tornava
indolente nesses períodos? Certamente uma criança concebida no auge do calor
era considerada suspeita; alguma coisa a ver com a quentura duplicada do ar e a
luxúria, mas, então, eu não tinha idade bastante para ter recebido as explicações
sigilosas dessas coisas. Sem dúvida, uma educação estava por vir.
Fiquei sabendo por Tomaso que Maurizio tinha apostado 30 florins contra
400 que o bebê seria menina. Dessa maneira seu desapontamento seria
compensado pelo que ganhasse, se bem que duvido que cobrisse o que tinha
pago por todos os acessórios. Tudo estava de acordo com a moda: vinhos
brancos para a futura mamãe e um par de pombos novos para depois do parto,
porque sua carne era de fácil digestão. Ouvia-se as aves arrulhando, sem
saberem de seu destino, no pátio embaixo. A parteira foi contratada, começara a
procura de uma ama-de-leite apropriada, e o quarto estava mobiliado com peças
de bom gosto; pequenos quadros e estátuas religiosos, de modo que durante o
trabalho de parto, Plautilla olhasse somente coisas belas e assim aprimorasse a
beleza e caráter da criança. Fiquei impressionada. Maurizio, tem-se de admitir,
havia feito tudo que a rolinha gorda de sua mulher poderia desejar.
— Mamãe me disse que o pintor fez a salva do parto — acrescentou ela,
sem fôlego, quando chegamos ao fim de seu inventário. — Disse que está
maravilhosa. Pedi o jardim do Amor de um lado e um tabuleiro de xadrez do
outro. Maurizio gosta de jogar — disse ela, depois deu um risinho de menina.
Eu também diria coisas assim quando estivesse casada? Olhei para a
minha irmã gorducha e feliz com urna espécie de horror. Ela sabia tão mais do
que eu. Como eu poderia lhe perguntar?
— Não se preocupe — disse ela, cutucando meu braço com um ar
conspiratório. —Agora que está sangrando, vai compreender muito em breve —
fez uma careta. — Embora eu deva lhe dizer que não se parece nada com ler
livros.
Então como é? Eu queria saber. Conte. Conte-me tudo.
— Machuca? — perguntei, como se não fosse deliberado.
Ela franziu os lábios e olhou para mim, saboreando o momento de poder.
— É claro — disse simplesmente. — É assim que sabem que você é pura.
Mas passa. E então, não é tão ruim. De verdade. — E, olhando para ela, achei
que falava sério, e pela primeira vez, percebi que minha irmã fútil e tola talvez
tivesse encontrado, realmente, algo que podia fazer bem na vida. Isso me deixou
contente por ela, e ainda mais aterrorizada por mim mesma.
Nossa conversa foi interrompida com a chegada de mais convidados.
Amigos da família, todos trazendo pequenas oferendas. Plautilla movia-se entre
eles rindo e sorrindo. Então o senhor se juntou a nós.
Estava usando uma capa de veludo cor de vinho, mais bonita do que a que
usava na igreja, e que meu pai definitivamente aprovaria. Pareceu mais velho do
que das outras vezes em que o vira, mas a luz do dia é mais cruel do que a luz de
velas e óleo. Ele me viu assim que entrou, mas primeiro cumprimentou minha
mãe. Eu a vi cruzar as mãos e dar-lhe toda a atenção. Supostamente, não era a
primeira vez que se encontravam. Eu estava surpresa? Sabe, ainda não sei ao
certo. Alguém me disse, muito depois, que sempre reconhecemos as pessoas que
farão diferença na nossa vida na primeira vez que pomos os olhos nelas. Mesmo
que não gostemos nada delas. E eu o havia notado. Assim como ele a mim. Que
Deus nos protegesse. Peguei Plautilla em uma de suas rodadas pela sala e a
imprensei contra a parede mais próxima, ou tanto quanto sua barriga permitia.
— Quem é ele?
— Quem?
— Plautilla, não posso beliscá-la como fazia. Poderia entrar em trabalho
de parto e não suportaria ouvir seus berros. Mas quando o bebê nascer, posso
beliscá-lo com impunidade, já que levará anos até poder me culpar.
— Alessandra!
— Então. Quem é ele?
Ela deu um suspiro.
— Seu nome é Cristoforo Langella. Vem de uma família nobre.
— Estou certa que sim — disse eu. — Então por que estaria interessado
em mim?
Mas não houve tempo para mais comentários. Ele já saíra do lado de
minha mãe e estava vindo na nossa direção. Plautilla se soltou de mim e
atravessou a sala sorrindo. Fiquei rígida e examinei meus pés, minha postura
desafiando todas as normas de charme e feminilidade.
— Senhora — disse ele, fazendo uma ligeira reverência —, acho que
ainda não fomos formalmente apresentados.
— Não — murmurei, lançando-lhe um olhar de relance. Havia rugas
fundas ao redor de seus olhos. Pelo menos ele sabe rir, pensei. Mas pode fazer
isso comigo? Voltei a olhar para o chão.
— Como estão seus pés hoje? — perguntou em grego.
—Talvez devesse perguntar-lhes diretamente — respondi-lhe com uma
voz que me lembrou meus acessos de raiva em pequena. Sentia minha mãe me
observando, querendo que eu me comportasse. Apesar de ela não estar ouvindo
o que acontecia, conhecia os movimentos de meu rosto o suficiente para
distinguir sarcasmo de aquiescência.
Ele fez outra reverência, dessa vez abaixando-se mais e se dirigindo à
bainha do meu vestido.
— Como estão, pés? Devem estar aliviados por não haver música —
interrompeu-se. Ergueu os olhos e sorriu. — Nós nos vimos na igreja. O que
achou do sermão?
— Acho que se fosse pecadora teria sentido o cheiro de óleo fervendo em
mim.
— Então tem sorte de não ser. Acha que tem muitos que o ouvem e não
sentem o cheiro?
— Não muitos. Mas acho que se eu fosse pobre, ouviria os gritos vindo
primeiro dos mais ricos.
— Humm. Acha que ele prega rebelião?
Refleti um pouco.
— Não. Mas acho que prega a ameaça.
— É verdade. No entanto eu o ouvi expressar sua irritação com todos, não
apenas os ricos e os amedrontados. Ele consegue ser muito crítico da igreja.
— Talvez a igreja mereça.
— Realmente. Sabe que o nosso Papa atual tem uma imagem da Madona
pintada acima da entrada de seu quarto? Só que ela tem o rosto de sua amante.
— Verdade? — disse eu, momentaneamente seduzida por tal intriga
superior.
— Oh, sim. Dizem que sua mesa geme sob o peso de tantos pássaros
canoros assados, que a floresta ao redor de Roma agora está silenciosa, e que
seus filhos são bem-vindos na casa, como se o pecado não fosse pecado. Mas
errar é humano, não acha?
— Não sei. Acho que o confessionário é para isso.
Ele riu.
— Sabe dos afrescos de Andréa Orcagna no refeitório de Santa Croce?
Balancei a cabeça.
— Ele pinta o Juízo final com cabeças de freiras entre os dentes do Diabo.
E Satã parece estar sofrendo de indigestão de tantos chapéus cardinalícios que
engoliu.
E, contra a vontade, comecei a rir baixinho.
— Diga-me, Alessandra Cecchi. Gosta da arte da nossa bela cidade?
— Oh, eu a adoro — repliquei. — E o senhor?
— Também, muito. Por isso as palavras de Savonarola não gelam meu
sangue.
— Não é um pecador? — perguntei.
— Pelo contrário. Peco freqüentemente. Mas acredito no poder do amor e
da beleza como uma rota alternativa para Deus e a redenção.
— Segue os antigos?
— Sim — respondeu com um sussurro afetado. — Mas não diga a
ninguém, porque a definição de heresia está se tornando mais abrangente a cada
minuto.
E por mais ingênua que fosse, achei sua maneira conspiratória excitante.
— Seu segredo está seguro comigo — disse eu.
— Sabia que estaria. Mas me diga... que defesa se deveria apresentar
quando o nosso monge maluco faz a preleção sobre como mulheres velhas
analfabetas sabem mais sobre a fé do que todos os pensadores gregos e romanos
juntos?
— Deveria ser-lhe entregue uma cópia de Defesa da poesia, de
Boccaccio. Sua tradução dos contos dos deuses clássicos revela somente as
virtudes mais cristãs e verdades morais.
Ele recuou e olhou para mim, e juro que não percebi errado a admiração
em seus olhos.
— Eu tinha ouvido falar que você era bem filha da sua mãe.
— O que não é muito conforto para mim, senhor. O meu irmão gosta de
dizer a todo mundo que quando ela me carregava dentro de si, viu violência nas
ruas e isso me aterrorizou em seu útero.
— Então o seu irmão é cruel.
— Sim. Mas, ainda assim, pode ser franco.
— Ainda assim. Nesse caso, ele cometeu um erro. A senhora gosta dos
estudos. Não há nada de errado nisso. São somente os clássicos ou também
aprecia os nossos escritores?
— Acho que Dante Alighieri é o maior poeta que Florença já produziu.
— Ou produzirá. Nisso não há como discordarmos. Pode recitar a Divina
comédia?
— Não toda! — respondi. — Só tenho quinze anos.
— Ainda bem. Se pudesse recitá-la toda, ainda estaríamos aqui no
Segundo Advento — olhou-me por um momento. — Soube que a senhora
desenha.
— Eu... quem lhe disse isso?
— Não precisa ficar tão nervosa comigo. Eu já lhe confiei meu segredo,
lembra-se? Só mencionei isso porque estou impressionado. Não é um fato
comum.
— Nem sempre foi assim. Na antigüidade...
— Eu sei. Na antigüidade, a filha de Varro, Maria, foi celebrada por sua
arte — sorriu ele. — A senhora não é a única a estar familiarizada com Alberti.
Embora ele, então, não pudesse saber que o nosso Paolo Uccello tinha uma filha
que trabalhava na oficina de seu pai. Era chamada de o pardal menorzinho —
fez uma pausa. —Talvez, um dia, me mostre seu trabalho. Gostaria que isso
acontecesse.
Um criado apareceu oferecendo frutas cristalizadas e vinho. Ele pegou
uma taça e a estendeu a mim. Mas o feitiço se desfizera. Ficamos em silêncio
por um tempo, cada um olhando para um lugar. O silêncio foi-se tornando, se
não incômodo, bastante intenso. Então, ele disse com a voz calma que tinha
usado na dança:
— Alessandra, sabe por que nos conhecemos hoje aqui?
Senti um enjôo. É claro que deveria responder não, como minha mãe teria
me ensinado. Mas o fato é que eu sabia. Como poderia não saber?
— Sim — respondi. —Acho que sim.
— Isso seria aceitável para você?
Ergui os olhos para ele.
— Não sabia que meus sentimentos seriam levados em consideração.
— Bem, são. É por isso que lhe faço essa pergunta.
— É gentil, senhor. — E percebi que corei.
— Não. Não mesmo. Mas gostaria de pensar em mim como alguém justo.
Nós dois somos peixes estranhos neste mar. O tempo de lutar sozinho está se
encerrando. Fale com sua mãe. Sem dúvida nos veremos de novo.
Afastou-se e, logo depois, partiu.
Quatorze
HÁ MUITAS COISAS QUE O RECOMENDAM, Alessandra. Seus pais estão
mortos. De modo que você será a dona de sua própria casa. Ele é bem-educado.
Escreve poesia e é um perito e patrono da arte.
Minha mãe estava agitada demais para manter as mãos no colo. Eu tinha
tido uma noite e um dia que tinham me deixado ainda mais ansiosa.
— Parece que é o partido mais desejado na cidade. Por que ainda não se
casou?
— Acho que está escrevendo alguma coisa e concentra todas as suas
energia nisso. Mas seus dois irmãos morreram recentemente sem deixarem
herdeiros. O nome é importante e ele precisa preservá-lo.
— Ele precisa de um filho.
— Sim.
— E por isso precisa de uma esposa.
— Sim. Mas acho que também pode querer uma.
— Não quis antes.
— As pessoas mudam, Alessandra.
— Ele é velho.
— Mais velho, é verdade. O que nem sempre é um defeito. Achei que
você, de todas as pessoas, compreenderia isso.
Fiquei olhando os entalhes na madeira do escabelo. Era de tarde e o resto
da casa estava adormecido. A nossa loggia no alto da casa recebia a pouca brisa
que o clima oferecia e suas paredes estavam pintadas de um verde que lembrava
o da natureza. Porém mesmo aí, estava quente demais para refletir. Geralmente,
passávamos essa época do ano no campo, na fazenda de meu pai. Nossa
presença na cidade era o sinal mais marcante de sua ansiedade cívica.
— O que acha dele, mamãe?
— Alessandra, não o conheço muito. A família é boa, nesse aspecto seria
o pretendente mais digno. De resto, tudo o que posso dizer é que ele a viu no
casamento de Plautilla e há algumas semanas procurou seu pai. Ele não faz parte
do nosso círculo. Ouvi falar que apesar de abraçar a erudição, não se envolve
com a política. Mas é culto e sério, e considerando-se a tensão do momento, isso
pode ser conveniente. Afora isso, ele é quase tão estranho para mim quanto para
você.
— O que falam dele? O que diz Tomaso?
— Seu irmão fala mal de todo mundo. Se bem, que curiosamente, agora
que penso nisso, não falou nada de negativo a seu respeito. Não estou certa se o
conhece. Mas, Alessandra, o homem tem quarenta e oito anos. Terá vivido até
agora, disso não se tem dúvidas.
— Homens vivem, mulheres esperam.
— Oh, Alessandra. Você é jovem demais para parecer tão velha — disse
com a mesma voz com que tinha acalmado milhares de minhas tormentas. —
Não é nenhuma tragédia. Verá como fazê-la atuar a seu favor. Ele talvez goste
da própria companhia tanto quanto você gosta da sua.
— Então será um casamento baseado na ausência?
— E não menos satisfatório por causa disso. Você sabe que há coisas que
ainda não entende, apesar de achar difícil acreditar nisso.
Sorrimos uma para a outra. O pacto havia sido forjado antes. Às virtudes
que eu não tinha — a lista era comprida: silêncio, obediência, modéstia, timidez
—, ela faria vista grossa privadamente, contanto que não a humilhasse em
público. Tinha me ensinado o melhor que podia. E eu tinha tentado. Mesmo.
Eu me perguntei se essa era a conversa que mãe e filha pretendiam ter
antes do casamento, e se sim, quando chegaríamos à noite de núpcias. Tentei
saltar o grande hiato em minha mente. Vi-me acordando em uma cama estranha,
do lado de um homem estranho, abrindo meus braços para saudar mais um dia...
— Quero Erila como parte do meu dote — eu disse.
— Você a terá. Ele terá seus próprios escravos, mas estou certa que olhará
favoravelmente tudo que a faça se sentir em casa. Quando falou com seu pai, foi
muito solícito em relação a isso.
Houve uma longa pausa. Fazia muito calor. Meu cabelo estava úmido de
suor e a minha pele, como se alguém tivesse borrifado água quente nela. Nas
ruas, já se falava que isso também era um castigo de Deus: que Ele tinha
imobilizado as estações para nos mostrar a extensão de seu desgosto. Tudo o que
eu queria era me banhar, depois me deitar na cama, e esboçar o gato que estava
esparramado sobre a colcha, indolente demais para se mover. Por minha própria
vontade, a minha vida estava para ir pelos ares e eu me sentia quase cansada
demais para me importar.
— Então, está dizendo que está tudo decidido, Alessandra? — perguntou
minha mãe calmamente.
— Não sei. Parece tão rápido.
— A decisão foi sua. Seu pai diz que se os franceses estão vindo,
chegarão em um mês. Haverá pouco tempo, então, para a cerimônia.
— No entanto, achava que o principal do casamento era permitir que
provássemos nosso status para o resto de Florença. Agora, não teremos muito
tempo para isso.
— É verdade. Embora, na situação atual, seu pai ache que não é algo
ruim. Acho difícil acreditar que você realmente queira desfilar pelas ruas, com
todo mundo olhando, tendo sido escovada e enfeitada durante semanas antes. —
E, por um segundo, pensei em como era assustador viver sem a única pessoa que
me conhecia quase tão bem quanto eu mesma, mesmo que ela nem sempre
admitisse isso.
— Oh, mamãe. Se eu pudesse decidir, preferiria ficar aqui, ler meus
livros, pintar meus quadros e morrer solteira. Mas... — disse com firmeza — sei
que não posso, e portanto já que terei de aceitar alguém, pode muito bem ser ele.
Acho que ele será... — busquei a palavra — bem, ele será gentil. E se eu estiver
enganada, ele é velho, morrerá logo e ficarei livre.
— Oh, não fale isso nem brincando — sua voz foi dura. — Ele não é tão
velho e você deve saber que não há liberdade na viuvez. Seria melhor que se
habituasse com o convento desde agora.
Olhei para ela. Essa já havia sido uma opção para ela?
— Sabe que continuo a ter aquele sonho — falei dando um suspiro. —
Sobre o lugar onde poderei fazer tudo o que quiser. Enquanto agradeço a Deus
pelo privilégio.
— Se esse convento existisse, Alessandra, metade das mulheres da cidade
desejariam ir para lá — disse ela com mordacidade. — Então, está decidido?
Ótimo. Vou dizer a seu pai. Acredito que seu futuro marido estará igualmente
preparado para a antecipação da cerimônia. Não teremos tempo de encomendar
um cassone, o que significa que teremos de conseguir uma arca de segunda mão
ou usar uma que passe de um para o outro na família. Se ele perguntar, tem
preferência por algum tema da pintura?
Refleti um pouco.
— Não me importa qual, contanto que não seja aquela garota triste na
história de Nastagio, perseguida por cães e estripada. Que tenha algo na arte para
se olhar — retornei ao quarto estranho em uma casa estranha e, de repente, toda
a minha coragem pareceu se esvair. — Quando eu me casar, e tiver ido embora
daqui, com quem vou conversar? — perguntei e ouvi minha voz falhar.
Ela foi pega de surpresa e percebi que também a comovera.
— Oh, minha querida Alessandra, conversará com Deus. Como
certamente deve fazer. Lá será mais fácil, porque ficará só. E Ele escutará.
Como Ele escuta. Como Ele me escutou. Ele a ajudará a conversar com seu
marido. Desse modo, você se tornará uma boa esposa e uma boa mãe. Não
haverá só sofrimento. Eu lhe prometo — fez uma pausa. — Eu não deixaria que
isso acontecesse com você. — E acho que, até onde lhe coubesse, ela realmente
acreditava nisso.
Ela falou com meu pai naquela noite, e o contrato de consentimento entre
nossas famílias foi redigido naquela semana, com a cláusula de que os requisitos
do dote seriam cumpridos dentro de um mês e o casamento celebrado e
consumado no mesmo dia.
O que estava bem, pois cinco dias depois da nossa conversa, Carlos VIII deu a
Florença a sua resposta à oferta de neutralidade. Tendo atravessado a fronteira
da Toscana, marchou para a fortaleza de Fivizzano, saqueou a cidade e
massacrou toda a guarnição.
Na Catedral, a congregação se lamentou sob a língua de Savonarola:
— Olhem para Florença, o flagelo começou, as profecias estão sendo
cumpridas. Não sou eu, mas Deus que vaticinou. Deus, que está conduzindo os
exércitos. A Espada desceu... Já está chegando. Já.
Quinze
SÓ VOLTEI AVER MEU FUTURO marido na manhã do nosso casamento.
Foram dias terríveis. O governo estava à beira do colapso e o fatalismo pairava
como uma nuvem escura e pesada de tempestade sobre a cidade. Piero de
Medici conclamava Florença a se defender, mas até mesmo seus seguidores
mais íntimos o estavam abandonando e falando, abertamente, em negociar com
o inimigo. Meu pai estava ansioso, mas a convocação para o governo não
aconteceu. A influência dos Medici estava decaindo tão rapidamente que logo
seria a própria ruína estar associado a eles.
Finalmente, no fim de outubro, Piero deixou a cidade com sua comitiva
pessoal e se dirigiu ao acampamento francês.
No gabinete de estudos, nosso tutor nos fez rezar por seu retorno a salvo.
Do púlpito, Savonarola pregava, abertamente, a boa acolhida a Carlos,
aclamando-o como um instrumento de Deus para salvar a alma de Florença e
denunciar Piero como um Medici covarde, cuja família tinha destruído nossa
República pia. A cidade apreensiva vibrava de ansiedade. Três dias antes, meu
pai tinha chegado em casa com notícias de uma proclamação da Signoria de que,
se o exército francês entrasse na cidade, algumas casas seriam usadas como
alojamentos. Um mensageiro apareceu e marcou com giz uma cruz em tantas
portas que era como se a peste nos tivesse atacado de novo. Como com a
pestilência, riqueza e influência não ofereciam nenhuma proteção. Tanto a
minha antiga casa como a nova foram escolhidas. Se os franceses realmente
viessem, sua chegada marcaria meu primeiro papel como anfitriã em minha casa
de casada.
Todo dia, ouvia-se a história de mais uma família despachando suas
filhas, na verdade, às vezes, até mesmo, suas mulheres, à segurança dos
claustros, se bem que ouvi minha mãe murmurar, um dia em que o pânico
dominava:
— Quando um exército estrangeiro invasor respeitou a santidade dos
muros de um convento?
E a data do meu casamento, 26 de novembro, aconteceria em menos de
duas semanas.
O calor finalmente havia dado uma trégua no dia anterior e a chuva
chegara. Sentei-me à minha janela, meus bens ao meu redor, observando a água
suja correr pelas sarjetas, me perguntando se isso também seria um plano de
Deus para lavar a cidade. Erila ajudou-me a arrumar o baú.
— Tudo isso está acontecendo muito rápido.
— Sim — disse eu, encontrando seu olhar. — Isso a preocupa?
Ela sacudiu ligeiramente os ombros.
—Talvez não precisasse aceitar o primeiro que oferecessem.
— Oh, é mesmo. Deixei uma fila aguardando do lado de fora? Ou
preferiria me ver recitando o rosário em uma cela úmida no ermo da região?
Podia ter pedido para levá-la comigo também para lá.
Ela não disse nada.
— Erila? — esperei. — Ele será seu dono também. Se sabe de alguma
coisa que eu não sei, é melhor me dizer agora.
Ela sacudiu a cabeça.
— Nós duas já fomos vendidas. Só nos resta tirar o melhor proveito disso.
Senti como se minha vida estivesse escorrendo como areia em uma
ampulheta, e logo não haveria tempo. Não tinha recebido nenhuma mensagem
do pintor. Seu silêncio era como uma dor que eu tentasse ignorar, embora, às
vezes, na cama, quando o calor estava insuportável, eu me visse sucumbindo e,
então, eu voltava ao frescor da capela, a sua pele perolada na luz de vela, ou ao
ar fresco do jardim ao amanhecer, observando seus dedos sobrevoando o papel,
fascinada pela maneira como as asas dos anjos se desenvolviam sob seu toque.
Nessas noites, eu dormia mal e despertava ensopada de um suor frio e quente ao
mesmo tempo.
Decidi que a franqueza era o melhor método de enganar e pedi a
permissão de minha mãe para visitar a capela, já que eu partiria em breve. Ela
estava ocupada demais para me acompanhar e, é claro, havia menos necessidade
de damas de companhia agora. Erila seria o suficiente.
A capela estava transformada. O altar era metade um canteiro de obras,
metade a gruta de um feiticeiro: havia andaimes e vigas fixadas para criarem
uma série de passagens e plataformas em cada altura, ascendendo até o alto das
paredes, e no meio, um fogaréu que enchia o ar de fumaça. Acima, bem
retesada, havia uma grade que parecia de arame grosso preto, cuja sombra era
lançada pela luz das chamas no teto abobadado. O pintor tinha sido içado para o
alto, no espaço. Estava suspenso perto da superfície do telhado e estava absorto,
traçando as linhas da grade de sombras no teto. Ao completar uma, gritava para
que os homens, embaixo, afrouxassem ou apertassem a corda para movê-lo de
um lado para o outro, para dentro e fora do calor.
Erila e eu ficamos observando, paralisadas. Ele estava tão concentrado e
era tão hábil, como uma aranha bamboleando e tecendo uma teia tosca, mas
perfeitamente geométrica. Movia-se rápido, fazendo o máximo que podia para
evitar o calor das chamas. Uma parede já mostrava figuras esboçadas, pintadas
na sinópia vermelho-terrosa, prontas para o reboco. No solo, um garoto,
provavelmente não mais velho do que eu, trabalhava a uma mesa com a moleta e
o almofariz, triturando a tinta para o esboceto. Quando o trabalho do afresco
tivesse realmente início, haveria mais de um, mas por enquanto ele era
suficiente. Lá de cima, o pintor o chamou. O garoto olhou na nossa direção e
parou o que estava fazendo para ir ao nosso encontro.
Fez uma reverência.
— O mestre diz que não pode parar agora. O fogo chamuscará o teto se
arder por tempo demais, por isso ele tem de concluir a grade esta tarde.
— O que ele está fazendo? — sussurrou Erila, claramente horrorizada
com o espetáculo.
— Oh, está traçando a grade no teto para ter pontos de referência para o
afresco — respondeu o menino, animadamente. Olhei para ele. Seu rosto estava
enfarruscado, mas seus olhos brilhavam. Em que idade sentira, pela primeira
vez, a comichão em seus dedos?
Erila deu de ombros, tão confusa quanto antes.
— A curva do telhado é enganosa quando o pintamos — expliquei. — É
impossível avaliar a perspectiva corretamente. As linhas da grade o ajudarão a
manter seu desenho original. Seu esboço terá as linhas sobrepostas, como um
mapa, para que, então, ele possa transferir a imagem inteira, com exatidão, de
um para o outro
O garoto dardejou-me seu olhar. Devolvi-lhe o mesmo olhar. Não discuta
comigo, diziam meus olhos. Li e sei mais do que você um dia saberá sobre isso,
mesmo que seja você e não eu que acabará cobrindo nossos tetos com visões do
paraíso.
— Então, vá dizer ao seu mestre que o observaremos e esperaremos por
ele — disse eu sem alterar a voz. —Talvez possa nos trazer algumas cadeiras.
Ele pareceu um pouco assustado, mas não disse nada, caminhando
depressa de volta ao altar e procurando cadeiras adequadas. Quando empurrava
duas pelo chão, o pintor gritou para ele e ele se viu hesitando entre duas ordens,
por um instante. Gostei de ver que o pintor venceu e ele as largou no meio da
sala e voltou ao trabalho. Erila foi pegá-las.
Passou-se quase uma hora antes de ele descer. O combustível era palha,
barata e caprichosa, de modo que inflamava em segundos. Ele gritou uma ou
duas vezes quando as chamas subiram alto demais, e os operários a baixaram, e
a fumaça o fez tossir. Eu tinha ouvido falar em insultos terríveis nesse estágio,
de modo que a habilidade dos que içavam tinha de ser tão grande quanto a do
pintor. Por fim, ele fez sinal para que o descessem. A corda rodopiou ao descer
ao chão. Ele quase caiu dos arreios e se estatelou no chão, tossindo
incontrolavelmente, expelindo catarro, que cuspia em grandes porções, enquanto
lutava para recuperar o fôlego. Seria possível uma mulher fazer esse tipo de
coisa? A filha de Uccello deve ter pintado partes de panejamento em a Casa de
Maria Madalena, mas não deve ter sido içada aos céus abobadados. Os homens
atuam, as mulheres aplaudem. Eu estava começando a perder a fé. Do púlpito,
Savonarola agitava nos mandando de volta para casa. Corriam rumores de que
ele, em breve, só pregaria para homens, e se os franceses chegassem, as
mulheres que não estavam protegidas nos conventos seriam escondidas atrás de
portas trancadas. Que Deus nos protegesse.
Sentou-se ereto com a cabeça nas mãos, depois olhou para o outro lado da
capela e nos viu ainda esperando. Levantou-se, alisando as roupas o melhor que
podia, e veio em nossa direção. Parecia diferente, de certa maneira, como se seu
corpo tivesse ficado mais forte com o seu andar de aranha, a timidez anterior
absorta no trabalho. Erila levantou-se para encontrá-lo, tornando-se uma barreira
entre mim e ele. Seu rosto estava mais escuro do que o dela e o seu cheiro era
doce e de queimado, como se nele houvesse algo da confiança do Diabo.
— Não posso parar agora — sua voz soou dissonante com a fumaça. —
Preciso tanto da luz do dia quanto do fogo.
— Você está louco — disse eu. — Vai se machucar.
— Não, se trabalhar rápido o bastante.
— Oh! Meu pai tem espelhos que usa para tornar a luz de vela mais
intensa quando trabalha à noite. Vou pedir que lhe mande um.
Ele fez uma reverência.
— Obrigado.
Do altar, os operários fizeram uma pergunta e ele respondeu em um
dialeto claro.
— O seu italiano está melhorando.
— O fogo acelera a aprendizagem. — E no meio do encardido de seu
rosto, a sombra de um sorriso.
O silêncio impôs-se.
— Erila — disse eu —, por favor deixe-nos a sós por um instante.
Ela relanceou os olhos para mim, furiosa.
— Por favor. — Porque não sabia que outra coisa dizer.
Ela lançou-lhe um olhar feroz, depois baixou os olhos e afastou-se em
direção ao altar, os quadris balançando como fazia, às vezes, quando queria que
os homens olhassem para ela. O garoto não tirava os olhos dela, mas o pintor
não reparou.
— Você os viu?
Ele confirmou com um ligeiro movimento da cabeça, mas não pude ler
nada em seus olhos, pois estavam congestionados demais por causa da fumaça.
Ele olhou de volta, apressadamente, o fogo...
— Então, se não for agora, quando? Vou partir daqui a alguns dias.
— Partir? Para onde?
Estava claro que ele não sabia.
— Vou me casar. Não sabia?
— Não — fez uma pausa. — Não, não sabia.
O seu isolamento era tão profundo que o resguardava até mesmo das
intrigas da criadagem.
— Então, talvez também não saiba que a nossa cidade está sendo
ameaçada por invasores. E que o Diabo está nas ruas, assassinando e mutilando.
— Eu... eu ouvi histórias, sim — gaguejou, e sua confiança pareceu
abandoná-lo por um momento.
— Vai à igreja? Então deve tê-lo escutado pregar.
E dessa vez ao assentir com a cabeça, não me olhou nos olhos...
— Deve tomar cuidado. O Monge colocaria um livro de orações onde o
seu pincel deveria estar. Eu...
Mas Erila estava agora de volta, do meu lado, a sua língua estalando de
irritação. Seu trabalho era cuidar para que eu fosse entregue pura a meu marido
na noite de núpcias, e não seria, a essa altura, frustrada por meus planos secretos
com um artesão.
Respirei fundo.
— Quando, pintor? Hoje à noite...?
— Não — e sua voz foi áspera. — Não, hoje à noite não posso.
—Tem outro compromisso? — deixei a pergunta no ar. —Amanhã então?
Hesitou.
— Depois de amanhã. A grade estará pronta e o fogo apagado.
Do altar, um dos homens chamou. Ele fez uma reverência, virou-se e
afastou-se. De onde estávamos, já podíamos sentir o calor das chamas.
Dezesseis
É CLARO QUE O ESPEREI. Estava atrasado, saindo depois que as tochas se
apagaram, e se a janela aberta não estivesse aberta, não teria escutado a porta
lateral ranger e não o teria entrevisto caminhar apressado no escuro. Quantas
vezes o seguira em minha imaginação? Era bastante fácil. Conhecia cada passo e
pedra irregular até a Catedral e, ao contrário da maioria das garotas da minha
idade, não tinha medo do escuro. Que mal poderia acontecer a alguém com os
olhos de gato como os meus?
Tinha passado o entardecer me atormentando com imagens de minha
própria bravura. Tinha permanecido, deliberadamente, vestida para não desistir.
Dentro de alguns dias, eu estaria presa à vida de outra pessoa, em uma casa e
parte da cidade das quais não tinha o mapa, e portanto a minha querida liberdade
noturna teria acabado. No banco do meu lado, estava um dos chapéus de
Tomaso que eu surrupiara de seu quarto de vestir. Tinha passado horas
experimentando-o, de modo que sabia exatamente como usá-lo de maneira que
fosse impossível verem meu rosto. É claro que havia minhas saias, mas podia
escondê-las em uma das capas mais compridas de meu pai, e andando rápido no
escuro, só seria vista se me encontrasse com... com o quê? Uma luz? Uma
figura? Um bando de homens...? Interrompi os pensamentos. O meu jogo era
elaborado, um pacto que fizera comigo mesma. Se eu ia me casar e ser enterrada
viva, então não deveria morrer sem ver um pouco do meu Oriente. Eu devia isso
a mim mesma. E se o Diabo estava lá fora, certamente teria pecadores mais
graves para castigar do que uma garota que desobedecia a seus pais para respirar
o ar noturno e reter uma lembrança da liberdade.
Desci a escadaria e atravessei o pátio de trás, onde a porta dos
empregados dava para a rua lateral. Geralmente, estaria aferrolhada por dentro a
essa hora da noite, mas ele assumiu o risco, deixando-a assim, sem ferro-lho, ao
sair. Se alguém despertasse e descobrisse... Eu podia, percebi, arruinar a sua
vida simplesmente empurrando o ferrolho de volta. Em vez disso, saí para seguilo.
Dei um passo para fora. A porta ainda estava aberta atrás de mim. Fecheia, depois empurrei-a para ter certeza de que se abriria.
Esperei alguns instantes que meu coração se aquietasse.
Quando me senti mais calma, dei meia dúzia de passos no escuro. A porta
dissolveu-se no escuro atrás de mim. Porém, ao mesmo tempo, meus olhos
começaram a funcionar melhor. Havia uma lua tênue, suficiente para revelar as
pedras do calçamento diretamente à minha frente. Forcei-me a avançar. Quinze,
agora, vinte passos. Depois trinta. Até o fim de uma rua e o começo da outra. O
silêncio era mais profundo do que o escuro. Já tinha quase alcançado a esquina
seguinte quando ouvi um arranhar do solo e algo esbarrou na bainha do meu
vestido. Ofeguei involuntariamente, embora soubesse que deveria ser um rato. O
que o Frei tinha dito? Como o manto da noite revelava os parasitas da cidade.
Como derramavam a luxuria, como veneno, nas veias dos homens. Mas por
quê? Se a impureza dos homens podia ser oculta, o olho de Deus supostamente
seria capaz de enxergá-la tão nitidamente no escuro? Poderia esbarrar em
qualquer um? Eram as prostitutas mulheres comuns que ficavam até tarde na
rua? Uma idéia ridícula. Ainda assim, senti um calafrio de medo como gelo em
meu coração.
Respirei fundo algumas vezes. O cheiro de liberdade misturava-se com o
ranço fétido de urina e comida podre. Os florentinos deixavam suas marcas nas
ruas como gatos. Savonarola lutava por pureza quando a decadência e sujeira
estavam por toda parte à nossa volta. Mas eu não me deixaria intimidar. Meus
irmãos, que eram estúpidos e rudes, percorriam o escuro da cidade toda noite
sem acidentes. Eu simplesmente imitaria sua confiança e caminharia até o
Domo, e de lá, até o rio. Depois retornaria. Não tão longe que me perdesse, mas
longe o bastante para quando minhas filhas me procurassem com fantasias de
liberdade, eu poder dizer-lhes que não havia nada a temer, assim como nada a
acrescentar. Era simplesmente a mesma cidade sem iluminação.
Agora, a rua era mais larga. Andei mais rápido, meus sapatos batendo no
calçamento irregular, o manto de meu pai varrendo o chão à minha volta. Onde,
me perguntei, o pintor estaria agora? Eu tinha esperado um pouco antes de
segui-lo. Certamente ele já teria atravessado a ponte. Quanto tempo levaria para
ir e vir? Dependia do que fizesse nesse ínterim. Mas não ia pensar nisso agora.
Quando virei a esquina à minha frente, me deparei com a curva do grande
domo, mais negra do que a noite, alcançando o céu. Quanto mais me
aproximava, mais improvável tornava-se seu tamanho, como se a cidade toda se
curvasse sob sua sombra. Quase a imaginava se erguendo do solo diante de
meus olhos, ascendendo lentamente como um grande pássaro preto acima das
casas, do vale, em direção aos céus; uma ascensão de tijolos e pedras
assinalando o milagre final de sua construção.
Mantive minhas fantasias à distância quando atravessei a praça
rapidamente, a cabeça baixa. Passei o Batistério e segui pela rua para o sul,
passando pela igreja de Orsanmichele, seus santos olhando para mira de seus
nichos. Durante o dia, o mercado ali enchia-se de comerciantes de panos e das
mesas de baeta verde dos banqueiros e agiotas, suas vozes altas misturando-se
com o ruído do ábaco. Quando o negócio do meu pai estava começando, ele
tivera uma tenda ali, e eu tinha ido uma vez visitá-lo com minha mãe,
maravilhando-me com a agitação e barulho. Ele tinha ficado muito feliz em me
ver, e me lembro de que afundei a cara nos veludos, a filha de um aspirante a
comerciante, orgulhosa e mimada. Mas agora o lugar estava deserto, com
sombras escuras sob os arcos.
— Está muito tarde para ficar na rua, pequeno mestre. Seus pais sabem
onde está?
Imobilizei-me. A voz densa como melado veio de alguma parte no fundo
do escuro. Se eu retornasse poderia alcançar a praça do Batistério em alguns
momentos. Mas virar-me denunciaria meu medo.
Vi a figura de um monge emergir da noite, um homem grande em vestes
escuras de dominicano, a cabeça coberta por seu capuz. Apressei o passo.
— Não há lugar em que possa se esconder e que Deus não o veja, senhor.
Tire o chapéu e me mostre sua face. — A sua voz agora soou ríspida. Mas eu
estava quase na esquina e suas palavras me perseguiram quando submergi no
escuro. — Isso, corra para casa, menino. Não deixe de usar sua capa no
confessionário para que eu saiba a quem dar a penitência.
Tive de engolir um bocado para a saliva voltar à minha garganta. Distraíme concentrando-me no mapa em minha cabeça. Virei à esquerda e depois de
novo. O beco era alto e estreito. Eu devia estar perto da catedral quando ouvi a
risada e percebi a sombra de dois homens emergindo do escuro à minha frente.
Meu sangue gelou. Andavam de braços dados, tão absortos um com o outro que,
por um instante, não deram com a minha presença. Se eu retornasse, esbarraria
com o frei e não havia ruas laterais entre eles e mim. Quanto mais rápido
andasse, mais rápido tudo teria terminado.
Um localizou-me antes do outro. Tirou o braço da cintura de seu
companheiro e deu um passo em minha direção. Em segundos, o outro o seguiu,
até os dois caminharem, deliberadamente, em minha direção com o espaço de
somente alguns pés entre eles. Baixei a cabeça até o chapéu de Tomaso cobrir
inteiramente meu rosto e apertei o manto contra o corpo. Ouvi, mais do que vi,
eles se aproximarem. Eu respirava com dificuldade e o meu sangue rugia em
meus ouvidos. Estavam do meu lado antes que eu tivesse tempo de pensar, um
de cada lado. Quis correr, mas tive medo que isso os provocasse. Curvei os
ombros e contei os passos mentalmente.
Quando me alcançaram, ouvi suas vozes sussurrarem como sons de
animais à minha volta, sibilantes e ameaçadores: "tchuc, tchuc, chuc, hiss, tchuc,
chuc, hisss." Depois, risinhos afetados, quase femininos. Tudo o que pude fazer
foi não gritar. Ao passarem, senti seus corpos roçarem o meu. Então, de repente,
tinham desaparecido. Ouvi suas risadas estridentes e confiantes, maliciosas, e
quando olhei para trás, vi os dois juntos de novo, como água correndo, os braços
dados, a brincadeira esquecida, já absortos em seus próprios assuntos.
Eu estava segura, mas o restante de minha coragem tinha-se desintegrado
sob a tensão. Esperei até ficarem fora de vista, virei-me e corri para casa. Com
os passos menos seguros, tropecei nas pedras e quase me estatelei no chão. Por
fim, a fachada rústica do nosso palazzo surgiu à minha frente, com seu santuário
da Virgem dando as boas-vindas a viajantes cansados, e corri o que faltava até a
entrada. Quando a porta fechou-se atrás de mim, senti minhas pernas cederem.
Idiota, garota idiota. Eu tinha percorrido uma dezena de ruas e voltado correndo
para casa, apavorada com os primeiros sinais de vida. Não tinha coragem,
nenhum espírito. Merecia ser trancafiada. O Diabo pode levar os imprudentes,
mas os bons certamente morrerão de tédio. Tédio e frustração.
Senti as lágrimas chegando, inquietação e fúria misturadas. Levantei-me
do chão e estava na metade do pátio quando ouvi a porta se abrir de novo.
Ocultei-me nas sombras. Tinha de ser ele. A porta fechou-se, dessa vez, m fazer
ruído, e escutei o som do ferrolho sendo corrido. Por um segundo, houve
silêncio, depois passos abafados atravessando o pátio. Esperei até ele estar quase
diretamente à minha frente. Ele respirava ofegante. Talvez também tivesse
corrido. Se eu ficasse parada, ele talvez passasse por mim me notar. Por que eu
fazia isso? Porque tinha sido tão covarde? Para provar a mim mesma que eu não
só falava como agia? Ou quem sabe não era uma grosseria ainda maior: a
necessidade de ver alguém tão assustado quanto eu?
— Divertiu-se?
Apareci falando. Ele deu um pulo com o susto e ouvi alguma coisa cair,
um ruído surdo, como o de um objeto duro batendo no chão. Pareceu mais aflito
com a queda disso do que com a minha presença, abaixando-se e tateando
nervosamente o chão à sua volta. Mas eu chegara lá primeiro. Meus dedos
fecharam-se sobre a capa áspera de um livro. Nossas mãos se encontraram. Ele
retirou a sua instantaneamente como se o contato o tivesse queimado. Empurrei
o livro para ele, que o pegou.
— O que está fazendo aqui — sussurrou.
— Vigiando você.
— Por quê?
— Já disse. Quero a sua ajuda.
— Não posso ajudá-la. Não entende? — E ouvi o medo em sua voz.
— Por quê? O que tem lá fora? O que você viu?
— Nada. Nada. Afaste-se de mim.
E empurrou-me para o lado, se levantando e tropeçando. Mas tínhamos
feito barulho demais e uma voz ressoou do escuro, de algum lugar próximo ao
pátio, nos paralisando.
— Calem-se, seja lá quem forem. Vão fornicar em outro lugar. Permaneci
agachada no escuro. A voz sumiu e, após alguns segundos, 02ouvi-o se afastar
aos tropeções. Esperei até tudo ficar em silêncio, e então, usei minhas mãos para
me levantar. Ao fazer isso, encontrei algo no solo, um papel que devia ter caído
do livro. Agarrei-o e atravessei, em silêncio, o pátio, subindo a escada dos
criados em direção ao corpo principal da casa.
Quando na segurança do meu quarto, procurei, desajeitadamente, a
lamparina. Levou algum tempo para seu fulgor tornar-se vivido o bastante para
eu ver.
Desdobrei o papel e o alisei sobre a cama.
Tinha sido rasgado pela metade, de modo que a imagem estava dividida
ao meio, mas era possível entendê-lo. Era parte do corpo de um homem, pernas
e a maior parte do torso nus, o papel rasgado onde deveria ser o pescoço. Os
traços de giz eram grosseiros e crus, como se não tivesse tido muito tempo para
captá-lo, mas o que mostrava era inesquecível. Da clavícula até a virilha, o
corpo tinha sido aberto por um único ferimento profundo feito a faca, a carne
escamada como a da carcaça de um animal na tenda do açougueiro e as
entranhas puxadas para fora, expostas.
Minhas mãos foram à minha boca para abafar o gemido e ao fazer isso,
senti o cheiro em meus dedos: o mesmo mau cheiro doce de decadência que seu
corpo exalava no dia da sessão do retrato na capela: uma sessão que, ra me
lembrava, tinha acontecido depois de mais uma de suas excursões noturnas pela
cidade. E assim, eu soube que o que o nosso artista devoto fazia as suas noites
tinha mais a ver com morte do que com sexo.
Dezessete
PASSARAM-SE APENAS ALGUMAS HORAS ATÉ os gritos nas ruas me
acordarem. Tinha adormecido completamente vestida, o papel na mão. A
lamparina ainda ardia e o céu estava raiado de faixas rosas. Alguém batia na
porta principal do palazzo. Vesti um robe sobre a roupa e encontrei meu pai
descendo a escadaria.
— Volte para a cama — disse ele concisamente.
— O que está acontecendo?
Mas ele me ignorou. Embaixo, no pátio, um criado já tinha selado seu
cavalo. Vi minha mãe parada no patamar, com seu robe.
— Mãe?
— Seu pai foi chamado. Piero de Medici chegou e está na Signoria.
É claro que não havia como voltar a dormir depois disso. Como não havia
outro lugar melhor, guardei o papel com meus próprios desenhos já arrumados
em minha arca de casamento. Pensaria no que fazer com ele mais tarde. No
momento, havia assuntos mais urgentes. Lá embaixo, Tomaso e Luca estavam
para partir. Encontrei minha mãe e a segui até seu quarto para lhe implorar,
embora soubesse que não adiantaria.
— Uma vez, me disse que a história tem de ser registrada. Estávamos
juntas na capela de Ghirlandaio e você me disse essas palavras. Agora está
acontecendo algo ainda mais importante em nossa cidade. Não temos permissão
de testemunhá-lo?
— Está fora de questão. Seu pai diz que Piero chegou à cidade com uma
espada na mão e homens o seguindo de perto. Haverá derramamento de sangue e
violência. Mulheres não devem assistir a esse tipo de coisa.
— Então, o que fazemos? Sentamo-nos e bordamos nossas mortalhas?
— Não seja melodramática, Alessandra. Não fica bem em você. Sim,
pode costurar, se quiser. Se bem que seria melhor se rezasse. Por si mesma e
pela cidade.
O que se podia dizer? Eu não sabia mais o que era certo. Tudo o que antes
parecia seguro e certo estava se desfazendo diante dos meus olhos. Os Medici
tinham governado a nossa cidade por cinqüenta anos. Mas, durante todo esse
tempo, nunca haviam levantado armas contra o Estado. Na melhor das hipóteses,
Piero era um mau político, e na pior, um traidor. Tomaso tinha razão. A
República estava desmoronando como um castelo de cartas. No que daria tudo
isso? O que seria de toda essa glória, riqueza e erudição. Savonarola estaria
certo? Toda a arte do mundo não conseguiria impedir um exército invasor.
Teriam sido nossos pecados e nosso orgulho que nos haviam levado a isso?
Minha mãe ocupou-se com a casa.
Ao descer a escadaria, encontrei Erila escapulindo.
— Falam de derramamento de sangue nas ruas — disse eu. — Devia ter
cuidado. Minha mãe diz que lá fora não é, agora, lugar para mulheres.
— Eu me lembrarei disso — disse ela, sorrindo largo enquanto puxava o
manto ao redor da cabeça.
— Oh, me leve com você — sussurrei quando ela se afastava. — Por
favor. .. — E sei que me ouviu, pois a vi hesitar antes de se apressar em direção
à porta.
Fiz vigília em minha janela. Logo depois de meio-dia, o grande sino da Signoria
começou a bater. Nunca o tinha escutado antes, mas sabia o que era. Como meus
preceptores chamavam? La Vacca: a vaca, pois seu tom era melancólico e grave.
Mas apesar de seu nome ser cômico, seu som indicava o fim do mundo, pois só
ressoava em momentos de crises mais graves: uma convocação dos cidadãos de
Florença para se reunirem na Piazza della Signoria, pois o governo estava sob
ameaça.
Minha mãe chegou correndo e se juntou a mim na janela. As pessoas já se
dirigiam em massa às ruas. Agora, ela estava tão agitada quanto eu. Por um
instante, achei que estivesse doente de tão abatida.
— O que é isso? Ela não respondeu.
— O que é? — insisti.
— Não o escuto há tanto tempo — disse ela vagamente. Sacudiu a cabeça
como se para clarear os pensamentos. — Tocaram no dia do assassinato de
Giuliano e o ataque a Lorenzo, na Catedral. A cidade ficou alvoroçada. Por toda
parte, pessoas gritavam — interrompeu-se e percebi que fazia um esforço para
prosseguir. Pensei em suas lágrimas súbitas diante do corpo de Lorenzo. Quem
ela era na época? — Eu... eu a carregava em meu ventre e no momento que os
sinos dobraram senti você se mexer violentamente. Provavelmente, queria estar
assistindo a tudo também. — E sorriu ligeiramente.
— O que você fez? — perguntei, lembrando-me das histórias de sua
transgressão.
Ela fechou os olhos.
— Fui para a janela, exatamente como você.
— E?
— E vi a ralé arrastar um dos assassinos, o padre de Bagnone, pelas ruas
até o cadafalso. Vertia sangue de onde o tinham castrado.
— Oh. — Então era verdade. Eu tinha me virado no ventre de minha mãe
por medo e horror. Afastei-me da janela sem pensar. — Então nasci monstruosa
por causa do choque.
— Não. Você não é monstruosa, Alessandra. Apenas curiosa. E jovem.
Como eu era — fez uma pausa. — Se isso faz com que se sinta melhor, eu não
fiquei tão chocada ou assustada, quanto triste por ele. Ninguém deveria sofrer
tanta dor e terror... Sei o que dizem sobre essas coisas, mas tenho pensado muito
nisso desde aquele dia, e acho que se lhe transmiti alguma coisa no útero foi a
compaixão pelo sofrimento do homem.
Sentei-me do seu lado e ela pôs os braços em volta de mim.
— O que vai acontecer conosco, mamãe? — perguntei. Ela deu um
suspiro.
— Não sei. Receio que Piero não tenha nem perspicácia nem poder para
salvar o governo, embora ainda possa salvar a sua própria vida.
— E os franceses?
— Seu pai disse que estão a caminho. Piero fez um acordo humilhante
que lhes concede a liberdade da cidade, a fortaleza de Pisa e um grande
empréstimo para os cofres de guerra de Carlos.
— Tanto assim! Como pôde fazer isso? Quando chegarão?
— É só uma questão de dias. — Ela olhou para mim, quase como se
estivesse me vendo pela primeira vez. — Acho que seu casamento deveria se
realizar mais cedo do que pensávamos, Alessandra.
Como sempre, foi Erila que trouxe as notícias. Era tão tarde que acho que,
até mesmo, minha mãe estava preocupada, e dessa vez, não teve coragem de me
mandar para o meu quarto.
— Piero desapareceu, senhora. Reuniu seus homens e fugiu da cidade.
Quando a Signoria leu os termos do acordo que ele fez, o expulsaram. Mas ele
recusou-se a sair da praça e seus homens tiraram as espadas. Foi quando o sino
dobrou. Deviam ter visto a multidão. Metade de Florença estava lá em questão
de minutos. Votaram para formar um novo governo imediatamente. A primeira
coisa que fizeram foi exilá-lo e oferecer dois mil florins por sua cabeça. Voltei
pela Via Tornabuoni. O Palácio dos Medici já está sitiado. Lá fora, parece em
guerra.
Então, os acontecimentos tinham provado que Savonarola estava certo. A
espada estava sobre nós.
Levantei-me às seis horas da manha. Recusei Maria e, nesse dia especial, pude
fazer como queria. Erila vestiu-me e enfeitou meu cabelo. Estávamos exaustas.
Era a minha segunda noite sem dormir. No pátio, os cavalariços estavam
atrelando os cavalos e um grupo de homens que meu pai empregara como
guardas estava sendo alimentado nas cozinhas. Metade da cidade ainda estava
nas ruas, e corriam boatos de pilhagem no Palácio dos Medici. Ninguém
imaginaria um dia de casamento assim.
Avaliei-me no espelho. Não tinha havido tempo para meu marido prover
meu novo guarda-roupa, como era costume, portanto tive de me virar com o
meu. Nos últimos meses, eu tinha crescido muito para o meu melhor brocado
carmesim, mas ainda assim, estava estufada dentro dele, mal conseguindo mover
meus braços de tão justas estavam as mangas. Nenhum sinal das deslumbrantes
saias de seda e a pele pálida de minha irmã. Eu não tinha nem beleza nem
elegância. Mas, de qualquer maneira, essa não era uma hora para retratos de
família orgulhosa. Ainda bem. Como me sentaria calmamente em frente a um
homem cuja pena noturna captara pele fatiada e os contornos de entranhas
expostas? Senti náuseas só em pensar.
— Xii... fique quieta, Alessandra. Não consigo prender as flores no lugar
se fica se sacudindo desse jeito.
A culpa não era de eu me contorcer, mas sim por estarem murchas. Flores
de ontem para a noiva de hoje. Encontrei seu olhar no espelho. Ela não sorriu e
sei que estava assustada também.
— Erila...?
— Psiuu... Não há tempo para isso agora. Ficaremos bem. É um
casamento, não um funeral. Lembre-se de que foi você que preferiu isso ao
convento.
Mas acho que ela estava sendo ríspida só para manter o ânimo elevado, e
quando viu minhas lágrimas, me abraçou. Quando terminou o cabelo, se
ofereceu para dar uma escapada e buscar algumas castanhas assadas e vinho
para mim. Só quando estava saindo me lembrei do encontro marcado com o
pintor para mais tarde naquele mesmo dia.
— Diga-lhe... — Mas o que havia para dizer? Que eu estaria longe da casa
do meu pai enquanto ele passava as noites no meio fétido da morte e estripação
sangrenta? — Diga-lhe que agora é tarde demais. — E era.
A porta abriu-se logo depois que ela saiu, e Tomaso ficou no umbral,
como se receasse chegar mais perto. Continuava com suas roupas da noite
anterior.
— Como está lá fora, irmão? — perguntei sem modular a voz, olhando
para o espelho.
— Como se a invasão já tivesse acontecido. Estão arrancando os timbres
dos Medici de todos os edifícios e pintando no lugar o signo da República.
— Estaremos seguros?
— Não sei.
Ele tirou a capa e enxugou o rosto com ela.
— Imagino que não esteja vestido para o meu casamento — disse eu,
quase feliz por ter um motivo para espicaçá-lo. — Não fará nenhuma conquista
com tanta sujeira. Se bem que eu ache que a lista de convidados ficará um tanto
reduzida pelas circunstâncias.
Ele sacudiu os ombros levemente.
— Seu casamento — repetiu baixinho. — Parece que sou o único que
ainda não lhe deu parabéns — fez uma pausa e olhamos um para o outro no
espelho. — Você está... bonita.
E era tão incongruente ouvir até mesmo um elogio tão simples de sua
boca que não consegui controlar o riso.
— Bem o bastante para dar uma trepadinha, quer dizer?
Ele franziu o cenho, como se a minha crueza o aborrecesse. Aproximou-se
mais para me ver diretamente, sem o reflexo no espelho.
— Ainda não sei por que fez isso.
— Fiz o quê?
— Aceitou casar-se com ele.
— Para ficar longe de você, é claro — disse eu, mas ele, de novo, não
reagiu. Eu dei de ombros. — Porque eu teria uma morte lenta em um convento e
aqui não tenho vida. Talvez com ele eu consiga uma.
Pigarreou ligeiramente, como se a resposta não tivesse adiantado.
— Espero que seja feliz.
— Espera?
Ele hesitou.
— Ele é um homem culto.
— É o que ouvi falar.
— Acho... acho que lhe dará a liberdade que você deseja.
Franzi o cenho. Parecia algo que minha mãe dissera.
— E o que o faz pensar assim?
Ele deu de ombros.
— Você o conhece, não?
— Um pouco.
Sacudi a cabeça.
— Não. Mais do que um pouco, eu acho. — E claro. Tanta coisa tinha
acontecido, que eu não tinha refletido direito. Com quem mais ficaria sabendo
de meus estudos e minha pintura? Quem mais lhe daria tal munição?
— Foi você que falou de mim para ele, certo? — disse eu. — Sobre o
grego. E meu desenho. E a dança.
— A sua dança fala por si, e o seu conhecimento, irmã, bem, o seu
conhecimento é lendário. — E um lampejo do antigo Tomaso estava de volta, a
faca enfiada fundo no sarcasmo.
— Diga-me, Tomaso. Por que sempre brigamos?
— Porque... — interrompeu-se. — Porque... não me lembro do resto.
Dei um suspiro.
— Você é mais velho do que eu, tem mais liberdade do que eu, mais
influência, até mesmo dança melhor — fiz uma pausa. — E é bem mais bonito.
— Ele não disse nada. — Ou certamente se olha mais vezes no espelho —
acrescentei rindo.
Ele deveria ter rido de volta. Havia uma oportunidade para isso. Mas
continuou sem dizer nada.
— Bem — eu disse baixinho —, talvez fosse bom não fazermos as pazes
agora. Isso nos chocaria demais e o mundo já está cheio de coisas chocantes.
Não havia mais nada a dizer, mas ele continuou lá, demorando-se.
— Falo sério, Alessandra. Você está realmente bonita.
— Estou pronta — corrigi. — Embora não tenha tanta certeza. De
qualquer jeito... Na próxima vez que nos encontrarmos, depois de hoje, serei
uma esposa e Florença será uma cidade ocupada. Você podia fazer outra coisa
que não criar briga nas ruas por algum tempo. Pode ser atingido pela ponta de
uma espada francesa.
— Então, em vez disso, devo ir visitá-la.
— Será sempre bem-vindo na minha casa — disse eu formalmente. Eu me
perguntei quanto tempo levaria para a palavra deixar de soar estranha em minha
boca.
— Nesse caso, irei com freqüência — fez uma pausa. — Apresente meus
eitos a seu marido.
— Sim.
Agora sei, é claro, que a conversa o deixou mais incomodado do que a
mim.
***
Não se poderia chamar aquilo de cortejo nupcial.
Eu montada a cavalo, porém mal era vista por causa dos guardas ao meu redor, e
ninguém nas ruas parou para admirar meu vestido. A cidade estava apreensiva.
Havia grupos de homens comprimindo-se nas esquinas e, quando chegamos à
Catedral, fomos parados e recebemos ordens de seguir por outro caminho
enquanto a praça diante da igreja era isolada.
Mas o isolamento não estava concluído e, por uma brecha, tive uma visão
clara.
Havia uma figura caída na escada do Batistério, seu corpo encurvado
contra as portas esculpidas de Ghiberti. Um manto cobria sua cabeça, mas pela
extensão de sua perna e as cores de sua roupa era obviamente um jovem.
Poderia estar adormecido depois de uma noite de bebedeira, se não fosse a poça
de sangue negro que escorria, como uma corrente de água, de debaixo de seu
corpo.
O cavalariço incitou meu cavalo a avançar, mas o cheiro de sangue deve
ter entrado em suas narinas, pois, de repente, recusou-se, bufando, suas patas
batendo nas pedras do calçamento. Segurei-me na sela, olhando o cadáver. E
enquanto eu olhava, o manto escorregou e vi um rosto desfigurado,
ensangüentado, a cabeça quase totalmente separada do torso, e um buraco onde
havia sido o nariz. Acima dele, as portas contavam a história do Anjo de Deus
detendo a mão de Abraão no Sacrifício de Isac. Mas ali, não houve tal
misericórdia. Mais um corpo mutilado do lado de mais uma igreja. Savonarola
estava certo: Florença estava em guerra consigo mesma e o Diabo circulava pela
cidade durante as horas noturnas.
O cavalariço puxou a cabeça do cavalo e continuamos o nosso caminho.
Dezoito
O PALAZZO DE MEU MARIDO ERA velho e com muitas correntes de ar, e
um cheiro de umidade das pedras. O meu instinto em relação à lista de
convidados revelou-se correto. Não foi somente o tempo que a reduzira, mas
uma apreensão em relação a lealdades passadas. Com o governo mudando de
mãos não convinha ser visto em um casamento da velha guarda, e meu pai,
embora não tivesse sido tão proeminente quanto gostaria, certamente estava
comprometido. Não posso dizer que isso me preocupava. Que necessidade
tínhamos de espectadores? A cerimônia foi simples e breve. O notário estava
mais agitado do que nós, olhando por cima do ombro sempre que se ouvia um
grito ou barulho vindo da rua. Mas cumpriu seu dever, supervisionando a
assinatura dos contratos e a troca de anéis entre nós dois. Na pressa, meu marido
não tivera tempo de mandar comprar os presentes, mas tinha feito o que podia, e
acho que minha mãe ficou tocada com o pequeno broche de âmbar que ele lhe
deu, herança de sua mãe. Para Luca, havia um cantil para bebida, e para
Tomaso, um cinto de prata, que achei bonito, com promessas de mais coisas
para todos depois.
Enquanto a crise abalava a cidade, o interior da velha casa de Cristoforo
era silencioso e refinado. Suas maneiras eram calmas e durante toda a cerimônia
tratou-me com uma atenção cortês, mais como uma conhecida do que uma
esposa, mas é claro que, então, eu era exatamente isso. Achei tranqüilizadora
essa sua maneira, como se fosse prova de sua franqueza, assim como de sua boa
vontade. Ficamos lado a lado, e como ele era bastante alto, não tive de me
curvar como precisava fazer com tantos outros homens. Ele estava com boa
aparência, melhor do que a minha, tenho de admitir. Quando ele era mais jovem,
arrisco dizer que deveria ter sido um homem extremamente atraente, e apesar
das rugas e da tez rosada, havia ainda uma beleza pálida que chamava a atenção.
Depois da cerimônia, houve uma refeição simples de frios, gelatina de
porco e lúcio assado recheado de passas. Nada parecido a um banquete de
casamento, mas pela cara do meu pai, podia dizer que os vinhos da adega eram
superiores. Depois de comermos, houve dança e música no salão de inverno.
Plautilla arquejou e suou algumas voltas, mas a sua graça de gazela tinha
desaparecido com o tamanho de sua barriga. Quando meu recente marido me
conduziu no Balli Rostiboli, não caí nem perdi os passos de nenhuma dança.
Minha mãe observava em silêncio. Meu pai, do seu lado, fingia um certo
interesse, mas a sua mente estava em outras coisas. Tentei imaginar o mundo
através de seus olhos. Ele tinha construído toda a sua vida baseada no progresso
da sua família e na glória do estado. Agora, suas filhas estavam dispersas, seus
filhos selvagens nas ruas, a República em crise e o exército francês a um dia de
marcha. Enquanto estávamos ali, dançando como se não houvesse nada melhor a
fazer.
As festividades encerraram-se cedo, de acordo com o toque de recolher.
Minha família despediu-se me abraçando e abraçando meu marido. Minha mãe
beijou-me solenemente na testa, e acho que falaria algo mais, porém não olhei
em seus olhos. Eu estava nervosa e disposta a culpar todo mundo, menos a mim
mesma, pela minha situação.
— Tem de ser corajosa — ela tinha me dito apressadamente nessa manhã
ao verificar meu vestido, sem tempo para todas as instruções. — Ele sabe que
você é jovem e terá cuidado. A noite de núpcias pode machucar um pouco. Mas
acabará logo. É uma grande aventura, Alessandra. Mudará a sua vida, e acredito
que, se você aceitá-la, ela lhe dará uma tranqüilidade e uma satisfação que de
outra maneira o futuro talvez lhe negasse.
Não estou certa de que ela acreditasse nisso. Quanto a mim, estava tão
distraída que nem mesmo escutava direito.
— Então, Alessandra Langella, o que faremos agora, você e eu?
Ele inspecionava o que tinha restado. O silêncio depois da música foi
alarmante.
— Não sei.
Sabia que ele estava percebendo meu nervosismo. Serviu-se de mais um
drinque. Oh, por favor, não fique bêbado, pensei. Até mesmo eu, ignorante
como era, sabia que, na noite de núpcias, o marido não devia procurar sua
recente esposa com uma luxúria incontrolável (e não havia sinal de nada
parecido com isso; na verdade, a única vez que ele me tocara desde a cerimônia
tinha sido durante a dança) nem embriagado. Quanto às outras proibições, bem,
sem dúvida eu as conheceria durante a noite.
— Talvez devêssemos explorar um interesse mútuo por enquanto.
Gostaria de ver um pouco de arte?
— Oh, sim — disse eu, e acho que meu rosto deve ter-se iluminado,
porque ele riu com a minha inépcia como alguém riria da excitação de uma
criança. Lembro-me de ter pensado, nesse momento, que ele parecia ser um bom
homem e que, quando nos tornássemos marido e mulher, poderíamos voltar a
conversar como tínhamos feito na casa de Plautilla, e passar o tempo livre
sentados um do lado do outro lendo e estudando questões da mente, como um
irmão que nunca tive. E assim, embora o estado pudesse desmoronar à nossa
volta, conservaríamos algo da antiga Florença dentro de nós, e portanto, de todo
esse horror poderia sair algo bom.
Ao subirmos a escadaria, percebi que ia ficando mais frio.
A sua coleção de esculturas ficava no segundo andar. Ele lhe havia
dedicado toda uma sala. Havia cinco estátuas: dois sátiros, um Hércules com
músculos como cordas nodosas sob uma pele de mármore, e um Baco
memorável, cujo corpo, embora de pedra, parecia mais carnudo do que o meu.
Porém, o mais belo era o jovem atleta: um rapaz nu, seu peso sobre o pé, seu
torso torcido preparado para o lançamento do disco que ele segurava na mão
direita em concha. Tudo em seu corpo transmitia fluidez e graça, como se
Medusa o tivesse capturado no exato segundo antes de pensamento e ação se
conectarem. Certamente, até mesmo Savonarola teria se comovido com ele.
Esculpido muito tempo antes de Cristo, havia uma divindade palpável em sua
perfeição.
— Gosta dele?
— Oh, sim — ofeguei. — Gosto muito. É de quando?
— Ele é moderno.
— Não. Ele é...
— Clássico? Sei, é um erro esperado. Ele é a prova de meu lado filisteu.
— O que quer dizer?
— Comprei-o em Roma. De um homem que jurou que tinha sido
desenterrado na ilha de Creta dois anos antes. O torso conserva as marcas de
terra e fungos. Vê os dedos partidos na mão esquerda? Paguei uma fortuna por
ele. Quando o trouxe para Florença, um amigo com ligação com o jardim de
esculturas dos Medici disse-me que era obra de um jovem artista. A cópia de
uma peça que havia pertencido a Cosimo. Aparentemente, não era a primeira
vez que tal ilusão tinha acontecido.
Ergui os olhos para o jovem. Podia-se imaginá-lo virando a cabeça para
nós, sorrindo à descoberta de sua própria fraude. No entanto, um sorriso
encantador.
— O que você fez?
— Parabenizei o artista e fiquei com a estátua. Acho que vale o que quer
que eu tenha pago por ela. Venha. Tenho coisas que acho que vão interessá-la
ainda mais.
Levou-me a uma sala menor. De um armário trancado, tirou uma linda
taça de malaquita e dois vasos de ágata, restaurados por ourives florentinos, em
pedestais dourados com seu nome gravado na parte de baixo. Em seguida, abriu
uma pequena gaveta de madeira marchetada, revelando um conjunto de moedas
romanas e jóias. Mas o seu verdadeiro troféu ele deixou por último: um grande
portfólio que colocou cuidadosamente sobre a mesa à minha frente.
— São ilustrações de um texto aguardando serem anexadas a um livro.
Pode imaginar a glória que trarão quando o livro estiver concluído?
Tirei-as com cuidado, uma por uma, até umas doze delas se disporem em
seqüência sobre a mesa. O pergaminho era fino o bastante para eu ver a escrita
atrás, mas não precisei ler as palavras para saber de que livro se tratava. Os
esboços a nanquim mostravam vislumbres do paraíso: uma Beatriz
sublimemente delicada guiando Dante pela mão por um bando de espíritos
minúsculos, em direção ao Ente Supremo acima.
— Paradiso.
— Exato.
— E há também o Purgatoro e o Inferno?
— É claro.
E revi canto por canto. À medida que os desenhos desciam para o inferno,
tornavam-se mais complexos e selvagens; alguns deles proliferavam figuras
nuas atormentadas por demônios, outros capturavam homens paralisados em
estruturas de árvores ou violados por serpentes. Embora conhecesse Dante, a
minha imaginação nunca teria produzido tal rio ondulante de imagens para
acompanhar as palavras.
— Oh! Quem fez isto?
— Não reconhece o estilo?
— Não vi tanta arte quanto você — repliquei calmamente.
— Tente este — procurou na pilha e retirou um canto do Paradiso, no
qual os cachos do cabelo de Beatriz ondulavam ao redor de sua face com a
mesma exuberância das dobras de sua roupa sobre seu corpo. Em seu rosto,
metade recatado, metade sereno, percebi o indício de uma amante mais
calculista, que atraía para si todos os tipos de desejos dos homens.
— Alessandro Botticelli?
— Muito bem. Ela é de fato a sua Beatriz, não acha?
— Mas... mas quando ele desenhou estas imagens? Eu não sabia que tinha
ilustrado a Divina Comédia.
— Oh, o nosso Sandro tem um amor por Dante quase tão grande quanto o
que tem por Deus. Se bem que soube que está mudando sob as invectivas das
palavras de Savonarola. Foram feitas alguns anos atrás, depois que ele retornou
de Roma. De início, foram um trabalho de amor, não uma encomenda, apesar de
ele sempre ter tido um patrono. Elas lhe tomaram muito tempo. E como vê,
permanecem inacabadas.
— Como chegaram a você?
— Ah, infelizmente sou apenas seu guardião. Guardo-as para um amigo
que anda ocupado com política e teme que sua coleção possa se tornar
vulnerável à violência de fora.
E claro que eu estava curiosa para saber a que amigo se referia, mas ele
não disse mais nada. Pensei em minha mãe e meu pai, em como, apesar de ela
ser mais inteligente do que ele de várias maneiras, havia todo um tipo de coisas
que ele não partilhava com ela, e sobre o quê ela não fazia perguntas. Sem
dúvida, eu logo saberia onde ficavam as fronteiras.
Voltei aos esboços. A viagem pelo Paradiso era graciosa, até mesmo
profunda, mas a minha atenção era continuamente atraída de volta ao Inferno.
Essas páginas fervilhavam de sofrimento e tristeza: corpos afogando-se em rios
de sangue, exércitos de almas perdidas precipitando-se na eternidade,
perseguidos pelo fogo, enquanto Dante e Virgílio, em algumas das ilustrações
vestidos com cores vibrantes, caminhavam ao longo de um precipício de rocha
tocados pelas chamas.
— Diga-me, Alessandra — falou meu marido, olhando por sobre o meu
ombro —, por que acha que o inferno sempre fascina mais do que o paraíso?
Relembrei todas as pinturas e afrescos que eu tinha visto, didáticos em seu
horror: diabretes acocorados com asas e garras de morcego, devorando carne
humana e mastigando ossos. Ou o próprio Diabo, seu grande corpo de animal
coberto de pêlo, enchendo a boca de pecadores que gritavam, como se fossem
cenouras. Comparadas com essas, que imagens eu me lembrava do céu? Hostes
de belas santas e anjos em fileiras cerradas, unidos em uma serenidade sem
palavras.
— Talvez porque nós todos sentimos dor — repliquei. — Enquanto é
mais difícil para nós entendermos o sublime.
— Ah? Vê o sublime como o oposto de dor? E o prazer?
— Acho... acho que o prazer é uma palavra fraca demais para união com
Deus. Certamente o prazer é um conceito terreno. É o que acontece quando se
cede à tentação.
— Exatamente — riu. — Então o sofrimento do inferno nos lembra o
prazer terreno. Uma associação potente, não acha? Porque nos lembra vida.
— Embora também devesse nos lembrar pecado — eu disse, com
gravidade.
— Infelizmente, sim — deu um suspiro. — Pecado. — Se bem que não
pareceu muito entristecido pelo pensamento. — Os dois devem crescer juntos,
como a hera ao redor da cortiça.
— A que lugares vai, senhor? — perguntei, mas a gravidade tinha
desaparecido e eu me perguntava como seria se, na próxima vez, eu usasse a
palavra marido.
— Eu? Oh, vou aonde posso encontrar a melhor companhia.
— E vai em busca de intrigas ou filosofia?
Ele sorriu.
— De filosofia, é claro. Que a eternidade seja dos eruditos clássicos.
— Ah, então, já está desqualificado. Pois essas grandes mentes
permanecem no limbo, já que nasceram antes do nascimento do verdadeiro
Salvador. E apesar de não sentirem dor, sofrem do desespero gerado por não
terem esperança de transcendência. Até mesmo o purgatório lhes é negado.
Riu.
— Muito bem. Mas devo dizer que pressenti seu ardil. É meu o crédito de
tê-lo provocado em você. — E, evidentemente, quando ele disse isso, me peguei
estranhando o prazer da nossa conversa e como, se ele tivesse razão, isso em si
tornava esse prazer um candidato ao pecado. — Mas eu acrescentaria —
prosseguiu ele — que se Dante será o nosso Virgílio na vida após a morte,
então, estou certo que concordaremos com a existência de lugares no inferno
onde se pode encontrar bons companheiros de debates. No intervalo dos
tormentos, os pecadores são capazes de alguns discursos perspicazes.
Ele e eu estávamos mais perto um do outro, agora, uma centena de corpos
nus na ponta dos nossos dedos. O Inferno de Dante tinha uma elegante simetria
metafísica: para cada pecado, a tortura contrária. De modo que glutões sofriam a
fome eterna, ladrões que não sabiam distinguir seus bens dos bens dos outros,
metamorfoseados em cobras e serpentes, e pecadores consumidos pelo calor da
luxúria eram soprados em um vôo eterno pelos ventos de labaredas, sem alívio
para o comichão que ardia por mais que o cocassem.
Mas ali estávamos nós examinando-os: marido e mulher, o nosso desejo
santificado pelo ato do casamento. Se tivesse de haver contato físico entre nós,
poderia ser, em vez de pecado, um degrau para a divindade. Nós dois tínhamos
lido nosso Marsilio Ficino. Vinculum Mundi: o amor unindo toda a criação de
Deus, Platão e o cristianismo em uma alegre união. O ato físico do amor entre
homem e mulher era, portanto, o primeiro degrau em uma escada que poderia
levar a uma união extática final com o Ente Supremo. Eu, que tão
freqüentemente sonhara com a transcendência, sentia agora uma sensação
escorregadia em meu útero, uma mistura de dor e prazer.
Talvez tivesse, afinal, a mão de Deus nisso tudo. Se meu marido até então
escolhera a luxúria ao amor, certamente a minha pureza poderia trazer a nós dois
a salvação. Por nossas mentes, talvez descobríssemos nosso corpo, e por meio
do nosso corpo, aspiraríamos a Deus.
— Onde conheceu meu irmão? — perguntei. Pois se o nosso seria um
encontro de almas, eu precisaria saber.
Ele fez uma pausa.
— Acho que sabe onde.
— Em uma taberna?
— O quanto isso a choca?
— Não muito — respondi. — Esquece-se de que morei com ele por muito
tempo. Sei que não sai desses lugares.
— Mas ele é jovem — fez uma pausa. — Eu não tenho nenhuma
desculpa.
— Não é da minha conta o que fez antes de mim — disse eu, e fiquei
satisfeita com a minha própria resignação.
— Como coloca isso de maneira doce. — E sorriu.
Sim, pensei. Mulheres o achariam atraente. Embora tivesse presença, não
as perseguia. Considerando-se a maneira incessante como a luxúria atrai alguns
homens, percebi como isso seria a sua própria e sutil sedução.
Ficamos em silêncio. Acho que nós dois sabíamos que tinha chegado a
hora. Apesar de sua cortesia, desejei que me tocasse. Um contato simples: um
roçar de roupas ou mãos se encontrando ao pegar o pergaminho. Embora
pudesse querê-lo mais puro, tinha necessidade de seu conhecimento agora.
Bocejei.
— Está cansada? — disse ele imediatamente.
— Um pouco. Foi um longo dia. — Então vamos nos retirar. Vou chamar
a sua escrava. Como ela se chama?
— Erila.
— Erila. Ela pode ajudá-la a se aprontar. Assenti com a cabeça, achando
difícil falar nesse momento, tal era a pressão na minha traquéia. Movi-me para o
lado, concentrando-me nas pinturas, enquanto ele tocava a campainha. Os
corpos do Inferno estavam à minha volta, se contorcendo e cambaleando em
recordações selvagens de prazer. Esse era um homem em casa, nu. Como sua
mulher, eu teria a vantagem de seus anos de experiência. Sim, podia ter sido
pior.
Primeiro, ela tirou meus sapatos, removendo da parte interna da sola o florim de
ouro que minha mãe tinha colocado para trazer à minha união riqueza e
fertilidade. Ao segurá-lo, receei, por um instante, que me fizesse chorar, tanto
isso era o símbolo do meu lar perdido. Depois, ela desfez os cordões e pisei para
fora do vestido, e tirei minha camisa até ficar nua diante dela. Minha camisola
de casamento estava sobre a cama. O quarto estava o e, como eu tremia, a minha
pele se arrepiou como uma galinha depenada. Ela ficou com o vestido nos
braços, me examinando. Vestia-me desde que eu era pequena, e tinha observado
as mudanças em meu corpo ano após ano. Agora, nós duas nos perguntávamos
de onde tinham vindo o espessamento dos quadris e o pêlo púbico que brotava.
— Oh, minha senhora — disse ela, tentando ser delicada e falando em
tom de gracejo. — Olhe só para você... um pêssego maduro.
Contra a vontade, ri.
— Acho que mais gorda do que qualquer outra coisa. Estou estufada
como uma bexiga doente.
— É a carne que vem e vai com a lua. Mas lhe cai bem. Esta pronta.
— Oh, você também não, Erila. Já ouvi o bastante de Tomaso. A única
coisa que mudou em mim é que, agora, sangro que nem um porco espetado.
Afora isso, sou a mesma de antes.
Ela sorriu.
— Não é a mesma. Guarde minhas palavras.
De novo, desejei que ela tivesse sido minha mãe. Então, poderia lhe
perguntar tudo o que não sei e que podia salvar minha vida ou, pelo menos, a
minha dignidade durante as próximas horas. Mas já era tarde demais. Agarrei a
camisola e a vesti pela cabeça. O pano de seda ia até o chão, o lucro de meu pai
acariciando meus quadris e pernas desnudos. Nele, eu parecia quase graciosa.
Sentei-me enquanto ela soltava meu cabelo. Era tão espesso e revolto que
quando os últimos grampos foram tirados, caiu pesado por minhas costas.
— É como um rio de lava negra — disse ela quando começou a escová-lo
e desembaraçá-lo.
— Mais um ninho de corvos em disputa.
Ela deu de ombros.
— De onde vim, a cor é linda.
— Oh! Então posso ir viver nesse país também? Tenho uma idéia ainda
melhor. — Peguei-a olhando no espelho. — Por que não fica com ele em meu
lugar nesta noite? Verdade. É perfeito. Vai estar escuro, de modo que ele nunca
notará a diferença. Mal trocamos vinte palavras. Não, pare de rir. Falo sério.
Você é quase tão rechonchuda quanto eu. Contanto que ele não fale grego na
hora, vai ser simples.
Sua risada sempre fora contagiante e, por um tempo, não conseguimos
parar. Se nos ouvisse, o que pensaria? Respirei fundo, prendi o ar e fechei os
olhos. Quando os abri, ela sorria para mim.
— Acha que sou jovem demais para isso, Erila? — perguntei
ansiosamente.
— Já tem idade bastante.
— Quando aconteceu com você?
Ela franziu os lábios.
— Não me lembro.
— Verdade?
— Não — fez uma pausa. — Eu me lembro.
Dei um suspiro.
— Pelo menos, me dê algumas dicas. Por favor. Diga-me o que fazer.
— Não faça nada. Se fizer, vai fazê-lo pensar que já fez isso antes, e ele
pedirá o contrato de volta.
E nós duas rimos de novo.
Ela fez seu serviço, arrumando o quarto, pegando meu vestido de
casamento e pondo na sua frente diante do espelho, com um sorriso secreto e um
gesto de desdém. Ficaria melhor nela do que ficara em mim. Quando ela
conseguir a liberdade ou um marido, o que vier primeiro, lhe darei um dote
assim: algo majestoso que combine com essa pele aveludada e a cabeleira
crespa. Que Deus proteja esse homem.
— O que me disse certa vez? Antes do casamento de Plautilla... Que não
era tão ruim quanto tirar um dente, mas que podia ser doce...
— Como a corda de cima vibrando em um alaúde.
Eu ri.
— E que poeta disse isto?
— Este — respondeu ela apontando entre as pernas.
— Que tal... como a primeira chupada de um melão suculento?
— O quê?
— Foi o que o meu irmão Tomaso disse.
Ela deu de ombros.
— Seu irmão não sabe nada disso — disse ela séria.
— Então, ele finge bem.
Mas ela tinha parado de brincar.
— Vamos. Chega — disse ela, alisando minha camisola e acabando meu
cabelo. — Seu marido está esperando.
— E onde você vai estar? — perguntei, um pouco agitada.
— Lá embaixo com as outras escravas. Onde, tenho de admitir, é úmido e
mais frio do que a casa de seu pai. Você não é a única que precisa se aquecer na
nova casa. — Mas ela ainda sentia pena de mim. — Você vai ficar bem — disse
e pegou em minha bochecha. — Não vai matá-la. Pare de pensar. Mulheres
inteligentes não morrem disso. Não se esqueça.
Dezenove
ESCORREGUEI PARA DENTRO DOS LENÇÓIS BORDADOS, com cuidado
para que a camisola ficasse bem esticada. De meu marido, não havia sinal.
Esperei. Um dia antes eu nem mesmo sabia como era o interior dessa casa. Em
uma hora eu saberia tudo o que não sabia agora. Uma hora seria suficiente?
Verdade, apesar de todos os comentários, eu não sabia de nada.
A porta abriu-se. Ele ainda estava vestido. Parecia que ia sair e não vir
para a cama. Ele foi até a mesa onde uma jarra de vinho havia sido deixada e
serviu duas taças. Por um instante, não tive certeza se ele tinha me visto.
Aproximou-se e sentou-se na cama.
— Olá — disse ele. Senti o cheiro de vinho em seu hálito. — Como está
se sentindo?
— Bem. Talvez um pouco cansada.
— Como diz, foi um longo dia. — Ele bebeu um gole do vinho e
estendeu-me a outra taça. Recusei com um movimento da cabeça. — Devia
beber — disse ele. — Vai relaxá-la. — Achava, nesse momento, que estava
relaxada. Ou tão relaxada quanto conseguiria. Mas fiz como mandou. O gosto
era diferente, mais forte do que o vinho com que eu estava acostumada. Eu tinha
comido pouco no jantar, do qual já se tinham passado horas. O líquido queimou
ao descer por minha garganta. Senti-me levemente tonta. Relanceei os olhos
para ele por cima do copo. Estava olhando para o chão, como se sua mente
estivesse em outra coisa completamente diferente. Pôs a taça sobre a mesa.
Certamente, ele parecia um pouco inseguro. Se eu não fosse a sua primeira
virgem, com certeza era a primeira esposa virgem.
— Está pronta? — disse ele.
— Como?
— Sabe o que vai acontecer agora, certo?
— Sim — repliquei, baixando os olhos e corando, contra a vontade.
— Ótimo.
Aproximou-se mais e afastou o lençol, dobrando-o cuidadosamente ao pé
da cama. Sentei-me em minha camisola de seda com os dedos dos pés brotando
da bainha. Por alguma razão me fizeram lembrar de Beatriz, seus pequenos pés
descalços voando em direção a Deus sob os traços alegres do nanquim de
Botticelli. Mas Dante a amara demais para ter contato carnal com ela.
Evidentemente, havia também o fato de ele ser marido de outra pessoa. O que
Erila tinha dito? Pare de pensar... mulheres inteligentes não morrem disso.
Ele pôs a mão em minha perna, tocando em minha pele através da seda, e
seu toque foi viscoso. Deixou-a ali por um tempo. Depois, usando as duas mãos,
ergueu o tecido de minha camisola e foi dobrando-o, cuidadosamente, para
cima, até minhas pernas ficarem expostas até quase o sexo. Agora, quando a sua
mão foi até a minha panturrilha, tocou diretamente na pele. Engoli em seco,
observando seus dedos, e não seu rosto, tentando impedir que meu corpo se
enrijecesse. Ele traçou uma linha sobre o meu joelho e minha coxa, até a beira
da camisola erguida, então levantou-a mais, até meu pêlo começar a se expor,
tão negro ou mais que meu cabelo. Plautilla teria tingido ali também? Agora era
tarde demais, pensei freneticamente. Meu instinto me dominaria de novo. Eu
tinha sido instruída à modéstia por tempo demais para que a descartasse tão
subitamente. Ele tirou as mãos e ficou me examinando, por um instante. Parecia
que havia algo errado. Como se algo não o agradasse. Mas se era eu ou ele, eu
não sabia dizer. Pensei em suas estátuas: a carne de mármore suave, tão perfeita,
tão jovem. Talvez ele estivesse constrangido com as imperfeições de meu
acanhamento e sua idade.
— Não vai se despir? — perguntei. E para a minha aflição, minha voz
soou infantil
— Não será necessário — respondeu, quase inflexivelmente. Ocorreu-me
a imagem repentina da cortesã e o homem com a cabeça enterrada em seu colo.
E senti enjôo. Eu me perguntei se ele me beijaria agora. Certamente esse era o
momento. Mas não beijou.
Em vez disso, foi mais para a beirada da cama e com uma mão começou a
desabotoar seu gibão. Quando sua roupa ficou solta, enfiou a mão dentro e pôs
seu pênis para fora, deixando-o flácido em sua mão. Fiquei paralisada, em
pânico, sem saber se olhava ou não. É claro que eu tinha visto pênis antes, nas
estátuas, e, como toda as garotas muito novas, tinha ficado perplexa com sua
feiúra esquelética e, ao mesmo tempo, confusa com como uma coisa tão
parecida a uma lesma e murcha podia crescer e se tornar uma arma dura o
bastante para penetrar em um buraco da mulher. Agora, embora não conseguisse
olhar, também não conseguia afastar os olhos. Por que ele não se deitava? Erila
tinha dito que havia várias maneiras de um homem e uma mulher fazerem isso,
mas eu não reconhecia essa. Ele fechou o punho em volta e começou a puxar e
acariciar, a mão subindo e descendo no membro, com um movimento regular, de
certa forma rítmico. A outra mão jazia inerte sobre minha perna.
Observei pasma. Ele parecia entrar em transe. Não olhava mais para mim.
Parecia olhar para si mesmo, seus olhos semicerrados e sua boca semi-aberta, e
emitia ruídos como pequenos grunhidos. Depois de algum tempo, tirou sua mão
de mim e também a usou em si mesmo. Relanceou os olhos para mim uma vez,
mas estavam vidrados, e apesar de eu achar que estava sorrindo, seus dentes
estavam ligeiramente expostos, mais como uma careta. Tentei sorrir também,
mas o pânico aumentava tanto em mim, que tenho certeza de que ele o percebia.
Senti minhas pernas colarem uma na outra.
Ele agora fazia com mais força, e sob seus dedos, o pênis começou a
inflar. "Ah... ah..." Ele deu uma série de arquejos, semelhantes a uma risada, e
olhou para baixo.
— Assim está melhor — murmurou, agora, respirando com arquejos mais
longos.
Ajeitou-se mais para cima da cama, em minha direção, sem parar de
mexer em seu pênis, para mantê-lo rijo. Soltou uma mão para pegar algo no
armário do lado. Era um frasco de vidro azul, de boca larga. Manuseou
desajeitadamente sua tampa e, então, pôs os dedos dentro, retirando uma
substância clara. Passou-a sobre o membro, depois molhou sua mão de novo no
frasco e se moveu na minha direção. Me retraí involuntariamente.
— Não se mexa — disse rispidamente. Fiquei imóvel. Seus dedos
enfiaram-se por meu pêlo, tateando a abertura. O ungüento era gorduroso e
gelado, tão gelado que me fez gritar.
— Não machuca — disse ele, ofegando. — Ainda não fiz nada. Sacudi a
cabeça, tremendo.
— Está frio — disse eu. — Está frio. — E tentava não chorar. Ele deu
uma gargalhada. Ri também de puro terror.
— Oh, Deus, não ria agora, senão todo meu trabalho irá por água abaixo
— disse ele imediatamente, e recomeçou a se friccionar. A risada entalou na
minha garganta.
— Você é virgem, certo?
— Sim.
— Então, vou romper o hímen. Será mais fácil quando eu meter dentro.
Entendeu?
Assenti com a cabeça. O que ensinavam às jovens? "Virtude é dote mais
valioso do que dinheiro." Mas tal conselho não era nenhum conforto agora. Não
esclarecia em nada a terrível confusão se desenrolando dentro de mim.
Ele começou a deslizar dois dedos para dentro de mim. E logo antes de
fazer isso, percebi um arrepio atravessar seu rosto. Dessa vez, ele não conseguiu
esconder sua aversão. Então empurrou para dentro. Gritei. Doeu: uma dor
escaldante, dilacerante, como o corte de uma camada da pele. Pensei em dentes
sendo arrancados, mas não percebi nenhum sinal do alaúde.
— Boa menina — murmurou, a voz engrolada. — Boa menina. Pronto. —
Empurrou mais uma vez e mais uma vez gani, embora mais baixo dessa vez,
porque senti menos dor. — Boa menina — repetiu. Senti como se falasse com
um animal, um cachorro ou um gato em trabalho de parto. Ele retirou a mão de
mim e notei uma camada turva de sangue em seus dedos. Também notei que seu
pênis começou a se curvar. — Droga — disse ele, e agora, usou as duas mãos
para puxá-lo. — Droga. — E era como se sentisse raiva.
Quando o trouxe de volta à vida, trepou em cima de mim, ajeitando-se um
uma posição em que seu pênis ficava sobre o meu sexo, e se mexeu e tentou
encaixá-lo em mim. Começou a amolecer assim que tocou em mim, mas ele o
enrijeceu com seus dedos e, finalmente, conseguiu enfiá-los junto com o
membro. Mas apesar de minha pele virgem ter sido rompida, eu não tinha
abertura suficiente nem estava lubrificada o bastante para o seu tamanho. A
transgressão de minha mãe tinha me deformado, afinal, e gritei de novo, só que
dessa vez, não consegui parar de chorar. Ele empurrou mais. Fechei meus olhos
bem apertados, como uma criança esperando o perigo passar, e senti um rubor
de vergonha percorrer meu corpo, escuro e atordoado. Mas ele estava ocupado
demais para prestar atenção em mim agora.
Empenhava-se com afinco, grunhindo, enfiando e blasfemando baixinho.
"Maldição... droga..." E mesmo com dor, o senti inflando dentro de mim. Ele
retirou o dedo e impulsionou mais, sua respiração muito ofegante, como um
cavalo bufando com o esforço para subir a colina com uma carga pesada no
lombo. Abri os olhos e vi seu rosto em cima de mim, os olhos virados, uma
careta como a de uma caveira, cada músculo retesado e impelindo com força,
como se fosse romper. De repente, um resfôlego e um grito, e o senti amolecer
dentro e fora, e um líquido quente escorreu por entre as minhas pernas, enquanto
ele saía de mim e rolava pesadamente para o outro lado da cama, arquejando
sem ar, como um homem salvo quando se afogava. Ficou deitado recuperando o
fôlego, uma metade sua ria, a outra ofegava.
Estava terminado. Eu tinha sido possuída, Erila tinha razão. Não tinha
morrido disso. Mas do Vinculum Mundi não havia sinal.
Depois de um tempo, levantou-se e atravessou o quarto. Por um instante,
achei que ia embora. Mas foi até a mesa, onde estava a jarra de água e um pano.
Ficou meio de lado para mim, limpando-se e pondo o pênis de novo para dentro
de sua roupa. Parecia já ter-me esquecido. Deu um longo suspiro, como se para
deixar qualquer lembrança disso para trás, e quando virou-se, estava novamente
calmo, e juro que parecia, de certa forma, satisfeito consigo mesmo.
Ver-me deve tê-lo alarmado. Sei que continuava chorando. Doía muito
dentro de mim para que eu conseguisse fechar as pernas, de modo que baixei a
camisola e curvei-me para puxar o lençol, estremecendo ao me mover, e
percebendo a mancha rosada espalhando-se como a minha vergonha no lençol
branco debaixo de mim.
Ele examinou-me por um instante, depois encheu dois copos e bebeu um
longo trago. Veio até a cama e estendeu o segundo para mim.
Recusei com a cabeça. Não podia olhar para ele.
— Beba — disse ele. — Vai ajudá-la. Beba. — E a sua voz, embora não
indelicada, era firme e impedia qualquer contestação.
Peguei o copo e bebi de um gole. Mas o líquido alcançou minhas lágrimas
e engasguei, tossindo violentamente. Ele esperou o acesso se reduzir.
— De novo.
Fiz o que mandou. Minha mão estava tremendo tão violentamente que
derramei um pouco do líquido no lençol. Mais sangue vermelho por toda parte.
Mas dessa vez, o líquido atingiu seu objetivo, enviando um rio de calor por
minha garganta até meu estômago. Ele ficou me observando atentamente.
Passado algum tempo, ele disse:
— Basta — e tirou o copo de minha mão, colocando-o sobre a mesinha de
cabeceira. Deitei-me nos travesseiros. Ele olhou para mim por um momento,
depois se sentou na cama. Acho que devo ter-me retraído.
— Você está bem? — disse ele. Assenta com a cabeça.
— Ótimo. Então, quem sabe, não pode parar de chorar? Não a machuquei
tanto assim, machuquei?
Sacudi a cabeça. Reprimi o soluço que ia saindo. Quando tive certeza que
o controlava, disse:
— Vou ter um bebê... agora?
— Deus, tomara que sim. — Riu. — Porque não acredito que um de nós
queira passar por isso de novo. — E acho que percebeu meu rosto ficar lívido,
porque sua risada se interrompeu abruptamente e ele olhou bem para mim.
— Alessandra?
Mas eu ainda não conseguia olhar em seus olhos.
— Alessandra — disse ele, mais calmo dessa vez. E acho que foi aí que
percebi que havia algo errado. Ainda mais errado do que o que já tinha
acontecido entre nós. — Eu... Está me dizendo que não sabia?
— Sabia o quê? — eu disse e, para meu horror, o pranto recomeçou. —
Não sei do que está falando.
— Estou falando de mim. Estou perguntando se sabia a meu respeito.
— Sabia o que a seu respeito?
— Oh, meu Deus. — E agora ele afundou a cabeça nas mãos, de modo
que eu mal pude entender o que falou em seguida. — Achei que sabia, achei que
você sabia de tudo. — Ergueu os olhos. — Ele não lhe contou?
— Quem não me contou? Não sei do que está falando — repeti impotente.
— Ahh. — E agora estava com raiva, uma raiva violenta que me assustou.
— Eu não o agrado? — perguntei, e fiquei surpresa com a forma como
minha voz soou submissa.
— Oh, Alessandra — gemeu. Inclinou-se e fez menção de pegar minha
mão, mas eu estava tremendo e a retirei. Ele não tentou de novo. Por um
instante, ficamos unidos pela confusão e desespero. Então, ele falou mais calmo,
porém com firmeza.
— Escute. Tem de ouvir isso. Está prestando atenção?
E de repente tudo pareceu tão importante. Balancei a cabeça assentindo,
apesar do tremor.
— Você é uma jovem esplêndida. Tem a mente de um florim recémcunhado e um corpo jovem macio. E se os corpos macios de mulheres jovens
fossem o que eu desejo, então, sem dúvida, eu desejaria você. — Fez uma pausa.
— Mas não desejo.
Deu um suspiro.
— O décimo quarto canto. "O deserto era uma extensão seca de areia
espessa ardendo... Muitos rebanhos de almas nuas vi chorando
desesperadamente, cada grupo sofrendo uma penalidade diferente... Algumas
estendiam-se de costas, enquanto outras — o maior número — vagava, nunca
parando, dando voltas e voltas.
"E sobre toda essa areia e terra grandes flocos de fogo caíam lentamente,
regularmente... e sem uma trégua a dança de mãos desventuradas prosseguia,
do lado de cá, do lado de lá, afugentando as chamas carnais que caíam."
Enquanto ele falava, eu podia ver as ilustrações, os corpos masculinos
torturados, marcados pela queimadura incessante de sua carne.
— Prefiro Dante a Savonarola — prosseguiu ele. — Mas o nosso monge
talvez seja o mais explícito dos dois. "E assim, os sodomitas devem arder no
inferno, que é bom demais para eles pois sua perfídia destrói a própria
natureza!"
— Fez uma pausa. — Entende agora?
Engoli em seco e anuí com um movimento da cabeça. Depois de dito,
como não compreendê-lo? É claro, eu tinha ouvido falar disso. Quem não tinha?
Histórias grosseiras e piadas grosseiras. Porém, ainda mais que a fornicação
comum, isso tinha sido mantido afastado das crianças como o mais torpe dos
pecados dos homens: execrável para a pureza da família e a honra de um estado
devoto. Então, meu marido era um sodomita. Um homem que rejeitava as
mulheres preferindo o Diabo na pele de outros homens.
Mas se era verdade, então aí é que não fazia sentido mesmo. Por que ia
querer fazer o que tinha acabado de fazer? Por que se forçaria a algo que lhe
causava tanta aversão, como eu percebera tão claramente em seu rosto?
— Não entendo — eu disse. — Se é assim, então por que...
— Por que me casei com você?
— Sim.
— Oh, Alessandra. Use esse seu cérebro jovem e perspicaz. Os tempos
estão mudando. Você ouviu o veneno que vaza de seu púlpito. Estou surpreso
com que não tenha percebido as caixas de denúncias nas igrejas. Houve um
tempo em que só se encontravam alguns nomes ali, a maioria já conhecida da
Polícia Noturna, e uma vez que dinheiro suficiente mudas-se de mãos, tudo seria
perdoado e esquecido. A sua própria maneira, éramos os salvadores da cidade.
Um estado cheio de rapazes esperando esposas desenvolve uma certa tolerância
pela luxuria que não inunda os hospitais de crianças enjeitadas de bebês não
desejados. De qualquer jeito, Florença não era a nova Atenas do Ocidente?
"Pois não é mais. Agora, não vai demorar para que sodomitas queimem na
terra antes de queimarem no inferno. E melhor que os rapazes sejam discretos, e
os mais velhos serão os primeiros a serem apontados e humilhados,
independente de seu status ou riqueza. Savonarola aprendeu seu ofício com São
Bernardino: 'quando vir um homem adulto em boa saúde ainda solteiro,
considere-o um sinal maligno'."
— E então você precisava de uma esposa para desviar a atenção — eu
disse calmamente.
— Assim como você precisava de um marido para encontrar a liberdade.
Parece-me uma troca justa. Ele me disse...
— Ele? — e meu coração sentiu-se nauseado com a palavra. Olhou fixo
para mim.
— Sim. Ele. Está me dizendo que ainda não sabe?
Mas é claro que eu sabia.
Era, como quase tudo em nossa bela cidade, um assunto de família,
Tomaso. Meu irmão bonito e idiota. Só que agora, era eu a idiota. Tomaso que
gostava tanto de vagar pelas ruas, à noite, com belas roupas, que chegava tantas
vezes impregnado de sexo e do prazer da conquista. Pensando bem, tinha havido
vezes que eu deveria ter percebido em seu coquetismo mais o desejado do que
aquele que desejava. Como eu podia ter sido tão cega? Um homem que falava
de trepadas e tavernas, mas tratava as mulheres com tal desdém que mal
conseguia proferir a palavra boceta, que ficava entalada em sua garganta.
Tomaso, o meu irmão bonito, adulador, a quem nunca faltavam roupas
novas e caras, ou mesmo cintos de prata especiais no casamento de sua irmã. E o
vi me olhando fixo no espelho nessa manhã — era realmente o mesmo dia? —
embaraçado pela primeira vez com o que quer que não conseguia dizer.
— Não — falei. — Ele não me disse.
— Mas ele...
—Talvez tenha subestimado o quanto meu irmão não gosta de mim.
Ele deu um suspiro, esfregando o rosto com as mãos.
— Não creio que seja tanto não gostar quanto, de certa maneira, temer.
Acho que se apavora com a sua inteligência.
— Coitadinho — disse eu. E nesse segundo, até mesmo eu percebi o
Diabo na minha voz.
É claro. Quanto mais sabia, mais as coisas se encaixavam: o estranho que,
quando dançou comigo, possuía informações íntimas tanto sobre a minha
deselegância quanto o meu grego. O júbilo de Tomaso na noite que viu sangue
em minha roupa e percebeu uma maneira de salvar seu amante e vingar-se da
sua irmã ao mesmo tempo. A manhã na igreja, quando ele curvou a cabeça ao
ouvir as acusações de Savonarola e eu tinha cruzado os olhos com Cristoforo
que olhava diretamente para mim. Exceto, é claro, que não era para mim. Não. O
ligeiro sorriso luminoso de adoração tinha sido reservado para o meu irmão. O
meu estúpido, bonito, bajulador, vaidoso, vulgar, perverso irmão.
Recomecei a chorar.
Ele teve compaixão bastante para não tentar me conter. Ficou observandome, depois de um tempo, estendeu a mão. E, dessa vez, deixei que cobrisse a
minha.
— Desculpe. Não pretendia que fosse assim.
— Não devia nunca ter confiado que ele me contaria — disse, quando, por
fim, consegui respirar. — Que mentiras ele inventou a meu respeito?
— Só disse que isso seria bom para nós dois. Que você queria liberdade
mais do que um marido. Que faria qualquer coisa para consegui-la.
— Ele estava certo — repliquei baixinho. — Só que não qualquer coisa.
Ficamos ali por mais um tempo. Na noite lá fora, percebemos o som de
gritos, homens correndo pelas ruas, depois um grito pungente súbito de dor, que
trouxe de volta a visão horripilante do rapaz à deriva em seu próprio sangue às
portas do Batistério. Florença tinha-se virado contra si mesma, e a segurança
desaparecera para sempre.
— Apesar de meus pecados, deve saber que não sou um homem mau,
Alessandra — disse ele depois de algum tempo.
— E aos olhos de Deus? Não teme as areias escaldantes e as tempestades
de fogo?
— Como dissemos, pelo menos no inferno, haverá uma lembrança do
prazer — fez uma pausa. — Ficaria surpresa com quantos de nós existem. As
maiores civilizações da antigüidade encontraram transcendência no eu do
homem.
Estremeci.
— Perdoe-me a vulgaridade, Alessandra. Mas é melhor que me conheça.
Pois teremos de passar o tempo juntos.
Levantou-se para encher seu copo de novo. Observei-o atravessar o
quarto. Agora, a sua beleza cansada e elegância estudada pareciam, de certa
maneira, importunas. Por que não percebera antes? Estaria tão absorta em mim
mesma que não era capaz de interpretar os sinais à minha volta?
— Quanto ao Juízo Final — continuou —, bem, correrei os riscos. Nessas
mesmas areias escaldantes estão blasfemadores e usurários, e os piores
tormentos estão reservados para eles, Acho que mesmo que nunca tivesse
desejado sentir o gosto de rapazes jovens, ainda assim o céu não seria para mim.
Pelo menos, terei o conforto de partilhar as chamas com companheiros
pecadores. E estarei em companhia religiosa. Acredite, se esse exército de
sodomitas não estivesse constantemente em fuga, aposto que veria uma hoste de
cabeças tonsuradas entre seus membros.
— Não!
Sorriu.
— Para alguém sofisticado, Alessandra, você é encantadoramente
ingênua.
Se bem que não por muito mais tempo, pensei. Olhei para ele. Agora não
demonstrava repugnância, seu humor e boa vontade tinham voltado e não
consegui deixar de, de novo, gostar dele um pouquinho.
— Pelo menos não poderá alegar que a relutância de sua mulher o levou a
isso — eu disse calmamente. Ele pareceu aturdido. — O sodomita de que Dante
fala no canto dezesseis. Ele não diz algo parecido? Não me lembro de seu nome.
— É claro. Luca Rusticci. Um homem de nenhum mérito público, fosse
ele qual fosse. Rumores sugeriam que foi comerciante e não um erudito. —
Sorriu. —Tomaso tinha dito que me encontraria uma esposa que conhecia a
Divina comédia tão bem quanto eu — baixei os olhos. — Desculpe. Seu nome a
faz sofrer.
— Sobreviverei — repliquei calmamente. Mas senti lágrimas quentes
espetarem por trás de meus olhos.
— Espero que sim. Odiaria ser a causa da morte de um intelecto tão doce.
— Sem falar em sua perfeita cortina de fumaça.
Ele riu.
— Bem-vinda de volta. Gosto mais de sua sagacidade do que da
comiseração de si mesma. Você é uma jovem notável, sabia? — olhei para o
meu marido e me perguntei como teria sido se seus elogios tivessem aquecido
meu corpo tanto quanto minha mente. — Talvez esteja na hora de falarmos
sobre o futuro. Como lhe disse, agora a casa é sua. A sua biblioteca, a sua arte.
Com exceção de meu gabinete, pode fazer o que quiser com ela. Isso faz parte
da barganha.
— E você?
— Não vou incomodá-la com freqüência. Em público, deveremos ser
vistos em alguns eventos de estado, se, de fato, ainda houver um estado com
independência suficiente para organizá-los. Exceto isso, estarei fora grande parte
do tempo. Isso é tudo o que precisa saber.
— Ele virá aqui? — perguntei. Olhou-me fixamente.
— Ele é seu irmão. Como membro da família, seria natural — sorriu ao
proferir a última palavra. — A verdade é que a cidade não é mais tão segura
quanto antes — fez uma pausa. — Digamos que virá algumas vezes. Mas não
por enquanto.
— Você é hábil — disse eu.
Ele deu de ombros.
— O homem tem de controlar seus escravos como um tirano, seus filhos,
como um rei e...
— Sua mulher, como um político — concluí a frase por ele. — Não estou
bem certa se era isso que Aristóteles tinha em mente.
Ele riu.
— De fato. Quanto ao resto, bem, isso cabe a você. Você escolhe. Não
deixe que isso destrua a sua vida, Alessandra. Ficaria surpresa com o que
acontece nos quartos de nossa cidade devota. Esses casamentos funcionaram
antes. De qualquer maneira, você não ia querer ser como os outros. Se a minha
atenção a sobrecarregasse com uma dúzia de filhos, você afundaria sob as ondas.
Dê-me um único herdeiro e a deixarei em paz para sempre — fez uma pausa. —
Ao seu próprio prazer. Bem, isso também é da sua conta. Tudo o que peço é que
seja discreta.
Baixei os olhos para as minhas mãos. Dentro de mim doía menos que elas,
embora permanecesse uma queimação mais funda. Como saber se havia um
bebê no útero? O meu próprio prazer? O que eu mais queria na vida?
— Vai me deixar pintar?
Ele sacudiu os ombros.
— Já disse. Pode fazer o que quiser. Anuí com um movimento de cabeça.
— E quero ver os franceses — disse eu com firmeza. — Refiro-me a vêlos de verdade. Quando o exército de Carlos entrar na cidade, quero estar lá, na
rua, testemunhando enquanto a história é feita.
Ele fez um pequeno gesto.
— Muito bem. Assim será. Sem dúvida, vai ser uma entrada triunfal.
— Irá comigo?
— Não acho que seria seguro se não fosse.
O silêncio se impôs entre nós, ainda que seu nome ressoasse em toda
parte.
— E Tomaso?
— Você e eu somos marido e mulher. Será apropriado sermos vistos
juntos — hesitou. — Falarei com Tomaso. Ele vai entender.
Baixei os olhos para que não visse a chama de prazer que se acendera
neles.
— E então? Mais algum pedido, minha mulher?
— Não... — fiz uma pausa — meu marido.
— ótimo — levantou-se da cama. — Mando chamar a sua escrava?
Sacudi a cabeça. Ele inclinou-se e, por um segundo, achei que me beijaria
na testa, mas, em vez disso, passou os dedos, levemente, em minha bochecha.
— Boa noite, Alessandra.
— Boa noite.
Saiu do quarto, e alguns momentos depois, ouvi as portas principais da
casa se abrirem e se fecharem atrás dele.
Após algum tempo, a sensação de queimação entre as pernas esfriou e me
levantei para me limpar. Doeu um pouco ao andar, e minha pele estava áspera
onde o líquido ressecara em minha coxa, mas sua meticulosidade tinha poupado
minha camisola de manchar, e a senti macia ao andar.
Lavei-me cuidadosamente, apavorada demais para examinar meu corpo.
Mas depois de deixar a camisola baixar, passei as mãos sobre o corpo, só para
sentir a seda em minha pele. E dos meus seios e quadris, meus dedos
extraviaram-se em direção à minha fenda. E se ele tivesse realmente me rasgado
ali e, agora, houvesse um ferimento que não mais cicatrizasse? Minha mãe e sua
irmã, as duas haviam sido rasgadas por bebês grandes. Isso já teria acontecido
comigo?
Hesitei, depois aproximei mais minha mão, separando meus dedos e
descobrindo que o médio deslizara mais facilmente para dentro do meu sexo. E
ao fazer isso, a ponta do meu dedo esbarrou com uma pequena protuberância de
carne exposta, que quando eu toquei, provocou um arrepio por meu corpo. Senti
minha respiração acelerar e movi de novo meu dedo, cuidadosamente, por ela.
Eu não podia afirmar se a sensação era de prazer ou dor, mas me fez suspender a
respiração e ficar tremendo. Foi assim que o pênis me machucara, expondo cada
terminação nervosa na boca de meu sexo?
A quem poderia perguntar? A quem eu poderia contar o que tinha
acontecido entre nós? Retirei rapidamente a mão, meu rosto ruborizado ao
lembrar a vergonha, Mas a minha curiosidade era maior do que a dor e, dessa
vez, ergui a camisola, antes de meus dedos vagarem de volta, procurando o
lugar. Na parte interna da minha coxa, um fio de sangue aguado, rosa como o
céu ao alvorecer, parecia um bico-de-pena em minha pele. Acompanhei-o até
meu pêlo púbico e a ternura de minha carícia fez com que as lágrimas
retornassem aos meus olhos. Dobrei o dedo dentro de mim e, quando esbarrei
com aquilo, parecia uma escoriação. Toquei o ponto sensível e, então, pressionei
mais, preparando-me para mais dor. Pareceu intumescer sob o meu toque e o
que aconteceu foi uma sensação tão agradável que arquejei alto, e me curvei
ligeiramente. De novo, pressionei a ponta do dedo. Aconteceu novamente, e
mais outra vez, como uma série de ondulações rápidas na superfície da água, até
tudo que consegui fazer foi me apoiar na mesa próxima, receando perder o
equilíbrio enquanto ofegava, tão perdida estava no prazer da minha dor.
Quando terminou, minhas pernas estavam tão fracas que tive de me sentar
na cama. Havia uma sensação estranha de perda, quando não senti mais e, para a
minha surpresa, me vi chorando de novo, embora não saiba por quê, pois acho
que não mais sentia tristeza.
Não demorou e a ansiedade foi desencadeada. O que seria de mim agora?
Tinha deixado minha casa, a minha cidade estava em rebuliço e eu recém-casada
com um homem que não suportava a visão do meu corpo, mas que desfalecia ao
pensar no corpo de meu irmão. Se tivesse sido escrito como um conto moral, eu,
provavelmente, seria sacrificada agora, morrendo de vergonha e tristeza, de
modo que meu marido fosse levado à penitência e Deus.
Fui até a arca do casamento, um monstro de coisa que um dia pertencera à
mãe de meu marido. Havia sido carregada de lá para cá, de sua casa para a
minha e, depois, por fim, novamente de volta nessa tarde (e para a satisfação de
meu pai, era tão pesada quanto a da minha irmã, embora sua riqueza fosse
pesada em livros e não sedas e veludos). Tirei do fundo o livro de orações de
minha mãe, no qual ela e eu tínhamos decifrado as letras pela primeira vez
quando eu mal sabia falar. O que ela tinha me dito naquele dia em que o
governo caíra? Que quando eu estivesse só, na casa de meu marido, acharia mais
fácil conversar com Deus. E que a nossa conversa me tornaria uma boa esposa e
uma boa mãe.
Ajoelhei do lado da cama e abri o livro de orações. Mas logo eu, a quem
as palavras vinham tão facilmente, não consegui pensar quais usar nesse
momento. O que Deus e eu tínhamos a nos dizer? Meu marido era um sodomita.
Se não era a minha própria arrogância que tinha me levado àquilo, então era o
meu dever levá-lo à justiça para o bem de sua alma assim como o da minha. No
entanto, se o expusesse, eu poria abaixo toda a casa da luxúria junto com ele e,
apesar de odiar meu irmão, como poderia destruir a minha própria família
durante esse processo? A vergonha certamente mataria meu pai.
Não. A verdade era que eu tinha atraído isso para mim e, enquanto o seu
castigo seria a inexistência da salvação, o meu seria ter de conviver com isso.
Guardei o livro de volta na arca. Eu e Deus estávamos além das palavras.
Chorei um pouco mais, mas a noite exauriu todas as minhas lágrimas, e
depois de algum tempo, eu me refugiei em um conforto mais seguro, procurando
no fundo, debaixo das roupas e livros, onde tinha escondido meus desenhos e
nanquim.
Passei o resto da minha noite de núpcias na busca da arte. E dessa vez.
minha pena fluiu, como a chuva, com facilidade e espontaneidade, e me
proporcionou um prazer sereno. Embora quem visse a imagem que se
desenvolvia sob minha pena, pudesse achar que fosse um sinal da minha
estranheza com Deus.
No papel à minha frente, uma jovem vestida com uma bela seda jazia
tranqüila em sua cama, observando quando o homem sentava-se do seu lado,
com o gibão desabotoado e seu pênis exposto em suas mãos. A sua expressão
era de dor e êxtase, como se, naquele momento, o divino o tivesse penetrado,
levando-o à beira da transcendência.
Foi, mesmo que seja eu a dizê-lo, o desenho mais verdadeiro que fiz
durante algum tempo.
PARTE DOIS
Carlos VIII e seu exército entraram em Florença em 17 de novembro de
1494. Apesar de a história lembrá-lo como um dia de vergonha para a
República, nas ruas, parecia mais um cortejo cívico do que uma humilhação.
O caminho desde a Porta San Frediano sobre o rio, passando a Catedral de
Santa Maria del Fiore, com seu grande domo, até o Palácio Medici, estava
apinhado de gente. E no meio daqueles que se consideravam espectadores desse
momento solene estava o recentemente unido casal Langella: Cristoforo, erudito
e cavalheiro, e sua delicada mulher Alessandra, filha mais nova da família
Cecchi que, orgulhosa de seu casamento, atravessava, de braço com seu marido,
a multidão, seus olhos brilhando como cristal lapidado, enquanto absorvia a cor
vibrante das ruas à sua volta, até chegarem à praça da Catedral, onde ele teve de
segurá-la firme ao passarem pela massa, em direção a uma arquibancada de
madeira construída apressadamente de encontro a um muro.
Ah, ele deu dois florins a um homem embaixo (um preço ultrajante, mas
Florença era uma cidade de comércio mesmo em tempos de crise), e marido e
mulher subiram e se instalaram na última fila, de modo a terem uma visão não
somente da fachada da Catedral, como também da estrada abaixo em que, em
uma hora, Florença testemunharia a chegada de seu primeiro, e certamente
único, exército de conquista.
E, desse modo, meu marido cumpriu sua palavra.
Vinte
ELE CHEGARA EM CASA ESSA MANHA, enquanto Erila e eu desfazíamos
a arca, com pausas ocasionais para espiar pela janela a onda de pessoas fluindo
em direção à praça, e como não veio imediatamente, enviou uma mensagem por
seu criado, dizendo que eu não me preocupasse: não estava perdendo nada, já
que tinha informações seguras de que o Rei e seu exército eram poderosos, mas
estavam tão exaustos, que seguiam morosamente em direção à cidade, e que só
chegariam praticamente ao entardecer.
Suas notícias eram tão recentes que até mesmo Erila ficou impressionada.
O que era ótimo, pois ela e eu estávamos um pouco perdidas em nosso novo
papel de patroa e criada nessa casa sombria e ventosa.
Nossa comunicação desde a noite de núpcias havia sido muda. Eu tinha
desenhado esboços até o amanhecer e dormido até muito tarde e, como não é de
admirar, ela confundiu o meu sono tão longo com um sinal de energia nupcial.
Quando me perguntou sobre minha saúde, respondi que estava bem, e baixei os
olhos, deixando claro que não queria falar nisso. Oh, eu teria dado qualquer
coisa no mundo em troca de lhe contar. Estava precisando desesperadamente de
uma confidente e, até então, acho que lhe contava tudo o que me acontecia. E os
segredos que eu tinha eram pequenos e rebeldes, inofensivos a qualquer um,
menos a mim mesma. Apesar de sermos próximas, ela era uma escrava e até
mesmo eu percebia que, considerando-se tal tentação, as forças da intriga
poderiam se revelar mais potentes do que a sua lealdade. Ou, de qualquer
maneira, essa era a desculpa que tinha dado a mim mesma ao despertar naquela
tarde em minha cama de casada, meus esboços espalhados à minha volta. Talvez
a verdade fosse que eu mal suportava lembrar o que tinha acontecido, muito
menos partilhá-lo com outra pessoa.
Por isso, quando Cristoforo veio até nós, sentadas à janela, arrumando
lençóis e observando a multidão, ela já tivesse razão para desconfiar. E, então, se
levantou e saiu sem nem mesmo olhar para ele. Ele esperou até a porta se fechar
atrás dela para falar.
— Ela é muito íntima, a sua escrava?
Assenti com a cabeça.
— Fico feliz. Porque lhe fará companhia. Mas acho que não lhe conta
tudo, certo?
Era uma pergunta e uma afirmação ao mesmo tempo.
— Não — repliquei. — Não conto.
No silêncio que se seguiu, ocupei-me em dobrar minha roupa, meus olhos
submissos, dirigidos ao chão. Ele sorriu como se, de fato, eu fosse a sua amada
esposa, e estendeu o braço para mim, e, assim, descemos a escada e saímos para
a rua.
Se eu tivesse sido o Rei de França, teria ficado muito satisfeito com o impacto
de sua entrada em seu novo estado vassalo. Embora tivesse punido meus
generais por não darem início à nossa marcha triunfal antes. Pois quando chegou
na praça, o sol tinha quase se posto, o que significa que havia menos luz para
fazer refulgir a armadura dourada ou iluminar o grande dossel dourado seguro
acima dele por cavaleiros e sua escolta. O sol se pondo também fez com que, ao
desmontar e subir a escadaria da Catedral, mal fosse visto pela massa, se bem
que desconfio que outra razão também tenha concorrido para isso: para um rei,
possuía, inesperadamente, uma estatura muito baixa, especialmente depois de
desmontar de seu grande cavalo negro, escolhido, sem dúvida, porque o fazia
parecer mais alto do que era.
Certamente esse foi o único momento em que os volúveis florentinos
acenaram em seu entusiasmo servil diante de seu soberano invasor. Em parte
porque, quando o pequeno Rei atravessou a entrada da nossa grande Catedral,
mancava como um homem deformado, o que, de certa maneira, era devido a
seus pés extraordinariamente grandes em proporção ao resto de seu corpo. Isso
não foi muito antes de toda Florença saber que o Conquistador enviado para
absolver nossos pecados era, de fato, um anão com seis dedos em cada pé. Sinto
prazer em dizer que eu fui um dos muitos na multidão que espalhei o rumor pela
praça, naquele dia. E, portanto, aprendi um pouco de como a história é escrita.
Embora nem sempre exata, pode-se participar de como é feita.
Apesar das intrigas, era impossível não se ficar estarrecido com o
espetáculo. Já era tarde quando o Rei deixou a praça e os gritos de "Viva
Fraucia" ascendendo como um coral das vésperas, e foi acolhido em segurança
no Palácio Medici. Florença continuou vibrando com a chegada da infantaria e
da cavalaria. Havia tantos cavalos que o ar ficou impregnado de seu estrume,
triturado nas pedras do calçamento pelas armas da artilharia empurradas atrás
deles. Mas o mais impressionante eram os arqueiros e besteiros: milhares e
milhares de camponeses armados. Eram tantos que pensei que a França, agora,
talvez fosse um país defendido somente por suas mulheres, até meu marido me
explicar que a maioria do exército não era francesa, mas composto por
mercenários contratados para a campanha, caros como no caso da Guarda Suíça,
muito baratos como os guerreiros da Escócia. E fiquei feliz com que não fossem
esses os homens que se alojariam em nossa casa, pois nunca vira nada como
eles: gigantes do Norte, com grandes cabeleiras cor de palha e barbas tão
vermelhas quanto as tintas de meu pai, tão emaranhadas de sujeira que não dava
para entender como seus arcos não ficavam presos nelas ao serem disparados.
A invasão durou onze dias. As tropas que se alojaram em nossa casa se
comportaram bem: dois cavalheiros da cidade de Toulouse com seus criados e
comitiva. Jantamos com eles na noite seguinte à sua chegada, expondo a melhor
baixela e faqueiro de meu marido — embora não fizessem idéia de como usar os
garfos que tinham à frente — e me trataram com deferência, beijando minha
mão e comentando a minha beleza, o que me fez achar que eram cegos ou
mentirosos, e como enxergavam como pegar a jarra de vinho, concluí a segunda
hipótese. Soube, mais tarde, por Erila, que seus criados tinham as mesmas
maneiras de porcos à mesa, mas que, exceto por isso, mantinham suas mãos
quietas; instruções devem ter sido dadas ao exército como um todo, porque nove
meses depois, não houve nenhuma epidemia óbvia de bebês franceses enjeitados
na roda do Ospedale degli Innocenti, embora descobríssemos, mais tarde, outra
dádiva de sua cortesia ocasional, que nos causaria mais sofrimento do que
algumas almas extras na terra.
Durante o jantar, falaram com paixão de seu Rei e da glória de sua
campanha, mas quando se descontraíram mais, confessaram uma certa saudade
de casa e cansaço em relação a como a provocação de guerra os levaria para
longe. O destino final era a Terra Santa, mas era possível ver que ansiavam mais
por conhecer Nápoles, onde lhes disseram que as mulheres eram lindas em sua
cor morena e a sua riqueza estaria à sua disposição. Quanto à grandeza de
Florença, bem, eram homens de batalhas e não de arte, e apesar de a galeria de
arte de meu marido causar-lhes impressão, mostraram-se mais interessados em
onde podiam comprar roupas novas. (Soube depois que havia aqueles que
fizeram pequenas fortunas com a invasão, reprimindo seu patriotismo em favor
de seus bolsos.) Para ser justa, um dos cavaleiros falou com entusiasmo sobre a
maravilha da Catedral e pareceu interessado quando lhe disse que encontraria
uma estátua dourada de São Luís, o santo padroeiro de seu país, realizada pelo
nosso grande Donatello, acima da porta da fachada de Santa Croce. Mas se ele a
procurou ou não, não sei. O que sei é que comeram e beberam muito nesses
onze dias, pois o cozinheiro mantinha o registro da quantidade consumida, já
que o acordo de trégua incluía que o exército pagaria a sua manutenção.
De início, a cidade se apresentou sob a luz mais favorável para impressionar
seus conquistadores. Uma representação especial da Anunciação foi apresentada
em San Felice, e meu marido conseguiu lugar para nós dois, uma façanha
considerável, já que não havia nenhum outro partidário dos Medici na
congregação. Em criança, eu tinha sido levada, uma vez, a um evento como esse
no mosteiro das carmelitas, e me recordava de nuvens diáfanas estendidas pela
nave da igreja, e de como, em um certo momento, um coro de meninos tinha
sido revelado suspenso no meio delas, vestidos como anjos, um deles tão
obviamente aterrorizado que, quando todos começaram a cantar, ele berrou tão
alto, que teve de ser baixado.
Nesse dia, também havia meninos vestidos de anjos em San Felice, mas
nenhum deles gritou. A igreja foi transformada. Uma cúpula tinha sido
construída como um segundo telhado e pendurada nas vigas acima da nave
central, o seu interior pintado de um azul bem escuro, com uma centena de
pequeninas luzes suspensas, de modo que parecia que olhávamos o céu noturno
estrelado. Nos céus, ao redor de sua base, estavam doze anjinhos cintilando em
plintos. Mas isso foi o mínimo. Quando chegou o momento da Anunciação, uma
segunda esfera girando foi baixada, carregando oito anjos, agora meninos mais
velhos, e de dentro dela, outra esfera com o último anjo, e mais velho, Gabriel. E
ao descer, ele movimentou suas asas fazendo tremeluzir à sua volta uma miríade
de luzes, como se trouxesse para baixo as estrelas do céu.
Enquanto ficava mais assombrada do que Maria, meu marido me fez olhar
de novo para cima e reparar como cada esfera de anjos poderia ser uma lição
enfatizada de perspectiva: a maior na parte inferior movendo-se para a menor no
alto. Desse modo, podíamos apreciar não somente a glória de Deus, mas
também a perfeição das leis da natureza e o domínio delas por nosso artista.
Disse-me que esse cenário elaborado tinha sido a invenção de ninguém menos
do que o famoso Brunelleschi, seu segredo transmitido ao longo dos anos, desde
a sua morte.
Apesar de não haver registro do que o Rei da França achou de tudo isso,
sei que nós, florentinos, ficamos extremamente impressionados e orgulhosos. No
entanto, quando hoje me lembro, acho difícil distinguir entre minha alegria com
o espetáculo e o prazer mais sereno gerado pela erudição de meu marido e a
maneira como me ensinava a olhar mais fundo coisas que, de outra maneira, eu
teria perdido. Nessa noite, quando voltamos pelas ruas cheias de gente, guioume pelo cotovelo, de modo que nos movemos como dois peixes luzidios por um
mar revolto. Ao chegarmos em casa, ficamos conversando, durante algum
tempo, sobre tudo a que assistíramos, e ele me acompanhou ao meu quarto, onde
me beijou no rosto e agradeceu a companhia, antes de se retirar ao seu gabinete.
Deitada na cama, pensando em tudo o que tinha visto, quase acreditei que a
minha liberdade tinha valido qualquer sacrifício que eu tivesse feito por ela. E
que Cristoforo, independente do que poderia fazer no futuro, tinha realizado um
começo honesto em nossa barganha.
Nos dias que se seguiram, o governo ficou ocupado trocando elogios com
o Rei e sancionando um tratado que fez a ocupação parecer um convite,
oferecendo-lhe um grande empréstimo para o cofre de sua guerra, supostamente
em agradecimento por não ter saqueado a cidade. Apesar de os oficiais serem
corteses uns com os outros nas ruas, a atmosfera exacerbou-se rapidamente, e
alguns pretensos jovens guerreiros começaram a jogar pedras nos invasores, que,
em troca, revidaram com a espada e, dessa maneira, mais ou menos uma dúzia
de florentinos foram mortos. Não exatamente um massacre, ou mesmo uma
resistência gloriosa, mas um lembrete, pelo menos, do espírito que tínhamos
perdido. Consciente de que sua boa acolhida estava se diluindo e aconselhado
por Savonarola, de que Deus o acompanharia se partisse rápido, Carlos
mobilizou seu exército e partiram no fim de novembro, com bem menos
cerimônias e gente saudando-os — o que deve ter tido alguma coisa a ver com o
fato de que partiam sem pagar suas dívidas —, inclusive os nossos bons nobres
de Toulouse. Mentirosos até o fim.
Dois dias depois, meu marido, que dormira em casa durante todo esse
período, um cavalheiro, para a segurança de sua esposa, também partiu.
Sem ele e nossos invasores, o palazzo pareceu, repentinamente, frio e
austero. As salas ficaram escuras, as almofadas de madeira das portas
manchadas pelo tempo, as tapeçarias roídas por traças e as janelas pequenas
demais para deixar entrar muita luz. E porque tive medo de que a minha solidão
me lançasse em um poço de autocomiseraçao, na manhã seguinte acordei Erila
ao amanhecer e, juntas, saímos para testar nas ruas a nova liberdade de minha
vida de casada.
Vinte e Um
O CORPO NA PONTE SANTA TRINITA denotava tanto loucura quanto o
desejo de sangue. Pendia em um pilar do lado da pequena capela e, quando os
monges o descobriram, os cachorros já o haviam devorado pela metade. Erila
disse que seria uma misericórdia se ele já estivesse morto quando o estriparam,
se bem que fosse difícil saber com certeza, já que mesmo que tivesse gritado
quando seus intestinos tinham-se destrinchado, a mordaça em sua boca teria
abafado o pior de seus gritos. Os animais deviam ter chegado logo após a partida
do assassino, pois quando chegamos lá — as notícias alcançaram o mercado
logo depois das primeiras claridades, tudo o que tivemos de fazer foi nos deixar
levar pela corrente —, o que restava de suas entranhas já estava no calçamento.
Os vigias haviam afugentado os cachorros, embora os mais selvagens
continuassem rondando, as cabeças baixas, barrigas agachadas, em posição de
bote, fingindo desinteresse, as patas crispadas com energia. A certa altura,
quando o ajuntamento aumentou, um deles passou como um raio, abocanhando
um pedaço de tripa antes de um chute derrubá-lo, uivando e sem largar sua
presa, no meio da ponte. Os vigias foram quase tão rudes com a multidão, mas
foi em vão a tentativa de afastá-la. Erila nos manteve atrás, seu braço bem preso
ao meu. Apesar de achar a minha curiosidade alarmante, sua atitude protetora
tinha mais a ver com o problema que poderia lhe causar do que com qualquer
medo de sua parte — se estivesse sozinha, já teria aberto caminho até a frente.
Quanto a mim, bem, é claro que a visão desse corpo destroçado virou meu
estômago — eu tinha vivido tão protegida na casa de meus pais, que nunca vira
uma execução pública —, mas me forcei a superar o choque.
Não tinha ido tão longe na busca de minha liberdade para correr
choramingando para casa ao primeiro sinal de sangue ou violência. De qualquer
maneira, apesar da delicadeza do meu sexo, eu era realmente curiosa, se curiosa
é a palavra certa...
— Não percebe, Erila? — disse-lhe com urgência — Este é o quinto.
— O quinto o quê?
— O quinto corpo desde a morte de Lorenzo.
— O que quer dizer? — disse ela, estalando a língua. — Pessoas morrem
nas ruas todos os dias. Só que você estava com a cabeça enfiada demais nos
livros para notar.
— Não dessa maneira. Pense bem: a garota em Santa Croce, o casal em
Santo Spirito, cujos corpos foram deslocados para Impruneta e, depois, o rapaz
do lado do Batistério três semanas atrás. Todos mortos dentro ou do lado de uma
igreja e todos mutilados de uma maneira terrível. Tem de ter uma relação.
Ela riu.
— Que tal pecado? Duas putas, um cliente, um sodomita e um proxeneta.
Talvez estivessem, todos eles, a caminho do confessionário. Pelo menos, quem
quer que tenha feito isso salvou os monges de ouvirem demais.
— O que quer dizer? Você o conhece?
— Todo mundo o conhece. Por que acha que tem tanta gente aqui?
Marsilio Trancolo. O que quiser, Trancolo consegue para você. Ou conseguia.
Vinho, dados, mulheres, homens, garotos. Tinha um estoque de todos eles,
prontos para o preço certo. O cáften mais proeminente de Florença. Soube que
fez serão nas duas últimas semanas, mantendo os estrangeiros abastecidos. Bem,
agora estará em boa companhia no inferno, com certeza. Ei! — gritou, dando um
safanão em um homem que tinha nos empurrado em sua ansiedade de chegar
mais para a frente. — Veja lá onde põe as mãos, seu escroto.
— Então tire essa carne preta do caminho — gritou ele, também
empurrando-a. — Puta. Não precisamos de mulheres da cor do Diabo em nossas
ruas. Cuidado por onde anda ou será a próxima na sua faca.
— Não antes de suas bolas serem penduradas do lado do timbre dos
Medici — resmungou enquanto me empurrava para fora do ajuntamento.
— Mas Erila...
— Não tem nada de mas. Eu lhe disse, isto não é lugar para uma dama. —
Agora, ela estava irritada, por isso ficava difícil distinguir sua preocupação de
seu medo. — Se sua mãe descobrir, manda me enforcarem no pilar do lado
desse aí.
Conseguiu nos levar para fora da ponte. A multidão se reduziu ao longo
do rio, depois aumentou de novo quando chegamos à Piazza della Signoria. Nos
dias seguintes à partida dos franceses, a praça tinha ficado cheia de cidadãos
ansiosos por votar no novo governo, com Savonarola seu governante, apesar de
não oficialmente. Agora, seus partidários realizavam sessões pomposas na
Prefeitura, formulando novas leis, por meio das quais esperavam transformar a
cidade ímpia em cidade pia. Das câmaras do conselho, teriam uma vista geral da
ponte de Santa Trinita. Ter uma aula sobre o castigo do Diabo tão perto
concentraria suas mentes, de maneira esplêndida, na tarefa que tinham pela
frente.
Nos dias que se seguiram, Erila foi ficando impaciente com a minha fome de
rua.
— Não posso passar fora todas as horas do dia com você. Tenho trabalho
a fazer na casa. E o mesmo teria você se tem de ser a patroa. — É claro que
continuava zangada comigo por manter segredo sobre a minha noite de núpcias
e descontava sua raiva de maneira sutil, mas intensa. Ela não era a única. Os
criados, agora, me olhavam de maneira estranha. Nos primeiros dias de meu
casamento, tinha desempenhado o papel da esposa, indagando sobre as contas e
dando ordens a quem quer que escutasse. Mas a minha falta de confiança me
traiu, e uma casa que fora administrada durante anos sem uma patroa, não
aceitou documente minhas intervenções infantis. Havia vezes em que quase
podia ouvi-los rindo às minhas costas, como se soubessem do jogo de mau gosto
para manter a reputação de meu marido.
Para afastar o desespero, eu me refugiava na biblioteca. Sob a loggia, no
último andar, longe da umidade ou inundação, era o único cômodo da casa que
me oferecia realmente um conforto. Devia haver quase uma centena de volumes
ali, remontando, em alguns casos, ao começo do século. O mais extraordinário
era uma cópia das primeiras traduções de Platão, realizadas por Ficino,
encomendadas pelo próprio Lorenzo de Medici, ainda mais importante por eu
encontrar dentro uma dedicatória em uma letra sofisticada.
Para Cristoforo, cujo amor pela erudição é quase tão grande quanto
seu amor pela beleza.
A data era 1477, o ano anterior ao meu nascimento. Como a assinatura era
uma obra de arte em si mesma, quem mais poderia tê-la escrito senão o próprio
Lorenzo? Fiquei olhando para a tinta. Se Lorenzo estivesse vivo, seria quase da
mesma idade de meu marido. O conhecimento de meu marido de sua corte era
maior do que eu tinha me dado conta antes. Se ele voltasse para casa, teríamos
muito a conversar sobre isso.
Li alguns capítulos do texto, fascinada por sua proveniência, mas sinto-me
envergonhada ao admitir que, enquanto alguns meses antes, a sabedoria nele
contida possivelmente tivesse me deslumbrado, agora, tais volumes de filosofia
apresentavam um certo ar de homens velhos; veneráveis, mas tendo perdido a
energia para influenciar um mundo que se distanciava deles.
Dos livros, voltei-me para a arte. Certamente a evocação de Botticelli de
Dante ainda inspirava. Mas o grande armário em que meu marido guardava o
porta-fólio estava trancado e quando chamei seu criado e pedi a chave, ele negou
que soubesse onde estava. Foi a minha imaginação ou ele sorriu afetado ao me
dizer isso?
Trouxe-me notícias melhores uma hora depois.
— Tem uma visita, senhora.
— Quem é?
Ele sacudiu os ombros.
— Um cavalheiro. Não disse o nome. Está esperando lá embaixo.
Meu pai? Meu irmão? O pintor? O pintor... Senti meu rosto ruborizar e
levantei-me rapidamente.
— Conduza-o à sala.
Ele estava em pé à janela, olhando para o outro lado da rua estreita, para a
torre em frente. Não nos víamos desde a noite na véspera de meu casamento, e
se minha mente chegou a pensar nele desde então, eu o tinha apagado com tanta
firmeza quanto as velas do altar eram extintas depois da missa. Mas agora, de
novo em sua presença, senti-me estremecer quando se virou para mim. Não
parecia bem. Tinha voltado a emagrecer e sua tez, sempre pálida, estava da cor
de queijo de cabra, e estava com olheiras. Suas mãos estavam escuras,
manchadas de tinta, e vi que segurava um rolo de papéis envolvido em
musselina. Meus desenhos. Tive dificuldade em respirar.
— Seja bem-vindo — eu disse, instalando-me cuidadosamente em uma
das cadeiras de madeira de meu marido. — Quer sentar-se?
Emitiu um breve ruído, que interpretei como uma recusa, já que
permaneceu em pé. O que fazia com que nós dois ficássemos tão nervosos
quando juntos, cada um mais acanhado do que o outro? O que Erila tinha me
dito certa vez sobre os perigos da inocência serem mais graves do que os do
conhecimento? Exceto, certamente, que eu deixara de ser inocente. E quando
pensei nas entranhas do homem estripado em seus esboços noturnos, percebi
que, de uma maneira ou de outra, ele também já não o era.
— É casada — disse, por fim, sua timidez, de certa forma rabugenta, de
volta como escudo.
— Sim, sou.
— Nesse caso, espero não incomodá-la.
Sacudi os ombros.
— Por que incomodaria? Agora, meu tempo é meu. — Mas não consegui
tirar os olhos do rolo em sua mão. — Como está a capela? Já começou?
Ele assentiu com a cabeça.
— E? Está indo bem?
Gaguejou alguma coisa que não ouvi direito. Depois disse:
— Eu... eu trouxe os desenhos — e estendeu-os, desajeitadamente.
Quando estendi minha mão para pegá-los, senti que tremia ligeiramente...
— Você os viu?
Ele anuiu com um movimento da cabeça.
— E?
— Entenda, não sou um juiz... mas acho... acho que tanto seu olhar quanto
sua pena anseiam pela verdade.
Tive um sobressalto, e apesar de saber que é uma blasfêmia, senti-me, por
um instante, Nossa Senhora na Anunciação, ouvindo notícias de uma magnitude
tal que invocava tanto o terror quanto a alegria.
— Oh, você acha? Então, vai me ajudar?
— Eu...
— Oh, não percebe? Agora estou casada. E meu marido, que só deseja o
meu bem-estar, dará, eu sei, permissão para você me instruir, me mostrar
técnicas. Talvez eu pudesse, até mesmo, assisti-lo na capela. Eu...
— Não, não! — E seu alarme foi tão veemente quanto a minha excitação.
— Não é possível
— Por que não? Sabe tantas coisas, sabe...
— Não. Não entende. — A sua veemência me deteve. — Não posso lhe
ensinar nada. — E o seu horror era tanto que parecia que eu acabara de lhe
propor um ato de uma indecência escabrosa.
— Quer dizer não pode ou não quer? — eu disse friamente, olhando
diretamente em seus olhos.
— Não posso — resmungou, depois repetiu em voz mais alta, com uma
pausa maior entre as palavras, como se as proferisse para si mesmo assim como
para mim. — Não posso ajudá-la.
Não consegui respirar direito. Ter tanto tão perto e depois perder tudo...
— Entendo. Bem... — levantei-me, orgulhosa demais para deixar que
percebesse a gravidade de minha aflição. — Sem dúvida, você tem o que fazer.
Demorou-se por um momento, como se tivesse algo mais a dizer, depois
se virou e se dirigiu à porta. Mas, ali, se deteve.
— Eu... tem mais uma coisa.
Esperei.
— Naquela noite... na noite anterior ao seu casamento, quando nós...
quando a senhora estava no pátio...
Mas embora soubesse o que ele ia dizer, estava com muita raiva para
ajudá-lo.
— Sim, e daí?
— Deixei cair algo... um pedaço de papel. Um esboço. Agradeceria se
pudesse tê-lo de volta.
— Um esboço? — E minha voz foi ficando distante. Assim como ele
destruíra minhas esperanças, faria o mesmo com ele. — Receio que não me
lembre. Talvez se me dissesse o que era exatamente.
— Era... nada. Isto é, nada importante.
— Mas importante o bastante para querê-lo de volta?
— Só porque... foi feito por um amigo. E eu... tenho de devolvê-lo.
Era uma mentira tão óbvia — a primeira e, talvez, a única, que eu o ouvira
dizer —, que não se atreveu a me olhar enquanto falava. O pedaço de papel
rasgado surgiu na minha frente: o corpo do homem cortado do pescoço até a
virilha, suas entranhas expostas como no gancho de um açougueiro. Só que
agora, é claro, tinha um companheiro em minha mente: o proxeneta mais famoso
da cidade enforcado no pilar da capela, os cachorros abocanhando suas tripas.
Apesar de o corpo preceder semanas do outro, a evisceração era praticamente
idêntica. As palavras de meu irmão ecoaram em minha mente. "O seu precioso
pintor estava um trapo, a cara de fantasma e manchas por toda parte." Um rosto
macilento e olhos congestionados podiam ser sinais não somente de um homem
que andava pelas ruas à noite, mas também de alguém que, mesmo quando se
deitava, não conseguia dormir.
— Sinto muito — minhas palavras, uma fria homenagem às suas. — Não
posso ajudá-lo.
Por um momento, permaneceu imóvel. Depois, se virou e ouvi o som da
porta se fechando atrás dele. Fiquei sentada com o rolo de papéis em meu colo.
Passado algum tempo, eu os ergui e joguei para o outro lado da sala.
Vinte e Dois
TIVE MUITO POUCO TEMPO PARA PENSAR sobre isso. Meu marido
retornou alguns dias depois, no prazo friamente calculado. Os Sermões de Natal
de Savonarola deveriam ter início na manhã seguinte e os devotos deveriam ser
vistos indo à igreja, tendo dormido com suas esposas e não com suas ou seus
amantes.
Até mesmo preocupou-se em me levar a dar uma volta nessa mesma noite,
para que fôssemos vistos juntos em público. Há tanto tempo sonhava com isso:
andar pelas ruas nessa hora mágica, entre o crepúsculo e a noite, a vida da
cidade iluminada pelo pôr-do-sol. Mas embora a luz fosse bela, as ruas, de certa
forma, ficavam opacas. Havia menos gente do que eu imaginava e quase todas
as mulheres que vi estavam com o rosto coberto por um véu e — para um olho
nutrido com os tecidos reluzentes de meu pai — vestidas de uma maneira
sombria, enquanto as que estavam desacompanhadas mantinham a cabeça baixa,
concentradas em chegar logo em casa. A certa altura, sob a loggia na Piazza
Santa Maria Novella, passamos por um rapazola com um manto elegante e um
chapéu com penas que, achei, tentou chamar a atenção de meu marido, mas
Cristoforo baixou o olhar imediatamente e me afastou, e logo o deixamos para
trás. Quando chegamos em casa, já escuro, a cidade estava quase vazia. O toque
de recolher mental estava causando tanto impacto quanto qualquer nova lei. Era
uma grande ironia eu ter negociado minha liberdade justamente quando não
restara nenhuma Florença para eu explorar.
Nessa noite, sentamo-nos juntos na sala de estar ventosa, aquecidos por
uma lareira atiçada com lenha de murta, discutindo negócios de estado.
Apesar de um lado meu, magoado, querer puni-lo por sua ausência, a
minha curiosidade era grande demais, e a sua companhia interessante demais
para que eu conseguisse resistir por muito tempo. Acredito que o prazer era
mútuo.
— Temos de chegar cedo para garantir um bom lugar. Aposto com você,
Alessandra, a menos que isso em si seja agora ilegal, que a Catedral estará
superlotada amanhã.
— Iremos para ver ou sermos vistos?
— Como muitos, suspeito, uma mistura das duas coisas. É um prodígio
como, de repente, os florentinos se tornaram um povo tão devoto.
— Também os sodomitas? — perguntei, orgulhosa da minha coragem em
usar a palavra.
Ele sorriu.
— Acho que sente um prazer rebelde em proferir a palavra alto. Mas
sugiro que a elimine de seu vocabulário. As paredes têm ouvidos.
— O quê? Acha que os criados trairiam seu próprio patrão?
— Acho que quando oferecem a liberdade a escravos em troca de
denunciar seus senhores, então Florença se tornou uma cidade da Inquisição,
sim.
— É o que dizem as novas leis?
— Entre outras coisas. Os castigos por fornicação se tornam severos. Para
sodomia, muito mais ainda. Para os mais jovens, açoite, multa e mutilação. Para
os pecadores mais velhos e mais experientes... a empalação.
— Empalação! Meu Deus. Por que essa diferença?
— Porque, minha mulher, os rapazes são considerados menos
responsáveis por seus atos do que os mais velhos. Exatamente como as virgens
defloradas são consideradas menos culpadas do que seus sedutores.
Então, a insolência e sedução de Tomaso seriam classificados como
menos danosos do que o desejo silencioso de meu marido por ele. Embora ele
fosse do meu sangue, a verdade cruel era que eu me importava menos com o seu
bem-estar do que com o do homem que o desejava.
—Você tem de tomar cuidado — eu disse.
— Pretendo tomar. Seu irmão quer saber se está bem — acrescentou,
como se lendo meus pensamentos.
— O que lhe respondeu?
— Que seria melhor ele lhe perguntar pessoalmente. Mas acho que teme
vê-la.
Ótimo, pensei. Espero que ele fique tremendo em seus braços. Fiquei
chocada com a imagem, que não me permitira formar antes. Tomaso nos braços
de meu marido. Então, o meu irmão era a esposa. E eu... Bem, o que eu era?
— Tem sido monótono com a casa tão vazia — disse eu, por fim.
Ele ficou em silêncio. Nós dois sabíamos o que estava para acontecer.
Savonarola podia policiar à noite, mas, no fundo, tudo o que queria era tornar os
pecados ainda mais sombrios.
— Se preferir, não precisa vê-lo.
— Ele é meu irmão. Se vier à nossa casa, seria estranho eu não recebê-lo.
— E verdade. — Ele estava olhando fixamente o fogo, as pernas esticadas
à sua frente. Era um homem educado, culto, que tinha mais inteligência em seu
mindinho do que meu irmão em todo seu corpo macio e afetado. Que lascívia
era essa que o fazia arriscar tudo com sua consumação? — Creio que não tem
novidades para mim, tem?
Oh, mas eu tinha. Nessa mesma tarde, tinha sentido dores agudas em meu
útero, mas ao invés de um bebê prematuro, eu tinha dado à luz um fluxo de
sangue. Mas não sabia como dizer isso, portanto simplesmente sacudi a cabeça.
— Não. Nenhuma novidade.
Fechei os olhos e vi, de novo, meu desenho da nossa noite de núpcias.
Quando tornei a abri-los, ele estava me olhando atentamente, e juro que a
piedade tinha um quê de afeição.
— Soube que tem usado a biblioteca em minha ausência. Espero que ela
lhe agrade.
— Sim — repliquei, aliviada por estar de volta ao terreno firme da
erudição. — Encontrei um volume de Platão, traduzido por Ficino, com uma
dedicatória para você.
— Ah, sim. Louvando meu amor pela beleza e erudição — riu. — Hoje é
difícil imaginar que houve um tempo em que nossos governantes acreditavam
nessas coisas.
— Então foi Lorenzo, o Magnífico? Você realmente o conheceu!
— Um pouco. Como a dedicatória sugere, ele gostava que seus cortesãos
fossem homens de bom gosto.
— Ele... ele sabia sobre você?
— O que... sobre minha sodomia, como você gosta de dizer? Não havia
muita coisa que Lorenzo não soubesse sobre aqueles que o circundavam. Era um
estudante da alma dos homens, tanto quanto de seus intelectos. Você ficaria
fascinada por sua mente. Estou surpreso que sua mãe não lhe tenha falado dele.
— Minha mãe?
— Sim. Quando o irmão dela estava na corte, ela ia, às vezes, visitá-lo.
— Ia? Conheceu-a na época?
— Não, eu estava, bem... ocupado com outras coisas. Mas a vi algumas
vezes. Ela era muito bonita. E tinha um quê do espírito e erudição do irmão
quando se manifestava. Ela era muito apreciada, me lembro. Não lhe contou
nada disso?
Sacudi a cabeça. Em toda a minha vida, ela nunca tinha dito uma única
palavra. Guardar esse tipo de segredo de sua própria filha? E isso me fez pensar
de novo em sua história de ter visto os assassinos de Medici arrastados pelas
ruas, afogando-se no sangue de sua própria castração. Não é de admirar que o
horror tenha me atingido em seu útero.
— Então espero não ter falado demais. Soube também que pediu as
chaves do armário. Sinto desapontá-la, mas acho que o manuscrito será levado
em breve.
— Levado? Para onde?
— De volta a seu dono.
— Quem é ele? — E como meu marido não respondesse: — Se acha que
não sei guardar seus segredos, senhor, então escolheu mal sua mulher.
Ele sorriu com a lógica.
— Seu nome é Piero Francesco de Medici, que já foi patrono de Botticelli.
É claro. O primo de Lorenzo, o Magnífico, e um dos primeiros a fugir
para o acampamento francês.
— Considero-o um traidor — eu disse com firmeza.
— Pois então é mais tola do que pensei. — E sua voz foi ríspida. — Devia
refletir mais quando falar, mesmo aqui. Escute bem: não vai demorar para que
todos aqueles que apóiam os Medici temam por suas vidas. Além disso, você só
conhece metade da história. Há razão suficiente para a sua deslealdade. Quando
seu pai foi assassinado, as propriedades do filho foram deixadas aos cuidados de
Lorenzo, que extorquiu dinheiro delas, quando a fortuna do banco dos Medici
declinou. O ressentimento de Piero Francesco não é de admirar. Mas ele não é
um homem mau. Na verdade, como patrono da arte, a história pode colocá-lo do
lado do próprio Lorenzo.
— Não vi nada que ele tivesse dado à cidade.
— Isso porque ele guarda para si mesmo. Mas a sua vila em Cafaggiolo
tem pinturas de Botticelli que o próprio artista deve se arrepender de ter cedido.
Há um painel em que Marte jaz vencido por Vênus, prostrado com tal languidez,
que não se pode dizer se foi a sua alma ou o seu corpo que ela acaba de
conquistar. E, então, tem a própria Vênus, ascendendo das ondas, nua em uma
concha. Já ouviu falar nela?
— Não. — Minha mãe tinha me falado, uma vez, sobre um conjunto de
pinturas da lenda de Nastagio que ele realizara para um casamento, e como
todos que as viam ficavam maravilhados com os detalhes e vida que
transmitiam. Mas, assim como minha irmã, eu resistia às histórias de mulheres
despedaçadas por melhor que fosse o artista. — Como ela é, a sua Vênus?
— Bem, não sou nenhum especialista em mulheres, mas penso que você a
acharia o abismo entre a visão de arte platônica e a savonarolana.
— Ela é bela?
— Bela, sim. Porém é mais do que isso. Ela é a união do clássico e do
cristão. Sua nudez é modesta, embora a sua seriedade seja jocosa. Ela convida e
resiste ao mesmo tempo. Até mesmo o seu conhecimento do amor parece
inocente. Se bem que imagino que a maioria dos homens que a olham pensam
mais em levá-la para a cama do que para a igreja.
— Oh! Daria qualquer coisa para vê-la.
— Deve torcer para que ninguém a veja por algum tempo. Se notícias a
sua existência se tornassem comuns, o nosso pio Frade quase que certamente iria
querer destruí-la junto com seus pecadores. Vamos esperar que o próprio
Botticelli não se sinta obrigado a cedê-la ao inimigo. Pelo sei, ele já está
propenso ao Partido dos Simulados.
— Não!
— Oh, sim. Acho que ficaria surpresa com o número de nossas grandes
figuras que o seguiriam. E não som ente os artistas.
— Mas por quê? Não entendo. Estávamos construindo uma nova Atenas,
mo podem suportar vê-la ser derrubada?
Ele olhou fixo para o fogo, como se a resposta pudesse estar lá.
— Porque — disse, por fim — em seu lugar, esse monge louco e
inteligente oferecerá a visão de outra coisa. Algo que fala diretamente a todos os
homens e não somente aos ricos ou aos inteligentes.
— E que coisa é essa?
— A construção da Nova Jerusalém.
Meu marido, que parecia ter sempre sabido que estava destinado ao
inferno, buscava esse momento com certa tristeza. E eu sabia que ele tinha
razão.
Vinte e três
TANTOS FORAM OS CRIADOS QUE PEDIRAM para ir ao sermão na manhã
seguinte que quase não restou nenhum para guardar a casa. Essa foi uma história
repetida pela cidade. Um ladrão esperto poderia ter levado carroças de riquezas
nesse dia, se bem que seria preciso que tivesse um estômago forte para pecar
nesse momento — como se aproveitar do escuro depois da crucificação de
Cristo para bater carteiras da multidão.
Enquanto os pobres se vestiram com sua melhor roupa, os ricos dobraram
suas golas de pele para dentro e se certificaram de que suas jóias estivessem bem
ocultas, para não contrariarem a Lei Suntuária. Antes de sairmos, Erila e eu
inspecionamos uma à outra, para evitar qualquer coisa dúbia ou frívola que
pudesse se revelar por debaixo de nossas capas. A nossa modéstia revelou-se
não ter sido suficiente. Ao atravessarmos a praça em direção à Catedral, ficou
claro que havia algo errado. O lugar estava lotado de gente e havia vozes iradas,
intermediadas do som de mulheres chorando. Mal alcançamos a escada, nosso
caminho foi bloqueado por um homem corpulento usando roupa rústica.
— Ela não pode entrar — disse ele, rudemente, a meu marido. —
Mulheres são proibidas.
E havia uma tal agressão em sua voz que, por um momento, me perguntei
se ele não saberia algo mais sobre nós, o que fez meu sangue gelar.
— Por que isso? — perguntou meu marido, calmamente.
— O Frei prega no edifício do Estado Pio. Tais assuntos não são para os
ouvidos delas.
— Mas se o estado é pio, o que poderia dizer que fosse capaz de nos
ofender? — repliquei em voz alta.
— Mulheres não entram — repetiu ele, me ignorando e se dirigindo a meu
marido. — O assunto de governo é para homens. Mulheres são fracas e
irracionais e devem se conservar em obediência, castidade e silêncio.
— Bem, senhor — eu disse —, se as mulheres são de fato...
— A minha mulher é um repositório de virtude exemplar — os dedos de
Cristoforo beliscaram uma linha de pele sob minha manga. — Não há nada que
nem mesmo o nosso mais diligente Prior Savonarola pudesse instruí-la que ela já
não pratique naturalmente.
— Então, é melhor que vá para casa cuidar dos afazeres domésticos, e
deixe os homens com seus negócios — disse ele. — E seu véu não deveria ter
nenhuma barra e cobrir seu rosto apropriadamente. Agora, este é um estado de
virtude simples, sem se misturar com caprichos de homens ricos.
Seis meses antes, ele seria açoitado por seu desacato, mas hoje, sua
insolência era tão segura que não havia o que replicar. Ao me virar, vi a mesma
cena sendo representada em uma dezena de pontos nos degraus à nossa volta:
cidadãos proeminentes sendo humilhados por essa nova e rude beatice. Era fácil
ver como funcionava: com os ricos sendo tratados com soberba, os pobres
tinham menos razão para venerá-los. E me ocorreu, não pela última vez, que se
esse era realmente o começo da Nova Jerusalém, então cheirava a algo mais do
que uma revolução espiritual.
Meu marido, no entanto, que percebera isso tão claramente quanto eu,
sabiamente optou por não se sentir ofendido. Ao invés disso, virou-se e sorriu
para mim.
— Minha querida esposa — disse ele com um carinho estudado e uma
linguagem frívola. — Vá para casa com Deus e reze por nós. Eu a encontrarei
mais tarde e relatarei o que foi dito, se for dito, que a afete.
Fizemos uma reverência e nos separamos como dois atores em uma
versão de má qualidade dos contos de Boccaccio, e ele desapareceu no interior
cavernoso.
Ao pé da escada, Erila e eu nos vimos no meio de uma multidão de mulheres
divididas entre devoção e indignação por sua exclusão. Reconheci algumas que
minha mãe talvez considerasse suas iguais, mulheres educadas e de recursos.
Depois de algum tempo, um grupo de garotos, o cabelo cortado bem curto e
vestidos mais como penitentes do que adolescentes, surgiram e começaram a nos
arrebanhar e impelir para a orla da praça. Pareceu-me que usavam a desculpa de
sua santidade para nos espicaçar e humilhar como nunca poderiam ter feito
antes.
— Por aqui. — Erila agarrou-me e empurrou-me para o lado. — Se
ficarmos aqui, nunca entraremos.
— Mas como podemos? Há guardas em toda parte.
— Sim, mas nem todas as portas são para os ricos. Com sorte, terão
escolhido capangas menos importantes para pessoas menos importantes.
Segui-a para fora da multidão e demos a volta na Catedral até
encontrarmos uma porta em que o fluxo de pessoas era menor, mas impelido
com tal força que era impossível para os sacristãos na entrada controlarem todos
os que avançavam para dentro. Ao forçarmos o caminho, ouvimos o som do
interior se avolumar. Parecia que Savonarola tinha aparecido no altar e, de
repente, a compressão se tornou mais pesada e o impulso mais rápido, quando as
grandes portas da Catedral começaram a se fechar.
Lá dentro, Erila me puxou rapidamente para trás, de modo que nos
pressionássemos no espaço entre a segunda porta de tela e a parede da igreja.
Um pouco mais cedo e alguém teria nos localizado. Um pouco mais tarde e não
teríamos entrado. Relanceei, furtivamente, os olhos pela massa de corpos e
percebi que não éramos as únicas mulheres a desafiar a proibição, pois não
demorou e houve uma grande comoção à esquerda, e uma mulher velha foi
levada, com brutalidade, para fora, os homens vaiando enquanto ela passava.
Mantivemos a cabeça baixa, confundindo-nos com a obscuridade do interior.
Quando o serviço chegou ao sermão, a Catedral inteira ficou em silêncio
quando o pequeno Monge subiu ao púlpito. Seria a primeira vez em que pregaria
publicamente desde a formação do novo governo. Apesar de isso não aumentar a
sua estatura (se bem que, de qualquer maneira, de onde eu estava, não pudesse
vê-lo), havia, certamente, lhe insuflado mais força. Ou talvez, fosse, de fato,
Deus. Ele falava com tal familiaridade sobre Ele...
— Bem-vindos, homens de Florença. Hoje, nos reunimos para um grande
evento. Assim como a Virgem dirigiu-se a Belém preparando-se para a chegada
de nosso Salvador, a nossa cidade dá os primeiros passos na estrada que a levará
à redenção. Regozijem-se, cidadãos de Florença, pois a luz está à mão.
Uma agitação de aprovação percorreu a multidão.
"A viagem começou. A nau da salvação zarpou. Estive com o Senhor
nestes dias, buscando a Sua orientação, pedindo a Sua indulgência. Ele não saiu
do meu lado, dia e noite, enquanto, prostrado diante Dele, aguardava suas
instruções. 'O, Deus', gritei. 'Conceda esse nobre dever a outro. Que Florença
conduza a si mesma por esse mar revolto e que eu retorne ao meu porto
solitário.' 'É impossível', respondeu o Senhor. 'Você é o navegador e o vento
sopra as velas. Agora não há como voltar atrás'."
Mais bramidos ao redor dele, dessa vez mais altos, incitando-o a
prosseguir, de modo que não consegui deixar de pensar em Júlio César que toda
vez que recusava a coroa, instigava o populacho a oferecê-la de novo a ele, cada
vez com mais fervor.
"'Senhor, Senhor', eu Lhe disse, 'rezarei se assim devo. Mas por que
preciso interferir no governo de Florença? Não passo de um simples monge.'
Então, o Senhor disse com uma voz terrível: 'Preste atenção, Girolamo. Se tornar
Florença uma cidade santa, sua santidade será construída sobre alicerces mais
profundos. Um governo de virtude verdadeira. Essa é a sua tarefa. E embora
possa temê-la, estarei com você. Quando você falar, serão minhas palavras que
fluirão em sua língua. E portanto a treva será penetrada, até não haver nenhum
lugar onde os pecadores possam se esconder.'
'Mas nunca interprete mal a severidade da jornada. O tecido está
apodrecido, devorado pelo absinto da luxúria e da cobiça. Até mesmo aqueles
que se crêem pios devem ser levados à justiça: aqueles homens e mulheres da
igreja que bebem meu sangue em cálices de ouro e de prata, e dão mais
importância ao cálice do que a mim, devem reaprender o significado da
humildade. Aqueles que adoram deuses falsos por meio de línguas pagas devem
ter suas bocas seladas. Aqueles que atiçam o fogo da carne devem ter a luxúria
extinta... E aqueles que olham os próprios rostos antes do meu, devem ter seus
espelhos quebrados e seus olhos virados para dentro para verem a mácula de
suas próprias almas...'
'E nessa grande obra, os homens liderarão. Pois já que a corrupção do
homem teve início com a corrupção da mulher, assim sua vaidade e fragilidade
devem ser guiadas por mãos mais fortes. O estado verdadeiramente pio é aquele
em que as mulheres ficam atrás de portas trancadas e a sua salvação repousa na
obediência e silêncio.'
'Assim como a nata do cristianismo vai à guerra para reconquistar minha
Terra Santa, a gloriosa juventude de Florença sairá às ruas para travar o combate
contra o pecado. Serão o exército dos devotos. O próprio solo cantará com seus
passos. E os fracos, os jogadores, os fornicadores e os sodomitas, todos aqueles
que alardeiam minhas leis sentirão a minha ira.' Assim o Senhor me falou. E
assim obedeço. Glória ao Seu nome. Assim na terra como no céu. Glória ao
nosso grandioso trabalho de construir a Nova Jerusalém."
E juro que se não era Deus, não sei quem estava dentro dele, pois
realmente parecia um homem possuído. Senti um arrepio percorrer meu corpo e,
naquele momento, pensei em rasgar meus desenhos e pedir o perdão e a luz de
Deus, embora o anseio fosse provocado pelo medo e não por qualquer alegria da
salvação. No entanto, enquanto sentia isso e a congregação levantava-se e o
exaltava em uníssono, lembrei-me também do som que se erguia na praça Santa
Croce no dia da competição anual de futebol, e da maneira como os homens na
multidão bramiam sua aprovação a cada vez que se revelava uma habilidade ou
agressão repentina.
Virei-me para Erila para ver como ela tinha sido afetada, e ao fazer isso,
ergui levemente minha cabeça, exatamente no momento que o homem na minha
frente escolheu para mudar o peso de seu corpo e melhor ver o púlpito. E, desse
modo, seu olhar de viés encontrou-se com o meu e percebi, instantaneamente,
que tínhamos sido descobertas. Um sussurro foi-nos dirigido, e Erila, mais
afinada com a velocidade da violência masculina do que eu, me agarrou e puxou
pelo ajuntamento até alcançarmos a fenda na porta e nos lançarmos para fora,
seguras, mas tremendo, na fria luz do sol de uma manhã clara de dezembro na
Nova Jerusalém.
Vinte e quatro
ENQUANTO SAVONAROLA PREGAVA a sua cidade devota, Erila e eu
tomamos as ruas. A idéia de viver atrás de portas cerradas com somente a
reclusão e devoção como companhia me fizeram gelar de medo. Mesmo sem a
mancha dos pecados de meu marido, eu fracassaria em todos os testes que o
Deus de Savonarola me aplicasse, e tinha arriscado demais para, agora, penetrar
resignadamente na escuridão.
Quase todos os dias, íamos ao mercado. Embora as mulheres pudessem
ser uma tentação nas ruas, o trabalho das compras e cozinha tinha de continuar a
ser feito e, se o véu era espesso o bastante, ficava difícil saber quem era curiosa
e quem era obediente. Não sei como está hoje o Mercato Vecchio de Florença,
mas, na época, era uma maravilha: um circo de sensações. Como tudo o mais na
nossa cidade, estava marcado pelo tumulto da subsistência, mas isso também lhe
conferia a sua vivacidade e estilo. No interior da praça, havia loggias elegantes,
arejadas, cada uma construída e decorada para os produtos que vendia. De modo
que, sob os medalhões com retratos de animais, estavam os açougues, e sob os
peixes, os peixeiros, competindo pela atenção das narinas com os padeiros,
curtidores, vendedores de frutas, e uma centena de barracas de comida
fumegante, onde era possível se comprar qualquer coisa, de enguia ensopada ou
lúcio assado, fresquinho do rio, a pedaços de carne de porco recheados de
alecrim e fatiados, pingando seu sumo do espeto. Era como se todos os aromas
da vida — levedo, temperos, morte, decadência — tivessem sido, todos eles,
jogados juntos em uma grande caçarola. Não vi nada que se comparasse a isso, e
durante aqueles primeiros dias do inverno escuro do reinado de Deus em
Florença, era como se tivesse tudo o que mais desejasse e temesse perder.
Todo mundo tinha alguma coisa a vender, e aqueles que não tinham nada,
vendiam o seu nada. Não havia nenhuma loggia para os mendigos, mas eles
faziam ponto ainda assim — nos degraus das quatro igrejas que se erguiam
como sentinelas ao redor da praça. Erila dizia que havia mais mendigos desde
que Savonarola tinha assumido o controle. Mas se era porque havia mais penúria
ou mais devoção e, portanto, mais expectativa de caridade, era difícil saber. Mas
o que realmente me chamou a atenção foi o lutador. Estava em pé em um plinto
perto da entrada oeste da praça e já se formara um ajuntamento à sua volta. Erila
disse que já o conhecia há muito tempo, que, antes de ser um charlatão, tinha
sido lutador profissional que enfrentava todos os que se apresentavam na parte
de águas rasas e lamacentas do rio. Naquele tempo, ele tinha um agente que
fazia as apostas por ele, e sempre havia muita gente gritando para os
competidores, que tropeçavam e resmungavam na areia movediça preta, até os
dois lados emergirem parecendo Diabos. Contou-me, depois, que o tinha visto
enterrar a cabeça de um homem tão fundo na lama, que este só conseguiu indicar
que se rendia agitando os braços.
Mas tais espetáculos haviam sido construídos com base no jogo e, nas
águas das novas leis, ele não tivera outra opção a não ser descobrir outra
maneira de usar seu corpo magnífico. Estava nu até a cintura, o frio fazendo com
que sua respiração exalasse fumaça. A parte superior do torso parecia-se mais
com a de um animal do que com a de um homem, seus músculos tão
proeminentes e grossos que o seu pescoço lembrou-me imediatamente o de um
touro. Fez-me pensar no Minotauro e seu ataque ao grande Teseu no centro do
labirinto. Mas a sua era uma aberração diferente da natureza.
Sua pele havia sido untada até refulgir, e em seus braços e peito havia a
pintura (se bem que qual tinta conseguiria aderir a uma pele humana tão
untada?) de uma grande serpente. E quando flexionou os músculos, fazendo a
pele ondular, suas curvas grossas verdes e pretas cintilaram e colearam ao longo
de seus braços e por seu torso. Foi uma imagem monstruosa e mágica. Fiquei
fascinada. A ponto de abrir caminho de maneira grosseira, até estar diretamente
embaixo dele.
A sofisticação de minhas roupas chamou a atenção para a minha bolsa, e
ele curvou-se na minha direção.
— Observe com atenção, jovem senhora — disse ele —, embora talvez
tenha de erguer o véu para ver melhor o prodígio.
Puxei o véu para o lado, e ele sorriu largo para mim, uma lacuna larga
como o Arno entre os dois dentes da frente, depois estendeu os braços na minha
direção, de modo que, dessa vez, quando a serpente rastejou, foi tão perto que eu
poderia tocá-la.
— O diabo é uma serpente. Cuidado com os pecados ocultos no prazer
dos braços de um homem.
Agora, Erila puxava a manga de meu vestido, mas a afastei.
— Como fez isso em seu corpo? — perguntei ansiosamente. — Que tintas
usou?
— Ponha um pouco de prata na caixa e lhe direi. — A serpente pulou para
cima de seu ombro.
Remexi na bolsa e joguei meio florim na caixa. Ficou ali, refulgindo no
meio do cobre opaco. Erila deu um suspiro afetado diante de minha credulidade
e tirou a bolsa da minha mão, metendo-a dentro de seu corpete para mantê-la
segura.
— Diga-me! — falei. — Não pode ser tinta. Então, é tintura?
— Tintura e sangue — respondeu ele, sombriamente, agachando-se de
modo a ficar realmente perto para ser tocado, perto o bastante para eu ver a
película de suor e óleo sobre a sua pele, e sentir o cheiro rançoso de seu corpo.
— Primeiro corta-se a pele, pequenos cortes, snip, snip, snip, depois, um por
um, fura-se nas cores.
— Oh, dói?
— Bem... Gritei como um bebê — replicou ele. — Mas uma vez iniciado,
não os faria parar. E, assim, a minha serpente fica mais bonita e graciosa a cada
dia. A serpente Diabo tem um rosto de mulher, sabia? Para tentar os homens. Na
próxima vez que entrar na faca, vou pedir que lhe dêem as suas feições.
— Arch! — A voz de Erila, agredindo com desdém. — Não dê atenção.
Ele só quer outra moeda.
Mas a afastei.
— Sei quem fez isso — disse eu rapidamente. — Foram os tintureiros de
Santa Croce. Você foi um deles, não foi?
— Fui — respondeu ele, e me olhou mais atentamente. — Como soube
disso?
— Vi os padrões em suas peles. Fui lá, uma vez, quando era criança.
— Com o seu pai. O mercador de panos — disse ele.
— Sim! Sim!
— Agora me lembro. Era pequena e mandona e metia o nariz em tudo.
Ri alto.
— Isso mesmo! Realmente se lembra de mim!
Erila, impaciente, falou alto:
— Já lhe tirei a bolsa, seu cabeça-dura. Não conseguirá mais moedas.
— Não preciso do seu dinheiro — resmungou. — Ganho mais agitando
meus braços do que você nas ruas, depois que escurece, quando não se tem
como distinguir sua cor do escuro da noite. — E voltou a atenção para mim. —
Sim, agora me lembro. Lembro-me de que usava roupas elegantes e dessa cara
feia amassada... mas ainda assim, não tinha medo de nada.
Registrei suas palavras como uma pequena punhalada. Devo ter recuado,
mas sua cara se aproximou.
— Mas vou lhe dizer uma coisa. Eu não a achei feia. Não, de jeito
nenhum. Achei-a bastante sensual. — E ao dizer isso, fez a serpente ondear
languidamente na minha direção, ao mesmo tempo passando a língua nos lábios
até a ponta se projetar e sacudir para mim. Foi um gesto lascivo tão flagrante
que senti meu estômago virar com repugnância. Afastei-me rapidamente e abri
caminho até Erila, que já estava fora do ajuntamento, enquanto ouvia a sua
gargalhada grosseira ressoando acima de minha cabeça.
Ela estava tão irritada com a minha desobediência que, por alguns
instantes, não falou comigo. Mas quando a multidão diminuiu, parou e virou-se
para mim,
— Está bem?
— Sim — respondi, mas acho que era óbvio que não estava. — Sim.
— Talvez agora entenda porque as senhoras, ao saírem, levam
acompanhantes. Não se preocupe com ele. Seus dias estão contados. Quando o
novo exército descobri-lo, será enforcado tão rapidamente que suas duas
serpentes ficarão flácidas de terror.
Mas não consegui ficar indiferente nem à beleza de seu corpo nem à
verdade de suas observações sobre mim.
— Erila? — parei-a de novo.
— O que é?
— Sou mesmo tão feia que ele me reconheceu depois de todos esses anos?
Ela fungou e me puxou, abraçando-me forte.
— Ah, não foi de sua feiúra que ele se lembrou. Foi de sua coragem. Que
Deus nos proteja, isso ainda a machucará mais do que sua aparência jamais
conseguirá.
E assim, ela me conduziu pelas ruas estreitas, até em casa.
Mas nessa noite não consegui tirar sua pele da minha cabeça. Dormi mal, os
músculos da serpente comprimindo meus sonhos em pesadelos, até acordar
transpirando, lutando para tirá-la do meu corpo. A camisola estava ensopada e
fria sobre minha pele. Tirei-a e fui cambaleando até a arca, pegar outra. Na
pouca luz vinda das tochas lá fora, percebi o reflexo da parte de cima de meu
torso no pequeno espelho polido na parede almofadada. A visão da minha nudez
manteve-me ali por um momento. O meu rosto estava tomado por sombras
pesadas, e minhas curvas capturavam o escuro sob meus seios. Pensei em minha
irmã no dia de seu casamento, brilhando com a confiança de sua beleza e, de
repente, não suportei o contraste. O charlatão tinha razão. Não havia nada em
mim que deleitasse o olhar. Eu era tão feia que os homens se lembravam de mim
só por minha feiúra. Era tão feia que até mesmo meu marido me achava
repugnante. Lembro-me da descrição de Eva feita pelo pintor, quando ela foge
do Paraíso, gritando nas trevas, envergonhada de sua própria nudez. Ela também
tinha sido cortejada por uma serpente, sua língua bifurcada perfurando sua
inocência enquanto seus anéis extinguiam a vida de sua presa. Voltei para a
cama e me enrosquei. Depois de algum tempo, meu dedo desviou para a minha
fenda, buscando conforto em meu corpo, que ninguém mais daria. Mas agora a
noite estava plena de pecado e meus dedos recearam o prazer que podiam
descobrir e chorei até adormecer com a minha solidão como companhia.
Vinte e Cinco
AO LONGO DAS SEMANAS SEGUINTES, DEUS e o Diabo acertaram
contas nas ruas da cidade. Savonarola pregou diariamente, enquanto gangues de
rapazes apareciam como guerreiros da nova igreja, castigando os florentinos por
sua falta de piedade e mandando as mulheres para casa, ordenando que se
conservassem recatadas.
Minha irmã Plautilla, por outro lado, que sempre tivera o talento das
aparências, escolheu esse momento para se superar. Erila acordou-me ao
amanhecer na manhã de Natal, com a notícia.
— Chegou um mensageiro da casa de sua mãe. Sua irmã deu à luz uma
menina, esta noite. Sua mãe está com ela e nos visitará ao voltar para casa.
Minha mãe. Não a via desde o meu casamento seis semanas antes. Apesar
de ter havido momentos em minha vida em que o seu amor tinha sido estrito e
implacável, não existia ninguém mais que percebesse tão bem minha
perversidade e cuidasse tanto de mim, apesar ou, até mesmo, por causa disso.
Mas agora, essa mesma mulher tinha um passado que a ligava a meu marido e
um filho que tramara a ruína de sua própria irmã. Quando ela chegou, nessa
tarde, eu me sentia, de certa maneira, com receio de vê-la. A minha fragilidade
não era auxiliada pelo fato de meu marido ter partido na noite anterior e ainda
não ter retornado.
Recebi-a na sala de estar, como faria uma boa esposa, embora a sala
parecesse fria e sem amor em comparação com a que ela mobiliara com tanta
graça. Levantei-me quando ela entrou e nos abraçamos. Depois que nos
sentamos, examinou-me com seu olho de lince.
— Sua irmã manda um beijo. Está prosa como um pavão e com excelente
ânimo. O bebê também está com boa voz.
— Graças a Deus — eu disse.
— De fato. E você, Alessandra? Parece bem.
— Estou.
— E seu marido?
— Também está bem.
— Sinto não vê-lo.
— Sim... Mas ele deve chegar logo.
Ela fez uma pausa.
— Então, as coisas entre vocês estão...
— Magníficas — completei com firmeza. Observei-a registrar a
interrupção e tentar de novo. — A casa é muito silenciosa. Como passa o
tempo?
— Rezo — respondi. — Como você sugeriu. E para responder à sua
próxima pergunta, ainda não estou grávida.
Ela sorriu para a minha ingenuidade.
— Bem, isso não me preocupa. Sua irmã foi mais rápida do que muitas,
em relação a isso.
— O bebê saiu fácil?
— Mais fácil do que você — respondeu gentilmente, e a referência ao
meu nascimento foi, eu sei, uma tentativa de me abrandar em relação a ela. Mas
não surtiu efeito.
— Maurizio será um homem rico, hoje.
— De fato. Se bem que, sem dúvida, ele preferiria um menino. — Ainda
assim. Apostou 400 florins em uma menina. Nenhum herdeiro, mas um bom
começo para um dote. Vou falar com Gristoforo para fazer o mesmo. Quando
chegar a minha hora.
E fiquei satisfeita comigo mesma por essas palavras, pois soaram muito
próximas da maneira como uma esposa falaria.
Minha mãe olhou fixo para mim.
— Alessandra?
— Sim — disse eu animada.
— Está tudo bem, minha querida?
— É claro. Não precisa mais se preocupar comigo. Estou casada, não se
esqueça.
Ela fez uma pausa. Ela queria dizer mais, mas percebi que ficara
desconcertada com essa jovem frágil, senhora de si, que estava sentada à sua
frente. Deixei o silêncio aumentar.
— Por quanto tempo ficou na corte, mãe?
— O quê?
— Meu marido compartilhou suas lembranças do tempo de Lorenzo, o
Magnífico. Contou como toda a corte tecia louvores à sua beleza e sagacidade.
Acho que se a tivesse agredido fisicamente, ela não teria se surpreendido
tanto. Certamente nunca a vira esforçar-se dessa maneira para encontrar as
palavras certas.
— Eu... não... Nunca vivi na corte. Simplesmente visitei... algumas
vezes... quando era jovem. Meu irmão me levava. Mas...
— Então conhecia meu marido?
— Não. Não... quer dizer, se ele estivesse lá, talvez o tivesse visto, mas
não o conheci. Eu... tudo isso foi há muito tempo.
— Ainda assim, me admira que nunca tenha falado nisso. Logo você que
sempre se mostrou tão entusiasmada para que apreciássemos a história. Achou
que não nos interessaria saber?
— Foi há muito tempo — repetiu. — Eu era muito jovem... não muito
mais velha do que você agora.
Exceto nesse exato momento, em que me senti realmente muito velha.
— Meu pai também estava na corte? Foi assim que o conheceu? — Pois
me parecia claro que se meu pai mantivesse relações sociais com gente tão
importante, nós, como seus filhos, nunca pararíamos de escutar a história.
Não respondeu, e percebi uma mudança em sua voz, enquanto se
recompunha.
— O nosso casamento aconteceu depois. Sabe, Alessandra, embora a sua
paixão pelo passado seja admirável, acho que deveríamos falar sobre o presente
— interrompeu-se. — Tem de saber que seu pai não está bem.
— Não está bem? Como?
— Está... sob grande tensão. A invasão e as mudanças que aconteceram
em Florença o afetaram muito.
— Pensei que tivesse feito bons negócios com isso. Pelo que soube, a
única coisa que os franceses estavam dispostos a pagar era por nossos tecidos.
— Sim. Só que seu pai recusou-se a vender para eles. — E ao ouvir isso,
amei-o ainda mais. — Receio que sua recusa o marque como um homem da
oposição. Espero que isso não nos cause sofrimento no futuro.
— Mas ele deve saber que não será mais chamado à Signoria. O nosso
grande salão do governo ficará, a partir de agora, repleto de Simulados — eu
disse usando a expressão para os seguidores de Savonarola. Ela pareceu
alarmada. — Não se preocupe. Não uso essas palavras em público. Meu marido
mantém-me informada das mudanças na cidade. Como você, fiquei sabendo das
novas leis: contra o jogo e a fornicação — fiz uma pausa. — Contra a sodomia.
Mais uma vez minhas palavras a deixaram sem fôlego. Pude perceber
isso. O silêncio entre nós se adensou. Não podia ser. Minha própria mãe teria
deixado acontecer algo assim...
— Sodomia — repeti. — Um pecado tão grave que só recentemente
compreendi o seu significado. Mas acho que minha educação nesses assuntos foi
um tanto deficiente.
— Bem, isso não é algo que uma boa família precise notar — disse ela, e
agora se mostrava tão frágil quanto eu. Nessas palavras, a enormidade de sua
traição ficou clara para mim e, apesar de mal acreditar, senti tanta raiva que
ficou difícil permanecer na mesma sala que ela. Levantei-me, dando a desculpa
de que tinha trabalho a fazer. Mas ela não se mexeu.
— Alessandra — disse ela.
Olhei para ela tranqüilamente.
— Minha criança querida, se está infeliz...
— Infeliz? Por quê? O que poderia haver no meu casamento que me
fizesse infeliz? — continuei olhando para ela.
Ela levantou-se, derrotada por minha agressão.
— Seu pai gostaria que você aparecesse. Ele anda muito abatido por causa
dos negócios. O nosso estado não é o único que está tumultuado, e o excesso de
política é ruim para o comércio. Acho que o distrairia um pouco ser visitado por
sua filha preferida — disse ela delicadamente. — Assim como a mim.
— Mesmo? Pensei que a casa estivesse cheia dos meus irmãos, agora que
estamos ficando mais severos com os desatinos dos rapazes.
— Bem, é verdade que Luca mudou suas maneiras — disse ela. — Na
verdade, receio que Savonarola tenha conseguido um novo adepto em seu irmão.
Tem de estar ciente disso ao lidar com ele. E Tomaso... — interrompeu-se e
percebi um certo tremor em seu corpo. — Bem, não temos visto muito Tomaso
recentemente. Acho que isso é outra coisa que preocupa seu pai. — E ela baixou
os olhos.
Ela já estava à porta e eu continuava sem dizer nada, quando se virou.
— Ah, ia me esquecendo. Trouxe-lhe algo. Do pintor.
— Do pintor? — E senti a dor familiar começar e se enroscar em meu
estômago. Se bem que tinha havido tanto drama em nossa vida que eu não
pensava nele há algum tempo.
— Sim — tirou algo de sua bolsa: um pacote embrulhado em musselina
branca. — Deu-me isto esta manhã. É o seu presente de casamento. Acho que
ficou aborrecido por não o termos contratado para a arca, embora seu pai tenha
lhe explicado que não houve tempo para isso.
— Como ele está?
Deu de ombros.
— Começou os afrescos. Mas só poderemos vê-los quando estiverem
prontos. Ele trabalha de dia com ajudantes e, à noite, sozinho. Só sai de casa
para ir à missa. É um rapaz estranho. Eu não lhe disse mais de cinqüenta
palavras em todo esse tempo que está conosco. Acho que ele se ajusta mais ao
seu mosteiro do que à nossa cidade mundana. Mas seu pai continua a acreditar
nele. Esperemos que seu afrescos sejam tão bons quanto a sua fé.
Interrompeu-se. Talvez esperasse ter abrandado meu silêncio com a
promessa de mais novidades. Mas continuei sem fazer nada que a ajudasse e,
portanto, me abraçou e saiu.
A sala ficou mais fria com a minha nova solidão. Não me permiti pensar
no que acabara de saber, porque senão certamente cairia em um abismo de dor
do qual nunca mais emergiria. Em vez disso, concentrei-me no presente do
pintor.
Desembrulhei-o com cuidado. Sob a musselina, pintado a tempera sobre
um painel de madeira, mais ou menos do tamanho de uma Bíblia grande, estava
um retrato de Nossa Senhora. A cena era vibrante com uma paleta do sol
florentino e o detalhe no segundo plano mostrava elementos da cidade: o grande
domo, as perspectivas complexas de suas loggias e praças e uma infinidade de
igrejas. No centro, estava a Virgem, suas mãos (mãos tão bem pintadas)
dobradas delicadamente em seu colo e seu halo dourado brilhando para o
mundo, definindo-a como a mãe de Deus.
Isso era claro. Menos claro era o momento de sua vida que ele escolhera
para captá-la. Sua juventude era primordial, e a maneira como olhava
audaciosamente para além do olhar do observador deixava claro que estava
olhando para alguém. No entanto, não havia nenhum sinal de um anjo ansioso
trazendo-lhe boas-novas e nenhuma dança ou bebê dormindo trazendo-lhe
alegria. Seu rosto era comprido e cheio, cheio demais para ser bonito, e sua pele
nada tinha da palidez considerada elegante, mas apesar de sua aparência, havia
algo nela, uma gravidade, uma certa intensidade, que nos fazia olhá-la duas
vezes.
Ao examiná-lo de novo, revelou-se mais uma coisa. Maria era menos uma
suplicante do que uma contestadora: havia questionamento em seus olhos, como
se ainda não compreendesse satisfatoriamente ou aceitasse tudo o que estava
sendo exigido dela. E que sem compreender, era possível que optasse por não
obedecer.
Em resumo, havia uma espécie de rebelião nela, o que nunca eu vira em
uma Madona antes. Mas apesar de sua transgressão, eu a conhecia bem. Porque
seu rosto era o meu.
Vinte e Seis
FIQUEI ACORDADA ATÉ TARDE, MINHA MENTE entre a culpa de minha
mãe e a transgressão do pintor. Como ela tinha sido capaz de tal traição? No que
ele estaria pensando ao criar essa obra? Fiquei à janela de meu quarto olhando a
cidade que me era mais proibida agora do que quando era virgem na casa de
meu pai e me perguntei sobre a jornada da minha vida que havia me levado de
tanta esperança para um tamanho desespero. Ah sentada percebi os primeiros
flocos de neve precipitando-se do escuro. E como era raro nevar na cidade,
fiquei, mesmo contra a vontade, observando deslumbrada. Foi assim que assisti
à chegada da grande nevasca.
A tempestade grassou por duas noites e dois dias, a neve carregada pelo
vento era tão espessa que à luz do dia era difícil até mesmo enxergar o outro
lado da rua. Quando, finalmente, cessou, a cidade estava transformada: as ruas
mais parecidas com as linhas de contorno da região rural, com depressões e
dunas que soterraram várias casas até o primeiro andar, e a chuva tinha-se
transformado, de tal forma, em gelo pendendo da beirada dos telhados, que
Florença parecia ter sido pendurada com cortinas de cristais em cascatas. Era tão
bonito que quase poderia ter sido obra de Deus; uma visão para celebrar a nossa
nova pureza. Embora outros dissessem ser um sinal de que Nosso Senhor tinhase unido a Savonarola e, não conseguindo extinguir o pecado com calor, Ele,
agora, tentava eliminá-lo com o frio.
O clima tornou-se a nossa vida por algum tempo. O rio congelou o
suficiente para as crianças construírem fogueiras em sua superfície e os balseiros
foram os primeiros a passar fome quando os florentinos aprenderam a andar
sobre a água. Anos antes, quando eu era pequena e houve uma tempestade de
neve violenta o bastante para cobrir a cidade, as pessoas tinham ido para a rua
fazer esculturas de neve e um dos aprendizes da escola de escultura de Lorenzo
tinha erigido um leão como símbolo de Florença no jardim do Palácio Medici.
Era tão vivo que Lorenzo abriu os portões para que os cidadãos o vissem. Mas,
agora, não houve tais preciosismos. No fim do dia, quando escurecia, a cidade ia
ficando tão silenciosa que a impressão era a de que as pessoas tinham congelado
na paisagem. A casa de meu marido era cheia de correntes de ar, o que fazia
parecer que estávamos na rua, embora eu saiba que isso é uma coisa idiota a se
dizer, pois algumas pessoas realmente morreram em suas casas, enquanto nós
pelo menos tínhamos lareiras que queimavam à frente das nossas pernas ao
mesmo tempo que deixavam nossas costas gélidas.
Na segunda semana, a neve tornou o gelo preto e ficou tão perigosa que
ninguém saía de casa a não ser que fosse estritamente necessário. A treva do
inverno começou a filtrar-se em nossas almas. Parecia que duraria para sempre.
Os dias quase não tinham luz, e ainda assim eram terrivelmente longos, e a
impaciência crescente de meu marido por estar separado de meu irmão era tão
flagrante que passou a dominar a sua polidez e ele começou a se afastar de mim,
ficando em seu gabinete até altas horas da noite. A sua ausência me aborreceu
mais do que eu gostaria de admitir. Então, certa manha, apesar do tempo, saiu de
casa e não retornou à noite.
Mas se ele podia sair, eu também podia. Deixando um bilhete para Erila,
no dia seguinte saí sozinha para visitar minha irmã.
Nas ruas, o ar estava tão frio que, ao respirar, tínhamos que inspirar pouco
ar, para que não cauterizasse nossas narinas. As pessoas andavam devagar, toda
a atenção concentrada em onde se punha os pés. Alguns carregavam sacos de
terra — terra e arenito — que espalhavam como trigo à sua frente. O sal teria
adiantado mais, porém era uma mercadoria valiosa demais para ser desperdiçada
nas pisadas de alguém. Eu não tinha nenhum dos dois e, conseqüentemente, meu
caminho era traiçoeiro, e apesar de a distância entre as duas casas não ser
grande, minhas saias se rasgaram e ficaram pretas antes de eu percorrer cem
metros.
Plautilla recebeu-me espantada, mas com os braços abertos, fazendo-me
sentar do lado do fogo e falando sem parar da ousadia e tolice de sua precipitada
irmã mais nova. Sua casa era tão diferente da minha. Era menor e construída
mais recentemente, de modo que havia menos rachaduras que deixassem o frio
entrar, mas havia também mais lareiras e aquela agitação incessante de família,
que me fazia lembrar tão afetuosamente da minha infância. Em contraste com
meu nariz em carne viva e minha cara contraída, ela parecia confortável e
aquecida, se bem que, tem-se de admitir, parecia quase tão gorda sem o bebê
quanto com ele.
Apesar do prodígio de seu senso de oportunidade, a natividade de minha
irmã tinha sido claramente muito menos humilde do que a de Nossa Senhora.
Em sua defesa, podia-se argumentar que, como seu confinamento havia
coincidido com a invasão, Plautilla não aparecia em público há algum tempo e
ninguém a havia informado como as coisas tinham mudado. Não obstante, se a
Polícia Suntuária resolvesse fazer uma visita ao quarto do seu bebê, retirariam a
maior parte das roupas e mobília e a jogariam nas ruas. Felizmente não
havíamos chegado a isso. Ainda.
Deixou-me segurar minha pequena sobrinha chorona e enrugada que,
obedientemente, berrou em meus braços até a ama-de-leite pegá-la e fixá-la em
seu peito, onde fartou-se como um cordeiro, de modo que dava para ouvi-la
sugando e engolindo avidamente, enquanto Plautilla ficava em um silêncio
rechonchudo e sereno, repleto de seu triunfo e mamilos macios.
— Agora entendo que as mulheres são feitas para isso — falou com um
suspiro. — Se bem que gostaria de que Eva houvesse nos poupado um pouco da
agonia do parto. Não imagina a dor. Acho que é pior do que a estrapada. Deus
demonstrou grande misericórdia por Nossa Senhora ao aliviá-la desse fardo. —
Pôs outro doce em sua boca. — Mas olhe só para ela. O tecido creme de papai
não fez os cueiros mais lindos? Olhe bem para o que você deve estar ansiando
por viver. Ela é uma criação muito maior do que todas as suas garatujas, não
acha?
E concordei, embora Plautilla só a tivesse carregado três ou quatro vezes
durante a minha visita e passado o resto dos dias organizando a bagagem que
acompanharia o bebê e a ama ao campo, dentro de uma semana, não percebi que
diferença significativa ela faria em sua vida. Quanto a Maurizio, bem, pelo que
pude perceber nos breves momentos em que estivemos juntos, pareceu-me mais
aborrecido do que qualquer outra coisa com toda aquela história. Mas, enfim, os
homens do estado tratavam de assuntos mais importantes do que bebês. E ela
não passava de uma menina.
— Mamãe disse que você estava bem, mas cada vez mais modesta. Devo
dizer que parece um pouco sem trato.
— Sim, sem trato — disse eu. — Mas o mundo está ficando cada vez
mais sem trato. Estou surpresa que não tenham lhe contado.
— Oh, por que eu deveria sair de casa? Tenho tudo de que preciso aqui.
— E depois que ela se for? O que vai fazer então?
— Vou arrumar as coisas e, quando estiver descansada, faremos outro —
disse ela com um sorriso pudico. — Maurizio não vai descansar enquanto não
tiver um bando de meninos para conduzir a nova República.
— Boa sorte para ele — disse eu. — Se os tiver rapidamente, poderão se
tornar os novos guerreiros de Deus.
— Sim. E por falar em guerreiros, viu Luca recentemente?
Sacudi a cabeça.
— Bem, vou dizer uma coisa. Ele está mudado. Veio ver Illuminata há
dois dias. Não adora este nome? Como uma nova luz no céu. Ele disse que era
um nome adequado ao nosso tempo e essa bênção era o fruto do meu útero. —
Ela riu. — Imagine só o nosso Luca usando essa linguagem. Mas a sua
aparência era horrível. Seu nariz estava azul do frio da patrulha das ruas. Teve o
cabelo todo cortado, como o de um monge. Mas ouvi dizer que há, entre os mais
jovens, alguns que se parecem realmente com anjos.
Mas aposto que espicaçam como Diabo, pensei, lembrando-me do grupo
na praça. Lancei um olhar de relance para a ama, que tinha os olhos fixos em
Illuminata que, por sua vez, a olhava de volta sem nem mesmo piscar. Seria ela
também uma partidária do novo estado? Era difícil saber o que se podia dizer na
frente de quem nesses dias.
— Não se preocupe — sussurrou Plautilla, percebendo meu olhar. — Ela
não é de Florença. Mal entende o que dizemos.
Mas percebi um pequeno lampejo em seus olhos encapuzados que me fez
acreditar no contrário.
— Adivinhe o que me trouxe de presente de parto. Um livro com os
sermões de Savonarola. Imagine só! Direto da impressora. Estão sendo
impressos agora. Três novas tipografias foram abertas na Via dei Librai nos
últimos meses, ele disse, todas dedicadas às novas palavras. Lembra-se de
quando mamãe dizia que era vulgar comprar livros produzidos por meios
mecânicos? Que a metade da beleza das palavras estava... — gaguejou.
— Nos traços das penas que as copiavam — completei. — Porque os
copistas acrescentavam seu amor e devoção ao texto original.
— Oh. Você sempre se lembra de tudo. Bem, não é mais assim. Até
mesmo cavalheiros hoje imprimem livros. Soube que é a moda. Imagine só.
Assim que dizem as coisas, elas estão em nossas mãos. Aqueles que não sabem
ler podem ter alguém que os leia para eles. Não admira que tenha seguidores tão
devotos.
Embora ela pudesse ser facilmente distraída pelas agitações da moda,
minha irmã não era idiota, e acho que se tivesse estado em uma igreja escutando
a paixão de suas palavras, também deveria ter sentido um certo medo, assim
como admiração. Mas os prazeres do casamento e da maternidade estavam
amolecendo seu cérebro.
— Você tem razão — disse eu calmamente. — Ainda assim, se fosse
você, esperaria algum tempo antes de lê-lo para Illuminata.
Vi a ama desviar o olhar ligeiramente, tirando o bebê do seio por um
momento, de modo que seus gritos indignados interrompessem,
momentaneamente, a conversa. Durante o resto de minha estada, não mencionei
o assunto de novo.
Quando cheguei em casa, alguns dias depois, o gelo estava derretendo.
Na esquina de nossa rua, o degelo tinha exposto o corpo de um cachorro
semicongelado, sua barriga aberta e suas tripas negras revivendo enquanto as
primeiras larvas de insetos sobreviviam ao frio. Não poderia dizer se o mau
cheiro era de vida ou de morte. Minha casa também cheirava diferente. Como se
um animal estranho a tivesse penetrado. Ou então, porque eu tinha localizado o
cavalo de Tomaso amarrado do lado do de Cristoforo no pátio. Os dois
brilhavam de suor, aguardando próximos um do outro, como companheiros, que
o cavalariço acabasse de escová-los. O garoto interrompeu sua tarefa para me
cumprimentar com um rápido balançar da cabeça. Devolvi seu cumprimento
também com um movimento da cabeça. Por que tinha tanta certeza de que ele já
tratara assim dos dois animais muitas vezes antes?
Erila veio ao meu encontro antes de eu chegar ao meu quarto. Esperei que
ela me repreendesse por minha ausência, mas, em vez disso, recebeu-me com
uma alegria quase exagerada.
— Como está sua irmã?
— Gorducha — respondi. — Em mais de um sentido.
— E o bebê?
— É difícil dizer. Estava coberto de vômito de leite. Mas tinha voz. Acho
que sobreviverá.
— Seu irmão está aqui. Tomaso. — E era minha imaginação ou ela estava
me olhando intensamente?
— Mesmo? — disse casualmente. — Quando ele chegou?
— Um dia depois que partiu — replicou ela, e sua casualidade estudada
pareceu tão real quanto a minha. Então ela também sabia? Sempre soubera?
Todo mundo sabia menos eu?
— Onde estão agora?
— Acabaram de chegar de uma cavalgada. Eu... eu acho que estão na sala
de estar.
— Talvez você devesse avisá-los de que cheguei. Não... não, pensando
bem, irei avisá-los eu mesma. — Passei por ela e subi rapidamente a escada
antes de perder a coragem, sentindo seus olhos fixos às minhas costas. No dia
seguinte à minha partida. O desejo patente de meu marido fez com que me
envergonhasse dele. E de mim mesma.
Empurrei a porta calmamente. Tinham se instalado confortavelmente. A
mesa do jantar ainda estava posta, com um bom vinho aberto e o ar pesado com
o cheiro dos condimentos. Parecia que a cozinha os tinha tratado de maneira
esplêndida. Estavam em pé diante da grelha aberta, perto do fogo e próximos um
do outro, embora não se tocando. Para um olho desatento, seriam dois amigos
partilhando o calor do fogo, mas tudo que consegui sentir foi a força entre eles,
saltando como a faísca de energia entre dois pedaços de lenha queimando.
Tomaso, agora, estava vestido menos ostentosamente, claramente
preocupado com as novas leis, embora me parecesse que seu rosto bonito
estivesse ficando um tanto gordo. Estava para completar vinte anos. Não
exatamente uma idade adulta, mas idade bastante para lhe garantir punições
mais severas. Ontem mesmo, Plautilla tinha contado histórias de como, em
Veneza, homens mais jovens condenados por sodomia tinham, regularmente,
seus narizes cortados: um castigo de prostitutas, condizente com seu status
afeminado e arquitetado para arruinar sua vaidade? Tinha-me feito compreender
o significado da mutilação do rapaz na escada do Batistério, no dia do meu
casamento. Em todos os meus anos de conflito com Tomaso, nunca nutrira
pensamentos tão cruéis em relação a ele, e me apavorou o fato de abrigá-los
agora.
Ele foi o primeiro a me ver, encontrando meus olhos por sobre o ombro de
meu marido. Tínhamos passado a vida atormentando-nos mutuamente: ele, a
mula com o coice rápido, eu, o mosquito, criando meia dúzia de bolhas
vermelhas em um golpe ou outro.
— Olá, irmã — disse ele, e juro que seu triunfo tinha um quê de medo.
— Olá, Tomaso. — E percebi que minha voz devia estar estranha, pois
mal consegui ter fôlego para proferir seu nome direito.
Meu marido virou-se imediatamente, afastando-se de seu amante e se
dirigindo a mim no mesmo movimento maneiroso.
— Minha querida. Bem-vinda de volta. Como está sua irmã?
— Gorducha. Em mais de um sentido. — Bendito poder da memória.
Seguiram-se alguns passos de dança confusos enquanto nos
acomodávamos na sala, Cristoforo em uma cadeira, eu em outra, e Tomaso em
um pequeno canapé do lado: marido, mulher e cunhado, um grupo familiar
encantador da elite mais culta de Florença.
— E o bebê?
— Muito bem. — Houve uma pausa. Qual era a grande sabedoria de
Savonarola quando se tratava de mulheres? Depois da obediência, a maior
virtude da mulher é o silêncio. Mas para ser uma esposa de verdade, eu teria de
ter um marido de verdade.
— Plautilla sente sua falta — disse eu a Tomaso. — Disse que é o único
que não a visitou.
Ele baixou os olhos.
— Eu sei. Tenho andado ocupado.
Retirando os enfeites supérfluos de suas roupas, com certeza, pensei, e
percebi que usava o cinto de prata do casamento. Isso foi como um soco em meu
estômago.
— Mas estou surpresa com que saia tanto. Achava que a cidade seria
menos atraente para você, nestes tempos.
— Bem... — lançou um rápido olhar a Cristoforo. — Na verdade, eu
não... — sua voz foi sumindo com um leve dar de ombros, obedecendo às
instruções que claramente recebera para ser indulgente comigo.
O silêncio retornou. Olhei para o meu marido. Ele olhou para mim. Sorri,
mas ele não devolveu o sorriso.
— Tomaso contou como estão esvaziando os conventos — disse ele com
brandura —, removendo toda arte que não se conforma à sua visão de decência e
todo ornamento ou veste suntuosa demais.
— O que ele vai fazer com toda a riqueza confiscada? — perguntei.
— Ninguém sabe. Mas não ficarei surpreso se começarmos a sentir o
cheiro de madeira queimada dentro em breve.
— Ele não se atreveria, certo?
— Acho que não é uma questão de se atrever. Ele pode fazer o que quiser
contanto que tenha o povo do seu lado.
— E o que resta da coleção dos Medici? — perguntei. — Ele a destruiria?
— Não. E mais provável que sugira que seja leiloada.
— Para depois fazer um inventário de todos os que a adquiriram — eu
disse mordazmente. — Você terá de moderar sua ânsia de adquirir mais beleza,
Cristoforo, ou nos veremos excluídos por outras razões.
Ele assentiu com um leve movimento da cabeça, reconhecendo a sensatez
da minha lógica. Relanceei os olhos para Tomaso.
— E qual é a sua opinião sobre a atitude do nosso Frade em relação ao
Renascimento? — perguntei, ansiosa por expor a sua superficialidade. — Estou
certa que a questão ocupa sua mente continuamente. — Ele lançou um olhar
mal-humorado. Não me despreze, pensei. Você feriu mais em toda a sua vida do
que foi ferido.
— Então — prossegui, depois que ficou claro que não responderia —,
soube que Luca aderiu aos guerreiros de Deus. Vamos torcer para que você não
tenha feito um inimigo nele.
— Luca? Não. Ele simplesmente gosta de exércitos. Nunca o viu nas ruas
nos velhos tempos. Gosta de brigar. Se não vai combater franceses, vai combater
pecadores. É aí que sente prazer.
— Bem, todos nós o conseguimos em lugares diferentes — fiz uma pausa.
— Mamãe disse que você nunca está em casa — de novo, fiz uma pausa. Dessa
vez, mais longa. — Ela sabe sobre você, não sabe?
Ele pareceu alarmado.
— Não. Por que diz isso?
— Porque é essa a impressão que ela dá. Talvez Luca tenha sentido a
necessidade de confessar em seu nome.
— Já disse. Ele não me trairia — replicou soturnamente. — De qualquer
maneira, ele não sabe o suficiente.
Ao passo que eu sim, pensei. A temperatura entre nós estava se elevando.
Podia senti-la como vômito na minha garganta. E podia sentir o meu marido, o
nosso marido, ficando ansioso no outro lado da sala. Tomaso lançou-lhe outro
olhar, dessa vez mais óbvio, um olhar que denotava indolência e conspiração,
suor e desejo. Enquanto eu falava de bebês e cueiros, eles tinham ficado se
acarinhando na gloriosa segurança de minha ausência. Talvez essa fosse, agora,
a minha casa, mas nesse momento eu era a intrusa. Isso me deixou louca de dor.
— Mas tem de admitir que há uma certa simetria: um filho vai para Deus
enquanto o outro, para o Diabo. A sorte deles foi as filhas terem se casado.
Como devem ter ficado deliciados quando sugeriu o meu pretendente, Tomaso
— disse eu tranqüilamente, mas não menos perversamente.
— Oh, e você, é claro, era tão inocente — disse ele, rápido como um ímã
se prendendo no metal. — Talvez se eu tivesse tido uma irmãzinha mais doce, as
coisas tivessem sido diferentes.
— Ah — virei meu corpo de modo a ler os sinais de aviso que eu recebia
de meu marido. — Então foi assim que aconteceu. Você nasceu uma alma pura
pronta para voar a Deus e esta garota vil chegou e humilhou-o tanto, por você
não conseguir dar-se ao trabalho de aprender nada, que o fez se voltar contra
todas as mulheres. Portanto ela colocou-o no caminho da sodomia.
— Alessandra — a voz de Cristoforo atrás de mim soou calma. Quase não
a ouvi.
— Eu lhe disse que não ia adiantar — disse Tomaso, com rancor. — Ela
não perdoa.
Sacudi a cabeça.
— Oh, acho que é mais culpado desse pecado do que eu, senhor — disse
eu friamente, e senti o controle me escapando. — Sabe que falamos de você,
Cristoforo e eu? Ele não contou? Na verdade, com freqüência. Sobre como é
bonito. E estúpido.
Percebi meu marido levantar-se da cadeira.
— Alessandra — disse ele, dessa vez mais severamente.
Mas eu não podia parar agora. Era como se uma represa tivesse rebentado
dentro de mim.
Virei-me para ele.
— É claro que não usamos essas palavras exatamente, não é, Cristoforo?
Mas cada vez que o faço pensar ou rir com algum comentário erudito ou uma
observação de arte, em vez de com um gesto afetado ou um tremor dos cílios...
cada vez que percebo seus olhos se iluminarem com o prazer de nossa conversa,
e a sua mente se desvia por um momento de seu corpo... então, penso em como
marquei uma pequena vitória. Se não para Deus, pelo menos, para a
humanidade.
Oh, mas eu não queria que fosse assim. Eu tinha imaginado isso tudo tão
diferente: como eu seria amável e espirituosa, sorriria e renovaria a confiança e,
assim, aos pouquinhos, os atrairia para uma conversa em que eu, tranqüila e
sutilmente, exporia a vaidade frívola de meu irmão, enquanto observava os
olhos de meu marido brilhar com um orgulho involuntário diante de minha
inteligência e humor.
Mas não consegui. Porque, é claro, o ódio, ou talvez fosse amor, não era
assim.
Observei-os olharem para mim, um misto de piedade e desdém em seus
olhos, e, de repente, tudo escapou de mim: minha imprudência, minha coragem,
minha confiança monstruosa, escorrendo do ferimento que, me dava conta
agora, infligira a mim mesma. Acho que, nesse momento, eu até me uniria aos
Simulados, se pudessem aliviar a dor.
Levantei-me e senti que estava tremendo. Os olhos de meu marido
estavam frios e ele me pareceu mais velho subitamente, ou talvez fosse
simplesmente o contraste com o pleno desenvolvimento de Tomaso.
— Desculpe, meu marido — disse eu, olhando diretamente para ele. —
Parece que me esqueci do meu lado de nosso trato. Perdoe-me. Vou para o meu
quarto. Seja bem-vindo, irmão. Espero que goste de sua estada.
Virei-me e caminhei para a porta. Cristoforo observou-me ir. Não me
seguiu. Ele podia ter dito alguma coisa. Mas não disse. Quando fechei a porta,
imaginei-os se unindo com um longo e doce suspiro, enlaçando-se e se fundindo
como os ladrões e serpentes em Dante, de modo que eu não conseguisse mais
distinguir meu irmão de meu marido. E causei a mim mesma mais mal com a
ternura e violência da imagem.
Vinte e Sete
ELA ABRIU A PORTA E FICOU no extremo do quarto, e até mesmo em
minha histeria, percebi que estava com receio de entrar. O que me assustou
ainda mais, pois nunca sentira medo de mim, nem mesmo quando eu era criança
e agira da maneira mais mesquinha com ela.
— Vá embora, Erila — gritei, enterrando a cabeça na coberta.
Mas isso só fez com que se decidisse. Atravessou o quarto e subiu na
cama comigo, e pôs seus braços em volta de mim. Empurrei-a.
— Vá embora.
Ela ficou.
— Você sabia. Todo mundo sabia e, ainda assim, você não me contou.
— Não! — dessa vez, agarrou-me até que eu olhasse para ela. — Não. Se
tivesse sabido, a deixaria fazer isso? Deixaria? É claro que não. Eu sabia que ele
era libertino. Que fodia onde podia. Isso eu sabia. Mas os homens o enfiam em
tudo que é tipo de buraco quando não há outra coisa disponível. Isso é comum, e
sua mãe e eu erramos se a protegemos tanto a ponto de você não saber disso.
Mas esses mesmos homens geralmente mudam de um para o outro em um piscar
de olhos. Portanto, sim, fodem um homem, se uma mulher não estiver
disponível. E assim que é. Talvez não seja como o seu Deus mandou ser, mas é
assim. — Havia algo na violência de sua linguagem que me fez sentir melhor.
Ou, pelo menos, me fazer prestar atenção. — Mas, para a maioria, tudo isso
acaba quando se casa. Os rapazes ressecam e as mulheres se umedecem para
eles. Ou, pelo menos, para os filhos. Por isso achei, talvez porque quisesse
achar, que seria a mesma coisa com ele. E nesse caso, por que lhe contar? Só
teria tornado essa primeira noite ainda pior.
A primeira noite. Mulheres inteligentes não morrem disso. Mas não íamos
discutir isso agora.
— E Tomaso? — perguntei, reprimindo os soluços. — Sabia sobre ele?
— Corriam rumores — falou com um suspiro. — Mas ele gosta de fazer
troça. Podia ser tudo simplesmente parte de seus jogos. Talvez eu devesse ter
prestado mais atenção. Mas não os dois. Eu não sabia nada disso. Se houvesse
comentários, eu certamente os teria ouvido, e não ouvi.
— E minha mãe?
— Oh, Deus nos perdoe, sua mãe não sabia.
— Oh, ela sabia! Ela conheceu Cristoforo na corte, quando era jovem. Ele
disse que a viu lá.
— E daí? Ela era uma garota. Devia saber ainda menos dessas coisas do
que você. Como pôde pensar uma coisa dessas dela? Isso partiria seu coração.
Em vez do dela, partira o meu.
— Bem, se ela não sabia, agora sabe. Pelo menos sobre Tomaso. Vi isso
em seu rosto.
Erila sacudiu a cabeça.
— Bem, muitos segredos deixaram de ser segredos. Parece que os
Simulados são bons fuxiqueiros também. Pelo que andei sabendo, até o
confessionário deixou de ser seguro. Provavelmente Luca, o novo anjo de Deus,
falou alguma coisa.
Era o fim de Tomaso como juiz de caráter.
— Mas... se ninguém sabia... quer dizer, como você descobriu?
— Vivo aqui, não se esqueça — e fez um gesto para as paredes.
— Eles sabem?
— É claro. Pode ter certeza de que se ele não pagasse tão bem, eles não
seriam os únicos. Gostam dele. Apesar de seus pecados — fez uma pausa. — E
você também. Isso é o pior de tudo.
Ela ficou comigo até eu dormir, mas a dor tinha penetrado meus sonhos e,
nessa noite, a serpente voltou a atormentar, O olhar malicioso do charlatão era a
boca do Diabo, a serpente nascendo dela, colorida e sibilando uma raiva lasciva,
me comprimindo e amaldiçoando até eu despertar gritando, embora eu ache que
a minha voz só ressoasse no meu sono, pois a casa estava mortalmente
silenciosa à minha volta.
O catre de Erila, do lado da porta, estava vazio. O escuro gritava em meus
ouvidos. Quase dava para ouvir o farfalhar da serpente dentro dele. A minha
pele estava úmida do suor do medo. Eu estava abandonada em uma casa de
pecado e o Diabo vinha me pegar. Forcei-me a levantar e acender a lamparina.
As sombras se retraíram para os cantos do quarto, projetando-se ali como uma
maré montante. Remexi com desespero em minha arca, tirando, lá do fundo,
meus desenhos, carvão e penas. A oração nos chega de várias formas. Se dormir
trazia o Diabo, e os pecados de meu marido roubavam minhas palavras, então
ficaria acordada e tentaria rezar a Deus por meio de minha pena, invocando a
imagem de Nossa Senhora para que intercedesse por mim.
Minhas mãos estavam tremendo quando peguei o fragmento de carvão.
Fazia semanas que não o usava e suas pontas estavam rombudas. Encontrei a
lâmina envolvida em um pedaço de pano de meu pai, e comecei a afiar a ponta,
o som da raspagem sutilmente familiar. Mas a semi-escuridão e a umidade de
meus dedos me deixavam desajeitada e a lâmina escorregou, de repente, fazendo
um sulco comprido em minha mão, indo até a parte de dentro de meu braço.
O sangue jorrou instantaneamente, brilhante contra a pele descorada, uma
vibração de cor que nenhuma tintura conseguiria captar. Olhei fascinada a linha
se espessar, espalhando-se por meu braço até começar a pingar no chão. Qual foi
a história que Tomaso me contou certa vez? Sobre um louco na prisão que havia
aberto as próprias veias para escrever o depoimento de sua inocência nas
paredes, e de como, quando começou, não conseguiu parar, e o encontraram no
dia seguinte, exangue, encarquilhado no canto, as paredes cobertas com palavras
pretas endurecidas. Que histórias eu poderia contar agora, se encontrasse a cor
certa para elas? O pensamento me fez estremecer. O sangue escorria mais rápido
agora. Tinha de estancá-lo como Erila havia me ensinado, Mas ainda não.
Peguei o pequeno prato de cerâmica usado para as ervas do ungüento, usado no
cabelo no verão, e o pus debaixo do ferimento. As gotas fundiam-se em minha
pele e caíam abundantes e encorpadas no prato. Não demorou para que
formassem uma poça rasa. O líquido da vida (a tinta de Deus). Precioso demais
para o papel. A dor logo viria. Precisaria de pano para atar bem o ferimento.
Mas o pano da lâmina era pequeno demais e as outras peças de roupa muito
preciosas. Tirei a camisola pela cabeça. Eu a usaria. Dali a pouco... Primeiro
tenho de escolher o pincel; aquele do pêlo mais espesso de arminho, sua ponta
grossa como raio de sol. Meu corpo encarou-me no vidro polido. Vi de novo a
serpente se movendo nos braços tintados do charlatão, o sol destacando seu
colear. A luz da lamparina, minha pele estava perolada com o suor. Meu marido
e meu irmão estariam entrelaçados até agora, sôfregos com a luxúria. Eu nunca
sentiria o que eles estavam sentindo. Meu corpo permaneceria uma terra
estrangeira para mim, não mapeada e intocada. Ninguém para acariciar a minha
pele ou se maravilhar com a sua beleza. Molhei o pêlo de arminho no sangue e
com um movimento floreado, tracei uma linha fria e úmida do meu ombro
esquerdo até meus seios. A cor ficou como uma bandeira escarlate em minha
pele.
— ...em nome de Deus...
Ela me segurou imediatamente. O prato estilhaçou-se no chão, o sangue
espalhando-se.
— Largue-me!
Ela arrancou o pincel da minha mão, segurando firme meu braço acima do
cotovelo, erguendo-o com força, seus dedos como um torno apertando minha
pele, fazendo pressão para deter o fluxo.
— Deixe-me, Erila — gritei de novo, e minha voz soou aguda e irada.
— Não. Você ainda está nas garras do sonho. Fez com que se agitasse e
gemesse tanto que fui buscar algo para você beber — e agarrou a camisola com
a outra mão e se pôs a amarrá-la forte em volta do ferimento.
— Ai! Está me machucando. Deixe-me em paz, já disse, estou bem.
— Oh, sim, tão bem quanto uma louca.
E tampouco parecia tão bem, pois nós duas podíamos escutar a minha
risada, embora houvesse muito pouco do que rir. Vi seus olhos se escancararem
com o choque ao me puxar contra si, abraçando-me tão forte, que mal consegui
respirar.
— Estou bem, estou bem — repeti várias vezes enquanto a risada
transformava-se em lágrimas e a dor do corte me penetrava como ferro de
marcar, oferecendo-me algo mais poderoso contra o que lutar do que
autocomiseração.
Vinte e Oito
DEPOIS DESSA NOITE, FIQUEI DOENTE por algum tempo. Erila estava tão
preocupada que tirou do quarto minhas lâminas e pincéis, até que o desvario me
abandonasse. Eu dormia muito e perdi o apetite por comida, assim como pela
vida. O ferimento inchou e supurou e provocou febre. Erila cuidou de mim com
ervas e cataplasmas até a pele tornar a se juntar e a cura ter início. Mas deixou
uma cicatriz que passou do vermelho raivoso a uma linha branca alteada que
tenho ainda hoje. E durante o tempo todo, cuidou de mim com a ferocidade de
um cão do inferno nos portões, de modo que quando meu marido veio perguntar
por minha saúde, mais tarde naquele primeiro dia, ouvi suas vozes altercarem no
lado de fora do quarto, mas nem por um momento tive dúvida de qual dos dois
venceria.
Depois, quando minha calma reconquistou sua confiança e meu senso de
humor foi restaurado o bastante para ouvir seus gracejos, perguntei-lhe o que
tinha acontecido entre eles e ela representou a cena, divertindo-me: ele, o
velhaco, assumindo atitudes, depois atormentando e ameaçando, ela a escrava
negra, metade bruxa, contando histórias de partir o coração e o súbito aborto
sangrento.
E era uma mentira tão deslavada que a achei quase agradável.
— Não disse isso!
— Por que não? Ele quer um filho. Está na hora de saber que não vai
consegui-lo fodendo seu irmão.
— Mas...
— Nada de mas. Pelo que você me disse, ele fez um trato. Que o cumpra.
Se gosta do cheiro de cu, o problema é dele. Tomaso é apenas a sua puta nas
horas vagas. Você é a dona da casa. E é melhor ele tratá-la como tal.
— O que ele disse?
— Oh... que não fazia idéia, que lamentava e... blá, blá, blá. Eles nunca
sabem o que dizer sobre isso. A primeira menção desse tipo de sangue, e até
mesmo os que gostam de boceta ficam constrangidos.
— Erila! — ri. — A sua linguagem é pior do que a de Tomaso. Ela deu de
ombros.
— Pelo menos, meu comportamento é melhor. Vocês, "madames", não
sabem da missa a metade. Deviam ouvir as coisas que dizem de vocês. Ou que
se colocam sob suas aureolas, os olhos erguidos para o céu, ou que mastigam
maçãs na cara deles e ostentam o pentelho. Nem mesmo sei se eles sabem qual
preferem. O melhor que pode fazer é escolher quando mudar de fantasia. — Ela
sorriu largo para mim. — Minha mãe costumava dizer que, na nossa terra, havia
deuses bastante para as mulheres terem pelo menos um do seu lado, enquanto a
sua religião tem três em um, e todos são homens. Até mesmo o pássaro.
E foi uma maneira tão irreverente de descrever o Espírito Santo que me vi
prendendo o riso.
— Acredito que ela não falasse essas blasfêmias em público.
Ela deu de ombros.
— E se falasse, quem se importaria? Esquece-se de que, segundo as leis
da escravatura, ela não tinha alma a ser salva.
— E então? Ela morreu pagã?
— Ela morreu no cativeiro. Isso era tudo o que tinha importância para ela.
— Mas você vai à igreja, Erila — disse eu. — Sabe as orações tanto
quanto eu. Está me dizendo que nunca acreditou?
Ela baixou os olhos.
— Cresci com outra língua, sob outro sol — replicou. — Acredito no que
preciso acreditar para sobreviver.
— E quando for livre? Isso mudará as coisas?
— Falaremos disso quando acontecer.
Embora nós duas soubéssemos que estar do meu lado contra ele não era a
maneira de acelerar a liberdade.
— Bem — disse eu —, acho que quaisquer que sejam os segredos em seu
coração, Deus os verá e saberá que é uma boa pessoa, e a julgará com carinho.
Ela olhou para mim.
— E que Deus é esse? O seu ou o do monge?
E ela tinha razão. Quando eu era criança, tudo parecia tão simples. Tinha
havido um Deus, que, apesar de ter a voz de um trovão quando com raiva,
também tinha amor suficiente para me aquecer à noite quando eu lhe falava
diretamente. Ou assim me parecia. E quanto mais eu aprendia e mais complexo
e extraordinário o mundo se tornava, mais profunda a Sua capacidade de aceitar
meu conhecimento e se regozijar comigo. Pois qualquer que fosse a realização
do homem, vinha, antes de mais nada, a Dele. Mas isso deixara de parecer
verdadeiro. Agora, as maiores realizações do homem pareciam estar em
oposição direta a Deus, ou a esse Deus, o que agora governava Florença. Esse
Deus era tão obcecado pelo Diabo que parecia não ter tempo para a beleza ou
maravilha, e todo o nosso conhecimento e arte estavam condenados como
simplesmente outro lugar onde o mal se esconder. Portanto eu não mais sabia
que Deus era o verdadeiro: somente o que falava mais alto.
— Tudo o que sei é que não quero viver com um Deus que a mande, ou
mesmo meu marido, para o inferno sem escutar primeiro a sua versão da história
— disse eu calmamente.
Ela olhou para mim afetuosamente. Você sempre foi terna, mesmo em
pequena quando tentava ser dura. Por que se importa com ele?
— Porque... porque, de certa maneira, não acho que ele tenha controle
sobre isso. E porque... — fiz uma pausa. Acreditava realmente no que estava
para dizer? — Porque, de certa maneira, acho que ele se importa comigo.
Ela sacudiu a cabeça como se, de fato, fôssemos uma raça estrangeira que
não fazia sentido para ela.
— Embora eu não saiba se tem valor, talvez tenha razão — fez uma pausa
e, então, se levantou e me estendeu a mão.
— O que é?
— Tem uma coisa que deve ver. Eu estava esperando o momento certo.
E me conduziu para fora do meu quarto escuro e cavernoso, pelo patamar
de pedra até um quarto menor, que, em outra casa, estaria reservado para ser o
quarto de um bebê.
Tirou uma chave do bolso e a introduziu em um cadeado pesado, e a porta
se abriu.
Na minha frente, uma oficina recém-montada: uma mesa e uma pia de
pedra com alguns baldes do lado, e sobre a mesa perto da janela, uma série de
garrafas, caixas e pequenos pacotes, todos etiquetados, do lado de conjuntos de
pincéis de tamanhos variados. Perto, uma lousa de pórfiro para o moedor e dois
grandes painéis de madeira prontos para a aguarelha e a imprimadura e as
camadas de tinta.
— Ele mandou trazerem quando você estava doente. E eu trouxe isto da
sua arca — apontou para o manuscrito, cheio de orelhas, do livro de Cennini,
sobre cujas páginas eu tinha derramado lágrimas tão amargas por me oferecer
conhecimento sem os meios para transformá-lo em tinta. — Trouxe o certo?
Assenti com a cabeça, sem conseguir falar, e fui até a mesa, abrindo
algumas das caixas, deslizando meus dedos nos pós: o preto espesso, o amarelo
veemente do açafrão toscano, e o jenolim escuro com os verdes prometidos de
uma centena de árvores e plantas dentro de um fragmento de rocha. O impacto
de tantas cores foi como a primeira luz do sol na cidade gélida depois da neve.
Percebi em meu rosto um sorriso, e também lágrimas.
Se não podíamos ter amor, meu marido e eu, pelo menos eu teria a
alquimia.
Lá fora, o gelo derretia e transformava-se em fonte enquanto eu preparava um
banquete de cores, meus dedos ficando calosos com o moedor e escuros com as
manchas de tinta. Havia tanto a aprender. Erila ajudava-me, medindo e
misturando os pós e preparando a superfície da madeira. Ninguém nos
incomodava. À nossa volta, a casa dirigia a si mesma, e se havia comentários,
não seriam certamente mais danosos do que os pecados já sem controle. Precisei
de praticamente cinco semanas para transferir a minha Anunciação para o painel
de madeira. A minha vida passou a ser absorvida pelas pregas sinuosas das saias
de Nossa Senhora (nenhum lápis-lazúli, mas um matiz de azul resultante da
mistura do índigo com o alvaiade, o ocre escuro dos ladrilhos do piso e um halo
com folha de ouro para o meu Gabriel, em contraste luminoso com o escuro em
volta da moldura da janela além). No começo, minha mão estava muito menos
firme nas pinceladas do que com a pena, e a minha falta de jeito me fez, às
vezes, entrar em desespero, mas, aos poucos, a minha confiança foi aumentando,
o bastante para, quando estava terminado, querer começar de novo. E, dessa
maneira, esqueci a dor e a loucura de meu irmão e meu marido, e me curei.
Por fim, minha curiosidade retornou e comecei a contestar meu exílio
auto-imposto. Erila desempenhou bem seu papel, me trazendo fofocas, como
uma mãe pássaro regurgitando alimento em seus filhotes até estarem fortes o
bastante para capturar a sua própria presa.
Ainda assim, a nossa primeira saída juntas me chocou. Foi no fim da
primavera, quando a cidade estava sombria com a sua própria devoção. A batida
dos saltos das prostitutas tinha sido substituída pelo dique das contas do rosário,
e os únicos garotos nas ruas estavam lá para salvar as almas, pelo meio que
fosse. Na praça, passamos por uma gangue deles exercitando sua marcha:
crianças de oito, nove anos na milícia de Deus, encorajadas por seus pais, que
Erila disse estarem comprando fardos de pano branco para fazerem suas vestes
angelicais. Até mesmo os ricos tinham suavizado sua maneira de se vestir, de
modo que a paleta da cidade tinha branqueado, tornando-se monocromática.
Estrangeiros que passavam pela cidade para fazer comércio e negócios ficavam
perplexos com as mudanças, embora não pudessem decidir se estavam
realmente testemunhando o reinado de Deus na terra ou alguma coisa mais
sinistra.
O Papa, parece, não tinha essas dúvidas. Enquanto Florença defendia a
pureza, Erila contou os rumores de que o Papa Borgia tinha instalado a sua
amante no Palácio do Vaticano e estava distribuindo a dignidade de cardeal
como doces a crianças. Quando parou de fazer amor, começou a fazer a guerra.
O rei francês e seu exército fartaram-se em Nápoles e, exaustos para a Terra
Santa, retornavam para o norte. Mas Alexandre VI não era Papa de sofrer a
humilhação de uma segunda ocupação, mesmo que temporária, e tinha levantado
um exército a partir de uma liga de cidades-estados para expulsá-los de volta à
casa com o rabo entre as pernas.
Com uma exceção. De seu púlpito na Catedral, Savonarola declarou
Florença isenta de tal obrigação. O que era o Vaticano a não ser uma versão
mais rica e mais corrupta dos conventos e mosteiros que ele prometera purgar?
Durante aquelas longas noites em que a cidade havia se congelado e antes de a
luxúria de Cristoforo levá-lo de casa, ele e eu tínhamos conversado muito sobre
esse conflito. Como a devoção agressiva de Savonarola não somente ameaçava o
estilo de vida do Papa, como também a própria estrutura da igreja. A glória de
Deus não estava apenas no número de almas salvas, mas na influência exercida,
no poder das construções e da arte, na maneira como dignitários estrangeiros
olhavam admirados as pinturas pelos muros da Capela Sistina. Mas tal
maravilha precisava de renda para ser sustentada, e nenhum prior corcunda e
com um nariz de falcão, incitando a autoflagelação, teria como consegui-la.
Era o único desafio que talvez o detivesse. Nos últimos meses, a oposição
em Florença tinha desmoronado como casas de barro quando havia enchente. Eu
mal podia acreditar. Como uma antiga ordem podia ser eliminada tão
facilmente? Cristoforo tinha, então, dito algo sensato: assim como havia aqueles
que temiam e odiavam Savonarola, mas que nada fariam para detê-lo porque seu
poder era muito grande, tinha havido pessoas que tinham sentido o mesmo em
relação aos Medici, homens que tinham acreditado genuinamente que aquela
ditadura benigna — apesar de, ou até mesmo por causa de suas glórias — tinha
exaurido a força republicana e a pureza de Florença. Mas quando um estado é
tão confiante, é preciso homens violentos e estúpidos para resistirem contra ele.
A dissensão, argumentou ele, era uma arte melhor conduzida nas sombras.
No entanto, mesmo as sombras tinham-se silenciado. A Academia
Platônica, antes o orgulho e a alegria da nova erudição, tinha-se desintegrado,
um de seus expoentes, Pico Della Mirandola, era um franco partidário de
Savonarola, aguardando fazer seus votos, e Erila disse que corriam rumores de
que homens de famílias tão leais quanto os Rucellai estavam pendendo para as
celas em San Marco.
Essa intriga fez-me pensar de novo em minha própria família.
A nova moda da brancura daria pouco trabalho aos tonéis de tintura de
Santa Croce. Lembrei-me das crianças à margem do rio, com suas pernas finas e
peles decoradas. Tire a cor do tecido e tirará a comida da boca dos
trabalhadores. Apesar de toda a igualdade que Savonarola pregava, ele tinha
pouco conhecimento das maneiras como os pobres ficam mais ricos sem a
caridade. Essa também foi uma observação de meu marido. Tenho de admitir
que havia vezes, durante nossas conversas, em que eu pensava no bem que ele
teria feito ao estado se tivesse sido uma pessoa mais interessada em política do
que no contorno dos traseiros dos rapazes. Pois é, em meu rancor, estava, até
mesmo, aprendendo a linguagem de meu irmão.
Mas no fim, o que feria os tintureiros feria também meu pai, pois apesar
de viver melhor do que seus operários, nem mesmo seus ganhos durariam para
sempre.
"Seu pai gostaria que você aparecesse. Ele tem andado muito abatido por
causa dos negócios... Acho que o distrairia um pouco ser visitado por sua filha
preferida", tinha dito minha mãe.
Mesmo que ela tivesse me ofendido, eu não podia esquecer meu pai. E
assim que comecei a pensar neles, é claro que também pensei no pintor e em
como teríamos muito mais o que partilhar agora que eu começara a manejar o
pincel...
Vinte e Nove
OS ANTIGOS CRIADOS ME DERAM AS boas-vindas, como se eu fosse a
filha pródiga retornando a casa. Até mesmo Maria, com seus olhos redondos e
brilhantes e mente pequena, pareceu feliz em me ver. Sem dúvida, a casa ficara
mais silenciosa com a minha partida. Posso ter sido um problema, mas também
significava vida. Também eu deveria estar diferente de alguma maneira. Todos
que me viram disseram o mesmo. Acho que meu rosto mudou com a doença, a
sua forma começando a mostrar mais as maças do rosto. Perguntei-me o que
meu pai diria — sua filha caçula com o rosto de mulher e não mais de menina.
Bem, teria de esperar para saber. Ele e minha mãe estavam na estação de
águas e era improvável que retornassem antes de algumas semanas. Eu deveria
ter enviado uma mensagem avisando que iria.
A casa pareceu-me estranha, como um lugar que eu visitara somente em
sonho. Maria disse-me que Luca estava em casa almoçando, eu gostaria de
juntar-me a ele? Fiquei à entrada da sala de jantar. Ele estava recurvado sobre o
prato, enchendo seu rosto. Para um anjo, ele parecia horrível. Plautilla tinha
razão, o corte de cabelo era um desastre: fazia seu rosto parecer enorme, como
uma saliência de rocha porosa, os buracos na pele salpicados como cacimbas
minúsculas na superfície. Ele estava mastigando com a boca aberta e dava para
ouvir o ruído da comida sendo esmagada.
Fui até a mesa e me sentei do seu lado. Às vezes é melhor conhecer seu
inimigo.
— Olá, irmão — disse eu sorrindo. — Mudou suas roupas. Não sei se o
cinza é uma cor que lhe fica bem.
Ele fez uma carranca.
— Estou de uniforme, Alessandra. Deve saber que, agora, sou do exército
de Deus.
— Oh, isso é uma grande coisa. Mas acho que, ainda assim, deveria laválo de vez em quando. Quando o branco fica sujo demais acaba tendendo ao
preto.
Refletiu sobre as palavras por um momento, separando o sarcasmo do
significado. Se eu recebesse um florim pelo tempo perdido em lições esperando
Luca chegar a um lugar que eu já deixara, seríamos uma família mais rica do
que somos hoje.
— Sabe de uma coisa, Alessandra? Você fala demais. Será a sua danação.
A nossa vida não passa de uma curta caminhada para a morte e os que prestam
atenção ao som da própria voz, em vez da palavra do Verdadeiro Cristo,
apodrecerão no inferno. Seu marido veio com você?
Sacudi a cabeça.
— Pois então, você não deveria estar aqui. Conhece as novas leis do nosso
estado devoto tanto quanto eu. Mulheres sem seus maridos são recipientes de
tentação e devem ficar atrás de portas trancadas.
— Oh, Luca — disse eu. — Se pelo menos você tivesse essa facilidade
para se lembrar de coisas que importam.
— É melhor que tome cuidado com a sua língua, irmã. O Diabo está na
sua falsa erudição e a levará às chamas mais rápido do que uma mulher pobre
que nada sabe a não ser os Evangelhos. Agora, os seus preciosos antigos são
uma casta de proscritos.
Nunca vira meu irmão tão fluente. Ainda assim, ele estava impaciente
para transformar as palavras em atos. Pude perceber seus punhos apertando-se
sobre a mesa. A sua crueldade comigo em criança sempre fora mais física do
que a de Tomaso. E, de certa maneira, mais maliciosa. Minha mãe nunca o
pegava em flagrante e os machucados só apareciam depois. Tomaso estava
certo. Ele sempre tinha sido um brigão violento. A única diferença era que,
agora, sentia-se menos devedor de seu irmão mais velho. Embora os problemas
que a sua mudança de lealdade nos causaria ainda estivessem por vir.
Levantei-me da mesa, meus olhos dirigidos ao chão.
— Eu sei — eu disse com doçura. — Desculpe, irmão. Irei me confessar
quando voltar para casa. Pedir perdão ao Senhor.
Ele me olhou fixamente, desconcertado com minha submissão repentina.
— Hummm. Muito bem. Se pedir com humildade bastante, Ele a
perdoará.
Antes de eu chegar à porta, sua cara estava de volta no prato.
Quando perguntei sobre o pintor, Maria mostrou-se perturbada.
— Não o vemos mais. Ele vive na capela.
— O que quer dizer com vive na capela?
Ela sacudiu ligeiramente os ombros.
— Quero dizer... que ele agora vive lá. O tempo todo. Nunca sai.
— E os afrescos? Estão terminados?
— Ninguém sabe. Ele mandou os aprendizes embora no mês passado —
fez uma pausa. — Eles pareciam ansiosos por partir.
— Mas... achei que ele freqüentava a igreja. Que tinha se tornado um
seguidor. Foi o que minha mãe me disse.
— Eu... eu não sei disso. Acho que ele costumava ir à igreja. Mas agora
não. Ele não sai da capela desde o degelo.
— Desde o degelo? Mas isso foi semanas atrás. Por que meu pai não fez
nada?
— O seu pai... — interrompeu-se. — O seu pai não tem sido ele mesmo.
— O que quer dizer?
Ela relanceou os olhos para Erila.
— Eu... eu não posso dizer mais nada.
— E minha mãe?
— ...bem... está cuidando dele. E ainda há Tomaso e Luca. Ela não tem
tempo para tratar dos comerciantes. — Maria, assim como Lodovica, nunca
tinham sido do tipo de defender a elevação da arte. Muita confusão por causa de
alguns rabiscos coloridos. O melhor era dizer suas orações com os olhos
fechados e não deixar sua imaginação atrapalhar.
— Por que ela não me pediu ajuda? — eu disse calmamente, já sabendo a
resposta. Sim, tinha pedido, mas eu estava com tanta raiva que a afastei.
Maria estava olhando para mim, esperando para saber o que eu ia fazer.
Todos tinham me visto como o bebê da família; precoce, talvez, porém incapaz
de cuidar de mim mesma, muito menos de outra pessoa. O que teria acontecido
que me mudara tanto? Nem eu mesma sabia.
— Vou vê-lo — disse eu. — Onde estão as chaves?
— Não adiantam. Ele tranca por dentro.
— E a outra entrada, a da sacristia? — A mesma coisa.
— E a comida?
— Deixamos o prato do lado de fora uma vez por dia.
— Na porta principal ou na da sacristia?
— Na sacristia.
— Como ele sabe que está lá?
— Nós batemos.
— E ele sai?
— Não enquanto houver alguém. O cozinheiro esperou, uma vez. Mas ele
não apareceu. Agora, ninguém dá mais importância. Temos outras coisas a
fazer.
— Então, ninguém o tem visto?
— Não. Mas à noite, às vezes, ele faz ruído.
— Como assim?
— Bem, não sei, mas Lodovica, ela não dorme bem, disse que o ouve
chorar.
— Chorar?
E ela deu de ombros, como se não lhe coubesse dizer mais nada.
— E os garotos? Tentaram alguma coisa?
— O senhor Tomaso quase nunca está em casa. E o senhor Luca... bem,
suponho que ache que ele está na igreja.
O que, suponho, de certa maneira ele realmente estava.
Na cozinha do andar de cima, o cozinheiro mostrou-se fleumático em
relação ao assunto. Se o homem não queria comer, não queria comer. Nos
últimos quatro dias, a comida não tinha sido tocada.Talvez Deus o estivesse
alimentando. Afinal, João Batista tinha vivido de gafanhotos e mel durante
quarenta dias.
— Mas aposto que não era tão gostoso quanto a sua torta de pombo —
disse eu.
— A senhora sempre comeu bem — ele sorriu largo. — Aqui ficou muito
silencioso sem a senhora.
Permaneci por alguns instantes observando seus dedos cortando uma
dezena de dentes de alho mais rápido do que um agiota separando as moedas.
Minha infância passara-se toda ali, nos aromas e gostos dessa cozinha: pimenta
preta e vermelha, gengibre, cravo, açafrão, cardamomo e a doçura pungente do
nosso manjericão moído. Um império de comércio sobre o cepo.
— Prepare-lhe um prato com algo especial — disse eu. — Alguma coisa
cujo aroma lhe dê água na boca. Talvez ele hoje sinta fome.
— Talvez esteja morto.
Ele não disse isso cruelmente, e sim de um modo banal. Relembrei a
magnanimidade de meu pai com o pintor quando ele chegou naquela noite de
primavera há tanto tempo. Lembrei-me da excitação que todos sentimos: um
artista de verdade vivendo sob o nosso teto, capturando a nossa família para a
posteridade. Todos tínhamos visto isso como sinal do prestígio da família, uma
declaração do nosso status, nosso futuro. Agora, isso parecia passado.
Deixei Erila e os outros criados na cozinha, mexericando com o
cozinheiro, e desci a escada, atravessei o pátio do fundo, até os aposentos do
pintor. Não tinha idéia do que estava procurando. O trajeto foi dominado pela
lembrança de mim mais jovem, a garota pulando na minha frente, saindo
furtivamente da casa principal durante o calor da sesta para enfrentar o recémchegado em seu quarto, com seu entusiasmo e curiosidade sem limites. Que
conselho eu lhe daria hoje? Não conseguia mais ver em que ponto tudo tinha
começado a dar errado.
A porta do seu quarto estava fechada, mas não trancada. Dentro, a
atmosfera era bolorenta, um bafejo de negligência no ar. As figuras exuberantes
do Anjo e Maria na parede da câmara externa tinham escamado o reboco sem
preparo, como uma relíquia de uma época mais antiga. A mesa sobre a qual ele
mantinha seus esboços estava vazia e o crucifixo desaparecera da parede. No
interior do quarto, a cama era um chumaço de palha com um pano encardido
jogado em cima. Seus poucos pertences tinham ido com ele para a capela.
Não sei se teria me incomodado com o balde, se não fossem as manchas
de fuligem em cima. Estava no canto quando me virei para sair, e, de início,
achei que as marcas poderiam ser algum tipo de pintura tosca: uma massa de
sombras escuras espiraladas subindo pela parede, continuando no teto. Mas
quando me aproximei e coloquei minha mão sobre elas, minha palma ficou
coberta de fuligem, e, portanto, dirigi minha atenção para o balde posicionado
embaixo.
O fogo não tinha conseguido destruir o crucifixo. Embora ele estivesse
partido em duas partes, a madeira não fora atingida pelo fogo, e era difícil dizer
se ele o teria quebrado primeiro e depois tentado incinerá-lo, ou se, irritado pelo
fracasso das chamas, o teria tirado e batido na parede. A cruz estava quebrada
em dois lugares e as pernas de Cristo tinham-se partido, os pregos ainda presos
nos pés. A parte superior do torso pendia dolorosamente do T da cruz. Segurei-o
com cuidado. Mesmo danificada, a escultura tinha paixão.
Parte da razão para não ter-se inflamado foi o fogo no fundo do balde não
ter sido forte o bastante. Ele o atiçara com papel, mas desatentamente, as folhas
muito juntas para permitir a entrada de ar. A impressão era de pressa com aquilo
tudo, como se alguma coisa ou alguém estivesse beliscando seus calcanhares.
Com as mãos em concha, retirei os restos carbonizados. As páginas no fundo se
desfizeram em minhas mãos, pedaços de cinzas soltando-se e flutuando no ar
como neve cinza, seu conteúdo perdido para sempre. Mas as páginas mais em
cima estavam apenas parcialmente queimadas ou, em alguns casos,
simplesmente carbonizadas nas bordas. Levei-as para a câmara externa, onde
havia mais luz, e as coloquei delicadamente sobre a mesa.
Eram de dois tipos: desenhos de mim e desenhos dos corpos.
Os meus estavam em toda parte, esboços para a Madona, a minha face
repetida uma, duas dúzias de vezes, variações do mesmo olhar grave, irônico,
que eu não reconhecia como meu, creio que, em parte, porque nunca fiquei tão
quieta e silenciosa para mim mesma. Ele tinha procurado o ângulo certo para a
minha cabeça, o ponto focal de interesse fora do quadro, e, em um dos desenhos,
eu olhava diretamente para o observador. Uma questão de somente alguns graus
no desvio dos olhos, mas o efeito tinha sido enorme. Essa jovem parecia tão —
sei lá — tão agressiva, quase como se estivesse desafiando o observador, ao
invés de o estar acolhendo. Acho que se o rosto não fosse o meu, seu olhar seria
quase impróprio.
Depois, vieram os corpos. Primeiro, o homem sem estômago, que eu já
tinha visto; uma meia dúzia de esboços com suas entranhas mais expostas. Em
seguida, outro torso: esse tinha sido estrangulado, o corpo jazia no solo, como se
tivesse acabado de ser morto, a tira ainda enterrada em seu pescoço, e o rosto
intumescido e ferido, com um rastro do que poderia ter sido fezes pingando por
suas pernas.
Depois disso, havia as mulheres. Uma era velha, de novo nua, os
músculos de sua barriga frouxos e vergados, do lado, com um braço dobrado
sobre a cabeça, como se tentasse se proteger da morte. Havia ferimentos por
todo seu corpo, e o outro braço estava em um ângulo estranho, o cotovelo
apontando para o lado errado, como uma boneca quebrada. Mas foi a mais
jovem a que mais me assustou.
Estava estendida de costas, nua, e eu já a tinha visto também. Seu corpo
era o da jovem deitada no desenho para o afresco da capela. Estava sobre uma
maca esperando o milagre de Deus que a levantaria dos mortos. Mas ali não
haveria essa ressurreição. Pois nesses esboços, além de estar morta, ela estava
mutilada. Seu rosto tinha sido captado em um ricto de agonia e terror, e toda a
parte inferior de seu estômago estava aberto e exposto. No meio da mixórdia de
pedaços e sangue, estava a forma pequena, mas inconfundível, de um feto
prematuro.
— O cozinheiro disse que a comida está pronta, senhora Alessandra. A voz de
Maria fez meu coração chocar-se em minha caixa torácica.
— Eu... estarei lá em um instante — disse eu, metendo apressadamente as
folhas de papel em minhas saias.
Lá fora, ao sol, Maria e Erila ficaram me esperando. Erila lançou-me um
olhar claramente desconfiado. Recusei-me a olhar para ela.
— O que descobriu lá? — perguntou quando subíamos a escada estreita
que levava à porta da sacristia, ela seguindo na frente, segurando a bandeja.
— Bem... alguns esboços, só isso.
— Espero que saiba o que está fazendo — disse ela de maneira
impudente. — Metade da criadagem acha que está enrolado em seu próprio
carvão. Disseram que passou quase todo o inverno desenhando as carcaças dos
animais que jogavam fora. Na cozinha, acham que ele tem olhos do Diabo.
— Talvez — disse eu. — Mas, ainda assim, não podemos deixá-lo morrer
de fome.
— Bem, contanto que saiba que não entrará lá sozinha.
— Não tem problema. Ele não vai me machucar.
— E se estiver enganada? — disse ela com firmeza, virando-se para mim
quando chegamos ao topo da escada. — E se tem alguma coisa errada com a sua
cabeça? Viu-os nas ruas. Deus em excesso provoca febre cerebral. Só porque a
seduziu com seu pincel não significa que não seja perigoso. Sabe que acho? Que
não é da sua conta. Agora você tem uma casa sua e problemas o bastante para
ocupar um exército. Deixe isso para outra pessoa. Ele é só um pintor.
Estava assustada por mim, é claro, lembrando-se da noite da minha
própria loucura quando, por um instante, meu sangue tinha-se tornado a minha
tinta. E porque ela não era nenhuma idiota, a minha Erila, levei em consideração
o que disse. É claro que o sofrimento e o terror desse rosto jovem tinham saído
da página e se aferrado ao meu cérebro. Que ela e os outros tinham sido pintados
da vida real não havia sombra de dúvida. Ou da morte. Mas a verdadeira questão
era onde ele tinha estado quando um estado se transformara no outro. Pensei de
novo no misto de pânico e doçura nele. Relembrei meu sarcasmo com ele
naquele primeiro dia e a sua reação de fúria desajeitada. Lembrei-me também de
sua revelação lenta e tímida, quando posei para ele, e a maneira como falou de
Deus introduzindo-se em suas mãos quando era criança. De alguma maneira eu
sabia que, por mais perdido e louco que pudesse estar, não me faria mal.
E quanto à minha própria casa? Bem, não havia como me aquecer lá. Eu
era uma forasteira. Seria melhor para mim perseguir companheiros com as
mesmas idéias para aliviar a minha solidão.
— Eu sei o que estou fazendo, Erila — disse com uma determinação
tranqüila. — Chamo-a, se precisar. Prometo.
Ela estalou a língua, como sempre fazia, mania que eu adorava, pois dizia
tanto com tão pouco, e soube que ele deixaria eu ir.
Ela pôs a bandeja perto da entrada, de modo que o cheiro da carne
recentemente preparada passasse por debaixo da madeira. Isso trouxe de volta o
eco de mil manhãs da minha infância, quando jejuava para a missa, sentindo-me
culpada porque o prospecto do corpo de Deus em minha língua era menos
excitante do que o aroma da carne assada que vinha da cozinha quando eu
chegava em casa. Como seria senti-lo depois de dias sem comer, eu não podia
sequer imaginar.
Recuei e fiz um sinal para ela.
Ela bateu com força.
— Sua comida está aqui — disse com uma voz retumbante. — O
cozinheiro disse que se não comê-la, vai parar de enviá-la. E pombo assado,
legumes com ervas e uma jarra de vinho. — Ela bateu de novo. — É a última
chance, pintor.
Então, fiz outro sinal, e ela começou a descer ruidosamente, pisando
pesado nas pedras. Embaixo, parou e olhou para mim.
Esperei. Por um tempo, nada aconteceu. Então, finalmente, ouvi um ruído
de pés se arrastando em algum ponto atrás da porta. A tranca estalou e a porta
abriu-se um pouquinho. Uma figura maltrapilha saiu e curvou-se para pegar a
bandeja.
Dei um passo à frente, saindo das sombras, exatamente como tinha feito
naquela noite, quando seus desenhos se espalharam pelo chão. Tinha-se
assustado comigo então, e agora de novo. Recuou e tentou fechar a porta, mas
estava segurando a bandeja em um ângulo estranho, e a sua coordenação motora
parecia ter desaparecido. Cravei meu pé na abertura e comecei a forçar minha
entrada. Ele empurrou de volta, mas embora fosse eu que estivera doente, ele
estava com menos forças, e a porta cedeu com meu peso. Quando ele cambaleou
para trás, e a bandeja e seu conteúdo voaram, e um arco de vinho tinto borrifou
as paredes. A porta bateu atrás de mim.
Nós dois estávamos dentro.
Trinta
ELE DEIXOU A BANDEJA ONDE TINHA CAÍDO, no escuro, e afastou-se,
às apalpadelas, como uma barata, passando pela sacristia até o corpo da capela.
Peguei o prato e salvei o que pude da comida. O vinho perdera-se como tinta de
parede.
Então, fui para perto dele.
O cheiro ali dentro era terrível, excremento e urina. Mesmo quando não se
come, continua-se defecando e urinando, pelo menos durante algum tempo.
Receosa com onde pôr meus pés, hesitei até meus olhos se acostumarem com o
escuro. O altar estava isolado, o andaime ainda no lugar, mas lonas e papéis por
toda parte. As mesas estavam dispostas em ordem: pó de tinta, moletas e
almofarizes, pincéis, tudo preparado. Do lado deles, estava um grande espelho
côncavo semelhante ao que meu pai tinha em seu gabinete, que melhor refletia o
que restava da luz do dia, quando a sua vista turvava. Em outro canto, havia
outro balde com uma tampa de madeira improvisada. Presumi que o cheiro
viesse de lá.
Estava mais frio do que o resto da casa. E úmido, o tipo de umidade que
parece filtrar-se da pedra, quando não há corpos humanos para aquecê-la. Ele
havia sido criado no meio da pedra e da luz fria. O que meu pai tinha dito sobre
ele? Que havia pintado todo o espaço à sua volta, até não restar nenhuma parede
vazia. Mas agora não. Não ali. Ah, afora o altar isolado, não havia nada. Eu me
perguntei de novo o que haveria por trás das lonas.
Agora, eu o vi. Estava sentado, recurvado, em um canto de uma parede.
Não estava olhando para mim. Parecia não estar olhando para nada. Parecia um
animal acuado pelo caçador. Aproximei-me bem devagar. Apesar de minhas
palavras corajosas, eu estava apavorada. Erila tinha razão. Com tanta religião lá
fora, a loucura santa estava aumentando: pessoas que viviam tanto com Deus,
que não mais sabiam conviver com os humanos. Esbarrávamos com elas nas
ruas, às vezes, falando sozinhas, rindo, chorando, sua vulnerabilidade vibrando
como um halo à sua volta. Para a maioria, eram almas benignas, como eremitas
perdidos. Mas não. Quando Deus inflamava-se dentro delas, podiam se tornar
muito assustadoras.
Parei a alguma distancia à sua frente. A Madona com o meu rosto e os
corpos com as entranhas expostas desemaranhando-se entre nós. Quando abri a
boca, ainda não sabia que palavras emitiria.
— Sabe como o chamam na cozinha? Uccelino. Passarinho. Como o
pintor, em reverência ao seu talento, mas também porque têm medo de você.
Acham que espera a noite cair para voar pela janela. O cozinheiro está
convencido de que é por isso que não come a sua comida. Porque achou uma
melhor em outro lugar. Sente-se ofendido, como qualquer bom cozinheiro se
sentiria.
Não deu sinal de que me ouvia. Balançava-se ligeiramente, abraçando a si
mesmo, as mãos enrascadas sob as axilas, os olhos fechados. Cheguei mais perto
dele. Não parecia justo, estando tão mais no alto que ele. Sentei-me no chão,
sentindo a pedra fria pelas pregas de meu vestido. Ele parecia tão sozinho e
solitário, que quis aquecê-lo com a companhia das palavras.
— Quando eu estava crescendo e só se falava da beleza da cidade,
contava-se uma história sobre um artista que trabalhou para Cosimo de Medici.
Fra Filippo era o seu nome — e falei com a voz suave e tranqüila, como me
lembrava que Erila fazia para me adormecer em pequena. — Você viu seu
trabalho. Ele pintou a sua Madona com tal serenidade que a impressão é que ele
molhava o pincel no próprio Espírito Santo. Afinal, ele era um monge. Mas não.
O nosso bom irmão estava tão cheio de pensamentos carnais que interrompia a
sua pintura e errava pelas ruas, a qualquer noite, abordando qualquer mulher que
o aceitasse. O grande Cosimo de Medici ficou tão frustrado, tanto por suas
pinturas ficarem inacabadas quanto por seus pecados, creio eu, que passou a
trancá-lo em seu estúdio à noite. Mas na segunda manhã, encontrou a janela
aberta, os lençóis amarrados um no outro, e Fra Filippo tinha desaparecido.
Depois disso, devolveu-lhe a chave. O que quer que Filippo precisasse fazer
para a sua arte, ele aceitaria, mesmo que não compreendesse ou aprovasse.
Fiz uma pausa. Apesar de nada óbvio ter-se modificado nele, percebi que
estava escutando. Eu podia senti-lo em seu corpo.
— Ter um fogo desse dentro de si torna-se difícil às vezes. Acho que faz
com que a pessoa se comporte de maneira incompreensível. Depois que passei
por uma crise terrível, me perguntei por que tinha feito certas coisas. É que
pareceram necessárias no momento. E eu não tinha talento algum. Não
comparado ao seu.
Percebi que todo o seu corpo tremia. Tinha havido momentos — como na
primeira tarde em seu quarto — em que a sua simples presença física tinha me
feito tremer, mas não dessa maneira. Esse era um tipo diferente de medo. Pus o
que sobrara do jantar entre nós e empurrei o prato para ele.
— Por que não come um pouco? Está gostoso.
Ele sacudiu a cabeça, mas seus olhos piscaram. Ainda não estava
preparado. Tive um rápido vislumbre de seu rosto. Sua pele era do mesmo
branco da cerâmica Della Robbia. Lembrei-me dele rastejando pelo teto,
enrubescido pelo calor das chamas, enquanto esboçava a grade que se tornaria o
paraíso. Tinha bastante energia e visão então. O que acontecera com o paraíso?
— Provavelmente falei mais com você do que com qualquer outra pessoa
nesta casa — disse eu. — No entanto ainda nem sei seu nome. Tem sido "o
pintor" há tanto tempo, que é assim que penso em você. Não sei nada de você.
Exceto que tem divindade em seus dedos. Mais do que eu jamais terei. Senti
tanta inveja de você que acabei sem perceber seu sofrimento. Nesse caso, sinto
muito.
Esperei. Nada.
— Está doente? É isso? A febre voltou?
— Não — e falou tão baixo que quase não o ouvi. — Não estou quente.
Estou frio. Tão frio.
Estendi a mão para tocá-lo, mas ele se jogou para trás. E ao fazer isso,
percebi um lampejo de dor atravessar seu rosto.
— Não entendo o que aconteceu com você — disse eu com calma. —
Mas seja o que for, posso ajudar.
— Não. Não pode me ajudar. Ninguém pode me ajudar. — Então, o
silêncio, e, dessa vez, um sussurro. — Fui abandonado.
— Abandonado? Por quem?
— Por Ele. Por Deus.
— O que quer dizer?
Mas ele apenas sacudiu a cabeça violentamente e se abraçou com mais
força ainda. Então, para o meu horror, começou a chorar: sentando-se ali,
paralisado com as lágrimas correndo por sua face, como aquelas estátuas
milagrosas da Virgem que choram sangue como uma maneira de atrair para a fé
os que duvidam.
— Oh, lamento tanto.
E agora, pela primeira vez, olhou diretamente para mim, e quando fixei
seus olhos, pareceu que ele, o pintor, esse jovem tímido vindo do Norte não
estava mais lá, e em seu lugar, havia apenas um poço fundo de tristeza e terror.
— Oh, conte-me — disse eu. — Por favor. Não há nada tão terrível que
não possa ser contado.
Atrás de mim, a porta se abriu e ouvi passos leves. Seria Erila. Eu estava
ali há tempo demais e ela devia estar fora de si de preocupação.
— Agora não... — murmurei sem me mover.
— Mas...
— Agora não.
— Seus pais estão para chegar.
Era uma boa mentira, tanto para aquecê-lo quanto para me ajudar. Inclinei
a cabeça para ela e o olhar que me lançou continha um sermão. Assenti
levemente com a cabeça, entendendo seu conselho.
— Então, saia, por mim. Por favor.
Virei-me. Seus passos retrocederam e a porta foi fechada.
Ele não tinha se movido. Arrisquei. Tirei os esboços de dentro do meu
vestido e dispus alguns deles no chão, perto do prato, de modo que as tripas do
homem ficassem do lado dos restos de carne.
— Sei há muito tempo — disse eu baixinho. — Estive no seu quarto. Vi
todos eles. É isso que não pode contar?
Estremeceu.
— Não é o que está pensando — a sua voz foi um rosnado repentino. —
Não lhes fiz mal. Não machuquei ninguém... — interrompeu-se.
Dessa vez fui em sua direção, e se não era a coisa certa a fazer, então não
seria eu a julgá-la. Estava vivendo em um mundo em que um marido entra em
uma mulher como se ela fosse uma vaca, e homens se beijam e se penetram com
uma paixão e devoção que fariam os santos corarem. Não existia mais um
comportamento correto. Pus meus braços, delicadamente, em volta de seu corpo.
Ele emitiu um gemido, se bem que de dor ou desespero eu não sabia. Sua pele
estava fria e retesada como a de um cadáver, e ele estava tão magro que eu podia
sentir cada osso de seu corpo.
— Conte-me, pintor, conte-me...
A voz dele, quando falou, soou grave e hesitante, o penitente buscando as
palavras certas.
— Ele disse que o corpo humano era a maior criação de Deus e que, para
entendê-lo, tinha-se de conhecer sob a pele. Somente dessa maneira poderíamos
aprender a dar-lhe vida. Eu não era o único. Havia seis ou sete de nós.
Encontrávamo-nos à noite em uma sala no hospital de Santo Spirito, do lado da
igreja. Os cadáveres pertenciam à cidade, ele disse, pessoas que não tinham
família para reclamá-los, ou criminosos, corpos vindos dos cadafalsos. Ele disse
que Deus entenderia. Porque a sua glória viveria em nossa arte.
— Ele? Quem é esse "Ele"?
— Não sei seu nome. Era jovem, mas não havia nada que não conseguisse
desenhar. Uma vez, levaram um garoto, de quinze ou dezesseis anos. Havia
morrido de alguma coisa no cérebro, mas seu corpo estava perfeito. Ele disse
que o menino era jovem demais para ter sido corrompido. Disse que seria o
nosso Jesus. Eu ia pô-lo no afresco. Mas antes que pudesse pintá-lo, ele retornou
com a sua Crucificação. Foi esculpida em cedro-branco. O corpo era tão
perfeito, tão vivo, dava para sentir cada músculo, cada tendão. Tive certeza de
que era Cristo. Eu não podia...
Interrompeu-se de novo. Soltei-o e recuei para poder olhá-lo, avaliar o
dano que essas palavras tinham lhe causado.
— E quanto mais Deus fluía por ele mais o extenuava — disse eu
calmamente. — Foi isso o que aconteceu?
Ele negou com a cabeça.
— Você não entende... você não entende. Eu não deveria ter ido lá, nunca.
Era tudo uma mentira. Não era Deus naquela sala, e sim outra coisa. O poder da
tentação. Depois que o exército chegou, Ele foi embora. Desapareceu. Os corpos
pararam de chegar. A sala foi fechada. Havia rumores de corpos sendo
encontrados na cidade. Uma garota e seu útero arrancado, o casal, o homem
eviscerado. Nossos corpos... não sabemos... isto é... eu não sabia... — sacudiu a
cabeça. — Não havia Deus naquela sala — repetiu, dessa vez com raiva. — Era
o Diabo, entende? O frei diz que quanto mais pintamos o homem em vez de
Deus, mais perdemos a sua divindade. O corpo é o Seu mistério. A Sua criação.
Não cabe a nós compreendê-lo, somente adorá-lo. Cedi à tentação para
conhecer. Desobedeci e agora Ele me abandonou.
— Oh, não, não... essa é a voz de Savonarola falando, não a sua — disse
eu. — Ele quer que as pessoas tenham medo, que achem que Deus as
abandonará. Assim, ficam sob seu controle, Esse pintor, quem quer que fosse,
estava certo. Como pode ser maligno compreender o prodígio de Deus?
Mas ele não respondeu.
— E mesmo que fosse, Ele não o abandonaria por uma coisa assim —
encorajei-o, aterrorizada com a possibilidade de perdê-lo novamente. — Seu
talento é precioso demais para Ele.
— Você não entende — repetiu e fechou os olhos com força. — Acabou,
desapareceu... Olhei fixo para o sol e meus olhos queimaram. Não posso mais
pintar.
— Não é verdade — disse eu baixinho, estendendo minhas mãos para ele.
— Vi aqueles desenhos. Contêm verdade demais para serem ímpios.
Você está só e perdido e foi tomado pelo desespero. Tudo o que precisa é
acreditar que voltará a enxergar e conseguirá. Suas mãos farão o resto. Dê-me
suas mãos, pintor. Dê-me suas mãos.
Ele ficou se balançando e choramingando por um momento, então,
vagarosamente, soltou-as de seu corpo e estendeu-as a mim, as palmas para
baixo. Segurei-as e, ao fazer isso, ele deu um grito de dor, como se o meu toque
o tivesse queimado. Passei a segurá-lo pelas pontas dos dedos, frios como gelo,
e virei suas mãos bem devagar.
— Oh. — Toda a minha delicadeza nunca seria o bastante. No meio de
suas palmas havia dois grandes ferimentos, buracos escuros de sangue
coagulado, a carne inchada ao redor de onde a infecção havia se instalado. Os
buracos onde os pregos teriam penetrado. Pensei em São Francisco acordando
em sua cela de pedra pleno do êxtase de Deus. E na minha própria intoxicação
naquela noite, quando a dor do meu corpo tinha parecido quase um alívio à dor
da minha mente. Mas a minha havia sido uma automutilação acidental. Nem tão
profunda nem tão perdida quanto essa.
— Oh, meu Deus — murmurei. — Oh, meu Deus. Que violência fez a si
mesmo?
Ao dizer isso, senti desespero, como uma névoa venenosa filtrando-se
nele, de novo, enchendo sua boca e seus ouvidos, asfixiando seu espírito com
seus vapores. E agora fiquei realmente com medo, pois não podia mais saber ao
certo se não vazaria também para mim.
Evidentemente, eu ouvira histórias de melancolia. Como até mesmo
homens pios às vezes se perdem em sua jornada para Deus, e se entregam à
autodestruição para aliviar o sofrimento. Um dos meus primeiros preceptores
tinha caído nesse poço, devastado pela falta de esperança e sentido, até minha
mãe, tão generosa, dispensá-lo, receosa do impacto de sua tristeza sobre as
nossas mentes jovens. Quando lhe perguntei sobre ele, ela respondeu que alguns
acreditavam que essa tristeza era obra do Diabo, mas que ela acreditava ser uma
doença da mente e dos humores, e que apesar de isso, geralmente, não matar,
debilitava a alma por muito tempo, e não era fácil de curar.
— Tem razão — disse eu calmamente, afastando-me dele, agindo mais
por instinto do que pela razão. — Você pecou. Mas não da maneira que imagina.
Isso não é verdade, é desespero, e desespero é um pecado. Não consegue
enxergar por que apagou a luz dentro de você. Não pode pintar porque se deixou
seduzir pela autodestruição. Levantei-me.
— Quando fez isso a si mesmo? Até onde chegou com os afrescos? —
Falei e minha voz foi veemente.
Aprumou o corpo por um momento, os olhos no chão.
— Se não responder, descobrirei sozinha.
Puxei-o para que ficasse em pé. Rudemente. Sei que o machuquei.
— Você é egoísta demais, pintor. Quando tinha talento, não o partilhou.
Agora que não tem, sente quase orgulho disso também. Você não abraçou o
desespero simplesmente, você pecou contra a esperança. O Diabo o merece.
Conduzi-o pela capela até a parede do lado esquerdo do altar. Ele foi sem
resistir, como se seu corpo estivesse mais sob o meu controle do que sob o seu
próprio, se bem que fosse o meu próprio coração que eu sentisse pulsando em
meu peito.
As lonas cobrindo as paredes e o teto estavam conectadas, separadamente,
por cordas duplas a uma estaca firmada no chão.
— Vamos. Mostre-me essas obras esquecidas por Deus — disse eu. —
Quero ver.
Ele olhou diretamente para mim por um instante. E nesse instante, percebi
algo debaixo de seu desespero, uma espécie de reconhecimento, quase a
compreensão de que, se não houvesse mais ninguém, eu teria de fazer. Virou-se
para as cordas e, tirando-lhes os nós, deixou a primeira lona escorregar.
Não havia muita luz nesse dia. Por isso é difícil explicar adequadamente
por que o impacto foi tão grande. É claro que eu estava esperando algo diferente,
alguma coisa que causasse perplexidade, algo ruim ou profano, e havia me
preparado para o choque. Mas, em vez disso, fui abalada pela beleza.
Os afrescos recém-pintados refulgiam a parede: a vida de Santa Catarina
dividida em oito partes, sua figura serena, graciosa, movendo-se em uma cor
vibrante por seus primeiros anos, a casa de seu pai e seus milagres no campo.
Como a sua Virgem na parede, ela parecia conter não somente a paz de Deus,
como também uma doçura humana exuberante só sua.
Olhei para ele, mas ele não conseguiu sustentar meu olhar. O breve
momento de conexão havia escapado e ele estava, de novo, sob o domínio de
seus próprios Demônios. Fui sozinha para o altar seguinte e soltei as cordas,
fazendo a lona deslizar devagar até o chão. A segunda parede acompanhava-a de
seus triunfos até a sua morte. Era ali que a heresia começava a exsudar.
Como toda boa florentina, eu sabia a história de mil santas, tinha lido as
parábolas de suas tentações, sua bravura e o martírio final. Algumas iam mais ou
menos de bom grado, nem todas com um sorriso beatífico no momento em que o
fogo inflamava ou as facas afiavam-se, mas em algum lugar, em alguma forma,
quando a morte chegava, irradiavam uma certeza do céu em seu sofrimento. Mas
essa Santa Catarina não parecia tão certa de nada. Em sua cela, aguardando a
execução, ao invés de serenidade, havia agitação, e, na cena final, onde, tendo
destruído a roda, ela é arrastada em direção à espada do carrasco, a face que
olhava acusadoramente o espectador era iluminada com um medo palpável,
lembrando-me a agonia na garota do desenho.
A última lona cobria tanto a parede do altar quanto o telhado abobadado.
Ao caminhar em direção ao molinete que o firmava, senti o suor na base de meu
pescoço.
Levantei a cabeça. A parede do fundo oferecia uma hoste de anjos, suas
asas abrindo-se em uma glória plúmea tirada dos pombos e pavões e de mil
pássaros do paraíso imaginário, os olhos erguidos para o Pai Nosso que está no
céu.
E ali estava, no meio do teto, no trono dourado, refulgindo e glorificado,
cercados pelos santos, plenos de sua própria luz sublime — o Diabo, seu corpo
preto peludo espalhando-se no trono, suas três cabeças explodindo de seu
pescoço, cada uma com a sua própria auréola de asas de morcego, e em suas
presas, as figuras de Cristo e Maria, enfiadas pela metade em sua boca, entre
seus dentes semelhantes aos de um cão.
Trinta e Um
NÓS O LEVAMOS NA CARROÇA de meu pai. Ele não resistiu. Qualquer que
fosse a luta que andara travando, tinha se encerrado, e parecia grato por qualquer
demonstração de afeto. Quando Maria percebeu o que estávamos fazendo, acho
que quis me deter, mas ela já não tinha a mesma autoridade, e só lhe restava
olhar e se queixar. Quando me perguntou, como fez repetidamente, o que estava
acontecendo, respondi-lhe a mesma coisa que dissera na carta que deixei para a
minha mãe: que tinha encontrado o pintor doente, na capela, e o estava levando
para a minha casa, para cuidar dele.
De qualquer maneira, era a verdade. Que sofria de algum tipo de
enfermidade era óbvio a qualquer um que o visse quando o ajudamos a sair da
capela e descer para o pátio. Parecia que ia se esfacelar quando o sol o atingiu;
um tremor terrível percorreu seu corpo e seus dentes bateram até dar a impressão
de que chocalhariam os ossos de seu crânio. Na metade do caminho, desmaiou, e
teve de ser carregado nos últimos lances de escada.
Nós o envolvemos em mantas e o colocamos delicadamente na parte de
trás da carroça. Antes de o removermos da capela, Erila e eu suspendemos de
novo as lonas, trancamos as duas portas e levamos as chaves conosco. Se
chegou a achar alguma coisa do que viu nas paredes e no teto, não me disse
nada.
Quando ultrapassamos os portões, já era quase noite. Sentei-me na parte
de trás da carroça, Erila a conduzindo. Ela estava nervosa. Acho que foi a
primeira vez que a vi dessa maneira. Era, disse ela, uma má hora para estar na
rua. Ao entardecer, os jovens guerreiros de Savonarola saíam para impor o seu
toque de recolher, enxotando homens e mulheres duas vezes mais velhos do que
eles pela cidade, para as suas casas, para longe das tentações das ruas. E como
tinham assumido a tarefa de dividir os adeptos dos tentados, e ajudar os últimos
fazendo com que sua jornada para casa fosse mais rápida e mais dolorosa, era
preciso ter uma boa história pronta para qualquer eventualidade.
Esbarramos com eles ao dobrarmos a esquina pelas grandes alas do
Palazzo Strozzi, um edifício que teria sido o maior palácio da cidade se não
tivesse sido deixado inacabado desde a morte de Filippo Strozzi. Era uma morte
que Savonarola tinha usado freqüentemente como material nos sermões, para
ilustrar o absurdo de valorizar a riqueza mais do que a promessa da vida eterna.
Nesse meio-tempo, a cidade se habituara tanto com a fachada inacabada do
palácio, que não conseguia mais imaginar como seria se chegasse a ser
completada.
Tinham usado a grande pedra angular como seu posto de fronteira
temporário. Havia cerca de uma dezena deles no outro lado da rua, suas túnicas
encardidas e sua semelhança com anjos distintamente artificial. O mais velho
deles — seria esse o papel de Luca? — destacou-se do resto e ergueu a mão na
nossa frente. Erila parou a carroça, tão perto que o bafo dos cavalos fumegou
seu rosto.
— Boa noite, florentinas devotas. O que as traz às ruas ao escurecer?
Erila curvou a cabeça, como fazia quando desempenhava o papel de
escrava.
— Boa noite, senhor. O irmão de minha ama está doente, e o estamos
levando para casa para ser tratado.
—Tão tarde e sem acompanhante.
— O condutor de meu amo está nas orações de abstinência no outro lado
da cidade. Partimos com a luz do dia, mas a roda da carroça atolou em um sulco
e tivemos de esperar que fosse empurrada. Já estamos quase em casa.
— Onde está o inválido?
Ela apontou para trás da carroça.
O líder fez sinal para dois da turma e eles se aproximaram de onde eu
estava com o pintor oculto sob a manta, adormecido em meu colo. Um deles
puxou as cobertas de seu corpo e o outro cutucou-o com uma vara.
Ele acordou com um susto, saindo do meu colo e debatendo-se
freneticamente, afastando-se deles para o fundo da carroça.
— Não se aproximem, não se aproximem de mim. Tenho o Diabo em
mim. Ele tem Cristo entre os dentes e engolirá vocês também.
— O que ele diz? — O garoto, que tinha o nariz tão pontiagudo quanto a
vara, preparou-se para outra cutucada.
— Não entende a língua dos santos quando a ouve? — disse eu
bruscamente. — Ele fala, em latim, da misericórdia de Cristo e do amor do
nosso Salvador.
— Mas o que ele disse do Diabo?
É claro: graças a Savonarola, seu nome era mais famoso do que o de
Deus.
— Ele diz que a misericórdia e amor de Cristo expulsará o Diabo de
Florença com a ajuda dos pios. Mas não podemos perder tempo. Meu irmão
segue o Frei. Está destinado a receber os paramentos em San Marco. A
ordenação está planejada para a próxima semana. Por isso temos de levá-lo para
casa e curá-lo antes da cerimônia.
O garoto acenou. Aproximou-se e a ponta de seu nariz registrou a
negligência do pintor com seu corpo.
— Nossa! Ele não me parece muito com um frei. Olhem para ele... está
imundo.
— Não está doente, está bêbado — disse o outro e percebi o líder vir em
nossa direção.
— Mantenha-o quieto, minha ama — soou a voz de Erila, impaciente e
alto na frente da carroça. — Se ele se move, as bolhas podem estourar. E o
contágio é fácil com o pus.
— Bolhas? Ele está com bolhas? — O garoto com a vara deu rapidamente
um passo para trás.
— Por que não disse logo? — O líder assumiu a decisão, como todo bom
líder faz. — Fiquem longe dele. Todos vocês. E você, mulher... leve-o daqui.
E se certifiquem de que não se aproxime de nenhum mosteiro até estar
curado.
Erila bateu as rédeas com força e a carroça deu um solavanco à frente, a
barricada se desfez diante da ameaça de contágio. O pintor se enroscou de volta
sob as mantas, resmungando por causa da nossa pressa desajeitada. Esperei até
estarem fora de vista e subi ao assento traseiro.
— Ei, cuidado com a sua pele — disse ela quando deslizei para o seu
lado. — Não quero nada de pus em mim.
— Bolhas! — ri. — Desde quando o nosso exército devoto tem medo de
alguns furúnculos?
— Desde que a infecção chegou — sorriu. — O seu problema é que não
sai muito. Se bem que quem sai começa a se arrepender. Ninguém sabe de onde
veio. Os boatos são de que os franceses a deixaram nos buracos em que
verterem seu sumo. Começou com as prostitutas, mas começa a se espalhar.
Quando eram somente as mulheres infectadas, era conhecida como a doença do
Diabo, mas agora que os fiéis começam a empolar, os rumores são de que Deus
está testando a sua paciência como... qual foi aquele homem da Bíblia que
mandou as pragas...
— Jó — disse eu.
— Jó. É esse. Se bem que aposto que Jó nunca teve nada parecido a essas
Bolhas Francesas: grandes bolas de calor e pus, que doem pra diabo e deixam
cicatrizes feias. Pelo que ouvi, está mantendo suas vítimas na cama com muito
mais sucesso do que a doutrinação do Frei.
— Oh, Erila — ri. — Suas intrigas são preciosas. Juro que devia deixar eu
lhe ensinar melhor as letras. Poderia escrever uma história de Florença que
rivalizaria com os contos da Grécia de Heródoto.
Ela deu de ombros.
— Se vivermos o bastante para envelhecermos juntas, falarei e você
escreverá. Só espero que cheguemos até lá. O que depende de você saber o que
está fazendo agora — disse ela, apontando para trás da carroça e batendo as
rédeas por sobre a cabeça dos cavalos para que aumentassem a velocidade
enquanto o escuro cobria a cidade.
Os cavalos de Cristoforo e Tomaso não estavam no pátio, e não havia luz
em seu quarto. Ordenei aos cavalariços que carregassem o pintor até meu local
de trabalho, do lado do meu quarto, onde armamos um catre para ele, explicando
que era um homem santo da nossa família que adoecera quando meus pais
estavam fora. Percebi o olhar severo de Erila, mas o ignorei. A alternativa era
alojá-lo com os criados e, apesar de suas divagações em latim estarem seguras
ali, se começasse a gritar sobre o poder do Diabo em toscano seria mais sensato
tê-lo longe dos ouvidos de crentes.
Depois que foi instalado, chamamos o irmão mais velho do cavalariço,
Filippo, para cuidar dele. Era um rapaz robusto, nascido com os tímpanos
rompidos, o que o fazia parecer mais lerdo e idiota do que realmente era. Mas
isso também conferia à sua força bruta uma certa delicadeza, e como tal, era o
único dos criados de meu marido a quem Erila dedicava algum tempo. Nos
meses desde que ali chegamos, ela aprendeu sinais suficientes para torná-lo seu
escravo voluntário (se bem que nunca perguntei como ela lhe pagava seus
serviços). Agora ela lhe dava instruções para começar a preparar um banho para
o pintor antes de despi-lo. De seu quarto, ela trouxe sua bolsa de remédios, que
lhe fora transmitida por sua mãe, e que cheirava a exótico. Teria sua mãe tido a
sabedoria de curar estigmas da mente assim como das mãos?
— Diga-lhe que vamos lavá-lo e enfaixar suas mãos — disse Erila
rapidamente. — Que ele compreenda bem.
Ele estava sentado na cadeira onde o tinham deixado, seu corpo caído à
frente, os olhos fixados no chão. Fui até ele e agachei-me do seu lado.
— Agora você está seguro — disse eu. — Vamos cuidar de você. Cuidar
de suas mãos e fazer com que se sinta melhor. Nada de ruim lhe acontecerá aqui.
Está entendendo?
Ele não respondeu.
Ergui os olhos para ela, que fez um sinal para a porta.
— E se...
— ...fizer uma cena? Então racharemos seu crânio. Mas de um jeito ou de
outro, estará lavado e alimentado antes de aproximar-se dele de novo.
Pode usar o tempo para pensar na história que contará a seu marido.
Porque não vejo como a do parente santo funcionará com ele. E com isso, me
empurrou para fora do quarto.
Os primeiros dias foram os piores. Apesar de o pessoal da casa andar nas pontas
dos pés à nossa volta, as intrigas eram mais ruidosas do que qualquer um dos
seus passos. O pintor, por sua vez, permanecia em uma espécie de estupor,
mudo, ainda que rebelde à sua própria maneira. Apesar de ter permitido a Erila e
Filippo o lavarem e enfaixarem suas mãos, continuava recusando-se a comer. O
diagnóstico dela foi abrupto e direto.
— Ele pode mover os dedos, o que significa que pode voltar a pintar, se
bem que ninguém mais lera a sua sorte na palma de sua mão. Quanto ao outro
problema: não existe planta ou ungüento, até onde sei, que possa curá-lo. Se
insistir em não comer, isso o matará mais depressa do que qualquer perda de
Deus.
Durante toda essa noite, fiquei acordada atenta a ele. No ponto mais
escuro da noite, ele sofreu uma espécie de acesso de choro, um som de
desespero tão fundo como se toda a dor do mundo transpirasse dele. Erila e eu
nos encontramos em sua porta, mas o seu grito de dor acordara outros e ela não
deixou que eu entrasse.
— Mas está sofrendo tanto. Acho que posso ajudá-lo.
— Faria melhor se ajudasse a si mesma — disse com veemência. — Uma
coisa é o marido quebrar as leis de propriedade, outra inteiramente diferente é a
mulher fazer o mesmo. Eles são criados dele. Não têm tempo nem disposição
para amá-la por sua obstinação. Vão traí-la, e o escândalo se propagará como
uma linha de fogo pela vida de vocês dois. Volte para a cama. Eu cuidarei dele,
não você.
E como suas palavras me apavoraram, obedeci.
Quando na noite seguinte aconteceu de novo, seu grito foi mais brando.
Eu estava acordada lendo, por isso escutei imediatamente, mas atenta às
palavras de Erila, esperei que ela acorresse. Mas ou estava cansada demais ou
dormindo profundamente demais. Receosa de que seu grito acordasse a casa
toda de novo, saí furtivamente para verificar.
O patamar estava vazio, Filippo tinha adormecido rápido do lado de fora
de sua porta, desatento ao barulho. Passei por ele com cuidado e entrei. Se foi
uma insensatez fazer aquilo, então tudo o que posso dizer é que ainda não me
arrependo de tê-lo feito.
Trinta e Dois
O QUARTO ESTAVA ILUMINADO por uma pequena lamparina a óleo, seu
clarão delicado como a luz de vela na capela àquela noite, o cheiro de tinta e a
parafernália do meu trabalho por toda parte. Ele estava deitado na cama, olhando
fixo o espaço, a tristeza e o vazio como um lago à sua volta.
Aproximei-me e sorri para ele. Sua face estava úmida, mas o choro tinha
cessado.
— Como está, pintor? — perguntei.
Seus olhos me viram, mas não fizeram nenhuma associação.
Sentei-me na beira da cama. Antes, ele se esquivaria da minha
proximidade, mas agora não reagiu. Eu não sabia se a sua apatia era fraqueza ou
paralisia do desespero. Pensei em mim mesma, na noite de núpcias, e em como
todo o meu mundo se partira em fragmentos à minha volta e em como, quando
minha mente não conseguia mais trabalhar, meus dedos assumiram o controle.
Mas ele havia mutilado, deliberadamente, seu único meio de salvação. Suas
mãos jaziam incomodamente sobre a coberta, as ataduras limpas, sem mancha.
Mas se lhe permitiriam ou não segurar uma pena, eu não sabia.
Quando não há imagens, tudo o que resta são palavras.
— Trouxe-lhe uma coisa — disse eu. — Se vai ser devorado pelo Diabo,
deve ouvir outros que travaram a mesma batalha.
Peguei o volume que eu ha quando seus gritos chamaram minha atenção.
Apesar de não ter as ilustrações de Botticelli, o simples ato de registrar as
palavras no papel era, em si mesmo, o trabalho de um amor muito profundo. Ao
qual, agora, eu acrescentava o meu... falando lentamente, enquanto traduzia o
italiano vernacular obsedante para o latim, esforçando-me para encontrar as
palavras certas que o tocassem.
Na metade da jornada da vida,
Despertei e me vi em uma floresta escura,
Pois tinha-me extraviado do caminho verdadeiro.
Como é difícil contar como se parecia
Essa floresta erma, selvagem e refratária,
Até mesmo pensar nela me traz de volta todos os meus temores antigos.
Um lugar tão triste, que nem na própria morte haverá
mais tristeza...
Continuei a ler o primeiro canto do Inferno, com suas florestas de
desespero e animais selvagens do medo, mas sempre conduzindo ao primeiro
vislumbre da colina acima iluminada pelo sol e um vestígio de esperança.
Era a hora do amanhecer,
o sol ascendendo com aquelas mesmas estrelas
que o tinham acompanhado no primeiro dia do mundo,
o dia em que o Amor Divino deu vida à sua beleza:
portanto, a hora e a doce estação da criação
encorajaram-me a pensar que poderia passar...
Relanceei os olhos para cima, enquanto recobrava o fôlego, e percebi que
os seus tinham-se fechado. Sabia que não estava dormindo.
— Você não está só, sabe? — disse eu. — Acho que muita gente a
determinada altura da vida sente as trevas à sua volta, como se tivessem caído da
mão de Deus, escorregado de seus dedos para as rochas embaixo. Acredito que
Dante também tenha sentido isso. Acho que o seu grande talento tornou isso, de
certa forma, mais difícil para ele. Como se fosse esperado mais dele porque
recebera tanto. Mas se ele conseguiu reencontrar seu caminho, nós também
conseguiremos.
Na verdade, eu, assim como meu marido, tínhamos achado mais trivial
entrar no inferno do que no paraíso, mas tinha havido alguns momentos em que
a luz sempre aquecera a minha alma. Eu os buscava agora, na esperança que
aquecessem também a sua.
— Quando eu era menina — disse eu para cobrir o silêncio enquanto
procurava —, costumava achar que Deus era luz. Isto é... as pessoas me diziam
que Ele estava em toda parte, mas nunca consegui vê-Lo. Mas aqueles que
estavam plenos Dele eram sempre pintados com um halo de luz dourada ao seu
redor. Quando Gabriel fala com Maria, suas palavras penetram seu peito em um
rio de sol. Eu costumava me sentar e observar o sol atravessar as janelas a certas
horas do dia, estudando a maneira como se estilhaçaria no vidro e enviaria
pontos de luz ao chão. Pensava nisso como Deus se dividindo em uma saraivada
de bondade, que cada alfinetada de luz continha o mundo inteiro e Deus, assim
como a si mesma. Lembro-me de que isso fazia minha mente estremecer,
tentando agarrar-se a essa idéia. Depois, quando li Dante, encontrei alguns
versos no Paraíso que parecem dizer a mesma coisa...
E continuava a olhar para ele quando começou a falar.
— Luz não — disse ele calmamente. — Para mim não era luz.
Meus dedos pararam sobre a página.
— Era o frio.
Interrompeu-se.
— Frio? — falei. — Como?
Respirou fundo, como se fosse a primeira vez em muito tempo, e, então,
calou-se de novo. Esperei. Tentou de novo e, dessa vez, as palavras saíram mais
fáceis.
— Fazia frio. No mosteiro. Às vezes, o vento vinha do mar, trazendo o
gelo junto... Enregelava a pele do rosto. Um inverno, a neve estava tão funda
que não pudemos passar da porta para ir até o galpão de lenha. Um monge pulou
de uma janela. Afundou-se no monte de neve e precisou de muito tempo para se
levantar. Nessa noite, me colocaram para dormir do lado do fogão. Eu era
pequeno, magro, como um pedaço de casca de vidoeiro. Mas então o fogo
extinguiu-se.
"O Padre Bernard levou-me para a sua cela... Foi ele quem primeiro me
deu carvão e papel. Era tão velho que seus olhos pareciam que estavam
chorando. Mas nunca estava triste. No inverno, usava menos cobertores do que
nós todos. Dizia que não precisava deles porque Deus o aquecia."
Ouvi-o engolir, sua garganta seca de falar. Erila tinha deixado um pouco
de vinho doce na mesa de cabeceira. Verti um pouco em um copo e o ajudei a
beber.
— Mas nessa noite, até mesmo o Padre Bernard sentiu frio. Deitou-me na
cama do seu lado, envolveu-me em uma pele de animal e em seus braços.
Contou-me histórias de Jesus. Como o Seu amor podia despertar os mortos e
como, com Ele no coração, podia-se aquecer o mundo... Quando acordei estava
claro. A neve tinha cessado de cair, Eu estava aquecido. Mas ele estava frio.
Dei-lhe a pele, mas seu corpo estava enrijecido. Não sabia o que fazer. Então
tirei um pedaço de papel de sua arca sob a cama e o desenhei, ali deitado. Havia
um sorriso em sua face. Percebi que Deus estivera lá quando ele morreu. Que
agora, Ele estava em mim, e que por causa do Padre Bernard, eu estaria
aquecido para sempre.
Engoliu de novo, e mais uma vez levei o copo à sua boca. Ele bebeu outro
gole, depois se deitou e fechou os olhos. Ficamos juntos na cela do monge por
um tempo, esperando que a morte se tornasse vida de novo. Pensei na arca
debaixo da cama de Padre Bernard e busquei na minha mesa de trabalho papel e
carvão aliado, pronto para o momento em que seus dedos pudessem voltar a
trabalhar.
Coloquei-os em seu colo.
— Quero ver como ele era — disse eu com firmeza. — Desenhe-o.
Desenhe o seu monge para mim.
Olhou para o papel, depois para as próprias mãos. Observei a ponta de
seus dedos se dobrarem. Sentou-se na cama. Moveu sua mão direita até o
pedaço de carvão e tentou fechar os dedos sobre ele. Vi-o estremecer de dor.
Usei o livro como descanso para o papel e o apoiei sobre seus joelhos.
Ergueu os olhos para mim. O desespero atravessou seu rosto de novo.
Insensibilizei meu coração à sua dor.
— Ele deu-lhe o calor, pintor. Isto é o mínimo que pode fazer por ele
antes de morrer.
Ele começou a mover a mão pela página. O traço teve início, depois
escorregou. O carvão caiu no chão. Peguei-o e o pus de novo em sua mão.
Delicadamente, coloquei minha mão em concha sobre a sua, entrelaçando meus
dedos nos seus, com cuidado para não tocar no machucado, oferecendo meus
músculos como lastro, quando tinha de empurrar o carvão. Aspirou
profundamente. Fiz os primeiros traços com ele, deixando-o guiar a linha.
Lentamente, cuidadosamente, o contorno de uma face surgiu por debaixo de
nossos traços. Depois de algum tempo, senti seus dedos se fortalecerem e retirei
os meus. Observei quando, apesar da dor, completou o desenho.
O rosto de um homem velho apareceu na página, seus olhos fechados, um
meio sorriso em seus lábios, e embora não se inflamasse do amor de Deus,
tampouco estava paralisado no vazio.
O esforço lhe custara, e quando terminou, e o carvão caiu de seus dedos, a
sua pele estava cinza de dor.
Peguei um pedaço do pão sobre a mesa e o molhei no vinho, depois leveio a seus lábios.
Aceitou-o e mastigou-o lentamente, tossindo um pouco. Esperei até que
engolisse, depois alimentei-o com um pouco mais. Aos pouquinhos, pedaço por
pedaço, gole por gole.
Por fim, sacudiu a cabeça. Se exagerasse, ele sentiria náusea.
— Estou com frio — disse ele, por fim, os olhos ainda fechados. — Estou
de novo com frio.
Subi na cama e me deitei do seu lado. Pus meu braço sob a sua cabeça e
ele se virou, enroscando-se, como uma criança em meus braços. Envolvi-me ao
redor dele. Ficamos assim e ele foi se aquecendo em meus braços. Depois de
algum tempo, ouvi sua respiração se regularizar e seu corpo relaxar contra o
meu. Senti-me em paz e muito feliz. Se não tivesse medo de também adormecer,
acho que ficaria ali até amanhecer e sairia furtivamente antes da casa despertar.
Comecei a me mover sub-repticiamente, puxando bem devagar meu braço
direito de debaixo de sua cabeça para me soltar. Mas o movimento perturbou-o e
ele gemeu baixinho, rolando em seu sono, imprensando-me na cama com o peso
de seu ombro e cabeça, e jogando seu outro braço sobre meu corpo.
Esperei que se acomodasse para tentar de novo. Na luz da lamparina, seu
rosto estava perto do meu. Apesar de a fome ter aguçado suas feições, a sua pele
era quase translúcida, mais a pele de uma garota do que a de um rapaz. Suas
bochechas encovadas, porém, estranhamente, seus lábios permaneciam cheios.
Eu podia traçar o subir e descer de seus pulmões pelo calor de seu hálito em
minha face. Erila e Filippo tinham feito um bom trabalho: a sua pele cheirava a
camomila e outras ervas, e seu hálito tinha o cheiro forte do vinho doce. Olhei
seus lábios. Meu marido tinha-me beijado na bochecha um dia, à porta do meu
quarto. Tinha sido o único beijo que eu sentira, em minha vida, de um homem.
Eu seria penetrada até produzir um herdeiro, mas no que dizia respeito a ternura
e paixão, eu permaneceria virgem. Ou, citando meu marido, o meu prazer seria
problema só meu.
Curvei-me e aproximei meu rosto do dele. Seu hálito atingiu-me em ondas
doces e quentes. Dessa vez, a proximidade dele não me fez tremer. Em vez
disso, tornou-me audaciosa. Seu corpo estava tão ressequido que pude perceber
rachaduras na superfície de sua pele. Pus meus dedos na boca para molhá-los.
Minha saliva era quente e secreta, uma transgressão em si mesma. Passei a ponta
de meus dedos molhados levemente em seus lábios. Tocá-lo provocou um
choque agudo lá dentro de mim, mas palpitante, como a sensação ao descobrir
meu machucado interior. Eu podia ouvir meu coração pulsando em meus
ouvidos, como na tarde em que procurara Deus nos raios de sol e não O
encontrara. Nem todo calor encerrava uma revelação. Algumas tem-se de achar
sozinho. Movi meus dedos de seu rosto para o seu peito. A túnica que tinham
encontrado para ele era grande demais para seu corpo emaciado e seus ombros
estavam expostos. A ponta do meu dedo era o mais fino dos pincéis. Lembro-me
da hilaridade da linha brilhante de meu próprio sangue naquela noite, no escuro,
e imaginei cores fluindo de mim para ele, a sua pele transformando-se em
rastros de azul índigo ou açafrão selvagem sob o meu dedo. Sua pele estava
quente. Murmurou ao meu toque, agitando-se em seu sono. Meus dedos
pararam, pairaram incertos, depois se moveram de novo. O açafrão tornou-se
ocre vivo, depois púrpura escura. Logo ele estaria coberto de cores.
Cheguei minha boca para perto da sua. E para que não tenham dúvidas,
devo dizer que sabia perfeitamente o que estava fazendo. Com isso quero dizer
que o fazer e eu éramos um só. E não tive medo. Meus lábios encontraram os
seus, e sua sensualidade me fez revolver por dentro. Senti ele se agitar contra
meu corpo e reprimir um gemido quando sua boca abriu e encontrou minha
língua.
Seu corpo estava tão magro que era como se eu segurasse uma criança.
Meu desejo derramou-se sobre ele e quando nossos torsos se comprimiram, senti
seu sexo erguer-se contra minha coxa. Em algum lugar em mim, uma centelha
acendeu-se e foi se intensificando. Tentei engolir, mas não havia saliva
suficiente. A minha vida inteira estava presente no fôlego que agora eu
começara a tomar. Depois de ter o ar dentro de mim o que faria com ele? Eu o
beijaria de novo ou o usaria para me afastar dele?
Nunca tomei a decisão. Porque agora ele se moveu, colocando-se sobre
mim e me beijando, a língua sôfrega, sedenta com o seu gosto. De repente
estávamos juntos, nos tocando e rolando sem fôlego, minhas entranhas em fogo,
minha pele como um nervo exposto, e o que se seguiu foi tão rápido, seus dedos
em minha pele tão atrapalhados e desajeitados que, quando ele encontrou o
caminho para o meu sexo, não posso dizer se senti choque ou prazer, se bem que
me fez gritar tão alto que temi sermos descobertos. O que sei é que quando
levantei a camisola e ajudei-o a me penetrar, ele abriu seus olhos pela primeira
vez e, durante esse breve instante, olhamos um para o outro, incapazes de fingir
que o que estava acontecendo não estava acontecendo. E havia nesse olhar tanta
intensidade que pensei que por mais errado que fosse não poderia haver nenhum
mal, e que se os homens não pudessem nos perdoar, possivelmente Deus
perdoaria. E ainda acredito nisso, assim como acredito que Erila estava certa ao
dizer que a inocência, às vezes, pode ser tão perigosa quanto o conhecimento,
embora haja muitos que diriam que tais pensamentos simplesmente provam a
profundeza da minha danação.
Quando tinha acabado e ele deitou-se sobre mim, ofegante com a segunda
chance de vida que recebera, abracei-o e falei com ele como a uma criança,
dizendo tudo o que me ocorria para impedir que retornasse a seu medo. Até
esgotar todo o meu repertório e me ver recitando o que conseguia me lembrar
dos versos do último canto de Dante, sem querer pensar na heresia que talvez
minha recitação implicasse:
Nesse abismo vi como o amor une
Em um único ser todas as folhas cujo vôo
Propaga-se pelo universo
Que substância, acidente e atributo unidos,
Fundidos, juntos por assim dizer, de tal forma
Que tudo o que digo é apenas uma idéia pálida.
Trinta e Três
EM MEU QUARTO, ME LAVEI. Se tivesse tido tempo, talvez me ocorressem
um milhão de pensamentos.
— Por onde andou?
Virei-me.
— Oh, meu Deus, Erila, você me assustou!
— Ótimo. — Nunca a tinha visto tão irritada. — Onde você estava?
— Eu...ahn... O... pintor acordou. Eu... achei que você estava dormindo.
Portanto... fui ver se ele estava bem.
Ela me olhou com um desdém óbvio. Meu cabelo estava desgrenhado e eu
sabia que meu rosto estava vermelho. Baixei o pano e ajeitei a camisola,
mantendo os olhos baixos.
— Eu... hum... eu consegui fazer com que aceitasse um pouco de pão e
vinho. Ele agora está dormindo.
Ela moveu-se rápido, agarrando-me pelos ombros e me sacudindo com
tanta força que gritei. Não me lembrava de ela ter-me machucado antes. Quando
parou, continuou apertando meus braços, seus dedos penetrando minha pele.
— Olhe para mim. — Sacudiu-me de novo. — Olhe para mim.
Olhei. E ela sustentou meu olhar, como se não pudesse acreditar no que
estava vendo.
— Erila — disse eu —, eu...
— Não minta para mim.
Parei no meio da frase.
Ela me sacudiu de novo, depois, de súbito, me largou.
— Não escutou nem uma palavra do que eu lhe disse? Não? Acha que
faço tudo isso para o meu próprio bem?
Pegou a flanela onde tinha caído, do lado da bacia, e molhou-a na água.
Levantou a minha camisola e começou a passar a flanela na minha pele, sobre
meus seios e barriga e por minhas pernas e entre elas, até mesmo na minha
fenda, grosseiramente, me machucando, como uma mãe com uma filha teimosa.
Depois de um tempo, comecei a chorar, tanto por medo quanto porque
machucava, mas isso não a deteve.
Quando finalmente terminou, jogou a flanela na bacia e uma toalha para
mim. Observou enquanto, emburrada, eu me enxugava, choramingando,
reprimindo as lágrimas, tentando não sentir vergonha.
— Seu marido está de volta.
— O quê? Oh, meu Deus. Quando chegou? — E nós duas sentimos o
pânico em minha voz.
— Há mais ou menos uma hora. Não ouviu os cavalos?
— Não. Não.
Ela bufou alto.
— Ainda bem que eu sim. Ele perguntou por você.
— E o que respondeu?
— Que estava cansada e dormindo.
— Contou para ele?
— Que parte da história? Não, não disse nada. Mas estou certa que os
criados contarão, se já não o tiverem feito.
— Ótimo — disse eu, tentando parecer tranqüila. — Bem, eu... falarei
com ele amanhã.
Ela me olhou por um momento. Depois sacudiu a cabeça claramente
exasperada.
— Não entende mesmo, entende? Deus meu, como é possível que sua
mãe e eu não tenhamos lhe ensinado. Mulheres não podem fazer o mesmo que
os homens fazem. Não é assim que as coisas funcionam. Elas são destruídas por
eles.
Mas eu estava muito assustada e, de repente, achei que quem não estava
comigo estava contra mim.
— Ele disse que a minha vida era só minha — disse eu com raiva. — Foi
parte da barganha.
— Oh, Alessandra, como pode ser tão boba? Você não tem uma vida. Não
como ele tem. Ele pode foder quem quiser. Ninguém nunca o acusará. Mas
acusarão você.
Sentei-me, envergonhada.
— Eu... eu não...
— Não. De novo não. Não minta de novo.
Ergui os olhos.
— Simplesmente aconteceu — disse eu calmamente.
— Simplesmente aconteceu? Aha... — soprou enchendo as bochechas,
metade risada, metade fúria. — Sim, bem, sempre acontece.
— Eu não... quer dizer, ninguém precisa saber. Ele não vai contar. Nem
você.
Deu um suspiro, irritada, como se estivesse lidando com uma criança a
quem já repetira a mesma coisa centenas de vezes. Virou-se e ficou de lá para cá
no quarto, extravasando sua ansiedade. Finalmente, parou e virou-se para mim.
— Ele gozou?
— O quê?
— Ele gozou? — sacudiu a cabeça. — Se o seu conhecimento da vida nas
ruas fosse tão desenvolvido quanto o intelectual, poderia governar a cidade,
Alessandra. O fluido dele entrou em você?
— Eu... ahn... Não tenho certeza. Talvez. Acho que sim.
— Quando sangrou pela última vez?
— Não sei. Há dez dias, talvez duas semanas.
— Quando o seu marido a penetrou pela última vez?
Baixei a cabeça.
— Alessandra. — Ela quase não pronunciava meu nome, mas agora não
parava de dizê-lo. — Preciso saber.
Ergui os olhos para ela e recomecei a chorar.
— Nunca mais desde... a noite do casamento.
— Oh, Cristo. Bem, é melhor que faça de novo. E logo. Pode conseguir
isso?
— Acho que sim. Não falamos sobre isso há algum tempo.
— Pois fale agora. E consiga. A partir de agora, não se aproxime do pintor
sem uma acompanhante no quarto. Está me ouvindo?
— Mas...
— Não! Nada de mas... Vocês dois estavam fadados a serem amantes
desde que puseram os olhos um no outro, só que eram jovens demais para
saberem disso. Sua mãe nunca deveria ter permitido que ele ficasse na casa.
Bem, agora é tarde demais. Você vai sobreviver. E se ele é capaz de encontrar
seu buraco, espero que consiga encontrar o caminho de volta à vida. É o tipo de
ressurreição que freqüentemente inflama o apetite em homens.
— Oh, Erila, você não entende, não foi assim.
— Ah não? Então como foi? Ele pediu a sua permissão ou você se
ofereceu?
— Não — repliquei com firmeza. — Eu comecei. A culpa foi minha.
— E aí? Ele não fez nada? — E acho que se sentiu aliviada por ver que o
meu espírito voltara.
Dei de ombros. Olhou-me séria mais uma vez. Depois, se aproximou e me
abraçou forte, abrindo as asas e cacarejando para mim como uma galinha mãe. E
eu sabia que se ela me deixasse, a minha coragem também me abandonaria.
— Idiota, garota boba. — Murmurou insultos doces em meu ouvido,
depois se afastou um pouco e acariciou meu rosto, afastando meu cabelo
emaranhado para trás, para me examinar melhor. — Então — disse ela baixinho.
— Você fez? Finalmente. Como foi? Ouviu a doçura do som do alaúde?
— Eu... na verdade, não — sussurrei, embora soubesse que tinha sentido
algo.
— Bem, é porque tem de fazer mais de uma vez. Eles, os homens, são
lentos para aprender. São só fúria, inépcia e pressa. A maioria não melhora.
Apenas faz. Mas há alguns, de vez em quando, que têm a humildade de
aprender. Contanto que não deixe que percebam que é você quem os está
ensinando. Mas primeiro, tem de descobrir o seu próprio prazer. Pode fazer
isso?
Dei uma risada nervosa.
— Não sei. Eu... acho que sim. Mas... não entendo, Erila. O que está me
dizendo?
— Estou dizendo que se vai quebrar as regras, então tem de aprender a
fazer isso melhor do que qualquer um, digo qualquer um, que as cumpra. É a
única maneira de vencê-los no seu jogo.
— Não sei se consigo fazer isso... a menos que me ajude. Ela riu.
— E quando não ajudei? Agora vá para a cama e durma. Vai precisar de
toda a sua sagacidade amanhã. Como todos nós.
Trinta e Quatro
ELE ESTAVA SENTADO À MESA LENDO e bebendo vinho. A manhã ainda
começava, mas o calor já era forte. Não nos víamos há várias semanas. Eu não
sabia o quanto eu devia estar mudada. Nessa manhã, ao examinar meu rosto no
espelho, não percebi nenhuma diferença óbvia. Ele, por outro lado, estava
alterado. As linhas ao redor da boca estavam mais proeminentes, conferindo-lhe
uma expressão severa permanente, e a sua pele estava mais avermelhada.
Acompanhar o ritmo do meu irmão exigiria esforço de uma constituição jovem,
que dirá uma mais velha. Sentei-me no lado oposto a ele e me cumprimentou.
Eu não fazia idéia no que ele estava pensando.
— Olá, minha mulher.
— Olá, meu marido.
— Dormiu bem?
— Sim, obrigada. Lamento não ter estado aqui para recebê-lo. Ele
dispensou minhas palavras com um gesto da mão. — Você está completamente
recuperada de sua... indisposição?
— Sim — disse eu. Depois de um tempo, acrescentei: — Estive pintando.
E ele ergueu os olhos e juro que percebi prazer neles.
— Ótimo. — Voltou a olhar para seus papéis.
— Meu irmão está aqui?
Relanceou os olhos para mim.
— Por quê?
— Eu...ahn, gostaria de cumprimentá-lo, se estiver.
— Não, não. Foi para casa. Não está se sentindo bem.
— Nada grave, espero.
— Acho que não. Só um pouco de febre.
Eu não teria uma outra oportunidade tão boa.
— Tenho algo a lhe dizer.
— Sim?
— Temos visita.
Dessa vez ele ergueu a vista.
— Eu soube.
Contei com simplicidade, conformando o relato a uma história de arte e
beleza: as maravilhas que o pintor podia criar e o medo de que não fosse mais
capaz disso. Acho que fiz o melhor que pude, embora saiba que estava mais
nervosa do que gostaria. Ele não tirou os olhos de mim nem uma vez sequer,
nem mesmo quando o silêncio se impôs entre nós depois que terminei.
— Alessandra... Lembra-se da nossa primeira conversa, não? Na noite do
casamento.
— Sim.
— Então se lembra de que pedi várias coisas, com as quais você
concordou. E uma delas foi a discrição.
— Sim, mas...
— Acha realmente que esse foi um ato discreto? Atravessar a metade da
cidade à noite, em uma carroça, trazendo um homem enlouquecido ao palazzo,
na ausência de seu marido. Depois acomodá-lo em um aposento do lado do seu.
— Ele estava doente... — interrompi-me. Sabia que não havia argumento.
Segundo a interpretação de Erila das regras, eu tinha perdido todos os direitos.
— Desculpe — eu disse. — Percebo que isso pode comprometê-lo. Mesmo se
ele não for...
— O que ele será ou não não é a questão, Alessandra. A questão é como é
percebido. Isso, minha cara, é só o que, agora, interessa a esta cidade. Não a
realidade, mas a percepção. É inteligente o bastante para saber disso tanto
quanto eu.
Dessa vez, ele deixou o silêncio crescer.
— Ele não pode ficar — disse eu depois de algum tempo, afirmando um
fato e não fazendo uma pergunta.
— Não, não pode.
— Eu... ahn... de qualquer maneira, acredito que ele esteja melhor. — Eu
tinha sabido por Erila que ele aceitara alimento nessa manhã. — Nesse caso, ele
estará ansioso por retornar à casa dos meus pais. Ele tem de terminar um
trabalho. Ele é um pintor maravilhoso, Cristoforo. Quando vir o altar concluído,
vai entender.
— Estou certo que sim. — Bebeu um gole do vinho. — Não falaremos
mais nisso. — Pôs o copo, com cuidado, sobre a mesa, e ficou me observando
por um momento. — Agora, tenho algo a lhe dizer. — Fez uma pausa. —
Ontem, dois conhecidos meus foram detidos por suspeita de fornicação
indecente. Tinham sido acusados por meio da caixa de denúncias em Santa
Maria Novella. Seus nomes não têm importância, embora você logo os ouvirá,
pois são de boa família — interrompeu-se. — Embora não tão boa quanto as
nossas.
— O que vai acontecer com eles?
— Serão interrogados e torturados na tentativa de verificarem as
acusações e conseguirem mais nomes. Nenhum dos dois tem uma razão direta
para me envolverem... mas, bem, uma vez puxado o fio, a roupa pode se
desfazer rapidamente.
Não era de admirar que a minha transgressão o tivesse irritado. Por outro
lado, se eu fosse Erila, certamente começaria a procurar potencial além de
desastre em um momento como esse.
— Bem, senhor, talvez devêssemos procurar uma maneira de protegê-lo
melhor — fiz uma pausa. — Uma esposa grávida adiantaria para recuperar a sua
reputação?
Sorriu com um misto de diversão e desagrado.
— Certamente mal não faria. Mas você não está grávida. A menos que eu
tenha entendido mal as palavras de sua escrava. E ela parecia falar bem claro.
— Não — disse eu —, não estou — lembrando-me da mentira de Erila.
— Mas se pude conceber uma vez, poderei outra. — Deixei o silêncio
permanecer só por um pouco. — Estou em um bom momento para isso.
— Entendo. E ficaria... satisfeita com isso?
Olhei diretamente em seus olhos, e meu olhar não tremeu.
— Sim — disse eu. — Ficaria.
Levantei-me, inclinei-me, vagarosamente, sobre a mesa, beijando-o
levemente na testa, antes de sair e retornar ao meu quarto.
Não aborrecerei com descrições da nossa segunda experiência de intercurso
sexual. Minha reticência não tem a intenção de provocar ou fazer intriga. Se
houvesse algo a relatar a mais do que a primeira vez, eu revelaria com alegria.
Quanto mais velha fico, mais tenho certeza de que o silêncio que cerca essas
questões gera somente mais hesitação e mal-entendido. Mas, então, não houve
nenhum mal-entendido entre nós. A nossa era uma parceria de negócios entre
marido e mulher. E havia respeito e atenção o bastante para que eu, pelo menos,
me sentisse mais como uma igual.
Ao contrário da primeira vez, ele não saiu do quarto imediatamente.
Ficamos juntos, quase como dois companheiros, durante algum tempo, tomando
refrescos e conversando de arte, da vida, de questões de estado. E, desse modo,
ao relaxarmos, sentimos um certo prazer mútuo na nossa união, embora fosse
originado da carícia das palavras e não da pele.
— Quando soube disso? Ainda não virou boato.
— Não? Bem, logo vai virar. Essas coisas não são mantidas em segredo
por muito tempo.
— Savonarola vai obedecer?
— Ponha-se no lugar dele, Alessandra. Você é o líder incontestável da
cidade. Florença aguarda cada palavra sua. O púlpito é um lugar melhor de onde
se governar do que a Signoria. Então, seu inimigo, o Papa, a proíbe de pregar
sob pena de excomunhão. O que faz?
— Acho que depende do julgamento que mais temo, o do Papa ou o de
Deus.
— Não acha que é heresia sugerir uma diferença entre os dois?
— Bem, eu até posso achar que sim. Mas agora sou Savonarola. E ele não
faz essa distinção. Deus vem em primeiro lugar para ele. Se bem que... —
interrompi-me. — Ele não é tolo quando se trata de questões de estado. Mas
tampouco o Papa é.
— Então vai lhe interessar saber que há uma cenoura além da vara.
— Qual é?
— Um cardinalato, se ele concordar.
— Oh! — refleti. — Não. Ele não vai aceitá-lo. Pode ser louco por Deus,
mas não é hipócrita. Ele despreza a corrupção da Igreja. Um cardinalato seria
como aceitar as trintas moedas para trair Cristo.
— Bem, veremos.
— Cristoforo, como sabe disso tudo? — perguntei admirada.
Ele fez uma pausa.
— Não passo todo o meu tempo livre trepando com o seu irmão.
Fui pega de surpresa.
— Mas... mas achava que não se envolvia em coisas desse tipo — falei,
lembrando-me das palavras de minha mãe sobre ele.
— Em tempos como os nossos, esta é a melhor maneira de se envolver,
não acha? — fez uma pausa. — A oposição mais segura é a que não existe, até o
momento certo.
— Nesse caso, acho que deveria ter cuidado com quem fala sobre isso.
— Tenho — disse ele, me olhando intensamente. — Acha que cometi um
erro?
— Não. — E minha voz foi firme.
— Ótimo.
— Mas tem de estar atento. Isso o torna um inimigo político, além de um
inimigo moral.
— É verdade. Mas desconfio que quando inflamarem a palha debaixo de
mim, não será a minha política que estarão queimando.
— Não fale assim — disse eu. — Isso não vai acontecer. Por mais
poderoso que seja, não poderá desafiar o Papa para sempre. Haverá muitos
devotos florentinos que se sentirão incomodados ao escutarem sermões de um
padre excomungado.
— Tem razão. Embora o Papa vá precisar escolher o melhor momento.
Cedo demais só incitará uma rebelião. Tem de esperar até que os rachas
comecem a aparecer.
— Então é melhor que tenha uma vida longa — disse eu. — Não vejo
nenhum racha.
— O que quer dizer que não está olhando com atenção bastante, minha
mulher.
— Devia estar nas ruas quando seus guerreiros nos pararam com o
pintor... — vi seu rosto turvar-se. — Está tudo bem. Não faziam idéia de quem
nós éramos. Erila apavorou-os evocando as bolhas francesas.
— Ah, sim, as bolhas. Então os nossos salvadores, os franceses,
trouxeram com eles mais do que liberdade cívica.
— Sim, mas é difícil abalar seu poder.
— Não por si só. Mas e se o verão continuar tão quente quanto o inverno
foi frio? E se não chover e a safra for arruinada? Somos pios demais para
perseguir, hoje, a prosperidade, e a cidade já não produz tanto quanto produzia.
E apesar de todo o seu exército de devotos, há ainda um louco rondando e
usando os intestinos das pessoas como colares.
— Houve outro corpo!
Ele sacudiu os ombros.
— Não foi divulgado. Os vigias de Santa Felicita encontraram restos
humanos espalhados no altar ontem de manhã.
— Oh...
— Mas quando voltaram com ajuda, tinham desaparecido.
— Acha que seus seguidores se livraram do corpo?
— Que corpo? Realidade e percepção, lembra-se? Quando ele era
oposição, essa profanação era uma dádiva do céu. Agora cheira a anarquia. Ou
coisa pior. Pense bem. Se Florença é devota, mas Deus é cruel com ela, então é
só uma questão de tempo até seus adeptos começarem a questionar
publicamente se a sua é a piedade do tipo certo.
— Acha isso ou sabe? — perguntei. Pois até mesmo uma oposição que
não existe deve manter contato com vozes dentro assim como de fora.
Ele sorriu.
— Veremos. Mas me diga, Alessandra, como se sente? Como me sentia?
Tinha dormido com dois homens nas ultimas horas. Um alimentara meu corpo, o
outro, a minha mente. Se Savonarola era realmente um mensageiro de Deus na
terra, então eu já deveria estar sentindo as chamas lambendo meus pés. Mas, em
vez disso, sentia-me surpreendentemente calma.
— Sinto-me... plena — repliquei.
— Bem, soube que o começo do verão é um bom momento para a
concepção, se marido e mulher se encontram em um amor respeitoso, e não
lascivo — fez uma pausa. — De modo que rezemos para o futuro.
O pintor partiu na manha seguinte bem cedo. Erila viu-o antes de ele partir.
Contou-me que ele foi calmo e cortês com ela, e deixou-a cuidar de suas mãos.
Os ferimentos começavam a cicatrizar e, apesar de ainda estar fraco, tinha
comido o bastante para adquirir um estado mais alerta, como se parte de seu
espírito tivesse retornado. A última coisa que ela fez foi lhe dar as chaves da
capela. Meus pais ainda ficariam fora por algumas semanas — as últimas
notícias eram que meu pai estava melhorando com as águas. Ou ele encontraria
vontade e força para voltar a trabalhar os afrescos ou não. Eu não podia fazer
mais nada para ajudá-lo agora.
Depois que se foi, deitei-me em meu quarto pensando em que filho me
agradaria mais: um com aptidão para política ou para a pintura?
PARTE TRÊS
Trinta e Cinco
MEU MARIDO DEMONSTROU ESTAR CERTO em relação a várias coisas,
nos meses que se seguiram. Inclusive quanto ao tempo. O verão chegou com
toda força, fumegante e fétido como o resfôlego de um cavalo, e a cidade ficou
impregnada. Onde dois anos antes tínhamos visto os bancos da igreja Santa
Croce flutuando em direção à Catedral quando as chuvas da primavera
chegaram, agora essas mesmas ruas produziam tempestades de poeira quando as
carroças passavam crepitando.
No campo, as oliveiras brotando ressecavam como excrementos de
animais, e o solo estava tão duro que não fazia diferença de quando congelava.
A medida que o calor progredia de agosto para setembro, a palavra estiagem
começou a ser substituída pelo boato da fome. Sem água para lavar sua pureza,
os Anjos de Savonarola começaram a exalar um cheiro menos puro. Mas, então,
tinham menos o que policiar. Estava quente demais para pecar. Estava quase
quente demais para rezar.
O Papa fez exatamente o que meu marido tinha previsto e ordenou que
Savonarola parasse de pregar. A oferta privada de um cardinalato tinha sido
recusada com um pronunciamento público em que dizia que outro chapéu
escarlate lhe conviria melhor, "um vermelho de sangue". Ainda assim
Savonarola percebeu a política do momento o bastante para se retirar à sua cela
para pedir a orientação de Deus. Até mesmo meu marido aplaudiu a sua
perspicácia. Mas se era política ou sinceridade, era impossível saber. Para um
homem santo, ele era um misto complexo de arrogância e humildade.
O tempo, a luta de poder — meu marido tinha predito tudo isso. Também
tinha razão sobre o verão precoce. Revelou-se um bom momento para a
concepção.
Deitava-me em meu quarto obscurecido, vomitando tudo o que havia em
meu estômago, dia e noite, em uma vasilha do lado da minha cama. Sentia um
enjôo como nunca sentira na vida. Começou duas semanas depois que meu
sangue não desceu. Acordei, certa manhã, e ao tentar sair da cama, minha pernas
cederam, meu estômago veio à minha boca e, depois, derramou-se no chão. Não
consegui nem chegar à porta. Erila me encontrou ali, vomitando saliva, pois já
não havia mais nada para botar para fora.
— Parabéns.
— Estou morrendo.
— Não, não está. Está grávida.
— Como é possível? Isto não é um bebê, é uma doença.
Ela riu.
— Devia estar contente. Este nível de náusea significa que a gravidez está
bem fixada. Mulheres que não sentem nada quase sempre o perdem antes do fim
da terceira lua.
— E nas afortunadas? — perguntei entre vômitos. — Quanto tempo dura?
Ela sacudiu a cabeça, passando um pano úmido na minha.
— Dê graças a Deus por sua constituição — disse ela animadamente. —
Vai lhe ser muito útil.
Fui consumida pelas náuseas. Havia dias em que mal conseguia falar de
tão concentrada no aumento de nível da saliva em minha boca. Mas tinha seu
lado positivo. Não pensava no pintor, em seus dedos na parede ou na sensação
de seu corpo contra o meu. Não me perguntava sobre meu marido nem me
ressentia de meu irmão. E pela primeira vez em minha vida, não ansiei por
minha liberdade. A casa já era um mundo grande demais para mira.
A minha doença fez maravilhas com a minha posição diante da
criadagem. Antes eu era arrogante e pretensiosa, agora mal podia andar. Pararam
de cochichar por minhas costas e começaram a colocar vasilhas em lugares
estratégicos pela casa, de modo que eu pudesse vomitar onde quer que a ânsia
me dominasse. Até mesmo me procuraram com sugestões. Comi alho, mastiguei
gengibre e bebi chá de terra. Erila vasculhou cada botica da cidade em busca de
remédios. Passou tanto tempo na loja Landucci, do lado do Palazzo Strozzi, que
fez amizade com seu proprietário, um homem de língua loquaz, comparável à
sua. Ele mandou um cataplasma cheio de ervas e pedacinhos ressequidos de
animais mortos para ser colocado sobre meu estômago. Cheirava pior do que o
meu vômito, se bem que me aliviou por alguns dias. Mas somente alguns dias.
Meu marido, que andava mais ocupado do que nunca com questões que
supostamente não existiam, ficou tão preocupado que trouxe um médico. Ele
deu-me uma poção que me fez vomitar mais.
Em meados de setembro, eu estava enjoada há tanto tempo que até mesmo
Erila deixou de se mostrar lépida comigo. Acho que receou que eu morresse. Eu
me sentia tão nauseada que havia momentos em que acolheria a morte quase de
bom grado. Tornei-me soturna em meu sofrimento.
— Nunca se perguntou sobre esse bebê... — disse-lhe uma noite em que
estava sentada na minha cama abanando o calor terrível que grudara na minha
pele como uma manta ensopada.
— Eu me perguntei o quê?
— Se o meu enjôo não é uma espécie de castigo. Um sinal. De que talvez
seja realmente filho do Diabo.
Ela riu.
— E se for, quando arranjou tempo para fornicar com ele naquela noite?
— Falo sério, Erila. Você...
— Ouça. Sabe qual a pior coisa que pode acontecer com você? Sua vida
vir a tornar-se tranqüila, sossegada, e não lhe oferecer nada em que pensar. Você
atrai drama como o cadáver de um cão atrai moscas. E a menos que eu esteja
muito enganada, será sempre assim. É ao mesmo tempo a sua maravilha e a sua
aflição. Mas quanto ao filho do Diabo... pode ter certeza de que se ele desejasse
gerar um herdeiro nesta cidade, haveria milhares de candidatas mais
merecedoras do que você.
Nessa semana, minha irmã foi me visitar. A notícia da minha humilhação
devia ser de conhecimento público.
— Oh, olhe só para você! Está horrível. Seu rosto está emaciado. Ainda
assim, sempre gostou de receber atenção. — Estava grávida de novo e comendo
por dois. Mas me abraçou forte o bastante para que eu percebesse que estava
preocupada comigo. — Coitadinha — disse ela. — Não faz mal, em breve estará
bebericando vinhos doces e sentindo o gosto de pombo assado. Nosso
cozinheiro tem a receita do molho de ameixa mais delicioso que existe.
Senti o nível de saliva aumentar em minha boca e me perguntei,
considerando-se a minha mira fabulosa nesses dias, se conseguiria vomitar
direto no seu colo ou simplesmente sobre seus sapatos.
— Como vai Illuminata? — perguntei para manter minha mente longe
desse esporte.
— Oh, está crescendo no campo.
— Não sente falta dela?
— Estive com ela na vila, durante agosto. Mas ela se desenvolve melhor
longe da cidade do que se estivesse aqui no calor e na poeira. Não faz idéia de
quantas crianças estão sucumbindo ao clima. As ruas estão cheias de caixões
pequeninos.
— Viu nossos irmãos?
— Não sabe? Luca, agora, é comandante de brigada.
— O que significa isso?
Ela sacudiu os ombros.
— Não faço idéia. Mas ele tem umas três dúzias de anjos sob seu
comando e teve, até mesmo, uma audiência com o Frei.
— Sabia que, por fim, alguém na família seria reverenciado — disse eu.
— E Tomaso?
— Oh, Tomaso! Não soube?
Sacudi os ombros.
— Tenho andado um pouco indisposta.
— Ele está doente.
— Não grávido, espero — disse eu com doçura.
— Oh, Alessandra! — ela ria tanto que suas bochechas tremiam. Essa
quantidade de gordura podia me sustentar por semanas, pensei. Ela deu um
suspiro ligeiro e afetado. — Bem, quando digo doente, o que quero realmente
dizer é... — Baixou a voz era um sussurro dramático. — Ele está com as Bolhas.
— Oh, mesmo?
— Oh, mesmo. Oh, e devia vê-lo. Elas tomaram todo seu corpo. Urgh.
Trancou-se em casa e recusa-se a receber visitas.
E juro que pela primeira vez em dois meses, comecei a me sentir um
pouco melhor.
— E como pegou isso?
Ela baixou os olhos.
— Sabe dos boatos, não sabe?
— Não — repliquei.
— Sobre ele.
— Quais?
— Oh, não consigo pronunciar a palavra. Basta dizer que aqueles
acusados da mesma coisa perderão os narizes e a pele das costas quando seu
julgamento for concluído. Consegue acreditar que homens façam essas coisas?
— Bem — disse eu —, suponho que o pecado existe para Deus perdoá-lo.
— Nossa pobre mãe — disse ela. — Imagina a vergonha. Retorna de meses no
campo, cuidando do nosso pai para descobrir que o seu próprio filho é.. .Tudo o
que posso dizer é que, graças a Deus, na nossa família tem aqueles que se
comportam com retidão.
— Sim, de fato. Graças a Deus.
— Não está contente por, agora, estar no caminho certo?
— De todo coração — disse eu baixinho. — Quando disse que ela voltou?
Enviei Erila para pedir que minha mãe viesse nessa mesma tarde. Nossa
hostilidade já tinha durado tempo demais, e independente do que soubera ou
não, eu precisava de seu bom senso. O fato de ela poder trazer notícias do pintor
era, juro, algo em que pensei somente depois.
Fiz um esforço para recebê-la bem. Erila vestiu-me e mandei que
colocasse duas cadeiras na galeria de esculturas. O vento fazia uma corrente de
ar atravessar esse salão e achei que ela apreciaria como a beleza da pedra
permanecia tão fresca na bruma do calor. Lembrei-me do dia em que nos
sentamos em meu quarto para discutirmos o meu casamento. Nesse dia, também
fazia muito calor. Se bem que não como agora.
Erila introduziu-a e ficamos olhando uma para a outra. Ela tinha
envelhecido nos meses desde o nosso último encontro. As costas perfeitamente
eretas apresentavam apenas um indício de curvatura e, apesar de continuar a ser
uma mulher bonita, pareceu-me que a luz em seus olhos tornara-se um pouco
mais opaca.
— Quanto tempo de gravidez? — perguntou, e percebei que estava
chocada com a minha aparência.
— Sangrei pela última vez em julho.
— Onze semanas. Hah! Tentou mandrágora e semilla?
— Ahn... não. Acho que devem ser as únicas coisas que ainda não tentei.
— Mande Erila consegui-las agora. Prepararei a beberagem eu mesma.
Por que não mandou me chamar antes?
Eu estava sem energia para começar uma discussão.
— Eu... eu não queria preocupá-la...
Ela era mais corajosa do que eu.
— Não. Não é esta a razão. Foi tão agressiva comigo. Não a obriguei a
casar-se com ele, sabe disso.
Franzi o cenho.
— Não, temos de conversar sobre isso. Não haverá futuro se não falarmos
disso. Responda-me: mesmo que eu soubesse, e não sabia, mas mesmo que
tivesse sabido... isso a deteria? Estava tão determinada a ser livre.
Não tinha pensado nisso antes. Como teria reagido se tivesse sabido.
— Não sei — disse eu. — Você realmente não sabia?
— Oh, minha criança, é claro que não...
— Mas o via na corte. E reagiu de maneira tão estranha quando lhe
perguntei sobre isso. Eu...
— Alessandra — disse ela, interrompendo-me com firmeza —, nem tudo
é como parece. Eu era muito jovem. E apesar da minha erudição, era muito
ignorante. De todas as maneiras e sobre todo tipo de coisas.
Como eu, pensei. Então, ela não sabia.
— Quando descobriu? — perguntei com calma.
— Sobre seu irmão? — perguntou dando um suspiro. — Acho que sabia e
não sabia fazia muito tempo. Sobre seu marido? Há três dias. Tomaso acha que
está morrendo. Não está, mas quando um homem tão bonito fica tão feio,
confunde isso com algo fatal. Acho que, finalmente, ele começou a perceber as
conseqüências de suas ações. Está em um frenesi de dor e medo. No começo
desta semana, chamou um confessor para ser absolvido. Depois, me contou.
— A quem se confessou? — perguntei apreensiva, lembrando-me das
histórias de Erila sobre padres que falavam.
— Um amigo da família. Estamos seguros. Ou seguros como alguém
conseguiria estar agora.
Ficamos ali por algum tempo, assimilando uma as revelações da outra.
Examinei seu cansaço. Como meu marido se lembrava dela? Beleza, perspicácia
e erudição. Seria sempre pecado ser tão confiante? Nosso Senhor deveria sempre
haver por bem nos tirar isso à força?
— Então, minha filha? Já faz muito tempo que não nos vemos. Como está
indo?
— Entre mim e ele? Como está vendo. Fizemos o casamento dar certo.
— Sim, estou vendo. Ele falou comigo antes de eu vir. Ele é... —
interrompeu-se. — Não sei. Ele é...
— Um homem bom — disse eu. — Eu sei. Estranho, não?
Há muito tempo queria conversar com minha mãe dessa maneira.
Falarmos de mulher para mulher, como alguém que tivesse percorrido a mesma
estrada antes de mim, mesmo que não tivesse passado pelos mesmos lugares.
— E meu pai?
— Está... está um pouco melhor. Aprende a aceitar as coisas. E isso é uma
recuperação.
— Ele sabe sobre Tomaso?
Ela sacudiu a cabeça.
— Bem, Plautilla sabe e se sente ultrajada.
— Oh, querida Plautilla — foi a primeira vez que a vi sorrir. — Ela
sempre gostou de ultrajes, desde pequena. Pelo menos, dessa vez é por algo que
vale a pena.
— E você, mamãe? O que acha?
Ela sacudiu a cabeça.
— Sabe, Alessandra, estes são tempos difíceis. Acho que Deus observa
tudo que fazemos e nos julga menos por nosso sucesso do que pelo quanto
lutamos quando o caminho é penoso. Reza como eu mandei? Vai regularmente a
igreja?
— Só quando tenho certeza de que não vomitarei lá — repliquei com um
sorriso. — Mas sim, rezo.
Não estava mentindo. Tinha rezado constantemente ao longo dos últimos
meses, deitada na cama com meu estômago virando, implorando uma
intercessão que permitisse meu bebê ser saudável e não amaldiçoado, mesmo
que não pudesse fazer o mesmo por mim.Tinha havido momentos em que meu
medo tinha sido tão grande que eu deixara de distinguir a náusea do meu corpo
da náusea da minha mente.
— Então será atendida, minha filha. Acredite, Ele ouve tudo o que Lhe é
dito, mesmo quando parece não ouvir.
Suas palavras foram como um alívio temporário para febre. O Deus que
governava Florença teria eu e a criança eternamente enforcadas por nossas
tripas. O Deus que vi nos olhos de minha mãe nessa tarde tinha, pelo menos, a
capacidade de distinguir gradações de culpa. Tinha sentido falta de sua
inteligência brilhante e serena mais do que ousava admitir.
— Tem notícias do pintor? — perguntei depois de um tempo.
— Sim. Maria me contou. Segundo suas palavras, a maior responsável foi
você.
Ri.
— Eu? Imagine só. Como ele está? — pela primeira vez em meses, me
permiti vê-lo diante de mim.
— Bem, embora continue nada loquaz, parece recuperado do que quer que
o tenha afligido.
Sacudi os ombros.
— Não foi muito sério. Acho que a sua solidão e a carga do trabalho o
oprimiram.
— Hummm — disse ela, que era o som que sempre fazia quando eu era
pequena e ainda não decidira se acreditava ou não em mim.
— E a capela?
— A capela? Oh, a capela está maravilhosa, um farol em nossa treva. A
Assunção no teto é de nos deixar sem fôlego. O rosto de Nossa Senhora é o mais
impressionante — fez uma pausa —, para aqueles que conhecem bem a família.
Baixei os olhos para o chão para que não visse o rubor de prazer em
minha face.
— Ainda bem que ela está muito no alto. De qualquer maneira, quem me
reconheceria agora? Está zangada?
— É difícil se zangar com a beleza — respondeu simplesmente. — Ela
possui uma graça tão inesperada e, como você diz, não serão muitos que a
interpretarão como nós. Se bem que a sua irmã, é claro...
— ...se sentirá ultrajada. — E dessa vez, sorrimos. — Então, está
concluída?
— Não completamente. Embora ele garanta que estará para a primeira
missa.
— E quando vai ser?
— Luca está ansioso, Tomaso, pela primeira vez, é cativo, e Plautilla
adora um evento. Se a mandrágora e a semilla surtirem efeito, acho que
podemos planejá-la para o começo do mês que vem. Vai ser bom ter a família
reunida de novo, não acha?
Trinta e Seis
EMBORA FOSSE ÓTIMO DIZER que o remédio de minha mãe surtiu um
efeito miraculoso na minha constituição, a verdade é que não funcionou melhor
do que qualquer outra coisa. Ou talvez simplesmente levasse mais tempo para
agir.
Eu estava no quarto mês e tão magra que parecia mais uma vítima da
fome do que uma mulher com um bebê, quando, de repente, o vômito, assim
como veio, cessou. Acordei certa manhã, e já me inclinava para a vasilha, pronta
para pôr para fora mais do conteúdo de meu estômago vazio, quando me dei
conta de que a náusea tinha-se ido. Minha cabeça estava desanuviada e os sumos
de meu estômago sossegados. Deitei-me de novo com a cabeça no travesseiro e
pus minha mão sobre a protuberância que ainda só eu podia perceber.
— Obrigada — disse eu. — E seja bem-vindo.
Minha mãe tinha pedido que fôssemos um dia antes, de modo que Erila pudesse
ajudar nos preparativos e a família passasse um pouco de tempo junta. O verão
tinha acabado e levado junto um pouco do calor escaldante, mas a estiagem
permaneceu. Havia poeira por toda parte, nuvens de pó rodopiando das rodas e
cascos de cavalos, cobrindo e sufocando os passantes. Algumas das pessoas por
que passamos pareceram quase tão magras quanto eu. As tendas no mercado
estavam meio vazias, declaração franca de uma safra arruinada, legumes e frutas
pequenos e anômalos. Não havia sinal do homem da serpente. As únicas pessoas
a fazerem bons negócios eram os penhoristas e os boticários. As Bolhas tinham
deixado sua marca. Mesmo aqueles curados tinham cicatrizes.
A casa saiu para nos receber. Ele não — mas, então, sempre se mantivera
à parte disso —, mas Maria, Lodovica e todos os outros. Todos que me
saudaram ficaram chocados com a minha aparência, embora tentassem, em vão,
não demonstrá-lo. Minha mãe beijou-me os dois lados da face e levou-me ao seu
gabinete, onde meu pai, agora, passava todo o tempo.
Estava sentado à mesa, com uma pilha de livros-razões na frente, e um par
de lentes de aumento sobre o nariz. Não nos ouviu entrar e ficamos, por um
momento, observando-o, enquanto descia seus dedos por cada coluna, seus
lábios se movendo silenciosamente enquanto contava, fazendo, em seguida,
várias anotações na margem. Parecia mais um dos agiotas nas ruas do que um
próspero comerciante da cidade. Mas, talvez, já não fosse tão próspero.
— Ahh... Alessandra — disse ele ao me ver, meu nome ressoando como
um longo chiado vindo de seu peito. Levantou-se e era tão mais baixo do que eu
me lembrava, como se alguma coisa em seu centro tivesse ruído e o resto do
corpo se recurvado para dentro para proteger o buraco.
Abraçamo-nos e nossos ossos chocalharam juntos.
— Sente-se, sente-se, sente-se, minha filha. Temos muito o que conversar.
Mas depois de trocarmos gracejos, de ele me congratular pela boa-nova e
perguntar como estava meu marido, parece que restou muito pouco a dizer, e
seus olhos começaram a se extraviar, de volta às colunas e seus livros.
Esses livros, com sua organização e exatidão, foram durante muitos anos
o seu orgulho e alegria, a evidência escrita de nossa riqueza cada vez maior.
Agora, enquanto ele olhava, parecia estar sempre encontrando erros, estalando a
língua irritado ao sublinhá-los pesadamente, escrevinhando mais cifras do lado.
Minha mãe salvou-me um pouco depois.
— O que ele está fazendo? — perguntei enquanto saía sem fazer ruído.
— Está... ele está cuidando de seus negócios. Como sempre fez —
replicou rapidamente. — Mas... agora tem uma coisa que devia ver.
E, assim, ela me levou à capela.
Era realmente uma visão surpreendente. Onde tinha sido pedra fria em
uma luz fria, havia agora dois grupos de bancos de nogueira, cada um com suas
extremidades esculpidas e polidas. O altar estava no lugar, com um delicado
painel da Natividade no centro, iluminado pela seqüência de velas grandes em
castiçais de prata, seu fulgor dirigindo o nosso olhar para cima, para os afrescos
das paredes.
— Oh!
Minha mãe sorriu, mas enquanto eu andava na direção do altar, ela me
deixou só e, um pouco depois, ouvi as portas se fecharem atrás dela. Com
exceção de um pequeno pedaço de lona na parte inferior, metade dos afrescos da
parede à esquerda estava concluída; completos, coerentes, belos.
— Oh — repeti.
Santa Catarina, em seu martírio, com gravidade e serenidade, a sua tortura
apenas um estágio passageiro em sua jornada em direção à luz, sua face
iluminada com quase a mesma alegria infantil da primeira Virgem na parede de
seu quarto.
Meu pai foi retratado à esquerda do altar, minha mãe no lado oposto.
Estavam de perfil, ajoelhados, suas roupas sombrias, o olhar devoto. Para um
homem que começara a vida na loja de um negociante de tecidos, era uma
elevação digna, mas era minha mãe que chamava a atenção, mesmo de perfil seu
olhar tão intenso e a postura tão alerta.
Minha irmã personificava a figura da imperatriz visitando a santa em sua
cela, sua roupa de casamento reproduzida fielmente com uma cor tão viva que
ela quase eclipsava a beleza serena da santa, enquanto Luca estava em um de
seus interlocutores, suas feições taurinas e o olhar inflexível exsudando uma
certa presunção, embora, provavelmente, ele fosse interpretar como autoridade.
E Tomaso... bem, Tomaso tinha tido seu desejo satisfeito. Ah estava, curado de
sua aflição atual para os propósitos de posteridade, forte e elegante como um dos
eruditos mais proeminentes da corte, um homem cujo senso de elegância era tão
vibrante quanto sua mente. Nas gerações futuras, qualquer que fosse a família
que rezasse ali, as garotas da casa teriam sua atenção dividida entre a devoção e
o desejo. Quão poucos saberiam...
E eu? Bem, como minha mãe tinha insinuado, eu estava no céu, tão alto
que a pessoa teria de ter a vista jovem e arriscar um torcicolo para apreciar a
verdadeira profundidade da semelhança. Mas para entender realmente o poder
da transformação, seria preciso ter visto o que tinha sido pintado lá antes. O
Diabo foi expulso de seu trono, todo sinal de canibalismo e terror perdeu-se na
luz difusa. Em seu lugar estava Nossa Senhora; não tanto uma beldade quanto
uma alma substancial, sem nenhum sinal da deselegância de uma girafa,
satisfeita, finalmente, com tudo o que haviam exigido dela.
Fiquei com minha cabeça para trás, girando várias vezes para ver como
cada parede alcançava o teto, até ficar tonta e os afrescos parecerem nadar e
rodopiar diante de meus olhos, como se as próprias figuras estivessem se
movendo. Eu sentia uma espécie de alegria, como há muito tempo não sentia.
Quando girei de novo, ele estava lá, na minha frente.
Estava bem vestido e bem alimentado. Se ficássemos juntos, agora o seu
corpo ocuparia mais lugar do que o meu. As minhas náuseas tinham mantido
todo e qualquer desejo à distância, mas sem elas, temi que minha mente
estivesse tão atordoada quanto meu corpo.
— Então? O que acha? — seu italiano tinha menos sotaque agora.
— Oh, é lindo. — E me vi rindo largo, como se a felicidade transbordasse
e eu não pudesse fazer outra coisa a não ser derramá-la. — É... é florentino —
fiz uma pausa. — E você, está bem?
Ele assentiu com um movimento da cabeça, seus olhos fixos nos meus,
como se ali houvesse um texto que ele tentasse ler.
— Não sente mais frio?
— Não — replicou baixinho. — Não sinto mais frio. Mas você...
— Eu sei — interrompi rapidamente. — Está tudo bem... estou melhor
agora. — Tem de lhe contar, pensei. Tem de lhe contar. Se ninguém contou.
Mas não consegui. Enquanto as palavras se esgotavam, ficamos olhando
um para o outro, e continuamos assim. Se alguém entrasse... Lembrei-me de
quantas vezes o mesmo pensamento me ocorrera: seu quarto na primeira vez, na
capela à noite, no jardim... Erila tinha me dito, certa vez, que a inocência pode
criar mais armadilhas do que o conhecimento. Mas em nossa inocência, sempre
houvera conhecimento. Soube disso naquele momento. Queria tanto tocá-lo que
minhas mãos doíam.
— Então... — Minha voz soou estranhamente leve, como a escuma dos
ovos quando são batidos. — Sua capela está pronta.
— Não. Ainda não, Ainda falta uma coisa a ser completada.
Por fim, estendeu a mão para mim. Quando a aceitei, meus dedos
deslizaram pela pele grossa da sua palma, mas as cicatrizes eram tão ásperas que
tive dúvidas de se ele sentiria o meu toque. Conduziu-me à parede no lado
esquerdo, onde tirou o pedaço de lona que restava. Embaixo da lona, havia um
pequeno espaço em branco no afresco: o esboceto de uma mulher sentada, com
suas saias cheias, o rosto voltado para uma janela na qual um pássaro branco
devolvia seu olhar. Santa Catarina como uma jovem delicada, preparando-se
para deixar a casa de seu pai. A faixa comprida de gesso na sua imagem ausente
ainda estava úmida.
— Sua mãe me disse que você viria hoje de manhã. O gesseiro acabou
ainda agora. Ela é sua.
— Mas... não posso...
Minha voz desapareceu. Observei seu sorriso se alargar.
— Não pode o quê? Não pode pintar uma garota que está para desafiar
seus pais e o mundo para obedecer à sua própria vocação? — pegou um pincel e
estendeu-o a mim. — Nos esboços de sua irmã, você fez os panos de seu pai
moverem-se como água. A parede perdoa menos que o papel, mas você, de
todas as pessoas, não deve temê-la.
Fiquei olhando o espaço em que Santa Catarina estaria. Meu corpo todo
pinicava. Ele tinha razão. Eu a conhecia. Sabia exatamente o que estava sentindo
agora: o embate entre a excitação e a trepidação. Ela já estava pintada em minha
mente.
— Misturei ocre, tons de pele e dois vermelhos diferentes. Diga-me de
que outros tons precisa.
Peguei o pincel em sua mão e foi impossível saber se o enjôo que senti foi
pelo risco que corríamos ou pelo desafio de desenhá-la. A primeira pincelada e a
visão daquela cor iridescente deslizando do pincel na parede venceram meu
medo. Observei como meu pulso movia-se ao manobrar o pincel, a maneira
como a ordem e a ação se conectavam indelevelmente. Tudo relacionado a isso
era tão físico: a precisão de cada pincelada, a textura da tinta ao colidir com o
gesso, como se uniam e aglutinavam, a excitação com a imagem crescendo e se
arredondando sob seus dedos... oh, se eu tivesse sido Fra Filippo, jamais teria
querido sair de minha cela.
Não falamos. Ele trabalhava do meu lado, preparando as tintas e limpando
os pincéis. E assim, Catarina transformou-se em suas roupas, suas pernas rijas
de camponesa, firmes mas ocultas sob o pano. E a sua expressão, quando chegou
a sua vez, transmitia, espero, a coragem que era preciso assim como a graça
recebida. Por fim, meus dedos ficaram entorpecidos com a tensão ao segurar o
pincel.
— Tenho de descansar — disse eu, recuando da parede. E quando me
levantei buscando ar fresco, perdi o equilíbrio.
Ele segurou meu braço.
— O que há com você? Eu sabia. Está doente.
— Não — disse eu. — Não. Não estou... — sabia o que tinha de dizer,
mas não consegui emitir as palavras.
Ficamos, de novo, olhando um para o outro. Eu não conseguia respirar.
Eu não fazia idéia do que faria em seguida. Talvez nunca mais em nossa vida
pudéssemos estar a sós novamente. Tínhamos nos cortejado nessa capela.
Embora nenhum dos dois tivesse se dado conta de que tinha sido isso.
— Eu não.
— Eu queria...
Mas a sua voz era mais urgente do que a minha.
— Queria vê-la. Eu não sabia... Quer dizer, como você não veio, comecei
a achar...
Seus braços me cingiram e seu corpo me era tão familiar, como se durante
esse tempo todo eu tivesse guardado uma cópia dele em minha mente. E senti o
desejo — pois agora eu sabia que era isso — se inflamar, como uma fonte
quente, em meu estômago.
O barulho da porta da sacristia se abrindo nos separou tão rápido que era
possível que ele não nos tivesse visto. Que estava sofrendo, era óbvio pela
maneira como andava, embora o sentimento que transmitisse fosse mais o de
fúria. Não era de admirar. Eu era como Vênus e Adônis em um único ser em
comparação a ele agora. As bolhas tinham tomado seu rosto. Havia três, uma na
bochecha esquerda, outra no queixo e uma terceira no meio de sua testa, como o
olho de ciclope. Eram grandes e estavam cheias de pus. Ele aproximou-se
mancando. Era evidente que as tinha também entre as pernas. Mas pareciam não
ter afetado seus olhos. Bem, saberíamos logo.
— Tomaso — disse eu, movendo-me rapidamente em sua direção. —
Como vai? Como está a doença? — juro que não havia nem uma pontinha de
triunfo em minha voz. Pois certamente o sofrimento nos torna solidários.
— Não tão aceitável quanto a sua — olhou para mim sem piscar. — Mas
Plautilla tem razão, você parece um espantalho. Formamos um belo par agora —
riu com desdém. — Então. Para quando é?
— Ahn... a primavera. Abril, maio.
— Um herdeiro para Cristoforo, hein? Trabalhou bem. Não achei que
você tivesse essa habilidade.
Senti o pintor enrijecer do meu lado. Relanceei os olhos para ele.
— Provavelmente já sabe — disse eu, com uma voz que vibrava de
alegria — que estou grávida. Mas não passei muito bem, por isso ainda não
aparece.
— Grávida? — olhou fixo para mim. Os cálculos não eram difíceis, nem
mesmo para um garoto criado em um mosteiro.
Devolvi-lhe o olhar. Se ama um homem por sua franqueza, não pode ficar
irritada quando ele a demonstra.
Tomaso olhou para nós dois.
— Tomaso, viu a capela? — disse eu, virando-me para ele com uma
fluidez que faria meu professor de dança chorar de alegria. — Não acha que está
maravilhosa?
— Hummm. Muito bonita — mas continuava nos olhando.
— A sua figura é a mais...
— Lisonjeira — completou bruscamente. — Mas tínhamos um acordo, o
pintor e eu, não tínhamos? E fantástico como temos segredos. Soube que foi
minha irmã que o ajudou em sua... desafortunada enfermidade. Quando foi isso?
No começo do verão, não foi? Há quantos meses exatamente?
— Por falar em segredos — disse eu com meiguice, sempre o sinal mais
seguro de mordacidade entre nós —, mamãe me contou que você se confessou.
— Vamos, pensei, deixe-o em paz. Você sabe que nós dois somos os melhores
nesse jogo. Qualquer outro seria derrotado facilmente.
Ele fez uma carranca.
— Sim... que gentil ela mantê-la informada.
— Bem, ela sabe o quanto me preocupo com o seu bem-estar espiritual.
Se bem que deve ter sido um choque quando você percebeu que, afinal, não
morreria.
— Sim, mas vou lhe dizer uma coisa, irmã. Tem suas vantagens — fechou
os olhos, como que saboreando o momento. — Como estava verdadeiramente
arrependido, agora estou salvo. O que me dá grande conforto, como pode
imaginar. Se bem que devo confessar que fiquei mais intolerante em relação aos
pecados dos outros — e olhou de novo para o pintor. — Diga-me, como vai
Cristoforo?
— Está bem. Não o tem visto?
— Não. Mas como está vendo, não sou mais uma bela companhia.
Olhei para ele. Percebi o medo em sua fúria. Como era estranho um
homem ter-se sentido tão amado e isso não ter gerado nenhuma ternura.
— Sabe, Tomaso — disse eu —, não acho que a sua amizade se baseie
somente na beleza — e por um segundo, me desarmei. — Se é um consolo,
tampouco eu o tenho visto. Tem andado ocupado com outras questões.
— Sim, estou certo que sim. — Era quase possível tocar na ferida aberta
em sua arrogância. Pensei, por um momento, que ele ia chorar. — Bem — disse
rapidamente —, você e eu conversaremos mais outra hora. Já a ocupei por
tempo demais. — Apontou para o afresco quase terminado. — Por favor...
voltem ao... que quer que estavam fazendo antes de eu interrompê-los.
Nós o observamos sair mancando. Quando as bolhas estouram, quanto de
sua amargura deve escoar junto com seu liquido, pensei. Sem dúvida,
dependeria do quanto as cicatrizes o desfigurariam. Quanto ao que faria com as
suas suspeitas, bem, preocupar-me com isso só me enfraqueceria para a luta, se
houvesse.
Virei-me para o pintor. Como poderia entender o que acabara de
presenciar? Eu não tinha palavras, muito menos estômago para lhe contar.
— Preciso terminar sua saia... — falei asperamente.
— Não. Eu tenho de...
— Por favor... Por favor, não me pergunte nada. Você está bem, a capela
terminada, e eu espero um bebê. Temos de estar gratos.
E, dessa vez, fui eu que desviei o olhar. Peguei o pincel e voltei para a
parede.
— Alessandra!
Sua voz deteve minha mão. Acho que foi a primeira vez que usou meu
nome desde que nos conhecemos. Virei-me.
— Não pode ficar assim. Você sabe disso.
— Não! O que sei é que meu irmão é perigoso demais e nós dois, agora,
estamos à sua mercê. Não percebe? Temos de ser estranhos um para o outro.
Você é o pintor. Eu sou a filha casada. É a única maneira de nos salvarmos.
Virei-me para a parede, só que o pincel estava tremendo demais para que
pudesse usá-lo. Apertei o punho à sua volta e obriguei minha mão a se firmar,
ficar tão firme quanto meu coração. O desejo dele estava à minha volta. Tudo o
que eu tinha a fazer era me virar e deixar que me abraçasse. Coloquei o pincel na
parede e dirigi todo o meu desejo à tinta.
Depois de um tempo, juntou-se à mim, e quando minha mãe voltou à
capela para me buscar, nos encontrou pintando um do lado do outro.
E apesar de ela não ter dito nada, nessa noite mandou Erila para o
alojamento dos criados e dormiu comigo em meu antigo quarto, onde ficou tão
evidentemente inquieta que nem mesmo eu, que no passado tivera tanta coragem
para sair a caminhar na noite, me atreveria a arriscar seu olho semi-aberto.
Trinta e Sete
A CONSAGRAÇÃO FOI REALIZADA PELO BISPO, que só se demorou
tempo suficiente para comer e beber fartamente, e que foi embora com algumas
peças de tecido esplêndidas e um cibório de prata. Supostamente teria um local
onde esconder tudo isso, pois se os Anjos ficassem sabendo desses presentes, o
arrancariam de seu palácio e o jogariam em suas carroças antes de ele ter tempo
de dizer Ave Maria.
O padre que realizou a missa depois foi o confessor de Tomaso. Era
amigo da família de minha mãe há muito tempo, quem me iniciou no catecismo
e ouviu as minhas primeiras confissões. Só Deus sabe quantos pecados enfeitei
para seu deleite, então. Tive uma propensão precoce para o drama e, às vezes,
quis parecer mais culpada do que era realmente, pois achava que, assim, a minha
absolvição poderia receber mais atenção de Deus. Na medida em que nunca
evitei o confessionário, poder-se-ia argumentar que fui amaldiçoada desde a
infância, mas, ao mesmo tempo, o Deus com que cresci sempre tinha sido mais
benevolente do que vingativo, e eu tinha sido amada o bastante para acreditar
que ele continuaria a ser assim. Quantas outras famílias haveria na cidade que se
encontravam agora em uma posição igualmente difícil diante da recente
intransigência? Se bem que observando as recompensas que o bispo embolsava
por fazer o que, afinal, era obra de Deus, era fácil ver como as linhas da batalha
tinham sido traçadas.
O serviço foi simples: um sermão curto sobre a graça e coragem de Santa
Catarina, o poder da oração, a riqueza dos afrescos e a alegria do Verbo
transformado em tinta, embora o ardor do padre tivesse sido mediado pela
presença de Luca, que se sentou no segundo banco como uma massa de
fermento. Meu irmão engordara ao servir ao Frei — eu tinha ficado sabendo que
a ameaça de fome tinha visto uma nova onda de recrutas da milícia de Deus nas
últimas semanas —, com um senso cada vez maior de sua importância. A nossa
conversa foi cordial, banal, até eu tocar no assunto da excomunhão, pelo Papa, e
a confusão que isso poderia causar em seus seguidores. Luca explodiu de raiva,
alegando que Savonarola era o defensor do povo, o que significava que somente
Deus tinha o direito de excluí-lo do púlpito, e que ele pregaria sempre que
quisesse, independente de quaisquer ordens do encarregado do bordel mais rico
de Roma.
Na verdade, a retórica do meu irmão sobre a corrupção da Igreja
estabelecida era, agora, tão extremada e racional, com uma lógica tão clara e
fervorosa — em si mesma, um tributo do homem que lhe ensinara —, que
parecia impossível qualquer acordo entre as partes. Se Savonarola voltasse a
pregar, o Papa não poderia tolerar tal ameaça à sua autoridade. Usaria da força
para esmagá-la? Certamente, não. Nesse caso, acabaríamos com algum tipo de
cisma? Não suportar a idéia de uma Igreja que denunciava a arte e a beleza,
significaria, na verdade, aprovar uma que vendesse a salvação e deixasse seus
bispos e papas desviarem a riqueza da Igreja para os bolsos de seus filhos
ilegítimos? No entanto, um cisma era impensável. Um dos dois teria de ceder.
Relanceei os olhos, em volta, para o resto da família. Minha mãe e meu
pai estavam no banco da frente, as costas dela eretas forçando-o a ficar
aprumado. Esse era o momento com que ele sonhara. Apesar de nossa riqueza
estar minguando, nossas cabeças mantinham-se erguidas, exceto quanto a
Tomaso, que se sentou separado, consumido pela autocomiseração, muito mais
consciente de sua feiúra do que havia sido de sua beleza. Do seu lado estavam
Plautilla e Maurizio, robustos e apáticos, e, em seguida, meu marido e eu. Uma
família florentina comum. Ha! Se se escutasse com atenção, era possível ouvir o
coro de nossos pecados e hipocrisias silvando em nossas almas.
O pintor estava atrás, e eu podia sentir seus olhos em mim. Tínhamos
passado a manhã movendo-nos um à volta do outro como dois poços em um rio,
que se aproximam constantemente sem nunca se fundir. Tomaso nos observava
com seus olhos de falcão, mas nos esqueceu assim que Cristoforo apareceu. Os
dois se encontraram brevemente no pátio, ao longo de uma mesa com comes e
bebes, os dois tão tensos quanto cavalos de corrida, minha mãe e eu fingindo
não notar. Mal se falaram, e quando fomos chamados à capela, Tomaso se soltou
e virou-se com um movimento óbvio para chamar a atenção. Preferi não olhar
para meu marido, mas não pude deixar de notar a cara de Luca quando passaram
por ele. Lembrei-me do comentário de minha mãe tempos atrás. O sangue é
mais espesso do que a água. Mas seria mais espesso do que a crença?
— Você tinha razão em relação ao seu pintor. — De volta à casa de meu marido,
sentamo-nos no pátio do jardim descuidado, observando o pôr-do-sol, os dois
um pouco nervosos sem saber bem o que contar. — Ele tem talento. Se bem que
com a atmosfera atual da cidade, faria melhor indo para Roma ou Veneza, para
suas próximas encomendas. — Fez uma pausa. — Ainda bem que seu espírito
não sofre de vertigem. Por quanto tempo posou para ele?
— Algumas tardes — repliquei. — Mas foi há muito tempo.
— Então o aplaudo ainda mais. Captou tanto a criança quanto a mudança
em você. O que aconteceu para que um homem desse desfigurasse a si mesmo
de uma maneira tão brutal?
Não. Meu marido não deixava escapar muita coisa.
— Por algum tempo, perdeu a fé — respondi calmamente.
— Ah, pobre alma. E você ajudou-o a reencontrá-la? Bem, salvou algo
ali, Alessandra. Há muita ternura nele. Ele teve sorte de a cidade não o
corromper ainda mais. — Fez uma pausa. — Há uma coisa de que precisamos
falar, se ainda a desconhece. A infecção de Tomaso... é contagiosa.
— Está dizendo que estou doente? — E meu estômago virou de medo.
— Não. Mas que nós dois podemos estar.
— Nesse caso, onde ele a pegou? — perguntei bruscamente.
Ele riu, embora não houvesse muito do quê.
— Minha querida, não parece muito difícil de entender. Tenho sido um
louco de amor quando se trata de seu irmão, desde a primeira vez em que pus os
olhos nele, no fundo de um antro de jogo, perto da ponte velha, há três anos. Ele
tinha quinze anos e era tão impetuoso quanto um potro. Talvez fosse insensato
eu esperar que tal paixão pudesse vir a ser mútua.
— Bem, eu teria lhe dito isso — disse eu. — Quanto tempo até sabermos
ao certo?
Ele sacudiu os ombros.
— A doença é nova para todos nós. A única esperança é que as pessoas
não parecem morrer disso. O senão é que não existem regras e nenhum remédio
que se aplique a ela. Tomaso caiu rápido, mas pode ser por tê-la contraído no
começo. Ninguém sabe.
Pensei no proxeneta enforcado na Ponte Santa Trinita, com suas tripas no
chão, e em como isso tinha sido castigo por, entre outras coisas, oferecer aos
franceses tudo o que desejavam. E isso me fez pensar de novo no assassino; que
força de retidão devia haver dentro dele. E que fúria.
— Mas há algo pior — disse ele baixinho. — Outra epidemia chegou à
cidade.
Olhei para ele, que baixou os olhos.
— Oh, Cristo, não. Quando?
— Há uma semana. Talvez antes. Os primeiros casos chegaram à morgue
alguns dias atrás. As autoridades tentarão manter sigilo pelo máximo de tempo
possível, mas não deverá ser muito.
E apesar de nenhum de nós dois dizer nada, a palavra já estava no ar,
deslizando por sobre as portas, saindo pelas janelas para as ruas, entrando em
toda casa daqui até os muros da cidade, o medo mais infeccioso do que a própria
doença. Ou Deus estava tão impressionado com a devoção florentina que
resolvera chamar os devotos diretamente a Ele ou... bem, o "ou" era terrível
demais para se pensar nele.
Trinta e Oito
A PESTILÊNCIA CHEGOU COMO SEMPRE ACONTECIA, sem quê nem
para quê, sem nenhum aviso e nenhum sinal do nível de dano que causaria ou de
quanto tempo duraria. Foi como um fogo que poderia destruir cinco ou mil
casas, dependendo da direção em que o vento soprasse. A cidade ainda
carregava as cicatrizes do grande expurgo de século e meio atrás, quando havia
exterminado praticamente mais da metade da população. Tantos monges haviam
morrido então, tombando como peças de boliche em suas celas, que uma crise
de fé foi desencadeada entre aqueles que restaram, e igrejas e conventos
conservavam pinturas daquela época, todas obcecadas pelo Juízo Final e a
proximidade do inferno.
Ainda assim, certamente Florença, agora, estava diferente, um estado pio
governado por um grande pregador e policiado por um exército de Anjos.
Enquanto as Bolhas podiam ser vistas como um castigo merecido dos pecadores,
até mesmo uma confissão pública de fornicação, a peste era outra história. Se
fosse realmente castigo de Deus, então o que teríamos feito para merecê-lo? Era
uma pergunta que Savonarola deveria responder.
A notícia de seu retorno ao púlpito viajou mais rápido do que a doença. Eu daria
qualquer coisa para ouvir a sua predica, mas embora a praga fosse, de fato,
partidária do igualitarismo, tinha demonstrado uma afeição por aqueles que já
estavam fracos. Se só se tratasse de mim mesma, talvez tivesse corrido o risco,
motivada pela minha curiosidade insaciável, mas agora eu tinha de pensar por
dois, e, no fim, aceitei acompanhar Cristoforo na carruagem até a igreja para ver
a multidão, depois retornar à casa, enquanto ele entrava.
Que a multidão era menor, ficou óbvio para todo mundo. Evidentemente,
havia bons motivos para isso — o medo de contágio ou mesmo a própria
doença. Seria precipitação diagnosticar o declínio de sua influência pelo
comparecimento a um único sermão. Uma vez lá dentro, meu marido disse que a
paixão de Savonarola não se amainara nem um pouco e, sem dúvida, todos que o
ouviram sentiram o fogo de Deus de novo em suas entranhas. Mas nas ruas,
onde sua voz não alcançava, nem todas as pessoas estavam doentes. Algumas
pareciam simplesmente extenuadas, suas barrigas sofrendo de outra dor, dessa
vez de fome, de modo que, depois de algum tempo, ficou difícil distinguir uma
dor da outra.
A verdade era que apesar de a cidade continuar amando o Frei e
aplaudindo sua coragem e a sua proximidade de Deus, também queria comer.
Ou, pelo menos, se sentir um pouco menos miserável.
A análise de meu marido desse tópico foi elegante. Quando os Medici
estavam no poder, disse ele, como não tivessem Deus mais do que ninguém
(embora tivessem muito mais dinheiro), adotaram uma estratégia simples para
conquistar o povo. Se não podiam oferecer salvação, podiam, pelo menos,
oferecer espetáculo, alguma coisa que fizesse até mesmo o mais pobre dos
pobres se sentir melhor, orgulhoso de sua cidade, orgulhoso de sua visão,
mesmo que essa só se estendesse até a celebração. Não que tais eventos fossem
ímpios. Pelo contrário. Eram concebidos para louvar e dar graças a Deus. Estava
ali em todos eles: nas justas, nos torneios e desfiles. Simplesmente exibiam uma
aparência feliz, ruidosa, até mesmo libertina. E o que quer que acontecesse
durante as festividades, havia sempre a opção da confissão no dia seguinte.
Dessa maneira, por um breve período, as pessoas se esqueciam do que não
tinham, contanto que as coisas melhorassem a longo prazo (ou tão longo quanto
não piorassem), o que parecia suficiente. Era tal a cor e a confiança de seu
reinado, que o povo se sentia como se tivesse "vivido" durante o governo
Medici. Sentimento muito diferente do de simplesmente se preparar para morrer.
Não havia, no momento, outra maneira melhor de banir o "soturno" senão
por um espetáculo religioso: um evento que falasse de Deus, mas que também
servisse para iluminar a existência diária, sombria. Torná-la... bem... menos
soturna.
Tenho de admitir que A Fogueira das Vaidades foi uma idéia inspirada. E a
maneira como Savonarola a mencionou no púlpito foi irresistível: se Florença
estava sofrendo, era porque Deus a tinha escolhido acima de todas as outras e a
sua jornada tinha-se tornado uma questão de sua atenção pessoal. Assim como
ele, Savonarola, flagelava e submetia à fome seu corpo, para se tornar um
recipiente perfeito para o Senhor, a cidade devia se mostrar disposta a fazer
sacrifícios merecedores de Seu grande amor. Da renúncia da riqueza
desnecessária originava-se a bênção requintada. Que necessidades, afinal,
tínhamos desses preciosismos da vida? Cosméticos e perfumes, textos pagãos,
jogos, arte indecente; todos esses objetos e artefatos somente distraíam a nossa
atenção e enlameavam a nossa devoção a Deus. Que lançássemos tudo às
chamas. Que a nossa vaidade e a nossa resistência ardessem no nada e
desaparecessem com a fumaça. No espaço deixado, viria a graça. E apesar de eu
ter certeza de que o próprio Frei nunca chegou a tanto, tal expurgo também
ajudaria a aliviar o sofrimento dos pobres: pois ao induzir os que tinham muito à
humildade, oferecia àqueles que nada tinham o conforto de que ninguém mais o
teria em seu lugar.
Ao longo das semanas seguintes, as vaidades coletadas pelos Anjos
ascenderam em uma grande pira octogonal, no meio da Piazza della Signoria.
Erila e eu a observamos crescer com um misto de admiração e horror. Não se
podia negar que a cidade se sentia viva de novo. A sua construção ofereceu
trabalho para pessoas que, de outra maneira, ficariam ainda mais fracas por
causa da fome. As pessoas tinham algo do que falar, um foco para mexericos e
excitação. Homens e mulheres acabaram com seus guarda-roupas. Crianças
acabaram com seus brinquedos. Onde antes ostentávamos nossos bens, agora
explorávamos as atrações de sacrifício.
Evidentemente, nem todos demonstraram o mesmo grau de entusiasmo.
Na verdade, houve muitas pessoas que, se tivessem escolha, talvez não
participassem. Foi aí que entraram os Anjos, um gesto, em si mesmo,
inteligente, pois o jovem exército de Deus andava, de certa forma,
subempregado, ocioso em uma cidade deprimida pela fome e doença. Alguns
eram mais persuasivos do que outros. Savonarola tinha inflamado uma grande
retórica em algumas almas jovens durante seu reinado, e a população deparavase com alguns cujas palavras refulgiam como laça dourada da boca de Gabriel
na Anunciação. Uma vez, vi um deles convencer uma jovem elegante a abrir
mão de seu bracelete escondido e a admitir uma trança postiça em seu cabelo.
Os dois se separaram iluminados.
Os Anjos conduziam carroças pelas ruas, a que seguia na frente levando a
terna estátua de Donatello do menino Jesus. Entoavam as laudes e hinos e
visitavam cada casa ou instituição sucessivamente, perguntando do que queriam
abrir mão. Em alguns lugares, tornou-se quase um esnobismo, com uma
querendo sobrepujar a outra. Em outros, as visitas tocavam as raias da
Inquisição. Os Anjos tinham se preparado bem, buscando primeiro as famílias
mais ricas para darem um bom exemplo. Se recebiam o bastante, agradeciam e
prosseguiam seu caminho. Do contrário, convidavam a si mesmos a entrar e dar
uma olhada. É claro que a doação era voluntária, mas meninos adolescentes
podem ser incrivelmente desajeitados quando estão com pressa, e bastaram
algumas histórias de vidros de Murano quebrados e tapeçarias rasgadas, para
que muitas famílias demonstrassem generosidade, uma generosidade gerada
pelo medo. Mesmo quando Florença tinha sido invadida, nossos inimigos
haviam se comportado com mais fidalguia, embora, agora, fosse preciso
coragem para usar a palavra pilhagem na presença dos Anjos.
Na manhã que vieram à nossa casa, eu estava sentada a uma janela do
andar de cima, observando-os avançarem pela rua, sua cantoria estridente —
vozes excessivamente entrecortadas, conspurcando as angelicais — por sobre a
percussão das rodas das carroças. As leis sobre a arte indecente eram conhecidas
de todos. Não deveria haver imagens de homens e mulheres nus nas casas em
que havia moças. Como a maioria das casas tinham garotas, mesmo que criadas,
as leis poderiam ser aplicadas de maneira um tanto impiedosa. Por esses
padrões, a galeria de esculturas de meu marido seria considerada obscena.
Estava trancada, a chave com ele, enquanto no pátio, uma caixa de oferendas
estava pronta: alguns tecidos vistosos e antiquados, alguns baralhos de cartas,
diversas quinquilharias e leques e um grande e feio espelho de moldura dourada,
que denunciava mais um mau gosto do que uma ausência de fé. Temi que não
fosse o bastante (minha gravidez me tornava mais apreensiva do que antes), mas
Cristoforo ficou impassível: apesar de haver, no poder, quem soubesse de tais
coleções, argumentou ele, seriam cautelosos quanto a quem traírem. A sorte
mudava rapidamente em um clima tão volátil quanto o atual, disse ele, e
políticos inteligentes eram capazes de sentir de longe o cheiro de dissensão.
Quando chegaram em nossa casa, abrimos logo os portões e Erila levou
uma bandeja de bebidas leves, enquanto Filippo carregava as caixas.
Havia um garoto, de dezesseis ou dezoito anos, no alto da carroça,
ajoelhado nos livros e roupas, arrumando os tesouros para dar espaços para os
outros que chegavam. Observei quando jogou para o lado um painel de madeira
pintado com ninfas e sátiros nus, a superfície rachando e lascando com o seu
descuido.
Corriam rumores que não eram somente os patronos que estavam cedendo
sua arte, mas que também os próprios artistas, com Fra Bartolommeo e Sandro
Botticelli liderando o grupo. É claro que, agora, Botticelli era um homem velho,
que mais precisava do amor de Deus do que de qualquer patrono, se bem que
meu marido insinuava que se ele pretendesse o paraíso, seria melhor que
confessasse outros pecados que não o desejo pelas mulheres. De minha parte,
não pude deixar de me lembrar da descrição que Cristoforo fizera de sua Vênus
nascendo do mar e fiquei feliz por aquela pintura estar oculta no campo. Pelo
menos as nossas ninfas e sátiros não fariam falta à história: as pernas das
mulheres eram curtas demais para os corpos e suas peles pareciam massa de pão
antes de ser assada.
— Olá, moça bonita. Não tem nada para as chamas? Alguma conta de
coral ou leques de penas?
Era um garoto bonito que não se ajustava às suas vestes e corte de cabelo.
Em outra Florença, ele poderia estar cantando uma serenata para mim de volta
de uma noitada na cidade. Especialmente porque, de onde estava, não tinha
como perceber o tamanho da minha barriga.
Sacudi a cabeça, mas não consegui deixar de sorrir. Talvez por nervoso.
— Que tal os pentes em seu cabelo? Não são pérolas que os enfeitam?
Pus a mão no alto da cabeça. Erila havia trançado meu cabelo nessa
manhã, se bem que não me lembrava de que pregadores tinha usado. Não
deveria ser ostentoso. Não obstante, tirei-os. Ao fazer isso, uma parte de meu
cabelo caiu por minhas costas. Ele viu e sorriu largo para mim. Seu sorriso era
contagiante. Talvez até mesmo os Anjos estivessem se cansando da bondade.
Joguei os pentes para ele, que os pegou com um floreio.
Lá embaixo, seus companheiros estavam discutindo se entravam ou não
para procurar mais coisas.
— Vamos — gritou ele, lançando-me outro sorriso. — Se perdermos
tempo em cada casa, perderemos as chamas.
Quando a carroça se afastou, juro que o vi esconder os pentes no bolso.
Na manhã seguinte, a pira estava do tamanho de uma casa. Acenderam os
feixes de madeira ao redor, ao meio-dia, e o momento pôde ser ouvido por toda
a cidade, acompanhado pela fanfarra de trombetas e sinos das igrejas, e um
cântico da multidão que ali se reunira. Mas nem todas as vozes ascendiam aos
céus. Apesar de a praça estar cheia, havia alguns, como nós, que foram observar
os sentinelas tanto quanto celebrar a façanha.
Enquanto estávamos ali, comprimidos pela multidão, Erila e eu vimos
coisas que nos fizeram perder as esperanças. Alguns dias antes, um colecionador
veneziano havia enviado uma mensagem à Signoria, oferecendo 20.000 florins
para salvar a arte das chamas. Sua resposta chegava agora na forma de sua
própria efígie, colocada no alto da pira. Haviam-no vestido com roupas ricas,
coberto sua cabeça com uma dúzia de tranças postiças femininas e colocado
bombinhas dentro de sua figura. Quando as chamas o atingiram, a bombas
explodiram e a efígie oscilou e emitiu ganidos enquanto a multidão incentivava
com gritos. Eu soube, depois, que pessoas juravam que sentiram o cheiro de
cabelo queimado. E tamanha era a excitação e alegria que a impressão era de
que não demoraria para vermos carne humana sendo tostada.
Os cânticos e as orações prosseguiram durante o dia inteiro, conduzidos
pelos dominicanos e pelos Anjos. Mas qualquer um com olhos podia ver que
havia um elemento da Igreja que não estava representado: os franciscanos, que
estavam sentindo os ventos frios do favoritismo corroerem o seu apoio
tradicional entre os pobres, tinham começado a questionar o grande poder de
Savonarola. Mas não conseguiram abalar seu triunfo. A Fogueira ardeu até tarde
da noite. Durante dias depois, as cinzas dos nossos luxos produziram neve cinza
sobre a cidade, cobrindo as saliências de nossas janelas, empoeirando nossas
roupas e enchendo nossas narinas do triste odor de arte incinerada.
E dessa vez, quando o Papa soube, excomungou o Frade.
Trinta e Nove
QUANDO O DECRETO CHEGOU, Savonarola pegou seu chicote e livro de
orações e trancou-se em sua cela em San Marco. Não faria nem diria nada até
Deus ter falado com ele diretamente. Apesar de poucos, agora, duvidarem de sua
paixão, houve, pela primeira vez, comentários sobre seu julgamento. Quaisquer
que fossem suas faltas, o Papa continuava sendo o representante de Deus na
terra, e sem o devido respeito à autoridade, nenhum estado ou governo estaria
seguro.
Enquanto ele pregava, a peste devorava os fiéis. Até mesmo seu próprio
mosteiro foi atacado, a infecção tão feroz que muitos monges partiram. Nesse
meio-tempo, aqueles ainda comprometidos com a Nova Jerusalém tornaram-se
ainda mais decididos, vendo inimigos em toda parte. Os sodomitas que tinham
sido detidos e presos no verão eram, agora, expostos pelas ruas, açoitados
publicamente e mutilados na praça principal. Um dos homens que meu marido
tinha dito conhecer, de nome Salvi Panizzi, foi exposto como um ofensor
contínuo e notório e marcado para ser queimado, mas apesar de seu corpo ter
sido fraturado pela estrapada e o ecúleo, no último momento, a cidade mostrouse inquieta com tal vergonha pública e sua punição foi substituída por uma
multa e a prisão perpétua em um asilo de loucos.
No Natal, Savonarola respondeu, retornando desafiadoramente para
celebrar a missa solene diante de uma multidão na Catedral. Seu corpo estava
tão magro que parecia um esqueleto com as vestes, e seu nariz estava tão afiado
quanto a foice da morte. Mas sua voz era um tiro de canhão: força e chama. A
resposta do Papa foi rápida. Enviou embaixadores à Signoria e exigiu que ou
prendessem esse "Filho da Iniqüidade" ou o enviassem acorrentado a Roma. A
desobediência resultaria na sua fúria contra toda a cidade. Enquanto o governo
prevaricava, Savonarola respondeu aos dois ao mesmo tempo. Suas palavras,
proferidas no púlpito, se propagaram pela cidade por uma cadeia de boateiros:
"Digam a todos que procuram se engrandecer e exaltar, que seus lugares estão
reservados — no Inferno. E também que um deles já tem seu lugar no inferno."
Não há registro de resposta do Papa.
Já não me lembro mais da cronologia exata dos meses seguintes. Há tempos em
que tristeza e drama caem com tanta força que nos curvamos sob seu peso por
um certo tempo, e não conseguimos discernir onde estamos.
O que sei é que a peste atingiu nossa casa no começo do Ano-Novo. A
filha caçula do cozinheiro caiu primeiro. Era uma coisinha magricela, não mais
de sete ou oito anos, e apesar de fazermos tudo o que podíamos, ela morreu em
três dias. Filippo foi o próximo. Seu caso foi mais difícil, e senti muito por ele,
pois não podia ouvir nosso conforto nem falar de seu sofrimento. Agonizou por
dez dias, enfraquecendo paulatinamente. Acabou morrendo à noite, quando
ninguém estava do seu lado. Pela manhã, quando Erila me deu a notícia, caí em
prantos.
Nesse dia, eu e meu marido tivemos a nossa primeira discussão. Ele
queria me mandar para fora da cidade, para a estação de águas no sul ou para as
colinas a leste, onde disse que o ar estaria mais puro. Eu estava tomando a dose
diária de aloé, mirra e açafrão de Erila, para me proteger do contágio, e tinha me
fortalecido depois que os vômitos haviam cessado, mas ainda não me recuperara
de todo, e, apesar de toda a minha curiosidade, acho que acabaria convencida se
os eventos não nos surpreendessem.
Ainda conversávamos, trancados em seu quarto, quando o criado chegou
da casa de meus pais.
O bilhete estava com a letra de minha mãe:
A pequena Illuminata faleceu da febre. Eu iria para a casa de Plautilla, mas
seu pai está doente e temo o contágio se eu for de uma casa para a outra. Se você está
bem e se sente em condições de viajar, sua irmã precisa de você. Não há mais ninguém
a quem eu possa pedir isso. Tenha cuidado com você mesma e com o precioso bebê que
carrega.
Plautilla mal tinha visto Illuminata desde que a mandara para o campo
com a ama-de-leite, quase um ano antes. Não seria a primeira nem a última vez
que uma criança não conseguia chegar ao desmame e minha irmã, que, até onde
eu sabia, tinha passado a sua vida inteira mais preocupada com questões
superficiais do que profundas, já tinha outro filho a caminho.
Portanto sinto-me envergonhada ao admitir que não estava preparada para
o que encontrei.
O som de sua dor nos alcançou assim que saltamos da carroça. Sua criada
desceu a escada correndo para nos receber, e tanto Erila quanto eu percebemos o
pânico em seu rosto. Quando chegamos ao último patamar, a porta do quarto se
abriu e Maurizio surgiu, extremamente abatido. Atrás dele, o arfar de seus
gemidos ressoava como um vento anunciando tempestade.
— Graças a Deus vocês vieram — disse ele. — Está assim desde que
recebeu a notícia hoje de manhã. Eu não posso fazer mais nada, ela não aceita
conforto. Receio que fique doente e perca a criança.
Erila e eu entramos, silenciosamente, no quarto.
Ela estava sentada no chão, do lado do berço vazio, agora preparado para
o novo bebê, o cabelo solto e o vestido desabotoado em cima. A sua barriga era
maior do que a minha e seu rosto inchado de lágrimas. Nunca a tinha visto tão
desgrenhada e perdida. Abaixei-me desajeitadamente sentando-me do seu lado,
minhas saias erguendo-se em volta da minha barriga dilatada, de modo que
juntas parecíamos dois pássaros gordos. Mas quando estendi minha mão para
tocá-la, ela se esquivou e sua voz soou esganiçada.
— Não me toque. Não me toque. Sei que ele mandou chamá-la, mas não
serei confortada. Sei que aquela mulher matou-a. Ela tinha os olhos estranhos.
Maurizio tem de ir à sua casa e trazer o corpo. Não deixarei que ela me impinja
um corpo esquelético que ela encontrou no povoado enquanto fica com
Illuminata. Oh, se pelo menos tivéssemos dado mais para as chamas. Eu disse
que não era o bastante. Que Deus nos puniria por nossa mesquinharia.
— Oh, Plautilla, isso nada tem a ver com as Vaidades. E a peste... Mas ela
pôs as mãos nos ouvidos e sacudiu a cabeça com violência.
— Não, não. Não vou escutá-la. Luca disse que você tentaria me dominar
com sua conversa. Você não sabe nada. Sua cabeça fala e sua alma sofre. Estou
surpresa por Ele não tê-la derrubado. Luca diz que é só uma questão de tempo.
Deve olhar o bebê quando sair de você. Se não for sadio, não haverá remédio
que o salve.
Olhei para Erila. Em lealdade a mim, ela nunca dedicara muito tempo a
minha irmã, e percebi a sua intolerância com a sua histeria. Se não podia ser
interrompida pela razão, eu teria de encontrar outra maneira. Disse-lhe isso com
os olhos. Ela assentiu e saiu, em silêncio, do quarto.
— Plautilla, preste atenção — disse eu, e embora minha voz não soasse
tão alta quanto a dela, me certifiquei de que ouviria. — Se este é realmente o
Seu julgamento, então a sua dor, por si só, é uma vaidade. Se continuar assim,
provocará o trabalho de parto e terá outra morte em suas mãos.
— Oh, você não entende. Acha que as coisas são como as vê. Acha que
sabe tudo. Mas não sabe. Nunca soube e não saberá agora. — E seus gritos
voltaram a soar histéricos.
Deixei que soluçasse mais um pouco, transtornada tanto pela força de sua
paixão contra mim quanto por sua própria dor.
— Ouça — disse eu mais gentilmente, quando seu pranto diminuiu um
pouco. — A única coisa que sei é que você a amava. Mas não pode se culpar.
Não poderia fazer nada para salvá-la.
— Não... você está enganada — interrompeu. — Oh, eu não devia ter
escondido minhas pérolas. Quase as dei. Mas... mas... são tão bonitas. Luca diz
que admitir a nossa fraqueza nos aproximará Dele. Mas às vezes não sei o que
Ele quer de nós. Rezo toda noite e confesso meus pecados, mas... não sou feita
de material tão duro. Não eram nem mesmo pérolas tão boas... E não acho que
quando as uso O amo menos... Não podemos dar nenhuma importância à nossa
aparência? Oh, não compreendo.
Mas ela tinha exaurido sua raiva e lágrimas e, dessa vez, não rejeitou a
minha mão. Afastei um cacho úmido de cabelo da sua face. Sua pele cultuava de
suor e lágrimas, mas ela ainda parecia... tão graciosa.
— Tem razão, Plautilla. Não sei tudo. Vivo demais em minha cabeça e
não o bastante em meu coração. Sei disso. Mas me parece que se Deus nos ama,
então não nos quer prostrados. Ou morrendo de fome. Ou mesmo feios em seu
nome. Ele quer que cheguemos até ele, e não que tornemos isso impossível. O
seu egoísmo não matou Illuminata. Ela morreu da peste. Se foi vontade de Deus
levá-la, não pode se punir por Ele amá-la tanto. Está certo que sofra a sua perda,
mas não a ponto de se destruir.
Ela ficou em silêncio por um momento.
— Você acha mesmo?
— Sim, eu acho. Acho que o que está acontecendo conosco aqui é um
engano. Acho que o que ele fez foi nos deixar cheios de medo e não de amor.
Ela sacudiu a cabeça.
— Eu... eu não sei. Você sempre falou tudo sem rodeios. Se Luca
estivesse aqui, diria...
— Com que freqüência vê Luca?
Ela sacudiu os ombros.
— Ele passa por aqui com seus garotos. Acho que não se sente bem-vindo
em casa e... bem, ele sempre foi mais gentil comigo do que com você e Tomaso.
Acho que não nos sentíamos tão idiotas quando estávamos juntos.
Suas palavras feriram mais fundo do que anos de sua raiva e escárnio
jamais tinham conseguido. Quanto dano minha arrogância havia causado à
minha família?
— Sinto muito, Plautilla — disse eu. — Não tenho sido uma boa irmã
para você, mas se deixar, tentarei reparar isso daqui por diante.
Inclinou-se para mim e nossas barrigas se encontraram. Comecei a
imaginar Maria e Isabel: duas jovens grávidas, as barrigas se encontrando
enquanto louvavam os meios misteriosos do Senhor — uma cena evocada em
uma dezena de murais pela cidade. De certa maneira, eu tinha razão. Os
caminhos do Senhor eram misteriosos. E apesar de não haver sementes santas
em Plautilla ou Alessandra, houve uma revelação a partir do amor que tínhamos
uma pela outra.
Ficamos juntas até Erila retornar com uma poção que ela mesma tinha
preparado. Plautilla bebeu-a e ficamos com ela até que adormecesse.
Seu rosto ficou mais adorável em repouso.
— Não acredito que seja isso que Deus queira de nós — disse eu,
enquanto a observávamos. — Separar famílias. Esse homem está destruindo a
cidade.
— Não mais — Erila sacudiu a cabeça. — Agora, ele está destruindo só a
si mesmo.
Quarenta
JÁ ANOITECIA QUANDO PARTIMOS DE VOLTA para casa. Maurizio
insistiu para que ficássemos — acho que estava, de certa maneira, assustado
com o prospecto de lidar com a sua mulher mudada —, mas nós duas queríamos
estar em nossa casa e recusamos polidamente.
As ruas estavam diferentes da noite em que levamos o pintor para casa.
Chuviscava e o frio fazia o escuro parecer mais profundo. Mas não se tratava só
da estação. A própria atmosfera tinha mudado. Nas últimas semanas, desde a
excomunhão, uma oposição insinuava-se. Com o poder do Papa por trás, os
partidários dos Medici sentiam-se fortes o bastante para se aventurarem a
aparecer em público, e grupos de rapazes cujas famílias lucrariam com a
mudança de governo tinham começado a aparecer nas ruas. Houve, até mesmo,
um embate estranho entre eles e os Anjos. Disseram que tinham sido eles os
responsáveis pelo incidente na Catedral, quando alguém tinha passado gordura
animal no púlpito na noite anterior, antes de Savonarola falar. Depois, durante
seu sermão, uma grande arca foi jogada sobre a nave, espatifando-se no chão de
pedra e causando pânico na congregação. Pela primeira vez, as forças dos
dissidentes se revelaram mais altas do que a sua voz.
No caminho de volta da casa de minha irmã, tínhamos de passar pela
grande fachada de pedra do Palácio Medici, agora entabuada e saqueada, cruzar
para o sul do Batistério e, depois, para o oeste, na Via Porta Rossa. A estrada
estava vazia, porém localizei mais adiante a figura corpulenta de um frade
dominicano surgindo sorrateiramente do escuro de uma das travessas. Seu capuz
estava abaixado, suas mãos juntas dentro das mangas, e o marrom de seu hábito
confundia-o com o escuro. Quando estávamos mais perto, agitou os braços,
fazendo sinal para pararmos. Preparamo-nos para um interrogatório.
— Boa noite, filhas de Deus.
Baixamos a cabeça em uma reverência.
— É tarde para estarem nas ruas, boas irmãs. Estou certo que sabem que
tal transgressão é proibida por nosso nobre Savonarola, Estão sozinhas?
— Como nos vê, Padre. Mas estamos em uma missão misericordiosa —
disse Erila rapidamente. — A irmã de minha ama perdeu seu bebê para a peste.
Fomos levar-lhe conforto e preces.
— Nesse caso é uma ordem desobedecida por generosidade — murmurou
ele, seu rosto ainda oculto por seu capuz, — E Deus incumbiu-lhes, agora, de
outra missão misericordiosa. Há uma mulher ferida perto daqui. Encontrei-a à
porta de uma igreja. Preciso de ajuda para levá-la a um hospital.
— É claro — disse eu. — Venha conosco e nos mostre onde está.
Ele sacudiu a cabeça.
— O beco é estreito demais para as rodas. Desçam e juntos poderemos
trazê-la.
Descemos e amarramos o cavalo. A rua atrás de nós estava vazia e a
travessa para que apontou estava escura como breu. Havia tal ansiedade em tudo
que nem mesmo seu hábito me tranqüilizou. Enxotei meu medo. Ele seguia na
nossa frente, com pressa, seu capuz baixado, seu hábito lustroso com a chuva.
Não fazia muito tempo, os dominicanos andavam pelas ruas como se fossem
donos dela, e agora esse parecia, de certa maneira, com medo de ser visto.
Certamente, a maré estava mudando.
De uma rua em algum lugar mais adiante, ouvi um grito. De surpresa ou,
talvez, dor. Em seguida, uma gargalhada frenética. Relanceei, apreensiva, os
olhos para Erila.
— Está longe, Padre? — perguntou ela, ao atravessarmos a Via delle
Terme e nos embrenharmos em outro beco escuro.
— É logo ali, filha, logo ali na Santi Apostoli. Não ouvem os gritos?
Mas eu não ouvia nada. A entrada da igreja assomou-se à esquerda, suas
portas pesadas bem fechadas. Divisamos uma figura, meio oculta no escuro;
uma mulher caída na escada, a cabeça no peito, como se estivesse cansada
demais para se levantar.
Erila alcançou-a antes de mim e se agachou. Estendeu a mão
imediatamente, impedindo que eu me aproximasse mais.
— Padre — disse ela imediatamente. — Ela não está doente. Está morta.
Há sangue por todo seu corpo.
— Ah, ah, não. Ela estava se movendo quando a deixei. Tentei parar o
sangue com minhas mãos. — Ergueu seus braços e quando suas mangas
baixaram, mesmo no escuro, pude ver as manchas nelas. Abaixou-se do lado
dela. — Pobre criança. Pobre criança querida. Pelo menos agora está com Deus.
Com Deus talvez. Mas devia ter sido uma viagem dolorosa. Por sobre o
ombro de Erila eu pude perceber seu peito ensangüentado. Pela primeira vez em
vários meses, senti a saliva em minha boca aumentar. Erila levantou-se
rapidamente e vi que ela também estava tremendo.
O frei relanceou os olhos para nós duas.
— Temos de rezar por ela. Qualquer que tenha sido a sua pobre vida, nós
lhe traremos a salvação com nossos hinos e orações.
Pôs-se a cantar com uma voz grossa, gutural. E, de repente, havia algo
familiar nele: o manto escuro e o eco de uma voz em outro momento de
escuridão, um que quase me fizera transpirar de medo. Recuei
involuntariamente. Ele quebrou o silêncio.
— Venham, irmãs — dessa vez, o tom foi áspero. — Ajoelhem-se as
duas.
Mas Erila colocou-se com determinação entre mim e ele.
— Lamento, Padre. Não podemos ficar. Minha ama está grávida e se
resfriará se não chegarmos logo em casa. Estas não são horas clementes para
uma mulher grávida estar nas ruas.
Ele olhou para mim como se estivesse me vendo direito pela primeira vez.
— Está com um bebê? Uma criação divina? — ao falar, seu capuz caiu
para trás e pude ver uma face pálida, como a superfície da lua, marcada com
bexigas. Pedra-pomes, pensei; um monge dominicano com a cara como pedrapomes, que via Florença como um esgoto do mal. Há quanto tempo Erila me
contara a história? Mas sei que ela também estava se lembrando.
— Na verdade, sobretudo pia — respondeu ela por mim, me afastando
mais ainda. — Devota e perto de nascer. Mandaremos ajuda de nossa casa.
Vivemos bem perto daqui.
Ele olhou-a fixamente, depois deixou a cabeça cair e voltou a atenção para
o corpo. Estendeu uma mão para o peito da mulher, para o local em que havia
mais sangue, e recomeçou a cantar.
Retornamos aos tropeções à carruagem. O escuro era quase impenetrável,
e Erila manteve minhas mãos com firmeza nas suas. A palma das mãos das duas
estava viscosa de medo.
— O que aconteceu lá? — perguntei sem fôlego quando subimos na
carroça e açoitamos o cavalo, apressando-o.
— Não sei. Mas uma coisa posso dizer. Aquela mulher não estava viva já
há algum tempo. E ele estava fedendo a seu sangue.
Chegamos em casa e encontramos os portões abertos e o cavalariço e Cristoforo
esperando no pátio.
— Graças a Deus, chegaram. Onde estavam?
— Desculpe — repliquei enquanto me ajudava a descer. — Fomos
retardadas nas ruas. Nós...
— Mandei homens procurarem por toda a cidade. Não deviam estar fora a
esta hora.
— Eu sei. Desculpe — repeti. Estendi minha mão para ele. Ele a pegou e
a segurou firme, e senti a ansiedade como uma maré o submergindo. — Mas
estamos de volta. Seguras. Vamos entrar e nos sentarmos à lareira e vou contar o
que vimos nesta noite.
— Não há tempo para isso. — Atrás de mim, o cavalariço desatrelava o
cavalo. Ele esperou até que ficasse longe o bastante. Erila estava do lado. Senti
sua hesitação e fiz um sinal para ela se afastar.
— O que é? O que é? Fale.
— Má notícia.
— Má? O que pode ser pior do que morte e possível assassinato?
Mas não sei se chegou a me ouvir.
— Tomaso foi detido.
— O quê? Quando?
— Foi levado hoje à tarde.
— Mas quem... — interrompi-me. — Luca. É claro... Interrompi-me de
novo. E à luz das tochas, olhamos um para o outro.
Precisei de tempo para encontrar as palavras.
— Com certeza é somente um aviso — sussurrei. — Ele é jovem.
Provavelmente pretendem assustá-lo. — Ele não disse nada. — Vai ficar tudo
bem. Tomaso não é tolo. Se não puder ser forte, será astuto.
Ele sorriu com tristeza.
— Alessandra, não é uma questão de força. É somente uma questão de
tempo — fez uma pausa. — Não lhe dei muita atenção nesses últimos meses. —
E disse isso tão tranqüilamente que nem mesmo estou certa de terem sido essas
as palavras.
— Não é o momento para isso — disse eu peremptoriamente. —Talvez
nenhum de nós tenha dado atenção um ao outro. Talvez essa seja a razão de tudo
o que aconteceu. Mas não é hora de desistir. Você mesmo disse isso. Ele não é a
única voz na cidade agora. Não se atreverão a vir atrás de você. Seu nome é
muito reputado e a maré está ficando contrária a eles. Venha, vamos entrar e
conversar melhor.
Ficamos juntos nessa noite, contemplando as chamas como tínhamos feito
durante aquelas poucas semanas após nosso casamento, antes do ácido do ciúme
que se derramou dentro de mim. Agora, era ele que precisava de ajuda, e embora
eu desse o máximo que podia, não foi suficiente. Toda vez que se silenciava, eu
sabia no que estava pensando. Como é quando se sabe que alguém a quem se
ama está sofrendo? Quando por mais que tampemos nossos ouvidos,
continuamos a escutar seus gritos? Apesar de eu não poder dizer, com
honestidade, que amava meu irmão, a idéia do que poderia estar lhe acontecendo
agora fazia meu estômago se contorcer.
Como não seria pior para o meu marido que havia adorado esse corpo
perfeito quando estava em seus braços? Quando a estrapada tivesse terminado,
não seria mais perfeito.
— Fale comigo, Cristoforo. Vai ajudar, se falar. Diga-me. Deve ter-se
preparado para esse momento. Pensado sobre o que fariam, se chegasse esse
momento.
Ele sacudiu a cabeça.
— Tomaso nunca se preocupou com o futuro. Seu talento era o presente.
Era capaz de tornar o presente tão poderoso, que nos fazia acreditar que jamais
terminaria.
— Então, aprenderá agora. Ninguém sabe como ele ou ela se comportará
até serem testados. Ele pode surpreender a nós dois.
— Ele tem medo da dor.
— Quem não tem?
Eu havia pensado muitas vezes na estrapada. Talvez todo mundo
houvesse. Em certos dias, quando passávamos pelo Bargello no verão e o calor
obrigava todas as folhas de janelas a serem abertas, era possível ouvir os ecos de
dor vindo lá de dentro, E passávamos apressados, tranqüilizados pelo
pensamento de que não era ninguém que conhecíamos ou que eram criminosos
ou pecadores, e de qualquer maneira, não tinha nada que pudéssemos fazer.
Mas, ainda assim, podíamos imaginá-lo. Seu propósito é quebrar a sua vontade
quebrando seu corpo. Apesar de haver um milhão de outras maneiras — tenazes,
fogo, cordas e açoites — em que os ferimentos se curam e as cicatrizes os
cobrem. Mas se usado apropriadamente, não há recuperação da estrapada.
Depois que seus braços são amarrados bem apertados nas suas costas, você é
içado, depois deixam-no cair diversas vezes de uma grande altura, e a pressão é
tal que é só uma questão de tempo para os tendões e músculos estalarem e se
esgarçarem, e suas juntas se deslocarem. Alguns acreditam que é uma tortura
adequada porque lembra a Crucificação. A maneira como os braços de Nosso
Senhor devem ter-se esgarçado com o peso do seu corpo pendendo da cruz. A
diferença é que não se morre. Ou não sempre. Depois, quando o cortam a corda,
dizem que se cai no chão como uma boneca de pano. Às vezes, os vemos, os
sobreviventes, nas ruas anos depois: homens com uma espécie de paralisia,
tremendo e rolando ao se moverem, seus membros trepidando e irregulares.
Deus deu ao homem fragilidade juntamente com a beleza. A Bíblia nos diz que
antes da Queda, não sentíamos dor, e que o nosso sofrimento é culpa da
desobediência de Eva. É tão difícil acreditar que Deus infligiria tal castigo por
um único pecado, por maior que fosse. Certamente a dor também existe para nos
lembrar a transitoriedade e a imperfeição de nossos corpos como o oposto da
radiância da nossa alma. Ainda assim, parece tão cruel...
— Alessandra...
— Desculpe. — Meus pensamentos tinham-se perdido nas chamas e eu
não o ouvira.
— Você está cansada. Por que não vai se deitar? Não há razão para os
dois ficarem esperando.
Sacudi a cabeça.
— Vou ficar com você. Faz idéia de quanto tempo?
— Não. Um dos homens que foram levados no verão... Eu o vi antes de
seu exílio. Ele me contou como foi com ele. Disse que alguns dão nomes logo
de início, para evitar o sofrimento. Mas confissões sem tortura não são
consideradas confiáveis.
— Então, confessam duas vezes — disse eu. — Antes e depois. Eu me
pergunto se dão sempre os mesmos nomes.
Ele deu de ombros.
— Veremos.
Fiquei acordada um pouco mais, porém, como Pedro ao velar a agonia de
Cristo no jardim, na última noite, meus olhos foram ficando cada vez mais
pesados. O dia tinha sido tão longo e, às vezes, a criança parece ter mais poder
sobre quando acordo e durmo do que eu.
— Venha.
Ergui os olhos e ele estava à minha frente. Dei-lhe a mão. Levou-me para
o meu quarto e me ajudou a ir para a cama.
— Devo chamar Erila?
— Não, não, deixe-a dormir. Só vou me deitar um pouco.
E assim fiz.
A próxima coisa de que me lembro é a sensação de ele vir para a cama,
deitar-se do meu lado, aproximando seu corpo com cuidado, até ficarmos um do
lado do outro, como um casal de pedra em uma capela, captados em uma morte
esculpida. Parecia não querer me despertar, portanto não deixei que percebesse
que tinha me acordado. Depois de um tempo, estendeu o braço por cima de
minha barriga, até sua mão em concha sentir a densidade da criança. Pensei em
Plautilla e na criança que ela perdera, e no Frei e no estômago ensangüentado da
mulher, e, finalmente, pensei em Nossa Senhora, tão calma e abençoada em
relação a tudo isso. E nisso, senti o bebê se mover.
— Ah — disse ele com calma. — Está se preparando para a sua chegada.
— Hummm — disse eu sonolenta. — Foi um chute bem forte.
— Imagino como ele será. Com os professores certos, certamente terá
uma mente de florim recém-cunhado.
— E um olho capaz de distinguir uma estátua grega recente de uma
antiga. — Senti o calor de sua mão em minha barriga intumescida. — Mas,
espero que ache mais fácil amar Deus e a arte sem confusão ou medo. Gostaria
que Florença tivesse os dois no futuro.
— Sim. Eu também gostaria.
Ficamos em silêncio. Estendi minha mão e a coloquei, delicadamente, em
cima da sua.
Chegaram ao amanhecer, despertando a casa com a batida nos portões. Em todas
as histórias desse tipo, as más notícias chegam ao amanhecer, como se o dia não
conseguisse conviver com a desonestidade das falsas esperanças.
Apesar de o barulho me despertar, meu marido já estava de pé há muito
tempo. O bebê agora estava tão grande dentro de mim, e eu estava tão cansada,
que precisei de algum tempo para me levantar da cama e descer a escada.
Quando cheguei ao pátio, as portas já tinham sido abertas e o mensageiro estava
lá. Erila também estava acordada, no entanto, as intrigas passam por brechas
invisíveis em tempos como esses.
Eu esperava soldados. Ou mesmo, que Deus não permita, Luca e sua
brigada. Mas havia somente um único homem velho.
— Senhora Alessandra! — levei um momento para reconhecê-lo: o
marido de Lodovica, sua idade acentuada pelo esforço.
— Andréa, o que foi? O que aconteceu?
E ele pareceu tão acabado que me fez pensar no pior.
— Meu pai? — disse eu. — É o meu pai? Ele está morto.
— Não. Não. Seu pai está bem — fez uma pausa. — Sua mãe me
mandou. Para lhe dizer que os soldados foram à nossa casa de manhã cedo. E
levaram o pintor.
Afinal, Tomaso tinha combatido a dor com a astúcia.
Quarenta e Um
NÃO HAVIA MOVIMENTO EM MEU ÚTERO. Pus as mãos sobre o meu
ventre, cutuquei até distinguir a extensão de osso de uma perna e um traseiro
contra a minha pele. Cutuquei mais um pouco e não houve resposta. Tentei não
entrar em pânico. Às vezes, o sono se parece com a morte, mesmo quando ainda
não nascemos.
— Alessandra. — A voz dela me fez escancarar os olhos. Minha fiel
Erila, sentada do meu lado, seus olhos fixos nos meus. Atrás dela, estava
Cristoforo, sua cabeça em um halo do sol da manhã. Olhei de volta para os olhos
de Erila. Cuidado, seu olhar dizia. A cada passo que der agora a sua vida se
tornará mais perigosa. E não poderei estar lá para ajudá-la.
Sorri para ela. Não é de admirar que ela fosse capaz de ler as mãos e ver
padrões na maneira como as sementes de girassol se espalham no solo. Queria-a
ao meu lado para sempre, para que pudesse me ensinar tais habilidades para
lidar com a vida e eu, por minha vez, os transmitisse a meu filho. Entendo,
respondi sem falar. Farei o possível.
— Olá — minha voz ressoou muito distante. — O que aconteceu? —
Você está bem. Desmaiou por um momento, só isso. — E a voz de meu marido
soou cheia de alívio.
— E o bebê...
— Está dormindo, tenho certeza — interrompeu Erila. — Como você
também deveria estar. Num momento como este, qualquer excesso de emoção
pode prejudicar os dois.
— Sei disso. — Sentei-me na cama, peguei sua mão e a apertei com força.
— Obrigada, Erila. Pode nos deixar agora.
Ela assentiu com a cabeça e saiu sem lançar nenhum olhar. Observei-a
sair, seu cabelo solto como um enxame de moscas furiosas ao redor de sua
cabeça.
— Não o levaram. — Sorri para ele. — O alívio deve ter sido muito
grande para mim. — Mas, ao dizer isso, senti uma onda de náusea crescendo
dentro de mim. Agora eu sei. Sei o que você sentiu: esse medo cego que nos
toma ao imaginarmos o que pode estar lhes acontecendo, mesmo agora,
enquanto lhe ocorre o mesmo pensamento. Engoli em seco e tentei de novo. —
Sabe, Plautilla diz que o parto é tão ruim quanto a estrapada. Mas não acredito
nisso, porque o parto é vida e certamente compreendemos isso quando vem a
dor.
— Sua irmã não sabe nada dessas coisas — disse ele abruptamente.
— Não. Cristoforo... — senti minha voz falhar.
— Estou escutando.
— Cristoforo, estou tão contente que não tenha sido você. Tão contente...
— interrompi-me. — Mas sabe que é o ódio de Tomaso por mim. Ele... —
interrompi-me de novo, vendo os olhos de Erila na minha frente.
— Ele poderia ter dito dezenas de outros nomes. Ele sabe do meu grande
amor pela arte e como devo ao estímulo do pintor. — Tive dificuldades em
sustentar seu olhar. — Vão torturá-lo também, não vão?
Ele assentiu com um movimento da cabeça.
— Se foi denunciado, sim. É a lei.
— Mas ele não sabe nada. Não conhece ninguém. Não terá nomes a dar.
Mas não darão importância a isso. Sabe o que vai acontecer, Cristoforo. Sabe o
que farão. Insistirão, insistirão até ele falar, e, assim, romperão as articulações de
seus braços. E sem seus braços...
— Eu sei, Alessandra. Eu sei — sua voz foi incisiva. — Sei muito bem
que está se passando aqui.
— Desculpe — e apesar da intenção de ser prudente, comecei a chorar.
— Sinto muito. Sei que a culpa não é sua — fiz menção de me levantar.
— Tenho de ir até lá.
Ele veio até mim.
— Não seja tola.
— Não. Não. tenho de ir. Tenho de contar para eles. Se não acreditarem
em mim, poderão me interrogar. A lei proíbe a tortura de mulheres grávidas,
portanto serão obrigados a aceitar minha palavra.
— Ahh, isso é total estupidez. Nunca lhe darão atenção. Só fará piorar a
situação, e complicar nós todos em sua maldita culpa.
— Culpa deles? Mas...
— Preste atenção...
— Não é culpa deles. É...
— Pelo amor de Deus, já enviei...
Nossas vozes se confundiram na discussão irada. Eu podia imaginar Erila
em pé, do lado de fora, alarmada, tentando dar sentido àquela tormenta. Parei:
— O que disse?
— Eu disse, se é que consegue se acalmar o bastante para escutar, que já
enviei alguém à prisão.
— Enviou quem?
— Alguém a quem ouvirão. Pode achar o que quiser de seu irmão, e, de
certa maneira, talvez eu ache o mesmo, mas não quero que acredite que eu
deixaria um homem inocente sofrer em meu lugar.
— Oh, você confessou?
Ele riu com amargura.
— Não sou tão valente. Mas achei como fazer os que decidem tais
questões ouvirem. Você dormiu durante horas importantes. A história corre mais
rápido do que o Arno em época de cheia e as coisas estão mudando mesmo
enquanto falamos.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que seu poder, agora, está realmente ameaçado.
— Como?
— Ontem, o líder da ordem franciscana atacou-o abertamente, dizendo
que ele não era um profeta, mas um lunático mal orientado, e que a cidade corre
o risco da danação por segui-lo. Como evidência, desafiou-o aprovação do fogo.
— O quê?
— Os dois juntos atravessarem o fogo para demonstrar se Savonarola está
realmente sob a proteção de Deus.
— Virgem Maria! O que está acontecendo conosco? Nós nos tornamos
bárbaros.
— Na verdade, é o que somos. Mas é espetáculo e, em tempos como este,
substitui com eficiência o pensamento. Já estão erigindo as tábuas encharcadas
na Piazza della Signoria.
— E se Savonarola vencer?
— Não seja ingênua, Alessandra. Nenhum dos dois vencerá. Isso
simplesmente encorajará a plebe. Mas ele já perdeu. Nesta manhã, anunciou que
a obra de Deus era mais importante do que esses testes e nomeou outro Frei para
o seu lugar.
— Oh! Mas então se expôs como uma fraude e um covarde ao mesmo
tempo.
— Ele não vê dessa maneira, mas é a mensagem que o povo receberá. E o
mais importante... é que significa que a Signoria não precisa mais apoiá-lo.
Estavam esperando a oportunidade de uma desculpa desse tipo desde a sua
excomunhão.
— E então, acha que...
— Acho que há uma chance de tudo desmoronar, sim. Ninguém quer ser
seguidor de um líder condenado à destruição, por mais desprezível que seja sua
posição. Em tempos assim, é fácil demais o torturador se tornar o torturado. Nos
velhos tempos, esses crimes podiam ser negociados segundo a influência e
tamanho de seu bolso. Devemos esperar e rezar para retomar esse caminho.
— Então, vai comprar a sua libertação?
— Sim, é possível.
— Oh, Deus! — recomecei a chorar, sem conseguir parar as lágrimas. —
Oh, Deus. Estamos todos loucos. O que será de nós?
— O que será de nós? — sacudiu a cabeça, com tristeza. — Faremos o
que pudermos fazer, viveremos a vida que nos foi dada viver e rezaremos para
que Savonarola esteja errado e que Deus, em sua eterna misericórdia, possa
amar os pecadores tanto quanto os santos.
Quarenta e Dois
O DIA ENTARDECEU E O ENTARDECER virou noite. Por volta da meianoite, chegou uma mensagem para ele. Partiu imediatamente. Lá fora, a cidade
recusava-se a adormecer. Como nos velhos tempos, tanta atividade até tarde da
noite. Com a janela aberta, ouvia-se o rebuliço lá na praça.
Para me confortar, fomos para o meu ateliê. Eu não parava de pensar na
manhã antes do meu casamento, quando la Vacca tinha sido enforcado e minha
mãe não deixara eu sair para ver o que estava acontecendo. Assim como ela
testemunhara a violência Pazzi comigo em seu útero, agora, eu também estava
próxima de eventos sangrentos quando meu filho estava para nascer. Tentei usar
a tinta para acalmar meu pânico, mas até mesmo as cores pareciam mais
rarefeitas e não conseguiram fazer minha cabeça parar de ribombar.
Logo após a alvorada, o portão da frente se abriu e ouvimos seus passos
nos degraus de pedra. Erila, que adormecera, acordou em um estalar de dedos.
Quando ele entrou, eu estava de pé e teria me aproximado se ele não me
detivesse com um olhar de alerta.
— Bem-vindo, meu marido — disse eu calmamente. — Como você está?
— Seu pintor foi solto.
— Oh! — E quando minhas mãos foram à minha boca, senti os olhos de
Erila me aquietarem. — E...Tomaso?
Ficou em silêncio por alguns segundos.
— Não conseguimos descobrir nada de Tomaso. Não está mais na prisão.
Ninguém sabe onde está.
— Mas... quer dizer, onde quer que esteja, está a salvo. Você vai
encontrá-lo.
— Esperemos que sim.
Mas nós dois sabíamos que não era uma conclusão inevitável. Ele não
seria o primeiro prisioneiro a desaparecer de uma prisão sem deixar rastro. Mas
Tomaso era assim. A sua história certamente era audaciosa demais para se
encerrar na parte traseira de uma carroça com uma mortalha sobre si.
— O que mais?
Ele relanceou os olhos para Erila. Ela levantou-se, mas coloquei a mão
sobre seu braço.
— Cristoforo, ela sabe de tudo entre nós. Confio nela mais do que em
mim mesma. A essa altura, acho que deve ouvir o resto.
Ele olhou-a fixamente por um momento, como se a visse pela primeira
vez. Ela curvou a cabeça humildemente.
— Então, o que mais quer saber? — perguntou ele com certo
aborrecimento.
— Eles... quer dizer... ?
— Tivemos sorte. Os carcereiros estavam mais interessados nas notícias
do dia do que no trabalho do dia. Nós o encontramos antes que o pior tivesse
sido feito.
Eu quis perguntar mais, mas não soube como.
— Não se preocupe, Alessandra. O seu precioso pintor ainda será capaz
de segurar um pincel.
— Obrigada — disse eu.
— Talvez devesse esperar antes de me agradecer. Não ouviu toda a
história. Apesar de libertado, as acusações subsistem. Como estrangeiro, há uma
pena de banimento. Com efeito imediato. Falei com sua mãe e escrevi uma carta
de apresentação a pessoas de minhas relações em Roma. Lá, estará seguro. Se o
seu talento continua no lugar, acho que ele poderá usá-lo. Já foi despachado.
Já despachado. O que eu tinha pensado? Que não havia preço a ser pago
por sua liberdade? Já despachado. O mundo pareceu estremecer por alguns
segundos, e percebi como a vida podia empurrar-nos pelas brechas do destino
para o desespero, mas eu não podia deixar isso acontecer agora. Meu marido me
olhava fixamente e havia, achei, uma tristeza nele que eu não percebera antes.
Engoli em seco.
— O que mais pode fazer por Tomaso?
Ele sacudiu os ombros.
— Podemos continuar procurando. Se ele estiver em Florença, nós o
encontraremos.
— Oh, tenho certeza de que sim.
Ele parecia tão cansado. Havia uma jarra de vinho sobre a mesa. Levei-lhe
uma taça, esforçando-me para meu estômago deixar que o servisse. Bebeu um
longo trago, depois recostou a cabeça na cadeira. Pareceu-me que sua pele
tornara-se mais amarelada e flácida com as preocupações noturnas, de modo
que, agora, seu rosto era o de um homem velho. Pus minha mão sobre a dele.
Olhou para ela, mas não respondeu.
— E a cidade? — perguntei. — A provação ainda vai acontecer?
Ele sacudiu a cabeça.
— Ah, torna-se cada vez mais uma farsa. O franciscano agora diz que só
atravessará as chamas com Savonarola. Então outro monge ocupará o seu lugar
também.
— Nesse caso, não há mais por quê.
— Não, a não ser provar que o fogo queima. Poderiam muito bem
escolher caminhar sobre o Arno e julgar qual dos dois molharia os pés.
— Por que a Signoria não dá um basta nisso?
— Porque a população está excitada aguardando, e se agir assim só
conseguirá provocar um motim. Tudo o que podem fazer é restringir os danos e
criticar os freis a quem quer que escute. São como ratos no navio que afunda,
ansiosos por pular, mas com medo da água. Ainda assim, terão, das janelas, uma
vista privilegiada quando as chamas começarem a arder.
Teria havido um tempo em que uma notícia como essa provocaria um
arrepio tanto de excitação quanto de terror, quando eu fantasiaria maneiras de
escapar do controle das acompanhantes e me perderia na multidão, para ser parte
da história de tudo isso. Mas não agora.
— Não consigo admitir que tenhamos caído tanto. Vai assistir?
— Eu? Não. Tenho mais o que fazer do que assistir à humilhação da
minha cidade — virou-se para Erila. — E você? Pelo que sei, você sabe mais o
que acontece em Florença do que a maior parte de seu governo. Vai assistir?
Ela sustentou seu olhar com serenidade.
— Não gosto do cheiro de carne humana queimando — respondeu
calmamente.
— Faz bem. Tudo o que podemos esperar é que Deus concorde e, de
alguma maneira, faça sentir a Sua própria mão.
E assim Ele fez.
Talvez não conheçam a história. Em Florença, tornou-se uma lenda: como
os monges loucos desgraçavam a si mesmos, brigando e discutindo à toa, até
Deus lançar um raio para cessar a rixa.
Se fôssemos diagnosticar o pecado, o orgulho seria o primeiro a nos
ocorrer. E se alguém tivesse de partilhar da culpa, então os dominicanos seriam
os primeiros.
A provação ficou marcada para o meio da tarde do dia seguinte, um dia
antes do Domingo de Ramos. Sob um céu cor de chumbo, os franciscanos
chegaram na hora, comportando-se como seus seguidores, com humildade e
reverência. Em contraste, seus rivais, que haviam aprendido o poder do teatro
com seu líder, estavam ofensivamente atrasados, entrando finalmente na praça
em uma procissão elaborada, carregando um grande crucifixo à frente. Seu
número aumentado dos fiéis cantando as laudes e os salmos. E ali, no final,
Savonarola em pessoa, orgulhoso e desafiador, erguendo a hóstia consagrada.
Isso foi demais para os franciscanos, que exigiram que fosse retirada
imediatamente de suas mãos excomungadas. As coisas se agravaram quando o
representante de Savonarola, Fra Domenico, comunicou sua intenção de carregar
a hóstia e o crucifixo com ele nas chamas. O franciscano, então, se recusou a
acompanhá-lo. Por fim, após muita negociação furiosa — durante a qual, o
corredor de fogo ardia cada vez mais alto e quente —, Fra Domenico concordou
em deixar o crucifixo, mas insistiu em manter a hóstia.
Ainda brigavam feito crianças, quando Deus, compreensivelmente
exasperado como o barulho que faziam e com sua arrogância, rompeu os céus
com raios e trovões, despejando uma torrente de água sobre as chamas e
mergulhando a praça na fumaça e confusão, de modo que, ao cair da tarde, a
Signoria, mais do que aliviada com o fato de alguém mais ter decidido a questão
em seu lugar, suspendeu o fiasco e ordenou que a multidão fosse para casa.
E nessa noite, Florença pagou seus pecados venenosos com vergonha e
decepção.
Quarenta e Três
— ACORDE.
— O que é? O que aconteceu? — O medo me alerta imediatamente.
— Psiuu. Quieta. — Erila, curvada sobre mim, pronta para viajar. — Não
faça perguntas. Levante-se e vista-se. Rápido. Não faça o menor ruído.
Fiz o que mandou, embora o bebê estivesse tão grande que até mesmo as
coisas mais simples levavam muito tempo.
Estava me esperando ao pé da escada. Era o momento mais escuro da
noite. Quando abri a boca, ela a tampou com o dedo. Pegou minha mão, apertoua, e me conduziu em direção aos fundos da casa, onde destrancou a porta.
Escapulimos para a rua. A temperatura estava baixa, o resto do inverno ainda no
ar.
— Preste atenção, Alessandra.Temos de andar, está bem? Pode fazer isso?
— Não, a menos que me diga aonde vamos.
— Não, já disse. Nada de perguntas. É melhor você não saber. Falo sério.
Confie em mim. Não temos muito tempo.
— Pelo menos me diga a distancia.
— É longe. Porta di Giustizia.
O portão do patíbulo? Comecei a falar, mas ela já se embrenhara no
escuro.
Não éramos as únicas. A cidade, enlouquecida depois do anticlímax do
dia, estava alvoroçada com turmas de homens procurando agitação. Mantivemos
a cabeça bem coberta e nos esgueiramos pelas ruas laterais, onde a noite era
mais densa. Duas ou três vezes, Erila parou repentinamente, detendo-me e
escutando, e, uma vez, fui eu que tive certeza de,ouvir alguma coisa ou alguém
atrás de nós. Ela retrocedeu alguns passos para checar, espreitando no escuro,
depois avançou me puxando para andar ainda mais rápido. Passamos pelas
barricadas que restavam daquele dia, mas evitamos a praça, cruzando para o
norte, perto da casa do meu pai, depois passamos por trás de Santa Croce, até
chegarmos à Via de Malcontenti, essa rua sombria e triste, que os prisioneiros
condenados são obrigados a percorrer, acompanhados pelos freis de preto.
O bebê estava acordado e irrequieto, embora agora houvesse menos
espaço para seus movimentos. Senti um cotovelo, ou talvez um joelho, deslizar
sob a superfície do meu estômago.
— Erila, pare. Por favor. Não posso ir tão rápido.
Ela estava impaciente.
— Você precisa. Eles não esperarão por nós.
Atrás de nós, os sinos de Santa Croce tocaram o começo da vigília das
3:00. Ah, as ruas eram substituídas pelo campo aberto, o terreno e jardins do
mosteiro de Santa Croce de cada lado, à frente o portão com os grandes muros
da cidade ao redor. Lembrei-me de Tomaso contando como, no verão, era um
bom terreno para o esporte, para quem quisesse jogar. Eu imaginara moças com
sorrisos faceiros, mas, sem dúvida, ele estava-se referindo a outras coisas. Mas o
humor estava mais para outro tipo de transgressão, e o terreno coberto de
vegetação que levava ao portão estava deserto.
— Meu Deus, espero que não tenhamos nos atrasado demais —
murmurou Erila. Empurrou-me para a sombra de uma árvore grande. — Não se
mexa — mandou. — Eu já volto.
Desapareceu no escuro e me apoiei no tronco. Eu estava ofegando do
esforço, e minhas pernas estavam tremendo. Ouvi algo se mover à minha
esquerda e me virei rapidamente, mas não havia nada ali. No portão, deveria
haver soldados: três horas da manhã marcava a hora da mudança da guarda. Por
que a hora tinha sido tão importante?
— Erila? — sussurrei depois de algum tempo.
O silêncio agora era profundo e a escuridão mais assustadora do que as
ruas. Senti uma dor brusca na parte inferior do meu útero, mas era difícil dizer
se tinha sido provocada pelo medo ou pelo bebê. Do escuro, sob o muro, vi uma
figura emergir. Erila, metade andando, metade correndo. Quando me alcançou,
agarrou-me pela mão.
— Alessandra. Temos de voltar. Já. Sei que está cansada, mas temos de
andar rápido.
— Mas...
— Nada de "mas". Vou contar, juro, mas não agora. Agora, por favor,
ande. — E havia um terror em sua voz que eu nunca ouvira antes, e que parou
meus protestos. Levou-me pela mão e quando fiquei sem ar, apoiou-me sob o
cotovelo. Saímos da vegetação e voltamos para a cidade. Seus olhos estavam em
toda parte, tentando ler o escuro. Quando alcançamos a Piazza Santa Croce,
parei, a grande fachada de tijolos da igreja avultando-se sobre nós.
— Tenho de parar ou vou passar mal — disse eu, minha voz trêmula de
exaustão.
Ela concordou, sua cabeça sem parar de virar para todo lado. A praça era
um lago cinza sob feixes de luar fragmentado, a única rosácea da grande igreja
olhando para nós, lá do alto, como o olho do Ciclope.
— Conte.
— Depois...
— Não, agora. Não vou sair daqui até que me conte.
— Oh, Cristo, não há tempo para isso!
— Então, ficamos aqui.
E ela sabia que eu falava sério.
— Está bem. Hoje à noite, depois que você adormeceu, eu estava no meu
quarto, quando seu marido foi ao alojamento dos criados. Ele falou com seu
criado. Ouvi tudo o que disseram. Disse-lhe para levar um salvo-conduto à Porta
di Giustizia hoje à noite. Que era urgente, que havia um homem, um pintor que
estava partindo às 3:00 e precisaria do documento para partir. — Ela fechou os
olhos com força. — Juro que foi o que ouvi. Por isso a trouxe. Achei...
— Achou que eu poderia encontrá-lo lá. Onde ele está?
— Não estava lá. Nem ele nem o criado. Não havia ninguém lá.
— Então deve ter sido o portão errado. Temos de ir...
— Não. Não, escute. Sei o que ouvi — fez uma pausa. — Agora sei que
era para eu ouvir.
— O que quer dizer?
Relanceou os olhos em volta.
— Acho que seu marido...
— Não... oh, Deus, não. Cristoforo não sabe. Como saberia? É
impossível. Ninguém mais sabe além de mim e você.
— E não acredita que seu irmão tenha adivinhado? — disse ela com raiva.
— No dia que se deparou com vocês na capela?
— Acho que desconfiou, mas não houve tempo para ele dizer a
Cristoforo. Observei-os o tempo todo que estiveram juntos. Ele não lhe contou.
Eu sei. E não se viram desde então, pois Tomaso está desaparecido. — Ela
olhou fixo para mim, depois baixou os olhos. — Não está? — E quando eu disse
isso, senti pânico como o vômito subindo por minha garganta. — Oh, Cristo. Se
tiver razão... se tiver sido uma cilada...
— Ouça, não penso nem acho mais nada. Só sei que se não chegarmos em
casa, com certeza seremos descobertas.
Percebi seu medo. Ela não estava acostumada a se enganar, a minha Erila,
e essa não era hora para hesitar.
— Escute bem — disse eu com determinação. — Estou feliz que tenha
agido assim. Feliz. Entendeu? Não se preocupe. — Estava na minha vez de
tranqüilizá-la. — Estou bem. Vamos.
Andamos rapidamente, retornando por onde tínhamos ido, de modo que o
escuro nos envolvesse durante a maior parte do percurso, Se estivéssemos sendo
seguidas, então certamente saberíamos. O bebê, agora, estava quieto, se bem que
o esforço não me deixaria impune, e senti uma dor opressiva no útero. A nossa
volta, ouvíamos gritos. Para o sul da Catedral, nos deparamos com uma falange
de jovens, armados estridentes, dirigindo-se à praça da Catedral. Erila
empurrou-me rápido para a sombra, quando eles passaram. Com a aurora,
haveria a missa de Domingo de Ramos na Catedral, e apesar de Savonarola não
poder pregar, um de seus discípulos subiria ao púlpito. Em uma cidade onde em
breve o jogo estaria de volta às ruas, eu não teria apostado que conseguisse
chegar ao sermão.
Quando voltamos para a rua, senti uma punhalada funda na metade
inferior das costas e deixei escapar um arquejo de dor. Erila virou-se e vi meu
pânico refletido em seus olhos.
— Está tudo bem. Está tudo bem — disse eu, tentando rir, mas não
conseguindo emitir o som certo. — Só uma câimbra.
— Meu Deus — ouvi-a murmurar.
Dei-lhe a mão e a apertei forte.
— Já disse, estou bem. Fizemos um pacto, o bebê e eu. Não nascerá em
uma cidade governada por Savonarola. E ele ainda não se foi. Venha. Estamos
perto, se bem que poderíamos andar um pouco mais devagar.
A casa estava silenciosa e escura. Entramos sem fazer ruído pela porta dos
criados e subimos a escada. A porta de meu marido estava fechada. Eu estava
tão cansada, que mal consegui me despir. Erila ajudou-me, depois se deitou
vestida em um catre do lado da porta. Sei que ela estava preocupada com as
dores. Pegou um líquido na bolsa de remédios de sua mãe e tomei algumas
gotas. Antes de adormecer, pus as mãos sobre a barriga, mas onde antes havia
um outeiro, quase até minhas vértebras, agora, o bebê havia descido em meu
útero, o seu corpo pressionando com força minha bexiga. Pelos cálculos no
calendário, ainda faltavam três semanas. Quando, então, a ama-de-leite e a
parteira já estariam bem instaladas.
— Seja paciente, pequerrucho — sussurrei. — Falta pouco, agora.
Teremos a cidade e a casa prontas para você.
E o bebê, em obediência ao nosso acordo, deixou-me dormir.
Quarenta e Quatro
QUANDO ACORDEI, ERILA NÃO ESTAVA E a casa estava silenciosa. Eu
me sentia sonolenta. Sua poção tinha-me feito bem. Fiquei deitada, por um
momento, tentando calcular a hora do dia pela luz ao meu redor. Já devia ser de
tarde, e todos estariam fazendo a sesta. A opressão em meu estômago voltara,
como se alguém estivesse raspando o fundo do meu útero com um escovão.
Fui até a janela e a chamei. Nenhuma resposta. Vesti um robe e desci,
devagar, a escada. As cozinhas e os alojamentos dos criados estavam vazios. Do
lado da copa, havia uma pequena despensa onde se guardavam sacos de farinha
e se penduravam carnes curadas. Ao passar por ela, ouvi uma espécie de
zumbido. Dentro, a filha mais velha do cozinheiro estava sentada no chão, com
uma quantidade do que pareciam ser uvas, contando-as em pequenas pilhas,
depois colocando uma na boca. Mais robusta do que a irmã, tinha sobrevivido à
peste, mas a sua mente era menos desenvolvida do que seu corpo, e havia uma
certa inanidade em seu comportamento. Na sua idade, eu estava recitando Dante
e os verbos gregos. Se bem que tais aptidões eram de pouca utilidade agora.
— Tancia? — ela deu um pulo de susto e se apressou a cobrir as uvas com
suas saias. — Onde está o seu pai?
— Meu pai?... Foi lutar na guerra.
— Que guerra?
— A guerra contra o Monge — disse ela, e suas palavras ressoaram como
se fosse algo divertido.
— E os outros criados?
Ela sacudiu os ombros. Tínhamos trocado apenas algumas palavras, ela e
eu, e parecia com medo de mim. Com meu cabelo solto e a enorme barriga, eu
devia estar parecendo meio selvagem.
— Responda. Tem alguém na casa?
— O patrão disse que todos podiam ir — falou alto. — Mas eu não tive
permissão.
— E a minha escrava também foi?
Ela me olhou sem entender.
— A mulher negra — eu disse com impaciência. — Erila. Ela também
foi?
— Não sei.
E quando ela disse isso, senti a primeira pontada; um cinto de metal ao
redor de meu abdômen, apertando com tanta força que parecia que minhas
entranhas explodiriam e se derramariam no chão.
— Aaii. — De tal forma me tirou o ar que tive de me segurar na porta
para não cair. O espasmo durou talvez dez ou quinze segundos, depois aliviou.
Agora não. Oh, Deus, agora não. Não estou pronta.
Quando busquei ar para respirar, ela estava olhando fixo para a minha
barriga.
— O bebê é grande, senhora.
— Sim, sim, é. Tancia, preste atenção — falei bem claro e devagar. —
Preciso que faça uma coisa para mim. Preciso que leve um bilhete ao outro lado
da cidade, à casa da minha mãe, perto da Piazza Sant'Ambrogio. Está
entendendo?
Ela olhou para mim, depois deu uma risadinha.
— Não posso, senhora. Não sei onde é e o patrão disse que os outros
podiam ir ver a guerra, mas que eu tinha de ficar aqui.
Fechei meus olhos e respirei fundo. Por favor, Deus, se tenho de entrar em
trabalho de parto, pelo menos me dê Erila. Não me deixe só na casa com uma
menina retardada. Não podia estar acontecendo. Não podia. Era cedo demais. Eu
estava apenas exausta e amedrontada. Voltaria para a cama e dormiria de novo.
Quando acordasse, a casa estaria viva de novo, e eu estaria bem.
Subi a escada com cuidado. Ao chegar ao primeiro andar, ouvi um
barulho, uma cadeira se arrastando ou uma persiana se fechando? O ruído vinha
da galeria de Cristoforo. Percorri o corredor com cuidado, minhas mãos em
concha sobre minha barriga, e empurrei a porta.
Dentro, um sol prematuro de primavera enviava um raio de luz dourada
pelos azulejos e sobre as estátuas. O corpo do Lançador de disco refulgia em seu
calor.
— Bom dia, minha mulher.
Foi a minha vez de levar um susto. Virei-me e o vi sentado no outro
extremo da sala, um livro no colo, a estátua de Baco, em um langor embriagado
meio caindo de seu pedestal, atrás dele.
— Cristoforo. Você me assustou! O que está acontecendo? Onde estão
todos?
— Foram testemunhar a história. Como antes você ansiava tanto fazer. O
populacho interrompeu o serviço na Catedral, esta manhã. Os dominicanos
fugiram de volta a San Marco e estão agora sitiados em seu mosteiro.
— Meu Deus. E Savonarola?
— Está lá dentro. Há uma ordem de prisão da Signoria para ele. E só uma
questão de tempo.
Então, realmente estava terminando. Senti a opressão de novo em meu
útero. O bebê, ao que parecia, tinha aptidão para política. Certamente, afinal,
seria filho do meu marido.
— E Erila? Também foi assistir?
— Erila? Não me diga que sua leal Erila a deixou. Achei que estaria
sempre do seu lado. Onde quer que você fosse — fez uma pausa. Percebi tarde
demais o que as palavras significavam. — Dormiu tarde, Alessandra? Deve ter
passado a noite acordada. O que teria provocado isso?
— Eu... estou cansada, Cristoforo, e acho que a chegada do bebê será
antes do que pensávamos.
— Nesse caso, você deveria voltar para a cama.
Agora não havia como não perceber a sua polidez fria. Quando aparecera
pela primeira vez? Estava diferente quando chegou com a notícia da libertação
do pintor? Teria me sentido tão aliviada que, apesar das advertências de Erila,
não havia prestado atenção suficiente às suas maneiras?
— Tem notícias de Tomaso? — perguntei.
— Por que pergunta?
— Eu... eu estava rezando para que fosse encontrado.
Ele desviou o olhar para as estátuas. Se o lançador de disco não estivesse
tão concentrado em seu trabalho, quase pensaríamos que estivesse escutando.
— Dizem que grandes artistas só podem dizer a verdade em suas obras.
Você concorda, Alessandra?
— Eu... eu não sei. Suponho que sim.
— E diria que um bebê é uma obra de arte de Deus?
— ...Certamente.
— Nesse caso, talvez não seja possível detectar uma mentira em um bebê?
Senti minha pele ficar fria e úmida.
— Não sei o que quer dizer — disse eu e percebi uma leve hesitação em
minha voz.
— Não? — fez uma pausa. — Seu irmão está seguro.
— Oh! Graças a Deus. Como ele está?
— Ele está... mudado. Acho que esta é a palavra.
— Eles...
— Eles o quê? Arrancaram a verdade dele? E sempre tão difícil dizer
quando se trata de Tomaso. Às vezes, ele mente de maneira mais convincente do
que quando diz a verdade. Sobre todo tipo de coisa.
Engoli em seco.
— Talvez não devesse se esquecer de que, antes, você acreditava em tudo
o que ele dizia — eu disse baixinho.
— Talvez. Ou pode ser que a facilidade dele com esse tipo de coisa venha
da família Cecchi.
Olhei fixo para ele.
— Nunca menti para você, Cristoforo.
— Mesmo? — sustentou meu olhar. — Sou o pai de seu filho?
Respirei fundo. Não havia como recuar agora.
— Não sei.
Sustentou meu olhar por um momento, depois pôs o livro sobre a mesa e
se levantou.
— Bem, obrigado, pelo menos por sua honestidade.
— Cristoforo... Não é o que está pensando...
— Não estou pensando nada — disse ele, com frieza. — O nosso trato foi
um filho. As condições, me lembro, diziam mais respeito a discrição do que a
fidelidade. A culpa é do casamento. Eu deveria ter sabido pelo passado de sua
mãe. Agora, com licença, tenho negócios a tratar.
— O que quer dizer com o passado de minha mãe? — mas ele já se dirigia
à porta. — Não. Não vá, Cristoforo, por favor. Isso tampouco é verdade. —
Interrompi-me. O que podia lhe dizer? Que palavras poderiam transmitir afeição
assim como hostilidade? —Tem de saber que sentimos... — senti, lá no fundo, o
cinto apertar de novo, mais forte ainda dessa vez. Precisaria de todo o ar para a
dor. — Ai... O bebê... Por favor, imploro que fique... só até Erila retornar. Não
posso fazer isso sozinha.
Ele olhou para mim. Talvez tenha visto simplesmente mais uma mentira.
Ou talvez meu corpo, que lhe causara tanta aversão quando estava intacto, agora
lhe oferecesse somente o prospecto de sangue.
— Chamarei alguém — disse ele, virando-se e saindo.
Quando a porta se fechou atrás dele, a dor foi gritante, um anel de
músculo de aço sendo amassado. Pensei na serpente no jardim, sussurrando no
ouvido de Eva, e depois de ela sucumbir, imaginei-a se enrolando em volta do
abdômen dela e apertando, apertando, até um feto deformado escorregar de
dentro dela. E, assim, pecado e agonia nasciam juntos. Dessa vez me curvei e
tive de me apoiar na pele de pedra de Baco, até o espasmo passar. Foi mais
longo, mais fundo. Contei vinte, depois trinta. Só em trinta e cinco começou a
diminuir. Se o bebê estava cumprindo seu lado do trato, Savonarola já devia ter
sido detido.
É claro que eu tinha ouvido histórias de trabalho de parto. Que mulher
grávida depois de Eva não ouviu? Sabia que começava com uma série de dores
rítmicas que iam aumentando, como a entrada do útero se alargava para permitir
a saída do bebê. Mas se usasse a respiração e controlasse os nervos, acharia
como superá-las, supondo que não durassem para sempre. Depois, quando a
cabeça do bebê começasse a forçar a passagem, e nesse ponto tudo o que se
podia fazer era empurrar e rezar para que Deus tivesse nos dado um corpo que
não se esgarçasse em pedaços, como tinha acontecido com a minha tia e minha
mãe antes de mim.
Mas eu não pensaria nelas agora. Primeiro tinha que chegar ao meu
quarto. Estava a meio caminho, no patamar, quando começou a contração
seguinte. Dessa vez, eu estava preparada. Agarrei-me firme na balaustrada de
pedra e tentei contar, minha respiração saindo em uma série de gemidos. A dor
aumentou, chegou ao máximo, se sustentou, depois começou a se reduzir. Você
pode, pensei. Você pode fazer isso. No entanto, meus gritos devem ter sido mais
altos do que me dei conta, porque localizei Tancia no canto do pátio, olhando
para mim com os olhos escancarados de medo.
— Tancia... eu...
Não terminei a frase. Aprumei o corpo e senti, de repente, uma urgência
incontrolável de urinar. Tentei desesperadamente conter minha bexiga, mas a
pressão foi grande demais. Nós duas ouvimos o estalo — como uma chicotada
na parede — quando algo em mim abriu, de súbito, o piso de pedra embaixo
ficou coberto de água com sangue. Pareciam galões de água, esguichando de
mim, jorrando como uma queda d'água por minhas pernas, espalhando-se pelo
patamar até pingar no pátio lá embaixo. Tancia soltou um ganido de pânico e
desapareceu.
De como consegui voltar ao meu quarto não me lembro. A próxima onda
foi tão violenta que fez as lágrimas correrem em meu rosto. Forçou-me a
ajoelhar, minhas mãos na beira da cama. A dor estava em toda parte, em meus
rins, em minhas costas, em minha cabeça. Ela e eu éramos uma só, fundidas,
dominando o pensamento, dominando tudo. Dessa vez, o pico durou para
sempre. Tentei respirar, mas cada arfada saía abrupta e pouco profunda, e
quando a boca de aço começou a relaxar seu aperto, eu me ouvi chorando de
medo.
Sentei-me ereta e me forcei a continuar pensando. Uma vez em minha
vida eu tinha visto o mar, uma praia perto de Pisa, onde os navios com
carregamentos de panos do meu pai atracavam. Eu devia ser muito pequena,
pois só me lembro de um horizonte infinito e do som das ondas, e de como cada
onda tinha vida própria, um músculo encrespando e flexionando, ascendendo da
barriga do oceano, até se dobrar no alto e despencar estrondosamente, formando
espuma que escoava sobre a areia rumorejante. Meu pai contou-me, nesse dia,
como ainda muito jovem estava em um navio que naufragou perto do litoral, e
como aprendeu, ao nadar para a costa, para se salvar, a usar as ondas, erguendose no topo de cada uma e movendo-se com ela, e como, quando a perdia, era
engolfado, engolindo água até temer se afogar.
Eu sabia que agora eu também nadava para salvar a minha vida. Só que
nesse mar, as ondas eram dores, cada uma mais violenta do que a outra, e a
minha única esperança era conduzi-las à terra firme. Ou também eu seria
engolfada e me afogaria. Quando a onda seguinte cresceu, lá longe no mar,
fechei os olhos e me imaginei crescendo e subindo com ela...
— Alessandra!
A voz vinha de algum lugar muito, muito distante. Mas não podia lhe
prestar atenção, senão seria sugada para baixo da onda.
— Agüente firme, filha. Desça e fique de quatro. — Agora, mais próxima,
mais alta, ordenando. — Desça. Isso vai ajudar.
Assumi o risco e prestei atenção. Quando minhas mãos atingiram o chão,
senti a palma de suas mãos empurrarem minhas costas para baixo, com uma
pressão firme. A onda estava crescendo, chegando ao seu máximo.
— Respire — disse a voz. — Respire. Inspire, expire... isso, é isso
mesmo, minha menina. De novo. Inspire... expire... — E ouvi um gemido baixo,
que devia ser a minha própria voz quando a espuma branca moveu-se
rapidamente em direção à praia e, depois, quebrou-se lentamente e se desfez.
Quando olhei para ela, vi o medo e orgulho misturados em seus olhos, e
soube que eu ficaria bem. Minha mãe tinha vindo. Recostei-me nela.
— Eu...
— Não desperdice energia. Qual o intervalo entre as contrações? Sacudi a
cabeça.
— Quatro, cinco minutos, talvez, mas estão chegando mais rápido.
Segurou-me o melhor que podia enquanto puxava os travesseiros da cama
e os colocava no chão, para que eu deitasse a cabeça neles.
— Preste atenção — disse ela calmamente. — Erila foi buscar a parteira,
mas ela e o resto da cidade estão nas ruas. As dores vão continuar, mas essa
parte terá de fazer sozinha. Não tem mais ninguém em casa?
— Tancia, a filha do cozinheiro. — Vou buscá-la.
— Não! Não me deixe sozinha!
Mas ela já tinha saído. No patamar, sua voz soava imensa e autoritária
como um sino de igreja. A garota podia me ignorar, mas não a ignoraria.
Quando voltou, a dor atacou de novo. Dessa vez, ela estava comigo desde o
começo, usando suas mãos como uma força na parte inferior de minhas costas,
para massagear e dispersar a faixa de aço que se comprimia dentro de mim.
— Alessandra, me escute — ordenou. — Tem de encontrar uma maneira
de absorver a dor. Pense na agonia de Nosso Senhor na cruz. Fique com ele e
Cristo a ajudará a suportá-la.
Mas eu tinha pecado demais para que Cristo me ajudasse agora. Esse era o
meu castigo e duraria para sempre...
— Não posso.
— Sim, você pode — sua voz, agora, soou quase irritada. — Concentrese. Veja a arca de casamento na sua frente. Encontre um rosto ou uma figura ali,
e a mantenha enfocada enquanto respira. Vamos, filha, use esta sua grande
mente para se conectar com a dor. Agora, respire.
Quando, depois, caí nos travesseiros, vi Tancia à porta, os olhos
escancarados de terror. Quando minha mãe gritou-lhe as instruções, senti uma
fúria repentina, ainda maior do que o meu medo, e ouvi minha voz começar a
uivar e praguejar, como se eu estivesse possuída. As duas se interromperam e
olharam para mim. Acho que Tancia teria fugido de novo se minha mãe não
tivesse batido a porta antes.
— Quer fazer força? E o que está sentindo?
— Não sei, não sei — falei asperamente. — O que acontece depois?
Como faço isto?
No meio do meu terror, ela me surpreendeu, seu rosto abrindo-se em um
sorriso.
— Da mesma maneira como fez o bebê. Apenas faça o que o seu corpo
mandar. Deus e a natureza farão o resto.
E então, de repente, mudou. Da minha exaustão surgiu a necessidade mais
premente de fazer força, de expulsá-lo de mim. Tentei me levantar, não
consegui.
— Oh, está vindo. Posso senti-lo. Ela segurou-me pelo braço.
— Levante-se. Vai doer mais se ficar no chão. Venha cá, menina. Segure
a sua patroa. Enganche seus cotovelos sobre suas axilas. Vamos. Isso. Apóie
suas costas eretas contra você. Vamos, prepare-se, sustente o peso dela.
Levante-a. Agora.
Ela talvez fosse meio idiota, mas era forte. Pendurei-me em seus braços,
meu corpo todo tremendo, minhas saias presas nos ombros, as pernas abertas,
minha imensa barriga embaixo de mim, e minha mãe agachada a meus pés.
Quando a vontade voltou, fiz força e sustentei-a até ficar sem ar, até sentir
minha face ficar púrpura e meus olhos lacrimejarem com o esforço, e parecia
que meu ânus e sexo estavam sendo rasgados.
— De novo. Empurre! A cabeça está lá. Posso vê-la. Está pronto para sair.
Mas não consegui fazer isso. De repente, a urgência me abandonou e caí
para trás, lassa e tremendo em seus braços; uma mulher retirada do ecúleo, todos
os seus membros tremendo como água, com medo e dor. Senti as lágrimas
correrem por minha face, e o catarro pingar de meu nariz, e teria soluçado se não
estivesse assustada demais com a energia que isso consumiria. Não houve tempo
para me recuperar e ela voltou, aquela necessidade terrível de eliminar, expelir,
evacuar esse bebê. Exceto que não conseguia. A cada empurrão, eu me sentia
explodir. Alguma coisa estava terrivelmente errada. A cabeça estava deformada,
tão grande que nunca conseguiria sair. O pecado de sua concepção infligia o seu
nascimento, e ficaríamos ali para sempre, ele e eu, em tormento perpétuo
enquanto ele tentava rasgar seu caminho para fora de meu corpo.
— Não consigo... não consigo — senti o pânico em minha voz. — Sou
pequena demais. Isto é o castigo de Deus por meus pecados.
A voz de minha mãe foi firme, como tinha sido por dezessete anos,
guiando, adulando.
— O quê? Acha que Deus tem tempo para seus pecados? Neste momento,
Savonarola está sofrendo tortura por heresia e traição. Seus gritos podem ser
ouvidos na praça. Que erros seriam os seus em comparação aos dele? Guarde
seu fôlego para o bebê. Está vindo. Agora, faça força, empurre, empurre como
se disso dependesse a sua vida. Vamos.
Fiz força de novo.
— Sim, sim, de novo. Está ali. Está quase fora. — E me senti esticando a
ponto de me romper, mas ainda assim não consegui.
— Não posso — sussurrei, ofegando. — Estou com medo. Estou com
tanto medo.
Dessa vez, ela não gritou comigo, mas estendeu a mão e tocou em meu
rosto, enxugando-o com carinho. E apesar de sua mão ser delicada, sua voz era
urgente.
— Escute bem, Alessandra. Você tem uma inteligência como nunca vi em
uma garota e não chegou até aqui para morrer no chão de seu quarto. Só mais
um empurrão. Mais um e ele sairá. Vou ajudá-la. Apenas me escute e faça o que
eu mandar. Está voltando? Sim? Então respire fundo. O mais fundo que for
possível. Sim, isso. Ótimo. Agora, segure. E agora empurre, faça força para fora.
Segure. Empurre. De novo. EMPURRE.
— AAAIIII. — E enquanto minha voz se esgoelava pelo quarto, ouvi
outro som, a costela de minha própria carne, quando me abri para deixar a
cabeça passar.
— Sim! Sim! — Não precisei da sua voz para me dizer. Tinha saído. Eu
podia sentir, um poder imenso, tenaz, deslizante, e uma sensação de alívio como
nunca sentira na vida. — Oh, está aqui. Veio. Oh, oh, veja só, olhe para ele.
E quando Tancia e eu caímos no chão, vi a meus pés um pequeno duende
brilhando, resmungando e curvado, coberto de merda e sangue e gosma.
— Oh, é uma menina — disse minha mãe com a voz abafada. — Uma
linda, muito linda menininha.
Suspendeu o corpinho viscoso e o virou de cabeça para baixo, segurandoo pelos pés, e ele sufocou como se seu nariz e pulmões estivessem cheios de
água, até ela bater com força em seu traseiro, e, então, emitiu seu gritinho irado,
vibrante, um primeiro protesto contra a insanidade e ultraje do mundo em que
acabava de entrar.
E como não havia nenhuma faca ou tesoura, ela usou os dentes para cortar
o cordão. Depois, colocou-a sobre minha barriga, só que eu estava tremendo
tanto que mal consegui segurá-la, e Tancia teve de pegá-la quando escorregou
em direção ao chão. Mas, em seguida, eu a segurei, e enquanto minha mãe
massageava minha barriga para que expelisse as secundinas, fiquei deitada no
chão, abraçando esse bichinho quente, pegajoso, enrugado.
Foi assim que minha filha nasceu. Depois de a lavarem e envolverem em
um cueiro e, como não havia ama-de-leite para alimentá-la, trouxeram-na para
mim de novo e observamos com uma espécie de admiração quando cavou seu
caminho, como um verme cego, até meu seio, as gengivas firmando-se no
mamilo com tal força inesperada, que me fez dar um grito, seu maxilar
miudinho sugando, sugando, até eu sentir a dor gostosa do leite começando a
fluir. E só então, depois de suas exigências serem cumpridas, e ela largar o seio,
como um carrapato farto de sangue fresco, dignou-se a dormir e me deixar
dormir.
Quarenta e Cinco
DURANTE OS DIAS SEGUINTES, ME APAIXONEI; profundamente e
irrevogavelmente. E se meu marido a tivesse visto, não tenho dúvida de que ela
o teria conquistado também; com o milagre de suas unhas, a gravidade de seu
olhar sem pestanejar e o fulgor da chama flagrante da divindade nela.
Enquanto meu mundo encolhia-se nas pupilas de seus olhos, a história
estava sendo feita lá fora. Minha mãe tinha razão sobre a nossa agonia conjunta.
Enquanto minhas entranhas eram comprimidas e estendidas pela força de uma
nova vida, Savonarola ouvia o som de seus próprios gritos enquanto seus
tendões rompiam sob o peso da estrapada. Seu reinado na Nova Jerusalém tinhase encerrado nessa manhã com a agitação de San Marco. Apesar de seus leais
monges terem lutado como soldados — falou-se muito na força ensandecida de
um Padre Brunetto Datto, um dominicano gigantesco com a pele como uma
pedra-pomes, que manejava uma faca com um prazer selvagem especial —
acabaram sendo sobrepujados, e a ralé entrou e encontrou Savonarola curvado,
rezando diante do altar. Dali, foi levado acorrentado à torre da fortaleza do
Palazzo Della Signoria, onde o grande Cosimo de Medici havia sido preso
sessenta anos antes pela mesma acusação de traição contra o estado. Mas
enquanto Cosimo tinha tido recursos para encantar e subornar seus carcereiros,
não haveria tal lenitivo para Frei Girolamo.
Foi submetido primeiro à estrapada e, depois, ao ecúleo. Com cada osso
de seu corpo fraturado, confessou-se culpado de outra acusação; falsa profecia,
heresia e traição, disse-lhes o que quisessem ouvir, contanto que parassem o
sofrimento. Nesse ponto, cortaram as cordas e o levaram para a cela. Mas sem a
dor, abjurou, gritando que era a tortura e não a verdade que o havia quebrado, e
pedindo a Deus que o iluminasse. Mas com o primeiro trinco da catraca do
ecúleo, confessou de novo, e, dessa vez, prosseguiram com a tortura até lhe
faltar a voz, muito mais a coragem, para negar novamente.
Desse modo, Florença estava liberta da tirania do homem que havia
pretendido levá-la a Deus, só para, no fim, descobrir que Deus o abandonara.
Mas embora eu tivesse um bom motivo para odiá-lo, só consegui sentir pena. Do
meu lado, Erila ria da minha compaixão, e me dizia como o parto era notório por
abrandar o cérebro da mulher. E assim, passaram-se dois dias, e ainda nenhuma
notícia do meu marido.
Na manha do terceiro dia, despertei para um sol intenso e a visão de Erila
e minha mãe em uma conversa urgente à minha porta.
— O que foi? — perguntei da minha cama. Viraram-se, trocando olhares
rápidos. Minha mãe entrou, até ficar bem perto da cama.
— Filha querida... Há notícias. Vai ter de ser valente.
— Cristoforo. — Porque, é claro, todo esse tempo, eu ficara esperando
algo. — É Cristoforo, não é?
Ela se aproximou e segurou minha mão enquanto contava, seus olhos
lendo o movimento de minha emoção. Era uma história do nosso tempo: como a
cidade fora tomada pela sede de sangue nos dias que se seguiram à tormenta de
San Marco, com antigas contas a serem ajustadas, antigos inimigos sendo
caçados. Mas nem toda a violência tinha sido justa e vários outros corpos tinham
sido encontrados, inclusive um no beco La Bocca, perto da ponte velha, um
local notório onde a carne de homens e mulheres era negociada na calada da
noite. E de como, ali, em uma manhã, sob vários ferimentos de punhaladas,
alguém reconhecera o tecido elegante e a nobreza de uma face.
Fiquei paralisada como uma de suas estátuas, minha pele esfriando a cada
palavra sua.
— Tem de ser corajosa, Alessandra — repetiu rninha mãe, e a sua voz me
lembrou o tempo em que, quando eu era pequena, ela me ensinava como falar
com Deus como se Ele fosse meu pai, tanto quanto meu Senhor. —
Essas coisas são a Sua vontade e não nos cabe questioná-las. — Abraçoume forte por um momento, e quando ficou certa que eu não me partiria com o
choque, falou baixinho: — Minha querida, seu marido não tinha outra família.
Se estiver com força suficiente, pedem que vá reclamar o corpo.
Se o parto abranda sentimentos, também deslinda a memória, fazendo
com que alguns momentos fiquem para sempre e outros desapareçam quase
quando acontecem.
Embora tivesse sido encontrada uma ama-de-leite, ficamos com o bebê
porque eu não suportava ficar separada dela. Os criados, eu me lembro, estavam
em pé à porta quando partimos, os olhos baixos, seu futuro desfeito com a
notícia. No caminho, paramos no Batistério. Sem meu marido, ninguém tinha
registrado o nascimento e a lei exigia que isso fosse feito em no máximo
sessenta horas. Um feijão-branco para menina, um preto para menino. Sob a
cúpula dourada, onde a vida de Nossa Senhora se desenvolvia em densos
mosaicos cintilantes, a caixa de nascimentos chocalhava de vida nova.
Lá fora, as ruas estavam imundas com os escombros da revolta: paus,
pedras, pedaços de pano entupindo a sarjeta, e tudo isso iluminado por um sol
deslumbrante. Mas apesar do tempo ser alegre, o humor era sombrio. Não
éramos mais um estado pio e ninguém sabia bem o quanto devíamos nos
regozijar com isso.
A peste tinha feito tantas vítimas que tiveram de montar um necrotério
temporário na outra margem do rio, requisitando um conjunto de quartos no
hospital de Santo Spirito. Enquanto éramos guiadas pelo labirinto atrás da igreja,
pensei no meu pintor e nas noites passadas registrando as maneiras como a
violência dissecava o corpo humano. Apertei a criança contra mim e andei, eu
mesma de novo criança, seguindo minha mãe, com minha criada logo atrás.
O funcionário à porta era um homem rude, seu hálito rançoso de cerveja
choca. Segurava um livro improvisado no qual havia colunas de números e, em
alguns casos, nomes. A letra era tosca. Minha mãe tomou a iniciativa e contou a
nossa história da mesma maneira como se movia no mundo, com graça e
clareza. As pessoas escutavam minha mãe. Quando terminou, ele levantou-se de
sua cadeira e, arrastando seus pés, entrou conosco na sala.
Era, como se pode imaginar, um campo de batalha depois que o exército
se desloca. Havia uma série de corpos no chão, envolvidos em voltas de pano
encardido. Havia tanto sangue em alguns deles que receávamos que ainda
estivessem vivos, jogados ali para que o resto de vida escoasse em suas
mortalhas improvisadas.
O cadáver de meu marido estava em um catre próximo ao extremo da
sala. Em outro momento da história, seria esperada mais cerimônia com nomes
mais nobres, mas Florença estava com hemorragia de morte e qualquer espaço
serviria.
Ficamos do lado de seus pés. Ele ergueu os olhos para mim.
— Está pronta?
Dei o bebê para a minha mãe.
Ela sorriu para mim.
— Não fique chocada, minha filha — disse ela. — Há um poder maior em
ação, maior do que nós duas.
Ele curvou-se e puxou a mortalha. Fechei os olhos, e os abri de novo para
uma face ensangüentada de um homem de meia-idade que eu nunca vira antes.
Do meu lado, Erila deu um grito:
— Oh, amo! Oh, meu amo, quem pode ter feito isto com o senhor? —
Quando me virei, ela se jogou em meus braços, agarrando-se a mim e gritando...
— Oh, minha pobre senhora, não olhe, não olhe, é medonho demais. O que será
de nós agora?
Tentei me soltar dela, mas ela se grudava que nem uma sanguessuga.
— Está louca? — sussurrei, horrorizada. — Este não é Cristoforo! — Mas
seu lamento continuou. Olhei impotente para minha mãe, que imediatamente se
uniu a nós. O homem, agora, observava intensamente. Sem dúvida, já vira o
bastante de mulheres se desesperando, e estava preparado para qualquer coisa.
Minha mãe relanceou os olhos para o corpo, depois para mim. Seu olhar
foi penetrante.
— Oh, minha querida, minha filha querida — disse alto. — Sei como
deve estar se sentindo. Como é difícil ver como Deus pode permitir algo assim,
levar o homem que você ama, sem qualquer motivo. Lamente por você, lamente
por seu Cristoforo, mas deixe-o repousar. Ele foi para um lugar melhor.
Eu ali, em pé, e minha boca abriu-se chocada, pasma, a brandura de minha
condição atual revelou-se para me ajudar e comecei a chorar; lágrimas copiosas
que uma vez derramadas, não se podia mais controlar. E toda essa comoção
despertou o bebê que começou a berrar também. Assim, ficamos ali, como uma
visão do sofrimento feminino liberto, e o homem pegou a caneta e marcou uma
grande cruz do lado do nome de meu marido.
De volta à sala desconfortável e desconsolada, Erila, cujas lágrimas
tinham-se secado imediatamente ao sairmos do edifício, trouxe-nos vinho e
insistiu para que eu tomasse uma poção de sua bolsa antes de me abraçar e nos
deixar, fechando a porta atrás de si. O bebê estava em meus braços, seus
olhinhos piscando para mim enquanto eu encarava minha mãe.
— Então — disse eu, entorpecida. — Onde ele está?
— Foi embora.
— Foi embora para onde?
— O campo. Com Tomaso. Na manhã de seu parto, foi me buscar e me
disse o que havia se passado entre vocês. Uma vez decidido, providenciou que
um corpo fosse encontrado com um bilhete escrito com sua letra, de modo que
levasse as autoridades a nós para identificá-lo. Lamento a aflição que lhe
causou. Não lhe contei porque temi que, no seu estado enternecido, não fosse
capaz de fingir. — Ela soava tão prosaica, como um estadista cuja missão é
assumir questões graves e esclarecê-las para o resto da população amedrontada.
Mas eu não tinha a sua serenidade.
— Eu... eu não entendo. Por quê? Era tão importante assim que o bebê
não fosse seu? Porque...
— Porque talvez fosse? Não se preocupe, Alessandra. Sei de tudo. Não
estou aqui para julgá-la. Há outro tribunal para isso, e, nesse tribunal, acho que
poderemos nos encontrar lado a lado, um dia. — Deu um suspiro. — Não teve a
ver com o bebê. Ele achou... bem, não devo falar por ele. Pediu que depois que
isso fosse revelado lhe entregasse esta carta. Se bem que acho que seria mais
sensato, se a destruísse depois.
E tirou de seu corpete a carta. Peguei-a com as mãos tremendo. O bebê
choramingou em meus braços. Acalmei-o e abri o selo.
Sua letra era tão elegante. Um contraste com o rabisco violento no livro
de registros do Santo Spirito. Senti prazer só em olhá-la. Prazer e
reconhecimento.
Minha querida Alessandra,
quando ler esta, teremos partido. E você, se Deus quiser dará à luz uma
criança sadia. Tomaso precisa de mim, o dano que lhe causaram é terrível, e
sem a sua beleza e seu corpo fraturado, sua necessidade é ainda maior. Não
posso me esquivar da acusação de que minha lascívia, de certa maneira, o gerou
e, portanto, é meu dever agora cuidar do sofrimento que causei. Meu dever. E
sim, meu desejo. Se eu você ficássemos juntos, eu sentiria esse sofrimento pelo
resto da minha vida e seria uma companhia amarga para você e a criança.
Comigo morto, é possível um futuro diferente para você. Não tenho outra
família que reclame meus bens, foi redigido um testamento que garante a
Tomazo dinheiro suficiente para levemos uma vida de conforto, modesta, e lega
o resto de meus bens a você. Como isso é incomum, haverá aqueles que
questionem, mas é legal e será honrado. O futuro cabe a você decidir. É jovem o
bastante para se casar de novo. Pode escolher voltar a morar com sua família
ou até mesmo, se tiver o estômago para isso, viver sozinha. Não duvido de sua
coragem nem por um instante. Mas creio que sua mãe tem idéias a esse respeito
que você deva ouvir.
Peço que perdoe minhas palavras ásperas na galeria. Apesar do nosso
acordo, me percebi mais atraído por você do que imaginava, e a sua traição me
magoou profundamente, assim como a minha a magoou de maneira semelhante.
Quero que saiba que senti tanto por você quanto era possível eu sentir. E que
sempre sentirei.
A chave que acompanha essa carta abre o armário do manuscrito em meu
gabinete. Ficará surpresa com seu conteúdo. Estou ciente que alguns o
considerarão roubo, mas nós dois sabemos que, se não fosse assim, poderia se
tornar butim de guerra ou coisa pior – combustível para o fogo -, prefiro vê-los
em suas mãos do que em quaisquer outras. Você compreende essa nossa grande
nova arte tanto quanto qualquer homem que já conheci. Seu pai teria ficado
orgulhoso de você.
Para sempre seu marido dedicado,
Cristoforo Langella
Apertei minha mão em volta da chave e li a carta uma segunda vez. E uma
terceira. Depois de algum tempo, minha mãe teve de tirá-la de mim porque
minhas lágrimas transformavam a tinta em um riacho de aguada preta e seu
conteúdo era tal, que isso não obscureceria, agora, o seu significado. Erila tinha
razão. O coração de uma mulher amolece com o parto. Nesse estado, amamos
todo mundo, mesmo os que nos abandonaram e nos traíram. Parecia que eu teria
de criar minha filha sem marido, sem nem mesmo seu avô consangüíneo para
cuidar dela. "Seu pai teria ficado orgulhoso de você." Como o mundo pode ser
facilmente virado de cabeça para baixo por algumas palavras bem escolhidas.
Finalmente, quando ergui os olhos para a minha mãe, ela me encarou. Ele
nunca teria escrito esse tipo de coisa, se não tivesse falado com ela antes, não é
claro?
— Sabe o que diz? — perguntei, quando tive espírito para falar.
— O que diz respeito diretamente a seu futuro e a meu passado foi
conversado antes de ele escrever a carta. O resto foi escrito só para você.
E continuou sem desviar os olhos. Durante toda a minha vida, ela havia
irradiado tal inteligência e serenidade que costumava acalmar as tormentas de
rebelião e questionamento que percebia em mim. Nunca me ocorrera que
tivesse, ela própria, sofrido tais tormentas, ou que a sua aceitação da vontade de
Deus e crença em Sua infinita misericórdia tivesse experimentado qualquer
conflito. Mas agora sei que não é fácil para filhas pensarem em suas mães como
seres separados, com vidas e desejos que não sejam subservientes aos seus
próprios. E assim como perdoei à minha filha essa falha, estou certa que minha
mãe me perdoou. Tenho de admitir que, nesse dia, ela não se esquivou de
minhas perguntas nem mentiu de maneira alguma. Acho que, depois de tanto
tempo, foi até mesmo um alívio poder contá-lo.
— Então — disse eu, por fim —, a dedicatória de Lorenzo de Medici no
livro dos Discursos, que ele deu a meu marido, datava de 1478. O ano de minha
concepção. Mas você não estava na corte, então, estava? A estrela de seu irmão
já brilhava alto o bastante para fazê-la conseguir um bom marido. Não é essa a
história que sempre nos foi contada?
— Sim — replicou calmamente. — Eu já estava casada. E já que estamos
falando disso, deve saber que não foi uma união infeliz, por mais que assim lhe
pareça hoje. Já tinha me dado três filhos saudáveis, a quem Deus, em Sua
infinita bondade, poupara a doença ou morte prematura. Fui abençoada, na
verdade. Mas o que diz sobre esse ano, Alessandra, não é toda a verdade. Apesar
de ter estado na corte antes, retornei brevemente. Embora não publicamente.
Ficou em silêncio. Esperei. Até mesmo o ar parecia parado à nossa volta.
— Meu irmão tinha amigos importantes — disse ela, por fim, e seu
sorriso foi como um esgar. — A corte estava cheia de homens de muita
profundidade e inteligência. Para uma garota a quem se ensinara a refletir e
expressar seus pensamentos, era o paraíso antes do dia do Juízo Final. E embora
a noção platônica não permita que as mulheres participem de suas deliberações,
eles eram platônicos florentinos e, portanto, é claro que até mesmo os maiores
deles podiam ser distraídos pela beleza, quando era acompanhada de um talento
igual para a erudição. O que, como você, eu tinha. E como com você, foi tanto a
minha glória quanto o meu fardo.
"Meu irmão, que tinha entendido os perigos que tal perfeita pureza
continha, assumiu a tarefa de providenciar para que eu me casasse, e assim
evitar riscos futuros. Mas nem mesmo ele teve o poder de impedir que eu
voltasse.
"Lorenzo e a sua corte passaram o começo do verão de 1478 em sua vila
em Careggi. Fui um dos poucos visitantes convidados... Foi há muito tempo.
Interrompeu-se de novo, e, por um momento, achei que não fosse
prosseguir, que havia se treinado, de fato, para esquecer o que acontecera. Ela
respirou fundo.
— Havia música, conversa, arte e natureza... só os jardins já eram como
um paraíso terreno. A beleza do corpo era tanto um assunto de discussão quanto
a beleza da mente. As duas belezas eram vistas como alpondras no caminho para
o amor de Deus. Não fui criada para ser coquete. Eu era tão séria e, de certa
maneira, tão inocente quanto você. Mas como você, me impressionava a
inteligência, o estudo e a arte. E apesar de eu ter resistido uma vez, nesse verão,
eu estava apaixonada há anos demais para saber como me reprimir.
Vi de novo suas lágrimas diante do corpo de Lorenzo, na capela de San
Marco tanto tempo atrás. Quais tinham sido as palavras de Tomaso em meu
ouvido naquele dia? Que apesar de sua feiúra, a sua poesia de amor podia
inflamar o coração mais gélido. Dei um suspiro, baixando os olhos para o
rostinho radiantemente tranqüilo em meus braços. Era difícil saber o quão
grosso seu nariz seria quando ela crescesse, ou o quanto seu queixo ficaria
pontudo. Sem dúvida, também dependeria de seu pai. Quem quer que fosse.
— Bem, pelo menos agora sei porque sou feia — falei calmamente.
— Oh, Alessandra, você não é feia. Você possui uma beleza tal que quase
virou a cabeça de um sodomita.
E, é claro, fiquei deliciada pela maneira como a palavra causava tanto
prazer em sua transgressão para ela quanto causara para mim. Ficamos sentadas
juntas por um certo tempo, nessa sala desbotada, fora de moda, o silêncio da
tarde interrompido somente pela respiração doce e rápida de minha filha, em paz
por saber que não restava mais nenhum segredo a ser revelado.
— Então — acabei dizendo —, o que vai acontecer agora?
Ela pensou por um momento.
— Você sabe a escolha tanto quanto eu.
— Não vou me casar de novo — disse eu com determinação. — Um
segundo casamento privaria minha filha de seus direitos, e eu não faria isso.
— É verdade — replicou com calma.
— E não posso voltar para casa. Tenho de viver a minha própria vida.
Portanto, suponho que devo construir minha casa sozinha.
— Alessandra, acho que não seria sensato. A nossa cidade é cruel com as
viúvas. Você e a criança se veriam proscritas, solitárias e rejeitadas.
— Ainda temos você.
— Não para sempre. Pensar nisso me gelou.
— Então, o que posso fazer?
— Há uma alternativa que não discutimos. — E sua voz foi firme. —
Casar-se com Deus.
— Casar-me com Deus? Eu? Uma viúva com um pincel, uma escrava
negra e uma filha. E que convento, mamãe, nos aceitaria?
E observei quando um sorriso matreiro insinuou-se em seu rosto.
— Ora, Alessandra, o com que sempre sonhou, é claro.
Quarenta e Seis
DEIXAMOS A CIDADE - ESSA VIÚVA COM seu pincel, sua escrava negra e
sua filha — em 10 de maio do ano de Nosso Senhor de 1498.
A nossa não foi a única despedida do dia. Na grande praça da Signoria,
outra pira tinha sido erigida ao longo das últimas semanas: Savonarola e seus
dois fiéis dominicanos seriam estrangulados e queimados. Finalmente, Florença
sentiria o cheiro de carne humana queimando.
A minha Erila tinha-se mostrado entusiasmada com assistir à execução,
pelo menos para completar a história de tudo isso, mas eu proibi. O mundo era
tão luminoso e novo para a minha filha que eu não quis nem mesmo o cheiro de
sofrimento perto dela. Partimos, passando por rios de gente movendo-se em
direção à praça, mas não havia o clima de carnaval. Apesar de ter sido odiado,
também tinha sido amado, e na violência desencadeada depois de sua prisão,
acho que muitos lamentaram a morte da Nova Jerusalém, mesmo tendo brilhado
mais na intenção do que na realidade.
Ainda assim, seus inimigos tinham-se mantido firmes contra ele. Nos dias
que presidiram o julgamento, mais boatos de perfídia atravessaram a cidade
como uma fumaça causticante ao vento. Em particular, vazou da prisão a
história de que seu cúmplice mais fiel, Padre Brunetto Datto, o monge que tinha
lutado com tal violência na batalha final e que morreria com ele na fogueira,
tinha-se revelado enlouquecido pela devoção e que durante sua tortura tinha
confessado todo tipo de pecados: o espeto atravessado em uma garota
encontrada nas ruas depois de escurecer e o gosto de sua carne entre seus dentes,
a retirada das genitálias de prostitutas e seus clientes na igreja de Santo Spirito,
até mesmo a sodomia de um jovem sodomita penetrado por sua própria espada.
Mas o verdadeiro terror não foi originado pelas confissões, mas pelo prazer com
que as admitia, vangloriando-se das maneiras como Deus o usara como
mensageiro divino, para levar os pecadores de volta ao caminho da verdade.
Até, por fim, seus torturadores terem ficado enojados com suas blasfêmias e
colocado um pano dentro de sua boca, ameaçando atearem-lhe fogo se não
parasse com suas obscenidades.
No dia em que Erila trouxe essas histórias, foi a primeira e única vez que
a vi abalada com um rumor. Em parte porque, sentada na beira da cama, o bebê
deitado do seu lado, olhando-a com seus olhos solenes, contou como o monge,
antes de finalmente ser silenciado, tinha instruído como encontrariam um último
corpo; o de uma jovem prostituta com seus seios cortados, deixada para
apodrecer na cripta de Santi Apostoli.
Então me lembrei da voz lúgubre que me havia expulsado da loggia na
noite anterior ao meu casamento, e do frei grandalhão nos acenando na rua com
suas mãos cheias de sangue, e comecei a entender que, embora, às vezes, me
sentisse excluída da graça de Deus, na verdade tinha sido extremamente
protegida. E esse conhecimento me trouxe de volta a uma relação mais afetuosa
com Nosso Senhor.
No entanto, nessa tarde, em meu quarto com Erila, não nos demoramos
falando nessas coisas. Mas juntas nos pusemos a arrumar a arca de casamento
pela segunda vez, enchendo-a com desenhos e livros e, o melhor de tudo, o
espesso manuscrito, não encadernado, recuperado no armário de meu marido e
oculto cuidadosamente no meio de roupas coloridas e veludos.
Pouco antes de partirmos, visitamos minha família na velha casa de Sant'
Ambrogio. Luca, cuja cara de anjo continuava machucada dos gloriosos
conflitos finais de seus dias de exército, estava taciturno e deslocado (não muito
diferente, de fato, dos tempos antigos), mas conseguiu me desejar sorte antes de
voltar, encurvado, ao seu quarto. Plautilla, agora imensa com o bebê, chorou até
seu marido repreendê-la tão duramente que, chocada, se calou. E o meu pai...
bem, meu pai deu-me uma peça de seu tecido escarlate predileto para serem
transformados em vestidos em minha nova casa. Beijei-o, desejei-lhe felicidade
e não fiz nada para dissipar a sua ignorância, e, então, ele pegou a mão de minha
mãe e deixou que ela o levasse de volta aos seus livros-razões. A última visão
que tenho deles é a dos dois entrando em seu gabinete, o olhar límpido e sereno
de minha mãe desaparecendo atrás da porta se fechando.
E foi assim que nesse dia de maio saímos da cidade com o cavalariço de
meu marido e dois de seus escravos, como guias e carregadores, incitados pela
promessa de sua liberdade no fim da viagem. A manhã estava quente e
ensolarada, o ar enevoado ameaçando muito calor. Passamos pela Porta di
Giustizia e, ao deixarmos a cidade, ouvimos um forte estrondo de trovão.
Sabíamos que era o som da pólvora inflamando o fogo na praça, o que
significava que o carrasco havia feito seu trabalho e o trio de monges tinha sido
estrangulado, estando prontos para as chamas. Fizemos o sinal-da-cruz e
rezamos por aqueles levados a Deus, invocando Sua misericórdia por todos os
pecadores, mortos e vivos.
E ao sairmos do vale e começarmos a subir as colinas, vimos, a milhas de
distância, a coluna de fumaça, ascendendo do mar de telhados e dispersando-se
no ar fragrante de verão.
PARTE QUATRO
Quarenta e Sete
O MEU SEGUNDO CASAMENTO - o casamento da Irmã Lucrezia com Deus
—, apesar de bígamo legalmente, revelou-se muito mais bem-sucedido do que o
primeiro.
O que posso dizer deste lugar?
Quando cheguei aqui, foi, de fato, o paraíso na terra. O convento de Santa
Vitella localiza-se no fundo da região rural toscana, distante a leste de Florença,
as colinas irregulares e cobertas de bosques alternando encostas delicadas com
vinhas e oliveiras e vistas que nos fazem entender Deus como o primeiro e
melhor artista de todos. No interior dos muros de sua fortaleza, nessa época,
havia uma comunidade próspera: dois grupos de claustros (o maior com seus
arcos decorados por Luca Della Robbia, trinta e duas cabeças de santas, azuis e
brancas, de cerâmica, cada uma sutilmente, maravilhosamente diferente da
outra), hortas generosas, práticas e gloriosas ao mesmo tempo, já que forneciam
a maior parte de nossa alimentação, o refeitório e a capela, pequenos quando
cheguei, mas que foram se tornando maiores e mais graciosos ao longo dos
anos. E tudo isso administrado por mulheres. Uma república construída, se não
baseada na virtude, então na criatividade feminina.
Nós éramos muitas: as mulheres que não se enquadravam. As mulheres
que amavam tanto a vida quanto a Deus, ainda que retiradas dela e encarceradas
atrás dos muros do convento. A recente prosperidade das cidades tinha nos
engendrado (quanto maior o dote exigido, menor o número de famílias que
podiam arcar com ele) e a nova liberdade de erudição tinha nos encorajado. Mas
o mundo não estava preparado para nós, e tantas de nós acabaram em lugares
como Santa Vitella. E apesar de não sermos consideradas ricas, nossos dotes,
quando somados, eram amplos o bastante para financiarem nossa liberdade. No
fim, era simples matemática: os números começaram a sobrepujar as regras.
Erila e eu tivemos sorte. Chegamos bem depois desse momento ter sido
alcançado.
Cada uma de nós chegava já formada. Algumas traziam lembranças dos
vestidos que tinham usado, ou dos livros que tinham lido, ou dos rapazes que
tinham beijado, ou, pelo menos, desejado beijar. Por trás de portas fechadas,
embora honrássemos Deus e rezássemos a Ele freqüentemente, nossa
imaginação funcionava de centenas de maneiras diferentes. Evidentemente,
umas eram mais superficiais do que outras. Havia aquelas que transformavam
suas celas em pretensos salões de beleza, usando seu tempo livre para se excitar
com sua toalete ou refazendo seus hábitos para mostrar um pouco do penteado
ou permitir um vislumbre do tornozelo. Seus maiores prazeres eram escutar o
som das próprias vozes no coro da capela e cultivar a arte do entretenimento, e
embora os muros fossem altos e os portões ficassem trancados, em certas noites
era possível ouvir suas risadas misturadas com vozes mais graves masculinas
ecoando pelos claustros.
Mas nem todos os nossos pecados eram carnais. Havia a mulher de
Verona, apaixonada por palavras, que passava os dias escrevendo peças,
histórias cheias de moralidade e martírio, com um toque de amor não
correspondido e romance. Nós as encenávamos no convento, as melhores
costureiras confeccionando as roupas e as mais exibicionistas representando os
papéis (masculinos e femininos). Havia também a freira vinda de Pádua, cujo
amor pela erudição tinha sido ainda maior do que o meu e que passara anos
desafiando seus pais, recusando-se a se casar. Quando, por fim, perceberam que
a sua devoção não podia ser suprimida, levaram seus estudos até nós. Ao
contrário de seus pais, tivemos grande cuidado com ela. A sua cela tornou-se a
nossa biblioteca e a sua mente um dos nossos maiores tesouros. Durante meus
primeiros anos, passei muitas noites debatendo com ela Deus e Platão e a
jornada da humanidade até a divindade, e houve vezes em que me fez refletir
mais profundamente do que meus tutores.
Ela era a nossa erudita e, quando Plautilla cresceu, ela foi — junto comigo
— a sua professora.
Plautilla...
No primeiro mês, minha filha não teve nome. Mas quando chegou, de
Florença, a notícia de que minha irmã tinha morrido ao dar à luz um filho
robusto, primeiro chorei e, depois, batizei minha filha. Dessa maneira, podia
conservar recordações da minha família.
Evidentemente, ela era a queridinha do convento. Todos a amavam.
Durante os primeiros anos, perambulava como uma criança selvagem, mimada.
Mas assim que teve idade, começamos a sua educação, um processo adequado a
uma princesa da Renascença. Quando tinha doze anos, sabia ler e escrever em
três línguas, bordar, tocar música, atuar e, é claro, rezar. Inevitavelmente, ela
cresceu com uma certa gravidade adulta por causa da privação de outras
crianças, mas lhe caía bem, e assim que a facilidade entre seu olho e sua mão
começou a se revelar, tirei a cópia de Cennini de minha arca, afiei um toco de
carvão preto e preparei um painel de buxo com osso moído e saliva, pronto para
ela riscar suas primeiras tentativas a ponta de prata. E como não houvesse
ninguém que a tornasse consciente de seu talento, acostumou-se a ele
instantaneamente, de modo que muito antes de eu perceber nela o olhar felino
verde cinzento de seu pai eu soube de quem era filha.
Erila também floresceu. O cargo de Conversa, posto designado
especificamente a escravas, era tradicionalmente subalterno — servir às servas
de Deus —, mas como o nosso convento não era um convento tradicional,
paguei por sua liberação e ela logo criou outro papel para si mesma; fazendo
compras, agitando os boatos e dirigindo um serviço postal para as freiras entre o
convento e a cidade (com que mantínhamos um comércio de luxos proibidos),
de uma maneira que lhe rendeu uma fortuna. Não demorou e era temida e
adorada igualmente, e assim se tornou, por fim, uma mulher livre. Mas tornarase tão essencial às irmãs e uma família para mim e Plautilla, que escolheu ficar
conosco para melhor usufruir isso.
Quanto a mim — bem, no inverno depois que chegamos, o convento
começou a construir uma nova capela e, com isso, recebi a encomenda da minha
vida. A Madre Superiora era uma mulher sagaz que, se não tivesse cedido aos
encantos de um vizinho casado, teria sido capaz de dirigir uma família nobre em
Milão. De certa maneira, dirigia uma mais satisfatória, aqui. Atenta a não
misturar nossas transgressões com nossas realizações, administrava as finanças
do convento com mais perspicácia do que os banqueiros dos Medici, e logo teve
o suficiente para financiar a nova capela. O Bispo, que era menos encantador e
mais venial do que ela — o braço magricela de Savonarola nunca penetrara tão
longe na região rural —, visitava-nos duas ou três vezes ao ano. Em troca da
nossa hospitalidade superior (os prazeres refinados do paladar eram uma das
maneiras nada ortodoxas de celebrarmos Deus), trazia fofocas artísticas das
grandes cidades e deu a sua bênção aos novos planos que, como ela tinha talento
para a arquitetura, eram, em grande parte, realização da própria Madre
Superiora. Mas apesar de poder perceber a luz e o espaço de proporções
clássicas, as paredes quando, finalmente, foi concluída, ficaram nuas.
E assim, finalmente, tive meu altar para pintar.
O verão antes de começarmos, passei em minha cela trabalhando nos
desenhos, enquanto Plautilla fazia correntes de flores nos pomares cercada por
um grupo de noviças, que davam risadinhas e que a viam como o seu melhor
brinquedo. Meu tema seria a vida de João Batista e a Virgem Maria. Somente
com minha memória, sem nenhum mestre para me ajudar, usei as ilustrações de
Botticelli como minhas professoras, estudando a maneira como seu bico-de-pena
animava mil figuras humanas diferentes no paraíso e inferno, com apenas uma
dúzia de traços cada, criando histórias complexas de desespero e alegria.
A pintura dos afrescos levou o tempo de uma breve vida. Plautilla tinha
quase sete anos quando comecei. No começo, havia pouco o que eu pudesse
ensinar a ela, porque eu mesma sabia muito pouco: livros e os esboços de Santa
Catarina não poderiam me tornar uma especialista. Mas Erila usou suas
conexões e encontrou, na cidade de Verona, um rapaz recentemente graduado do
estúdio de seu mestre, que era, ela achava, dedicado e discreto o bastante para
passar dias na companhia de freiras seculares sem se sentir nem acabrunhado
nem ser corrompido. Desse modo, ele ensinou e nós aprendemos. E quando
partiu, vinte meses depois, a armação de andaimes estava construída, e pude
aplicar a minha própria faixa de gesso nas paredes, e Plautilla pôde moer e
misturar vários dos pigmentos. Era somente uma questão de tempo até ela
começar a acrescentar seus próprios toques.
Quando a capela ficou cheia de santos e pecadores, as visitas do bispo
incitaram minha curiosidade em relação aos rumores sobre um gênio
estrangeiro. Ele vinha de Roma com freqüência, e apesar de não me dizer nada
sobre meu pintor, tinha muito a dizer da grandeza da cidade e de como ela tinha
superado Florença em questões de arte. Falou de como esse resplendor vinha das
mãos de um jovem florentino beligerante, um artista tão intenso em sua conexão
pessoal com Deus, que nem mesmo o Papa tinha autoridade sobre ele. A sua
obra mais recente, encomendada por sua cidade natal, era uma escultura
gigantesca de Davi talhada em um único bloco de mármore irregular, tão
majestosa e tão viril em sua humanidade, que os pobres florentinos mortificados
não sabiam o que fazer com aquilo. Tiveram de derrubar arcos e destruir casas
para deslocá-la do ateliê até a Piazza della Signoria. Estava agora, disse ele, na
entrada para o Palazzo, a presteza de Davi para golpear Golias como um aviso
perene a todos aqueles que ameaçassem a República da cidade. E apesar de suas
proporções deslumbrarem quem a olhava, o bispo disse que havia outros que
falavam também entusiasticamente de uma obra muito anterior, executada
quando ele ainda era adolescente: uma crucificação em tamanho natural na
igreja de Santo Spirito, em que o corpo de Jesus era tão jovem e perfeito que
levava lágrimas aos olhos de quem o via.
Hoje, depois de muitos anos, finalmente soube o nome de Michelangelo
Buonarroti, e me admira a maneira como o destino levou meu pintor e sua
nêmesis à mesma cidade. Mas embora tais histórias excitassem minha
curiosidade, não me alonguei nelas. Apesar de os poetas poderem afirmar o
contrário, não é possível insistir em uma paixão quando não existe nada para
mantê-la viva. Ou talvez fosse mais uma prova da misericórdia de Deus comigo
o fato de que, desde o nascimento de Plautilla, ele tenha me libertado do
domínio do desejo por algo que eu não podia ter. E assim, como a cor ao sol,
minhas recordações do pintor desbotaram.
Em seu lugar, se desenvolveu um certo prazer no ritual e na ordem. Meus
dias eram simples: levantar ao alvorecer para rezar, depois passar as primeiras
horas aplicando o gesso na área da parede que eu trabalharia naquele dia. Uma
pausa para a refeição da manhã: no verão, frios com abobrinha frita e geléias de
legumes, no inverno, presunto curado, tortas e consome. Depois, passar a tinta
antes de o gesso secar ou os raios de sol incidirem abaixo da janela, tornando a
luz muito baixa para o meu pincel. Onde antes eu ansiara pelo mundo lá fora,
agora minha visão se reduzia à transformação de um quadrado úmido de gesso
em um conjunto de formas e cores que só poderiam ser compreendidas quando o
todo fosse concluído.
Desse modo, depois de tantos anos, Alessandra Cecchi finalmente
aprendeu a virtude da paciência, e a cada entardecer, quando largava os pincéis e
atravessava os claustros, de volta à sua cela, acho que se pode dizer que se sentia
contente.
E essa sensação durou muitos anos, até a primavera de 1512.
Quarenta e Oito
A METADE DA CAPELA ESTAVA QUASE concluída quando, no fim de uma
tarde, me avisaram que eu tinha visita.
Considerando-se a liberalidade de nossa instituição, visitantes não eram
raros, embora não para mim. Minha mãe vinha ano sim ano não, desde a minha
chegada, e ficava por algumas semanas, para saborear o desenvolvimento de sua
neta. Mas, recentemente, sua vista tinha-se tornado cada vez mais turva, e agora,
meu pai, que se tornara uma espécie de recluso assim como um inválido,
precisava dela a seu lado o tempo todo. Suas últimas notícias tinham chegado
por carta apenas alguns meses antes. Luca tinha-se casado finalmente com uma
garota forte que gerava filhos como se estivesse montando um exército,
enquanto Maurizio, que depois da morte de minha irmã, tinha tomado outra
esposa com um dote maior e uma educação inferior, enviuvara de novo. De
Tomaso e Cristoforo não se sabia nada. Era como se tivessem desaparecido no
ar. Às vezes, eu os imaginava em uma vila elegante na periferia de uma cidade,
vivendo como dois sobreviventes de uma guerra brutal, velando as necessidades
e espírito um do outro, até um deles morrer. E em todos aqueles anos, eu não
soube nada que contrariasse essa fantasia.
Voltando à visita.
Pedi que ele — pois era um homem — fosse introduzido na sala de leitura,
que abrigava a nossa pequena, mas orgulhosa, coleção de livros e manuscritos,
tanto seculares quanto divinos, e que lhe dissessem que eu iria logo, assim que
lavasse os pincéis e as mãos. Tinha-me esquecido de que Plautilla já estava lá, à
escrivaninha, ocupada com as ilustrações para um Livro dos
Salmos recentemente copiado, e portanto, quando abri a porta
calmamente, os vi antes de me verem, sentados juntos à mesa banhada pela luz
suave do sol de fim de tarde.
— Está vendo agora? Assim a linha é mais fina — disse ele, devolvendolhe a pena.
Ela olhou para baixo por um momento.
— Quem você disse que era?
— Um velho amigo de sua mãe. Faz muitas ilustrações para a palavra de
Deus?
Ela deu de ombros, Apesar de ela ter desenvolvido um nível satisfatório
de descontração para conversar com o nosso jovem artista da capela, era tímida
com homens. Sem dúvida como eu tinha sido na sua idade, tantos anos antes.
— Pergunto isso porque você tem um traçado vivo. É de admirar que a
sua força não diminua as palavras.
Ouvi minha filha estalar a língua, aquele gesto de frustração tranqüila que
tinha aprendido com Erila.
— Oh, não vejo como pode acreditar nisso. Quanto mais gloriosa a
imagem, mais perto ela leva o suplicante a Cristo. Escrever em um lugar o nome
de Nosso Senhor, colocar a figura que o representa no lado oposto, e qual dos
dois estimula mais a devoção?
— Não sei. É uma pergunta sábia?
— Sim! O homem que disse isso é um pintor sábio. Talvez não o conheça,
a sua obra é moderna. Seu nome é Leonardo da Vinci.
E ele riu.
— Leonardo? Nunca ouvi falar dele. E como sabe o que esse Leonardo
diz?
Ela olhou para ele séria.
— Não estamos tão isoladas quanto pode parecer. E algumas notícias são
mais importantes do que outras. De onde veio mesmo?
— Ele vem de Roma — disse eu, atravessando a sala obscurecida até a luz
do sol que incidia neles. — Via Florença e um mosteiro na beira do mar, onde o
vento do inverno é tão frio que congela seus cílios e transforma em gelo a
respiração em suas narinas.
Ele virou-se e olhamos um para o outro. Eu o teria reconhecido
imediatamente, com ou sem o tecido elegante. Estava bem mais forte, a
vivacidade adolescente há muito desaparecida, e estava bonito, agora podia-se
ver isso realmente. Se bem que também poderia se dever ao fato de que ele sabia
disso. Confiança é uma coisa perigosa: pouca demais e se está perdido, em
excesso e será culpado de outros pecados que ela gera.
E eu? O que ele via na freira à sua frente, o hábito de trabalho manchado
de tinta, o rosto brilhando do suor provocado pela concentração? Minha estatura
não se alterara. Eu continuava desengonçada, quase do tamanho de uma girafa,
se bem que ele sempre fora alto o bastante para fazer eu me esquecer de minha
altura. De resto — bem, embora, na época, houvesse espelhos em nosso
convento, há muito eu deixara de me olhar neles. Tinha sido um certo prazer
deixar para trás a necessidade de se enfeitar e embelezar que vem com o desejo.
Ao longo dos anos, as esteticistas dos claustros tinham-me adulado, vez ou
outra, na permuta de habilidades, e eu havia evocado meia dúzia de cenas
religiosas decorativas em suas celas em troca de um hábito de melhor caimento
ou uma pele mais macia. Mas nunca tinha sido minha intenção cortejar ninguém.
Meus dedos faziam o trabalho de um homem, tanto com o pincel como, às
vezes, em meu mato, como Erila, tão poeticamente, diria. Conseqüentemente, eu
tinha me transformado de garota em mulher sem perceber.
— Mamãe?
— Plautilla?
Ela estava olhando para nós dois. A sala agora apresentava dois pares de
olhos de gato. Senti certa vertigem ao examiná-los. Toquei levemente na cabeça
dela.
— Por que não termina isto, filha? A luz está linda lá fora. Vá e registre a
mão de Deus na natureza.
— Oh, mas estou cansada.
— Então, deite-se ao sol e deixe que seus raios clareiem seu cabelo.
— Mesmo? Posso?
Desconfiada, antes que eu mudasse de idéia, arrumou suas coisas
rapidamente e saiu. E no seu andar, vi de novo sua tia, destrancando o mesmo
cabelo castanho basto, pegando suas coisas e saindo às pressas do quarto,
deixando eu e minha mãe para falarmos sobre o assunto desagradável do
casamento no silêncio que se instalara. Tinha sido havia tanto tempo que a
imagem pareceu recém-cunhada em minha mente.
Ficamos em silêncio por um tempo, metade de uma vida no espaço entre
nós.
— Ela tem o traço forte — disse ele, por fim. — Você ensinou bem.
— Não precisou ser ensinado. Ela nasceu com um olhar genuíno e uma
mão firme.
— Como sua mãe?
— Mais como seu pai, eu acho, se bem que não estou certa que seus
primeiros professores o reconhecessem em suas roupas sofisticadas.
Ele abriu sua capa e expôs seu forro escarlate.
— Não aprova?
Dei de ombros.
— Vi tinturas melhores no armazém de meu pai. Mas isso foi há muito
tempo, quando artistas se preocupavam mais com a cor de suas tintas do que
com a de suas roupas.
Ele sorriu, como se minha língua afiada o agradasse. Fechou a capa.
— Como nos encontrou?
— Não foi fácil. Escrevi a seu pai várias vezes, mas ele nunca respondeu.
Três anos atrás, fui à sua casa em Florença, mas não havia ninguém, e os criados
eram estranhos e não me disseram nada. Então, neste inverno, passei uma noite
na companhia de um bispo que contou, com bazófia, que havia uma freira em
um de seus conventos que estava pintando a própria capela com a ajuda de sua
filha natural.
— Entendo. Bem, estou feliz que Roma tenha lhe concedido tais
companhias ébrias, se bem que esperava mais do pintor que conheci do que ser
reduzido às inclinações do Bispo Salvetti. Embora, se o vinho correu solto o
bastante, provavelmente nem se lembre de seu nome.
— Na verdade, me lembro. Mas me lembro mais de como me senti com a
sua história — disse ele calmamente, tratando a minha língua ferina como o que
era: uma defesa precipitada contra a emoção. — Tenho procurado vocês duas há
tanto tempo, Alessandra.
Senti um rubor me invadir. Erila tinha razão: não adianta as mulheres
pararem de pensar nos homens. Isso as torna vulneráveis quando eles retornam.
Sacudi a cabeça.
— Foi há muito. Tenho certeza de que estamos muito mudados.
— Você não parece ter mudado — disse ele, calmamente. — Seus dedos
estão manchados como sempre.
Dobrei-os do meu lado, como fazia quando era criança.
— Mas a sua língua está mais melíflua. — E a minha voz ainda inflexível.
— Eu me pergunto onde estará a sua timidez.
— Minha timidez? — ficou em silêncio por um momento. — Parte dela
desapareceu em minha viagem ao inferno naquelas semanas na capela. Parte foime arrancada na prisão de Bargello. O resto, guardo trancado dentro de mim.
Roma não é uma cidade para os tímidos ou os inseguros. Mas faria melhor não
me julgar pela aparência. Quando era jovem, conheci uma garota que vestia
roupas caras e tinha a língua afiada. Mas a sua alma revelou-se maior do que
muitas que usavam roupas mais veneráveis.
E a determinação de sua voz tocou um ponto sensível da memória. Senti
algo se contorcer dentro de mim, mas tinha sido fazia tanto tempo que eu não
sabia mais o que era prazer e o que era medo.
A porta abriu-se e uma noviça jovem pôs a cabeça para dentro. Ela havia
chegado recentemente de Veneza, onde seus pais haviam tido problemas para
mantê-la em casa à noite e continuava a ser, de certa forma, um problema para
nós. Viu-nos juntos e deu um risinho. Quando recuou rapidamente, ainda
sorrindo, ele perguntou:
— Tem algum lugar, em seu convento, onde possamos ficar a sós?
Com a porta fechada, minha cela que, até então, tinha sido grande o
bastante para conter toda a minha vida, de repente ficou pequena demais. Acima
da minha cama, estava um estudo em tamanho natural do nascimento da
Virgem, o bebê deliciosamente rechonchudo baseado em centenas de esboços da
nossa filha. Observei seu rosto abrir-se em um sorriso.
— Ela está na sua capela?
Sacudi os ombros.
— É só um esboço.
— Ainda assim, estão vivos. Como a mulher e o bebê do Nascimento da
Virgem de Ghirlandaio. Revi a capela na última vez em que estive em Florença.
Às vezes acho que nada foi pintado que o supere.
— Mesmo? — disse eu. — Não é o que o nosso bispo nos diz. Está
sempre exaltando as novidades em Roma.
Ele sacudiu a cabeça.
— Não sei se você gostaria tanto da arte de Roma hoje. Está se tornando
um tanto... carnal.
— O homem tão importante quanto Deus — disse eu, relembrando a
última noite de conversa com a nossa freira erudita.
— Em algumas mãos, sim.
— E nas suas?
Foi até a janela. Lá fora, um grupo de freiras mais jovens atravessava o
claustro para as vésperas, suas risadas enlaçadas com o som dos sinos.
— Às vezes, é difícil nadar contra a corrente. — Virou-se e olhou para
mim. — Talvez deva saber por que vim vestido com minhas melhores roupas.
Ficamos olhando um para o outro. Havia tanto a dizer. Mas eu sentia
dificuldade em respirar. Era como se alguém tivesse inflamado o fogo no quarto
e isso sugasse o ar entre nós.
— E você deveria saber... — gaguejei —, deveria saber que agora
pertenço a Deus — disse eu com firmeza. — E que Ele me concedeu o perdão
de meus pecados.
Encarou-me e, dessa vez, seus olhos felinos estavam sérios.
— Sei disso. Também eu fiz as pazes com Deus, Alessandra. Mas, nessa
paz, não há um dia em que não pense em você.
Deu um passo em minha direção. Tentei repelir as palavras. Tinha-me
tornado tão tranqüila na minha auto-suficiência. Era doloroso demais abrir mão
dela.
— Tenho uma filha. E um altar a pintar — disse eu ameaçadoramente. —
Agora não tenho tempo para essas coisas.
Porém, no mesmo instante em que dizia isso, a antiga Alessandra estava
de volta. Eu podia senti-la atacando o desejo como a cabeça de um dragão
despertando, farejando o ar, sentindo em sua barriga uma grande excitação de
fogo e poder. Ele também o sentiu. Estávamos tão próximos que eu podia sentir
a sua respiração à minha volta. Seu cheiro era mais doce do que eu me lembrava,
apesar do tisnado da estrada. Em outro momento da nossa vida, tinha sido eu
que dominara o seu medo. Agora era a sua vez. Pegou minhas mãos e entrelaçou
nossos dedos. Entre nós dois, nossa pele manchada formava uma paleta. Sempre
tínhamos estado unidos um ao outro pelo poder do desejo, mesmo quando nada
sabíamos disso. Fiz uma última tentativa.
— Estou apavorada — disse eu, as palavras saindo sem o meu
consentimento. — Vivi de maneira tão diferente esses anos todos, e agora tenho
medo.
— Sei disso. Esquece-se de que eu já tive esse medo. — Puxou-me para si
e me beijou delicadamente, puxando meu lábio inferior com o seu, deslizando a
língua dentro de minha boca, incitando-me a brincar. E seu gosto era tão quente
e lembrava-me dele tão bem, mesmo tendo sido quando éramos tão crianças...
Ele interrompeu-se. — Mas, agora, não tenho medo. — E o seu sorriso iluminou
nossos rostos. — E não pode imaginar quanto tempo esperei por este momento,
Alessandra Cecchi.
Despiu-me lentamente, colocando de um lado, com cuidado, meu hábito,
e me examinando a cada peça que tirava, até remover, por fim, minha camisa e
eu ficar nua na sua frente. Eu tinha me assustado com meu cabelo, que no
passado tinha sido a minha glória e que não mais podia cair como um rio de lava
negra por minhas costas. Mas quando fiquei sem a touca, o cabelo curto e
embaraçado surgiu como relva rija, e ele passou a mão, eriçando-o, como se
fosse um atributo de grande alegria e beleza.
Ouvi dizerem que há homens que gostam da idéia de possuírem freiras. É
claro que se trata do mais grosseiro dos crimes, pois é adultério contra Deus.
Suponho que só por essa razão, pode-se perceber como aqueles que vivem para
a sensação, a achem mais potente, por isso geralmente ou são loucos por guerra
ou bebem antes de poder realizá-lo. Mas ele não era nenhum dos dois. Ele era
louco por ternura.
Pôs as mãos entre minhas pernas, traçando a linha da parte interna de
minha coxa, deslizando seu dedo para dentro de mim, brincando com a carne
que encontrou ali, seus olhos tão ousados quanto seu toque, presos aos meus,
examinando-me o tempo todo. Então me beijou de novo e, quando parou,
repetiu meu nome várias vezes. E o tempo todo, parecia tão à vontade que me
fez rir, e me perguntei, de novo, como alguém que tinha sido tão desajeitado se
tornara tão seguro.
— Desde quando ficou tão seguro em relação a essas coisas?
— Desde que me mandou embora — disse ele baixinho, beijando-me de
novo, fechando meus olhos com seus lábios. — Agora pare de pensar —
sussurrou em meu ouvido. — Por uma única vez pare essa sua cabeça vibrante.
Separou meu sexo com seus dedos de novo, cuidadosamente, com
precisão, seus olhos nos meus o tempo todo, e usou a ponta dos dedos para tocar
a extremidade da minha fenda, e pressionou, desencadeando uma sensação
prazerosa em mim. Nessa tarde, ele me mostrou coisas que nunca imaginei;
peculiaridades do sexo, iguarias do desejo. Mais que tudo lembro-me do toque
de sua língua em mim, como a ponta da língua de um gato, limando com
movimentos rápidos e firmes, sorvendo o leite, Toda vez que eu gemia, ele
erguia a cabeça para checar que eu estava com ele, seus olhos brilhantes, como
se a risada não passasse de uma expiração.
Eu tinha ouvido dizerem que, no paraíso, até mesmo a substancia da
matéria muda com a luz de Deus, de modo que se pode enxergar, através de
coisas sólidas, o que está além. Quando começou a escurecer em minha cela,
achei que, naquele momento, podia ver através de seu corpo a sua própria alma.
Erila, com certeza, alegaria uma experiência mais musical, a experiência de,
depois de tantos anos, finalmente ouvir a doçura da corda do alaúde.
Por causa de seu talento com o pincel, a Madre Superiora deu-lhe permissão
para ficar por algum tempo. À noite, ele me ensinava a arte do corpo, e, de dia,
ajudava-me na capela. Onde havia erros, fazia o que podia para corrigi-los, e
onde eu me satisfizera com a proporcionalidade sem ardor (e foram muitos os
exemplos disso), ele acrescentava a centelha de seu pincel para dar-lhe mais
vida. Sei que ele via somente as imperfeições, mas não se demorava nelas.
Quando não estava comigo, estava com Plautilla, e sob seus cuidados, ela
florescia. Percebi seu conhecimento atiçar a curiosidade dela, aproximando-os
cada vez mais, tanto na arte quanto na conversa.
E quanto mais tempo passavam um na companhia do outro, mais certa eu
ficava do que tinha de fazer.
Mesmo sem ele, seria apenas uma questão de tempo até ela me deixar. Eu
sempre soubera disso. Nem mesmo nas ordens mais indulgentes, ela poderia
permanecer indefinidamente sem tomar o véu, e eu não permitiria isso. Seu
futuro era grande demais para ser contido pelos muros do convento, e não havia
mais nada que eu pudesse ensinar-lhe. Ela tinha quase quatorze anos; idade em
que um jovem talento deve encontrar um mestre se tiver de se desenvolver. Se
Uccello pôde treinar sua própria filha, então ele também poderia, e se existia,
nesse momento, uma cidade capaz de quebrar as regras para incluir o talento
fora do comum de uma mão feminina, certamente essa seria Roma. O resto
caberia a ela.
Foi providenciado para que partissem antes do auge do calor. É claro que
quando lhe disse, ela só conseguiu ver a perda e o terror e, de início, se recusou
a ir. Fui delicada com ela, ciente de como os castigos de minha mãe nunca
tinham conseguido nada além de me tornar ainda mais obstinada. Quando a
razão não funcionou, contei-lhe a história: de uma jovem que tinha querido tanto
pintar que isso a levara a transgressões de tal magnitude, que o seu maior desejo
na vida era, agora, dar à sua filha o que ela não pudera ter. E tendo escutado com
atenção, por fim concordou em me deixar. Ela era, percebo retrospectivamente,
uma criança mais obediente do que eu tinha sido. Mas não adiantava agora
alongar-me em como a minha rebelião tinha definido a minha vida.
Em sua arca, junto com minhas esperanças e sonhos, também coloquei o
manuscrito envolvido em um tecido de veludo. Não precisava dele agora, e ele
merecia coisa melhor do que a úmida arca de casamento de uma freira que
envelhecia. Antes de envolvê-lo pela última vez, ele sentou-se com o manuscrito
aberto à sua frente. Senti seus dedos lerem cada linha traçada com admiração, e
percebi que tomaria tanto cuidado com ele quanto eu, e, dessa maneira,
encontraria seu caminho na história.
Quarenta e Nove
À NOITE, ANTES DE PARTIREM, DEITAMO-NOS juntos em minha cama
dura, nossos corpos viscosos no calor do verão. A exaustão do nosso desejo
satisfeito havia nos deixado languidos e sonolentos. Ele molhou os dedos em
uma vasilha de água e traçou uma linha fria da minha mão até o braço,
atravessou meu peito e desceu o outro braço, parando por um momento sobre a
fina cicatriz branca que decorava meu pulso e a parte interna de meu braço.
— Conte-me de novo — pediu calmamente.
— Já ouviu essa história dezenas de vezes. A lâmina escorregou e...
— E usou o sangue para pintar seu corpo. — Ele sorriu. — E onde
pintou? Aqui? — tocou em meu ombro. — Depois aqui? — passando seu dedos
por meus seios. — E depois aqui? — e seu dedo moveu-se por minha barriga em
direção ao sexo.
— Não! Nem mesmo eu ousaria tanto.
— Não acredito — disse ele. — Ainda assim, teria ficado bonito: o
escarlate na pele castanha. Embora haja outras cores que também se ajustariam...
Sorri e deixei sua mão onde tinha ido. Amanhã, vestirei meu hábito,
voltarei à capela e me tornarei freira de novo. Amanhã.
— Se soubesse quantas vezes pintei seu corpo em minha imaginação...
— E uma vez na realidade. No teto da capela.
Ele sacudiu a cabeça.
— Você nunca foi o modelo certo para uma Madona. Seus olhos eram
atrevidos demais. Por que acha que tive medo de você por tanto tempo? Sempre
foi Eva. Se bem que eu não avaliaria as chances da serpente contra sua mente.
— Acho que dependeria da cara que teria — disse eu.
— Ah, ainda não pensa na serpente como uma mulher? Continua a
desafiar Masolino.
Dei de ombros.
— Acho — eu disse, e sorri quando ele imitou com a boca as minhas
próximas palavras. — Acho que não existe nenhuma evidência nas escrituras
para essa representação. Mas ainda não vi um pintor corajoso o bastante para
desafiá-la.
Desse modo a serpente se juntou a nós em nossa cama, nessa última noite.
E apesar de saber que o que fizemos foi uma blasfêmia, não desejo que seja
desfeita: a maneira como seu corpo selvagem verde e prateado se desenvolveu
sob seu pincel, enroscando-se sobre meus seios, depois descendo por meu
estômago até desaparecer em meu pêlo, e exatamente onde o envolvia, delineou
o seu próprio rosto no emaranhado. E enquanto trabalhava, provocou momentos
de desolação e de prazer, e o corpo do charlatão com a luxúria de seus músculos
ondulando sob sua pele lustrosa.
Na manha seguinte, levantei-me, ocultei a pintura gloriosa que, agora, era
o meu corpo sob o meu hábito, e vi meu amante e nossa filha partirem.
Mas eu gastara tanta energia convencendo Plautilla a partir, que tinha me
esquecido de guardar o bastante para me consolar. Nos dias seguintes, a tristeza
brotou como doença, envolvendo-me em uma febre fria de desolação, e quanto
mais a distância crescia entre nós, mais minhas entranhas pareciam se desfazer e
se derramar no chão.
Uma vez, eu tinha acusado meu amante do pecado do desespero. Agora,
parecia que eu sucumbiria a ele. Minha capela permaneceu intocada, a vida da
Virgem mal começara. À noite, ficava na cama recordando o desejo nas dobras
do corpo da serpente. Mas o verão inflamou-se como fogo, e com o calor vieram
os suores noturnos, a poeira e a sujeira, e não demorou para que as cores
começassem a sangrar e desbotar, como os tecidos coloridos de meu pai ao
serem deixados ao sol. E, assim, meu espírito descorou junto com elas.
A Madre Superiora brincou com meu sofrimento por um tempo, e, então,
ficou impaciente com o atraso. No fim, foi Erila que me salvou, se bem que eu
temia que ela também tivesse me abandonado. Florença era uma viagem longa
de Loro Ciufenna, e os tintureiros de Santa Croce constituíam uma fraternidade
muito fechada, de modo que mesmo quando ela os encontrava nas ruas próximas
ao rio, em suas oficinas improvisadas cheias de agulhas e cores roubadas,
relutavam em ceder seus segredos a uma estranha. Mas ninguém conseguia
resistir a Erila por muito tempo. Do charlatão, ela me contou depois, não havia
sinal.
Chegou de volta certo entardecer, quando a luz estava em seu momento
mais sublime, esvaziando sua pequena maleta de couro e dispondo o conteúdo
no chão, do lado do meu catre: remédios, ungüentos, panos, agulhas, e um
conjunto de frascos pequeninos. A cor de cada um turva e enlameada, a
densidade de nanquim, e não de tinta. Só depois de a pele ser perfurada e a tinta
penetrar ponto por ponto na ferida é que o efeito vibrante era liberado. Oh, mas
então, os tons eram surpreendentes; toscos e novos como as primeiras pinceladas
de Deus no jardim do Éden, e a visão deles se misturando com meu sangue fez
com que parte da velha chama tremeluzisse em mim. Nessa primeira noite,
trabalhamos à luz de vela, e quando alvoreceu, havia meia polegada da cauda da
serpente em meu ombro restaurada e meu corpo estava exausto do prazer
causado por suportar a dor.
Com o passar dos dias, nos tornamos mais rápidas e eu com mais
capacidade de recuperação. A serpente sob nossos dedos tornou-se mais
sedutora à medida que aprendíamos melhor como lidar com a agulha, e calcular
quantas perfurações minúsculas eram necessárias para dar vida a cada
movimento do seu músculo. Quando se enrolou e se enroscou, de sua maneira
lasciva, em meus seios e minha barriga, eu podia vê-la o suficiente para usar a
agulha eu mesma. De modo que quando cheguei aos contornos desbotados do
rosto de meu amante, eu estava sozinha, e aconteceu uma doce catarse na
crueldade das agulhas enquanto eu acrescentava o dardo da língua da serpente
deslizando de sua boca em direção ao meu sexo. E assim, recuperei o apetite de
viver e retornei às paredes do meu altar.
Os anos seguintes foram tumultuados. Na primavera, meu pai faleceu, na
cadeira em seu gabinete, seu ábaco e livros de contabilidade à sua frente. Luca
assumiu a casa e minha mãe retirou-se para um convento dentro da cidade, onde
fez o voto do silêncio. Sua última carta desejava que Deus me abençoasse e
insistia para que eu confessasse meus pecados, como ela confessara os seus.
Nesse meio-tempo, em sua amada Florença, a República tão maltratada
aceitou os Medici de volta, depois de décadas de exílio. Mas Giovanni de
Medici, agora Papa Leão X, era uma sombra pálida de seu pai erudito. Meu
gordo e seboso meio irmão — pois era isso que era — tinha sido forjado nas
chamas do parasitismo e dissipação da fortuna. Sob seu pontificado, Roma
tornou-se tão flácida quanto seu corpo. Até mesmo a sua arte tornou-se
corpulenta. As cartas de meu pintor falavam de uma jovem artista, cujo pincel
logo seria tão bom quanto o de qualquer homem, mas de uma cidade afligindose em sua própria decadência; de banquetes que duravam dias e patronos tão
ricos que atiravam os pratos de prata no Tibre depois de comerem (se bem que
corria o boato de que, depois, seus criados os resgatavam).
No ano seguinte, meu pintor e minha filha partiram de Roma para a
França. No passado, ele recebera convites tanto de Paris quanto de Londres,
cidades onde a nova erudição estava ainda na infância e onde haveria mais
chances de patronato para aqueles que permaneceram fiéis aos costumes antigos.
Portanto, partiram com seus pincéis e o manuscrito. Marquei o percurso em um
mapa que a minha freira erudita me conseguira com um cartógrafo em Milão. O
navio ancorou em Marselha, de onde viajaram para Paris. Mas o convite
prometido não resultou em trabalho remunerado, e acabaram sendo obrigados a
vender parte da Divina comédia para se sustentarem. Dessa maneira,
atravessaram a Europa, mas suas cartas falavam de uma agressão cada vez maior
dirigida à Igreja estabelecida e ao que alguns consideravam sua arte idolatra, e,
finalmente, passaram para a Inglaterra, onde o jovem rei, instruído na
Renascença, estava ansioso por artistas que engrandecessem sua corte. Durante
os primeiros anos, enviou-me histórias de um povo ensopado pela chuva, com
uma língua áspera e maneiras ainda mais ásperas. E, é claro, eu não consegui
evitar pensar em seu mosteiro, e em como a vida o levara de volta à paleta cinza
mais uma vez. Mas então, as cartas pararam de chegar e não recebo notícias
deles há alguns anos.
Tive pouco tempo para lamentar. Logo depois que a capela foi concluída,
a Igreja investiu contra nós. A nossa criatividade tinha-se tornado monstruosa
demais mesmo para esses tempos duvidosos. Sempre tinha sido uma questão de
tempo até os rumores chegarem aos ouvidos errados. Quando o nosso bispo
morreu, o homem designado para substituí-lo era feito de material mais
inflexível, e com ele vieram os inspetores das igrejas que sentiam o cheiro do
Diabo em toda parte: no feitio de nossos hábitos, no pano perfumado em nossas
celas e, principalmente, nos livros em nossas estantes. Somente meu altar
sobreviveu ao escrutínio porque, na época, a humanidade dessa arte tinha-se
tornado comum. Meu altar e meu corpo. Mas isso era assunto entre mim e Deus.
Aquelas entre nós que já haviam passado por isso antes, aceitaram com
tranqüilidade. Sabíamos que era melhor não lutar. As poucas que resistiram
foram oprimidas e transferidas. De certa forma, não foi tão terrível. Nossa
dramaturga e a maioria das costureiras esteticistas se foram, mas a erudita ficou,
apesar de sua biblioteca ter sido expurgada. Uma nova Madre Superiora foi
trazida, pura e íntegra, com um Deus mais severo em seu caráter. Com a capela
concluída, desenvolvi a voz para as vésperas e ocultei minhas excentricidades
por trás do meu livro de orações. Contanto que me mostrasse submissa, estava
velha demais para ser uma ameaça. É claro que perdi meu material de pintura.
Mas me deixaram minhas penas, e foi assim que comecei esta história da minha
vida, que, por enquanto, afugenta a solidão e o tédio da nova ordem.
Minha maior perda foi Erila. Evidentemente, não havia espaço para seu
espírito comercial obstinado nesse novo mundo estrito. Para ficar, teria de ser a
criada que sempre rejeitou, e, de qualquer maneira, já tinha forjado uma vida lá
fora. Com a minha ajuda e suas próprias economias, estabeleceu uma botica na
cidade vizinha. Um lugar tão pacato nunca vira uma mulher tão selvagem e, é
claro, houve quem a considerasse uma bruxa, se bem que, ironicamente, mais
uma bruxa branca do que negra. Mas não demorou para que passassem a
depender de seus remédios e conselhos tanto quanto as freiras haviam
dependido. E assim, conseguiu uma certa respeitabilidade. Rimos sobre isso nas
ocasiões que tinha permissão para me visitar; como a vida pode oferecer o mais
bizarro dos finais à vida de alguém.
Terminei este manuscrito há dois meses e foi, então, que decidi o que devo
fazer. Não é que eu esteja sofrendo — agora, as recordações são tão fracas
quanto minha vista —, é que os anos passaram na minha frente como uma massa
fina, e não suporto a idéia dessa eternidade rígida e a longa e lenta passagem
para a decrepitude. Depois de decidir, é claro que pedi ajuda a Erila. Uma última
vez. O tumor foi idéia dela. Tinha visto vários; coisas malignas que surgiam na
pele de uma maneira volumosa e misteriosa. As mulheres principalmente eram
propensas a eles ao redor dos seios. Cresciam tanto dentro quanto na superfície,
corroendo fundo os órgãos vitais do corpo até as vítimas afundarem na agonia
de sua própria decadência. Não havia tratamento e até mesmo os chamados
médicos tinham medo deles. Uma vez atacadas, as vítimas afastavam-se da
sociedade, como animais feridos, gritando sua dor no escuro, aguardando a
morte.
A bexiga de porco foi inspirada e fácil — bastou uma visita à cozinha
enquanto as outras estavam orando. Erila ajudou-me a enchê-la e a fixá-la em
meu peito, e me deu beberagens e ungüentos para me fazerem vomitar ou elevar
a temperatura do corpo quando eu precisasse que a doença ficasse mais flagrante
para mantê-las afastadas. E no fim, seria ela que me traria o veneno para quando
eu precisasse, extraído das raízes de uma das plantas medicinais que cultivava
em seu jardim. Causaria dor, me disse, e não podia garantir a rapidez do efeito,
mas do resultado não tinha dúvidas. A única questão que restava era o que
fariam depois com o meu corpo. Nosso convento tinha outra Madre Superiora
agora, a última sobrevivente dos velhos tempos; a nossa erudita, que ao longo
dos anos conseguira encontrar uma vocação genuína em sua solidão. Não posso
contar-lhe tudo, é claro, mas pedi a sua indulgência em deixar meu corpo e meu
hábito intactos. Não é minha intenção causar embaraços à sua direção. Gosto
dela e a respeito demais para isso. Como ela sabe disso, e se lembra das minhas
contravenções passadas, não perguntou mais nada e concordou.
Estão se perguntando sobre a minha morte, não estão? Sobre o pecado do
suicídio e a impossibilidade final do perdão de Deus.
Pensei muito nisso.
Antes de o manuscrito deixar minhas mãos, examinei aqueles círculos do
inferno apinhados de gente. O suicídio é, de fato, um pecado grave. De certa
maneira, o mais grave. Mas acho, de certa forma, confortante como Dante o
retrata. A punição adequada para o pecado apropriado: para aqueles que
escolheram deixar o mundo antes do momento designado para eles, o inferno os
deixa enraizados a ele para sempre. As almas dos suicidas estão firmemente
arraigadas na terra, urdidas em estruturas de árvores, seus galhos e troncos
crestados atuando como alimento vivo para todo tipo de harpias e aves de
rapina. Na metade do canto, Dante fala de como uma matilha de cães
perseguindo pecadores aparece saltando pela floresta, e em sua trajetória, fazem
em pedaços uma árvore pequena, cuja alma chora com tristeza por ter seus
ramos rompidos.
Perseguição por cães de caça. Odiei a lenda de Onesti por tanto tempo,
talvez porque eu estivesse destinada a partilhar do destino de sua heroína. Mas
nem tudo será sofrimento. Memorizei bem a geografia do inferno de Dante. O
bosque dos suicidas está perto do solo em chamas dos sodomitas. Às vezes, são
atingidos, batendo as chamas que se inflamam constantemente por seus corpos
marcados e, como Dante faria, às vezes têm tempo de parar e conversar um
pouco com outras almas danadas sobre arte e literatura e os pecados pelos quais
todos somos condenados. Eu gostaria disso.
Fiz minhas despedidas. Uma tarde, tirei minha touca e me deitei no jardim
com o rosto ao sol, perto da figueira que plantamos logo que chegamos, e por
seu crescimento medíamos o de Plautilla. Sequer me dei ao trabalho de me
mexer quando a jovem freira me encontrou ali, e correu de volta à casa a
tagarelar, com noticias da minha "transgressão". O que sabem de mim? Foi tudo
há tanto tempo e freiras velhas são tão invisíveis. Andam arrastando os pés e
sorriem com olhos lacrimosos, e resmungam ao comerem seu pudim e ao
rezarem, tudo isso aprendi a fazer admiravelmente. Não fazem idéia de quem eu
sou. A maioria nem mesmo sabe que foram meus dedos os responsáveis pelas
imagens que reluzem quando cantam na capela.
Portanto, agora, estou em minha cela, esperando Erila, que virá à noite me
trazer a beberagem e se despedir. É a ela que vou confiar este documento. Ela
não é mais escrava de ninguém e deve fazer do resto da sua vida o que achar
melhor. Tudo o que lhe pedi foi que despachasse este ao último endereço que
tenho de minha filha e do pintor, em uma área da cidade perto de Kings Court,
chamada Cheapside. No entanto, nós duas sabemos que meu pai nunca deixaria
um documento ou contrato de qualquer valor fora de seu controle, a menos que
tivesse uma cópia ou prova de que seu agente recebesse, e mesmo assim obtinha
um seguro oficial de sua chegada a salvo. Recentemente, Erila falou em viajar
com uma espécie de apetite que só acontece com aqueles que nasceram em lugar
diferente daquele em que irão morrer. Se for possível encontrar minha filha, ela
encontrará. Não posso fazer mais nada.
A noite está chegando, uma manta de calor e umidade. Depois que Erila
sair, tomarei a bebida rapidamente. De acordo com o desejo de minha mãe,
preparei minha confissão e o padre foi chamado. Esperemos que tenha um
estômago forte e uma língua silenciosa.
Epílogo
ESQUECI-ME DE UMA COISA. MINHA CAPELA.
Levou tanto tempo — de certa maneira, foi o trabalho da minha vida — e
falei tão pouco dela.
As vidas da Virgem e de João Batista. Os mesmos temas do altar de
Domenico Ghirlandaio na Capella Maggiore de Santa Maria Novella, que minha
mãe e eu tínhamos visto juntas quando eu tinha apenas dez anos de idade. Foi a
minha primeira experiência de história, e assim como permaneceu sendo a
principal recordação florentina de meu pintor, também é a minha. Pois por mais
que possa haver melhores artistas e maiores realizações, os afrescos de
Ghirlandaio contam tanto da glória e humanidade da nossa grande cidade quanto
a vida de qualquer santo, e, na minha opinião, é justamente isso que os torna tão
comoventes e tão verdadeiros.
Portanto, no espírito dessa verdade, que no passado foi tão central para a
nossa erudição, não esconderei esse fato agora.
A minha capela é tristemente medíocre. Se futuros especialistas da nova
arte se depararem com ela, a olharão de relance, então, seguirão adiante,
percebendo os afrescos como uma tentativa de um artista inferior em uma era
superior. Sim, denota uma sensibilidade para a cor (essa paixão nunca perdi), e
há vezes em que o pano de meu pai move-se como água, e uma face ocasional
transmite um caráter assim como uma pintura. Mas as composições são
desajeitadas e muitas das figuras, apesar do meu cuidado, permanecem graves e
sem vida. Se gentileza e franqueza forem consideradas, pode-se dizer que foi
obra de uma artista mais velha sem treinamento, que fez o seu melhor e que
merece ser lembrada tanto por seu entusiasmo quanto por sua realização.
E se isso parecer uma declaração de fracasso de uma mulher velha no fim
de sua vida, podem acreditar quando eu digo que definitivamente não é.
Pois se a compararem com todas as outras; todos os painéis de casamento,
bandejas de parto e arcas de casamento, afrescos, retábulos e painéis produzidos
durante aqueles tempos estonteantes, quando colocamos o homem em contato
com Deus de uma maneira nunca feita antes... então verão o que é
simplesmente: uma única voz perdida dentro de um grande coro.
E é esse o som que o coro faz unido, ter participado disso foi o bastante
para mim.
NOTAS
O Crucifixo de cedro de Michelangelo ficou perdido por muitos anos depois da
invasão de Napoleão da Itália. Foi redescoberto na década de 1960,
reautenticado, recentemente restaurado, e hoje está na sacristia da igreja de
Santo Spirito, no lado sul do rio. Quando era muito jovem, Michelangelo
também trabalhou como assistente de Domenico Ghirlandaio nos afrescos para a
Capella Maggiore em Santa Maria Novella.
As ilustrações de Botticelli da Divina comédia, de Dante, desapareceram
da Itália logo depois de serem pintadas, só reaparecendo em diversas partes da
Europa séculos depois. Em 1501, seu nome apareceu em uma das caixas de
denúncias da igreja e ele foi levado à Polícia Noturna acusado de sodomia. Há
divergências entre os estudiosos quanto à acusação ter sido calúnia ou verdade.
A Polícia Noturna operou durante todo o século XV e depois, controlando
a sodomia e outras formas de fornicação indecente em Florença. Com exceção
dos anos de Savonarola, de 1494 a 1498, seu controle era muito mais flexível do
que muitas outras cidades.
No começo do século XVI, quando os dotes aumentaram e o número de
mulheres solteiras aumentou, foram descobertos alguns conventos no norte da
Itália que eram indulgentes em relação as leis de comportamento. A Igreja
investigou e os conventos ofensores ou sofreram expurgos ou foram fechados.
Agradecimentos
Este livro foi construído no andaime da história construído a partir de várias
fontes contemporâneas, estudiosos eminentes e historiadores de arte. Os fatos
foram extraídos daí, quaisquer erros são inteiramente meus.
Eu não poderia tê-lo escrito sem o amor, o incentivo intelectual e o apoio de Sue
Woodman, que me deu mais do que pode imaginar (embora eu me atreva a dizer
que ela suspeite). Berenice Goodwin, uma grande professora de arte e boa
amiga, leu o manuscrito em um estágio inicial crítico e foi de extrema
importância, tanto por salvar-me de erros graves quanto por enriquecer
substancialmente a minha compreensão do período. Meus mais sinceros
agradecimentos a Jaki Authur, Gillian Slovo, Eileen Quinn, Peter Busby e Mohit
Bakaya, cada qual à sua própria maneira alimentou meu espírito durante os
momentos difíceis. Por sua assistência em Florença, agradeço a Isabella Planner,
Carla Corri e Pietro Bernabei. Também sou grata a Kate Lowe, que me ajudou
pessoalmente com sua erudição. E, finalmente, à minha agente Clare Alexander,
que teve uma paciência infinita e clareza de crítica, e a Lennie Goodings, minha
editora e amiga de longa data, que foi a melhor parteira que alguém desejaria ter
em um livro que, ao manter seu título, teve um trabalho de parto colorido. Por
sua tenacidade e visão, Lennie, ficarei sempre em dívida com você.
Para aqueles que quiserem ler mais sobre esse período extraordinário,
ofereço a seguinte breve bibliografia:
Leon Alberti: On painting, Penguin Classics.
Francis Ames-Lewis: Drawing in Early Renaissance Italy, Yale University Press.
Ugo Baldassarri, org.: Images of Quattrocento Florence, Yale University Press.
Michael Baxendale: Painting and Experience in 15th Century Italy, Oxford University Press.
Elizabeth Birbari: Dress in Italian Painting, John Murray.
Anthony Blunt: Artistic Theory in Italy 1450-1600, Oxford University Press.
Eve Borsook: Companion Guide to Florence, Companion Guide.
Cennino Cennini: The Craftsman's Handbook (II Libro dell'Arte), Dover Publications.
Christopher Hibbert: The Base and Fall of the House of Medici, Penguin Books.
Graham Hughes: Renaissance Cassoni, Art Books International.
Lisa Jardine: Worldy Goods, Macmillan.
Luca Landucci, trad. Jervis A. Rosen: A Florentine Diary from 1450 to 1516, Ayer
Company Publications.
Jean Lucas-Dubreton: Daly life in Florence in the Time of the Medici, Macmillan.
Michael Rocke: Forbidden Friendships, Homosexuality and Male Culture in Renaissance
Florence, Oxford University Press.
Paola Tinagli: Women in Italian Renaissance Art, Manchester University Press.
Giorgio Vasari, trad. George Buli: Lives of the Artists, Penguin Classics.
Martin Wackernagel: The Work of the Florentine Renaissance Artist, Princeton University
Press.
Evelyn Welch: Art and Society in Italy 1350-1500, Oxford University Press.
Christine Klapisch Zuber: Women, Family and Ritual in Renaissance Florence, University
of Chicago Press.
Pela permissão de citar dos Cantos I e XIII na tradução de Mark Musa de A Divina Comédia,
de Dante, I: O Inferno, publicado pela Penguin Books, gostaria de agradecer à The University
of Indiana Press. Pela permissão de citar do Canto XXXIII na tradução de Dorothy L. Sayers
e Barbara Reynolds de A Divina Comédia, III: Paraíso, também publicado pela Penguin
Books, gostaria de agradecer a David Higham Associates.
Digitalização, revisão e formatação:
Dayse Duarte
Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira
totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles
que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até
mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer
circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este
livro livremente.
Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim
você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.
http://groups.google.com.br/group/digitalsource
http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros