RICARDO ABUSSAFY DE SOUZA O LIXO E A

Transcrição

RICARDO ABUSSAFY DE SOUZA O LIXO E A
RICARDO ABUSSAFY DE SOUZA
O LIXO E A CONDUTA HUMANA:
gestão dos insuportáveis na vida urbana
RICARDO ABUSSAFY DE SOUZA
ASSIS
2013
RICARDO ABUSSAFY DE SOUZA
O LIXO E A CONDUTA HUMANA:
gestão dos insuportáveis na vida urbana
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista para a obtenção do título de Doutor em
Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e
Sociedade)
Orientador: Profª. Drª. Sonia Aparecida Moreira
França
ASSIS
2013
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da
UNESP
(Fabiana Colares CRB 8/7779)
Souza, Ricardo Abussafy, 1976S731l
O lixo e a conduta humana: gestão dos insuportáveis na vida urbana /
Patrícia Terezinha Cândido. - São Paulo, 2013.
243 f. ; il.
Orientadora: Profa. Dra. Sonia Aparecida Moreira França
Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista,
Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2013.
1. Lixo. 2. Lixo – Aspectos sociais. 3. Educação ambiental. 4. Lixo –
Legislação. 5. Foucault, Michel, 1926-1984. 6.Psicologia Social. I. França,
Sonia Aparecida Moreira. II. Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Ciências e Letras de Assis. IV. Título
CDD – 628.4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a cada um dos encontros, planejados, ao acaso, intensos ou instantâneos, que
esta prática de pesquisa possibilitou nestes quatro anos de trabalho.
Aos meus pais pela compreensão nos momentos de ausência.
À Letícia pela companhia e amor.
A meus amigos de vida, de trabalho e de estudos, reunidos na CIRCUS, em especial a
Fernando Luiz Zanetti, Tiago Cassoli e minha orientadora, professora, mentora Prof.ª Dr.ª
Sonia A. M. França. Juntos, planejamos uma empreitada intelectual forte o suficiente para
mover nossas vidas e chegar a cada uma de nossas realizações individuais e coletivas.
Agradeço a meus amigos e parceiros, Ana Maria Rodrigues de Carvalho e Edinei João
Garcia (Go... amigo de lixo, de CIRCUS e de vida) e aos demais integrantes da Incubadora
Tecnológica de Cooperativas Populares – Unesp/Assis, companheiros durante dez anos de
diálogo a respeito da condição do lixo no contemporâneo. Ainda aos integrantes das
incubadoras universitárias de cooperativas pertencentes às UNICAMP, USP, FGV e UFSCar,
pois cada expressão de vida que nestes lugares encontrei mostrou-me sobre a diversidade dos
olhares que se podem lançar sobre uma mesma prática.
Aos trabalhadores do lixo, catadores, que me ensinaram muito mais do que eu buscava
e que me possibilitaram experiências de parceria e de embates carregados de força e de
sinceridade.
A meu orientador de mestrado e sempre amigo Prof. Dr. Kleber Prado Filho pelo
incansável apoio e parceria e que meu acolheu em meu primeiro mergulho acadêmico após a
graduação.
Ao Prof. Dr. Edson Passetti, pelos encontros nos últimos seis meses de trabalho de
pesquisa, que tomaram a proporção das intensidades efêmeras, deixando seu rastro de
fagulhas incandescentes até hoje.
Ao Prof. Dr. Luis Antonio dos Santos Baptista, pela força e emoção de seus textos e
pela disposição e sinceridade na análise deste trabalho.
Agradeço à CAPES pelo apoio institucional e financeiro, pois permitiu a qualidade e
dedicação necessários para este compromisso de estudo.
Por fim, aos professores e servidores do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Unesp de Assis pela parceria institucional que permitiu a realização desta jornada intelectual
sobre o lixo.
Sobras – Geraldo de Barros
SOUZA, R. A. O LIXO E A CONDUTA HUMANA: gestão dos insuportáveis na vida
urbana. 2013. 243 f. Tese (Doutorado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Assis, 2013.
RESUMO
A produção de saberes e práticas sobre a gestão do lixo configura-se, neste
doutoramento, como objeto de intervenção no campo de formação das condutas humanas para
o governo das populações. O lixo, como experiência insuportável da vida urbana, aglutinadora
de matérias pútridas, inúteis e de refugos da sociedade, traduz-se, no presente estudo, na
análise das formas de problematização sobre as condições de existência do sujeito moderno.
Sendo assim: como se efetivam as práticas de governamentalidade das condutas, resultantes
dos aglomerados populacionais urbanos na relação com seus insuportáveis, em especial, com
seus dejetos? Quais os efeitos desta tensão entre a experiência das relações urbanas na
modernidade e a putrescência, ou, ainda, entre o fluxo das cidades e o acúmulo de seus
dejetos? Que tecnologias e procedimentos apresentam-se como instrumentos de organização
das condutas? Dentro de quais parâmetros de aceitabilidade se instaura esta experiência da
vida humana? Como se efetivam as boas condutas ao cabo de seu exercício? No trajeto destas
análises descritivas, são apresentados três recortes fundamentais: 1- a promoção de hábitos
higiênicos, responsáveis por tirar o lixo das ruas e levá-lo até as lixeiras domiciliares; 2- as
diferentes personagens do lixo presentes na história da modernidade até culminar no catador
de materiais recicláveis como um ator social da contemporaneidade; 3- as práticas e discursos
socioambientais que almejam a salvação, não mais da alma do sujeito cristão, mas de uma
única alma artificial pertencente à vida humana: a cidade. Nos processos de metamorfose das
técnicas de governamentalidade, vê-se a metamorfose das substâncias consideradas como
lixo, pois aquilo que se resumiu outrora em matérias pútridas e mefíticas, posteriormente,
multiplica-se em objetos sintéticos, descartáveis e inúteis, porém, quase indestrutíveis. Em
sua última expressão, o lixo experimenta um processo de positivação, no momento em que se
alia a recursos práticos e discursivos pautados pelas normas de sustentabilidade ambiental.
Como material de pesquisa são evidenciados alguns rastros deixados por legislações, projetos
urbanísticos, documentos históricos, discursos identitários, dentre outras formas de
conhecimento, e técnicas que tomam as práticas sociais como objeto de intervenção para
marcar a boa ou a má conduta dos citadinos em relação a seus dejetos.
Palavras-chave: lixo, resíduo, catadores de materiais recicláveis, conduta humana,
governamentalidade.
SOUZA, R. A. GARBAGE AND HUMAN CONDUCT: management of the unbearable
in urban spaces. 2013. 243 f. Thesis (PhD in Psychology). – Science and Language College
of Assis, Paulista State University, Assis, 2013.
ABSTRACT
The production of knowledge and practices on garbage management is configured, in
this doctoral thesis, as an object of intervention in the field of the formation of human conduct
to the governing of populations. Garbage, as unbearable experience of urban life that
agglutinate putrid, worthless and of society waste materials, is reflected in the present study in
the analysis of the forms of problematization about the conditions of existence of the modern
subject. Thus: how do the practices of governmentality of conducts, resulting from urban
population agglomerates in the relationship with their unbearable, especially with their waste,
actualize? What are the effects of this tension between the experience of urban relations in
modernity and putrescence, or, even, between the flow of cities and the accumulation of their
waste? What technologies and procedures are presented as instruments of conducts
organization? Within which parameters of acceptability this experience of human life is
established? How do good conducts become effective at the end of their exercise? In the
course of these descriptive analyzes, three basic clippings are presented: 1- the promotion of
hygienic habits, responsible for taking out the trash from the streets and putting them in the
household trash; 2- the different characters of garbage present in the history of modernity
culminating in the collector of recyclable materials as a social actor of contemporaneity; 3environmental social discourses and practices that aim the salvation, not of the soul of the
Christian subject anymore, but of a single artificial soul belonging to human life: the city. In
the process of updating the techniques of governmentality, one sees the metamorphosis of
substances considered as garbage, because what once was outlined in putrid and mephitic
materials, posteriorly, is multiplied in synthetic, disposable and useless, but almost
indestructible objects. In its last expression, garbage experiences a process of positivization, at
the moment it combines practical and discursive resources guided by standards of
environmental sustainability. As research material some traces are evidenced. They were left
by laws, urban projects, historical documents, identity speeches, among other forms of
knowledge and techniques that take social practices as objects of intervention to label
townspeople’s good or bad conduct regarding their waste.
Keywords: garbage, residue, recyclable material collectors, human conduct,
governmentality.
LISTA DAS ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1: VASILHAMES DE DIVERSOS TAMANHOS..................................p. 66
FIGURA 2: A ‘LIMPESA’ DA CIDADE ...............................................................p. 69
FIGURA 3: LÍDERES DO MNCR .........................................................................p. 95
FIGURA 4:THE RAGPICKER .............................................................................p. 101
FIGURA 5: LE CHIFFONIER ..............................................................................p. 102
FIGURA 6: TRAPEIRO ........................................................................................p. 103
FIGURA 7: CATADORES EM LISBOA .............................................................p. 104
FIGURA 8: CATADORES EM LISBOA .............................................................p. 105
FIGURA 9: CATADORES EM LISBOA .............................................................p. 106
FIGURA 10: TIGRE ..............................................................................................p. 108
FIGURA 11: ESCRAVOS VARRENDO A RUA.................................................p. 109
FIGURA 12: GRÁFICO-TRABALHADORES DO TRANSPORTE (APERJ) ...p. 122
FIGURA 13: ‘CARROCHA’ DE LIXO ................................................................p. 131
FIGURA 14: CARTAZ HOMENS DE PAPEL –PLÍNIO MARCOS...................p. 135
FIGURA 15: CARTAZ A MARGEM – OZUALDO CANDEIAS.........................p. 141
FIGURA 16: CARTAZ ILHA DAS FLORES – JORGE FURTADO.....................p. 147
FIGURA 17: CARTAZ BOCA DE LIXO – EDUARDO COUTINHO..................p. 150
FIGURA 18: CARTAZ ESTAMIRA – MARCO PRADO......................................p. 153
FIGURA 19: AZIZIA MUNIZA: GARBAGE AND WINE..................................p. 187
FIGURA 20: TEMPO DE DECOMPOSIÇÃO DOS MATERIAIS.......................p. 207
FIGURA 21: CAMPANHA SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA...............p. 212
FIGURA 22: CAMPANHA SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA...............p. 212
FIGURA 23: CAMPANHA SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA...............p. 213
FIGURA 24: CAMPANHA SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA...............p. 213
FIGURA 25: TRANSFORME SEUS HÁBITOS...................................................p. 215
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11
2. CRÍTICA E GENEALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA ............... 19
3. DISPOSITIVO MÉDICO-SOCIAL:
A PUTREFAÇÃO URBANA COMO OBJETO DE GOVERNO ................................ 28
3.1 A podridão urbana (Putrefactio urbanus) .......................................................................... 30
3.2 Corpo e rua como matérias da medicina social .................................................................. 45
3.3 Para limpar: ar e água como os fluidos da cidade .............................................................. 51
3.4 O cálculo da imundície ....................................................................................................... 58
3.5 Jogar o lixo no lixo ............................................................................................................. 65
4. EDUCAÇÃO SANITÁRIA E PRODUÇÃO DA CONDUTA SAUDÁVEL ................ 72
4.1 Educar para que todos desejem saúde e vida longa ............................................................ 73
4.2 Educação (popular) sanitária .............................................................................................. 80
4.3 A produção de um corpo “biossocial” ................................................................................ 83
5. PERSONAGENS DO LIXO ............................................................................................. 93
5.1 Os trapeiros e a poética do urbano...................................................................................... 96
5.2 Tigres: carregadores de excrementos .............................................................................. 107
5.3 Trapeiros e carroceiros no Brasil ...................................................................................... 116
5.4 O catador........................................................................................................................... 132
5.5 Catadores de materiais recicláveis: de personagem do lixo a ator social ......................... 156
6. PARA UMA COMPREENSÃO DO DISPOSITIVO MEIO AMBIENTE ................. 165
6.1 Lixo e o manejo integrado do ciclo vital.......................................................................... 167
6.2 Paradoxo do lixo (in)sustentável ...................................................................................... 185
7. O LIXO NÃO EXISTE:
GESTÃO AMBIENTALMENTE ADEQUADA DOS INSUPORTÁVEIS ................ 193
7.1 O lixo (des)integrado ........................................................................................................ 194
7.2 A produção das condutas ambientais................................................................................ 205
8. CONSIDERAÇÕES INTEMPESTIVAS ....................................................................... 221
9. FONTES ............................................................................................................................ 228
10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 236
11
1. INTRODUÇÃO
Se só guardamos lembranças dos momentos
tristes ou alegres: enlouquecemos.
Felizmente existem os restos.
Geraldo de Barros
De certo, os hábitos das cidades deixaram outras lembranças que não apenas as tristes
ou alegres1. A experiência da vida urbana foi também capaz de produzir efeitos menos úteis,
mas, nem por isso, menos relevantes. Desde a lixeira no canto da casa, até seu destino final, o
lixo carrega a memória daquilo que não teria mais serventia para as luzes da cidade. O que se
produz como resíduos das relações nas cidades modernas, refugos inúteis ou dejetos
putrescentes, materializa-se e acumula-se como efeito da vida urbana.
Para as projeções urbanísticas modernas, de distribuição e circulação de todas as
coisas, a existência e a persistência (crescente e exponencial) destes restos deletérios e destas
inutilidades inertes, acumuladas no cenário citadino, tornam-se insuportáveis. Na experiência
deste insuportável, localizam-se dispositivos produtores de procedimentos de gestão das
coisas e dos homens, inerente a um novo campo de atuação sobre as relações humanas.
Na tessitura destas relações, esta matéria putrefata e inútil da urbanidade e seus
processos de gestão tornam-se objeto de análise das condutas humanas. O lixo se faz, então,
elemento material para a produção de condutas, sociabilidades e estilos de vida. A partir desta
hipótese, este trabalho visa a construir uma espécie de diagnóstico do presente2 sobre a
produção das condutas que emanam do lixo, como um fenômeno inerente aos processos
populacionais e individuais, e das relações que o circunscrevem no contexto das cidades
1
Em 1975, a filha do fotógrafo Geraldo de Barros entrega-lhe caixas de filmes não revelados ou rejeitados ao
longo da carreira do pai por apresentarem imagens desfocadas, muito escuras ou claras e, até mesmo, por terem
sido apenas esquecidas. Treze anos depois, já com seus movimentos limitados pelas quatro isquemias sofridas,
Barros resolve utilizar as películas resgatando técnicas de seu início de carreira. Entre recortes e montagens, o
fotógrafo testemunhava, revirava e recriava a história de uma vida e de uma obra. A insistência em não jogar no
lixo o que parecia, por anos, inútil, seria a última produção do fotógrafo que falece em 1998, ainda trabalhando
na coleção que se chamaria Sobras. Daí a citação que ocupa a epígrafe desta Tese: “Se só guardamos lembranças
dos momentos tristes ou alegres: enlouquecemos. Felizmente existem os restos” (FERNANDES JUNIOR, 2006).
2
Foucault define a atividade intelectual como um diagnóstico do presente ou da atualidade, no sentido de
conjecturar sobre uma filosofia do acontecimento, ao contrário de raciocinar em termos de totalidade para
formular as premissas de um tempo que virá. Trata-se de uma análise histórica do presente, no sentido de que
falar sobre o presente, falar que o presente é absolutamente diferente de tudo que não é presente implica,
justamente, falar sobre nosso passado. Interrogar o presente em termos de diferença significa para Foucault a
atualidade da modernidade, significa um ethos e não uma época, portanto, constitui a análise de uma ontologia
histórica de nós mesmos: “dizer o que nós somos hoje e o que significa, hoje, dizer o que somos” (FOUCAULT
apud CASTRO, 2009, p. 173).
12
modernas. Na construção desta ação mínima, quase imperceptível e, por que não dizer, quase
cotidianamente invisível conferida ao ato de jogar o lixo na lixeira, encontram-se fragmentos
de tecnologias políticas e práticas científicas de gestão destes insuportáveis resquícios, destes
refugos da vida urbana.
A escolha da expressão “vida urbana”, em referência à gestão dos insuportáveis,
desdobra-se da compreensão etimológica de dois conceitos primordiais: civitas e urbs. Urbs
caracteriza a materialidade da cidade, o projeto urbano construído com pedras e concreto,
vidro e aço. Seria a parte sedentária do urbano, sua moldura, seu aspecto material traçado e
demarcado pelas ruas, casas, praças, prédios, pontes, estações de ônibus e trens, escolas,
dentre outras edificações, espacialidades e vias. Civitas representaria a vida da cidade, sua
vontade ou sua alma, com seus aspectos sociais, culturais e políticos, suas emoções, rituais e
concepções que fazem da cidade a forma de uma comunidade (SENNETT, 1990).
Contudo, a expressão “vida urbana” não pretende demarcar esta oposição entre civitas
e urbs, mas deslocar-se na direção de seu paradoxo. Isto significa considerar os espaços e
monumentos urbanos como tecnologias organizadoras da vida, do mesmo modo que se
configuram as relações sociais, culturais, políticas, dentre tantas outras que comporiam a vida
da cidade (civitas). Esta análise tem, assim, como estratégia evidenciar a vida política destas
formas inertes: as coisas da cidade (ruas, moradias, edifícios, pontes, janelas, esgoto, lixo,
lixeira). Isto porque a possibilidade de existência destes monumentos da civilização moderna
implica contabilizar o nível de adesão do indivíduo a seus projetos. Na mesma direção,
Michel Foucault fala em uma espécie de “reanimação do inerte” como condição de existência
dos espaços urbanos modernos e dos códigos e regras que os sustentam.
O pensamento moderno nunca pode propor uma moral, não porque seja só
especulação, mas que é, em sim mesmo, uma ética, um modo de ação:
reflexão, tomada de consciência, elucidação do silencioso, palavra restituída
ao que é mudo, reanimação do inerte. Tudo isso constitui, por si só, o
conteúdo e a forma da ética moderna (CASTRO, 2009, 157).
A noção de “vida urbana” seria então esta estratégia de manter a análise no instante de
relação entre civitas (vida na cidade) e urbs (coisas da cidade). Portanto, na relação do homem
com as coisas. Tem-se como justificativa prática de tal escolha de análise sobre a vida urbana
o fato de que, dentre os diversos documentos pesquisados, a urbs se caracteriza como objeto
de governo da vida nas cidades. Higienistas, urbanistas, ecologistas lançam uma gama de
tecnologias direcionadas, muitas vezes, não diretamente ao sujeito, mas a seu meio. O
13
objetivo está em oferecer ao sujeito as condições que possibilitem sua adesão. A organização
das coisas da cidade (espaços urbanos) torna-se objeto de governo das populações3.
Na configuração deste tema de pesquisa, em que se coloca o lixo como um analisador
do campo de formação da conduta humana, a produção dos insuportáveis como técnica de
governo de si e dos outros torna-se, com efeito, fundamento de análise. Produzir e intervir
sobre a conduta seria este modo de lastrear o poder do Estado para o governo das populações,
assim como os processos de individualização das normas inseridas no cotidiano da cidade são
entendidas como “condução de si e da família, condução religiosa, condução pública aos
cuidados ou sob controle de governo” (Id. p. 309-310). Do ato à conduta humana, é este o
sentido determinante para a produção de padrões de veridição capazes de legislar sobre os
“bons” e os “maus” hábitos da cidade.
A incessante aparição de tecnologias de organização do lixo, resultantes dos processos
de migração das populações para a vida nas cidades, revela-se como um dos principais
campos de problematização das experiências do governo das populações.
Assim, a “sinceridade da imundície” não mais agrada – e mesmo incomoda – os
corpos e a alma da cidade4, razão pela qual faz surgir problematizações acerca de seu modo de
ordenação. Observa-se, então, a insurgência de novas problematizações acerca do lixo como
manifestação do insuportável e, consequentemente, reinscrição dos modos de vida urbana por
meio de novos processos de gestão, ordenação, distribuição, atribuição de valores médicosociais e ambientais.
O lixo já se torna insuportável no período das manifestações endêmicas da sociedade
medieval, como no caso da Peste Negra. Antes mesmo de a ciência dos microrganismos
descobrir que a peste bubônica era provocada pela bactéria Yersinia pestis, presente nas
pulgas hospedadas em ratos vindos dos navios provenientes do oriente; antes mesmo de saber
3
Escopo de análise para o mapeamento desta vida urbana, o conceito de governamentalidade apresentado por
Michel Foucault oferece a base conceitual para descrição dos procedimentos de organização das condutas. Em
seu curso Segurança, Território, População, ministrado no Collège de France entre os anos de 1977 e 1978
(2008a), Michel Foucault apresenta como técnica de governo procedimentos administrativos criados na
emergência dos aglomerados populacionais. Trata-se da configuração de um mecanismo de governo que não
mais se estabelece pelo controle do território, muito menos pelo controle direto de condutas, mas que se efetiva
justamente em seu entorno. Uma espécie de controle que não se concretiza, obrigatoriamente, no governo dos
homens, mas no homem em relação com as coisas; “logo governar é governar coisas” (FOUCAULT, 2008a, p.
130). Para este governo das coisas, não faz sentido ter como finalidade um “bom” governo, ou um governo para
o “bem comum”, mas sim a maneira correta de dispor as coisas para levá-las a um “fim adequado”. Nas palavras
de Foucault: “(...) aqui não se trata de impor uma lei aos homens, trata-se de dispor das coisas, isto é, de
utilizar táticas, muito mais que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas; agir de modo que, por
um certo número de meios, esta ou aquela finalidade possa ser alcançada” (2008a, 132).
4
Alusão à afirmação de Vitor Hugo: “Esta sinceridade da imundície nos agrada e repousa a alma” (Os
miseráveis, 2002 [1862]).
14
que estes ratos encontraram as condições ideais para sua proliferação nas ruas imundas da
Europa medieval; antes mesmo de estes desastres pestilenciais causarem toda uma
reorganização do homem e das coisas na vida urbana, o pensamento médico da época
fundamentava-se por teorias astrais que ressaltava o ar como meio principal de transmissão de
doenças. “Eram o ar envenenado, os miasmas e as névoas pesadas e pegajosas, provocando
todos os tipos de agentes naturais e imaginários, desde águas estagnadas dos lagos e rios, até a
conjunção negativa dos planetas que disseminavam a doença e a morte entre os homens”.
(VELLOSO, 2008, p. 1955).
Em conjunto com esta reorganização dos homens em grupos populacionais urbanos, a
partir do século XIV e XV, configurado como prenúncio das cidades modernas, as doenças
endêmicas, provocadas por hábitos insalubres, apresentavam-se como manifestações inerentes
à nova experiência da vida urbana: experiência de doença, podridão e morte em massa,
responsável pela produção dos restos, como um dos insuportáveis dos tempos modernos.
Avançando nos processos de desenvolvimento urbano, quanto a seus modos de gestão
dos produtos deletérios das cidades, observa-se um paradoxo no interior dos modos de
produção e gestão industrial e de capital característicos dos séculos XIX e XX. A geração das
riquezas e das podridões apresenta-se, ao mesmo tempo, complementar e conflitante.
Complementar, pois, tão importante quanto produzir as utilidades da vida social, será também
fazer valer suas inutilidades para manutenção deste incessante jogo de criação e renovação de
necessidades nas relações capitalistas. Conflitante, pois este fluxo de matérias e acumulação
das coisas podres e inúteis das relações urbanas cultiva também um sentimento de
insuportabilidade. Insuportáveis serão os cheiros pútridos, a degeneração da vida a partir dos
restos, das carcaças e dos cadáveres, as montanhas de coisas esquecidas que insistem em não
desaparecer, mesmo sendo levadas e enterradas ao redor das cidades.
Movimento parecido ocorre com os habitantes de Leônia, cidade fictícia narrada por
Marco Polo (CALVINO, 1990), em que a obsessão pela limpeza cotidiana leva-os a expelir os
objetos comprados e utilizados no dia anterior. Uma cidade que se renova a cada dia: “a
população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, lava-se com sabonetes recém-tirados da
embalagem, veste roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras latas ainda
intatas, escutando as últimas lengalengas do último modelo de rádio” (Id. p.105). Este ato
obsessivo de expulsar todas as suas impurezas, esta fluente transmutação das coisas úteis em
inúteis, faz com que seus habitantes se percam entre a paixão pela aquisição e a paixão em
expeli-las, em afastar de si, em expurgar uma impureza recorrente que se acumula em
montanhas de podridão e objetos inúteis (coisas sem sentido) ao redor da cidade até sufocá-la.
15
Em consequência, testemunha-se, denuncia-se e condena-se a insistente existência de
hábitos escusos que contribuem apenas com o emporcalhamento das cidades. Surgem novas
tecnologias que fragmentam, esquadrinham e rebatizam o lixo, e com ele as condutas. Nesta
problemática, sobre os modos de gestão do lixo e seus efeitos, uma aparente reconfiguração
de valores anuncia a boa nova: “o lixo não existe”5. Em seu lugar, surgem novas
denominações, como, por exemplo: resíduos sólidos, materiais recicláveis, rejeitos, matéria
orgânica, dentre outras formas menos ofensivas. Nestes novos formatos, jogar o lixo na lixeira
deixa de ser apenas uma conduta da higiene e passa a remeter a outros campos discursivos e
conjunto de práticas, como o da solidariedade, da ecologia e da sustentabilidade, que irão se
instaurar nas experiências da cidade para gerir as relações humanas.
Ao longo do período moderno, insuportáveis tornaram-se também algumas expressões
da existência humana, consideradas inúteis e acumuladas nas ruas da cidade. Estas vidas
foram, então, classificadas como “lixos sociais” e suas emanações incomodariam tanto quanto
as matérias putrefatas. No início das tecnologias de urbanização, a esses lixos também seria
dado um destino adequado, transformando prisioneiros, velhos e escravos em trabalhadores
do lixo, com a função de coletar ossos, trapos e dejetos urbanos. Nos tempos atuais, aos
homens e mulheres que vivem do lixo, assim como antes, também são agregados novos
valores: o catador de trapos, os limpadores de fossa e os catadores de ossos do século XIX
encerram-se na homogeneidade das lutas de classes e se organizam em movimentos sociais e
sindicatos para lutar pelo “direito histórico” que possuem de coletar o lixo urbano. Na cidade
de Leônia, narrada por Marco Polo, a figura do lixeiro surge como um anjo e esta “tarefa de
remover os restos da existência do dia anterior é circundada de um respeito silencioso, como
um rito que inspira a devoção, ou talvez apenas porque, uma vez que as coisas são jogadas
fora, ninguém mais quer pensar nelas” (CALVINO, 1990, p. 105).
A análise deste governo das populações, específico aos modos de gestão das relações
humanas com seus restos urbanos, implica evidenciar as racionalidades responsáveis pela sua
circunscrição no plano do real, ou seja, em suas práticas, discursos e efetivação de condutas.
Para isto, pretende-se mapear e descrever formas de aparecimento, distribuição, localização,
5
“Em muitos lugares o processo está acontecendo de uma forma natural, tanto que não usamos mais o termo
lixo, porque é sinônimo do que não presta. Usamos resíduos sólidos, porque significa matéria-prima a ser
reaproveitada. Lixo não existe” (“Lixo não existe. Resíduos sólidos são matéria-prima a ser reaproveitada", diz
especialista”, Agência Brasil – Empresa Brasil de Comunicação, 08/05/2011. Recuperado em 12 de março de
2012, de: http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2011-05-08/%E2%80%9). Genebaldo Freire Dias é
Coordenador do Núcleo de Educação Ambiental do Prevfogo do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Com 19 livros publicados e 37 anos de ativismo, é o autor brasileiro
mais citado em Educação Ambiental.
16
movimentação e variação dos fenômenos da população que oferecem as possibilidades de
utilização do lixo como um elemento tático para a produção de uma série de condutas nos
aglomerados urbanos. São instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas
que, por sua vez, “permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de
poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia
política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (FOUCAULT,
2008a, p.143-144).
O lixo, como experiência insuportável da vida urbana, aglutinadora de matérias
pútridas, inúteis e de refugos da sociedade, traduz-se, no presente estudo, em questionamento
sobre as condições de existência do sujeito moderno. A composição de tal cenário faz emergir
alguns problemas de pesquisa: como se efetivam as práticas de governamentalidade das
condutas, resultantes dos aglomerados populacionais urbanos na relação com seus
insuportáveis, em especial, com seus dejetos? Quais os efeitos desta tensão entre a experiência
das relações urbanas na modernidade e a putrescência, ou, ainda, entre o fluxo das cidades e o
acúmulo de seus dejetos? Que tecnologias e procedimentos apresentam-se como instrumento
de organização das condutas? Dentro de quais parâmetros de aceitabilidade se instauram as
condições de possibilidade de existência da vida humana regidas por tais experiências? Como
se efetivam as boas condutas ao cabo de seu exercício?
Para esta pesquisa, o conceito de dispositivo configura-se como objeto de descrição
genealógica que evidencia uma articulação, aglutinação ou nexo entre elementos heterogêneos
como “discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas
administrativas,
enunciados
científicos,
proposições
filosóficas,
morais,
filantrópicas” (FOUCAULT, 2004 [1979], p. 244). Toma-se, pois, dispositivo como forma de
racionalidade que tem como função estratégia responder, em um dado momento, a uma
urgência, ou seja, responder a formas determinadas de problematizações de governo de si e
dos outros.
Neste estudo, analisa-se dois processos de construção da racionalidade governamental:
o dispositivo médico-social irá aglutinar as diferentes práticas em torno da problematização
do lixo na sua forma de podridões e inutilidades, bem como sua acumulação e risco de
propagação de pestes e outras doenças, com o objetivo de utilizá-las para a promoção da
higiene social em nome da limpeza pública e da saúde individual. Uma segunda
racionalidade, mais urgente ao contemporâneo, logo, em construção, parece configurar no que
se poderia agregar em um dispositivo do meio ambiente, aglutina na forma de materiais
recicláveis, reutilizáveis e de compostos orgânicos, em que o risco passa a ser os desastres
17
naturais em escala planetária. Esse dispositivo tem como finalidade promover a conduta
ecológica como o novo estatuto de governo das populações.
No trajeto destas análises descritivas, percorrer-se-ão algumas marcas deixadas pelos
modos de relação do homem com o lixo nas cidades, como, por exemplo: a promoção de
hábitos higiênicos, responsáveis por tirar o lixo das ruas e levá-lo até as lixeiras domiciliares;
a reconfiguração socioeconômica dos sujeitos que vivem das matérias que compõem o lixo,
personificados na figura dos militantes sociais e agentes ambientais; as práticas e discursos
socioambientais que almejam a salvação eterna, não da alma do sujeito cristão, mas sim de
uma única alma artificial pertencente à vida humana, ou seja, a cidade.
Para tanto, serão evidenciados alguns rastros deixados por legislações, projetos
urbanos, tecnologias sociais, discursos identitários, dentre outras formas de conhecimento, e
técnicas que tomam as práticas sociais como objeto de intervenção para marcar a boa ou a má
conduta dos citadinos em relação a seus dejetos.
Neste percurso, a análise não se fixará no campo da psicologia, propriamente dito, mas
nos processos de produção de subjetividade que, por sua vez, permitem fazer o objeto de
pesquisa transitar por diferentes campos de saber. História, literatura, cinema, medicina,
microbiologia, sociologia, economia representam esta transversalidade de saberes que
atravessam as práticas de gestão do lixo e das condutas que o circunscrevem.
Na medida em que se atribui direção de sentidos e valores universais para esse campo
de relações humanas – desde o asseio do corpo e do lar, a educação sanitária, a identidade
social, a ação solidária e a preservação e educação ambiental, até o simples ato de “jogar o
lixo no lixo” –, percebe-se como a produção de conhecimento, em aliança com certas práticas
sociais, pode inscrever no sujeito hábitos e modos de vida, de maneira a forjar “um
dispositivo de saber-poder que marca efetivamente no real o que não existe e submete-o
legitimamente à demarcação do verdadeiro e do falso” (FOUCAULT, 2008b, p. 27).
Os diferentes valores atribuídos a estas emanações telúricas e sociais produzem um
quadro de visibilidades múltiplas. Desde sua marginalidade inicial até a produção científica
das práticas higiênicas, sociais, econômicas e ambientais, o lixo parece sair da penumbra e
ser, paulatinamente, reinscrito em outro conjunto de hábitos, sejam eles econômicos, sociais,
culturais ou subjetivos, a partir de outros parâmetros de enunciação.
Nos meandros de tais artifícios, estão procedimentos e mecanismos que traduzem os
esforços das cidades modernas para remover, esconder, desodorizar, corrigir, recuperar e
moralizar suas excrescências e dejetos acumulados ao longo dos tempos no exercício diuturno
18
de separar o útil do inútil. A descrição destas técnicas e instrumentos nos transportará a
diferentes lugares para além do trivial ato de “jogar o lixo no lixo”.
19
2. CRÍTICA E GENEALOGIA COMO ESTRATÉGIA METODOLÓGICA
A genealogia é cinza.
Friedrich Nietzsche & Michel Foucault
Logo na primeira linha de seu prólogo sobre a Genealogia da Moral (1998 [1887]),
Friedrich Nietzsche lança a crítica que atravessaria as três dissertações subsequentes: “Nós,
homens do conhecimento, não nos conhecemos” (p.7). A espada que se levanta fere uma
vontade de saber que está sempre em busca de uma espécie de conhecimento absoluto e, por
consequência, ignora as vivências e experiências inerentes à vida cotidiana, sobre as quais,
como protesta o autor, “estamos sempre ausentes” (Idem, ibidem).
Para Nietzsche, insuportável é esta busca pela verdade de um ideal de homem,
localizada para além do próprio homem. Um aperfeiçoamento constantemente renovável,
porém virtual. Processo de melhoramento contínuo que nos move, ao mesmo tempo em que
se configura como algo distante de nossa “existência subterrânea e combativa”, com todo seu
repertório de “miséria, privação, mau tempo, enfermidade, fadiga, solidão”. (Idem, p. 35).
Mas a busca por este ideal, por definição inalcançável, cansa a visão do homem sobre si
mesmo, o que leva Nietzsche a afirmar: “Estamos cansados do homem” (Idem, ibidem).
A busca pela verdade absoluta, até que se torne tediosa e medíocre, é também risco
inerente aos exercícios de pesquisas científicas, cujas buscas teleológicas culminam
fatalmente na produção de novas verdades para tornar o homem cada vez “melhor” (Idem,
ibidem) e, portanto, ausente de si mesmo, mas repleto de prescrições morais que cindem suas
condutas no campo do bom e do ruim, ou do verdadeiro e do falso. A tarefa desta análise está
em refletir não tanto sobre o que é verdadeiro ou falso, mas sobre a relação do sujeito e sua
possibilidade de adesão a determinados regimes de verdade.
A estratégia genealógica como prática de pesquisa tem como objetivo colocar em
perspectiva tais questões sobre as relações do homem com a verdade, de modo a apresentar
suas proveniências, históricas e mundanas, sem a pretensão de oferecer os caminhos para sua
superação. Nas palavras do historiador Paul Veyne (2011), a estratégia genealógica como
princípio metodológico refere-se à construção de uma crítica da atualidade que se esquiva de
ditar prescrições para a ação, mas fornece-lhe conhecimentos.
A proposta metodológica que se segue tem como princípio norteador uma pesquisa
sobre as proveniências (Herkunft) da formação da conduta humana com relação aos modos de
gestão do lixo nas cidades modernas. Este preceito, do estudo das proveniências, apoia-se nas
20
discussões promovidas por Michel Foucault sobre esta estratégia genealógica como
metodologia de pesquisa. No artigo Nietzsche, a genealogia e a história (2004), o estudo das
proveniências aparece como concepção histórica da pesquisa genealógica, em que se analisa
não uma origem unívoca e contínua, mas evidencia o “filão complexo” das verdades
históricas. Sua construção, suas heranças, não a partir de uma verdade natural e originária,
mas as heranças de articulações heterogêneas, muitas vezes contraditórias, repleta de fissuras
e falhas (FOUCAULT, 2004, p. 20-22).
Neste estudo em específico, uma premissa proferida por Foucault é central “a
genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela trabalha com
pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (Ibid., p.15). Ao pesquisar
sobre as proveniências da higiene social e da preservação ambiental inscritos nos modos de
vida contemporâneos, faz-se necessário perscrutar sobre os documentos que asseveram sobre
a construção de tais normas de conduta, mesmo que, algumas vezes, pareça não fazer
referência direta à conduta humana, mas que se localiza em discursos e práticas inscritas na
exterioridade do sujeito (Ibid., p. 21).
Desde Nietzsche até Veyne, a crítica genealógica encontra em Michel Foucault não
somente um pensador, como também um estrategista. Em sua obra A ordem do discurso: Aula
inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, Foucault apresenta
dois modos complementares de análise: conjunto crítico como exercício de descrição dos
mecanismos de controle das visibilidades discursivas para formação de regimes de verdade; e
conjunto genealógico, sendo este a efetivação destes discursos em série de práticas
descontínuas, específicas e externas ao sujeito (FOUCAULT, 2005, p. 60-61).
Trata-se de um método como estratégia de pesquisa que se coloca, primeiramente,
como objeto de análise crítica ao percorrer a trajetória dos campos de visibilidade e
legitimidade do discurso, a partir de seus efeitos nas experiências práticas da sociedade
humana. No caso deste trabalho, o que se realiza é um percurso que evidencia a emergência
de um conjunto de procedimentos responsáveis pela configuração do lixo em manifestações
menos insuportáveis que em seus antigos registros nos campos da podridão, da doença e da
miséria, e que se manifesta nos campos da preservação ambiental e da solidariedade.
A análise crítica remete à formação de regimes de verdade gradualmente legitimados a
partir de sua expansão e continuidade e, em contrapartida, apresenta como tarefa sua inversão,
destacando tais regimes deste falseamento, para apresentá-los como um recorte e uma
rarefação do discurso. Apresenta, portanto, certo regime de verdades como um discurso
produzido, um procedimento de fabricação de verdade e, deste modo, delimitado pelas forças
21
em jogo em um determinado estrato histórico. Trata-se sobremaneira de inverter a lógica de
análises de longa duração pela contextualização dos acontecimentos. Foucault esclarece os
termos desta análise dos acontecimentos como perspectiva crítica:
(...) O acontecimento não é nem substância, nem acidente, nem qualidade,
nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele
não é imaterialidade, é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva,
que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência,
dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato
nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma
dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria
avançar na direção paradoxal à primeira vista, de um materialismo do
incorporal (Ibid., p. 58).
O autor preconiza, portanto, uma filosofia do acontecimento como análise das
relações, daquilo que se produz como efeito das relações e é registrado no campo material. No
caso desta pesquisa em específico, o lixo, como um analisador da conduta humana, implica a
análise dos efeitos produzidos pelos mecanismos de gestão dos restos, dos resíduos, dos
inservíveis, dos refugos. Os efeitos se tornam importantes para a análise das condutas, pois,
na ordem dos acontecimentos, o efeito não resulta mais de um processo natural, já que ele é
produto de uma articulação de forças, assim como a conduta humana. A rarefação e o
reagrupamento de discursos e sua efetivação no conjunto de práticas evidenciam uma
construção artificial de todas as coisas e não de uma concepção de natureza das coisas. A
ideia de natureza em si seria efeito destas construções artificiais, “natureza sem conteúdo
outro que não o histórico” (VEYNE, 1998, p.282).
A análise genealógica, ou crítica histórica, não se resume em uma análise sóciohistórica. Sobre a história trata-se de considera-la, não como um dado, base, um pressuposto
para a análise, mas de coloca-la como mais uma artificialidade que inscreve aquilo que não
existe no plano do real. Quanto à análise sociológica, o risco que se percebe é que esta
estratégia de pesquisa acaba por resumir-se na materialidade das relações sociais e
desconsiderar o peso dos sistemas de pensamento que produzem esta espécie de materialidade
dos incorporais. Conforme Veyne: “É preciso libertar-se da sacralização do social como única
instância do real e deixar de considerar vento esta coisa essencial da vida humana, quero
dizer, o pensamento” (2011, p. 172).
Para a análise crítica dos agrupamentos discursivos, esta pesquisa tomou como direção
o mapeamento de conceitos produtores de uma coerência entre práticas dispersas no campo de
relações. Estes conceitos, tendo a função de difundir conjuntos discursivos como modo de
22
inteligibilidade, podem ser encontrados em diferentes fontes de pesquisa, desde estudos
científicos até produções artísticas, assim como instrumentos jurídicos, reportagens de jornais,
estatutos e normas, cartilhas instrutivas, campanhas educacionais etc. Trata-se da análise,
portanto, do movimento de dispersão dos discursos e montagem de uma coerência entre
práticas difusas, tendo como efeito a condução, ou governo, dos seres humanos e das coisas.
A produção e a reorientação destes diferentes discursos sobre os modos de existência
do lixo e seus mecanismos de gestão encontram sua efetivação no campo do real a partir de
uma série de práticas sistemáticas, responsáveis por manter ou reorientar a conduta humana
conforme as necessidades de manutenção do governo das populações.
Estabelece-se, a partir disto, outra plataforma de análise, a genealógica, que visa traçar
os modos pelos quais um conjunto de práticas é atravessado por um determinado produto
discursivo. São práticas muitas vezes já dispersas no campo das relações, mas que serão úteis
para a efetivação do produto discursivo.
Todavia, o mapeamento das instâncias de controle discursivo não precede,
obrigatoriamente, o processo de descrição das práticas, o que significa não ser possível, na
investigação das práticas relacionadas, conduzir-se pelo seu processo de serialização. Tomar o
lixo como objeto de análise permite então elencar as práticas antes mesmo de perceber sua
disposição na estratégia discursiva. Por serem dispersas, práticas diversas tomam o lixo como
objeto de sua efetivação.
Por exemplo, práticas que têm o lixo como objeto de exclusão, isolamento,
encarceramento das coisas e dos homens: a produção do hábito cotidiano de jogar o lixo na
lixeira; o estabelecimento de horários para coleta e circulação do lixo na cidade; a seleção de
seguimentos específicos da população responsáveis pelo trabalho imundo de coleta e
transporte do lixo; e a expulsão invisível do lixo para fora das cidades.
Como outro exemplo, têm-se as práticas que tomam o lixo/resíduo como objeto de
inclusão, positivação e revalorização das coisas e dos homens: a fragmentação e classificação
do lixo para sua inserção como produto de mercado; a produção de um campo identitário
àqueles que vivem do lixo para construção de um índice econômico e social; finalmente, a
transformação do lixo não mais como o ponto final da vida das coisas (a morte), mas como
suas possibilidades de retorno, de reutilização, de reciclagem (a ressureição).
Este segundo conjunto de análise, a genealogia propriamente dita, tem como função
descritiva traçar as formas de efetivação dos discursos, responsáveis por inscrever um
determinado regime de verdade nos modos de ser das relações humanas, tornando-o real.
Conforme Foucault, esta análise descritiva deve operar na superfície dos acontecimentos de
23
forma que possibilite o reconhecimento de “práticas descontínuas que se cruzam por vezes,
mas também se ignoram ou se excluem”. É isto que o autor classifica como uma direção
paradoxal de análise que traz a proposição de uma “teoria das sistematicidades descontínuas”
(FOUCAULT, 2005, p. 52-53), o que torna a investigação por fontes de pesquisa ampla e
difusa, mas, ao mesmo tempo, consistente e coesa.
Na análise genealógica não se prioriza uma questão fundamental para determinação de
uma causa fundamental do problema; não há um mito de origem a ser perseguido, pois as
problemáticas que orientam a genealogia levam a percorrer uma trajetória da história sob
outra perspectiva. Trata-se, como dito, de ler a história pela descontinuidade dos
acontecimentos, cuja proveniência e efeitos são múltiplos.
Digamos de maneira geral que, por oposição a uma gênese orientada para a
unidade de uma causa inicial, carregada de uma descendência múltipla, isto
constituiria em uma genealogia, quer dizer, algo que tenta restituir as
condições de aparição de uma singularidade a partir de múltiplos elementos
determinantes, dos quais ela aparece não como produto, mas como efeito
(FOUCAULT, 2000, p.186).
A perspectiva genealógica, principalmente a realizada por Michel Foucault, tem como
posição estratégica colocar em evidência os processos pelos quais nossa sociedade constitui
sujeitos nas relações de poder. As descrições e análises sobre como as práticas sociais forjam
o sujeito contemporâneo implicam observar como estas se tecem, formam parcerias,
articulam-se entre os diferentes saberes e, apesar de se unirem, conservam suas
especificidades.
Finalmente, esta estratégia de análise permite chegar a dois campos diferentes de
visualização desta relação entre os modos de gestão do lixo e os modos de governo das
condutas. São estes: 1) A forma lixo: composta por matérias inúteis, pelos restos, putrefações
e excrescências articuladas pelo dispositivo médico-social como modo de invenção e
intervenção do e no real; e 2) A forma resíduo: composta por matérias recicláveis e
reutilizáveis que não mais se apresentam como excrescências e foco de doenças, mas se
articulam pelo dispositivo ecológico-ambiental. Enquanto a forma lixo opera sobre o registro
da saúde e da manutenção do corpo biológico, a forma resíduo ativa o registro da preservação
ambiental e dos recursos naturais.
O discurso da medicina-social e o conjunto de práticas higienistas dispersas nos modos
de conduta configuraram-se como os vetores de análise desta forma lixo de gestão dos restos
da vida urbana. Assim, foram levantadas as referências bibliográficas que contextualizam a
24
formação das cidades modernas nos modos de gestão daquilo que seria considerado obstáculo
para seu desenvolvimento e para seu bom governo. Dentre estas, estão os estudos realizados
por Michel Foucault (2004) em O nascimento da medicina social; Corbin (1987) em Saberes
e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos XVIII e XIX; Sennett (1997) em Carne e
pedra; e Vigarello (2006) em Lo sano y lo malsano: historia de las prácticas de la salud
desde la edad media hasta nuestros días, que ofereceram as margens para a contextualização
da medicina social como paradigma científico para efetivação do projeto da modernidade.
Para análise destes mesmos procedimentos da medicina social no contexto brasileiro,
os principais referenciais levantados foram os estudos realizados por Machado (1998) em
Danação da norma: medicina social e constituição da medicina no Brasil; Costa (2004) em
Ordem médica e norma familiar e Baptista (1999) em A cidade dos sábios: reflexões sobre a
dinâmica social nas grandes cidades.
Além destas, outras obras serviram como referencial para contextualizar a produção
dos mecanismos de gestão do lixo e das condutas humanas em conformidade com os preceitos
da medicina social, como Miziara (2001) em sua pesquisa intitulada Nos rastros dos restos:
as trajetórias do lixo na cidade de São Paulo; Moura (1998) em Cocheiros e carroceiros:
homens livres no Rio de senhores e escravos; Rodrigues (1995) em Higiene e ilusão: o lixo
como invento social e Velloso (2008) em Os restos na história: percepções sobre resíduos.
No rastro dos discursos produzidos pela medicina social, emanados pelos mecanismos
de gestão do lixo, o presente estudo lançou-se à investigação de práticas características do
instante de desenvolvimento das cidades modernas, especificamente no contexto das cidades
brasileiras. Para tanto, efetivou-se uma pesquisa criteriosa de documentos históricos,
levantados, principalmente, em arquivos históricos municipais das duas maiores cidades
brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. Assim, pôde-se encontrar uma série de registros sobre
congressos brasileiros de higiene, cujos conteúdos dissertavam sobre a necessidade da
mudança de hábitos dos citadinos pela educação sanitária, acusando o risco de epidemias caso
as referidas prescrições, proferidas pelas autoridades sanitaristas, não fossem respeitadas.
Nestes mesmos arquivos foram encontrados procedimentos legais responsáveis pelas
primeiras disposições sobre códigos de posturas a serem adotadas pelos munícipes, taxas de
cobrança sobre os serviços de gestão de resíduos, obrigações legais de estabelecimentos e
edificações. Estes registros apresentam, por exemplo, as primeiras disposições que fundam a
prática de jogar o lixo na lixeira como mecanismo generalizado e cotidiano de gestão das
sujidades emanadas das relações em sociedade. São normas que determinam principalmente
formas de acondicionamento e expulsão das matérias pútridas e dos restos inúteis produzidos
25
pelos aglomerados urbanos. Importante salientar que, ao iniciar a pesquisa por registros
históricos em âmbito nacional, como legislações, códigos de postura e outros instrumentos
legais, constatou-se que pouco se encontra antes da década de 1990 no que se refere à
República Federativa do Brasil. Este fator limitador da pesquisa acusa a dispersão e a
regionalização de tais dispositivos normativos, mas não implica, obrigatoriamente, a falta de
coesão da racionalidade que os motiva, qual seja, do desenvolvimento de mecanismos
higienistas de organização dos refugos urbanos.
O outro conjunto de análise, da forma resíduo, configura-se nos mecanismos de gestão
dos restos como recursos ambientais, o que implica sua positivação e, até mesmo, sua
inscrição no funcionamento social. Verifica-se a articulação de novos conceitos, mais
suportáveis do que aqueles agregados pela medicina social durante o século XIX e até a
metade do século XX. Verifica-se, portanto, a rarefação do discurso sobre doença, podridão e
miséria, substituído pelos discursos agrupados sobre preservação ambiental e solidariedade,
que produzem a inscrição tanto dos mecanismos de gestão do lixo como das condutas
humanas que o circunscrevem. Para tanto, a ciência biológica (lugar comum da medicina
social) cede espaço para as ciências ecológicas e seus regimes de verdade produzidos sobre a
saúde, não mais apenas do corpo humano, como também do meio humano. Neste ínterim, as
formas de enunciação deixam de permear o desenvolvimento urbano para concentrar-se na
economia energética das riquezas naturais. Nesta sessão, as obras de Michel Foucault,
Segurança Território, População (2008a) e Nascimento da Biopolítica (2008b) ofereceram a
perspectiva de análise e contextualização deste acontecimento.
Nas disposições a respeito das políticas ambientais, registra-se um terceiro bloco de
documentos que, em função de sua atualidade no trato da problemática sobre a geração e
gestão de resíduos nos aglomerados urbanos, possibilitou levantar uma variedade de
reportagens jornalísticas, produções científicas, legislações específicas e estratégias de
mercado, além do repertório referente aos procedimentos das campanhas e propagandas de
educação ambiental. Salienta-se, ainda, como principal disparador deste conjunto de
documentos, o material produzido por acordos ambientais intergovernamentais em escala
planetária, fruto, principalmente, das declarações e agendas ambientais assinadas pelos países
integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU), em eventos como a Primeira
Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972), a Conferência
das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida
também como ECO-92, Rio-92 e Cúpula da Terra (Rio de Janeiro, 1992), e a Cúpula Mundial
sobre Desenvolvimento Sustentável ou Rio +10 (Johanesburgo, 2002).
26
No entremeio da forma lixo e da forma resíduo, um terceiro campo de visualização da
relação entre lixo e conduta humana refere-se àqueles que vivem dos restos, ou seja, a
descrição das personagens do lixo. Assim como foi visto na análise das práticas, as formas
inicialmente diversas e dispersas de aparição destas personagens serão, paulatinamente,
reconduzidas para a criação de um campo de produção de processos identitários, que constitui
a condição de aparição das personagens do lixo como produção de verdade sobre o
funcionamento das cidades modernas.
A contextualização que se evidencia discorre sobre o jogo exclusão/inclusão, cujo
efeito reconhece-se na produção de um regime identitário perpetrado pela figura do catador de
materiais recicláveis. A principal afirmação, reveladora da construção de um regime de
verdade neste contexto, propõe que o catador tenha surgido há aproximadamente 50 anos.
Esta tentativa de fundar a figura do catador e, por consequência, um sistema de regras que o
circunde, impulsionou este estudo para a percepção de personagens do lixo que antecedem em
séculos este mito de origem, de modo a motivar um questionamento sobre a funcionalidade
desta estratégia de ignorar deliberadamente tais procedências.
Neste bloco de análise, a produção de uma identidade sobre as personagens que vivem
do lixo desloca o processo descritivo desta pesquisa para outros grupos documentais como,
por exemplo: obras literárias, pinturas, poemas, filmes, peças teatrais e fotografias. Neste
conjunto, a análise não passa por uma interpretação intrínseca das obras e sua estilística, mas,
pretende-se, a partir destas obras, identificar os discursos que a atravessam e fazem evidenciar
a potência de um cotidiano capaz de se expressar em diferentes registros como, neste caso, a
arte.
Posicionamento em convergência com uma estratégia de pesquisa que evidencia as
condições de possibilidade das relações humanas na perspectiva dos processos de produção de
condutas. Em analogia, quero dizer que, ao contrário de atuar metodologicamente sobre a
análise interpretativa dos comportamentos, tendo como vetor intrínseco a natureza de uma
verdade que lhe é interior, a análise de obras artísticas é também aqui desprovida de
interpretações herméticas para abrir-se em fissuras marcadas pela crítica genealógica e que,
portanto, transfigura-se em análise das políticas de subjetividades.
Assim que o processo descritivo avança para a realidade atual, é possível ainda elencar
outro conjunto de documentos que dissertam sobre práticas de visibilidade desta nova
personagem, o catador de materiais recicláveis. Sobre esta figura, as produções acadêmicas
são fartas, além da identificação de outras formas de enunciação como, por exemplo, sua
expressão como movimento social, as práticas assistenciais, as tecnologias sociais que se
27
desdobram desta nova configuração e as táticas de inclusão dos catadores no sistema
produtivo da reciclagem como prospecção de novos mercados de capital.
Em resumo, explorar a produção do lixo como um insuportável da vida urbana tem
como estratégia metodológica a construção de uma crítica genealógica implicada na análise
do par “série de práticas/regime de verdade” como dispositivo de produção de condutas.
28
3. DISPOSITIVO MÉDICO-SOCIAL: A PUTREFAÇÃO URBANA COMO OBJETO
DE GOVERNO
Mon corps, c’est le contraire d’une utopie...
Michel Foucault
Para os sentidos já domesticados por postulados científicos, a disposição e distribuição
das coisas e da vida humana nas cidades modernas parece algo natural. Contudo, a
distribuição dos odores, a produção de visibilidades em contraste com o que fica às sombras,
o modo de circulação de pessoas, água e ar e, até mesmo, o simples ato de jogar o lixo na
lixeira estão submetidos a uma produção artificial de certo regime de verdade. Esta
artificialidade das relações assépticas, que emergem como bem natural para a saúde individual
e pública, materializa-se no primeiro campo descritivo para a análise das relações entre a
gestão do lixo e seus custos para a formação da conduta humana.
No decorrer da formação das cidades modernas, algumas das percepções sensitivas
humanas tornaram-se objetos de conhecimento e intervenção. Certas formas de vida, de
odores e sabores foram banidas para o campo do interdito, atribuindo-lhes a marca do
insuportável. Este campo de percepção que, para a cultura asséptica ocidental, parece
naturalmente intolerável, como a podridão, a sujeira e, até mesmo, a morte, evidencia as
possíveis proveniências históricas de seus modos de aparecer, pois o que é tomado como
objeto natural é, na realidade, um objeto historicamente constituído.
Estes processos de naturalização das coisas e do homem produzem determinados
padrões de conduta e efeitos no campo moral. No que concerne às práticas de gestão do lixo, a
proeminência de alguns destes valores insere-se na lógica das práticas de higiene individual e
saúde pública que ocuparam as reformas urbanas no início do desenvolvimento das cidades
modernas. Este tema oferece as condições para que seja realizado um diagnóstico do presente,
ao lançar na história tais efeitos do contemporâneo.
Deste modo, analisar como se arvoram as racionalidades e as práticas de efetivação
que lhes são inerentes é uma das tarefas deste trabalho. Neste diagnóstico, em que se produz
um mapa de análise, verificam-se as proveniências dos discursos e práticas vigentes, não
apenas lineares e totalitárias, mas seus fragmentos dispersos no tempo e no espaço.
O primeiro destes fragmentos oferece um título sugestivo: “Toda sujeira será
castigada”. Trata-se de uma reportagem do Jornal O Globo (24/11/2009, p. 12), periódico de
maior circulação no Estado do Rio de Janeiro. Esta notícia do cotidiano carioca servirá de
29
mote para fazer saltar algumas práticas discursivas, que não perderam sua força
normalizadora desde sua proveniência. A reportagem refere-se à proibição da venda de coco
nas praias da capital fluminense, em consequência do insistente ato protagonizado pelos
banhistas de não jogarem a fruta na lixeira após seu consumo. Tal fato, que causou indignação
por parte destes mesmos banhistas, trouxe o prefeito a público para retirar a represália,
todavia, sem abrir mão de certas advertências: “O povo precisa ter mais educação, higiene,
respeito com o espaço público. (...) As pessoas têm que ser menos porcas e parar de jogar
coisas na areia” (idem).
Em outra matéria, na mesma página, a objetividade do cálculo estatístico trará status
de verdade aos comentários do prefeito. Com o título “Em pesquisa, carioca reconhece ter
culpa”, os dados coletados “demonstram” que 83% dos moradores consideram ter
responsabilidade na limpeza das ruas, lagos e praias, contra 13% que afirmaram que a limpeza
urbana é responsabilidade do serviço público (Id.). Segue a interpretação dos dados pela
representante da ONG Rio Como Vamos, instituição realizadora da pesquisa: “Os dados nos
levam a crer que o carioca está contribuindo pouco para a limpeza da cidade. (...) O carioca
critica a sujeira, mas, para ele, é sempre o outro que polui. (...) É um hábito que o carioca tem,
de jogar lixo na rua, que ainda não foi superado” (Id.).
Ao percorrer as linhas destes noticiários, é possível indicar ao menos a efetivação de
duas alianças que têm por função produzir inteligibilidades sobre o referido acontecimento. A
primeira destas alianças fica por conta do Estado, na figura do Senhor Prefeito, que relaciona
a (falta de) higiene dos indivíduos com deficiências no campo da educação e do respeito ao
espaço público. A aliança entre educação e saúde forma, portanto, um destes objetos de
saber/poder.
A segunda implica o uso do saber da estatística como plano de inteligibilidade dos
aglomerados urbanos. A estatística localiza o indivíduo nas curvas de normalidade de gestão
das condutas presentes no discurso de Estado, conforme o padrão estabelecido como o mais
adequado para manutenção do bem público. Este cálculo sobre o gerenciamento das
impurezas das cidades, que passa pela higiene e pela educação do indivíduo, será aqui lançado
na história, oferecendo as condições de análise sobre suas proveniências e seus
desdobramentos na contemporaneidade.
30
3.1 A podridão urbana (Putrefactio urbanus)
O efeito pestilencial das podridões invisíveis
Cenários urbanos medievais e renascentistas como a presença de carcaças de animais,
restos de comida e do labor de artesãos e feirantes nas vias públicas, bem como o forte odor
de fezes e urina impregnado no solo destas cidades parecem insuportáveis aos sentidos
polidos da idade da razão moderna. Neste período, mais especificamente entre os séculos XIV
e XVIII, um bom número de pestes e vírus assombrou o modo de vida das cidades européias.
A Peste Negra (século XIV), responsável pela morte de um terço da população, foi a mais
emblemática; no entanto, outras tantas, como a peste de Milão, Brescia e Veneza, no século
XVI, a peste de Nápoles em 1656, a peste de Londres em 1655, a de Viena em 1713 e a peste
de Marselha em 1720, que matou metade de sua população, geraram efeitos que ressoam em
nossos hábitos e corpos até a atualidade.
Esta experiência radical de putrefação e deterioração deixou a morte escancarada no
modo de vida pós-feudalismo, caracterizado pela retomada das experiências populacionais
como, por exemplo, nos principados italianos. Seus efeitos nefastos foram registrados por
vários autores, tendo com seu representante mais ilustre Giovanni Boccaccio, em seu
Decamerão (1971 [1348-1353]), que tem como cenário de suas 100 novelas o terror da Peste
Negra que assolava Florença e toda a Europa:
Esta peste foi de extrema violência; pois ela atirava-se contra os sãos, a
partir dos doentes, sempre que doentes e sãos estivessem juntos. (...) mesmo
o ato de mexer nas roupas, ou em qualquer outra coisa que tivesse sido
tocada, ou utilizada por aqueles enfermos, parecia transferir, ao que bulisse,
a doença referida (p. 14).
Também Antonin Artaud fala da “maravilhosa explosão de peste” que fez “borbulhar
as memórias da cidade” de Marselha em 1720 (ARTAUD, 1984, p.6). Albet Camus também
irá retratar este acontecimento tão premente na convivência populacional de crescimento dos
espaços urbanos, quando, em 1947, escreve sua obra literária mais conhecida, A peste, em que
relata como os ratos, portadores do prenúncio do fim, saíam em sua grande maioria das
lixeiras dos domicílios de Orã. Observa também como o Dr. Bernard Rieux decidiu começar
suas investigações pelos bairros mais pobres onde “a coleta de lixo era feita muito tarde
naquela área e o carro, que corria ao longo das ruas retas e poeirentas do bairro, roçava os
caixotes de detritos deixados à beira da calçada”. Numa destas ruas, o médico encontraria
31
uma dúzia de roedores jogados “sobre restos de legumes e trapos sujos” (CAMUS, 2008,
p.14).
Esta relação entre diferentes manifestações de pestes e pragas afins, também é
apresentada por Boccaccio, na narração da tentativa dos citadinos de limparem suas cidades
para se livrarem das pestes:
Na cidade de Florença, nenhuma prevenção foi válida, nem valeu a
pena qualquer providência dos homens. A praga, a despeito de tudo,
começou a mostrar, quase ao principiar a primavera do ano referido, de
modo horripilante e de maneira milagrosa, os seus efeitos. A cidade ficou
purificada de muita sujeira, graças a funcionários que foram admitidos para
o trabalho. A entrada nela de qualquer enfermo foi proibida. Muitos
conselhos foram divulgados para a manutenção do bom estado sanitário.
Pouco adiantaram as súplicas humildes, feitas em número muito elevado, às
vezes por pessoas devotas isoladas, às vezes por procissões de pessoas,
alinhadas, e às vezes por outros modos dirigidas a Deus (BOCCACCIO,
1971, p. 13-14).
Não por acaso, o termo “pestilência” pode ser utilizado tanto para indicar uma situação
de propagação de pestes, como para se referir aos odores nauseabundos emanados pelo
acúmulo de excrescências, putrefações e outras matérias deletérias. No caso da Peste Negra,
assim como na história de Camus, os ratos, hospedeiros da pulga infecta, encontram nos
cenários de imundície, nas ruas lamacentas e nos domicílios repletos de migalhas de
alimentos, as condições ideais para sua proliferação.
Marta Pimenta Velloso destaca esta relação dos resíduos como veículos de impurezas
e enfermidades: “As cidades, no medievo, eram densamente povoadas. Os resíduos – fezes,
urina e águas fétidas – eram lançados pelas janelas. As roupas eram lavadas raramente e,
como consequência, elas ficavam infestadas de pulgas e percevejos, piolhos e traças.” E
acrescenta: “as casas eram ninhos de ratos que disputavam os restos de comida com os
animais de criação” (VELLOSO, 2008, p. 1955).
Outra característica comum ao estado de peste, que assolou tantos séculos
subsequentes, era seu modo de deslocamento. As doenças migravam de um continente para
outro devido às relações internacionais, em sua maioria relações de comércio, guerra ou
exploratórias, estabelecidas entre os povos. Não foi diferente no Brasil, durante a virada do
século XX, em que os portos nacionais recebiam migrantes do velho mundo infectados pela
varíola. A maioria destas relações planetárias estabelecidas pela humanidade resultaria quase
que inevitavelmente em um desastre pandêmico.
32
Onde os microscópios de elétrons não podem ver, longe das práticas discursivas da
ciência médico-social, a relação político-econômica entre nações produzia o compasso entre
as rotas mercantis e as rotas das pestes. As relações internacionais entre povos ainda trariam
outras experiências de pestilências em escalas internacionais no século XX e início de XXII
como, por exemplo, a gripe asiática (1889/1890) com cerca de 300 mil mortos; gripe
espanhola (1918/1919) que atingiu 50% da população mundial; Nova gripe asiática
(1957/1958), provocando mais de 1 milhão de mortos.
Como a população e os médicos da época ainda não relacionassem a rápida e atroz
disseminação da peste às picadas de pulga presentes em roedores, carnívoros domésticos (cães
e gatos) e silvestres (pequenos marsupiais), trazidos pelos barcos das transações
mercantilistas, cogitava-se uma teoria das influências astrais em que se considerava o ar como
o principal meio de transmissão, o que chamavam de miasmas6: “ar envenenado, miasmas e
névoas pesadas e pegajosas, provocando todos os tipos de agentes naturais e imaginários,
desde águas estagnadas dos lagos e rios, até a conjunção negativa dos planetas que
disseminavam a doença e a morte entre os homens” (VELLOSO, 2008, 1955).
As condições das habitações (ambientes com pouca ventilação, presença de animais
nos ambientes domiciliares) e também aos hábitos das pessoas (imundícies das roupas e
lençóis) seriam dois dos principais espaços de instalação de novas práticas de higiene.
O ambiente interno das moradias era o mesmo – tanto os lares mais
humildes como os castelos de pedra dos senhores feudais possuíam um único
cômodo grande. Situação que agravava os problemas relativos à saúde de
seus habitantes. O principal agente insalubre era a coabitação com os
animais de criação; outro problema dizia respeito à falta de ventilação. A
maioria das casas tinha um piso de terra batida, sendo aquecidas por uma
lareira central. As camas geralmente eram envolvidas por cortinados, que
proporcionavam maior privacidade. Nessas camas, largas e compridas,
dormiam até oito pessoas. As condições internas das habitações, como a
umidade, a fumaça, a ausência de privacidade e a consequente
promiscuidade, eram agentes eficazes na transmissão de doenças. Neste
ambiente corrompido, se um membro da família contraísse alguma doença,
era tarefa muito difícil evitar o contágio (VELLOSO, 2008, p. 1955).
Mesmo com o desenvolvimento das visibilidades microbiológicas e salvo algumas
desmistificações sobre o surgimento e proliferação das pestes, as condições de vida e hábitos
dos citadinos tornaram-se os grandes responsáveis pela morbidade em escala planetária. Deste
6
Mesmo a teoria sendo notoriamente infundada, conforme nos indicam os saberes médicos mais atualizados,
sabe-se que posteriormente foi possível comprovar que os principais meios de transmissão de pessoa para pessoa
da bactéria Yersinia pestis se fazia por gotículas transportadas pelo ar e as secreções bronquiais de pacientes com
peste pneumônica.
33
ponto em diante, o mundo privado dos habitantes das cidades sofreria mudanças definitivas
em favor de hábitos mais higiênicos e mais ventilados.
A morte em massa de corpos, humanos e urbanos, causada pela experiência da peste,
permite o acesso a este outro campo de racionalidade dito medicina social. O período das
pestes coincide com os séculos do renascimento e das luzes, ou do renascimento para as luzes.
Ou seja, coincide com o período em que a crença numa imortalidade da alma abre passagem
para as limitações do corpo, para a filosofia da imanência no lugar do pensar a transcendência
e, por fim, para a substituição da fé pelo uso da razão como balizadora das relações.
A morte, outrora campo de passagem para a salvação, torna-se o ponto final, limítrofe
da existência humana. Os cadáveres, as putrefações, tornam-se algo a ser pensado e
organizado, pois:
(...) era bem natural que na época em que se acreditava efetivamente na
ressurreição dos corpos e na imortalidade da alma não se tenha dado ao
despojo mortal uma importância capital. Pelo contrário, a partir do momento
em que não se está mais muito certo de ter uma alma, que o corpo
ressuscitará, talvez seja preciso prestar muito mais atenção a esse despojo
mortal, que é finalmente o único traço de nossa existência no mundo e entre
as palavras (FOUCAULT, 2012, p. 417).
Jogar carcaças e restos de alimentos pela janela representava o contrário deste cuidado
com a morte que se estende para a experiência da finitude da vida humana e urbana que, ao
contrário do que vigorava no período das grandes pestes, não encontra mais na eternidade da
alma a sua salvação. Sem a certeza da transcendência para se apoiar, urge a recondução da
vida em sociedade para um novo modelo de relação consigo, com os outros e com as coisas.
Séries de práticas como o asseio das moradias e dos corpos representam alguns elementos de
um conjunto ainda aleatório, mas que não tardaria a encontrar na medicina social sua nova
instância de verdade ou de utopia.
Outras práticas relacionam-se, por exemplo, às medidas de quarentenas globais
implantadas pelas autoridades sanitárias como efeito desta relação entre rota das pestes e rota
mercantil. Estão entre estas medidas não apenas o isolamento dos infectados e o fechamento
de locais com aglomeração humana, como também a fiscalização rigorosa de portos e
aeroportos e a suspensão de viagens para as regiões afetadas. Outras medidas mais
sofisticadas atuam como sistemas mundiais de informações e produção de conhecimento,
dentre estes: os sistemas nacionais de controle de doença; o desenvolvimento de redes de
34
notificação ampla e organizada, mecanismos de diagnósticos e treinamento de
epidemiologistas para investigação de casos suspeitos.
O modelo da peste, diferentemente do modelo de exclusão, marcado por práticas de
distanciamento e isolamento presentes em outras doenças como a lepra, revela uma nova
tecnologia de defesa social que se articula no interior da própria sociedade. "Um modelo de
inclusão do pestilento" (FOUCUALT, 2001, p. 55), para além dos mecanismos de quarentena,
efetiva-se num minucioso mapeamento, num criterioso policiamento do território urbano que
era esquadrinhado a partir de distritos, destes aos quarteirões e, por fim, às ruas. O que se
organizava então era um "eficiente" sistema de policiamento dos hábitos e condutas privadas.
Tudo o que era observado era registrado e os cidadãos deviam informar seus nomes e
endereços. Todos os dias os vigias realizavam a inspeção das casas chamando os moradores
pelos nomes. Quando alguns não se apresentavam à janela, surgia a suspeita de que não
poderiam se levantar do leito e, portanto, estavam empesteados; nesses casos, fazia-se
necessária a intervenção das autoridades competentes. As informações, assim detalhadas,
forneciam uma "cartografia" da peste na cidade, uma "demografia" dos pestilentos. No caso
da "prática" ou "modelo da peste", segundo Foucault:
(...) não se trata de expulsar, trata-se ao contrário de estabelecer, de
fixar, de atribuir um lugar, de definir presenças, e presenças controladas.
Não rejeição, mas inclusão. (...) não se trata tampouco de uma espécie de
demarcação maciça entre dois tipos, dois grupos de população: a que é pura
e a que é impura, a que tem lepra e a que não tem. Trata-se, ao contrário, de
uma série de diferenças sutis, e constantemente observadas, entre os
indivíduos que estão doentes e os que não estão. Individualização, por
conseguinte divisão e subdivisão do poder, que chega a atingir o grão fino da
individualidade. (...) não se trata de maneira nenhuma dessa espécie de
distanciamento, de ruptura de contato, de marginalização. Trata-se, ao
contrário, de uma observação próxima e meticulosa. (2001, p. 57-58).
A prática da peste inaugura uma forma de poder que age no plano da convivência
íntima: "encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos,
suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana" (FOUCAULT, 1990, p.
131).
Trata-se do mapeamento da vida íntima em escala planetária de modo a produzir
bancos de dados, quali–quanti, sobre cada indivíduo e seu modo de localização e distribuição
nos aglomerados populacionais. Desse processo resulta o conjunto de informações geradas da
experiência insuportável causada pelas montanhas de restos e cadáveres em putrefação,
35
acumulados no germinar das cidades modernas. Um insuportável capaz de determinar toda
uma configuração destas caóticas relações urbanas ainda provincianas.
Visibilidades sobre a podridão
O acúmulo de lixo, sua consequente putrescência e seus efeitos mefíticos foram
denunciados enfim pelas narinas dos cidadãos das grandes capitais européias do século XVIII
e XIX, e no início do desenvolvimento das cidades brasileiras em fins de século XIX e início
do século XX. Nestes períodos, tais emanações telúricas que provêm do lixo tornam-se objeto
de pesquisa científica, inspiração para narrativas literárias e pauta de jornais e periódicos na
época. A problemática da podridão é colocada como atenuante das mazelas que acompanham
a configuração social de outrora.
Alain Corbin recupera uma espécie de “história olfativa das cidades” em seu livro
Saberes e odores: o olfato e o imaginário social nos séculos dezoito e dezenove (1982
[1987]). De início, o autor demonstra como o olfato fora desprezado na narrativa sobre a
história da civilização ocidental, ao citar o filósofo Emmanuel Kant em suas Conjecturas
sobre a história humana. Para o autor, neste texto, Kant afirma que o olfato e o paladar não
diferenciam o ser humano dos outros animais, reservando tais faculdades sensitivas à ordem
dos instintos de sobrevivência e não do uso da razão. O olfato e o paladar permitem ao ser
humano, assim como ao animal, perceber os alimentos aptos em detrimento aos inapropriados
para ingestão, o que propiciaria sua sobrevivência, “pois é bem conhecido que as forças
perceptivas daqueles que se ocupam apenas com seus sentidos diferem largamente daquelas
pessoas que também se ocupam com seus pensamentos e que, conseqüentemente, colocam
menos atenção em suas sensações” (KANT, 2009 [1786], p. 158).
Para Kant, o início da história da razão humana acontece com a experiência da visão,
que permite comparar os alimentos entre si com mais acuidade que o paladar ou o próprio
olfato e calcular sobre seus benefícios e malefícios: “Mas a razão logo começou a se fazer
sentir e procurou ampliar seus conhecimentos dos gêneros alimentares sobre as barreiras do
instinto através da comparação do já experimentado (...), porque o sentido da visão
apresentava como semelhante ao experimentado” (Ibid., p. 158).
A partir deste alerta, Corbin inicia seu protesto contra o desprezo da história das
sensações e demonstra, em seu estudo, por quais processos e mecanismos o olfato tornara-se
determinante na construção e ordenação das cidades modernas.
Em períodos “pré-pasteurianos”, em que as visibilidades microscópicas ainda não
haviam sido descobertas, as emanações odoríferas dos alimentos, dos corpos e dos espaços da
36
cidade falavam muito sobre o bom ou mau estado da saúde urbana e individual. O olfato teria
como função principal avisar sobre as ameaças à saúde, pois “discerne à distância a podridão
nociva e a presença de miasmas” (Corbin, apud Hallé, 1982 [1987], p. 14).
O forte odor de podridão, característico do início das cidades modernas, é objeto
frequente em textos da literatura francesa que remontam a cenários urbanos entre o século
XVIII e século XIX. Patrick Süskind, em seu livro O Perfume (1985), parece se apoiar na
pesquisa de Corbin, ao descrever as sensações olfativas de um fedor urbano dificilmente
concebível nos dias atuais, ainda que existente: “As ruas fediam a merda, os pátios fediam a
mijo, as escadarias fediam a madeira podre e bosta de rato; (...) Das chaminés fedia o enxofre;
dos curtumes, as lixívias corrosivas, dos matadouros fedia o sangue coagulado. (...) Fediam os
rios, fediam as praças, fediam as igrejas, fedia sob as pontes e dentro dos palácios” (p. 7-8).
O escritor francês apresenta os espaços da cidade e o odor dos excrementos que
ocupavam as narinas dos transeuntes. As ruas, sem pavimentação e sem um serviço de
limpeza pública ordenado, permitiam a acumulação das excrescências, mas não parecia
denunciar o nojo alheio, já que, neste período, os níveis de suportabilidade ao nauseabundo
eram outros.
Süskind continua sua descrição mefítica ao visitar os lares e seus espaços íntimos:
“(...) as cozinhas, a couve estragada e gordura de ovelha; sem ventilação salas fediam a
poeira, mofo; os quartos, a lençóis sebosos, a úmidos colchões de pena, impregnados do odor
azedo dos penicos” (Ibid., p. 7-8).
Em seguida, a descrição dos aspectos olfativos da cidade feita pelo autor alcança os
corpos humanos e seus odores específicos: “Os homens fediam a suor e a roupas não lavadas;
da boca eles fediam a dentes estragados, dos estômagos fediam a cebola e, nos corpos quando
já não eram mais bem novos, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas” (Ibid, p.78). A cada órgão, a cada orifício e a cada idade havia um fedor característico que permitia
suas identificações. Mas o mau cheiro também era, em certo aspecto, democrático, pois se
encontrava impregnado em qualquer nível ou casta: “Fediam o camponês e o padre, o
aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda, até o rei fedia como um animal de rapina,
e a rainha como uma cabra velha, tanto no verão quanto no inverno” (Ibid, p. 8).
Esta descrição literária oferece o pretexto para diferenciar os modos de emanação e
enunciação de tal imundície em três campos: os espaços da cidade (cenário da vida pública),
as casas e seus cômodos (cenários da vida privada) e os corpos humanos (cenário
37
biopolítico7). Para cada um destes campos, serão produzidos conhecimentos, técnicas,
mecanismos de circulação e distribuição das coisas e dos homens, além de procedimentos
para organização destes resíduos materiais provenientes das relações humanas.
Estes restos pútridos, evacuados diariamente pela cidade, não trazem apenas marcas de
memórias de asco à história das experiências humanas. Vitor Hugo, por exemplo, fala do
escoamento dos dejetos funcionando como um intestino deste grande monstro que é a cidade.
Em O Intestino de Leviatão, penúltimo volume de Os miseráveis, após testemunhar a
fedentina pública, em um tom melodramático, característico do romantismo literário da época,
o autor eleva os dejetos às referências de fertilidade e vida.
Esses montes de lixo que se vêem pelas ruas, essas carroças de lama
que de noite se ouvem rodar, essas sujas pipas da limpeza pública, esses
fétidos escoamentos de lama subterrânea que a calçada encobre, sabeis o que
são? É o prado coberto de flores, a erva verdejante, o serpão, o rosmaninho e
o salvac; é a caça, o gado, o alegre mugido dos bois ao recolher do pasto; é o
feno odorífero, é o trigo doirado, é o pão da vossa mesa, é o sangue quente
das vossas veias, é a saúde, a alegria, a vida (HUGO, 2002, p. 214).
As impressões de Vitor Hugo sobre os resíduos da cidade vão ao encontro da trajetória
de seu personagem principal, Jean Valjean, prisioneiro e miserável, que acaba por se tornar
um cidadão de posses e de notoriedade social, graças ao seu esforço e trabalho. Esse fato leva
à consideração de que o lixo e a lama escondem potenciais riquezas que alimentam veias e
vidas na produção de um ideal de vida alegre e saudável: “vereis sair dele a vossa abundância.
A nutrição das plantas produz o sustento dos homens” (Ibid., p. 214).
O entendimento de que o acúmulo de excrescências fertiliza a terra provém,
justamente, da experiência de fixação de grupos humanos em um território. As fixações de
aldeias das tribos nômades, ainda no período neolítico (4.000 a.c.), fazem referência ao solo
fértil devido a este acontecimento dos aglomerados humanos:
(...) o alojamento muito próximo de homens e animais deve ter tido
outro efeito estabilizador sobre a agricultura: transformou as imediações da
aldeia, quase sem exceção, num monte de esterco. O termo fertilização tem
7
A questão da biopolítica, ou do biopoder, é frequente nos estudos de Michel Foucault principalmente a partir
do último capítulo de História da Sexualidade I: A vontade de saber e do curso de 17 de março de 1976 de Em
defesa da sociedade. Basicamente o biopoder atuaria, conforme o autor, na dupla face entre o direito de morrer e
o poder sobre a vida. O homem como ser vivente torna-se, nesta hipótese, objeto de governo pela razão de
Estado, tendo como consequência a constituição de tecnologias políticas e práticas científicas sobre a vida
biológica, entre elas, por exemplo, as políticas da sexualidade. A biopolítica pode ser entendida como a “maneira
pela qual, a partir do século XVIII, se buscou racionalizar os problemas colocados para a prática governamental
pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes enquanto população: saúde, higiene, natalidade,
longevidade, raça (CASTRO, 2009, p. 59-60).
38
hoje um duplo sentido em vernáculo: e essa ligação talvez seja bastante
velha, pois aqueles antigos cultivadores eram também observadores
(MUNFORD, apud EINGENHEER, 2009, p. 16-17).
O acúmulo do lixo nas cidades se impregna de valores referidos a um tipo de morte,
como a decomposição, a podridão, o fim de um modo de ser de uma matéria. Mas este fim
está inscrito em um “ciclo de vida das coisas” que se renova e se revela germinal, como uma
espécie de catalisador da vida, em uma transmutação da matéria para outro uso, como na
agricultura. Assim como o chorume, denominação do líquido que escorre do acúmulo do lixo,
mas que, em sua significação, adquire ares de dubiedade ao agregar parâmetros de riqueza,
abundância, fartura, fertilidade e opulência8.
Vitor Hugo utiliza esta ambiguidade de sentidos para revelar o que pode brotar de
riqueza na miséria, um movimento de elevação do baixo material, chegando até a consagrar
esta “misteriosa criação” em uma “transformação na terra e transfiguração no céu” (HUGO,
2002, p. 214). A valorização do baixo e do sofrível se revelaria objeto de trabalho do
liberalismo político defendido pelos artistas românticos da época. Todavia, esta visão de uma
cidade que bem digere suas sobras e as tornam úteis na fertilização da nova vida, mote do
contemporâneo, se revela um tanto ingênua ao contrapor-se com o seguinte relato sobre as
condições sanitárias de Portugal, neste mesmo período.
(...) separação entre produção e consumo, própria da condição
urbana, não permitia o total processo de reciclagem que ocorria na economia
camponesa. O espaço urbano simplesmente não dava conta de digerir tais
restos associados ao consumo. Foram os detritos, mais os excrementos
produzidos pelos moradores, que instauraram na cidade o reino do pútrido. A
cidade foi a grande inventora dos cheiros nauseabundos. A economia
camponesa não gerava esses odores, pelo menos não na escala em que
passariam a ser produzidos no espaço urbano (MUNHOZ, 2005, p. 102103).
François Rabelais, no final do período medievo, também aborda temas escatológicos
como as excreções humanas. No entanto, em contraste a Vitor Hugo, não submete as figuras
escatológicas ao cenário da miséria social, mas, diferentemente, provoca um jogo de inversão
entre os altos e baixos corporais e sociais. Em Pantagruel e Gargantua, o que é socialmente
elevado é incessantemente remetido ao baixo corporal e material. Os símbolos da austeridade
nobre e clerical da Idade Média baixam às situações mais funestas e grotescas.
8
Azevedo, FFS Dicionário analógico da língua portuguesa: idéias afins/thesaurus. 2.a.ed. atual e revista. – Rio
de Janeiro: Lexikon, 2010.
39
Ao se referir às comemorações carnavalescas e às festas dos tolos, que ocorriam
majoritariamente em praças públicas, Rabelais narra certas práticas que remetem a esta
inversão de valores e de hierarquias sociais, como os habituais usos de máscaras que
transformam sujeitos comuns em personagens fantásticos, a permissividade do uso de
vocabulário vulgar e as manifestações grotescas dos foliões.
Um rito muito comum na Festa dos Tolos, realizado em praça pública, era a rega com
urina e excrementos. As pessoas não se salpicavam com lama, mas com urina e fezes, no
intuito de representar a relação entre o nascimento e a fecundidade. Os excrementos
provocavam bem-estar, por virem, justamente, do baixo corporal (BAKHTIN, 1997).
Sobre as próprias figuras sociais da época, tem-se a personagem do bufão nos
carnavais. Bakhtin analisa: “todos os atributos reais estão subvertidos, intervertidos, o alto no
lugar do baixo: o bufão é o rei do ‘mundo às avessas’” (1997, p. 325). Assim, também os
objetos puros, valorosos e sofisticados são utilizados nas cenas mais escatológicas, como na
cena do limpa-cu, analisada por Bakhtin, em que Gargantua explica ao seu pai ter encontrado
o melhor limpa-cu. Nesta cena, alguns ícones das altezas reais são experimentados: echarpe,
cachecol (citado como cachecu), chapéu, orelheiras de cetim; todos estes objetos que
causavam prazer no trabalho de higiene anal de Gargantua são destronados para,
posteriormente, serem renovados em forma de um prazer mais mundano e escatológico.
Bakhtin ainda adverte:
O importante não é, naturalmente, essa renovação formal tomada à
parte, ela é apenas o aspecto abstrato da renovação rica de sentido, ligada ao
“baixo” material e corporal ambivalente. Com efeito, se examinarmos de
perto a lista dos limpa-cus, perceberemos que a escolha dos objetos não é tão
fortuita como se poderia crer, mas é ditada por uma lógica, na verdade
bastante insólita. Os cinco primeiros limpa-cus – o cachecol, o chapéu, a
echarpe, as orelheiras, o boné de pajem – servem para cobrir o rosto e a
cabeça, ou o alto do corpo. O uso que se faz deles como limpa-cus equivale a
uma verdadeira permutação do alto e do baixo. O corpo faz piruetas. O corpo
faz roda (BAKHTIN, op. cit. p. 327).
Este “baixo material e corporal”, por ser “ambivalente”, permite apresentar-se em dois
sentidos diferentes nas narrativas de Rabelais e Vitor Hugo, extrato de seus distintos períodos
históricos, cada qual com seu olhar sobre esta “renovação rica de sentido”, expressada a partir
das experiências do homem com as putrefações das materialidades que constituem seu corpo.
Vitor Hugo eleva a miséria a um valor moral nobre, enquanto Rabelais traz ao baixo corporal
e material os ícones aristocráticos e eclesiásticos. Dois campos produtores de direção de
40
sentidos para as matérias expelidas pelo corpo e pela urbs, que remetem a dois extratos
históricos no desenvolvimento das cidades. Dois olhares diferentes a engendrar formas de ser
diversas das materialidades que compõem o objeto/excremento. Assim como Pouchet e
Pasteur, o que se coloca em xeque é uma naturalidade do nauseabundo, do mefítico, do fétido
como expressões do insuportável.
É, portanto, fundamental considerar esta relação paradoxal com o lixo/excremento,
que se movimenta no circuito do nojo e da riqueza, da morte e da vida, da negação e da
positivação, a fim de evidenciar as diferentes práticas e discursos que tomam como matéria de
enunciação as excrescências e resíduos urbanos para formalizar uma série de conduta para
com as coisas e os homens.
Além de objeto literário, a matéria putrescente também se transforma em objeto de
conhecimento científico, o que permitirá, antes de adentrar tais campos, considerar um
momento na história da ciência, propulsor da re-organização dos modos pelos quais o sujeito
experiencia sua putrescência. Exatamente neste momento, em que as sensações odoríferas
cederiam espaço definitivo às narrativas da visibilidade científica, a teoria da geração
espontânea se tornaria o vértice desta dobra, a microbiologia, seu método, e as substâncias
putrescentes, um de seus objetos.
Esta teoria de geração espontânea ou abiogênese (do grego a-bio-genesis, "origem não
biológica") realizou pesquisas sob a hipótese de que a vida pode ser gerada sem a participação
de progenitores, a partir de matéria não-viva, ou seja, de forma espontânea. Desde a
Antiguidade Clássica, Aristóteles realizava observações e experimentos, o que o levou a
afirmar que alguns insetos e animais inferiores surgiam de restos de vegetais e alimentos ou
da terra em putrefação (MARTINS, 1990).
Os alimentos em decomposição continuaram a ser utilizados nestes procedimentos
científicos durante o século XVII, quando Francesco Redi (1626-1697) realizou um
experimento que consistia em colocar um pedaço de carne em um recipiente coberto por uma
gaze e expô-lo em ambiente externo. Observou-se que, com o tempo, houve a aproximação de
moscas que colocavam seus ovos no tecido da carne a apodrecer e que, desses ovos, surgiam
larvas e, posteriormente, moscas adultas. Na época, tinha-se a crença de que do lixo surgiam
moscas em uma espécie de geração espontânea, a partir de substâncias em estado de
decomposição. Com a descoberta de Redi, foi indicada aos cidadãos a necessidade de se
confinar os dejetos orgânicos para que moscas não se aproximassem. Entretanto, Redi
advertia que a geração espontânea ainda ocorreria no caso de surgimento de vermes
41
intestinais. Com o surgimento da lupa e do microscópio, tais experimentos continuaram a se
desenvolver (MARTINS & MARTINS, 1989).
Sobre os estudos da abiogênese na era da microscopia, figuram dois personagens
principais que marcaram uma dobra nos modos pelos quais nos relacionamos com a podridão
das cidades. Félix Archiméde Pouchet (1800-1876) e Louis Pasteur (1822-1895), entre os
anos 1859 e 1864, travaram debate por meio de seus experimentos ou, na verdade, de um
experimento em específico, para provar ou refutar a geração espontânea de organismos vivos.
O experimento consistia em ferver certas bases orgânicas, como urina e água de levedo de
cerveja, em recipientes lacrados e isolados do ar externo, e observar se surgiria algum microorganismo. Conforme Pasteur, concluiu-se que tais substâncias permaneciam estéreis e que
somente quando em contato com partículas de ar, que continham sempre corpúsculos
organizados, haveria a possibilidade de geração de vida e, portanto, de forma não espontânea.
Pasteur, com este experimento, ganhou o prêmio Alhumbert da Academia de Ciências de
Paris, em um concurso em que Pouchet também concorreria. Tal concurso fora promovido,
justamente, para desvendar de vez a existência ou não de geração espontânea de vida. No
entanto, ao ver que a banca desse concurso era composta por cientistas que defendiam a
inexistência da geração espontânea, Pouchet se retirou da concorrência.
Pasteur e Pouchet ainda realizariam este mesmo experimento, levando os balões com
os líquidos esterilizados por indução de calor, em diferentes altitudes, como nas montanhas de
Jura (850 metros de altitude) e Mer de Glace (2.000 metros de altitude). Mais uma vez, os
mesmos experimentos geraram diferentes resultados: dos balões de Pasteur, apenas 5, dos 20
levados às montanhas de Jura, apresentaram algum corpúsculo orgânico, enquanto dos outros
20 levados ao Mer de Glace, apenas 1 apresentou este mesmo resultado, comprovando que
quanto maior a rarefação do ar, menor a incidência de micro-organismos. No caso de Pouchet,
que levou 12 balões para Rencluse (2.083 metros de altitude), nos Pireneus, e para a
montanha de Maledetta (mil metros de altitude), observou-se que em todos os balões
encontraram-se corpúsculos organizados. Frente a tal impasse, resolveu-se realizar um novo
concurso, desta vez, a ser executado publicamente frente a uma comissão de arbitragem na
Academia de Ciências de Paris. No entanto, Pouchet, mais uma vez, delatou as manipulações
que se fizeram para que Pasteur obtivesse vantagens nas condições dos experimentos, a fim de
que sua teoria fosse validada, como a escolha de fazer os procedimentos durante o inverno,
clima que dificultaria o surgimento dos micro-organismos. Sendo assim, Pouchet, mais uma
42
vez, se recusa a realizar o ato (MARTINS & MARTINS 1989)9. Os resultados de Pasteur
seriam então chancelados por esta instância científica, e seus procedimentos microscópicos
multiplicados em outros objetos de pesquisa.
Os espaços públicos, os domicílios e os corpos serão, no século XIX, revisitados pela
microbiologia impulsionada pelas pesquisas de Pasteur. Isto implicaria, então, toda uma
sequência de procedimentos para a promoção da salubridade pública, privada e individual,
determinada pela existência de sistemas de micro-organismos, que apenas especialistas
conseguiriam visualizar.
Todavia, é importante atentar para o fato de que a acuidade na percepção detalhada
dos odores fora até então possível, justamente, pelo fato de a visibilidade pasteuriana ainda
não ter sido revelada ao mundo, “pois à ação desagregadora das bactérias, no século XVIII,
não havia ainda colocado nenhum limite e, assim, não havia atividade humana, construtiva ou
destrutiva, manifestação alguma de vida, a vicejar ou a fenecer, que não fosse acompanhada
de fedor” (SÜSKIND, op. cit. p. 7-8).
Para examinar o grau de putrescência da cidade, de seus personagens e seus corpos,
era necessário sentir os odores da decomposição ocupar o ambiente. Sem as visibilidades
bacterianas, a decomposição nauseabunda era uma experiência efetiva das relações humanas.
Tais visibilidades, posteriormente, limitariam as manifestações mefíticas aos cálculos, à
previsão e à prevenção por meio da medicina social e seus planos higienistas. Era preciso
ainda conhecer, antes de produzir previsibilidades sobre a putrescência.
A problematização do podre na organização das cidades brasileiras
No Brasil, as práticas de governo das aglomerações urbanas operariam alguns
processos bem característicos de produção e gestão de seus próprios níveis de suportabilidade.
As carcaças e ossos de animais, restos de comida, trapos e tralhas domiciliares se fizeram
cada vez mais presentes, e cada vez mais desagradáveis aos hábitos da nova organização
urbana.
No Rio de Janeiro, como é sabido, basta uma hora de sol, basta uma
hora só, para que as matérias orgânicas entrem em putrefação e criem com
todos os elementos que provêem de sobra para isso, um grande, um
emmenso viveiro de microbios, que se mantem constante sobre a nossa
9
Para conhecer mais sobre as diferentes teorias de geração espontânea e suas divergências, recomendam-se os
seguintes estudos: Martins, L. A. C., Aristóteles e a geração espontânea. Cadernos de história e filosofia da
ciência [série 2]2(2), págs. 213-37, 1990; e Martins L. A. C. &Martins, R. A., Geração espontânea: dois pontos
de vista. Perspicillum 3(1), págs. 5-32, 1989.
43
pobre cidade a reputação de insalubridade causa principal dos nossos atrasos
e da desconfiança com que ainda se olha para o nosso futuro (Gazeta de
Notícias, apud PINTO, 1901).
“Na Europa, Brasil é o Rio de Janeiro” – assim Antônio José Pinto (1901) pretende
alertar o “Senhor Prefeito” sobre os problemas na remoção de lixo da outrora Capital Federal.
Suas preocupações em atrair investimentos e imigrantes estrangeiros motivam-no a apresentar
ao poder municipal um Projeto de Remoção do Lixo: “Vossa Excelência sabe da péssima
impressão que em todos causa a falta de asseio desta importante capital e sobretudo da
impressão que em todos os países estrangeiros tem produzido a triste reputação de
insalubridade que adquiriu o Rio de Janeiro que naturalmente não o é” (Ibid.).
Dentre os problemas mais agudos estão alguns vícios de moradores que deixam de
entregar o lixo, “no interesse inconfessável de aproveitá-lo como estrume de jardins ou
hortas”, ou que, por “negligência acumulam o lixo sem conhecerem ou sem se importarem
com o mau que possa resultar” (Ibid.). Fica evidente, por estes relatos, que a necessidade pela
salubridade urbana começa a cercear práticas domésticas, como a própria fertilização dos
jardins. Obviamente, a necessidade da remoção dos excrementos e dos dejetos se faz presente
nas cidades modernas como resultado de uma manutenção necessária, pois:
(...) na infração às normas de limpeza percebe-se o mesmo desprezo
pelos locais coletivos. Em registros da Câmara de Salvador, por exemplo, as
queixas contra os proprietários que lançavam toda sorte de dejetos nas ruas,
repetem-se ao longo de todos os séculos XVII e XVIII. Ainda no século XIX
as posturas da Câmara tentavam, debalde, regulamentar o despejo de lixo e
outros detritos nas vias públicas. A rua era considerada o confim da casa,
como a senzala era o quarto de despejo da casa grande. Os senhores rurais
modelavam a cidade seguindo o exemplo do engenho ou da fazenda
(COSTA, 2004, p. 38).
A relação do lixo com a aversão aos manifestos mefíticos é observada também no que
se relata sobre o trabalho dos carroceiros10. Suas carroças, “tão fétidas quanto o conteúdo que
carregam”, é outro ponto crítico do serviço de limpeza urbana, que piora com a falta de
exatidão quanto ao horário de coleta e com o conhecido vício dos moradores em reaproveitar
a matéria orgânica como adubo (Ibid.).
Conjura sobre a indecência da prática de remover o lixo durante o dia, que obriga os
citadinos a conviverem com tal consternação: “há anos que distinctos hygienistas, imprensa e
10
Os carroceiros aparecem frequentemente no arquivo de documentos pertencente ao Arquivo Histórico do Rio
de Janeiro. Eram trabalhadores autônomos ou empregados responsáveis por coletar o lixo domiciliar da cidade e
que, para tanto, precisavam adquirir uma licença de trabalho junto à Prefeitura Municipal.
44
todos reclamão a remoção do lixo durante a noite; mas não violando os domicilios e nem as
garantias individuaes com medidas vexatórias” (Ibid.). O autor da carta ao “Senhor Prefeito”
termina suas considerações recomendando que a Câmara Municipal proíba a venda de carne
com ossos, já que esta é a parte do lixo de imediata putrefação.
Desde os tempos da chegada da família real, em 1808, na cidade do Rio de Janeiro, a
questão sanitária foi alvo das primeiras reformas urbanas. As mudanças anunciadas pela
chegada da corte trariam uma revolução para a cidade que, até então, não via como problema
crucial os hábitos de higiene que os colonizadores fariam, a partir de então, gritar pela cidade.
No início do século XIX, os colonizadores europeus traziam a boa nova para os
bárbaros tupiniquins. Esta nova alma da cidade preconizava os preceitos do bem-viver e os
sacrifícios que cada citadino teria que fazer para cumprir com a salvação do meio urbano. Ao
longo desta pesquisa, será possível observar esta relação intrínseca entre as tecnologias
importadas do velho mundo para a gestão de nossos resíduos e, consequentemente, para a
reforma urbana. Com a chegada dos nobres portugueses para fazer do Brasil o novo império
lusitano, verificar-se-ão mudanças cruciais que, ao fim de cem anos, culminariam nas
reformas sanitaristas de Oswaldo Cruz e na Revolta da Vacina.
As casas com janelas maiores, o alargamento das ruas, a cidade mais iluminada e todo
um repertório de novas condutas se faziam necessários para que a nobreza pudesse ocupar a
cidade. Não viam mais os habitantes locais como um perigo, mas sim como sujos e exóticos
que, com uma boa limpeza, resolveriam a questão (BAPTISTA, 1999, p.58).
Os saberes médicos, utilizados como sustentáculo das práticas de governo das
condutas citadinas, atribuíram perigo a tudo que era diverso do cotidiano prescrito. Ao patrão
Gordo, atribuíram-se então as responsabilidades de pai de família; surgem à mesa de jantar as
refeições em família e a boa educação para a cidadania. A sociedade respeitável transportarase para dentro do lar e o espaço público começara a adquirir valores insalubres, trazidos por
doenças impregnadas nos vagabundos, nos andarilhos, nas prostitutas e nos bandidos.
Neste sentido, para dar continuidade a esta compreensão sobre as transformações das
cidades brasileiras na organização de suas sujidades, faz-se necessária a descrição de algumas
práticas de higiene prescritas pelo discurso da medicina social da época, que teria então
influência crucial para a transformação das cidades brasileiras, da gestão de suas
excrescências e, consequentemente, da mudança das condutas.
45
3. 2 Corpo e rua como matérias da medicina social
Ao fazer uma leitura dos Anais da Câmara Municipal de São Paulo, relativos aos anos
de 1906 e 1912, encontram-se alguns relatos que tratam da limpeza da cidade. Uma das pautas
mais polêmicas versava sobre a implantação de um novo imposto sobre o lixo. Estes debates
frequentes enumeravam as vantagens e desvantagens deste imposto sanitário, bem como
colocavam em dúvida a legitimidade da Câmara Municipal em legislar sobre a criação deste
novo tributo municipal.
O então vereador Alcântara Machado11 apresenta um projeto de lei que dispõe sobre a
criação de uma taxa que versaria sobre a produção de lixo domiciliar no município. Tal
proposição disserta sobre os Problemas Municipaes (1918 [1917]) sofridos pela capital
paulistana em meio a sua ebulição cosmopolita:
A rua é a unidade hygienica da cidade. A urbs vale como salubridade, o que
valem as ruas que a constituem. Ora, como o asseio do corpo é o alicerce de
toda a hygiene individual, assim também a limpeza da via publica é o pivot
de toda a hygiene urbana” (MACHADO, 1918, p. 59).
Este axioma da limpeza pública aparece como território de análise, para a descrição de
alguns processos pelos quais corpo e rua tornam-se produtos das práticas de higiene, no
instante mesmo do desenvolvimento das cidades modernas. Serão, assim, apresentados alguns
processos de gestão do lixo relacionados aos hábitos e modos de vida do citadino.
O primeiro apontamento consiste em compreender sob qual paradigma se formula esta
espécie de axioma proposto por Alcântara Machado, de modo a resgatar as experiências e
discursos que, ao cabo de seu exercício, sustentam tal proposta de adequação urbana.
Estas duas unidades físicas, o corpo e a rua, aparecem como objetos das práticas da
higiene social, de modo a expurgar-lhes toda a sujeira e, em seu lugar, trazer às cidades
brasileiras as boas novas do mundo moderno. A cada uma destas unidades aliam-se dois
11
José de Alcântara Machado (1875-1941) formou-se em Direito pela Universidade de Direito de São Paulo,
onde também recebeu o título de Doutor em 1895. Em junho de 1915 foi declarado professor substituto de
Medicina Pública, sendo que, em agosto de 1925, foi nomeado professor catedrático de Medicina Pública, atual
Medicina Legal. Na esfera política, exerceu os cargos de vereador municipal (1911-1916), deputado estadual
(1915-1924), senador estadual (1924-1930), deputado e líder da bancada paulista na Assembléia Nacional
Constituinte (1933-1934) e senador federal (1935). Foi em sua residência que a intelectualidade paulista se
reuniu para acertar o fim do Movimento Constitucionalista. Foi membro fundador e presidente da Sociedade de
Medicina Legal e Criminologia de São Paulo. Além disto, foi um dos fundamentais contribuidores para a escrita
do Código Penal Brasileiro homologado em 1938 e sancionado em 1940 pelo então Presidente da República
Getúlio Vargas.
46
conceitos que remetem a um modo de inteligibilidade moderno: ao corpo, apresenta-se o
indivíduo, uma unidade política indivisível do Estado e objeto de governo da vida privada; à
urbs apresenta-se a rua como seu valor unitário e, portanto, seu objeto de intervenção para a
governamentalidade do espaço público. Dois espaços de intervenção diferentes que, quando
Alcântara Machado os coloca em um novo plano de existência, têm seus muros demolidos
pela necessidade da organização higiênica com objetivos de manutenção do bem-viver como
bem comum da cidade.
O que serviria de esteio para o projeto do vereador seria o desenvolvimento de uma
linguagem científica de pesquisadores sanitaristas europeus e americanos e de práticas
aplicadas em seus municípios. Em seu texto, não faltam citações que lhe oferecem a justa
argumentação12.
Registrar os modos de ser de um corpo no campo do indivíduo seria, justamente, este
ato de romper o limite físico e lançá-lo como unidade política pertencente não apenas à urbs,
mas principalmente à vida urbana. Temos, portanto, o corpo e a rua, outrora em campos
distintos, agora como elementos de uma razão proporcional inseridos neste novo campo
prático e discursivo chamado hygiene.
Transformado em unidade numerária, o indivíduo (unidade política indivisível) apenas
adquire sentido e valor se colocado em perspectiva de um conjunto maior, ou seja, no
conjunto dos aglomerados populacionais. As mudanças na maneira de compreender os limites
entre o público e o privado implicam uma reconfiguração de modos de existência, a partir do
momento em que os hábitos privados deste aglomerado humano possam influenciar no
destino das cidades.
Das possíveis proveniências desta forma de operar sobre o conjunto da população,
Michel Foucault (2008a, [2004]) também argumenta sobre a economia política, não como um
universal, mas como um regime de verdade, como a produção de uma coerência racionalizada
das diversas práticas sociais, que servirá como um coeficiente comum às relações humanas.
Estas práticas reorganizadas irão se instaurar como objeto de interesse a serviço de um
suposto bem comum, para o bem-viver ou, como o próprio autor afirma, para a segurança da
população (p. 140-141).
Talvez uma imagem mais simples e clara desta dissipação entre as fronteiras pública e
privada tenha sido ilustrada por Luis Antonio Baptista, no mesmo texto citado anteriormente,
12
Alcântara Machado não economiza nas referências a anais, enciclopédias e tratados de higiene em sua maioria
de autores franceses: Ann. d’hyg. et med. lég., 1907; PROUST, Trate d’hygienne, 1904; ANOULD, em
ROCHARD, Encyclopédie dygiène, III; PARSONS, Ann. d’hyg., (1908).
47
Cidade dos Sábios (1999), ao narrar as peculiaridades dos grandes centros urbanos brasileiros
no instante de seu desenvolvimento. Neste cenário, mostra-se o processo pelo qual cada alma
citadina fora reorganizada para alimentar a boa saúde de uma alma ainda maior e fundamental
para a saúde de todos: a alma da cidade (p. 57).
Cortando a carne com delicadeza, a rainha do lar, antiga mulher sentada,
ocupava o assento no outro lado da cabeceira. Grande e solene, a mesa de
jantar era o novo hóspede que tinha vindo para ficar. O móvel europeu
trazido pelas almas reunia a família nas refeições e oferecia intimidade,
aconchego e refinamento do espírito. Conversas animadas, olhares
cúmplices, sermões educativos, comentários sobre as novidades da cidade; a
mesa fez a família falar. O dono gordo virou o pai, as crianças, espíritos
frágeis em desenvolvimento, necessitando de proteção e carinho para o
amadurecimento da personalidade e o desenvolvimento da educação para a
cidadania (BAPTISTA, 1999, p. 64).
Fica evidente o poder de inserção dos “sábios da higiene” nos hábitos domiciliares em
favor de uma demanda pública pela salubridade. O contexto de alto crescimento dos grandes
centros urbanos não permitiria mais um estilo de vida provinciano, mas sim uma
transformação para hábitos mais saudáveis com vistas a galgar a harmonia social.
Nos primeiros 30 anos do século XX, São Paulo experimentou também a
multiplicação destas almas individuais e, com isto, a necessidade de se pensar novas formas
de gestão, a fim de organizá-las para alimentar a alma da cidade. Neste período, o número de
habitantes cresceu de 25.000 para 250.000. Na época em que este Projeto de Lei foi
apresentado, já se contabilizavam cerca de 300.000 habitantes13. Machado olha para uma
cidade que vive as circunstâncias de um salto populacional assustador, um fenômeno
migratório que traz consigo os incômodos da aglomeração urbana. Experiências que suas
referências científicas trazem inscritas nas práticas dos seus países.
Sobre tais práticas, Richard Sennett descreve “uma história da cidade contada através
da experiência corporal do povo” (1997 [1994], p 15). Em Carne e pedra: o corpo e a cidade
na civilização ocidental, o autor dedica um momento para narrar as descobertas de William
Harvey14 sobre o sistema respiratório e de circulação sanguínea, e sua influência nas
concepções modernas de saúde pública:
13
Fonte: Secretaria de Estado de Economia e Planejamento. Instituto Geográfico e Cartográfico - IGC. Acervo Tombo: 1322.
14
William Harvey (1578-1647) - Médico inglês, grande figura da medicina de seu tempo, cujas descobertas
sobre o coração e a circulação do sangue revolucionaram a medicina, que só a partir de então adquiriu
fundamento científico. Membro do Colégio Real de Médicos (1607) foi médico de Carlos I, Jaime I e Francis
Bacon, e titular do Hospital de São Bartolomeu (1609). Com base em seus conhecimentos de anatomia e
48
A revolução de Harvey favoreceu mudanças de expectativas e planos
urbanísticos em todo o mundo. Suas descobertas sobre a circulação do
sangue e a respiração levaram a novas idéias a respeito da saúde pública. No
Iluminismo do século XVIII, elas começaram a ser aplicadas aos centros
urbanos. Construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase a tudo
que facilitasse a liberdade do trânsito das pessoas e seu consumo de
oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, através das
quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos
no plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca de
moralidade por saúde – e os engenheiros sociais estabelecido a identidade
entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da
felicidade humana (SENNETT, 1997 [1994], p. 214).
A saúde de um corpo, como um fenômeno biológico, ou melhor, biopolítico, oferece
novos códigos para gestão deste outro corpo político, a cidade, de modo a inscrever um novo
caminho para a felicidade humana. Às vistas de uma ciência moderna funcional e utilitária, o
corpo adquire novas texturas e consistências. Esta ciência, que se apóia no lastro do saber
médico-social, acaba por “guiar nosso olhar para um mundo de constante visibilidade”
(FOUCAULT, 1977 [1963], p. VIII).
Em entrevista cedida por Michel Foucault a Jean-Pierre Barou e Michelle Perrot,
intitulada O olho do poder (FOUCAULT, 2004 [1979], p. 209-227), o autor apresenta os
quatro problemas que se tornam objeto de intervenção da medicina para a promoção da
higiene social para o controle da alocação dos humanos na cidade, em nome da limpeza
pública e da saúde de todos. Para Foucault os médicos se configuram, nas cidades modernas,
como os especialistas dos espaços e direcionam o pensar sobre os espaços urbanos a partir
então dos seguintes problemas:
(...) o das localizações (climas regionais, natureza dos solos, umidade e
secura: sob o nome de “constituição”, eles estudavam esta combinação dos
determinantes locais e das variações sazonais que favorece em dado
momento determinado tipo de doença); o das coexistências (seja dos homens
entre si: questão da densidade e da proximidade; seja dos homens e das
coisas: questão da densidade e da proximidade; seja dos homens e dos
animais: questão dos matadouros, dos estábulos; seja dos homens e dos
mortos: questão dos cemitérios); o das moradias (habitat, urbanismo); o dos
deslocamentos (migração dos homens, propagação das doenças)
(FOUCAULT, 2004 [1979], p. 213-214).
fisiologia, desprezou a hipótese corrente de que as artérias continham uma mistura de sangue e ar e propôs o
caráter cíclico da circulação sanguínea, com o coração funcionando como uma bomba.
49
No crescente desta vida urbana, a alma não é mais o sustentáculo da salvação dos
homens. As preces e condutas religiosas perdem espaço para os procedimentos técnicos e
científicos de cuidado com o corpo, que se legitima como o novo paradigma a serviço do
bem-estar e da felicidade humana: “(...) a saúde era vista, cada vez mais, como
responsabilidade individual, em vez de uma dádiva de Deus. A cidade que começava a surgir
no século XVIII ajudaria a reprodução desse paradigma num quadro de convivência
saudável” (SENNETT, 1997 [1994]. p. 218). O caminho para a salvação e para felicidade
humanas adquire materialidade nos corpos e ruas bem asseados e não mais na crença
transcendental da salvação da alma cristã.
Impregnados de tamanha solidez e objetividade, esta política dos corpos evidencia um
percurso que elege a medicina coletiva como um dos pilares de ordenação da racionalidade
moderna e seus aglomerados urbanos. A partir das descrições de Michel Foucault (2004
[1979], p. 79-99) sobre O nascimento da medicina social, em fins do século XVIII e início do
século XIX, algumas práticas apresentam a higiene social como dispositivo que opera certo
poder sobre o corpo: “O controle da sociedade sobre os indivíduos (...) começa no corpo, com
o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que antes de tudo investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma estratégia biopolítica”
(FOUCAULT, 2004 [1979], p. 80).
O fedor e a corrupção causados não apenas pelo excremento e pela falta de higiene dos
indivíduos como também por qualquer forma de matéria pútrida acumulada nos espaços
públicos, sejam elas visíveis ou não aos olhos, colocam em questão a própria existência da
cidade. Os produtos mefíticos impregnam nos solos, no ar, na comida e adoecem os corpos.
Os cemitérios, ossuários e matadouros se tornam foco de miasmas. Os restos de alimentos,
trapos, animais mortos e outras substâncias orgânicas e inorgânicas não podem se acumular
nos espaços das cidades e, assim como submetidas a um estatuto geral de saúde pública, fazse mister colocá-las em movimento e, neste caso, um movimento para fora dos espaços
urbanos.
A estratégia sanitária que se modela então não mais se reveste com o caráter
episódico daquela que se desenvolvia quando grassavam epidemias; ela
pretende chegar à permanência; ela opera uma síntese; ela coordena as
decisões de uma forma edilitária. ‘A invenção da questão urbana’, o triunfo
da concepção funcional da ‘cidade-máquina’ incitam a uma ‘toalete
topográfica’, indissociável da ‘toalete social’, que a limpeza de ruas e a
instalação dos locais de confinamento atestam (CORBIN, 1987 [1982], p.
119).
50
Não por acaso, Corbin apresenta este fenômeno dos surtos epidêmicos na Idade Média
para contrapor à questão sanitária moderna, pois, nestes dois estratos históricos, o acúmulo da
podridão ocupa os problemas de gestão da vida urbana e é, justamente, a “invenção da
questão urbana”, como foco de problematização e governo, que culmina na transformação das
relações sociais. A ineficácia destas estratégias sanitárias episódicas culminou na extinção de
várias cidades e na morte de aproximadamente 20 milhões de europeus. Todavia, a
impotência destas tentativas de cura das pestes promoveu as estratégias mais perenes de
prevenção dos males citadinos. A putrefação produzida pelos dejetos humanos e o lixo desta
experiência de acúmulo populacional fizeram soar o alerta da medicina social para a produção
das práticas de higiene pessoal e da saúde pública.
Simultaneamente ao pútrido, instalou-se na cidade medieval o reino da
peste, o que levaria os moradores a estabelecer uma interconexão de causa e
efeito entre ambas as coisas. A podridão orgânica dos dejetos urbanos era
apontada como a principal causa do adoecimento dos habitantes. Era o que
nos dizia o regimento dado por D. João I a Évora, em 1392: ‘Porque das
sujidades e estercos e coisas podres e nojosas e fumos que se delas fazem
nos lugares recrescem muitos danos e dores aos corpos’15 (MUNHOZ, 2005,
p. 102-103).
É justamente esta dobra de uma racionalidade que opera sobre os locais de
convivência urbanos que leva a indagar sobre os efeitos e custos da produção de novas
normas e valores sobre a conduta humana. A medicina social será então esta grande
“inventora” da questão urbana como objeto de governo.
O dispositivo médico-social funciona como o aglutinador destas novas práticas
heterogêneas de contenção das mortes em massa e, consequentemente, do cuidado com a vida
humana e com a vida urbana. Desde as práticas de higiene das moradias e dos corpos, práticas
de quarentena e controle de fronteiras, cadastramento e classificação de casas, ruas e
indivíduos a fim de conter o risco de proliferação das pestes, a medicina social responde à
urgência das mortes em massa e ocupa o lugar deixado vago pela crença da salvação e da
eternidade da alma. Uma nova utopia constrói novos corpos utópicos.
Para Michel Foucault, as utopias “são os posicionamentos sem lugar real. São
posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia
direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas de
15
ÉVORA: Regimento da cidade de Évora feito pelo corregedor da corte João Mendes em tempo del Rei D.
João I. (PEREIRA, 1885. p.188).
51
qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais”
(FOUCAULT, 2009b, p, 414-415).
A medicina social seria responsável pela formatação da utopia da higiene social para
fazer viver a população e a vida urbana, ou seja, a medicina social funciona como dispositivo
de produção de corpos utópicos. Como atesta Foucault, “corps sans corps, un corps que sera
beau, limpide, transparent, lumineux, véloce, colossal dans sa puissance, infini dans sa durée,
délié, invisible, protégé, toujours transfiguré (...) l’utopie d’un corps incorporel”16
(FOUCAULT, 2009, p. 10).
3.3 Para limpar: o ar e a água como fluidos da cidade
Na medida em que as entranhas das coisas e dos homens se abrem ao bisturi preciso e
incisivo do saber médico, as cidades, como campo de efetividade e efetuação de corpos
utópicos, adquirem ramificações e porosidades que promovem esta nova adequação urbana,
caracterizada pelo movimento, pela circulação e pela ventilação dos objetos do mundo.
Conforme Michel Foucault (2004 [1979]), a esta nova racionalidade dos grandes
centros urbanos, apresentam-se três grandes objetivos para assegurar a boa manutenção das
relações nas cidades modernas. O primeiro destes objetivos, e o que nos interessa para o
momento, constitui na inversão do foco de dominação, do território para a cidade17. Isto
ocorre porque a riqueza do Estado Nação não se denomina mais apenas pela amplitude
territorial, mas, principalmente, pelo seu conjunto populacional e pelo acúmulo de capital. No
entanto, a produção de mercadorias e capital gera também o amontoamento de tais restos e
dejetos, e torna-se importante “analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo que,
no espaço urbano, pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos
epidêmicos ou endêmicos” (p. 89-90).
Este conjunto de ações, que anuncia a cidade organizada para propiciar a fluidez e a
circulação de coisas, homens e elementos da natureza, não atua apenas na dimensão pública,
mas também na individual, tanto no corpo como nos objetos e espaços particulares. Percebese, portanto, a formação de um campo de intervenção que se inscreve nas relações privadas.
Um dispositivo que opera sobre corpos, espaços, tempo, ar, água, objetos e dejetos e que
16
“corpos sem corpos, um corpo que é bonito, límpido, transparente, luminoso, veloz, em seu poder colossal,
infinito em sua duração, ágil, invisível, protegido, sempre transfigurado; (...) utopia de um corpo incorporal”
[tradução minha].
17
Os outros dois objetivos serão discutidos mais adiante, haja vista: o problema da circulação (ver p. 54) na
sessão sobre a organização dos fluidos da cidade como o ar e a água; e a organização de distribuições e
sequências (ver p. 58) que servirá como ponderação sobre os cálculos de custo e estatísticos da imundície para os
projetos urbanísticos modernos.
52
prega a salvação da população por meio da salubridade pública, tanto das ruas como da
higiene individual, agora objeto das políticas públicas de saúde.
Nas primeiras décadas do Brasil República, os saberes produzidos sustentavam sua
cientificidade na reprodução de conhecimentos importados da Europa. O ar e a água ganham
visibilidades epidemiológicas a partir dos estudos de especialistas em higiene e saúde pública.
O tenente Coronel Dr. Alarico Damazio, Assistente do Chefe do Corpo de Saúde do Exército
Brasileiro em 1929, publica seu estudo sobre a “repartição dos germes na athmosphera e na
água”18.
Para tal produção de formas de enunciação científica, não se economiza nos exemplos
sobre estudos realizados no velho mundo a fim de dimensionar os custos da vida urbana no
que se refere à saúde individual, pois “quanto mais gente mais micróbios” (DAMAZIO, 1929,
p. 498). O médico do exército ganha força em suas evidências ao citar um cientista francês
que contabiliza o número de bactérias que existem nos ares franceses: “Miquel, cujos estudos
sobrelevam a todos, encontrou duzentas partículas solidas por c.c. no cume das montanhas, e
em Londres e Paris elle encontrou de 150 a 200 mil. Há um paralelismo absoluto entre as
poeiras e os micróbios” (Ibid, p. 499). O ar perde sua propriedade etérea e, na formação deste
novo cenário nosológico, as matérias mefíticas adquirem outros graus de insuportabilidade,
que não apenas as provenientes do odor e da estética imunda que impregnam as cidades: “as
emanações pútridas da athmosphera, favorecem a conservação dos micróbios (...) [e] podem,
em determinadas circumstancias, revigorar a actividade dos germens contidos na
athmosphera” (Ibid. 498-499).
O problema da acumulação humana também encontra seus custos na contaminação
das águas:
Os rios e ribeiros em cujas margens vivem agglomerações humanas, que
nelles buscam a agua do abastecimento, se carregam desde as nascentes, de
germens recolhidos aos terrenos que elles percorrem. Todas as analyses,
accordam, em mostrar o augmento crescente da flora microbiana, de suas
águas no transcurso pelas cidades, de que elles recebem, lixo, resíduos e
immundicies diarias (Ibid., p. 502).
Neste mundo de constante produção de novas formas de visível e de enunciação,
inaugurado pelo saber médico, mesmo algo, até então, tão insípido como o ar e a água,
contém elementos que os olhos humanos não podem observar. A acumulação de micróbios
nocivos à saúde humana, devido ao confinamento do ar em ambientes fechados, úmidos e
18
DAMAZIO, Revista de Hygiene e Saude Publica, 1929, Anno III, n. 4, p. 498
53
escuros, torna-se o malefício a ser extirpado. A existência destes micróbios agora visíveis aos
olhos da medicina e dos homens ganha importância na reconfiguração da paisagem urbana.
Assim, Alain Corbain, em seu livro Saberes e odores: o olfato e o imaginário social
nos séculos XVII e XIX (1987 [1982]), apresenta, com minúcias, como a mistura dos odores
urbanos foram identificados, catalogados e separados, ao ponto de a cidade moderna respirar
uma nova composição de odores. Neste passo, ao olfato resta apenas este jogo de veridição
que implica identificar e diferenciar os odores saudáveis da cidade em contraposição aos
odores patogênicos definidos pela percepção da decomposição pútrida.
Nesta nova forma de administrar os modos de percepção do sujeito em relação à
cidade, a medicina encontra sua função: “garantir o movimento dos fluidos, porque este retém
o ar no estado de fixidez; zelar pelo bom encaminhamento da excreção que expulsa os
humores putrescentes; facilitar a absorção do ar pelos pulmões, pelos poros, pelos vasos
inaladores do estômago e dos intestinos” (CORBIN, 1987 [1982], p. 29).
O confinamento do ar em qualquer aposento será visto como produtor de doenças. A
ventilação constitui o eixo estratégico, e o controle sobre o fluxo do ar será objeto de
intervenção. A troca de ar constante nas casas, prédios públicos, prisões e hospitais são
imprescindíveis para impedir a proliferação de epidemias. Ventilar as fossas sépticas ameniza
o pesado odor das putrescências. Às mulheres, o leque, “um dos mais sumários ventiladores”,
é recomendado não apenas como instrumento para refrescar a face, ou como artigo de moda,
mas também para renovação constante do ar inalado (CORBIN, 1987 [1982], p. 125-129).
Estas preocupações apresentadas por Alain Corbin, quanto ao problema da ventilação
urbana, são também compartilhadas por higienistas brasileiros na ocasião do “Primeiro
Congresso Brasileiro de Hygiene” (1923) em que um dos temas centrais tratava justamente da
remodelação das cidades. Nos anais do evento, hoje arquivados na Biblioteca da Casa de
Oswaldo Cruz (Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz), constam cinco registros de palestras, em
que todas apresentam análises e propostas de intervenção para melhor salubridade do meio
urbano. A análise das possibilidades e necessidades de mudanças estruturais para o
desenvolvimento urbano, a partir da lógica higienista, apoia-se em três campos de
intervenção, fundamentais para a organização do meio urbano: o ar, a água e as ruas.
A ventilação se torna um problema para a remodelação das cidades, a partir do
momento em que esta nova forma de visível - os micróbios - se torna a ordem do dia. Sob tal
problemática, dois artigos se destacam. Em um deles, o Dr. J. P. Fontanelle se dedica a alertar
sobre os malefícios do ar confinado e a necessidade de assegurar ao ar um elevado poder
refrigerante. Para tanto, faz-se necessário repensar a cidade em suas características estruturais
54
de modo a realizar outro manejo de certos circuitos urbanos, tanto das ruas, como também dos
interiores das casas dos citadinos e, ainda, dos batimentos caracterizados pela aglomeração de
pessoas como fábricas e escolas. (Annaes do Primeiro Congresso Brasileiro de Hygiene,
1923, p. 48).
(...) II – Encarado particularmente o problema essencial da
ventilação, é imprescindível tomar, para assegura-la, as disposições de
conclusões que se seguem.
III – Devem ser projetadas ruas canalizadoras de ar, orientadas no
sentido dos ventos dominantes, deixando-se desimpedida, o mais que for
possível, a entrada dessas vias.
IV – A constituição das quadras deve ficar assegurada desde o
inicio, para que nellas se reserve um corredor central, pela coalescencia de
todas as áreas e quintaes posteriores, sendo os edifícios das cabeças das
quadras de altura menor que os outros.
(...) VII – Para assegurar a facilidade de circulação horizontal de ar,
indispensável á refrigeração corporal, devem ser exigidas, tanto quanto
possível, janellas ou outras aberturas em paredes oppostas do mesmo
compartimento.
VIII – Nos edifícios destinados á reunião de muitas pessoas, como
theatros, cinemas e salas de conferência, fabricas, etc., serão sempre
exigíveis dispositivos mecânicos de ventilação artificial, que mantenham o
poder refrigerante total do ar dentro do limite mínimo reconhecido pela
moderna téchnica de hygiene (Ibid., p. 49)
O saber médico se estende para além dos corpos humanos, impregna-se no ar e por ele
percorre as ruas da cidade, os edifícios e as casas até entrar nas narinas. Impera, portanto, o ar
em circulação e livre dos – agora nem tão – invisíveis micróbios. Esta espécie de “superhabilidade”, de ver o que não vemos, convoca para si o poder de reinventar a cidade, cuja
bandeira principal será a higiene pública em defesa da saúde individual.
Nestes aspectos, a vida nas cidades une duas causas, as naturais e as produzidas pelo
homem, como problemática e solução para as dificuldades de salubridade urbana. Deste
modo:
O projeto de urbanização, ao mesmo tempo em que analisa, desvela a cidade
como um todo organizado, articulado. Esquadrinhar, dividir, isolar implica,
por outro lado, em estabelecer relações entre elementos e objetos
aparentemente dispersos e desvinculados, mas que se agenciam, na medida
em que qualquer desordem singular pode acarretar o mau funcionamento do
todo. O planejamento urbano aparece, portanto, nos pareceres médicos do
final do século XVIII, como vital para encontrar a doença (MACHADO,
1978, p. 146)
55
Outro “super-poder” está na habilidade de abrir ruas e atravessar paredes (construção
de janelas e portas em maior tamanho e número), conforme as necessidades arquitetônicas
para a ventilação da cidade. Estes médicos da cidade revelam-se como os novos artífices,
arquitetos da saúde, pois conhecem as leis que regem a natureza e produzem técnicas
artificiais para dar forma à grande obra da civilização moderna: a vida urbana. Como afirma o
Dr. Armando Godoy, esse fato faculta aos higienistas “substituir as leis reaes por outras
artificiaes” (1923, p. 39). A este fenômeno das cidades, soma-se, como efeito destes
aglomerados urbanos, a produção de artifícios de existência para as coisas e os homens.
O uso e os efeitos destas leis artificiais para a intervenção e transformação da natureza
foram também objetos da Filosofia Política deste período de formação do Estado Moderno. Já
Thomas Hobbes, no século XVII, pousou sobre a problemática das cidades ao publicar sua
mais conhecida obra, Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil
(1997), cuja primeira argumentação trata, justamente, desta faculdade humana de criar vida
artificial.
Do mesmo modo que tantas outras coisas, a natureza (a arte mediante a qual
Deus fez e governa o mundo) é imitada pela arte dos homens também nisto:
que lhe é possível fazer um animal artificial. (...) E a arte vai mais longe
ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza, o
Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama
Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial,
embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja
proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial,
pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros
funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o
castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, todas as juntas e
membros são levados a cumprir o seu dever) são os nervos, que fazem o
mesmo no corpo natural; a riqueza e prosperidade de todos os membros
individuais são a força; Salus Populi (a saúde do povo) é o seu objectivo; os
conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são
sugeridas, são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade
artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a
morte (Ibid. p.27).
Neste prólogo, vê-se a “alma da cidade” de Baptista (1999, p. 57) e o “Intestino de
Leviatão”, de Vitor Hugo, encontrarem fundamento nos pensamentos pré-modernistas de
Hobbes. A cidade como criação artificial da existência humana gera toda uma complexidade
de relações, cujos pactos e convenções geram este “Corpo Político” (HOBBES, op. cit.),
habitat das aglomerações populacionais. Salus Populi é o seu objetivo, a saúde de um povo,
que não significa especificamente a saúde de todos e de cada um, mas sim a deste “homem
56
artificial”. Instaura-se, deste modo, esta arte de governar a vida, não mais apenas em prol dela
mesma, mas em benefício da saúde da vida pública.
A descoberta de taes relações e de regras a obedecer para que uma cidade
seja salubre, isto é, para que a existencia humana ahi se escoe em melhores
condições, veio impor no homem a obrigação de corrigir na medida do
possível os defeitos e as lacunas que se observam nas cidades que foram
fundadas e evoluiram sem as luzes e os conhecimentos que hoje possuímos.
(GODOY, 1923, p. 39).
A salubridade urbana coloca-se, então, em analogia com uma existência humana que
seja bem escoada pelas veias da cidade, que tenha todas as atividades e relações em
movimento contínuo, relações em fluxo para a não acumulação dos rastros e restos
produzidos pela vida moderna. A correção não é mais apenas de um modo de vida
ultrapassado, não seria apenas uma questão de hábito cultural, mas sim acessos, defeitos e
lacunas que devem ser superados.
Fato que nos oferece a ocasião de abordar o segundo grande objetivo da medicina
social, indicado por Michel Foucault (2004 [1979]). Lembremos antes que o primeiro deles
consiste na determinação dos lugares de acúmulo e amontoamento das coisas produtoras de
miasmas e doenças na cidade. Isto posto, o foco das artes de governar do Estado moderno
passa não mais pela defesa de um território e sua ampliação, mas pelos problemas da vida nas
e das cidades.
O segundo objetivo da medicina urbana seria então o problema da circulação como
deslocamento, como troca, como contato, como forma de dispersão, como forma de
distribuição artificial das coisas: o “controle da circulação. Não somente a circulação dos
indivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a água e o ar” (FOUCAULT, op.
cit., p. 90-91). Como descrito anteriormente, a compreensão de que o bom funcionamento da
cidade deve se inspirar nos sistemas circulatório e respiratório do corpo humano ajudará a
medicina social a eleger o ar e a água como os elementos principais para a faxina urbana.
Neste mesmo Primeiro Congresso de Higiene, o Dr. Octavio Ribeiro da Cunha, que
anota nessa ocasião algumas “Indicações para a remodelação das cidades” (CUNHA, 1923, p.
50-57), aponta, dentre as diversas funções da rua, as que interessariam à Higiene: “1º - a rua
conduz canalizações de água e esgoto; 2º - a rua desempenha uma funcção de reservatório de
ar e canalisação de ar e luz; 3º - a circulação nas ruas produz a contaminação de sua superfície
e de sua atmosphera” (Ibid., p. 50).
57
O autor alerta para o fato de que é pela rua que a contaminação se prolifera, tanto no ar
como no solo; é também onde se localizam as impurezas da vida urbana, e o transeunte, ao
entrar nos edifícios ou casas, leva consigo tais matérias mefíticas. A toalete das ruas é
imprescindível para o sucesso da higiene pública e individual e, deste modo, algumas
mudanças, que hoje nos parecem comuns ao cotidiano urbano, têm, neste argumento, seu
início: “A hygiene aconselha que a superfície da rua seja revestida de material impermeável;
que este produza o mínimo de poeiras por acção do transito; que a remoção dos detrictos seja
freqüente; que sejam freqüentes as irrigações e lavagens” (Ibid. p. 53).
Na produção de um ambiente urbano, a partir destas leis artificiais, tão importante
quanto o ar será a condução da luminosidade e, por sua vez, a manutenção destes dois ( ar e
luz) funcionaria como os bastiões da saúde individual. Observe-se esse fato no exemplo dado
pelo Dr. Octavio Ribeiro da Cunha, quanto ao problema da tuberculose, doença tão frequente
no período:
A resistência caprichosa da tuberculose a todos os agentes therapêuticos e o
modo quase obediente pelo qual ella cede terreno sob a acção do regimem ao
ar livre, parece uma insistência da natureza em querer demonstrar que a
principal causa do mal é inherente ás habitações insalubres, dentro das quaes
a maior parte dos homens consente, por ignorancia ou por necessidade, em
se privar da acção vivificadora das duas grandes fontes de saúde: ar e luz
(CUNHA,1923, p. 55).
“Sem habitação salubre não pode haver cidade salubre” (Ibid. p. 55) e o ar e a luz
serão as chaves para entrada dos instrumentos e procedimentos higienistas para qualquer
hábito da vida privada. Ordenações não apenas condizentes à via pública, mas também
resoluções sobre as construções das casas serão os primeiros passos dos higienistas para
operar no campo da vida individual. Neste passo, seria questão de tempo a determinação da
conduta de cada sujeito a respeito de suas responsabilidades e deveres perante a salubridade
da vida urbana.
O problema domiciliário seria, justamente, o último assunto tratado de forma bem
específica pelo tema da remodelação das cidades no Primeiro Congresso Brasileiro de
Hygiene. O Dr. Luiz Vianna (Adjunto de assistente da filial do Instituto Oswaldo Cruz no
Maranhão) irá alertar sobre as irregularidades das habitações de uma cidade que, conforme
afirma, estaria “dentre todas as cidades brasileiras, a que até agora melhor guardou a feição
colonial” (VIANNA, 1923, p. 60). Um dos maiores problemas que se destaca no artigo
ressalta a falta de janelas e entradas de luz nas “alcovas” e “quartos da puxada” (dormitórios
58
para hóspedes) das residências maranhenses. Apenas as cozinhas e varandas (salas de jantar)
possuem a ventilação e luminosidade adequadas.
O autor lamenta que, por impossibilidade financeira do Estado, não seria possível
destruir todas as casas para posterior construção e recomenda que, para as circunstâncias
apresentadas, algumas ações imediatas devem ser tomadas para amenizar o problema do
acúmulo de ar infecto nos cômodos privados: “a) Obrigar o destelhamento dos corredores que
tenham dois e mais metros de largura, transformando-se em áreas abertas, idea esta aplicável
ás casas de moradas inteiras e meias moradas; b) Impor as claraboias ventiladoras” (Ibid., p.
62).
Estes atos de obrigar e impor certas transformações estruturais nos domicílios,
edificações e vias públicas, para promover melhores condições de ventilação e luminosidade,
acabam por fabricar certas porosidades nos hábitos urbanos. A circulação de todas as coisas e
dos homens na cidade pede esta porosidade, esta organização e distribuição em permanente
movimento programado.
Mas, para programar tal distribuição e circulação das coisas da cidade, é preciso ainda
outra técnica de racionalização da vida humana. Uma técnica que permita calcular a produção
destes acúmulos, identificar seus nichos problemáticos e colocá-los em uma escala, para então
definir diferentes finalidades para cada nível ou tipo de manutenção que garanta a
harmonização dos fluxos urbanos.
Do mesmo modo, toda matéria orgânica e inorgânica descartada deverá ter seu exato
sistema de deslocamento e destinação. Os novos arranjos de circulação da vida urbana
defendem o impedimento dos acúmulos e a renovação constante. Quando o acúmulo, tanto de
pessoas como de seus restos, torna-se problemática da questão urbana, quando esta massa
putrescente encontra-se impregnada na sola dos sapatos de cada transeunte, toda uma
concepção de urbanidade acaba por ser pensada.
3.4 O cálculo da imundície
A sociedade moderna, ao adotar a cidade como seu meio de relação primordial e a
distribuição e circulação de coisas e de homens como modo de manutenção da vida humana,
exige para si o desenvolvimento de uma técnica para calcular e ordenar tal demanda. Neste
processo, a estatística19 aparece como a boa nova a serviço da razão governamental, que
19
O termo estatística surge da expressão em latim statisticum collegium, palestra sobre os assuntos do Estado, de
onde surgiu a palavra em língua italiana statista, que significa "homem de estado", ou político, e a
palavra alemã Statistik, designando a análise de dados sobre o Estado. A palavra foi proposta pela primeira vez
59
pretende observar, modelar, estimar e até prever as ações humanas de modo a direcioná-las
conforme certos interesses. Nesta sessão cabe indagar quais os efeitos de suas análises no
campo de resíduos urbanos.
Nesta mesma perspectiva, o Dr. Armando Godoy, em sua palestra intitulada “Algumas
ideas sobre a remodelação das cidades”, durante o I Congresso Brasileiro de Higiene (1923),
anuncia a importância da estatística como instrumento de inteligibilidade e organização dos
grandes centros urbanos, dado o atual nível de complexidade alcançado pela relação social a
partir da fixação das cidades:
Pois bem: não obstante a tarefa ser árdua e em extremo difficultosa, o
espírito humano entregou-se ao estudo da vida complexa dos grandes centros
urbanos e, graças ás observações que se accumularam desde os tempos
antigos, aos innumeros documentos que a historia nos offerece e sobretudo
aos dados que a estatística lhe vae dando, pode-se dizer, lançou com exito as
bases de uma nova sciencia, que já começou a fructificar e a prestar serviços
indiscutíveis á humanidade (GODOY, 1923, p. 39).
Para o autor, esta nova ciência será responsável por dar sentido aos acontecimentos,
fatos e documentos históricos, definindo-a como ferramenta necessária para o governo das
municipalidades e para prospecção da ação de Estado nestes territórios. Para Godoy, a
estatística coloca em relação e ordenação uma “existência desordenada e chaotica”, pois
“elementos que pareciam variar arbitrariamente, verificou-se que estão numa determinada
dependência em relação a certos factos” (GODOY, 1923, p.39).
Os cálculos estatísticos estariam a serviço do Estado para operacionalização destes
mecanismos de verificação e veridição que, por sua vez, proporcionaria todo um quadro de
visibilidade e enunciação acerca dos interesses sociais sobre a movimentação dos indivíduos:
“A estatística mostra que, por seus deslocamentos, por seus modos de agir, por sua atividade,
a população tem efeitos econômicos específicos” (FOUCAULT, 2008a, p. 139).
A estatística funciona como um mecanismo de inteligibilidade sobre os fenômenos
produzidos por este grande numerário populacional; leva em conta o “conjunto sem
descontinuidade, sem ruptura”, a fim de verificar nessa população qual é o coeficiente de
variação aceitável, isto é, o que é normalmente esperado em matéria de sua conduta. Como
conclui Foucault: “Vai-se ter, portanto, a curva normal, global, as diferentes curvas
no século XVII, em latim, por Schmeitzel, na Universidade de Jena e adotada pelo acadêmico alemão Godofredo
Achenwall. Aparece como vocabulário na Enciclopédia Britânica em 1797 e adquiriu o significado de coleta e
classificação de dados, no início do século XIX.
60
consideradas normais, e a técnica vai consistir em quê? Em procurar reduzir as normalidades
mais desfavoráveis, mais desviantes em relação à curva normal, geral, reduzi-las a essa curva
normal, geral” (2008a, p.82).
Ao retomar os estudos de Michel Foucault sobre o nascimento da medicina social,
chega-se a um terceiro objetivo fundamental para consolidação dos procedimentos de
intervenção da medicina urbana, conforme os preceitos higienistas. Nas duas sessões
anteriores foram analisados, primeiramente, os processos pelos quais a cidade se torna objeto
de governo no lugar das antigas dominações de território e, posteriormente, o modo pelo qual
esta racionalidade de governo não seria propriamente de impedir, mas controlar e limitar a
circulação das coisas na cidade. Neste momento, vê-se a organização de distribuições e
sequências, que consiste em alocar os diferentes elementos relacionados à vida comum da
cidade em lugares específicos, conforme as atribuições e funções (2004 [1979], p. 91).
Sobre tais mecanismos de veridição, em Segurança, Território, População, Michel
Foucault (2008a) também apresenta três modalidades de ação: 1) a inserção do fenômeno
numa série de acontecimentos prováveis, delimitada por um quadro de análise, demarcando
seu conjunto de risco, suas zonas de perigo, e a exemplificação de casos, a fim de estipular os
níveis possíveis de crises a serem evitados; 2) as reações a estes mecanismos de governo
entram em um cálculo de custo, o que permite um escalonamento destes custos por grupos de
indivíduos, áreas geográficas, níveis socioeconômicos, dentre outras variantes; 3) a este
sistema de veridição não é estipulada uma divisão binária entre o permitido e o proibido, mas,
ao contrário, “vai se fixar de um lado uma média considerada ótima e, depois, estabelecer os
limites do aceitável, além dos quais a coisa não deve ir”. O processo de instauração desta
“média considerada ótima” implica, justamente, a relação que se estabelece entre a
determinação do normal e, a partir desta, a dedução de normas e sua variação conforme os
“limites do aceitável” (p. 08-09).
A forma de operacionalizar tais mecanismos de veridição leva a outro ponto de análise
apresentado por Alcântara Machado (1917 [1915]). São estes os cálculos em que se
mencionam os custos dos hábitos citadinos, frente à manutenção da higiene pública, em
relação aos níveis de produção de lixo domiciliar: “A quantidade de lixo domiciliar varia
conforme a estação do anno e os hábitos e o modo de vida da população. Calcula-se em 25 a
35 toneladas o lixo domiciliar produzido por uma população de 100.000 almas” (p. 61). A
partir deste cálculo, pode-se prever a produção de lixo na capital que comportava na época
cerca de 300 mil habitantes: lixo domiciliar – 75 a 105 ton/dia; lixo das ruas 105 a 135
ton/dia, em tempo seco, e 300 a 540 ton/dia, em tempo de chuva (p. 61).
61
Na observância da situação do lixo das ruas, Machado apresenta alguns exemplos de
cidades alemãs e francesas em que o morador deve, além de recolher o lixo domiciliar, varrer
a via pública até a metade da rua a que pertence a fachada de sua casa. Sua tese se resume em:
“quem produz o lixo deve removê-lo, destrui-lo ou utilizá-lo, de forma que a sua permanência
na aglomeração urbana não venha a constituir uma fonte de incommodos para o próprio
produtor de lixo e para a comunhão” (MACHADO, 1917, p. 62-63). Por outro lado, Machado
alerta para o papel do Estado, no caso, os “poderes municipaes”, para o fato de que tal
atividade deve estar “sob a sua immediata direcção, fiscalização e responsabilização” (Ibid.,
p. 63).
Para ilustrar seu projeto de instauração de uma Taxa do Lixo, Alcantara Machado irá
apresentar um conjunto de estudos comparativos sobre determinadas cidades europeias e
americanas que demonstrariam os custos despendidos pela limpeza pública em referência ao
conjunto da população, conforme se vê no documento a seguir:
A análise da produção do lixo nas cidades e seus subsequentes procedimentos de
gestão terão como razão de cálculo o numerário populacional, referente às despesas com a
limpeza urbana e à produção per capta de resíduos. Neste estudo comparativo, não interessa,
ao propositor do projeto, mapear as possíveis proveniências ou provedores dos resíduos na
cidade, mas apenas impor seus custos à dimensão do indivíduo.
Com a exposição de tal quadro, Alcântara Machado argumenta, nos parágrafos
seguintes de seu Projeto de Lei, como a cidade de São Paulo destoa quanto a seu baixo
investimento na gestão da limpeza pública, em comparação a outras cidades de mesmo porte,
62
como Pitsburg, Detroit e Buffalo. A argumentação gira em torno da necessidade de a
população contribuir com uma quota que esteja vinculada com este cálculo sobre a produção
per capta de lixo, já que a cidade brasileira não dispõe da mesma receita pública que as
cidades apresentadas. Neste ínterim, surge a proposta chave para a efetivação de seu
raciocínio acerca da coleta e destino dos resíduos:
A solução natural, a solução que as circunstâncias indicam, a
solução acceita pela Camara na Legislatura de 1909, é a creação de uma taxa
especial.
A taxa é perfeitamente legitima. Conforme accentuámos há pouco, a
obrigação de remover e destruir o lixo incumbe de direito a quem o produz.
Por lei, a propria limpeza das ruas e passeios, no que diz respeito á
varredura, está a cargo dos moradores ribeirinhos. Pois bem: si, por motivos
de facil entendimento, a municipalidade toma a seu cargo a execução de uma
tarefa que compete aos municipes, nada mais justo, nada mais natural que
receber destes ultimos o que despende na execução do serviço (Ibid. p. 72).
A tentativa aqui é de naturalizar uma artificialidade, uma urgência exterior à condição
de existência do sujeito, produzida pelo Estado. A estratégia de produção desta artificialidade,
como elemento natural, passa pelo discurso da legitimidade e, portanto, pela produção da
limpeza urbana como verdade: nada mais natural, nada mais legítimo, que cobrar por este mal
causado pelo cidadão em relação ao espaço urbano e seus procedimentos de gestão pública. A
taxa implica atribuir um valor monetário à conduta humana, como uma espécie de
capitalização dos hábitos e modos de vida.
Este Projeto de Lei para Taxa Sanitária, apresentado à Câmara Municipal de São
Paulo, ao incidir sobre o lixo os refletores dos “Problemas Municipaes”, configura-se como
um diagnóstico sobre as mazelas sociais causadas por hábitos individuais ainda incivilizados.
Assim como anuncia o prólogo do referido documento, a higiene pública toma o corpo, as
relações e a conduta de cada habitante das cidades modernas como objetos de inscrição de
questionamentos e de suas proposições de intervenção. Atuar sobre a conduta humana para
reinscrevê-la na lógica do capital se apresenta, então, como objeto de governo. Tem-se,
portanto, a possibilidade de entender como funciona este cálculo específico sobre as relações
urbanas e suas emanações mefíticas.
Como já citado, para Machado, “a obrigação de remover e destruir o lixo incumbe de
direito a quem o produz” (Ibid. p. 72). Em nenhum momento se questiona o problema da
acumulação populacional como projeto do Estado Moderno, ou a forma de produção das
mercadorias, mas, em seu lugar, afirma-se a falta de adequação do cidadão a este modelo, ou
seja, uma matriz de individualização sobre quem se exerce o poder mediante a vigilância. No
63
caso em análise, o grande numerário populacional serve apenas como coeficiente de variação
para criação de parâmetros de custos da limpeza urbana e para fixação da taxa do lixo.
O escalonamento para cobrança da taxa baseia-se na relação das diferenças
financeiras. A escala terá como razão de cálculo o valor locativo das habitações: quanto maior
o valor de locação dos prédios e habitações, maior o valor do imposto a ser pago. Este valor
locativo é ainda avaliado conforme o que estabelece o imposto predial.
Art. 2º – Os predios de habitação pagarão a taxa annual de acôrdo com a
tabella seguinte:
Predios de valor locativo annual até. . .
1 :200$
12$000
Predios de valor locativo annual de mais de 1 :200$ a 1 :800$
l8$000
Predios de valor locativo annual de mais de 1 :200$ a 2 :400$
24$000
Predios de valor locativo annual de mais de 2 :400$ a 3: 000$
30$000
Predios de valor locativo annual de mais de 3 :000$ a 4 :000$
36$000
Predios de valor locativo annual de mais de 4 :000$ a 5 :000$
48$000
Predios de valor locativo annual de mais de 5 :000$ a 6 :000$
60$000
Predios de valor locativo annual de mais de 6 :000$
72$000
Após definir a propriedade como índice de variação para escalonamento da cobrança
do imposto, normas de conduta são definidas para a coleta dos resíduos domiciliares:
Art. 9º - O lixo retirado dos domicílios não poderá ser collocado nas ruas,
sinão à hora da passagem das carroças collectoras e em recipientes estanques
e cobertos.
Paragrapho 1º - A infração desse preceito legal será punida com a multa
de 10$000 e do dobro na reincidência.
Paragrapho 2º - A prefeitura fica autorisada a escolher um typo de
vasilhame para a collecta do lixo, adquirindo a quantidade necessária e
cedendo os recipientes aos particulares pelo preço de custo.
Art. 10 – Aquelles que não possuírem vasilhame estanque e coberto, terão
de aguardar a passagem dos carros colectores e entregar directametne ao
encarregado do serviço o lixo a remover, devidamente acondicionado.
Art. 11 – O contractante denunciará á Prefeitura todos os predios, de onde
não se faça a remoção do lixo por mais de 3 dias consecutivos.
A produção de uma norma de conduta, que se realiza como dever de cada cidadão,
implica a efetivação de um padrão, ou, ainda, de uma igualdade de conduta prevista, que terá
como objetivo o melhor funcionamento da cidade. Para isto, é instaurada a cobrança de
impostos alicerçada na criação de índices conforme o valor da propriedade de cada citadino e
que, portanto, se estabelece pela diferença de capital.
Instaura-se um padrão de conduta perante os restos urbanos que esteja em
conformidade com este novo utensílio: a lixeira. Mais do que a novidade deste utensílio nos
lares, edifícios e instituições públicas e privadas, o que se efetiva é a evidência de
64
procedimentos que ditam um novo valor de conduta, ou seja, a prática de cobrança de
impostos, não apenas por circulação de mercadorias, como também por modos de conduta dos
cidadãos.
Michel Foucault (2008a) apresenta alguns mecanismos de formação das normas que
regem o cotidiano das cidades, ao dissertar sobre certo modo de cálculo que tenha como
objetivo regulamentar os custos dos hábitos citadinos, em relação à manutenção da vida como
bem comum. Este mecanismo tende a funcionar como analisador de toda espécie de risco que
ameace não a existência de apenas um indivíduo, mas sim dos elementos que compõem a
população e a integridade das ações de Estado.
(...) o meio aparece como um campo de intervenção em que, em vez de
atingir os indivíduos como um conjunto de sujeitos de direito capazes de
ações voluntárias – o que acontecia no caso da soberania -, em vez de atingilos como uma multiplicidade de organismos, de corpos capazes de
desempenhos, e de desempenhos requeridos como na disciplina, vai-se
procurar atingir, precisamente, uma população. Ou seja, uma multiplicidade
de indivíduos que são e que só existem profunda, essencial, biologicamente
ligados à materialidade da qual existem (FOUCAULT, 2008a, p.27).
Não se trata de um dispositivo que atua apenas por instrumentos jurídicos, como se
poderia pensar a partir da proposição do referido Projeto de Lei. Muito menos se restringe
apenas a um dispositivo disciplinar sobre a ordenação de corpos e espaços. Seu campo de
poder se amplia ao meio, a tudo que nele circula e a tudo que nele se apresenta.
No caso em questão, a materialidade que forja esta ligação do indivíduo com o todo
populacional seriam justamente os modos de relação dos interesses que se efetuarão frente a
este novo objeto histórico: o lixo. Esta matéria deletéria produzida pelo morador das cidades –
e que pode efetivar patologias do coletivo urbano – convoca um modo de operar que coloca
em jogo o uso da liberdade individual em suas relações com a circulação livre dos elementos
que constituem os modos de ser da sociedade moderna. O trajeto indicado por estas práticas
de administração da conduta humana leva a entender como a liberdade de cada alma se torna
problemática para a alma da cidade.
A condição de existência destas individualidades seria, portanto, inscrever-se nos
cálculos de variações estatísticas que, por sua vez, determinam um coeficiente que possibilite
o movimento conjunto da população. A estatística produz uma inteligibilidade sobre os
modos de se exercer estas liberdades individuais, ao colocar a cidade como este coeficiente
ponderável. Um coeficiente, pois, inevitável de se ponderar, na medida em que as liberdades
65
na sociedade moderna devem respeitar os moldes deste contrato social da vida urbana para
darem a si condições de possibilidade de existência.
A cidade como locus de exercício e efetuação deste coeficiente das liberdades, sejam
elas dos homens ou das coisas, ou como coeficiente das variáveis da vida urbana, ou, ainda, a
cidade como coeficiente de variação, concretiza-se, fragmenta-se e multiplica-se em inúmeras
técnicas e procedimentos, de modo a adquirir amplitude suficiente para adentrar o domicílio,
fabricar os corpos e produzir desejos. Dentre os inúmeros mecanismos de gestão dos
elementos que compõem a população, interessa-nos, sobretudo, o lixo como objeto de
governo das condutas, que produziria uma técnica primordial e onipresente em nossos
hábitos: o lixão e a lixeira.
3.5 Jogar o lixo no lixo
Neste trabalho, o lixão e a lixeira, este recipiente quase mágico, que faz desaparecer o
pútrido e o inútil, funcionariam, então, como uma espécie de indexador das condutas. Um
objeto capaz de reduzir o mau cheiro dos acúmulos nauseabundos e esconder de nossos olhos
todas as inutilidades que se produzem na vida das cidades. Sua eficácia logo seria reconhecida
pelos citadinos, e estes recipientes estariam presentes na maioria dos hábitos cotidianos.
Alain Corbin (1987 [1982]) narra as transformações nos costumes dos europeus
durante a modernização dos centros urbanos. Um conjunto de novas condutas seria então
aplicado nas casas em busca de condições mais saudáveis para a vida coletiva. Projetos
urbanos que dissertam sobre as melhores formas de aprisionar e evacuar o lixo fazem da
individualização e privatização dos dejetos o novo objeto de conhecimento e intervenção
social. Algumas práticas versam sobre a instalação de caixas nos andares das casas, a
instalação de recipientes de ferro para o depósito dos lixos e a edificação de guaritas na frente
das casas para o acondicionamento dos sacos de lixo que ficarão à espera da coleta municipal
(p. 123). A gestão dos excrementos deveria ser realizada nas próprias casas com a criação de
fossas sépticas, pois todo particular deveria conservar seus excrementos para si mesmo (Ibid.
p. 83).
No Brasil, a tradicional lixeira nos cantos dos aposentos domiciliares era uma das
novidades da época. Em 1889, chegavam solicitações e projetos de vasos para guardar lixo à
Câmara dos Vereadores da cidade do Rio de Janeiro. Assim, o funileiro Antonio Ferreira
Martins Junior apresenta seu “systema de vasos de ferro ou de zinco, hermeticamente
fechadas e munidas de apparelho desinfectante, appropriadas para se guardar lixo e qualquer
66
materiaes em decomposição” (1889)20. O funileiro ainda alerta para a possibilidade de
variação no tamanho (10, 40, 60 ou mais litros) e para a funcionalidade do objeto em que o
lixo “ao sahir do vaso para a carroça da limpeza publica, sahe completamente desinfectada”
(1889)21.
FIGURA 1:VASILHAMES DE DIVERSOS TAMANHOS
Tão importante quanto retirar o lixo dos domicílios para garantir a salubridade do lar
e, por consequência, da cidade, será preservar os olhos e as narinas dos resultados da
putrescência humana. A produção desta intolerância ao imundo ganha um objeto que será um
dos símbolos mais presentes no cotidiano do sujeito moderno: a lixeira.
No âmbito das minuciosas práticas cotidianas e sob a égide de aparentes apelos
populares, vê-se consagrar a necessidade de o Rio de Janeiro protagonizar uma “evolução”
urbana em que se expurgariam os antigos hábitos insalubres do Brasil Imperial. No ano
seguinte à proclamação da República, a lixeira se torna um prenúncio do progresso que está
para acontecer. Mais que um emblema, ela é a prática silenciosa de uma ação de Estado que
20
21
Desenho e mais documentos sobre “vasos” para guardar lixo, no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro (1889).
Id. ibidem.
67
adentra os domicílios. O discurso higienista é objetivado neste compartimento destinado às
matérias fétidas, e seu poder de efetivação se apresenta nas deliberações do Poder Legislativo
Municipal. Os mecanismos de regulação serão as multas a quem ousar não aderir a esta nova
tecnologia de gestão do lixo urbano.
A criação deste escondedouro, portal de esquecimento das coisas inúteis, gera alguns
efeitos que se inscrevem nas relações humanas, a partir do advento desta tecnologia, que tem
o poder de fazer desaparecer o intolerável. Tais efeitos podem ser verificados em documentos
que falam sobre recomendações de uso e normas de conduta para a gestão do lixo caseiro.
Assim consta no “Projeto de postura sobre os resíduos ou lixo das cozinhas, das habitações e
estabelecimentos públicos ou particulares”:
Art. 1º - Os receptáculos (caixas, caixões ou baldes) em que nas
casas de habitações ou estabelecimentos públicos ou particulares se
depositarem os resíduos e lixos das cosinhas devem ter adaptado a respectiva
tampa e qualquer apparelho automático que sirva para desinfectar os
mesmos resíduos de lixo e que tenha sido aprovado pela Inspetoria Geral de
Hygiene.
Art. 2º - A falta do dito aparelho nas casas de habitações e
estabelecimentos públicos e particulares importará na multa de 5$000 e no
dobro na reincidência” (Inspetoria Geral de Hygiene, 1892).
Não basta recolher o lixo das casas; cada cidadão será responsável por escondê-lo,
desodorizá-lo, desinfetá-lo antes de sair pelas portas. A produção desta intolerância é
individualizada neste ato de jogar o lixo no lixo. A partir deste simples gesto, será possível
mensurar a conduta do sujeito conforme os índices criados pelo projeto de higienização das
cidades. E qualquer desvio a esta conduta terá suas ações indexadas e seus custos previstos
dentro de um repertório de sanções e punições.
A idéia de que cada um deverá cumprir com seu dever torna-se possível, não
primeiramente por um apelo popular, mas por um princípio de Estado que prioriza o
desenvolvimento urbano e, a partir de tal prerrogativa, considera a conduta humana como
instrumento para atingir suas metas de progresso. Conforme estas diretrizes, em que cada
cidadão compõe o coletivo urbano, fazer a sua parte torna-se essencial para a consolidação de
um projeto de cidade determinado por parâmetros artificiais e demarcado pelos saberes e
demandas da medicina social. O que se coloca como projeto exterior aos hábitos do indivíduo
agora se transmuta em conduta intrínseca à salubridade de seu corpo.
Trata-se de algo parecido com o que ocorria na Europa dos séculos XVI e XVII, como
ilustra Georges Vigarello em sua obra Lo sano y lo malsano: historia de las prácticas de La
68
salud desde La edad media hasta nuestros dias (2006). Neste estudo o autor demonstra como o
corpo tornou-se objeto de governo público; uma totalização dos corpos para a formação da res
publica, ou, como ele mesmo classifica “a ‘república’ do corpo”:
Surge así esta asociación tan frecuente en el siglo XVI entre el cuidado de la
salud y el “gobierno”, entre la conducta preventiva y el “comando”, la
distribución de principios sucesivos y subordinados. Tal es el título de un
tratado de La Framboisière, médico de cabecera del rey en 1600, Le
gouvernement nécessaire à chacun pour vivre longuement. La imagen no
revoluciona necesariamente las prácticas. Solamente muestra que el cuerpo
adquiere ahora una mayor perspectiva “organizadora”. La apropiación del
mismo se hace más específica, menos unida únicamente, en todo caso, a las
cualidades del universo (VIGARELLO, op. cit. p. 109).
A transformação de uma conduta não significa operar apenas a partir de restrições às
manifestações de ações condenáveis. Destacar e premiar a conduta que se pretende como
padrão é essencial para que se produza, no sujeito, o desejo de conduzir sua vida conforme as
normas da salubridade. Ao retomar os argumentos de Alcântara Machado sobre os
“Problemas Municipaes”, percebe-se um discurso inspirado pelas práticas européias e
americanas. O autor relata seus sistemas de premiação que “conferem prêmios aos quarteirões
em que o asseio é mais rigoroso”, pois deve estar na consciência de todos: “limpeza e
salubridade são termos de uma só equação” (1918 [1917], p. 60).
O Dr. Armando Godoy, ao dissertar sobre “algumas idéas para a remodelação das
cidades” (1923), também alerta para este procedimento característico às grandes cidades em
conceder prêmios para “se estimular o bom gosto esthetico”, no que diz respeito às
preocupações arquitetônicas e ao embelezamento das respectivas cidades (GODOY, 1923, p.
45).
Alcantara Machado apresenta ainda os patamares necessários para sinalizar a gestão
do lixo urbano como algo intrínseco aos hábitos e ao modo de vida da população: “Antes de
tudo, convêm fazer sentir à população que um dos seus deveres primordiaes é zelar pelo
asseio das ruas. Força é que ella renuncie a certos habitos, que muito depõem contra a nossa
educação hygienica e difficultam sobremodo a acção da municipalidade” (1918 [1917], p. 64).
Estas normas geradas por uma noção geral de povo recaem sobre os corpos dos
indivíduos, não apenas em seus aspectos biológicos, mas também políticos. A partir de então,
torna-se possível a realização de um cálculo sobre quais hábitos devem ser suprimidos por
dever primordial e por força de renúncia. Hábitos estes que, a partir de então, deporiam sobre
sua conduta e educação higiênica.
69
Com essas primeiras ações de convencimento do cidadão para mudança de sua
conduta, é possível perceber alguns efeitos. A população adota a lixeira como o canal de
liberação de seus hábitos mefíticos e reconhece em seus hábitos privados a salvação da vida
nas ruas. Em decorrência, como numa complementação do jogo entre público e privado, cobra
do Estado por melhoramentos da remoção do lixo de suas casas e das ruas. Nas colunas de
reclamações dos jornais, surgiam cartas dos leitores, charges e denúncias sobre um serviço de
limpeza precário ou, muitas vezes, inexistente.
FIGURA 2: A ‘LIMPESA’ DA CIDADE
Em São Paulo, a gestão da cidade era realizada pelo prefeito Antonio Prado, famoso
por suas reformas na área central da cidade no início do século XX. Foi nesta gestão que se
contratou uma empresa particular para fazer a limpeza da cidade com um acordo quase
vitalício. O contrato provocou ácidos comentários por parte da imprensa, pois a empresa,
terceirizada pelo prefeito, não varria nem recolhia o lixo de várias ruas da cidade (O Pirralho,
1912).
Nesta mesma direção, Alcântara Machado constata a efetividade da higiene pessoal e
privada para a manutenção da cidade, mas alerta: “por melhor que seja o systema adoptado no
serviço de limpeza propriamente urbana, o asseio das ruas será impossível, si for defeituoso o
serviço de collecta e transporte do lixo doméstico” (MACHADO, 1918 [1917], p. 60-61). Um
dos efeitos, portanto, seria esta espécie de naturalização de um conduta social expressada pelo
70
brado popular pela higiene coletiva e pela cobrança da eficiência da remoção dos restos
confinados em suas lixeiras.
O fato de a população agora protestar pela eficiência da remoção dos resíduos de suas
casas transforma-se aqui em analisador, que marca um modo de operar e forjar a conduta
humana: primeiramente, uma demanda é criada pela medicina social e transformada em
racionalidade de governo, ou, mais especificamente, neste caso, em meta de gestão pública;
em um segundo momento, esta mesma demanda é reificada pela produção das leis artificiais,
produtoras de uma reestruturação urbana, sendo inconcebível, ou mesmo insalubre e perigoso,
para a alma da cidade, pensar outro modo de existência contrário à orientação destes doutores
das almas (BAPTISTA, 1999, p. 62); e, agora, esta espécie de indexação do indivíduo no
registro das salubridades confina a ação do sujeito perante suas putrescências no interior das
lixeiras.
A ampliação das técnicas e procedimentos das cidades para a gestão de seus
insuportáveis encontra na gestão de resíduos um modo de indexação das condutas. A
produção dos dejetos deixa de ser efeito de um modelo urbano moderno, dos modos de
produção e de circulação de mercadorias e das aglomerações populacionais, e se torna
responsabilidade do indivíduo, impregnada em seus hábitos pútridos que ferem a “educação
hygienica e difficultam sobremodo a acção da municipalidade” (MACHADO, 1918 [1917], p.
64). Observa-se a continuidade de um movimento que transfere esta problemática, que
emerge a partir de um modo de gestão da produção de mercadorias no capitalismo e da
governamentalidade da vida pública, para as dimensões dos espaços privados, agora por meio
das ações individuais. A ação do sujeito sobre si mesmo, o governo de si, se estende para
além do cuidado com o corpo e adentra o campo moral ao questionar os hábitos e modos de
vida.
Jogar o lixo no lixo revela-se como um ato moral de respeito e cuidado com a cidade,
em que seus transgressores, além de punidos pelos departamentos de controle público, terão
sua ação condenada pelos cidadãos de bem. Mas este campo moral não se inscreve apenas nos
sujeitos que o respeitam e nele acreditam, senão também em seus próprios transgressores, que
terão ainda que prestar contas à própria consciência. O estudo da moral, como expõe Michel
Foucault, “deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de
transgressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo
que é explícita ou implicitamente dado em sua cultura, e do qual eles têm uma consciência
mais ou menos clara” (1998 [1984], p. 26).
71
Esta ação simboliza e materializa a prática higiênica, não mais apenas corporal, mas
agora também referente ao ambiente domiciliar e público, inscrita na conduta de cada
indivíduo, que passa a conduzir-se pelos códigos morais (Ibid., p.27). Desvela, ainda, a
produção de uma consciência que não se constrói a partir da experiência do sujeito em suas
relações reais, mas a partir de prescrições a priori norteadoras das ações em sociedade.
A conduta moral respeita um determinado interesse alheio às experiências do sujeito,
no entanto é nele que se efetivará. O resultado que se prospecta para a efetivação deste código
de conduta diz respeito a uma expectativa de gestão pública e a um projeto de Estado
Moderno em que os cidadãos, em princípio, não se reconhecem, mas que serão solicitados a
contribuir para seu desenvolvimento, de modo a possibilitarem um legado para o
melhoramento de sua espécie. Prova disto está na advertência de Alcantara Machado sobre o
perigo de certos hábitos individuais que depõem contra a “nossa” educação higiênica (1918
[1917], p. 64). Ao indivíduo resta então exercitar tais prescrições até chamar esta “nossa”
educação de “minha”, concretizando esta conduta moral em uma prática de si, ou seja, uma
“constituição de si enquanto ‘sujeito moral’, na qual o indivíduo circunscreve a parte dele
mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito
que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele
mesmo” (FOUCAULT, 1998 [1984], p. 28).
Aquele que não jogar o lixo no lixo será então condenado não apenas pelos preceitos
da medicina social, não apenas pelo Estado Nacional e suas expectativas de desenvolvimento
social, não apenas pelos seus vizinhos amigos e familiares, mas será, além de todos estes,
condenado pela própria consciência. A lixeira, como um testemunho de exercício de uma
consciência asséptica, trará ao público o resultado desta ação moral e será a unidade
balizadora de uma educação higiênica.
72
4. EDUCAÇÃO SANITÁRIA E PRODUÇÃO DA CONDUTA SAUDÁVEL
Foram apresentadas algumas diretrizes que relacionam o lixo como um dos efeitos das
problematizações criadas pelo desenvolvimento urbano na sociedade moderna, basicamente
pelos vetores da higiene pública e individual. A partir dos relatos de higienistas e
jurisprudentes brasileiros, foi possível descrever um conjunto de argumentos médicos e de
procedimentos urbanísticos que operariam na distribuição dos assuntos urbanos por meio de
leis artificiais. Novas determinações sobre a disposição de ruas, praças, edifícios públicos e
particulares e habitações colocam-se como prioridade em nome da salubridade coletiva.
Até o momento, as descrições sobre os procedimentos que aliam a gestão das
impurezas citadinas, dentre elas o lixo, se concentraram em ações que se localizam na
exterioridade das relações humanas. A remodelação das cidades, por meio da reforma das
ruas, adequações de edifícios e habitações e instalação das lixeiras, por mais que determine
um sentido de operacionalidade das ações higienistas que percorrem do ambiente público ao
privado, ainda não legisla sobre a necessidade de uma mudança maior na conduta do sujeito.
Neste ponto, cabe-nos indagar: como são estabelecidas estas normas de conduta para
que, além de possíveis e aceitáveis, tornem-se, até mesmo, desejáveis? Como garantir sua
efetividade no campo moral, para que se ultrapassem os limites, não apenas entre o público e
o privado, mas entre o público e a intimidade do sujeito, ou seja, como garantir os processos
de individualização de fenômenos coletivos?
O saber produzido pela medicina social avaliza um novo estatuto sobre a saúde e sua
relação entre o corpo e a cidade. Até o momento, tratou-se dos modos pelos quais a saúde
pública se torna problemática comum às cidades modernas; as práticas médicas, práticas
jurídicas e práticas urbanísticas tornam-se instrumento de operacionalização da limpeza
urbana (normas, taxas, multas, urbanismo e arquitetura), de modo a atuar nos hábitos e
costumes citadinos. Contudo, esta aparição da lixeira como um instrumento pedagógico para
aprimoramento de um cidadão, ao mesmo tempo responsável pela sua saúde e pela produção
da higiene como bem comum, impulsiona este estudo genealógico para outra ramificação
prático-discursiva determinante das relações humanas com os insuportáveis da vida urbana.
Assim como o uso da lixeira, outras práticas pedagógicas, como o asseio do corpo, a
dieta alimentar e o comedimento da vida serão articulados em uma proposta educacional mais
ampla, dando toques finais para o argumento de que a assepsia moral é não apenas necessária
como também natural ao desenvolvimento das cidades. Os componentes da vida urbana,
73
dentre eles o próprio sujeito, devem se ordenar conforme os preceitos jurídicos ou os da
medicina social, com a ressalva de que a base fundamental destes processos, o que os torna
operacionais, seja a concretização desta moralidade estatal.
Neste processo, serão colocadas algumas linhas gerais que permitirão localizar, em um
diagrama de análise, as experiências brasileiras, principalmente, na primeira metade do século
XX, que versam, justamente, sobre esta adequação das normas de Estado ao funcionamento
deste conjunto de individualidades agregado no espaço urbano.
Constam nos Anais do VII Congresso Brasileiro de Higiene, datado de 1943, artigos
científicos que comprovam a necessidade de se fazer com que a população, em geral, seja
educada para a produção de um sujeito e de uma sociedade assépticos. O tema deste evento da
sociedade médica brasileira seria então a Educação Sanitária.
Em todos os textos presentes neste documento, é indiscutível a proposição de soluções
efetivas do que, durante décadas, havia sido diagnosticado como um dos grandes males dos
aglomerados urbanos: a convivência com nossos dejetos, com nossas putrefações variadas,
com nossos miasmas microscópicos e seus riscos de contaminação. Mesmo com todo o
aparato jurídico apresentado anteriormente, o Estado percebe a necessidade de criar outro
conjunto de regras e normas menos impositivo aos cidadãos, que tivesse como prerrogativa
não a obediência, mas o protagonismo de um sujeito propositivo. Portanto, a problemática,
que agora desafia a ampla efetivação desta moralidade expurgada de seus germes deletérios,
será inscrever interesses e desejos mais profundos do indivíduo nos preceitos da higiene
individual e da saúde pública.
4.1 Educar para que todos desejem saúde e vida longa
Neste trajeto de produção de verdade, o citadino deixa de ver as normas como
imposição e acaba por, nelas, se reconhecer. Trata-se de um processo de individualização que
não contrapõe o interesse do Estado ao do indivíduo, mas, ao invés disto, desperta a
consciência de que “todos desejam saúde e vida longa”22. Se antes os hábitos higiênicos eram
práticas restritas às elites, agora a medicina social intervém pela sua disseminação nas classes
populares, profetizando que, se tal bandeira não for empunhada pelo Estado, a saúde pública
22
Esta afirmativa está contida no intróito do discurso proferido pelo Dr. Waldomiro de Oliveira (Diretor da
Secretaria da Higiene do Trabalho do Estado de São Paulo), intitulado Educação Sanitária na cooperação
médico-social, na ocasião do XVII Congresso Brasileiro de Hygiene (1943). Ele segue a afirmativa com um
protesto: “Todos desejam saúde e vida longa. Poucos praticam os meios suficientes para mantê-las ou melhorá-las. A saúde
não é levada em devida conta. É malbaratada. Porque não se a queira? Não. Porque se ignora, quais os meios defensivos, e
porque não foram adquiridos hábitos sadios. Desconhecendo o indivíduo os meios necessários à proteção da própria saúde,
não tem possibilidade de os empregar em benefício da família ou ao amparo coletivo” (1943, p. 60).
74
estaria constantemente comprometida (OLIVEIRA, 1943, p. 60). Surge então um
complemento tático à estratégia de esterilização das relações humanas com as coisas e os
homens na cidade: a produção do desejo por uma vida saudável, através do cultivo dos
hábitos higiênicos pela população da cidade.
Os médicos que ocupavam postos de destaque na gestão pública manifestaram seu
posicionamento no referido congresso. O Dr. Joaquim Novaes Bannitz23 irá atentar sobre a
importância de se recorrer a outros processos que não apenas aos impositivos do aparato
jurídico:
‘A educação é melhor que a legislação. Se é mais lenta, é, porém, mais
segura’. Isso porque, se a legislação só pode atingir um número
relativamente limitado de casos, com restrições de espaço e de tempo – e
grandes despesas de aplicação e fiscalização – a propaganda e educação
sanitária, muito mais fácil de estender e de intensificar, não encontra,
praticamente, limites para o seu alcance, tanto em superfície como em
profundidade. Ao mesmo tempo em que consolida conquistas já feitas,
elevando a consciência coletiva, realiza conquistas novas, numa progressão
em grande parte invisível, mas sempre ponderável. É uma espécie de ação
indireta, mas nem por isso deixa de ser fortemente persuasiva (p. 32).
O mesmo autor da afirmação de que todos desejam saúde e vida longa indica o
caminho para se obterem tais satisfações: a educação... mais lenta, porém mais segura. No
raciocínio de Bannitz, existe um cálculo sobre a produção de mecanismos e procedimentos de
saúde, por meio da educação sanitária. São apresentados os fatores ponderáveis para esta
espécie de estudo de viabilidade social da produção de saúde: o alcance populacional,
considerando não apenas quantidade numérica, mas também o alcance geográfico; o tempo
para obtenção de resultados satisfatórios para a efetivação de condutas saudáveis; custos de
aplicação da lei, vigilância e punição; e, talvez o mais interessante, a preocupação de que a
estratégia atue, tanto na superfície, como nas profundidades.
Mas podemos dizer que existe aí um paradoxo. A noção de profundidade das
estratégias de produção da saúde é exemplificada pela elevação da consciência coletiva, ou
seja, o modo de operar reflete uma profundidade da consciência que se estrutura nas relações
sociais e não apenas na intimidade do sujeito. Portanto, uma consciência coletiva que age na
superficialidade desta alma artificial, a cidade.
Em contraponto, a propaganda e a educação sanitária também atuariam na superfície
que, por sua vez, se caracteriza pela invisibilidade de seus efeitos. Para Bannitz, os efeitos da
23
Diretor da Secção de Propaganda e Educação Sanitária do Departamento de Saúde do Estado de São Paulo,
conforme constam nos Anais do VII Congresso Brasileiro de Higiene (1943).
75
superfície seriam menos visíveis se comparados às ações em profundidade, o que dá a
possibilidade de refletir sobre tal paradoxo e seus efeitos acerca da produção de hábitos e
modo de vidas saudáveis.
Michel Foucault, ao falar sobre teoria dos símbolos e técnicas de interpretação em
Marx, Freud e Nietzsche, analisa justamente como a prática de interpretação de símbolos que
se desenvolveram nas relações modernas ocidentais opera em uma noção rasa de
profundidade que se movimenta lateralmente, dada pela relação de semelhança entre os
símbolos e não de aprofundamento.
Há em Nietzsche uma crítica de profundidade ideal, da profundidade de
consciência, que denuncia como um invento de filósofos; esta profundidade
seria a procura pura e inferior da profundidade. Nietzsche denuncia
manifestamente que esta profundidade implica a resignação, a hipocrisia, a
máscara; ainda que o intérprete, quando recorre aos símbolos para denunciálos deva descender ao longo de uma linha vertical e mostrar que a
profundidade de integridade é realmente algo muito diferente do que parecia.
É necessário portanto, que o intérprete desça, que se converta, como disse
Nietzsche, no "bom escavador dos baixos fundos" (FOUCAULT, 1997
[1975], p. 18-19).
Foucault atenta para uma interpretação de símbolos que “escalonaram-se num espaço
mais diferenciado, partindo de uma dimensão do que poderíamos qualificar de profundidade,
sempre que não a considerássemos como interioridade, antes pelo contrário, exterioridade”
(FOUCAULT, 1997 [1975], p. 18). Uma profundidade rasa, que se produz pela exterioridade
do sujeito... esta é a compreensão que podemos trazer para a noção de consciência coletiva.
Mas o que significa, na produção da saúde, esta profundidade que se produz na exterioridade?
Bannitz, seguido de sua afirmação sobre o uso da propaganda na educação sanitária,
trabalha nesta produção da superficialidade, de uma lateralidade de ações indiretas para
atingir a consciência coletiva.
Ela pode, com certeza, ser multiplicada por outras ações do poder público,
de influência direta e imediata. E, ainda, na própria coletividade se
multiplica ainda mais, por ação do mesmo governo. Um folheto informativo,
um cartaz, um conselho de jornal ou de cinema e outras modalidades da
informação educativa podem ter seu preço unitário, material, aparentemente
alto, mas que pela variedade e abundância das pessoas catequizadas resulta
efetivamente barato (BANNITZ, 1943, p. 32).
Os equipamentos de propaganda apresentam-se como instrumentos de catequização da
população, para que seja convencida de que todos desejam saúde e vida longa. Ao contrário
76
de apresentar informações pertinentes para que o sujeito escolha entre uma vida longa e
saudável e outras possibilidades de existência, o autor oferece estratégias de catequização para
formar, justamente, o que Foucault chama de resignação, hipocrisia e máscara. Com o uso de
tais ferramentas, objetiva-se a disseminação de um discurso pronto a ser apenas executado.
O artigo científico Educação Sanitária, de Maria Junqueira (1943), dá voz ao discurso
da psicologia educacional, ao citar Noemy Silveira Rudolfer, uma das autoridades da área no
período: “Educação é aquêle processo pelo qual seres mais experimentados buscam orientar a
conduta de seres imaturos, ou menos experimentados, a fim de que objetivos desejáveis se
tornem normas habituais de conduta”. (p. 117, grifos nossos). Estes objetivos desejáveis não
remetem propriamente à ordem do indivíduo, mas a uma racionalidade de Estado que deve ser
inscrita na conduta humana. E, neste processo, o uso da propaganda e da educação sanitária é
realmente mais eficiente que as leis, pois operam em outra instância que não a relação
ordem/obediência, mas sim na relação educador/educando. A relação de poder que foi aqui
estabelecida não passa pela violência, mas sim pela pedagogia que deverá produzir certa
conduta desejável tendo a vida saudável como bem comum.
No que concerne à produção deste desejo, a saúde se alia à educação muito mais por
questões estratégicas do que por uma possível identidade ideológica. No lugar desta
identidade, podemos perceber uma racionalidade norteadora: a economia política que toma o
indivíduo como unidade populacional para se tornar objeto de gestão governamental.
Concomitante a tais discussões deste período, no início da década de 1930, na área da
educação em específico, surge o fenômeno da Escola Nova como movimento de intelectuais
brasileiros que pregam a necessidade de uma nova estrutura e de um sistema educacional no
país caracterizado pela laicidade, gratuidade e obrigatoriedade, para todos os cidadãos
brasileiros. Essa Escola Nova deveria, ainda, corresponder às novas demandas que se
apresentam no cotidiano, devido ao crescimento industrial e, consequentemente, urbano nas
capitais brasileiras.
O Movimento da Escola Nova, cujo Manifesto data de 1932, é tomado como
fundamento para um conceito de educação sustentado por três aspectos que compõem uma
inteligibilidade sobre o sujeito: o aspecto biológico, o aspecto social e o aspecto moral.
Conforme Lourenço Filho, um dos fundadores do movimento, citado por Junqueira: “Educar
é dirigir, inteligentemente, o desenvolvimento integral e natural do ser humano em cada uma
das etapas do seu crescimento” (JUNQUEIRA, 1943, p. 117).
Tais proposições tiveram como efeito a popularização das instituições educacionais e,
por este motivo, se tornaram instrumento ideal para a proposta moderna de saúde pública e
77
sua intervenção no corpo do indivíduo. Aqui a escola servirá como catalisadora em massa do
discurso sanitarista.
Em síntese, a autora define o conceito de Educação como: “(...) o processo que visa a
formação de hábitos e consciência, pelo bem do indivíduo, da família e da coletividade. E, no
conceito de eminente educador [Lourenço Filho]: ‘Educar é preparar, para a vida
completa, o homem em formação, corrigindo-lhe as anomalias e superiorizando-lhe as
funções normais’”. (Ibid., p. 118, grifo da autora).
A educação se coloca como um coeficiente normalizador que atua nos campos
biológico, social e moral, de modo a identificar e corrigir as anomalias que contrastam com
um padrão de conduta social desejável à proposta de Educação Sanitária. E este indivíduo a
corrigir, aparentemente execrado, será uma das principais balizas para delimitar e adestrar um
conjunto de ações mais amplo e, por vezes, menos visível que os mecanismos jurídicos.
Quem nos apresenta esta proposta de análise é Michel Foucault (1997 [1976]), quando, em
seu curso no Collège de France, realiza uma genealogia das práticas sobre os anormais, em
que descreve os três personagens principais para sua demarcação: o monstro humano, o
indivíduo a corrigir e o masturbador. Sobre este elemento incorrigível o autor analisa:
O indivíduo a corrigir. É um personagem mais recente que o monstro. É
mais o correlato das técnicas de adestramento, com suas exigências próprias,
do que dos imperativos da lei e das formas canônicas da natureza. O
aparecimento do “incorrigível” é contemporâneo do estabelecimento das
técnicas de disciplina, a que se assiste durante os séculos XVII e XVIII – no
exército, nas escolas, nos ateliês, e depois, um pouco mais tarde, nas próprias
famílias. Os novos procedimentos de adestramento do corpo, do
comportamento, das aptidões engendram o problema daqueles que escapam
dessa normatividade, que não é mais a soberania da lei (FOUCAULT, 1997
[1976], p. 62-63).
A escola, este lugar de confinamento de crianças e adolescentes, será considerada o
melhor ambiente para a aprendizagem dos novos comportamentos para a promoção da
salubridade social. E no Brasil, a Escola Nova, agora gratuita e obrigatória, poderia ser
apropriada para, além de instruir, adestrar esta faixa etária fundamental para o
amadurecimento de uma cidade mais salubre. Menos violenta que os procedimentos
judiciários, a prática do adestramento realiza um tipo de intervenção em larga escala. As
práticas de governo deixam de atuar apenas naqueles que transgridem a lei, mas, além deste
nível, trabalha com a virtualidade do incorrigível.
78
Sendo assim, a autora sintetiza a direção de sentido do conceito de Educação Sanitária
em função das atribuições de seus atores, o educador e o educando, tendo a Escola Nova
como o circuito de efetivação de suas práticas discursivas:
A ‘Escola Nova’ responsabilizava o educador pelo aperfeiçoamento de suas
técnicas, por um melhor conhecimento da natureza e necessidades do
educando, ante os progressos das ciências biológicas, psicológicas,
pedagógicas e sociais. Ao educador consciente do valor “saúde”, como base
da educação e do rendimento escolar, atribui-se, também, a incumbência de,
socializando a escola, cooperar com as organizações de saúde. Sob essas
duas “mobilizações” do campo educacional e do campo da saúde, preparouse a educadora sanitária (JUNQUEIRA, 1943, p. 120).
Neste espaço educacional, serão aplicados os estatutos e as normas de conduta social e
produzidas as condutas que representem a moral das cidades modernas. Mas a possibilidade
de se aliar a educação à saúde parece ampliar ainda mais estes lugares de enunciação e
adestramento. Pensando desta forma, Maria Junqueira destaca a força e a eficiência de tal
aliança.
Dentro do período de desenvolvimento, nenhuma idade é, propriamente, a
melhor para a educação. Há quem diga ser a escola primária o campo mais
propício à educação sanitária. (...) Nela, porém, só se alcança, diretamente, a
criança entre 7 e 14 anos. E o educando, já se afirmou, é a criança, em todas
as idades, e é o adolescente. Tanto quanto a escola, pois, são também
propícios outros campos – e entre eles, como campo principal, os Centros de
Saúde – onde se atinge o ser humano antes de nascer, na primeira infância,
nas idades pré-escolar e escolar e na adolescência. Tôdas essas idades devem
interessar à ação educativa que varia, em processos, em aspectos e em
amplitude, de acordo com as necessidades, os interesses, as características e
a compreensão dos educandos. Se a educação da criança se inicia com a
aquisição inconsciente de hábitos graças à interferência de outrem, depois da
primeira infância, surge o consentimento do educando aos seus atos, o que
constitui, então a essência do processo educativo, e proporciona,
progressivamente, a formação da consciência sanitária. (JUNQUEIRA,
1943, 119, grifos da autora).
Nesta proposta de circunscrição da conduta humana por meio da educação sanitária,
nota-se um mecanismo de produção “inconsciente de hábitos graças à interferência de
outrem” para chegar, posteriormente, à “formação da consciência sanitária”. Se a essência do
processo educativo é o consentimento de hábitos adquiridos, a produção de tais hábitos pode
ser motivada pelo dispositivo da saúde durante o período de desenvolvimento pré-escolar, ou
até mesmo no período de gestação. Atua, portanto, direto no corpo e nos modos de vida; seria
talvez esta a compreensão do conceito de inconsciente para Junqueira.
79
Georges Vigarello ressalta este movimento de uma pedagogia reativa que cultiva o
terror pelas mazelas da vida insana, frente às promessas da vida sã pelo progresso da
modernidade, o que permite indagar, inclusive, sobre a pressa em se inscreverem tais
prescrições pedagógicas no indivíduo antes da idade escolar: “(…) las prácticas educativas
resumen las expectativas del endurecimiento en el siglo XVIII. Aún más, son las que le dan su
verdadero sentido: inversión en el perfeccionamiento y en el futuro. Acaso las debilidades no
comienzan a manifestarse en los primeros años de vida?” (2006, p. 217). O autor ainda
discorre sobre a eficácia de uma pedagogia asséptica da infância, numa dimensão até mesmo
de produção de novos corpos... os corpos da modernidade:
En los niños, sobre todo, se imponen estas prácticas novedosas del siglo
XVIII. La protección del cuerpo está así directamente ligada al desarrollo de
una fuerza y a su acción. La salud pasa a ser un motivo de ejercicio. El
cuerpo debe actuar sobre sí mismo: ‘el arte de la educación es en cierto
modo el arte de sustituir un cuerpo por otro’. (VIGARELLO, 2006, p. 218).
A essência do processo educativo estaria, portanto, em uma ação anterior às
instituições educacionais, anterior à consciência sanitária. A produção deste projeto de
Estado, determinado pela medicina higienista, submete o indivíduo ao contexto geral das
cidades e, deste modo, o inscreve em um campo de possibilidades restrito às normas da saúde
coletiva.
Junqueira continua a dar extensões sociais aos limites do corpo e define a saúde como
sendo “um estado de completo bem estar físico, mental e social e não somente a ausência de
enfermidades. (...) Saúde é a conformidade da criatura humana com as leis de conservação e
desenvolvimento individual e social” (JUNQUEIRA, 1943, 118). Nesta mesma lógica, a
“Educação Sanitária consiste na mudança que ocorre no organismo em si e que guarda relação
com a obtenção das metas de saúde individual e coletiva” (NYSWANDER, apud.
JUNQUEIRA, 1943, p. 118).
Determina-se, por fim, que seja “tarefa dos educadores: normalizar e aperfeiçoar o ser
humano e defender a saúde individual e coletiva” (Ibid., p. 121). A educação aliada à saúde
vai além dos procedimentos de normatização, de discussão das condutas morais, pois a
Educação Sanitária irá discursar sobre a normalidade biológica, irá traçar os critérios do
funcionamento normal do e para o organismo; de todo um meio ideal para que o ser humano
possa evoluir de forma saudável e dar as melhores condições para um amadurecimento social.
80
4.2 Educação (popular) Sanitária
Neste ponto, em que se coloca a Educação Sanitária como um princípio norteador para
a evolução humana, aponta-se a necessidade de ultrapassar os métodos da educação
disciplinar convencional e adentrar as microrrelações construídas no cotidiano. Assim como o
corpo ganha as extensões da urbs, a educação se estenderá para além dos muros das escolas,
conduzida pela necessidade, ao mesmo tempo, biológica e social da saúde coletiva.
Neste ínterim, a produção de um sentimento de participação e pertença para a
construção da norma configura-se como princípio de intervenção da Educação Sanitária, para
alcançar a população em massa. Neste esquema, em que a experiência educacional não se
bastaria apenas na relação de ensino do educador para o educando, seria preciso investir em
técnicas que permitissem ao educando interessar-se pela aprendizagem em questão, ou seja,
torná-lo um sujeito propositivo para o aprimoramento de hábitos sadios.
Georges Vigarello (2006) cita como exemplo deste processo de popularização das
práticas de higiene ocorridas na Europa o uso de almanaques para difundir os hábitos
saudáveis aos habitantes das cidades do século XVII:
En este ámbito popular, muy pocas veces se mencionan detalles sobre la
calidad de los alimentos; y es totalmente novedosa la insistencia sobre la
moderación al comer y el control de las cantidades. Ésta es la originalidad de
esta literatura hecha para el pueblo: la instauración más profunda de un
control, de un alejamiento explícito de sensibilidades seducidas, desde
antiguo, por la alimentación excesiva y las ingestiones protectoras. La
literatura ambulante aporta una innovación en las prácticas de los más
humildes (VIGARELLO, 2006, p. 146).
No Brasil, um novo discurso sobre a educação seria forjado na tentativa de responder a
tais interesses. Assim, a Superintendente das Educadoras Sanitárias da capital paulista
apresenta a nova questão que seria mais condizente com esta proposta: “é a educação sanitária
sinônimo de ensino de saúde, ou é a educação sanitária um processo de aprendizagem (de
autopreparação)? Ensino e aprendizagem não são o mesmo. A aprendizagem só ocorre por
meio do esforço do aprendiz...” (NYSWANDER, citado por JUNQUEIRA, 1943, p. 118).
A Educação Sanitária se apresenta então como atividade de aprendizagem e não de
ensino e, assim circunscrita, o esforço e a participação do indivíduo são primordiais para o
sucesso pedagógico. A relação estabelecida para atendimento de uma demanda de Estado não
tem sua iniciativa nos próprios procedimentos estatais, mas, ao contrário, em ações ou
práticas provenientes das alianças com outras instituições e da conduta de cada indivíduo da
cidade. Há, portanto, uma inversão na relação de poder; o discurso sobre a eficiência na
81
construção de uma sociedade saudável e produtiva é defendida pelo Estado e pronunciada
pelo saber da medicina social. No entanto, as práticas de Educação Sanitária devem ser não
apenas de iniciativa da esfera pública, mas, principalmente, realizadas por iniciativa e esforço
da população.
Se o poder só existe em ato, ele é uma ação sobre a ação dos outros, e esta é a
especificidade das relações de poder para o governo das populações (FOUCAULT, In:
DREYFUS e RABINOW, 1995, p. 242). A positividade do exercício do poder inscrita em um
conjunto de ações afirmativas – e não apenas pela violência, negação ou consentimento – faz
referência à análise de Foucault sobre o sujeito como objeto de poder.
O funcionamento das relações de poder, evidentemente, não é uma
exclusividade do uso da violência mais do que da aquisição dos
consentimentos; nenhum exercício de poder pode, sem dúvida, dispensar um
ou outro e freqüentemente os dois ao mesmo tempo. Porém, se eles são
instrumentos ou efeitos, não constituem, contudo, seu princípio ou sua
natureza. (...) Ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera
sobre o campo de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos
sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia
ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede
absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários
sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação
sobre ações (Ibid., p.243).
Os custos da liberdade implicam calcular a amplitude deste campo de possíveis, de
modo a considerar a liberdade como um coeficiente de variação no interior das curvas de
normalidade econômica. Para que este cálculo das probabilidades se realize, faz-se necessário
incitar a idéia de liberdade, essencial para a produção de processos democráticos, e tornar
acessível aos agentes de transformação social os elementos que constituem a população. É
preciso perceber – e trazer para a análise – suas ações e reações; as formas de aderência e
resistência; seus efeitos e suas respostas. “O exercício do poder consiste em ‘conduzir
condutas’ e em ordenar a probabilidade. O poder, no fundo, é menos da ordem do
afrontamento entre dois adversários, ou do vínculo de um com relação ao outro, do que da
ordem do ‘governo’” (Ibid., p. 244).
Neste rumo, as oportunidades de ação para o educador não se restringem apenas aos
interiores das escolas tradicionais; mais do que isto, ao se afirmarem como um processo
educativo de caráter popular, circulam em uma infinidade de experiências formativas da
conduta humana. Seu campo de atuação se multiplica em diferentes grupos de educandos
como “cursos de cunho prático de higiene pré-nupcial, pré-natal, puericultura, epidemiologia,
82
enfermagem caseira, economia doméstica, ação educacional no lar”; e em centros de
convivência de diferentes grupos como os “‘centros para mães’, ‘centros para noivas’,
‘centros infantis e juvenis’, ‘centro para débeis’, cujos programas, essencialmente práticos,
se desenvolvem em torno do problema da saúde” (JUNQUEIRA, 1943, p. 122, grifo meu).
De caráter popular, prático e de acordo com as necessidades e experiências dos
educandos, o saber da medicina social produz os moldes de uma educação multiplicadora de
condutas que ultrapassa os moldes da escola e se efetiva a partir das experiências e “das
oportunidades naturais da vida doméstica” (JUNQUEIRA, 1943, p. 122).
Esta pedagogia popular da Educação Sanitária aparece como consenso em vários
artigos apresentados pelas autoridades que palestraram no XII Congresso Brasileiro de
Higiene. O educador teria a responsabilidade de entrar em contato com o interesse do
educando e, ainda, objetivar a inclusão das populações marginais neste processo (COSTA
SOBRINHO, 1943, p. 95). Para isto, convém utilizar meios alternativos como cinema,
jornais, propagandas e outros complementos nacionais para a reprodução de cenas que
envolvam o tema de educação sanitária popular e a criação de normas de educação sanitária
de natureza popular (FAILLACE & MICHELL, 1943, p. 45). A educação sanitária só
ganharia resultados mais efetivos pautada na experiência com pequenos grupos e ganharia “a
amplitude necessária nas classes populares” para alcançar uma “educação sanitária das
massas” (OLIVEIRA, 1943, p. 60 e 63), pois a “educação do povo nos princípios de uma vida
sadia e na prevenção de doenças é a mais importante função dos Departamentos de Saúde”
(SOUZA, 1943, p. 113).
Deste modo, esboça-se uma “pedagogia popular da higiene pessoal” (CORBIN, 1987
[1982], 98), em que a produção de uma consciência sanitária se desenvolve não mais pela
obediência às normas, mas por uma interiorização dos conteúdos constitutivos do campo
normativo que instituiriam um desejo de assepsia. Somente deste modo o cidadão se
mobilizaria para mudar seus hábitos conforme os preceitos da higiene em aderência a uma
proposta de saúde pública.
Com destas definições, em que se faz necessária a difusão do saber higienista das
camadas populares, a partir de seu consentimento e, principalmente, de sua participação, de
sua ação sobre sua própria conduta e o dos outros, toma-se um conceito definitivo de
Educação Sanitária proposto por Junqueira: “(...) é o processo pelo qual, sob influências
planejadas, se formam hábitos e consciências, com o fim de obter, para os seres humanos,
saúde ao nascer e condições propícias à sua defesa e ao seu aperfeiçoamento” (1943, p.118).
83
4.3 A produção de um corpo “biossocial”
Em outro artigo, J. da Costa Sobrinho, Assistente da Faculdade de Higiene e Saúde
Pública de São Paulo, ao falar da Educação Sanitária também apresenta sua concepção de
aperfeiçoamento da condição humana:
A cultura não é apenas o aperfeiçoamento moral de um povo; é tudo o que
dele emana. As idéias, as belas artes, os hábitos e costumes, as construções
materiais por êle ideadas e realizadas, constituem índices ou parte integrante
da cultura. É nesse sentido, que os selvagens também dispõem da cultura. A
civilização nada mais é que um estado de adiantamento da cultura. Será, pois
progredindo através dos seus índices culturais, que um povo poderá atingir o
grau de civilizado. Donde conclui-se que, “cidade limpa” nem sempre é uma
“cidade civilizada”, como simplesmente quer a Prefeitura Paulistana! Como
avaliar-se o desenvolvimento e o progresso da nossa cultura? (1943, p. 91)
Os hábitos e costumes se transformam em índices culturais tendo como quadro de
análise o estágio de desenvolvimento das cidades. Este preceito fundamenta a ideia de
limpeza urbana num sentido muito mais amplo que a mera ausência de sujeira. Não se trata
apenas do asseio do corpo e das ruas, mas também de uma atuação do sujeito em suas
expressões criativas, suas relações cotidianas que constroem um campo moral a partir do qual
se constituirá como sujeito moral de suas ações e de seus modos de produção de vida.
Para tanto, a proposta da medicina social implica a produção de padrões de hábitos,
costumes e valores saudáveis, em que a educação terá a função de intervir na “formação
natural do homem”, já que somente a produção de tais parâmetros possibilitaria “viver-se bem
em grupo e em sociedade” (SOBRINHO, 1943, p. 92).
Mais do que apenas intervir na formação do homem, a educação sanitária o produz:
“(...) ‘o homem não nasce humano’. É, entretanto, desde o nascer, submetido a um contínuo
processo de condicionamento e recondicionamento no lar, na escola e na sociedade, até
adquirir as características de ser humano”; e acrescenta: “(...) o homem deve ser educado,
para poder ser útil a si próprio e à sociedade” (SOBRINHO, 1943, p. 92). Esta concepção, de
que o processo de humanização acontece a partir de mecanismos da educação, nos leva a uma
discussão fundamental sobre a produção do sujeito e suas condições de experiências na
modernidade.
De fato, a Educação Sanitária trabalha por diferentes aspectos da vida humana e
recorre a diversas instâncias de produção de verdade, sem, no entanto, se filiar totalmente,
como, por exemplo, ao discurso estritamente biológico. O homem é forjado conforme as
demandas de sua coletividade e o tempo histórico em que tais demandas se dão, e os destinos
84
da ordem e do progresso subentendem a participação e o protagonismo deste corpo agora
educado. No entanto, ao dar prosseguimento às reflexões referendadas, percebe-se qual o fator
principal, o denominador comum, a escala que baliza estes índices culturais expressos nos
hábitos e costumes humanos:
Na gama dos serviços sociais, é fora de dúvida, que o problema da saúde,
deve ser considerado em primeiro lugar; pois que o homem doente não é
apenas peso morto, mas estorvo à sua família e sobrecarga à sociedade. O
homem deve se esforçar para se manter sadio, a fim de poder ser sempre útil
aos seus semelhantes. Cabe à escola, a nobre missão de incutir na mente dos
jovens, a necessidade de cuidados pela preservação da saúde, tendo como
fim o bem estar próprio e o da sociedade (COSTA SOBRINHO, 1943, p.
92).
Na medicina social, o discurso biológico não adquire status de verdade isoladamente,
mas legitima-se a partir de alianças que realiza com as demandas sociais da organização do
Estado Moderno. O desenvolvimento da integridade humana respeita um cálculo
fundamental: o da produtividade para o bem estar próprio e da sociedade, que se vê
representada por uma razão de prosperidade do Estado Nação. O projeto de um ser humano
saudável submete-se à concepção da sociedade produtiva em que o seu contrário representaria
um fardo não apenas para si, como também para todos; e, se representa este estorvo e
sobrecarga para a sociedade, todos têm o direito de cobrar sua saúde e utilidade. Neste
sentido, ao habitante da cidade dá-se o direito de intervir nos hábitos de qualquer cidadão em
nome desta sociedade produtiva e da evolução e felicidade da sociedade.
A formação desta racionalidade produz-se a partir de práticas saudáveis que reclamam
para si o caminho para o aperfeiçoamento, não apenas do indivíduo, mas também da condição
humana. Traz ainda consigo a promessa de uma felicidade que trará “entendimento, ordem,
segurança, confôrto e progresso cultural” (Ibid., p. 92). O autor ainda se ancora nas
determinações da Organização Mundial da Saúde (O. M. S.), que consideram a saúde como o
primeiro dos “princípios fundamentais para a consecução da ‘felicidade de todos os povos,
para a harmonia de suas relações e para a sua segurança’” (Ibid., 1943, p. 92).
A felicidade se torna um eixo de afirmação de um sofisticado método de emprego da
afetividade para nortear e fixar a atenção na Educação Sanitária. A felicidade torna-se, pois, a
expressão de uma afecção que se realiza no desenvolvimento de uma personalidade biosocial, que elege como campo de atuação a “individualidade humana, útil a si mesma e apta a
cooperar para a melhoria da sociedade, progresso da cultura e felicidade do povo” (Ibid. 95).
85
Nesta afirmação de uma personalidade que se constitui a partir de uma concepção de
individualidade em relação com a exterioridade dos interesses públicos:
(...) a personalidade, ao contrário do caráter individual, é controlada pela
autoconsciência. O controle que o indivíduo praticava com relação ao seu
caráter natural era a moderação de seus desejos; se agisse de certa maneira,
modestamente, estaria apenas dirigindo-se na direção do seu caráter natural.
A personalidade não pode ser controlada pela ação: as circunstâncias podem
forçar as aparências e então desestabilizar o eu. A única forma de controle
está na atenção constante dada à formulação daquilo que a pessoa sente. (...)
A tomada de consciência, segundo esse esquema, se segue sempre à
expressão emocional (SENNETT, 1988 [1974], p. 192-193).
Neste modo de funcionamento, ao mesmo tempo em que se afirma a estrutura da
personalidade como campo de diferenciação no espaço público, também a coloca como objeto
de conhecimento e de controle, para a manifestação do caráter, conforme as normas sociais.
Nesta leitura, o controle desta tomada de uma consciência social se torna o balizador de uma
subjetividade saudável. A personalidade se tornará o campo de afirmação das diferenças
individuais, todavia, tais diferenças encontram-se estandardizadas pela produção de normas
que propõem uma racionalidade de Estado. Na produção deste paradoxo, entre diferença e
normalização, localiza-se o desejo. O desejo, o jogo entre os interesses do indivíduo e os da
população, é a porta de entrada da governamentalidade moderna.
Esta produção de desejo não se origina na interioridade de um sujeito e sim, se realiza
no plano da exterioridade e revela outra dimensão das relações de poder, que ultrapassa as
tecnologias jurídicas e disciplinares. Trata-se, como visto, de uma relação que questiona a
natureza humana e, mais ainda, uma natureza do gênero humano em relação às experiências
dos aglomerados populacionais. Sobre tal processo, Michel Foucault propõe algumas questões
genealógicas, se assim puderem ser chamadas:
Mas o que significa essa naturalidade da população? O que faz que a
população, a partir desse momento, seja percebida, não a partir da noção
jurídico-política de sujeito, mas como uma espécie de objeto técnico-político
de uma gestão de um governo? O que é essa naturalidade? (FOUCAULT,
2008a, p.92).
Foucault indica, primeiramente, a abordagem deste governo das populações sem
entendê-la apenas como um conjunto de indivíduos, mas, principalmente, pela eleição de
certas variáveis que possibilitam ao Estado, soberano, atuar indiretamente na conduta do
indivíduo. Trata-se de eleger fatores externos ao sujeito, mas que seja inerente ao seu modo de
86
vida. Deste modo, a atuação não ficará caracterizada por uma intervenção direta e, ao cidadão,
não implicará uma obediência explícita. Nas palavras do autor:
A população é um dado que depende de toda uma série de variáveis que
fazem que ela não possa ser transparente à ação do soberano, ou ainda que a
relação entre a população e o soberano não possa ser simplesmente da ordem
da obediência ou da recusa da obediência, da obediência ou da revolta. (...)
O limite da lei, enquanto só se considerar a lei soberano-súdito, é a
desobediência do súdito, é o “não” oposto pelo súdito ao soberano. Mas,
quando se trata da relação entre o governo e a população, o limite do que é
decidido pelo soberano ou pelo governo não é necessariamente a recusa das
pessoas às quais ele se dirige (Ibid., p. 93).
Quando sob a lei impera determinada ordem, o limite desta circunscrição encontra-se
facilmente demarcado pela desordem e, por sua vez, identificar e ultrapassar tal limite se torna
um tanto programável. No entanto, adotar as variáveis, como este campo a ser governado,
significa tomar a imprevisibilidade da vida como objeto de intervenção de poder. Trata-se da
descrição e manutenção da vida, inclusive de suas expressões caóticas, desordenadas e, até
mesmo, putrefatas. Tem-se, assim, uma idéia desta natureza da vida humana que se coloca
como campo de intervenção. Essa natureza é constantemente mensurada, avaliada e,
posteriormente, define seus padrões normais ou ótimos para a governamentalidade, que, em
seguida, são replicados como uma variabilidade de condutas possíveis para a boa manutenção
da vida. Produz-se, portanto, uma artificialidade de padrões que penetram na naturalidade da
vida humana (Ibid., p. 93-95).
Estabelecido o plano de intervenção em que se consideram as variáveis de relações
humanas em seu meio, investiga-se por quais caminhos estas relações de poder poderão se
exercer e se efetivar na naturalidade do indivíduo: “afinal de contas, essa população é
evidentemente feita de indivíduos, de indivíduos perfeitamente diferentes uns dos outros, cujo
comportamento, pelo menos dentro de certos limites, não se pode prever exatamente” (Ibid.,
p. 95).
É então que a problemática do desejo, inicialmente apresentada neste tópico e agora
oportunamente resgatada, entra como foco destas diretrizes para a manutenção de um
conjunto de relações de poder que se exerce no governo das populações. Nesta reflexão sobre
a produção dos dispositivos característicos ao bom funcionamento das cidades modernas, temse a realidade das cidades, com seu grande numerário populacional, que se aliança ao discurso
das individualidades para executar uma arquitetura urbana de circulação das massas.
87
Esse processo se concretiza na superficialidade de suas relações e as aprofunda na
intensidade dos desejos, ao ponto de dar a impressão de que as escolhas são feitas
aleatoriamente, mas que, ao contrário, se mostram previstas num conjunto de possíveis.
Retomando as proposições de Foucault sobre a produção do desejo na exterioridade do
sujeito:
(...) existe, de acordo com os primeiros teóricos da população no século
XVIII, pelo menos uma variante que faz que a população tomada em seu
conjunto tenha um motor de ação, e só um. Esse motor de ação é o desejo.
(...) O desejo é aquilo por que todos os indivíduos vão agir. (...) O indivíduo,
de resto, pode perfeitamente se enganar, em seu desejo, quanto ao seu
interesse pessoal, mas há uma coisa que não engana: que o jogo espontâneo
ou, em todo caso, espontâneo e, ao mesmo tempo, regrado do desejo
permitirá de fato a produção de um interesse, de algo que é interessante para
a própria população. População do interesse coletivo pelo jogo do desejo: é o
que marca ao mesmo tempo a naturalidade da população e artificialidade
possível dos meios criados para geri-la (FOUCAULT, 2008a, p. 95).
A mudança de uma consciência para o desenvolvimento da humanidade e, portanto, da
natureza humana, se dá na ordem de um desejo, reconhecido em seus efeitos no conjunto da
população, no jogo entre o interesse do indivíduo e o desenvolvimento do conjunto
populacional, pois “da atuação em cada ciclo resultará não a perfeição, mas o
aperfeiçoamento progressivo, substituindo-se, cada geração, por outra mais sadia. O conceito
de que a educação deve começar anos antes do indivíduo nascer tem aqui a sua explicação”
(JUNQUEIRA, 1943, p. 119).
Neste sentido, a “proteção do homem como elemento da sociedade” implica atribuirlhe uma função social e, para tanto, faz-se necessário o recondicionamento de seus hábitos e
costumes, “a fim de se torná-lo apto a interessar-se e a cooperar nessa importante obra social
que tem por escopo a saúde ou mesmo a felicidade humana” (COSTA SOBRINHO, 1943, p.
94). Torná-lo apto a interessar-se e a cooperar é, justamente, o ponto de produção deste
desejo, fundamentado pela demanda da coletividade que promulga uma felicidade não
exatamente sua, mas a felicidade da vida urbana.
Paul Veyne também irá ponderar sobre esta produção do desejo que se opera não pela
ordem da individualidade, mas sim nas relações sociais, fazendo desaparecer qualquer relação
dicotômica entre indivíduo e sociedade, de modo a corroborar com a afirmação de que o
interesse coletivo se fundamenta pelo jogo do desejo:
88
(...) a noção de desejo significa que não há natureza humana, ou antes, que
essa natureza é uma forma sem conteúdo outro que não o histórico. Ela
significa, também, que a oposição indivíduo e sociedade é um falso
problema; se se concebe o indivíduo e a sociedade como duas realidades
exteriores uma à outra, então se poderá imaginar que uma causa a outra; a
causalidade supõe a exterioridade. Mas, se percebemos que o que chamamos
sociedade já comporta a participação dos indivíduos, o problema desaparece:
a “realidade objetiva” social comporta o fato de que indivíduos se interessam
por ela e a fazem funcionar, ou se preferimos, as únicas virtualidades que um
indivíduo pode realizar são as que estão desenhadas em pontilhado no
mundo ambiente e que o indivíduo atualiza pelo fato de se interessar por
isso; o indivíduo preenche os espaços ocos que a “sociedade” (quer dizer, os
outros, ou as coletividades) desenha em relevo. O capitalismo não seria uma
“realidade objetiva” se não comportasse uma mentalidade capitalista que o
faz funcionar: sem o que ele nem sequer existiria (VEYNE, 1998, p. 282).
Waldomiro de Oliveira, Diretor da Secretaria de Higiene do Trabalho, ao palestrar
sobre a “Educação Sanitária na cooperação médico-social” (1943, p. 60-65), afirma que “a
formação de hábitos sadios defendem o indivíduo e colaboram na proteção da espécie” (p.
62). Assim posto, as condições sociais, morais e econômicas ficam atreladas ao crivo do
saber médico a partir de índices biológicos. Para o autor, a saúde pública é uma questão
econômica e social, e afirma “sem temor de erro, que os fatos sociais, o são sempre e cada vez
mais bio-sociais” (OLIVEIRA, 1943, p. 64).
Neste âmbito de condicionamento das condutas, numa dimensão biossocial, ou seja,
neste modo de intervenção que transita entre o binômio corpo-social (binômio
natural/artificial), considera-se o médico como “figura que se impõe hoje em todo e qualquer
ponto onde estejam em jogo os destinos da humanidade” (Ibid.). Mais uma vez, vê-se a
configuração do domínio médico não como uma obrigatoriedade, mas como uma necessidade
para a garantia da preservação da espécie, do bem-viver e da felicidade humana como direito
fundamental.
Outra mostra de que o discurso biológico-natural (corpo biológico) não se sustenta
isoladamente do discurso sociológico-artificial (corpo social) está na concepção de que saúde
não é apenas a ausência de doenças. Essa concepção adquire uma dimensão que poderá
circular por todas as variações possíveis das formas de vida, desde que se fale do sujeito em
coletividade:
A saúde é um estado completo de bem estar físico, mental e social e não
apenas a ausência de doença ou enfermidade. O gôzo do melhor estado de
saúde que lhe seja possível atingir, constitui um dos direitos fundamentais de
todo sêr humano, sejam quais forem a sua raça, sua religião, suas opiniões
políticas, sua condição econômica e social. A saúde de todos os povos é
89
condição fundamental para a consecução da paz e da segurança e depende da
mais estreita cooperação entre indivíduos e Estados. Os resultados obtidos
pelos Estados no melhoramento e na proteção da saúde, são preciosos para
todos (COSTA SOBRINHO, 1943, p. 92).
A saúde se converte na chave mestra que abrirá o corpo e a alma de cada cidadão aos
agentes de transformação social, em especial, aqueles que digam respeito à raça, religião,
política, condições econômicas e sociais, paz e segurança. Neste recorte da sociedade
ocidental moderna, a necessidade de governo das populações legitima-se pelos princípios da
saúde pública e elege as práticas de higiene individual como a via para os processos de
individuação das normas. Tem-se, portanto, a saúde individual como o efeito catalizador de
uma racionalidade de Estado.
Todavia, a medicina social não pretende se limitar apenas ao que diz respeito à
formação dos hábitos sadios. Mais do que isso, pretende marcar um conjunto de sujeitos
anormais, de modo a elencar e condenar cada um de seus maus hábitos, estes hábitos
imundos, costumes grotescos e escatológicos, que devem ser execrados, enclausurados e
adestrados.
Os hábitos viciosos ou maus, levam as gentes em lança em riste contra as
exigências rudimentares do asseio, do saneamento do ambiente, que o
sanitarismo impõe por força legal. Prosáicas medidas ao conforto, e à saúde,
são tomadas como exigências excepcionais. Forçam a inércia contra
exercício necessário; colocam o indivíduo em passividade, sem interêsse
pelo ar puro e fresco permanente; o afastam do benefício dos banhos de água
e dos banhos de sol; o induzem a excessos, com sacrifício de compensador
repouso; o intoxicam, o anemizam, ou o desnutrem, nas falhas ou faltas
alimentares; o imergem em desasseio pessoal e de ambiente; o fazem
esquecer de lavar as mãos antes das refeições e ao sair das privadas, e todas
as vezes que sujas, o indisciplina no uso adequado das privadas, da
colocação do lixo e outras imundícies; o plasmam em displicência
acomodatícia, com a falta de higiene do restaurante em que come, do
açougue, leitera, armazém que o serve, do local de trabalho. As reações em
tais condições, são lentas, quase nulas, em reflexo da mentalidade ignorante
e físico decaído (Ibid., p. 63).
Estão aqui descritos, por fim, os hábitos insistentemente citados que contribuem para o
aparecimento daquele sujeito considerado peso morto, estorvo e sobrecarga para a sociedade,
que, por meio do discurso da utilidade, da sociedade produtiva e da felicidade de todos os
povos, será o sujeito a ser condenado, perseguido e corrigido. Sob sua batuta, a saúde, que já
não se restringe mais à ausência de doença, coloca o corpo em movimento, mas quer gerir
seus excessos; determinar de que e onde alimentar-se; maldizer os excessos e as faltas em
90
nome de um comedimento prosaico; orientar como se comportar nos banheiros e quando lavar
as mãos; e conduzir os dejetos até as lixeiras. É contra esse sujeito passivo, dado a excessos,
intoxicado com o caos da vida displicente, ignorante e débil, que as práticas da assepsia
urbana lutarão.
Assim desenhado o monstro da insalubridade, a partir da condenação de suas ações
práticas, desdobra-se uma condenação moral. O Superintendente de Saúde de Higiene do
Trabalho, Waldomiro de Oliveira, nos apresenta um oportuno exemplo para evidenciar como
operam os procedimentos de individuação da norma social:
Em semelhantes condições o indivíduo é extremamente individualista, sem
sequer ter resquício de espírito social [grifo nosso]. Se empregado, tem
atuação mecânica e em nada concorre para higiene e segurança do trabalho.
Ao contrário, as dificulta, as entrava. Não auxilia na limpeza e aumenta o
emporcalhamento. Não atende ou atende sem atenção os recursos de defesa
pessoal ou coletiva. Posta máscaras ou óculos quando oportunos a seu
dispor, só os usam compulsoriamente. Não se ampara contra a infortunística
e a doença, nem coopera no amparo de outrem. Porque não quer. E não quer,
porque não tem hábitos sadios nem consciência sanitária. Desconhece, não
compreende que a primeira lei da vida é a lei da saúde (OLIVEIRA, 1943, p.
63-64).
Eis então mais uma mostra do raciocínio que circunscreve os modos de produção da
saúde como normas de conduta. A ação insalubre do indivíduo gera efeitos coletivos na
experiência das cidades. À putrefação urbana cunha-se o brasão da morte e, por consequência,
aquele que contribui para tal cenário debilita todo o projeto de sociedade. Este monstro
egoísta que emporcalha os espaços urbanos, este peso morto, em meio a seu suicídio
sanitário, torna-se mais um cúmplice daqueles que, com seu individualismo, matam, aos
poucos, aquela alma artificial da cidade. O problema em questão permeia a falta de um tipo de
querer, ou, mais claramente, a falta de desejo de adquirir hábitos sadios e, conforme a
afirmativa do autor, a falta de querer viver: “a primeira lei da vida é a lei da saúde” (Id. ibid.).
Neste poder de fazer viver, como reflete Michel Foucault (2002 [1997]), os modos de
governar do Estado moderno serão alterados. Já não serão mais tão preocupantes as epidemias
da Idade Média, com seus riscos de morte iminente, mas sim a doença como fenômeno da
população, ou seja, o risco de debilitação da sociedade produtiva se torna o campo de
problematização e, por este motivo, a medicina terá a higiene pública como objeto de
intervenção: “com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da
informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto de campanha de
aprendizado da higiene e de medicalização da população” (Ibid., p. 291). O Estado moderno
91
promove, como um dos direitos fundamentais do ser humano, o direito à vida; e este ato, em
que as relações de poder se efetuam no diagrama de quem oferece o direito à vida, a doença se
torna um risco de morte permanente que deve ser afastado.
Enquanto a consciência sanitária é afirmada como alicerce da vida, para aplicar suas
prosaicas medidas ao conforto e à saúde (Ibid., p. 291), o dispositivo médico-social marca
cada ação mefítica com o peso da moralidade, a ponto de personificar a sujeira da cidade no
indivíduo a corrigir. Esta referência a uma espécie de experiência da morte, presente nos atos
deletérios, se torna necessária para propor seu revés, em que a primeira lei da vida é a lei da
saúde. Deixar aparecer a putrefação para afirmar a vida saudável implica entrar em um jogo
de poder localizado no desejo de cada um aderir a este projeto de vida longa e saudável.
Com tal descritiva, o autor traça alguns indicadores que inscrevem no sujeito
determinados códigos de valores morais: a produção de um tipo de subjetividade, de um estilo
de vida do homem das cidades; um cidadão que se preocupa em ser útil a si mesmo e ao
coletivo e vê nos hábitos saudáveis a oportunidade de participar do ideário da felicidade
humana; um citadino consciente de que esta mudança de hábitos implica trabalhar de forma
integral e, se preciso for, renunciar a si mesmo, negar individualismos ou, quem sabe, negar
individualidades que o marcam no mundo como um indivíduo a ser corrigido.
O espírito social como um bem superior evoca cada alma boa a depositar sua fé na
crença de que todos nós desejamos saúde e que a salvação está na promessa de uma vida
longa. Trata-se de uma ascese que molda um tipo de personagem purificado da era moderna:
aquele “que se lava, que se proíbe certos alimentos que causam doenças de pele, que não
dorme com as mulheres sujas do povo baixo, que tem horror a sangue – e não mais, pouco
mais que isso!”. Assim Nietzsche (1998 [1887], p. 24) descreve as proveniências da formação
moral moderna e suas devidas atribuições sobre o que se denomina ser o bom ou o ruim, o
bem e o mal.
Na relação do cidadão com seu lixo, revela-se a construção de uma cidade sem
memória, que “varre para debaixo do tapete” (ou joga na lixeira) os vestígios de sua história,
na tentativa de desintegrar as artificialidades que compõem sua vida. Sem vestígios, sem
passado que diferencie o agora do ontem, os sujeitos tratam a urgência da higiene social como
uma necessidade natural a sua condição humana.
A saúde e a vida longa se tornam o bem natural e, quanto mais a medicina social
determina sobre o que deve ser expurgado, mais aumenta a lista dos hábitos, seres e objetos
impuros no entorno das relações humanas. Nesse território das relações assépticas, que varre
toda a sujeira da cidade e dos hábitos humanos para “debaixo do tapete”, tanto o lixo material
92
como o lixo social e moral são expulsos para os interstícios e arredores da cidade: a boca do
lixo. Com isto, a cidade tenta guardar na memória apenas o que lhe é útil, purificado,
asséptico. Mas o que se joga para as sombras das relações urbanas não desaparece, ao
contrário, se acumula em seus arredores como um monstro que se alimenta do que o homem
expurga. Haja vista os aterros sanitários que, com seu chorume, expõem suas entranhas por
entre as águas.
Aos que não aderirem ao projeto higiênico da modernidade, resta o abandono do
Estado e as agruras de quem não segue as prescrições da medicina social. O sujeito imundo
está excluído de seus direitos de circulação na cidade, está morto para o projeto de
modernidade. Maltrapilhos, vagabundos, moradores de rua, bêbados e viciados; a estes não
será permitido circular nos espaços urbanos (educacionais, culturais, econômicos, de lazer, de
consumo etc.) que controlam a circulação e alocação dos insuportáveis.
Outro aparato de gestão da vida se constitui para que estes insuportáveis vivos, estes
lixos sociais, sejam então reinscritos na codificação social moderna. A emergência de certas
personagens sociais em meio aos dejetos da cidade – do lixo ao lixeiro, ou, em outros modos
de aparecer, o trapeiro, o carroceiro e, ainda na versão mais atual, o catador de materiais
recicláveis – será o próximo analisador desta narrativa sobre a relação entre a invenção do
lixo e a assepsia da conduta humana como um dos projetos da modernidade para a vida nas e
das cidades.
93
5. PERSONAGENS DO LIXO
Tudo que é imaginário tem, existe, é.
Estamira
Na Cartilha Nacional de Formação Política das Bases do MNCR (Movimento
Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis), datada de 2009, em seu primeiro capítulo,
que trata sobre a “Memória Histórica” da categoria dos catadores, tem-se como proposta
inicial uma atividade em grupo em que cada catador socializaria com o grupo sua trajetória de
vida. Neste exercício, a tarefa seria relacionar os relatos individuais com a trajetória de luta
dos catadores e a história, com ênfase na luta e resistência das classes trabalhadoras no Brasil.
Tais eventos nacionais subdividem-se, conforme consta, em cinco momentos históricos
principais: 1. Colonização – Chegada dos Portugueses no Brasil e resistência indígena; 2.
Escravatura e Resistência negra; 3. Migração e Luta Camponesa; 4. Desenvolvimento
Industrial e Resistência Operária; 5. Golpe Militar e Luta contra a ditadura.
Esta estratégia em aliar a história de vida de cada catador às “partes marcantes da
história de vida dos oprimidos no Brasil” (CAMBUIM, 2009, p.48), claramente evidencia um
posicionamento na leitura da vida social a partir de diferenças ocasionadas pela luta de
classes. Coloca-se este conteúdo formativo referente à cartilha do MNCR como uma
estratégia enunciativa, pois assim ela se apresenta:
Também é certo que muita coisa ficou de fora. Talvez o mais profundo não
tenha entrado, o cotidiano. Não o pusemos porque nós (como povo) não
somos burros e sabemos muito bem as condições de vida (ou será de
sobrevivência?!) que temos. Também não incluímos diversos tipos de lutas
no pedaço de Brasil que antes estava além do sertão, onde nem a
historiografia oficial nem a popular chegaram, passagens certamente tão
fortes como desconhecidas. Não estão nem o cotidiano nem as partes
“desconhecidas” (apenas dos livros e arquivos dos opressores) somente por
tentarmos adequar tempo e espaço. Não entrou o “mais importante”
simplesmente porque isso não existe (ao menos para nós) - pois todo e
qualquer trabalho para contribuir na libertação de nossa gente é igualmente
importante -, na história popular, tanto o cotidiano como o povo em luta são
diferentes partes de um mesmo conjunto (Ibid, p. 48-49).
Outro documento, pertencente à Cartilha de Formação intitulada Direitos humanos e
os catadores de materiais recicláveis (2009), confeccionada pelo MNCR e por uma
Organização Não-Governamental chamada PANGEA, inicia seu conteúdo formativo com o
tópico: Quem somos nós, catadores e catadoras de materiais recicláveis? Este texto afirma
justamente uma espécie de origem da história do catador iniciada aproximadamente há 50
94
anos, declarando ser “resultado de um modelo de acumulação do capital e de um processo de
industrialização desigual, que atraiu grandes contingentes do nosso povo para as cidades, sem
perspectivas de emprego para todos” (CAMBUIM, 2009, p. 4). Produto do capital e inseridos
voluntariamente como parte da “grande massa de trabalhadores, conhecida como exército
industrial de reserva” (Idem, p. 4), encontraram no lixo das cidades e dos lixões seu modo de
subsistência.
O nosso trabalho de catador encontra na matéria prima, chamada de
“lixo” pela sociedade, a fonte da nossa sobrevivência. Hoje somos centenas
de milhares de pessoas que trabalham duramente coletando materiais
recicláveis. Somos famílias inteiras que catam os materiais recicláveis nas
lixeiras de ruas, casas, condomínios e pontos comerciais ou nos lixões,
fazendo a verdadeira coleta seletiva.
Nós, catadores, nos orgulhamos por sermos verdadeiros defensores da
vida humana saudável, por ajudarmos a preservar os recursos naturais do
meio ambiente e por sermos trabalhadores e sujeitos na busca por condições
de trabalho dignas (Idem, p. 4-5).
Tal protesto, que revela a dor causada por serem considerados o espólio das cidades,
soma-se à autoafirmação como “defensores da vida humana saudável” e dos “recursos
naturais do meio-ambiente”. Entender este trajeto de positivação das personagens do lixo
implica evidenciar o mesmo processo na configuração das relações humanas e a produção de
seus dejetos, ou, mais especificamente, a produção e gestão de seus resíduos urbanos no
interior das curvas de normalidade econômica entre a produção da riqueza e da pobreza no
contemporâneo.
Nos materiais de formação política dos catadores de dejetos urbanos, produzidos pelo
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), constam conteúdos
que apresentam a história desta categoria de trabalhadores. No resgate destes 50 anos de
existência, traça-se, principalmente, a história dos catadores de rua com seus carrinhos de mão
e os catadores dos lixões, ambos em busca de materiais recicláveis para posterior revenda dos
produtos a sucateiros e pequenos atravessadores. Em seu início, o trabalho se caracterizaria
pela atividade informal, tendo pouca semelhança com os carroceiros da virada do século XX.
Na tentativa de construção de uma identidade, o MNCR busca também, nas trajetórias de luta
social, racial e de classes, suas referências históricas de resistência aos poderes opressores.
Assim, verifica-se em uma de suas cartilhas de formação política24:
24
Alexandre Araújo Cambuim, Roberto Laureano da Rocha e Antonio Bunchaft Formação nível 1: Caminhar é
resistir... MNCR, São Paulo, 2009.
95
As lutas dos trabalhadores (as) contra a exploração e as injustiças sociais são
históricas, não nasceram agora. O MNCR se sente reconhecido nas lutas
desenvolvidas no Brasil, na América Latina e no mundo atualmente e no
passado. Assim foram as lutas de resistência indígena contra a invasão
portuguesa, as lutas contra a escravidão no período colonial, as lutas
camponesas e dos quilombos, a resistência operária e as lutas pelos direitos
trabalhistas, as lutas contra as Ditaduras. E hoje são as muitas e muitas lutas
por reforma agrária, por reforma urbana, por trabalho, por educação, por
saúde, por respeito às diferenças, enfim por dignidade. São essas lutas por
um novo destino que movem e sempre moveram os trabalhadores (as) a se
organizarem, e assim vem acontecendo com os catadores (as) também
(CAMBUIM, ROCHA e BUNCHAFT, 2009, p.9)
Zumbi dos Palmares, Espertirina Martins, Antonio Cândido, Carlos Mariguela, Roseli
Nunes e Sepé Tiaraju25
Fonte: Alexandre Araújo Cambuim, Roberto Laureano da Rocha e Antonio Bunchaft Formação nível 1:
Caminhar é resistir... MNCR, São Paulo, 2009.
FIGURA 3: LÍDERES DO MNCR
Em princípio, esta pesquisa se propõe seguir outras conexões históricas, que parecem
ser estrategicamente menos interessantes para a produção desta identidade produzida pelo
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis. Para isto, tem-se como objetivo
descrever algumas passagens cotidianas na história de formação das cidades modernas, que
remeta a estas personagens da contemporaneidade, não a partir de sua trajetória de luta, mas a
partir de uma ação específica, ou seja, sobre sua função de coletar, separar, vender ou
reaproveitar aquilo que é desperdiçado ou rejeitado pelas relações humanas no espaço urbano.
Neste aspecto, descrever os discursos que narram estas personagens do lixo, bem como as
práticas em que estão inseridas, posiciona-as constantemente na relação das cidades e seus
jogos de poder. Há de se ressaltar que não se pretende marcar a personagem em uma unidade
discursiva sobre as práticas, mas coletar alguns fragmentos de seus modos de existência e
sobrepô-los no plano da contemporaneidade.
Modo recorrente de analisar o lixo como uma das expressões da modernidade é o
relato sobre as figuras sociais responsáveis pela remoção dos restos urbanos. A partir destas
25
Líderes de lutas sociais citados na maioria das cartilhas de formação política editadas pelo MNCR.
96
descrições que compõem os estudos acadêmicos, é possível identificar episódios da vida
cotidiana e compor fragmentos das metamorfoses de uma personagem moderna.
O trapeiro que coletava os primeiros escombros da cidade do capital industrial
europeu no século XIX; os tigres, responsáveis por transportar os excrementos e podridões da
Casa Grande no período colonial brasileiro; o carroceiro, primeira representação profissional
do coletor de lixo domiciliar nas grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo; o lixeiro,
efeito dos processos de coleta motorizados para dar velocidade à retirada do lixo outrora
excedido pelas embalagens dos produtos de consumo no período de desenvolvimento
industrial brasileiro; o catador de papel, que se especializará em anteceder o serviço de coleta
de lixo do Estado, para garimpar seus meios de subsistência; e, finalmente, o catador de
materiais recicláveis, personagem contemporânea que se apresenta não mais como um coletor
dos excrementos, podridões e restos inúteis, mas, principalmente, como um preservador da
vida ou, de modo mais atual, como um agente ambiental.
Cada uma destas personagens evidencia as diferentes materialidades que foram
classificadas ou negadas como lixo ao longo da história da cidade moderna. As diferentes
atividades de remoção do lixo público e doméstico realizadas por estas personagens
apresentam-se como efeito das mudanças na gestão dos processos de produção econômicos e
da produção e circulação dos homens e das coisas das cidades, e seu modo de adaptação se
inscreve nas matérias residuais por elas coletadas. Este encontro entre diferentes personagens
e diferentes materialidades do lixo circunscreve tal enredo.
5.1 Os trapeiros e a poética do urbano
Carregando sacos nas costas ou puxando seus carrinhos de madeira pelas ruas das
grandes cidades europeias, os trapeiros ganham evidência durante o século XIX, período de
reurbanização e expansão da Revolução Industrial. Seu ofício caracterizou-se pela coleta de
trapos usados para confecção de tapetes baratos feitos de farrapos, para confecção de papéis
de tecido (nesta época já pouco usados), ou para limpar as mãos cheias de óleo dos
mecânicos; também roupas velhas, sucatas e garrafas de vidro eram comercializadas.
Nas relações de uma cidade marcada pelo binômio burguesia/operariado, durante as
Revoluções de 1848, o trapeiro recolhe os restos de seu consumo e desta memória, ou melhor,
deste esquecimento de um mercado industrial em expansão. Alijada dos serviços do Estado e
confrontada pelo modelo das famílias fabris, esta personagem perambula pelas ruas das
grandes cidades sem, aparentemente, ganhar expressão política, econômica ou cultural.
97
Todavia, nos poemas de Baudelaire, o trapeiro aparece como uma de suas alegorias sobre a
modernidade e nos traz o testemunho dos hábitos da cidade.
Muita vez, ao rubor de um revérbero e ao vento,
Que à chama sempre é um golpe e ao cristal tormento,
Num antigo arrabalde, amargo labirinto
De humanidade a arder em fermentos de instinto (BAUDELAIRE, 2006).
A primeira estrofe do poema O vinho dos trapeiros (BAUDELAIRE, 2006) nos
transporta ao subúrbio parisiense no período em que Napoleão III, pelas mãos de Hausmann,
abria os deslumbrantes boulevares e expulsava os últimos resíduos dos hábitos e costumes
insistentemente provincianos e medievais que atrasavam o desenvolvimento da cidade
moderna. Apenas o arrabalde é ainda um labirinto de ruelas que aproxima os trapeiros, as
prostitutas e o povo à procura dos vinhos sem seu bouquet encorpado pelos altos impostos,
que “onerava o vinho de mesa no mesmo nível que o mais fino”, forçando o habitante da
cidade a dirigir-se “às tabernas da periferia a fim de encontrar vinho mais barato. Lá era
servido o vinho isento de imposto, o vinho da barreira” (BENJAMIN, 1989, p. 15).
Para Baudelaire, estas figuras que caminham pelas bordas da cidade, ao sabor do
revérbero e ao vento, se tornam sua fonte de inspiração para a descrição da vida moderna,
pois, pela própria característica de não se deterem aos remansos dos lugares sociais que ali
começam a se fortalecer, funcionam como contrastes aos limites destes mesmos lugares.
Assim opera o flâneur, o dândi e o boêmio, figuras recorrentes em seus escritos, que
representam este desprendimento pelas relações dialéticas tão características aos pensamentos
sobre daquele período. Mas o trapeiro, para além destas personagens, demarca ainda mais este
não-lugar: “Naturalmente, o trapeiro não pode ser incluído na boêmia. Mas, desde o literato
até o conspirador profissional, cada um que pertence à boêmia podia reencontrar no trapeiro
um pedaço de si mesmo” (BENJAMIN, 1989, p.17).
Estas personagens, difíceis de serem situadas no funcionamento de uma sociedade
industrial produtiva, parecem não se articular em movimentos políticos organizados, mas sim
em um movimento mais desordenado, despretensioso que, por este caminho, se encontravam
“num protesto mais ou menos surdo contra a sociedade, diante de um amanhã mais ou menos
precário. Em boa hora, podia simpatizar com aqueles que abalavam o alicerce da sociedade. O
trapeiro não está sozinho no seu sonho” (BENJAMIM 1989, p.17).
Segue a continuação do poema O vinho dos trapeiros, de Charles Baudelaire, até seu
último verso:
98
Há o trapeiro que vem movendo a fronte inquieta,
Nos muros a apoiar-se à imitação de um poeta,
E sem se incomodar com os policiais desdenhosos,
Abre seu coração em projetos gloriosos.
Ei-lo posto a jurar, ditando lei sublime,
Exaltando a virtude, abominando o crime,
E sob firmamento – um pátio de esplendor –
Embriaga-se da luz de seu próprio valor.
Estes, que a vida em casa enche de desenganos,
Roídos pelo trabalho e as tormentas dos anos,
Derreados sob montões de detritos hostis,
Confuso material que vomita Paris,
Voltam, cheios de odor de pipas barrancos,
Acompanhados dos que a vida tornou brancos,
Bigodes a tombar como velhos pendões;
Os arcos triunfais, as flores, os clarões
Se erguem diante do olhar, ó solene magia!
E na ensurdecedora e luminosa orgia
Do clarim e do sol, do grito e do tambor,
Eles trazem a glória ao povo ébrio de amor!
E assim é que através desse terrestre solo,
O vinho é ouro a rolar, fascinante Pactolo;
Pela garganta humana ele canta os seus feitos
E reina por seus dons como os reis mais perfeitos.
E para o ódio afogar e embalar o ócio imenso
Desta velhice atroz que assim morre em silêncio,
Gerou o sono, Deus, de remorso tocado;
O homem o vinho criou, filho do sol sagrado (BAUDELAIRE, 2006).
Neste entremeio, situa-se o trapeiro, alheio às novas funções da polícia e suas ações
higienistas e, ao ignorar as novas primazias do fluxo e da velocidade dos boulevares, segue
cambaleante a pausar-se perante os resíduos e a continuar sua função de operário das
sujidades urbanas. Para Baudelaire, o trapeiro seria um dos estandartes de um modo de vida
marginal, já que renega as virtudes e as leis, abdica dos confortos e grilhões do contrato social
e não reconhece em si mesmo os traços de cúmplice do capital. Walter Benjamin, ao
caracterizar a modernidade a partir dos mesmos escritos, pondera:
Os poetas encontram o lixo da sociedade nas ruas e no próprio lixo o seu
assunto heróico. Com isso, no tipo ilustre do poeta aparece a cópia de um
tipo comum. Trespassam-no os traços do trapeiro que ocupou Baudelaire tão
assiduamente. Um ano antes de O vinho dos trapeiros apareceu uma
descrição em prosa dessa figura: ‘Aqui temos um homem – ele tem de
99
recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande
jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu,
é reunido e registrado por ele. Compila os anais da devassidão, o cafarnaum
da escória; separa as coisas, faz uma seleção inteligente; procede como um
avarento com seu tesouro e se detém no entulho que, entre as maxilas da
deusa indústria, vai adotar a forma de objetos úteis ou agradáveis’. Essa
descrição é apenas uma dilatada metáfora do comportamento do poeta
segundo o sentimento de Baudelaire. Trapeiro ou poeta – a escória diz
respeito a ambos; solitários ambos realizam seu negócio nas horas em que os
burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar
fala do andar abrupto de Baudelaire; é o passo do poeta que erra pela cidade
à cata de rimas; deve ser também o passo do trapeiro que, a todo instante, se
detém no caminho para recolher o lixo em que tropeça. Muitos pontos
indicam que Baudelaire tenha querido dissimuladamente valorizar esse
parentesco, que, seja como for, esconde um presságio. Sessenta anos mais
tarde aparece Apollinaire, um irmão do poeta que se rebaixou até ser trapeiro
(1989, p. 78-79).
Nesta trama, trava-se um diálogo entre Baudelaire e Walter Benjamin, que expõe uma
narrativa inevitavelmente romancista, tanto acerca da função do poeta, como da função do
trapeiro. Este ato de garimpar os fragmentos residuais das relações citadinas – e com este
perambular, tantos pelos bulevares, como pelos labirintos dos arrabaldes – faz do poeta e do
trapeiro cúmplices dos devaneios modernos. Esta cumplicidade se estende às tantas outras
alegorias baudelaireanas, que se apresentam como fissuras da lógica moderna. Mais que isto,
estas personagens representam funções sociais que, por conseguinte, se dispõem ao
metamorfismo do alter-ego baudelaireano: “Como não possuía nenhuma convicção estava
sempre assumindo novos personagens. Flâneur, apache, dândi e trapeiro, não passavam de
papéis entre outros. Pois o herói moderno não é herói – apenas representa o papel do herói. A
modernidade heróica se revela como uma tragédia onde o papel do herói está disponível”
(BENJAMIN, 1989, p. 94).
A leitura de Baudelaire sobre o século XIX em muito se contrapõe a esta
racionalização e ordenação sobre as condições de possibilidade de aparecimento das
personagens modernas. Sob um ponto de vista crítico, o poeta se detém em denunciar a vida
não produtiva das cidades do capital. Valoriza estas personagens a partir daquilo que a cidade
considera inútil para seus projetos evolucionistas. Baudelaire se desfaz dos utilitarismos
modernos para composição de suas alegorias, descomprometidas com as promessas dos bons
ares da civilização moderna.
Em análises sobre vida e obra de Charles Baudelaire, um dos temas recorrentes
consiste no debate sobre o movimento de “l’art pour l’art”, em contraponto à arte
politicamente engajada no contexto das Revoluções de 1848. Walter Benjamim adverte sobre
os momentos em que Baudelaire se manifestaria sobre esta poesia política, não passando de
100
posicionamentos pontuais em referência ao conjunto da obra que “escorregou por entre os
dedos” dos dois movimentos:
Isto nada tem da profunda duplicidade que dá asas à poesia do próprio
Baudelaire, que se interessava pelos oprimidos, mas tanto por suas ilusões
quanto por sua causa. Tinha um ouvido para os cantos da revolução e outro
para a ‘voz superior’ que fala através do rufar dos tambores das execuções.
(...) ‘Teocracia ou comunismo’ não eram para ele convicções, mas
insinuações que disputavam entre si o seu ouvido: uma nem tão seráfica,
outra nem tão luciferina, quanto ele imaginava. (...) Para Baudelaire, essa
brusca ruptura com a ‘l’art pour l’art’ tinha valor apenas como postura.
Permitia-lhe proclamar o espaço que, como literato, tinha para se mover
(1989, p. 22-23).
Assim, para Baudelaire, seria função dos artistas modernos retratar o refugo da cidade,
essas figuras da boemia como fontes de inspiração e círculo de convivência. O boêmio seria
como metáfora daqueles que se sentem sem teto na cultura da sociedade capitalista, e seu
efeito caracterizado pelo alheamento em relação à sociedade burguesa e seus princípios
organizacionais do capitalismo. Poetas e pintores “(...) julgavam ter como compromisso social
e político mais profundo (...) o engajamento em estratégias e formas de representação (...)
percebidas como críticas das convenções existentes e das estruturas de poder que as
sustentava” (FRASCINA, 1998, p. 50-51). O trapeiro pertencia, então, a esta massa flutuante
despossuída das classes sociais e de suas raízes culturais, também um dos efeitos da Paris de
Haussmann.
Uma figura em particular, a do bebedor de absinto, de Manet, ilustra bem a
questão. Ele tem a postura de um chiffonier, um trapeiro, um daqueles a
quem Baudelaire via como “heróis filosóficos”, pintado como tal por Manet
em pelos menos quatro quadros. Essas personagens haviam feito parte do
emaranhado da cidade velha, mas a reconstrução de Haussmann exigia um
sistema mais “eficiente” de coleta de lixo. Isto só foi implementado em
1884, quando Monsieur Poubelle, prefeito do Departamento do Sena,
instituiu um sistema de latas de lixo caseiras que deixou 4 mil chiffoniers
sem trabalho. Contudo uma medida anterior para eliminar o chiffoniers fora
tomada em 1861, quando Manet estava pintando O velho músico. A
Compagnie de nettoyage des rues de Paris (Companhia de Limpeza das
Ruas de Paris) foi fundada para limpar eficientemente as ruas durante a
madrugada e levar o lixo para depósitos nas cercanias da cidade, onde
chiffoniers seriam empregados pela companhia para fazer a separação. As
objeções ao plano, bem sucedidas, foram basicamente uma reação ao
número de chiffoniers que se tornariam supérfluos (FRASCINA, 1998
[1993], p. 101).
101
Baudelaire e Manet criaram esta aliança na produção artística e no modo de vida
boêmio. Manet tinha como prática trazer à luz do dia esta escória da modernidade: indigentes,
boêmios, ciganos, artistas de rua, trapeiros e tantos outros. O que diferenciava sua pintura de
outras que abordavam a mesma temática era desprovê-las de um contexto social e urbano do
período; eram cenários vagos, podendo, até mesmo, remeter estas figuras a ambientes
aparentemente rurais (FRASCINA, 1998 [1993], p. 82). A técnica de Manet implica “recolher
todas as personagens que a nova cidade ‘joga fora’; escolher os temas desprezados pelos
padrões acadêmicos; classificar, escolher e coletar o ‘lixo’ das fontes artísticas e sociais para
apresentar as personagens sociais de uma cidade em transformação” (FRASCINA, 1998
[1993], p. 103).
FIGURA 4:THE RAGPICKER
102
Aos trapeiros, agregava-se um conjunto identitário, um tanto quanto puído, inebriado
pelo vinho e pela escuridão da boêmia. Na pintura, se não fosse pelos dejetos acumulados ao
chão, a figura maltrapilha talvez remetesse mais à imagem de um velho com seu cajado do
que, propriamente, a de um coletor das sujidades. Aparentemene, o velho posa para a pintura,
mas seus olhos fugidios denunciam este alheamento ao que acontece em sua volta. Outra
imagem de Charles Joseph Traviés, o Chiffonier (1841), oferece as mesmas características,
com a ressalva de que este, enquanto retratado, apenas se detém à única matéria da
modernidade que lhe causa interesse, seus restos (FRASCINA, 1998 [1993], p. 91).
FIGURA 5: LE CHIFFONIER
Tem-se, portanto, durante a estruturação da cidade moderna no século XIX, o trapeiro
como objeto da estética romântica, justamente por colocar-se como um modo de existência
alheio aos fluxos do capital. Obviamente, este alheamento, visto como posicionamento
político de negação às forças do capital, só é possível através do olhar do romantismo
moderno.
Na virada do século, já com o recurso da fotografia, os registros sobre os trapeiros
ganham os contornos da razão da cidade moderna. A narrativa jornalística quer reproduzir
esta personagem dos arrabaldes como um acontecimento cotidiano nos espaços urbanos e não
103
mais alheio ao mesmo. Para isto, a fotografia jornalística apresenta o trapeiro em meio ao
cenário das cidades. Ele se insere na imagem com sua carroça, mais ágil e produtiva,
carregando enorme carga de trapos, de modo a compor com a grandeza dos boulevares e a
altura dos edifícios ao fundo. Seu olhar fixa-se no espectador, mas sem nenhuma
cumplicidade ou convite ao diálogo.
FIGURA 6: TRAPEIRO
(Fonte: Eugène Atget, Paris, 1889-1900)
O fotógrafo e jornalista Joshua Benoliel (1873-1932), considerado um pioneiro da
reportagem fotográfica em Portugal, responsável por retratar a vida da corte e os grandes
acontecimentos lusitanos, como a Revolta de 191026, traz uma produção que apresenta um
privilegiado testemunho histórico, pois acompanha a fase de transição entre a Monarquia e a
República, ocupando uma posição que lhe permite retratar a família real e muitas das
personalidades neste período. No entanto, Benoliel nunca deixou de captar instantâneos da
população, atividade em que se destaca o aspecto humanista que soube imprimir às imagens.
Na imagem seguinte, os caixotes à base do batente da porta aberta de algum domicílio
apresentam, se não um vínculo de confiança, talvez um acordo mútuo e tácito entre catador e
morador, para que o primeiro dê fim aos restos da vida privada do outro. Dono de uma
curiosidade seletiva, o pequeno trapeiro marca ainda este único interesse nos restos da vida
que o cerca e nada mais. (REZENDE, 2007, p. 115)
26
A Implantação da República Portuguesa foi o resultado de um golpe de Estado organizado pelo Partido
Republicano Português que, no dia 5 de outubro de 1910, destituiu a monarquia constitucional e implantou
um regime republicano em Portugal.
104
FIGURA 7: CATADORES EM LISBOA
A imagem seguinte traz o mesmo modo de operar do citadino frente a seus dejetos: a
repetição do gesto de atenção aos conteúdos do que se joga fora; a grande porta aberta à
espera de alguém; e alguns caixotes com trapos, papéis, garrafas e sucatas. Um conjunto
cênico que denuncia o hábito dos moradores de estocarem seus rejeitos para aguardar a
chegada daquele que os fará sumir.
105
FIGURA 8: CATADORES EM LISBOA
Neste mesmo período, com a tensão entre o hábito, agora proibido, de jogar os dejetos
pela rua, havia os depósitos de lixo em alguns quarteirões dos bairros residenciais, sem grade,
muro, ou qualquer espécie de tratamento das matérias pútridas, e os catadores se reuniam para
coletar o material que servisse aos seus fins. Imagens jornalísticas trazem à cena pública as
matérias de que é feito o lixo, e quem são os homens que dele vivem. Não mais o romântico e
a imagem poética, mas a racionalidade material das coisas e dos homens.
106
FIGURA 9:CATADORES EM LISBOA
No artigo de Eliana Almeida de Souza Resende, de onde foram extraídas estas
fotografias de Joshua Benoliel, aparece um texto do jornal O Século, relatando uma confusão
provocada pelo hábito de jogar o lixo à rua.
Em um dos dias da semana passada, na rua do Arco da Graça, uma
mulher lançou da janella para a rua um volume bastante volumoso, contendo
resíduos de peixe e restos de comida. Como este facto presenciado pelo
guarda cívico n° 783, a quem por alcunha chamam o Cabrito; este
immediatamente subiu escada acima, resolvido a proceder á competente
autoação, como de facto procedeu, e muito bem.
Porém, a mulher é que não gostou da intervenção do guarda e veio
para rua, berrando e fazendo um barulho tal, que d'ali a pouco estava rodeada
de uma grande multidão, que, em vez de applaudir o acertado e justo
procedimento do cívico, ainda contra elle protestava, dizendo que elle não
devia ter multado a mulher, porque era uma obra de caridade dar de comer
aos gatinhos27 (O Século apud REZENDE, 2007, vol.15, n.1, p. 165)
No Brasil, esta figura mefítica pertencente aos prelúdios da modernidade também teria
o seu lugar e aos poucos se transformaria no carroceiro e no catador de papel para, por fim,
transfigurar-se no catador de materiais recicláveis, como é conhecido atualmente. No entanto,
antes de apresentar o cenário das cidades modernas brasileiras, outro contexto característico
27
A ESTHETICA e a Limpeza da Cidade. O Século, Lisboa, 20 set. 1911.
107
ao território nacional faz-se prevalente neste campo de análise. A precariedade urbanística do
período colonial e as relações provenientes da escravidão fariam surgir uma personagem
específica que trabalharia com os restos da sociedade senhorial: os tigres e suas tinas repletas
de excrementos e podridões.
5.2 Os tigres: carregadores de excrementos
Dentre as diferentes personagens do lixo, talvez a mais próxima ao formato putrefato e
excremencial dos dejetos circunscreve-se nas funções desempenhadas pelos Tigres, escravos
de ganho28 do período colonial brasileiro, responsáveis pelo transporte e despejo das
excreções expelidas pela vida nos sobrados e nas casas grandes. São personagens que,
diferentemente dos trapeiros que perambulavam entre os incisivos sulcos do urbanismo
moderno, eram devidamente numerados por placas penduradas no pescoço e limitados a um
vai-e-vem sisífico, mas que, ao contrário de carregar repetidamente pedra morro acima, descia
uma tina de merda morro abaixo.
Roberto Freyre, em sua obra Casa Grande e Senzala (2003), descreve o peso de tal
atribuição que, para além da função concreta, corroborava para fazer do escravo uma figura
menos humana e mais animalesca.
Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais imundos na higiene
doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar à cabeça,
das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos
por tigres. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias
dentro de casa, debaixo da escada ou em um outro recanto acumulando
matéria. Quando o negro os levava é que já não comportavam mais nada.
Iam estourando de cheios. De cheios e de podres. Às vezes largavam o
fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça aos pés. Foram
funções, essas e várias outras, quase tão vis, desempenhadas pelo escravo
africano com uma passividade animal (p. 291).
Os excrementos e podridões eram acondicionados em tinas de madeira para serem
posteriormente levadas ao mar ou rios para despejo. Tigres eram chamados tanto estes
grandes vasos mefíticos como os escravos responsáveis pelo transporte e despejo.
Andréia D. C. Souza, em sua pesquisa de mestrado, intitulada Tigres: “tristes
operários do labor imundo”, apresenta um conjunto de versões que dão origem a esta
nomenclatura:
28
Escravos que recebiam determinada quantia pela execução de diversos serviços e atividades no meio urbano,
conhecidos como escravos de ganho ou escravos ao ganho (SOUZA, 2007, p. 39).
108
(...) esse apelido dado pela população aos escravos, sugerindo o
pavor que infundiam, acabou estendendo-se também às vasilhas
(COARACY, op. cit.). Porém, há quem afirme que o nome das vasilhas
estendeu-se aos escravos; o que representa uma analogia entre pessoas e
objetos que, identificados por um mesmo nome, representavam símbolos que
remetiam a um desejo de afastamento. Segundo Mario Sette (1948, p. 279), a
designação “seria alusão à coragem dos seus transportadores”. Outros
chegaram a afirmar que eles eram assim chamados, numa referência à
necessidade de evita-los, tal como feras homônimas, quando alguém os
encontrasse pelo caminho (RIBEYROLLES, op. cit.). E, ainda sobre a
origem do termo Tigre, alguns autores perceberam o uso desse como uma
referência às manchas que o conteúdo do barril deixava sobre a pele e roupa
desses cativos, o que, certamente, reportava as listras existentes na pele do
animal selvagem e, que serviam de inspiração para a designação tanto do
homem como do objeto (SOUZA, 2007, p. 56).
FIGURA 10: TIGRE
(Fonte: J. C. Guilhobel, 1814 – BN)
109
Tigre, esta expressão representa a identidade entre um recipiente para excrementos e o
homem que o esvazia, o excremento e o homem, ou o lixo humano. Figura tão insuportável
quanto o conteúdo que carrega, seria a propulsora de novas técnicas de gestão das sujidades
que hoje nos são tão familiares, como, por exemplo, a definição de horários de coleta e as
proibições de jogar o lixo em lugares públicos. Os tigres eram considerados os mais baixos da
escala de possíveis funções de um escravo de ganho, os piores dentre os piores, escravos
boçais, idosos, doentes e, até mesmo, crianças escravas que tinham como tarefa “capinar,
varrer, remover ciscos, águas estagnadas, lixo, lama e demais ‘objetos imundos’ que
atravancavam ruas, travessas, praças, becos e praias” (Ibid., p. 49).
FIGURA 11: ESCRAVOS VARRENDO A RUA – Debret – BN
As pessoas se afastavam dos tigres não apenas por considerarem sua tarefa repulsiva,
mas também por os acharem perigosos para a saúde pública, já que aquele corpo
transformara-se também em foco de contágio das mais variadas doenças. A consequente
poluição das praias, como no caso do Rio de Janeiro, também era reclamação dos citadinos
quanto ao trabalho dos tigres.
Souza salienta a rotatividade dos negros que desempenhavam esta função debilitante,
sendo muitos afastados por contraírem alguma doença recorrente do trabalho imundo, ou
110
serem designados para trabalhos mais lucrativos pelos seus senhores. Devido a tal
contratempo, a demanda por escravos que fizessem este tipo de função se intensificava.
A cidade experimenta uma tensão produzida pelo campo do insuportável, quando ao
mesmo tempo necessita e repudia aquilo que não suporta. Assim, o escravo que salva a casa
dos senhores daqueles resquícios cotidianos, sempre na iminência do apodrecimento, é o
mesmo escravo acusado de encardir as ruas e poluir as praias.
Estas tinas ocupavam os cantos das casas no lugar das costumeiras lixeiras e,
certamente, não representavam a melhor estratégia de acondicionamento das imundícies, já
que permitiam o escape do mau cheiro. Sendo do tamanho de um barril comum, estas tinas
permitiam o longo acúmulo das matérias pútridas, causando assombro aos estrangeiros que
conheciam os sobrados das cidades brasileiras coloniais.
Se dos dormitórios continuarmos para a cozinha, outras
inconveniências não se farão esperar. Entre as piores, acha-se uma tina
destinada a receber todas as imundícies e refugos da casa, que, nalguns
casos, é levada e esvaziada diariamente, noutros somente uma vez por
semana, de acordo com o número de escravos, seu asseio relativo e
pontualidade, porém, sempre que carregado, já sobremodo insuportável. Se
acontece de saber um súbito aguaceiro, logo surgem em geral essas tinas,
despeja-se-lhes o conteúdo em plena rua, deixando-se que a enxurrada o
leve. Nas casas em que não se usa desses barris, toda espécie de detrito é
atirada ao pátio, formando uma montoeira mais repugnante do que é possível
a uma imaginação limpa fazer ideia. E ali fica, ajudando a criar os insetos e
originando doenças, às espera de que as chuvas pesadas do clima tropical a
levem. A água que cai do pátio, depois assim impregnada, encaminha-se
para a rua, por meio de canais que passam por debaixo do assoalho da casa,
ou para dentro de um poço escavado bastante fundo para que comunique
com a camada arenosa inferior ao nível das águas altas, em que se dissolve,
ou através da qual uma parte encontra caminho para o mar (John Luccock,
1975, apud SOUZA, 2007, p. 28).
Este nojo fora alimentado pela cultura de um país que deixava de ser um território de
exploração, para se tornar um território a ser habitado, marcado pela chegada da família real
portuguesa em 1808. Os tigres concentravam em si o asco dos novos e higiênicos olhares
urbanos e, por isto mesmo, eram facilmente vigiados pela população, mesmo longe dos olhos
de seu senhor: “é indecoroso, insuportável e até escandaloso andarem pelas ruas desta Capital
a toda hora do dia pretos com barris de despejo infectando ao público” (SOUZA, 2007, p. 29).
Este argumento retirado de uma proposta de alteração nas Posturas da Câmara Municipal do
Rio de Janeiro de 1838, no que concernem as disposições sobre punição, pretendia detalhar os
diferentes tipos de infração: a determinação de horários para circulação dos tigres, geralmente
estipulada entre 10 ou 11 horas da noite até às 6 horas da manhã; punição àqueles que
111
jogarem lixo nas ruas; e a designação dos fiscais das freguesias como os executores das
respectivas posturas.
Luis Antonio Baptista narra tais mudanças através dos olhos da negra Muane, escrava
de uma família burguesa, que teria, como uma de suas incumbências, esvaziar no mar as
latrinas da casa de seus senhores. Muane percebe as mudanças das cidades:
O peso da tina a deixou tonta. Fazia calor naquela noite de março na
cidade do Rio de Janeiro. Retirando o suor que caía sobre os olhos, pôde ver
bem ao longe, na baía, alguma coisa estranha. Cansada de descarregar na
praia tanta coisa fedorenta, mesmo assim pôde perceber um grande número
de embarcações. O fedor já não a incomodava tanto, mas o corpo sentia as
marcas da higiene que a casa do senhor exigia (BAPTISTA, 1999, p.52).
Estas marcas cunhadas pelo saber médico-social que chegava com as embarcações
eram corroborados pelos instrumentos jurídicos criados pelas Câmaras Municipais em suas
Posturas. Durante o período imperial lusitano sediado em território nacional e logo após a
Constituição Monárquica, às Câmaras Municipais seriam atribuídas funções de administração
pública, dentre estas, a fiscalização do bom funcionamento urbano. Na promulgação da
primeira Lei Orgânica dos Municípios, como relata Souza (2007), sancionada pelo então
Imperador D. Pedro I (1º de outubro de 1928), as Câmaras municipais se encarregariam de
“tudo quanto diz respeito à polícia, economia das povoações e seus termos, pelo que tomarão
deliberações e promoverão por suas posturas sobre os objetos” (p. 23). Neste documento,
descrevem-se as atribuições do corpo policial, dentre elas, a vigília sobre o asseio público:
Título III – Posturas Policiais
Artigo 66 - § 2º: Sobre o estabelecimento de cemitérios fora do
recinto dos templos, conferindo a esse fim com a principal autoridade
eclesiástica do lugar; sobre a economia e asseio dos currais e matadouros
públicos; sobre a colocação de curtumes; sobre o depósito de imundícies e
quanto possa alterar e corromper a salubridade da atmosfera (Lei de
1º/10/1828, apud SOUZA, 2007, p. 23).
Portanto, além dos fiscais das freguesias e dos antigos almotacés, a sujeira vira caso de
polícia e os mais prejudicados seriam os tigres encarregados de transitar com as sujidades
pelas ruas da cidade. Os desentendimentos no acerto dos horários corretos de despejo dos
resíduos e o despejo inadequado em ruas, por parte dos tigres que não levavam até o destino
final suas tinas, eram as principais causas de punição. As chibatas eram o principal modo de
punição, como apresentado em texto de um dos fiscais de freguesia para constituição de uma
nova Postura: “o fiscal deverá requisitar soldados de Polícia para o acompanhar quando achar
112
necessário, achando infratores a sujar praças e ruas, os Fiscais mandarão dar pelos soldados
tantas chibatadas, sendo escravos, quantas o Fiscal achar convenientes, nunca mais de 25, ou
30” (AGCRJ, Códice nº 31-1-4, Limpeza Pública, 1831-1833 apud SOUZA, 2007, p. 30-31).
As Posturas de Câmara Municipal de 1830 e de 1838 dedicar-se-iam a regulamentar os
serviços de coleta e despejo dos detritos. Constava, portanto, na Postura de 1830, § 4º Tit. 6º,
Seção 1ª, o seguinte:
É proibido fazer qualquer gênero de despejo imundo, a excreção de
águas de lavagens de roupas, ou cozinhas, desde às 6 horas da manhã até às
9 da noite, os que fizerem despejos fora destas horas serão multados em
2U000 rs, respondendo o Senhor ou Amo pelo criado, ou escravo; não tendo
como pagar sofrerão 4 dias de cadeia. (SOUZA, 2007, p. 59).
Já o código de posturas de 1838 rezava o seguinte: “É proibido fazer qualquer gênero
de despejo imundo, à exceção de águas de lavagens de roupas ou cozinhas, desde as 6 horas
da manhã até às 11 da noite” (SOUZA, 2007, p. 28). Além de tais determinações havia
proibições como “lançar, ou consentir que se lance águas infectas, ou outras imundícies nos
quintais, áreas, e canos das casas” (Posturas da Câmara do Rio de Janeiro – 1830, In SOUZA,
2007, p. 58). Estas variações proibitivas causavam uma série de desentendimentos entre os
senhores de escravos e as autoridades públicas que tomavam por hábito prender qualquer tigre
que fosse acusado de alterar a ordem pública. Com efeito, um dos senhores de escravos
apresenta, em 12 de agosto de 1850, um reclamação formal à Câmara Municipal intitulada
“Os Tigres”, em que se subscreve:
Rogamos à Ilustríssima que marque uma hora certa em que se devem
conduzir à praia os tigres: porque se vão antes das 10 horas são presos, se
vão depois, presos são, e isto todos os dias é reproduzido, à vista de tanto
escândalo rogamos à Ilustríssima que marque uma hora certa, porque essa
falta me tem custado mais de 20 $ uma vez, por ir depois das 10 e à vista
disto não os entendo.
O Queixoso (SOUZA, 2007, p. 60).
Com tantos esforços para tornar invisível não apenas o lixo, mas também aqueles que
trabalhavam com o mesmo e a repercussão deste asco pelo lixo excremento e pelo lixo
humano, muitas eram as histórias de desentendimento entre tigres e transeuntes. A rua do
Ouvidor, famosa pelo seu comércio aquecido, durante o dia, e pelas lojas de perfume era um
dos trajetos favoritos dos tigres dada sua fácil e direta comunicação com o mar. O escritor
Joaquim Manoel Macedo, em sua obra Memórias da rua do Ouvidor (2005), descreve este
contraste entre dia e noite: “a rua do Ouvidor era de noite, e principalmente das oito horas em
113
diante, horrivelmente malcheirosa. Época dos tigres” (p. 139). O autor ainda relata duas destas
cenas de desavença entre tigres e citadinos. Na primeira delas, o escritor e também médico
brasileiro assim narra:
O inglês de chapéu de patente, casaca preta, e gravata branca subia pela rua
do Ouvidor, quando encontrou um negro que descia, levando à cabeça um
tigre para despejá-lo no mar.
O pobre africano ainda a tempo recuou um passo; mas o inglês que não sabia
recuar, avançou outro; o condutor do tigre encostou-se à parede que lhe
ficava à mão direita, e o inglês supondo-se desconsiderado por um negro que
lhe dava passo à esquerda, pronunciou a palavra goodemi, e sem mais tir-te
nem guar-te honrou com um soco britânico a face do africano, que, perdendo
o equilíbrio pelo ataque e pela dor, deixou cair o tigre para diante e
naturalmente de boca para baixo.
Ah! Que não sei de nojo como conte!
O tigre ou o barril abismou em seu bojo o chapéu e a cabeça e inundou com
o seu conteúdo a casaca preta, o colete e as calças do inglês.
O negro fugiu acelerado, e a vítima de sua própria imprudência, conseguindo
livrar-se do barril, que o encapelara, lançou-se a correr atrás do africano,
sacudindo do chapéu em estado indizível, e fradando furioso:
- Pegue ladron! Pegue ladron!
Mas qual – pega ladrão! –: todos se arredavam de inocente e malcheiroso
negro que fugia, e ainda muito mais do inglês, tornado tigre pela inundação
que recebera.
Era geral o coro de risadas na rua do Ouvidor (p. 140-141).
O inglês indignado ainda bradaria aos que dele caçoavam que iria reclamar ao ministro
da Inglaterra o ocorrido e que exigiria ser indenizado pelo chapéu e pela casaca perdidos em
definitivo pelo mau cheiro que os impregnava. Em outro caso, a vítima desta vez perderia
algo mais valioso que adereços de vestimentas:
Uma noite a bela senhora estava à janela, e à luz de fronteiro lampião viu o
namorado, que aproveitando o ponto de mais vivo clarão iluminador, lhe
mostrava, levando-o ao nariz, um raminho de lindas flores, que ia enviar-lhe,
quando nesse momento o cego apaixonado esbarrou com um condutor de
tigre, e embora não encapelado, foi quase tão infeliz como o inglês.
O pior do caso foi que a jovem adorada incorreu no erro quase inevitável de
desatar a rir, e logo depois, de fugir da janela por causa do mau cheiro de
que se encheu a rua.
O namorado ressentiu-se do rir impiedoso da sua esperançosa e querida
noiva; amoroso, porém, como estava, dois dias depois tornou a passar diante
das queridas janelas.
Novo erro: a formosa viúva ao ver o estudante, saudou-o doce, ternamente;
mas levou o lenço à boca para dissimular o riso lembrador de ridículo
infortúnio.
O estudante deu então solene cavaco, e não apareceu mais à bela viuvinha.
Um tigre matou aquele amor.
114
Com efeito, amor todo cheio de poéticos sonhos, não podia resistir à
realidade fatal da materialíssima influência ridícula do tigre.
O estudante, noivo já infeliz antes de casado, não quis expor-se aos risos da
noite ainda depois do casamento.
E o tigre foi causa de morrer viúva, e de morrer solteiro, ambos
precocemente, aquele par de ternos namorados.
A edilidade do Rio de Janeiro lembrou-se enfim de banir os tigres
(MACEDO, 2005, p. 141-142).
Talvez, destes dois casos, o mais expressivo seja aquele que reflete a indignação do
inglês, não apenas com referência ao asco que sentia pelo escravo e sua tina, como também
pelo asco ao escárnio sofrido pelos que presenciaram tal desventura. Os hábitos espúrios,
quase selvagens, galgados pela falta de higiene de escravos e moradores antigos do Rio de
Janeiro teriam então seus dias contados, assim como a função dos tigres. A cidade não poderia
mais comportar a presença tão explícita dos excrementos orgânicos, tampouco, dos
excrementos humanos. Os tigres testemunham as mudanças, e os moradores mais humildes
eram expulsos das regiões centrais da capital do império. Baptista expressaria tais mudanças
através dos olhos da negra Muane:
Aos poucos a cidade ficava pequena para tanta gente. No trajeto
diário com sua tina, Muane reparava os novos proprietários das casas e dos
sobrados. Até as janelas estavam diferentes. Por ordem do príncipe o cortejo
precisava de abrigo e, temendo ser atacado por tiros ou pedras, mandou
retirar as pequenas janelas. Só a Coroa teria o direito de ver sem ser vista. O
velho gordo português começava a mostrar sua cara. Os donos de outros
negros que Muane conhecia entregavam suas casas e debandavam irritados
para outras freguesias. Ao vê-los sair carregando seus baús, amaldiçoando o
monarca e sua gente, sorriu debochada debaixo da tina. Além de terem
perdido suas posses, eram vistos com maus olhos pelos novos proprietários.
Não usavam lenços perfumados, falavam alto, jogavam lixo nas ruas,
pareciam bichos. A cidade estava mudando e essa gente precisava
acompanhar a nova alma do Rio de janeiro, diziam os novos proprietários
cheios de babados com suas caras de anjo de igreja. (...) A sujeira dos donos
e a presença dos negros nas ruas faziam aquela gente torcer o nariz
(BAPTISTA, 1999, p.57).
Na Câmara Municipal, por volta de 1850, coincidentemente período da Lei Eusébio de
Queirós, que colocava fim ao tráfico negreiro, os vereadores iniciavam suas articulações para
as devidas mudanças no sistema de escoamento do lixo. Conforme nos demonstra a pesquisa
da Andréa Dias Cunha Souza (2007), um destes vereadores, Dr. Tomaz José Pinto, apontava
para os graves problemas do sistema de escoamento pelos tigres levados ao mar, tornando-o
“receptáculo de todas as imundícies”, e para o fato de que “a beira do mar, que é por toda
parte o lugar mais aprazível, é entre nós lugar d’onde todos fogem” (p. 32-33). A proposta do
115
dito vereador era atentar para a necessidade de se criarem depósitos públicos para os resíduos
pútridos e excremenciais, de modo a tratá-los com o intento de reaproveitá-los como adubo ou
enterrá-los. Para o transporte, acondicionamento e tratamento destas matérias mefíticas,
sugeria-se a criação de uma empresa que seria paga com a cobrança de taxas específicas ou,
até mesmo, com a arrecadação de impostos.
A partir de tais discussões, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro apresentou um novo
regulamento para a limpeza geral da capital do império. Neste documento analisado por
Souza (2007), constam trechos em que se salienta o estado pútrido da capital e se destaca o
“estado de vergonha e desgraça” que toma conta dos habitantes perante os estrangeiros que a
visitam.
Sendo indispensável por termo ao vergonhoso e nocivo abuso de se fazerem
os despejos das matérias fecais no litoral desta populosa cidade, em velhos e
abertos barris conduzidos à cabeça de escravos, atravessando as ruas à
diferentes horas e incomodando e vexando aos que nelas transitam; e além
de tudo isto causando, pela infecção direta do ar atmosférico, grande dano à
saúde pública, e aí dando incremento ao descrédito e desdouro dos seus
briosos habitantes, que por este motivo, sofrem grande quebra no conceito
dos numerosos estrangeiros que quotidianamente aqui aportam, a Câmara
reconhece o seu indeclinável e obrigatório dever de cogitar e propor o meio
mais conducente para por termo a este estado de vergonha e desgraça
(AGCRJ, Códice nº 31.1.30, Limpeza Pública, 1851-1859, fls. 7 e 8, apud
SOUZA, 2007, p. 34).
O novo regulamento seria apresentado com mudanças que anunciariam os tempos de
modernidade para o Brasil ainda com ares coloniais. A iminente abolição da escravidão e o
crescimento do serviço assalariado, cuja principal mão-de-obra era composta por estrangeiros
e não por negros, implicaria alterações cruciais no sistema de coleta dos dejetos. O
crescimento e início, mesmo que ainda tímido, do consumo de produtos industrializados pelos
cariocas implicaria a demanda por um serviço mais rápido e padronizado desta coleta. Neste
ínterim, o novo regulamento para a limpeza geral da cidade do Rio de Janeiro apresentava em
seu primeiro artigo os ditames do novo sistema:
§1º - todas as ruas, praças e praias desta cidade serão totalmente varridas e
limpas ao menos 2 vezes por semana, não só do lixo, como também da lama
e da terra solta.
§2º - As carroças para a condução do lixo serão de caixões, para neles
receber as matérias sujeitas à putrefação e a lama, na parte inferior, e na
superior o lixo e a terra.
§ 3º - Este serviço será feito desde o amanhecer até às 8 horas da manhã (...).
116
§ 4º - As carroças serão conduzidas por animais vigorosos e guias
descentemente vestidos (AGCRJ, Códice nº 31.1.30, Limpeza Pública, 18511859, fls. 7 e 8, apud SOUZA, 2007, p. 34).
Assim são circunscritas as novas condições para o surgimento de outro tipo de
personagem que irá se configurar como trabalhador das sujidades. Não mais escravo e não
mais a pé; não mais lidaria apenas com as matérias putrefatas e os excrementos. Neste
contexto de carroças e trabalhadores livres, outras tensões irão motivar a construção de uma
nova série de condutas a partir da gestão do lixo, que serão vistas a seguir.
5.3 Trapeiros e carroceiros no Brasil
A atividade dos trapeiros se difunde no Brasil em finais do período colonial e início da
Primeira República. Rosana Miziara, em seu livro Nos rastros dos restos: as trajetórias do
lixo na cidade de São Paulo, apoia-se em um levantamento sobre as características de tal
ofício feito pelo Dr. Marcondes, para marcar esta difusão pela cidade de São Paulo no ano de
1896. Conforme a autora, esse levantamento constitui o primeiro estudo registrado sobre as
funções e repercussões do trabalho do trapeiro no Brasil. O estudo marca ainda a
intensificação de tais trabalhos a partir de 1918, por causa da primeira grande guerra.
Neste levantamento, o Dr. Vieira Marcondes apontava a relação de exploração
existente entre duas frentes de trabalho: aos trapeiros catadores, era reservado o direito de
saírem primeiro às ruas para realizar a coleta e seleção de papel, trapos, ferros e zinco; os
trapeiros atacadistas recebiam o material já enfardado pelos catadores para comercialização da
matéria-prima para as indústrias interessadas (MARCONDES, s.d.).
Em sua maioria, estes trabalhadores eram imigrantes espanhóis (PINTO, 1994), e a
emergência desta atividade se caracterizava por ser um negócio rentável (ao menos para os
atacadistas) e, em razão deste mercado proeminente, veem-se as primeiras expressões de
industrialização e reaproveitamento do lixo em grande escala. Para se ter uma noção da
dimensão deste comércio, muitas cargas de trapo provinham do interior do Estado de São
Paulo, e algumas eram importadas de Argentina e Europa. Efeito disto é a criação do
Desinfectório Central nos portos de Santos e Rio de Janeiro, na tentativa de amenizar o
aspecto repugnante destas importações mefíticas. Miziara destaca quem eram estes
profissionais do lixo e sua relação com esta industrialização dos dejetos.
Nesse relatório encontram-se vários registros fotográficos, em que é possível
perceber a grande quantidade de crianças envolvidas tanto na catagem
quanto na separação. Tratava-se de um trabalho realizado por homens e por
117
mulheres. Um dos registros mostra que o material da catagem era guardado
embaixo da cama do catador. Esses registros iconográficos demonstram o
quão usual era a convivência das pessoas com o lixo. A despeito das
recomendações e proibições do serviço sanitário. Essa quantidade
significativa de depósitos de trapos, essa verdadeira indústria informal ou
não-oficial do lixo revela o quanto a reutilização dos dejetos e sua
transformação em mercadoria não foram uma tendência exclusiva dos
industriais. Esse estudo é de 1919, no ápice da indústria de trapos.
Entretanto, desde o final do século passado essa discussão já vinha à baila
(MIZIARA, 2001, p. 71).
Este ofício era condenado por médicos e autoridades públicas, que alertavam sobre a
falta de higiene nas atividades da função, pois seus trabalhadores não lavam as mãos para
comer, funcionando como vetores de várias doenças contagiosas. No entanto, este discurso
médico social trazia como eixo político o interesse em um mercado crescente de “uma
atividade lucrativa que estava nas ‘mãos’ dos ‘outros’” (MARCONDES, apud MIZIARA,
2001, p. 76).
Em razão desta disputa de mercado, a autora atenta para a proliferação de decretos,
portarias e leis municipais a partir de 1914, que teve por objetivo ordenar o reaproveitamento
de trapos e outros restos urbanos como matéria-prima industrial. Muitos destes decretos
tinham como fim último restringir esta função às grandes companhias, de modo a retirar dos
ambulantes sua matéria de subsistência.
Ao se verificar tal legislação nos arquivos da Câmara Municipal de São Paulo,
encontra-se o ACTO nº 721 de 3 de outubro de 191429 que, em seus artigos, determina a
proibição das atividades de catação, reaproveitamento e venda dos materiais despejados pela
cidade a outro que não seja funcionário do Serviço de Limpeza Pública do município.
Art. 31 – Só nos depósitos designados pelo Prefeito poderá ser feita
a catação e venda do lixo por empregados da Limpeza Publica.
Art. 32 – A catação consiste em separar os refugos sólidos, que
tenham applicação industrial (latas, folhas, trapos, papel), dos que não
tenham, e também dos refugos animaes e vegetaes que tenham applicação
agricola.
§ 1º - As latas e folhas, depois de atijoladas, na prensa municipal,
serão vendidas.
§ 2º - Os trapos e papeis aproveitados para fim industrial serão
tratados hygienicamente.
§ 3º - O aproveitamento industrial do lixo, que não for tratado
convenientemente, e o aproveitamento agrícola serão immediatos, sendo
29
Prefeitura Municipal de São Paulo, Limpeza Publica. ACTO n. 721, de 3 de outubro de 1914.
http://camaramunicipalsp.qaplaweb.com.br/iah/fulltext/actos/A0721-1914.pdf. Acesso em: 28 mai. 22012.
118
prohibido o deposito provisório do lixo por mais tempo que o necessário
para seu respectivo aproveitamento.
§ 4º - O lixo aproveitado para fim agrícola, será immediatamente
m
enterrado em vallas, cuja profundidade não será menor de 0 ,15 (ACTO nº
721 de 3 de outubro de 1914).
Como visto em outros momentos, os aparelhos jurídicos caracterizam este tipo
estratégico de organização das cidades e retalhamento daquilo que foge ao projeto moderno
de urbanidade. A organização da Limpeza Pública implica a reconfiguração da ação dos
trapeiros, sucateiros, recolhedores de vidros, substituindo-os pela contratação de funcionários
que respeitarão, pela força salarial, as normativas presentes em tal “Acto Legal”.
O que se apresenta aqui, em 1919, é um conjunto de normas de conduta que
circunscrevem os modos de tratar os dejetos, a fim de transformá-los em mercadoria, um bem
de capital. Para tanto, se institui um conjunto de procedimentos, técnicas, saberes, valores e
modos de relações entre várias instâncias organizadoras do mundo social, tais como: o Estado,
na constituição de leis, decretos, portarias; a ciência, na produção de saberes sobre os modos
de ser das coisas e dos homens; as indústrias, no desenvolvimento da eficácia dos modos de
produção; as formas de organização dos mercados, na gestão das riquezas etc., a fim de bem
governar as condutas sobre o que é o proibido e o que é franquiado, o que é o útil e o que é o
inútil.
Para o serviço de remoção do lixo, foi prevista pelo mesmo aparato jurídico a
contratação de 267 funcionários (134 “carroceiros de collecta e remoção” e 133 “ajudantes”).
Nestes moldes, não cabe aos trapeiros errar pelos espaços urbanos, pois a legislação prevê
horário de início (após a meia-noite) e término de suas atividades (até às 5hs da manhã), de
modo a torná-los invisíveis às luzes do dia. A padronização das carroças e uniformes despe a
personagem romântica e poética do século XIX e faz aparecer um tipo de profissional que age
em acordo com a racionalidade das normas médico-higienistas do século XX, no contexto
brasileiro.
Mesmo que estes funcionários do Estado fossem compostos pelos antigos trapeiros,
estes seriam inseridos em todo um funcionamento hierárquico, normatizado e burocratizado,
tendo como efeito a produção de outra personagem, inscrita no arranjo das cidades modernas
e seu novo modelo de gestão urbana. Do mesmo modo, os tipos de dejetos irão se constituir
como outra materialidade social. O lixo já não é o mesmo.
Assim, as vestes desse novo trapeiro não apresentam mais um caráter puído e
desatencioso, e as carroças, por determinação legal, devem ser constantemente limpas e
desinfetadas, de modo a diminuir ao máximo a insuportável experiência sensorial da
119
podridão. O próprio ritmo do carroceiro não pode mais então ser aquele cambaleante trapeiro
de Baudelaire. A legislação de 1914 restringe a possibilidade de pausas, desatenções, desvios
do trecho de coleta, usos indevidos da carroça e conversas com outros que não os diálogos
necessários para execução do serviço de remoção.
Este(a) novo(a) profissional/personagem público(a) agrega, portanto, as atividades de
diferentes personagens que vivem do material residual da urbanidade: trapeiros, sucateiros,
coletores de garrafas, coletores de ossos... Todas estas figuras representam os resíduos de
memória provinciana e se tornam objeto de produção de esquecimento para o projeto da
modernidade. Na mesma legislação, na tentativa de esgotar as possibilidades de existência de
outros sujeitos viverem do lixo, descreve-se aquilo que seria objeto de coleta destes
profissionais do Estado.
Art. 2º - Lixo, para os effeitos de remoção pela Limpeza Publica,
abrange todos os detritos animaes, vegetaes, mineraes e industriaes,
encontrados nas vias publicas, e também todos os detritos domiciliares
sólidos, resultantes da limpeza de qualquer prédio, estabelecimento ou casa
de habitação, inclusive jardins, pateos, cozinha e quaesquer dependencias.
§ 1º - Não constituem lixo:
a) Os objectos de uso domestico que, pelas suas dimensões e peso,
não caibam nos recipientes destinados a conter os detritos
domiciliares;
b) Os resíduos vegetaes, provenientes da limpeza e poda dos
jardins e chácaras, bem como terra, estrume e cousas
semelhantes, que, pela sua quantidade, não caibam nos
recipientes destinados a conter os detritos domiciliares;
c) Os resíduos industriaes de qualquer natureza, os objectos e
artigos imprestáveis ou condemnados para o consumo, que, pela
sua quantidade, não caibam nos recipientes destinados a conter
os detritos domiciliares;
d) Os restos de materiaes de obras ou construcções e o producto de
demolição e entulho de qualquer natureza.
§ 2º - Esses productos, resíduos e objectos não serão removidos pela
Limpeza Publica, mas esta é obrigada a acceital-os nos logares de destino
final do lixo (ACTO nº 721 de 3 de outubro de 1914).
No Rio de Janeiro, esta função de remoção do lixo orgânico e inorgânico dos
domicílios também era realizada por carroceiros na virada do século. Todavia, ao contrário do
que prevê a legislação paulistana, trabalhavam de forma autônoma. Esta autonomia, por
efeito, produz outra personagem do lixo que iria provocar diferentes tensões entre sua
possibilidade de existência e as normas da cidade: o carroceiro.
Com o crescimento das cidades, os serviços de remoção de lixo se tornavam cada vez
mais necessários. Como visto anteriormente, a cidade do Rio de Janeiro incomodava pelo mau
120
cheiro e pelas falhas na remoção e destinação das matérias putrefatas. Estudos no campo da
história registram o aumento da presença destes trabalhadores da rua, como os cocheiros,
responsáveis pelo transporte de pessoas, e os carroceiros, responsáveis pelo “carregamento de
materiais de construção, aterro, lixo, água (...), fretes de café, couro, tabaco, mandioca e
farinha” (MOURA, 1988, p. 44).
O aumento pela demanda deste tipo de serviço, realizado prioritariamente por
trabalhadores livres e autônomos, mesmo no período de escravatura, cria uma tensão não
apenas frente à administração municipal, como também uma tensão de domínio de mercado,
até então sem precedentes no Brasil.
Em estudo realizado por Paulo Cruz Terra (2007), sobre os carregadores, cocheiros e
carroceiros no Rio de Janeiro, entre os anos de 1824 a 1870, o autor se baseia nos registros
sobre licenças para uso de carroças e seges para carregamento de mercadorias e transportes de
passageiros, bem como nos registros da Casa de Detenção sobre cocheiros e carroceiros
presos. Neste estudo nota-se uma evolução no número destes trabalhadores, com especial
atenção para os homens livres que compunham tais ocupações.
Trabalhadores do setor de transporte no Rio de Janeiro (1824-1870)
Considerando o fato de, entre os anos de 1849 e 1872, a população carioca não ter tido
um aumento considerável - de 266.466 para 274.972 habitantes, respectivamente –, enquanto
a presença destes profissionais aumentou de modo tão expressivo, pode-se pensar a
importância de tal função na capital colonial. Vê-se também que, ao contrário do que se
poderia dizer, os trabalhadores livres representam um percentual importante neste ofício,
mesmo tendo sua participação diminuída durante o período apresentado.
Os arquivos pesquisados da Casa de Detenção são recorrentes em outra pesquisa do
mesmo autor, porém com o foco nos movimentos grevistas de cocheiros e carroceiros entre os
121
anos de 1870 e 1906 (TERRA, 2012). Os arquivos policiais ainda serviram de fonte, pois ali
eram feitas as matrículas de veículos de cocheiros e carroceiros.
Perfil dos trabalhadores do transporte nas estatísticas policiais (1873-1884)
1873
1875
1880
1884
- Trabalhadores livres
2742
3238
5591
5014
Nacionais
302
221
709
285
Estrangeiros
2441
3017
4882
4729
- Trabalhadores escravos
292
250
158
-
Total
3034
3488
5749
5014
Fonte: Relatórios dos Chefes de Polícia do Rio de Janeiro referentes aos anos 1873, 1875, 1880 e 1884
(Terra, 2012, p.107).
A partir de tais dados, às portas do século XX, carroceiros e cocheiros, com suas
carroças de mão ou de tração animal e suas seges devidamente registradas, perfaziam mais de
cinco mil trabalhadores livres e autônomos. Segundo o Censo de 1890, a população no Rio de
Janeiro ultrapassava os 500.000 habitantes. Terra faz uma comparação entre a distribuição por
nacionalidade desta população e as nacionalidades destes trabalhadores com registros da Casa
de Detenção.
Nacionalidade dos trabalhadores do transporte detidos na Casa de Detenção (1890-1906) e
da população nos Censos de 1890 e 1906
Nº de
trabalhadores
Nacionalidade
do transporte
(1890-1906)
Brasileiros
174
%
Censo de
1890
%
Censo de
1906
%
43,3
367.449
70,3
600.921
74
Portugueses
172
44,7
106.461
20,3
133.393
16,4
Italianos
18
4,6
17.789
3,4
25.557
3,1
Espanhóis
18
4,6
10.750
2,0
20.669
2,5
Outros
2
0,8
20.202
4
30.904
4
384
100
522.651
100
811.444
100
Total
Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), Livros da Casa de Detenção 63, 69, 127, 130,
135, 136, 137, 138; Recenseamento do Rio de Janeiro (Districto Federal). Realizado em 20 de Setembro de
1906. Rio de Janeiro: Oficina de Estatística, 1906 (Terra, 2012, p. 105).
122
Brasileiros e portugueses dividiam 88% do total de detidos, o que aponta para a
predominância destes dois grupos entre os carroceiros responsáveis pela remoção de lixo no
Rio de Janeiro. No mesmo período, o autor informa ainda que 70% dos detidos trabalhadores
do transporte eram brancos e apenas 30% de negros, morenos e pardos.
Cores dos trabalhadores do transporte presos na Casa de Detenção
Fonte: APERJ, Livros da Casa de Detenção 63, 69, 127, 130, 135, 136, 137, 138 (Terra, 2012, p.106).
FIGURA 12: GRÁFICO-TRABALHADORES DO TRANSPORTE (APERJ)
Os carroceiros estão configurados em outra forma de aparecer na sociedade, diferente
dos tigres ou trapeiros. Em sua maioria branca, sendo mais da metade formada por
estrangeiros, esta categoria agrega outro registro de relação com o funcionamento das cidades
e suas estratégias de governo. A particularidade de tal registro passa pelas tentativas de
ordenação dos serviços de remoção e transporte de lixo, pois se reconhece neste tipo de ofício
uma nova área de expansão no mercado de serviços públicos. Como o lixo se torna problema
de gestão pública, aqueles que daquela matéria vivem, por efeito, também o serão. O lixo
enunciado como objeto de mercado implicaria um novo posicionamento das relações
humanas. Para isto, fez-se necessária a produção de mecanismos jurídicos para
regulamentação deste mercado e, por consequência, do lixo como propriedade.
Um dos efeitos que se faz evidente está nas normativas públicas sobre reordenação do
trabalho dos carroceiros responsáveis pela remoção, transporte, reaproveitamento e disposição
final do lixo. Não por acaso, neste mesmo período registrou-se o maior número de
manifestações de greves lideradas pelos carroceiros e cocheiros do Rio de Janeiro. Estes
123
operários do transporte de coisas e pessoas foram responsáveis por um total de 22 greves,
tornando-se, juntas, as categorias que mais se mobilizaram entre 1870 e 1906.
Moura (1988) afirma que este tipo de regulamentação se intensifica a partir de 1850,
embora houvesse registros de mecanismos jurídicos anteriores, como a postura de 1838, que
instituía a necessidade de que os trabalhadores de ganho, fossem eles escravizados ou livres,
retirassem suas licenças junto aos chefes de polícia.
Antes de tais regulamentações, o serviço dos carroceiros caracterizava-se pela
autonomia de uma organização própria, movida mais pelas necessidades do cotidiano do que
pelas ações preventivas e protecionistas do Estado. Moura (1988) oferece os tons de tal
característica: “seus pontos de concentração e circulação são ditados pelo que lhe aparece
como mais vantajoso para venda de produtos ou para pegar cargas; (...) somando-se a estes
fatores um baixíssimo índice de alfabetização, se torna claro o porquê da diluída união de
grupo manifestada de maneira tão rara” (p.44).
Outra característica desta reconfiguração está na substituição dos carregadores, em sua
maioria escravos, pelo novo serviço carroceiral. Terra (2012) aponta que neste período inicial
de atividade, entre os anos de 1837 e 1870, apenas 1% das licenças para uso de carroça se
referia às licenças individuais e não repetidas para o mesmo proprietário, caracterizando,
portanto, que, em sua maioria, cada catador possuía sua própria carroça, o que lhe garantia o
caráter de autonomia no ofício. Neste mesmo período, dos 323 carroceiros e cocheiros que
tiveram sua nacionalidade declarada, 78,6% eram portugueses (TERRA, 2012, p. 40).
Estes imigrantes, quando chegavam ao Brasil, dispunham de precárias condições
financeiras e, por terem seus compatriotas ocupados em tal ofício, acabavam por aderir ao
mesmo. As carroças de mão eram as mais baratas e, portanto, as preferidas pelos carroceiros,
o que culminou na alcunha de burros sem rabo, que permanece até hoje como um termo
pejorativo para se referir aos catadores de materiais recicláveis.
Além do serviço de remoção de lixo, os carroceiros faziam mudanças, carregavam
trastes (revenda de roupas e móveis usados) e ainda realizavam fretes de material de
construção, forragens para os animais de cocheiras, água, produtos para venda nos armazéns
como café, couro, tabaco, mandioca em farinha, azeite, frutas européias para as casas de
importação e exportação, dentre outros tantos artigos do cotidiano carioca. Moura (1988)
ainda salienta a importância destes trabalhadores no desenvolvimento da cidade.
Os carroceiros são os pioneiros da formação da infra-estrutura de
abastecimento e serviços urbanos por via terrestre, que vão abrir os
124
caminhos e ligar os mercados da cidade. A pequena capacidade de carga é
compensada pelo número de veículos. Sua importância está ligada, muito
estreitamente, ao crescimento e às novas necessidades do Rio, formando um
grupo numeroso e específico da sociedade carioca. Aí está um dos mais
importantes canais de absorção da mão-de-obra pobre, livre e desqualificada,
abundante na Corte e que, devido ao sistema escravagista, não podia ser
colocada em outras atividades. Os carroceiros fazem parte da camada mais
pobre da população livre e nacional. (...) Sua renda ínfima o faz compartilhar
“a canalha dos cortiços” que fazem o grosso das moradias das paróquias
urbanas, longe até das modestas pensões dos empregados do comércio. É
uma atividade tão modesta, de rendimentos tão parcos, que sequer atrai os
proprietários de escravos ao ganho (p. 44-45).
Os serviços de carroça foram, paulatinamente, ocupando o mercado dos homens/
carregadores e, em 1872, já se podiam contar 120 carroças registradas para tal fim. Um dos
principais serviços era a remoção de lixo dos domicílios, antes realizada por escravos cativos.
A predominância destes profissionais no mercado de remoção de lixo começa a chamar a
atenção de empresas como a Nunes de Souza & C. que, junto à Câmara Municipal, articula os
meios para conseguir o monopólio de tal serviço, tirando o caráter autônomo empreendido
pelos carroceiros que, por sua vez, cobravam por seus serviços diretamente dos moradores dos
domicílios cariocas.
Ao longo de 1873, (...) um amplo debate surgiu a respeito do monopólio da
empresa. A instituição, camarária, como forma de garanti-lo, cassou as
licenças que permitiam que os carroceiros que trabalhavam por conta própria
exercessem seu ofício e apreendeu os veículos dos que continuaram
trabalhando. Nesse caso, como em muitos outros que envolviam a concessão
de serviços públicos, as empresas contaram não só com as “leis de
mercado”, mas principalmente com as leis das instituições do governo para
se estabelecerem, pois procuravam assegurar os ganhos de capital através da
garantia de monopólios. Contudo, a empresa não deu conta do serviço e a
Câmara concedeu as licenças novamente aos trabalhadores. Estes, por sua
vez, se recusaram a trabalhar alegando que a autorização era condicional e
poderia ser removida a qualquer instante (TERRA, 2012, p. 42).
Tal evento sinaliza um período de intenso embate entre as representações imperial e
municipal do poder público e, ainda, entre os empresários e carroceiros autônomos. Com o
aumento da demanda pela remoção de lixo nos domicílios da cidade do Rio de Janeiro, este
negócio apresentava-se bem lucrativo e as regulamentações sobre este serviço não tardaram
em se apresentar. Neste ano de 1873, empreendeu-se um largo debate entre a Câmara
Municipal e o poder imperial sobre a concessão do serviço. O autor expõe a indignação de um
dos carroceiros que, ao ver-se impossibilitado de exercer seu ofício, enviou um requerimento
à Câmara, salientando “que tendo ido tirar licença foi-lhe essa negada pelo respectivo
125
empregado o Sr. Contador, como prova o documento junto, no qual estão declarados que as
carroças sem licença não podem trabalhar na remoção do lixo” (Jornal do Commercio,
18/05/1873, apud Terra, 2012, p. 142).
Este mesmo jornal, que deu visibilidade ao embate sobre a remoção do lixo,
reproduziu a resolução do governo imperial, datada de 11 de julho do mesmo ano, em que se
subscrevia:
“é permitido fazer a remoção do lixo por indivíduos de seu serviço
doméstico ou estranhos, e por quaisquer meios de transporte, inclusive por
carroças próprias ou alugadas, contanto que a licença de que o emprego
desses veículos seja limitada às casas das que não quiserem sujeitar-se ao
contrato feito pela Ilma. Câmara” (Jornal do Commercio, 02/08/1873, apud
TERRA, 2012, p. 142).
Tal parecer foi discutido na sessão da Câmara em 23 de agosto de 1873, em que o
vereador Francisco Teixeira de Souza Alves alerta para o fato de as empresas especializadas
serem desfavorecidas frente à resolução imperial, já que as mesmas arcavam com pesados
ônus para a execução de seu negócio, enquanto os carroceiros, sem nenhum ônus sobre seus
serviços, estariam em vantagem (Terra, 2012, p. 142). O mesmo vereador propunha então
que:
“Art. 1º. Somente serão licenciadas para a remoção do lixo das casas
particulares, as carroças dos Empresários contratantes Municipais.
Art. 2º. Qualquer particular poderá remover o lixo de sua casa, sem
licença especial da Câmara, se a fizer por pessoa estranha, ou carroça de
aluguel.
Art. 3º. Neste caso se declarará na licença o número da carroça,
sendo vedado concedê-la a uma mesma carroça para mais de cinco casas.
Art. 4º. Ficam sem nenhum vigor desde o dia 1º de setembro as
licenças condicionais concedidas este ano para a remoção do lixo das casas
particulares” (AGCRJ, Códice 17.2.13, folha 162, apud TERRA, 2012, p.
142).
Tantos os carroceiros, por meio de seu advogado Fortunato Filho, como a população
expuseram seu descontentamento. Por parte dos carroceiros, seu advogado foi aos jornais
contestar o uso do aparato público em favor aos monopólios empresariais e contrários à
liberdade de indústria e mercado. O Ministério do Império interferiria novamente alterando o
artigo terceiro de tal proposta. Os moradores, por sua vez, também manifestavam seu
descontentamento nos jornais, ameaçando não entregar seu lixo a qualquer estranho.
126
Questão do lixo.
Como chefe de família, não posso, sem quebra da minha dignidade,
consentir que o interior a minha casa seja todos os dias devassado por
qualquer, nem tão pouco sujeitar-me às imposições e outros vexames de uma
empresa monopolista.
Declaro, pois, que pela minha parte empregarei todos os esforços para
que a autoridade que exerço no meio da família não seja uma sombra, nem
tão pouco seja aniquilada ao aceno de quem quer que seja (Francisco
Antunes Guimarães – Jornal do Commercio, 12/11/1873, apud TERRA,
2012, p. 145).
Lixo, lixo, lixo!
As carroças foram a agarradas, não tenho quem me faça o serviço,
portanto, depois das 10 horas, lixo para a rua.
O indignado”.(Jornal o Commercio, 13/11/1873, apud TERRA, 2012,
p. 145).
Monopólio do lixo.
Mostraremos um dia o que somos.
Abaixo o monopólio! Abaixo o monopólio!
Um do povo
(Jornal do Commercio, 14/11/1873, apud TERRA, 2012, p. 145).
Em 15 de novembro, às nove e meia da noite, alguns moradores atiraram seu lixo às
ruas em torno na Praça do Mercado. Outros eventos semelhantes tornaram a acontecer no
decorrer deste mesmo mês, sendo que em alguns deles ainda foi atirado fogo aos montantes
de lixo. A preocupação com tais revoltas e com a greve dos carroceiros, que durou três dias,
resultou na leitura, na Câmara, em 28 de novembro de 1873, da resolução do Ministério dos
Negócios, que permitia aos moradores eleger o carroceiro a sua escolha para o serviço de
remoção de lixo, estando as duas partes de comum acordo, sem a necessidade de licença
específica para tal.
Nos anos posteriores, outras Posturas foram anunciadas pela Câmara que, se não para
proibir, tinham o objetivo de imprimir regras rigorosas no uso das carroças, como horários
para sua circulação, desodorização e higienização dos veículos. Em1876, nova greve foi
articulada entre os carroceiros autônomos, em oposição à Postura de 9 de março de 1875, que,
em suas determinações, faz ressaltar: permissão para remoção do lixo apenas até às 9 horas da
manhã, multas injustas, apreensão de carroças no depósito sem lei que isso autorizasse
(TERRA, 2012, p. 150).
Também neste levante, devido ao apoio da imprensa e dos moradores e ao receio com
os problemas de salubridade, notados pela Câmara com o acúmulo do lixo pelas ruas, no dia
127
19 de fevereiro de 1876, “a Câmara Municipal, a polícia e o Ministério do Império tiveram de
dar a mão à palmatória da nobre classe carroceiral” (Id. p. 150), ocasionando na revogação da
mesma Postura.
No início do período republicano no Brasil, o sucesso nas mobilizações de carroceiros
e cocheiros não se repete. O contexto está circunscrito pelo novo Código Penal de 1890, que
substitui o antigo Código Criminal do Império que vigorava desde 1831. Tanto este como
outros instrumentos jurídicos teriam como objetivo “a organização de outro pacto de poder,
que pudesse substituir o arranjo imperial com grau suficiente de estabilidade” (CARVALHO,
1991, p. 31). O ponto de tensão entre carroceiros e cocheiros é relatado pelo historiador Paulo
Cruz Terra:
Segundo o Jornal do Commercio [(02/12/18980, p.1)], os cocheiros e
carroceiros alegavam que a parede ocorria motivada pela “notícia que
tiveram que o Congresso Nacional ia decretar uma lei que punia com pena
de 15 anos os cocheiros que atropelassem um indivíduo e com a de 30 anos
os que fossem causa involuntária de morte de alguém”. Alguns paredistas
chegaram até a afirmar que o governo os mandaria degredados para
Fernando de Noronha. O periódico indicou que eram infundados os motivos
alegados pelos trabalhadores, tendo em vista que as penas mencionadas não
estavam previstas no Código Penal. No artigo 298 deste, segundo o jornal,
estava indicado que aquele que por imprudência na sua arte ou profissão
cometesse ou fosse causa involuntária, direta ou indiretamente, de um
homicídio, seria punido com prisão celular por dois meses a dois anos (2012,
p.155).
Outros periódicos da época também criticavam tal mobilização, a maior até então
entre as duas categorias. O jornal O Paiz (02/12/1890, p.1) afirmava que não passava de “um
estratagema indigno, criado nas trevas por inimigos da pátria, que nem mesmo meditam as
conseqüências da ignomínia, iludindo aos cocheiros e exacerbando o espírito público” (apud
TERRA, 2012, p. 155).
Ao mesmo tempo, desenvolvia-se uma política higienista considerada necessária para
os preceitos de uma cidade moderna. A rua seria um de seus maiores pontos de intervenção e
seus acúmulos e hábitos deletérios teriam então que ser exorcizados dos olhos burgueses. O
Código Penal de 1890 seria um dos instrumentos a serviço de tal ordenação e, em um dos
artigos mais representativos sobre esta nova ordem, ver-se-ia uma determinação que
classificaria os trabalhadores de rua como possíveis vadios e capoeiras. Consta, portanto, no
artigo: “deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que ganhe a vida, não
possuindo meios de subsistência e domicilio certo em que habite; prover a subsistência por
128
meio de occupação prohibida por lei, ou manifestamente offensiva da moral e dos bons
costumes”30.
Neste processo, conheceu-se uma verdadeira perseguição aos trabalhadores de rua, e a
vadiagem tornou-se uma das ocorrências mais frequentes das prisões dos trabalhadores,
estando entre eles os carroceiros, conforme ressalta Terra (2012):
A repressão policial foi uma das faces encaradas pela população no processo
de formação do mercado de trabalho assalariado. Sob o signo de
“vadiagem”, eram perseguidas práticas costumeiras dos trabalhadores
cariocas do período e que passaram a ser estigmatizadas pela nova ordem.
Dessa forma, trabalhadores eram presos por estarem descansando,tomando
parati com os amigos ou jogando. Além disso, eram reprimidos ainda os que
simplesmente não encontravam trabalho, realidade não pouco usual no Rio
de Janeiro no final do século XIX e início do XX (p. 160).
Nesta estratégia policial, encontra-se implícita a promoção do trabalho assalariado e da
classe operária, em detrimento dos trabalhos de rua e ambulantes. A pena de reclusão na Casa
de Detenção estava prevista entre 15 e 30 dias, tendo o egresso o prazo de mais 15 dias para
encontrar um novo emprego.
Este processo de criminalização dos carroceiros, somado às campanhas higienistas,
começaria a mudar a imagem destes trabalhadores perante os moradores da cidade. Enquanto
isso, ao fazer transitar pelas ruas toda a podridão e mau cheiro de dejetos orgânicos e
inorgânicos, o serviço dos carroceiros perdia aos poucos seu apoio na mídia impressa e dos
moradores das cidades. Veja-se texto publicado na Gazeta de Notícias:
Ainda hontem viajando num bonde de Bota-fogo ao chegarmos ao
Passeio Publico vimos passar a passo vagaroso de magra parelha de bestas
uma carroça da limpeza publica.
Era pouco mais de 11horas o sol ardente como poucas vezes se dá
em pleno verão flagelava homem e cousas; e da carroça deprendia-se um
cheiro tão nauseante e tão pestilencial, produsido pela fermentação do lixo,
que os passageiros instintivamente levaram os lenços as narinas.
Imagine agora o que se há de dar em todas as casas e logares onde o
lixo é accumulado e não removido ( PINTO, 1901).
A fim de solucionar tal afronta às narinas dos cidadãos de bem, a Prefeitura Municipal
formularia e aprimoraria uma série de instrumentos legais que regulamentassem o trabalho
dos carroceiros. Dentre estes termos, destacam-se o “Projeto de postura sobre a remoção do
30
Artigo 399 do Código Penal de 1890, verificado no site:
http://www.ciespi.org.br/media/decreto_847_11_out_1890.pdf>. Acesso em: 07 mai. 2012.
129
lixo das casas de habitação e dos estabelecimentos públicos e particulares” (1892), o “Projeto
empregado sobre as carroças empregadas na remoção de lixo” (14/06/1886), “Minutas de
Termo de Responsabilidade para Licença Provisória” (24/08/1900) e o “Regulamento para o
serviço de collecta de lixo das habitações particulares, dos hospitaes, dos estabelecimentos
commerciaes e industriaes e outros” (14/03/1902). Todos estes mecanismos de regulação do
serviço de remoção do lixo seriam fiscalizados pela Inspetoria Geral de Hygiene, ou seja, pelo
Estado.
Dentre as normas constantes, observam-se as definições de horários de coleta que,
aliás, desde o primeiro registro aqui constante, apresentam horários cada vez mais restritos passou de 11 horas durante o verão e meio dia durante o inverno, na Postura de 1886, para o
limite entre 5 e 9 horas da manhã, constante no regulamento de 1902. Isto porque, conforme
visto no fragmento relatado pela Gazeta de Notícias – e como também alerta Antônio José
Pinto (1901) – o horário de remoção do lixo era um dos principais problemas deste serviço,
insinuando inclusive que o ideal seria a recolha do mesmo durante a madrugada. Tudo o que
perece e fede é lixo e deve desaparecer por entre as sombras da noite.
Além das restrições previstas pelo Código Penal de 1890 e pelo uso de licenças
provisórias, os tipos de veículos utilizados para a remoção do lixo e transporte de coisas e
pessoas enfrentaram restrições mais rigorosas. Sobre os veículos de transporte em geral, há
uma normativa, datada de 14 de novembro de 1899, que determinava os procedimentos de
inspeção. Motorneiro, cocheiros e carroceiros deveriam realizar uma avaliação teórica e
prática, apresentar certidão de nascimento ou outro documento de comprovação de idade,
destacando-se a exigência de apresentação de um “atestado de conduta, passado pelas
autoridades policiais da circunscrição em que residir” (TERRA, 2012, p. 165).
Com todas as exigências atendidas, estes trabalhadores receberiam uma carteira que
lhes autorizaria exercer o ofício. Logicamente, a cada um destes procedimentos eram
incutidos emolumentos e, com tal regulamentação, foi possível ainda definir os devidos
impostos. Ainda sobre a regulamentação das carteiras, Paulo Cruz Terra adverte:
Os cocheiros, carroceiros e motorneiros, por sua vez, poderiam ter suas
carteiras cassadas caso fosse desfavorável a eles “o atestado de conduta
passado pelo último patrão, ficando salvo ao interessado o direito de
demonstrar ao 1º delegado auxiliar, com informação do inspetor de veículos,
a falsidade e improcedência do atestado” (Diário Oficial, 13/12/1899 apud
TERRA, 2012, 166).
130
A regulamentação sobre os veículos e a obrigatoriedade do uso e constante porte da
carteira, somadas à obrigatoriedade de cada um destes trabalhadores serem fotografados e
registrados pela polícia, foram o estopim da paralisação de janeiro de 1900.
Neste período, a Gazeta de Notícias, na edição de 23 de janeiro de 1900, sob a
reportagem intitulada Sindicato das carteiras, denuncia o modo como carroceiros e cocheiros
ficaram à mercê das autoridades da Inspetoria Geral de Higiene, que extorquia estes
profissionais sob ameaça de lhes retirar as licenças provisórias (TERRA, 2012, p.164-170).
A Minuta de Termo de Responsabilidade para Licença Provisória (1900) trazia
algumas novidades. Sem esta licença os carroceiros estavam impedidos de exercer o serviço
de coleta do material, que deveria sempre estar apto para inspeção da Diretoria de Hygiene.
Os carroceiros precisariam não apenas pagar tal inspeção, como também desembolsar
cinquenta mil réis para adquirir tal licença que poderia ser caçada a qualquer momento, já que
tinha caráter provisório. Dentre as novas proibições constantes no Termo, estava a “obrigação
de se constituírem os carroceiros em grupos cabendo a cada grupo certa circunscrição da
cidade e ficando vedada às carroças de uma a collecta de lixo nas casas de outra”; e
“prohibição expressa de entrarem os carroceiros no interior dos domicílios para a retirada do
lixo, (...) podendo apenas ser tolerada a entrada deles nas chácaras, jardins ou pateos de modo
que não penetrem o interior da habitação”.
Outra questão, em que a Inspetoria Geral de Hygiene investia, dizia respeito ao asseio
dos carroceiros e desinfecção das carroças. A caçamba para acondicionamento do lixo nestes
veículos deveria ser de “zinco, folha de Flandres ou ferro batido” (1902) e “munidos de
tampos, que, por meio de uma mola possa abrir e fechar com facilidade segundo a exigência
do serviço” (1886). No parágrafo terceiro do primeiro artigo deste documento, consta a
proibição de os carroceiros trazerem pendurados por fora da carroça qualquer objeto
proveniente do lixo como “pannos, colchões, trapos ou quaesquer outros objectos immundos
que incomodem o transeunte ou sujem a via publica” (op. cit.). Havia ainda a recomendação
para desinfetar a carroça com, por exemplo, chlorureto de calcium, sempre que carregassem
matérias fétidas ou putrefatas.
131
FIGURA 13
Por fim, no último documento, o “Regulamento para o serviço de collecta de lixo das
habitações particulares, dos hospitaes, dos estabelecimentos commerciaes e industriaes e
outros”, de 14/03/1902, estabelece as proibições específicas ao serviço dos carroceiros:
Art. 7º - É prohibido ao carroceiro:
a) separar ou catar os trapos, papeis, metaes, garrafas, vidros ou outros
quaesquer objectos servidos;
b) estacionar o vehiculo em lugares que prejudique ou interrompa o
transito publico.
c) vasar entulho de qualquer espécie nas pontes de vasadouro;
d) transferir o serviço de seu cargo a outrem, sem previa acquiescência
da Superintendência;
e) (...)
f) sujar as calçadas (lagedos) ou as ruas na occasião de fazer a collecta
do lixo.
Contra o insistente aumento das restrições, e contra as empresas que concentravam a
propriedade de carroças e seges da maioria dos carroceiros e cocheiros não-autônomos, houve
seguidas greves nos anos subsequentes. Em 1906, o Jornal do Brasil noticiava uma tabela de
132
reivindicações apresentadas aos proprietários de veículos, em nome da Sociedade de
Resistência dos Cocheiros, Carroceiros e Classes Anexas. Terra destaca o aumento da
remuneração e a redução de horas de trabalho: “tendo em vista que os proprietários de
veículos não responderam as demandas no prazo estipulado, a assembléia da associação, em
16 de dezembro de 1906, decidiu pela greve” que se estendeu por 11 dias (2012, p. 205).
Durante o período analisado pelo historiador Paulo Cruz Terra, entre 1870 e 1906,
foram registradas vinte e duas greves de cocheiros e carroceiros, sendo que quatro delas
tiveram como principal motivo as leis e regulamentações policiais. Dentre essas greves, as
três principais foram as de 1890, 1900 e 1906. Tais ocorrências marcam, portanto, uma nova
forma de aparecimento destas personagens do lixo, que se caracterizam não mais apenas pelo
tom romanista da literatura oitocentista europeia, ou pelo caráter exploratório do período
escravagista, mas por certo pela feição de protagonista no mercado dos serviços públicos.
Estas mobilizações, que em seus primeiros levantes se caracterizaram pela espontaneidade,
em 1906 encontram-se representadas e organizadas por uma instância maior que agora
representaria os melhores interesses da categoria.
No mesmo ano de 1906, a Superintendência de Limpeza Pública e Particular da
Cidade já contava com “1084 animais, já insuficientes para a limpeza da cidade que produzia
560 toneladas de lixo. É assim que, a título de experiência, são adquiridos dois autocaminhões. Seria o início da passagem do uso animal para o uso mecânico na coleta”31. Dá-se,
portanto, início a uma nova etapa no serviço público de remoção do lixo e o carroceiro se
transforma, paulatinamente, em outra personagem do lixo, o catador de papel, ou, em sua
versão mais recente, o catador de materiais recicláveis.
5.4 O catador
Ao dissertar sobre as personagens do lixo, ver-se-á mais uma dentre tantas
possibilidades de se construir suas diversas formas. Neste momento, um destes caminhos
colocará em pauta outra personagem, que remete aos 50 anos de história do catador de
materiais recicláveis, cunhado pelo MNCR como a emergência do catador de materiais
recicláveis.
Uma observação: aqui também já não se tem mais o lixo e as coisas que lhe davam
forma, ou seja, os dejetos, a podridão, os insuportáveis, os intocáveis, a morte das coisas. O
que compõe agora os restos da cidade são matérias que se renovam, se reciclam. Há uma
31
http://comlurb.rio.rj.gov.br/emp_hist.htm. Acesso em: 04 mai. 2012.
133
espécie de eternidade nas coisas, elas retornam, mesmo que em outra forma, em um pathos do
novo. Estamos a presenciar uma nova direção de sentidos e valores tanto em relação ao que
irá compor o lixo como às personagens que o manipulam.
A Cartilha de Formação Direitos humanos e os catadores de materiais recicláveis
(2008) traz uma tentativa de criar esta nova identidade, melhor dizendo, esta nova categoria
profissional, apresentando os modos pelos quais o catador foi expurgado de seus direitos, não
apenas como cidadão, mas também como ser humano. Muitas vezes confundido com o
próprio lixo, o catador, em sua luta para ser reconhecido como sujeito de direitos, apresenta
na referida cartilha os seguintes questionamentos: “Porque falar de violação de direitos
humanos e os catadores?” E dentre “as principais formas de violação dos direitos dos
catadores e catadoras” (ROCHA & BUNCHAFT, 2008, p. 6), apresenta-se como primeira
delas a “servidão por dívida” (Idem, p. 8), ou seja, a relação exploratória no mercado de
materiais recicláveis entre atravessadores e catadores de rua e do lixão. Nas palavras da
própria cartilha:
São horas e horas de trabalho duro nas ruas ou nos lixões, sendo que
ao final do dia o catador repassa a maior parte do valor gerado pelo seu
trabalho para o atravessador, que por sua vez remunera o catador a preços
irrisórios, sem contar que também lucra muito com o aluguel das carroças
que aluga para os catadores. Além disto, não precisa nem dizer que as
condições de trabalho são muito precárias e envolvem muitas vezes a
exploração do trabalho infantil.
Além das humilhações, a relação de trabalho com os atravessadores
impõe dívidas que não conseguimos pagar, até mesmo porque os
atravessadores dificilmente cumprem com os acordos que estabelecem com
o catador (Idem, ibdem).
O catador ainda traz em si mesmo certos atributos das categorias anteriores, já que
figura na cidade como parte do lixo social, em meio aos bandidos, prostitutas, homossexuais e
loucos. Não por trabalhar com os refugos da cidade, mas por ser um dos refugos dos modos
de ser do homem, produzir-se-ia a invisibilidade deste sujeito.
Este processo de desumanização é retratado na peça Homens de papel (1967) de Plínio
Marcos, que materializa de forma cênica a miséria urbana do cenário brasileiro na época. O
título em si já apresenta estas duas condições miseráveis da sociedade urbana, já que disserta,
ao mesmo tempo, sobre este trabalhador coletor dos refugos da cidade e sobre sua condição
134
descartável, insignificante e escatológica em contraste às promessas do milagre econômico32
proferidas pela ditadura militar (VIEIRA, 1994, p. 74).
A peça denuncia esta relação de exploração entre catadores e atravessadores, em que o
lixo se torna mercadoria na lógica do capital e seus trabalhadores sujeitam-se ao mercado da
miséria. Segue um diálogo representativo sobre as bases de tal relação:
GILÓ – Apanhei três sacos.
BERRÃO – E daí? O peso é que interessa.
GILÓ – Estão bem cheinhos.
BERRÃO – A balança é que vai dizer.
BERRÃO – Aqui a gente sempre arredonda.
GILÓ – Pra menos.
BERRÃO – É!
GILÓ – Mas tá dando quase três.
BERRÃO – Dois e meio, e fim. Se não estiver contente, vai vender em outra
parte.
GILÓ – Não...É...
GILÓ – Me desculpe, falei por falar.
BERRÃO – [...] Duzentos mangos por quilo, dá um conto e seiscentos.
Desconta a gasolina do caminhão, a minha parte e os institutos, tenho que te
dar seiscentos mil réis.
GILÓ – Sempre foi meio a meio.
BERRÃO – Até ontem. Agora a gasolina subiu. Se não quiser fazer acerto
comigo, leva direto pra fábrica. Mas já vou avisando, e é bom que todo
mundo escute. Tenho um arreglo com os caras lá da fábrica. Dou sempre um
come-quieto pro sujeito que compra o papel. Se falar pra ele pra não
comprar de alguém, ele não compra mesmo. Assim me cubro das
sacanagens. Agora, sua cabeça é seu guia. Quer ir lá vender, vai. (MARCOS,
1967, p.11-13).
A fábula é apresentada pelo crítico de teatro Alberto D’Aversa na época de sua estréia:
“A peça narra a estória de um grupo humano, homens e mulheres, cujo trabalho é o de catar
papel nas ruas da cidade, vítimas de um explorador que compra a mercadoria oferecida pelo
preço que ele mesmo determina e que mais lhe convém”33.
32
O período 1968-1973 é conhecido como "milagre" econômico brasileiro, em função das extraordinárias taxas
de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) então verificadas, de 11,1% ao ano (a.a.). Uma característica
notável do "milagre" é que o rápido crescimento veio acompanhado de inflação declinante e relativamente baixa
para os padrões brasileiros, além de superávits no balanço de pagamentos. Neste período, os cidadãos operavam
sob as ordens do Regime militar, também conhecido pelos oposicionistas como "anos de chumbo",
especialmente entre 1969 e 1973, no governo Médici. Nesse período áureo do desenvolvimento brasileiro em
que, paradoxalmente, houve aumento da concentração de renda e da pobreza, instaurou-se um pensamento
ufanista de "Brasil potência", que se evidencia com a conquista da terceira Copa do Mundo de
Futebol em 1970 no México, e com a criação do mote: "Brasil, ame-o ou deixe-o".
33
Alberto D’Aversa - Diário São Paulo, 10/1967 - http://www.pliniomarcos.com/criticas/homenspapelalbertodaversa.htm. Acesso em: 11 mai. 2012.
135
FIGURA 14: CARTAZ HOMENS DE PAPEL –PLÍNIO MARCOS
O atravessador é encarnado pela personagem “Berrão” que, como o próprio nome
justifica, faz valer sua lei ou aos berros ou quando saca seu revólver (popularmente conhecido
também como berro), como na cena em que os catadores se exaltam em protesto aos maus
tratos de seu mandante e Berrão então desfere um tiro para o alto. A sordidez desta figura tão
cotidiana choca os espectadores, representados aqui mais uma vez por D’Aversa: “Nesta peça,
a exploração é manifestada em sua forma mais baixa e repelente, é a exploração que um
nojento criado pelo capitalismo, um agente subalterno e inescrupuloso, exerce sobre gente de
tão ínfima condição social que nem pode manifestar seu legítimo protesto com medo de
perder o benefício do miserável emprego”34.
Para o crítico teatral Sábato Magaldi, “nunca um escritor nacional se preocupou tanto
em investigar, sem lentes embelezadoras, a realidade, mostrando-a ao público na crueza de
matéria bruta”35. Em outro artigo, Magaldi atenta para o fato de que a grande contribuição de
34
Idem.
Folha de S. Paulo, 19/03/1968 (http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_19mar1968.htm. Acesso em: 29
ser. 2012.
35
136
Plínio Marcos para a dramaturgia brasileira era justamente sua habilidade de “incorporar o
tema da marginalidade, em linguagem de desconhecida violência”36.
Os diálogos entre Berrão e os outros catadores apresentam diferentes desdobramentos
da relação de exploração em que se encontram esses trabalhadores. Como no caso de MariaVai37, que mantinha relações extraconjugais com Berrão, e este, por sua vez, lhe garantia
melhores tratos:
BERRÃO – Quer ir na fábrica conferir, como no outro dia?
MARIA-VAI – (sem jeito) Vou.
BERRÃO – Então tu vai. Tião, tua mulher não confia na balança. Diz que
estou roubando. Pra tirar a cisma dela, vou levar ela comigo lá na fábrica.
(MARCOS, 1967, p.17)
Em outra cena, repete-se o engodo da pesagem dos materiais, mas, além disso, revela
uma relação pouco solidária e mais rivalizada entre os próprios companheiros de rua.
CHICÃO – Mas eu passei na venda do Seu Quim, antes de vir pra cá. Deu
cinco quilos.
BERRÃO – (Atira os sacos na cara de Chicão.) Tá aí! Vai vender pro Seu
Quim.
CHICÃO – Compra aí, seu Berrão. Estou duro.
BERRÃO – Aqui é três quilos.
CHICÃO – Todo mundo ouviu o senhor falar três e meio.
MARIA-VAI – Eu não escutei nada.
TIÃO – Eu estou por fora.
PELADO – Negócio dos outros, não quero nem saber.
NOCA – É melhor, se a gente mete a butuca vão dizer que a gente tá
secando. (MARCOS, 1967, p.13-15)
Em certo momento do drama, o grupo pretende se rebelar contra o algoz. A tentativa
de levante do grupo de catadores frente aos desmandos de Berrão se apresenta pela percepção
de que, sem o trabalho de coleta de papel, o mandatário não teria o que vender para a
indústria. Ademais, isto o colocava em condição de dependência e não de superioridade
perante o grupo. Mas o caráter niilista das obras de Plínio Marcos nunca dá margens às
esperanças romantizadas pela classe média universitária que, por sua vez, se rebelava contra a
36
OS MARGINAIS DO PALCO, artigo de Sábato Magaldi, Revista D.O. Cultura, publicação mensal da
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, novembro/2000; inserido em seu livro “Depois do Espetáculo”,
Editora Perspectiva, 2003, p.95.
37
Maria-Vai: menção ao apelido popular de Maria-vai-com-as-outras, ou seja, uma pessoa facilmente
influenciável, que se deixa levar por opiniões alheias.
137
ditadura no período de estréia da dita peça38. Os diálogos são uma experiência da rua, e com
ela a desconfiança é a pilastra que sustenta a vida e a convivência entre os pares.
CHICÃO: É só a gente encostar o corpo, ele entra em pua. Se ninguém catar
papel pra ele, quero ver o que o sacana vai dizer na fábrica (p.22).
TIÃO – Isso é mesmo. Fala com o pessoal, se eles entrarem no arrocho, eu
também entro.
CHICÃO – Não tem que ser tu o cara a levantar a lebre.
TIÃO – É idéia tua.
CHICÃO – Poxa, mas tu tem mais papo que eu.
TIÃO – Te manjo. Tu sabe enrolar. Fala com os outros. Daí me avisa.
CHICÃO – Tem que ter a tua força. (p.22-3)
CHICÃO – O filho-da-puta anda metendo a mão na gente, sem dó. Rouba
pra valer. (p. 55)
CHICÃO – O Tião acha que se a gente não catar nada por uns dias, ele sente
o aroma da perpétua e daí maneira.
TIÃO – Eu não acho porra nenhuma. Isso é idéia tua! (MARCOS, 1967,
p.55)
Este levante pela dignidade (Idem) se esvaece em definitivo no protesto de Nhanha,
uma nordestina que chega a São Paulo acompanhada de seu marido Chicão e de sua filha Gá,
que sofre de ataques epiléticos; sua família é a única a ter o passado revelado durante toda a
peça. Esta mulher, portadora de 133 falas na peça toda, superando até mesmo Berrão, que
possui 126 falas, apresenta-se então como a antagonista do bandido. Todavia, não se trata
especificamente de qualificá-la como a defensora do grupo, pois o motivo que a leva ao
confronto com Berrão sustenta-se mais pela preocupação em trabalhar e ganhar dinheiro para
cuidar da família do que abraçar a causa daqueles desvalidos.
Estou falando com todos! Entendeu? Com todos. Cada um cuida da sua vida
e deixa eu mais minha filha em paz. Não quero saber de ninguém. Se todos
aqui são uns vagabundos, uns frouxos, uns miseráveis sem porquê, quero
que se danem. Eu sei de mim e da minha menina. Se não querem trabalhar, é
coisa de cada um. Eu preciso de dinheiro. Eu vou trabalhar! Quer queiram,
quer não. Entenderam? (MARCOS, 1967, p.68)
A catadora que desafia o sexo forte somente se rende ao conflito do grupo quando há a
iminência de ameaça à sua família:
Se alguém me roubar e roubar a Gá, eu juro por essa luz que me alumia, eu
mato o desgraçado filho da puta. E quando digo que mato, é que mato
38
No ano de 1967, durante a gestão presidencial do general Costa e Silva, ano que antecedeu a instauração do
Ato Institucional – 5, as manifestações estudantis lideradas pela União Nacional dos Estudantes (UNE) eram
frequentes nas ruas das capitais brasileiras, principalmente, São Paulo e Rio de Janeiro.
138
mesmo. Assim é que tem que ser. Se um cabra sem jeito aporrinha a vida da
gente, não adianta ficar cozinhando o galo, não. Porque ele vai ser sempre
sacana. O negócio é aqui, no pau. Acabar com o cara pra sempre. Conversa
de parar pra ver a vida passar é pra cara de vida à toa. Cara de cabeça fresca.
Os que têm a peste pra atormentar sabem que papo não serve pra nada.
Diferença se tira é de pau. Se alguém entrava a vida da Gá, eu mato. Tá
jurado pra todos. Mas eu não paro de trabalhar. (MARCOS, 1967, p. 70)
Dito e feito. Sua filha morre durante um dos ataques epiléticos, provocado pela
tentativa de estupro infringida por outra personagem que sofre de transtornos mentais: Coco.
Neste momento, ao perder suas esperanças, depositadas na missão de ter imigrado até à
cidade grande para tratar da enfermidade da filha, Nhanha desafia Berrão, com seus berros e
berro empunhado, para que lhe dê os proventos financeiros necessários para um enterro
digno.
Tu é que está louco de medo. Atira! Tem medo, seu puto? Então dá o
dinheiro! (Pausa) Anda, dá a grana, ou atira! Atira! Tu me mata. E daí?
Estou cagando um monte desse tamanho pra morrer. Já morri um cacetão de
vezes, tá bom? Morri de fome, morri de frio, morri de medo, morri de ver a
minha cria morrer. E agora chegou a tua vez. Atira! Atira! Anda, atira! Mas,
tu não escapa. Gasta a tua verdade aqui no meu peito. Anda! Daí, eles te
pegam e te azaram. Esta é a hora de acertar as contas. Quem tiver se danado
mais está com a razão. E não vai ter canhão pra mudar o resultado. Anda,
atira! Atira! (MARCOS, 1967, p. 86)
Nhanha apresenta a morte de seu sentimento de humanidade, auferida pelas agruras da
miséria sócio-econômica, pela necessidade de dar um enterro digno à filha. Sem consciência
poética ou apelo ideológico, a personagem se rebela contra seu algoz. No interior deste
conflito, Plínio Marcos coloca bandidos e marginais nos mesmos parâmetros, pois, como
afirma Vieira: “tudo é sobrevivência. Não sendo bandidos, não estão aptos a disputar um
espaço melhor no inferno que é o mundo em que vivem” (1994, p. 26). A maldade une o
explorador e a egoísta, mas o brado pela dignidade humana os separa. Para o dramaturgo, por
vezes a maldade é necessária para manter tal dignidade, pois “o herói [também pode ser] um
cara negativo”39.
Sobre esta falta de solução ou de um final feliz que conforte os espectadores que não
se reconhecem nas cenas de miséria e de exploração entre os miseráveis, o próprio Plínio
Marcos esclarece sobre sua estratégia de composição dramatúrgica:
39
Marcos, Plínio.“Um Teatro de Vítimas”. Entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 30 de outubro de 1967.
139
O Teatro foi a forma que encontrei para dar um testemunho a respeito do
tempo mau que vivemos. Falo de gente que conheci e conheço, gente que
está amesquinhada por gente; gente que vai se perdendo. Meu teatro é só
isso. Apresento os fatos como um repórter. Conheço os fatos e não sei a
solução. O recado que tenho para dar é só este: há gente por aí se danando.
Meu ideal é conseguir fazer as platéias pensarem na solução para o problema
dessa gente, problema que deve ser o de todos nós. Não faço Teatro para o
povo, mas o faço em favor do povo. Teatro para incomodar os que estão
sossegados. Só para isso (FOLHA DE S. PAULO, 1968).
Para Plínio, em consonância com sua influência sartriana, para quem o inferno são os
outros, mas também poder ser um si mesmo, nesta convivência paradoxal entre a exploração e
a sobrevivência, bandidos e marginais coabitam um mundo sem esperanças ou finais felizes.
Não há lugar para amor ou solidariedade, pois o outro é sempre o inimigo a ser abatido, ou,
mais especificamente, nas palavras de Nhanha: “não tenho nada a ver com a vida dos outros.
Quero que cada um amargue seu jiló”.
Verifica-se, portanto, este tipo de relação de exploração entre os explorados, e não
propriamente na relação de exploração entre explorador e explorado. Uma relação própria das
condições de miséria que opera externamente às planificações de capital para a vida melhor.
Não que estes catadores de papel permaneçam nesta condição. Como se verá mais adiante,
sua condição de outsiders dos sistemas capitalísticos tem seu fim determinado nas estratégias
de inclusão social e de produção de uma identidade social que substituirá a condição de
explorados pela condição de assujeitamento.
Outro fator que não pode deixar de ser salientado, inerente a este contexto de profusão
da crítica sobre a miséria social apresentada pela linguagem artística, diz respeito ao período
de ditadura militar vivenciado pelo país desde o golpe militar de 1º de abril de 1964 e
intensificado pelo Ato Institucional nº5 de 13 de dezembro de 1968. Plinio Marcos torna-se
um crítico ferrenho do aparato militar e critica veementemente sua proverbial estupidez de
censura:
Quase não tenho possibilidade de fazer Teatro neste país, onde um governo
de força impede a manifestação das artes. Isso tudo é lamentável, mas dá
bem a idéia do triste momento que vivemos no Brasil. Somos quase tão
tristes quanto os estudantes poloneses, que estão nas ruas defendendo a
liberdade de expressão. Infelizmente, nós ainda não temos uma tradição de
luta que nos permita responder com energia e rapidez a cada afronta que o
governo faz à liberdade. É doloroso ver um país de analfabetos, famintos,
desempregados, com um presidente que lê peças de teatro, não para
aumentar sua cultura, mas para proibi-las. Tenho a impressão que o povo
brasileiro está farto de mordaça (FOLHA DE S. PAULO, 1968).
140
Mordaça esta que, além de calar aqueles que pretendem denunciar a invisibilidade do
que se considera lixo social, marca a sociedade intelectual e artística oposicionista ao regime
militar como o lixo político ameaçador da ordem e do progresso imputados à força na
sociedade brasileira. Neste contexto, a linguagem artística marginal, no auge de sua
resistência, considerada perigosa pelas autoridades militares, encontra potencialidade
justamente nesta sua rotulação como “lixo cultural” proferida pelos governantes.
Efeito deste mesmo contexto, algumas produções cinematográficas serão aliadas ao
movimento artístico marginal. No mesmo ano, entrava em cartaz, não nos palcos, mas no
cinema, outra obra que tinha o lixo como plano geral das relações enredadas. O filme A
Margem aparecia nas telas do Cine Marabá e Cine Regência, em 18 de dezembro de 1967,
para ficar menos de uma semana completa em cartaz, devido à baixa frequência de público
(SENADOR, 2005). Embora a plateia estivesse longe de ganhar proporções extraordinárias, a
crítica cinematográfica tratou de elevar a película como um dos melhores filmes da história
cinematográfica brasileira. A Margem foi o primeiro longa-metragem de Ozualdo Candeias
que, assim como Plínio Marcos, retratou um cenário que lhe era comum na experiência das
grandes cidades40 e resolveu encenar a vida em um cenário às margens do rio Tietê e das
estradas.
40
Na época de estréia da peça Homens de Papel os catadores de papel já se faziam notar nas grandes cidades
como São Paulo, cenário da peça, e o material recolhido limitava-se ao papelão que ficava depositado perto das
lojas de departamento mais famosas da cidade, à época, como a Mesbla e o Mappin. (cf. DURIGAM &
ENEDINO, 2006)
141
FIGURA 15: CARTAZ A MARGEM – OZUALDO CANDEIAS
Os primeiros 50 minutos do filme acontecem neste cenário marginalizado em que,
entre estrada e rio, localiza-se um lixão por onde convivem personagens anônimas. Um
homem engravatado, uma mulher negra, um louco e uma mulher loura são personagens sem
nomes que preenchem o filme com relações difíceis de serem localizadas no romantismo
burguês, como em uma cena em que o homem de gravata e a mulher negra flertam entre si,
em meio a um cenário de prostituição de beira de estrada, enquanto a mulher é bolinada por
outros homens. Ou no caso do louco que presenteia a loura morta com uma margarida.
Neste cenário, árido até mesmo nos raros diálogos, algumas ambiguidades são
prementes, marcando mais um ambiente non sense do que propriamente dualista ou dialético.
Tenha-se como exemplo a imagem do louco saltitante entre o lixo, provocando o revoar dos
urubus, embalados por uma trilha sonora idílica, composta pelo grupo Zimbo Trio; ou a
mulher negra que, ao se deslumbrar com o vestido de noiva que viu uma mulher usar, atrai
142
com sua sensualidade um caminhoneiro e o rouba para poder comprar um vestido de noiva
para si e perambular assim vestida pelo lamaçal do lixão; ou ainda aquele mesmo louco que
sempre empunha uma margarida que não oferece a ninguém, nem mesmo para a mulher loura
por quem parece estar apaixonado.
Como dito, esta flor marca ainda o momento da morte desta mulher loura, quando o
louco coloca a margarida na mão do cadáver e sai correndo em surto para também acabar
morrendo de causa desconhecida. A morte, aliás, alcança estas quatro personagens,
começando pelo homem de gravata. É no momento desta primeira morte, inclusive, que a
técnica de filmagem muda: nestes primeiros 50 minutos de filme, utiliza-se a câmera
subjetiva41, fazendo do espectador, mais que um convidado, talvez um intimado a participar
daquele cenário nauseante. A segunda metade do filme é praticamente filmada em meio
urbano e a câmera agora parece perseguir os outros protagonistas até testemunhar suas
mortes.
Assim como em Homens de Papel, no filme A Margem a morte se faz presente como
fórmula de resolução da intriga, da miséria. No entanto, ao contrário da peça de teatro em que
o enterro de Gá é o último traço de dignidade pelo qual a mãe Nhanha desafia Berrão para
conseguir o dinheiro, no filme de Candeias, a morte do homem engravatado também marcará
o fim do uso da câmera subjetiva, que agora parece a própria morte a empunhar a filmadora e
perseguir cada uma das personagens principais. Após a morte das quatro personagens, elas
reaparecem no final para subir em um barco, o mesmo que aparece no início do filme com
uma mulher morena e taciturna no comando. Aqui o diretor usa o mito da ressurreição como
subterfúgio, porém, o Barco de Caronte, neste caso, tem seu próprio mundo dos mortos
41
Câmera subjetiva é um recurso de filmagem em que a câmera simula ser o ponto de vista de uma das
personagens, de modo a oferecer ao espectador seu olhar. O crítico teatral Ruy Gardnier reflete sobre o uso desta
técnica no filme A Margem: “Um filme sobre olhar: A Margem segue a vida de quatro personagens à beira de um
rio lodoso, numa localidade miserável. Ele começa pela estranha chegada de uma mulher de cabelo escuro, que
vem descendo o rio numa canoa. Os quatro personagens do filme observam-na atentamente, enquanto ela se
afasta. A simples chegada dessa mulher, tratada pela câmera como entidade mística – coisa que certamente o
filme mais tarde confirmará – já estabelece o dispositivo do filme: sujeito a (visão da câmera) olha para sujeito
b; corta para sujeito b (visão da câmera) que olhava para o sujeito a, mas desvia o olho para o sujeito c, que será
o ponto de vista do próximo plano. A atitude intrincada de estabelecer uma gramática própria ao uso contínuo da
câmera subjetiva cria uma atmosfera jamais vista: uma certa tontura, uma certa incerteza, uma falta total de
imparcialidade, além do lúdico jogo de "quem será que está vendo isso" que volta e meia aparece como recurso
no filme. Não só a câmera subjetiva é utilizada para excluir do filme a totalidade do sentido como igualmente
para criar momentos mágicos de campo/contracampo, como no beijo de dois personagens, onde os rostos
crescem um após o outro até cobrirem a tela: o beijo se dá na montagem. Ou então quando um outro
personagem, apresentado ao espectador como tendo um problema mental qualquer, empenha uma flor: quando a
câmera apropria-se de sua visão, a flor em primeiro plano é remissível como elemento estético apenas aos
primórdios da avant-garde no cinema mudo” (GARDINER, In CANDEIAS, 2001)
(Gardnier, R. A Margem, de Ozualdo Candeias. In: Dossiê Ozualdo Candeias, gênio do cinema brasileiro:
ensaios, críticas, entrevista, roteiro. Contracampo Revista de Cinema, Fevereiro/março 2001.
http://www.contracampo.com.br/25/frames.htm. Acesso em: 15 mai. 2012.
143
localizado no lugar onde já viviam, pois a nau navega sobre o mesmo rio que dá margens para
o enredo.
O tema da morte, acostado às montanhas de lixo, bem como as relações humanas que
as entremeiam, se faz tão evidente que produz uma multiplicidade de enunciações. O lixo
representa o ponto final do uso dos produtos industriais; manifesta de maneira explícita a
inevitabilidade da degeneração e putrefação dos corpos; torna-se ainda o logradouro daqueles
que não servem ao projeto das cidades modernas, como os escravos, os velhos, os bandidos,
os vadios, ou seja, daqueles que estão mortos para a vida em sociedade. O sociólogo José
Carlos Rodrigues apresenta reflexões sobre esta temática, ponderando sobre esta relação, não
apenas material, mas também imaterial; pode-se dizer, sobre a biopolítica entre lixo e morte.
A questão da morte também tem muito a ver com a o lixo. Não tanto, ao
contrário do que tenderíamos a acreditar, porque o lixo seja aquilo que já
tenha morrido, que já não sirva e a que se tente dar uma sobrevida através
dessa preocupação bem contemporânea que é a reciclagem. Ele é isto
também. Mas a analogia entre morte e lixo se faz muito mais forte em nosso
tempo porque na cultura industrial morrer é mais ou menos ir para o lixo. Aí
está certamente uma das razões de nossa angústia em torno de ambos os
fenômenos. Assim, uma dupla afinidade simbólica existe, em nossa cultura,
entre morte e lixo: quer porque o que vai para o lixo seja o que está morto,
quer porque morrer corresponda a ir para o lixo (RODRIGUES, 1995, p.12).
Nos modos de gestão das relações humanas com respeito à produção de seus restos,
registra-se a replicação de certos procedimentos de gestão da morte nas cidades: sua
mistificação, ao produzir-lhe certa invisibilidade; sua negativação, colocando a morte e o lixo
como focos de doenças biológicas e sociais; e sua expulsão, acumulando-os e enterrando-os
em lugares controlados.
Portanto, tão insuportável quanto a morte torna-se o lixo que
representa uma espécie de fim deste projeto de vida moderno.
Mas a aliança nos modos de gestão do lixo e da morte se faz ainda mais evidente
quando se percebe que o extrato de tal funcionamento gera como efeito primordial a produção
do esquecimento. Pois não se trata apenas de tornar invisível, mas também inodoro, asséptico,
pertencente ao fora de tudo e, por vezes, até mesmo transcendental. Esta produção do
esquecimento opera sobre certa privação de sentidos, de modo a tornar tanto a morte como o
lixo experiências insuportáveis na vida produtiva das cidades modernas.
Outra forma de aliança que se visualiza quanto aos modos de gestão do lixo e da morte
caracteriza-se pela agregação de valores considerados negativos, como a doença e a
putrefação do homem visto não só como uma espécie biológica mas também social. Pois,
assim como os índices de mortalidade e de expectativa de vida contribuem para qualificar o
144
estágio de desenvolvimento de uma cidade, os indicadores sobre os hábitos de vida deletérios,
como prostituição, mendicância e vadiagem, acabam por ser também utilizados para tal
qualificação.
Reduto deste lixo social, o centro da cidade de São Paulo era a região onde Ozualdo
Candeias encontrava seu meio de produção. A região conhecida como Boca do Lixo se
localizava entre a Estação da Luz e Estação Julio Prestes e recebia toda a movimentação de
mercadorias e pessoas que estes dois portais da cidade conseguiam produzir.
O bairro de Santa Ifigênia e seu entorno tornaram-se alvo do poder público, em
especial das forças de segurança, a partir da década de 1950. A crônica policial da chamada
imprensa sensacionalista nomeou aquela região como Boca do Lixo, desconsiderando os
diferentes usos que dali se faziam. O local recebeu o nome de Boca do Lixo porque ali se
concentravam sujeitos que desafiavam as convenções morais e legais da sociedade. Seres
comparáveis aos restos, à sujeira e aos dejetos produzidos cotidianamente na cidade. Nas
entrelinhas dos fatos narrados, é possível ler processos de disputa e significação do espaço
urbano por diferentes sociabilidades. Veja-se a descrição de um processo histórico do bairro
de Santa Ifigênia e adjacências, normalmente interpretado como decadente, vivenciado nos
anos 1950 e reconstruído por Hiroito Joanides nos anos 1970:
Em São Paulo, até 1953, o submundo da cidade, com exceção de
algumas sucursais, concentrava-se no bairro do Bom Retiro, girando e
pululando em torno ao meretrício, até então oficialmente confinado. Com o
fechamento da chamada zona, a prostituição “desoficializada“ foi se fixando
no bairro dos Campos Elíseos, onde, em curto espaço de tempo, apossava-se
territorialmente de toda a área circunscrita pelas ruas e avenidas Timbiras,
São João (Praça Júlio de Mesquita), Barão de Limeira, Duque de Caxias,
largo General Osório e rua dos Protestantes, para constituir a famigerada
Boca do Lixo, o Quadrilátero do Pecado (JOANIDES, 2003,p.26).
Para além das páginas policiais, a Boca do Lixo desenvolveu-se como pólo da
indústria cinematográfica nas décadas de 1920 e década de 1930, devido ao fato de empresas
como a Paramount, a Fox e a Metro se instalarem por lá. Décadas mais tarde, transformou-se
em reduto do cinema: distribuidoras, fábricas de equipamentos especializados, serviços de
manutenção técnica e empresas do ramo cinematográfico. Era cena comum ver homens
pilotando carroças carregadas de latas de filmes pelas vias públicas.
O cinema da Boca, para seus trabalhadores, ficava na Rua do Triunfo, esquina com
Rua Vitória, logradouros de uma região deteriorada, embora seus nomes almejem outro
status. O ponto de encontro, onde se planejavam as produções e se distribuíam empregos, era
145
um boteco de pratos-feitos que ostentava a placa do nome do lugar: Soberano. A produção da
Rua do Triunfo ficou identificada com a pornochanchada, clichê que a rigor deveria se
restringir à comédia erótica, mas batizou tudo o que fugisse da áurea cultural exigida para o
patrocínio da Embrafilme. De lá também saíram faroestes, cangaços, kung-fus, melodramas e
aventuras denominadas de segunda linha, filmes de terror e o cinema marginal.
O cinema da Boca do Lixo costumava ser tratado com ironia nas raras menções da
cenografia brasileira, apesar de sua importância no mercado dos anos 1970. No entanto, nos
últimos anos, vem sendo revalorizado como proposta estética cinematográfica da época, e o
filme A margem seria um dos principais a ser resgatado pela crítica e pelas pesquisas
acadêmicas, pois inspirou o movimento conhecido como Cinema Marginal.
Fugindo da idealização da luta pelos excluídos que baseava a análise sociológica dos
cinemanovistas, Candeias mostra que sua sobrevivência muitas vezes é assegurada pela
prática de atividades extralegais, como pequenos golpes: “o cinema marginal também
radicalizou uma tendência que se anunciava no movimento tropicalista: o estranhamento
diante da outrora figura heróica do povo. [...] O herói não era mais o operário consciente, o
camponês lutador ou o militante abnegado de classe média, mas o marginal, o pária social, o
artista maldito, o transgressor de todas as regras” (NAPOLITANO, 2006).
Exatamente nesta tensão entre o Cinema Marginal e o Cinema Novo, pode-se
apreender onde se localiza a personagem do catador. Tensão esta evidenciada no evento de
premiação realizado em maio de 1968 e organizado pelo Instituto Nacional de Cinema (INC),
quando o filme A margem foi contemplado com os prêmios de melhor diretor, melhor atriz
coadjuvante42 e melhor partitura musical, sendo que seu concorrente – e até então favorito –
Terra em transe, de Glauber Rocha, ganhou apenas o prêmio de melhor ator coadjuvante para
José Lewgoy43 (SENADOR, 2005, p. 2).
42
Vale salientar que apenas o homem engravatado era representado por um ator profissional e de prestígio
nacional, Mário Benvenutti, conhecido inclusive por ser o alter - ego do ícone do Cinema universalista Walter
Hugo Khouri. A atriz premiada no evento da INC, Valéria Vidal, assim como os outros dois atores que
protagonizaram a película, não tinham experiência como atores.
43
O uso de tal locução nominativa de exclusão “apenas” se justifica pelo fato de que Terra em Transe, lançado
em maio de 1967, e dirigido pelo já conhecido e premiado Glauber Rocha, fora aclamado por público e crítica,
conforme se subscreve uma nota de Nelson Rodrigues no jornal Correio da Manhã, em 16 de maio de 1967:
“Durante as duas horas de projeção, não gostei de nada. Minto. Fiquei maravilhado com uma das cenas finais
de Terra em Transe. Refiro-me ao momento que dão a palavra ao povo. Mandam o povo falar, e este faz uma
pausa ensurdecedora. E, de repente, o filme esfrega na cara da platéia esta verdade mansa, translúcida, eterna: o
povo é débil mental. Eu e o filme dizemos isso sem nenhuma crueldade. Foi sempre assim e será assim
eternamente. O povo pare os gênios, e só. Depois de os parir volta a babar na gravata (...) Terra em Transe não
morrera para mim (...) sentia nas minhas entranhas o seu rumor. De repente, no telefone com o Hélio Pelegrino,
houve o berro simultâneo: ‘Genial!’ Estava certo o Gilberto Santeiro (...) Nós estávamos cegos, surdos e mudos
para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil. Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós.
Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de Manchete.
146
Este evento de premiação oferece as evidências cabais sobre qual linha de produção
cinematográfica o Estado brasileiro projetava fortalecer. Nos meses que ligavam as duas
estréias e o dia da premiação, A margem e Terra em transe figuraram um embate político
entre os críticos conservadores ligados ao governo militar da época e a oposição de esquerda
que primava por um cinema que apontasse para uma técnica cinematográfica mais autoral,
anti-hollywodiana, que discutisse aspectos sociais e políticos da nação. Conhecidos,
respectivamente, como universalistas e nacionalistas, o primeiro grupo produzia suas obras a
partir das técnicas clássicas de edição, conservando seus enredos para temas universais. Já as
produções dos nacionalistas eram influenciadas pelo movimento cinematográfico conhecido
como nouvelle vague. Senador, em seu artigo intitulado A Margem versus Terra em Transe:
estudo sobre a ascensão de Ozualdo Candeias no universo cinematográfico, salienta esta
aliança da indústria cinematográfica com os movimentos políticos da época:
O contexto pós-golpe reforçou ainda mais o elo estabelecido entre
universalistas e o Estado, principalmente porque ambos defendiam o ideário
capitalista e o estreitamento das relações com os Estados Unidos, uma das
razões pelas quais os nacionalistas, que se situavam na esquerda política e
estavam teoricamente mais afinados com o governo anterior, ficaram
marginalizados. O hiato entre os grupos é acentuado quando o governo, sem
dar ouvidos à oposição, decreta abruptamente a criação do INC, uma
autarquia federal com autonomia técnica, administrativa e financeira,
diretamente subordinada ao Ministério de Educação e Cultura. A presidência
foi designada a Flávio Tambellini, ex-presidente do Geicine e homem de
confiança do governo. Tambellini levou consigo alguns colegas para
ocuparem cargos importantes no órgão, entre os quais estavam os críticos
Antônio Moniz Vianna, Rubem Biáfora e Ely Azeredo (CANDEIAS, 2005,
p. 3).
Estes críticos preencheram as colunas culturais de periódicos paulistas e cariocas
como Folha de S. Paulo, Correio da Manhã e O Globo com artigos carregados de
superlativos e adjetivos, exaltando a película de Candeias em detrimento da produção de
Glauber Rocha. No entanto, para além destes conflitos, existem alguns pontos consonantes e
outros dissonantes nos dois movimentos cinematográficos mais relevantes para o estudo em
questão.
Na primeira parte do filme de Candeias, as personagens vagueavam pelas margens do
rio, mas na segunda parte essa caminhada acontece no centro da cidade, perambulação esta
que é característica dos filmes do neo-realismo italiano e também de alguns filmes do Cinema
Pois Glauber nos deu um vômito triunfal. Os Sertões de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E
qualquer obra de arte para ter sentido no Brasil precisa ser essa golfada hedionda” (VENTURA, 2000).
147
Novo, o que denota uma busca de caminhos e de soluções. Nota-se que, no Cinema Novo,
havia um sentido nessa caminhada, um telos, um objetivo previamente conhecido e em busca
do qual se dá a jornada, em que a salvação dos oprimidos se daria com a revolução. Em A
margem não existe um objetivo final nessa errância, sendo esta uma das diferenças em relação
ao cinema novo, que marcou esse filme como uma ruptura com o movimento carioca, ou seja,
a falta de sentido na ação e no andarilhar das personagens (XAVIER, 1993, p. 12).
Tal posicionamento estético, ao remeter a esta espécie de registro da crueldade sobre a
miséria da condição humana, sem projeção de um melhoramento desenvolvimentista,
localiza-se, portanto, fora do registro exclusão/inclusão. Tais características são também
observadas em outro filme, agora um documentário, chamado Ilha das Flores (1989) de Jorge
Furtado. Neste, a crueza do olhar sobre o mundo se anuncia antes mesmo de qualquer cena,
quando, em fundo negro, aparecem os seguintes escritos: “Este não é um filme de ficção.
Existe um lugar chamado Ilha das Flores. Deus não existe”.
FIGURA 16: CARTAZ ILHA DAS FLORES – JORGE FURTADO
O narrador deste documentário, “sarcástico” conforme Paul Rabinow o classificou
(1991), de quase 14 minutos, apresenta a trajetória de um tomate que é rejeitado pelo seu
consumidor, jogado ao lixo e, por fim, destinado ao lixão de Ilha das Flores, onde os
148
moradores se alimentam dos restos ali acumulados. Todavia, o contraponto não está apenas
nesta sobrevivência a partir dos restos da cidade; mais além, está na relativização da própria
condição humana, quando, por exemplo, o dono do lixão privilegia os restos orgânicos para
alimentar primeiramente os porcos e, apenas depois, permitir aos moradores a coleta do que
não serve nem mesmo aos suínos.
O narrador (voz em off), com argumentos pseudocientíficos, marca insistentemente
esta diferença entre o homem e as outras espécies por possuir tele-encéfalo altamente
desenvolvido e polegar opositor. A insistência nesta definição de modos de ser do humano
parece contrastar com cada ação que envolve a trajetória do tomate até a Ilha das Flores. Até a
metade do filme, apresenta-se este trajeto, desde o produtor rural, chegando ao supermercado,
comprado e rejeitado pela vendedora de perfumes, por avaliar aquele tomate impróprio para
seu molho de carne de porco, sendo, portanto, jogado no lixo. Todas as trocas foram
intermediadas por dinheiro e também insistentemente lembradas ao espectador, com a
intenção de denotar o lucro obtido a cada passo de comercialização do tomate.
Na segunda metade do documentário, Jorge Furtado redireciona sua argumentação
para os absurdos destes seres com tele-encéfalo altamente desenvolvido e polegar opositor.
Após demonstrar a logística de produção do capital, o diretor apresenta a trajetória do tomate
após desaparecer no lixo da cozinha. Como um portal para o submundo, o tomate chega ao
lixão de Ilha das Flores, onde o porco não é mais o alimento da família burguesa, pelo
contrário, ele tem a preferência na seleção dos restos orgânicos para ser utilizado como
alimento. Aos seres desumanizados resta o que não serve para alimentar os porcos. Ao final
do filme, volta o fundo preto e agora os escritos esclarecem que algumas locações não
correspondiam às informações manifestadas na narrativa da história, mas que, salvo isto, o
resto é verdade.
Os restos se tornam objeto/evidência da verdade, ao testemunhar esta existência
miserável de parcela da humanidade, retratada no interior dos efeitos das relações de capital.
Nesta obra, salta aos olhos o aviso inicial: “este não é um filme de ficção”44, para apresentar a
evidência da tragédia real da miséria humana. Ilha das Flores foi, durante toda a década de
1990, um filme obrigatório nos colégios para se discutir temas sociais e ambientais. Neste
recorte, a verdade associa o lixo como um circuito fora das relações de força do capital, um
refugo da sociedade moderna, onde não há a inscrição de uma relação de trabalho e, por isso
mesmo, não se encontram resquícios das promessas da sociedade moderna.
44
Mensagem inicial do documentário Ilha das Flores em que, posteriormente, se seguem outras duas
afirmações: “Existe um lugar chamado Ilha das Flores”; e “Deus não existe.”
149
Anos depois, outro documentário era produzido, tendo a vida dos catadores nos lixões
como objeto de verdade documental: Boca de lixo (1992), dirigido por Eduardo Coutinho,
mas, desta vez, não havia um enredo predefinido. Este filme se faz relevante, quando se
percebe o modo como se operam as relações ao longo das tramas que permeiam a vida no
lixão: a condução dos diálogos, os conflitos, a vida doméstica, o processo de trabalho. Até
este momento da pesquisa, nenhuma fonte literária, cênica, cinematográfica ou histórica havia
dado passagem efetiva à voz daqueles que vivem do lixo. Após serem citados Charles
Baudelaire, Plínio Marcos, Ozualdo Candeias, Jorge Furtado e, ainda, certo número de
historiadores e documentos históricos, vê-se, pela primeira vez, uma obra em que não se fala
sobre os catadores, ao contrário, são os catadores que falam sobre si mesmos. Pois, mesmo
que a câmera ainda represente um olhar de estranhamento do artista cosmopolita, que ressalta
o absurdo da miséria humana engendrado no interior de seu próprio estilo de vida e só possa
registrar aquele contexto a partir de fora, ainda assim, tem-se a fala dos catadores sobre la
moindre des choses45 em seu cotidiano.
45
Expressão francesa que significa “o mínimo das coisas” também se prestou a dar nome a um documentário
sobre o cotidiano da Clínica Psiquiátrica de La Borde, França. O documentário foi produzido durante o verão de
1995, quando, fiéis ao que infelizmente se tornou uma tradição, pensionistas e auxiliares da clínica psiquiátrica
de La Borde reúnem-se para preparar a peça de teatro que representarão no dia 15 de Agosto. No decorrer dos
ensaios, o filme volta a desenhar os altos e baixos desta aventura. Mas, para além do teatro, retrata-se a vida de
todos os dias em La Borde. O tempo que passa e as pequenas relações se fazem perceber: a solidão e o cansaço,
mas também os momentos de alegria, os risos, o humor de que se armam alguns pensionistas e a atenção
profunda que cada um dá ao outro.
150
FIGURA 17: CARTAZ BOCA DE LIXO – EDUARDO COUTINHO
Neste modo de apresentação, a carga dramática não está nos conflitos sobre a fome, a
luta pela sobrevivência, os conflitos de exploração ou na narração de algo que se estabelece
como verdade. Pelo contrário, o choque que se pretende provocar no público está apenas em
mostrar aquilo que existe, ou seja, que há vidas humanas que veem apenas no lixo sua
possibilidade de existência.
O início do documentário parece acenar para um lugar inóspito e pós-apocalíptico
onde, sobre montanhas de restos, urubus, porcos e cavalos chafurdam o lixo atrás de comida.
Todavia, ao mostrar o Morro do Corcovado (Rio de Janeiro – RJ) ao fundo de uma destas
cenas, o diretor traz rapidamente o público de volta ao contexto presente e real, quando, em
seguida, mostra um grupo de pessoas amontoadas atrás de um caminhão que despeja o lixo
recolhido das cidades. A câmera fecha sobre as mãos frenéticas daqueles homens e mulheres
escolhendo legumes, frutas e outros alimentos, dando a primeira impressão de que a proposta
será parecida com a de Ilha das Flores. Consuelo Lins, pesquisadora, documentarista e
parceira de Eduardo Coutinho na produção de Babilônia 2000 e Edifício Master, destaca este
prólogo de Boca de Lixo:
151
Esse começo de filme aponta para muitas direções: exploração da pobreza e,
por tabela, da culpabilidade do espectador; sensacionalismo, voyerismo,
comercialização da miséria. Tais imagens lembram as que são exibidas na
televisão para serem consumidas em forma de espetáculo. Não há indícios
nessas seqüências iniciais de qualquer “humanização” dos catadores;
nenhum vestígio de tentativa de extrair um ser digno desse ‘bicho-homem’.
Na verdade, Boca de Lixo está desde o começo em ‘duelo’ com o clichê,
face a face com a pior imagem que se tem desse universo. É como se o filme
jogasse na nossa cara a imagem que temos desses seres, a imagem do senso
comum. É um documentário que não apenas se confronta com essa questão
como a traz para o seu interior (LINS, 2007 [2004], p. 87-88).
Mais uma vez, a condição limite da vida humana se ressalta, mas agora não mais como
ponto de verdade e sim como uma exterioridade em luta e contraste com o real. Logo em
seguida a este prefácio, Coutinho mostra os catadores tentando se esconder da câmera e, em
sequência, o diretor parece apreender uma mensagem que permeava o grupo que o olhava
filmar: “É um trabalho legal como os outros, não tem problema não”. Então surge o recado
que se faz recorrente: “Aqui todo mundo é trabalhador. Pelo menos não tem ninguém
roubando, nem matando”. Este protesto contra o que a mídia os faz parecer se revela na fala
de vários catadores.
Aos poucos, Eduardo Coutinho vence a resistência dos catadores perante a câmera
quando pergunta a uma catadora, que afirma ter nascido naquele lixão, se ela conhecia todos
que ali trabalhavam e a desafia a dizer os nomes. Os nomes dos catadores entremeados à
sequência de rostos em close tornar-se-iam, então, uma das linhas condutoras para revelar as
personagens da Boca de Lixo. Com fotos de algumas personagens daquele lugar capturadas na
primeira sequência de gravação, Coutinho retorna com sua equipe três meses depois,
perguntando seus nomes aos catadores. E é com estas fotos em punho, mais precisamente com
as fotos da família de uma catadora, selecionada pelos outros catadores que ali estavam, que o
diretor chega à Nirinha, sua primeira personagem.
Nirinha é exatamente o exemplo deste trabalho que se afirma como digno, pois é quem
mais cata de todos, chegando a coletar cerca de duas toneladas por semana. Assim, em
contraste ao que se pensava ser apenas o refugo da sociedade que se alimenta do que é
rejeitado pelas vidas da cidade, como em seu prólogo ou no filme de Jorge Furtado, Nirinha
mostra o funcionamento e circulação das coisas no mercado de recicláveis. Revela-se esta
estratégia de mercado, quando Nirinha diz ter vantagem sobre os outros catadores por não
fazer dívida com os compradores locais, pois consegue estocar o material para não vender a
estes atravessadores e poder comercializar com intermediários para quem esses primeiros
vendiam. Os catadores não seriam mais estes animais desumanizados que vivem e se
152
misturam com o lixo, mas trabalhadores pertencentes às mesmas leis de mercado
determinadas pelo capital dos centros das cidades.
Após esta constatação, as próximas sequências de personagens mostram sua vida no
lixão e em suas casas, fazendo emergir o próximo contraste. Os catadores que parecem falar
mais à vontade dentro do lixão sentem-se constrangidos no momento das entrevistas em suas
casas. Para o público, mais um estigma cai por terra: esses trabalhadores não moram no lixo,
têm casa, família, cuidam de animais. Num cenário mais bucólico do que urbano, no ambiente
doméstico Coutinho pode apreender estas vidas para além da cata de restos.
Outro desses personagens é Enoch Pereira Santos que, com 70 anos, afirma já ter
trabalhado em vários Estados brasileiros. Enoch, conhecido pelos colegas de trabalho como
Papai Noel, revela mais uma perspectiva deste comércio de recicláveis, em que o lixo “faz
parte da vida... o final do serviço é o lixo... e é dali que começa”. Ao perguntar sobre sua
religião, Papai Noel diz ser naturalista e acreditar muito na natureza. Ao ser perguntado se
acredita em Deus, o velho senhor, em tons quase spinosianos, diz ser Deus e natureza a
mesma coisa e regidos pelas mesmas regras.
Se, nas outras obras, procurava-se dar alguma margem para soluções transcendentais
ou apoiadas em qualquer registro de esperança, neste campo de realidade as possibilidades de
vida limitam-se ao campo da causalidade e da imanência, ou, como salienta Consuelo Lins:
‘Pra mim qualquer serviço é serviço’, ‘acho que catar no lixo está bom’, ‘o
lixo é direto com a vida’, ‘qualquer coisa pra mim tá bom’, ‘Deus ajuda,
Deus dá força’. Nas falas dos personagens de Boca de Lixo há uma ausência
de queixa, de reivindicação, e uma aceitação da vida aqui e agora, mas não
como sacrifício em troca da vida eterna. (...) A esperança pra eles não é uma
questão, o que não significa falta de consciência da situação em que vivem.
Ao contrário, há uma espécie de clarividência na relação que travam com o
real e com o próprio filme. (...) É como se a esperança impedisse o confronto
direto que eles devem ter com a vida e dificultasse a invenção de estratégias
de sobrevivência. Esperar o quê? Queixar-se do quê? Reinventar o quê? O
pior que poderia acontecer é a proibição de catar lixo ou a remoção do
depósito para outro lugar. Para o cinema de Coutinho, a esperança também
está fora de questão, o que não significa pessimismo e pouco caso diante do
que filma, ou tolerância com a miséria e as desigualdades sociais. ‘Filmo o
que existe’, costuma observar Coutinho. (LINS, 2007 [2004], p.94).
Coutinho retorna pela terceira vez ao lixão de São Gonçalo para apresentar aos
catadores uma edição exclusiva das imagens capturadas. Neste momento, todos, catadores e
público, assistem ao que foi documentado; a diferença está em que, enquanto nos
153
horrorizamos com o que ali se apresentou, os catadores se divertem ao se reconhecerem
durante a exibição das cenas.
No entanto, as reflexões da autora Consuelo Lins não estariam de todo exatas e os
acontecimentos contemporâneos mostrariam sua incongruência. Havia o que reivindicar, nem
que, para isto, os catadores tivessem de se reinventar.
Boca do lixo faz saltar o contraste entre a banalização do cotidiano no lixão e o
assombro do que o cotidiano da cidade desconhece. Trata-se do campo de pertencimento
pelos catadores que vivem em suas montanhas de detritos e cadáveres contra o campo de
alheamento da vida higienizada dos citadinos que assistem a estas realidades na película
cinematográfica como se aquele cenário catastrófico não lhes pertencesse. Este mesmo efeito
é possível de se perceber em outro documentário, ainda mais intenso, ainda mais potente:
Estamira (2005).
FIGURA 18: CARTAZ ESTAMIRA – MARCO PRADO
154
Dirigido por Marcos Prado, o autor revelou que conheceu a catadora Estamira no
Jardim Gramacho, onde fazia um ensaio fotográfico sobre o famoso lixão de Duque de
Caxias, responsável por receber todos os dias 85% de todo o lixo produzido na cidade do Rio
de Janeiro, em seus um milhão e duzentos mil metros quadrados de área. Em sua convivência
diária com a catadora de lixo, ela lhe revela viver num castelo todo enfeitado com objetos
retirados do lixão e declara ser a portadora de uma missão: “Minha missão, além de ser
Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade, capturar a mentira e jogar na cara”.
Tornam-se amigos e algum tempo depois ela pergunta se o diretor sabia qual era sua missão.
Antes que tivesse tempo para responder, Estamira lhe diz categórica: “A sua missão é revelar
a minha missão”. Deu-se início a produção de uma obra de arte como documentário.
Poética da loucura, Estamira é um acontecimento singular como espetáculo e
excepcional como realização. O retrato de uma catadora, mulher negra, sexagenária,
considerada “doente mental crônica” pelos boletins médicos, estuprada pelo avô na infância
pobre e vendida para o bordel. Estamira é o exemplo do refugo social. Concentra em um
corpo uma multiplicidade de preconceitos, desprezos, abusos e marginalizações e torna-se a
figura principal de um documentário que rodou o mundo e acumulou premiações.
Mas Estamira, no auge de sua loucura, apresenta a lucidez de poucos, principalmente
ao falar de suas teorias de conspiração e compreensão sobre o mundo que está em seu
entorno: “A Terra falava, agora ela tá morta. A morte é dona de tudo”. No entanto, adverte
aos expectadores, confortáveis no esteio de seu alheamento por julgarem estar distantes de
tantas mazelas: “Eu sou a beira do mundo, estou em todo lugar. (...) Estamira é a beira do
mundo, a visão de cada um e ninguém pode viver sem ela”.
Desafia Deus, o Trocadilho como a face perversa de Deus, e desafia a ciência: “tem o
entorno, o infinito, o além e o além dos aléns, que nenhum cientista jamais conheceu”. Ignora
a cidade dos sábios habitada pela lógica da ciência e da medicina social modernas. Para
Estamira, este mundo da cidade é que é o abstrato: “A criação é toda abstrata. A água é
abstrata, o fogo é abstrato, a Estamira também é abstrata. (...) O espaço inteiro é abstrato. O
que se vê lá em cima é só reflexo do que está aqui embaixo”. E inverte nosso campo de
relações e percepções ao anunciar: “Tudo que é imaginário tem, existe, é”.
Na sua vivência com a catástrofe, assemelhada mais a um cenário de guerra do que a
uma cena urbana, a catadora do Gramacho conclui que não existem mais pessoas inocentes,
“apenas espertos ao contrário”. Nesta lógica, Marcos Prado retrata a força do inumano,
daquilo que a sociedade não quer reconhecer em si, mas que necessita colocar em sua beirada,
155
como um limite que não se deve atravessar. A referência ao que a cidade e os citadinos não
querem ser, e que também, dali, não conseguem ultrapassar: a beira do mundo.
Assim como na maioria das obras literárias, cinematográficas, plásticas ou fotográficas
vistas na descrição das diferentes personagens do lixo, entre raios, trovões, urubus e
“estamiras” gritando aos ventos, o documentário, do início ao fim, não se preocupa com uma
cadência ascendente até galgar um final feliz para a trama que se desenha. Não há um projeto
de busca pela dignidade, ou mesmo um projeto de resistência, ou ainda uma proposta de
inclusão destas personagens no sistema de capital moderno. Os diferentes olhares dispostos
nesta sessão da pesquisa avançam, sem progressismos ou fatalismos, mas de forma fria e crua,
em um perambular non sense destas expressões de vida.
É nesta falta de sentido que se estabelece não propriamente uma resistência ao poder,
mas apenas a manifestação de contracondutas, que atuam não como movimento de
resistência, mas como expressões de vida contrárias aos procedimentos de governo postos em
prática para conduzir os outros (FOUCAULT, 2008a, p. 266).
Esta genealogia descritiva sobre as personagens do lixo, até aqui, possibilitou destacar,
no plano das relações, estas entidades da desordem, figuras localizadas no tempo e no espaço
e, portanto, diferenciadas no plano do real e distantes das projeções dos corpos utópicos
promovidos pela medicina-social. Conforme analisa Michel Foucault:
Contraconduta no sentido de luta contra os procedimentos postos em prática
para conduzir os outros; o que faz que eu prefira essa palavra a “inconduta”,
que só se refere ao sentido passivo da palavra, do comportamento: não se
conduzir como se deve. Além disso, essa palavra – “contraconduta” – talvez
possa evitar certa substantificação que a palavra “dissidência” permite.
Porque de dissidência vem “dissidente” (...). Ora, não estou muito certo de
que essa substantificação seja útil. Temo inclusive que seja perigosa, porque
sem dúvida não tem muito sentido de dizer, por exemplo, que um louco ou
um delinquente são dissidentes. Temos aí um procedimento de santificação
ou de heroicização que não me parece muito válido. Em compensação,
empregando a palavra contraconduta, é sem dúvida possível, sem ter de
sacralizar como dissidente fulano ou beltrano, analisar os componentes na
maneira como alguém age efetivamente no campo muito geral da política ou
no campo muito geral das relações de poder. Isso permite identificar a
dimensão, o componente de contraconduta, a dimensão da contraconduta que
podemos encontrar perfeitamente nos delinquentes, nos loucos, nos doentes.
Portanto, análise dessa imensa família do que poderíamos chamar de
contracondutas (FOUCAULT, 2008a, 266).
Para as racionalidades de governo, o cambalear poético do trapeiro, a risada de Muane,
as paralisações dos carroceiros, a loucura das estamiras não são nada mais do que expressões
ingovernáveis que, por assim se definirem, não articulam projetos de poder. São aparições
156
transitórias, episódicas, até mesmo as articulações dos carroceiros no Rio de Janeiro que, com
suas paralisações, tinham objetivos imediatos de derrubada de alguma lei ou sanção
específica.
Por fim, para efeito de contraste, vale um retorno ao início desta segunda parte da
pesquisa, em que foi apresentada a concepção histórica do Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis. Ao convocar para si a história de heróis de movimentos
de resistência, como dos negros, mulheres e índios, o MNCR apresenta sua proposta de
destacar da história destas personagens seus fluxos de desordem e devaneio para aderi-los às
figuras reconhecidas historicamente como ícones de resistência. Trata-se da produção de uma
identidade para a prospecção de procedimentos de autoafirmação e reivindicação do registro
de sua resistência em outro campo de afetos e símbolos.
Na descrição subsequente, serão colocadas algumas táticas de um novo modo de
aparecimento desta personagem, que então não mais será apenas objeto narrativo, artístico,
científico ou sociológico, mas também se reposicionará no debate público sobre a gestão do
lixo como um produtor de discursos e narrativas sobre si. Entender quais os efeitos deste
acontecimento constitui o objetivo a seguir.
5.5 Catadores de materiais recicláveis: de personagem do lixo a ator social
O olhar produzido por Eduardo Coutinho no documentário Boca de Lixo deixa
algumas pistas sobre o que estaria por vir, tais como: a relação de exploração de mercado
entre o atravessador e o catador; a afirmação das histórias individuais que relatariam uma
trajetória desta ocupação na história do trabalho, e, principalmente, o olhar que se lança ao
que foi documentado; o reconhecimento de um modo de vida tão humano, como o de
qualquer outro cidadão dos espaços urbanos.
A esta figura do contemporâneo, coletora dos refugos da cidade, será atribuída outra
ordem discursiva, aliada não apenas ao movimento de ser jogado para fora das relações
urbanas, no que diz respeito tanto ao objeto como ao sujeito que, até então, seriam
considerados apenas como condição de dejetos da vida moderna. As descrições antecedentes
focalizaram pessoas que trabalharam na coleta de lixo durante o crescimento e
desenvolvimento das cidades. Estas fontes acabaram por construir diferentes personagens a
partir da narrativa de cada campo discursivo, a saber, os campos artístico, histórico e
sociológico. No caso específico desta nova categoria profissional, os catadores de materiais
recicláveis exigem para si a possibilidade de produzir discursos sobre seu modo de existência
157
dentro deste campo de inteligibilidade, ou seja, deste campo que se fundamenta na razão de
funcionamento do Estado Democrático Moderno.
De personagem pertencente à escória da paisagem urbana, o catador de materiais
recicláveis convoca para si a função não mais de tal personagem, mas de autor e ator no palco
da vida real. Torna-se agora um agente de si mesmo sob os efeitos do que o cercou ao longo
dos tempos, ou seja, a miséria humana em sua plenitude.
Trata-se, portanto, de uma mudança de olhar que se lança sobre a realidade, do que se
produz como objeto discursivo e de intervenção de práticas. Para iniciar a discussão sobre esta
mudança de olhar, nada mais ilustrativo que as cenas finais do documentário de Eduardo
Coutinho. O horror do público, após assistir tais mazelas da miséria humana, entra em
contraste com a diversão dos catadores ao se reconhecerem como os atores de suas próprias
vidas. Os risos que ali se veem funcionam como o reconhecimento de um modo de vida e
buscam com o público uma cumplicidade outra que não os clichês assépticos da vida
burguesa. Aquele registro cinematográfico, que inicia com um conjunto de negações, acaba
por revelar uma dobra de sentidos, pois, ao permitir o descanso e a demora dos olhos das
câmeras, revela, ao espectador, relações cotidianas comuns a qualquer sujeito da cidade.
Nas próximas duas décadas, o que se observa é uma reorientação nas práticas e
discursos deste ofício tão comum às cidades modernas. Dois procedimentos serão
responsáveis pelos primeiros movimentos de sedimentação desta nova figura social. De início,
tem-se a construção de uma identidade da categoria dos catadores que tem como um de seus
pilares a organização de um movimento social que represente esta categoria. Como efeito
quase imediato deste estilo de organização coletiva e como desdobramento de sua própria
força de aparecimento no cenário dos negócios públicos urbanos, evidencia-se a produção de
um aparato jurídico que legitime e regulamente este novo modo de existência.
A articulação dos catadores em um movimento social relacionar-se-ia, então, pela
demanda de produção de uma identidade que ultrapassaria a materialidade do ofício e entraria
no campo ideológico. Assim, o MNCR relata sua gênese:
O Movimento Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis
(MNCR) surgiu em meados de 1999 com o 1º Encontro Nacional de
Catadores de Papel, sendo fundado em junho de 2001 no 1º Congresso
Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis em Brasília, evento que
reuniu mais de 1.700 catadores e catadoras. No congresso foi lançada a Carta
de Brasília, documento que expressa as necessidades do povo que sobrevive
da coleta de materiais recicláveis.
158
Antes mesmo do Congresso os catadores impulsionavam a luta por
direitos em diversas regiões do Brasil. A articulação de diversas lutas por um
mesmo objetivo torna possível a organização do movimento nacionalmente.
Este 1º Congresso Nacional do MNCR, em 2001, contou com a participação de 1.600
congressistas, entre catadores, técnicos e agentes sociais de dezessete estados brasileiros, e os
3.000 participantes da 1ª Marcha Nacional da População de Rua. Se, na virada do século XX,
os carroceiros responsáveis pela remoção do lixo da capital federal fizeram sua aliança com
os cocheiros, na virada do século XXI as alianças para defesa de seus interesses será efetivada
com a população de rua. A aliança, portanto, não se dava mais pela condição de trabalho dos
serviços de transporte, mas pela condição de miserabilidade daquela população.
Não por acaso, na Carta de Brasília, documento redigido ao final do congresso dos
catadores, foram apresentadas as reivindicações tanto para os catadores (sete itens), como
para a população de rua (sete itens). O catador da virada do último século se assemelharia, ao
menos inicialmente, mais aos Homens de Papel de Plínio Marcos, do que ao Vinho dos
Trapeiros de Charles Baudelaire.
Não por acaso, uma das reivindicações mais evidentes diz respeito à demanda desta
categoria nos serviços e debates públicos como, por exemplo, a inclusão social, a inclusão no
Plano Nacional de Qualificação Profissional, a inclusão no programa Bolsa-Família e Bolsa
Escola e a “inclusão nos programas especiais na área da saúde, como ‘saúde da família’ e
similares, ‘saúde mental’, DST/AIDS/IV e outros, instituindo ‘casas-abrigo’ para apoio dos
que estão em tratamento”46.
No entanto, o tema da inclusão não mais irá aparecer nos três encontros seguintes
entre os catadores dos países latino-americanos47. Em seu lugar, outros temas primordiais se
tornariam mais evidentes nestes quatro documentos sobre reivindicações de catadores
brasileiros e latino-americanos: o saneamento assegurado como bem público, compreendendo
dentro deste a gestão dos resíduos urbanos; a regulamentação e qualificação profissional
como políticas públicas; o desenvolvimento da coleta seletiva e da indústria de recicláveis
com garantias pelo Estado da participação protagonista dos catadores nos dois processos, de
modo a oferecer-lhes linhas de financiamento público para estruturação de empreendimentos
coletivos e regulamentação de seu ofício como prestação de serviço público; a erradicação dos
46
http://www.mncr.org.br/box_1/principios-e-objetivos/carta-de-brasilia. Acesso em: 20 jun. 2012.
1º Congresso Latino Americano – Rio Grande do Sul – 20 a 23 de janeiro de 2003. 22º Congresso Latino
Americano de Catadores(as) – São Leopoldo – 23 a 25 de janeiro de 2005. 3º Congresso Latino Americano de
Catadores de Materiais Recicláveis – Bogotá, Colômbia – 1 a 4 de março de 2008.
47
159
lixões e erradicação da pobreza sempre como temas vinculados; e, por último, a consolidação
do catador não mais como uma personagem do lixo, mas como um agente ambiental.
Em 2002, os catadores conseguem seu reconhecimento como categoria profissional
pelo Ministério do Trabalho e do Emprego, sendo descrita então pelo Estado Federal as
atribuições de tal função, conforme a Classificação Brasileira de Ocupação:
Descrição:
5192: Trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável
Títulos:
5192-05 - Catador de material reciclável
Catador de ferro-velho, Catador de papel e papelão, Catador de sucata,
Catador de vasilhame, Enfardador de sucata (cooperativa)
5192-10 - Selecionador de material reciclável
Separador de material reciclável, Separador de sucata, Triador de
material reciclável, Triador de sucata
5192-15 - Operador de prensa de material reciclável
Enfardador de material de sucata (cooperativa), Prenseiro, Prensista
Descrição Sumária:
Os trabalhadores da coleta e seleção de material reciclável são
responsáveis por coletar material reciclável e reaproveitável, vender
material coletado, selecionar material coletado, preparar o material
para expedição, realizar manutenção do ambiente e equipamentos de
trabalho, divulgar o trabalho de reciclagem, administrar o trabalho e
trabalhar com segurança.
Tem-se ainda no site do MNCR a descrição detalhada das ações concernentes a cada
uma das atividades constantes nesta descrição sumária48, pois na lógica de produção do
mercado não há mais espaço para aquela figura solitária e obscurecida das ruas. Este roteiro
de trabalho e postura do novo catador de material reciclável, neste momento legitimado pelo
Estado, inscrito em sua razão organizativa do trabalho, adquire forte sentido, pois teve a
participação de representantes de cinco cooperativas de catadores para sua confecção.
Neste modelo de produção de discurso e organização de práticas, o Estado adota como
estratégia não impor uma ordem de sentidos ao catador, mas, ao contrário, capturar, selecionar
e organizar o conteúdo prático-discursivo do cotidiano de catação. Isto implica interferir em
sua conduta, a fim de lhe expurgar os traços de criminalidade e insuportabilidade e, a seu
tempo, inscrever aquilo que seria útil para fazer aparecer este novo sujeito na razão de
funcionamento da cidade moderna. Neste processo de inclusão do catador na razão
governamental, em que ocorre uma transmutação de valores, a figura do catador não estaria
48
http://www.mncr.org.br/box_2/instrumentos-juridicos/classificacao-brasileira-de-ocupacoes-cbo. Acesso em:
20 jun. 2012.
160
mais associada às sensações deletérias e emanações telúricas do lixo, mas sim a uma figura
ativa nos debates públicos, como agente ambiental.
As personagens do lixo darão passagem à insurgência de outra figura de enunciação
sobre aqueles que vivem no lixo e do lixo. Aldo Zaiden Benvindo (2010) analisa o processo
de formação dos catadores de rua e dos lixões em atores sociais e econômicos.
A identificação dentro de uma categoria, o que implica em uma absorção dos
modos de agir da mesma, compostos por diversos dispositivos para se
posicionar diante da sociedade e do próprio mercado, em especial a noção de
quem é atravessador nesta cadeia, é a própria metáfora da transformação do
catador enquanto ator, deixando de ser um simples elo na cadeia produtiva
da reciclagem. A imagem de simples ‘elos’ é associável aos catadores
individuais. Contudo, há que se observar que a sustentação da outra posição,
aquela autorizada, portadora de um nome ‘catador’, que quer dizer muito
além de ‘alguém que cata materiais e vende’, precisa ser alimentada no plano
do concreto dos indivíduos. (...) tem que se dar no plano concreto destes
trabalhadores (BENVINDO, 2010, p. 65).
Este processo de produção de um campo de identidade para os catadores, por meio da
efetuação de uma coerência articulada em movimento social, implica mais do que uma
organização profissional: agrega-lhe a função e a formação de um campo de enunciação
política. O catador como ator social adere ao fortalecimento da categoria e a enuncia
publicamente.
Concomitante à definição desta figura do catador organizado, inevitável ter como
efeito a circunscrição daqueles que ficariam fora deste círculo de significação social,
econômica e ambiental. Articulado como movimento social, discursos e práticas podem ser
entendidos como objetos de consenso coletivo e representativo, como efeito dos
procedimentos deliberativos que os compõem. A composição do catador como ator social se
assemelha ao funcionamento de um dispositivo, pois se caracteriza pela habilidade em agregar
uma heterogeneidade de personagens para a produção de certa coerência, certo nexo e, por
consequência, de uma identidade de categoria: o catador de materiais recicláveis.
À primeira vista, este processo organizativo, não apenas das atividades laborais, mas
também organizativo em dimensão identitária, parece promover um modo de vida menos
exploratório e mais autônomo do que aquele que se revela, por exemplo, no cenário
apresentado pela peça Homens de Papel.
Todavia, todo processo de organização de um campo identitário produz seu crivo
normativo e faz incidir os exercícios das curvas de normalidade, além de determinar um modo
de demarcar as condutas aceitáveis e as inaceitáveis. É por meio do que se encontra nas
161
bordas destes processos de normalização social que se torna possível compreender como está
circunscrita esta nova conduta do catador de lixo como um ator social, um agente de
transformação social e ambiental.
Um manual produzido pelo Fórum Estadual Lixo e Cidadania de Minas Gerais,
intitulado Manual para organização e negociação de serviços: sistema de coleta seletiva com
participação de catadores (2011), em suas normativas sobre tal temática, apresenta o seguinte
item:
Relações com catadores não organizados
Mesmo com a formalização da prestação de coleta seletiva pelos
catadores, outros catadores que não fazem parte de alguma associação,
considerados não organizados, continuam coletando.
Estes catadores coletam os materiais antes da coleta formal, tão logo a
população os dispõe nos pontos de coleta. Eles coletam os materiais que os
interessa, geralmente materiais semi-separados, com alta densidade e maior
valor econômico. Muitas vezes, esses catadores podem dificultar as relações
com a população e com o poder público municipal, pela impossibilidade
jurídica de contratação direta de catadores não organizados em associações
ou cooperativas e pela necessidade de controlar a qualidade e a regularidade
do serviço de coleta prestado à comunidade.
Porque os catadores informais não se tornam membros de uma associação
ou cooperativa?
Muitas vezes, esses catadores não querem fazer parte de associações
ou cooperativas pela forma de vida que eles escolheram (p.21).
Inscrevem-se assim as limitações deste ideário de inclusão do catador. Um modo de
normalização das condutas se revela ao excluir as mesmas personagens apresentadas por
Plínio Marcos em Homens de Papel, moradores de rua ingovernáveis e, portanto, inúteis a seu
projeto civilizatório. Este estilo de vida autônomo, irregular e informal, recorrente na maioria
das personagens do lixo até aqui descritas, sedimenta-se novamente em um tipo de conduta
indesejado até mesmo para a nova identidade que se produz sobre estes trabalhadores do lixo.
No entanto, o que está por vir revela um processo de assujeitamento que, ao mesmo
tempo em que enuncia a verdade de um sujeito, o liga, coercitivamente, a uma determinada
identidade. Foucault (1995) assinala que "há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a
alguém pelo controle e dependência; e preso à sua própria identidade por uma consciência ou
auto-conhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a" (p.
235).
Paradoxalmente, aquilo que traz visibilidade política, econômica e social ao catador
acaba por localizá-lo em um campo discursivo identitário, que faz negar suas proveniências
fragmentadas, lacunares, provisórias e caóticas. Para o catador organizado, afirmar-se como o
162
novo ator social implica negar aquilo que o colocava como expressões de contraconduta em
relação aos projetos governados pelo sistema de capital e de produção industrial.
Todavia, este roteiro não foi escrito somente por aqueles que serão os atores do
cenário de gestão de resíduos sólidos, mas também por um conjunto de instituições
representativas do Estado e da Sociedade Civil Organizada, conforme consta nas informações
sobre a autoria do Manual para organização e negociação de serviços: sistema de coleta
seletiva com participação de catadores (2011).
Entender as proveniências desta nomeação do catador como ator social se faz
relevante para a compreensão do próprio processo de institucionalização desta personagem
que, na contemporaneidade, incorpora uma função dentro do processo produtivo moderno.
Em 2006, é publicada uma matéria no jornal Folha de S. Paulo (Caderno Dinheiro, p.
B16, 25/05/2006), dedicada a retratar as novas condições socioeconômicas da gestão sobre o
lixo em países considerados economicamente emergentes. Intitulada Brasil já exporta sua
tecnologia da miséria humana, a reportagem traz vários conceitos, estratégias e
procedimentos característicos de uma nova forma de gestão, não apenas do lixo, mas também,
como o próprio título nos apresenta, gestão sobre uma espécie de emanação social tão
mefítica quanto o lixo, ou seja, a miséria humana.
Em seu prólogo, antes de demonstrar o contexto geral sobre tal realidade, a
reportagem nos oferece uma noção de caso. Faz-se a apresentação da história de vida de um
catador de materiais recicláveis que servira como noção de caso sobre esta miséria humana.
Carlos Antonio dos Reis, 31, ex-alcoólatra, quatro filhos, dois casamentos,
um neto. Vive e sustenta a família com os R$ 210 mensais que ganha como
catador de embalagens, papel e papelão. Personagem da ponta da cadeia da
reciclagem do lixo urbano, setor que movimentou no ano passado R$ 7
bilhões, ‘Carlão’ virou ‘benchmark’ mundial. Ele lidera a Coopamare
(Cooperativa dos Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais
Reaproveitáveis), de São Paulo, que reúne 60 catadores – uma das 400
apoiadas por empresas locais e internacionais (Folha de S. Paulo –
21/05/5006).
Em sequência a este caso, relata-se o modelo sobre o qual se quer falar e qual sua
maior novidade em termos de impacto sócio-econômico.
(...) a indústria defende uma solução para o lixo compartilhada entre as
empresas, o consumidor – que separa os produtos inorgânicos do resto do
lixo – e o poder público. Nesse modelo, organizar e aperfeiçoar o trabalho do
catador é o centro da proposta da entidade empresarial (id. ib.).
163
E, posteriormente, acrescenta:
O modelo que busca engajar na reciclagem o poder público, os 500 mil
desvalidos que vivem do lixo urbano e as empresas que distribuem seus
produtos em embalagens descartáveis, está sendo exportado para a China, a
Índia, a Tailândia, a Rússia pelo Cempre (Compromisso Empresarial para
Reciclagem). É o know-how da miséria entrando na balança comercial do
país (id. ib.).
Conforme relatam estas tiras de um noticiário impresso de significativa circulação
nacional, nada remonta àquela forma mais tradicional do lixo como produto nauseabundo,
proliferador de emanações telúricas. O lixo não está relacionado à putrefação dos dejetos
humanos, não está caracterizado pelo fim da cadeia de consumo, ou, até mesmo, aliado à
imagem da morte (RODRIGUES, 1995).
O que se destaca é a mudança do olhar lançado ao objeto, que também já não é o
mesmo, e que aqui se colocou como questão de análise. Trata-se, efetivamente, desta relação
entre lixo e a conservação da vida, ou, de modo mais adequado atualmente, da preservação do
meio ambiente.
Não que tenham perdido seu odor mefítico. Os dejetos continuam sendo algo
indesejado no cotidiano da cidade. Todavia, o lixo nunca esteve abandonado no entorno das
cidades. Não está sendo reincorporado ao sistema produtivo do mercado. Desde o século XIX,
nas cidades americanas e europeias, a recuperação, ou reciclagem, tanto material como social,
se coloca como mecanismo do sistema de produção capitalista.
Do mesmo modo, como afirma a reportagem citada, estes 500 mil desvalidos que
vivem do lixo urbano agora adquirem valor de mercado, assim como seu velho companheiro,
o lixo. A recuperação das matérias descartadas nas relações da cidade adquire não apenas um
valor econômico e ambiental, mas um valor sociocultural, personificado na inclusão social de
um contingente humano, de um segmento da população visto outrora como algo sem
serventia. Tão importante quanto a recuperação desta matéria putrefata inanimada, que se
acumula nos arredores da cidade, está a reinserção destes indivíduos no processo produtivo do
mercado.
Os catadores organizados travam uma negociação com o Estado, o mercado e a
sociedade civil organizada, para ter voz no cenário da vida pública. Inserido neste modo de
governo, o catador inscreve-se em uma nova configuração de forças e de adequação das
relações humanas: o campo ambiental.
Nos próximos passos desta pesquisa, serão descritas, portanto, estas condições da
contemporaneidade que desdobram em outro corolário de técnicas e procedimentos de gestão
164
do lixo e das relações humanas, aliadas ao campo discursivo da preservação ambiental como
condição de existência dos espaços urbanos.
165
6. PARA UMA COMPREENSÃO DO DISPOSITIVO MEIO AMBIENTE
Foram analisadas duas formas de problematização sobre os modos de gestão das
formas de aparecer do lixo, relacionados à conduta humana na sociedade moderna. A primeira
delas enuncia que as matérias que compõem o lixo estão diretamente vinculadas às formas de
gestão dos riscos à saúde, não apenas biológica, como também à saúde da vida urbana.
Posteriormente, a descrição das personagens do lixo enuncia a emergência de diferentes
possibilidades de existência para além dos padrões estabelecidos pela medicina social, que
reprogramam continuamente os mecanismos de governo dos refugos da sociedade, desta vez,
a partir da noção de risco social.
No rastro desta trajetória deixada pelas mutações sofridas por estas personagens do
lixo, de sua posição de fissura no interior do surgimento do urbanismo moderno, até seu
aparecimento como agentes ambientais urbanos, fica evidente a mudança de foco sobre as
problematizações a respeito da gestão do lixo e as relações humanas. A saúde do indivíduo e a
saúde da cidade deixam de ser as únicas fontes de problematização para a manutenção da vida
como bem comum.
Resta, finalmente, analisar esta outra dobra neste processo de aprimoramento da
gestão dos restos expelidos pelas relações humanas, que entrelaça as fronteiras do corpo e dos
espaços urbanos, com uma dimensão de dominação não apenas territorial e populacional, mas
um modo de relação mais amplo, um poder que se exerce nas relações em escala planetária,
ou seja, que se exerce no meio ambiente: “meio e população se imbricam de uma outra
maneira, em que a passividade inicial da população frente a um meio ativo e determinante
cede a um maior ativismo e participação das pessoas na relação com seu meio” (CARNEIRO,
2012, p. 7).
Foi visto como a medicina-social se constitui como dispositivo organizador das
multiplicidades da vida a partir do momento em que estabelece coerências, mesmo que
dissimuladas, entre elementos heterogêneos, oferecendo um novo campo de racionalidades à
vida na cidade moderna. Naquele contexto, o foco de intervenções também se efetivava no
meio, no instante em que emergem certos modos de relações entre o sujeito e a vida urbana,
tendo como efeito a produção de artificialidades para o governo das populações. No entanto,
as forças da natureza eram vistas como um dado a priori que deveria ser levado em conta
neste cálculo de governo da vida urbana. A importância na circulação do ar e das águas e sua
166
ampliação para a noção de circulação de todas as coisas na cidade era, por exemplo, um modo
de desenvolvimento deste dispositivo da medicina-social.
Na grade de análise a ser apresentada em subsequência, o meio ambiente se define
como outro dispositivo biopolítico. Trata-se de um novo princípio agregador de sentidos,
valores e práticas que reposiciona o lixo nas relações, não mais apenas com a cidade, mas
com a biosfera. Neste novo plano de ação, a natureza deixa de ser algo dado, assimilado e
transformado pelas ciências, para se tornar o próprio campo de intervenção e, portanto, de
produção de artificialidades.
Paul Rabinow, ao ser perguntado sobre a afirmação “a natureza finalmente se tornará
artificial”, referente a uma de suas análises sobre o Projeto Genoma e os avanços da ciência
na intervenção da natureza, esclarece esta nova condição de governo:
(...) o ponto de partida para grande parte da ciência humana moderna é a
distinção de que a natureza está, de alguma maneira, dada, lá fora, e que a
cultura é o feito distintivo do Homo sapiens, que cresce da natureza, se
separa dela e, então, dela se distingue. Agora que temos a habilidade nesta
nova construção de natureza, de conhecê-la de maneira a poder modificá-la,
será cada vez mais difícil reivindicar que ela está lá fora, simplesmente dada,
que tem suas leis e que estas seguem seus próprios cursos. Nós vamos ter de
intervir em mais e mais domínios; também estamos começando a ver que
esta intervenção é parte do que somos como espécie. Isto desloca a questão
sobre se natureza e cultura são separadas, se uma é pura e a outra impura,
para níveis mais específicos como, por exemplo, que tipos de intervenções
queremos e a que éticas servem. Então, natureza em si mesma não pode mais
do que cultura ser a norma do que fazer e do que não fazer. A partir daí
vamos ver muitos cruzamentos procriadores acontecendo (RABINOW,
1991, p. 75).
Por consequência, a noção de meio ambiente se configura como uma das formas
contemporâneas de produção de racionalidade, geradora de modos de inteligibilidade e de
práticas de intervenção na natureza: “Nós, modernos ocidentais, estamos começando a pensar
sobre nós mesmos individualmente e como uma espécie no globo. É aí que reside parte do
poder de modernismo tardio desta questão: o desaparecimento das linhas divisórias entre
natureza e cultura” (RABINOW, 1991, p. 74)
A ecologia, por sua vez, desenvolve-se como uma destas novas tecnologias de
intervenção, agregadora de um novo campo prático-discursivo sobre a gestão do lixo. O
cálculo sobre os riscos ecológicos apresenta-se com tal força de verdade que se mostra “capaz
de restringir o uso da ciência moderna baseada no poder sobre a natureza” (WOSTER apud
CARNEIRO, 2012, p.9). Ecologia reveste-se de uma força e uma verdade que “contribui para
167
a construção do dispositivo meio ambiente ao reunir práticas e verdades em torno da
conservação da vida no planeta e mostrar uma interação maior entre população e meio”
(CARNEIRO, 2012, p. 9).
Este tipo de tecnologia não provém apenas de países habitualmente analisados como
os dominadores de modos de produção de subjetividade modernos ocidentais, como no caso
da Europa e EUA, mas, em contrapartida, é negociado e constituído no interior das relações
transnacionais e, portanto, intergovernamentais. Neste capítulo, serão analisados os efeitos
produzidos pelos encontros mundiais ambientais e seus novos campos de intervenção, dentre
estes o lixo, responsáveis pelo desenvolvimento e disseminação da noção de meio ambiente
como novo dispositivo de governo.
Nesta escala de salvação dos ecossistemas, não se trata mais de uma salvação da alma
humana (eterna) no plano da transcendência, mas de uma manutenção da vida no planeta, ou
da biosfera, no plano da imanência. Não se trata de uma salvação desta espécie apenas a partir
da intervenção no indivíduo e na urbs, mas do conjunto de todos os ecossistemas da terra. Tal
produção de uma nova noção de eternidade não se fundamenta mais na crença de um paraíso
etéreo, mas na manutenção das “riquezas naturais” do “meio terráqueo”, para garantia da
eternidade da vida humana. Trata-se da pauta do contemporâneo atravessada pela da ciência
moderna e não mais pela pauta da ascese cristã. Uma eternidade da imanência e, para isto, não
apenas a vida urbana, como também o bem-estar de todo o cosmos tornam-se objeto de
governo.
6.1. Lixo e o manejo integrado do ciclo vital
No registro da biopolítica, outro modo de racionalidade está para se apresentar quando
as formas de problematização sobre as relações do ser humano em sociedade são configuradas
em dimensões planetárias. Os três pilares de sustentação das ações “em benefício” da
humanidade não serão apenas as dimensões biológica, política e social. Quando a escala se
torna transnacional, transterritorial e, portanto, planetária, os pilares que fundamentam as
formas de administrar a existência humana passam a ser as dimensões “social, econômica e
ambiental” (Declaração sobre o Ambiente Humano, Estocolmo, 1972).
Neste novo registro para a condução das relações populacionais intergovernamentais,
produzem-se saberes, normas, tecnologias, mecanismos e sistemas de reconfiguração das
prioridades de Estado. Por tal motivo, em 1972, 113 países participaram da Conferência das
Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, em que foi criado o
Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O resultado desta
168
conferência foi a construção de parâmetros planetários para o desenvolvimento sustentável de
países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Neste encontro, elabora-se a Declaração
sobre o Ambiente Humano que iria fundamentar esta inscrição das relações humanas e suas
problematizações em termos globais.
O saber, as técnicas, a política humana se descobrem capazes de intervir não apenas no
campo biológico e no campo social, como no caso da medicina-social, mas se veem como
artífices de seu meio natural nos mais variados aspectos. Assim, a primeira das proclamações
proferidas na dita declaração afirma:
O homem é, a um tempo, resultado e artífice do meio que o circunda,
o qual lhe dá o sustento material e o brinda com a oportunidade de
desenvolver-se intelectual, moral, social e espiritualmente. Na longa e
tortuosa evolução da raça humana neste planeta chegou-se a uma etapa na
qual, em virtude de uma rápida aceleração da ciência e da tecnologia, o
homem adquiriu o poder de transformar, por inúmeras maneiras e numa
escala sem precedentes, tudo quanto o rodeia. Os dois aspectos do meio
humano, o natural e o artificial, são essenciais para o bem-estar do homem e
para que ele goze de todos os direitos humanos fundamentais, inclusive o
direito à vida (Proclama 1, Declaração sobre o Ambiente Humano,
Estocolmo, 1972).
Para além da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, o homem agora,
além de nascer livre e igual, teria como um de seus direitos fundamentais “condições de vida
adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem estar,
tendo a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presente e futura”
(Declaração sobre o Ambiente Humano, Estocolmo, 1972). Estes fundamentos seriam então
responsáveis pela produção de novos conhecimentos em outra escala de operação, que não
apenas as unidades biológicas e políticas dos corpos humanos e corpos urbanos. Assim
constam nas disposições preliminares deste mesmo documento:
Por ignorância ou indiferença, podemos causar danos imensos e
irreparáveis ao meio terráqueo, do qual dependem a nossa vida e o nosso
bem-estar. Pelo contrário, com um conhecimento mais profundo e uma ação
mais prudente podemos conseguir para nós e para nossa posteridade
melhores condições de vida em um meio mais consentâneo com as
necessidades do homem. (...) Para chegar à plenitude de sua liberdade dentro
da natureza, o homem deve aplicar seus conhecimentos para forjar, em
harmonia com ela, um meio melhor (Proclama 6, Declaração sobre o
Ambiente Humano, Estocolmo, 1972).
169
Na emergência deste novo recorte sobre as relações humanas, forja-se um homem e
seu entorno, resultados da produção de um desejo não apenas por sua saúde e vida longa, mas
também um desejo – de ser “um artífice do meio que o circunda” – que o conecta com a
biosfera, com a espécie humana, com a população global, em seu “meio natural ou artificial”:
“A proteção e melhoria do meio humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar
dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro; é um desejo urgente dos povos
e de todo o mundo e um dever de todos os governos” (Proclama 2, Declaração sobre o
Ambiente Humano, Estocolmo, 1972).
A este segundo Proclama da Declaração de Estocolmo, segue-se nos dois próximos
uma argumentação sobre a responsabilidade que o homem tem por ser capaz de mudar seu
meio com “discernimento” ou com “imprudência”. Os fundamentos desta declaração apontam
para um tipo de paradigma que alinha os países em desenvolvimento a este segundo grupo
que deixa milhões de pessoas “abaixo do mínimo necessário para a existência humana
decorosa, por se acharem privados de alimentação, vestuário, moradia, educação, saúde e
higiene adequados” (Proclama 4, Declaração sobre o Ambiente Humano, Estocolmo, 1972).
O meio ambiente agora se torna o grande projeto administrativo da humanidade e, nos
princípios da Declaração de Estocolmo, não faltarão termos como “cuidadosa planificação ou
regulamentação”, melhoramento da “capacidade da Terra para produzir recursos vitais
renováveis” e a “responsabilidade especial de preservar e administrar ponderadamente o
patrimônio representado pela flora e pela fauna silvestres” (Idem).
Nestes conceitos administrativos para otimizar os recursos naturais em proveito da
vida humana, a afirmação de Gillaume de La Perrière, apresentada por Michel Foucault
(2008a, p. 127), torna-se base fundamental para as técnicas de governo nos Estados
Modernos: “Governo é a correta disposição das coisas, das quais alguém se encarrega para
conduzi-las a um fim adequado”. A adequada disposição das coisas é agora administrada
pelas racionalidades intergovernamentais. Mas este fim adequado agora iria requisitar não
apenas uma administração populacional, ou uma sustentabilidade da população; para além
disso, trata-se de uma sustentabilidade do planeta, da biosfera, de suas riquezas naturais e de
sua biodiversidade.
Mas esta estratégia iniciada em Estocolmo (1972), em que se desenvolvem pesquisas
que prenunciam os desastres socioambientais e, por consequência, econômicos em escala
planetária, serviria como o estopim para uma série de novos estudos e para a produção de
informações que parecem prometer o fim do mundo como reflexo das condutas irresponsáveis
de produção e consumo industrial.
170
Há só uma Terra, mas não um só mundo. Todos nós dependemos de uma
biosfera para conservarmos nossas vidas. Mesmo assim, cada comunidade,
cada país luta pela sobrevivência e pela prosperidade quase sem levar em
consideração o impacto que causa sobre os demais. Alguns consomem os
recursos da Terra a um tal ritmo que provavelmente pouco sobrará para as
gerações futuras. Outros, em número muito maior, consomem pouco demais
e vivem na perspectiva da fome, da miséria, da doença e da morte prematura
(CMMAD, 1991 [1987], p. 29).
Esta espécie de prenúncio dos finais dos tempos foi extraída na íntegra do primeiro
parágrafo da primeira parte do Relatório Brundtland (elaborado pela Comissão Mundial sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento, presidida pela então Primeira-Ministra da Noruega, Gro
Brundtland - 1987)49. O título que o antecede reflete a ideia que se pretende passar: “Um
futuro ameaçado”. As dimensões de análise levantadas na Declaração de Estocolmo –
econômica, social e ambiental – ficam claras nas afirmações de Brundtland:
As falhas que precisamos corrigir derivam da pobreza e do modo equivocado
com que temos frequentemente buscado a prosperidade. Muitas partes do
mundo entraram numa espiral descendente viciosa: os povos pobres são
obrigados a usar excessivamente seus recursos ambientais a fim de
sobreviverem, e o fato de empobrecerem seu meio ambiente os empobrece
mais, tornando sua sobrevivência ainda mais difícil e incerta. (...) Hoje, a
dimensão de nossa intervenção na natureza é cada vez maior e os efeitos
físicos de nossas decisões ultrapassam fronteiras nacionais. A crescente
interação econômica das nações amplia as consequências das decisões
nacionais. A economia e a ecologia nos envolvem em malhas cada vez mais
apertadas. Muitas regiões correm o risco de danos irreversíveis ao meio
ambiente humano que ameaçam a base do progresso humano (CMMAD,
1991 [1987], p. 29).
Nestas poucas linhas, são estabelecidas as linhas gerais de negociação e de plano de
intervenção que conduziriam os acordos ambientais globais subsequentes a este relatório.
Brundtland produz a visibilidade das problematizações pela razão da economia e da ecologia
e possibilita a este estudo ponderar sobre outra análise, apresentada por Michel Foucault,
focada nas relações neoliberais contemporâneas e o nascimento da biopolítica (2008b).
Foucault apresenta sua leitura sobre a economia política como o fundamento que possibilitou
a autolimitação da razão intrínseca à arte de governar. Esta razão governamental, a economia
49
O fator decisivo para a convocação de uma nova Conferência das Nações Unidas sobre meio ambiente, em
1992 no Rio de Janeiro, foi, sem dúvida, o Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, conhecido como Relatório Brundtland. A Comissão, criada em 1983 e presidida pela
Primeira-Ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, conseguiu galvanizar novo interesse nos países
desenvolvidos pelas questões de meio ambiente.
171
política, teria como objetivo interno ao Estado o seu “enriquecimento e seu crescimento
simultâneo, correlativo e convenientemente ajustado da população, de um lado, e dos meios
de subsistência, do outro” (Idem, p. 19). A proposta desta limitação, entre produção de riqueza
e subsistência da população, teria assim como objetivo “garantir de forma conveniente,
ajustada e sempre proveitosa a concorrência entre os Estados”, ou seja, a “manutenção de
certo equilíbrio entre os Estados para que, precisamente, a concorrência possa se dar” (Idem,
ibidem).
Nesta perspectiva de sustentabilidade planetária, a Conferência do Rio (Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992 – ECO – 92) utilizou o
Relatório Brundtland como plataforma de informações para os acordos intergovernamentais.
Com ampla divulgação, este relatório, então intitulado Nosso Futuro Comum, cunhou o
conceito de desenvolvimento sustentável, objetivo que exige equilíbrio nos três pilares
anteriormente citados (as dimensões econômica, social e ambiental) e acrescenta:
“desenvolvimento sustentável é desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem
comprometer a capacidade das gerações futuras de atender suas próprias necessidades”
(CMMAD, Nosso Futuro Comum, 1991 [1987]).
Diferentemente da Conferência de Estocolmo (1972), o Relatório de Brundtland e as
reuniões preparatórias para a Conferência do Rio apontariam uma mudança primordial na
lógica de funcionamento desta gestão global dos recursos ambientais: os poluidores não
seriam países em desenvolvimento, mas sim efeito deste processo global de industrialização,
além da relação exploratória que distancia países desenvolvidos de países em
desenvolvimento, no que diz respeito à qualidade de vida de seus cidadãos. Mesmo apontando
ainda a pobreza como uma das principais causas e um dos principais efeitos dos problemas
ambientais do mundo, o relatório criticou o modelo adotado pelos países desenvolvidos, por
ser insustentável e impossível de ser copiado pelos países em desenvolvimento, sob pena de
se esgotarem rapidamente os recursos naturais.
Nesta linha de raciocínio, faria parte das competências conferidas à Organização das
Nações Unidas estabelecer ações, métodos, técnicas e metas intergovernamentais, de maneira
a regular as estratégias para um desenvolvimento sustentável global e integrado que superasse
os antigos modelos colonizadores e exploratórios entre os países desenvolvidos e o resto do
mundo.
Surge então a demanda por estes modos de governo internacionais que se
caracterizariam pela cooperação, ao mesmo tempo, globais e regionais, bilaterais e
multilaterais. Todos estes termos dizem respeito a uma nova forma de governar o progresso
172
mundial e preenchem os indicativos estabelecidos na Agenda 21, o instrumento de
planejamento para efetivação das resoluções da Conferência do Rio, em 1992 (ECO – 92).
É justamente neste documento que a gestão do lixo encontra sua nova forma de
expressão nas relações humanas intergovernamentais. Se, no primeiro documento desta
agenda ambiental mundial, a Declaração de Estocolmo (1972), o tema dos resíduos é pouco
abordado, durante a ECO – 92, tal tema ocupa posição de destaque.
Justamente o capítulo 21 da Agenda 21 irá tratar do Manejo ambientalmente saudável
dos resíduos sólidos e questões relacionadas com os esgotos. Nesta proposta o manejo de
resíduos seria então considerado “dentre as questões mais importantes para a manutenção da
qualidade do meio ambiente da Terra e, principalmente, para alcançar um desenvolvimento
sustentável e ambientalmente saudável em todos os países” (Agenda 21, item 21.1.).
Assim como as legislações municipais e estaduais conferidas ao longo deste estudo,
este documento de planejamento mundial iria cunhar sua compreensão sobre o que seria então
o outrora lixo, ou, como estabelecido agora, os resíduos sólidos:
Os resíduos sólidos (...) compreendem todos os restos domésticos e
resíduos não perigosos, tais como os resíduos comerciais e institucionais, o
lixo da rua e os entulhos de construção. Em alguns países, o sistema de
gestão dos resíduos sólidos também se ocupa dos resíduos humanos, tais
como excrementos, cinzas de incineradores, sedimentos de fossas sépticas e
de instalações de tratamento de esgoto. Se manifestarem características
perigosas, esses resíduos devem ser tratados como resíduos perigosos
(Agenda 21, item 21.3., 1992).
Nesta nova proposta de manejo dos restos não serão poucas as proposta de cooperação
internacional aos Governos, principalmente para os governos de países em desenvolvimento.
Tais cooperações seriam articuladas por organizações não-governamentais ou transnacionais
de interesse público como a ONU. A proposta de gestão das matérias que formam o
lixo/resíduos sólidos seria então conduzida pelo conceito de “manejo integrado do ciclo vital
o qual apresenta oportunidade única de conciliar o desenvolvimento com a proteção do meio
ambiente” (Agenda 21, item 21.4., 1992). Deste modo, as quatro principais áreas do programa
– redução ao mínimo de resíduos; aumento ao máximo da reutilização e reciclagem
ambientalmente saudáveis dos resíduos; promoção do depósito e tratamento ambientalmente
saudáveis dos resíduos; e ampliação do alcance dos serviços que se ocupam dos resíduos –
seriam monitoradas não apenas pelo Governo de cada país, mas também por comissões
extraterritoriais (Idem).
173
Para cada uma destas áreas consta uma sessão específica intitulada “Cooperação e
coordenação internacionais e regionais”. Cada uma destas sessões indica por qual modo “as
Nações Unidas e as organizações intergovernamentais” podem, “com a colaboração dos
Governos”, atuar nas áreas supracitadas.
Todos os trabalhos de definição de “diretrizes e códigos de conduta”,
“desenvolvimentos de recursos humanos”, criação de banco de “dados e informações”, tendo
o monitoramento dos resultados como “requisito essencial”, teriam o “apoio das organizações
internacionais” como principal recurso para sua efetividade (Agenda 21, 1992). O lixo
deixaria, portanto, de ser um problema apenas das cidades, tampouco dos Estados Nacionais,
para se tornar um problema global de manejo integrado do ciclo vital da biosfera.
Uma das ações mais importantes para este modo de integração global para a gestão
dos resíduos da vida humana seria um sistema de informação que se caracterizasse,
justamente, por extrair informações locais e inseri-las em plataformas mundiais de tratamento
de tais dados. Segue abaixo, para efeito de ilustração, um destes direcionamentos, referente à
área de “Redução ao mínimo dos resíduos”, que cruzam a produção de dados e informações
com a demanda para cooperação internacional:
ÁREAS DE PROGRAMAS
A. Redução ao mínimo dos resíduos
(...) (b) Dados e informações
21.11. O monitoramento é um requisito essencial para acompanhar de perto
as mudanças na quantidade e qualidade dos resíduos e suas consequências
para a saúde e o meio ambiente. Os Governos, com o apoio das organizações
internacionais, devem:
(a) Desenvolver e aplicar metodologias para o monitoramento de resíduos no
plano nacional;
(b) Reunir e analisar dados, estabelecer objetivos nacionais e acompanhar os
progressos;
(c) Utilizar dados para avaliar se as políticas nacionais para os resíduos são
ambientalmente saudáveis e estabelecer bases para a ação corretiva;
(d) Introduzir informações nos sistemas de informação mundiais.
(c) Cooperação e coordenação internacionais e regionais
21.12. As Nações Unidas e as organizações intergovernamentais, com a
colaboração dos Governos, devem ajudar a promover a minimização dos
resíduos facilitando um maior intercâmbio de informação, conhecimentos
técnico-científicos e experiência. O que se segue é uma lista não exaustiva
das atividades específicas que podem ser empreendidas:
(a) Identificar, desenvolver e harmonizar metodologias para monitorar a
produção de resíduos e transferir essas metodologias aos países;
(b) Identificar e ampliar as atividades das redes de informação existentes
sobre tecnologias limpas e minimização dos resíduos;
(c) Realizar avaliação periódica, cotejar e analisar os dados dos países e
informar, sistematicamente, em um foro apropriado das Nações Unidas, aos
países interessados;
174
(d) Examinar a eficácia de todos os instrumentos de redução dos resíduos e
determinar os novos instrumentos que podem ser utilizados, assim como as
técnicas por meio das quais podem ser colocados em prática nos países.
Devem-se desenvolver diretrizes e códigos de conduta;
(e) Empreender pesquisas sobre os impactos social e econômico, entre os
consumidores, da redução ao mínimo dos resíduos (Agenda 21, 1992).
Até mesmo a criação de diretrizes e códigos de conduta teria então esta cooperação ao
mesmo tempo internacional e regional. Isso constitui um modo de monitoramento,
organização e condução da vida humana que não se limitaria apenas, portanto, às dimensões
culturais regionais ou nacionais. Ademais, os termos apresentados não dispõem sobre as
formas de produção de bens de consumo, mas sobre a redução de resíduos resultantes da
prática de consumo de bens e serviços de capital.
Algumas questões são repetidamente defendidas no que concerne à gestão dos
resíduos: 1) mudança nos padrões de consumo para redução na geração de resíduos; 2)
desenvolvimento de tecnologias de reciclagem e, principalmente, com foco no fortalecimento
de “pequenas indústrias artesanais de reciclagem” ou o estabelecimento de “programas
adequados para apoiar indústrias de reutilização e reciclagem de resíduos de comunidades
pequenas nos países em desenvolvimento” (Agenda 21, item 21.20. e 21.21., 1992); 3) a
constatação de que tais problemas em geração de resíduos e sua falta de governo apropriado
em países em desenvolvimento devem contar com o apoio dos países desenvolvidos.
Para ponderar sobre esta nova proposição para as artes de governar, ou esta
racionalidade governamental em escala planetária, dez anos após a instituição deste
planejamento da Agenda 21, seria articulado pela ONU um Plano de Implementação desta
agenda. Em 2002, foi realizada a Cúpula Mundial para Desenvolvimento Sustentável, em
Johanesburgo, em que se apresenta o conceito de governança, ou mais especificamente, da
boa governança como base fundamental de administração dos considerados bens comuns da
humanidade. Conforme este documento, a boa governança seria um mecanismo
transfronteiriço, incluindo órgãos da ONU como o Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), organizações não-governamentais e outras organizações da sociedade
civil de interesse público, representações de governos nacionais e, principalmente, regionais,
que atuassem na promoção de programas, tecnologias e práticas para o desenvolvimento
sustentável que atuem nas dimensões econômica, social e ambiental.
A boa governança em cada país e no plano internacional é
fundamental para se atingir o desenvolvimento sustentável. No âmbito
nacional, as políticas ambientais, econômicas e sociais corretas, as
175
instituições democráticas que levam em conta as necessidades da população,
o estado de direito, as medidas de luta contra a corrupção, a igualdade entre
os gêneros e um ambiente propício aos investimentos constituem a base do
desenvolvimento sustentável. Como conseqüência da globalização, fatores
externos se tornaram críticos no momento de determinar o sucesso ou o
fracasso dos esforços realizados pelos países em desenvolvimento em nível
nacional. A distância entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento
indica que ainda se faz necessário promover um ambiente econômico
internacional dinâmico que favoreça a cooperação internacional, em
particular nas áreas de finanças, transferência de tecnologia, dívida e
comércio, assim como a participação plena e efetiva dos países em
desenvolvimento no processo de tomada de decisões em nível global, caso se
pretenda manter e intensificar o progresso mundial em relação ao
desenvolvimento sustentável (ONU, Plano de Implementação da Cúpula
Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, item 4, 2002).
A estratégia de governança se apresenta como necessária frente ao “fracasso” na
gestão interna dos países em desenvolvimento e se coloca como inevitável a “cooperação [ou
intervenção] internacional”. Neste modelo, diferentemente das tecnologias de colonização
exploratória, propõe-se não a obediência dos países em desenvolvimento às disposições
proferidas pelos países desenvolvidos, mas, ao contrário, a participação neste consenso
mundial para o desenvolvimento sustentável.
Esta participação implicaria, portanto, concordar com as disposições sobre o fracasso
dos países em desenvolvimento no âmbito da proteção dos bens ambientais. No entanto, vale
ressaltar que, dentre os países em desenvolvimento, nenhum destes possui cadeira permanente
no Conselho de Segurança da ONU, integrada por apenas cinco países: China, Estados
Unidos, Rússia, França e Reino Unido, além de outros dez países sempre eleitos em mandatos
de dois anos. O Conselho de Segurança das Nações Unidas é um órgão da Organização das
Nações Unidas cujo mandato é zelar pela manutenção da paz e da segurança internacional. É
o único órgão do sistema internacional capaz de adotar decisões obrigatórias para todos
os Estados-membros da ONU, podendo inclusive autorizar intervenção militar para garantir a
execução de suas resoluções. O Conselho é conhecido também por autorizar o desdobramento
de operações de manutenção da paz e missões políticas especiais.
A medida da “boa governança em nível internacional para alcançar o desenvolvimento
sustentável” seria a base de um modo de governo econômico global sobre os países em
desenvolvimento. A criação de uma “comunidade internacional”, no sentido mais paradoxal
que esta expressão possa acarretar, tem como objetivo administrar a população mundial com a
tomada de “medidas adequadas e necessárias”, de modo a “assegurar o apoio a reformas
176
estruturais e macroeconômicas” (ONU, Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre
Desenvolvimento Sustentável, item 141, p. 72-73, 2002).
Neste mesmo documento, na terceira seção, sobre a necessidade de “alteração dos
padrões insustentáveis de produção e consumo”, constam em dois de seus itens as linhas
gerais sobre gestão de resíduos sólidos e de resíduos perigosos. Nestes dois itens fazem-se
ressaltar a necessidade de “assistência financeira, técnica e de qualquer outro tipo aos países
em desenvolvimento”, como consta no preâmbulo sobre resíduos sólidos, e “o compromisso
em incentivar e melhorar a coordenação, bem como o apoio aos países em desenvolvimento”
para a implementação do estipulado na Convenção de Estocolmo sobre Poluentes Orgânicos
Persistentes (ONU, Plano de Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento
Sustentável, item 22 e 23, p. 15-16, 2002).
Para além destas discussões sobre como reduzir e reciclar resíduos gerados em escala
global, outro fator começa a aparecer como objeto de poder intergovernamental no âmbito dos
resíduos, principalmente dos resíduos sólidos não perigosos. Também como resultado da
Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), no Rio
de Janeiro, mais de 160 países assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a
Mudança do Clima - CQNUMC (do original em inglês United Nations Framework
Convention on Climate Change), tratado internacional que visa à estabilização
da concentração de gases do efeito estufa (GEE) na atmosfera, em níveis tais que evitem a
interferência perigosa com o sistema climático. O tratado não fixou, inicialmente, limites
obrigatórios para as emissões de GEE e não continha disposições coercitivas. Em vez disso, o
Tratado incluía disposições para atualizações (chamados "protocolos"), que deveriam criar
limites obrigatórios de emissões. O principal é o Protocolo de Quioto, que se tornou mais
conhecido do que a própria CQNUMC.
A meta pensada na época era que os países industrializados mantivessem, até o ano
2000, as emissões de gases geradores de efeito estufa nos níveis de 1990. Estudos posteriores
de especialistas de diversos países aconselharam a revisão dessa meta, e em 1997 foi
elaborado o Protocolo de Quioto, no qual ficou estabelecido, para o quinquênio compreendido
entre 2008 e 201250, o compromisso de diminuição de emissões totais dos gases geradores do
efeito estufa, de forma individualizada e diferenciada por cada país relacionado, em
consonância com os princípios das responsabilidades comuns.
50
Apesar destes esforços, ressalta-se o fato de que os principais gases de efeito estufa causadores do
aquecimento do planeta registraram novos recordes em 2011, segundo dados da Organização Meteorológica
Mundial
(OMM),
publicados
em
20/11/2012
em
Genebra
(http://www.wmo.int/pages/mediacentre/press_releases/pr_965_es.html. Acesso em: 27 nov. 2012.
177
Como resultado, os países listados no Anexo I do Protocolo de Quioto (países
desenvolvidos) deveriam reduzir a sua emissão em, ao menos, 5% abaixo dos níveis
verificados em 1990. O protocolo estabeleceu mecanismos adicionais de implementação,
permitindo que a redução das emissões e/ou o aumento da remoção de CO2 pelas “Partes do
Anexo I” sejam, em parte, obtidos além de suas fronteiras nacionais. Deste modo, os países
em desenvolvimento, conhecidos como “Partes Não Anexo I” (ou Países Não Anexo I), não
estariam sujeitos às reduções das emissões estabelecidas no protocolo, o que lhes permitia
uma espécie de “saldo positivo negociável”.
No Protocolo de Quioto, em seu décimo segundo artigo, surge o conceito de
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), tecnologia sugerida pelo Brasil51, que trata
de uma diferenciação de responsabilidades por país, segundo o princípio do poluidor-pagador
(LAGO, 2006, p.209). Assim, países com excesso de emissão de poluentes poderiam
transformar parte dessas emissões em financiamentos de projetos que possam diminuir os
danos causados ao meio ambiente. Em termos econômicos, estes MDLs podem ser
considerados como commodities ambientais passíveis de serem comercializados.
A primeira destas commodities ambientais, a ser regulamentada como forma de
comercialização, foi o sistema de sequestro de carbono e sua consequente transformação em
créditos. Foram estabelecidas tecnologias para sequestro de carbono em que, por convenção,
uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) corresponde a um crédito de carbono. Os
primeiros projetos de sequestro de carbono foram desenvolvidos pelos Estados Unidos da
América (EUA) e Austrália e conferiam como principais tecnologias as seguintes: 1)
Sequestrar o carbono em repositórios subterrâneos; 2) Melhorar o ciclo terrestre natural
através da remoção do CO2 da atmosfera pela vegetação e estoque da biomassa criada no
solo; 3) O sequestro do carbono nos oceanos através do aumento da dissolução do CO2 nas
águas oceânicas pela fertilização do fitoplâncton com nutrientes e pela injeção de CO2 nas
profundezas dos oceanos, a mais de 1000 metros de profundidade; 4) O sequenciamento
de genoma de microorganismos para o gerenciamento do ciclo do carbono; 5) Enviar através
51
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) é resultado das adequações da proposta brasileira de criação
de um Fundo de Desenvolvimento Limpo (FDL), cuja proposta previa penalidade financeira aos países
desenvolvidos cujas emissões de gases de efeito estufa ultrapassassem os níveis acordados no âmbito da
convenção: “A ideia era de que os recursos obtidos fossem aplicados em projetos de mitigação ou prevenção de
mudanças climáticas em países em desenvolvimento, através de um fundo. Ao longo da COP3, Terceira
Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, essa proposta
evoluiu para o MDL” (FELIPETTO, Adriana Vilela Montenegro - Mecanismo de desenvolvimento limpo
aplicado a resíduos sólidos: Conceito, planejamento e oportunidades. Coordenação de Karin Segala. – Rio de
Janeiro: IBAM, 2007).
178
de foguetes (naves) milhares de mini-satélites (espelhos) para refletir parte do sol; em média,
200.000 minissatélites reduziriam 1% do aquecimento.
Comprar
créditos
de
carbono
no
mercado
de
commodities
corresponde
aproximadamente a comprar uma permissão para emitir GEE. O preço dessa permissão,
negociado no mercado, deve ser necessariamente inferior ao da multa que o emissor deveria
pagar ao poder público, por emitir GEE. Para o emissor, portanto, comprar créditos de
carbono no mercado significa, na prática, obter um desconto sobre a multa devida.
As commodities ambientais seriam, portanto, um dos outputs gerados pelo sistema “ser
humano/meio ambiente” e deveria ser definido de modo a permitir sua transação no mercado
global. Sendo assim, teriam como princípio serem "mercadorias transacionáveis
mundialmente, homogêneas, padronizáveis, facilmente classificáveis e dispostas em unidades
de medidas adequadas, passíveis da manutenção ao longo do tempo de suas
qualidades/características originais, sujeitas a um determinado mercado de oferta e demanda,
sujeitas a um sistema de preços adequado, bem como, principalmente, relacionadas ao escopo
dos recursos naturais, tais como, a água, a energia elétrica, dentre outros" (RIBAS, s/d, p. 2)52.
Além do carbono, outras matérias ambientais seriam incluídas nesta lista de
commodities: água, energia, biodiversidade, madeira, minério, reciclagem e controle de
emissão de poluentes (água, solo e ar). Na sequência dos estudos para transformação destas
riquezas naturais em moeda de mercado internacional, o Sindicato dos Economistas do Estado
de São Paulo montou um Comitê Operacional do Projeto CTA – Consultant, Trader and
Adviser (Geradores de Negócios nos Mercados Futuros e de Capitais) que teve como objetivo
implementar Grupos de Estudos para o desenvolvimento das commodities ambientais.
Semelhante ao mercado de CO2, nestes estudos comprovou-se a necessidade de promover
discussões sobre a questão da legislação e cultura com vistas à criação de mercado de compra
e venda do direito de poluir para outros recursos como a água e reciclagem (RIBAS, s/d, p.
10). Isto porque o biogás gerado na disposição da matéria orgânica acumulada nos lixões,
aterros controlados e aterros sanitários, tem como composição principal o gás metano
(CH4)53, que se inclui na lista dos gases de efeito estufa. No entanto, o potencial de
aquecimento global do metano é 21 vezes maior que o do gás carbônico (CQNUMC, 2004),
52
Commodities
ambientais
e
sua
relevância
econômica.
http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/esgotamento/commodities_ambientais_e_sua_releva
ncia_economica.pdf. Acesso em: 02 nov. 2012.
53
Os gases de efeito estufa que devem ser reduzidos e expressos em dióxido de carbono equivalentes são:
dióxido de carbono (CO2); metano (CH4); óxido nitroso (N2O); hidrofluorcarbonos (HFC); perfluorcarbono
(PFC) e hexafluoreto de enxofre (SF6).
179
ou seja, cada tonelada de metano emitido para a atmosfera equivale ao lançamento de 21
toneladas de gás carbônico.
Além do próprio contexto das agendas ambientais globais, que estabelecem a
possibilidade de a gestão de resíduos funcionarem conforme os procedimentos dos MDLs, as
matérias que integram os resíduos sólidos secos (papel, plástico, metal e vidro) também
funcionam ao ritmo do mercado internacional das commodities. Do mesmo modo, estes
produtos advêm de matérias primas que têm sua cotação estabelecida pelas bolsas de valores
como o petróleo, minérios e madeira. Exemplo da importância deste tipo de commodity no
cenário da geração de resíduos faz-se notória no contexto da crise econômica mundial iniciada
em 2008, a maior desde o crash da bolsa de valores de 1929. A reciclagem foi mais uma área
da economia a sofrer com a crise mundial. A queda do consumo, a constante diminuição da
produção industrial nos grandes centros produtivos, a retração nos preços das commodities e,
consequentemente, a redução da demanda por materiais recicláveis afetaram diretamente a
viabilidade econômica do comércio exterior de recicláveis em todo o mundo.
O mercado internacional de reciclagem tem seus preços ditados pela Bolsa de Valores
de Londres, e esta natureza de commodity (aparas de papel, sucata de ferro e plásticos) é
classificada como mercadoria primária, ou matéria-prima, que tem seu preço cotado e
negociado de forma global, ou seja, cotado em dólar. Com a crise, as indústrias optaram por
comprar reservas de matérias-primas virgens, como estoques de madeira, que sairiam a um
custo menor em comparação aos recicláveis.
O setor da cadeia produtiva dos materiais recicláveis que mais sofreu com a crise na
exportação desta matéria-prima foi o correspondente às organizações de catadores de
materiais recicláveis. Em texto produzido pelo MNCR para o boletim do IPEA (Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada)54 sobre mercado de trabalho, constata-se o efeito de tal
acontecimento:
Durante esse período em que a indústria deixou de comprar materiais
recicláveis, o mercado da reciclagem quebrou. Indústrias de beneficiamento
fecharam as portas, milhares de demissões ocorreram. (...) Mas, sem dúvida,
quem mais sofreu com a crise foram os catadores de materiais recicláveis, a
ponta de uma cadeia produtiva injusta, conhecida como cadeia produtiva
suja – um sistema de produção que é sustentado pelo trabalho precarizado de
catadores que exercem a atividade sem qualquer vínculo empregatício
(MNCR, Boletim Mercado de Trabalho - Conjuntura e Análise nº 41,
Novembro 2009, p.21).
54
http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/boletim_mercado_de_trabalho/mt41/06_NT_Mercado.pdf. Acesso em: 03
nov. 2012.
180
Isto acontece pelo fato de esta cadeia produtiva específica de materiais recicláveis se
caracterizar como um mercado oligopsônico, ou seja, formado por pequenos produtores,
muitas vezes informais, e por grandes compradores. Esta característica provoca uma restrição
na margem de negociação dos catadores para composição do preço de materiais recicláveis
determinada pelos grandes compradores. Sustentada por uma logística perversa de produção,
em que a informalidade e a desorganização dos produtores da ponta desta cadeia interessam à
sustentabilidade do grande capital de recicláveis, os preços dos materiais recicláveis
agregaram uma queda vertiginosa que culminou no fechamento de várias organizações de
catadores e na intensificação da miséria destes profissionais que decidiram continuar a viver
deste tipo de comércio.
No que respeita às cooperativas e associações de catadores que
sobrevivem exclusivamente da coleta e venda de materiais recicláveis, a
queda no valor pago pelos materiais afetou diretamente a renda familiar dos
associados. Estima-se que esta queda tenha sido de 62%, em média. Sem ter
como pagar os custos operacionais para realizar a coleta, pagar impostos e
despesas administrativas, centenas destas organizações se viram falidas. A
maior parte dos associados deixou as organizações à procura de outras
alternativas de trabalho, quase sempre informais. O preço do quilo do
plástico, por exemplo, caiu de R$ 1,00 para R$ 0,60, e o do plástico de
garrafas pet, de R$ 1,20 para R$ 0,35. Entre setembro de 2008 e janeiro de
2009, o preço do quilo de papelão especial reduziu-se de R$ 0,47 para R$
0,12; do papelão fino, de R$ 0,37 para R$ 0,10; do jornal, de R$ 0,27 para
R$ 0,08; do papel misturado, de R$ 0,15 para R$ 0,01; e do papel branco, de
R$ 0,47 para R$ 0,30. Em São Paulo, o ferro, que em setembro de 2008
custava R$ 0,42 o quilo, em novembro do mesmo ano encontrava-se a R$
0,16 (MNCR, Boletim Mercado de Trabalho - Conjuntura e Análise nº 41,
Novembro 2009, p. 22).
Com este acontecimento, fortalece-se o debate sobre o fato de que o mercado de
recicláveis, em sua ponta de produção, não se sustentaria apenas pela comercialização do
produto beneficiado, mas teria que contar com o pagamento pelos serviços ambientais
prestados, como, por exemplo: o serviço público de coleta seletiva realizada pelos catadores;
o transbordo do material que deixa de ser transportado para os aterros, aumentando sua vida
útil e desonerando as prefeituras municipais; e o trabalho de educação ambiental feito com os
citadinos de modo informal pelos catadores que chegam à porta dos moradores para pedir que
separem seu material para que lhes seja entregue.
O dilema que se impõe não passa, portanto, por um sistema moral de merecimento
histórico por parte dos catadores, no sentido de terem a preferência na coleta de resíduos
181
sólidos. Muito menos pela necessidade idílica de preservação ambiental para a promoção de
um mundo melhor. Os debates instaurados sobre a necessidade de desenvolvimento
sustentável, seu modo de operacionalização e os atores envolvidos no processo, conduzem-se,
justamente, por seu grau de efetividade no circuito do capital. A poluição torna-se, portanto,
legítima desde que se calculem o índice de risco e seu modo de manutenção.
Efetiva-se, então, um dispositivo do meio ambiente para produção da poluição como
um direito, com risco calculado, na manutenção do sistema de capitais e não mais como
contravenção clandestina da produção industrial. Como no caso do sequestro de carbono,
apresenta-se a criação de mercado de compra e venda do direito de poluir e sua relação com o
desenvolvimento sustentável. Tem-se, então, a construção de uma nova forma de imprimir
outra direção a esses valores que configuram a série desastre ambiental-capital-produção
industrial.
Aqui temos a oportunidade de retomar a análise apresentada por Michel Foucault
sobre os efeitos da economia política, abordados no início deste capítulo, e sua configuração
em nova razão governamental. O esquema de veridição da economia política qualifica ações
como verdadeiras ou falsas, a partir de seu grau de efetividade no real, ou seja, de sucesso ou
de fracasso em termos de governamentalidade, e não mais em termos de legitimidade por
qualquer tipo de discurso que se possa apresentar. Assim, ao contrário do que se pode pensar,
o que determina a necessidade de uma ação governamental não será a qualidade moral de suas
ações, como faz parecer a estratégia de Educação Ambiental (que será abordada mais
adiante), mas sim se os reais efeitos de um governo são negativos ou positivos (FOUCAULT,
2008b, p. 20-23).
Deste modo, não passa pelo discurso político do MNCR, sobre o direito histórico dos
catadores em realizar a coleta seletiva, a consciência da possibilidade de viabilizar uma
política de gestão de resíduos que contemple a integração destas personagens do lixo, mas sim
a eficácia deste modelo de gestão das commodities ambientais para os objetivos da razão
governamental e a produtividade do capital. Na racionalidade da economia política, interessa
verificar se este tipo de ação produz resultados efetivos no que concerne ao desenvolvimento
do mercado de reciclagem e seus benefícios na gestão urbana das populações. Portanto, como
nas discussões sobre economia política analisadas por Foucault, não é a legitimidade das
ações que serve como indexador do real, mas sua efetividade, seus resultados.
Do mesmo modo, as estratégias traçadas pelo MNCR como, por exemplo, de
reconhecimento, profissionalização e organização produtiva do catador nas conformidades
dos modelos associativistas, tiveram sua efetividade na produção de uma identidade de
182
categoria profissional. Foram alcançados objetivos políticos, de representatividade,
integralidade nacional de suas diferentes expressões e garantia de políticas públicas que
possibilitem a participação nas discussões de mercado e nos debates públicos a respeito dos
modos de gestão dos resíduos urbanos.
Em consonância com as novas determinações de mercado, percebe-se um
redirecionamento estratégico deste movimento social, para a formação de uma
representatividade mais alinhada às estratégias de mercado. A Associação Nacional de
Carroceiros e Catadores de Materiais Recicláveis (ANCAT) torna-se a instituição jurídica do
MNCR para estabelecimento de negócios, tendo como objetivo facilitar as relações
contratuais do MNCR no que diz respeito ao consumo e fornecimento de serviços.
A organização dos catadores, além de se articular como movimento de luta social,
institui-se como personalidade de negociações e, portanto, de possibilidade de acordos entre
diferentes atores: Estado, mercado, cidade, sociedade. A organização política dos catadores,
por opção estratégica, fica então cindida em duas frentes: 1) Movimento Nacional dos
Catadores de Materiais Recicláveis: responsável por garantir o protagonismo popular desta
categoria, “oprimida pelas estruturas do sistema social”, e sua independência, que dispensa a
fala de partidos políticos, governos e empresários, orientados pelos princípios que norteiam
sua luta (autogestão, ação direta, independência de classe, solidariedade de classe, democracia
direta e apoio mútuo) (http://www.mncr.org.br/box_1/o-que-e-o-movimento. Acesso em 28
nov. 2012); e 2) ANCAT: busca o desenvolvimento socioeconômico para comunidades
carentes, divulgação do cooperativismo e associativismo, além das ações de incentivo à
reciclagem
e
preservação
do
meio
ambiente
(http://www.expocatadores.com.br/expocatadores/quem-realiza/. Acesso em 28 nov. 2012).
Em conformidade com esta realocação dos catadores no mercado de reciclagem, a
negociação que entra em pauta nos debates públicos e nos acordos de mercado – mais
especificamente após a crise econômica de 2008 e a aprovação da Política Nacional de
Resíduos Sólidos, PNRS (2010) – é o desenvolvimento da indústria da reciclagem com
participação efetiva dos catadores. Um dos produtos desta negociação, concretiza-se na
proposição de um sistema de pagamento por serviços realizados pelas organizações
produtivas de catadores de materiais recicláveis (cooperativas e associações).
Em 2010, o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) publica o Relatório
de Pesquisa sobre Pagamento de Serviços Ambientais Urbanos para Gestão de Resíduos
Sólidos, com dois objetivos principais: “Em primeiro lugar, foram feitas estimativas dos
benefícios, atuais e potenciais, econômicos e ambientais gerados pela reciclagem de resíduos
183
sólidos urbanos (RSUs) no país. Em segundo lugar, foram propostas diretrizes para possíveis
esquemas de pagamento por serviços ambientais urbanos focados em catadores de material
reciclável” (IPEA, 2010, p. 7). A proposta deste Pagamento por Serviços Ambientais Urbanos
(PSAU) seria não mais considerar o catador como objeto de inclusão social, mas sim, na
qualidade de atores do mercado, como um trabalhador cuja especialidade profissional o torna
apto a vender seus serviços ou, em outros termos, como sujeitos capitalizáveis.
A proposta do PSAU inspira-se no sistema de venda de créditos de carbono como
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, entendendo que a venda de créditos seria estipulada
pela quantidade de material reciclável desviado de aterros sanitários, de modo que sejam
calculados seus benefícios econômicos e ambientais. Em 2007, o Instituto Brasileiro de
Administrações Municipais (IBAM) já publicava um material em cinco volumes que
orientava sobre o desenvolvimento de um Mecanismo de Desenvolvimento Limpo Aplicado
aos Resíduos Sólidos.
Neste outro parâmetro de visibilidade, os encontros nacionais de catadores, relatados
anteriormente, são substituídos pela Expo Catadores: “um evento de negócios, troca de
experiências, disseminação de conhecimentos e tecnologias para a gestão eficiente dos
resíduos sólidos” (http://www.expocatadores.com.br/. Acesso em 28 nov. 2012).
O que se verifica é uma rarefação do discurso de afirmação de identidade de classe,
para um reagrupamento de forças discursivas agora condizentes com o contexto das
commodities ambientais. Nesta reconfiguração, além de bases políticas, as organizações de
catadores tornam-se unidades coletivas produtivas e, portanto, um bom negócio:
Expo Catadores 2012 é oportunidade de negócios no Brasil e no exterior:
Estarão presentes representantes da indústria da reciclagem do Brasil, da
América Latina e Caribe, Ásia e Europa. É um bom negócio para o governo.
No Brasil gasta-se R$ 12,8 milhões por dia com a coleta e destinação do
lixo. É um bom negócio para a cidade. O catador tira os resíduos das ruas,
reduzindo o volume dos lixões e aumentando a vida útil dos aterros. É um
bom negócio para a sociedade. O catador chama a atenção do cidadão para o
lixo que não é lixo, educando para o consumo consciente. É um bom negócio
para as empresas. Algumas das maiores empresas brasileiras estão incluindo
a
reciclagem
e
a
logística
reversa
nas
suas
práticas
(http://www.expocatadores.com.br/expocatadores/pagina-exemplo/. Acesso
em 28 nov. 2012).
O catador, assim como os resíduos urbanos, deixa de ser um problema de saúde ou
problema social para se tornar, além de um bom cidadão, também um bom negócio. A tensão
que se estabelece na tentativa de ajustar, ou correlacionar, o direito público (catador-cidadão)
184
ao interesse privado (catador-empresário), torna-se o ponto de ancoragem (ou de
autolimitação) desta nova razão governamental.
Esse governo engendra um jogo complexo entre interesses individuais e interesses
coletivos, que, por efeito, faz circular outras tensões entre benefício econômico e utilidade
social, regime de mercado e regime de poder público, direitos fundamentais e independência
de governos (FOUCAULT, 2008b, p. 60-61). O governo, ao contrário do que se poderia
supor, não defende o interesse público em detrimento ao interesse de mercado, mas articula-se
e opera no interior deste jogo de interesses: “O governo só se interessa pelos interesses”
(FOUCAULT, 2008b, p. 62).
Tal transição da inclusão social para a capitalização social terá por instrumento não as
práticas assistenciais, mas a “capitalização mais generalizada possível para todas as classes
sociais”, enfim, a produção de uma “economia social de mercado” (FOUCAULT, 2008b, p.
197-198). O fortalecimento de pequenas organizações produtivas dos catadores implica a
multiplicação da forma empresa, do empreendedorismo como estratégia de crescimento
simultâneo, correlativo e ajustado da população e dos meios de subsistência. Prova desta nova
razão governamental está na priorização de políticas públicas para fortalecimento das
organizações produtivas de catadores, em detrimento do catador autônomo, ou seja, na
promoção do catador instituído como atividade, ao mesmo tempo, coletiva e empresarial.
Registra-se mais uma expressão paradoxal analisada por Foucault: “sociedade empresarial e
sociedade judiciária, sociedade indexada à empresa e sociedade enquadrada por uma
multiplicidade de instituições judiciárias são as duas faces de um mesmo fenômeno” (2008b,
p. 204).
O ponto comum entre as práticas de inclusão social e as práticas da economia social de
mercado localiza-se no quadro de investimento econômico e político que se refere a estas
duas dimensões de intervenção. O denominador comum se estipula no mínimo vital para a
manutenção da desigualdade e a promoção de um status de igualdade, bem como da gestão
das curvas de normalidade econômica entre a riqueza e a pobreza. Efetiva-se, portanto, a
possibilidade de um crescimento individual econômico que se adere à conduta muito mais
pela sua virtualidade, do que propriamente pela sua realização. Pulverizam-se pequenos
capitais destinados aos pequenos empreendedores para a manutenção de uma desigualdade
mais digna.
185
6.2 Paradoxo do lixo (in)sustentável
Faz-se ainda necessário salientar outra forma de operar o mercado internacional de
gestão dos resíduos urbanos. Essa forma diz respeito à produção de relações mais escusas, que
fazem emergir um mercado paralelo de transporte e disposição de nossos restos e que revelam
outra articulação comercial, contudo, não oficial. Trata-se da exportação de lixos tóxicos,
hospitalares e domésticos de países desenvolvidos, em sua maioria europeus, para países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento como China, Indonésia, Índia, África e Brasil:
A exportação ilegal de lixo a países pobres é um negócio internacional
crescente, já que as empresas tentam minimizar os custos de novas leis
ambientais, como as da Holanda, que taxam o lixo ou exigem que ele seja
reciclado ou dispensado de forma ambientalmente correta. Embora parte do
comércio internacional de detritos seja legal, outra parcela não é. (...) Por um
preço, comerciantes clandestinos fazem os detritos da Europa desaparecerem
no exterior. (...) A exportação de lixo metálico, plástico e de papel da Europa
multiplicou-se por dez de 1995 a 2007, diz a agência, com 20 milhões de
contêineres de detritos sendo embarcados anualmente, legal ou ilegalmente.
(...) Em julho, uma carga de 1.400 toneladas de lixo doméstico britânico que
havia sido enviada ilegalmente para a América Latina - rotulada como
plástico para reciclagem - só foi apreendida após aportar no Brasil
(ROSENTHAL, Folha de S. Paulo/The New York Times, 05/10/2009)55.
Esse mesmo evento foi citado por Roberto Saviano, em seu livro Gomorra (2011
[2006]), ao narrar sobre as várias facetas de negócios operados pela máfia italiana Camorra,
ou melhor, o “Sistema”. Além de comandar a entrada de mercadorias “frescas” no país,
também comanda o negócio das mercadorias mortas, putrescentes e residuais vindas do norte
da Itália e de toda a Europa, para serem enterradas na parte sul italiana, principalmente na
região da Campânia. Resíduos químicos, material tóxico, lixo doméstico e até mesmo
cadáveres e esqueletos humanos são negociados pelos stakeholders com o objetivo de
encontrarem qualquer espaço vazio na paisagem para enfiarem o lixo goela abaixo dos
moradores desta região.
A maior parte dos detritos tóxicos tem uma direção única: “norte-sul”.
Desde os fins dos anos 1990, 18 mil toneladas de lixo tóxico saído de
Brescia foram despejadas entre Nápoles e Caserta, e um milhão de toneladas,
em quatro anos, foi acabar em Santa Maria Capua Vetere. Do norte, os
detritos tratados nas instalações de Milão, Padova e Pisa são expedidos para
a Campânia. A Procuradoria de Nápoles e a de Santa Maria Capua Vetere
descobriram, em janeiro de 2003, graças às investigações conduzidas pelo
promotor Donato Ceglie, que, em quarenta dias, mais de 6.050 toneladas de
lixo da Lombardia chegaram a Trenola Ducenta, perto de Caserta. A zona
55
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/ny0510200906.htm. Acesso em: 03 nov. 2012.
186
rural de Nápoles e de Caserta são mapas-múndi da imundície, medidores
sensíveis da produção industrial italiana. Visitando aterros e pedreiras, é
possível ver o destino de décadas inteiras de produtos industriais italianos
(SAVIANO, 2011, p. 329).
Os stakeholders ficariam responsáveis pela mediação entre os produtores e escusos
proprietários do lixo e os pretensos lugares clandestinos para esconder tais matérias pútridas.
Este profissional fica responsável pelo transporte e indicação do lugar de descarregamento e
também pela “desclassificação” do carregamento, que pode passar da classificação de
resíduos perigosos ou tóxicos para simples resíduos de plásticos em suas etiquetas de cargas.
O stakeholder tem um preço variável que opera conforme o tipo de resíduo a ser
contrabandeado e seu peso: “pentasulfeto de fósforo, 1 euro o quilo. A terra de varredura de
estradas, 55 centavos o quilo; as embalagens com resíduos de dejetos perigosos, 1 euro e 40
centavos o quilo, podendo chegar a 2 euros e 30 centavos o quilo das terras contaminadas, os
restos mortais dos cemitérios, 15 centavos o quilo (...) transporte incluso” (SAVIANO, 2011,
336).
187
FIGURA 19: AZIZIA MUNIZA: GARBAGE AND WINE56
Estes restos mortais ainda conservam um mercado específico em que, no processo de
exumações periódicas dos cemitérios, “os mais que mortos” eram retirados de suas
catacumbas e despejados clandestinamente, ao invés de serem destinados a empresas
especializadas. Os coveiros ganhariam uma gorjeta dos diretores dos cemitérios para cavar os
túmulos e carregar os caminhões com caixões podres, terra e ossos. Na região de Caserta,
moradores faziam o sinal da cruz em terrenos baldios como se estivessem passando em frente
ao cemitério, pois até mesmo as crianças conheciam as áreas clandestinas de despejo dos
restos mortais. Um mercado específico se estabelece:
56
MATFRAMAT nasceu de uma colaboração artística entre a fotógrafa MATilda Incorpora, a
estilista FRAncesca Catania e a modelo MATilde Caruso. Juntas, elas produziram AZIZA MUNNIZZA, o
primeiro de uma série de ensaios fotográficos para chamar a atenção para os problemas sociais da atualidade.
Matilda Incorpora: “A sessão de fotos foi criada, com a colaboração de Dario Feo, entre os montes de lixo
abandonados nas ruas de Palermo, uma cidade com história antiga, chamada Ziz, flor, a partir de seus primeiros
habitantes, os fenícios, e renomeada Aziza, a maravilhosa, pelos árabes que a ocuparam em 827″. Atualmente,
Palermo apresenta muito pouco destas raízes do oriente médio e se encontra nas mãos da poderosa máfia
italiana, intimamente interessada no negócio do lixo. O projeto fotográfico protesta contra o descaso de líderes
italianos que decidiram ignorar o problema por não assumirem o risco de contrariar a máfia. Já MATFRAMAT
decidiu ignorar os riscos de denunciar esta “máfia do lixo” e como resultado temos estas imagens paradoxais
entre beleza e putrefação. Sobre os escombros residuais de Palermo, posaram neste incomum setembro os
modelos Matilde Caruso, Riili Roberto, Giulia Tetamo, Broad Martina e Paulo Vitale
(http://mostraolixo.wordpress.com/artes/fotografia/%E2%80%9Caziza-munnizza%E2%80%9D-matildeincorpora/. Acesso em: 03 dez. 2012.
188
Um crânio com dentes brancos, os vendedores dos mercadinhos das
pulgas podiam comprar até por 100 euros. Uma caixa torácica intacta, por
sua vez, com todas as costelas no lugar, por 300 euros. Tíbias, fêmures e
braços não têm mercado. (...) Os crânios com dentes negros valem 50 euros.
Não têm um grande mercado; parece causar nojo à clientela a idéia da morte,
quanto mais o fato de que o esmalte dos dentes lentamente comece a
apodrecer (SAVIANO, 2011, p. 331-332).
A região napolitana ou casertana transformara-se em um enorme depósito de lixo que
Saviano estima, a partir de dados levantados por operações coordenadas pelas Procuradorias
de Nápoles e Santa Maria Capua Verde, conter cerca de três milhões de toneladas de detritos
de todo tipo, despejados em um intervalo de cinco anos, dos quais um milhão apenas na
província de Caserta: “A área casertana, no ‘plano regulador’ dos clãs, foi destinada à
sepultura do lixo” (2011, p. 339).
Saviano cita ainda um stakeholder, com quem aprendeu sobre os meandros desta
gestão clandestina do lixo que, depois de ter parado de trabalhar, criou um curso de formação
profissional. Seus alunos mais importantes eram chineses de Hong Kong, stakeholders
orientais que tratavam com diversas indústrias européias e as atraíam para levar seus resíduos
para as recônditas e vastas áreas desérticas chinesas. Quando os custos de destinação do lixo
aumentaram na Inglaterra, os stakeholders orientais apresentaram suas soluções rápidas e
baratas. Saviano cita, assim como Elisabeth Rosenthal (2009), o caso da apreensão das mil
toneladas de lixo urbano inglês, despachados oficialmente como papel picado para reciclagem
e apreendidas no porto de Roterdã. Salienta ainda que um milhão de toneladas de detritos
hightech são despejados todo ano na China pela Europa.
O caso da exportação de lixo ilegal veio ao conhecimento dos brasileiros após um
evento ocorrido em junho de 2009 nos portos de Rio Grande (RS) e Santos (SP). No dia 26,
foram encontrados 64 contêineres vindos da Inglaterra, carregado com cerca de 1.200
toneladas de lixo tóxico, domiciliar e eletrônico, além de moscas e aranhas (fraldas, seringas e
camisinhas usadas, embalagens vazias de remédios, pedaços de couro e de tecidos, pilhas,
banheiros químicos e resíduos plásticos inutilizados para a reciclagem por estarem
contaminados em demasia)57. Na documentação entregue nas alfândegas, consta que a carga
seria de polímero de etileno e de resíduos plásticos, que deveriam ser usados na indústria de
reciclagem: “O que chamou a atenção é que em um dos contêineres havia um tonel com
57
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/989550-conteiner-com-lixo-hospitalar-e-apreendido-em-porto-depe.shtml. Acesso 05 nov. 2012.
189
brinquedos onde estava escrito: ‘Por favor: entregue esses brinquedos para as crianças pobres
do Brasil. Lavar antes de usar’” (BENITES, Folha de S. Paulo, 27/06/2009)58.
Em outubro de 2011, foram encontrados no porto de Suape (PE), mais contêineres
que, embora estivessem identificados como “tecidos com defeito”, continham lixo hospitalar.
Eram lençóis sujos, luvas cirúrgicas usadas, além de seringas, drenos e outros objetos59. Os
mesmos lençóis, que continham inscrições de hospitais americanos, foram encontrados em
Santa Cruz do Capibaribe, na loja Império do Forro de Bolso, e eram vendidos a quilo no
varejo, alguns inclusive ainda manchados de sangue60. Além disto, em um hotel em Timbaúba
(130 km de Recife – PE), as camas eram arrumadas com lençóis que apresentavam nomes dos
mesmos hospitais americanos61.
Em maio de 2012, são encontrados no porto de Itajaí (SC), acondicionados em um
contêiner, 20 toneladas de lixo hospitalar provenientes da Espanha, relacionados no registro
alfandegário como “tecido atoalhado de algodão”62. Antes disto, em março do mesmo ano, a
Receita Federal já havia encontrado, no mesmo porto, 40 toneladas de lixo domiciliar
provenientes do Canadá63.
Nenhum dos casos citados de importação ilegal, melhor dizendo, de contrabando de
lixo para o Brasil, parece respeitar a Convenção da Basiléia, acordada em 22 de março de
1989, que trata do Controle dos Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos e seu
Depósito64. Ao aderir à Convenção de Basiléia, o governo brasileiro adotou um instrumento
que considerava positivo, uma vez que estabelece mecanismos internacionais de controle
desses movimentos que, baseados no princípio do consentimento prévio e explícito para a
58
Idem.
Folha de S. Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u587272.shtml. Acesso em: 05 nov.
2012.
60
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1510201101.htm. Acesso em: 05 nov. 2012.
61
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/992907-hotel-em-pernambuco-usa-lencois-de-hospitaisamericanos.shtml. Acesso em: 05 nov. 2012.
62
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1095115-conteiner-com-20-t-de-lixo-hospitalar-vindo-da-espanha-ebarrado-em-sc.shtml. Acesso em: 05 nov. 2012.
63
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1056484-lixo-vindo-do-canada-e-barrado-em-porto-de-sc.shtml.
Acesso em: 05 nov. 2012.
64
A Convenção foi internalizada na íntegra por meio do Decreto Nº 875, de 19 de julho de 1993, sendo também
regulamentada pelas Resoluções Conama nº 23, de 12 de dezembro de 1996, que dispõe sobre as definições e o
tratamento a ser dado aos resíduos perigosos, conforme as normas adotadas pela Convenção, e Conama nº 235,
de 7 de janeiro de 1998, que altera o Anexo 10 da resolução citada anteriormente. Em função da emenda ao
Anexo I (relação de resíduos) e incorporação dos Anexos VIII e IX à Convenção, adotados durante a IV
Conferência das Partes, realizada em Kuching, na Malásia, em 27 de fevereiro de 1998, houve a sua
internalizados pelo Decreto Nº 4.581, de 27 de janeiro de 2003. Com a promulgação da Política Nacional de
Resíduos Sólidos – PNRS, Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, fez-se necessária a revisão da Resolução
Conama nº 23/1996, e demais normas complementares, de forma que se possa incorporar a emenda ao Anexo I e
inclusão dos Anexos VIII e IX, bem como compatibilizar com a PNRS (http://www.mma.gov.br/cidadessustentaveis/residuos-perigosos/convencao-de-basileia. Acesso em: 07 nov. 2012.
59
190
importação, exportação e o trânsito de resíduos perigosos, procura coibir o tráfico ilícito e
prevê a intensificação da cooperação internacional para a gestão adequada desses resíduos.
Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, Lei nº 12.305, de 2 de
agosto de 2010, a questão da importação de resíduos perigosos, inclusive para resíduos
“Classe 1”65, em casos excepcionais, fica proibida conforme o artigo transcrito a seguir: "Art.
49. É proibida a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como de resíduos
sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à
sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma, reuso, reutilização ou recuperação."
A Convenção da Basileia determina o gerenciamento ambientalmente adequado dos
resíduos perigosos, e outros resíduos, internamente aos países, para que com isto possa ser
reduzida a sua movimentação. Nesse sentido, são votadas decisões sobre a necessidade de
serem elaborados guias de gerenciamento ambientalmente adequados de resíduos. A
elaboração de tais guias deverá ser entregue a representantes dos países, que trabalharão nessa
atividade de modo voluntário e gratuito.
Mesmo com tais determinações legais, definidas pelos tratados internacionais citados
nesta seção da pesquisa, o contrabando do lixo é uma realidade contemporânea. Mas, para que
não se caia no falsete de acreditar que se trata de uma guerra entre o bem e o mal, os
acontecimentos internacionais sobre a gestão do lixo se caracterizam mais como relações
paradoxais do que propriamente maniqueístas.
O stakeholder pode ser um dos pontos deste paradoxo, pois, no movimento das
transações obscuras de exportação e importação do lixo, eles seriam os mercadores da
podridão e das inutilidades. As disposições sobre governança, resultantes do Plano de
Implementação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Johanesburgo
(2002), dariam função e importância de articulação ao que eles chamariam de
multistakeholders: “atores não governamentais [ou intergovernamentais] das mais diversas
áreas da sociedade civil, como o setor produtivo, os sindicatos, as organizações não
governamentais e as comunidades científica e acadêmica” (LAGO, 2006, p. 104).
65
Conforme a NBR 10004-2004, os resíduos de Classe I são aqueles que apresentam periculosidade nos
seguintes termos: “Característica apresentada por um resíduo que, em função de suas propriedades físicas,
químicas ou infecto-contagiosas, pode apresentar: a) risco à saúde pública, provocando mortalidade, incidência
de doenças ou acentuando seus índices; b) riscos ao meio ambiente, quando o resíduo for gerenciado de forma
inadequada” (ABNT NBR 10004-2004, p. 3, 2004). Também são considerados resíduos perigosos os resíduos
que apresente algumas das seguintes características: inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxidade ou
patogenicidade (Idem.).
191
Estes novos atores do lixo, que em nada remetem às personagens do lixo
anteriormente descritas, seriam então responsáveis pelos novos ditames sobre a preservação
ambiental e promoção do desenvolvimento sustentável. Isto porque, durante as reuniões
preparatórias, e mesmo durante os eventos da ECO-92 (Rio de Janeiro, 1992) e da Cúpula
Mundial (Johanesburgo, 2002) e suas respectivas reuniões preparatórias, estas representações
da sociedade civil, além de acompanharem as negociações e resoluções entre os Estados, de
modo a funcionar como “os olhos do mundo”, também articulavam entre si propostas em
consonância com tais acontecimentos.
Parecia clara a noção de que o exercício político-diplomático
enfrentaria obstáculos consideráveis por não existir sinalização por parte dos
principais atores políticos no processo – Estados Unidos, União Europeia e o
Grupo dos 77 e China – de que estariam dispostos a “ir mais além de Doha e
Monterrey” (frase constantemente repetida no processo preparatório e
durante a Cúpula), ou a fazer maiores concessões. Uma alternativa era
atribuir maior importância e papel na Cúpula aos multistakeholders, fórmula
que permitiria acentuar a relevância da reunião aos olhos da opinião pública
e de setores influentes da sociedade civil, que poderiam, por sua vez, exercer
pressão para que houvesse maior comprometimento por parte dos governos
(LAGO, 2006, p. 105).
Neste jogo paradoxal, em que o interveniente ou intermediador destes modos
contemporâneos de gestão do lixo pode se tornar tanto o algoz como o paladino destas novas
relações, o importante a ressaltar é que o papel daquele que nem produz e tampouco recolhe e
trata o lixo nosso de cada dia adquire importância gradativa e vertiginosa nos novos modos de
gestão dos resíduos.
A função do mediador aparece como um incremento deste mercado que não para de
agregar novos valores, novos saberes e novas especialidades. Torna-se uma cadeia produtiva,
assim como seu reverso, a extração de matéria prima para se tornar objeto de consumo. O lixo
deixa de ser apenas aquilo que se pretende dispensar a todo custo, como nos casos de
exportação ilegal das podridões domésticas, tóxicas ou perigosas, para se tornar matéria prima
tanto para as relações de capital, de produção industrial, como para a constituição de um
campo moral ambientalmente adequado, que tem sua representação mais sintética no conceito
de desenvolvimento sustentável.
Está-se diante da emergência de um conjunto de conceitos e de um sistema de regras
que marca a passagem desta nova forma de relação com os objetos do mundo. Salientam-se
alguns: o que antes se denominava Natureza é agora uma plataforma produtora de bens
ambientais que se fazem commodities para o sistema de preços do Mercado. A intervenção
192
não se efetiva no paradigma de domínio da Natureza, projeto da modernidade, mas no
paradigma do manejo integrado do ciclo vital dos recursos ambientais. Os dejetos, os restos,
as matérias inúteis, o lixo, são o que irá constituir as novas materialidades desta série
denominada de resíduos sólidos, resíduos ambientais, materiais recicláveis, commodities
ambientais. Mais ainda, o que antes se denominava Mundo, Cosmos, Terra, é agora a
Biosfera. E o homem, um agente ambiental.
Nos mais recentes patamares das relações de governamentalidade, estes mediadores de
gestões intergovernamentais seriam a “boa nova”. Trata-se de modos transfronteiriços e,
portanto, integrados e globais de movimentação do mercado, para ultrapassar as limitações
dos Estados-Nação, sem que para isto tenham que confrontar seus limites de dominação
política ou territorial. Constituem uma forma de pulverização das relações de poder para que
se torne mais capilar e menos visível aos olhos dos poderes, sejam eles democráticos,
totalitários ou totalizantes. Portanto, mais difíceis de resistir, já que atuam, justamente, como
mediadores de conflitos entre a matéria, o mercado, o Estado e os consumidores/cidadãos.
O modelo de manejo integrado de resíduos ambientais proposto pelas agendas
ambientais globais, em especial, pela Agenda 21 da Eco-92 (Rio de Janeiro, 1992), daria a
possibilidade de estas representações intergovernamentais ocuparem espaço fundamental nas
novas tecnologias de gestão do lixo.
No Brasil, especificamente na área de gestão de resíduos, as novas legislações
trabalham com o conceito de gestão integrada e compartilhada, tanto de práticas, como de
signos ambientalmente adequados. Este novo conjunto de acordos nacionais apresenta o
patamar mais sofisticado sobre o conceito de gestão destes insuportáveis resíduos putrescentes
ou sintéticos, naturais ou artificiais, que a contemporaneidade expele cotidianamente. Esse
aparato prático-discursivo será apresentado na próxima e última sessão deste estudo.
193
7. O LIXO NÃO EXISTE: GESTÃO AMBIENTALMENTE ADEQUADA DOS
INSUPORTÁVEIS
As mudanças ou as adequações recém-descritas revelam novas formas de modulação
do projeto da modernidade e do desenvolvimento do capital na contemporaneidade. A prova
está na sofisticação do discurso da sociedade industrial, responsável pelos desastres globais
prometidos pelas agendas ambientais, mas que também apoia a reforma deste paradigma
moderno para um desenvolvimento mais sustentável.
Exemplo disto registra-se na Revista Brasil Sustentável, periódico publicado pelo
Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável que, por sua vez, está
vinculado ao World Business Counsil for Sustainable Development (WBCSD) e que tem
como integrantes de seu Conselho de Administração representantes de grandes empresas
nacionais, como: Grupo Votorantim, Organização Odebrecht, Grupo Gerdau Açominas,
Petrobrás, dentre outros representantes de grandes organizações empresarias.
Em 2008, esta revista lança como matéria de capa uma reportagem com o título A
idade da razão: depois de décadas de atraso, o lixo brasileiro, afinal, pode estar indo para o
devido lugar (Brasil Sustentável, nº 21, 2008). A matéria disserta sobre os 17 anos de debate
sobre Projeto de Lei para implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos, em
tramitação na Câmara Legislativa, e salienta sua necessidade no contexto atual de
desenvolvimento sustentável. No editorial desta revista, seu presidente executivo alerta para o
fato de que nas 5,5 mil cidades brasileiras, cada citadino produz 1,3 quilos de lixo por dia e
que se faz iminente a determinação de normativas em âmbito nacional para criação de
mecanismos de destinação ambientalmente adequados de nossos resíduos.
Interessante notar que um dos pontos que atravancou a votação do formato final deste
Projeto de Lei foram, justamente, as estratégias por parte das empresas de tentarem, ao
máximo, inserir neste mecanismo legal um sistema de gestão de resíduos que implicasse um
mínimo de custo para o setor industriário, por meio de instrumentos de gestão compartilhada
de resíduos, envolvendo os diferentes setores das cadeias de produção e consumo, como se
verá mais à frente.
Para o momento, interessa salientar esta relação entre o interesse empresarial e a
destinação do lixo para seu devido lugar. Trata-se de um indício de que o lixo e, por
consequência, suas personagens entram no planejamento das relações de capital modernas, de
modo a configurar um novo corolário de aparatos jurídicos, de produção de saberes,
194
procedimentos práticos e configuração de estilos de vida que estejam em coerência com este
novo cenário.
7.1 O lixo (des)integrado
As resoluções galgadas pelas agendas ambientais globais encontram seus efeitos nas
experiências brasileiras de gestão das populações urbanas. No caso específico da gestão dos
resíduos, uma série de dispositivos legais, produção de saberes e de relações de interesses é
inscrita no intermédio das práticas históricas nacionais e das proposições ambientais
transfronteiriças. Mais do que uma síntese, a coexistência paradoxal destas problematizações
regionais e globais, empresariais e sociais, efetiva-se em algumas legislações no campo de
gestão de resíduos.
Todavia, antes de adentrar os meandros da produção de condutas produzidos pela
experiência contemporânea de gestão de resíduos e seus diferentes personagens, vale, a título
de ilustração, listar algumas legislações colaterais às proposições das agendas ambientais
globais. A Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981)66, por
exemplo, “tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental
propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico,
aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana” (Art. 2º, Lei
nº 6.938/81). Esta lei pouco dispõe diretamente sobre o tema da gestão do lixo, mas classifica
a geração de resíduos como “potencialidade poluidora e utilizadora de recursos ambientais”
em nível médio de periculosidade (Anexo III, Lei nº 6.938/81). Vale ressaltar que foram
vetadas as disposições sobre a possibilidade de órgãos estaduais e do IBAMA de “determinar
a redução das atividades geradoras de poluição, para manter as emissões gasosas, os efluentes
líquidos e os resíduos sólidos dentro das condições e limites estipulados no licenciamento
concedido” (Art. 10 §3 – Revogado - Lei nº 6.938/81).
Outra legislação que permeia o tema de resíduos e que se encontra no mesmo contexto
citado é a Política Nacional sobre Mudança Climática (Lei nº 12.187, de 29 de dezembro de
2009)67 que tem por objetivo, em linhas gerais, regulamentar em âmbito nacional os
“compromissos assumidos pelo Brasil na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre
Mudança do Clima, no Protocolo de Quioto e nos demais documentos sobre mudança do
clima dos quais vier a ser signatário” (Art. 5º, inciso I, Lei nº 12.187/09). Neste artigo dispõe-
66
67
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm. Acesso em: 09 nov. 2012.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12187.htm. Acesso 09 nov. 2012.
195
se sobre a contratação de serviços na área de gestão de resíduos de modo a calcular seus
custos ambientais como parte do processo licitatório:
Art. 6o São instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima:
XII - as medidas existentes, ou a serem criadas, que estimulem o
desenvolvimento de processos e tecnologias, que contribuam para a redução
de emissões e remoções de gases de efeito estufa, bem como para a
adaptação, dentre as quais o estabelecimento de critérios de preferência nas
licitações e concorrências públicas, compreendidas aí as parcerias públicoprivadas e a autorização, permissão, outorga e concessão para exploração de
serviços públicos e recursos naturais, para as propostas que propiciem maior
economia de energia, água e outros recursos naturais e redução da emissão
de gases de efeito estufa e de resíduos (Lei nº 12.187/09).
Outras legislações criam normas sobre questões técnicas mais específicas como no
caso da Lei nº 7802/89 que “dispõe sobre a pesquisa, a experimentação, a produção, a
embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda
comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens,
o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus
componentes e afins”68. E a Lei nº 10.308/01 que “dispõe sobre a seleção de locais, a
construção, o licenciamento, a operação, a fiscalização, os custos, a indenização, a
responsabilidade civil e as garantias referentes aos depósitos de rejeitos radioativos”69.
Neste cenário, a primeira legislação que estabelece determinações mais diretas à
questão do manejo de resíduos discorre sobre o campo do saneamento básico. A Lei nº 11.445
de 05 de janeiro de 200770 estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, em
que consta como um de seus princípios fundamentais: “Art. 1º(...) III - abastecimento de água,
esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo dos resíduos sólidos realizados de formas
adequadas à saúde pública e à proteção do meio ambiente” (Lei nº 11.445/07). Ainda como
um de seus princípios fundamentais consta, justamente, a “adoção de métodos, técnicas e
processos que considerem as peculiaridades locais e regionais” (Art 1º, inciso V, Lei nº
11.445/07).
Mas estas diferenças locais e regionais devem também articular ações e modelos de
gestão na área de saneamento básico, incluindo o manejo de resíduos e limpeza urbana, que
atendam aos objetivos constantes nos documentos legais constituídos pelas convenções da
ONU – PNUMA, como consta em outro de seus princípios fundamentais:
68
http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=316. Acesso em: 09 nov. 2012.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10308.htm. Acesso em: 09 nov. 2012.
70
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11445.htm. Acesso em: 09 nov. 2012.
69
196
Art 1º (...) VI - articulação com as políticas de desenvolvimento urbano e
regional, de habitação, de combate à pobreza e de sua erradicação, de
proteção ambiental, de promoção da saúde e outras de relevante interesse
social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as quais o
saneamento básico seja fator determinante (Lei nº 11.445/07).
Neste mesmo inciso constante no primeiro artigo do documento, nota-se o interesse
destes dispositivos legais contemporâneos em adotarem uma perspectiva integrada de ação na
qual os três conjuntos prático-discursivos contemplados no presente estudo se fazem
presentes: o saneamento básico, incluindo questões de manejo de resíduos, com questões de
promoção da saúde, questões sociais e de proteção ambiental. Dá-se, portanto, e em efetivo,
início à implementação das diretrizes globais de desenvolvimento do “ambiente humano”71, a
partir dos pilares econômico, social e ambiental.
No interior destas aplicações, surge um dos principais debates aplicados
principalmente em um destes três debates e muito além dos interesses de “melhoria da
qualidade de vida”. No centro desta disputa, além de outras que irão se estabelecer nos
próximos dispositivos legais a serem aqui descritos e analisados, o pilar econômico se torna
determinante.
Em dois artigos da lei, discute-se acerca das responsabilidades sobre o manejo de
resíduos:
Art. 5º Não constitui serviço público a ação de saneamento executada por
meio de soluções individuais, desde que o usuário não dependa de terceiros
para operar os serviços, bem como as ações e serviços de saneamento básico
de responsabilidade privada, incluindo o manejo de resíduos de
responsabilidade do gerador.
Art. 6º O lixo originário de atividades comerciais, industriais e de serviços
cuja responsabilidade pelo manejo não seja atribuída ao gerador pode, por
decisão do poder público, ser considerado resíduo sólido urbano.
Art. 7o Para os efeitos desta Lei, o serviço público de limpeza urbana e de
manejo de resíduos sólidos urbanos é composto pelas seguintes atividades:
I - de coleta, transbordo e transporte dos resíduos relacionados na alínea c do
inciso I do caput do art. 3o desta Lei;
II - de triagem para fins de reúso ou reciclagem, de tratamento, inclusive por
compostagem, e de disposição final dos resíduos relacionados na alínea c do
inciso I do caput do art. 3o desta Lei (Lei nº 11.445/07).
71
Como citado anteriormente esta expressão consta como título da Declaração da Estocolmo: Declaração sobre o
Ambiente Humano (junho de 1972).
197
Nestas disposições legais, verifica-se certa flexibilidade sobre a distribuição das
devidas responsabilidades de manejo de resíduos e limpeza urbana entre a esfera pública e
atividades privadas de comércio, indústria e serviços. Este campo de atribuição das
responsabilidades continuaria como o campo principal de disputa para dirimir, a cada ator, os
devidos custos de geração e gestão de resíduos, como será visto logo adiante.
Outra novidade apareceria nos ditames desta legislação. Pela primeira vez, os
catadores de materiais recicláveis, nas conformidades do reconhecimento de sua ocupação e
de sua formalidade jurídica em cooperativas ou associações, estariam isentos de participar de
licitações ou de restringir-se a prestação de serviços apenas por contrato com o poder público,
como deve ocorrer com empresas privadas.
Art. 57. O inciso XXVII do caput do art. 24 da Lei no 8.666, de 21 de junho
de 1993, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 24. É dispensável a licitação: (...) XXVII - na contratação da
coleta, processamento e comercialização de resíduos sólidos urbanos
recicláveis ou reutilizáveis, em áreas com sistema de coleta seletiva de
lixo, efetuados por associações ou cooperativas formadas
exclusivamente por pessoas físicas de baixa renda reconhecidas pelo
poder público como catadores de materiais recicláveis, com o uso de
equipamentos compatíveis com as normas técnicas, ambientais e de
saúde pública” (Lei nº 11.445/07).
Este artigo possibilitaria então que organizações de catadores de materiais recicláveis
pudessem realizar a prestação de serviço remunerada dos serviços públicos de coleta seletiva,
triagem, beneficiamento e destinação adequada de resíduos sem necessidade de licitação.
Marca-se, portanto, outro dispositivo de relação contratual entre catadores e poder público,
assim como as licenças cedidas pela prefeitura do Rio de Janeiro aos carroceiros na virada do
século XX, mas com outro caráter de relação jurídica. Não se trataria mais de licença
individual e nem de firmar contrato diretamente com os moradores, mas de um contrato de
prestação de serviço público entre cooperativas e associações de catadores e prefeitura
municipal.
Um século depois das licenças firmadas entre carroceiros e município do Rio de
Janeiro e os contratos direto com os moradores, confere-se este novo formato de oficialização
pública da existência dos catadores, incentivado, como já visto, pelo reconhecimento de sua
categoria profissional na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), em 2002, e pela
Política Nacional de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/07).
A indicação de novas relações, entre esfera privada, gestão pública e personagens do
lixo, culmina em uma série de instrumentos jurídicos, dispositivos de educação, campanhas
198
ambientais e novas articulações políticas que, por sua vez, terminariam por provocar uma
dobra nos modos de gestão dos resíduos.
O mais importante mecanismo jurídico, responsável por disparar uma série de novos
estudos, decretos, leis, alianças e disputas políticas, acaba por ser a Política Nacional de
Resíduos Sólidos (PNRS) que, após duas décadas de tramitação no Congresso Nacional, é
homologada pelo então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 02 de
agosto de 2010 (Lei n° 12.305/10).
Além de ser o primeiro dispositivo legal responsável por regulamentar as ações de
gestão do lixo em âmbito nacional, pela primeira vez também se distinguem os conceitos de
resíduo sólido e de rejeito, dentre outros conceitos que circunscrevem esta configuração dos
dejetos humanos na experiência da sociedade:
XIV - reciclagem: processo de transformação dos resíduos sólidos que
envolve a alteração de suas propriedades físicas, físico-químicas ou
biológicas, com vistas à transformação em insumos ou novos produtos,
observadas as condições e os padrões estabelecidos pelos órgãos
competentes do Sisnama e, se couber, do SNVS e do Suasa;
XV - rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as
possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos
disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade
que não a disposição final ambientalmente adequada;
XVI - resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado
resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se
procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados
sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos
cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de
esgotos ou em corpos d'água, ou exijam para isso soluções técnica ou
economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível;
(...) XVIII - reutilização: processo de aproveitamento dos resíduos sólidos
sem sua transformação biológica, física ou físico-química, observadas as
condições e os padrões estabelecidos pelos órgãos competentes do Sisnama
e, se couber, do SNVS e do Suasa (Lei nº 12305/10).
Como um dos princípios da PNRS, aos resíduos sólidos, quando dispostos para a
reciclagem e reutilização, seria conferido novo quantum de valor social, ambiental e,
principalmente, econômico: “Art. 6º São princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos:
(...) VIII – o reconhecimento do resíduo sólido reutilizável e reciclável como um bem
econômico e de valor social, gerador de trabalho e renda e promotor de cidadania” (Lei n°
12.305/10). Neste mesmo instante, a palavra lixo e as matérias que lhe oferecem uma forma
desaparecem deste novo dispositivo legal, dando lugar aos conceitos recém-apresentados.
199
Este processo de desmontagem do sistema de regras que sustentava a forma do lixo
(matérias inúteis, restos, matérias putrefatas; matérias da forma lixo, portanto, gestão dos
restos), e que agora se metamorfoseia na forma resíduo sólido (matérias recicláveis e
reutilizáveis; matérias da forma resíduo, portanto, gestão de recursos ambientais), além de
definir conceitos específicos para cada um de seus fragmentos, sustenta-se em outras
denominações mais suportáveis do que, por exemplo, as proferidas pela experiência das
pestes. Essa constatação traduz a inscrição de seu lugar social, em consonância com a moral
ambientalmente adequada, cujo cenário está criando consistência desde as agendas ambientais
globais. As matérias que compõem o lixo deixam de se relacionar à morte para serem
integradas ao ciclo de vida do produto, e outro sistema de regras se estabelece: matérias
recicláveis, materiais, substâncias, objetos ou bens descartados, resultantes de atividades
humanas em sociedade, correspondem às matérias da forma resíduos. Como efeito, tem-se
não mais o modo de gestão de restos, mas o modo de gestão de resíduos, como enuncia este
inciso da Lei: “IV - ciclo de vida do produto: série de etapas que envolvem o
desenvolvimento do produto, a obtenção de matérias-primas e insumos, o processo produtivo,
o consumo e a disposição final” (Título I, Capítulo II - Definições, Art. 3º, inciso IV, Lei n°
12.305/10).
Esta espécie de positivação do resíduo, suportada pelos conceitos empresariais de
produtividade, substitui conceitos excludentes como morte, doença, lixo, podridão. Reflete-se,
pois, em outras articulações e modos de conduzir as relações que os circunscrevem. Dentre
estas novas relações, encontra-se ainda o conceito de responsabilidade compartilhada,
conforme se subscreve na íntegra:
XVII - responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos:
conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes,
importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos
titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos
sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem
como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade
ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos desta Lei
(Título I, Capítulo II - Definições, Art. 3º, inciso XVII, Lei n° 12.305/10).
Um serviço antes determinado apenas como público transmuta-se na distribuição das
responsabilidades entre diferentes atores da sociedade. Neste sentido, o cidadão, também
consumidor, portanto, cidadão-consumidor, teria a responsabilidade de destinar de modo
ambientalmente adequado seus resíduos, para fins de reutilização e reciclagem do material.
200
Aos municípios ficaria a responsabilidade de gerir o serviço de limpeza urbana e a coleta dos
resíduos.
O princípio de responsabilidade compartilhada72 contrasta-se ao histórico de lutas pelo
monopólio do lixo motivado pelas empresas de limpeza urbana e pelo poder público contra a
existência errante e não comprometida do trapeiro, ou do carroceiro e outras personagens do
lixo e das ruas. Em seu plano discursivo, a responsabilidade compartilhada implica o
reconhecimento das ações poluidoras de cada ator pertencente ao sistema de produção e
consumo73. Mas o que se presencia nos debates públicos é o esforço de cada segmento para se
desresponsabilizar o máximo possível, na tentativa de determinar o mínimo adequado para
manutenção deste novo modo de governo socioambiental das condutas humanas.
Responsabilidade compartilhada que opera em outro sistema produtor de
subjetividades ambientalmente adequadas, em benefício da segurança mundial e,
consequentemente, da vida urbana, mesmo que as ações determinadas não se façam efetivas,
quanto a seus objetivos de produção de um mundo melhor. Esse vínculo, portanto, cria-se
apenas pelo interesse de se fazer parte desta nova sociedade civil ambientalmente responsável,
mesmo que sem nenhuma efetividade. Uma economia ecológica, uma conduta que ofereça um
modo global de sustentabilidade ao sistema capitalístico, implicado na constante inovação e
consumo de estilos de vida.
Dentre tal redistribuição aparece ainda o princípio do “poluidor-pagador e o protetor
recebedor” (Título II, Capítulo II – Dos princípios e objetivos, Art. 6º, inciso II, Lei n°
12.305/10), termo já consagrado pela legislação ambiental internacional, em especial, pelo
Princípio 16, constante na Declaração do Rio sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
(1992), em que se determina o seguinte:
Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo
decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem procurar promover a
internalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos,
levando na devida conta o interesse público, sem distorcer o comércio e os
72
Há pouco foi apresentado o conceito de responsabilidade compartilhada sobre o ciclo de vida do produto que
explicita a distribuição e relação das responsabilidades concernentes ao processos de gestão de resíduos.
73
De pronto, podem ser enumeradas algumas das etapas que envolvem o sistema de geração e reciclagem de
resíduos, sendo estas: a extração de recursos naturais e sua manufatura nas indústrias de embalagens; a criação
de produtos de consumo e o trabalho de design de embalagens para tornar estes produtos mais atrativos, as
estratégias de venda do produto no varejo; o consumo e descarte pelos cidadãos-consumidores; a coleta seletiva
ou convencional administrada pelo poder público municipal; o encaminhamento do material às cooperativas de
catadores ou centrais de triagem e beneficiamento privadas; a disposição dos rejeitos em lixões, aterros
controlados, ou aterros sanitários; até chegar às indústrias de reciclagem e sua consequente transformação em
matéria-prima para que sejam novamente transformadas em produto de varejo.
201
investimentos internacionais (Princípio 16, Declaração do Rio sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento, 1992).
As indústrias seriam, pela primeira vez no Brasil, responsáveis por contribuir com
investimentos financeiros e tecnológicos para o retorno das embalagens produzidas que, após
seu consumo, são rejeitadas pelo cidadão-consumidor, para seu reaproveitamento nas formas
de reutilização e reciclagem, bem como a destinação final de seus rejeitos.
As organizações de catadores caracterizam-se agora como os protetores-recebedores
deste serviço de recolhimento do material reciclável, já que, como discutido anteriormente,
estes, agora batizados agentes ambientais, realizam tal função muito antes destas disposições
legais entrarem em tramitação no Congresso Nacional. Assim como o lixo, esta personagem
tem sua função positivada e reconhecida legalmente. Cria-se mais um novo campo de
enunciação para esta função, o lixeiro/catador agora se enuncia como catador de materiais
reutilizáveis e recicláveis.
Outro enunciado chave para estipular os novos parâmetros de gestão dos resíduos seria
o conceito de gestão integrada de resíduos sólidos, de que trata o “conjunto de ações voltadas
para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões
política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do
desenvolvimento sustentável” (Título I, Capítulo II - Definições, Art. 3º, inciso XI, Lei n°
12.305/10). O objetivo de tal definição implica a “articulação entre as diferentes esferas do
poder público, e destas com o setor empresarial, com vistas à cooperação técnica e financeira
para a gestão integrada de resíduos sólidos” (Título II, Capítulo II – Dos princípios e
objetivos, Art. 7º, inciso VIII, Lei n° 12.305/10).
A gestão integrada de resíduos sólidos adequa-se ainda com os objetivos de
“integração dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis nas ações que envolvam a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos” (Título II, Capítulo II – Dos
princípios e objetivos, Art. 6º, inciso XII, Lei n° 12.305/10), sendo esta, inclusive, uma das
metas do Plano Nacional de Resíduos Sólidos, conforme consta: “metas para a eliminação e
recuperação de lixões, associadas à inclusão social e à emancipação econômica de catadores
de materiais reutilizáveis e recicláveis” (Título III, Capítulo II – Dos planos de resíduos
sólidos, Seção II, Art. 15, inciso V, Lei n° 12.305/10).
Este mecanismo legal dispara outras peças jurídicas, dentre elas, o Decreto nº 7.405 de
23 de dezembro de 2010, que institui o Programa Pró-Catador, responsável por determinar
uma série de políticas públicas de fortalecimento desta categoria profissional. Logo em seu
202
Art. 1º, estão as formas de promoção desta categoria: “apoio e fomento à organização
produtiva dos catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, à melhoria das condições de
trabalho, à ampliação de oportunidades de inclusão social e econômica e à expansão da coleta
seletiva de resíduos sólidos, da reutilização e da reciclagem por meio da atuação desse
segmento” (Art. 1º, Decreto nº 7.405/10); assim como a descrição deste protagonista da
PNRS: “pessoas físicas de baixa renda que se dedicam às atividades de coleta, triagem,
beneficiamento, processamento, transformação e comercialização de materiais reutilizáveis e
recicláveis” (Art. 1º, Parágrafo Único, Decreto nº 7.405/10).
Apenas neste primeiro artigo, tem-se a disposição de uma política de inclusão que
pretende, por meio de seus incentivos, privilegiar catadores organizados em detrimento de
catadores autônomos. A miséria, insuportável também para um projeto ambientalmente
adequado, é substituída pela denominação de “pessoa física de baixa renda”74, pleno de uma
nova forma discursiva mais higiênica e empreendedora, mas que não reflete a realidade da
crueza das relações cotidianas.
Para aqueles que insistem em catar o lixo nas ruas de forma desorganizada, ou seja,
não associada, conforme as disposições colocadas pelo Estado Nacional, restam políticas de
retaliação conferidas aos que moram nas ruas e/ou são usuários de drogas sintéticas pesadas
como o craque. Na cidade de São Paulo, por exemplo, os catadores autônomos se misturam
aos moradores de rua e usuários de craque na região central da cidade e são submetidos às
novas ações higienistas de retaliação. Registra-se, por exemplo, em uma reportagem do Jornal
Estado de S. Paulo, “Estadão”, que as políticas de retaliação a usuários de craque no bairro da
Luz têm causado a migração destes para outros “bairros de classe média”, ao redor da região
central. Nesta reportagem, a fala que representa um destes usuários é conferida a um catador
de materiais recicláveis de 30 anos, que pediu para não ser identificado, mas que afirmou que
a Rua Doutor Estácio Coimbra “está virando uma segunda cracolândia” (Estado de S. Paulo,
06 de janeiro de 2012)75.
Uma reportagem da Revista Carta Maior denuncia a limpeza social que ocorre no
centro da cidade de São Paulo e afirma que “sem-teto, catadores de material reciclável e
moradores de rua não fazem parte da política de ‘revitalização’ da Prefeitura de São Paulo
74
Esta denominação “baixa renda” é estipulada conforme os indicadores sociais calculados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com rendimento familiar mensal de até ¼ de salário mínimo por
pessoa, conforme consta em sua página na web:
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/13042004sintese2003html.shtm. Acesso 12 nov. 2012.
75
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,cracolandias-de-bairros-de-classe-media-tambem-inflam,819118,0.htm. Acesso em: 12 nov. 2012.
203
para o centro da cidade” (Carta Maior, 24 de janeiro de 2006)76. Nesta reportagem, que se
refere a acontecimentos ocorridos em 2006, mas que se reproduzem até a atualidade, a revista
ainda acrescenta:
A recuperação de edifícios públicos importantes, a reforma de praças,
parques e avenidas, o combate aos crimes e a tentativa de atrair
investimentos da iniciativa privada não estão sendo acompanhados de
políticas públicas que incluam os grupos marginalizados que vivem ou
trabalham na região central da cidade. Pelo contrário, os sem-teto estão
sendo removidos de suas ocupações, o trabalho dos catadores de material
reciclável está sendo dificultado e os moradores de rua têm sido vítimas de
atos preconceituosos e alvo de ações repressivas para que não fiquem mais
no centro. Tampouco são apresentadas alternativas viáveis para a parcela de
excluídos que vive na região (Carta Maior, 24 de janeiro de 2006).
O mesmo acontece na cidade do Rio de Janeiro, ao utilizar a internação compulsória
para retirar crianças, adolescentes e adultos em situação de rua para serem encarcerados em
instituições de saúde mental e assistencial. A Frente Estadual de Drogas e Direitos Humanos
do Rio de Janeiro (FEDDH), articulada com a Frente Nacional de Drogas e Direitos Humanos
(FNDDH) e com o Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua e
de Catadores de Material Reciclável – CNDDH/RJ, redigem então uma carta de repúdio,
datada de 24 de outubro de 2012, contra as últimas declarações do prefeito da cidade do Rio
de Janeiro sobre a continuidade e expansão da política de internação compulsória que, além
das crianças e adolescentes em situação de rua, começa a incluir adultos neste processo77.
Portanto, em movimentos contrários e (por que não?) contraditórios, observa-se a
criação de políticas públicas de inclusão de catadores que se articulem em organizações
produtivas, enquanto, concomitantemente, instauram-se políticas de retaliação e de produção
de outra visibilidade dos catadores autônomos. O que constitui um modo de organização
violento bem característico das práticas de inclusão que dependem, em seu paradoxo, de aferir
um índice para os corpos incorrigíveis ou insuportáveis, ou seja, as bordas das curvas de
normalidade.
De volta às disposições sobre inclusão social, em seu Art. 2º, o Programa Pró-Catador
lista as ações que entende como apoio e fomento a esta categoria, com a ressalva de que a
categoria esteja legitimada como organização produtiva:
76
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=9744. Acesso em: 12 nov. 2012.
http://global.org.br/arquivo/carta-de-repudio-a-proposta-de-internacao-compulsoria-de-adultos-pela-prefeiturado-rio-de-janeiro/. Acesso em:12 nov. 2012.
77
204
I - capacitação, formação e assessoria técnica;
II - incubação de cooperativas e de empreendimentos sociais
solidários que atuem na reciclagem;
III - pesquisas e estudos para subsidiar ações que envolvam a
responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos;
IV - aquisição de equipamentos, máquinas e veículos voltados para a
coleta seletiva, reutilização, beneficiamento, tratamento e reciclagem pelas
cooperativas e associações de catadores de materiais reutilizáveis e
recicláveis;
V - implantação e adaptação de infraestrutura física de cooperativas e
associações de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis;
VI - organização e apoio a redes de comercialização e cadeias
produtivas integradas por cooperativas e associações de catadores de
materiais reutilizáveis e recicláveis;
VII - fortalecimento da participação do catador de materiais
reutilizáveis e recicláveis nas cadeias de reciclagem;
VIII - desenvolvimento de novas tecnologias voltadas à agregação de
valor ao trabalho de coleta de materiais reutilizáveis e recicláveis; e
IX - abertura e manutenção de linhas de crédito especiais para apoiar
projetos voltados à institucionalização e fortalecimento de cooperativas e
associações de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis.
Parágrafo único. As ações do Programa Pró-Catador deverão
contemplar recursos para viabilizar a participação dos catadores de materiais
reutilizáveis e recicláveis nas atividades desenvolvidas, inclusive para
custeio de despesas com deslocamento, estadia e alimentação dos
participantes, nas hipóteses autorizadas pela legislação vigente (Decreto nº
7.405/10).
Mesmo considerando questões de mercado, para além das questões socioculturais,
como, por exemplo, a organização e apoio às redes de comercialização e cadeias produtivas
integradas, em nenhum momento considera-se a hipótese de pagamento ao catador pelos
serviços públicos de limpeza urbana78, destinação de resíduos e proteção ambiental, assim
como se estipula em casos de empresas terceirizadas que realizam o mesmo serviço. Neste
sentido, constata-se a diferença entre uma política de caráter social, digamos assim, inclusiva,
responsável pela administração da miséria em níveis suportáveis, e as antigas personagens do
lixo que moviam sua fronte inquieta e que, nos muros, a apoiar-se à imitação de um poeta79,
continuam a incomodar o fluxo das cidades.
Verifica-se a construção de políticas públicas que priorizam investimentos nas
cooperativas ou associações de catadores, mas que não citam a possibilidade de pagamento
por serviços ambientais, pois o sistema de regras que sustenta a série apoio/fomento/ inclusão
legitimam a resistência em regulamentar um pagamento direto pelo volume de resíduos
sólidos recicláveis pelas cooperativas de catadores.
78
Referência ao sistema de Pagamento de Serviços Ambientais Urbanos (PSAU) analisado no capítulo anterior.
BAUDELAIRE, Charles. O vinho dos trapeiros. In: As flores do mal. Edição bilíngue. Charles Baudelaire;
tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. 1. ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006
79
205
Assim, não apenas os dispositivos legais como também os projetos privados orientamse pela política de fomento e inclusão, de modo a ignorar a possibilidade de se estabelecer
uma relação direta de mercado com organizações produtivas de catadores. Como exemplo
destes incentivos privados podem ser citados inúmeros projetos socioambientais como os
investimentos do CEMPRE (Compromisso Empresarial para a Reciclagem) em que o apoio
resume-se em doação de equipamentos para a linha de produção (triagem, beneficiamento e
estocagem) das cooperativas, capacitação profissional aos catadores e confecção de material
para campanhas e propagandas de Coleta Seletiva. O debate, atualmente em pauta, sobre a
efetuação de Pagamento sobre Serviços Ambientais Urbanos (PSAU) encontra resistência dos
investimentos privados e públicos com pequenas exceções (Bolsa Reciclagem – Minas
Gerais, Prefeitura Municipal de Londrina, Prefeitura Municipal de Natal, entre outros).
Mesmo assim, no caso específico das prefeituras, não se trata propriamente de dispositivos
legais para pagamento deste serviço, mas contratos de prestação de serviços limitados, muitas
vezes, aos tempos de mandatos (4 anos). Portanto, com exceção do Estado de Minas Gerais,
que recentemente instalou o programa de PSAU, intitulado Bolsa Reciclagem80, não há outro
registro sobre este dispositivo legal em outras regiões do país.
Nos rumos desta positivação controlada, na inclusão ambientalmente adequada desta
personagem urbana, o Programa Pró-Catador revoga o antigo Decreto de 11 de setembro de
2003, que instituía o Comitê Interministerial para Inclusão Social de Catadores de Lixo, para,
em seu lugar, instituir o Comitê Interministerial para Inclusão Social e Econômica dos
Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis. Fica, portanto, evidente que nesta nova
forma de racionalização do Estado, sobre os “materiais, substâncias, objetos ou bens
descartados resultante de atividades humanas em sociedade” (Decreto nº 7.405/10), o lixo
deixa de existir, assim como sua personagem.
7.2. A produção das condutas ambientais
Ao se incorporarem os discursos e práticas das áreas da saúde, dos destinos da cidade
e agora da qualidade ambiental propícia à vida nas práticas de gestão dos dejetos humanos, o
conjunto de coisas que até então conhecíamos como lixo acaba por desaparecer, ou melhor, se
transmuta em objetos úteis ao bem estar dos povos. O conjunto de enunciados que o permeia
não remete mais às suas putrefações deletérias, às emanações mefíticas ou dejetos
nauseabundos. Tampouco se refere a suas personagens como o lixo social, a escória
80
http://www.cmrr.mg.gov.br/comunicacao-e-eventos/noticias/2012/10/30/minas-gerais-e-pioneiro-empagamento-por-servicos-ambientais-a-catadores-de-materiais-reciclaveis/. Acesso em: 06 dez. 2012.
206
empedernida ou o refugo da sociedade, os tigres, os lixeiros. Conceitos das áreas jurídicas,
administrativas e industriais ativam uma nova forma de aparecimento dos restos da cidade.
Logística reversa, gestão integrada de resíduos sólidos urbanos, responsabilidade
compartilhada, catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, pessoa física de baixa renda
seriam algumas destas novas plataformas de intervenção e suporte das práticas discursivas das
artes de governar contemporâneas.
Os preceitos colocados pelas últimas legislações brasileiras, no que diz respeito às
agora denominadas matérias ambientais, propulsionam modulações nas relações de capital, na
manufatura industrial, comercial e estatal, que se fazem presentes desde a concepção de um
novo produto ao consumidor, passando por todo o seu ciclo vida, até o seu aparecimento em
estratégias de campanhas que têm como meta a qualidade ambiental propícia à vida.
Ademais, outra forma de modulação ainda se faz presente, por ser tão importante e
capaz de congregar todos estes modos de inscrição do lixo/dejetos na sociedade. Seu modo de
veiculação será não mais pela Educação Sanitária, mas pela Educação Ambiental, tendo como
objeto de intervenção a conduta humana. O Decreto nº 7404, de 23 de dezembro de 201081,
responsável por regulamentar a PNRS (Lei nº 12305/10), apenas quatro meses após sua
homologação, institui os procedimentos específicos às estratégias de “Educação Ambiental na
Gestão de Resíduos Sólidos” (Título IX, Decreto nº 7404/10), além de instituir outras
providências.
Nesta sessão do documento, seu único artigo apresenta o objetivo desta plataforma
educacional:
Art. 77. A educação ambiental na gestão dos resíduos sólidos é parte
integrante da Política Nacional de Resíduos Sólidos e tem como objetivo o
aprimoramento do conhecimento, dos valores, dos comportamentos e do
estilo de vida relacionados com a gestão e o gerenciamento ambientalmente
adequado dos resíduos sólidos (Título IX, Decreto nº 7404/10).
Este aprimoramento ambientalmente adequado do ser humano, que congrega
conhecimentos, valores, comportamentos e estilos de vida, materializa-se em uma série de
manuais, catálogos, folhetins e campanhas ambientais para produção deste novo campo moral
das relações na cidade. Um conjunto de informações específicas para tais instrumentos são
gerados e, dentre estas informações, um dos itens mais presentes é o tempo de decomposição
de cada produto pertencente ao volume de lixo urbano.
81
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/Decreto/D7404.htm. Acesso em: 13 nov. 2012.
207
Estas informações costumam alertar para o problema de certas embalagens sintéticas,
como de plástico, vidro, metal e alumínio, que demoram, por vezes, séculos para se decompor
na natureza. Algumas imagens são apenas informativas, outras apresentam um tom mais
fatalista, dando a sensação de que o mundo está sendo soterrado por uma montanha de lixo.
De qualquer forma, este conjunto de informações pretende mostrar à população que o tempo
de ignorar os restos após serem jogados na lixeira acabou: “A tabela de tempo de
decomposição
de
materiais
é
um
poderoso
instrumento
de
sensibilização
que,
invariavelmente, faz as pessoas pensarem na sua responsabilidade individual com relação ao
lixo” (http://www.lixo.com.br/. Acesso em 15 nov. 2012).
208
FIGURA 20: TEMPO DE DECOMPOSIÇÃO DOS MATERIAIS
O lixo carrega, como modo de problematização do dispositivo ambiental, esta carga
negativa que promete o fim do mundo causado pela irresponsabilidade individual dos
citadinos. Nesta linha de pensamento, o antropólogo José Carlos Rodrigues pondera sobre
esta transformação da materialidade dos resíduos na sociedade industrial, antes mesmo de os
hábitos individuais aparecerem como foco desta problemática.
Tudo isto se faz acompanhar de uma característica agravante: este
lixo, na sociedade industrial, é cada vez menos feito de resíduos orgânicos,
que se degradam pela própria ação natural. Este lixo é algo que os homens
não conseguiram digerir e que lançam ao mundo para que este também não
consiga digerir em prazo humanamente confortável. Uma coisa parecida
com angústia de fim do mundo começa a penetrar em boa parte dos
discursos dos ecologistas: a angústia de morte é um componente
fundamental da nova sensibilidade ecológica (RODRIGUES, 1995, p.13).
A ameaça de morte implica mudança nos modos de vida e, com tal atribuição
negativa, que remete à extração de recursos naturais e sua transformação em produtos de
difícil degradação, as indústrias de embalagens iniciam uma articulação para ressignificar
seus produtos perante seus consumidores.
A PLASTIVIDA (Instituto Sócio-Ambiental dos Plásticos) é a entidade que representa
institucionalmente a cadeia produtiva do setor de plásticos e tem como objetivo “divulgar a
209
importância dos plásticos na vida moderna e promover sua utilização ambientalmente correta,
ao mesmo tempo em que prioriza iniciativas de Responsabilidade Social”82. Esta instituição,
articuladora das maiores indústrias nacionais e multinacionais produtoras de embalagens de
plástico, acaba por criar uma série de informações para reverter o quadro negativo que as
propagandas e campanhas ambientais estavam criando sobre o potencial de poluição
provocado pelos resíduos sintéticos. Em seu site, a PLASTIVIDA disserta sobre as vantagens
de uso do plástico:
Os plásticos não são tóxicos e sim inertes. Justamente por esta
qualidade, são amplamente utilizados para embalar alimentos, bebidas e
medicamentos. E protegem a saúde, em aplicações como seringas, bolsas
para transfusão de sangue e frascos para soro fisiológico. Por sua atoxidade,
não contaminam o lençol freático, os rios e os oceanos.
Há casos em que os plásticos são os únicos materiais adequados para
um determinado fim, que conseguem dar resposta. Isso porque eles reúnem
um número de propriedades dificilmente encontradas em outros materiais:
são ótimos isolantes térmico-acústicos, maus condutores de eletricidade,
resistentes ao calor, quimicamente inertes, leves, resistentes e flexíveis, além
de representarem excelente relação custo/benefício.
A embalagem plástica protege os produtos, garante a segurança
alimentar, evita contaminação, transmissão de doenças, proliferação de
insetos e roedores. Ao impedir a perda do produto, evita o desperdício de
tudo o que a sociedade e o meio ambiente investiram para produzi-lo:
energia, recursos naturais, trabalho etc. Apesar de um uso tão amplo, apenas
4% do petróleo extraído são destinados à produção de plásticos.
Outra grande vantagem dos plásticos é sua leveza, proporcionando
grande economia no transporte das mercadorias. As embalagens de plástico
descartadas reduzem o peso dos resíduos, diminuem o custo de coleta e
destinação final e não apresentam riscos de manuseio.
Finalmente, uma das maiores vantagens dos plásticos é que eles são
100% recicláveis. Para se beneficiar amplamente desta vantagem, a
sociedade deve estimular a deposição correta das embalagens após o uso e
aumentar o alcance da coleta seletiva83.
Além destas argumentações, que respondem clara e diretamente às propagandas sobre
a dificuldade de degradação das embalagens derivadas de plástico, ressaltam sobre a
importância destes produtos para a manutenção de serviços essenciais para a vida moderna
das aglomerações urbanas. Em outro link intitulado Os plásticos: importância para a vida a
referida instituição dispõe o seguinte:
Os plásticos têm centenas de aplicações. Impermeáveis, maleáveis,
duráveis e com uma excelente relação custo/benefício, contribuem para o
82
83
http://www.plastivida.org.br/2009/Instituto.aspx. Acesso em: 16 nov. 2012.
Idem.
210
desenvolvimento social, econômico e científico. E protegem o meio
ambiente.
Proteções de plástico auxiliam na produção, estocagem e distribuição
de milhares de toneladas de alimentos. Evitam desperdícios e perdas por
transporte ou por alterações do clima.
Embalagens de plástico garantem que hortifrútis, carnes, laticínios e
bebidas cheguem à mesa em perfeitas condições para seu consumo.
Bolsas de sangue e de soro, catéteres, máquinas de circulação
extracorpórea e embalagens para resíduos hospitalares são alguns exemplos
de materiais plásticos que ajudam na cura e na prevenção de doenças. São os
plásticos salvando vidas.
Impedir a contaminação dos solos, evitar erosões, canalizar esgotos,
preservar a água e gerar energia são importantes contribuições dos plásticos
à preservação do meio ambiente.
Com plástico reciclado fabrica-se uma infinidade de produtos como
vestuário, componentes automotivos, conduítes, carpetes, bolsas, artigos de
comunicação visual, solados, páletes e móveis, entre vários outros.
A cadeia produtiva dos plásticos contribui decisivamente para o
Desenvolvimento Sustentável, ajudando na conservação dos recursos
naturais, melhorando a qualidade de vida das pessoas e contribuindo para o
crescimento econômico.
Custos competitivos, facilidade de instalação e baixa manutenção
tornam os plásticos perfeitamente adequados para o atendimento das
necessidades básicas: habitação, saneamento, suprimento de água e saúde84.
Outra instituição representante de embalagens também toma como estratégia ressaltar
o quão importante suas embalagens são para a manutenção da vida. A campanha Vidro é Vida
promovida pela Multinacional Owens-Illinois85 afirma em seu site: “Nós amamos o vidro. Ele
inicia sua vida sob a forma de areia, atravessa o fogo e, como que por magia, torna-se um
material lindo e natural que protege os alimentos e bebidas, sendo, além disso, bom para o
ambiente” (http://www.glassislife.com/pt. Acesso em: 16 nov. 20112). Com o objetivo de
demonstrar que, assim como o plástico, o vidro é essencial para a manutenção da vida
moderna, a campanha irá listar os benefícios de se utilizarem embalagens desta natureza:
Sustentabilidade: E em relação a outros tipos de materiais de
embalagens, o vidro pode realmente reduzir a sua pegada de carbono. O
ciclo de vida total das embalagens, seja de vidro ou de qualquer outro tipo de
material, inclui desde a extração da matéria-prima, envolvendo o transporte e
a fabricação, até a reciclagem ou eliminação. Como o vidro pode ser
reciclado infinitamente, requer menos matéria-prima e menos energia. Usar
o vidro ajuda a ter aquele sentimento de estar colaborando com o meio
ambiente.
84
Idem.
OI – Multinacional é líder mundial na fabricação de embalagens de vidro. Presente em mais de 50 países da
América Latina, Europa, América no Norte, Ásia e Oceania. Atuando há 90 anos no Brasil (com a marca
CISPER), conta com 4 fábricas produzindo mais de 500 itens, atendendo diversos segmentos, incluindo
embalagens e utilidades.
85
211
Sabor: O vidro preserva o sabor. Quando você come ou bebe algo na
embalagem de vidro, você está experimentando o gosto natural do alimento
ou da bebida, nada mais, nada menos.
Qualidade: A qualidade do vidro fala por si. É o único material de
embalagens que as pessoas se sentem inspiradas a guardar, reutilizar,
colecionar e exibir. Lisa ou áspera, azul, verde, preta ou furta-cor, o vidro é
apresentado numa imensa variedade de texturas, formas e cores. É lindo. É
memorável. É um ícone.
Saúde: O vidro não é reativo. É seguro usar repetidamente em sua
casa, e a maioria das pessoas sente que o vidro é o mais seguro tipo de
embalagem para uso no micro-ondas (Idem).
Após mais de um século de produção de inúmeras estratégias para a gestão dos restos
da vida urbana, em que se produziram valores como doenças, pestes e miséria para tal matéria
residual das relações modernas, observa-se a inversão destes valores para a promoção de um
processo de positivação dos resíduos. A população movimenta-se na conformidade pendular
destes discursos. Assim, se antes se jogava o lixo na lixeira e então se esperava a chegada do
lixeiro para sumir com aqueles restos asquerosos para longe das vistas dos citadinos, agora, se
responsabilizar e se informar sobre o destino e os prejuízos ambientais e sociais torna-se um
selo de qualidade da boa conduta. O ato de executar os 3 R’s (reduzir, reutilizar e reciclar)
torna-se, portanto, um valor moral capaz de chancelar aqueles responsáveis por um mundo
melhor ou pela sua destruição total.
Verifica-se a constituição deste outro dispositivo biopolítico de governo das condutas
tanto das coisas como dos homens, que opera sobre os modos de vida no contexto dos
aglomerados populacionais. Cada cidadão deve policiar não só a si mesmo como também aos
outros sobre suas responsabilidades ambientalmente adequadas, pois o que está em jogo não é
somente a vida humana, mas a vida da Biosfera. Nas escolas, as crianças participam de aulas
de educação ambiental e aprendem a vigiar e cobrar os próprios pais sobre os antigos hábitos
de jogar o lixo misturado nas lixeiras.
O campo de intervenção, esta recondução de modos de vida, este modo de governo de
si e dos outros, configura-se, justamente, no ato cotidiano de jogar o lixo na lixeira. Porém,
neste processo de fabricação e padronização de novos modos de vida, em que qualquer
registro sobre “lixo” começa a se extinguir ou ser positivado, tal ato inscreve-se na sociedade
humana como “destinação final ambientalmente adequada de resíduos sólidos”86. Nada mais
86
Conforme a Política Nacional de Resíduos Sólidos, “destinação final ambientalmente adequada” define-se
pela “destinação de resíduos que inclui a reutilização, a reciclagem, a compostagem, a recuperação e o
aproveitamento energético ou outras destinações admitidas pelos órgãos competentes do Sisnama, do SNVS e do
Suasa, entre elas a disposição final, observando normas operacionais específicas de modo a evitar danos ou
212
morre, recicla-se. Se antes as coisas se putrefaziam porque finitas, agora são descartáveis, mas
de duração ilimitada. As coisas mortas desaparecem por entre as formas da reciclagem.
As campanhas ambientais para a educação citadina ficam então responsáveis pela
produção de uma variedade de instrumentos de disseminação e registro de modos de vida
ambientalmente adequados. O Governo Federal Brasileiro, por exemplo, por meio dos
ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, lança em
2011 a campanha, “Separe o lixo e acerte na lata”, como estratégia “para que a nova política
de resíduos sólidos fosse absorvida o mais rápido possível pela população brasileira”
(http://www.separeolixo.com/. Acesso em: 14 nov. 2012). Em consonância com as últimas
disposições instituídas pela Política Nacional de Resíduos Sólidos, principalmente, pelas
diretrizes sobre Educação Ambiental, a campanha tem como objetivo “preparar a sociedade
brasileira para uma mudança de comportamento em relação à coleta seletiva do lixo,
ressaltando os benefícios ambientais, sociais e econômicos do reaproveitamento dos resíduos
sólidos para o País” (Idem). O site da campanha ainda ressalta os principais temas que
conduzem sua ação publicitária: 1) Ressaltar a riqueza ambiental e social do lixo; 2) Ensinar a
correta separação do lixo úmido e seco; 3) Demonstrar os impactos do lixo no meio ambiente;
4) Informar sobre o valor social e ambiental do lixo; 5) Estimular a prática de consumo
consciente e a redução de volume do lixo; 6) Divulgar as soluções propostas pela PNRS. Em
resumo, tais diretrizes ressaltam os “impactos positivos” da coleta seletiva, como, por
exemplo, a conservação das riquezas naturais e promoção de “dignidade e renda” para os
catadores. Além disso, atentam para impactos negativos da destinação incorreta, como, por
exemplo, a contaminação de lençóis freáticos, poluição do solo e proliferação de doenças, e
salientam como a mudança de comportamento influencia este processo (Idem).
Apesar de uma das diretrizes da campanha apontar para disseminação das informações
sobre a PNRS, que coloca a divulgação da logística reversa como uma das principais
informações, suas peças publicitárias pouco esclarecem sobre tais termos ou sobre os debates
de mercado que ocupam as pautas do debate público.
riscos à saúde pública e à segurança e a minimizar os impactos ambientais adversos” (Lei nº 12.305/10,
CAPITULO II, Art. 3º, inciso VII).
213
Peças publicitárias da campanha “SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA”
214
CAMPANHA SEPARE O LIXO E ACERTE NA LATA – Minsitério do Meio Ambiente
Fonte: http://www.separeolixo.com/. Acesso em: 14 nov. 2012
Figuras 21-22-23-24
215
Outras campanhas, em âmbito nacional, regional ou municipal, adotam a mesma
estratégia de divulgação e orientação de condutas ambientalmente corretos sobre a gestão de
resíduos e, em sua maioria, destacam em suas estratégias de marketing os benefícios sociais,
econômicos e ambientais. Argumentos como a inclusão social de catadores, o mercado
crescente dos materiais recicláveis, veiculados por termos como “Luxo do lixo”, e a economia
das riquezas naturais e consequente preservação ambiental são entrecruzados na busca desta
mudança de conduta da população.
Estes materiais se assemelham pela divulgação de novos valores “ambientalmente
adequados”, mas pouco informam a população sobre os interesses que movimentam a
indústria da reciclagem, em grande expansão no Brasil. Presencia-se a produção de um modo
de (a)parecer ecológico que produz visibilidades de conduta, nos moldes do que foi
apresentado como estratégias de Educação Sanitária, no início do século XX, quando Bannitz
avalia os benefícios de investir em campanhas publicitárias “que pela variedade e abundância
das pessoas catequizadas resulta efetivamente barato” (BANNITZ, 1943, p. 32).
Há outros debates que ainda continuam com suas negociações abertas como, por
exemplo, a questão do pagamento por serviços ambientais urbanos, realizados pelos
catadores, para que deixem de ser vistos como um segmento da população a ser socialmente
incluída e se transformem em profissionais remunerados pelos serviços prestados. Ou, ainda,
os debates sobre a definição dos modelos de gestão, bem como as devidas atribuições de
custos para cada setor da cadeia de logística reversa87, que não se apresentam para o grande
público, restando-lhe apenas sua participação individual como consumidor competente na
separação ambientalmente adequada dos resíduos domésticos e na aprendizagem dos novos
códigos de conduta.
As inúmeras cartilhas oferecem a lista de novos hábitos a serem praticados,
considerando as emergentes dificuldades ambientais:
87
Em 2012, o Ministério do Meio Ambiente lança um edital que dispõe sobre o intitulado “Chamamento para a
elaboração de acordo setorial para a implementação de sistema de logística reversa de embalagens em geral”.
Este edital “torna público o CHAMAMENTO de fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de
embalagens e de produtos comercializados em embalagens (...) para a elaboração de proposta de acordo setorial
para a implementação de sistema de logística reversa de abrangência nacional”. Este instrumento legal convoca
os diferentes setores industriais e comerciários a elaborar um plano de coleta das embalagens produzidas e
comercializadas, de modo a viabilizar a logística reversa (Edital 02/2012 – MMA).
216
FIGURA 25: TRANSFORME SEUS HÁBITOS – Cartilha Recicloteca 1998
Fonte: http://www.recicloteca.org.br/images/movel_cultura.pdf. Acesso em: 15 nov. 2012
Observa-se, portanto, a produção destes códigos morais por órgãos governamentais,
indústrias, entidades intergovernamentais, movimentos sociais e de sociedade civil
organizada, que tenham como objetivo produzir um regime de verdade nos hábitos da
população em escala planetária (conforme a ilustração do quadro acima, em que o símbolo de
reciclagem envolve todo o planeta: destinar seus resíduos de modo adequado constitui um ato
político, ou politicamente correto, para salvar o planeta). Com as propagandas sobre os
benefícios de embalagens como o plástico e o vidro, afirma-se que o problema não está no
sistema de produção e consumo promovido pelo capital, mas nas (i)responsabilidades
individuais. Nesta direção de sentido, cada sujeito sente-se responsável pela salvação ou
destruição do planeta em seus aspectos econômicos, sociais e ambientais.
Faz-se ainda notar que, dentre os métodos mais conhecidos para tratar a questão do
excesso de geração de resíduos, a reciclagem se faz predominante em detrimento de outras
estratégias, como, por exemplo, a de redução de consumo, ao contrário do que faz parecer o
quadro acima. A questão da necessidade de mudança nos padrões de consumo teve suas
217
disposições registradas também pela Agenda 21 na ECO-92, cujo programa indica duas áreas
principais, além de indicar este tema como transversal à gestão de resíduos: a) Exame dos
padrões insustentáveis de produção e consumo; b) Desenvolvimento de políticas e estratégias
nacionais de estímulo a mudanças nos padrões insustentáveis de consumo (Agenda 21, 1992,
Capítulo 4, itens 4.1. e 4.2.). Conceitos como o de consumo responsável e consumo
consciente surgem como resultado de tais disposições. No entanto, estas questões estão
voltadas para uma redistribuição do padrão de consumo e não propriamente em sua redução.
No capítulo anterior, ponderou-se que o fundamento da razão governamental, nos
preceitos da economia política, se apoia na avaliação sobre a viabilidade e efetividade (no
sentido sucesso/fracasso) de uma determinada ação de governo e não, como se poderia pensar,
em sua legitimidade ou em seu valor moral na sociedade. Nesta direção, abrem-se os
seguintes questionamentos: como se faz necessária uma ação de Educação Ambiental com
conteúdo prioritariamente moral na produção de uma conduta ambientalmente adequada? De
que modo se define esta estratégia em que se veiculam discursos sobre uma conduta que se
pretende legítima perante a sociedade, ao invés de se colocar como eficaz?
Michel
Foucault
auxilia
nesta
compreensão
entre
uma
demanda
de
governamentalidade e a produção de condutas para sua viabilização. Para o autor de
Nascimento da Biopolítica, no contexto da economia política, a intervenção no real se efetiva
no processo de individualização do par “série de práticas/regime de verdade” para o resultado
mais adequado. Tal resultado define-se pela produção de um homo oeconomicus, em cujo
processo de formação, quanto mais o sujeito responde ao conjunto de variações do meio, mais
manejável, mais eminentemente governável ele se torna (FOUCAULT, 2008b, p. 369). Este
conjunto de respostas às modificações inseridas artificialmente no meio configura-se na
economia das técnicas governamentais, ao modo de Skinner, inscritas no registro estímuloresposta, principalmente nas técnicas de reforço a condutas positivas para manutenção da
razão governamental:
O homo oeconomicus é aquele que aceita a realidade. A conduta
racional é toda conduta sensível a modificações nas variáveis do meio e que
responde a elas de forma não aleatória, de forma, portanto, sistemática e a
economia poderá, portanto, se definir como a ciência da sistematicidade das
respostas variáveis do ambiente (FOUCAULT, 2008b, p. 368).
Esta aliança entre a economia e o ambiente, racionalidade econômica e intervenção no
ambiente, é do que trata a Declaração sobre o Ambiente Humano (1972) e as cúpulas globais
subsequentes. O trajeto do aprimoramento de estatutos sobre uma economia das condutas para
218
ótimo aproveitamento dos recursos ambientais envolve: “problema de identificação do objeto
da análise econômica a toda conduta (...) que implique uma alocação ótima de recursos raros a
fins alternativos” (FOUCAULT, 2008b, p. 366).
No novo esquema de gestão de resíduos, o objetivo não é a preservação ambiental,
mas a preservação da extração das riquezas naturais. Os negócios mundiais operam na lógica
do sistema de capital, enquanto o discurso e as práticas ambientais atuam na modificação das
variáveis do meio. Embora o objetivo seja a atualização para modulação das relações de
capital, como no caso das commodities ambientais, a promoção das relações ambientalmente
adequadas dissemina-se como código de conduta populacional.
Trata-se da promoção de condições de mercado como interesse individual e efetivação
de condutas ambientais como interesse comum. Foucault esclarece sobre esta diferença entre
sujeito do interesse individual e sujeito do interesse comum: “O homo oeconomicus é aquele
que obedece a seu interesse, é aquele cujo interesse é tal que, espontaneamente, vai convergir
com o interesse dos outros” (FOUCAULT, 2008b, p. 369). Como conciliar a produção da
preservação ambiental como interesse comum em convergência com o interesse privado
neoliberal é o cerne das novas práticas e discursos sobre o desenvolvimento sustentável, surge
“a idéia de um sujeito de interesse, ou seja, um sujeito como princípio de interesse, como
ponto de partida de um interesse ou lugar de uma mecânica de interesses” (Idem, 2008b, p.
372).
A sociedade civil efetiva-se no vínculo econômico, que vai ser o conceito de
tecnologia governamental e de efetivação desta grade de inteligibilidade veiculada para
racionalidade do homo oeconomicus:
O homo oeconomicus e a sociedade civil são, portanto, dois elementos
indissociáveis. O homo oeconomicus é, digamos, o ponto abstrato, ideal e
puramente econômico que povoa a realidade densa, plena e complexa da
sociedade civil. Ou ainda: a sociedade civil é o conjunto concreto no interior
do qual é preciso recolocar esses pontos ideais que são os homens
econômicos. Para poder administrá-los convenientemente. Logo, homo
oeconomicus e sociedade civil fazem parte do mesmo conjunto, o conjunto
da tecnologia governamental liberal (FOUCAULT, 2008b, p. 403).
Essa sociedade civil opera não pelo bem da humanidade, mas pelo bem da
comunidade, do vínculo em si e não do objeto de vínculo, portanto, de vínculo por um
interesse desinteressado, soma das satisfações individuais no próprio vínculo social: “não se
pode falar de um indivíduo, não se pode imaginar, não se pode conceber que um indivíduo
219
seja feliz se o conjunto de que ele faz parte não for feliz. (...) a felicidade dos indivíduos é o
grande objeto da sociedade civil” (Idem, p. 408).
Para a produção destas satisfações individuais no próprio vínculo social, produz-se um
contraste entre o fatalismo causado pelo persistente amontoamento de excesso de resíduos
versus sua potencialidade econômica e o reformismo de sua noção de desenvolvimento
sustentável. Uma tensão entre morte e vida paira sobre o plano das imanências e não mais das
transcendências. Uma tensão que não se opera mais entre a vontade divina e a vontade
humana, mas sim entre a vontade global, a vontade do Estado e a vontade do indivíduo.
As práticas e discursos, produzidos pela experiência da reciclagem, se assemelham à
função da medicina social e sua intervenção higienista, cuja pretensão consiste em prolongar a
vida urbana em detrimento dos males cultivados pelos aglomerados populacionais, como no
caso das catástrofes epidêmicas e da miséria social. O antropólogo José Carlos Rodrigues faz
reflexão semelhante ao dar prosseguimento em sua pesquisa sobre o lixo como invenção
social e sua relação entre vida e morte:
Quando se fala em reciclagem de lixo, em reaproveitamento, em
reatribuição de vida àquilo que estaria fadado à degradação completa,
realiza-se, nesse domínio específico, algo análogo ao que, no território da
morte, fazem os procedimentos médicos de prolongar o processo de morrer e
essas técnicas de congelamento (criogenização), que pretendem interromper
e paralisar a tanatomorfose, na esperança de que venha a ser possível, mas
não se sabe quando, fazer reviver àquele que estava fadado à morte: uma
espécie de reciclagem de cadáver, parecida com reciclagem do lixo.
Há mais ainda a aproximar lixo e morte. Sabemos ser um problema
ainda não resolvido na sociedade industrial o fato de o lixo trazer à
lembrança o espectro do fim: simplesmente porque quanto mais sociedade
industrial necessariamente mais restos, mais resíduo da reciclagem resta em
longo prazo e, por conseguinte, mais lixo (RODRIGUES, 1995, p. 13).
Independente da eficácia ou não do que promete a reciclagem, quanto à conservação e
manejo das riquezas naturais, o ponto de análise não está nos resultados social, econômico e
ambiental, pois os mesmos configuram-se, na verdade, como planos de ação para a efetivação
de outro resultado: a manutenção de um governo para a correta disposição das coisas,
conduzidas a um fim adequado (FOUCAULT, 2008, p.127).
A força deste novo mercado, a reciclagem de lixo, capaz de conjurar populações para a
recondução de seus hábitos e modos de vida, não se encontra propriamente em sua capacidade
de conservação e regeneração dos recursos naturais; encontra-se no compartilhamento de um
tipo de sentimento que flerta com uma espécie de vontade de eternidade material.
220
Eternidade que não resulta mais da crença de uma alma humana e transcendente,
tampouco se reduz como outrora à manutenção da alma artificial de Leviatã. Este sentimento
de medo e afastamento do fim, (re)sentimento da promessa de eternidade cristã, trata agora da
conservação das matérias de que é feita as commodities ambientais, da proteção dos bens
ambientais, já que o homem encontra a plenitude de sua liberdade dentro da Natureza. Uma
força capaz de reunir o rebanho em nome de um mesmo sentimento: a eficácia no manejo
integrado do ciclo vital dos bens de consumo da sociedade humana.
Viu-se, ao longo da pesquisa, que o sistema de produção de resíduos na sociedade
moderna torna-se problemática não apenas na mudança de hábitos individuais, mas na
experiência deste projeto da modernidade e suas diferentes modulações para a manutenção e o
desenvolvimento desta alma artificial em escala planetária. A salvação e a promessa da
eternidade não da alma de cada um, mas da alma artificial da Biosfera. Todavia, este novo
modo de salvação não gera a demanda por grandes revoluções estruturais, bastando-se na
adequação da distribuição de riquezas que minimize a pressão ambiental88.
O sistema da reciclagem na contemporaneidade como governo das populações opera,
por fim, em três planos principais de ação determinados pelas agendas ambientais globais:
atuação sobre o mercado de novos capitais, no caso de commodities ambientais; atuação sobre
a cadeia produtiva específica da reciclagem, considerando os aspectos sociais em seu
desenvolvimento; e produção de condutas e, portanto, de modos de produção de
subjetividades que integrem esta transposição da economia política neoliberal, para aspectos
socioambientais de governo de si e dos outros.
Em termos mais efetivos, o sistema de geração de novos mercados, como o modelo de
reciclagem e da logística reversa, congrega diferentes atores e ações responsáveis pela
problemática em questão, apresentando um modo de intervenção mais amplo e, ao mesmo
tempo, mais capilar do que apenas a mudança dos hábitos individuais, como faz acreditar as
campanhas e propagandas ambientais.
88
Uma das disposições sobre as mudanças nos padrões de consumo ainda dispõe sobre a necessidade de
nivelamento mínimo dos estilos de vida: “Embora em determinadas partes do mundo os padrões de consumo
sejam muito altos, as necessidades básicas do consumidor de um amplo segmento da humanidade não estão
sendo atendidas. Isso se traduz em demanda excessiva e estilos de vida insustentáveis nos segmentos mais ricos,
que exercem imensas pressões sobre o meio ambiente” (Agenda 21, Capítulo 4, item 4.1., 1992).
221
8. CONSIDERAÇÕES INTEMPESTIVAS
O contemporâneo é o intempestivo.
Roland Barthes apud Giorgio Agamben
Colocar em perspectiva os diferentes modos de aparecimento do lixo, dispersos nas
estratégias de governo das condutas, permite a realização de um diagnóstico do presente que
questiona, na história dos acontecimentos, uma noção de verdade.
Problematização de uma vontade de verdade que, ao produzir as utopias corpóreas e
biosféricas de saúde e preservação ambiental, acabam por subjugar e neutralizar as forças
inerentes ao cotidiano paradoxal das cidades. Este regime de verdades, aliado à inscrição de
práticas para sua efetivação, excluem de seus projetos de efetivação aquilo que Nietzsche
considera inerente ao homem, ou seja, suas mundaneidades, suas fragilidades, seus fedores,
suas moléstias. Características sob as quais, conforme o filósofo alemão, continuamos
“sempre ausentes” (Nietzsche, 1998 [1887], p. 7). Como efeito, ocorre o insistente
melhoramento deste ideal de homem mobilizado para deslocá-lo daquilo que lhe é tão
característico: sua finitude e a finitude das coisas ao seu redor.
Em contraposição, a noção de acontecimento traz para o campo de análise o uso da
história como um instrumento para problematizar o que, aparentemente, não é passível de
problematizações. Tal posicionamento permite questionar o ato automático e cotidiano de
jogar o lixo no lixo e inquietar-se diante desta aparente inexistência de discurso entre o ato
(humano) e a coisa (lixo). Pesquisa do desassossego motivada pelas limitações de uma análise
não centrada apenas nas noções totalitárias de sujeito ou de objeto, mas condicionada à
fagulha que se produz na instantaneidade dos encontros; àquilo que não se apreende na
materialidade absoluta dos corpos; o fugidio; ou seja, “filosofia do acontecimento [que]
deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporal”
(FOUCAULT, 2005 [1970], p. 58).
A amplitude e diversidade dos documentos analisados e uma descrição implicada
diretamente nas práticas que circunscrevem o tema permitiram uma fuga aos lugares comuns
e uma crítica aos clichês que produzem a nebulosidade das verdades inquestionáveis, fazendo
desvelar seus paradoxos, de modo a impossibilitar afirmações ou respostas finais e totalitárias.
As evidências que se extraem, a partir desta estratégia metodológica, proporcionam o
mapeamento de normas e códigos de conduta produzidos por racionalidades pertencentes aos
mecanismos de governo das populações. A análise descritiva das condições de possibilidade
222
de aparição do lixo na cidade moderna oferece, ao âmbito de sua dispersão prático-discursiva,
uma direção paradoxal de análise na ordem de seus acontecimentos, múltiplos e
complementares, dentro do plano de gestão dos insuportáveis.
Primeiro paradoxo: tolerar o insuportável
Ao longo deste estudo foi possível visualizar duas principais estratégias de aglutinação
de discursos e práticas. A primeira sedimentada no extrato da urbanização e higienização das
cidades, tendo como produto a construção do dispositivo médico-social. Assim, o sujeito é
educado a considerar seus restos como produto insuportável para a convivência e, portanto,
produto a ser encerrado na novidade das lixeiras. Processo de invisibilidade do lixo em suas
sensações mais mundanas de odor e putrefação.
Todo resultado deletério das relações humanas, todo aquele resíduo, em que a
civilização moderna tropeçava nas cidades medievais e renascentistas, é expurgado
temporariamente de nosso campo de percepção. Mas, para cada invisibilidade, outro campo
de visíveis se materializa e organiza-se para dirimir o modo de relação com os restos. Relação
de insuportabilidade materializadas nos conceitos de miséria, morte, desaparecimento e
esquecimento, atribuídos àquilo que se produz como a inutilidade persistente e crescente
resultantes da vida moderna.
Em outro plano, a gestão do lixo acena para outro processo de aglutinação de práticas
e discursos que se encontra em plena construção no contemporâneo. Neste plano de análise, o
lixo apresenta um novo registro de aparição, atravessado por outro modo de operar a razão
governamental. Por sua condição contemporânea, uma racionalidade por vezes espectral89,
mas nem por isto, carente de contundências. No exercício de compreender a efetividade de
um dispositivo que opera sobre o meio, o corpo deixa de ser extensão da urbs para se tornar
extensão da biosfera.
A partir do ato de jogar o lixo no lixo até o ato de reciclar percebe-se um desses
paradoxos pertencente ao mesmo projeto de modernidade. Na primeira ação, conduzida pelo
que lhe há de insuportável, o lixo é excluído dos sentidos, encerrado nas lixeiras,
transportados na escuridão noturna e enterrados em lixões. No contemporâneo, o lixo também
desaparece e outro campo de visíveis é colocado em seu lugar. Todavia, de insuportável o lixo
se torna tolerável perante as exigências do desenvolvimento do capital e da urgência de sua
89
Espectro: (substantivo masculino) 1. suposta aparição de um defunto, incorpórea, mas com sua aparência;
fantasma; 2. evocação obsedante. Ex.: o e. do passado; 3. coisa vazia, falsa; ilusão. Ex.: o e. da
glória (HOUAISS, 2001).
223
sustentabilidade. Do podre encerrado na lixeira, para privar nossas narinas das emanações
mefíticas, verifica-se um processo de esterilização que recodifica o lixo para a forma inodora
ou, até mesmo, perfumada do reciclável, insere-o no mercado de produção e o traz de volta às
luzes da cidade. Invisibilidade a partir da desintegração em múltiplas visibilidades, menos
insuportáveis, mais tolerantes e agradáveis aos sentidos. Pois, enquanto o insuportável oscila
no eixo exclusão/inclusão, o tolerável é agregador em todas as suas formas, modula-se
conforme as urgências e suporta a diferença desde que seja viável ao projeto de governo.
Trata-se,
portanto,
não
propriamente
de
substituição,
mas
de
coexistência
e
complementaridade entre as tecnologias médico-sociais e as tecnologias ambientais para
efetivação da governamentalidade.
Na forma resíduo, o dispositivo do meio ambiente registra um novo campo de
visibilidades sobre os restos, apoiado pela trama de práticas e discursos ecológicos que o
circunscrevem, por exemplo, os conceitos de reciclagem, inclusão social e conservação dos
recursos naturais. Não é mais apenas o corpo uma utopia, mas todo o meio terráqueo. Utópico
tanto em suas visões apocalíticas e promessas de fim de mundo, quanto em seus gritos pela
preservação ambiental. Por consequência, a vida urbana complementa-se com as tensões
urgentes da vida ecológica.
O modo de individualização desta estratégia reflete-se nos movimentos ecológicos,
nas condutas ensimesmadas e paliativas de conservação de recursos naturais, que modula,
talvez não o sistema de produção do capital propriamente dito, mas o discurso sobre padrões
de consumo mais aceitáveis, por meio das escusas ambientalmente adequadas. Produção das
artes de governar as matérias que constituem as relações entre os homens e as coisas.
Se a crença na transcendência e a esperança de uma alma eterna morreram a mais de
um século, em seu lugar surge a ciência da imanência e a promessa de eternidade da espécie
pela preservação e conservação da biosfera. A compreensão é de que as coisas não morrem,
mas recicla-se a matéria. É mais que preservação, trata-se de intervenção na matéria, ao ponto
de afirmar uma imortalidade da matéria, ou seja, do que aí está. Eternidade da imanência e
não da transcendência; não mais pela religião, mas pelas vias do capital e seu
desenvolvimento sustentável. Estaríamos então frente ao surgimento de uma nova ascese?
Segundo paradoxo: desmistificar e mistificar a natureza como jogo da modernidade.
A iminência das problematizações proferidas pelo dispositivo da medicina social e
suas estratégias de gestão do lixo têm como efeito a inscrição do sujeito no campo da
educação sanitária. Este campo de ação promove os aspectos biológico, social e moral como
224
linhas de efetivação de condutas que marcam um estilo de governo das populações. Assim,
este conjunto de normas e códigos de conduta concentra-se na produção de uma
normatividade de promoção da saúde no corpo (biológico), na cidade (social) e no indivíduo
(moral).
Em consequência, o mecanismo da educação sanitária, na insuportabilidade da
experiência das mortes em massa causadas, por exemplo, pelas pestes, promove a
reorganização dos aglomerados populacionais, de modo a adequá-los devidamente nos novos
espaços urbanos. Por efeito, gera-se um repertório de saberes, valores, procedimentos,
técnicas, instituições, leis, informações e conceitos capazes de produzir a “curva normal” da
conduta saudável. Este produto da modernidade, a conduta saudável como tecnologia de
governo, se converte numa das vias para a expansão da governamentalidade do processo
civilizatório ocidental.
Na construção de um dispositivo que atua no meio ambiental, o princípio de
sustentabilidade do sistema de mercado de capitais é, justamente, a estratégia de geração de
novos mercados. Esse plano de ação não se apoia apenas nos aspectos biológico, social e
moral, mas também nos pilares econômico, social e ambiental. A reciclagem, na qualidade de
commodity ambiental (potencial de moeda internacional), sinaliza para a produção de um
novo conjunto de governo das condutas. Não determina, mas oferece pistas, para
compreensão deste dispositivo que institui um modo global de sustentabilidade para o
capitalismo. Esboça o desenvolvimento sustentável como mais uma técnica de governo na
modernidade, com seus próprios produtos, formas de pensar e estilos de vida, em que a
população deverá aderir para seu próprio bem viver.
No efeito desta dobra, coloca-se em evidência outro aparato de leis, normas e códigos
de conduta negociados nas relações intergovernamentais. Tais códigos de conduta são agora
ancorados não mais no risco produzido pelo tripé doença/urbanismo/bem-estar, mas na tríade
desastre ambiental/capital mundial/sustentabilidade.
Portanto, desmistificação da podridão ao ser decodificada no eixo saúde-doença e
codificação na forma resíduo pelas tecnologias de reciclagem e preservação ambiental, que
produz nova mistificação de um futuro melhor a partir da gestão dos restos.
Este processo de desmistificação e mistificação da natureza como jogo da
modernidade, caracteriza-se como ideia central das tecnologias de governo das condutas,
sejam elas econômicas, sociais, ambientais, políticas, subjetivas ou morais. Produção do risco
de fim da espécie humana pela doença que emana do pútrido e posterior mistificação de um
futuro melhor para a preservação da espécie pelo uso sustentável dos restos.
225
Terceiro paradoxo: governar o ingovernável
As personagens que vivem do lixo nas suas diferentes configurações, desde os
trapeiros, passando pelos tigres, os carroceiros e os catadores de papel, até chegar à nova
personagem do mercado ambiental, os catadores de materiais recicláveis, configuram também
efeito paradoxal entre o dispositivo médico-social e o dispositivo ambiental. Nem elogio, nem
elegia às personagens do lixo, mas o registro de um “fora” que torna visível as delimitações
do governo das condutas. Este exercício descritivo, em que narrativas sobre diferentes
personagens do lixo entrelaçam-se e resultam no tracejo de uma linha de análise, cadenciada
pela trajetória dos sujeitos que vivem do e no lixo e que, na própria expressão de vida
(ingovernável), se torna ininteligível aos campos de racionalidade governamentais.
A análise destas personagens, homens infames que nunca poderiam sair da noite,
evidenciam efeitos desta tensão entre a emergência de formas ingovernáveis de vida e
produção de formas de racionalidades.
Neste recorte, emergem dois acontecimentos marcados na trajetória das personagens
do lixo. O primeiro diz respeito aos protestos articulados pelos carroceiros (assim como os
trapeiros, garrafeiros, papeleiros ou sucateiros) na virada do século XX. Estes trabalhadores
das ruas, responsáveis pela recolha do lixo dos domicílios cariocas, exerciam seu trabalho em
contato (e contrato) direto com os citadinos, por meio de pagamento de seus serviços. Esse
contato produzia uma relação direta, constantemente minada pela administração pública que
ensaiava a produção de um aparato jurídico em favor da monopolização do lixo. O poder de
organização destes carroceiros, vistos pelas autoridades públicas contraditoriamente como
manifestação caótica, tiveram por muitas vezes o apoio dos moradores que jogavam seu lixo
nas ruas a cada protesto. Tem-se, portanto, o registro de um movimento instantâneo e não
permanente, tampouco progressivo, de resistência, articulado nas ruas e na conformidade de
sua necessidade. Verificam-se, assim, resistências efêmeras que se desarticulavam
rapidamente após cada boicote apresentado pelas novidades jurídicas de tentativa de
organização do sistema de remoção do lixo.
Na virada para o século XXI, percebe-se outra forma de mobilização destes mesmos
trabalhadores do lixo responsáveis pela remoção dos restos domiciliares e fabris. No formato
de movimento social e identitário, observa-se o processo de positivação destes atores, assim
como acontece com a matéria de sua subsistência. Estrutura de fortalecimento da categoria
apresentada não como resistência, mas como um projeto de poder que legitimaria lideranças
políticas permanentes, ou como um ator de mercado que tem o direito de ter reconhecido seu
226
valor econômico e ambiental. Trata-se da estratificação de uma identidade que permite sua
inclusão no sistema de mercado, por meio de suas organizações produtivas, o que não implica
o reconhecimento de seu modo de vida, nômade e caótico.
Não se trataria, portanto, do reconhecimento das personagens históricas do lixo, mas
em mais uma tentativa de sua extinção. Tentativa de tornar tolerável uma diferença que insiste
em transitar pela cidade a partir de sua organização, pois a diferença é passível de tolerância
desde que haja controle. Prova disto são as estratégias de sua nomeação, como catadores de
materiais recicláveis, coletores, ou de agentes ambientais e de limpeza. Assim como o lixo,
suas personagens sofrem este processo de desintegração, transmutação e materialização de
espectros menos insuportáveis e mais toleráveis.
Quarto paradoxo: Não há resistências a serem perseguidas?
Para Foucault, em seu texto O que são as Luzes? (2008c), existem duas formas de
pensar a modernidade: a primeira coloca a condição moderna como saída de uma menoridade
para o atingimento de uma maioridade, sobre o uso público da razão. Para Kant, conforme
Foucault, a menoridade implicaria na expressão: “Obedeçam, não raciocinem”; enquanto que
a expressão que simboliza a maioridade da humanidade seria: “Obedeçam e vocês poderão
racionar o quanto quiserem” e se ofertar a forma de governo que quiserem. (p. 338-339).
O que parece é que esta organização do lixo aliado às condutas humanas respeita este
caminho da razão moderna. Tanto as novas condutas ecológicas como o processo de
organização dos catadores e sua inserção no mercado, bradam pela conservação ou
preservação do meio, ou seja, do que está posto. “Obedeçam e vocês poderão racionar o
quanto quiserem”.
Ao conceito de sustentabilidade ambiental, modulável, aderem tantos as práticas e
discursos industriais como práticas e discursos das organizações de catadores. A
responsabilidade compartilhada, mais democrática e, por consequência, mais tolerável,
pretende agregar o máximo de expressões possíveis numa estratégia de anulação de suas
forças e, consequentemente, viabilização da governamentalidade.
Mas para Foucault, existe ainda outra maneira de pensar a modernidade como uma
atitude, um modo de pensar e um modo de relação que concerne à atualidade e que não
permite ao homem, sujeito e objeto de seu conhecimento, uma compreensão total de sua
atualidade, mas, por definição, em constante modificação e, por isto, finita, limitada e
instantânea. Uma atitude ético-estética que começa, inclusive com o ingovernável, assim
como no caso dos carroceiros do Rio de Janeiro. Ou ainda, como nos trapeiros de Baudelaire,
227
parceiro de Foucault para caracterizar a atualidade moderna e sua potência de heroificação
irônica do presente e transfiguração do real para a invenção de um si mesmo para si próprio.
(Idem, p. 342-344).
***
Esta nova configuração do lixo – de suas excrescências e de suas personagens em
substâncias e atores, não mais insuportáveis, porém, mais toleráveis no governo das
populações – encontra-se na efervescência de sua aplicação na atualidade, logo, sujeito a
intempéries90. Por esta condição, o movimento que se articula para a anulação dos paradoxos
no contemporâneo encontra-se em pleno processo de materialização. Portanto, este
mapeamento das estratégias de aglutinação de práticas e discursos limita-se a apontar para
determinadas urgências possivelmente inerentes a um dispositivo ambiental, mas que não
pretende esgotar suas possibilidades de efetivação no governo das condutas.
90
Esta pesquisa não contemplou, por exemplo, o conjunto de documentos e relatórios confeccionados a partir do
último encontro das agendas ambientais globais, o Rio+20, ocorrido em junho de 2012, que sinalizam para um
reconhecimento internacional do modelo brasileiro de manejo de resíduos com inclusão dos catadores de
materiais recicláveis em parceria com as estratégias de Logística Reversa capitaneadas pelas indústrias, a partir
do conceito de responsabilidade compartilhada. Esta articulação para forjar as técnicas brasileiras de gestão de
resíduos em um modelo internacional vem sedimentar algumas estratégias de governo analisadas neste estudo,
como no caso dos efeitos de exportação de uma tecnologia da miséria como estandarte de sustentabilidade
mundial. Outras técnicas de gestão de resíduos a derivarem-se dos acordos efetuados pelo Rio+20 devem servir
de fonte para análise futura nos estudos sobre o governo das condutas e a relação do sujeito contemporâneo com
seus restos.
228
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