Janeiro – Março/2015
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Janeiro – Março/2015
EDITORIAL Sobre hipertensão arterial e pé diabético On arterial hypertension and diabetic foot Nesta edição, são abordados dois temas passíveis de ser diagnosticados e receber orientação adequada no contexto do atendimento primário – Hipertensão Arterial (1) e Pé Diabético (2). Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é um problema grave de saúde pública no Brasil e no mundo. É um dos mais importantes fatores de risco para o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, cerebrovasculares e renais. A HAS é responsável por aproximadamente 40% das mortes por acidente vascular cerebral, 25% das mortes por doença arterial coronariana e, em combinação com o diabetes, 50% dos casos de insuficiência renal terminal. Com o critério atual de diagnóstico de hipertensão arterial (PA 140/90 mmHg), a prevalência na população urbana adulta brasileira varia de 22,3% a 43,9%, dependendo da cidade onde o estudo foi conduzido (3). Modificações de estilo de vida são de extrema importância no tratamento e na prevenção da hipertensão. Redução no consumo de sal, controle do peso, prática de atividade física, tabagismo e uso excessivo de álcool são fatores de risco que devem ser controlados, sem o que, mesmo doses progressivas de medicamentos não resultarão alcançar os níveis recomendados de pressão arterial. Apesar dessas evidências, hoje, incontestáveis, esses fatores relacionados a hábitos e estilos de vida continuam a crescer na sociedade, levando a um aumento contínuo da incidência e prevalência da HAS, assim como do seu controle inadequado. A despeito da importância da abordagem individual, cada vez mais se comprova a necessidade da abordagem coletiva para se obter resultados mais consistentes e duradouros dos fatores que levam à hipertensão arterial (3). É preciso ter em mente que a manutenção da motivação do paciente em não abandonar o tratamento é, talvez, uma das batalhas mais árduas que profissionais de saúde enfrentam em relação ao paciente hipertenso. Para complicar ainda mais a situação, é importante lembrar que um grande contingente de pacientes hipertensos também apresenta outras comorbidades, como diabetes, dislipidemia e obesidade, o que traz implicações importantes em Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 1-3, jan.-mar. 2015 termos de gerenciamento das ações terapêuticas necessárias para o controle de um aglomerado de condições crônicas, cujo tratamento exige perseverança, motivação e educação continuada (3). Pé Diabético é o termo empregado para nomear as diversas alterações e complicações ocorridas, isoladamente ou em conjunto, nos pés e nos membros inferiores dos diabéticos. A abordagem do membro inferior do paciente diabético não é desvinculada dos cuidados gerais (controle da glicemia, hipertensão, obesidade, dislipidemia, tabagismo, atividade física, alimentação), que são decisivos para melhorar a qualidade de vida e aumentar a sua sobrevida. O pé diabético é uma entidade com fisiopatologia complexa e de prevalência elevada. Sua prevenção e controle dependem de ações educativas e interações multidisciplinares (4). O objetivo fundamental da atuação relativa ao pé diabético é evitar a amputação, através do reconhecimento do risco e da intervenção imediata. O estabelecimento de programas e projetos que privilegiem a educação dos profissionais de saúde, dos pacientes e seus familiares tem importância primordial nas estratégias de controle da hipertensão arterial e da redução das internações e amputações de diabéticos com complicações nos membros inferiores. RENATO B. FAGUNDES, MD PhD Editor Executivo REFERÊNCIAS 1. Nakashima L, Trevisol FS, Sebold FJG, Della Jr AP, Pereira MR, Trevisol DJ. Prevalência da Hipertensão Arterial Sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC). Rev AMRIGS 2015; 59(1):4-9. 2. Thomazelli FCS, Machado CB, Dolçan KS. Análise do risco de Pé Diabético em um Ambulatório Interdisciplinar de Diabetes. Rev AMRIGS 2015; 59(1):10-14. 3. Hipertensão arterial sistêmica para o Sistema Único de Saúde/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Cadernos de Atenção Básica 16;2006. 4. CaiafaI JS, CastroII AA, Fidelis C, Santos VP, da Silva ES, Sitrângulo Jr CJ. Atenção integral ao portador de pé diabético. J Vasc Bras 2011; 10 (4) supl 2. 3 ARTIGO ORIGINAL Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Prevalence of systemic arterial hypertension in adults in the municipality of Tubarão, SC Leandro Nakashima1, Fabiana Schuelter Trevisol2, Fábio Jean Goulart Sebold3, Afonso Possamai Della Júnior4, Márcia Regina Pereira5, Daisson José Trevisol6 RESUMO Introdução: A hipertensão arterial sistêmica (HAS) é um dos problemas de saúde pública mais importante em todo o mundo. O diagnóstico precoce e a baixa adesão ao tratamento farmacológico continuam sendo os principais desafios no controle da doença. O objetivo deste estudo foi identificar a prevalência da HAS e os principais fatores associados em adultos do Município de Tubarão, Santa Catarina. Métodos: Estudo transversal com indivíduos adultos, de ambos os sexos, residentes no município. Os participantes foram submetidos à entrevista, antropometria e aferição da pressão arterial sistêmica. Resultados: Foram avaliados 367 indivíduos, adultos e a prevalência da HAS foi de 29,4%. Os fatores associados à HAS de forma independente foram idade avançada [RP = 2,32 (1,56-3,45) p<0001], obesidade [RP=2,29 (1,80-2,90) p<0001] e história familiar de HAS [RP=0,58 (0,40-0,84) p<0,001]. Dos entrevistados, 12,8% faziam uso de medicação anti-hipertensiva, entretanto não tinham controle pressórico satisfatório, e 15% dos participantes tinham o diagnóstico de HAS, porém não faziam uso de nenhum tipo de medicamento. Conclusão: A prevalência da HAS no estudo corrobora com os números do Ministério da Saúde quando comparados com outros estudos nacionais, indicando a necessidade de rastreamento e controle dos níveis pressóricos da população para reduzir as complicações relacionadas à doença. UNITERMOS: Prevalência, Hipertensão, Adulto. ABSTRACT Introduction: Systemic arterial hypertension (SAH) is one of the major problems of public health worldwide. Early diagnosis and poor adherence to drug treatment remain key challenges in controlling the disease. This study was designed to identify the prevalence of hypertension and associated factors in adults in the municipality of Tubarão, Santa Catarina. Methods: Cross-sectional study of adults of both sexes living in Tubarão. Participants were submitted to an interview, anthropometry, and blood pressure measurement. Results: A total of 367 adults were assessed and the prevalence of hypertension was 29.4%. Factors independently associated with hypertension were older age [OR = 2.32 (1.56-3.45) p <0.001], obesity [PR = 2.29 (1.80-2.90) p <0.001] and family history of SAH [OR = 0.58 (0.40-0.84) p <0.001]. Of the respondents, 12.8% were taking antihypertensive medication but had no satisfactory blood pressure control, and 15% had a diagnosis of SAH but did not use any medication. Conclusion: The prevalence of hypertension in the study corroborates the figures from the Ministry of Health as compared with other national studies, indicating the need for tracking and control of blood pressure levels in the population to reduce the complications related to the disease. KEYWORDS: Prevalence, hypertension, adult 1 2 3 4 5 6 4 Médico. Doutorado (Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde – UNISUL – e Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição.) Médico Residente em Anestesiologia. Médico. Mestrado pela Universidade do Extremo Sul de Santa Catarina. (Médica Cardiologista. Professora da UNISUL.) Doutor em Cardiologia e Ciências Cardiovasculares pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. (Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UNISUL e Coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição.) Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015 Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al. INTRODUÇÃO A Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) é provavelmente um dos problemas de saúde pública mais importantes nos países desenvolvidos e que apresenta uma grande magnitude nos países em desenvolvimento (1). A HAS tem alta prevalência, geralmente é assintomática, facilmente detectável, na maioria das vezes facilmente tratável e, muitas vezes, quando não tratada, acarreta complicações fatais (2). Em 90-95% dos casos, sua fisiopatologia é desconhecida, sendo tratada de forma inespecífica. Isso resulta em um grande número de efeitos colaterais menores e uma taxa relativamente alta (50-60%) de não adesão ao tratamento farmacológico (3,4). A HAS associa-se frequentemente a alterações funcionais e/ou estruturais de órgãos-alvo (coração, encéfalo, rins e vasos sanguíneos) e alterações metabólicas, com consequente aumento do risco de eventos cardiovasculares fatais e não fatais (5,6). Os principais fatores de risco para o desenvolvimento da HAS são a idade avançada (homens após os 55 anos e mulheres após os 65 anos); o tabagismo; as dislipidemias; diabetes mellitus e história familiar prematura de doença cardiovascular (1). Níveis elevados de pressão arterial (PA) são prejudiciais para todas as pessoas, independentemente da idade (5,6). No mundo, estima-se que a HAS acometa mais os homens. Há uma prevalência global de 37,8% em homens e 32,1% em mulheres (1,3). No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, a HAS é o principal fator de risco para as doenças cardiovasculares, e sua prevalência varia entre 22,3% e 43,9% entre adultos (7). O tratamento da HAS baseia-se em uma abordagem multiprofissional. A abordagem medicamentosa tem como principal objetivo a redução da pressão arterial sistêmica (PAS), a fim de diminuir a morbidade e a mortalidade por eventos cardiovasculares. É importante lembrar que apenas o tratamento medicamentoso não é suficiente para o tratamento e controle da HAS. A mudança no estilo de vida continua sendo fundamental para a diminuição da morbidade e mortalidade causada por eventos cardiovasculares (4,6). A importância deste estudo é decorrente da crescente prevalência da HAS em países em desenvolvimento. É uma doença silenciosa, que não manifesta sintomas em seus estágios iniciais e, quando não tratada nem controlada adequadamente, pode causar sérios riscos à saúde. A HAS é responsável por grandes índices de morbidade e mortalidade, e parte da população desconhece o diagnóstico da doença, não procurando auxílio médico adequado (2,5). Este estudo teve por objetivo identificar a prevalência da HAS e fatores associados em adultos em um município do Sul de Santa Catarina. MÉTODOS Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNISUL sob protocolo 11.130.4.01.III, em 24 de maio de 2011. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015 Estudo epidemiológico com delineamento transversal, de base populacional, para determinar a prevalência de HAS, bem como os fatores associados a esta doença, na população adulta residente do Município de Tubarão, Santa Catarina. Este projeto está aninhado no estudo ESATU (Estudo da Saúde de Adultos de Tubarão), em uma parceria entre o Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL) e Secretaria de Saúde de Tubarão. Os dados foram coletados entre novembro de 2011 e maio de 2012. Para o cálculo do tamanho da amostra, levou-se em consideração a população adulta do município, com 62.537 habitantes, uma prevalência média de 20% de HAS, com um nível de confiança de 95% e margem de erro de 1%, resultando em amostra mínima de 245 participantes. Foram incluídos indivíduos entre 18 e 59 anos, de ambos os sexos, residentes no referido município e que aceitaram participar de estudo mediante anuência do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram excluídos indivíduos impossibilitados de se deslocar ao Hospital Nossa Senhora de Conceição para coleta de dados e realização de exames laboratoriais. Os participantes foram selecionados a partir de amostragem aleatória simples, segundo os números da residência cadastrados em cada uma das 250 microáreas do município, registradas nas 27 unidades de estratégia de saúde da família (ESF). Cada microárea possui um agente comunitário de saúde para realizar visitas domiciliares periódicas, e a taxa de cobertura é estimada em 90% da população residente. A partir do sorteio da residência, o agente comunitário de saúde convidava o residente a participar do estudo, de acordo com os critérios de inclusão e exclusão. A coleta de dados aconteceu aos sábados, no período matutino, em ambulatórios médicos nas dependências do Hospital Nossa Senhora da Conceição, em consultas pré-agendadas aos participantes sorteados. Foi solicitado o comparecimento do paciente em jejum de 12 horas, e que se evitasse o consumo de bebida alcoólica nas 72 horas anteriores à consulta. Os pacientes também foram orientados a não fumar e ficar 20 minutos sentados antes da aferição da PA. Os participantes, após consentimento, foram submetidos à entrevista, e o instrumento continha dados sociodemográficos (idade, sexo e escolaridade), dados comportamentais (sedentarismo, alcoolismo e tabagismo) e clínicos (histórico de doenças cardiovasculares e uso de medicamentos). Foram considerados como tabagistas os indivíduos que fumaram 100 ou mais cigarros durante toda sua vida (8). Entre os adultos que afirmaram consumir álcool, foi aplicado o questionário CAGE (9). Para aferição do nível de atividade física, utilizou-se o Questionário Internacional de Atividade Física, versão curta (10,11). Foi realizada a aferição das medidas antropométricas (altura, peso) para determinação do índice de massa corporal (IMC), sendo considerados obesos indivíduos com IMC ≥ 30kg/m2. 5 Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al. A hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi avaliada utilizando os critérios propostos pela Sociedade Brasileira de Cardiologia, em sua Diretriz da Hipertensão do ano de 2010 (4), que consiste na realização de três medidas de PA com intervalo de um minuto entre cada aferição, com o equipamento OMRON HEM-742INT. Pacientes com HAS foram classificados quando apresentaram a média das aferições de pressão arterial sistólica e diastólica com resultados ≥140 ou ≥90 mmHg, respectivamente, ou em uso de medicamentos anti-hipertensivos. Para o cálculo de tamanho de amostra, utilizou-se o programa OpenEpi versão 2.3.1. Os dados coletados foram inseridos no programa Epidata versão 3.1 (EpiData Association, Odense, Denmark), e a análise estatística foi realizada no software Statistical Package for Social Sciences (SPSS for Windows v 19; Chicago, IL, USA). Os dados foram descritos com emprego da estatística descritiva, frequência e medidas de tendência central e dispersão. Para se verificar associação entre as variáveis de interesse, foi utilizada a razão de prevalência, sendo realizada análise multivariada pelo emprego da regressão de Poisson, com estimador robusto para controle dos fatores de confusão, com nível de confiança de 95%. RESULTADOS Dos 419 indivíduos convidados a participar do estudo, 376 compareceram ao local de coleta de dados. Destes, 9 foram excluídos. Assim, a taxa de não resposta foi de 12,4%. Foram avaliados 367 participantes, sendo 64% mulheres. A prevalência de HAS no estudo foi de 29,4%. Houve maior prevalência de HAS entre homens (39,4%) do que em mulheres (36,2%), mas a diferença não foi estatisticamente significativa. A Tabela 1 descreve as características da amostra e sua associação com HAS. Verificou-se que ocorreu o predomínio de adultos jovens, do sexo feminino, com situação conjugal estável. A raça branca também foi predominante na amostra. A grande maioria não fumava nem consumia bebidas alcoólicas. Referente à análise bivariada, houve associação entre HAS e as seguintes variáveis: faixa etária, situação conjugal, escolaridade, tabagismo, alcoolismo, obesidade e história familiar de HAS. Em relação à escolaridade, da população com oito anos ou menos de estudo que tinham o diagnóstico de HAS, 56 indivíduos (69,1%) faziam o uso regular de anti-hipertensivo contra apenas 25 (45,5%) que tinham mais de nove anos de escolaridade. Além disso, 12,8% usavam medicação anti-hipertensiva, entretanto não tinham controle pressórico satisfatório. Dos participantes que tiveram diagnóstico HAS, 15% não faziam uso de nenhum tipo de medicamento por desconhecer a doença ou por opção própria. A Tabela 2 apresenta a análise multivariada dos fatores associados à HAS. 6 DISCUSSÃO Foram considerados hipertensos os indivíduos que apresentaram pressão arterial sistólica maior que 140 mmHg, ou pressão arterial diastólica maior que 90 mmHg, ou faziam uso de algum medicamento anti-hipertensivo, independentemente da classe do fármaco. Ficou evidenciado que 29,4% da população estudada tinham HAS. Esses dados corroboram com os números da VI Diretriz sobre Hipertensão da Sociedade Brasileira de Cardiologia (4), com os dados do Ministério da Saúde (7) e com dados de outros estudos de base populacional do Sul do país (12). Em relação à prevalência da HAS quanto à faixa etária, a idade avançada foi considerada um fator associado de forma independente para o desenvolvimento da HAS. A prevalência aumentou de modo linear quanto maior a idade: 18% dos adultos entre 50 e 59 anos tinham o diagnóstico da doença, dados semelhantes ao estudo também de base populacional conduzido no Maranhão (13). A história familiar também foi considerada fator associado de forma independente à ocorrência de HAS. Sabe-se que a doença hipertensiva ocorre devido à expressão de diversos genes, os quais se manifestam diante da exposição ambiental (14,15). Pessoas de diferentes etnias apresentam grupos de diferentes genes que podem causar a hipertensão, atuando de maneira distinta para causar a HAS (16). Tudo isso é influenciado pelos hábitos dos grupos sociais em que convivem os indivíduos. Por isso, a importância de um tratamento individualizado, particularmente quando estamos falando de HAS em um país que mistura diversas etnias, como o Brasil. A obesidade também se associou de forma independente com a HAS. Pessoas com IMC maior que 25kg/m² apresentaram associação direta com a elevação dos níveis de PAS e PAD, e essa relação parece ser mais evidente em pessoas do gênero masculino (17,18). O mecanismo pelo qual o aumento da massa corporal interfere na alteração dos níveis de pressão arterial não é totalmente elucidado. Entretanto, sabe-se que não se trata apenas de um evento único e isolado e, sim, de uma associação de fatores relacionados à obesidade e à HAS, como aumento do consumo de sódio, redução da prática de exercícios físicos, resistência à insulina e outras alterações endocrinológicas (18). A raça, neste estudo, não foi considerada um fator associado à HAS, ao contrário de outros trabalhos que apresentam esta relação (6,12,13). É sabido que indivíduos afrodescendentes apresentam algumas particularidades quanto à captação, recaptação e excreção de eletrólitos, principalmente do sódio e do potássio (16). Isso também influencia na forma e eficiência da ação dos fármacos anti-hipertensivos (6). A inexistência da associação entre raça e HAS no presente estudo pode ser explicada pela pequena parcela de “não brancos” participantes do estudo devido à colonização europeia predominante na região, o que pode gerar pouco poder de estudo para encontrar diferença estatisticamente significativa. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015 Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al. Tabela 1 – Características sociodemográficas e sua associação com HAS entre os participantes do estudo. Tubarão (SC), 2012. Variável n(%) % de HAS RP (IC95%) Sexo Mulher 235 (64,0) 85 (36,2) 1,0 Homem 132 (36,0) 52 (39,4) 1,09 (0,83-1,43) 151 (41,1) 30 (19,9) 1,0 Idade 18-39 p 0,537 0,002 40-49 110 (30,0) 41 (37,3) 1,87 (1,25-2,80) 50-59 106 (28,9) 66 (62,3) 3,13 (2,20-4,46) Sem companheiro 115 (31,3) 29 (25,2) 1,0 Com companheiro 252 (68,7) 108 (42,9) 1,70 (1,20-2,4) >8 anos 187 (51,0) 56 (29,9) 1,0 0-8 anos 180 (49,0) 81 (41,0) 1,50 (1,14-1,97) Branco 316 (86,1) 117 (37,0) 1,0 Não Branco 51 (13,9) 20 (40,0) 1,08 (0,75-1,56) Sim 243 (66,2) 85 (35,0) 1,0 Não 124 (33,8) 52 (41,9) 1,20 (0,92-1,57) Nunca fumou 254 (69,2) 82 (32,3) 1,0 Fumante 113 (30,8) 55 (48,7) 1,51 (1,16-1,96) Não 337 (91,8) 122 (36,2) 1,0 Sim 30 (8,2) 15 (50,0) 1,38 (0,94-2,03) Não 269 (73,3) 70 (26,0) 1,0 Sim 98 (26,7) 67 (68,4) 2,63 (2,06-3,35) Não 95 (25,9) 20 (21,1) 1,0 Sim 272 (74,1) 117 (43,0) 2,04(1,38-3,08) Situação Conjugal <0,001 Escolaridade 0,003 Raça 0,681 Trabalho 0,186 Tabagismo 0,002 Alcoolismo 0,100 Obesidade <0,001 HAS familiar 0,001 Outros fatores de associação conhecida com a HAS, como tabagismo, alcoolismo, baixa escolaridade e atividade física, não se mostraram significativos neste estudo. Isso pode ter ocorrido devido ao fenômeno de casualidade reversa ou por influência do tamanho amostral, pois, com a inclusão de diversas variáveis na análise multivariada, perde-se o poder do estudo. Quanto à situação conjugal, as pessoas que viviam acompanhadas demonstraram uma maior prevalência de HAS. Em um estudo publicado em 2005, foram analisadas mulheres chinesas nos anos de 1991 e 1997. As mulheres que permaneceram casadas neste período apresentaram uma menor prevalência de doenças cardiovasculares, e as mulheres que se casaram ou se separaram tiveram maior prevalência para HAS (15). Em outro estudo publicado também no ano de 2005, concluiu-se que homens que nunca se casaram têm uma prevalência maior de HAS devido ao fato de se exporem mais a fatores de risco como IMC Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 4-9, jan.-mar. 2015 elevado, fumo e alcoolismo (19,20). Contudo, após o ajuste dos fatores de confusão, esta variável não se associou de forma independente ao desfecho no presente estudo. O tabagismo não foi considerado um fator associado de forma independente para a doença hipertensiva. Apesar de não apresentar um efeito direto para o desenvolvimento da HAS, o cigarro contribui para uma maior rigidez das artérias de grande calibre, diminuição da complacência dos vasos sanguíneos e lesão endotelial (21). Mesmo após o uso do primeiro cigarro, é possível identificar tais alterações, que ficam cada vez mais evidenciadas em fumantes crônicos. Também não podemos descartar a relação direta do cigarro como fator de risco para outras doenças cardiovasculares como infarto agudo do miocárdio e acidente cerebral encefálico (22). Apesar do resultado divergente em relação a diversos trabalhos existentes (12,13), a baixa escolaridade não foi um fator de risco independente para HAS no presente estudo. 7 Prevalência da hipertensão arterial sistêmica em adultos do município de Tubarão (SC) Trevisol et al. Tabela 2 – Fatores de risco para HAS entre os participantes da pesquisa. Análise multivariada dos fatores independentes. Tubarão SC, 2012. Variável Razões de prevalência ajustada* (IC95%) Faixa Etária <0,001 18 - 39 anos 1,0 40 - 49 anos 1,63 (1,09-2,46) 50 - 59 anos 2,32 (1,56-3,45) Situação Conjugal 0,421 Sem companheiro 0,88 (0,64-1,21) Com companheiro 1,0 Escolaridade 0,727 >8 anos de estudo 1,0 0-8 anos de estudo 0,95 (0,74-1,24) Tabagismo Nunca fumou Fumante Valor de P 0,281 1,0 1,15 (0,89-1,49) Alcoolismo 0,531 Não 1,0 Sim 1,13 (0,77-1,64) Obesidade <0,001 Não 1,0 Sim 2,29 (1,80-2,90) História Familiar 0,004 Não 1,0 Sim 0,58 (0,40-0,84) *Ajustada para faixa etária, situação conjugal, escolaridade, tabagismo, alcoolismo, obesidade e história familiar de HAS. A faixa etária, obesidade e história familiar de HAS se associaram de forma independente ao desfecho. res, o etilismo dificulta a manutenção da normotensão em pacientes hipertensos que fazem uso de algum fármaco anti-hipertensivo. Entre as limitações do presente estudo, destaca-se a possibilidade do fenômeno de causalidade reversa, que é implícita a estudos transversais. Há o potencial viés de seleção, já que os sujeitos sorteados precisavam se deslocar até o hospital para a coleta de dados. Contudo, a taxa de não resposta ficou dentro dos limites aceitáveis. Este estudo apresenta resultados importantes sobre dados populacionais de HAS em adultos da cidade de Tubarão - SC, que podem auxiliar os gestores na implementação de políticas públicas quanto aos programas de saúde. Além disso, serve como estudo comparativo para outras regiões brasileiras. Independentemente do fator causal, é indiscutível que devem ser realizados programas de saúde pública acessíveis a toda a população, independentemente da faixa etária ou classe social, para prevenir não somente a HAS, mas também todas as comorbidades que ela pode gerar. É necessário melhorar o rastreio de indivíduos ainda sem o diagnóstico, principalmente aqueles que apresentam fatores de risco, e tratá-las de forma mais eficiente. Os gastos para prevenção e tratamento da HAS são custo-efetivas quando comparadas às complicações dela decorrentes. CONCLUSÃO O presente estudo permite concluir que a prevalência da HAS foi de 29,4%. Os fatores associados à HAS de forma independente foram idade avançada [RP = 2,32 (1,563,45) p<0001], obesidade [RP=2,29 (1,80-2,90) p<0001] e história familiar de HAS [RP=0,58 (0,40-0,84) p<0,001]. AGRADECIMENTOS Outros autores mostram que a menor escolaridade está associada à menor compreensão sobre a doença e a adesão ao tratamento, fato não identificado no presente estudo. Não houve uma relação entre a situação profissional e ocorrência de HAS (p=0,186). Alguns estudos concluem que o desemprego poderia ser um fator de risco para a HAS devido a uma série de fatores, como menor acesso aos planos de saúde, a serviços médicos especializados, a um maior estresse psicológico e menores condições de adquirir medicamento para tratar as doenças (13,23). Porém, outros estudos defendem que estar empregado seria um fator de risco devido à tensão e às responsabilidades impostas pela profissão ou até mesmo atuar em uma área com a qual não se identifica (24,25). Foram aplicados os critérios de CAGE para determinar a dependência do consumo de bebidas alcóolicas nos participantes da pesquisa. Do mesmo modo que o tabagismo, o etilismo não demonstrou se associar de forma independente à HAS, apesar de influenciar de maneira indireta o sistema cardiovascular (6). Dentre outros fato8 À Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina pelo suporte financeiro. Ao Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição e à UNISUL, que deu suporte técnico para realização deste estudo. REFERÊNCIAS 1. Yusuf S, Reddy S, Ounpuu S, Anand S. Global burden of cardiovascular diseases: part I: general considerations, the epidemiologic transition, risk factors, and impact of urbanization. Circulation. 2001;104(22):2746-53. 2. Fuster V, Voute J, Hunn M, Smith Jr SC. Low priority of cardiovascular and chronic diseases on the global health agenda: a cause for concern. Circulation. 2007;116(17):1966-70. 3. Pereira M, Lunet N, Azevedo A, Barros H. Differences in prevalence, awareness, treatment and control of hypertension between developing and developed countries. J Hypertens. 2009;27(5):96375. 4. Sociedade Brasileira de Cardiologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol 2010;95(1 supl 1):1-51. 5. Palatini P. Role of elevated heart rate in the development of cardiovascular disease in hypertension. 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O objetivo deste estudo foi caracterizar os pacientes com risco para o pé diabético e avaliar os fatores envolvidos no desenvolvimento de lesões. Método: Estudo quantitativo transversal, realizado em Ambulatório Interdisciplinar de Diabetes. Dados coletados do prontuário e exame físico dos pés entre dezembro de 2013 e março de 2014. Resultados: De um total de 299 pacientes, 76 (25,4%) apresentavam risco para o desenvolvimento do pé diabético. Esse grupo apresentou associações significativas nos seguintes parâmetros: sexo masculino (34,17 versus 19,55%); idade média de 61,02 anos; média do tempo de diagnóstico de 14,95 anos, em uso de insulina (28,98 versus 9,26%); presença de hipertensão arterial sistêmica (28,78 versus 18,09%); acometido por complicações macrovasculares (52,63 versus 19,01%) e microvasculares (39,58 versus 22,71%). Conclusão: No presente estudo, pacientes do sexo masculino, com idade superior a 60 anos, com diagnóstico há mais de 15 anos, em insulinoterapia, hipertensos, associados a complicações macro e microvasculares do diabetes mellitus apresentaram maior risco para o pé diabético. A estratificação dos pacientes em graus de risco é de extrema importância para acompanhamento e manejo adequado. UNITERMOS: Diabetes Mellitus, Pé Diabético, Úlcera de Pé ABSTRACT Introduction: Diabetic foot is a chronic complication of diabetes mellitus and its prevalence is 4-10%. It is defined as infection, ulceration and/or destruction of soft tissue associated with neurological disorders and peripheral arterial disease in the lower limbs. The aim of this study was to characterize patients at risk for diabetic foot and evaluate the factors involved in the development of lesions. Methods: Cross-sectional quantitative study conducted in an Interdisciplinary Outpatient Clinic of Diabetes. Data collected from medical records and physical examination of the feet from December 2013 to March 2014. Results: From a total of 299 patients, 76 (25.4%) were at risk for developing diabetic foot. This group showed significant associations in the following parameters: males (34.17 versus 19.55%), mean age 61.02 years, average time from diagnosis = 14.95 years, use of insulin (28.98 versus 9.26%), presence of systemic arterial hypertension (28.78 versus 18.09%), macrovascular (52.63 versus 19.01%) and microvascular (39.58 versus 22.71%) complications. Conclusion: In this study, male patients older than 60 years, diagnosed for more than 15 years, in insulin therapy, with high blood pressure associated with macrovascular and microvascular complications of diabetes mellitus were at a higher risk for diabetic foot. Stratification of patients by degree of risk is of utmost importance for monitoring and proper management. KEYWORDS: Diabetes Mellitus, diabetic foot, foot ulcer 1 2 10 Médico Endocrinologista e Docente da Disciplina de Endocrinologia da Universidade Regional de Blumenau, Santa Catarina. Acadêmica de Medicina da Universidade Regional de Blumenau, Santa Catarina. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015 ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al. INTRODUÇÃO O diabetes mellitus (DM) é um grupo heterogêneo de doenças metabólicas que têm em comum a hiperglicemia, sendo essa resultante de defeito na produção da insulina, na ação ou em ambos (1). Em 2010, a prevalência mundial de diabetes entre os adultos foi de 6,4% e irá aumentar para 7,7% em 2030 (2). No Brasil, estima-se que existam 12 milhões de pessoas com DM, das quais quase a metade desconhece o seu diagnóstico e só busca cuidados quando surgem as complicações (1,3). Dentre as complicações do DM, a que tem maior impacto socioeconômico é o pé diabético, e incluem gastos com tratamentos, internações prolongadas e recorrentes, incapacitações físicas e sociais, com perda de emprego e produtividade (4). Sua prevalência é em torno de 15% nos pacientes diabéticos (5,6). Pé diabético é caracterizado como uma lesão que ocorre nos pés dos portadores de DM, resultante da combinação de vários fatores, como neuropatia sensitivo-motora e autonômica periférica crônica, doença vascular periférica, alterações biomecânicas, que levam à pressão plantar anormal, e infecção, a qual pode estar presente e agravar ainda mais o caso (7,8,9). Devido ao surgimento de ulcerações nos pés, esses pacientes têm maior probabilidade de evoluírem com amputações pelo fato de difícil tratamento destas feridas (7,8). Em torno de 50 a 70% de todas as amputações de extremidades inferiores não traumáticas são decorrentes do DM (10,11). Os fatores de risco importantes para o desenvolvimento de pé diabético incluem: idade, tipo e tempo de diagnóstico, controle inadequado da glicemia, tabagismo, alcoolismo, obesidade, hipertensão e falta de bons hábitos higiênicos e de cuidado local (12). Apesar dos riscos, sabe-se que, com estratégias de prevenção e programas educacionais abrangentes, os quais incluem exame regular, classificação de risco e educação terapêutica, inclusive sobre autocuidado, a ocorrência de lesões nos pés pode ser reduzida em até 50% (9, 11). Objetivamos com o presente trabalho analisar o risco de desenvolvimento do pé diabético nos pacientes atendidos em um ambulatório interdisciplinar especializado em DM, descrever seu perfil, quantificar a prevalência de pé diabético neste grupo de pacientes e analisar fatores de risco associados a essa complicação. MÉTODOS Trata-se de um estudo transversal com abordagem quantitativa realizado com pacientes que possuem DM tipo 1 ou 2, usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), atendidos no Núcleo de Atenção em Diabetes (NAD) na cidade de Blumenau, Santa Catarina. Foram excluídos do estudo menores de 18 anos e pacientes com diagnóstico de diabetes gestacional ou outros tipos. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015 Para a coleta de dados, foi aplicado um formulário com informações referentes ao perfil do paciente (idade, sexo, tipo de DM e tempo de diagnóstico), bem como um roteiro de anamnese e exame físico dos pés, que consistiu em cinco itens gerais: queixas relatadas, características da pele, inspeção de pés e calçados, características vasculares e testes neurológicos sensitivos. Os demais dados foram analisados do prontuário do paciente. São eles: valor da última hemoglobina glicada (HbA1c) (3 meses); circunferência abdominal; hipertensão arterial sistêmica; dislipidemia, tabagismo e complicações macro e microvasculares do diabetes mellitus. Foram considerados hipertensos e dislipidêmicos aqueles que faziam uso de algum medicamento para controle registrado na última consulta. Para caracterizar a complicação macrovascular, incluíram-se infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral, amputação, angioplastia, angina e/ou insuficiência cardíaca congestiva prévia de acordo com o registro no prontuário. E foram considerados como complicação microvascular os casos em que o paciente possuía retinopatia diabética e/ou nefropatia, sendo retinopatia diabética o diagnóstico feito pelo oftalmologista em exame do fundo de olho, e nefropatia aqueles que possuíam ritmo de filtração glomerular abaixo de 60 ml/min/1,73m², conforme o último exame de creatinina realizado. A partir disso, o paciente foi classificado em grupos de risco 0, 1, 2 ou 3, segundo as diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes (2013-2014). O grupo de risco 0 indica que o paciente não tem neuropatia periférica (PND) nem doença arterial periférica (DAP); no grupo de risco 1, o paciente apresenta PND e/ou alguma deformidade nos pés; no grupo de risco 2, o paciente possui DAP e PND e, no grupo de risco 3, o paciente tem úlcera ou amputação prévia. A sensibilidade protetora plantar foi avaliada por meio do monofilamento de Semmes-Weinstein 10g em 4 pontos na região plantar, e a incapacidade de o paciente sentir o monofilamento nas quatro áreas foi considerada ausência de sensibilidade protetora dos pés. O exame de sensibilidade dolorosa com o palito no dorso dos pés foi realizado em três áreas e foi considerado alterado quando o paciente não relatava a sensibilidade nos três pontos. Foi descrito como portadores de PND aqueles que possuíam um ou ambos os testes alterados uni e/ou bilateral. Já para DAP, considerou-se a ausência ou diminuição dos pulsos das artérias pediosa dorsal e tibial posterior na palpação bilateral. Dedos em garra, hálux valgus e pé de Charcot foram inclusos como deformidades. O formulário foi aplicado pela enfermeira do NAD antes da consulta com o médico endocrinologista e tiveram seus achados anexos ao prontuário do paciente. A avaliadora recebeu treinamento específico, tendo realizado esse trabalho desde novembro de 2012, conforme a demanda de pacientes. O referido estudo analisou todas as fichas documentadas até 28 de fevereiro de 2014, cujos dados foram coletados por amostra de conveniência entre dezembro de 2013 e março de 2014. 11 ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al. O tamanho da amostra foi estimado baseado na prevalência de pé diabético (15%) nos pacientes diabéticos e assumindo um erro de 5%. O tamanho estimado da amostra é de 154 indivíduos. Ao extrapolar tal estudo para a população geral, convém destacar as suas limitações, dentre as quais: vieses de seleção e de aferição, amostra de conveniência e caráter retrospectivo de parte do estudo. As informações foram computadas no programa Excel®5.0 e analisadas por meio de médias, frequências e teste de qui quadrado de independência por intermédio do programa EpiInfoT7. O nível de significância (p) adotado para aceitação de diferenças estatisticamente significativas foi de 0,05. O presente estudo obteve a aprovação do comitê de ética da Universidade Regional de Blumenau através do protocolo número CAAE: 15798413.3.0000.5370, não sendo requerida a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelos pacientes no período da pesquisa. Tabela 1 – Características da amostra total do estudo Variável/Categoria n Frequência % (IC95%) Feminino 179 59,9 (54,1 -65,5) Masculino 120 40,1 (34,5-45,9) D2 278 93 (89,5-95,6) D1 21 7 (4,4 -10,5) Sim 245 81,9 (77,1-86,1) Não 54 18,1 (13,9- 22,9) Com 205 68,6 (63-73,8) Sem 94 31,4 (26,2-37) Com 164 54,8 (49-60,6) Sem 135 45,2 (39,4-51) SEXO TIPO DE DIABETES EM INSULINOTERAPIA HIPERTENSÃO DISLIPIDEMIA TABAGISMO RESULTADOS Tabagista 32 10,7 (7,4-14,8) Ex-tabagista 77 25,8 (20,9 - 31,1) O estudo analisou um total de 299 pacientes, sendo que a média de idade foi de 56,3±13,2 anos. Observou-se que a média de tempo de diagnóstico de DM foi de 12,5±9,3 anos para todos diabéticos estudados. Levando em consideração o valor da hemoglobina glicada (HbA1c), a média encontrada foi de 9±2%. Quando analisada a medida da circunferência abdominal, essa foi separada por gênero, sendo que no sexo feminino a média foi de 108,4 ±15,9cm e no sexo masculino foi de 105,8 ±16cm. Na Tabela 1, encontram-se as demais características da amostra total do estudo. Conforme a classificação do grau de risco, têm-se 223 pacientes com grau zero (74,6%; IC95%: 69,3-79,4), 45 pacientes com grau um (15%; IC95%: 11,2 -19,6), 3 pacientes com grau dois (1%; IC95%: 0,2-2,9) e 28 pacientes com grau três (9,4%; IC95%: 6,3-13,2) no total de 299 pacientes. A prevalência de pacientes com risco de desenvolver pé diabético, ou seja, aqueles que possuem risco 1, 2 ou 3, de acordo com a classificação citada anteriormente, foi de 25,4% ( IC95%: 20,6-30,7). Quando se comparou o grupo que tinha risco para desenvolver o pé diabético com aquele que não o possuía, observou-se que a média de idade foi significativamente maior (p=0,0003) no grupo de risco, sendo que a média de 61±10,9 anos se contrapôs à média de 54,7±13,5 anos. A média de tempo de diagnóstico de DM no grupo de risco foi de 15±10,2 anos, comparado com o grupo sem risco, que foi de 11,6±8,8 anos, tendo significância estatística (p=0,007). Já a média do valor de hemoglobina glicada foi maior no grupo de risco, 9,1±2,1% versus 9±2%, porém sem significância. Da mesma forma para a média da circunferência abdominal para ambos os sexos, foram maiores no grupo de risco, sendo o sexo feminino de 112,2±14,7cm Não tabagista 190 63,5 (57,8-69) Com 57 19,1 (14,8-24) Sem 242 80,9 (76-85,2) Com 48 16,1 (12,1-20,7) Sem 251 83,9 (79,3-87,9) 299 100 12 COMPLICAÇÕES MACROVASCULARES COMPLICAÇÕES MICROVASCULARES TOTAL versus 107,5±16cm e masculino de 109,2±16,3cm versus 104,1±15,7cm, mas sem diferença significativa. As demais correlações são observadas na Tabela 2. DISCUSSÃO No presente estudo, a prevalência de pacientes com risco de desenvolver o pé diabético foi de 25,4%. Em um estudo realizado na atenção básica de Florianópolis (SC), 20% dos pacientes diabéticos apresentaram algum grau de neuropatia, sendo considerados em risco para o pé diabético (1,3). Como os dados foram coletados em um centro de referência, pode ter superestimado o número de pacientes que se encontram em risco para tal complicação. Observou-se que a maioria da amostra era composta por mulheres, representando 59,9% do total. No entanto, dentre os pacientes que possuem risco aumentado para o pé diabético, os homens foram mais predominantes em comparação com as mulheres (53,9 versus 46,1%). Esse dado corrobora com a literatura, que é justificado pela maior procura das mulheres pelos serviços de saúde e indiRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015 ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al. Tabela 2 – Comparação das variáveis para o risco de desenvolver pé diabético Variável/Categoria Com risco Sem risco Valor de p Masculino 41(53,9%) 79(35,4%) 0,004 Feminino 35 (46,1%) 144 (64,6%) SEXO TIPO DE DIABETES D2 73 (96%) 205 (91,9%) D1 3 (4%) 18 (8,1%) Sim 71 (93,4%) 174 (78%) Não 5 (6,6%) 49 (22%) 0,2 EM INSULINOTERAPIA 0,002 HIPERTENSÃO Com 59 (77,6%) 146 (65,5%) Sem 17 (22,4%) 0,04 77 (34,5%) DISLIPIDEMIA Com 46 (60,5%) 118 (52,9%) Sem 30 (39,5%) 105 (47,1%) 0,2 TABAGISMO Tabagista 9 (11,8%) 23 (10,3%) 26 (34,2%) 51(22,9%) 41 (54%) 149 (66,8%) Com 30 (39,5%) 27 (12,1%) Sem 46 (60,5%) 196 (87,9%) Ex-tabagista Não tabagista COMPLICAÇÕES MACROVASCULARES 0,1 0,000001 COMPLICAÇÕES MICROVASCULARES Com 19 (25%) 29 (13%) Sem 57 (75%) 194 (87%) 0,01 cando que o autocuidado é mais significativo na população feminina (11,14,15). A literatura mostra que quanto maior o tempo de doença, maior é a chance de desenvolver complicações crônicas, dentre essas o pé diabético (16). Um estudo realizado em Ribeirão Preto, São Paulo, com pacientes diabéticos que possuíam úlceras nos pés, apresentou uma média do tempo de diagnóstico de 12,5 anos (17). Esse dado vai de encontro com o obtido no presente estudo, em que a média de tempo de diagnóstico dos pacientes com risco foi de 15 anos, com significância estatística. Com o processo de envelhecimento, o paciente pode estar mais propenso a desenvolver complicações devido à diminuição progressiva da capacidade funcional e pelo maior tempo decorrido de doença (15,17). Aqueles pacientes com faixa etária igual ou superior a 60 anos são mais propensos para o pé diabético (14). Diante disso, essa variável foi significativa para o risco de acometimento do pé diabético, sendo a média de idade encontrada igual a 61 anos. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 10-14, jan.-mar. 2015 A hipertensão arterial sistêmica (HAS) foi a comorbidade mais prevalente tanto na amostra total estudada quanto no grupo de risco, tendo uma significância estatística para o acometimento do pé diabético. Ela aumenta o risco de surgirem alterações nos pés devido ao comprometimento vascular e à dificuldade do controle dos níveis glicêmicos, tendo um papel fundamental na neuropatia autonômica (15, 16,18). A insulinoterapia foi fator significante para o desenvolvimento de pé diabético no presente estudo. Porém, sabe-se que, por se tratar de um ambulatório de referência, os pacientes atendidos são descompensados ou de difícil manejo, sendo a insulina um meio utilizado para controle. Portanto, esse dado pode não ser um fator de risco, e sim indicar que essa população está corrigindo os níveis elevados de glicemia conforme a sua necessidade. Entretanto, o mesmo não foi encontrado em um estudo realizado no Hospital das Clínicas da UFTM (Universidade Federal do Triângulo Mineiro) com pacientes que foram submetidos à amputação cirúrgica relacionada ao diabetes mellitus, em que o maior número de amputações ocorreu em pacientes que faziam uso de hipoglicemiante oral (15). No presente estudo, a média de hemoglobina glicada foi de 9,1±2,1% para o grupo de risco, não sendo significativo este valor para o desenvolvimento de pé diabético, que pode ser justificado pela amostra do estudo ser, de forma geral, descompensada e ter valores semelhantes. A hemoglobina glicada acima dos valores adequados é um fator preocupante, pois a glicemia elevada cronicamente provoca lesões teciduais e pode ocasionar complicações além do pé diabético (19). As macroangiopatias estão envolvidas na patogênese na úlcera no pé diabético em 40 a 50% dos casos, geralmente associado com a neuropatia (20). Além disso, pacientes diabéticos podem apresentar problemas de visão, doença renal e dano neuronal, classificados como comprometimento microvascular (21). A microangiopatia causa diminuição da ação vasodilatadora em resposta ao calor, ao trauma, à obstrução arterial e às mudanças posturais, prejudicando a distribuição do fluxo sanguíneo e dificultando a cicatrização em caso de traumatismos (21). A associação de complicações micro e macrovasculares com o risco de desenvolver pé diabético mostrou-se significativa, pois representa a debilidade do sistema arterial no controle dos danos implicados aos pés. O tabagismo não teve significância em nosso estudo; no entanto, pode não condizer com a realidade por ser uma variável indireta e pelo número de pacientes da amostra. A identificação dos fatores de risco para o desenvolvimento do pé diabético permite intervenções preventivas e efetivas a serem tomadas pelos profissionais da saúde, melhorando o prognóstico e a qualidade de vida dos pacientes. Com uma simples avaliação de rotina dos pés desses pacientes, poderá ser estratificado o risco de desenvolver alguma lesão e, com isso, guiar a conduta a ser seguida. 13 ANÁLISE DO RISCO DE PÉ DIABÉTICO EM UM AMBULATÓRIO INTERDISCIPLINAR DE DIABETES Thomazelli et al. CONCLUSÃO Este estudo possibilitou apontar um perfil característico dos pacientes diabéticos atendidos em um serviço de referência que possuem um risco aumentado para desenvolver o pé diabético, sendo homens com mais de 61 anos e com diagnóstico de diabetes mellitus há mais de 15 anos, em insulinoterapia, hipertensos e associados a complicações macro e microvasculares do DM. A estratificação dos pacientes em graus de risco e a identificação dos fatores envolvidos na progressão para o pé diabético são de grande importância para o acompanhamento e manejo adequado pelos profissionais da saúde. CONFLITOS DE INTERESSE Declaramos que não há conflito de interesses na redação do presente artigo. AGRADECIMENTOS Agradecemos a todos que nos incentivaram, em especial à equipe do Núcleo de Atenção ao Diabetes da cidade de Blumenau (SC), que nos proporcionou acesso aos dados para a realização do presente trabalho. REFERÊNCIAS 1. Sociedade Brasileira de Diabetes. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2013-14. São Paulo: AC Farmacêutica, 2014. 2. Shaw JE, Sicree RA, Zimmet PZ. Global estimates of the prevalence of diabetes for 2010 and 2030. Diabetes Res Clin Pract. 2010. 87 (1): 4-14. 3. Mantovani AM, Fregonesi CEPT, Pelai EB, Mantovani AM, Savian NU, Pagotto P. Estudo comparativo das representações sociais sobre diabetes mellitus e pé diabético. Cad. 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O objetivo foi identificar a prevalência de sintomas depressivos em pacientes com insuficiência renal crônica submetidos à hemodiálise em Tubarão, Santa Catarina, Brasil. Métodos: Estudo transversal, onde os pacientes em hemodiálise responderam questionário sóciodemográfico e o Inventário de Beck para Depressão (IBD). Resultados: Participaram do estudo 97 pacientes, 57,7% homens, com idade média de 60,3 anos (DP±14.64) e com tempo médio de tratamento de 31,7 meses (DP±34.73). Com o IBD foi identificado que 71,1% apresentavam algum nível de depressão, destes 49,5% apresentavam nível leve, 15,5% nível moderado e 6,2% nível grave de depressão. Conclusão: A prevalência de depressão foi maior na população feminina estudada, com maior frequência do nível leve definido pelo IBD. UNITERMOS: Depressão, Insuficiência Renal Crônica, Hemodiálise ABSTRACT Introduction: Chronic renal failure is a morbid condition resulting from a number of factors, including no expectation of cure. Hemodialysis is a supportive treatment that consists in removing toxic substances from the blood. The aim of this study was to identify the prevalence of depressive symptoms in patients with chronic renal failure undergoing hemodialysis in Tubarão, Santa Catarina, Brazil. Methods: A cross-sectional study where patients on hemodialysis answered a demographic questionnaire and the Beck Depression Inventory (BDI). Results: The study included 97 patients, 57.7% males, with mean age 60.3 years (SD±14.64) and mean treatment period 31.7 months (SD±34.73). The BDI showed that 71.1% of the participants had some level of depression, 49.5% with mild, 15.5% with moderate and 6.2% with severe level of depression. Conclusion: The prevalence of depression was higher in the female population studied, with a higher frequency of the mild level as defined by BDI. KEYWORDS: Depression, chronic kidney disease, hemodialysis 1 2 3 4 Estudante do 11º Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina. (Bolsista do CNPq.) Estudante do 9º Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina. Mestre em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina. Doutora em Psicologia pela Universidade de El Salvador-Argentina. Professora do Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015 15 AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al. INTRODUÇÃO A área da saúde, com o passar dos anos, obteve grandes avanços tecnológicos e científicos, fazendo com que, hoje, o homem possa viver mais, sendo assim, retardando a morte. Esses avanços têm possibilitado diagnosticar e antecipar a terapêutica adequada, com resultados promissores para o controle e evolução da doença e, talvez, até a cura. Com esses avanços, pode-se identificar um maior número de doentes crônicos, que, por sua vez, requerem cuidados permanentes durante o decorrer de toda sua vida (1). A doença renal crônica é uma enfermidade que, além de trazer consequências físicas ao indivíduo que a vivencia, gera prejuízos psicológicos, alterando seu cotidiano, sendo caracterizada também como um problema social, que interfere no papel que o próprio enfermo desempenha na sociedade (2,3). Assim sendo, é estabelecido um longo processo de adaptação a essa nova condição, em que o indivíduo precisa identificar meios para lidar com o problema renal e com todas as mudanças e limitações que o acompanham, limitações essas decorrentes da doença, bem como provenientes do seu tratamento (4) . A insuficiência renal crônica (IRC) é uma condição mórbida e complexa, decorrente de uma série de fatores, não contemplando, infelizmente, expectativa de cura. É uma doença que vem crescendo significativamente nos últimos anos e tem como corresponsáveis o aumento da incidência de hipertensão arterial sistêmica; diabetes mellitus; neoplasias de próstata e colo de útero, entre outras causas. Muitas pessoas desenvolvem a insuficiência renal por falta de acompanhamento adequado e detecção precoce das doenças de origem, fator esse que deve ser observado em políticas de saúde pública (5) . A hemodiálise, um tratamento de apoio ao paciente renal, consiste na remoção de substâncias tóxicas e excesso de líquido por uma máquina. É um procedimento cuja duração leva de duas a quatro horas, exigindo que o paciente se desloque para a unidade de tratamento em uma frequência, na maioria das vezes, de três vezes por semana. A dificuldade de adaptação é grande e pode ser verificada logo no início do tratamento (6). É uma situação em que a ansiedade e os sintomas depressivos se fazem presentes durante o processo e mesmo em todo o tratamento (7). Toda reação do enfermo renal com relação ao processo terapêutico de diálise é uma forma de resposta adaptativa frente aos sentimentos de insegurança e perdas, sendo a depressão a desordem psiquiátrica mais comum entre aqueles em estágio final da doença renal, tratados com hemodiálise (8). Esse problema tem grande prevalência, no entanto, o subdiagnóstico ainda é um grande fator limitador, além de que muitos pacientes, quando diagnosticados, são subtratados com doses insuficientes de medicação para controle de sintomas, o que pode vir a comprometer a evolução clínica desses enfermos (9). No Brasil, existe um número relativamente baixo de estudos que abordem essa população, na condição de pacien16 te em hemodiálise, o que pode ser um fator que dificulte uma melhor abordagem dessa patologia, retardando planejamentos, organização de medidas suportivas e a avaliação da assistência à saúde mental no país (10). As taxas de morbimortalidade são maiores, e os índices de qualidade de vida em renais crônicos são menores (9). Isso gera uma necessidade eminente de novos estudos para haver uma correta identificação e tratamento dessa patologia, visando ao bem-estar do paciente renal crônico (10). O objetivo do presente estudo foi avaliar a prevalência de sintomas depressivos em pacientes com insuficiência renal crônica submetidos à hemodiálise em Tubarão, Santa Catarina. MÉTODOS Foi realizado um estudo observacional de delineamento transversal, entre os meses de junho e julho de 2014. A amostra foi composta por 102 pacientes que estavam em tratamento hemodialítico na Clínica de Doenças Renais, situada na cidade de Tubarão, Santa Catarina. Foram considerados critérios de inclusão: ter idade igual ou superior a 18 anos na data da coleta dos dados, estar em tratamento de hemodiálise na clínica no período descrito, não se encontrar na primeira sessão do tratamento, estar em condições mentais e físicas satisfatórias para responder às perguntas, além de assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Utilizou-se como critério de exclusão: paciente negar-se a qualquer momento durante a pesquisa e/ou não possuir condições físicas e/ou mentais satisfatórias para responder às perguntas. Utilizou-se o Mini Exame do Estado Mental (11) como ferramenta para este tipo de determinação. Após aplicação dos critérios, foram excluídos 4 pacientes por falta de condições físicas e/ ou mentais e 1 solicitou sua retirada do estudo, ficando assim constituída a amostral final em 97 pacientes. Foram utilizados dois questionários: o primeiro foi desenvolvido pelos pesquisadores com informações socio-econômicas (sexo, idade, etnia, com quem vive, religião, escolaridade, praticante da religião, renda, trabalho) e clínicas ou relacionadas ao tratamento (tempo de hemodiálise, tipo de acesso venoso, comorbidades, lista de transplante, desejo de transplante) as quais constituíram as variáveis do estudo, e o outro foi o Inventário de Beck para Depressão (IBD), devidamente validado para a língua portuguesa (12). Este consiste de 21 itens que variam de 0 a 3, que pode totalizar um escore de 0 a 63. Os itens referem-se à tristeza, ao pessimismo, à sensação de fracasso, culpa e punição, falta de satisfação, autodepreciação, autoacusações, ideias suicidas, crises de choro, irritabilidade, retração social, indecisão, distorção da imagem corporal, inibição para o trabalho, distúrbio do sono, fadiga, perda de apetite e de peso, preocupação somática e diminuição da libido. Essa análise do Inventário de Beck para Depressão considera os escores de 0-9 como ausência de depressão; de 10-18, Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015 AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al. depressão leve; de 19-29, depressão moderada; e de 30-63, depressão grave. Os dados coletados foram digitados no programa Excel 2007, versão 5.0, e analisados com o programa estatístico Epi Info, versão 3.5.4. O nível de significância adotado foi de 5%. As variáveis categóricas foram comparadas através do teste Qui-quadrado. As variáveis quantitativas foram testadas através da análise de variância (ANOVA). O projeto foi devidamente submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Sul de Santa Catarina e encontra-se aprovado e registrado sob o protocolo nº 697.205/2014. RESULTADOS Ao todo, foram estudados 97 pacientes, sendo 57,7% pertencentes ao sexo masculino. Do total da amostra, 75,3% se declararam caucasianos, com uma idade média de 60,3 anos (DP±14,6); 75,3% se declararam católicos na ocasião. Foi observada uma média de 5,6 anos de estudo (DP±3,9), com uma renda média de R$ 2807,4 (DP±2385,3); 75,3% estão aposentados. 87,6% possuíam um acesso por meio de fístula arteriovenosa. 50,5% dos pacientes apresentam diagnóstico de diabetes mellitus e 79,4% da amostra possuem hipertensão arterial sistêmica. Com a aplicação do IBD, obteve-se que 71,1% da amostra total possuem algum nível de depressão, sendo as mulheres acometidas em 80,5% e os homens em 64,3% dos casos. O escore médio encontrado foi de 14,5 (DP±8,3), variando de 03 até 51 pontos, o que o situa no grau de depressão leve pelo referido questionário. Quando estratificados os níveis de depressão geral em ausente, leve, moderado e grave, gera-se o Gráfico 1. Dos 21 quesitos avaliados pelo IBD, os cinco que mais apresentaram significância na vida dos enfermos foram: 51,5% dos pesquisados apresentaram algum nível de distúrbio no sono; 71,1% tiveram fadiga em algum grau; 81,6% declararam ter perdido peso, 84,5% relataram alteração na libido e 87,6% informaram ter alguma dificuldade para o trabalho em geral. Quando confrontadas as variáveis do estudo com depressão, não foi observada significância entre suas associações. DISCUSSÃO Identificar os sinais e sintomas gerados pela depressão, principalmente em estágios iniciais da doença, se torna bastante difícil e complexo até mesmo para pessoas experientes na área. Para tanto, foi utilizado o IBD para rastreamento de sintomas depressivos nessa população. Os renais crônicos da cidade de Tubarão que fazem parte do programa de hemodiálise tiveram suas informações sociodemográficas levantadas pela pesquisa, evidenciando uma população média acima dos 60 anos, sendo o gênero masculino o mais acometido. A escolaridade média enconRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 15-19, jan.-mar. 2015 trada foi inferior a 6 anos, tendo como principais causas da doença renal a hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus. Outros estudos realizados mostram uma grande semelhança no perfil geral desses pacientes em relação a uma idade mais avançada, uma escolaridade mais baixa e tendo como referências de doença primária geradora da IRC a hipertensão arterial e o diabetes (1,4,5,10,13,14). Quando aplicado o Inventário de Depressão de Beck, os resultados obtidos por este estudo, em estratificação de intensidade depressiva, foram que 28,9% não mostraram indícios de qualquer distúrbio, bem como 49,5% demonstraram um nível leve; 15,5%, um nível moderado, e 6,2%, um nível alto de depressão. Quando comparados a outros dois estudos realizados, o primeiro encontrou uma sintomatologia mínima ou ausente em 32% dos pacientes; 34% apresentaram sintomas leves; 24%, sintomas moderados e 10%, sintomatologia grave (10). Já o segundo estudo comparado, realizado com pacientes em hemodiálise na cidade de Criciúma-SC, utilizando a mesma ferramenta, trouxe os seguintes resultados: apresentaram sintomas mínimos ou ausente nenhum paciente; 10,7%, sintomas leves; 10,7%, moderados e 7,1%, sintomas graves(13). Desta forma, mostra-se neste estudo a maior prevalência de depressão em grau leve quando comparada às outras pesquisas. Isso gera um alerta, pois a fase inicial da doença pode passar despercebida por muitos profissionais da saúde, evidenciando a necessidade de treinamento das equipes de apoio para a identificação de tal quadro para que se possa, de algum modo, intervir de maneira correta, visando à melhoria da saúde mental do doente. O IBD, além de estratificar em categorias depressivas, permite dicotomizar a variável depressão, sendo ela em presente ou ausente. Assim, percebe-se que na atual pesquisa 71,1% da amostra possuem algum nível de depressão, enquanto que em outros estudos os valores obtidos foram de 68% (10) e 28,5% (13), demonstrando que esta teve valores superiores de sintomas depressivos se comparada com as demais. Existem vários fatores que tornam a depressão geriátrica heterogênea: incapacitação; perda de recursos com alterações no estilo de vida; mudanças fisiológicas do envelhecimento; certas drogas, e redução da concentração da norepinefrina, dopamina e serotonina cerebrais. Além disso, deve-se salientar que diversos estressores psicossociais também influenciam na saúde mental do idoso, tais como: mobilidade limitada; cegueira; surdez; atividades ocupacionais, sociais e recreativas diminuídas; aposentadoria; perda de status social; doença, isolamento, perda de privacidade e senso de valor próprio (14). A depressão aumenta em 80% a 83% a incidência de óbitos entre pessoas idosas, o que gera grande preocupação ao bem-estar do doente, pois apresenta consequências negativas para a qualidade de vida dos indivíduos acometidos (15). Outro ponto levantado pela pesquisa foram as cinco principais alterações evidenciadas pelo IBD e apontadas pelos enfermos durante as entrevistas, as quais contribu17 AVALIAÇÃO DE SINTOMAS DEPRESSIVOS EM PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA SUBMETIDOS À HEMODIÁLISE... Schuster et al. íram para uma prevalência relativamente alta de sintomas depressivos nessa população. Em ordem crescente, foram: 51,5% apresentaram distúrbio no sono; 71,1% tiveram fadiga; 81,6% perderam peso; 84,5% apresentaram alteração na libido e 87,6% tiveram dificuldade para o trabalho em geral. Estudos mencionam que a depressão possa estar relacionada a distúrbios do sono, bem como o tratamento hemodialítico, com suas características de ser três vezes por semana, com duração em torno de 4 horas, necessidade de transporte, deslocamento do paciente, entre outros, possa gerar uma cena de ansiedade e, por sua vez, também alterar o sono do enfermo (16,17). O sentimento de cansaço e esgotamento é comum em pacientes renais crônicos em hemodiálise (6). A fadiga está significativamente associada à presença de sintomas como problemas do sono, limitação por aspectos físicos e depressão (18). Alterações de peso e libido também são evidenciadas nos pacientes em tratamento, podendo este ser para mais ou menos, dependendo de cada situação (19,20,21). Os problemas com o trabalho ou outras atividades diárias como resultantes de problemas emocionais são bastante comuns; limitações ao exercício laboral em pacientes renais crônicos indicam prejuízos na qualidade de vida, sendo concordantes em diversos estudos (6,16,20,22). Muitos pacientes mostram o desejo de voltarem a realizar alguma atividade, seja de caráter empregatício ou do dia a dia e nisso embasa-se que pacientes renais crônicos que trabalham têm uma prevalência menor de depressão (23). Quando confrontadas as variáveis do estudo com depressão, não foi observada significância entre suas associações. O estudo possui algumas limitações, dentre elas menciona-se um número amostral relativamente baixo, o que impossibilita que maiores inferências possam ser realizadas, bem como não houve qualquer tipo de questionamento quanto ao uso de medicações, assim como utilização de antidepressivos nessa população a fim de tratar a depressão. O uso deste tipo de medicamento pode, de certa forma, subestimar a prevalência de depressão nos entrevistados. 60% Média (Score): 14,5 (±8,3), variação: 3 - 51 50% 40% 30% 20% 10% 0% ausente leve moderada Gráfico 1 – Prevalência de Sintomas Depressivos 18 grave CONCLUSÃO A prevalência de sintomas depressivos foi maior na população feminina estudada, sendo o nível leve do Inventário de Beck para Depressão o que apresentou maior detecção desse distúrbio, com 49,5% da amostra total, ou seja, quase metade da amostra somou entre 10 e 18 pontos na entrevista. REFERÊNCIAS 1. Nifa S, Rudnicki T. Depressão em pacientes renais crônicos em tratamento de hemodiálise. Revista da SBPH, 2010;13(1):64-75. 2. Kimmel, P.L., Peterson, R.A., Wheis, K.L., Simmens, S.J., Alleyne, S., Cruz, I. & Veis, J.H. (Multiple measurements of depression predict mortality in a longitudinal study of chronic hemodialysis outpatients. Kidney International, 2000;57(5), 2093-2098. 3. 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Endereço para correspondência Joel Tuchinski Schuster Luiz Correa de Souza - 825 88.704-250 – Tubarão, SC – Brasil (48) 9943-3680 [email protected] Recebido: 19/2/2015 – Aprovado: 2/3/2015 19 ARTIGO ORIGINAL Perfil epidemiológico das alterações dermatológicas observadas em mulheres em período de puerpério imediato atendidas no Hospital São José, em Criciúma, Santa Catarina Epidemiological profile of dermatological changes observed in early postpartum women cared for at São José Hospital in Criciúma, Santa Catarina Natália Machado Mildner1, Gisleine Bittencourt Scotti2, Luiz Felipe de Oliveira Blanco3 RESUMO Introdução: Durante o período gestacional, o corpo feminino passa por profundas alterações hormonais e mecânicas, em que a pele também sofre alterações. O objetivo deste trabalho foi conhecer a prevalência das principais alterações dermatológicas no período gestacional de gestantes atendidas no Hospital São José, de Criciúma-SC. Métodos: Estudo transversal com 188 gestantes. Foram entrevistadas e examinadas as mulheres em período de puerpério imediato no Hospital São José, de Criciúma, Santa Catarina, no mês de dezembro de 2010. Foram estudadas as seguintes variáveis: idade; peso antes e ao final da gestação; número de gestações; queda de cabelos; alterações ungueais; manchas de pele; aparecimento de estrias ou pápulas pruriginosas. Resultados: Foram identificados 104 casos de estrias (55,31%) e 61 casos de melasma (32,44%). Os locais de maior frequência de estrias foram em abdome 71 (51,45%), seios 35 (25,36%), nádegas 8 (5,8%) e pernas 24 (17,39%). A distribuição do melasma foi mais frequente em região centro-facial 52 (77,61%) e em região malar 7 (10,44%). Conclusões: Pacientes jovens, que tiveram maior ganho ponderal, foram as mais acometidas com estrias. Melasma acometeu pouco mais de um quarto da amostra e ocorreu com maior frequência em gestantes de faixa etária mais baixa. UNITERMOS: Gravidez, Melasma, Estrias ABSTRACT Introduction: During pregnancy a woman’s body undergoes profound hormonal and mechanical changes, where the skin also undergoes changes. The aim of this study was to determine the prevalence of major skin changes during pregnancy among women cared for at Hospital São José, Criciúma, SC. Methods: Cross-sectional study involving 188 pregnant women. We interviewed and examined women in the early postpartum period at Hospital São José, Criciúma, SC in December 2010. The following variables were considered: age, weight before and at the end of pregnancy, number of pregnancies, hair loss, nail changes, skin blemishes, appearance of stretch marks or pruritic papules. Results: We identified 104 cases of stretch marks (55.31%) and 61 cases of melasma (32.44%). Stretch marks were most often found in the abdomen (71 cases, 51.45%), breasts (35, 25.36%), buttocks (8, 5.8%) and legs (24, 17.39%). Melasma was more frequent in the center-facial region (52, 77.61%) and malar region (7, 10.44%). Conclusions: Young patients who had greater weight gain were the most affected with stretch marks. Melasma struck just over a quarter of the sample and occurred more frequently in younger women. KEYWORDS: Pregnancy, melasma, stretch marks 1 2 3 20 Médica. Médica. Dermatologista e Professor da disciplina de Dermatologia Clínica e Cirúrgica da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015 PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al. INTRODUÇÃO A gravidez representa um período de intensas modificações para a mulher. Praticamente todos os sistemas do organismo são afetados, entre eles a pele. As intensas alterações imunológicas, endócrinas, metabólicas e vasculares tornam a gestante susceptível a mudanças na pele, tanto fisiológicas como patológicas (1,2). Algumas dessas alterações, por serem de grande prevalência neste período, são chamadas fisiológicas ou normais, sendo, muitas vezes, subvalorizadas ou não tratadas, embora possam causar grandes transtornos para a gestante (2). Em relação à pele, as alterações gestacionais podem ser classificadas em: alterações fisiológicas da gravidez, dermatoses específicas da gravidez e dermatoses alteradas na gravidez (1). As modificações mais comuns são as alterações fisiológicas, que incluem hiperpigmentação, manchas, estrias, alterações vasculares, hipertricoses e acne (1,2,3,4). Vale destacar que, entre as alterações mais frequentemente observadas, o melasma é uma dermatose inestética, que determina grande procura ao atendimento dermatológico especializado, embora represente, somente, uma anormalidade comum e benigna da gestação. Talvez isso se explique pela natureza cosmeticamente desfigurante e pelos efeitos emocionais e psicológicos na paciente acometida pelo problema, os quais, com frequência, em virtude da insatisfação com a aparência, acabam se privando do convívio social, inclusive com casos de suicídio relatados (1). O objetivo deste estudo é analisar as alterações dermatológicas mais frequentemente observadas durante a gestação em mulheres em período de puerpério imediato internadas no Hospital São José, em Criciúma, Santa Catarina, durante o mês de dezembro de 2010. MÉTODOS Trata-se de um estudo documental, descritivo, transversal, retrospectivo e de abordagem quantitativa e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital São José, sob o protocolo número 180/2010. Todas as gestantes que realizaram partos normais e cesarianas no Hospital São José, de Criciúma, Santa Catarina, durante o mês de dezembro de 2010, foram examinadas e entrevistadas. Todas as pacientes foram incluídas no estudo, sendo este, portanto, classificado como um estudo censitário (5). As pacientes assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes da entrevista para aplicação do questionário, que obteve as seguintes informações: idade, peso antes e ao final da gestação, aparecimento de manchas e estrias, perda de cabelo e alterações ungueais. As alterações foram classificadas em 5 grupos: estrias, melasma, queda de cabelo, alterações ungueais e pápulas pruriginosas. Os locais de acometimento das estrias foram Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015 separados em: abdômen, abdômen e perna, abdômen e nádegas, abdômen, perna e seios, pernas, abdômen e seios, seios, seios e nádegas, seios e pernas. As informações obtidas foram tabuladas no software Microsoft Excel versão 2007 e, em seguida, transferidas para o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 18.0, para o cálculo das medidas descritivas (média, desvio-padrão e frequência das alterações dermatológicas). RESULTADOS Foram recrutadas 188 pacientes em período de puerpério imediato, 80 (42,55%) de parto normal e 108 (57,44%) de cesarianas. Setenta e uma pacientes eram primigestas, 28 tiveram parto normal e 43 realizaram cesariana. A Tabela 1 descreve a presença ou não de estrias de acordo com a idade, sendo que, das 188 pacientes, 23,09 apresentam estrias (±4,96) e 29,02 (±5,68) não apresentam estrias. A faixa etária média mais acometida pelas estrias foi a de 15-23 anos (29,25%), seguida por 24-32 anos (23,40%) e entre 33-42 anos (2,65%), demonstrada pelo Gráfico 1. De acordo com a Tabela 2, estrias foram em número maior nas pacientes que apresentaram ganho de peso ao final da gestação entre 11-20 kg (61,53%), 21-32 kg (20,19%), 1-10 kg (18,26%). O Gráfico 2 demonstra os locais de maior ocorrência das estrias, sendo os mais frequentes em região do abdômen (60,57%); abdômen e perna (9,61%); Tabela 1 – Correlação das pacientes que apresentaram ou não estrias de acordo com idade. - 104 mulheres com idade média de 23,09 anos tendem a apresentar maior frequência de estrias. Estrias n(%) Idade Média (DP) Valor de p Sim Não 104(55,32) 23,09(±4,96) 0,000 84(44,68) 29,02(±5,68) Gráfico 1 – Porcentagem das pacientes que apresentaram ou não estrias por faixa etária. - 45% das gestantes não têm estrias 29% das gestantes com 15 a 23 anos têm estrias 23% das gestantes com 24 a 32 anos têm estrias 3% das gestantes com 33 a 42 anos têm estrias. 21 PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al. Tabela 2 – Correlação das pacientes que apresentaram estrias com o ganho de peso. - 104 mulheres com ganho ponderal médio de 15,79 kg apresentaram maior frequência de estrias. Estrias n(%) Idade Média (DP) Valor de p Sim 104(55,32) 15,79(±7,03) 0,000 Não 84(44,68) 11,62(±5,09) 80 70 Número de Casos Number of cases 60 Gráfico 3 – Apresentação de melasma por faixa etária. - Gestantes com 33-42 anos têm melasma Gestantes com 24-32 anos têm melasma Gestantes com 15-23 anos têm melasma 68% das gestantes não têm melasma 50 40 30 20 DISCUSSÃO 10 0 Abdomen Seios Nádegas Pernas Gráfico 2 – Local de acometimento das estrias em gestantes. Evidencia locais do corpo da gestante mais acometidos por estrias. Região abdominal evidenciou maior acometimento de estrias em mais de 70 mulheres. seios (8,65%); pernas (7,69%); abdômen e seios (3,84%); seios e nádegas (3,84%); abdômen e nádegas (1,92%); abdômen, perna e seios (1,92%), seios e pernas (1,92%). Já o Gráfico 3 demonstra a ocorrência de melasma de acordo com a faixa etária. Os resultados mostraram que a maioria das gestantes não teve melasma (68%), aproximadamente 23% das gestantes com idades entre 24-32 anos apresentaram melasma; cerca de 4% das gestantes entre 15 e 23 anos e 5% das gestantes com 33-42 anos. Dos 104 relatos (55,31%) de aparecimento de estrias, 71 (68,27%) correspondem à região abdominal, 35 (33,65%) em região dos seios, 24 (23,98%) nas pernas e 8 gestantes (7,69%) nas nádegas, sendo que algumas das gestantes apresentaram mais de um local de acometimento pelas estrias. Pacientes mais jovens, na faixa etária entre 15-23 anos, estiveram entre as mais acometidas por estrias. Este grupo foi constituído de 55 gestantes correspondendo a 29,25% do total das gestantes, e deste grupo etário 79,71% apresentaram estrias, o achado mais observado neste estudo. Na faixa de ganho de peso entre 11-20 quilogramas, 64 (61,53%) pacientes apresentaram estrias. Outras alterações dermatológicas, como queda de cabelo, alterações ungueais e acne, foram encontradas, porém em número pouco expressivo e não foram detalhadas neste estudo. 22 Este estudo avaliou as alterações dermatológicas mais frequentes durante a gravidez em mulheres primíparas e multíparas, em todas as faixas etárias. O aparecimento de estrias durante a gestação, no grupo estudado, foi o mais frequente e está de acordo com o estudo de Maia (6). As estrias são lesões alongadas, serpiginosas e ocasionadas pela ruptura de fibras de colágeno e elastina. A etiologia ainda não está completamente elucidada, mas acredita-se que seja ocasionada pela associação de fatores hormonais (7). No nosso estudo, a localização das estrias na região abdominal foi a mais frequente, seguida das mamas e pernas. Esse resultado é compatível com outros existentes na literatura. De acordo com Azulay et al, a gravidez é um estado de equilíbrio instável, que requer modificações da mulher sob vários aspectos. Dessa forma, é necessário que dermatologistas e obstetras estejam sempre interagindo com estas possibilidades, podendo, assim, beneficiar o binômio mãe-feto (2). Apesar de a etiologia das estrias não ser bem compreendida, é aceito que a combinação de estiramento mecânico da pele com fatores genéticos, com alterações endócrinas e, eventualmente, com secreção de relaxina durante a gravidez (8) isolados ou associados, tem papel significativo nas mulheres grávidas (9,10). Segundo Maia (6), a prevalência das estrias gravídicas é dependente da população estudada. Tem sido relatado na literatura que a prevalência na população geral varia entre 50-95%, coincidindo com este estudo. Muitas mulheres apresentam estrias durante a primeira gestação. Frequentemente, as lesões aparecem mais cedo do que o esperado, geralmente antes da 24ª semana de gestação (11). O peso materno adquirido na gestação foi a variável estatisticamente significante, correspondendo a um maior Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015 PERFIL EPIDEMIOLÓGICO DAS ALTERAÇÕES DERMATOLÓGICAS OBSERVADAS EM MULHERES EM PERÍODO DE PUERPÉRIO... Mildner et al. estiramento da pele. Não foi encontrada neste estudo associação significante entre o uso de óleos ou cremes. No que diz respeito à utilização de cremes, há apenas uma publicação que cita a utilização de controle placebo, contendo componentes como: extrato de Centella asiática, alfa-tocoferol, hidrolisado de colágeno-elastina e mentol, o que sugeriu prevenir o desenvolvimento de estrias na gestação em algumas mulheres (12). Quanto ao melasma, no nosso estudo, podemos perceber que a maioria das gestantes estudadas não apresenta essa alteração cutânea. As gestantes que apresentaram melasma foram mulheres jovens, entre 24-32 anos, corroborando com o estudo de Purim e Avelar, em que a média de idade das puérperas com diagnóstico clínico de melasma foi de 28,2 anos (13). As limitações do estudo devem ser destacadas. Uma delas se refere ao pequeno tamanho amostral de puérperas portadoras de estrias e melasmas. A etiologia multifatorial do melasma e das estrias e as variações na exposição solar e uso de cremes hidratantes dificultam confirmar associação causal com radiação solar, fatores genéticos e cremes hidratantes protetores. Não foram aferidos dados epidemiológicos e terapêuticos acerca desses fatores. CONCLUSÕES O presente estudo evidenciou que a alteração dermatológica mais prevalente entre as mulheres estudadas foi a estria gravídica. As estrias foram mais frequentes em pacientes mais jovens, primigestas e nas que adquiriram excesso de peso. Este estudo sugere que o estiramento excessivo da pele pode ser um fator de risco, e o aumento da idade materna pode ser considerado um efeito protetor contra a ocorrência de estrias na gestação. Nosso estudo também mostra que a maioria das gestantes não apresentou melasma, sugerindo que possam fazer uso de fatores protetores mecânicos, como filtros solares e chapéus. De acordo com as alterações dermatológicas encontradas no presente estudo, evidencia-se que medidas preventi- Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 20-23, jan.-mar. 2015 vas podem ser realizadas para evitar o estiramento cutâneo, com a formação de estrias, através do uso de cremes hidratantes e protetores solares, no caso dos melasmas. Esse entendimento é válido para todos os profissionais envolvidos de forma indireta ou direta na assistência à gestante. REFERÊNCIAS 1 Alves G, Varella T, Dermatologia e gestação. Anais Brasileiro de Dermatologia. 2005, p. 179. 2 Costa A, Alves G, Azulay L. Dermatologia e gravidez. 1ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2009, p. 10-504 3 Alves G, Varella T, Nogueira L. Dermatologia e gestação. V.80, n.2, p.86-179, 2005. 4 Dominguez AR, Balkrishnan, Ellzey AR, Pandya A. Melasma in latina patients. J Acad Dermatol. 2006; 55:p. 59-66. 5 Rodrigues PC. Bioestatística. 3ª ed. Rio de Janeiro: Eduff; 2002, p. 10-34. 6 Maia M, Marçon CR, Rodrigues SB. Estrias na gestação: fatores de risco nas primíparas. An Bras Dermatol. 2009; 84(6): 599-695. 7 Urasaki MBM. Alterações fisiológicas da pele percebidas por gestantes assistidas em serviços públicos de saúde. Acta Paul Enferm 2010;23(4): 519-25. 8 Seibold JR, et al. Recombinant Human Relaxin in the Treatment of Scleroderma: a Randomiized Blind, Placebo-Controlled Trial. Ann Intern Med. 2000; 132:871-9. 9 Henry F, Franchimont, Pans A, Pièrard G. Striae distensae of pregnancy. An in vivo biomechanical evaluation. Int J Dermatol. 1997;36:506-8. 10 Lernia D, Bonci A, Cattania M, et al. Striae distensae (rubrae) in monozygotic twins. Ped Dermatol. 2001; 12:261-4. 11 Salter S, Kimbal A. Striae gravidarum. Clinics in Dermatology. 2006; 24:97-100. 12 Young GL, Jewell D. Cream for preventing stretch marks in pregnancy. Cochrane Review. 2008. 13 Avelar MFS, Purim KSM. Fotoproteção, melasma e qualidade de vida em gestantes. Rev Bras Ginecol Obstet. 2012; 34(5): 228-43. Endereço para correspondência Natália Machado Mildner Rua Missões - 467 98.801-430 – Santo Ângelo, RS – Brasil (55) 8109-6771 [email protected] Recebido: 6/10/2014 – Aprovado: 13/1/2015 23 RELATO DE CASO Retalho do músculo oblíquo externo para reconstrução de extenso defeito da parede torácica após ressecção de carcinoma de mama recidivado External oblique muscle flap for reconstruction of large chest wall defect after resection of recurrent breast cancer Francisco Felipe Laitano1, Francisco Carlos dos Santos Neto2, Francisco Laitano Neto3, Felipe Pereira Zerwes4 RESUMO A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica secundárias à ressecção de tumores avançados é desafiadora ao cirurgião plástico. Relatamos o caso de uma paciente com recidiva locorregional de carcinoma ductal de mama, que resultou em grande perda de substância da parede torácica anterior após sua ressecão. O defeito foi reconstruído com retalho miocutâneo do músculo oblíquo externo (MOE). O retalho miocutâneo do MOE possui diversas vantagens sobre os demais retalhos possíveis para a reconstrução de extensos defeitos da parede torácica, como um menor tempo cirúrgico e uma menor morbidade. UNITERMOS: Reconstrução, Retalhos Cirúrgicos, Mastectomia, Parede Torácica ABSTRACT The reconstruction of large defects of the chest wall secondary to resection of advanced tumors is challenging to the plastic surgeon. Here we report the case of a patient with locoregional recurrence of breast ductal carcinoma, which resulted in great loss of substance of the anterior chest wall after its resection. The defect was reconstructed with myocutaneous flap of the external oblique muscle (EOM). The myocutaneous flap of EOM has several advantages over other possible flaps for the reconstruction of extensive defects of the chest wall, such as reduced surgical time and lower morbidity. KEYWORDS: Reconstruction, surgical flaps, mastectomy, thoracic wall INTRODUÇÃO A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica secundários à ressecção de tumores primários avançados, metastáticos ou mesmo de complicações do tratamento (p.ex. radionecrose) é desafiadora ao cirurgião plástico (1,2). 1 2 3 4 24 Retalhos como o do músculo reto abdominal (TRAM) e do músculo grande dorsal, além do de Omento associado à enxertia cutânea são opções viáveis (3). O retalho do músculo oblíquo externo (MOE), muitas vezes esquecido como opção de reconstrução, é capaz de fechar grandes defeitos da parede torácica (1) com baixa morbidade e sequelas. Devemos levar em consideração o estado clínico do Cirurgião Plástico, membro especialista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Cirurgião plástico do Centro da Mama do Hospital São Lucas (HSL)-PUCRS. Médico residente do Serviço de Cirurgia Plástica do HSL-PUCRS. Médico preceptor do Serviço de Cirurgia Plástica do HSL-PUCRS; Cirurgião plástico do Centro da Mama do HSL-PUCRS. Médico Mastologista do Centro da Mama do HSL-PUCRS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015 RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al. paciente e o prognóstico no momento de optar pelo tipo de reconstrução. Relatamos o caso de uma paciente com recidiva locorregional de carcinoma ductal de mama, cuja ressecção resultou em grande perda de substância da parede torácica, que foi reconstruída imediatamente com retalho miocutâneo do músculo oblíquo externo. RELATO DO CASO Paciente de 61 anos, ex-tabagista, obesa e hipertensa, procura o Serviço de Mastologia e Cirurgia Plástica do Hospital São Lucas devido à recidiva locorregional de carcinoma ductal invasor em mama esquerda (Fig. 1). A mesma havia realizado quimioterapia neoadjuvante seguida de mastectomia e radioterapia dois anos antes em outra cidade. Apresentava múltiplas nodulações, comprometendo quase toda extensão do hemitórax esquerdo até a linha axilar posterior. Foi realizada a ressecção em monobloco de toda a lesão pela equipe de Mastologia, resultando em uma perda de substância de 21x26 cm. A marcação do retalho é feita de forma semelhante a um retalho de rotação, sendo que a borda superior do retalho coincide com a borda inferior do defeito (1,4). A marcação continua no eixo longitudinal até abaixo da cicatriz umbilical, podendo, em alguns casos, ultrapassar a linha média (2) (Fig. 2). Após a incisão da pele, disseca-se no plano subcutâneo até a borda lateral do músculo reto abdominal (linha arqueada). Nesse momento, muda-se o plano de dissecção para sob o músculo OE, após incisada sua aponeurose (3). A dissecção pode seguir até a linha axilar posterior (1), dependendo do ângulo de rotação necessário. Caso necessário, pode-se liberar o músculo em sua origem nas três primeiras costelas e a inserção na crista ilíaca para facilitar a rotação (1) (Fig. 3). O retalho é fixado no defeito e, então, Figura 1 – Aspecto clínico da recidiva locorregional de carcinoma ductal invasor em mama esquerda Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015 Figura 2 – Extensão da perda de substância e marcação do retalho Figura 3 – Retalho dissecado 25 RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al. são realizados o fechamento primário da área doadora e a inserção de dreno de aspiração (Fig. 4). A paciente evoluiu bem no pós-operatório (PO), recebendo alta hospitalar no 3o dia e sendo retirado o dreno no 7o dia PO. Apresentou como complicação uma pequena área de deiscência da ferida operatória na região supraumbilical. Na porção cranial, onde a vascularização se dá de forma aleatória, apresentou área de epidermólise tratada com manejo conservado e com boa evolução (Fig. 5 e 6). DISCUSSÃO O MOE origina-se da 6ª à 12ª costela. Suas fibras digitiformes correm no sentido crânio-caudal e látero-medial, inserindo-se na crista ilíaca anterior, tubérculo púbico e unindo-se com os músculos oblíquo interno e transverso para formar a bainha do músculo reto abdominal (5). É o músculo mais forte da parede abdominal (6). É classificado, de acordo com a classificação de retalhos musculares de Mathes e Nahai, como tipo IV, apresentando múltiplos pedículos nutridores (1). Na porção cranial, sua vascularização é segmentar e se dá pelas 4ª a 11ª artérias intercostais, ramos diretos da aorta. Elas penetram os músculos intercostais e o músculo OE em uma linha imaginária convexa, que vai do ponto hemiclavicular e se estende inferiormente e posteriormente em direção à aponeurose lombar (7). Na porção caudal (digitações originadas da 9ª à 12ª costelas), a vascularização provém principalmente da artéria ilíaca circunflexa profunda (95%), além da artéria iliolombar (5%) (7). Esse padrão vascular segmentar e abundante permite que o músculo seja elevado com segurança (3). O retalho musculofascial do OE foi inicialmente descrito por Lesnik e Davids, em 1953, para o fechamento de um defeito em abdome inferior (8). Em 1964, Hershey e Butcher propuseram pela primeira vez o uso do MOE como retalho musculofasciocutâneo para o fechamento de defeitos da parede abdominal e tórax inferior (9). Desde então, surgiram diversas variações e evoluções da técnica, como os retalhos abdominais cutâneos baseados em perfurantes (2) e as alterações no desenho do retalho para melhorar os resultados estéticos (1). O retalho do MOE se destaca pela possibilidade de cobertura de grandes defeitos torácicos, com áreas descritas na literatura de até 800 cm² (3). A versatilidade desse retalho estende-se para reconstruções da parede abdominal baixa (9) e da região dorsal (10). A qualidade e semelhança de cor da pele, a sensibilidade, a ausência de necessidade de mudar o paciente de decúbito durante a cirurgia, a relativa facilidade e rapidez na execução e a ausência de fragilidade na parede abdominal são algumas das vantagens sobre os retalhos do músculo reto abdominal e grande dorsal (3). Existem variações na técnica cirúrgica para melhorar os resultados de acordo com o defeito encontrado. Alguns autores propõem que seja incluída a fáscia do mús26 Figura 4 – Aspecto do pós-operatório imediato Figura 5 – Aspecto com um mês de pós-operatório, nota-se a boa evolução da epidermólise na região superior do retalho e da deiscência na região periumbilical Figura 6 – Aspecto com um ano de pós-operatório Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015 RETALHO DO MÚSCULO OBLÍQUO EXTERNO PARA RECONSTRUÇÃO DE EXTENSO DEFEITO DA PAREDE TORÁCICA APÓS RESSECÇÃO... Laitano et al. culo reto abdominal quando o defeito se estender além dos limites do MOE. Dessa forma, o retalho ficaria composto por uma porção fasciocutânea e outra miofasciocutânea (1,9). Em direção contrária, Persichetti et al sugeriram um retalho toracoabdominal exclusivamente cutâneo com desenho semelhante ao retalho do MOE e baseado nas artérias cutâneas laterais e nas perfurantes musculocutâneas emergentes das artérias intercostais, subcostais e lombares, com o pedículo localizado na borda medial no MOE (2). Outra variação na técnica sugerida por Moschella acontece no desenho da porção subumbilical do retalho. O autor sugere que a porção infraumbilical seja fechada em forma de um retalho V-Y, proporcionando menor distorção do umbigo e menor tensão no fechamento (1). O índice de complicações encontrado na literatura é baixo. Em uma série de 13 casos, apenas um apresentou complicações (necrose marginal) (1). Em outra série com 20 pacientes, houve apenas um caso de perda parcial do retalho ocorrida em sua porção de vascularização aleatória, e o tempo médio da reconstrução ficou em cerca de duas horas (3), sendo considerado um retalho seguro e com bom tempo cirúrgico. REFERÊNCIAS 1. Moschella F, Cordova A. A new extended external oblique musculocutaneous flap for reconstruction of large chest-wall defects. Plast Reconstr Surg. 1999;103(5):1378-85. 2. Persichetti P, Tenna S, Cagli B, Scuderi N. Extended cutaneous thoracoabdominal flap for large chest wall reconstruction. Ann Plast Surg.2 006;57(2):177-83. 3. Bogossian N, Chaglassian T, Rosenberg PH, Moore MP. External oblique myocutaneous flap coverage of large chest-wall defects following resection of breast tumors. Plast Reconstr Surg. 1996;97(1):97-103. 4. Bogossian N. A new extended external oblique musculocutaneous flap for reconstruction of large chest-wall defects. Plast Reconstr Surg. 2000;105(1):473-5. 5. McCraw JB. McCraw and Arnolds atlas of muscle and musculocutaneous flaps. 1a edição. Norfolk: Hampton Press Publishing Company; 1986. 6. Moore KL, Dalley AF. Anatomia orientada para a clínica. 4a edição. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2001. 7. Schlenz I, Burggasser G, Kuzbari R, Eichberger H, Gruber H, Holle J. External oblique abdominal muscle: a new look on its blood supply and innervation. Anat Rec. 1999; 255(4):388-95. 8. Lesnick GJ, Davids AM. Repair of surgical abdominal wall defect with a pedicled musculofascial flap. Ann Surg. 1953;137(4):569-72. 9. Hershey FB, Butcher HR, Jr. Repair of Defects after Partial Resection of the Abdominal Wall. Am J Surg. 1964;107:586-90. 10. Dumanian GA, Heckler FR, Bernard SL. The external oblique turnover muscle flap. Plast Reconstr Surg. 2003;111(7):2344-8. COMENTÁRIOS FINAIS A reconstrução de extensos defeitos da parede torácica secundários à ressecção de tumores de mama avançados ou sequelas do tratamento continua sendo um desafio ao cirurgião plástico. O retalho miofasciocutâneo de MOE torna-se uma opção atraente nesse contexto, com diversas vantagens sobre os demais retalhos possíveis, como um menor tempo cirúrgico e uma menor morbidade. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 24-27, jan.-mar. 2015 Endereço para correspondência Francisco Felipe Laitano Rua Farnese - 199 90.450-180 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3388-2553 [email protected] Recebido: 25/5/2014 – Aprovado: 21/7/2014 27 RELATO DE CASO Mesotelioma bem diferenciado (benigno) de túnica vaginal: relato de um caso e revisão da literatura Well-differentiated (benign) mesothelioma of the tunica vaginalis: report of a case and literature review Renato Augusto Felkl1 RESUMO Mesoteliomas são tumores oriundos das células mesoteliais da pleura, peritônio, pericárdio ou túnica vaginal, sendo a exposição prolongada ao asbesto o principal fator de risco. Neoplasias mesoteliais benignas da região paratesticular são raras. Relata-se um caso de Mesotelioma de Túnica Vaginal associado à hidrocele, destacando a utilidade da ecografia na avaliação das massas escrotais. UNITERMOS: Mesotelioma, Túnica vaginal, Hidrocele ABSTRACT Mesotheliomas are tumors originating from the mesothelial cells of the pleura, peritoneum, pericardium or tunica vaginalis, with prolonged exposure to asbestos the main risk factor. Benign mesothelial neoplasms of the paratesticular region are rare. Here we report a case of tunica vaginalis mesothelioma associated with hydrocele, highlighting the usefulness of ultrasound in the evaluation of scrotal masses. KEYWORDS: Mesothelioma, tunica vaginalis, hydrocele INTRODUÇÃO Mesoteliomas são tumores oriundos das células mesoteliais da pleura, peritônio, pericárdio ou túnica vaginal, sendo a exposição prolongada ao asbesto o principal fator de risco. Neoplasias mesoteliais benignas da região paratesticular são raras (1,6). O padrão histológico mais comum é o adenomatoide. Relata-se um caso de mesotelioma papilar bem diferenciado (well-differentiated papillary mesothelioma) de túnica vaginal, considerada de baixo potencial de malignidade. RELATO DO CASO Paciente de 28 anos de idade, branco, policial militar, percebeu aumento de volume indolor do hemiescroto esquerdo 1 28 havia 3 meses. Não havia antecedentes de outras doenças, trauma, cirurgias de hérnia ou varicocele, nem exposição ao asbesto. O exame físico foi compatível com uma hidrocele pequena, e a ecografia identificou, além da coleção líquida e normalidade testicular, uma lesão vegetante irregular de 20 mm, inserida no segmento proximal da túnica vaginal (Fig 1). Com a hipótese de neoplasia, o paciente foi submetido à orquiectomia radical por abordagem inguinal de alto padrão. O exame da peça evidenciou lesão pardo-clara e vegetante, medindo 20 mm no maior eixo (Fig. 2). A análise microscópica da túnica vaginal revelou estrutura de aspecto papilar, com eixo conjuntivo hialinizado e revestido por células cúbicas ou achatadas; o citoplasma tinha aspecto eosinofílico, núcleos ovais e levemente hipercromáticos. No exame imuno-histoquímico, a expressão de WT-1 e calretinina associada à negatividade para BG-8 confirma- Membro Titular da Sociedade Brasileira de Urologia (Médico Cirurgião Geral e Urologista do Hospital de Caridade de Frederico Westphalen) Cirurgião Geral e Urologista - Título de Especialista em Cirurgia Geral pelo Colégio Brasileiro de Cirurgiões, Membro titular da Sociedade Brasileira de Urologia - Serviço de Cirurgia e Urologia do Hospital Divina Providência, Frederico Westphalen - RS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 28-29, jan.-mar. 2015 MESOTELIOMA BEM DIFERENCIADO (BENIGNO) DE TÚNICA VAGINAL: RELATO DE UM CASO E REVISÃO DA LITERATURA Felkl Figura 1 – Ecografia do Escroto sem história de exposição a asbestos (3). Raramente originam-se na túnica vaginal, com poucos casos relatados na literatura (7). Quando paratesticulares, manifestam-se habitualmente por hidrocele, com achado ultrassonográfico característico de lesão exofítica irregular (4). Histologicamente, apresentam-se como uma proliferação mesotelial multifocal que não exibem invasão do estroma. Adicionalmente, distinção patológica da forma benigna da maligna é crucial, embora possa ser difícil devido à variabilidade de aspectos histológicos associados. Além disso, raros casos de mesotelioma papilar bem diferenciado têm progredido para a forma maligna, classificando-o como um tumor de baixo potencial de malignidade (7). Asbestos são apontados como o principal fator de risco para o desenvolvimento de mesotelioma, principalmente de comportamento maligno. Asbesto e amianto são sinônimos, nomes genéricos de um mineral encontrado no solo em mais de 30 variedades. Pela sua qualidade isolante, durabilidade, flexibilidade, resistência mecânica e às altas temperaturas, esse mineral, presente em abundância na natureza, tem sido largamente utilizado na indústria, principalmente na construção civil. No processo de manufatura, pequenas partículas desse material se desprendem e são inaladas. Esta situação pode aumentar o risco para outros tipos de câncer, como de fígado, pulmão e laringe. Atualmente, a exposição de trabalhadores a esse tipo de material tem sido controlada, principalmente nos países mais desenvolvidos. Uma vez que a distinção pré-operatória entre lesão maligna e benigna pode ser muito difícil, o exame histopatológico transoperatório é importante para a preservação do testículo, porém se não estiver disponível, a orquiectomia inguinal alta deve ser considerada (2). REFERÊNCIAS Figura 2 – Peça cirúrgica ram a natureza mesotelial destas células. Os achados foram consistentes com mesotelioma papilífero bem diferenciado. DISCUSSÃO Lesões mesoteliais envolvendo a região paratesticular incluem cistos mesoteliais, hiperplasia mesotelial reativa, tumor adenomatoide benigno, mesotelioma cístico benigno, mesotelioma papilífero bem diferenciado e mesotelioma maligno. A avaliação e o manejo dessas lesões habitualmente são difíceis para os patologistas, cirurgiões e oncologistas. O diagnóstico pré-operatório de malignidade é raramente feito, e a terapia efetiva permanece sendo a orquiectomia (2). O mesotelioma papilar bem diferenciado é uma inusitada variante do mesotelioma epitelial, considerado de baixo potencial de malignidade. A maioria dos casos previamente relatados desenvolveu-se no peritônio de mulheres jovens Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 28-29, jan.-mar. 2015 1 A.Loganathan, N.E.New & R.K.Calleja: Benign Papillary Mesothelioma of the Tunica Vaginalis Testis. The Internet Journal of Urology. 2004 Volume 2 Number 1. 2. Ashish Goel, Akansha Agraeal, Rajiv Gupta , Smriti Hari , A D Dey .Cases Journal 2008, 1:310 3. Butnor KJ, Sporn TA, Hammar SP, Roggli VL. : Well-differentiated papillary mesothelioma. Am. J.Surg Pathol. 2001 Oct;25(10):1304-9. 4. Churg A.:Paratesticular mesothelial proliferations. Semin Diagn Pathol. 2003 Nov;20(4): 272-8. 5. Perez-Ordonez B, Srigley JR. : Mesothelial lesions of the paratesticular region. Semin Diagn Pathol. 2000 Nov;17: 294-306. 6. Robert J.Cabay, Noman H. Siddiqui, Shumyle Alam,: Paratesticular Papillary Mesothelioma: A Case With Borderline Features.Arch Pathol Lab Med - Vol 130, january 2006. 7. Tolhurst SR, Lotan T, Rapp DE, Lyon MB, Orvieto MA, Gerber GS, Sokoloff MH. : Well-differentiated papillary mesothelioma occurring in the tunica vaginalis os the testis with contralateral atypical mesothelial hyperplasia.Urol Oncol, 2006 Jan-Feb;24(1):36-9. Endereço para correspondência Renato Augusto Felkl Rua Tenente Lira - 1199 98.400-000 – Frederico Westphalen, RS – Brasil (55) 3744-3473 [email protected] Recebido: 28/5/2014 – Aprovado: 3/8/2014 29 RELATO DE CASO Cardiomiopatia de Takotsubo: Relato de Caso Takotsubo Cardiomiopathy: Case Report Marcos Frata Rihl1, Priscila Haas2, Ricardo Santos Holthausen3 RESUMO Dor torácica é uma queixa comum na emergência, representando 9-10% das emergências não relacionadas a trauma. Destes, a Síndrome Coronariana Aguda (SCA) conta com 13-23,6% dos casos de dor torácica. No entanto, 1,7-2,2% dos pacientes que tinham suspeita de SCA foram subsequentemente diagnosticados com Cardiomiopatia de Takotsubo. Relatamos o caso de uma paciente do sexo feminino, 78 anos, branca, sem patologias prévias, com queixa de dor torácica em sufocamento de forte intensidade associada à dispneia logo após discussão com vizinhos. A paciente foi submetida à investigação e se chegou ao diagnóstico de Cardiomiopatia de Takotsubo. A paciente foi tratada com sintomáticos e liberada em condições de alta após uma semana, não apresentando episódios de dor torácica durante a internação. A Cardiomiopatia de Takotsubo não é rara, mas sim, subdiagnosticada. Considerar a Cardiomiopatia de Takotsubo no diagnóstico diferencial especialmente em mulheres na pós-menopausa com síndrome coronariana aguda irá prevenir os perigos potenciais do tratamento com agentes trombolíticos. UNITERMOS: Dor Torácica, Cardiomiopatia de Takotsubo, Síndrome Coronariana Aguda, Diagnóstico Diferencial ABSTRACT Chest pain is a common complaint in emergency care, representing 9-10% of non-trauma emergencies. Of these, Acute Coronary Syndrome (ACS) accounts for 13 to 23.6% of cases of chest pain. However, 1.7-2.2% of patients with suspected ACS were subsequently diagnosed with Takotsubo cardiomyopathy. Here we report the case of a white female patient, 78, without prior conditions, complaining of chest pain in suffocation of strong intensity associated with dyspnea after an argument with neighbors. After an investigation Takotsubo cardiomyopathy was diagnosed. The patient was treated symptomatically and discharged after a week, with no significant episodes of chest pain during hospitalization. Although Takotsubo cardiomyopathy is not rare, it is underdiagnosed. Considering Takotsubo cardiomyopathy in the differential diagnosis, especially in postmenopausal women with acute coronary syndrome, will prevent the potential dangers of treatment with thrombolytic agents. KEYWORDS: Chest pain, Takotsubo cardiomyopathy, acute coronary syndrome, differential diagnosis INTRODUÇÃO Dor torácica é uma queixa comum na emergência, sendo a segunda mais comum em pacientes com mais de 15 anos, perdendo apenas para dor abdominal (1). De acordo com a National Health Statistics Reports de 2007, em um total de 14.641 pacientes que procuraram a emergência nos Estados Unidos da América nesse ano, cerca de 5,7% se queixavam de dor pré-cordial (1). Segundo 1 2 3 30 a mesma fonte, de 1999 até 2008, levando-se em conta apenas emergências não relacionadas a trauma, a porcentagem de visitas por dor torácica variou entre 9-10% (2). Destes, a Síndrome Coronariana Aguda (SCA) conta com aproximadamente 13-23,6% dos casos de dor torácica (2). No entanto, estudos mostraram que 1,7-2,2% dos pacientes que tinham suspeita de SCA foram subsequentemente diagnosticados com Cardiomiopatia de Takotsubo (3-7). Acadêmico de Medicina da Universidade de Caxias do Sul. Estagiário do Instituto de Cardiologia do RS - Fundação Universitária de Cardiologia. Médica residente do Instituto de Cardiologia do RS. Especialista em cardiologia pela Sociedade Brasileira de Cardiologia. Médico cardiologista preceptor do Instituto de Cardiologia do RS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015 CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al. A Cardiomiopatia de Takotsubo, também conhecida como Cardiomiopatia Induzida por Estresse, Síndrome do Coração Partido ou Síndrome do Baloneamento Apical, é uma doença que exibe uma disfunção aguda reversível do ventrículo esquerdo, de causa desconhecida. Nessa doença, o ventrículo toma forma de um “takotsubo” (armadilha para capturar polvos, em japonês). Há quase que completa resolução da acinesia apical na maioria dos casos dentro de um mês (3, 5-9). A importância de se conhecer este diagnóstico diferencial se deve ao fato de ter um melhor prognóstico do que a SCA e de seu manejo ser apenas sintomático (10). RELATO DO CASO Paciente do sexo feminino, 78 anos, branca, sem patologias prévias, procura a emergência do Instituto de Cardiologia do RS, em janeiro de 2014, com queixa de dor torácica em sufocamento de forte intensidade associada à dispneia de início às 23 horas do dia anterior, logo após discussão com vizinhos, aliviando às 2 horas e 30 minutos do dia posterior, em que procurou atendimento pela manhã, às 9 horas, sem queixas. A paciente se encontrava em bom estado geral, lúcida, orientada e coerente, apresentando na ausculta cardíaca ritmo regular, em dois tempos, com bulhas normofonéticas e sem sopro e na ausculta pulmonar murmúrios vesiculares uniformemente distribuídos sem ruídos adventícios e apresentava edema em membros inferiores (1+/4+). Sua frequência cardíaca era de 82 batimentos por minuto, pressão arterial de 160/90 mmHg, frequência respiratória de 18 movimentos respiratórios por minuto e temperatura axilar de 36,4ºC. Foi iniciada a investigação com a solicitação de um eletrocardiograma (Figura 1), que demonstrou ritmo sinusal, supradesnivelamento de segmento ST em V1 e V2, bloqueio divisional ântero-superior esquerdo, sobrecarga de ventrículo esquerdo, zona inativa ântero-septal e alterações mistas da repolarização; a solicitação de dosagens laboratoriais: hemoglobina 12,8 g/dL, leucócitos 9600/mm³, creatinina 1,09 mg/Dl, CK 296 U/L, CK-MB 15 U/L e Figura 1 – Eletrocardiograma com supradesnivelamento de ST em V1 e V2. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015 31 CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al. troponina T ultrassensível de 661,60 pg/mL na chegada e 707,80 pg/mL após cinco horas, além de radiografia de tórax, que evidenciou coração de volume normal, aorta e circulação pulmonar sem alterações e ausência de lesão pleuro-pulmonar em atividade. A paciente foi manejada inicialmente como apresentando Síndrome Coronariana Aguda, recebendo heparina em bomba de infusão, ácido acetilsalicílico, clopidogrel, nitroglicerina, enalapril, succinato de metoprolol e atorvastatina. Com a finalidade de uma estratificação de risco invasiva, realizou cineangiocoronariografia, que mostrou coronárias epicárdicas angiograficamente normais (Figuras 2 a 4) e ventrículo esquerdo com disfunção sugestiva de baloneamento apical (Figura 5). Foi realizada ecocardiografia transtorácica, a qual evidenciou disfunção contrátil segmentar miocárdica ventricular esquerda e disfunção diastólica ventricular esquerda por padrão de relaxamento alterado e fração de ejeção mensurada pelo método de Simpson de 45%. A paciente foi liberada em condições de alta após uma semana, não apresentando episódios de dor torácica durante a internação, com uso de succinato de metoprolol, ácido acetilsalicílico, sinvastatina e enalapril. A Cardiomiopatia de Takotsubo foi primeiramente descrita por Sato et al, em 1990, no Japão, com uma série de 16 casos que apresentavam características clínicas de síndrome coronariana aguda, porém todas com artérias coronárias angiograficamente normais, tendo história de evento estressor que precedia a dor torácica, sendo 94% mulheres com média de 71 anos de idade e que apresentavam uma cardiomiopatia reversível descrita como disfunção ventricular esquerda takotsubo-like. Desde então, os relatos dessa condição foram aumentando, e várias séries de casos foram publicadas(3, 9, 11, 12), sendo a maior delas publicada em 2001, com 88 casos. Uma revisão sistemática das séries de casos foi realizada em 2008 (13), incluindo 28 estudos e 563 pacientes. Todas as séries mostraram prevalência feminina (90,7%; Intervalo de Confiança - IC - de 95%: 88,2-93,2%, variando de 69,2 a 100%) no período pós-menopausa (média de idade variou entre 62 e 76 anos). Os sintomas de apresentação iniciais mais frequentes foram dor torácica (83,4%; IC 95%: 80,0-86,7%) e dispneia (20,4%; IC 95%: 16,3-24,5%). Gatilhos emocionais estressantes (discussões, assaltos, acidentes, terremotos, notícias médicas trágicas, perdas por apostas) foram identificados em 44,0% dos pacientes (IC 95%: 39,4-48,6%). Estressores físicos como condições médicas exacerbadas foram documentados como eventos de gatilho em 36,2% dos pacientes (IC 95%: 31,5-40,9%). As alterações eletrocardiográficas mais comuns na admissão foram elevação do segmento de ST (71,1%; IC 95%: 67,275,1%), envolvendo derivações pré-cordiais (95,4%; IC 95%: 92,6-98,2%) e inversão de onda T (61,3%; IC 95%: 56,7-65,9%). Com relação aos biomarcadores cardíacos, alterações na troponina I e T foram encontradas em 85,0% (IC 95%: 80,8-89,1%) e creatinina-kinase-MB em 38,0% (IC 95%: 26,7-49,3%, variando entre 4,3 e 100%); no entanto, o pico da elevação dessas enzimas foi leve na maioria dos estudos. Em 14 estudos que providenciaram detalhes da angiografia coronariana, 87,9% (IC 95%: 83,8-92,0%) Figura 2 – Cinecoronariografia direita mostrando perviedade da artéria coronária direita. Figura 3 – Cinecoronariografia esquerda mostrando perviedade da artéria circunflexa. DISCUSSÃO 32 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015 CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al. Figura 4 – Cinecoronariografia esquerda mostrando perviedade da artéria descendente anterior. Figura 5 – Ventriculografia mostrando baloneamento apical durante a sístole. dos casos tinham artérias coronárias completamente normais, sendo que o restante apresentava estenose luminal não crítica. Durante os exames de imagens (ecocardiografia, ventriculografia e ressonância magnética cardíaca), se demonstrava tipicamente discinesia do ápice do ventrículo esquerdo ou segmentos médio-ventricular com hipercinesia da região basal. A fração de ejeção média na admissão variava de 20 a 49,4% e recuperava para 59-76% em um período médio de 18 dias (período médio de recuperação variou de 7 a 37 dias), com resolução completa do padrão de contratilidade takotsubo-like da parede. A fisiopatologia da Cardiomiopatia de Takotsubo ainda não está estabelecida, mas é provavelmente multifatorial, envolvendo os sistemas vasculares, endócrino e nervoso central (14). Existem várias teorias sobre a sua etiologia, incluindo miocardite aguda; vasoespasmo coronariano difuso; ruptura de uma placa não oclusiva seguido de trombólise espontânea; obstrução transitória do fluxo do ventrículo esquerdo; cardiotoxicidade mediada por catecolaminas; disfunção microvascular; hipoplasia das artérias coronarianas ou desequilíbrio autonômico cardíaco. Um dos principais mecanismos propostos é a disfunção endotelial, que pode estar relacionada à redução de estrogênio na menopausa e também ao efeito direto do estresse mental sobre a função endotelial através da ativação dos receptores da endotelina-A, independentemente da ativação do sistema nervoso simpático (14). O diagnóstico da Cardiomiopatia de Takotsubo deve ser suspeitado em mulheres na pós-menopausa que se apresentem com síndrome coronariana aguda após um intenso estresse psicológico e em que as manifestações clínicas e anormalidades do eletrocardiograma são desproporcionais ao grau de elevação dos biomarcadores cardíacos. Baloneamento apical (variante típica) e/ou hipocinesia médio-ventricular é geralmente vista na ventriculografia esquerda ou ecocardiografia (15). Outras síndromes, além da cardiomiopatia de Takotsubo, têm sido associadas com alterações do segmento ST na ausência de doença coronariana arterial significante, incluindo síndrome cardíaca X, angina variante (de Prinzmetal), miocardite, abuso de cocaína, feocromocitoma e doença cerebrovascular(8,15). Não existem estudos randomizados que avaliem o efeito de qualquer tratamento nesses pacientes. Na fase aguda, o tratamento é de suporte (16). Disfunção severa do ventrículo esquerdo pode necessitar de agentes inotrópicos (23,6%) ou suporte hemodinâmico com contrapulsação de balão intra-aórtico (11,2%). Mais comumente, uso empírico de inibidores da enzima conversora de angiotensina (47,2%), bloqueadores do canal de cálcio (40,8%), beta-bloqueadores (31,2%) e diuréticos (21,2%) foram relatados. Se considerando o possível mecanismo fisiopatológico de miocárdio atordoado mediado por catecolamina, o tratamento a longo prazo com beta-bloqueadores pode ser uma abordagem apropriada (13). Uma variedade de complicações foi relatada e enfatizam as sérias implicações da Cardiomiopatia de Takotsubo durante a fase aguda. Insuficiência cardíaca e edema pulmonar acometeram 40 de 252 pacientes (15,9%, IC 95%: 11,4-20,4%), choque cardiogênico em 28 de 271 pacientes (10,3%, IC 95%: 6,7-14,0%) e arritmias potencialmente fatais, como bloqueio atrioventricular de terceiro grau, taquicardia ventricular, fibrilação ventricular e parada cardíaca em 37 de 353 pacientes (14,6%, IC 95%: 10,9-18,3%). Casos isolados de formação de trombo intramural e ruptura da parede do ventrículo esquerdo também foram relatados (13). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015 33 CARDIOMIOPATIA DE TAKOTSUBO: RELATO DE CASO Rihl et al. Mortalidade intra-hospitalar foi descrita em 8 de 478 pacientes (1,7%, IC 95%: 0,5-2,8%). Entretanto, pacientes que se recuperaram da fase aguda da doença têm um desfecho favorável. Ocorreu resolução completa em 306 de 319 pacientes (95,9%, IC 95%: 93,8-98,1%), e recorrência foi documentada em 5 de 163 pacientes (3,1%, IC 95%: 0,4-5,7%) (13). COMENTÁRIOS FINAIS O caso relatado ilustra muito bem as características mais frequentes da Cardiomiopatia de Takotsubo, descritas anteriormente. A Cardiomiopatia de Takotsubo não é rara, mas, sim, subdiagnosticada. REFERÊNCIAS 1. Niska R, Bhuiya F, and Xu J. National Hospital Ambulatory Medical Care Survey: 2007 Emergency Department Summary. National health statistics reports; no 26. Hyattsville, MD: National Center for Health Statistics. 2010. . 2. Bhuiya F, Pitts SR, McCaig LF. Emergency department visits for chest pain and abdominal pain: United States, 1999-2008. NCHS data brief, no 43. Hyattsville, MD: National Center for Health Statistics. 2010. 3. Bybee KA, Prasad A, Barsness GW, et al. 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Endereço para correspondência Marcos Frata Rihl Rua Olavo Bilac - 134 95.010-080 – Caxias do Sul, RS – Brasil (54) 8131-6301 [email protected] Recebido: 5/8/2014 – Aprovado: 11/2/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 30-34, jan.-mar. 2015 RELATO DE CASO Íleo biliar: um relato de caso Gallstone ileus: a case report Mara Regina de Oliveira Campelo1, Jennyfer Paulla Galdino Chaves2, Vinícius Matos Menegola3 RESUMO O presente trabalho relata o caso de uma paciente feminina, de 75 anos, que internou por um quadro de dor em hipocôndrio direito, vômitos e distensão abdominal com 5 dias de evolução. Secundariamente, apresentou rebaixamento do sensório, acidose metabólica, oligoanúria e hipotensão, necessitando de cuidados em unidade de terapia intensiva, com intubação orotraqueal (IOT), vasopressor e hemodiálise. A tomografia de abdome evidenciou presença de aerobilia e um cálculo misto na topografia do segmento ileal do intestino. UNITERMOS: Íleo, Cálculo, Cirurgia geral ABSTRACT This paper reports the case of a 75 y.o. female patient who was admitted for a painful condition in the right hypochondrium, vomiting and abdominal distension with 5 days of evolution. Secondly she presented sensorial loss, metabolic acidosis, oliguria and hypotension, requiring care in intensive care unit, with tracheal intubation (TI), vasopressor and hemodialysis. Abdominal CT scan revealed the presence of aerobilia and a mixed gallstone in the topography of the ileal segment of the intestine. KEYWORDS: Ileum, Calculi, General surgery INTRODUÇÃO O íleo biliar é uma causa incomum de obstrução intestinal e determina de 1 a 4% de todas as obstruções intestinais (1). Aproximadamente 25% das obstruções intestinais não estranguladas em maiores de 65 anos são devidas ao íleo biliar (1). O íleo biliar é uma complicação da colelitíase e se comporta como uma oclusão intestinal mecânica devido à impactação de um ou mais cálculos na luz do intestino, como resultado de uma comunicação anômala entre o trato gastrointestinal e o sistema biliar (2,3). A fístula surge quando o cálculo causa uma erosão na parede biliar e no tubo digestivo, seguindo-se processo inflamatório associado à diminuição de aporte sanguíneo e aumento de pressão intraluminal, seguida de perfuração 1 2 3 com fistulização e saída do cálculo biliar para o trato gastrointestinal (3). As opções cirúrgicas incluem enterotomia com exérese do cálculo somente ou em combinação com colecistectomia e reparo de fístula. Em virtude da idade avançada da maioria desses pacientes e das concomitantes comorbidades, são questionáveis os benefícios de uma cirurgia extensa, que seria mais prolongada e geraria mais trauma (1). As fístulas bileodigestivas mais frequentes são: colecistoduodenais (65-77%), depois colecistocólicas (10-25%) e colecistogástricas (5%) (1). A proposta deste estudo é apresentar um relato de caso de íleo biliar de uma paciente de 75 anos com quadro de dor em hipocôndrio direito, vômitos e distensão abdominal com 5 dias de evolução. Cirurgia do Aparelho Digestivo Preceptora. Residência de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. Graduanda em Medicina. Residente de Cirurgia Geral do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015 35 ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al. RELATO DO CASO NM, feminino, 75 anos, interna por quadro de dor em hipocôndrio direito, em peso, constante, acompanhada de náusea e vômitos com evolução de 5 dias. Também relatava anorexia, distensão abdominal e obstipação. Evoluiu com quadro de hipotensão, anúria, acidose metabólica e rebaixamento do nível de consciência, necessitando de IOT mais vasopressor e hemodiálise, recebendo cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI). Apresentava como exames laboratoriais: Hematócrito 34,3%; Hemoglobina 11,5; Eritrócitos 3,98; Leucócitos 21350; Bastões 17; Segmentados 74; Linfócitos 6; Monócitos 2; Eosinófilos 1; Plaquetas 381000; TP 68%; RNI 1,3; KTTP 36,6s; Ureia 199; Creatinina 6,6; Sódio 137; Potássio 5,2; Amilase 140; Lipase 168; Fosfatase alcalina 62; Bilirrubinas totais 0,33; Bilirrubina direta 0,16; Bilirrubina indireta 0,17; TGO 21; TGP 19; Albumina 2,6; Cálcio 7,9; GGT 21 e Magnésio 1,6. Realizado raio X de abdome, que evidenciou presença de níveis hidroaéreos (Figura A), sendo submetida após duas horas à Tomografia de abdome, que confirmou presença de aerobilia e cálculo misto na topografia do segmento ileal intestinal, medindo 3 cm de diâmetro (Figuras B, C). No transoperatório, foi visualizada fístula com terço distal do duodeno, sendo realizado enterolitotomia e enterorrafia Figura B – Tomografia de abdome mostrando aerobilia Figura C – Corte transversal demonstrando aerobilia Figura A – Raio X de abdome pré-operatório mostrando níveis hidroaéreos 36 da tomografia abdominal (Figuras D, E). Foi de preferência dos autores não optar pela colecistoduodenoanastomose. No pós-operatório, utilizou-se esquema antibiótico com imipenem e metronidazol, ajustados para função renal (DCE= 14), sendo mantida em UTI com tratamento Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015 ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al. de suporte com PVC, PAM, vasopressor (noradrenalina), hidratação, ajuste hidroeletrolítico e diálise diária. Evoluiu com quadro de fibrilação atrial (FA) com alta resposta ventricular, necessitando de cardioversão elétrica (CVE) - 100 + 200J - com reversão hemodinâmica, mas sem reversão da FA, iniciando-se amiodarona. Posteriormente, foi associado Neostigmina devido ao uso de drogas bradicardizantes. Apresentou evolução satisfatória, tendo alta hospitalar no 43º dia pós-operatório, em condições favoráveis. DISCUSSÃO Figura D – Transoperatório mostrando cálculo de 3 cm em íleo distal Figura E - Após retirada de cálculo Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015 A apresentação clínica mais comum do íleo biliar é a dor abdominal acompanhada de distensão e vômitos, tendo uma evolução mais insidiosa pelo efeito de válvula do cálculo (3). O sítio mais frequente de obstrução é o íleo terminal, por seu calibre reduzido e peristaltismo deficiente (3). Mas existem outros sítios de obstrução descritos, tais como jejuno, cólon e, até mesmo, divertículo de Meckel (3). A síndrome de Bouveret é a obstrução do trato gastrointestinal por um cálculo biliar em nível do piloro ou do duodeno, que se manifesta com sintomatologia de obstrução alta. Essa pode ser visualizada e tratada por endoscopia digestiva alta, podendo não necessitar de laparotomia (1). Os sinais radiológicos foram descritos por Rigler, em 1941, como distensão de alças delgadas associado à aerobilia, níveis hidroaéreos e imagem litiásica radiopaca, que se modifica com a movimentação do paciente (3). Na maioria dos pacientes, o diagnóstico correto não é estabelecido antes da cirurgia (1). O cálculo biliar entra no trato gastrointestinal através de uma fístula com o duodeno, estômago ou cólon, sendo a mais comum a colecistoduodenal (1). O tratamento é cirúrgico. Há controvérsias quanto à resolução do quadro em um ou dois tempos, se faria a enterolitotomia, colecistectomia e reparação da fístula ou se somente resolveria a oclusão intestinal com enterolitotomia e, em um segundo tempo, realizaria a reparação da fístula (3). Em função da idade avançada da maioria desses pacientes e das presentes comorbidades, são questionáveis os benefícios da cirurgia em tempo único, a qual seria mais prolongada, aumentando o risco de complicações no pós-operatório (1). As principais justificativas para a realização de tratamento cirúrgico em um tempo são: a recorrência de íleo biliar devido a cálculos biliares residuais, o risco de colangite e o aumento da incidência de carcinoma de vesícula biliar (1). Por outro lado, existem evidências de aumento da mortalidade quando se realiza o reparo da fístula juntamente à enterolitotomia, devido à anastomose e sutura em área de inflamação (1). 37 ÍLEO BILIAR: UM RELATO DE CASO Chaves et al. Doko M. et al registraram 16,9% de mortalidade para a correção em um tempo cirúrgico e 11,7% para enterotomia isolada (1). Uma meta-análise de 1001 casos também sugere que não há necessidade de reparo de fístula de urgência (5). Os achados intraoperatórios são essenciais para a conduta cirúrgica, sendo justificado o reparo da fístula quando existe inflamação aguda e presença de gangrena vesicular (1). COMENTÁRIOS FINAIS Apesar dos achados na literatura terem significância estatística quanto ao tratamento ideal em dois tempos cirúrgicos, especialmente em pacientes que chegam desidratados, em choque e/ou com peritonite, ainda são necessários mais estudos para avaliar com precisão a melhor alternativa para esses casos. 38 REFERÊNCIAS 1. Doko M, Zovak M, Kopljar M, Glavan E, et al. Comparison of surgical treatments of gallstone ileus: preliminary report. World J Surg 2003; 27:400-404. 2. Lozano CS, Guevara ERR, Gismondi AV, et al. Íleo biliar y fístula colecistoduodenal. Informe de un caso. Cir Ciruj 2006;74:199-203. 3. Sosa GG, Mesa JD, Rodríguez SC, et al. Íleo biliar: complicación poco frecuente de la litiasis vesicular. Rev Cubana Cir 2010;49(2). 4. Guimarães S, Moura JC, Pacheco Jr AM, Silva RA. Íleo biliar - uma complicação da doença calculosa da vesícula biliar. Rev Bras Geriatr Gerontol 2010; 13(1):159-163. 5. Reisner RM, Cohen JR. Gallstone ileus: a review of 1001 reported cases. Am Surg 1994; 60: 441-446. Endereço para correspondência Jennyfer Paulla Galdino Chaves Rua Marechal Floriano, 492 - 808 96.200-380 – Rio Grande, RS – Brasil (53) 8128-3023 [email protected] Recebido: 15/9/2014 – Aprovado: 25/11/2014 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 35-38, jan.-mar. 2015 ARTIGO DE REVISÃO Reconstrução microcirúrgica de mandíbula com retalho livre de fíbula Microsurgical reconstruction of mandible with free fibula flap. Ciro Paz Portinho1, Carlos Francisco Jungblut2, Lívia Zart Bonilha3, Juliana Ribeiro Berteli4, Marcus Vinícius Martins Collares5 RESUMO Os autores apresentam uma revisão sobre reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula, acrescida à experiência de centros de referência em reconstrução oncológica e craniofacial. A fíbula apresenta vários aspectos positivos para ser empregada como opção de reconstrução mandibular. O seu pedículo vascular, de anatomia relativamente constante, possui dois sistemas de vascularização (periosteal e endosteal), permite moldagem e montagem versáteis, pode ser acompanhada de ilha de pele para reconstrução tanto intra como extraoral, suporta implantes osteointegrados para a reconstrução da arcada dentária e tem morbidade relativamente baixa na área doadora. O retalho livre de fíbula continua sendo o padrão-ouro para a reconstrução de grandes perdas mandibulares. UNITERMOS: Mandibulectomia, Retalho Livre, Fíbula, Cirurgia Plástica ABSTRACT The authors present a review of mandibular reconstruction with free fibula flap, as well as the experience of reference centers in oncological and craniofacial reconstruction. The fibula has numerous positive aspects to be used as a mandibular reconstruction option. Its vascular pedicle, with a relatively constant anatomy, has two vascularization systems (periosteal and endosteal), allows versatile molding and assembly, can be accompanied by skin island for both intraand extraoral reconstruction, supports osseointegrated implants for reconstruction of the dental arch, and has fairly low morbidity at the donor site. The free fibula flap remains the gold standard for the reconstruction of large mandibular losses. KEYWORDS: Mandibulectomy, free flap, fibula, plastic surgery 1 2 3 4 5 Doutor em Medicina – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Médico Contratado - Serviço de Cirurgia Plástica – Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA. Ortopedista e cirurgião de mão. Mestre em Medicina pela Faculdade de Medicina (FAMED) – UFRGS. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia e da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão. Médico contratado e chefe do Serviço de Cirurgia da Mão – Hospital Cristo Redentor – Porto Alegre. Cirurgiã plástica. Membro Associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Médica do corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento, Mãe de Deus e Divina Providência. Médica anestesista. Especialista em Medicina da Dor – Instituto Nacional de Câncer Instituto Nacional de Câncer – INCa – Rio de Janeiro. Médica concursada do Grupo Hospitalar Conceição. Médica do corpo clínico do Hospital Moinhos de Vento, Hospital Mãe de Deus, Hospital Divina Providência e Complexo Hospitalar Santa Casa. Cirurgião plástico e craniomaxilofacial. Professor do Departamento de Cirurgia da FAMED (UFRGS). Cirurgião Craniomaxilofacial do Hospital São José de Neurocirurgia e do Hospital Santa Rita de Câncer – CHSCPA. Membro Titular da Associação Brasileira de Cirurgia Crânio-MaxiloFacial (ABCCMF) e da SBCP. Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do HCPA. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 39 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. INTRODUÇÃO A reconstrução mandibular é complexa. Há tentativas de reconstrução descritas desde o século XIX, mas a maior experiência surgiu realmente durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. O primeiro grande avanço surgiu com o desenvolvimento dos enxertos ósseos. Nas décadas de 1970 e 1980, os retalhos miocutâneos foram introduzidos para reconstrução de cabeça e pescoço. As reconstruções mandibulares sem tecido osso têm morbidade significativa. A complicação mais comum é a extrusão do material de osteossíntese, em cerca de 46% dos casos (1). Há reabsorção óssea tanto nos enxertos ósseos como nos retalhos microcirúrgicos. No entanto, ela é significativamente maior nos primeiros (2,3). Atualmente, a transferência de osso vascularizado por técnica microcirúrgica (retalho livre) é o padrão-ouro (2,4,5) para a reconstrução mandibular. O retalho livre de fíbula, o procedimento de escolha atual, foi descrito primeiramente por Taylor (6), em 1975 (apud Liu, 2013). As metas da reconstrução são a reabilitação funcional, a melhoria estética e a reintegração social do indivíduo. Este artigo revisa a técnica de reconstrução de mandíbula com retalho livre de fíbula. REVISÃO DA LITERATURA Classificação dos Defeitos Mandibulares Os defeitos mandibulares são grosseiramente classificados como anteriores ou laterais, com base no componente mais predominante (Figuras 1 e 2). Contudo, a classificação mais utilizada é a de Jewer e Boyd (7,8), também denominada de sistema de classificação HCL: - “H” significa high (alto) para defeitos laterais que envolvem o côndilo. - “L” significa low (baixo) para defeitos laterais que não envolvem o côndilo. - “C” significa central e envolve a porção localizada entre os caninos (inclusive), isto é, o arco central. Além disso, a classificação utiliza letras minúsculas para as perdas de partes moles. A letra “s” significa perda cutânea, a partir da palavra skin, em inglês. A letra “m” significa a perda de mucosa. Por fim, a perda de espessura total (through-and-through) é classificada como “sm”. A Tabela 1 apresenta o resumo da classificação de Jewer e Boyd. A classificação de Jewer e Boyd vem sendo revisada (11). Anatomia da Fíbula A compreensão da anatomia cirúrgica é importante (2-6). A fíbula situa-se posterior e lateralmente à tíbia. Este osso Epidemiologia Em um estudo realizado no Instituto Nacional de Câncer (INCa), entre 2009 e 2010, obteve-se uma casuística de 33 pacientes com defeitos mandibulares, sendo 24 deles do sexo masculino (72,7%) (4). A frequência dos fatores de risco foi a seguinte: etilismo, 51,5%; tabagismo, 39,4%. O índice de massa corporal médio desta população foi de 21,3 kg/m2. O diagnóstico mais comum foi o carcinoma epidermoide (81,8%), seguido do ameloblastoma (12,1%). O sítio primário principal foi o assoalho da boca (42,4%). A extensão da ressecção óssea mandibular variou de 6,5 a 17 cm. A cirurgia oncológica mais utilizada foi a mandibulectomia combinada a esvaziamento cervical (COMMANDO). A distribuição dos defeitos mandibulares, pela classificação HCL de Jewer e Boyd (7,8), foi a seguinte: C (14 casos); L (7 casos); HC (6 casos); LC (5 casos); LCL (1 caso). Os defeitos mandibulares advêm de neoplasias (mais comum), traumatismos, infecções, exposição à radiação ou defeitos congênitos (4,9,10). A reabilitação mandibular é importante, porque há diversas funções atribuídas a este osso. Ele participa da mastigação, deglutição, competência oral, verbalização e suporte à respiração, sem falar na função estética do terço inferior (8). Nas doenças e ressecções da cavidade oral, geralmente há perda de tecidos e estruturas que extrapolam a mandíbula (ver classificação a seguir). Assim, à medida que a perda tecidual aumenta, os defeitos tornam-se mais complexos (11). 40 Figura 1 – Perda da hemimandíbula esquerda, incluindo parte do arco central. A ressecção envolveu o côndilo, determinando a classificação “H” de Jewer e Boyd (1989) (7,8). Ainda, houve perda cutânea e mucosa significativa, determinando a classificação final “Hsm”. O arco central não foi completamente retirado. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. culo fibular longo origina-se na cabeça da fíbula, nos 2/3 proximais da face lateral da fíbula e no côndilo lateral da tíbia. O músculo fibular curto origina-se dos 2/3 distais da face lateral da fíbula. O flexor longo do hálux origina-se nos 2/3 distais da face posterior da fíbula e membrana interóssea. O músculo tibial posterior origina-se na face posterior da tíbia e nos 2/3 proximais da fíbula e da membrana interóssea. Na cabeça da fíbula, encontra-se a inserção do ligamento colateral lateral do joelho (ou colateral fibular do joelho) e do tendão do músculo bíceps femoral. No entanto, a fíbula não participa dos movimentos geniculares. Reconstrução Imediata Versus Tardia Figura 2 – Mandibulectomia de arco central (classificação “C” de Jewer e Boyd). Tabela 1 - Classificação de defeitos mandibulares, segundo Jewer e Boyd (1989) (7,8). Classificação Descrição da estrutura afetada C Arco central mandibular L Defeito lateral sem côndilo H Defeito lateral com côndilo s Pele m Mucosa sm Espessura total (pele e mucosa) serve principalmente para a fixação muscular. Não possui função de sustentação da massa corporal, como a tíbia. Ela articula-se proximalmente (sindesmose tibiofibular proximal) com a tíbia e distalmente com a tíbia (sindesmose tibiofibular distal) e o tálus. Na epífise proximal, existem a cabeça da fíbula e a superfície articular, que se articula com o côndilo lateral da tíbia. No corpo, há três bordas e três faces. A borda anterior é espessa e áspera. A borda interóssea contém a crista interóssea. A borda posterior inicia-se no ápice e termina na borda posterior do maléolo lateral. A face medial é estreita e plana. Situa-se entre a borda anterior e a interóssea. A face lateral é convexa e localiza-se entre a borda anterior e a posterior. Por fim, a face posterior situa-se entre a borda posterior e a interóssea. Na epífise distal, existem o maléolo lateral e a face articular para o tálus. O músculo extensor longo dos dedos tem sua inserção proximal no côndilo lateral da fíbula, nos 3/4 proximais da fíbula e na membrana interóssea. O músculo extensor longo do hálux origina-se nos 2/4 intermediários da fíbula e na membrana interóssea. O músculo fibular terceiro origina-se no 1/3 distal da face anterior da fíbula. O músRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 A reconstrução imediata é preferida pela maioria dos autores. Ela permite melhor resultado estético, diminuição da morbidade, reabilitação mais rápida do paciente, prevenção de sequelas que dificultam a reconstrução tardia e redução de custo e tempo de tratamento. A relação maxilomandibular e a oclusão são mais fáceis de serem restabelecidas – ou pelo menos aproximadas do normal – em reconstruções imediatas. Já os defensores da reconstrução tardia dizem que a reconstrução imediata cobre o sítio primário, diminuindo a capacidade de detectar a recidiva tumoral; há maior chance de disseminação tumoral durante o transoperatório; o tempo cirúrgico é muito elevado. Este grupo também relata que deve haver segurança comprovada de margens oncológicas, o que pode ser difícil de ser confirmado no exame de congelação do tecido ósseo (12). A realidade brasileira acaba determinando, muitas vezes, o momento da reconstrução. A indisponibilidade de um microcirurgião, de tempo de sala ou de material adequado, bem como a dúvida sobre margens livres levam, frequentemente, ao atraso na reconstrução mandibular microcirúrgica. A Escolha da Técnica de Reconstrução Mandibular A reconstrução ideal para os defeitos oromandibulares deveria incluir, idealmente, pele fina e inervada. O substituto ósseo deveria ser resistente como o osso mandibular, facilitar a fixação rígida permanente e aceitar implantes dentários. Deveria, também, contribuir para um bom resultado funcional e estético. Por fim, a morbidade da área doadora deveria ser mínima ou inexistente (4-6). Os transplantes ósseos autólogos vascularizados são a melhor escolha para a reconstrução mandibular atualmente (Figura 3). Há quatro retalhos principais: fíbula, crista ilíaca, escápula e antebraço. A fíbula é a melhor escolha (Figura 4). A Tabela 2 apresenta as vantagens deste retalho livre (13). O retalho fibular pode ser osteocutâneo, que leva pele fina. O restabelecimento da inervação, contudo, continua sendo uma limitação à fíbula e à maioria dos outros retalhos. A reconstrução somente com placas metálicas tem limitações e complicações consideráveis (1). O metal apre41 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Figura 3 – Reconstrução do paciente da Figura 2 (2 meses pósoperatório), com retalho livre de fíbula. O paciente apresenta contorno mandibular satisfatório, mas apresenta retração cicatricial no lábio, a ser tratada posteriormente. senta desgaste, e a cobertura pode ser escassa ou será inadequada se tiver sido submetida à radiação. Com isso, o risco de deslocamento, quebra, extrusão, inflamação e infecção é considerável. A escolha da reconstrução somente com placa metálica recai naqueles pacientes em que há necessidade de uma reconstrução provisória (aguardando liberação oncológica) e em condições clínicas que não permitam uma reconstrução de maior porte (8). Deve-se preferir placas de carga suportada ao invés de carga compartilhada. Hoje, pode-se lançar mão inclusive do sistema de placas bloqueadas, conferindo maior segurança à osteossíntese. Nas décadas de 1960 e 1970, houve a descoberta, descrição e desenvolvimento dos retalhos regionais pediculados. Isso melhorou sobremaneira a reconstrução da cabeça e do pescoço (8). Contudo, a morbidade da área doadora, a incerteza dos componentes cutâneos randômicos, tecidos moles volumosos, arcos de rotação limitados e má vascularização óssea limitam a utilização destes retalhos. A longo prazo, eles apresentam complicações maiores do que os retalhos livres em reconstruções de cabeça e pescoço (14). Não obstante, em centros onde não há microcirurgiões, estes retalhos continuam a ser a opção mais utilizada. As principais metas para se realizar reconstruções microcirúrgicas em cabeça e pescoço são: disponibilidade de infraestrutura; equipe estabelecida e treinada; protocolos e rotinas estabelecidos; suporte financeiro e logístico (15). Figura 4 – Imagens pré (A) e pós-operatória (B) de uma reconstrução mandibular com fibular à esquerda. 42 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Tabela 2 – Vantagens da reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula. Possibilidade de realizar várias osteotomias Comprimento ósseo maior do que os outros retalhos livres Combinação com retalhos cutâneos (ilhas de pele) Possibilidade de colocação de implantes dentários osteointegrados Morbidade baixa na área doadora Cirurgia com duas equipes concomitantes Técnica de Reconstrução com Transplante Autólogo Vascularizado de Fíbula (ou Retalho Microcirúrgico de Fíbula) A fíbula é o osso vascularizado mais longo disponível para a reconstrução mandibular (Figura 5). Ela tem de 20 a 30 cm de comprimento útil, dependendo do indivíduo, sendo suficiente para reconstrução de qualquer defeito mandibular. Neste quesito, ela supera todos os outros retalhos livres, que medem aproximadamente: 15 cm para crista ilíaca e escápula; 12 cm para rádio e costela. Além disso, ela é inigualável na reconstrução de defeitos de ângulo a ângulo (LCL ou HCH), requerendo, no entanto, osteotomias múltiplas. As reconstruções microcirúrgicas com fíbula têm sido aplicadas, na verdade, tanto a defeitos mandibulares quanto maxilares, pela possibilidade de reconstrução tridimensional (16). Na área doadora (fíbula remanescente), um segmento proximal de cerca de 6 a 8 cm deve ser mantido (Figuras 6 e 7), a fim de evitar lesão do nervo fibular longo, o que acarreta perda da dorsiflexão do pé, ou pé tombé. Além disso, em crianças e adolescentes pode haver prejuízo no comprimento ósseo por lesão da cartilagem de crescimento. Distalmente, um segmento também de cerca de 6 a 8 cm deve ser preservado, a fim de evitar instabilidade da articu- Figura 5 – Marcação da área doadora do transplante autólogo vascularizado (retalho livre) de fíbula na perna direita. Neste caso, uma ilha de pele foi retirada também. Nesta imagem, estão marcados: a linha de incisão; a cabeça da fíbula; a divisão dos terços da fíbula; a divisão da metade da fíbula (linha tracejada); a ilha ou retalho de pele; o maléolo lateral. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 Figura 6 – Dissecção do retalho de fíbula na perna direita, com ilha de pele. Figura 7 – Dissecção do retalho livre de fíbula na perna direita. As osteotomias superior e inferior já foram realizadas. O pedículo está visível. lação do tornozelo. Geralmente, ocorre alguma paresia na extensão do hálux, mas isso não parece afetar a deambulação (17). Se não houver melhoria com a fisioterapia, um ortopedista especialista em pé e tornozelo deve ser consultado. A membrana interóssea deve ser incisada longitudinalmente. O pedículo vascular corre em paralelo ao osso, sob tal membrana. A osteotomia pode ser feita com serra manual ou automática. Deve-se ter o cuidado de criar um espaço entre o osso e o pedículo com uma pinça hemostática ou um descolador de periósteo, de forma que os vasos não fiquem aderidos e não sejam rompidos durante a osteotomia. Na execução da osteotomia, uma proteção metálica deve ser interposta entre os vasos e o osso, como uma espátula maleável, por exemplo. Costumamos irrigar o pedículo fibular com papaverina (concentração de 1:200.000) para causar vasodilatação, o que facilita a dissecção e pode manter um fluxo melhor para o retalho em confecção. A lidocaína também é utilizada como vasodilatador rotineiramente por vários microcirurgiões. 43 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. O suprimento sanguíneo segmentar permite que o osso seja osteotomizado tantas vezes quantas forem necessárias, para que se reconstrua a mandíbula da melhor forma possível. Alguns autores citam a possibilidade de segmentos poderem ser tão pequenos quanto 1 cm (3). A fíbula tem dimensões adequadas para suportar o uso de implantes osteointegrados. A posição dos segmentos ósseos é importante no planejamento da posição desses, principalmente no arco central. A cicatriz linear longitudinal remanescente costuma ser bastante perceptível. Se houver enxerto de pele, a notoriedade inestética aumenta. Isso deve ser discutido em pacientes com maior preocupação estética, como mulheres jovens. O Retalho de Pele O retalho de pele que pode ser levado juntamente com o osso tem um volume intermediário entre a crista ilíaca e o antebraço: é menor que o primeiro e maior que o último. As ressecções de espessura total, isto é, que envolvem desde a mucosa até a pele, não são bem manejadas com esse retalho. Nestes casos, um retalho acessório pode ser utilizado ou uma parte da pele deve ser desepidermizada para dividir o retalho em duas partes. No quesito de substituição da mucosa, o retalho antebraquial é superior ao de fíbula, mas a fíbula ainda é preferível por todas suas outras vantagens (17). O transporte de pele permite melhorar sobremaneira o contorno facial e funções como fala e deglutição (2). Ainda, o retalho cutâneo guarda a vantagem de facilitar monitoração vascular do retalho livre. A ilha de pele deve ser marcada na metade distal, entre o terço médio e o distal da fíbula. Nessa região, há artérias perfurantes septocutâneas, ao contrário da metade superior da fíbula, onde elas são predominantemente miocutâneas, o que dificulta a dissecção e acarreta pior circulação para a pele, uma vez que a predominância de fluxo será para o músculo. As artérias perfurantes para a ilha de pele estão localizadas posteriormente à fíbula. Há somente uma ou duas perfurantes significativas à vascularização cutânea (17). Assim, a linha média vertical do retalho também deve estar mais posterior. A incisão inicial, quando se leva uma ilha de pele, deve ser feita na seguinte sequência: 1o., reta e vertical superiormente à ilha de pele; 2o., arciforme de convexidade anterior (isto é, incisar apenas a margem anterior do retalho de pele); e 3o., reta e vertical inferiormente. A partir disso, disseca-se o pedículo da fíbula, fazem-se as osteotomias proximal e distal e, após, localiza-se a(s) artéria(s) perfurante(s) nutridora(s) do retalho de pele. As perfurantes passam pelo septo posterior ou logo atrás dele, através do músculo sóleo. As que passam pelo músculo requerem dissecção meticulosa. Se não houver perfusão adequada após a confecção do retalho osteocutâneo, o descarte da pele deve ser considerado. Por ser um retalho nutrido por um vaso perfurante, 44 deve-se ter em mente que: 1o., o fluxo vascular é lento; 2o., a verificação da perfusão deve ser feita com uma pressão arterial média de 70 mmHg ou mais (a combinação com o anestesista é importante neste momento transoperatório). A arteriografia anteroposterior ou a ultrassonografia com Doppler pré-operatória é útil para descartar arteriopatia, suprimento arterial anômalo (ex.: artéria fibular ausente) e estabelecer a posição das perfurantes principais (8,17). Retalhos Livres Simultâneos Vários autores preconizam a reconstrução de espessura total (through-and-through) com dois retalhos livres (1,18,19). A ilha de pele da fíbula é eleita normalmente para a reconstrução da mucosa oral, e um outro retalho livre é utilizado para a reconstrução cutânea, como o retalho antebraquial ou o anterolateral da coxa (ALT, da sigla em inglês anterolateral thigh flap), por exemplo. Esta combinação mantém a mobilidade da língua, a profundidade do sulco gengivolabial e a competência oral para líquidos (1). Não obstante, a realização de dois retalhos livres requer, idealmente, a presença de mais de um microcirurgião e mais de uma equipe trabalhando simultaneamente em áreas doadoras e receptoras, a fim de reduzir o tempo cirúrgico, a morbidade do procedimento e a exaustão física dos médicos. Nesta linha de raciocínio, a associação com um retalho peitoral maior, deltopeitoral ou de couro cabeludo, pode ser uma solução satisfatória ou pelo menos aceitável, de acordo com os recursos institucionais. Abordagem, Moldagem e Colocação do Retalho na Área Receptora Como já foi apresentado, os defeitos mandibulares são divididos, de maneira mais simplista, em anteriores e laterais. Isso deve ser levado em conta no momento da moldagem. A abordagem da área receptora deve ser preferencialmente por incisões prévias. A abordagem extraoral permite uma exposição melhor da área a ser reconstruída, que ficará em continuidade com a cervicotomia para dissecção e escolha de vasos receptores. Ela carrega o risco de lesão do nervo facial, principalmente do seu ramo marginal da mandíbula (mas que será removido junto da peça cirúrgica em muitos pacientes); este risco aumenta pela existência de fibrose cicatricial e perda óssea, o que retira os ramos nervosos de sua posição anatômica. É melhor abordar a porção remanescente da mandíbula um pouco mais distal à sua margem basilar, e logo que possível identificar um plano subperiosteal nesta margem. A abertura das partes moles deve seguir um pouco mais distal, sempre que possível, evitando passar pelo caminho do ramo mandibular (marginal da mandíbula), que pode estar envolvido pela fibrose cicatricial. A partir da identificação de um plano subperiosteal – que é um plano de segurança –, segue-se a dissecção rumo à articulação temporomandibular. Para isso, remanescentes ósseos, periosteais ou placas previaRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. mente colocadas servirão de guia. Um aparelho estimulador de nervos periféricos pode ser útil neste momento para a busca e preservação nervosa. O material de osteossíntese normalmente é retirado para possibilitar a moldagem e a entrada de um novo, associado ao retalho livre de fíbula. O remanescente ósseo de cirurgias prévias, se houver, pode ser deixado em posição e desgastado – desde que não esteja em posição anômala e de interferência –, porque pode apresentar três vantagens: 1a., criar uma espécie de “parede” entre a mucosa e o osso recém-chegado, diminuindo a chance de lacerações e fístulas; 2a., aumentar o contato ósseo e promover mais pontos de ossificação; 3a., aumentar a espessura ao tecido ósseo, facilitando a colocação de implantes e próteses dentárias posteriormente. A reconstrução do côndilo e da articulação será discutida a seguir. A abordagem intraoral é menos utilizada na reconstrução microcirúrgica. Ela detém algumas vantagens, tais como cicatrizes inaparentes na região cervicofacial e risco menor de lesão do nervo facial. No entanto, a área de trabalho é mais difícil, é incômodo trabalhar com bloqueio intermaxilar associado, a incisão precisa ser ampla, e isso determina maior risco de produção de fístula salivar e coleta de saliva na região cervical, e – o que pode ser o mais grave – a cicatrização pode estar muito prejudicada por causa de radioterapia prévia, aumentando sobremaneira o risco de deiscência, fístula, infecção e perda da reconstrução. A abordagem intraoral pode ser o método preferido em várias situações de reconstrução mandibular não microcirúrgica, mas no caso da microcirurgia, os autores preferem a externa. Na moldagem óssea, as osteotomias devem ser feitas com o cuidado de não lesar o periósteo nas partes moles adjacentes, que levam o aporte sanguíneo à extremidade distal. A fíbula tem um suprimento sanguíneo excelente, porque a artéria fibular corre paralelamente ao osso (e ao periósteo, portanto). As fraturas em galho verde não têm um papel estabelecido na reconstrução mandibular. A maioria das osteotomias requer angulação em mais de um plano. Assim, teremos uma reprodução mais precisa da porção mandibular ressecada. A meta mais importante na moldagem mandibular é o contorno inferior (basal) da mandíbula. A altura do enxerto é secundária, mesmo considerando a colocação futura de implantes osteointegrados. As técnicas vigentes de implantodontia possibilitam a reabilitação, mesmo com um déficit de altura óssea. Para fazer a moldagem do segmento anterior, deve-se, primeiramente, localizar sua posição adequada (Figuras 8 e 9). O segmento anterior tem em torno de 2 cm de comprimento. A sua localização é importante para determinar o comprimento do pedículo vascular. A osteotomia realizada para reconstruir e moldar o segmento anterior deve ser angulada em dois planos. O segmento anterior deve ficar em paralelo com o plano coronal, e não no mesmo plano que os segmentos do corpo da mandíbula, ou seja, ele deve sofrer uma rotação póstero-superior. Este critério é importante para a colocação de implantes osteointegrados. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 Figura 8 – Imagem de osteossíntese mandibular já realizada. A fixação deve ter de dois a cinco parafusos nos segmentos ósseos nativos e ser bicortical nestes. Já no retalho livre, deve-se utilizar 2 parafusos monocorticais por segmento. Notem-se os clampes vasculares na região cervical, isto porque a osteossíntese foi realizada antes da anastomose vascular, evitando movimentos bruscos após o restabelecimento da perfusão do autotransplante. Figura 9 – Reconstrução da hemimandíbula direita com retalho livre de fíbula. Aspecto do autotransplante já fixado. A ilha de pele servirá (seta), neste caso, para a reconstrução da face. A introdução do osso anteriormente é mais desafiadora do que em segmentos laterais. Isso ocorre porque o remanescente mandibular é menos estável para manipulação. A fixação intermaxilar auxilia, mas, frequentemente, há falta de elementos dentários para a sua realização. A escolha do lado da área doadora depende, primeiramente, da necessidade da reconstrução. Nas reconstruções laterais sem ilha de pele ou quando a ilha for para a reconstrução cutânea, a fíbula utilizada para reconstrução pode ser ipsilateral ao defeito (Figuras 8 a 10). Nas reconstruções laterais com ilha de pele, em que a mucosa necessite reconstrução, a fíbula poder ser contralateral. Em defeitos de espessura total, preferimos usar a ilha de pele para a reconstrução de mucosa. Já nas reconstruções de arco central, sem envolvimento lateral, qualquer lado se presta como doador, mas o lado da cervicotomia e esvaziamento 45 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. cervical pode determinar a escolha. Quando os vasos cervicais receptores não são adequados ou se houver história de trauma importante, utilizar-se-á o lado contralateral. O primeiro passo na moldagem é determinar a posição do ângulo da mandíbula no osso doador (fíbula). Nos casos de utilização contralateral, deve-se lembrar que a osteossíntese não poderá ser feita na face medial da fíbula, por onde passa a vascularização. A fixação da placa de titânio ao osso pode ser feita na área doadora, antes da secção do pedículo e do início do tempo de isquemia. Deve-se fazer uma fixação proximal da fíbula para que os vasos não fiquem sendo distendidos durante a montagem, com risco de lesão. Os autores fazem a montagem assim rotineiramente e consideram-na útil para diminuir o tempo de isquemia e seus riscos. O desenvolvimento maior do planejamento virtual pré-operatório para reconstruções deve melhorar esta etapa. Atualmente, já é possível planejar e produzir enxertos sintéticos, guias para osteotomias, bem como moldes para enxertos e retalhos ósseos autógenos. O ponto crucial de todo este planejamento é otimizar a reconstrução e a fixação do segmento reconstruído à porção nativa. O desafio é maior nas reconstruções tardias onde não houve fixação óssea com placas e parafusos, porque o deslocamento dos cotos mandibulares gera anormalidades anatômicas significativas. Para o planejamento virtual, os exames tomográficos são realizados, e os arquivos DICOM® (Digital Imaging and Communication in Medicine), obtidos de uma estação PACS (Picture Archiving and Communication System) (20). A seguir, a montagem da falha, do enxerto ou da guia de osteotomia é construída virtualmente em um software CAD (Computer Aided Design). O próximo passo é a fabricação física do objeto planejado. A manufatura aditiva é o termo que se refere ao método de construir um objeto físico camada por camada (20,21). Este método baseia-se na existência de um modelo digital tridimensional, que é fatiado em várias camadas finas, variando de 50 a 300 micrômetros. Os materiais utilizados para a manufatura podem ser plásticos, cerâmicas, ceras ou metais. A forma, o tamanho, o contorno e o encaixe da fíbula à mandíbula são todos fatores importantes para determinar uma função mastigatória adequada (21). A placa de titânio é fixada à fíbula com parafusos monocorticais (geralmente até 8 mm) e à mandíbula remanescente com parafusos bicorticais (geralmente acima de 12 mm). A utilização de um medidor de profundidade do furo é útil para aumentar a precisão do tamanho do parafuso com fixação bicortical. A oclusão deve ser revisada rotineiramente, porque a própria fixação pode causar deslocamento. Vale a pena ser obsessivo nesta etapa, garantindo um funcionamento melhor do aparelho estomatognático, sem falar nas questões estéticas. A correção da má oclusão posteriormente pode ser difícil. O bloqueio maxilomandibular (BMM) é útil e deve ser considerado no paciente que apresenta alguma possibilidade de intercuspidação dentária (encaixe dentário), buscando-se a melhor intercuspidação oclusal. A melhor referência dentária é a dos caninos e pré-molares. Se o paciente for edêntulo em uma das arcadas, há perda da referência oclusal. Nestes casos, há duas possibilidades: 1a., o paciente tem prótese total prévia e a utilizaremos no transoperatório, fixando a oclusão com BMM através de parafusos ósseos; 2a., o paciente não tem prótese total prévia e colocamos uma placa pré-implantação da fíbula, que mantenha os cotos mandibulares em posição. (Esta tática pode ser útil em qualquer situação em que haja dificuldade de colocar o paciente em oclusão.) O contato ósseo deve ser revisado ao final do procedimento. Áreas de pouco contato gerarão menos ossificação e mais fibrose, levando à pseudoartrose. Os fragmentos ósseos remanescentes da moldagem da fíbula podem ser interpostos, bem como o pó de osso residual. Uma alternativa mais sofisticada é o uso de proteína morfogenética óssea do tipo 2 (BMP-2), mas que tem custo elevado (2225). Os cimentos ósseos não podem ser colocados, até o momento, em áreas de carga significativa, como costuma ser o caso da mandíbula (26). A Reconstrução do Côndilo e/ou da Articulação Temporomandibular (ATM) Figura 10 – Aspecto final transoperatório de uma reconstrução mandibular com fíbula e ilha de pele (retalho osteocutâneo). 46 A ATM é um assunto sempre complexo, controverso e fascinante. Os defeitos laterais “H” das mandibulectomias envolvem o côndilo. Por muitos anos, ignorou-se a reconstrução condilar, gerando um ramo flutuante. Embora a Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. abertura permaneça possível sem a reconstrução condilar, com o tempo podem ocorrer desvio mandibular e alteração funcional. No fechamento bucal, há contato tangencial das superfícies oclusais, gerando dificuldade mastigatória. Além disso, a má oclusão dentária poderá acarretar desgaste dentário de cúspides e sobrecarga e disfunção da ATM contralateral. Por tudo isso, a reconstrução mandibular deveria prever a reconstrução articular, quando necessário, além da melhor simetria possível entre a mandíbula remanescente e o lado reconstruído. Nos pacientes pediátricos e adolescentes, existem ainda os problemas relacionados ao crescimento facial, que poderão gerar assimetrias e disfunções ainda maiores na idade adulta. Atualmente, há várias técnicas para esta reconstrução, conforme mostra a Tabela 3. Nos casos em que a reconstrução não é possível, o paciente deve ser submetido a um tratamento fisioterápico rigoroso para otimizar a função muscular e reduzir o desequilíbrio entre os lados da mandíbula. A fíbula pode ser moldada em sua extremidade para mimetizar um côndilo. Pode-se acrescentar um enxerto de cartilagem costal ou de concha auricular, suturado ao osso fibular. O espaço articular pode ser preenchido com um retalho muscular, fáscia ou uma lâmina de silicone, criando um espaço articular artificial. Mais recentemente, Bauer e cols. (2013) utilizaram uma associação de enxerto costocondral e membrana amniótica (27). Em qualquer reconstrução, é importante lembrar de não deixar a ponta da placa de titânio próxima ou dentro do espaço articular, o que pode causar sintomas álgicos significativos, a ponto de necessitar reintervenção para encurtamento do material de osteossíntese. O enxerto “de novo” do côndilo também é uma técnica descrita e poderia ser utilizado: 1o., se esta porção mandibular estiver livre de tumor; 2o., se ele puder ser congelado e reesterilizado, o que é improvável para a reconstrução imediata. A reconstrução com um enxerto ósseo e/ou cartilaginoso é uma técnica antiga. O enxerto costocondral foi descrito por Gilles em 1920 (apud Verma, 2011) (28). Ela tem uma aceitação razoável e pode ter resultados satisfatórios. O problema maior é a imprevisibilidade do comportamento destes enxertos, que podem sofrer: 1o., reabsorção; 2o., crescimento excessivo; 3o., deslocamento. Aqui também a interposição de gordura, músculo, fáscia ou algum material sintético (ex.: silicone) pode ser útil na reprodução de um espaço articular. Um retalho osteomuscular de processo coronoide já foi descrito também para a reconstrução condilar, mas é pouco provável que se aplique, na prática, a casos oncológicos, em que a ressecção costuma ser de ambas as regiões. Esta técnica seria mais interessante para reconstruções em casos de anquilose temporomandibular. A reconstrução com enxerto costocondral costuma ser a primeira opção em crianças e adolescentes submetidos à reconstrução mandibular com perda de substância na região da ATM. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 A reconstrução aloplástica da ATM (com prótese) foi documentada pela primeira vez em 1840, por John Murray Carnochan (apud Goiato, 2009) (2). A prótese total de ATM é uma solução biomecânica, mais do que biológica (Figuras 11 e 12). Ela possibilita a melhoria da distorção e mutilação, sem haver preocupação com a vascularização dos tecidos adjacentes, fator essencial quando se pensa em reconstrução autógena. Em vista das desvantagens da reconstrução autógena, a reconstrução aloplástica pode ser uma alternativa. A porção condilar é feita de uma liga cobalto-crômio (Co-Cr) (29). As próteses metálicas de côndilo parecem ter um índice não desprezível de complicações. A reconstrução condilar com placa de titânio contendo um substituto condilar, quando em contato com a fossa glenoide, provocará erosão e reabsorção. Há relatos de deslocamento e extrusão, perfuração de conduto auditivo externo, perfuração de tímpano, dano coclear e perda auditiva e penetração do material metálico em direção à base do crânio (30). Assim, a reconstrução da ATM deve ser idealmente com prótese total, quando se optar por este método. A reconstrução aloplástica está contraindicada nas seguintes situações: crianças; pacientes não informados; pacientes com doenças sistêmicas não controladas; pacientes alérgicos a algum componente da prótese; pacientes com infecção ativa do sítio de implantação (29). A distração osteogênica é uma técnica mais recente Tabela 3 – Técnicas de reconstrução do côndilo e da articulação temporomandibular. Moldagem da extremidade óssea do retalho livre Enxerto de novo do côndilo Enxerto ósseo e/ou cartilaginoso Prótese de titânio (Figura 11) Distração osteogênica Figura 11 – Reconstrução da articulação temporomandibular esquerda com prótese total, associada a uma reconstrução mandibular com fíbula livre. Início da reconstrução. 47 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Figura 12 – Continuação da reconstrução da Figura 11. Moldagem da placa para reconstruir ramo, corpo e arco mandibular à esquerda. dentro das técnicas de reconstrução óssea craniofacial. Trata-se de uma transposição da técnica de alongamento ósseo de ossos longos para o esqueleto craniofacial. Ela já é utilizada há décadas pela ortopedia e foi descrita pelo médico russo Gavriil Ilizarov, em 1954 (apud Spiegelberg, 2010) (31). É um método com várias vantagens: morbidade baixa, exclusão de um segundo campo cirúrgico e utilização de osso nativo da região anatômica. Entretanto, não há ainda evidências clínicas fortes sobre reconstrução condilar com esta técnica. Existem somente trabalhos experimentais com resultados satisfatórios (32). Anastomoses As anastomoses microvasculares são um tempo fundamental da reconstrução. A escolha dos vasos e a compatibilização dos calibres são importantes, mas nem sempre possíveis. As regiões irradiadas podem conter vasos de pior qualidade, o que aumenta o risco de falha circulatória, trombose e perda do retalho livre. Quando os ramos da artéria carótida externa são de calibre muito fino ou apresentam percurso tortuoso, a escolha da própria carótida externa é indicada, podendo a anastomose ser feita pela técnica terminoterminal. De maneira semelhante, quando não houver uma veia de calibre ou trajeto satisfatório, a anastomose poderá ser feita na veia jugular interna, neste caso pela técnica terminolateral. Em um estudo (11) realizado por Cardoso e cols. (2011), a artéria cervical mais utilizada para anastomose foi a facial (53%), e a veia foi o tronco tireolinguofacial (53%). Nesta mesma casuística, a carótida externa foi utilizada em 7% e a jugular interna em 20% dos casos. Há grandes variações de instituição para instituição. O comprimento do pedículo dissecado na área doadora deve ser o maior possível. Há encurtamento do mesmo após sua secção. Deve-se ter muito cuidado ao planejar uma anastomose contralateral, porque, após a osteossíntese, o pedículo pode não alcançar os vasos receptores almejados. Se isso ocorrer, o recurso é o enxerto de veia. Esta técnica aumenta o tempo de isquemia e o risco de trombose. Uma 48 outra alternativa para pedículos curtos ou vasos muito danificados é a alça arteriovenosa (AV loop), que consiste na retirada de um enxerto de veia e uma anastomose arterial em uma ponta e venosa na outra. Deve-se aguardar em torno de uma a duas semanas e depois proceder à reconstrução propriamente dita. A isquemia deve durar o menor tempo possível. Os autores fazem a melhor dissecção possível dos vasos, tanto doadores como receptores, antes da entrada em período de isquemia. Ainda, a montagem da placa à fíbula pode ser feita ainda na área doadora em grande parte dos casos. O pedículo é protegido de tração excessiva fixando-se um ponto de fio grosso (nylon ou aço) ou uma pinça Bakhaus ou semelhante entre a porção proximal da fíbula e uma borda da incisão. A prototipagem tem reduzido o tempo de moldagem da placa e da osteossíntese, o que também parece contribuir para a redução do tempo de isquemia. Implantes Osteointegrados para Reabilitação Dentária A fíbula presta-se sobremaneira à implantodontia para reabilitação dentária (2). Os implantes osteointegrados devem ser colocados entre 4 e 6 meses nos casos de enxertos ósseos, e períodos mais longos de espera podem causar reabsorção óssea por falta de carga. Este comportamento, no entanto, não é observado no caso dos retalhos livres (2,33). Nesses, a implantodontia pode atuar logo após a reconstrução microcirúrgica. Preferimos que se aguarde o tempo para a determinação do sucesso vascular, para que o paciente inicie a reabilitação dentária. Monitoração O retalho livre de fíbula apresenta uma dificuldade de monitoração. Ele fica internalizado quando não há ilha de pele, e isso limita a avaliação da circulação sanguínea. Quando o retalho é osteocutâneo, pode-se fazer avaliação da cor da pele, da cor do sangue à perfuração com uma agulha e da glicemia capilar neste mesmo sangue provindo de perfuração do retalho de pele. A ultrassonografia com Doppler é um exame importante, confiável e de execução frequente (Figura 13), mas que pode ser de difícil execução ou mesmo impossível se a anastomose não estiver superficial ou se o retalho estiver dentro da cavidade oral. Nos casos em que só há osso, as alternativas podem ser a cintilografia óssea e a angiotomografia (34). A cintilografia óssea empregando Tecnécio-99m-Metilenodifosfato (99Tc-MDP) pode ser um exame útil na demonstração da perfusão do autotransplante de fíbula (Figura 14). Em um estudo (35), Sbalchiero e cols. (2008) tiveram maior capacidade do exame em demonstrar presença de fluxo do que em excluir a inviabilidade da reconstrução (falsos negativos). A cintilografia com 99Tc-MDP pode ser útil mesmo nos primeiros dias, para monitorar transplantes ósseos e determinar reintervenção (36). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Figura 13 – Ultrassonografia com Doppler de uma anastomose de reconstrução mandibular com fíbula. A área escura (hipoecoica) representa um hematoma, que foi posteriormente drenado. A angiotomografia tem sido feita por nossa equipe nas reconstruções com fíbula livre atualmente. Este exame é capaz de identificar fluxo vascular, tanto na fase arterial quanto venosa (Figuras 15 e 16). Parece bastante útil na avaliação, mas há de se considerar a dose cumulativa de radiação, assunto que vem ganhando espaço para discussão na atualidade. A angiografia está em desuso para este tipo de monitoração, ao passo que a ressonância magnética e a SPECT (tomografia computadorizada por emissão de fóton simples) podem ter papel importante, ainda a ser melhor determinado (36). A monitoração da glicemia capilar está sendo estudada recentemente como parâmetro de perfusão de retalhos livres e pediculados (37). Sugere-se que a glicemia do retalho deva ser maior ou igual a 70% da sistêmica. Trata-se de um exame bastante simples e barato, mas o seu papel na monitoração de retalhos – sejam livres ou pediculados – ainda está por ser estabelecido, já que pode haver tanto falso-positivos e negativos (38). Manejo Perioperatório Figura 14 – Cintilografia óssea com Tecnécio-99m-Metielenodifosfato (99Tc-MDP), demonstrando viabilidade da reconstrução do corpo e parte do ramo esquerdo da mandíbula (seta), com autotransplantes microvascularizados de fíbula. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 O sucesso dessas reconstruções depende de vários fatores. Os principais são aqueles relacionados à técnica cirúrgica, mas isso por si não é suficiente para garantir a sobrevivência do retalho livre e o controle de complicações. 49 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Figura 15 – Angiotomografia (corte axial) de uma paciente submetida à reconstrução microcirúrgica tardia do ramo mandibular direito. A imagem apresenta a fase arterial do exame, onde a seta indica o fluxo pela anastomose realizada entre a artéria lingual e a artéria fibular. Figura 16 – Angiotomografia computadorizada (corte sagital) demonstrando perfusão na artéria fibular após a anastomose com a artéria carótida externa esquerda (seta). Uma equipe competente, treinada e acostumada a lidar com esses casos, composta – além dos microcirurgiões – de anestesistas, intensivistas, fisioterapeutas e enfermeiros, contribui para as etapas do manejo perioperatório. A preparação do paciente inclui: fazer reserva de leito de unidade de terapia intensiva; fazer reserva de sangue (concentrados de hemácia principalmente); realizar acesso veno50 so, de preferência central, mas não coincidente com a região de cervicotomia; sondagem vesical de demora; instalação de cateter de pressão arterial média (PAM). Ainda, a utilização de analisador de gases (em caso de anestesia inalatória) e de índice bispectral (BIS) – tanto para anestesia venosa total quanto para inalatória – permite avaliar com mais precisão o plano anestésico e evitar consciência transoperatória. Deve-se evitar atraso na reposição de volume intravascular, para que não seja necessária uma reposição abrupta, podendo causar congestão, ou levar à necessidade de vasopressores para manter a pressão-alvo, que seria acima de 70 mmHg. A monitoração deve ser feita de modo mais intensivo nas primeiras 48 a 72 horas. Após, o risco de trombose diminui consideravelmente. Idealmente, uma reintervenção deve ser executada dentro de seis horas após o início da trombose. Deve-se ter um alto grau de suspeição para este evento. O paciente deve ficar em unidade de terapia intensiva por pelo menos 48 horas. A PAM deve ficar acima de 70 mmHg. Tanto o uso de vasoconstritores (isquemia arterial) como a sobrecarga fluida (congestão e isquemia venosa) podem ser danosos à perfusão do retalho microcirúrgico. A hemoglobina deve permanecer maior ou igual a 8 g%. A cabeceira do paciente deverá ficar elevada em 30 graus. O cirurgião deve comunicar e escrever na prescrição se existe alguma restrição de movimento cervical, pois pode-se perceber no período transoperatório se há posições que geram risco de interrupção de fluxo circulatório (geralmente, quando o paciente gira o pescoço para o lado ipsilateral à anastomose). Quanto à prescrição, nossa rotina costuma ser a seguinte: - analgesia pós-operatória fixa com opioides, preferindo morfina intravenosa (e preterindo petidina); - analgesia complementar com dipirona intravenosa; - anti-herméticos fixos, preferindo ondansetrona; - corticoterapia intravenosa por 48 horas, visando a diminuir quadro inflamatório, congestão venosa e contribuindo para o efeito anti-hermético, preferindo fosfato de dexametasona intravenosa; - profilaxia do tromboembolismo, com heparina sódica ou heparina de baixo peso molecular (ex.: enoxaparina) subcutânea, bem como com ácido acetilsalicílico por via oral ou por sonda nasoentérica (iniciado no 1º. dia pós-operatório); - profilaxia da infecção por 48 horas, com antibióticos intravenosos, geralmente cefazolina se não houver manejo intraoral ou com clindamicina se houver; - higiene oral com clorexidina aquosa 0,12%. O paciente pode iniciar com dieta pastosa se não houver abordagem intraoral, ou com dieta por sonda nasoentérica ou por via oral, líquida fria e sem lactose, se a mucosa for incisada. O acompanhamento nutricional deve ser idealmente solicitado. O paciente não deve mastigar por 45 a 60 dias, até que se comprove osteointegração por exames de imagem. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. O acompanhamento fisioterápico é importante, tanto dermofuncional, quanto para o aparelho respiratório ou locomotor. Controle Pós-Operatório por Imagem O controle radiológico pós-operatório deve ser feito idealmente por tomografia computadorizada. Há discussões recentes sobre a exposição à radiação e os efeitos acumulativos que os exames tomográficos provocam, mas pelo menos uma tomografia com reconstrução tridimensional, realizada para avaliar posição, consolidação óssea e volume do retalho livre é aconselhável após 45 a 60 dias da cirurgia (Figura 17). A radiografia panorâmica permite uma avaliação óssea menos acurada, mas com a possibilidade de avaliar alguns parâmetros, como altura e não união óssea. A cintilografia com 99Tc-MDP tem papel importante aqui para avaliar a perfusão tardia, embora não seja adequada para os parâmetros supracitados. Um estudo curioso (39), realizado por Jacobsen e cols. (2011), demonstrou que pode haver achados de necrose óssea em reconstruções tardias com fíbula, mesmo em casos em que o paciente apresentava-se clinicamente bem e tratado inclusive com implantes e próteses dentárias. O significado prognóstico disso ainda está por ser determinado. Figura 17 – Tomografia computadorizada com reconstrução tridimensional, apresentando a reconstrução do ramo direito da mandíbula. Neste procedimento, o côndilo foi deixado flutuante, e uma porção remanescente de um enxerto de costela prévio (que sofrera reabsorção por infecção) foi mantida para aumentar o contado ósseo. A paciente apresentava sequela de um ameloblastoma. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 Manejo Pós-Operatório da Área Doadora A área doadora costuma ter uma recuperação gradual satisfatória, mas várias complicações podem ocorrer. O edema deve ser tratado com a elevação do membro inferior quando o paciente estiver sentado ou deitado, com o uso de meias elásticas de tamanho três-quartos de média compressão se as feridas operatórias já estiverem cicatrizadas e com fisioterapia dermofuncional e motora pelo tempo que for necessário. Exercícios feitos a domicílio também contribuem para o reestabelecimento da função do membro inferior operado (6). Não recomendamos a imobilização prolongada nem o uso de talas, porque isso pode aumentar o risco de trombose venosa, aderência tendinosa e retardo na recuperação motora. Se houver alteração motora de marcha ou de movimentos dos artelhos, um ortopedista deverá ser consultado. O maior risco desta cirurgia é a perda da extensão do hálux, que pode ser temporária e tratada com fisioterapia, ou definitiva, merecendo então uma artrodese para colocá-lo em posição mais funcional. A Figura 18 apresenta uma radiografia da área doadora. Complicações A reconstrução mandibular microcirúrgica costuma ser feita em pacientes com neoplasias em estágio avançado, com perdas ósseas consideráveis e com várias comorbidades. Este perfil de pacientes pode determinar aumento das complicações clínicas como cirúrgicas. Uma série de 400 casos de reconstrução microcirúrgica em cabeça e pescoço demonstrou que há complicações perioperatórias em 36,1% dos casos. As complicações relacionadas às reconstruções perfazem 19,0% (14). A reconstrução mandibular apresenta complicações maiores do que em outras regiões (40). A Tabela 4 mostra fatores de risco para perdas de retalhos livres em cabeça e pescoço. As complicações da reconstrução com fíbula estão apresentadas na Tabela 5. Em um trabalho prévio realizado no INCa (41), as incidências de complicações na área receptora, em pacientes submetidos a mandibulectomias, foram as seguintes: fístula, 21,2%; necrose, 13,5%; deiscência, 13,5%; infecção, 11,5%; sangramento, 9,6%; extrusão de material de osteossíntese, 1,9% (Figura 19). Os pacientes com ressecção de arco central mandibular apresentaram mais complicações. A reintervenção é mandatória nos casos de suspeita de trombose venosa ou arterial, bem como nos de hemorragia. Nambi e cols. (2013) descreveram uma segunda anastomose distal no pedículo fibular (em uma reintervenção) (34), em caso de falha da anastomose convencional. Eles basearam-se no princípio do fluxo reverso que ocorre quando vasos importantes são destruídos por trauma proximalmente, e o fluxo distal acaba se tornando reverso e assumindo a perfusão de uma determinada área do membro. O acompanhamento por angiotomografia demonstrou fluxo presente após seis semanas da reintervenção. 51 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. Figura 19 – Imagem de uma complicação de reconstrução microcirúrgica tardia do arco central mandibular, com fíbula livre, em uma paciente de 59 anos. Houve infecção pós-operatória, resultando em deiscência, extrusão do material de síntese e perda da reconstrução. A ferida já apresentava, neste momento, granulação. Note-se o aspecto eritematoso e edemaciado da pele circunjacente, devido à radioterapia e ao quadro infeccioso. Figura 18 – Radiografia da área doadora da fíbula direita. Uma porção proximal e outra distal, de 6 a 8 cm, devem ser mantidas, a fim de evitar lesão do nervo fibular e instabilização do tornozelo, respectivamente. Tabela 4 – Fatores de risco para perda de retalhos livres em reconstruções de cabeça e pescoço. Perda de peso pré-operatória Envolvimento de mais de um cirurgião Tabagismo Diâmetro do retalho > 4 cm Tempo operatório maior que 11 horas Radioterapia prévia Retalhos musculares com enxerto de pele Uso de nitrato ou broncodilatadores Conforme Suh et al. (2004). Tabela 5 – Complicações da reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula. Área receptora: - deiscência de sutura; - fístula salivar; - trombose; - necrose do retalho; - sangramento; - infecção. Área doadora: - perda da extensão do hálux; - perda da dorsiflexão do pé; - dificuldade de marcha; - dor crônica; - perda de enxerto quando se confecciona retalho de pele; - cicatriz hipertrófica ou queloide. 52 As fístulas podem ter manejo conservador inicialmente, desde que não haja comunicação com a região das anastomoses. A presença de fístulas salivares em reconstruções microcirúrgicas aumenta o tempo de internação em média em sete dias (41). O tratamento conservador (42, 43) consiste: 1o., na suspensão da dieta por via oral e colocação ou manutenção de uma sonda nasoentérica; 2o., no uso de antibióticos por via intravenosa; 3o, curativos de uma a três vezes ao dia, com pequenos debridamentos se necessário; 4o., uso de toxina botulínica nas glândulas parótidas. Embora alguns autores não tenham encontrado diferença significativa entre o manejo conservador em comparação ao cirúrgico (41), é temerário deixar áreas de exposição de osteossíntese e vascular sem cobertura. Nestes casos, optamos rotineiramente pela revisão cirúrgica. A exposição óssea leva à desvitalização deste tecido, ao risco de osteomielite, à não união e à perda de volume. O osso exposto deve ser abordado e desbridado; se não houver infecção ativa, um enxerto ósseo pode ser interposto para restabelecer a continuidade óssea da reconstrução. Uma cobertura eficiente deve ser realizada através de retalhos locais ou de um novo retalho locorregional ou à distância. O material de síntese, por sua vez, pode permanecer exposto, desde que não haja comunicação significativa com o osso viável. Em alguns casos, aguarda-se a melhoria das condições locais (inflamação, edema, fibrose, etc.) para proceder a uma nova reconstrução, enquanto a placa de titânio mantém os cotos mandibulares bem posicionados. As feridas contendo necrose devem receber desbridamento mecânico (cirúrgico) ou químico. Há várias opções não cirúrgicas, mas que podem ser mais lentas: papaína a 8%; alginato de prata; hidrogéis, etc. Após o início da granulação, a ferida pode ser tratada com triglicerídeos de cadeia média, vaselina e/ou curativos de pressão negatiRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 RECONSTRUÇÃO MICROCIRÚRGICA DE MANDÍBULA COM RETALHO LIVRE DE FÍBULA Portinho et al. va. Estes últimos têm sido utilizados com mais frequência, demonstrando: 1o., controle melhor da infecção; 2o., aceleração da angiogênese, do aparecimento de tecido de granulação e, consequentemente, da cicatrização; 3o., diminuição da dor; 4o., diminuição do edema e facilitação da manipulação cirúrgica posterior das bordas da ferida; 5o., redução no tamanho da ferida e no porte da cirurgia reparadora posterior; 6o., possibilidade de uso portátil a domicílio e de manejo ambulatorial. O seu custo, entretanto, não é factível ainda a todos os casos no Brasil atualmente (44,45). Em um estudo com treze pacientes (44), Yang e cols. (2013) aplicaram o curativo de pressão negativa em pacientes com complicações de reconstruções com retalhos livres em cabeça e pescoço. O tempo médio de obliteração do espaço morto e formação de tecido de granulação foi de 10,8 dias. A oxigenoterapia hiperbárica (OHB) é um outro tratamento adjuvante para feridas. Ela provoca aumento da angiogênese e da proliferação de fibroblastos. A OHB é utilizada rotineiramente no tratamento da osteorradionecrose. Entretanto, permanece controversa nas infecções necrosantes de partes moles, embora artigos experimentais demonstrem aumento na sobrevida de enxertos e retalhos (45). A OHB vem ganhando espaço e adeptos à medida que estudos mais controlados vêm surgindo. COMENTÁRIOS FINAIS A reconstrução mandibular com retalho livre de fíbula é o padrão-ouro atualmente. A fíbula tem um pedículo vascular de anatomia relativamente constante, possui dois sistemas de vascularização (periosteal e endosteal), permite moldagem versátil, pode ser acompanhada de ilha de pele para reconstrução tanto intra como extraoral, suporta implantes osteointegrados para a reconstrução da arcada dentária e tem morbidade relativamente baixa na área doadora. A reconstrução da articulação temporomandibular tem mais de uma opção e continua controversa. Os defeitos de espessura total (through-and-through) da região mandibular podem ser reconstruídos com a associação de um outro retalho – livre ou pediculado –, de acordo com a capacidade da equipe e da instituição. O planejamento da reconstrução com prototipagem e impressoras tridimensionais deve otimizar a reconstrução microcirúrgica com autotransplante de fíbula. As técnicas de monitoração vêm sendo estudadas e poderão sofrer mudanças de protocolo em breve. O número de complicações não é desprezível e faz-se necessária uma equipe experiente para manejá-las. REFERÊNCIAS 1. Wei F, Celik N, Yang W, Chen IH, Chang YM et al. Complications after reconstruction by plate and soft-tissue free flap in composite mandibular defects and secondary salvage reconstruction with osteocutaneous flap. Plast Reconstr Surg 2003; 112(1): 37-42. 2. Goiato MC, Ribeiro AB, Marinho MLVD. Surgical and prosthetic rehabilitation of patients with hemimandibular defect. J Craniofac Surg 2009; 20(6): 2163-7. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 39-54, jan.-mar. 2015 3. Li L, Blake F, Heiland M, Schmelzle R, Pohlenz P. Long-term evaluation after mandibular reconstruction with fibular grafts versus microsurgical flaps. J Oral Maxillofac Surg 2007; 65(2): 281-6. 4. Osório RHC, Portinho CP, Chedid R, Sbalchiero J, Russano M, Leal PR. Avaliação dos pacientes submetidos a mandibulectomia com reconstrução microcirúrgica no INCa. 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UNITERMOS: Óvulos, Doação compartilhada, Bioética, Contratos ABSTRACT This paper examines the legal and bioethical aspects of medical practice of shared egg donation in the context of Assisted Reproduction in Brazil. This is a practice created by physicians to aid in obtaining female gametes and benefit patients seeking to achieve pregnancy with professional assistance. KEYWORDS: Ova, egg sharing, bioethics, contracts INTRODUÇÃO O procedimento de Reprodução Assistida é voltado para pessoas com problemas de infertilidade que, através das novas tecnologias, podem engravidar por meio da técnica de fertilização in vitro. Para realizar a mesma, pode-se precisar de doação de gametas tanto femininos quanto masculinos. No caso dos óvulos femininos, o processo para retirada dos mesmos é muito mais complicado do que a obtenção de gametas masculinos, exigindo injeções de hormônio e medicamentos, além da necessidade de uma punção (procedimento cirúrgico) para retirada dos ovócitos. Neste viés, torna-se muito mais difícil a doação espontânea dos óvulos, fazendo com que se tenha uma demanda muito baixa de gametas femininos no mercado. 1 2 3 Desta forma, a sociedade médica criou a prática da doação compartilhada, que não possui previsão legal, mas está regulamentada pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina (versão mais recente). A prática se dá da seguinte forma: uma mulher com dificuldade de engravidar – pela falta ou por um problema de óvulos – procura a clínica, enquanto, ao mesmo tempo, uma outra mulher recorre à ajuda médica pela dificuldade de gestação; entretanto, a segunda não tem condições de arcar com todo o tratamento, mas possui óvulos férteis. Ocorre, assim, um intercâmbio em que a segunda doa parte de seus gametas para a primeira com a contraprestação de ter pago, em todo ou em parte, o seu tratamento de fertilidade. Diante desta prática da doação compartilhada, surgem questionamentos bioéticos e jurídicos que merecem análise. Administração. Acadêmica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), Pesquisadora de Iniciação Científica do Instituto de Bioética da PUCRS. Doutora em Direito, professora da Faculdade de Direito da PUCRS, pesquisadora do Instituto de Bioética da PUCRS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015 55 A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica Não estaríamos diante de uma comercialização disfarçada de óvulos? Será que esta prática pode ser classificada como algum tipo de contrato previsto no Direito brasileiro? Há justificativa ética para a doação compartilhada de óvulos? FUNCIONAMENTO DA REPRODUÇÃO ASSISTIDA A Reprodução Assistida abrange todas as técnicas a partir das quais a equipe médica ajuda o casal a obter a gravidez, incluindo inseminação artificial, fertilização in vitro e transferência de embriões, injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI), transferência tubária de gametas, transferência de embriões congelados. Todos esses procedimentos são relativamente novos para aqueles casais que não estão conseguindo engravidar por outros métodos (1). Embora a fertilização assistida já tenha ajudado muitos casais, ela não é a resposta para todos os casos de infertilidade. Na maioria das vezes, utiliza-se fertilização assistida somente quando procedimentos menos complexos e menos onerosos falharam. No entanto, em certas circunstâncias, tais como idade avançada ou fator masculino severo, recomendam-se procedimentos de fertilização assistida já como primeira escolha (1). FERTILIZAÇÃO IN VITRO A descoberta e a introdução da fertilização in vitro (FIV) para o tratamento da infertilidade foram os maiores passos para a medicina reprodutiva atual, sendo que o primeiro sucesso relatado ocorreu em 25 de julho de 1978, com o nascimento de Louise Brown, na Inglaterra (2). Desde 1978, o campo da medicina reprodutiva testemunhou grandes avanços científicos e tecnológicos dentro das técnicas de Reprodução Assistida, ampliando a utilização dos métodos e possibilitando novos tratamentos (1). A FIV foi desenvolvida inicialmente para o tratamento de mulheres com obstrução nas tubas uterinas (local onde normalmente ocorre a fertilização dos oócitos), mas, hoje, além da obstrução tubária, ela é utilizada para solucionar outros problemas que levam à infertilidade, como endometriose, falha na inseminação após três tentativas, ovário policístico, entre outros. A fertilização in vitro atualmente é conhecida também como FIV convencional, devido à introdução de novas técnicas. A FIV convencional consiste na retirada dos oócitos, localizados no interior dos folículos ovarianos, e na coleta de sêmen do parceiro, para posterior interação entre os gametas masculino e feminino, possibilitando a fertilização entre estes. Essas interações ocorrem no laboratório, fora do corpo da mulher. A fertilização in vitro consiste em uma técnica que envolve vários passos: a mulher inicia o tratamento com medicamentos para estimulação ovariana, para que seus ovários desenvolvam um número maior de folículos, o que 56 torna possível a obtenção de um número razoável de oócitos, aumentando, assim, a chance de sucesso no tratamento do casal (3). O processo de estimulação ovariana dura entre 10 e 15 dias, sendo necessário o acompanhamento do desenvolvimento dos folículos por meio de ultrassonografia transvaginal. A coleta dos oócitos é feita entre 34 e 36 horas após a administração do hormônio luteinizante (LH). Um anestesista aplicará medicações endovenosas (sedativos e analgésicos), que minimizarão o desconforto do procedimento. A paciente deve comparecer à clínica em jejum e, após estar relaxada, o médico efetuará a punção dos ovários via transvaginal, guiada pelo ultrassom. O líquido aspirado dos folículos será entregue ao laboratório para análise. Após a coleta dos oócitos, a paciente ficará em repouso na clínica até que esteja completamente acordada. Depois, ela voltará para casa. Poderá haver pequena perda de sangue via vaginal, decorrente da punção, bem como cólicas discretas. O número de oócitos está relacionado ao número de folículos que se desenvolveram em decorrência da medicação, bem como à acessibilidade dos ovários à punção. Mais de 95% das punções resultam na obtenção de pelo menos um oócito. O embriologista examinará no laboratório o líquido aspirado dos folículos e identificará os oócitos. Rotineiramente, são aspirados todos os folículos maduros, de modo a captar o máximo de oócitos possível. Nem sempre o folículo contém oócito e, raramente, um folículo pode conter mais de um. O laboratório prepara a amostra seminal de forma a selecionar os espermatozoides mais ativos para inseminar os oócitos. Os espermatozoides são colocados em contato com os oócitos em incubadora, que mantém a temperatura, o pH, o nível de umidade e a concentração de CO2. Após 20 horas, o embriologista detectará, sob microscopia, quais oócitos foram fertilizados. Aproximadamente 70% dos oócitos são fertilizados. Essa taxa pode ser mais baixa nos casais em que há fator masculino severo. A transferência embrionária é geralmente realizada 48 a 72 horas após a coleta dos oócitos. Nesse momento, o médico irá conduzir um fino cateter através do colo, introduzindo os embriões na cavidade uterina. Esse procedimento é totalmente guiado por ultrassom, e a paciente poderá visualizá-lo. Não é necessária anestesia para a transferência de embriões. Ainda, a chance está relacionada com a idade da mulher e, segundo parecer do Conselho Federal de Medicina na Resolução de 2013, podem ser transferidos até no máximo 2 embriões em mulheres de até 35 anos. Em mulheres entre 35 e 40 anos, no máximo 3, e acima de 40, no máximo 4 embriões. A transferência acima desses limites torna maior a taxa de gestação múltipla, o que aumenta o risco para a mulher e para os fetos. Os embriões excedentes podem ser congelados para transferência em outros momentos. Após 14 dias da coleta dos oócitos, realiza-se o teste de gravidez (4). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015 A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica OVODOAÇÃO Nos últimos anos, com a padronização das técnicas de FIV e com o desenvolvimento da ICSI, ficou claro que o fator preditivo mais importante para o sucesso das técnicas de Reprodução Assistida é a idade da mulher. Para pacientes abaixo de 30 anos, índices de sucesso de 30 a 50% por oócito recuperado podem ser esperados. Para pacientes acima de 40 anos, as taxas de sucesso variam de 5 a 15%. Oócitos de mulheres jovens possuem grande potencial de fertilização, e é esse potencial que é utilizado na ovodoação. Nesse tipo de terapia, oócitos de uma mulher doadora são fertilizados com o sêmen do marido da paciente (receptora), e os embriões formados são transferidos para o útero da receptora. Os oócitos da doadora são estimulados e recuperados utilizando a técnica de fertilização in vitro. A ovodoação costuma ser compartilhada, ou seja, a doadora também necessita realizar FIV para obter gestação, geralmente por fator masculino ou tubário, e doará metade dos seus oócitos para uma receptora. Esse processo de doação é anônimo, não havendo conhecimento entre os casais. As doadoras são selecionadas pela clínica e apresentarão semelhança física com a receptora, como cor dos olhos e cabelos, cor da pele, estatura e peso, bem como similaridade de tipo sanguíneo. Também serão triadas para problemas genéticos na família e, caso eles existam, serão desligadas do programa de doação. Sempre são realizados exames de triagem para infecções sexualmente transmissíveis, como hepatite B, sífilis, AIDS e hepatite C. Mulheres com idade inferior a 35 anos, saudáveis, com histórico genético negativo, sem causa ovariana para infertilidade podem ser candidatas à doação de óvulos. As melhores candidatas à recepção de oócitos são mulheres com falência ovariana, a qual pode ser devida a uma variedade de causas, como radioterapia, quimioterapia, remoção cirúrgica dos ovários ou doenças que levem à falência ovariana; mulheres portadoras de genes para doenças severas que querem diminuir a chance de transmissão para a prole; mulheres cuja idade avançada diminuiu significativamente seu potencial de fertilidade; mulheres que tiveram embriões de má qualidade em ciclos prévios de FIV. Essa evolução médica trouxe importantes questões éticas relacionadas tanto à manipulação de moléculas como à prevenção de tratamentos. Saber lidar com essas situações e garantir a segurança das mulheres que se submetem à doação compartilhada são tarefas que têm sido realizadas pelo trabalho das clínicas de reprodução. A DOAÇÃO DE ÓVULOS NA RESOLUÇÃO 2013/2013 DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA Não há lei que regulamente a RA no Brasil. Embora diversos projetos de lei federal sobre o tema tramitem no Poder Legislativo, ainda não houve aprovação de nenhum. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015 Desta maneira, a regulamentação nacional desta prática se dá pela deontologia médica desde 1992. Atualmente, a RA no Brasil está regulamentada pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina, a qual tratou de uma série de questões que estavam em aberto e deixavam espaço para questionamentos e dúvidas. Vejamos como a doação de gametas, especificamente óvulos produzidos pela mulher, foi tratada nesta Resolução. O capítulo IV, que disserta sobre o tema, tem no seu item primeiro a determinação de que a doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial. Além disso, determina que É permitida a doação voluntária de gametas, bem como a situação identificada como doação compartilhada de oócito RA, onde doadora e receptora, participando como portadoras de problemas de reprodução, compartilham tanto do material biológico quanto dos custos financeiros que envolvem o procedimento de RA. A doadora tem preferência sobre o material biológico que será produzido. Pode-se ver que, no item nove da Resolução 2013/2013 do CFM, a doação compartilhada é a atribuição dada à situação na qual se tem uma doadora e uma receptora, ambas com problemas de reprodução que necessitam de tratamento. O termo “compartilhada” tem referência ao fato de que serão compartilhados os custos e o material genético. Cabe mencionar que a doadora será mais nova e fornecerá para a mais velha seus óvulos. As duas estando de acordo, as clínicas de Reprodução Assistida costumam utilizar um termo que será assinado para garantir a segurança e provar o consentimento das partes. Entretanto, questiona-se se esta prática, formalizada neste termo, pode ser considerada uma espécie de contrato pelo Direito brasileiro. A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULO PODE SER CONSIDERADA UM CONTRATO? A doação, do ponto de vista jurídico, consiste em um contrato. Desta forma, a natureza jurídica da doação compartilhada de óvulos seria um contrato de doação? A doação, para o Direito, consiste em um dos mais importantes contratos pelo seu caráter, em regra, filantrópico e generoso: “resulta da vontade desinteressada do doador de praticar uma liberalidade”(5). Conforme o Código Civil de 2002, no Artigo 538, doação consiste no “contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. Importante mencionar que “Se trata de um contrato com peculiaridades próprias no qual, em regra, apenas a uma das partes são atribuídas obrigações”.(5) 57 A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica O legislador manteve a opção legislativa do Código de 1916, definindo a doação como contrato, ou seja, negócio jurídico bilateral resultante do consenso entre doador e donatário acerca de uma liberalidade que resulta na transferência de um patrimônio, bens ou vantagens (6). Um importante requisito do contrato de doação é o animus donandi, o qual requer a intenção de transferir a propriedade sem nenhuma contraprestação ou atribuição patrimonial (6). A doação é um contrato unilateral, pois gera obrigações a apenas uma das partes, o doador. Ademais, é gratuito, pois todos os sacrifícios recaem sobre a pessoa do doador, uma vez que o donatário apenas obtém vantagens. É consensual, pois basta a entrega do bem para o seu aperfeiçoamento, sendo suficiente o acordo de vontades (6). O Artigo 538 mencionado refere-se à liberalidade, como significado de uma ação altruística e desinteressada de dar o próprio patrimônio. O objeto da doação é a prestação de dar coisa ou vantagens, desde que tenha expressão econômica ou estimativa (7). Existem diferentes espécies de doação. Dentre elas, chama-se atenção a duas: a pura e a onerosa. A doação pura e simples, que é o tipo de doação no qual o doador não impõe nenhuma restrição ou encargo ao beneficiário, nem subordina a sua eficácia a qualquer condição. O ato constitui uma liberalidade plena (7). Na doação onerosa, há um ônus, incumbência ou encargo imposto àquele a quem se faz uma liberalidade. A pessoa que recebe um bem doado tem o ônus. É necessário distinguir se o ônus é uma prestação moral ou econômica. No primeiro caso, existe apenas a doação. Já no segundo caso, há um negócio jurídico misto, distinto da compra e venda (8). Porém, mesmo neste tipo de doação, a liberalidade é uma característica necessária. Desta forma, na prática médica da doação compartilhada não há liberalidade, uma vez que se espera a contraprestação do pagamento do tratamento em troca dos óvulos doados. Assim, não podemos considerar a doação compartilhada como um contrato de doação. Além disso, verificamos que não é possível enquadrar a doação compartilhada em nenhuma modalidade contratual, visto que um dos requisitos legais de validade dos contratos é o “objeto lícito, possível”, previsto no Artigo 104, II do Código Civil. Os óvulos produzidos pela mulher podem ser caracterizados, pelo Direito brasileiro, como bens extra commercium, pois não pode haver a comercialização dos mesmos, uma vez que consistem em parte do corpo que integra a personalidade humana. Este impedimento está regulamentado no Artigo 199 da Constituição Federal de 1988. A exigência da coisa objeto do contrato ser um bem in commercio “coincide certamente com a exigência de licitude do objeto de todo negócio jurídico”(9). 58 A BENEFICÊNCIA COMO FUNDAMENTO BIOÉTICO DA DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS A obrigação de conceder benefícios, de prevenir e reparar danos e de pensar, ponderar os possíveis benefícios contra os possíveis danos causados por uma ação são centrais à ética biomédica (10). A beneficência possui um significado filosófico-moral que quer dizer ‘fazer o bem’. É a manifestação da benevolência (11). Esse princípio está relacionado diretamente com a prática médica, pois deve ser sempre uma regra norteadora, como afirma a tradição hipocrática: “usarei o tratamento para o bem dos enfermos, segundo minha capacidade e juízo, mas nunca para fazer o mal e a injustiça” (11). Joaquim Clotet afirma: “a história da ética, que tem acompanhado a prática médica ao longo dos séculos, é em alguma medida exercício da beneficência” (11). O princípio da beneficência se fundamenta em uma série de regras morais, como proteger e defender os direitos dos outros, evitar que os outros sofram danos, eliminar as condições que causarão danos a outros, ajudar pessoas inaptas e socorrer pessoas em perigo (10). A beneficência pode aqui ser entendida como a capacidade do médico de procurar sempre agir de acordo com o bem do paciente. Ainda assim, ela encontra seu limite na dignidade individual intrínseca de cada ser humano, usando-a de modo absoluto acabaria por aniquilar a manifestação da vontade, dos desejos e dos sentimentos dos pacientes (11). O princípio da beneficência orienta a prática dos médicos que trabalham com Reprodução Assistida, pois, apesar da falta de regulamentação jurídica adequada, a praxe feita da doação compartilhada visa somente ao melhor interesse de ambas as partes e promover o bem, que é o grande desejo de engravidar. Parece inadequado alegar a ilicitude de uma prática que beneficia as pacientes envolvidas e, por esta razão, consiste em situação prevista deontologicamente pelo meio médico. Havendo o acordo das pessoas envolvidas e o benefício médico a elas dedicado, basta para que o Direito não venha impor empecilhos à realização de prática já consagrada. CONCLUSÃO As práticas médicas envolvidas nas técnicas de Reprodução Assistida são especialmente desafiadoras do ponto de vista ético e jurídico. A doação compartilhada é uma solução criada pela sociedade médica para se ter uma demanda de doadoras de óvulos e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso às técnicas de Reprodução Assistida para quem não teria condições de custear o tratamento. Não há instituto jurídico específico no qual a doação compartilhada possa se enquadrar no Direito brasileiro atual. Vimos que esta prática não pode ser considerada um Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015 A DOAÇÃO COMPARTILHADA DE ÓVULOS NO BRASIL SOB ENFOQUE DO DIREITO E DA BIOÉTICA Instituto Bioetica contrato, pois os óvulos são bens fora do comércio. Entretanto, vimos também que essa prática contempla o dever moral da beneficência. Assim, parece inadequado considerá-lo como prática ilícita. O médico que promove a doação compartilhada no tratamento de Reprodução Assistida está visando ao melhor interesse de ambas as partes e busca realizar o bem maior, que é a gravidez. Devemos ter em mente, conforme ensina Judith Martins-Costa, que o sistema jurídico é um sistema aberto (sem pretensão de completude) composto por regras e princípios, e sua positivação é “um processo no qual intervêm o legislador, o juiz e a comunidade” (12). Desse modo, a comunidade médica, através de sua deontologia, pode ser considerada fonte indireta do Direito. É necessário que o Direito repense seus institutos jurídicos tradicionais a fim de propiciar construções dogmáticas atualizadas com as inovações médicas e as previsões deontológicas, a exemplo da doação compartilhada de óvulos. O benefício do paciente deve orientar não somente a prática médica, mas também a interpretação e a criação de leis. Torna-se oportuna a discussão sobre os aspectos éticos e jurídicos da doação compartilhada, a fim de se pensar em uma política legislativa que, eventualmente, inclua esta prática em projetos de lei sobre Reprodução Assistida. REFERÊNCIAS 1. E.P. Passos, I.C. Almeida, , P.A.P. Fagundes. Reprodução assistida. p. 53-70. In: E.P. Passos, I.C. Almeida, , P.A.P. Fagundes. Quando a gravidez não acontece. Porto Alegre, ARTMED, 2007. 2. P.C.Steptoe, R.G.Edwards. Birth after reimplantation of human embryo. Lancet, 1978. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 55-59, jan.-mar. 2015 3. A.Balen The effects of ovulation induction with gonadotrophins on the ovary and uterus and implications for assisted reproduction. Hum Reprod, 1995. 4. P.R. Brinsden. Textbook of in vitro fertilization and assisted reproduction. UK, Parthenon Publishing Group, 1999, 5. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino. Contratos nominados II: contrato estimatório, doação, locação de coisas, empréstimo (comodato-mútuo). 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011/ (Biblioteca de Direito Civil. Estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale; v. 4/ coordenação Miguel Reale, Judith Martins-Costa 6. Nelson Rosevald. Contratos em Espécie. In: Cezar Peluso (coord.). Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 4ª ed. Rio de Janeiro, 2010: Manole/ coordenação Ministro Cezar Peluso. 7. Carlos Roberto Gonçalves. Direito civil brasileiro: contratos unilaterais.10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. 8. Luiz Guilherme Loureiro. Curso completo de direito civil. São Paulo: Método, 2009. 9. Antônio Junqueira de Azevedo. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. 10. Tom L. Beauchamp; James F. Childress. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. 11. Joaquim Clotet. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. 12. MARTINS-COSTA, Judith. Interfaces entre a bioética e o direito. In: CLOTET, Joaquim. Bioética: meio ambiente, saúde pública, novas tecnologias, deontologia médica, direito, psicologia, material genético humano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. Este tópico foi elaborado com base em entrevista de médico especialista em reprodução humana, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Dr. Eduardo Pandolfi Passos. Vide: PASSOS, Eduardo Pandolfi. Entrevista. Porto Alegre, 10/09/2014. Endereço para correspondência Instituto Bioética Av. Ipiranga 6681 P.50 - 703 90.619-900 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3320-3679 [email protected] Recebido: 12/2/2015 – Aprovado: 3/3/2015 59 CARTA AO EDITOR O Uso do Canabidiol em Pacientes com Epilepsia Use of Cannabidiol in Patients With Epilepsy José Augusto Bragatti1 Um terço dos indivíduos com epilepsia é refratário ao tratamento com medicamentos anticonvulsivantes, mesmo quando escolhidos corretamente, e utilizados em doses adequadas e toleradas pelo paciente. Crises epilépticas não controladas pioram a qualidade de vida, e são associadas a comorbidades médicas, psicossociais, e cognitivas (1). Recentemente, a maconha foi apontada como alternativa de tratamento, porém algumas questões ainda seguem sem respostas, relativas ao papel do sistema canabinoide na epilepsia, efeitos cognitivos, psicossociais e comportamentais dos compostos da maconha, e à sua eficácia no tratamento da epilepsia (2). Os dois principais princípios ativos da maconha são o d9 - tetrahidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Além desses, há quase 600 outros produtos, canabinoides ou não, presentes na maconha, o que pode representar um problema adicional, já que não há métodos seguros para a separação de todos esses compostos. O CBD exerce suas funções anticonvulsivantes através de mecanismos neuroprotetores, modulação do estresse, ou ainda do balanço excitação/inibição neuronal (3,4). Por ser um princípio psicoativo, o THC aumenta os riscos para psicose e deficiência das funções executivas a longo prazo em crianças menores de 15 anos. Já o CBD puro, que não possui propriedades psicoativas, é um excelente candidato ao tratamento de epilepsias fármaco-resistentes (5). No entanto, até o momento, existem apenas quatro estudos sobre o uso de CBD em epilepsia humana, sem nenhuma conclusão confiável. Em geral, uma dose de 200 a 300 mg por dia de CBD foi administrada a um pequeno número de pacientes, geralmente por curtos períodos de tempo, impedindo uma avaliação adequada sobre a segurança desse composto a longo prazo. Desfechos como “evidente melhora” ou “inalterado” também não contribuem para uma evidência científica acerca do CBD (6). Há vários estudos em andamento para avaliar o CBD em crianças com epilepsias de difícil controle, como a síndrome de Dravet e a síndrome de Lennox Gastaut, com protocolos duplo-cegos, utilizando placebo, e bem desenhados, para confirmar ou desmentir a segurança e o potencial anticonvulsivante do CBD (4,7). Lacunas sobre consistência, qualidade e segurança devem ser preenchidas antes de o CBD ganhar legitimidade como opção terapêutica. REFERÊNCIAS 1. Kwan P, Schachter SC, Brodie MJ. Drug-resistant epilepsy. N Engl J Med 2011;365(10):919-26. 2. Szaflarski JP, Martina Bebin E. Cannabis, cannabidiol, and epilepsy - from receptors to clinical response. Epilepsy Behav 2014;41C:277282. 3. Gonzalez-Reyes LE, Ladas TP, Chiang CC, Durand DM. TRPV1 antagonist capsazepine suppresses 4-AP-induced epileptiform activity in vitro and electrographic seizures in vivo. Exp Neurol 2013; 250:321-32. 4.Devinsky O, Cilio MR, Cross H, Fernandez-Ruiz J, French J, Hill C, Katz R, Di Marzo V, Jutras-Aswad D, Notcutt WG, Martinez-Orgado J, Robson PJ, Rohrback BG, Thiele E, Whalley B, Friedman D. Cannabidiol: pharmacology and potential therapeutic role in epilepsy and other neuropsychiatric disorders. Epilepsia 2014; 55(6):791-802. 5. Cilio MR, Thiele EA, Devinsky O. The case for assessing cannabidiol in epilepsy. Epilepsia 2014; 55(6):787-90. 6. Gloss D, Vickrey B. Cannabinoids for epilepsy. Cochrane Database Syst Rev. 2014;3:CD009270. 7. Oakley JC, Kalume F, Catterall WA. Insights into pathophysiology and therapy from a mouse model of Dravet syndrome. Epilepsia 2011; 52:59-61. Endereço para correspondência José Augusto Bragatti Praça Araé - 59 91.900-530 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 2101-8520 [email protected] Recebido: 2/2/2015 – Aprovado: 3/2/2015 1 Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Chefe da Unidade de Neurofisiologia Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 60 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (1): 60, jan.-mar. 2015