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POLÍTICA: APRENDENDO A LEITURA DOS SINAIS Eduardo Salomão Condé * “Vivemos todos sob o mesmo céu, mas nem todos temos o mesmo horizonte.” (KONRAD ADENAUER) Introdução Certa feita Goethe (2003, p. 22) escreveu, em suas Máximas e Reflexões, que “não se possui aquilo que não se compreende”. Nada mais verdadeiro como lição e para qualquer campo. É por isso que compreender também não é um exercício simples ou trivial, mas requer esforço e dedicação. E também superar o senso comum, a visão simplificadora, impressionista, fácil e disseminada com soluções dadas pelo dito, pelo consagrado e pelo “definitivo”. A política é vitima do senso comum, da mera opinião fácil e “definitiva” (como muitas áreas), mas com um agravante: ela pode tornar-se perigosa. Perigosa sim, porque da política nascem governos, políticas públicas e decisões que afetam o conjunto da sociedade. Imagine-se uma eleição para a Prefeitura de qualquer cidade. À medida que se aproxima o pleito, mais pessoas se interessam por “política”, pela disputa, pelo que os candidatos falam; discute-se sua vida pessoal e suas “propostas”, em geral mirabolantes. E os candidatos à vereança? Esses, então, são objeto de simpatias pessoais, de propostas confusas que extrapolam sua competência (caso sejam eleitos). Por um lado, esse lado público da política dramatiza o fenômeno, força ao debate, a exposição; por outro, obscurece a própria ideia dos conceitos caros à política: afinal, nessas ocasiões entende-se o conceito de poder, de Estado, de governo, de atribuições legislativas dos interesses? Ou apenas fala-se sobre eles como se houvesse conhecimento efetivo sobre seu significado? Não é necessário fazer Ciência Política profissionalmente (nem deve ser assim) para controlar ideias e conceitos próprios da política. Mas, para compreendê-los e vivenciá-los, é preciso ultrapassar o senso comum, a mera opinião. Para entender o fenômeno político, é preciso abandonar a tese simples, a resposta fácil: “políticos são todos iguais”, “a política é sujeira”, “os partidos são quadrilhas”. Há, ainda, as respostas mais “científicas”: “no Brasil não existem partidos; o povo não é soberano”, “não temos democracia”, “não faz porque não * Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ICH/UFJF), do Mestrado Profissional em Gestão e Avaliação da Educação Pública (PPGP-CAEd/UFJF) e Diretor do Instituto de Ciências Humanas (UFJF). É mestre em Ciência Política (IUPERJ) e Doutor em Economia Aplicada (UNICAMP). E-mail: [email protected]. existe vontade política”. Esta última, então, é vitima frequente de devaneios do senso comum, que impedem o conhecimento sobre suas características, alcance e limites: “governo do povo”, “direitos iguais”, “uma farsa” e assim por diante. Mas, então, o que é necessário para compreender mais incisivamente algumas ideias próprias da política? Um ponto de partida consequente é tentar apresentar, com mais clareza, palavras e conceitos que se relacionam a ela; na verdade, parar e pensar sobre essas ideias e conceitos, sem repeti-los de forma tão “naturalizada”. Este texto pretende discutir e incentivar a curiosidade intelectual sobre a política. Ele não é extenso, é mais um estímulo para organizar ideias. Sugere-se ao leitor, antes de continuar, que pare aqui e pergunte-se, verdadeiramente, sobre o que ele imagina ser política, poder, legitimidade, estado, governo, democracia, partidos, divisão de poderes. Se algumas dessas ideias não falam muito a sua “imaginação” de forma precisa, não se preocupe. Talvez o texto ajude a despertar um pouco mais de interesse. Afinal, lembre-se que pode ser perigoso compreender tão mal a política. 1 Onde tudo começa: política e poder É corriqueiro mencionar que a política, conceitualmente, deriva da tradição grega clássica. Sua referência óbvia é a polis, a cidade-estado, o local onde a vida se desenrolava no mundo grego, o espaço público de convivência dos cidadãos. Daí a expressão politikós, que designava os negócios públicos da cidade, as atividades de gestão e direção da polis. Aristóteles, na Política, foi quem primeiro classificou-a sob diferentes formas para a direção da cidade. O uso regular da expressão “política” não é tão comum até a era moderna. Segundo Bobbio (1986), ela foi utilizada por séculos para designar as “coisas do Estado”, até que passou a ser empregada como “ciência do Estado”, “doutrina do Estado” ou “Ciência Política”, na era moderna, significando mais aspectos objetivos como manutenção, conquista, organização, gestão do estado e dos assuntos associados ao poder. A política é inseparável da ideia de poder. Mas, afinal, o que significa poder? Weber (1985) associava esse conceito à possibilidade de obter obediência a um mandato, a uma vontade que se impõe. Ou, como escreveu Robert Dhal (1957), é a capacidade de influenciar alguém a fazer alguma coisa que, de outra forma, ele não faria. Assim, poder tem relação direta com capacidade de mando, de ordem, de agenda; é algo sobre a competência para impor obediência, o que têm, como consequência direta, questões chaves para a política: quem manda e de que forma o faz, quem é o governado e como ele aceita o “jogo”. Para Steven Lukes (1994), poder é, ainda, um ato, uma habilidade para produzir resultados, para fazer diferença no mundo, que se manifesta através das relações sociais. Outro aspecto importante é o fato de a política representar um conjunto de interesses e relações de poder. Aquilo que representa diversas formas de divergência entre grupos, por exemplo, ganha expressão na possibilidade de resolução de conflitos por via da negociação, do diálogo e das instituições, ou seja, uma possibilidade de resolução na qual os conflitos se diluem pela capacidade articulativa da política. Por que isso é importante? Porque as sociedades não são uniformes; pelo contrário, elas tendem a criar setores e grupos que operam por diferentes perspectivas e interesses. Sociedades produzem interesses diversos, isto é, aquilo que interessa a alguém, a um grupo, a uma instituição, gerando diferentes expectativas de ganhos, de vantagens comparativas e de expectativas. A política é uma articuladora de interesses e da solução dos conflitos dela decorrentes. Mas não é apenas isso. A política é uma forma de “jogo”, uma disputa sob determinadas regras, que precisam ser aceitas pelos participantes; neste caso, tanto os grupos, indivíduos e instituições, quanto o conjunto dos cidadãos. Por isso, o resultado desse “jogo” precisa impor-se a todos, com a aceitação do “resultado”. Os mecanismos para isso incluem o reconhecimento do “outro” e o aspecto legal, de direito, que pode derivar dessa ação. Alguns preferem referir-se à política com uma expressão vaga, o “tudo é político”. Isso vale para uma visão de mundo que vê, em toda ação, um jogo de disputa e de posições, desde uma opinião sobre futebol ou moda até o voto. Regra geral, “tudo” em raciocínio científico significa “nada”. Se for tudo, o que se estuda e se deseja compreender? Quais as relações significativas? Como os grupos se organizam? Que interesses representam? Como chegam e se mantêm no poder? Em suma, se “tudo é política”, resta o quê? A perspectiva adotada aqui é compreender a política como ação referente ao poder e seus correlatos, por um lado, e, por outro, como uma ciência que se preocupa em compreender e normatizar relações entre aqueles que dela participam por suas mediações institucionais, de grupos etc. Portanto, política se refere sempre às atividades vinculadas de alguma forma ao poder, preferencialmente, legítimo, sua busca, manutenção, seus mecanismos de participação, suas organizações, grupos e instituições ligadas ao seu exercício. De alguma forma, sua relação chave é entre governantes e governados, as ações de ambos na vida pública mediadas por diferentes instituições, grupos e organizações e seus “jogos”, que produzem efeitos e resultados. 2 Onde as coisas são “feitas”: Estado, governo, instituições e arenas A política não é um ente, um sujeito ou algo que flutua no ar, no entanto ela tem carne, ossatura e membros; ocorre em lugares determinados, não é algo que existe nem em toda parte nem somente na mente. Como algo real, empírico, ela existe em “lugares” que, ao mesmo tempo em que operam como conceitos, tem existência profundamente arraigada ao cotidiano. Um dos lugares privilegiados é o Estado. Sim, ele, o mais citado e mencionado local da política – e também pobremente compreendido. Sem mais delongas, aqui é preciso ir direto ao assunto. Para tanto, é possível usar Gianfranco Poggi (2008) para mapear o caminho, designando Estado como aquele que: • não reconhece nenhum poder maior que o seu, ele existe na forma da lei, estabelecendo políticas, decidindo recursos, instituindo agências públicas, cobrando impostos, controlando as operações por ele conduzidas; • tem poder centralizado constituído sob determinada base territorial; • tem staff burocrático permanente, com suas agências e organizações, controladas por regras e procedimentos, um reino para as instituições; • é capacitado a criar atividades, extrai recursos da economia pela via dos impostos, mantendo a segurança do direito de propriedade e demais mecanismos de mercado; • é capacitado ao legítimo uso da força (sua dimensão de “monopólio da violência”); • é também, no mundo contemporâneo, instrumento fundamental da vida econômica, particularmente pela dimensão de manutenção da moeda nacional e sua capacidade em regular diferentes aspectos da vida econômica, como direito de propriedade, regulação da concorrência, preços como câmbio e juros ou variadas políticas públicas de bem estar, assim como sua capacidade para compras governamentais e mesmo propriedade de ativos; • não se confunde com o governo, mas o exercício do governo ocorre no interior do Estado e de seus “aparelhos”. Ainda não é suficiente? Pois bem. O que se tentou foi descrever, do ponto de vista conceitual e por características, o significado de Estado. Mas, onde podemos senti-lo? Vivenciá-lo? Certamente o leitor já foi a uma repartição, solicitar um documento; certamente ele conhece a Receita Federal ou a Polícia Federal; eventualmente pode ter estudado em uma universidade pública. Em todos esses lugares lá está o Estado. Sabe onde mais? Em documentos que dizem que sua existência é real, na certidão de nascimento; em seu passaporte, que é a chancela que atesta sua nacionalidade e lhe permite visitar outro lugar. Vá até seu bolso e retire uma nota de real, qualquer uma. A moeda, na economia moderna, é chancelada pelo Estado, a confiança no meio circulante do país ocorre por soberania estatal. Claro? Mas, por favor, não podemos jamais confundir Estado e governo. Certo, o governo é exercido dentro do Estado, por pessoas que atingem esta posição a partir de mecanismos políticos legítimos (como por eleições) ou ilegítimos (pela força). Mas é preciso mais. Conforme observa Levi (1986), duas acepções podem ser usadas para designar governo: • conjunto de pessoas que exercem o poder político e que determinam a orientação política em uma dada sociedade; • complexo de órgãos que institucionalmente tem o exercício do poder. Nessa segunda entrada, existe interface direta entre Estado e governo. Sob qualquer prisma, o governo é um espaço de exercício para o poder. Estado e governo são “locais” onde a política se encarna, mas, dentro do Estado, existem aparelhos, conjuntos organizacionais onde também existem manifestações de poder. Existem poderes diversos: o legislativo, o executivo e o judiciário, cada um com seu campo. E dentro de cada um, instituições se organizam. Elas não são exclusivas dos três poderes referenciais, afinal existem instituições religiosas, econômicas e políticas variadas. Essa é mais uma daquelas palavras repetidas à exaustão e que muitos têm dificuldade em apontar com clareza o significado. Da mesma forma que o Estado, instituições são quase onipresentes na vida política. Podem ser utilizadas sob diferentes acepções, mas têm um núcleo comum – a marca da estabilidade, da norma e da rotina. Assim, segundo diferentes autores, instituição: • é regularidade - maneiras de pensar, sentir e agir que ganham regularidade, exercem coerção e normatizam (DURKHEIM, 1990); • cria “rotinas institucionais”, demarcando campo de ação. Conforme Bourdieu (1983), a incorporação e interiorização das estruturas formam um ambiente que institui crenças e disposições e prefigura escolhas, forçando a ação de acordo com as possibilidades estabelecidas pelo habitus e estabelecendo compromissos reguladores de conflito. Neste sentido, podem ser informais (incorporadas e naturalizadas) ou formais (exteriorizadas); • é confiança - instituições diminuem incerteza, proporcionam regras estáveis (NORTH, 1990); • pode referir-se à família, à religião, às leis, mas, em particular, refere-se ao Estado e a suas agências regulatórias. 1 Se há algo que deve ser apreendido sobre as instituições é seu caráter “conservador”, de resistência e resiliência. Elas não são amigas de mudanças constantes, são muito mais adaptativas e incrementais que qualquer outra coisa. São pouco associadas a alterações abruptas, dificilmente podem ser “refeitas”, “reconstruídas” de um ponto ao outro. Mas outra verdade é que elas nunca são ausentes de conflitos. Pessoas e grupos interessados lá estão, instituições permitem que interesses internos se organizem dentro de suas próprias regras. E, para completar, elas também operam “para fora”, ou seja, representam seu papel naquilo que se refere aos recursos disponíveis, sua distribuição e alocação, bem como sobre os incentivos que ela pode proporcionar a determinadas ações, enquanto inibe outras possibilidades. Tudo isso leva a disputas. Instituições interagem com grupos e processos e podem, sim, serem influenciadas por eles. Esse processo interativo, e por variados graus de pressão por inovação, pode induzir a mudanças – ou reforçar estratégias conservadoras. Finalmente, se as instituições ordenam e estabilizam, constituem habitus, a política é sempre exercida através delas e de suas regras, mas também têm suas variadas arenas específicas. Este é um lugar determinado, fisicamente visível ou perceptível, como um Parlamento, uma corte, ministérios e secretarias, mas também lugares mais inusitados, como blogs na internet. É o local onde se faz política ativa. Desta forma, a existência de instituições indica regras para o jogo, mas o exercício sobre as regras tem relação direta com as arenas. 3 Quem faz as coisas: os atores A política tem instituições e arenas, tem o exercício do poder no Estado e no governo. Mas quem são os que fazem política? Tal como no teatro, temos o palco, a arena, o enredo – que pode ser definido por convicções e ideologias – e claro, temos o essencial – os atores, aqueles que diretamente agem dentro e através das instituições, no interior das organizações e na vida pública. Atores têm seus roteiros. Isso significa que seus movimentos não são unicamente fruto de sua vontade individual, em um indivíduo ou grupo, mas resultado de suas escolhas dentro de um quadro de referência – ideologia, características do grupo, circulação de ideias, 1 Sobre o caráter geral do debate acerca das instituições, ver: CONDÉ, Eduardo. Um Mosaico Ladrilhado: Instituições, Institucionalismos e complementaridades. In: SALGADO, Gilberto (Org.). Cultura e Instituições Sociais. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006, p. 43-70. ambiente organizacional e, claro, seus interesses. As motivações dos atores não são mecânicas, ou seja, eles não apenas respondem às instituições/organizações das quais fazem parte, mas também realizam opções. Adam Przeworski (em outro contexto e para comentar as relações entre classe e escolha) faz uma observação que pode interessar aqui: “[...] relações sociais [...] São objetivas, indispensáveis e independentes da vontade individual apenas no sentido de constituírem-se as condições pelas quais as pessoas lutam sobre transformar ou não suas condições”. (PRZEWORSKI, 1989, p. 118) Mas, calma, isso apenas diz que existem escolhas apesar das relações; não diz que o “ambiente” não atua, antes preserva o espaço de escolha. É possível, aqui, apenas “arranhar” esse debate, de largo alcance, para anunciar que os atores nunca perdem a possibilidade de escolha, ainda que não possam dispensar condições prévias. Mas, afinal, quem são os atores? Antes de nominá-los, cabe observar seu “local” de origem. Assim, podem ser públicos ou privados, individuais ou coletivos. No campo privado, empresários, trabalhadores, corporações, sindicatos, mídia. Em todos os exemplos aqui citados, são atores coletivos se manifestando, ainda que possam existir aqueles que se destaquem individualmente. Organizações Não Governamentais (ONG’s) podem ser consideradas atores privados, no sentido de operarem por reivindicações de cunho público, mas em uma agenda privada própria, fora do Estado e do governo. No campo público, atores envolvem juízes, políticos no governo, parlamentares, burocracia pública, administradores públicos (gestores). Nesse caso, existem agentes coletivos e individuais. A força dos atores públicos está no poder do Estado e, em países como o Brasil, no poder de agenda conferido ao setor público. A burocracia pública, por sua vez, também desenvolve interesses, deseja influenciar e atuar, constituindo-se como força política e de formulação de políticas públicas. O Estado nunca é somente o governo, as organizações governamentais atuam de acordo com expectativas e interesses (afinal, quem ocupa o governo é transitório, mas a burocracia é permanente) podendo chegar a ser um ator muito importante no processo decisório. Já os atores privados dependem fortemente de sua capacidade de articulação de interesses em organizações coletivas que podem movimentar-se em direção ao Estado e exercerem pressão para atuar sobre a agenda e as decisões de governo, por exemplo. Esse é um longo debate com relação às teorias. Aqui não é o lugar para ele, mas, apenas para citar, a teoria pluralista defende que as organizações fora do Estado são elementos de pressão sobre as arenas públicas e a parte mais forte na definição da agenda. Por sua vez, o institucionalismo ressalta a capacidade de organização e mobilização dos agentes públicos, como a burocracia e as agências estatais. Ou seja, ainda que grupos e organizações “de fora” façam pressão, e possam influenciar as ações, o poder de proposição e implementação de “dentro” – do Estado – tem papel nada desprezível na definição das políticas. A dimensão desse problema não se esgota na breve menção às duas concepções anteriores. Mas o que importa aqui é demarcar que a capacidade de ação dos atores é múltipla e depende muito mais de como ela se estrutura em vários ambientes. Claro, o Estado existe por toda parte, com suas estruturas. Mas podem existir ambientes onde o acesso ao próprio Estado ocorre por uma via diversa das instituições formais. No Brasil, por exemplo, pelo patrimonialismo, e por diversas clientelas, é possível acesso informal à agenda e às políticas, tornando o processo decisório sobre a “racionalidade burocrática” (WEBER, 1985). Entre nós, a tensão entre o fortalecimento do Estado, ou seja, sua capacidade de regulação, supervisão e promoção de políticas, é patente pela via de grupos (e indivíduos) que, ainda hoje, intentam colonizar o aparelho estatal por diversos meios de acordo com interesses privados. 4 Como as coisas são feitas: legitimidade e democracia O tema dos atores e das arenas de ação indica um importante parâmetro para a organização do Estado e para entender como a sociedade se estrutura. Isso porque é preciso haver instrumentos e formas para estruturar a vida política em uma certa direção, permitir que diferentes forças possam se manifestar e fazer fruir seus interesses sob um conjunto de regras. Claro que não precisa ser assim, basta que, no lugar da fruição de interesses, do debate e da construção de instituições livres, organize-se o Estado e explore-se pela sociedade organizações fechadas e regimes de exceção, como nas ditaduras. E, pode parecer estranho, também é possível que existam regimes fundamentalistas e algumas instituições livres. Mas para que a conversa possa fluir, é preciso escrever um pouco sobre legitimidade. Sim, porque é exatamente do que se trata. Mais uma vez, é possível recorrer a Weber (1985): a legitimidade é inseparável do “consentimento” dos governados, aqueles detentores do poder efetivo que permite concordar com um governante. Assim, é possível derivar esse poder da soberania popular. Ilegítimo, simples assim, é o poder não consentido, da força. É possível que existam regimes fechados e consentidos? Resposta difícil. A aceitação de um regime de base religiosa pode ser considerado fechado e consentido, mas nunca pode ser visto como “imutável”, ou seja, como se o fato da religião não provocasse reações contra abusos. Isso porque é preciso refletir sobre a ideia de soberania. A tese segundo a qual o poder decisório deve recair sobre os ombros dos cidadãos, por sua manifestação, de preferência sob instituições livres. Este é um terreno conhecido: Rousseau (1983) escreveu sobre um pacto, um contrato, para o exercício do poder, esse sempre assentado na soberania do povo. O risco de um poder totalmente assentado na vontade popular foi visto como um problema por seu contemporâneo Montesquieu (1983). Preocupado com a livre fruição da vontade popular, ele apostou suas fichas na representação (e na monarquia constitucional) como uma solução. De certa forma, a história deu razão a ambos, desde que sejam considerados os resultados observados. O resultado lógico dessas observações é entender de que forma a política opera em um cenário específico. Aqui, essa especificidade responde pelo nome de democracia. Esta é talvez uma das expressões mais consagradas do vocabulário político. Mas, como outras, é eivada de pré-conceitos. Preliminarmente, é preciso reunir a série de elementos apontados para pensar sobre ela: legitimidade, consentimento, soberania popular, representação. Assim, antes de qualquer conceito, é necessário considerar o que se segue: • a legitimidade como consentimento; • o consentimento como derivado da soberania dos cidadãos; • a representação como concessão do corpo dos cidadãos a alguns para que ajam, dentro de regras (a Constituição e as leis ordinárias), em seu nome; • um poder regulatório, concedido ao corpo político para a confecção de leis e a formação de um governo legítimo. Do ponto de vista institucional e do exercício do poder, democracia é um regime político 2, por oposição a outro regime, frequentemente ilegítimo, denominado ditadura. No entanto, há um longo caminho até conseguirmos obter um conceito que afaste a bruma que o recobre. Mas existe um certo exercício de futilidade quando se busca encontrar um conceito que unifique a ideia de democracia. Para efeito prático, é muito mais significativo operar por algumas visões que reflitam aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Que se inicie esse esforço com a visão de Robert Dhal (2000). Nesse caso, a democracia representa o regime onde os cidadãos devem poder formular suas preferências com base em igualdade de direitos. Assim, baseia-se em um conjunto de direitos e oportunidades sob os quais os cidadãos podem agir, incluindo direitos de associação, crença, 2 Não confundir regime político com outras classificações. Sistema político refere-se muito ao grau da separação entre Executivo e Legislativo, classificados como Presidencialismo, Parlamentarismo ou Semipresidencialismo. Quando se fala em organização do Estado, naquilo que se refere às instituições para o exercício do poder, surgem as formas de governo, classificadas como Monarquia ou República. liberdade de expressão e uma dimensão “obrigatória” de participação (ainda que eventual) na vida política para o exercício dos citados direitos. O centro dessa visão é a combinação de direitos com manifestação de preferências. Os regimes democráticos não cumprem as ausências de manifestação e participação, o que significa que uma democracia ativa é aquela onde o corpo de cidadãos se manifesta, mesmo que de tempos em tempos. Por isso, democracia não é um conjunto de direitos “fixos”, que prescinde do exercício da soberania; são direitos estáveis, que demandam seu permanente exercício para o bom andamento das liberdades. Outro autor, Barry Holden (1994), observa que se trata de um sistema onde o corpo inteiro de pessoas com direitos políticos toma as decisões básicas sobre as políticas. Certamente que, entre os direitos, está aquele de escolher o governo e os meios de exercício do poder, respeitando os mesmo direitos. Novamente cá estão os direitos, o de escolha e os direitos básicos da cidadania, mais o aspecto de decisão, aquele no qual, diante de alternativas, são escolhidos caminhos sobre o que será adotado como políticas, como nos campos social e econômico. Em verdade, a democracia exige o exercício dos direitos diante de um “cardápio” de alternativas, enquanto uma ditadura é muito mais um “menu” de somente um prato de pouco sabor. Norberto Bobbio (1984) tem uma visão de democracia onde são fundamentais as “regras do jogo”. Essas regras são os procedimentos universais que devem ser utilizados para se obter decisão sobre as variadas matérias e a formação do governo. Mas as regras em si não condicionam a decisão, esta é sempre fruto dos próprios desdobramentos do processo. Não se sabe a priori o resultado, apenas os meios pelos quais ele é obtido. As regras básicas a seguir são: • eleição livre dos membros do Parlamento; • eleições para o Executivo; • amplo direito de voto; • liberdade para formulação de opinião; • oportunidade de escolha real, sem listas que limitem as opções; • decisões de maioria, mas sem a opressão desta sobre as minorias. Nos três autores citados, direitos, regras e procedimentos são uma constante; escolha é uma obrigação e o exercício dos direitos, essencial para a saúde do regime democrático. Não existe um formato único, mas é possível observar que existem concepções mais “formais” e liberais de democracia (Bobbio seria um exemplo) e outras mais “substantivas”, como em democracias sociais que incorporam conjuntos de direitos sociais, por exemplo, para além das regras. Expande-se o conceito não somente aos direitos, mas também ao fato, que Holden (1994) observa, da implicação das escolhas sob quais políticas adotar. Essa diferença traz o debate para o campo da solução de conflitos. Sim, porque as sociedades modernas e a democracia permitem grupos e organizações interessados em influir nos rumo do mundo político. Isso implica posições muitas vezes não redutíveis umas às outras, ainda que algumas possam ser objeto de acordo. A democracia lida com o conflito de determinada forma. Em regimes fechados, o conflito tende a “centralizar-se” e a ser reprimido pela força do Estado. Em regimes democráticos, o conflito é diluído nas instituições, com freios e contrapesos, permitindo, pelo debate público, pela pluralidade de argumentos, agentes e instituições, que sua dimensão trágica de confronto possa ser canalizada para a esfera da negociação e dos espaços para ordenação do conflito – como o parlamento ou instituições representativas variadas. Esse é um dos aspectos mais fascinantes quando se fala em democracia. Pela complexidade do que significa diluir conflitos, ela significa também aderir ao jogo político sob determinada forma, o que significa aceitar os resultados da “partida”, a arbitragem das instituições e as diferenças de ideias. Por isso, Bobbio (1984) menciona a liberdade para a formação de opinião e Dhal (2000) escreve sobre os direitos de organização, expressão e crença. Mas em algum momento todos devem se submeter ao juízo do resultado. Há muitos exemplos desse temário. Em 2000, as eleições norte-americanas terminaram na Suprema Corte porque a eleição no estado da Flórida não tinha resultado conclusivo, foram feitas e interrompidas recontagens e o candidato democrata sustentou até o fim uma possibilidade de vitória. A disputa ocorria dentro de instituições fortes, com diferenças na interpretação da vontade do eleitor (expressa em uma cédula confusa), mas também porque se disputava a interpretação sobre a lei eleitoral do estado. Durante semanas, uma das mais antigas democracias do mundo expunha as entranhas da disputa e combinações de manifestações populares de ambos os lados, com um festival de confrontos em torno dos votos de veteranos de guerra, de listas de eleitores manipuladas e muitas passeatas. Ao fim, o candidato democrata cedeu diante da decisão da Suprema Corte e aceitou a derrota. Os meios foram falhos, as normas eleitorais dúbias e a organização da eleição um desastre, mas nunca foi questionada, em si, a essência do regime, centrado nos direitos, nas regras, nas escolhas. Nunca se pensou em culpar a democracia pelo desastre. Em 2006, a eleição presidencial mexicana, após dois turnos, chegou a um impasse. O candidato de esquerda, Perez Obrador, sustentava fraude eleitoral quando foi detectado um virtual empate com o candidato de centro direita, Felipe Calderón. Durante meses, o candidato Obrador sustentou um movimento de rua que envolveu acampamentos de protesto, passeatas e desafios ao governo, muitas vezes argumentando sobre a velha tradição mexicana de manipulação eleitoral. Obrador questiona até o presente esse resultado eleitoral, inclusive se autoproclamando presidente eleito do México. Malgrado o fato da posse de Calderón como presidente, a disputa no país foi marcada pelo passado de fraude, pela disputa em torno da relação com os EUA e pela crítica à organização do pleito. No México, a disputa eleitoral ganhou áreas de suspeição, mas não as vantagens da democracia como regime político. Estão presentes no país instituições, regras e procedimentos, disputa de concepções, liberdade de organização. Os exemplos podem se multiplicar, até por seu contrário. Limites à liberdade de expressão e organização e à submissão dos resultados a algum órgão superior com poder de veto não é um regime exatamente democrático. Tome-se o Irã. Lá se escolhe o presidente, mas não existem muitas possibilidades de garantir oposição. O país se submete a um “Conselho Revolucionário” de líderes islâmicos que homologa aqueles que concorrem ao resultado, com poder de veto. Católicos, ateus e comunistas podem concorrer? Em termos, somente mediante aceitação. Partidos? Não se tem muita notícia de sua organização. A polícia revolucionária se encarrega de manter a “pureza” do comportamento. Ali a democracia não é um valor e um regime consolidado, mas um argumento instrumental, centrado em uma eleição que deve se legitimar uma liderança ungida e de acordo com um “Conselho Revolucionário”. Isso leva a outro debate a ser anunciado. A democracia, em si, não se relaciona de forma direta e automática às condições econômicas. O que significa isso? Se existe desigualdade forte ou pobreza, daí não se segue que não possa haver democracia. A outra face, sobre a democracia ocorrer sempre onde os regimes econômicos aproximam-se do livre mercado e da desregulação das relações econômicas, também é igualmente falsa. Regimes abertos do Leste asiático, como Cingapura, ou o Chile de Pinochet, não têm nenhuma relação com regimes democráticos. Por sua vez, economias sob mediação institucional muito significativa, como Alemanha, de estado forte, e França, são democráticos. E há dois casos exemplares onde regimes fechados fizeram florescer o capitalismo no século XX: o Brasil e a Coreia do Sul. Daí resultar que as condições para a democracia dependerem muito mais de arranjos associados a regras livres, livremente constituídas, com liberdade de expressão e organização, do que de características “liberais” ou “intervencionistas” na economia. Certamente que existem economias mais abertas e democráticas, como os EUA e o Japão; mas existem economias com maior grau de regulação, como o Brasil e a Índia. Inegavelmente, não democráticos são regimes como a China ou a Coreia do Norte, a primeira mesclando elevadas taxas de crescimento e investimento corporativo em associação ao Estado, com regime fechado e não competitivo; a segunda, vivendo uma utopia às avessas, fechada e sem prosperidade alguma. Corporações transnacionais não se importam com ditaduras ou regimes fechados, em geral, desde que possam reproduzir capital de forma ampliada. Foi assim no Brasil, Chile, Argentina, Coreia do Sul, China, México, Rússia ou Oriente Médio em algumas épocas particulares. Finalmente, somente regras não garantem democracias. Regimes fechados criam arremedo de regras, mas impedem a fruição dos direitos e da livre organização. Democracia é um pacote, não é algo que pode ser desmembrado como partes de um corpo. Afinal, a soberania popular, uma de suas bases ao lado do governo legítimo, é indivisível, mesmo que constituída por muitas partes diferentes. Conclusão Para finalizar, uma lição para aqueles que se aventuram no mundo da política é seu caráter de lugar de disputa. Não é um local de neutralidade, do não interesse, nem simplesmente um lugar para o bem comum. Por isso, a constituição da sociedade, sua história e suas relações permeiam o mundo da política. Surgem em seus cenários as classes sociais, grupos privilegiados (e outros nem tanto) disputam espaço, eleições nunca são somente em torno do poder de Estado, não existe uma concepção unitária sobre as políticas. Isso porque as organizações estatais e instituições estatais dificilmente apresentam concomitância de objetivos. A própria burocracia estatal tem interesses e projetos de políticas; portanto, também existe disputa dentro do Estado. Por isso, o próprio Estado é um campo de poder em disputa. Dessa forma, o debate sobre “como as coisas são feitas” é de capital importância. Pois este é o métier da democracia. Tudo começa pelo reconhecimento da diversidade e da diferença, da possibilidade de interesses variados que podem disputar os corações e as mentes das pessoas, dos cidadãos. Passa pelo reconhecimento e aceitação das regras, bem como suas consequências, como o resultado lógico de uma eleição ou de um processo de discussão sobre determinada matéria. Formular opiniões, decidir sobre o governo e as políticas, equilibrar o resultado técnico com a disputa política, enfrentar a diferença. A essência da democracia não é o consenso sobre tudo, é o acordo sobre algo que irá afetar toda a sociedade, acordo que diferentes atores fazem em um cenário de diversidade e de regras determinadas. Por isso, compreender o alcance da política é também entender o que significa participar desta mesma vida política. Novos cenários de participação e formação de opinião, como blogs, noticiário eletrônico, fóruns digitais, interação sem rosto, são apenas outras formas de indicar que o problema permanece o mesmo: como constituir, em meio à diversidade, um cenário onde as decisões e suas consequências para o mundo da vida sejam fruto não da exclusão, da interdição ao debate ou da perda de direitos, mas sim do exercício dos direitos e de acordo, sem esquecer que a democracia não acaba com o conflito, apenas o canaliza para as instituições e suas regras, para os atores ativos e para a questão fundamental da política: a disputa por um poder legitimamente constituído pela vontade livre. Bibliografia BOBBIO, Norberto. Política. In: ______ et al. Dicionário de Política. 2. ed. Brasília: UnB, 1986, pp. 954-962. BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 1984. BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Porto Alegre: Marco Zero, 1983. BRESSER-PEREIRA, Luis C. 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