gilberto - SaraivaConteúdo

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saraiva
A FESTA DE
MARIA
GADÚ
Adélia
Prado:
“Eu vou fazer um livro
só a minha vida inteira”
João
Wainer:
Um olhar por
detrás da fumaça
Literatura
e Games:
uma parceria
inusitada
Adoniran E NOEL
Andrucha Waddington
Eduardo SpoHr
João Tordo
GILBERTO
GIL
Nosso Artista Viramundo
DEZ 2010 • Ano 1 • Nº 2 • Distribuição Gratuita
editorial
É um prazer apresentar o segundo número da revista SaraivaConteúdo.
Depois da edição de lançamento na Festa Literária de Paraty (FLIP
2010), com ênfase em matérias sobre literatura e poesia, e uma carinhosa
homenagem aos 80 anos do grande poeta Ferreira Gullar, optamos por
trazer aos leitores uma edição mais musical, reverenciando mestres como
Noel Rosa e Adoniran Barbosa – que este ano completariam 100 anos –
e Gilberto Gil, nosso artista viramundo que acaba de ter sua produção
audiovisual reunida em uma caixa que é uma síntese não só da sua obra,
mas especialmente do diálogo entre o Brasil e outras culturas.
Tal qual Chico Buarque, que encerra sua canção
Paratodos com a frase “Evoé, jovens à vista!”, festejamos com Maria Gadú o sucesso do ano de 2010,
que viu seu álbum de estreia alcançar mais de 100
mil cópias vendidas, conquistou prêmios e prestígio no meio musical. Esse feito acabou se refletindo nos acessos ao site SaraivaConteúdo, e o vídeo
que registra a nossa primeira conversa, ocorrida
em agosto de 2009, tornou-se campeão de views,
e nos motivou a filmar nova conversa, com direito
a uma Maria Gadú descontraída, em casa, contando casos e tocando com exclusividade a canção O
quereres, de Caetano Veloso.
O pesquisador Mauro Ferreira, que assina o blog
de música do site SaraivaConteúdo, debruçou-se
sobre as relações entre compositores e intérpretes,
trazendo um panorama histórico dessa simbiose
musical que desde os anos 1930, quando a indústria do disco e o rádio se estabeleceram no Brasil,
abastecem o nosso repertório afetivo de canções.
Já o jornalista Bolivar Torres resolveu investigar uma
espécie de parceria ainda um tanto inesperada: literatura e games. Como se expressam as novas gerações criadas sob influência conjunta dos games e da
literatura? Jogos eletrônicos são uma forma de arte?
Que impacto podem exercer no nosso imaginário?
Em meio a essas questões ainda difíceis de serem
respondidas, uma ode à simplicidade: a preciosa
entrevista que Adélia Prado concedeu ao jornalista
e poeta Ramon Mello, falando de assuntos como
experiência poética, religiosidade e morte. Tudo
tratado com absoluto lirismo, numa conversa mansa e suave, típica dos melhores mineiros.
Nosso editor, Bruno Dorigatti, fã inveterado de quadrinhos, dedicou-se a investigar o crescente gosto pelo gênero no Brasil, e aproveitou para indicar
uma seleção dos melhores lançamentos recentes e
clássicos imperdíveis. Além disso, com alguns cliques, você ainda pode assistir e ler no site Saraiva
Conteúdo entrevistas com bambas como Robert
Crumb, Aline Crumb, Gilbert Shelton, André Dahmer, Rafael Coutinho, Gabriel Bá e Fábio Moon.
O fotojornalista e documentarista João Wainer nos
emprestou seu olhar para uma jornada do Carandiru à África, da luta livre mexicana aos motoboys
paulistanos, do terremoto no Chile ao fenômeno
cinematográfico conhecido como Nollywood, na
Nigéria, das FARCs colombianas aos pichadores da
periferia de São Paulo.
O passeio pelos diferentes universos se completa a
partir de uma conversa com o cineasta Andrucha
Waddington sobre seu novo filme Lope, focado na
vida do famoso poeta espanhol Lope de Vega. Com
este pretexto, fomos conduzidos a questões relacionadas não só ao cinema, mas também ao teatro, à
música, à poesia, e à constituição cultural brasileira.
Com tudo isso, mandar a revista para a gráfica foi
como chegar em casa depois de uma longa viagem,
felizes e revigorados por tantas novidades e por termos partilhado da sensibilidade de pessoas que se
dedicam a tornar a vida bem mais interessante. Torcemos para que este sentimento se multiplique por
cada um de vocês. Velas ao vento e boa leitura!
Equipe SaraivaConteúdo
Livraria Saraiva
Diretor de compras Frederico Indiani
Diretor de marketing Jaime Chaves
Gerente de comunicação Vera Esaú
Revista SaraivaConteúdo
Publisher Marcio Debellian
Edição Bruno Dorigatti, Claudia Barbosa e Marcio Debellian
Produção e coordenação comercial Flavia Paulo
Colaboradores desta edição
Bolivar Torres, Mauro Ferreira e Ramon Mello
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Fotografia Acervo Adoniran Barbosa, Instituto Moreira Salles,
João Wainer, Marcos Dantas, Teresa Isasi e Tomás Rangel.
Projeto gráfico e diagramação Rodrigo Rodrigues/ Duat Design
Planejamento Claudia Barbosa
Edição de vídeos João Pedro Bittencourt
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Revisão Maria de Fátima Fernandes e Talita Denardi
Impressão Ibep Gráfica
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Debê Produções
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DEZ.2o1o/JAN.2O11
06
Adélia
Prado:
A simplicidade
de um estilo
42
Gilberto
GIL
Nosso artista
viramundo
10 Adoniran Barbosa e
Noel Rosa – 100 anos
16 Compositores e intérpretes,
um casamento musical
22 Literatura fantástica!
26 Literatura e games:
uma parceria cada vez maior
52 João Wainer:
Um olhar por detrás da fumaça
58 As três vidas, de João Tordo
Andrucha
Waddington
e o filme sobre
o poeta Lope
de Vega
36
48
A festa de
MARIA
GADÚ
30
A nova
onda de
histórias
em
quadrinhos
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
entrevista
ADÉLIA PRADO,
a simplicidade de um estilo
Por RAMON MELLO Foto MARCOS DANTAS
A poeta Adélia Prado tem profundo respeito pela criação,
principalmente no que se refere a sua produção poética.
Há dez anos sem publicar um livro de poemas, Adélia lança
A duração do dia (Record, 2010), marcado por versos que
transmitem desejos, frustrações, sonhos e amor.
Para a autora de 75 anos, nascida em Divinópolis, interior
de Minas Gerais, a poesia e a fé são manifestações de revelação da realidade através de um processo divino, a mesma
fonte da graça. "O poeta é o cavalo da poesia", já afirmou.
A lírica de Adélia Prado ao mesmo tempo encontra e rompe com a imagem que se possa ter de uma pacata mulher
do interior. Como ela chega ao âmago desta misteriosa naturalidade, nos percebemos diante de rara intelectual, que,
ao seu modo íntegro e apaixonado, estuda, reflete acerca
de ideias. Uma lente muito pessoal, que conquista pela simplicidade de uma bagagem de vida inteira.
EXAUSTO
Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.
Bagagem (Imago, 1976)
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entrevista: Adélia Prado
CONSAGUÍNEOS
Não há culpados para a dor que eu sinto.
É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor
como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.
Se me ajudar um remédio a respirar melhor,
obteremos clemência, Ele e eu.
Jungidos como estamos em formidável parelha,
enquanto Ele não dorme eu não descanso.
A duração do dia (Record, 2010)
A duração do dia, seu novo livro, acaba de ser lançado
pela editora Record. Por que dez anos sem publicar um
livro de poemas? Como funciona sua experiência poética
com a escrita?
Adélia Prado Não tem mistério nenhum e tem todo mistério, porque passo dez anos sem fazer poesia. Mas nesse
intervalo eu fiz prosa, fiz um livro infantil... E também acho
que é um processo natural, quer dizer, a musa está dormindo. [risos] Nesses dez anos, o que eu estava fazendo?
Tratando de viver o melhor possível.
Você estreou com Bagagem (Imago), em 1976, depois de
enviar os originais para o poeta e crítico Affonso Romano
de Sant’Anna, que repassou para o poeta Carlos Drummond de Andrade...
Adélia Prado Pois é. Aos 40 anos fiz Bagagem. Então tinha muita coisa. Depois de Bagagem veio Solte os cachorros (1979), O
coração disparado (1978), Terra de Santa Cruz (1981). Depois o
vulcão dá uma pausa. Mas fiquei feliz por ele não estar extinto.
Você encontra alguma relação entre Bagagem (1976) e
A duração do dia (2010)?
vida inteira. Eu quero escrever Bagagem a vida inteira, a
vida inteira. Por causa do limite da gente, né? Eu só tenho
essa "vozinha", eu só tenho esse quadradinho para olhar o
mundo. É com essa lente limitada, finita, que eu vou, enfim,
experimentando o mundo. E, naquilo que ele tem de beleza, vira poesia. Às vezes.
Essa experimentação surge diretamente da religiosidade. Em entrevista ao Caderno de Literatura Brasileira, do
Instituto Moreira Salles, você declarou: “Deus quer falar
e me usa, no caso sou eu o oráculo”.
Adélia Prado Toda obra, o objetivo dela é atingir o momento poético. Seja escultura, teatro, cinema, música. Ela só
acontece quando vibra poeticamente, numa revelação absolutamente original, singular e única. Nesse sentido, você
ou eu, qualquer autor é instrumento de algo que o suplanta, que é maior que ele. Você é realmente uma boquinha,
um oráculo, para algo que está se dizendo, se expressando,
através de você. Em nosso caso, através da palavra. Se eu
for cineasta, vou fazer um filme de arrasar. [risos] Vontade
de escrever poesia um dia sim outro também. Mas não tem
jeito, é quando Ele quer, quando Ela quer.
Você saberia dizer o que é Deus?
Adélia Prado Absolutamente, encontro sim. O Bagagem
é um livro solar, feliz, alegre. A própria dor em Bagagem
tem um ritmo diferente, uma percussão diferente. Esse aí
[A duração do dia], nessa altura da vida eu sinto que é – do
ponto de vista da fundação poética, e de fazer um livro de
poesia – a mesma alegria de fundação que a gente sente.
É absolutamente igual. Eu vou fazer um livro só a minha
Leia a entrevista na íntegra e assista ao vídeo do
encontro no site www.saraivaconteudo.com.br
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
Adélia Prado Não, não sei, não! Nossa Senhora! Nó! Nó! O
que é D... Não... Você se sente atraído para uma coisa inominável, inefável. A alma quer adorar, ela quer prostrar-se,
ela quer reverenciar algo maior do que nós. Tem graça eu
me curvar diante de alguém do mesmo tamanho meu? Que
tem o mesmo medo? [risos] O mesmo limite!? Eu preciso
de algo maior do que eu, é isso que me dá segurança, que
me consola, que me conforta... É por isso que falo: "Dá para
esperar, dá para aguentar, né?"
A Bíblia é poesia?
Adélia Prado Pura. Ela é uma metáfora. É um discurso religioso vazado em metáforas. Só por isso ela tem a duração que
tem, dura até hoje. Todos os grandes livros, fundadores das
grandes religiões, são vazados em poesia. Porque fora dessa linguagem o religioso não se apresenta, ele é poético por
natureza. Você não aceita a fé, você adere. A arte é a mesma
coisa. A natureza do religioso e da experiência poética é absolutamente igual.
Você tem um versículo preferido?
Adélia Prado É um versículo de um texto evangélico. Prefiro todos porque são maravilhosos demais. Mas tem um
que ultimamente tem me acompanhado, que é uma fala de
Cristo, não sei em qual dos Evangelhos: "Não tenhais medo,
pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o
Reino" (Lucas 12, 32-48). Olha que maravilha! [risos] Você
fica em pé de novo. Você fica em pé nas pedras. E diz: “Eu
vou dar conta. Eu vou dar conta!”
“Não quero morrer nunca, porque temo perder o que
desta janela se desdobra em tesouros” está escrito no
poema Viação São Cristóvão, do livro Oráculos de maio.
Adélia Prado Não quero morrer nunca. De vez em quando
ainda acredito que não vou morrer. [risos] Lá no fundo, lá
no substrato do microcosmo da alma [risos] eu acredito
que não. Porque acho que tem um sentido também, a aspiração humana de viver. O que quero é viver. Ninguém
quer morrer. Isso aliado a uma fé que aceito, abraço e que
me consola profundamente, que é a vida eterna. Acreditar
na vida eterna. Porque se estou viva agora é evidente que
posso viver o resto da vida. Isso é absolutamente consolador. E poético até não poder mais.
A duração do dia
Record, 2010
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
artigo
O Trem das onze de Adoniran Barbosa (1910–1982)
nunca cruzou as ruas da Vila Isabel de Noel Rosa
(1910–1937), mas o samba paulistano do Poeta do
Bexiga molda o retrato de um Brasil pré-moderno
com os mesmos traços precisos do samba carioca
do Poeta da Vila. Hábeis cronistas de seus tempos e
lugares, Adoniran e Noel nunca se conheceram por
conta da distância geográfica que os separou e pela
morte precoce do compositor de Feitio de oração,
aos 27 anos, mas as afinidades de suas obras urdidas na malandragem sadia ficam mais perceptíveis
neste ano de 2010, em que estão sendo festejados
os centenários de nascimento de Adoniran e Noel,
que faria 100 anos em dezembro.
Nascido João Rubinato em 6 de agosto de 1910,
na interiorana Valinhos, o paulistano Adoniran
construiu obra de assinatura inimitável. Seu samba é uma das mais perfeitas traduções de Sampa.
Mas, assim como Noel de Medeiros Rosa situou seu
samba na zona norte carioca, distante dos cartõespostais dos bairros nobres do Rio de Janeiro, Adoniran fez através de sua obra a crônica dos bairros
populares da grande São Paulo, distantes da ostentação e do luxo da capital financeira do Brasil. Ambos falaram a língua do povo com o humor aprendido na escola da vida.
Adoniran e Noel,
100 ANOS E AINDA NA BOCA
DO POVO
Separados pela distância geográfica, o samba
paulistano do Poeta do Bexiga e o samba carioca
do Poeta da Vila são perenes retratos sociais de
um Brasil pré-moderno
Por MAURO FERREIRA FotoS NOEL ROSA: INSTITUTO MOREIRA SALLES
FotoS ADONIRAN BARBOSA: ACERVO ADONIRAN BARBOSA
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11
artigo
A ironia é que foi cantando um samba de Noel (Filosofia, parceria com André Filho de 1933) que Adoniran conseguiu sua
primeira chance no mundo da música. Ao defender Filosofia
em 1934 no programa Calouros do Rádio, atração da Rádio
Cruzeiro do Sul, o aspirante a cantor conseguiu uma vaga na
emissora. Foi quando João Rubinato virou, definitivamente,
Adoniran Barbosa. Juntando o nome de um amigo de boemia
(Adoniran Alves) com o sobrenome de um cantor carioca em
evidência na época (Luís Barbosa), Adoniran batizou a persona artística que lhe garantiria vaga vitalícia na galeria dos
nobres do samba.
Vindo ao mundo em 11 de dezembro de 1910, na capital do Rio
de Janeiro, Noel de Medeiros Rosa nasceu, viveu e morreu na
Vila Isabel que ele imortalizaria em sambas como Palpite infeliz e Feitiço da Vila. Ao contrário de Adoniran, que somente iria
fazer real sucesso como compositor na década de 1950, Noel
não precisou de muito tempo para tornar-se conhecido no
meio musical carioca com seu samba que derrubou as fronteiras entre morro e asfalto. Ao firmar parcerias com bambas
como Cartola (1908–1980) e Ismael Silva (1905–1978), Noel
desenvolveu, com grande personalidade, um samba mais urbano que, contudo, nunca renegou ou combateu as tradições
herdadas do samba propagado nos morros, mas, sim, as deglutiu antropofagicamente. E o fato é que, para Noel, tudo
aconteceu rápido demais – como se todo mundo soubesse
ou intuísse que uma tuberculose ceifaria sua vida aos 27 anos
incompletos. Enquanto Adoniran ainda tentava a sorte como
calouro, em 1934, Noel já era famoso – ao menos desde 1931,
quando seu samba Com que roupa? foi um dos grandes sucessos do Carnaval daquele ano.
Contudo, por acaso ou coincidência, Noel ficaria esquecido
ao longo dos anos 1940 até ser (re)descoberto na década de
1950 por uma série de gravações feitas por Aracy de Almeida
(1914–1988), a cantora que, na opinião de muitos, foi sua me-
Dez clássicos de Noel Rosa
Feitiço da Vila
Feitio de oração
Três apitos
O 'x' do problema
Último desejo
Com que roupa?
Filosofia
Fita amarela
Palpite infeliz
O orvalho vem caindo
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
lhor intérprete – embora o próprio Noel preferisse ouvir suas
criações na voz de Marília Batista (1918–1990). Preferências à
parte, foi Aracy que revitalizou o samba de Noel na mesma
década que testemunhou o primeiro apogeu de Adoniran.
O Poeta do Bexiga já havia feito suas primeiras gravações
em 1936, mas, na ocasião, não conseguiu imprimir sua assinatura nas parcerias feitas com o maestro José Nicolini. Foi
somente nos anos 1950 que o samba de Adoniran adquiriu a
cara e a voz do dono. No caso, uma voz que criou um idioma
todo particular com seu sotaque caipira e italianado, herdado dos pais, imigrantes italianos. Mas a Itália de Adoniran se
situava em São Paulo, em bairros como o Bexiga, celeiro dos
imigrantes que desembarcavam na capital paulista em busca
de melhores condições de vida.
Na geografia popular dos sambas de Adoniran Barbosa e
Noel Rosa, dois traços fundamentais – o humor e a crítica
social – irmanam as obras dos compositores. Saudosa maloca (1951), por exemplo, um dos clássicos do repertório de
Adoniran, aborda em tons populares a desventura de pessoas despejadas de um cortiço demolido pelas leis tiranas do
progresso. Já o Samba do Arnesto, gravado por Adoniran
em 1952 e popularizado pelo conjunto Demônios da Garoa
(o melhor intérprete dos seus sambas) em 1955, é exemplo
de como o humor espirituoso também dava o tom no repertório de João Rubinato.
Na obra de Noel, a crítica às vezes foi mais direta. “Onde está
a honestidade?”, já perguntava o compositor num samba de
1933 de forte conotação política. Mas em Noel toda e qualquer crítica – política, social, comportamental – passou pelo
filtro da espirituosidade. Traços de ironia são identificáveis
em todo o seu cancioneiro, avaliado em 259 títulos registrados de forma oficial (músicas inéditas seriam descobertas
e adicionadas a essa obra que hoje já totaliza mais de 300
composições). É um humor quase sarcástico, reconhecível
(em menores doses) também no cancioneiro de Adoniran.
“Não reclama / Pois a chuva / Só levou a sua cama”, debocha
Adoniran em versos de Aguenta a mão, João que recorrem
ao humor negro para dar leveza a uma tragédia social.
Como amor desde sempre rimou mais com dor do que com
humor, os repertórios de Adoniran e Noel irmanaram-se também ao expiar dores de amores. Três apitos – o samba de
Noel que só veio à tona 14 anos depois da morte do compositor, em gravação feita em 1951 por Aracy de Almeida – ecoa
ainda hoje como uma das obras-primas atemporais do cancioneiro da dor de cotovelo, assim como a doída Último desejo (1937). E, por irônica coincidência, foi a mesma Aracy que
motivou Adoniran a criar um dos sucessos mais melancólicos
de seu repertório. Ao receber do poeta Vinicius de Moraes
(1913–1980) os versos de Bom dia, tristeza, com a liberdade
de encaminhá-los a quem bem entendesse, a cantora elegeu
Adoniran para ser o parceiro de Vinicius. Convite aceito, Adoniran musicou com brilho os versos cultos do poetinha.
Acima de quaisquer reais afinidades poéticas e ideológicas,
Adoniran e Noel construíram obras que retrataram com fidelidade os mundos que habitavam. Assíduo frequentador da boemia paulistana, Adoniran conviveu com a São Paulo das favelas, dos cortiços, das malocas. A São Paulo dos trabalhadores
explorados, dos vagabundos, dos marginalizados que criam
nas ruas a sua própria língua – universo que inspirou a grande
maioria das 151 composições de sua lavra que chegaram ao
disco. Já Noel, igualmente boêmio, transitou pelos botequins,
pelos morros e pelos asfaltos pavimentados de um Rio de Janeiro que começava a se industrializar e vivia o início da era
dourada do rádio brasileiro – veículo para que seus sambas
chegassem ao povo e fossem a trilha dos Carnavais da época.
Mesmo não sendo um compositor associado à folia, Ado-
niran conseguiu seu primeiro relativo sucesso com uma
marchinha, Dona boa, vencedora em 1935 de um concurso
carnavalesco promovido pela Prefeitura de São Paulo. No
embalo, o cantor grava em 1936 os primeiros discos, embora
sua carreira musical – estagnada nos anos 1940 – somente
deslanche para valer a partir de 1951. Enquanto o sucesso
como compositor não vinha, Adoniran trabalhou como ator
e humorista em várias emissoras de rádio na década de 40.
Do rádio, pulou para o cinema, estreando como ator em 1945
no filme Pif-Paf. Verdadeiro artista multimídia, Adoniran chegou, nos anos 1970, a trabalhar até em novelas, integrando o
elenco de tramas como Mulheres de areia, exibida em 1973
pela extinta TV Tupi. Só que, nessa altura da vida, o trabalho
como ator jamais ofuscaria sua produção como compositor. Ele já havia, afinal, posto nos trilhos o Trem das onze, o
samba composto em 1961 e gravado três anos depois pelo
conjunto Demônios da Garoa com retumbante sucesso nacional que logo atravessaria as fronteiras brasileiras. Basta
dizer que em 1966, apenas dois anos depois do lançamento
do compacto dos Demônios da Garoa com Trem das onze, o
samba foi gravado na Itália com o título de Figlio unico, um
hit na voz do cantor Riccardo del Turco.
A obra de Noel não chegou (geograficamente) tão longe e
tampouco o compositor viveu tempo suficiente para conhecer a televisão, inaugurada no Brasil somente em 1950. Mas,
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13
artigo
Dez clássicos de
Adoniran Barbosa
Abrigo de vagabundos
Bom dia, tristeza
Saudosa maloca
Trem das onze
Samba do Arnesto
Iracema
Apaga o fogo, mané
As mariposas
Samba italiano
Tiro ao Álvaro
como Adoniran, Noel também cumpriu expediente nas emissoras de rádio onde, ao escrever piadas para programas de
humor, exercitou a veia humorística que aflorou em boa parte
de suas composições. Com sua habitual verve, o Poeta da
Vila alfinetou desde os estrangeirismos difundidos pelo cinema da época (Não tem tradução) até a hipocrisia da sociedade (Filosofia). Em contrapartida, crente de que um tapinha
não dói, Noel foi também fiel à moral machista da época em
sambas como O maior castigo que eu te dou, de versos hoje
inaceitáveis (“O maior castigo que eu te dou / É não te bater
/ Pois sei que gostas de apanhar”).
Descontados alguns versos realmente datados, as obras de
Adoniran e Noel resistem bem ao tempo – a ponto de continuarem sendo regularmente regravadas décadas após décadas e de serem objeto de análise e culto no ano em que são
celebrados os centenários de nascimento de seus respectivos
autores. Noel continua influenciando gerações de sambistas,
tendo seu DNA autoral sido identificado logo nos primeiros
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
sambas feitos nos anos 1960 por Chico Buarque – admirador assumido do colega – e também na primeira fase
da obra de Zeca Pagodinho. Já o repertório de Adoniran
permanece tão original e único que, à exceção de Paulo
Vanzolini, o samba de São Paulo ainda continua à espera
de um outro compositor que traduza tão bem o espírito
da cidade.
Curiosamente, tal perenidade é fruto do trabalho de vozes alheias. Adoniran e Noel chegaram a registrar em
disco, eles mesmos, boa parte de seus cancioneiros autorais – sobretudo Adoniran, que chegou à era dos LPs
e gravou discos regularmente até sair de cena em 1982.
Em sua permanência na gravadora Odeon (hoje EMI Music), Adoniran chegou a regravar seus principais sucessos
em dueto com cantoras como Elis Regina (1945–1982) e
Clara Nunes (1942–1983). Só que, assim como a voz de
Noel, a voz rouca e acaipirada do Poeta do Bexiga não
era exatamente talhada para o canto. E o fato é que coube mesmo ao conjunto paulistano Demônios da Garoa
fazer, a partir dos anos 1950, as gravações definitivas de
músicas como Saudosa maloca e Samba do Arnesto. Da
mesma forma, ouve-se desde sempre Noel mais em vozes
alheias (a de Aracy de Almeida, a de Marília Batista, a do
discípulo Martinho da Vila e mesmo a de Maria Bethânia,
que, no início de sua carreira, em 1966, chegou a gravar
compacto triplo somente com músicas do Poeta da Vila)
do que na própria voz miúda do compositor. Em qualquer voz ou em qualquer tempo, as obras de Adoniran Barbosa e Noel Rosa continuam sedutoras porque,
guardadas as devidas diferenças, ambas montam abrangente painel da sociedade que as inspirou e moldou. Ambas têm traços melódicos originais e uma poética diferenciada. Ambas falam a língua do povo. Por isso, o Trem
das onze não iria sair dos trilhos se transitasse pela Vila de
Noel. Por isso também, muito provavelmente ainda se falará de Adoniran Barbosa e de Noel Rosa daqui a 100 anos.
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15
artigo
Amor cortês:
do servo autor
à divina voz
Compositores ainda dependem da gravação de suas
obras por intérpretes para obter visibilidade e
oportunidade no mundo da música
Por MAURO FERREIRA
Compositor celebrado desde que entrou em cena, por conta do humor espirituoso que fazia seus sambas evocarem a
verve da obra de Noel Rosa (1910 – 1937), Zeca Pagodinho
deixou praticamente de lado o ofício da composição para se
tornar um intérprete de sambas alheios – a ponto de o repertório de seu atual disco, Vida de minha vida, ter somente
um samba da lavra própria de Zeca, Orgulho do vovô, parceria com o compadre Arlindo Cruz. É uma opção em favor de
quem vive e depende do trabalho de compositor, como Zeca
sempre faz questão de explicar em entrevistas. “É que as
pessoas precisam ganhar dinheiro. E ter um samba gravado
por Zeca Pagodinho é ganhar dinheiro, não é? Tenho essa
preocupação”, explicou o sambista ao site SaraivaConteúdo.
Zeca tem razão ao se preocupar. No mundo do samba, habitado por compositores da periferia, intérpretes são sempre priorizados, pois quase nunca os autores conseguem ter
voz ativa e capital para investir numa carreira de cantor, dependendo, por isso mesmo, de sambistas canários como Beth
Carvalho (que projetou toda a turma surgida no Cacique de
Ramos na virada dos anos 1970 para os 1980) e o recorrente
Zeca Pagodinho. Um dos casos mais curiosos no gênero é o
de Bezerra da Silva (1927 – 1995), cantor e ritmista pernambucano que gravou discos regularmente dos anos 1970 aos
1990, sempre dando voz a compositores marginalizados dos
morros e favelas da periferia fluminense. Gente que nunca
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
subiu no palco e tampouco apareceu na televisão. “São compositores de verdade, sem caô”, costumava defender Bezerra
em entrevistas.
A postura generosa de Zeca Pagodinho joga luz para a importância dos intérpretes na propagação da obra dos compositores. Importância cada vez maior num mercado musical
cada vez mais segmentado. Sem a voz de um intérprete de
projeção nacional, os compositores dificilmente conseguem
chamar a atenção do chamado “grande público” para suas
músicas. Foi através das vozes das cantoras Maria Rita e Roberta Sá, por exemplo, que os compositores cariocas Edu
Krieger e Rodrigo Maranhão conseguiram solidificar suas carreiras, no embalo dos registros delas de músicas como Novo
amor (tema de Krieger, gravado por ambas) e Caminho das
águas (sucesso de Maranhão na voz de Maria Rita). Eles também gravam seus discos, mas têm consciência do poder de
uma intérprete de maior alcance vocal e midiático. Com a palavra, Edu Krieger, um dos compositores mais cultuados da
nova geração da música brasileira:
“Acredito que haja uma relação de troca entre compositores e
intérpretes, pois um grupo não viveria sem o outro. O fato de
cantoras como Maria Rita e Roberta Sá terem gravado composições minhas foi fundamental para alavancar meu trabalho, pois artistas como elas despertam um grande interesse
TOMÁS RANGEL
Roberta Sá: ao gravar Edu Krieger e Rodrigo Maranhão, ajudou a impulsionar a carreira dos compositores
do público e da crítica especializada sobre os autores que
constam em suas fichas técnicas. Há uma espécie de glamour
em relação às cantoras, parece que as músicas costumam
ganhar mais importância na voz de uma grande intérprete.
De certa forma, isso gera benefícios para o compositor, que
passa a ser mais valorizado”, entende Krieger, que promove
atualmente seu segundo disco autoral, Correnteza.
Da mesma celebrada turma de Krieger, Rodrigo Maranhão
lança seu segundo disco, Passatempo, e faz coro com seu
colega de geração, com a ressalva de que o obscurantismo
de um compositor não é necessariamente um obstáculo para
a evolução de seu processo de criação. “Ser gravado por uma
grande intérprete é uma forma de batismo para o compositor.
A canção passa a existir para o mundo e você vira uma pessoa bem-sucedida da noite para o dia. Mas o universo interno
de um compositor é comprometido com sua obra. E ele é capaz de continuar fazendo canção, mesmo no obscurantismo,
como quem joga garrafas ao mar. Minhas garrafas, por sorte
ou merecimento, foram encontradas por pessoas de muita
luz”, celebra Maranhão.
A rigor, garrafas são jogadas ao mar desde a criação do
mercado musical brasileiro. Nos anos 1930, quando a indústria do disco e o rádio começavam a se estabelecer no
Brasil, cantoras como Carmen Miranda (1909 – 1955) encarregavam-se de gravar e popularizar as criações de compositores como Dorival Caymmi (1914 – 1998), Ary Barroso
(1903 – 1964) e Assis Valente (1911 – 1958). Com a expansão
do rádio no Brasil, ao longo dos anos 1940 e 1950, passaram a dominar a cena os chamados cantores de dó de peito – entre eles, Francisco Alves (1898 – 1952), Sílvio Caldas
(1908 – 1998), Orlando Silva (1915 – 1978) e Nelson Gonçalves (1919 – 1998), para citar somente alguns dos mais
expressivos intérpretes de grande poder vocal. Juntamente com esse time masculino, adepto do canto exacerbado,
o Brasil ouviu nessa era de ouro do rádio cantoras como
Dalva de Oliveira (1917 – 1972) e Ângela Maria, entre ou-
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Bethânia. Teixeira já militava na cena musical brasileira desde
a época dos festivais da canção da segunda metade dos anos
1960, mas foi somente quando uma cantora de muita luz –
Elis, mãe de Maria Rita – encontrou sua garrafa, que a carreira
do compositor realmente decolou. O ano era 1977. E a garrafa
jogada ao mar por Teixeira se chamava Romaria.
“O sucesso da gravação de Romaria por Elis viabilizou minha
carreira como compositor e intérprete. Na hora em que a música começou a fazer sucesso, as gravadoras começaram a
me procurar para eu gravar meus discos. Mas o maior presente que a Elis me deu foi a perenidade de Romaria. A música se
consagrou em todo o Brasil. Mérito dela, que garimpava bem
seu repertório. Lembro que a Elis falava: ‘eu quero e busco a
música que me sirva’. Infelizmente, a maioria dos intérpretes
não procura mais os compositores”, lamenta Renato Teixeira,
que, em 1990, teve propagada na voz de Maria Bethânia sua
toada Tocando em frente, feita com Almir Sater. O compositor de Romaria lembra que ia gravar Tocando em frente, mas,
diante do apelo de Bethânia, entusiasmada com a música, cedeu a composição à intérprete baiana. “O autor deve servir
ao intérprete. A prioridade é sempre do intérprete”, entende
Renato Teixeira, que revive tanto Romaria como Tocando em
frente no DVD Amizade sincera, gravado este ano em parceria com Sérgio Reis.
Rodrigo Maranhão: “Ser gravado por uma
grande intérprete é uma forma de batismo
para o compositor”
tras rainhas do rádio. Mas uma batida diferente iria mudar
o panorama. Ao irromper como vulcão represado em 1958,
a Bossa Nova instantaneamente tornou ultrapassada a estética vocal propagada pelas ondas do rádio, impondo outros padrões estéticos ao canto brasileiro – escola, a rigor,
que já vinha sendo seguida um pouco antes por cantores
de voz macia como Dick Farney (1921 – 1987) e Lúcio Alves
(1927 – 1993). Liberados pela estética da Bossa Nova, os
próprios compositores começaram a entrar em cena para
apresentar, eles mesmos, suas músicas.
Plataformas de lançamento de muitos cantautores (o termo
em espanhol identifica os cantores que interpretam basicamente músicas de sua própria autoria), como Caetano Veloso
e Gilberto Gil, os festivais da canção dos anos 1960 foram,
sob esse prisma, efeitos das conquistas estéticas obtidas pela
Bossa Nova. Os festivais deram voz aos compositores. Alguns,
mesmo não tendo exatamente o dom do canto, conseguiram
projeção por força da obra autoral – caso de Geraldo Vandré,
autor de Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando).
Outros, como Renato Teixeira, até tentaram, mas precisaram
do aval de cantoras como Elis Regina (1945 – 1982) e Maria
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
Elis
Regina
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TOMÁS RANGEL
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Beth Carvalho é festejada por ter dado projeção a sambistas surgidos no Cacique de Ramos,
inclusive Zeca Pagodinho.
A voz de Elis Regina, de fato, funcionou como uma bússola
que iluminou os nomes de grandes compositores nacionais.
Foi Elis que deu projeção a Fagner e a Belchior, dois ilustres
desconhecidos em 1972, ano em que a Pimentinha pôs voz
em Mucuripe. Foi Elis, também, que gravou Milton Nascimento (Canção do sal) em 1966, um ano antes de o compositor
ser conhecido em todo o Brasil pelo êxito de Travessia no I
Festival Internacional da Canção. “Eu era apaixonado pela Elis
e ela ter me gravado deu no que deu”, resume Milton à revista SaraivaConteúdo. A diferença, no caso de Milton, é que –
com sua voz metálica que a própria Elis classificou de divina
– o autor de Ponta de areia poderia ter feito carreira apenas
como intérprete se não fosse o extraordinário compositor de
harmonias inventivas que abriu novos caminhos na MPB.
Depois de Elis, Maria Bethânia é a intérprete que mais mostrou poder para impulsionar a carreira de um compositor em
ascensão – ou mesmo novato – na cena brasileira. “Ela é das
poucas intérpretes que ainda procuram os compositores”,
confirma Renato Teixeira. Chico César sabe disso. Quando
tinha apenas um sucesso nas rádios, Mama África, o compositor paraibano foi gravado por Bethânia e, no embalo,
por Elba Ramalho, Zizi Possi e Daniela Mercury, entre outras
vozes. Todas em 1996. Quartoze anos depois, quando a MZA
Music relança o disco de seu apogeu, Cuscuz clã (1996), Chico César reconhece o mérito dessas vozes na consolidação
e popularização de sua obra. “O fato de ter sido gravado por
elas e de as canções terem alcançado destaque radiofônico
nas vozes delas foi uma surpresa para mim. No começo, isso
me causava espanto. Eu me considerava muito autoral, dono
de uma obra em que era tudo muito particular. O sucesso
alcançado com várias canções gravadas por cantoras me
deu um alcance que eu nunca havia imaginado ser possível
e que nunca havia ambicionado. O intérprete é o outro. E as
intérpretes levaram isso ao extremo: a revelação desse outro
que havia nas canções e eu não sabia. A própria Bethânia
fez um disco, o Âmbar (1996), com vários autores novos ou
emergentes naquele momento: Adriana Calcanhotto, Carlinhos Brown, eu. Ali, ela, como intérprete consagrada, lançou
sua luz e contribuiu muito para que nossa obra se tornasse
não apenas mais conhecida, mas também mais duradoura.
Elba fez isso com Lenine, por exemplo, desde o começo da
carreira dela. Comigo acontece algo curioso: só tenho duas
músicas gravadas por Daniela Mercury: À primeira vista e
Pensar em você. São os meus maiores sucessos em se tratando de canções de amor e, depois de Mama África, são
mesmo os meus maiores sucessos. É bacana quando a obra
de um compositor fica assim associada à carreira de uma
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DIVULGAÇÃO / EMI
Chico
César
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cantora, algo com vida própria, como muitas coisas de João
Bosco e Aldir Blanc ficaram associadas a Elis Regina”, historia Chico César.
Para o autor de Dona do dom, música dada por Chico César
a Bethânia para o álbum Maricotinha (2001), o maior prazer
é descobrir sutilezas de suas músicas nas vozes dos intérpretes. “Ser tocado por uma nuvem de poeira já nos transforma.
Imagine ser tocado pelo brilho de todas essas estrelas! Primeiro, muda a relação que parte do público delas passa a
ter com o nosso trabalho. As pessoas sabem que Bethânia
ou Zizi, por exemplo, não compõem e muitas vezes querem
saber quem são os autores e, em alguns casos, tornam-se
também seguidoras destes. Claro que é sempre uma minoria,
mas elas dão visibilidade e beneficiam-se mais dessa visibilidade os compositores que também cantam, os cantautores, que amealham uma parte desse público. Mas encontrar
as surpresas que os intérpretes nos apresentam é que é o
grande barato do ponto de vista artístico. Eles nos mostram
caminhos novos que estavam ali insuspeitos. Essa é a magia
da criação”, resume Chico, encerrando uma história que ainda
vai ganhar muitos capítulos sempre que um intérprete, como
Zeca Pagodinho ou Maria Bethânia, for selecionar o repertório de um disco.
literatura
YO NO CREO EN BRUJAS,
PERO QUE LAS HAY, LAS HAY.
VERDADE OU MENTIRA?
É FANTÁSTICO!
Autores brasileiros de livros de fantasia se destacam no mercado editorial
Por RAMON MELLO
Quem acompanhou a lista de livros de ficção mais vendidos
no Brasil, nos últimos meses, se deparou com o nome de um
escritor brasileiro até então desconhecido. Acredite ou não,
trata-se de um estreante: Eduardo Spohr, autor de A Batalha
do Apocalipse (Verus/Record, 2010). Já ouviu falar? Então,
guarde o nome desse escritor carioca de 34 anos que tem
atraído o interesse de leitores de livros fantásticos como Crepúsculo, Harry Potter e Senhor dos Anéis.
Esse acordo tácito entre a fantasia e a imaginação parece
ser o ingresso para que o impossível adentre a realidade.
Se assim for, podemos dizer que velhos conhecidos nossos
do chamado Realismo Fantástico, como Gabriel Garcia Marquez e Jorge Luis Borges estariam incluídos. Certo? Talvez?!
Neste espectro que vai do real ao imaginário parecem caber
todos. A literatura será generosa, desde que o leitor se doe
sem restrições.
Grosso modo, entende-se literatura fantástica como histórias
de ficção científica, fantasia e horror. Dentre inúmeras, uma
definição aparentemente óbvia, mas instigadora é do escritor
americano H. P. Lovecraft (1890 – 1937): “Fantástica é toda história em que alguma coisa impossível acontece”. Se o dito fantástico é gênero que se consolidou a partir do século XIX, com
o Romantismo, monstros como feiticeiros, bruxas, vampiros,
lobisomens, além de animais e elementais sujeitos a transformações habitam a literatura desde a Antiguidade Clássica. Ao
ler uma história de fantasia, concorda-se em deixar de lado os
preconceitos para mergulhar na narrativa.
A Batalha do Apocalipse, de Eduardo Spohr, conta a história
de anjos como super-heróis, num instigante confronto entre
anjos caídos e exércitos celestes, durante os últimos dias da
Terra, antes do Apocalipse. Das ruínas da Babilônia ao esplendor do Império Romano, das vastas planícies da China
aos gelados castelos da Inglaterra medieval, acompanhamos
um épico repleto de lutas heroicas, magia, romance e suspense. Apropriando-se do conhecimento da mitologia, da Bíblia e da cultura nerd, Spohr encoraja jovens leitores (em sua
maioria homens) a encarar um calhamaço de 558 páginas e
letras diminutas.
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
“Eu tinha a história na cabeça há mais de dez anos. Quando
parei para escrever, fiz um roteiro antes, já estava mais ou
menos pronto. Em 2003 eu estava desempregado, o livro só
ficou pronto em 2005. Sou muito disciplinado, levei dois anos
escrevendo, aproveitei o ócio do desemprego. Star Wars foi
um filme que me ajudou a gostar de mitologia. Vertigo, a série de quadrinhos, e o filme Anjos rebeldes são duas grandes
influências marcantes. Além disso, li muito RPG, o que me ajudou bastante no livro. Como não sou gênio, tive de arrumar
um esquema de trabalho. Sempre gostei de escrever, sempre
fui fascinado por história, mitologia e religião”, conta Spohr,
que também dá aulas na Facha (Faculdades Integradas Hélio
Alonso), na zona sul do Rio de Janeiro, em um curso sobre a
jornada do herói no cinema e na literatura.
Não por acaso, esse herói tem mil faces. Trata-se do conceito
de jornada cíclica introduzido por Joseph Campbell, autor de
um dos livros mais influentes do século XX: O herói de mil
faces. Esse antropólogo norte-americano, profundo conhecedor da mitologia, respalda-se em arquétipos jungianos para
mostrar que a narração da história universal, de Cristo a Buda,
passando por Maomé e Moisés, é sempre a mesma. Segundo
ele, seria possível estruturar qualquer história a partir do roteiro básico da jornada do herói ou desconstruir as histórias,
entendendo os elementos que constituem a jornada. A obra
de 1949 vem influenciando escritores, dramaturgos, autores
e mestres do RPG e, no cinema, foi fundamental para nomes
como Coppola, George Lucas e Spielberg.
Para Spohr, a trajetória foi longa até chegar ao êxito no mercado editorial. Primeiro ganhou o Prêmio Fábrica de Livros, na
Bienal do Livro 2007. Tudo começou com 100 cópias cedidas
pela vitória do concurso. Em dezembro de 2009, foram vendidos – graças aos nerds – mais de 4.500 exemplares impressos
pela Nerdbooks, selo independente criado por Alexandre Ottoni e Deive Pazos, responsáveis pelo bem-sucedido site Jovem Nerd, que possui mais de 800 mil acessos únicos por mês.
O sucesso na internet foi tanto que atraiu a atenção da editora Raissa Castro, que procurava livros do gênero fantástico.
Uma semana após o lançamento pela Verus, que tinha acabado de se integrar ao Grupo Record, A Batalha do Apocalipse
estava na lista de mais vendidos nas revistas Veja e Época.
“Eu soube do livro através do meu genro, que acompanhava
o site Jovem Nerd. Ele me disse o título e eu gostei: A Batalha
do Apocalipse. Em seguida entrei em contato com Eduardo,
mas ele ficou meio desconfiado, me mandou comprar o livro.
[risos] Comprei o livro e enviei para duas mulheres – que, na
teoria, não seriam o público dele – analisarem: uma delas era
especialista em mitologia e a outra, nerd. Elas ficaram muito
Star Wars foi um filme
que me ajudou a gostar
de mitologia. Vertigo,
a série de quadrinhos,
e o filme Anjos rebeldes,
são duas grandes
influências marcantes.
Eduardo Spohr
impressionadas! E eu devorei o livro. Publicar sempre é um
risco, mas no caso do Eduardo Spohr eu estava confiante
porque ele já tinha um público cativo na internet. O que me
surpreendeu foi a rapidez nas vendas, já editamos mais de 40
mil exemplares do livro. Antes de transformar em filme, a ideia
é correr para fazer a publicação internacional. Um passo de
cada vez”, comemora a editora, que prepara uma edição especial de A Batalha do Apocalipse com ilustração de Andres
Ramos e uma espécie de dicionário da história, um universo
expandido.
O sucesso de Eduardo Spohr, além de abrir caminho para
outros escritores do gênero fantástico, também coloca em
pauta uma literatura que se estabelece cada vez mais em
constante diálogo com os leitores, principalmente os jovens,
através da web.
Os leitores
Qual é o ingrediente para fazer um livro de sucesso entre
jovens? Para Rosa Gens, professora e doutora do Departamento de Literatura Brasileira da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, há elementos fundamentais para atrair o
público leitor em questão.
“Primeiro, a ideia de aventura que está em todos os livros.
Em segundo, o amor, não qualquer tipo de amor, mas o
amor romântico. E terceiro, a mitologia. O jovem é interessado em leitura? A tendência é dizer não. Mas eles leem muitas
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23
literatura
“De acordo com um mito islâmico, Kujata é
um grande touro dotado de quatro mil olhos,
quatro mil orelhas, quatro mil narizes, quatro
mil bocas, quatro mil línguas e quatro mil pés.
Para locomover-se de um olho a outro ou de
uma orelha a outra, bastam quinhentos anos.
Kujata se apoia no peixe Bahamut; sobre o
lombo do touro há uma rocha de rubi, sobre a
rocha um anjo e sobre o anjo nossa terra.”
J. Luis Borges, O livro dos seres imaginários,
tradução Heloísa Jahn, Cia das Letras.
narrativas na web. Eu não acho que seja escape a leitura de
histórias fantásticas, os jovens tentam entender o mundo a
partir da fantasia. Esse universo é muito bom para o jovem
porque ele quer ‘dominar o mundo’. Tudo é uma questão de
entender o mundo simbolicamente. Ainda não li o Eduardo
Spohr, mas sei que o André Vianco, por exemplo, faz uma
literatura interessante. Ele sabe contar bem uma história,
manter o suspense. Velhos ingredientes que são utilizados
de maneira boa”, explica Rosa.
Não é à toa que a história de amor entre vampiros já rendeu
tantos desdobramentos. Os quatro livros da série da escritora
americana Stephenie Meyer – Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse
e Amanhecer – já venderam 77 milhões de cópias no mundo,
sendo 2,2 milhões de exemplares só no Brasil.
Para Ana Lima, editora do Selo Galera, criado em 2007 pela
editora Record para atender ao público juvenil, as histórias
(de amor) têm de ser bem contadas, acima de tudo, para que
o leitor se divirta.
“Os leitores gostam de ser transportados para outro mundo.
Já vi meninas dizerem: ‘Não tem amor? Então, não gosto’. É
uma geração que quer se apaixonar. O amor romântico é o
que está presente nessa febre do Crepúsculo, por exemplo.
É algo que ocorre com os livros da nossa autora Cassandra
Clare, de 37 anos, autora da série Os instrumentos mortais,
uma febre entre as meninas. Ela é muito participativa no Twitter [@cassieclare], o que é importante. Os leitores desse livro interagem muito, eles se relacionam na web e promovem
encontros fisicamente. O Twitter da Galera [@galerarecord],
por exemplo, já atingiu mais de sete mil seguidores, sempre
fazemos promoções. A interatividade com o leitor, a relação
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
interpessoal, é mais importante do que a matéria de jornal”,
afirma Ana Lima, que também acompanhou os encontros de
fãs de Cassandra Clare para falar do livro Cidade dos Ossos
em 12 cidades do Brasil.
Editoras brasileiras
No Brasil, o escritor Bráulio Tavares é o grande responsável por divulgar textos fantásticos que estavam soterrados
nas obras de autores canônicos, entre os títulos Páginas
de sombra: contos fantásticos brasileiros (2003), Contos
fantásticos no labirinto de Borges (2005) e Freud e O Estranho: contos fantásticos do inconsciente (2007), Contos
obscuros de Edgar Allan Poe (2010), todos pela editora
Casa da Palavra.
A editora Intrínseca é a responsável pela publicação de algumas das séries mais famosas de literatura fantástica: Os
imortais, de Alyson Noël; Hush, hush (Sussurro), de Becca Fitzpatrick; Percy Jackson e Olimpianos, de Rick Riordan; Como
treinar o seu dragão, de Cressida Cowell; e Crepúsculo, de
Stephenie Meyer – a mais bem-sucedida autora do gênero,
seguida por Riordan e Noel. No entanto, a Intrínseca ainda
não publica autores nacionais.
A Rocco também possui muitos títulos em literatura fantástica, mas em sua maioria autores estrangeiros. Contudo, recentemente, um dos mais bem-sucedidos autores brasileiros de
histórias de vampiros, o paulista André Vianco, que já vendeu
mais de 700 mil exemplares, fechou contrato com a Rocco
para lançar o livro O caso Laura, um policial de atmosfera
dark. Além disso, ele continua a publicar pela Novo Século
– editora brasileira especializada no gênero fantástico, que investe em autores nacionais.
Hoje em dia, André Vianco – que pagou a edição do seu primeiro livro, Os Sete, com a verba do FGTS, quando estava
desempregado – tem um público fiel, 14 títulos publicados,
dois livros a caminho e uma trilogia prevista para 2011, além
de um piloto para adaptar os volumes de O Turno da Noite
para a televisão.
Além de Vianco e Spohr, a relação de brasileiros que têm se
firmado no mercado com suas histórias fantásticas é enorme;
entre eles destacam-se Carolina Munhoz, Raphael Draccon,
Leonel Caldela, Martha Argel, Nelson Magrini, Roberto de
Sousa Causo, Laura Elias, Flávia Muniz, Gerson Lodi-Ribeiro,
Eric Novello e Giulia Moon.
Preconceito?
Se há preconceito, principalmente no meio intelectual, com
autores de best-sellers, imagine quando o livro é do gênero
“O Tecido da Realidade tremeu, e um trovão
correu pelas nuvens. A membrana mística, a
película invisível que separa o Mundo Físico
do Espiritual, fora abalada, lançando ao Plano
Material dois visitantes, duas entidades tão
fortes quanto o general exilado. Uma delas se
materializara à distância, e permanecia parada
sobre a grade de ferro que circulava a base da
estátua. Emanava uma aura terrível, maléfica,
cheia de ódio e furor. O segundo era amistoso,
e não desejava combate. Apareceu ali perto,
por cima do ombro do Cristo, próximo ao
anfitrião renegado. Coxo, ele caminhou ao
encontro do anjo guerreiro, apoiado em uma
bengala afiada.”
Eduardo Spohr, A Batalha do Apocalipse, Verus/
Record.
fantástico. Embora a cultura oral tupiniquim (curupiras, sacis,
ipupiaras, m’bois) seja repleta de fantasia, o preconceito se
perpetua devido à falta de tradição do gênero e poucos estudos na área.
Ana Paula Costa, editora-chefe de ficção da Record, pondera: “É um público muito diferente. Os autores que escrevem para jovens têm muita qualidade, não é fácil cativar
esses leitores. Talvez os adultos tenham vergonha de ler
livros de jovens.”
Já a professora Rosa Gens é categórica sobre o assunto:
“Literatura policial, terror e literatura amorosa estão na
mesma prateleira do preconceito. Na verdade esses autores são formadores de leitores, ensinam a ler e a pensar. Ler
por prazer e para aprender a ler bem”, defende.
Percebe-se que, com ou sem preconceito, além de um
bom negócio para autores e editores, a literatura fantástica – em todas as suas vertentes – pode ser promissora
para o despertar de novos leitores. E a internet, de fato, é
uma grande aliada.
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comportamento
Literatura
e games,
parceria cada vez maior
Para acadêmicos e críticos mais conservadores, trata-se,
certamente, de uma parceria inesperada. De um lado, a literatura,
expressão tida como “difícil”, associada em geral às esferas da alta
cultura; do outro, o videogame, visto por muitos como um mero
produto industrial baseado na diversão frívola e na violência
gratuita. Pois não é que as duas linguagens, aparentemente tão
distantes entre si, andaram criando laços fortes nos últimos anos?
Por Bolívar Torres
Se no exterior jornais e revistas já dedicam longos e elaborados artigos que legitimam os jogos eletrônicos como arte, no
Brasil partiram dos escritores as mais consistentes tentativas
de diálogo entre os games e as demais formas de expressão.
São, em sua maior parte, autores nascidos e criados na era do
Atari, do Sega e dos computadores domésticos, e que hoje
tentam, de alguma forma, absorver e projetar em seus escritos as experiências vividas em frente às telas. Nessas obras, o
universo dos games pode aparecer em uma referência superficial ou explícita, como nos romances Mãos de cavalo (Companhia das Letras, 2006), de Daniel Galera, ou Nerdquest
(7Letras, 2008), de Pedro Vieira. Mas a relação também pode
ir além, fazendo com que a própria linguagem narrativa dos
games (sim, afinal, eles contam uma “história”) influencie diretamente a obra literária.
É o caso da carioca Simone Campos. Celebrada aos 17 anos
por seu primeiro romance – No shopping (7Letras, 2000), a
jovem autora está terminando de escrever Owned!, livro-jogo
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
interativo em que se pode escolher a própria aventura, exatamente como em um videogame. O leitor, no caso, assume o
controle de um personagem – André, um técnico de informática viciado em games que vai tentar conquistar pelo menos
uma dentre sete garotas. Basta clicar em uma das opções no
final de cada trecho de história, dando rumo à vida do herói.
Dependendo das suas escolhas, é possível salvar o jogo e ler/
jogar quantas vezes quiser. “Quando veio a ideia, tive um pouco de medo de parecer invencionice barata, mas percebi que certas coisas só podiam
ser ditas usando esse formato e comecei a trabalhar nele”,
conta Simone. Exemplo típico de uma geração “educada” tanto pelos games quanto pela literatura, Simone foi estimulada
desde cedo a entrelaçar os dois universos. Aos 7 anos, quando o seu pai adquiriu o primeiro XT, aprendeu a processar texto e a jogar. Sua escola também tinha a mente aberta: sentava
os alunos na frente de computadores com a vaga desculpa
de “aprender inglês” ou ensaiar rudimentos de programação.
“Eu sabia que queria ser escritora desde criança”, conta ela.
“Eu era séria, muito séria. E tinha padrões. Sempre li muito. De
repente, no meio da adolescência, passei uns três anos quase
sem ler, só jogando. Tem um limbo entre livros inteligentes de
criança e livros inteligentes de adulto que eu só consegui preencher jogando videogames de todo tipo, todo dia, por horas
e horas a fio. Diria que nessa época comecei a usar os videogames para suprir (ou gastar) aquela pulsão destruidora que,
dizem, é o lado B da criação. No fim desse período, no 2º e 3º
ano do ensino médio, voltei a ler e a escrever, mas sem parar
de jogar. Foi quando saiu No shopping, meu primeiro livro.” Simone já fizera outras tabelinhas com o mundo dos games –
tem conto, Campo minado, e romance, A feia noite (7Letras,
2006) repleto de referências a ele. Mas Owned! é um mergulho muito mais radical na experimentação, já que é o primeiro
a colocar o formato de um jogo eletrônico no centro da própria narrativa. O conceito inovador está reservando grandes
surpresas no processo de escrita.
“É um formato que oferece uma dimensão bem interessante de identidade: se você é moldado pelas suas escolhas ou
tem um Destino com D maiúsculo”, explica Simone. “Tive, por
exemplo, que produzir trechos-curinga, que se encaixassem
em mais de uma situação. A negociação de informações novas ao leitor é difícil, tenho que medir muito bem o que vou
dar a cada momento; e brinco com isso. Preparo ciladas; às
vezes, falsas ciladas. Como há vários finais, escondo informações a respeito de um final no caminho para outro final. É
uma forma de obrigar, ou de condicionar, o leitor a jogar mais
de uma vez o jogo – se possível, a exaurir os caminhos oferecidos. Despertar uma sede de saber mais.”
Gamer inveterado, o gaúcho Antônio Xerxenesky também estabeleceu uma relação frutífera com os jogos. A premissa de
seu primeiro romance, Areia nos dentes (Não Editora, 2008, 1.
ed.; Rocco, 2010, 2. ed.), uma espécie de faroeste com zumbis,
veio do survival horror Alone in the dark 3, terceiro opus de
uma série de games que viraram mania nos anos 1990 – e ela
própria inspirada em um conto do autor de ficção científica
britânico H.P. Lovecraft.
“Joguei o primeiro Alone in the dark aos 10 anos, e o jogo
literalmente me tirou o sono”, recorda Xerxenesky. “Como
sou um gamer nostálgico, lá pelos 20 e poucos anos revisitei
a série. O terceiro jogo me chamou a atenção por ser uma
mescla completamente absurda de elementos que eu adorava no cinema – o faroeste e o terror. Caubóis zumbis, rituais
xamânicos, o jogo tem de tudo. É um verdadeiro caos. E essa
redescoberta do jogo plantou um desafio na minha cabeça:
como seria possível escrever, nos dias de hoje, no Brasil, um
faroeste com zumbis? Como fazer desse livro algo além de
uma bobagem trash? Como, a partir desse cenário fantástico,
criar uma narrativa de impacto emocional?”
Para um novo grupo de escritores, a força de um game pode
causar tanto impacto no imaginário quanto o acorde de uma
música, a cena de um filme ou o verso de um poema. Colega
de Xerxenesky na Não Editora, Samir Machado de Machado
escreveu um capítulo inteiro de sua novela O professor de
botânica (Não Editora, 2008) sob a forte influência de uma
das fases de Metal gear solid 3.
“Indiretamente, o impacto que a enxurrada de referências
pós-modernas indiretas de um jogo como Fallout 2 me provocou só teve paralelos comigo quando li Thomas Pynchon
pela primeira vez”, compara Machado. “Em termos narrativos,
uma coisa que costumo dizer, é que jogos de mundo aberto
como Fallout, Assassins creed ou Red dead redemption me
dão uma sensação de ser e estar num espaço físico ou contexto histórico que, para um escritor, são tão valiosas quanto
uma pesquisa.”
Daniel Galera
“Impossível citar um só. The Secret of Monkey Island 2,
Beyond Good and Evil, Super Mario Bros. 3, Shadow of the
Colossus, Return Fire (do 3DO) e Secret of Mana são alguns
que vêm à mente de imediato, mas a lista completa teria
dezenas ou centenas de títulos.”
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Não mais simples produtos de consumo,
e sim autênticas obras de arte
Super Mario é o “Diderot dos games”? E Morrowind, “um
animal monstruoso e dificilmente domesticado”? E que
tal discutir o “saneamento de linguagem” de Shadow
of the colossus ou a “reflexão pop art alucinada” de No
more heroes 2? Para os franceses da revista multimídia
Chronic’Art, falar sobre videogame é quase um compromisso filosófico. Nas bancas desde 2001, a publicação
quinzenal foi pioneira em tratar os jogos eletrônicos não
mais como simples produtos de consumo, e sim como
autênticas obras de arte. A Chronic’Art trocou os limitados testes de jogabilidade dos veículos especializados
por elaboradas análises sobre as possibilidades estéticas
e narrativas dos games. Tanto em sua versão eletrônica
(www.chronicart.com) quanto na impressa, seus críticos
comentam o último lançamento de empresas eletrônicas
como Sega ou Konami com a mesma seriedade com que
criticam o filme tailandês Apichatpong Weerasethakul,
resenham um romance de Don de Lillo ou um álbum da
banda indie El Perro del Mar. O que no início poderia ser
visto como uma excentricidade isolada acabou virando
tendência na França. Hoje, alguns jornais como o Libération já possuem os seus especialistas, e até a tradicional
revista de cinema Cahiers du Cinéma chegou a dedicar
um número especial ao assunto.
“Somos de uma geração que cresceu com os videogames, antes mesmo da chegada da internet”, explica o
editor Cyril De Graeve. “Como é parte integrante da nossa cultura, tratamos e teorizamos os games da mesma
forma que os outros territórios já conhecidos, como cinema, literatura, música ou HQ.” A turma da Chronic’Art
identifica na figura do programador um verdadeiro artista
– um criador capaz de imprimir sua marca pessoal em
cada um de seus jogos, com suas obsessões e visões de
mundo. Como muitos cineastas de grandes estúdios, ou
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SARAIVACONTEÚDO DEZEMBRO
DEZ. 2010 / 2010
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escritores sujeitos às revisões editoriais, penam para driblar as limitações criativas impostas pelas convenções do
mercado. “Os videogames são realizados por autores que
até hoje não foram colocados na dianteira da política dos
editores, que sempre privilegiou a marca e não os seus
criadores de fato”, analisa De Graeve. “Mas essa situação
começa a mudar: alguns nomes já começam a ser destacados nessa indústria suculenta que é o videogame.”
Nos últimos anos, a revista tratou de revelar os métodos
e o temperamento artístico dos grandes gênios da programação, como o criador da série Metal gear solid, Hideo Kojima – um personagem atípico, cujos jogos estão
perfeitamente ligados à sua forte personalidade. A lista
de entrevistados inclui outros nomes celebrados, como
Shigeru Miyamoto (Zelda, Mario Bros.), Peter Molyneux
(Populous, Black & White) ou Will Wright (The Sims, Sim
City). Com seus textos repletos de termos sofisticados, a
Chronic’Art ajudou a quebrar a visão estereotipada sobre
o consumidor padrão dos games. Sai o nerd que joga de
modo automático devorando fases sem espírito crítico,
e entra o consumidor capaz de apreciar as experiências
estéticas oferecidas pelos melhores jogos. “As possibilidades de imersão, implicação e identificação do espectador-jogador são únicas no videogame”, compara De
Graeve. “Passamos 1h30 em um filme enquanto é possível
ficar mais de 50 horas em um jogo. Claro que isso depende da qualidade do jogo, da exigência dos autores, mas
podemos colocar em um jogo muito mais de nós mesmos do que num filme. Podemos ir muito mais longe no
território da experimentação sabendo que cada jogador
pode, por definição, absorver de forma diferente a obra
em questão de acordo com a sua maneira de jogar. É então, no absoluto, um território artístico muito mais aberto,
complexo, promissor e interativo.”
Simone Campos
Prince of Persia | “O primeiro, de plataforma, do Jordan Mechner.
Montanha-russa de emoções. Quando não me angustiava até a
úlcera, me fazia perder por excesso de poesia. Tem vários jogos
com esse ‘defeito’: Sonic, Castlevania, Quackshot, até Myst.
Depois me davam pesadelos bem bizarros e interativos.”
Incorporados no cotidiano, os games já fazem parte da cultura. Por isso, o escritor que quiser retratar com fidelidade
o período em que vive encontrará na relação dos jovens
com os jogos digitais um contexto fascinante. Em uma cena
de Mãos de cavalo, bildungsroman (romance de formação)
contemporâneo do escritor Daniel Galera, três amigos jogam
Stunts, jogo emblemático que permite disputar corridas de
carros em pistas delirantes, repletas de loops, zigue-zagues
e circuitos em forma de saca-rolhas. A citação não era gratuita: símbolo no imaginário de uma geração, a disputa eletrônica funcionava, na cena, como simulacro dos rumos que
a amizade dos três amigos iria tomar. Elemento marcante
na vida dos personagens, o game é usado por Galera como
uma tradução preciosa de seus estados de espírito.
Não por acaso, o autor é um dos principais embaixadores dos
games. Galera diz que os jogos entraram em sua vida bem no
início da infância, ao mesmo tempo em que a música, o cinema e os livros, e que nunca os viu como uma modalidade
muito diferente das outras mídias e artes. Autor de ensaios
sobre o tema, chegou a criar um blog para debatê-los. “Não creio que os videogames tenham influenciado minha literatura no nível estético ou da linguagem”, avalia Galera. “O
diálogo possível entre as duas linguagens não é algo que me
interessa muito. Todavia, os videogames me interessam muito
como tema, pois são um componente importante da formação
cultural da minha geração. Em outras palavras, as pessoas jogam videogame, assim como leem livros, trepam, trabalham e
se apaixonam. É parte da vida e tem significado pra minha geração e todas que a sucedem. Assim, muitos de meus personagens jogam videogames e têm suas vidas marcadas por eles.”
Samir Machado de Machado
The Dig | “De todos os adventures da LucasArts, este sempre
foi meu favorito, talvez por ser o mais sério (o roteiro era
de Orson Scott Card, se não me engano). E, fora a questão
de deslumbre estético com os cenários e as geometrias
alienígenas, foi o primeiro jogo que me prendeu simplesmente
por ter uma história muito boa.”
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HQ
A nova onda
das histórias
em quadrinhos
As histórias em quadrinhos vivem novamente um bom momento.
Editoras e selos dedicados à nona arte continuam a surgir país
afora, inundando as livrarias com novos títulos e clássicos
nacionais e estrangeiros. brasileiros conseguem publicar
trabalhos autorais fora do país, e a revolução tecnológica
continua facilitando a autopublicação online, conectando os
interessados em produzir e ler as narrativas gráficas.
Por Bruno Dorigatti
É desnecessário dizer que os quadrinhos, outrora considerados formas degenerativas para a nossa infância e juventude, há muito deixaram de ser algo feito exclusivamente para
crianças, ou de apresentar personagens com superpoderes e
mundos distantes, como os clássicos Super Homem, Batman
e Homem Aranha, e outros heróis mais recentes, como os
X-Men. No entanto, ainda é para esse público infanto-juvenil
e adolescente que se concentra a produção de massa e de
onde vem o maior faturamento do setor. Porém, hoje, os adultos consomem avidamente um número crescente de graphic
novels, histórias autobiográficas, adaptações de clássicos da
literatura, reedições luxuosas de personagens icônicos como
Peanuts e Calvin & Haroldo ou de álbuns de mestres como
Will Eisner, Guido Crepax e Robert Crumb.
Crumb – que esteve no Brasil participando da Flip, em
agosto passado – é um dos responsáveis por essa atenção
maior que os quadrinhos vêm tendo desde os anos 1960
como coisa de gente grande, por conta das HQs underground que estouraram no final daquela década na Califórnia, a partir da sua Zap Comix e de outros cartunistas
como seu amigo Gilbert Shelton, pai dos Freak Brothers e
criador da Rip Off Press, editora que publicou muitos daquela geração. Os quadrinhos underground pela primeira
vez abordaram de forma clara e direta temas até então tabus nas HQs norte-americanas, como a crescente liberdade
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sexual e o uso de drogas, e ajudaram a moldar, junto com
os hippies e o flower power, a psicodelia e o rock n´ roll, a
então nascente contracultura.
O pai de personagens clássicos como Mr. Natural e Fritz the
Cat e que, em 2009, lançou a sua versão do Gênesis, acabou
por tornar-se um dos ícones dos quadrinhos, impulsionado
também pela forma como registrou com seu traço peculiar
toda a sua admiração pela música negra norte-americana,
e deu vida às mulheres rechonchudas, outra obsessão sua.
Sua atual esposa, Aline Crumb, também começou a publicar
seus primeiros quadrinhos (ainda que toscos e feios) naqueles frenéticos anos, e certamente ajudou a abrir o caminho
para outras mulheres quadrinistas como a norte-americana
Alison Bechdel, autora de Fun Home, que conta a sua dura
e difícil relação com o pai, e a iraniana Marjane Satrapi, que
fez Persépolis, retrato de sua infância e adolescência entre o
Irã e a França nos anos da Revolução Islâmica, que já vendeu
mais de um milhão de exemplares mundo afora.
Lourenço Mutarelli escreveu e protagonizou O astronauta ou livre associação de um homem no espaço (Zarabatana Books), parceria com
Flavio Morais, Fernando Saiki e Olavo Costa. A Zarabatana tem lançado
excelentes livros, como a série Macanudo, do argentino Liniers, Bando
de dois, de Danilo Beiruth, Vida boa, de Fábio Zimbres, além da revista
argentina Fierro.
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HQ
El Cerdo e Stêvz, da Beleléu e o segundo número da Samba. Quadrinistas autorais e independentes voltam a cavar o seu espaço ao sol.
Rio Comicon
No Brasil, a Rio Comicon, dedicada sobretudo aos quadrinhos ditos autorais e realizada em novembro passado no
Rio de Janeiro, deu a mostra mais recente do vigor pelo
qual passamos quando se fala em contar história reunindo
desenho e texto. O evento organizado pela Editora Casa
XXI, responsável há seis anos pelo Festival Internacional de
Quadrinhos (FIQ), em Belo Horizonte (MG), reuniu na capital fluminense alguns dos principais e variados nomes dos
quadrinhos no país, como Ziraldo, Mauricio de Sousa, Laerte, Angeli, Fábio Zimbres, Lourenço Mutarelli, Fábio Moon e
Gabriel Bá, Rafael Grampá, Rafael Coutinho, André Dahmer
e Rafael Sica, além de atrair importantes nomes do cenário independente, como o pessoal das revistas Beleléu, do
Rio, e Samba, de Brasília, e do coletivo Quarto Mundo. Sem
falar nos convidados internacionais, como o italiano Milo
Manara, referência quando se fala em quadrinhos eróticos,
o inglês Kevin O’ Neill e a norte-americana Melinda Gebbie,
parceiros do inglês Alan Moore, criador de Sandman.
Durante seis dias, dezenas de milhares de pessoas compareceram à antiga Estação Leopoldina para assistir debates
e palestras, fazer filas para conseguir um desenho exclusivo dos seus ídolos, comprar revistas independentes como
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Có! e Taxi, de Gustavo Duarte, e conferir lançamentos como
Memória de elefante, do paulista Caeto, ou 676 aparições
de Killofer, ambas graphic novels autobiográficas que figuram entre os melhores lançamentos do ano. Além disso, foi
possível deleitar-se com a exposição de Manara, com originais de sua parceria com o diretor italiano Fellini e de sua
História da Arte contada pela ótica das modelos, sem falar
na dezena de painéis com trabalhos dos convidados, além
de um espaço dedicado aos quadrinhos independentes com
curadoria de El Cerdo, da Beleléu.
Ziraldo e Mauricio
Mas quando se fala no grande mercado de quadrinhos nacionais, dois nomes se destacam: Ziraldo, criador da primeira revista nacional dedicada à nona arte, Turma do Pererê,
em 1964, e pai do Menino Maluquinho; e Mauricio de Sousa,
pai do Bidu e da Turma da Mônica, lançada em 1970, já com
tiragem de 200 mil exemplares.
Ziraldo comemorou recentemente a centésima edição de O
Menino Maluquinho, que já vendeu 2,8 milhões de livros e foi
traduzido até em coreano. Além da série do Maluquinho, que
se desdobrou em vários livros, ele segue produzindo muitas
cartilhas educacionais. E ainda publica em seu blog cartuns
inéditos e históricos, além de ter acabado de expor em telas
grandes seus Zeróis, que satirizam os super-heróis norteamericanos. “Tem 60 anos que eu não paro de fazer coisas.
Então vou continuar fazendo”, conta.
Mauricio foi ainda mais longe. Hoje suas histórias alcançam
120 países, produzidas no maior estúdio de animação do
Brasil. Já foram adaptadas para desenho animado nos anos
1980, e viraram um parque temático nos 1990. Em 2008, seu
estúdio lançou a Turma da Mônica Jovem, com os personagens crescidos em versão mangá. As quatro primeiras edições venderam 1,5 milhão de exemplares. E recentemente,
o governo da China o convidou a produzir com histórias da
turma o material didático de um programa de alfabetização
para 180 milhões de crianças. Exceções, porém.
Brasil, hoje
No Brasil, o cenário para quem produz quadrinhos autorais
independentes é outro. O gaúcho Fábio Zimbres alcançou a
liberdade de que precisa para fazer suas histórias por nunca
ter pensado em “viver de quadrinhos”. Designer e ilustrador,
seus traços que provocam certo estranhamento e os quadrinhos sempre foram o lugar que encontrou para exprimir aquilo que não cabia no trabalho feito para os outros. Zimbres
viveu e participou do boom das HQs nos anos 1980, quando
Ao coração da tempestade (Quadrinhos na Cia.), do mestre Will Eisner,
é inspirado em sua história familiar, que se confunde com a história dos
judeus na América e na Europa na primeira metade do século XX, quando
o antissemitismo mostrava sua cara com menos pudor que hoje.
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HQ
Kafka de Crumb
O universo claustrofóbico, labiríntico e autodepreciativo de Franz Kafka é a matéria desta
biografia em quadrinhos de um dos principais
escritores do século XX, o que talvez melhor
tenha compreendido e refletido sobre o momento em que fomos nos tornando cada vez
mais impotentes, enredados pela burocracia, o
individualismo e as barbaridades inomináveis.
Entremeando a vida do tcheco, com comentários sobre livros e contos seus, Kafka de Crumb
(Desiderata) reúne o excelente texto de David
Mairowitz com o inconfundível traço de um dos
mais importantes quadrinistas da segunda metade do século passado.
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676 aparições de Killofer (BarbaNegra/LeYaCult) e Taxi, de Gustavo Duarte, entre os melhores lançamentos dos ano.
Ambos dispensam os diálogos e balões para narrar suas histórias.
revistas como Chiclete com Banana circulavam em bancas
e tiravam mais de 100 mil exemplares por mês. Editada por
Angeli, a revista foi ideia de Toninho Mendes¸ que depois do
sucesso da publicação com histórias de Bob Cuspe, Rê Bordosa e Os Skrotinhos, bancou Geraldão, de Glauco, e Piratas
do Tietê, de Laerte, quadrinistas e amigos que iriam desenhar
juntos os emblemáticos Los 3 Amigos. Com outras revistas
como Circo e Animal, duraram até o começo dos anos 1990,
quando arrebatavam leitores os mais diversos, dos 12 aos 80
anos, das mais variadas classes sociais. E foi onde se produziu
algumas das melhores histórias, onde surgiram personagens
emblemáticos e onde se abriu espaço para nomes como Zimbres poderem mostrar seu trabalho para um público maior.
Atualmente, temos a internet como espaço infinito para
essa experimentação e vitrine. E quando esbarramos com
quadrinhos como os dos gêmeos Moon e Bá e de Rafael
Grampá, que muito se utilizaram e se utilizam da rede para
mostrar suas histórias e alcançar seu público, é gratificante
saber que hoje publicam seus excelentes quadrinhos autorais nos Estados Unidos, como Daytripper, série da dupla
lançada este ano pela Vertigo, uma das grandes editoras de
lá, ou Mesmo Delivery, impactante graphic novel de Grampá.
Hoje, alguns dos que compravam a Chiclete com Banana
leem estas crescentes publicações em livros bem acabados,
com excelente papel, tamanho e capa dura. E a maioria dos
que fazem quadrinhos quase sempre citam Los 3 Amigos e
suas revistas como determinante na vontade de fazer quadrinhos. Outro tanto dos que curtem vai descobrindo a nova
geração e os clássicos nos blogs e sites de quadrinistas ou
naqueles dedicados ao tema. Mas muitos ficaram pelo caminho, já que hoje as tiragens não passam de 3 mil exemplares,
ou 3% do que imprimiam as revistas há três décadas. “É triste e emocionante encontrar os amigos aqui na Rio Comicon,
gente que batalhou a vida inteira nos quadrinhos e ainda
continua tentando: eles não desistiram”, comentou Mutarelli,
hoje conhecido por romances como O cheiro do ralo e Natimorto, ambos adaptados ao cinema, mas que começou nos
quadrinhos nos anos 1980 nas publicações acima e lançou
álbuns como Transubstanciação e O dobro de cinco no começo da década seguinte. O romancista e quadrinista voltou
a desenhar depois de um longo inverno, primeiro, gráficos
abstratos que apareceram em seu romance A arte de produzir efeito sem causa, de 2008, e agora, histórias de página
inteira, que saem em 2011, mas que ainda não lhe agradam.
Segundo ele, os quadrinhos sempre foram tratados como
algo menor por aqui e a experiência sugere prudência ao
analisar o atual momento. O que pode indicar mais um ciclo
que caminha para o seu auge antes de arrefecer. A arte e
esses artistas, porém, ficam.
Assista às entrevistas com os quadrinistas André Dahmer, Aline Crumb,
Fábio Moon, Gabriel Bá, Gilbert Shelton, Maurício de Sousa, Rafael
Coutinho e Ziraldo no site www.saraivaconteudo.com.br
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LOPE DE
ANDRUCHA
Diretor REALIZA sua primeira coprodução
internacional, um filme sobre o poeta espanhol
Lope de Vega, e faz um balanço da carreira.
Por BRUNO DORIGATTI FOTO TOMÁS RANGEL
Era tarde de entrevistas sobre o seu novo filme, Lope, focado
na vida do famoso poeta espanhol Lope de Vega, na sede da
Conspiração Filmes, em Botafogo, Rio de Janeiro, onde Andrucha Waddington é um dos sócios. Fumante inveterado, ele
dá duas profundas tragadas antes de começarmos a conversa. Avisado de que poderia continuar fumando, ele diz: “Não,
tô na boa. Costumo fumar só um terço do cigarro”. Magro, a
barba curta e o cabelo começando a ficar grisalho, Andrucha
tem a voz rouca e demonstra simpatia. E logo começa a falar
sobre seu novo filme, primeira coprodução internacional que
dirige. Voltemos, porém, um pouco no tempo para recordar
sua trajetória.
Carioca de 40 anos, Andrucha na verdade nasceu Andrew e o
apelido foi dado pela mãe, a psicanalista Irina Popow. Diretor
reconhecido pela atuação na publicidade, estreou no cinema
com Gêmeas, adaptação de uma história de Nelson Rodrigues, meio que por acaso. A Conspiração Filmes, produtora
da qual viria a tornar-se sócio, tinha feito Traição, série com
três episódios baseados em crônicas de Nelson onde o adultério é o tema central. “Quando entrei para a Conspiração,
falei para todo mundo: ‘Olha, estou vindo para cá, mas quero fazer um longa’. E aí, na verdade, Gêmeas ia ser o quarto
episódio, só que a gente não levantou dinheiro. Depois que
Traição foi feito conseguimos levantar dinheiro, e transformei
Gêmeas, que a princípio seria um média-metragem, em um
longa”, relembra. Inspirado em um conto de duas páginas, o
filme traz a história das gêmeas Iara e Marilena, impecavelmente interpretadas por Fernanda Torres, que se apaixonam
pelo mesmo homem e passam a disputá-lo. O elenco conta
ainda com Fernanda Montenegro, Francisco Cuoco, Evandro
Mesquita e Matheus Nachtergaele. O filme prima pelo suspense e o humor negro e consegue reproduzir o clima de
tensão, traição, sem falsos moralismos, que Nelson Rodrigues
se esmerava em retratar em suas peças, contos e crônicas.
“A ficção te permite mergulhar em mundos muito distintos.
O desafio de você não se repetir no próximo filme, fazer uma
coisa totalmente diferente, é uma coisa que busco”, completa.
O Nordeste tem sido um cenário recorrente nos filmes de Andrucha, onde foram filmados Eu, tu, eles e Casa de areia. E
alguns dos seus documentários abordam a vida de nordestinos, caso de Outros (Doces) Bárbaros e Maria Bethânia –
Pedrinha de Aruanda, além de Viva São João!, que celebra a
festa popular originária da região. “Na verdade, Casa de areia
não é Nordeste. Foi feito no Maranhão, mas poderia ser qualquer lugar. É um labirinto de areia, um lugar, teoricamente,
mágico. E tinha uma brincadeira ali de falar um pouco da fundação do Brasil. Você só não tem o índio, mas tem o europeu,
o imigrante, o português, o negro. E o único que pode se dizer 100% brasileiro é o índio.” Já Viva São João! é filho de Eu,
tu, eles. “Quando o Gil fez a turnê do show com as canções do
filme, era São João. E foi tão legal que sugeri a ele fazermos
o documentário. Ele lançou as canções de Eu, tu, eles ao vivo
e rodou com o show pelo Nordeste. E eu fui na paralela, foi
um documentário feito em nove dias, durante o São João”,
diz. E Pedrinha de Aruanda traz Bethânia, natural de Santo
Amaro da Purificação (Bahia), apresentando seu mundo, seu
universo, sua origem.
Lope
O projeto teve início em 2005, quando o diretor fez uma
sessão de Casa de areia (2005) no escritório da Columbia,
produtora do filme, em Madri, Espanha. Os direitos de Lope
pertenciam à Columbia, o roteirista Jordi Gasull trabalhava lá,
assim como Iona de Macedo, produtora executiva do filme.
“Eles me mandaram o roteiro, e adorei. Achei que tinha uma
pegada contemporânea, por falar da fundação de um artista,
tinha história de amor, é um jovem virando adulto, acreditando no seu sonho. Isso era uma temática muito contemporânea, que me interessava, usar um personagem de época para
falar de uma coisa atual”, diz Andrucha.
Lope de Vega é considerado um dos principais nomes da
poesia e do teatro espanhol. Contemporâneo de Cervantes,
por quem era invejado e o definiu como o Monstro da Natureza. Lope produziu de forma absurda, tendo deixado em
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TERESA ISASI
torno de 4 mil poemas. Sem falar na revolução que causou
no teatro, ao misturar trágico e cômico, dividir a obra em três
atos (apresentação da trama, desenvolvimento e desenlace),
desenvolver enredos paralelos, compor em versos e romper
com as noções de tempo e lugar. Andrucha conhecia pouco
de Lope e topou o desafio de aprofundar-se e estudar o Século de Ouro, como era o teatro naquela época, as peças do
dramaturgo, sua biografia, os poemas. “Foram quatro anos
mergulhando nesse universo.” Em 2006, a Columbia fechou o
escritório de produção em Madri. Mas o roteirista, junto com
um produtor que já estava no projeto, Edmon Roch, comprou
os direitos e a Conspiração se associou. Em 2008, entraria a
Antena3 Films.
“Na poesia, ele tinha um dom com a palavra, fez mais de
4 mil poemas. Era um cara que escrevia como ninguém.
E no teatro, foi o primeiro a juntar comédia e tragédia,
fundou o teatro clássico espanhol, quebrando as regras
que existiam até aquele momento. E fez isso antes de
Shakespeare, que veio 20 anos depois. Só que Shakespeare morreu jovem, nasceu depois de Lope e morreu antes.
O inglês foi muito influenciado por Lope, que teve a ousadia de misturar gêneros. E ele tinha uma pegada muito
popular”, conta o diretor.
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Cervantes, considerado hoje o maior autor de todos os tempos na Espanha, morreu pobre, ninguém o conhecia. “E tinha uma coisa curiosa: Cervantes queria ter a habilidade que
Lope tinha de falar com o povo, ser popular, e Lope queria ser
erudito como Cervantes. Até tem uma piada sobre isso no filme, quando Lope corrige uma peça de Cervantes. Isso nunca
aconteceu, é uma piada que botamos no filme”, explica.
Filmar lá fora, aqui, em qualquer lugar
Para Andrucha, cinema é uma linguagem universal. “Os elementos que precisam estar prontos para você filmar são os
mesmos, e não interessa se você está na Argentina, no Chile,
nos Estados Unidos, na Espanha, no Marrocos. Existe uma diferença cultural, de sistema de trabalho, e se você está em outro país precisa se adaptar a ele, mas a equipe tem as mesmas
funções, o cenário tem de estar pronto, a ambientação e a caracterização tem de estar feitas. Em se tratando de um filme
de época, onde estas questões são muito importantes, a preparação é fundamental para você, na hora de rodar, estar preparado, concentrado só na dramaturgia. Todas as questões
estéticas precisam ser resolvidas antes, para que, na hora de
rodar, você esteja a serviço da dramaturgia.” Filmar fora do
Brasil, para ele, foi adaptar-se ao sistema de trabalho dos europeus. “Depois vira uma equipe, uma família rapidinho.”
especial
A LA NOCHE
Noche, fabricadora de embelecos,
loca, imaginativa, quimerista,
que muestras al que en ti su bien
conquista
los montes llanos y los mares secos;
habitadora de cerebros huecos,
mecánica, filósofa, alquimista,
encubridora vil, lince sin vista,
espantadiza de tus mismos ecos:
la sombra, el miedo, el mal se te atribuya,
solícita, poeta, enferma, fría,
manos del bravo y pies del fugitivo.
Que vele o duerma, media vida es tuya:
si velo, te lo pago con el día,
y si duermo, no siento lo que vivo.
de Lisboa foi filmado em Essaouira, e depois aplicamos a cidade por trás”, explica.
A formação de Lope
A vida de Lope de Vega é conhecida a partir do momento em
que o filme acaba. Nas biografias do poeta e dramaturgo há
poucos registros sobre a fase da vida dele que o filme aborda. Ele passou a ser conhecido quando foi exilado. “Foi uma
opção por retratar um Lope desconhecido, mas sendo muito
fiel ao que ele virou depois: um cara irreverente, mulherengo,
absolutamente hábil com as palavras para conseguir o que
queria, revolucionário no teatro.” O filme apresenta a fundação desse personagem quase mítico da cultura espanhola, do
jovem que deseja seguir carreira no teatro, envolve-se com
a filha de um dos principais dramaturgos e, por não ser da
mesma classe que ela, vai pagar um preço por isso, ao criticar
e revelar a hipocrisia da sociedade daquela época. “É um assunto tão universal, o rito de passagem, onde você vira adulto, escolhe uma profissão, é reconhecido pelo seu trabalho,
lida com os seus primeiros dilemas amorosos, se funda como
homem, artista. Isso, para mim, era algo muito interessante”,
acrescenta Andrucha.
E o fato de ser uma grande produção muda algo? “Cara, sabe
que não? Engraçado, porque, quando o projeto foi crescendo,
achei que isso seria uma questão, mas, na verdade, o que tem
de estar pronto, tem de estar pronto. A diferença é que a preparação de um filme de época é muito maior, a quantidade
de detalhes... Na verdade, nada do que é de hoje serve. Uma
reprodução de um prato de época em Madri custava 49 euros, por exemplo. E um artesão fazia estes mesmos pratos no
Marrocos a 50 centavos. A produção do filme fez três contêineres de objetos de cena, que foram mandados do Marrocos
para a Espanha para rodar o filme”.
Ao lançar o filme na Espanha, em meados do ano, o diretor falou com mais de 100 jornalistas e praticamente todos
eles tinham uma questão: Por que um brasileiro dirigir um
filme sobre um dos mais importantes espanhóis? “Já estava
respondendo com humor. O cinema americano importa diretores desde que criou a indústria [nos anos 1940]. Considerome um contador de histórias. Se for fazer um filme no Ceará
sobre padre Cícero, vou ter de estudar a vida dele. E ainda
mais sendo uma língua que eu falo. Se fosse um filme em
japonês, talvez fosse mais difícil. E o Vicente Amorim acabou
de fazer o filme Corações sujos, inspirado no livro-reportagem de mesmo nome, de Fernando Morais, sobre os imigrantes japoneses durante a II Guerra. Falo espanhol, então para
mim é mergulhar naquele mundo para poder falar com propriedade sobre ele. Era uma pauta boba, mas também natural. Não é normal aqui no Brasil você trazer um diretor de fora
para contar uma história brasileira. Acho que talvez a única
A arquitetura das ruas de Madri na época de Lope, o século
XVI, não existe mais. O que foi preservado foram as cidades
medievais. Madri, na época, não era uma cidade medieval, ela
tinha uma arquitetura típica do Século de Ouro, que foi destruída por conta da expansão imobiliária enorme. “Descobrimos essa cidade, Essaouira, no Marrocos, que foi um ponto
de parada na Rota das Índias naquela época e tinha influência
ibérica enorme na arquitetura de toda a Medina (região do
Marrocos). E isso foi mantido, essa região é exatamente como
era há 500 anos. Então fizemos as ruas de Madri lá. O porto
“Foi uma opção por retratar um
Lope desconhecido, mas sendo
muito fiel ao que ele virou depois:
um cara irreverente, mulherengo,
absolutamente hábil com as
palavras para conseguir o que
queria, revolucionário no teatro.”
Soneto de Lope dedicado à noite, o CXXXVII de
Rimas Humanas (1609).
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TERESA ISASI
cultura cinematográfica mundial que tenha isso no DNA é o
cinema americano. É natural que isso aconteça. O fato hoje
de as coproduções serem a salvação do cinema independente vai fazer com que isso aconteça cada vez mais, e acho isso
muito saudável”, prevê.
Entre a ficção e o documentário
Com o trânsito entre a ficção e o documentário, como estas
linguagens dialogam, o que uma acrescenta à outra? “O documentário ajuda muito a não se prender tanto ao que você
se programou. Porque quando você faz cinema, constrói uma
realidade. No documentário, você tenta interferir o mínimo
possível. E isso lhe dá um jogo de cintura, de perceber coisas
que estão acontecendo na hora, no set de filmagem.” Em Lope,
por exemplo, ele fez o storyboard do filme inteiro, mas jogou
no lixo. “Fiz pra mim, para ver como filmaria cada cena, mais
de 1.500 desenhos, e nunca levei para o set, porque eu trabalho
a partir do que os atores me dão. Chego no set de manhã e,
antes de os atores irem se maquiar e se vestir, passo as cenas
do dia. Enquanto eles vão para a maquiagem e o figurino, fecho como vou filmar cada cena. Quer dizer, eu tinha uma coisa
preparada, mas que nem revisito. Porque, a partir do que os
atores dão, vou servir à dramaturgia. E não a dramaturgia servir ao preconcebido. Isso é algo que o documentário me deu.”
Andrucha tem intercalado, ainda que não intencionalmente,
longas ficcionais e documentários. “É que para você levantar
um filme, apaixonar-se por ele, achar que ele está maduro
para ser feito, demora. Não consigo ser operação padaria,
fazer um filme por ano. Tenho filmado longas de cinco em
cinco anos. E no meio você vai se exercitando. Preciso filmar
comercial para pagar as minhas contas, adoro fazer documentário. Vou trabalhando, sempre com o norte sagrado no
cinema, mas deixando que as coisas realmente fiquem maduras para fazer”.
Recentemente, finalizou o DVD Ao vivo lá em casa, gravado
na residência de Arnaldo Antunes e baseado no excelente álbum Iê iê iê, lançado em 2009. Em seu quintal e na laje em
cima da biblioteca, Arnaldo reuniu os amigos, a família, além
de convidados como os Demônios da Garoa, Fernando Catatau, Jorge Benjor e Erasmo Carlos. Andrucha e sua equipe registraram, além do show, a montagem do cenário e dos
equipamentos de filmagem, a transformação do terraço em
palco, a passagem de som com os convidados. Outro projeto
de que Andrucha participa e chega às lojas agora é A conspiração de Gilberto Gil, caixa que reúne sete DVDs com shows e
documentários do músico baiano filmados entre 1996 e 2009,
junto com Lula Buarque de Hollanda, como Viva São João! e
Banda Dois, com Gil e o filho Bem em show acústico.
E os próximos projetos? “Estão andando. Sou muito supersticioso, tenho quatro projetos em andamento, não gosto de
falar quais são, mas posso adiantar que são dois fora do Brasil
e dois aqui. E quero ver qual fica maduro primeiro, viável, na
verve. Você vai maturando, maturando e na hora um pula e
fala: ‘Sou eu!’”, conclui.
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
Gilberto
GIL
Tempo e espaço navegando em todos os sentidos.
Por MARCIO DEBELLIAN FOTOS TOMÁS RANGEL
De volta ao estúdio para finalizar os últimos retoques no álbum Fé na Festa, ao
vivo, que sai ainda no mês de dezembro, e recém-premiado pelo Grammy Latino
em duas categorias - Melhor Álbum de Música Popular Brasileira por Banda Dois e
Melhor Álbum de Músicas de Raízes Brasileiras por Fé na Festa - o fim de ano de Gil
(e de seus fãs) reservou mais um bom motivo para festejos: o lançamento da caixa
A Conspiração de Gilberto Gil, com a reunião de sete filmes que os cineastas Andrucha Waddington e Lula Buarque de Hollanda, da Conspiração Filmes, realizaram
com o artista entre 1996 e 2009.
A reunião desses filmes nos leva a uma viagem que parte de um Brasil profundo, um nordeste bruto que se amalgama (para usar um termo de Jorge Mautner,
parceiro e amigo de Gil) com a África, Índia e Jamaica, e nos remete à “profecia”
da canção Viramundo, presente no álbum de estreia do artista, em que prometia:
“Ainda viro este mundo, em festa, trabalho e pão”.
Visitamos Gil na varanda de seu estúdio, no alto da Gávea, com bela vista para o
abraço do Cristo Redentor, para uma conversa pontuada por serenidade e doçura,
tempo e espaço navegando em todos os sentidos.
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Vendo a reunião destes DVDs, fico pensando que assim
como na música, em que você tem vários parceiros constantes ao longo do tempo, no cinema você também encontrou parcerias duradouras, não é?
Gilberto Gil Os meninos da Conspiração, Andrucha, Lula, Pedro, todos eles, foram se aproximando a partir de produções,
projetos e foram ficando amigos. Foi-se criando uma afinidade. Tenho impressão de que pelo jeito deles, jovens, entusiastas da cultura, sempre foram grandes bate-papos e, portanto,
tornaram-se também grandes companheiros de trabalho. E
vai, vai, conta um ano, dois anos, três anos, dez anos, vai ver
já tem sete filmes. Muitos interessantes pela temática, alguns
que requereram produções não diria complicadas, mas empenhadas, em que nós tivemos de fazer viagens longas, no
espaço e no tempo. A África, a Índia, a Bahia, o Nordeste brasileiro, todos esses territórios culturais e geográficos foram
“desbravados” por nós em viagens memoráveis, importantes,
interessantes. O que resultou disso em filme está na caixa.
Você cultiva o hábito de se reassistir?
Gilberto Gil Não, não. Mas por acaso às vezes acontece. Outro dia eu vi na televisão o Verger. Outro dia vi também o
Tempo rei, que é um dos mais exibidos, muita gente me diz
“Olha, vi de novo Tempo rei na televisão”, é muito solicitado,
é muito reprisado. Nessas oportunidades, em geral, eu vejo.
Assim em casa, para pegar e botar para ver, ultimamente não
tenho feito isso não. Agora com a caixa, possivelmente né?
Para os netos, os filhos. Agora vem o verão, as férias e, possivelmente eu vá rever alguns deles a partir da própria caixa.
É verdade que você foi a última pessoa a entrevistar o
Pierre Verger?
Gilberto Gil Fui. Aquela entrevista, que deu motivo inclusive
ao filme, foi feita por Andrucha e Lula, na véspera da morte
dele. Ele nos concedeu a entrevista, nós fomos à casa dele,
lá na Fundação Pierre Verger, num bairro muito popular de
Salvador. Ficamos com ele durante umas duas ou três horas
e gravamos a entrevista. No dia seguinte pela manhã, recebemos a notícia de que durante a noite, ou nas primeiras horas
da manhã, ele tinha falecido. Aí os meninos correram para
editar o material, ver o material, e se surpreenderam com a
extensão do campo de interesse dele, pela África, pela Bahia,
pelos negros e todas as culturas de uma certa forma secun-
darizadas, nesse mundo de hegemonia western, de hegemonia ocidental a partir de Europa e EUA. Então, eles ficaram
com esse sentimento de que ali tinha um material para uma
coisa sul, para um diálogo sul-sul, para incrementar todas essas interações entre África, Brasil, América do Sul, tudo isso
que se considera e é chamado de Sul, do ponto de vista cultural e mesmo político e econômico.
E a motivação para a filmagem de Filhos de Gandhi?
Gilberto Gil Filhos de Gandhi veio primeiro pelo meu afeto
profundo pelo grupo e minha ligação já histórica com eles,
já datando de minha infância, depois na minha volta do exílio
em Londres, quando eu realmente me associei a eles, passei
a ser integrante, a fazer parte do grupo. Os meninos da Conspiração também se interessaram por esse tema, e a gente
acabou fazendo um filme que nos levou também à Índia, para
encontrar o território do Gandhi, para encontrar o território
daquela cultura que é uma das fontes básicas de inspiração
da própria criação do grupo, da própria dimensão estética do
grupo. Todas essas coisas têm a ver com o Oriente Médio e
essa passagem pela Índia. Toda aquela coisa da cultura muçulmana que vai para a Índia e encontra lá o seu território específico. Os elefantes, os camelos, os turbantes, aquela coisa
colorida extraordinária. Tudo isso a gente teve que ir lá para
poder capturar para o filme.
Depois de ter rodado o mundo como artista e também representando o Brasil como Ministro da Cultura, um pouco como
diz a sua canção Viramundo, que visão você traz do deslocamento desse eixo western, existe uma percepção diferente? O
que mudou na sua percepção desse tempo para cá?
Gilberto Gil Olha, meu interesse pelo Brasil, no sentido de
acreditar na redenção brasileira, para o seu povo e seu país,
com a solução de problemas históricos graves, com a reparação necessária que se tem de fazer, a inserção do Brasil no
mundo dos países desenvolvidos, avançados, vem da crença
numa civilização brasileira própria, específica, peculiar, com
elementos importantes da origem portuguesa; uma origem já
ela própria original, porque ela é diferente de todos os outros
resultados da colonização, das navegações. Isso aqui era um
empreendimento templário, ligado à ideia do quinto império,
à ideia do reino do Espírito Santo, todas essas coisas, a palavra “Brasil” já encontrada séculos antes do descobrimento,
em mapas europeus com o significado de terra encantada.
Ao longo da minha vida de artista e de gestor público, militante político,
o que quer que a gente queira usar como denominação para definir isso,
meu amor pelo Brasil cresceu muito.
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
A CONSPIRAÇÃO DE GIL
Tempo rei Passeio musical pela obra, vida e geografia
íntima de Gilberto Gil, celebrando os 30 anos de sua carreira,
com a participação especial de Stevie Wonder, Caetano
Veloso, Carlinhos Brown, incluindo grandes sucessos como
Madalena, Cores vivas, Vamos fugir e Procissão.
Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos Uma
viagem pela África, França e Bahia, narrada por Gil,
seguindo a trajetória do fotógrafo, etnógrafo e babalaô
Frances Pierre Fatumbi Verger (1902 - 1996), um dos mais
importantes pesquisadores do candomblé e da cultura
afro-brasileira.
Eu, tu, eles A insólita e comovente história de Darlene de
Lima Linhares e seus três maridos, ambientada no sertão
do Ceará. Um filme baseado em fatos reais, com a atuação
magistral de Regina Casé, Lima Duarte, Stenio Garcia e Luiz
Carlos Vasconcellos, e a trilha sonora de Gilberto Gil.
Refavela (1977), o disco "xodó" de Gilberto Gil
Filhos de Gandhi Afoxé Filhos de Gandhi visto na
intimidade de seus membros e fundadores, durante
as comemorações dos 50 anos de existência, com
entrevistas, cenas do Carnaval da Bahia e um desfile
surpreendente pelas ruas de Udaipur, na Índia, no encalço
do líder espiritual e político que inspirou o nome da
agremiação carnavalesca.
Viva São João! Durante a turnê de Gilberto Gil pelo
circuito das festas juninas do Nordeste, um mosaico
de tradições, personalidades e estilos musicais vai se
tecendo, com depoimentos, cenas de shows, procissões,
cantorias, arrasta-pés, fogos de artifício e muito forró.
Kaya N´gan daya - O tributo de Gil ao rei do reggae,
Bob Marley Show e documentário, com cenas da viagem
à Jamaica e da gravação do disco homônimo, no lendário
Tuff Gong.
Banda Dois Gilberto Gil,
ao violão, passeia por
seus grandes sucessos,
acompanhado por seu
filho Bem Gil, num show
acústico filmado com
requinte, contando ainda
com a participação
especial de Maria Rita e
do caçula José Gil.
A Conspiração de
Gilberto Gil: produto
exclusivo Saraiva.
Então essa ideia do encantamento a ser produzido por um
Brasil redimido, isso tudo sempre foi uma coisa que me interessou. Minhas andanças pelo mundo como artista, e também
já consolidadas pelo período como Ministro - porque nesse
período ministerial foram andanças muito qualificadas nesse sentido de estabelecimento de relações entre o Brasil e o
mundo, foram missões diplomáticas, missões comerciais, culturais especialmente, que me deram um reforço da crença da
imagem de um Brasil do mundo, para o mundo, com o mundo, contribuindo para uma reciclagem do processo civilizatório. Uma adesão de aspectos mais amenos e profundamente
espirituais nessa civilização ocidental. Ao longo da minha vida
de artista e de gestor público, militante político, o que quer
que a gente queira usar como denominação para definir isso,
meu amor pelo Brasil cresceu muito.
Eu ficava vendo de fora, você ministro, e daqui a gente
tem uma visão de Brasília, que é mais de relações políticas,
compromissos, reuniões, ternos...
Gilberto Gil Chamam de uma cidade escritório-dormitório. Uma
cidade em que a gente está ali para trabalhar de dia, dormir e
voltar a trabalhar no dia seguinte. No caso dos políticos e dos
gestores, também viajar, pelo Brasil em alguns casos, como era
o meu, viajar pelo mundo. Então Brasília é uma cidade assim...
Tinha saudade do artista, de você estar mais presente fazendo shows, compondo... Mas ao mesmo tempo, ficava imaginando que você tem a formação de administrador, chegou a
trabalhar com isso na Gessy Lever, de certo modo também
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Nós (artistas) somos uma comunidade, nos constituímos como tal, nos
inter-relacionamos, nos intercambiamos, a partir de um senso comunitário
importante, invejado aliás por outras gentes, em outros lugares do mundo.
deve ter sido uma espécie de reconciliação com esse lado
seu que ficou para trás porque o artista falou mais alto.
Gilberto Gil Claro, claro, claro. A oportunidade de poder efetivamente gerir uma instituição grande, com relevância para
o país, com articulações necessárias com todos os estados,
todos os municípios, com quase 3 mil pessoas formando os
quadros funcionais, na sede e em todas as regionais do ministério, nos órgãos acoplados ao ministério. Enfim, tudo isso era
um pouco aquele desejo mesmo: “Olha, eu me formei em administração, eu fiz isso, eu quis isso”. É um dos aspectos também, uma das faces do poliedro da minha pedra profissional.
Então foi muito isso também: eu quis ali resgatar um pouco
essa coisa que eu tinha podido exercer muito brevemente na
Gessy Lever, quando terminei o curso de administração na
Bahia e fiquei um ano em São Paulo trabalhando. Mas logo
depois veio a vida artística e nunca mais eu tinha voltado
a... Não, nunca mais não, porque todo o processo de criação
da minha estrutura empresarial, aqui a GeGe, a formação da
GeGe nos primeiros tempos, a chegada da Flora, a ampliação,
isso tudo já era uma permanência na vida de administrador. O
Ministério deu a isso uma ampliação muito grande.
Das realizações como ministro tem as sementes de que
você tem mais orgulho de ter plantado, tem aquelas realizações de que você fala “puxa, isso valeu”, tem coisas que
te orgulham mais nesse período de ministério?
Gilberto Gil Muitas coisas, as que mais me interessaram foram as que estiveram propriamente ligadas ao sentido geral
do governo do presidente Lula. Governo que queria e, acabou
de fato, se caracterizando como um governo de resgate das
obrigações do Estado com o conjunto geral da população
brasileira, especialmente os segmentos menos protegidos
dessa população. Ou seja, as políticas sociais. O governo do
presidente Lula insistiu nas políticas sociais e o nosso ministério também, a partir desse governo. Então, as políticas de
empoderamento de setores populares do país inteiro, através de programas como o Mais Cultura, programas na área
do cinema, do patrimônio histórico. O samba de roda como
patrimônio da humanidade. O registro do acarajé, do bumbameu-boi, do frevo, como patrimônios importantes. O uso das
novas possibilidades da cultura digital para fortalecer processos culturais em comunidades ao largo do Brasil inteiro,
dando a eles possibilidades de novas formas de conexão via
internet, televisão, telefone celular, todo esse novo mundo.
Possibilidade de encontro desse povo todo no ciberespa-
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ço, tudo isso foram coisas muito interessantes. E mais, para
além disso, o grande trabalho diplomático que o Ministério da
Cultura ajudou o Brasil a fazer junto à Unesco na questão da
Convenção da Diversidade Cultural, junto à Organização Internacional da Propriedade Intelectual, discutindo questões de
como tratar os saberes antigos, os saberes indígenas, os saberes tradicionais. Enfim, muita coisa, como a reestruturação das
relações culturais do Brasil com os países do Cone Sul, da faixa
andina, da faixa atlântica norte: com a África, reingresso mais
profundo do Brasil, com os países de língua portuguesa, que
são diretamente irmãos e primos e depois com o conjunto dos
países de língua francesa, os países da faixa mediterrânea, do
mundo árabe. Enfim, muita coisa, muita coisa...
E na carreira artística, aos 68 anos, tem filhos (discos) preferidos?
Gilberto Gil Refavela (1977) é um disco pelo qual eu tenho um
xodó especial. Pelo disco ao vivo gravado em Montreux, tenho
também um xodó especial. Louvação, primeiro disco gravado,
por isso, por ser o primeiro, por reunir ali o primeiro roteiro
de canções, Procissão, Louvação, Viramundo, a que você se
referiu agora há pouco, Roda, enfim, as primeiras canções. Eu
começando a compor e a gravar, tem uma importância muito
grande, acaba ganhando um nichozinho, acaba sendo entronizada na obra. E tem outros, meus discos ao vivo, dois deles
me deram prêmios Grammy internacionais, que são formas
importantes de reconhecimento mundial do trabalho. Mas o
que mais eu ponho assim num cantinho é o Refavela (1977).
E tem os discos em parceria, você dividiu o palco com muita gente boa.
Gilberto Gil É, tem vários, tenho um disco com Jorge Ben,
que é um desses discos importantíssimos na minha carreira.
Disco que ganhou uma reputação enorme como um disco
especial para muita gente. E ele, Jorge, um artista pelo qual
eu tenho uma afeição muito grande, sem falar nos meus mais
próximos, Caetano, Gal, Bethânia. Tanta gente. Essa é uma
das coisas gratificantes do trabalho do artista, é esse suporte comunitário fundamental. Nós somos uma comunidade,
nos constituímos como tal, nos inter-relacionamos, nos intercambiamos, a partir de um senso comunitário importante, invejado aliás por outras gentes, em outros lugares do mundo.
Gentes que dizem sempre assim: “Puxa, no Brasil vocês são
incrivelmente afetuosos, têm um processo de troca incrível,
toda hora vocês estão nos discos de todos, todos nos palcos
de todos”. Isso é uma coisa que foi até inspiradora para certos
grupos europeus e americanos que passaram também a adotar esse estilo de vida artística. Isso é muito bom, muito bom.
O show que você fez aqui no Fashion Rio foi o último que
vi, no Cais do Porto, e foi lindo demais. Foi o penúltimo
trabalho, o Banda Dois (2009), e eu me emocionei muito
com a sua canção sobre o medo da morte. Foi aquele silêncio, criou aquela atmosfera coletiva, todo mundo ficou
envolvido...
Gilberto Gil Ainda hoje eu cantei essa música sozinho em
casa, antes de vir aqui, para a entrevista. Porque fazia tempo,
e eu me dizia assim: “Será que eu me lembro da letra toda?”.
Aí comecei a cantar sozinho, em frente ao computador em
que eu estava trabalhando para uma palestra que eu vou fazer daqui a alguns dias, que é sobre mercado musical, cultura
e política, então eu fiquei pensando, lá no momento me veio
essa coisa da morte. Fiquei me lembrando como a música foi
feita na Espanha, em Sevilha, onde eu estava participando de
um seminário sobre cultura digital e cultura da informação e
políticas culturais para o mundo, com Manuel Castells, John
Perry Barlow e António Damásio, neurocientista português,
que escreveu O erro de Descartes (Companhia das Letras).
Foi lá nesse contexto, nesse ambiente que fiz essa música.
Por causa dessas interligações com o computador, me lembrei dela hoje.
E fica mais bonito ainda de ver você cantando acompanhado pelo seu filho Bem.
Gilberto Gil Símbolo da continuidade da nossa vida, o filho
fazendo a mesma coisa que eu, tocando violão, fazendo música, dividindo o mesmo ambiente de trabalho comigo. Isso
tudo é muito bonito e além disso um momento esteticamente
tão bonito, como o Andrucha fez daquilo, como ele instalou
o palco e os elementos de cena e tudo. É um dos vídeos mais
bonitos, independente de mim [risos].
Você faria um trechinho dessa música para a gente?
[Gil canta]
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença?
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar.
Assista à entrevista com Gilberto Gil
no site www.saraivaconteudo.com.br.
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A FESTA DE
GADÚ
Por MARCIO DEBELLIAN FOTOS TOMÁS RANGEL ESTILO BEATRIZ DALE
Revelada ao grande público no início de 2009, na minissérie Maysa, da Rede Globo, Mayra Corrêa Aygadoux, a Maria
Gadú, lançou seu primeiro disco em junho desse mesmo ano
pela Som Livre. Nessa época, fizemos uma primeira entrevista
com ela, que então morava com a mãe e Cuíca, um labrador
de quatro meses, e fazia temporada no Posto 8, uma pequena
casa em Ipanema, que já nem existe mais.
De lá pra cá, o vídeo com o registro da nossa conversa tornou-se recordista de acessos no site SaraivaConteúdo, com
110 mil acessos, seu disco vendeu mais de 100 mil cópias e
ganhou o Prêmio Multishow de Melhor Álbum de 2010, e a
cantora passou a lotar casas do porte do HSBC Brasil, onde
gravou o CD e DVD Multishow ao vivo, que acaba de chegar
às lojas. Suas músicas viraram presença constante nas novelas: a canção Shimbalaiê, que compôs aos 10 anos de idade,
estourou de vez ao ser incluída na trilha de Viver a vida e,
mais recentemente, atendendo a um pedido especial, gravou
Rapte-me camaleoa, canção que Caetano Veloso fez em homenagem a Regina Casé, para a novela Ti-ti-ti.
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“Shimbalaiê foi um susto. Veio do nada. Eu era muito pequenininha, mas sempre fui meio nerdzinha, lia muito. E, na verdade,
não tem nada demais na música, eu estava descrevendo uma
paisagem. Criança adora inventar palavra, né?”, explica Gadú.
Ela toca violão desde criança, mas antes veio o piano. “Eu
ouvia muita música clássica quando era pequena, era meio
viciada, e ficava experimentando no piano. Só que eu queria
sair tocando nos lugares onde eu estava, sair treinando. E
aí o violão é mais móvel”, conta ela. Sua mãe a colocou em
uma escola de iniciação artística, chamada Demia, em São
Paulo, onde teve contato com todos os instrumentos – flauta, bateria, percussão, piano – além de aprender a fabricar
instrumentos. Foi lá onde realmente aprendeu a tocar violão.
Tocava tudo o que ouvia junto com os discos. Aos 24 anos, comemorados em 04 de dezembro, dia de Santa
Bárbara, Gadú mudou de casa e de cão. Foi morar sozinha,
e Cuíca, o labrador, ficou com a mãe. Agora ela cuida de Cachaça, um pug endiabrado, de apenas dois meses. O pescoço
ficou repleto de patuás. “Foram me dando patuás, eu fui pondo, agora não cabe mais nada, é um embolado de coisas. Não
posso cortar porque senão arrumo briga com metade do céu.”
A vida ficou corrida, mas cheia de momentos que a fazem duvidar da própria realidade. “Claro que a vida mudou. A rotina virou
pauleira. Desde que gravei o CD tem sido assim. No começo
fazia muito trabalho de divulgação para a imprensa e agora tem
esse lance de viajar, sair de casa, não voltar nunca. É estranho,
fazia um show no Posto 8 para 200 pessoas, e de repente tem 7
mil gritando meu nome. O que é isso? Que coisa maluca!”
Maria Gadú com os amigos Toni Ferreira e Dani Black, que participam do DVD.
Além da rotina de shows pelo Brasil e um público cada vez
mais apaixonado, Gadú ganhou prestígio no meio musical, incluindo indicação para o Grammy Latino em duas categorias:
Artista Revelação e Melhor Álbum de Cantor-Compositor. Foi
convidada para gravar com Ana Carolina e Moska, ganhou elogios rasgados de Milton Nascimento – “Música, simpatia, tudo
de bom. Canta lindamente e traz amigos para repartir o palco”
– e agora se prepara para uma turnê com Caetano Veloso.
Apesar das novas amizades, Gadú fez questão de contar com
os amigos de sempre na hora de dividir o palco e gravar o
DVD – a banda é a mesma dos primeiros shows: Cesinha (bateria), Doga (percussão), Maycon (teclados), Gastão Villeroy
(baixo) e Fernando Caneca (guitarra) – e os extras trazem
canções e participações, em sua maioria, desconhecidas do
grande público: Toni Ferreira em Reflexo de nós, Dani Black
em Só sorriso, Manuh em You’ve got a believe, e uma participação família (Philippe Gadú, Bernard Gadú, Marc Gadú e
Patrick Gadú) em I can see clearly now.
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SARAIVACONTEÚDO DEZ. 2010 / JAN. 2011
“Isso de gravar com os amigos é muito verdadeiro. São os
meus mesmos amigos, de hoje e de sempre. A gente é amigo,
divide música, chora, ri, e por que não dividir o palco? É um
instante maravilhoso, um lugar em que todo mundo gosta de
estar. Cantamos as músicas deles, pra galera conhecer. É gente que faz música porque gosta. Só presta pra isso, só sabe
fazer isso, vive pra isso. Todo mundo é meio sozinho na vida,
e a maravilha tem que ser dividida. Solidão nessas horas não é
legal. Fizemos do modo como fazemos em casa, com intimidade e conforto, só que desta vez com um puta equipamento
de som. Não podia privar os amigos disso.”
De participação “ilustre” no DVD, apenas Sandy, que chegou
de forma inusitada. “Ela foi assistir ao show com seus pais,
o Xororó e a Noeli. Eu sou muito fã da Sandy e do Junior, e
sempre canto Quando você passa nos shows. Aliás, eu acho a
família toda muito doce, um berço de elegância e educação.
Quando o show acabou, perguntei se era necessário regravar
Às vezes, olho pro lado, me vejo tocando com o Caetano e penso que estou louca!
alguma coisa para o DVD e disseram que não, que eu poderia
fazer o bis que quisesse, e o público começou a cantar essa
canção. Achei lindo, porque a Sandy estava lá, vendo aquilo,
uma galera puxando a música que ela gravou. No meio da música, ela, que já estava no backstage esperando para me cumprimentar no camarim, entrou no palco! Eu chorei! A Sandy
aqui! Foi muito legal, não estava previsto. Fiquei muito feliz.”
Caetano viu Maria Gadú pela primeira vez em sua estreia no
Cinemathèque (infelizmente, outra casa carioca que já não
existe mais): “Achavam que era a nova Cássia Eller, mas a voz
me lembrava mais a Marisa Monte. Fiquei encantado com a
naturalidade, a presença, a fluência da musicalidade e da figura. Parecia um garotinho com voz de princesa.”, definiu Caetano em recente entrevista ao Jornal O Globo.
A turnê em parceria com Caetano surgiu depois que se
apresentaram juntos em duas ocasiões: “Chamaram a gente
para um show fechado, um duo em 4 músicas, e em seguida,
fizemos a participação no Prêmio Multishow cantando Rap-
te-me camaleoa. Depois veio a ideia de fazermos esta turnê.
Vai ter show no Rio no dia seguinte ao meu aniversário, não
tem presente melhor! Se eu morrer no dia seguinte ao show,
pode ter certeza de que eu subo (ou desço, vai saber!) feliz!
[risos] Faremos canções que ele não tocava há muito tempo, que têm aquelas frases que eu tatuaria. O que é a letra
de O quereres? Às vezes, olho pro lado, me vejo tocando
com o Caetano e penso que estou louca!”
Pedimos então para que Gadú dê uma canja de O quereres no
violão. Ela pede um favor: “Vocês podem fechar a porta da cozinha?”. Pensamos ser por conta de algum possível barulho, mas
não: a porta da cozinha de Gadú está toda escrita com a letra da
música. É parte de seu processo para decorar a letra (e a casa,
talvez!). E como se diz que o melhor da festa sempre acontece
na cozinha, o que se quer, com uma porta dessas, é que a festa
de Gadú ainda vire muitas madrugadas. Ah, bruta flor, bela flor!
Assista às entrevistas com Maria Gadú
no site www.saraivaconteudo.com.br.
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Fachada de edifício abandonado em Lagos, na Nigéria.
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fotografia
João
Wainer
Um olhar por detrás da fumaça
Do Carandiru à África, da luta livre mexicana aos motoboys paulistanos, do terremoto no Chile ao fenômeno cinematográfico conhecido como Nollywood, na
Nigéria, das FARC colombianas aos pichadores da periferia de São Paulo. O fotojornalista e documentarista João Wainer vem, desde 1992, buscando apresentar
“a fumaça das ruas na sua cara”, como ele mesmo define o trabalho em seu site.
Uma busca incessante por retratar, registrar, dar voz a personagens que vivem do
lado de lá da ponte, outra expressão sua, que nomeia seu primeiro documentário.
“A ponte do Rio Pinheiros virou um Muro de Berlim, só que em São Paulo divide o
pobre do rico”, afirma Mano Brown no documentário A ponte, lançado em 2008,
junto com Roberto T. Oliveira, com quem também dirigiu Pixo, contundente retrato dos pichadores da maior cidade da América Latina, de 2009.
O trabalho de João, que hoje chega ao documentário, começou com a fotografia,
com um estágio no Jornal da Tarde, aos 16 anos. Mas isso não importa muito para
ele. “O que importa são os assuntos que fotografo. A fotografia pela fotografia,
a mim, não interessa tanto assim. Interessa mais o que e de que jeito aquilo está
sendo fotografado. Gosto muito mais das pautas do que da fotografia em si. Se
curtir o assunto, a maneira com a qual vou abordá-lo é o menos importante, pode
ser em vídeo, em foto, em texto, em sinal de fumaça. Não importa, o que vale é o
que você está registrando”, ressalta.
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Homem acende sinalizador durante baile funk na cidade de Santos, litoral de SP.
Logo soube que era isso que queria para a sua vida. “Foi
uma coisa muito natural pra mim. Foi muito rápido, rápido
até demais”, recorda. No JT, conheceu o fotógrafo Bob Wolfenson numa matéria e passou a trabalhar como assistente
dele. “A partir dali, fui embora, fui para a Folha de S. Paulo e
não parei mais.” Para ele, o fotojornalismo é a melhor escola
que há, “a melhor base que eu poderia ter. Hoje em dia me
sinto preparado para fotografar qualquer coisa mesmo”.
“O mais legal do fotojornalismo diário é que há um exercício
constante da sua ignorância. Cada pauta que você pega é
um assunto do qual não sabe nada. E quando você começa
a tentar entender o máximo de coisas possíveis em cada
pauta que vai cobrir, aí começa a ficar gostoso, porque são
lugares muitos diferentes, alguns deles a que qualquer pessoa jamais iria se não fosse a trabalho”, acrescenta João, que
viajou o Brasil inteiro e conheceu vários lugares assim.
À margem
João passou por situações que muitos não teriam estômago
nem fígado para tanto. Muito por conta do trabalho como
fotojornalista, mas também por opção. “Meu trabalho pessoal, desde que comecei a fotografar, sempre esteve voltado
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para a margem, a periferia, pessoas que vivem do lado de
lá da ponte, tanto nos aspectos ruins como nos aspectos
bons.” Ele diz que nunca conseguiu entender muito bem por
quê, mas é desde moleque que tem esse interesse e vontade
de conhecer mais. “Tenho impressão de que às vezes sentia
um pouco de medo quando era mais novo”, ele que nasceu
num bairro de classe média, Perdizes.
“Tinha um pouco de medo da minha cidade, de circular em
determinados lugares. E acho que essa busca por entender
foi algo para enfrentar os meus medos e a cidade em que
morava, até perder o medo dela, sabe? Até entender como
tudo aquilo funcionava. Porque eu ficava muito assustado.
Um negócio que nunca entrou na minha cabeça são as pessoas que moram em São Paulo e nunca atravessaram para
o lado de lá da ponte. As pessoas simplesmente ignoram
que aquilo tudo existe. E aquilo, para mim, era tão forte,
que não conseguia ignorar, fazer como as outras pessoas
faziam. Então fui atrás.” Nunca é demais lembrar que São
Paulo concentra a maior pobreza das Américas. São 3 milhões de pessoas pobres, mais 1,4 milhão de pessoas miseráveis, que vivem abaixo da linha da pobreza. Do lado de cá
da ponte, a mesma cidade é terceira do mundo em venda
Fachada interna do Pavilhão 8 do Carandiru, o maior presídio da América Latina em São Paulo.
Luta livre entre Cholas (indígenas bolivianos) na cidade de El Alto, na Bolívia.
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Mulher aguarda retirada do corpo do marido, que foi assassinado na sala de sua casa na zona sul de SP.
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Apresentação da dançarina Juliette Dragon no bar Lucha Libre, no Quartier Latin, em Paris.
Ser fotógrafo foi uma desculpa que encontrei para me aproximar de
temas onde queria chegar.
de veículos blindados, num país que não está em guerra
civil, nos recorda em A ponte Floriano Pesaro, ex-secretário
de Desenvolvimento Social e atualmente vereador do município pelo PSDB.
No Carandiru, João entrou para participar do Talentos
Aprisionados, projeto criado pela atriz Sofia Bisilliat, que
resolveu levar cursos e oficinas para tentar ressocializar os
presos através da arte. Ficou quatro anos fotografando a
penitenciária. Com o tempo, o jornalista André Caramante,
e a fotógrafa Maureen Bisilliat, mãe de Sofia, entraram para
o projeto. “A Maureen acabou coordenando e tocando até
o final, quando virou livro (Aqui dentro – Páginas de uma
memória: Carandiru, Imprensa Oficial, 2003). Foi uma experiência demais, eu era super novo, aprendi muita coisa
nesse período”, diz. Ele também trabalhou um tempo no
Notícias Populares, finado jornal sensacionalista do Grupo
Folha. “Sempre tive predileção por esse tema. Brinco até
que escolhi o tema antes de escolher ser fotógrafo. Ser fotógrafo foi uma desculpa que encontrei para me aproximar
de temas onde queria chegar.”
Tanto A ponte como Pixo são trabalhos que estão nessa
mesma pegada. “Pixo é feito pela molecada da periferia de
São Paulo, a contestação bem típica. E A ponte também, é
um documentário que fala dos problemas e das dificuldades que as pessoas têm na periferia, mas de uma maneira
positiva e que acaba oferecendo uma solução possível. A
gente vê que é possível mudar, melhorar. Os documentários são a continuação natural de um caminho que venho
trilhando desde o começo”, resume. E com Pixo, João Wainer acredita ter chegado a uma síntese de tudo. “De tudo
que andei olhando, correndo atrás, Pixo é a síntese. Tudo o
que fiz antes foi para chegar ali. Também pelo fato de ser
o último, fiz com mais maturidade, mais cuidado, com um
entendimento um pouquinho maior”, acredita.
CERTO GAJO
CONTADOR DE
HISTÓRIAS
“Ainda hoje, sempre que o mundo se apresenta como espetáculo enfadonho e miserável, sou incapaz de resistir
à tentação de relembrar o tempo em que, por força da
necessidade, fui obrigado a aprender a difícil arte do funambulismo.” Este é o início de Três vidas, romance do
premiado escritor português João Tordo. De imediato
nos identificamos com este equilibrista e tentamos percorrer as inexatas linhas, desenhadas em escrita simples,
sem artifícios de linguagem, mas com trama que segu-
ra firme o hesitante leitor. Se a “melancolia crônica” é o
que ameaça o narrador, é também ela que o impulsiona
a seguir e compor a vida (ou as vidas). Cair ou escapar
da queda? Não se trata de escolha, mas percurso do funâmbulo Tordo.
Esta história, que trazemos em breve excerto, foi publicada recentemente no Brasil pela Língua Geral, primeira
editora brasileira dedicada a autores lusófonos.
AS TRÊS VIDAS, DE JOÃO TORDO
Pouco tempo depois do leilão, uma jornalista do Diário
de Notícias que fazia uma reportagem sobre os casos em
aberto da Polícia Judiciária interessou-se pela história
oculta deste homem e, através de fontes que não quis
desvelar, veio ter comigo, abordando-me à maneira petulante e lisonjeira dos repórteres, efeito da profissão pelo
qual não a posso julgar. Agora que o homem está morto, disse-lhe, não vejo qualquer problema em contar-lhe
tudo, e assim o fiz. Falamos durante três horas, e dei por
mim a desbobinar a história dos últimos anos da sua vida
que estava, compreendi então, indissociavelmente ligada
à minha, à sua família, a Camila, a Gustavo, a Nina, a Artur e à viagem que, em 1982, acabou por selar aquilo de
que eu vinha suspeitando há tanto tempo, isto é, a nossa
inaptidão para continuar a viver a vida de todos os dias
depois de certas coisas acontecerem. Não me parece que
a jornalista — que era uma rapariga nova, com a curiosidade dos aprendizes — tenha acreditado na maior parte
das coisas que lhe contei. Perguntou-me constantemente se podia apresentar provas, mas, como irão descobrir,
não foi possível conservar quaisquer documentos desses
dias — para além daqueles que se encontram em lugar e
mãos desconhecidos — e respondi-lhe que, a ser publicada a história, teria de o fazer de boa-fé. Passaram-se
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dois anos, comprei o jornal todos os dias, e nem uma linha
apareceu sobre o assunto.
Fui compreendendo, no tempo que passou desde a entrevista, que deixar um relato da minha experiência era
uma necessidade. O que foi verdade e o que é, inevitavelmente, ficcionado, devido aos limites da memória, não
importa; em última análise, a própria realidade é objeto
de ficção. O mais importante é libertar-me dos fantasmas, pois acarreto com as sombras de todas as coisas a
que não tive coragem para colocar um fim. Isso refletese, sobretudo, nos meus sonhos: ao contrário da crença
habitual, não me parece que os sonhos sejam o espelho
dos nossos desejos; cá para mim, acho que os sonhos são
o espelho dos nossos horrores, dos nossos piores medos,
da vida que poderíamos ter tido se, numa altura ou noutra, não fôssemos incomensuravelmente covardes.
João Tordo nasceu em Lisboa em 1975. Formou-se em filosofia e estudou jornalismo e escrita criativa em Londres e Nova Iorque. Trabalha
como roteirista e publicou dois romances, O livro dos homens sem luz
(2004) e Hotel Memória (2007), ambos bem recebidos pela crítica. O
presente romance recebeu o Prêmio Literário José Saramago da Fundação Círculo de Leitores em 2009. João Tordo mantém um blog em
joaotordo.blogs.sapo.pt.
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QUE FICAM BEM LONGE.
AO FUTURO, POR EXEMPLO.
Oi Futuro é o instituto de responsabilidade social da Oi que trabalha
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Em 10 anos, já beneficiamos mais de 4 milhões de pessoas, através de
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que estamos inserindo cada vez mais brasileiros no mapa da cidadania.
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