O corpo protético
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O corpo protético
O corpo protético: questões entre ciência, arte e sociedade The prosthetic body: issues between science, art and society Manoela Freitas Vares, mestranda do PPGART/Universidade Federal de Santa Maria, email: [email protected] Nara Cristina Santos, Doutora em Artes Visuais, professora do PPGART/ Universidade Federal de Santa Maria, email: [email protected] RESUMO Esse artigo trata das extensões tecnológicas que podem ser acopladas ao corpo humano visando a sua melhoria. Para isso, procura-se fazer uma relação entre as descobertas científicas, tais como chips, próteses e exoesqueletos e as questões decorrentes de seu uso em projetos de arte e tecnologia, principalmente nas obras de Eduardo Kac e Stelarc. A partir desse estudo, percebe-se que constantemente aparecem questões acerca desse novo corpo, que tem suas capacidades aumentadas, e surge uma possibilidade de reflexão sobre como se dá através da recepção, uma aproximação por parte da sociedade das experiências em arte e tecnologia. Palavras-chave: arte, tecnologia, ciência, corpo, sociedade. ABSTRACT This article discusses the technological extensions that can be attached to the human body in order to improve it. To do so, we seek to make a connection between state-ofthe-art scientific discoveries, such as chips, prosthetics and exoskeletons and issues arising from their use in art and technology projects, especially in Eduardo Kac and Stelarc works. From this study, we find questions that constantly appear on this new body, which has increased its possibilities, and comes a chance for reflection on how the reception is perceived through an approximation by the society experiences in art and technology. Keywords: art, technology, science, body, society Desde a invenção das primeiras tecnologias, pudemos observar as modificações que elas trazem com suas constantes atualizações. Essas mudanças se tornam perceptíveis tanto na sociedade - na maneira como o homem vive - quanto na arte. Na atual sociedade de comunicação, a maioria de nós está constantemente conectada, atualizando-se, e têm uma forte preocupação em renovar as tecnologias que possui, visto que essas se tornam ultrapassadas em pouco tempo. Nesses avanços tecnológicos, percebemos cada vez mais uma integração ao nosso corpo: são desde novas interfaces mais agradáveis e que se melhor se adaptam às nossas necessidades - até videogames 1 que captam os movimentos corporais e nos imergem em outras realidades, tais como o Wii ou o Kinnect. Os dispositivos estão ficando crescentemente inteligentes e as interfaces com o humano cada vez mais íntimas [...] dessa intimidade brotam organismos híbridos entre o carbono, o silício e outros possíveis materiais capazes de incorporar inteligência (SANTAELLA, 2010, p. 315). Esses organismos híbridos podem ser entendidos como nossos próprios corpos misturados a partes de outros materiais de natureza diferente. Isso pode acontecer através de pesquisas em torno do desenvolvimento de tecnologias que visam melhorar as condições de pessoas que possuem alguma deficiência física - é o caso, por exemplo, de um chip, desenvolvido para ser implantado nos olhos de pacientes cegos, fazendo com que estes possam perceber algumas alterações luminosas e vultos. Este é um estudo bastante recente, mas como tem produzido resultados positivos em testes, em breve deverá ser aprovado e assim, mais pessoas terão a oportunidade de melhorar sua visão. Esses aparelhos, cada vez mais acoplados a nossos corpos, fazem pensar também na produção artística contemporânea, na área de arte e tecnologia. Esta produção possui como característica a transdisciplinariedade, oferecendo aos artistas a possibilidade de realizar seus projetos não só com materiais próprios de sua área do conhecimento, mas também trabalhar e até fazer parcerias com outras áreas. Assim, encontramos também propostas artísticas que fazem uso do chip. Por exemplo, em Cápsula do Tempo (1997), executada pelo artista Eduardo Kac1, ele insere em seu tornozelo um chip empregado para ajudar na localização de animais perdidos, registrando-se no sistema de animais, colocando seu nome do nome do proprietário e do animal. Esse trabalho visa fazer uma relação temporal, entre o tempo que o chip demora para ser aplicado sobre a pele, que é muito breve, e a sua permanência naquele local. Além disso, segundo o artista “a presença do chip no interior do corpo nos obriga a considerar a co-presença de memórias vividas e memórias artificiais dentro de nós”. Situação parecida aparece no filme Uma Mente Brilhante (2001), que se trata da biografia do matemático John Forbes Nash. Buscando abordar a esquizofrenia do protagonista, o diretor Ron Howard insere no filme cenas em que o personagem desconfia que foi implantado um chip de localização em seu braço. 1 Atualmente é professor da The School of the Art Institute of Chicago (EUA) e um dos principais nomes brasileiros na área de arte e tecnologia. Sua pesquisa é interdisciplinar e desenvolve-se principalmente em torno da arte, da genética e da tecnologia. 2 Se pensarmos, a inserção de chips dentro de nossos corpos é uma realidade muito próxima - e até aceitável - pois nele poderíamos colocar informações sobre nossa identidade, tipo sanguíneo e alergias, que seriam valiosos em situações de risco, facilitando o transporte desses dados para a área da saúde. Figura 1 - Registro do momento da inserção do chip Além de chips, outras máquinas estão sendo desenvolvidas para melhorar o desempenho de algumas atividades humanas. Atualmente, existem próteses robóticas para substituir os membros perdidos de pessoas acidentadas ou que já nasceram nessa condição. Casos mais conhecidos são os da modelo, atriz e atleta americana Aimee Mullins e do para-atleta brasileiro Paulo de Almeida, que venceu uma competição usando uma prótese. Segundo ele, a prótese jamais irá substituir sua perna, mas admite que com ela, teve as capacidades de seu corpo ampliadas. Com isso, pode-se pensar na questão do corpo estar se tornando algo obsoleto, que vem sendo muito trabalhada no campo da arte, pois “O corpo é uma estrutura nem muito eficiente, nem muito durável. Com frequência ele funciona mal e se cansa rapidamente [...] É suscetível a doenças e está fadado a uma morte certa e iminente”. (STELARC, 1997, p. 54). Pode-se até pensar que em pouco tempo, veremos pessoas querendo substituir partes de seus corpos por próteses que aumentem seu desempenho. Isso acontece devido aos constantes avanços tecnológicos, que permitem que modifiquemos nossos corpos, de maneira que não resistimos às “delícias do upgrade” (SIBILIA, 2002, p.13). Mas podemos tentar entender o porquê de o corpo ter se tornado obsoleto. Qualquer mutação evolutiva, tal como o surgimento de um novo órgão, levaria milhares 3 de gerações para se desenvolver, por essa razão, nosso corpo já não se desenvolve no sentido orgânico (POERSH, 1972, p.149-150). Assim, a solução mais rápida e eficiente está na criação de instrumentos adequados para satisfazer a necessidade humana envolvida. Nas eras geológicas passadas a produção de órgãos demandava milhões de anos em mutações biológicas, ao passo que hoje o fabrico de novos instrumentos se reveza até várias vezes do decurso de apenas uma geração como se fossem apêndices orgânicos do corpo humano. (POERSCH, 1972, p. 149-150) Também podemos perceber a utilização de tecnologias agregadas ao corpo nos projetos de Stelarc2. Desde 1981 o artista tem criado performances a partir dessa questão, contando também com outros componentes tecnológicos. Com seu trabalho Third Hand (1980), ele questiona os limites do corpo, entendendo-o como uma estrutura expansível e agrega e ele um terceiro braço que tem seus movimentos controlados pelos próprios músculos abdominais e da perna do artista. Assim, ele não apenas faz uso de uma espécie de prótese, como defende o uso dela mesmo que não haja uma deficiência física. Nessa obra, o terceiro braço não é proposto em substituição a um membro, é apenas uma maneira de aumentar as capacidades de seu corpo. Em sua primeira apresentação, o artista escreveu simultaneamente com as três mãos, de maneira a exemplificar sua habilidade extra. A performance é uma coreografia de movimentos controlados, restritos e involuntários - de ritmos internos e gestos externos. É uma interação do controle fisiológico com a modulação eletrônica. Das funções humanas com a ampliação da máquina. (STELARC, 1997, p. 56) 2 Nasceu em Limassol na Ilha de Chipre e mudou-se para a Austrália onde estudou Artes e Artesanato na Texas State Technical College (TSTC), Arte e Tecnologia na California Institute of Technology (CALTECH) e no Malla Reddy Institute of Technology (MRIT). Foi professor e Arte e Sociologia na Escola Internacional de Yokohama e Escultura e Desenho na Ballarat University College. 4 Figura 2 - Third Hand (1980). Stelarc Outra proposta artística de Stelarc, que possui um enfoque parecido com Third Hand (1980) é Exoskeleton (1998). Nessa obra, ele liga seu corpo a um robô com seis pernas pneumáticas que são controladas a partir dos movimentos de seus braços, além das pernas robóticas, o trabalho conta com um exoesqueleto na parte superior do corpo. Durante a performance ele consegue se locomover para todos os lados, além de seu corpo estar posicionado sobre uma mesa giratória, o que permite que ele gire em torno do seu próprio eixo. Percebe-se que o artista faz questão de enaltecer a tecnologia usada em seus projetos. Segundo ele “componentes implantados podem energizar e amplificar os desenvolvimentos; exoesqueletos podem acionar o corpo; estruturas robóticas podem se tornar hospedeiras para um enxerto do corpo” (STELARC, 1997, p.59). Figura 3 - Stelarc, durante a performance Exoeskeleton (1998) 5 A partir das obras de Stelarc apresentadas, podemos dizer que “seu interesse é projetar experiências com o corpo a fim de perceber as alterações perceptivas provocadas” (DÖRRENBERG, 2008, p. 349-350). Os frutos desses trabalhos, justamente essas alterações perceptivas, são o principal subsídio que temos para pensarmos nesse novo corpo - que tem suas capacidades expandidas pelas máquinas. De acordo com o pensamento contemporâneo, “uma prótese é uma parte ciber do corpo. Ela é sempre uma parte, um suplemento, uma parte artificial que suplementa alguma deficiência ou fragilidade do orgânico ou que aumentar o poder potencial do corpo” (SANTAELLA, 2003, p. 187). Exoesqueletos também já foram apresentados pela ciência: uma empresa chamada Cyberdyne apresentou, numa feira de tecnologia realizada no Japão, um exoesqueleto concebido para suprir as necessidades de pessoas que trabalham com tarefas pesadas, pois com ele pode-se levantar objetos pesados ou caminhar longas distâncias, sem cansar-se. Segundo a própria empresa, o exoesqueleto pode também atuar no auxílio a pessoas idosas. Figura 4 - O exoesqueleto e seu criador, Yoshiyuki Sankai O exoesqueleto de Stelarc pode nos parecer um pouco mais impactante, talvez pela maneira como é apresentado, considerando que nenhuma empresa trabalhou com formas não humanas. Aqui, a tarefa do artista parece similar à de um ator, na tentativa de “dar um novo corpo, e que se precisa fazer este corpo “passar por uma cerimônia, 6 impor-lhe um carnaval, um disfarce que dele faça um corpo grotesco, mas também extraia dele um corpo gracioso ou glorioso” (DELEUZE, 2009, p. 228). A partir dos trabalhos artísticos e da afirmação que o corpo está obsoleto, chips, próteses e exoesqueletos deixam de ser meras ferramentas que auxiliam em atividades diárias. Elas estão aí para ajudar a figurar este corpo, que é invadido e transpassado pelas tecnologias. Surge daí a figura do ciborgue, definido como um “organismo cibernético que chega para embotar a distinção entre o humano e máquina” (MACIEL & VENTURELLI, 2008, p. 161). Nesse sentido é muito importante pensar em como a sociedade recebe esse novo corpo. Em livros de ficção científica, os autores já previam a figura do ciborgue, e como podemos ver, ele “tem aparecido repetidamente nos filmes de ficção científica dos últimos trinta anos” (SANTAELLA, 2003, p. 187). Este fato, de certa maneira aproximaria as pessoas dessa nova concepção do corpo, mas não quer dizer que ela é totalmente aceita. Seja por questões éticas, como por exemplo, até onde essas modificações poderiam ser feitas, e principalmente testadas; por funções morais, como a categorização do corpo como algo sagrado que não é passível de modificação; assim como a ideia de que com as melhorias aplicadas ao corpo, este pudesse se tornar imortal, contra a crença de muitas pessoas. Finalmente, a questão principal não é se a sociedade vai permitir às pessoas a liberdade de expressão, a liberdade em modificar seu corpo do modo que desejarem, mas sim se o corpo vai poder se adaptar a essas mudanças, ainda sendo corpo. Essa questão nos leva a pensar se estaria o ciborgue substituindo o humano e até se essas duas formas de vida podem ser comparadas dessa maneira, devido ao fato de não pertencerem à mesma natureza. O fato é que não estamos livres de também nos tornamos ciborgues, assim que houver necessidade. Considerações finais A partir do estudo aqui apresentado, procura-se destacar a produção de tecnologia que envolve a criação de extensões completamente adaptadas para alojar-se ao lado do nosso corpo, unindo-se a ele na realização de tarefas pesadas. Além disso, a utilização das tecnologias concentra-se tanto para atuar em grande escala, como por exemplo, em fábricas; e também para uso pessoal, buscando revolver as necessidades próprias de cada indivíduo. 7 Muitas próteses atualmente são criadas com um intuito que vai além da simples substituição das funções de um membro faltante. Hoje, elas são construídas com designs diferenciados, permitindo aos seus usuários executar ações que superam as capacidades de qualquer pessoa que não as portem. Assim, o corpo, considerado obsoleto, encontrase reconfigurado e tem suas habilidades e percepções alteradas. Acredita-se que além de todo o imaginário ciborgue construído através dos filmes - que têm uma boa abrangência sobre o público em geral - os trabalhos artísticos aqui estudados também contribuem para perpetuar a ideia desse novo corpo e as novas capacidades que ele proporciona através das tecnologias. Eduardo Kac dá uma nova dimensão ao chip à medida que deixa de lado questões de outras áreas do conhecimento, e propõe a reflexão sobre o adentrar dele à pele, além das questões de tempo e de memória. Stelarc, além de propor o uso de uma terceira mão, também faz-nos perceber a importância de um elemento tecnológico, tal como o exoesqueleto, quando dá a ele outra significação. Além da forma diferente, ele preocupa-se em mostrar - ao contrário da visão da ciência, que evidencia apenas suas possíveis utilidades cotidianas - como esse amparo tecnológico pode nos trazer novas sensações. Outra contribuição desses trabalhos, tanto artísticos quanto científicos, está no fato de fazer a sociedade refletir sobre como serão nossos corpos futuramente. Será que ainda teremos uma constituição física parecida com a atual, ou continuaremos a nos render às tecnologias até perdermos totalmente nossas características corporais? 8 Referências Bibliográficas CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2008. DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2009. DÖRRENBERG, Maria Teresa Santoro. Corpo: uma superprodução. In SANTAELLA, Lucia & ARANTES, Priscila (orgs.). Estéticas Tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2008. POERSCH, J. L. Evolução e antropologia no espaço e no tempo: síntese da cosmovisão de Teilhard de Chardin. São Paulo: Editora Herder, 1972. SANTAELLA, Lucia. Cultura e Artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003. SANTAELLA, Lucia. O papel das artes na idade do pós-humano. In VENTURELLI, Suzete (org.). Anais do 9º Encontro Internacional de Arte e tecnologia (#9.ART): sistemas complexos artificiais, naturais e mistos. Brasília: UnB, 2010. p. 314-321 SIBILIA, Paula. A digitalização dos corpos. In BENTES, Ivana (org.). Corpos Virtuais (Catálodo de exposição). Rio de Janeiro: Centro Cultural Telemar, 2005. STELARC. Das estratégias psicologias às ciberestratégias: a protética, a robótica e a existência remota. In DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Ed. Unesp, 1997. STELARC. Dos zumbis aos corpos cyborgs: Carne fractal, órgãos quimeras e órgãos extras. In Performance Presente Futuro. Curadoria/ texto crítico de Daniela Labra. Rio de Janeiro: Oi Futuro/Contracapa, 2008. Referências digitais KAC, Eduardo. Time Capsule. Disponível em http://www.ekac.org/timcap.html, acesso em 28 de setembro de 2010. MOON, Peter; RIBEIRO, Aline & BUSCATO, Marcela. O novo homem biônico. Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI120557-15257,00O+NOVO+HOMEM+BIONICO.html, acesso em 14 de maio de 2010. 9 STELARC. Third Hand. Disponível em http://stelarc.org/?catID=20265, acesso em 23 de abril de 2011. __________________. Exoesqueleto de US$ 19 mil dá capacidades de robô ao homem. Disponível em http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2011/03/exoesqueletode-us-19-mil-da-capacidades-de-robo-ao-homem.html, acesso em 20 de junho de 2011. 10
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