Arte e tecnologia: por dentro do sujeito
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Arte e tecnologia: por dentro do sujeito
Arte e tecnologia: por dentro do sujeito1 Josy Panão Hoje em dia a arte cada vez mais lança desafios para o público que a frui. A despeito de uma corrente determinada de pensamento, que cerca em grande grau a contemporaneidade, que conceitua a era em que vivemos como uma imersão, um mergulho, no vazio, num espaço constantemente aberto, propício assim, ao preenchimento a partir de qualquer conteúdo; vemos que existem, com o avanço da tecnologia, frentes artísticas que procuram artifícios para refletir a inserção do homem, do sujeito, no mundo, preenchendo, ou injetando novas formas criativas e questionadoras dentro desse vazio. Os leitores mais conservadores condenam esse vazio como sendo o depreciador das manifestações artísticas da atualidade, geralmente taxam que tais manifestações não possuem um conteúdo mais abrangente e nobre no que se refere à apreciação e à receptividade da obra de arte. A este respeito, para que possamos compreender o que essas novas manifestações representam na caracterização, na concepção e nas relações do homem contemporâneo, devemos voltar um pouco mais no percurso histórico da arte. Concordando com apontamentos do filósofo francês Gilles Lipovetsky, em seu livro A era do vazio2, temos que, para compreender uma nova era anunciada pelas artes, refletir sobre como se deu o ciclo de suas manifestações anteriores, ou seja, para que desmistifiquemos possíveis leituras comprometidas pela nostalgia preconizada pelas correntes defensoras de uma experiência estética meramente contemplativa, devemos retomar os processos de suas transformações. Observando o decorrer da história da arte, então, vemos que a partir da proposta modernista a concepção de Belo e de receptividade do produto artístico passam por uma grande modificação. Modificação esta que não se dá de forma outra que não seja a partir de uma ruptura com as concepções clássicas destes mesmos conceitos. A proposta estética modernista pauta-se 1 Artigo publicado na Revista Filosofia, Ciência & Vida. LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo . Barueri: Manole, 2005. 2 1 na descontinuidade dos valores ditados pela tradição clássica, seja enquanto proposta artística seja enquanto comportamento de seus adeptos. Postulando que a arte possa ser o espelhamento de um contexto, de uma condição de vivência do homem no mundo, fruindo as novas tendências artísticas, tomando as experiências estéticas por outras bases, por novos vieses, que exigem mais de quem acessa as suas chocantes expressões na atual era, podemos considerar que as vanguardas surgidas com o modernismo, muito além de poderem circunscrever as discussões estéticas, podem também nos ajudar na leitura e entendimento do vazio, conceito, como já exposto, tão difundido na compreensão contemporânea. Com o modernismo, corrente que vai se configurando no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX e que encontra sua grande expressividade a partir das postulações de Baudelaire, vemos que uma nova lógica revolucionária, visando o esgotamento e a negação da tradição, instaura novos pontos convergentes à reflexão do que é a arte e seu novo papel e, também, como o homem passa a se inserir neste contexto de lógica invertida da tradição. Se quisermos considerar que essa ruptura proposta por essas vanguardas contribuíram para um esvaziamento presente nas sociedades contemporâneas, nada nos impedirá de fazê-lo. No entanto, precisamos compreender de que modo o vazio nos importuna ou nos configura, nos prepara diante da vida, e de que forma a arte perde sua valoração mais costumeira e nobre como costumava se considerar antes da chegada do modernismo às nossas discussões. É inegável que a afirmação do vazio muito requer de nossas reflexões, justamente porque insere o homem num contexto que passa a exigir muito mais de sua responsabilidade e de sua efetiva ação no mundo. Nesse espaço concebido pelo vazio nossa visão se abre muito mais para perceber que o homem e sua expressividade, tanto subjetiva quanto artística, encontram-se cada vez mais num ambiente fluído e sem pontos fixos para se escorarem. Queremos dizer com isso que, ao contrário do que a tradição preconizava, de todas as condições imutáveis e transcendentes que ela ditava, concebendo 2 assim, ao homem paradigmas fixos para a configuração da sua subjetividade, entendemos que nosso contexto atual demonstra cada vez mais que o vazio se abre para a criação e, de certa forma, expande nossas vivências para a expressão e compreensão do mundo. Quando passamos a ser exigidos pelo vazio, passamos a nos pautar sempre mais nas nossas reais condições de existência, estamos cada vez mais impregnados do mundo, que, sem realidades transcendentes a si, passa a representar um contexto propício a criação. E a arte passa então a exprimir essa realidade nova, uma realidade que pode ser dada a partir da autonomia e criação do sujeito artístico, realidade esta que substitui a costumeira realidade que nos fora delegada pela clássica concepção objetiva da realidade, ou seja, a realidade que amparava a contemplação da obra a partir da objetividade exterior ao artista passa a incorporar para suas concepções toda uma realidade mais rica e de uma gama infinita de possibilidades criativas, é com se fosse a abertura do caminho para se falar mais da presença da interatividade entre público e obra do que a contemplação distanciada que a produção clássicotradicional da arte propunha. Como vimos, as vanguardas modernistas deram o impulso para as grandes distinções entre os padrões estéticos das manifestações da arte. Com isso, quando analisamos as suas expressões em nossos dias, vemos que a incorporação da vida cotidiana na arte passa a ser mais presente e exigir que se faça sempre uma reflexão mais atenta desse espelhamento que ela propicia da sociedade onde se desenvolve. Michael Rush, em seu livro Novas mídias na arte contemporânea 3, contextualiza a presença das vanguardas, que desta vez centram-se no final do século XX, num ambiente de grandes revoluções, especificamente dentro de um ambiente de revolução tecnológica - que acreditamos que cada vez mais possibilita que as fronteiras entre os membros de uma sociedade e no contexto de produção artística se liquidifiquem, se diluam, exigindo assim, que nossas reflexões acerca do indivíduo se façam e se acentuem no sentido de questionar esse espaço vazio como um abismo para as produções artísticas. 3 RUSH, M. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 3 A partir da apropriação tecnológica pelo artista, observamos como as distinções estéticas, entre a contemplação clássica e a interatividade a partir da arte no âmbito tecnológico contemporâneo, possibilitam que percebamos um mundo em fluxo vital constante, que nos coloca em contato com a produção artística em movimento e não mais estática. O advento da fotografia, do vídeo, do filme, da realidade virtual, entre outros conceitos dessa espécie, que tão largamente são difundidos entre nós na a atualidade, reforçam e corroboram ainda mais na questão do engendramento da arte no cotidiano, citando Rush, “a arte baseada na tecnologia (...) direcionou a arte para áreas outrora denominadas por engenheiros e técnicos.”4 Hoje em dia encontramos cada vez mais artistas com formação dentro dessas áreas. Muito mais que um propósito de ruptura a arte tecnológica requer a inserção pessoal do artista na sua manifestação, nesse sentido, observamos que a utilização desses novos meios não visa somente a produção de conteúdos voltados para a sua comercialização, mas sim uma relação mais abrangente da produção pessoal do artista e de seu publico interativo. Outro teórico bastante conceituado na analise da arte no âmbito das mídias dos meios tecnológicos -, Arlindo Machado, nos diz que “a arte sempre foi produzida com os meios de seu tempo” 5, a partir disso, então, notamos mais aclaradamente o caráter de possibilidades criadoras que a arte desempenha entre nós. Se utilizando dos meios de seu tempo a arte renova-se denotando em seu avanço e numa melhor expressão da sensibilidade do homem imerso numa sociedade cada vez mais envolta nas redes tecnológicas. A arte no ambiente tecnológico, distanciada de uma fruição contemplativa, quebra, ou dificulta, uma narrativa linear e requer a todo o tempo a interação, a dissolução fronteiriça entre o sujeito-artista, o objeto-obra e o sujeito-público, propondo que este último possa imergir numa dimensão sua que fica obscurecida e suplantada diante, principalmente, do preenchimento indevido do vazio que cerca a sociedade atual através, digamos, das apropriações capitalistas produtoras de cultura de massa. Acreditamos que essa massificação aliena a interioridade - a subjetividade, tanto do artista 4 5 Op.cit. p. 4 MACHADO, A. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. p. 9. 4 contemporâneo quanto de cada indivíduo receptor-interator da manifestação da arte no domínio da tecnologia. Todos esses conceitos apresentados ficam mais aclarados quando temos a oportunidade de experenciarmos exposições como a Inside, do grupo canadense Molior. A exposição Inside, que foi apresentada inicialmente na China, em 2006, e que agora é apresentada, no período de 5 de maio a 20 de julho de 2008, no Paço das Artes, em São Paulo, fazendo uso dos meios disponíveis em seu tempo da tecnologia -, procura exatamente questionar as inviabilidades que a própria tecnologia, que quando impregnada dos modos de massificação dos meios, imputa à vivificação da experiência subjetiva individual, por isso as seis obras expostas por oito artistas quebequenses revelam o preciosismo da descoberta do interior de que se pode vivenciar na exposição. O termo é exatamente esse: vivenciar, interagir com as obras, para que a arte, de fato, exista. Dentro do ambiente de Inside somos o tempo todo invadidos pelas construções artísticas midiáticas, todas as obras apresentam interfaces que exigem nossa presença, nossa afetação no espaço expositivo, a todo tempo somos solicitados para a experimentação individual de nossa interioridade, seja a partir de nosso toque numa tela de interface touch screen, seja a partir de um controle manual que capta os níveis de nosso stress ou seja a partir de nossa simples presença no espaço, que através de sensores transcodificam nossas presenças em áudio em determinado ambiente da exposição. No intuito de embasar alguns conceitos expostos aqui, consideramos que seja importante a rápida descrição de cada uma destas obras. A obra Data (2003-2006), das artistas Gisèle Trudel e Stéphane Claude, fundadoras do núcleo de pesquisa AE, a partir da obtenção de imagens por instrumentos científicos altamente desenvolvidos, possibilita que experenciemos os níveis da realidade que nos escapam à uma apreensão imediata. Quando adentramos no espaço midiático-interativo da exposição da obra, sensores captam nossa presença e nossa movimentação até que nos 5 aproximemos de uma minúscula tela que exibe as imagens capturadas a partir dos microscópios eletrônicos por varredura de força atômica e a transcodificam em som, que preenche todo o espaço expositivo. Outro ambiente da exposição Inside, com curadoria de Sylvie Parent, é o reservado para o artista Alexandre Castonguay, que em sua obra Digitale (2003-2004) propõe a interação do espectador com as imagens que se produzem a partir de uma máquina fotográfica. Conectada a uma tela de interface touch screen, posicionada num banco onde as pessoas sentem-se convidadas a sentar e interagir com as imagens lá projetadas, com nosso passar dos dedos sob a tela traçamos um caminho fluído, líquido, entre as imagens captadas a partir da câmera, nesta tela as imagens são captadas em tempo real no espaço da exposição e também se projetam numa parede em frente ao banco no qual o interator da obra pode se sentar, porém essas imagens, projetadas na parede, congelam-se quando este aciona o botão da máquina. Aos poucos esta imagem paralisada na parede vai se desvanecendo, enquanto as imagens projetadas na tela localizada no banco permanecem em constante captação. Jean Dubois, artista da obra Tact (2000 – 2001) propõe o encontro do interator, o participante da exposição, com um personagem anônimo que está sendo projetado numa tela, também de interface touch screen, localizada no centro de uma estrutura circular, que intencionalmente se assemelha a um espelho, justamente para causar um estranhamento, pois, habitualmente, quando nos olhamos no espelho esperamos nos encontrar nele e não com um terceiro. A imagem do terceiro projetada na tela causa desconforto, ela se movimenta incessantemente, o que a torna incompreensível e que nos induz a usar outro sentido que não a visão para o seu reconhecimento, portanto, quando tocamos a tela com a ponta dos dedos conseguimos paralisá-la, podemos identificar o terceiro no espelho e não nos mesmo. Nesse contexto, somos levados por caminhos sinuosos à nossa própria interioridade. O ambiente de Perversely Interactive System (2002), desenvolvido pelos artistas Lynn Hughes e Simon Laroche, é instigante. Composto por um telão, que projeta a imagem de uma mulher de costas para o participante da obra, e a 6 interface como um controle manual, desenvolvido especialmente para esta obra pelos artistas, que capta nossas freqüências de stress, exige que o participante, abstraindo o espaço exterior e voltando-se para sua interioridade reduza seus níveis de tensão e faça com que a mulher projetada no telão virese para ele e caminhe ao seu encontro, havendo o descompasso de nossos níveis internos perdemos a interseção e a mulher volta a virar-nos as costas. A perversão da obra consiste exatamente nisso, na medida em que cresce nosso desejo de fazer a imagem caminhar até nós, os nossos níveis internos se alteram e perdemos o contato com o externo, perdemos a interseção como a obra. Brad Todd, artista que desenvolveu a obra redTV (2007 – 2008), mapeia as imagens transmitidas em tempo real por sinal de televisão a partir de um programa de computador, que torna visível, ainda que irreconhecível, imagens que não conseguimos captar a olho nu. O ambiente instalativo da obra é composto por um aparelho portátil de TV sintonizado numa emissora televisiva local e da projeção das imagens mapeadas na parede. A partir da cartografia promovida pelo programa de computador percebemos que o fluído, o fluxo imagético, nos escapa às percepções imediatas e que com a exploração tecnológica podemos encontrar instrumentos que nos auxiliem na compreensão de uma realidade de devir, de constante movimentação. A sexta obra, detalhada aqui e apresentada em Inside, é a obra da artista Beewoo, chamada Habitgram (2004). A obra acontece num ambiente envolto de quatro paredes, no centro desse espaço, pendurado por uma corrente, encontramos um casaco com câmeras de vigilância acopladas em seu interior, o ambiente possui sensores que captam os sinais emitidos pelas câmeras e as projetam nas paredes que cercam a instalação, nossa movimentação interfere o tempo todo na captação destes sensores e projeção das imagens nas paredes. Ao vestirmos o casado, com seu peso desconfortável, experimentamos certo desequilíbrio que parte do exterior das percepções e transfere-se também ao nosso estado interior imerso em Habitgram. A partir do exposto, de todo questionamento imposto acerca da arte na contemporaneidade, de toda a dificuldade de aceitação e compreensão de 7 suas propostas, não podemos nos furtar da idéia de que ela – a arte – espelha a constância de um ambiente vivo, que expressa o mundo em todas as suas dimensões, todas as suas imanências, por isso quando o avanço tecnológico auxilia a na criação humana da realidade, promovendo a interatividade bem mais que a contemplação, notamos que, ao nos propiciar ferramentas de leitura e conhecimento do homem e do mundo, a manifestação artística exerce e reafirma seu papel de colocá-lo em ambiência às suas questões e conflitos internos e também a toda existência externa a si, que é o mundo. O homem transpassado pelas atuais desenvolturas tecnológicas promove cada vez mais mecanismos que viabilizam estruturas que nos permitem o embate sempre direto entre nossas dimensões constituintes, entre nossa interioridade subjetiva e nossa exterioridade objetiva, com tudo que ela possa abranger. Este embate, contudo, não representa separação efetiva dessas dimensões, o que há é a necessidade de refletirmos mais concisamente acerca de nossas trocas interiores com o mundo a nossa volta. A este respeito, para finalizarmos, podemos citar Sylvie Parent, curadora de Inside, num trecho que ilustra bem o jogo do interior e do exterior na estética tecnológica. No contexto atual, em que reinam a superficialidade e a fugacidade dos conteúdos difusos nas telas, ainda é possível criar esse espaço interior associado intimamente com o mundo, como propõem os projetos reunidos para esta exposição (Inside) (PARENT, 2008. In: Catálogo da exposição) Referências: CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Barueri: Manole, 2005. MACHADO, Arlindo. Arte e mídia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. GUALANDI, Alberto. Deleuze. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. PARENT, Sylvie. Internamente. In: Catálogo da exposição Inside. São Paulo: Paço das Artes, 2008. 8 RUSH, Michael. Novas mídias na arte contemporânea. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. São Paulo: Nobel, 1987. 9
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